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A dinâmica transmídia de fake News mediada por hashtags

Geane Carvalho Alzamora 1

1. INTRODUÇÃO

A dinâmica de circulação de fake news obedece à lógica de propagação dos boatos,


porém utiliza componentes maquínicos, como é o caso da ação reticular dos algoritmos
(GILLESPIE, 2014), para alavancar seu alcance social. O uso social de hahstags é
particularmente relevante nesse cenário porque impulsiona a visibilidade de agregados
sociotécnicos mobilizados em torno de interesses em comum nas conexões de redes sociais
online. Trata-se de uma lógica de circulação mobilizada pela crença, não pela verdade.
Desse modo, inscreve-se na concepção de lógica de Charles Sanders Peirce (1939-1914). De
acordo com Peirce, lógica é sinônimo de semiótica, uma ciência normativa que guia nossas
ações com base em fundamentos éticos e estéticos. Para abordar a questão, elegemos três
questões articuladas entre si: a) o que significa fake news; b) por que se propagam de modo
tão intenso; c) de que modo interferem nas crenças coletivas e balizam o senso comum de
verdade.

A discussão configura-se no âmbito da pesquisa “A dinâmica transmídia mediada


por hashtags em conexões de redes sociais online - agenciamentos semióticos e
sociotécnicos em contextos de grande mobilização social” (Bolsa Produtividade em
Pesquisa /CNPq – Processo: 311914/2016-0), que se desenvolve, sob minha coordenação,
em diálogo com esforços metodológicos coletivos que vêm sendo empreendidos no Núcleo
de Pesquisa em Convergência Intermidiática da UFMG (http://nuccon.fafich.ufmg.br/).
Procedimentos de coleta automática e manual adotados nas pesquisas coletivas do grupo são
utilizados como referência metodológica. Os dados são analisados conforme orientações
teórico-metodológicas da Teoria Ator-Rede (TAR) e da semiótica peirceana.

1
Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, membro
docente permanente do PPGCOM/UFMG. Suas pesquisas, com apoio do CNPq (Produtividade em
Pesquisa - Processo n. 311914/2016-0), Fapemig (PPM-002562-18) e Capes (PROAP; BEX 2390/14-0),
abordam jornalismo, transmídia e semiótica – geanealzamora@ufmg.br.

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É com base nessa perspectiva teórico-metodológica que são descritas e analisadas as
ações sociais e jornalísticas vinculada às hashtags em análise nas conexões das redes sociais
online, notadamente Twitter e Facebook. Os veículos jornalísticos são aqui entendidos como
atores-rede e, desse modo, são observados enquanto agem conjuntamente com outros atores
na rede traçada pelas hashtags em análise. Nesse processo, buscamos saber: “Quando se age,
quem mais age? Quantos agentes se apresentam?” (LATOUR, 2012, P. 71). Para orientar
esse processo metodológico, realizamos em 2018 pesquisa exploratória do universo a ser
investigado considerando, dentre outras, a mediação da hashtag #fakenews, com o intuito de
configurar o corpus da investigação, procedimento qualitativo que tipifica atributos
desconhecidos (BAUER; AARTS, 2000). O presente trabalho se refere a essa fase do
estudo.

O modelo peirceano da semiose é tomado como referência analítica para descrever a


rede traçada pela mediação das hashtags em estudo. A noção peirceana de mediação
encontra-se diretamente relacionada à noção de semiose, sendo esta uma noção que descreve
a ação sígnica triádica e sua dinâmica contínua de mediação (ALZAMORA, 2017). Trata-se
de um processo reticular de mediação que envolve a determinação oriunda de um signo
precedente, seu objeto, e a representação, por associação (experiência colateral), de um
signo posterior, seu interpretante.

De acordo com Bergman (2010), a noção peirceana de experiência colateral


descreve a impossibilidade de qualquer contato com os objetos da representação, ou
referências, exceto através das mediações sígnicas. Do ponto de vista metodológico, essa
concepção permite apreender a rede traçada pelo encadeamento transmidiático das
hashtags e a configuração semiótica de tal mediação para além dos rastros capturados
automaticamente.
A análise da dinâmica jornalística transmídia, configurada pela mediação
semiótica e sociotécnica das hashtags, é analisada considerando: a) estrutura e contexto;
b) construção do universo narrativo; c) plataformas e gêneros; d) personagens; e)
engajamento social e audiência reticular; f) estética (GAMBARATO; ALZAMORA;
TÁRCIA, 2014). Deve-se ressaltar que a construção do corpus deriva da combinação
entre dados empíricos coletados automaticamente e manualmente, além de conceitos

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norteadores da investigação, como semiose/mediação e engajamento/agenciamento, o que
circunscreve a centralidade teórico-metodológica das noções de mediação e
agenciamento derivadas da TAR e da semiótica peirceana nesta investigação.
As hashtags (signos) são aqui tomadas como processos de mediação que operam
semiosicamente em referência aos processos de vinculação sociotécnica que as determinam
(objeto), assim como em relação aos contextos variados de associação que evocam novos
significados em dinâmicas variadas de engajamento social (interpretante). Trata-se, em
nosso entendimento, de dinâmicas de difícil apreensão porque lidam com associações
sígnicas imponderáveis, já que delineadas em processos variados de familiaridade com os
significados que delas emanam (experiência colateral) e conforme o sentimento de adesão
identitária que surge em cada situação comunicativa.

O sentido da hashtag é, assim, configurado em cada situação comunicativa sem,


contudo, perder a referência a um contexto mais amplo de significação, o que demanda a
proposição de procedimentos metodológicos diferenciados, porém integrados, fundados em
abordagem notadamente multi e transdisciplinar. É com base nessa perspectiva que
averiguamos a configuração semiótica e sociotécnica dos agenciamentos deflagrados pelo
uso social e jornalístico da hashtag #fakenews, encadeada ou não com outras hashtags, para
aferir sua capacidade mediadora no contexto empírico investigado, a saber: a dinâmica
jornalística transmídia da cobertura das eleições presidenciais do Brasil em 2018 observada
em conexões de redes sociais online, como Twitter e Facebook.

Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia 2015 2, realizada pelo Instituto Brasileiro


de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) por encomenda da Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República (SECOM), 92% da população brasileira conectada faz
uso das redes sociais online. Desse número, o Facebook aparece como líder, com 83%,
seguido pelo Whatsapp com 58% dos votos. Na sequência aparecem Youtube, com 17%,
Instagram, com 12%, e o Google+, com 8%. O Twitter foi mencionado por apenas 5%
dos entrevistados, mas se torna relevante no cenário investigado porque, além de ser

2
Informação disponível em: < http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-
quantitativas-e-qualitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf> Acesso em:
30/06/2016.

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muito utilizado em contextos de mobilização política, conecta várias das principais
hashtags utilizadas nas manifestações políticas brasileiras desde as Jornadas de Junho de
2013. As hashtags de cunho político aparecem recorrentemente nos Trending Topics 3 do
Twitter, o que atesta ser este um tema muito relevante para os usuários da plataforma.

2. JORNALISMO TRANSMÍDIA

O jornalismo multiplataforma e participativo desponta como tendência na Cultura da


Convergência (JENKINS, 2006), o que enfatiza a necessidade de revisar aspectos teóricos e
metodológicos do jornalismo, tradicionalmente investigado em perspectiva monomidiática e
especializada. À medida que as mídias se espalham, hibridizando-se em variadas
plataformas (JENKINS; FORD; GREEN, 2013), as especificidades midiáticas do jornalismo
se tornam opacas e os processos de participação cidadã na produção e circulação de notícias
tendem a crescer.

Acreditamos que aspectos delineadores da atividade jornalística contemporânea,


como distribuição multiplataforma, multimidialidade, interatividade e participação
convergente (BARBOSA; SILVA; NOGUEIRA, 2013), demandam revisão de preceitos
clássicos do jornalismo fundados, por exemplo, na Sociologia dos Emissores (WOLF,
2003). Para Jaber (2010) a reconfiguração dos processos de produção da notícia e a
modificação das rotinas enfatizam a crise dos modelos tradicionais de jornalismo. O desafio
é encontrar aportes teóricos e metodológicos pertinentes ao cenário contemporâneo, o que
motiva o desenvolvimento deste projeto.

Ramonet (2011) considera que estamos passando da era dos meios de massa à era da
massa dos meios. Ele chama de meios-sol aos sistemas midiáticos de massa, em torno dos
quais gravitava a informação jornalística ao longo do século 20, e de meios-polvo aos
sistemas midiáticos contemporâneos, que se processam em multiplataformas midiáticas.
Essa configuração midiática remete à ecologia midiática na dinâmica transmídia, que
entrelaça meios de massa e mídias sociais pela ação criativa de uma coletividade engajada.

3
Sistema oferecido pela plataforma do Twitter para dar visibilidade às hashtags mais comentadas
durante um curto período de tempo.

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A discussão inscreve-se em fenômeno emergente designado jornalismo transmídia,
o qual opera por expansão, exploração e diversidade de pontos de vista (SCOLARI, 2013).
Deve-se ressaltar, porém, que nem toda informação jornalística dispersa em rede deve ser
caracterizada como transmidiática (ALZAMORA; TÁRCIA, 2012), o que nos instiga a
decifrar o alcance do conceito como categoria explicativa do contexto empírico que se
investigado. Trata-se de uma modalidade jornalística ancorada na Cultura da Convergência
(JENKINS, 2008), a qual não se refere unicamente à interconexão de canais de distribuição,
mas sobretudo a um processo cognitivo fundado no comportamento participativo e
migratório das audiências.

De acordo com Ryan (2004), o estudo da narrativa transmídia prioriza as substâncias


semióticas dos meios e o modo tecnológico de elaborar a narrativa, aspectos considerados
relevantes em nossa abordagem, a qual busca compreender os agenciamentos semióticos e
sociotécnicos mediados por hashtags em contextos políticos relacionados a grandes
mobilizações sociais, marcadamente ativista (POELL: VAN DIJCK, 2015). Em sintonia
com nosso percurso prévio de investigação, partimos do pressuposto de que a semiótica
pode oferecer contribuições a esse empreendimento. Scolari (2008) enfatiza que não existe
uma semiótica dos hipermeios ou mesmo uma teoria da semiosfera, embora existam
esforços isolados que sugiram a constituição desse campo.

Com base na semiótica peirceana, compreendemos as hashtags como processos


sígnicos que cumprem a função mediadora de continuidade, generalidade e crescimento
em dois níveis. Por um lado, operam como signos mediadores entre a determinação
oriunda de certo posicionamento comum, seu objeto, e um efeito de vinculação
sociotécnica, seu interpretante. Por outro lado, as hashtags exercem a função mediadora
de conectar uma instância de significação a outra ao vincular posicionamentos afins. De
acordo com Baitello (1999, p. 87), vincular significa “ter ou criar um elo simbólico ou
material”. A hashtag é, desse modo, um elo simbólico que vincula posicionamentos afins,
dispersos em rede. Constitui-se, então, em um agenciamento semiótico que também é
sociotécnico (CALLON, 2006) porque envolve elementos variados, como técnicas,
procedimentos, textos etc. Opera, desse modo, como elemento mediador na dinâmica
transmídia.

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A noção de transmídia, cunhada por Marsha Kinder (1991) como
intertetextualidade transmídia descreve como as narrativas midiáticas contemporâneas se
propagam na interseção dos meios, embora cada configuração textual apresente
autonomia semiótica e seja continuamente expansível pela ação integrada de produtores e
consumidores.
A propagabilidade, aspecto fundamental na dinâmica transmídia, se refere aos
recursos técnicos que tornam mais fácil a circulação de algum tipo de conteúdo em
comparação com outros, às estruturas econômicas que sustentam ou restringem a
circulação, aos atributos de um texto de mídia que podem despertar a motivação de uma
comunidade para compartilhar material e às redes sociais que ligam as pessoas por meio
da troca de bytes significativos (JENKINS; GREEN; FORD, 2013). A propagação de
conteúdos em conexões digitais ocorre, portanto, pela conjugação de ações humanas e
algorítmicas mediadas por aspectos econômicos, políticos, institucionais e identitários.
Trata-se de processo comunicacional que se expande com base em crenças
compartilhadas, sendo esse processo semioticamente particular em cada ambiente
midiático (ALZAMORA; ANDRADE, 2018).
No twitter, por exemplo, imperam os rastros indiciais, por meio dos quais as
hahstags alcançam visibilidade social diferenciada nos trending topics. Já no Facebook,
assim como nas ruas, as hahstags operam semioticamente em predomínio simbólico,
configurando redes de sentido modeladas por convenções sociais que se concretizam no
uso comum de determinada hashtag. A circulação transmídia de fake news
frequentemente faz uso de configurações semióticas variadas para ampliar seu alcance
social.

3. CIRCULAÇÃO TRANSMÍDIA DE FAKE NEWS

A dinâmica de propagação de fake news combina ações humanas e algorítimicas


com base em aspectos identitários que permeiam o conteúdo noticioso. O que torna a
notícia falsa particularmente atraente, portanto, é sua capacidade de congregar crenças
comuns, independente de serem falsas ou verdadeiras. Esse processo, porém, não é novo.
O que o torna particularmente relevante na contemporaneidade é sua capacidade de
propagação em conexões de redes sociais online.

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Allcott e Gentzkow (2017) definem notícia falsa como artigos noticiosos que são
intencionalmente e verificavelmente falsos, embora capazes de enganar os leitores. Os
autores apresentam vários exemplos antigos de notícias falsas, como é o caso do jornal
norte-americano New York Sun, que em 1835 publicou uma série de reportagens sobre a
descoberta de vida na lua. Teorias de conspiração com implicações políticas permeiam,
segundo eles, a longa história de fake news nos EUA.
Em qualquer época, a notícia falsa ancora-se na capacidade que apresenta de
impactar e gerar comoção, aspectos típicos da noticiabildiade jornalística (WOLF, 2003),
para se disseminar socialmente. Do ponto de vista semiótico, os índices que apontam para
a referencialidade da notícia são atrofiados em prol de certa convenção social
simbolicamente configurada pela notícia. Assim, o que regula a circulação desse tipo de
notícia, em qualquer tempo, é a credibilidade, não a verdade.
Essa é uma questão importante para o jornalismo ao longo dos tempos. Em 1850,
Balzac já advertia que a imprensa preza a crença, não a verdade. Para Lippmann (1922),
notícia e verdade devem ser claramente distinguidas. De acordo com Alsina (1989), o
enunciador lança mão de marcas de veracidade na construção da notícia que lhe
permitam criar uma ilusão de referência. Alsina (idem) ressalta o mecanismo pragmático
da significação da notícia em detrimento do cânone da notícia.
Charles Sanders Peirce (1839-1914) é considerado o fundador do pragmatismo,
doutrina de refinamento lógico das ideias. O fundamento de seu arcabouço teórico é a
lógica, ou semiótica, ciência que investiga o percurso de aprimoramento lógico da ação
sígnica, também chamada mediação ou semiose. Essa vertente teórica que examina a
formação de hábitos em relação à fixação de crenças e ao ideal de verdade, aspectos
muito relevantes na compreensão do engajamento social que impulsiona a circulação
viral de notícias falsas.
Em dos primeiros textos que publicou sobre o pragmatismo, Peirce (1877) propõe
quatro métodos para a fixação das crenças: tenacidade, autoridade, a priori, científico. Os
quatro métodos são muito propícios para se compreender o mecanismo semiótico de
propagação de notícias falsas.
No método da tenacidade a opinião é estabelecida puramente por alguém se aferrar
obstinadamente às próprias crenças. É o que se oberva predominantemente na circulação

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transmídia de fake news. No método da autoridade a crença não é fixada pelo próprio
indivíduo, mas é coagida por uma instituição. No método a priori a crença é fixada
procurando-se aquelas crenças concordantes com a razão. Já no método as ideias são
fixadas não por aquilo que desejamos acreditar, mas por evidências. É o que menos se
observa na circulação transmídia de fake news.
Na fase da pesquisa exploratória de nossa investigação, que compreende o que se
apresenta aqui, rastreamos, por meio de coleta automática no Twitter e coleta manual no
Facebook, notícias fortemente compartilhadas com base na hashtag #fakenews. No
cenário investigado, marcado pelas eleições presidenciais no Brasil em 2018, observamos
presença majoritária de notícias com viés político-partidário compartilhadas por
mediação dessa hashstag nas conexões de redes sociais online, marcadamente Twitter e
Facebook. Na fase posterior da investigação, os dados serão sistematizados e
categorizados com base em operadores analíticos que privilegiam os critérios de
noticiabilidade e os métodos peirceanos de fixação da crença. Em uma análise preliminar
dos dados coletados, é possível constatar a presença de múltiplos aspectos envolvidos nas
relações comunicacionais observadas, evidenciando graus variados de afetação e
engajamento nos ambientes midiáticos investigados.
Trata-se de processos identitários fragmentados e plurais que se configuram em
associações circunstanciais baseadas em crenças compartilhadas pela mediação de uma
mesma hashtag. Nota-se que a propagação do conteúdo noticioso mediado pela hashtag
#fakenews, encadeada ou não com outras hahstags, visa alcançar visibilidade expandida
em conexões de redes sociais online ao congregar posicionamentos afins. O que impera,
portanto, é o compartilhamento de uma crença comum, não a busca social pela verdade.
A noção de verdade que emerge desse cenário é um efeito de sentido projetado
coletivamente com base em crenças comuns.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A notícia, seja ela falsa ou verdadeira, é aqui entendida como processo de


significação cujo efeito prático será uma crença compartilhada na forma de opinião.

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Assim, falsidade e veracidade são compreendidas como operações de sentido que
permeiam o processo de significação das notícias.
A circulação de fake news favorece a adesão social em torno de crenças comuns,
não a busca comum por um ideal de verdade. O alcance social de tais conteúdos
noticosos é diretamente proporcional à sua capacidade de angarir interesses em comum,
os quais são amplificados pela conjunção de ações humans e algorítimicas em conexões
de redes sociais online. Quanto maior for sua capacidade de gerar impacto social, maior
será a adesão social agenciada em sua propagação. O processo é motivado por um crença
comum, independente de ser verdadeiro ou falso o conteúdo noticioso em questão.
As notícias falsas se propagam, portanto, conforme os mecanismos de
compartilhamento das esferas midiáticas da contemporaneidade, um processo que é
nitidamente transmidiático. Compreender a dinâmica transmídia como uma lógica da
comunicação contemporânea é, conforme nossa abordagem, pressuposto fundamental
para examinar a dinâmica de circulação de fake news.

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26
Trabalho Digital e Circulação Comunicacional

Rafael Grohmann
Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.
Realiza estágio de pós-doutoramento na ECO-UFRJ

Big Data, algoritmos, plataformas digitais: expressões como essas são circuladas
de maneira fetichizada ou esvaziada de sentidos – como um falar para não falar, um
mantra para dizer-se a par das “novidades tecnológicas”. Com uma chave simplificada
para louvar ou demonizar as questões tecnológicas em âmbito comunicacional, perde-se
sua dimensão dialética, no sentido de compreender as suas contradições. Como afirma
Eagleton (2012, p. 37), “toda extensão de comunicação humana traz consigo novas
formas de comunidade e novos tipos de divisão. Tecnologias novas podem frustrar o
potencial humano, mas também são capazes de aumenta-lo”. Ou seja, trata-se de não
essencializar as tecnologias na pesquisa em comunicação.
Defendemos uma abordagem que considere as interrelações entre tecnologias
digitais e processos produtivos, com um olhar a partir do mundo do trabalho e do modo
de produção capitalista. Trata-se de “re-corporificar” (Huws, 2011) a tecnologia, em um
mundo tratado como se “imaterial” ou “virtual” fosse. Consideramos as tecnologias como
práticas sociomateriais, não apartadas das relações de poder e da sociedade. Isso significa
um afastamento em relação a perspectivas que pensem em tecnologia de maneira isolada
ou como “motor da História”, pois ela não transforma nada sozinha.
Conforme Ampuja (2015), “a emancipação depende não da transformação das
estruturas tecnológicas, mas da transformação dos sistemas políticos e estruturas de poder
privado dentro das quais aquelas estão incorporadas” (Ampuja, 2015, p. 66). Não se trata
de desconsiderar a tecnologia em seus aspectos formais (como se a fuga para um
tecnodeterminismo fosse outro tipo de determinismo), mas de concebê-la como algo que
é “material” e “concreto”, não exatamente a partir do que advoga a “teoria alemã das
mídias”, mas a partir da materialidade da vida social – da qual as tecnologias fazem parte.
Trata-se, pois, de compreender as tecnologias da comunicação a partir da
imbricação dos processos comunicacionais e produtivos, da comunicação e do mundo do
trabalho, no sentido colocado por Williams (2011):
a comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas
distintamente humanas de trabalho e de organização social, constituindo-se
assim em elementos indispensáveis tanto para as forças produtivas quanto para

27
as relações sociais de produção [...] Os meios de comunicação, tanto como
produtos quanto como meios de produção estão diretamente subordinados ao
desenvolvimento histórico (Williams, 2011, p. 69).

Essa interrelação se dá tanto no “micro” das atividades de trabalho dos sujeitos, como no
modo de produção capitalista, tal qual afirma Sodré (2014, p. 85), “a comunicação, em
sua prática, é a ideologia mobilizadora de um novo tipo de força de trabalho,
correspondente à etapa presente de produção das mercadorias por comando global”.
Neste contexto, a tecnologia se situa como fruto do trabalho humano (e, portanto,
dos processos produtivos), que, de alguma maneira, também comunica modos de
existência, no sentido mesmo de um circuito marxiano produção-consumo (Marx, 2011).
Isto é, as tecnologias são fruto do trabalho humano ao longo da História, e o
desenvolvimento tecnológico se relaciona com as forças produtivas e as relações de
produção, em conformidade com Vieira Pinto (2005, p. 49), para quem “toda
possibilidade de avanço tecnológico está ligada ao processo de desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade, a principal das quais cifra-se no trabalho humano”. Desta
forma, como afirma Vieira Pinto (2005), não existiria, por si, uma “era tecnológica” ou
uma “explosão tecnológica”, pois os seres humanos sempre desenvolveram, a partir de
suas atividades de trabalho, tecnologias. Essa perspectiva nos ajuda a não deshistoricizar
a tecnologia, como se sempre fosse algo “novo”.
Autores como Álvaro Vieira Pinto e Raymond Williams trataram de questões
relacionadas às tecnologias nos anos 1970, mas as materialidades do trabalho humano na
produção tecnológica não desaparecem com as mídias digitais. Faz parte do imaginário
ligado à “ideologia do Vale do Silício”, uma concepção de tecnologia desligada de suas
facetas materiais, a partir de uma expansão do liberalismo numérico/algorítmico (Sadin,
2016). Scholz (2016) considera haver uma hegemonia da ideologia da “economia do
compartilhamento”, com uma retórica corporativa, capitalista e individualista acerca de
compartilhamento. Trata-se, na verdade, do “capitalismo de plataforma”, que, para
Srnicek (2017), configura-se como uma ideologia californiana em que a plataforma surge
como um “novo tipo de empresa”.
Um aplicativo de celular ou uma peça publicitária que está na “nuvem” da Internet
(Mosco, 2014) não podem ser considerados frutos de trabalho “imaterial” apenas porque
estão “online” ou “digitalizadas”, por exemplo. O fato de o produto do trabalho ser
considerado digital ou intangível é diferente de dizer que os processos produtivos são
“imateriais”. Podemos compreender, por exemplo, “que os produtos culturais, tais como

28
livros, filmes, ‘ciência’ ou propaganda – e as ‘ideias’ que eles contêm (no mínimo,
considerando que são resultado consciente de esforço mental) são também produtos de
trabalho humano, intelectual e físico” (Huws, 2011, p. 28). Ou seja, as atividades de
trabalho no campo da comunicação, por óbvio, estão inseridos na cadeia produtiva de
valor, e isso se perpetua em cenário de plataformas digitais.
Falar em trabalho digital, pois, vai além da dimensão cool, idealizada e superficial
do Vale do Silício, e envolve trabalho similar ao escravo nas extrações de minério para
fabricação de computadores ou precárias condições de trabalho na Foxconn para
montagem de celulares, por exemplo. Como mostram Fuchs e Sandoval (2015, p. 28)

a vida dos trabalhadores Muhanga, Lu, Bopha, Mohan, Bob e Ann parecem
completamente diferentes. Muhanga extrai minerais da natureza. Lu e Bopha
são trabalhadores da indústria. Mohan, Bob e Ann são trabalhadores da
informação criando softwares e designs. Eles trabalham sob diferentes
condições como escravos, assalariados ou freelancers. Seus trabalhos também
diferem em relação à produção e ao uso das tecnologias digitais e o lucro das
empresas de TICs.

O trabalho na área de mídias digitais não pode ser descolado do restante do modo
de produção capitalista, envolvendo várias dimensões nos processos produtivos: por
exemplo, mineração, montagem de hardware, engenharia, criação de software, trabalho
na área de química, design, atividade jornalística e publicitária, trabalho em call center.
Nesse sentido, como afirma Scholz (2016, p. 2), “parece que a magia do trabalho digital
[...] pode ser mais prejudicial aos trabalhadores de baixa renda.
São múltiplos os locais e as relações de trabalho, com diversas formas de
expressão e exploração do trabalho. Uma dança dialética, nos termos de Huws (2014).
Isso significa dizer que, segundo a perspectiva de “circuitos de trabalho” de Qiu, Gregg
e Crawford (2014), no circuito de um iPhone, por exemplo, há diferentes tipos de
trabalhos envolvidos, desde os mais formalmente ligados à circulação do capital até
trabalhos gratuitos/não pagos, voluntários e trabalho de fã. Isso envolve tanto trabalho
assalariado quanto trabalho análogo ao escravo.
Fuchs e Sandoval (2015) chegam a categorizar 1728 formas de trabalho digital,
em suas mais variadas dimensões. Huws (2014) pontua que uma grande proporção da
força de trabalho mundial está envolvida nesses tipos de trabalhos. Por isso, é importante
entender o seu papel no capitalismo global, como é composta essa força de trabalho e
quais as relações de classe envolvidas, como mostra Qiu (2018) em relação à China.

29
Todos esses entrelaçamentos envolvendo o trabalho digital – em suas
multiplicidades e materialidades – nos mostram como a produção e circulação de
tecnologias se relacionam às dinâmicas de produção e circulação do capital, enquanto
produção de valor. Nesse sentido, há também, no trabalho digital, produção e circulação
de comunicação. Compreender as tecnologias, pois, a partir das dimensões e
materialidades do trabalho digital significa “re-corporificar” a concretude da
comunicação para além de aspectos simbólicos. Para tanto, encerramos o texto com
algumas questões para futuras pesquisas:

- Como o trabalho digital e de plataforma afeta a área de comunicação?


- Como a pesquisa em comunicação pode incorporar o tema do trabalho entrelaçado às
tecnologias digitais a partir de um olhar do Sul Global?
- Como compreender a cultura das startups a partir da visão de seus trabalhadores sem
reificar a ideologia do Vale do Silício?
- Como o trabalho digital e de plataforma apresenta interfaces de gênero, raça e
sexualidade?
- O que é a dataficação do trabalho e para quais sentidos ela aponta?
- Como podemos pensar o capitalismo de plataforma?
- Como problematizar a gramática do capital em circulação – a partir de palavras como
inovação, empreendedorismo e disrupção?
- Quais saídas para flexibilização e individualização do trabalho?
- Quais as potencialidades e os limites do cooperativismo de plataforma?
- O que a comunicação tem a dizer sobre o futuro do trabalho?

Referências
AMPUJA, Marko. A Sociedade em Rede, o Cosmopolitismo e o ‘Sublime Digital’:
reflexões sobre como a História tem sido esquecida na teoria social contemporânea.
Revista Parágrafo. V. 1, N. 3, 2015, p. 55-67.
EAGLETON, Terry. Marx estava certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
FUCHS, Christian; SANDOVAL, Marisol. Trabajadores digitales del mundo, uníos! Un
marco para teorizar criticamente y analizar el trabajo digital. Hipertextos. V. 2, n. 4,
2015.
HUWS, Ursula. Mundo material: o mito da economia imaterial. Mediações. V. 16, n. 1,
jan/jun 2011, p. 24-54.
HUWS, Ursula. Labor in the Global Digital Economy: the cybertariat comes of age.
New York: Monthly Review Press, 2014.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.

30
MOSCO, Vincent. To the Cloud: Big Data in a Turbulent World. New York: Paradigm,
2014.
QIU, Jack. China’s digital working class and circuits of labor. Communication and the
Public. V. 3, n. 1, 2018, p. 5-18.
QIU, Jack; GREGG, Melisa; CRAWFORD, Kate. Circuits of Labour: a labour theory of
the iPhone era. TripleC. V. 12, N. 2, 2014.
SADIN, Eric. La Silocolonisation du Monde: l’irrésistible expansion du liberalisme
numérique. Paris: Éditions L’Échappé, 2016
SCHOLZ, Trebor. Uberworked and Underpaid. London: Polity Press, 2016.
SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. London: Polity, 2017.
SODRÉ, Muniz. A Ciência do Comum: notas para o método comunicacional.
Petrópolis: Vozes, 2014.
VIEIRA PINTO, Álvaro. O Conceito de Tecnologia – Volume I. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Ed. UNESP, 2011.

31
Interrogando Plataformas e Algoritmos Digitais

Tarcízio Silva
Universidade Federal do ABC

Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados

A crença tanto em que os algoritmos estatísticos e softwares são neutros quanto a crença
de que são substitutos da ciência são erradas em dimensão comparável apenas à sua
aceitação por um número cada vez mais crescente de grupos sociais filiados à ideais
neoliberais e tecnocráticos de eficácia e otimização de processos. Estas presunções de
neutralidade dos algoritmos e sistemas automatizados em campos da comunicação,
direito, segurança e políticas públicas (SILVEIRA, 2017) impactam efetivamente
indivíduos e comunidades de modo relativo à distribuição de poder quanto às classes,
gênero, raças e grupos sociais que os constroem e gerenciam. Quanto ao aspecto de
racialização, podemos falar de uma opacidade dupla. De um lado os algoritmos - e a
tecnologia de modo geral - são vistos como neutros, como se fossem construídos,
desenvolvidos e performados independente do contexto e pessoas envolvidas. De outro,
a ideologia da negação e invisibilidade da categoria social “raça” na sociedade como um
todo impede consensos e avanços quanto à justiça e equidade de representação.

Esta construção possui tanto impactos diretos quanto indiretos, tal como o gap de
capacidade de interpretação da realidade social, demográfica e política contemporâneas.
Ecossistemas de plataformas e infraestruturas digitais como Google, Amazon, Facebook
e Apple (chamados pelo acrônimo GAFA) construíram capacidades de análise de dados
internos e externos que ultrapassam em muito o potencial de universidades de ponta e até
de estados. E tudo isto sem as prerrogativas de transparência e accountability exigidas
pelas populações da maioria das democracias. Investigar e entender os impactos de
algoritmos e plataformas na democracia e nas populações é um desafio ainda mais –
aparentemente – intransponível.

Estas perspectivas neoliberais ativistas tem sido centrais no reforço de lógicas que são
“antidemocratic, anti-affirmative-action, antiwelfare, antichoice, and antirace discourses
that place culpability for individual failure on moral failings of the individual, not policy
decisions and social systems”, inclusive em esferas tecnológicas (NOBLE, 2018,

32
pos.2781). A opacidade dos sistemas é vista de forma acrítica, desde que não traga
malefícios para o sujeito em sua individualidade e fins pragmáticos. E quando acontece
são vistas como responsabilidade do próprio indivíduo que deveria ser “gerente de si
mesmo”, como acontece com os sistemas de autogestão de escores de créditos, cada vez
mais pervasivos. Impactos no social e no comunitário são ignorados. A legitimidade das
“data-driven decision-making hinges not only on the presumed objectivity of its methods,
but on the unquestioned acceptance of productivity, performance, merit” (RIEDER,
2016a, p.51). É preciso, então, ver as atuais práticas em torno de big data e análise
pervasiva dos indivíduos com olhares multiculturais. Os dados, como “a medium or
representational form and envelops data science within a cultural matrix. Data criticism
also tackles data science’s idealistic view of data head-on, in addition to its self-
proclaimed democratic leanings and liberalism” (BEATON, 2016, p.368).

A chamada à crítica dos dados e plataformas vai ao encontro do que Dardot e Laval (2017)
diagnosticam como uma falta de compreensão das relações entre as condutas dos
neossujeitos e as formas de controle, vigilância e análise exercidas na suposta hiper-
racional contemporaneidade. Alertam que é preciso "examinar de perto tecnologias de
controle e vigilância de indivíduos e populações, sua medicalização, o fichar, o registro
de seus comportamentos, inclusive os mais precoces" (DARDOT & LAVAL, 2017,
pos.7932). Mesmo antes da popularidade esmagadora de plataformas como o Facebook,
a ligação entre inteligência artificial e pilares do neoliberalismo, como o capital
financeiro, podem ser sentidas como aponta Achille Mbembe, ao descrever como este,
“simultaneamente força viva e criadora [...] e processo sangrante de devoração [...]
aumentou descontroladamente a partir do momento em que os mercados bolsistas
escolheram apoiar-se na inteligência artificial para optimizar movimentos de liquidez”
(MBEMBE, 2017, p.30).

Neste sentido, acreditamos ser essencial a realização de esforço de pesquisa e atuação


crítica na realidade para combater os vieses não só algorítmicos, mas também a opacidade
destes vieses fruto da lógica neoliberal que glorifica corporações de tecnologia do Vale
do Silício enquanto deixa sujeitos atomizados em busca de uma autogestão cada vez mais
opressiva. E levando em conta o “contrato racial” (MILLS, 2014) que cria processos de
racialização nas mais diferentes esferas sociais com objetivos de dominação, é preciso
esforço conjunto para entender a fundo novas tecnologias como plataformas de
comunicação e suas relações com dados e inteligência artificial.

33
As proposições que estão surgindo nos últimos anos para interrogar as plataformas e
sistemas algorítmicos merecem circulação e aplicação em diferentes contextos (BROCK,
2016; RIEDER, 2016; OSOBA & WELSER VI, 2017; SILVEIRA, 2017; NOBLE, 2017;
WILLIAMS, BROOKS & SHMARGAD, 2018; BUOLAMWINI & GEBRU, 2018),
sendo ainda raras as proposições que levam em conta a estruturação do racismo na
sociedade ocidental e como impacta produções de centros de tecnologia como o Vale do
Silício.

A Teoria Racial Crítica (Critical Race Theory), fruto e atuante nos movimentos de
direitos civis desde a década de 60, aplicada no Brasil por estudiosos do Direito e da
Educação, merece o seu lugar também na Comunicação. É baseada em pilares de
compreensão da sociedade especialmente úteis para compreender os pontos de contato
entre opacidade algorítmica e invisibilidade dos processos de racialização, tais como:
compreensão desta como de relações raciais hierarquizadas estruturantes e estruturadas
pelo racismo; percepção da ordinariedade do racismo nas mais diferentes esferas sociais,
econômicas, políticas e biopolíticas; a convergência interseccional do determinismo
material dos interesses de grupos dominantes; a visão das relações raciais como
construção social; e, por fim, a TRC é agente efetiva no combate da opressão racial
(CRENSHAW, GOTANDA & PELLER, 1995; MATSUDA et al, 1993; DELGADO,
STEFANCIC & HARRIS, 2017).

Vemos estes esforços como um trabalho internacional em progresso e propomos três


estratégias para reunir a colaboração da Teoria Racial Crítica ao estudo dos algoritmos:
a) análise crítica, localizada e com consciência racial das particularidades do contexto
brasileiro, onde entram também hierarquias de dominação imperialistas mediadas pelo
Vale do Silício e cultura de startups; b) uso de colaborações das ciências sociais,
humanidades digitais e computação social para entender e interrogar as plataformas; e c)
uso de métodos mistos (JOHNSON & ONWUEGBUZIE, 2004), incluindo também
mapeamento, engajamento de profissionais e ativistas para compreender toda a rede
produtiva a partir de um olhar da economia política de produção dos algoritmos e
sistemas. A governança algorítmica tende a ser cada vez mais presente e comunicadores
e cientistas sociais devem mergulhar na temática para agir junto a desenvolvedores e
legisladores pra analisar danos individuais, discriminação ilegal e práticas injustas, perda
de oportunidades, perdas econômicas e estigmatização social.

34
Referências

BEATON, Brian. How to Respond to Data Science: Early Data Criticism by Lionel Trilling. Information
& Culture, v. 51, n. 3, p. 352-372, 2016.
BROCK, André. Critical technocultural discourse analysis. New Media & Society, p.
1461444816677532, 2016.
BUOLAMWINI, Joy; GEBRU, Timnit. Gender shades: Intersectional accuracy disparities in commercial
gender classification. In: Conference on Fairness, Accountability and Transparency. 2018. p. 77-91.
CRENSHAW, Kimberlé; GOTANDA, Neil; PELLER, Garry. Critical race theory: The key writings
that formed the movement. The New Press, 1995.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Boitempo Editorial, 2017.
DELGADO, Richard; STEFANCIC, Jean. Critical race theory: An introduction. NYU Press, 2017.
JOHNSON, R. Burke; ONWUEGBUZIE, Anthony J. Mixed methods research: A research paradigm
whose time has come. Educational researcher, v. 33, n. 7, p. 14-26, 2004.
MATSUDA, Mari J.; LAWRENCE III, Charles R.; DELGADO, R.; CRENSHAW, Kimberlè W. Words
That Wound - Critical Race Theory, Assaultive Speech, and the First Amendment. Nova Iorque:
Routledge, 1993.
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa (Portugal: Antígona, 2017.
MILLS, Charles W. The racial contract. Cornell University Press, 2014.
NOBLE, Safiya Umoja. Algorithms of Oppression: How search engines reinforce racism. NYU Press,
2018.
OSOBA, Osonde A.; WELSER IV, William. An intelligence in our image: The risks of bias and
errors in artificial intelligence. Rand Corporation, 2017.
RIEDER, Bernhard. Big Data and the Paradox of Diversity. Digital Culture & Society, v. 2, n. 2, p. 39-
54, 2016a.
SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Tudo sobre Tod@s: redes digitais, privacidade e venda de dados
pessoais. São Paulo: Edições Sesc, 2017.
WILLIAMS, Betsy Anne; BROOKS, Catherine F.; SHMARGAD, Yotam. How algorithms discriminate
based on data they lack: Challenges, solutions, and policy implications. Journal of Information Policy,
v. 8, p. 78-115, 2018.

35
Quando a política se torna brincadeira: uma leitura crítica

Viktor Chagas
Universidade Federal Fluminense

A teoria política tem privilegiado há algum tempo os atores institucionais e a perspectiva


da tomada de decisão. Três abordagens vêm procurando contribuir, cada uma à sua
maneira, para romper com esta limitação. A crítica deliberacionista se esmerou em
apontar que, ao não incorporar outras variáveis, os teóricos da democracia fatalmente
estariam alienando a conversação sobre a política de uma definição sobre o que é de
interesse público (Mansbridge, 2009; Chambers, 2009). Um dos pontos de partida para
esta crítica é o protagonismo alcançado pela teoria feminista em fins da década de 1960,
trazendo um questionamento sobre como a dimensão privada e o ativismo cotidiano são
normalmente apartados do universo “sério” e “compromissado” da política pública
(Hanisch, 1969; Mansbridge, 2009; Van Zoonen, 2005). Junto a ela, recrudesce uma
leitura de que a política, analisada sob um ponto de vista estritamente formal, coloca de
escanteio a mistura evidente entre razão e emoção, em detrimento da pura racionalidade
evocada pelo modelo liberal. Há uma evolução nessa direção empreendida pela ciência
política desde as teorias psicológicas do comportamento eleitoral, que buscam uma
explicação para o sentimento partidário e as predisposições políticas de determinadas
camadas da população (Telles e Mundim, 2018; Pimentel Jr., 2015). Recentemente, o
tema tem voltado à carga na discussão a respeito da constituição de públicos afetivos em
torno de políticos, partidos ou grupos de interesse simplesmente (Papacharissi, 2014). Por
fim, um conjunto de estudos que têm procurado retomar o conceito de cultura política
tem sido útil não apenas na revisão da ultrapassada associação entre as noções de cultura
política e desenvolvimento, mas sobretudo na compreensão de que a política é também
composta pelo universo do simbólico (Goldfarb, 2012),e, mais do que pela eventual
mudança intempestiva da normatividade, a opinião pública é regida pelos processos de
longa-duração e seu aspecto dramático (Street, 2000; Gomes, 2004).

Assim, públicos afetivos, culturas políticas e democracia deliberativa entraram em rota


de colisão com preceitos clássicos da teoria política, pondo em xeque, particularmente, o
estatuto do sujeito na política contemporânea. Quem performa a política e para quem?

36
Neste breve ensaio, procuro discutir por que devemos observar a política a partir das
lentes da brincadeira, quais os elementos que compõem a brincadeira política, e de que
forma a brincadeira é instrumentalizada politicamente e a quem ela serve. Apresento estas
reflexões com base em três diferentes momentos. No primeiro deles, discuto o conceito
desenvolvido na década de 1970 por W. L. Bennett (1979). No segundo, tento
compreender a partir de um episódio particular, quais os mecanismos da brincadeira. E,
por último, teço considerações a respeito de como a brincadeira tem sido apropriada por
grupos conservadores e no que isto implica.

O que significa a brincadeira política?

Assumir que a política é fruto de uma performance implica, por seu turno, em reconhecê-
la sob outras lentes. As duas analogias mais frequentes que resumem a política a uma
dimensão do cotidiano são a guerra e o jogo. Sobre a guerra, tratamos oportunamente.
Que se registre, porém, que a guerra e o jogo como metáforas têm afinidades que vão
bastante além de jogos de tabuleiro que perfilam exércitos em confrontamento direto,
como o xadrez, ou disputas de hegemonia e território, como o War. A cobertura cínica da
imprensa cotidiana costuma insistir na descrição do cenário político-eleitoral como uma
corrida-de-cavalos e atribui as negociações entre as bancadas parlamentares ao sujo e
pérfido ambiente do “jogo político” (Capella e Jamieson, 2000). O jogo (vale dizer, assim
como a guerra) pressupõe regras, pactuadas entre os jogadores. Mas a metáfora está posta
mais para se evoque a disputa estratégica do que propriamente o respeito às regras –
inclusive porque, como temos acompanhado, o jogo democrático pressupõe que a
aparente normalidade no funcionamento das instituições nem sempre corrobore a
normalidade das vias de fato (cf. p.ex. Levitsky e Ziblatt, 2018; Rizzotto et al., 2017).

Segundo Tsebelis (1998), a política deve ser compreendida como uma atividade humana
instrumental e orientada por um objetivo. O cientista político, especialista em teoria dos
jogos, argumenta que só é possível compreender a política a partir das ações dos atores.
Levando em conta que essas ações são interessadas e racionais, ele dispõe que as ações
não-ótimas, isto é, aquelas que não têm como efeito a maximização dos lucros, só podem
ser explicadas por duas condições: ou se tratam de um erro, ou refletem a condição de um
ator que não está de posse de todas as informações necessárias para a sua tomada de
decisão. Ou seja, os atores individuais ou institucionais agem de acordo com as opções

37
à mesa, e escolhem a estratégia que julgam mais adequada a maximizar seus lucros, de
acordo com as arenas em que se veem envolvidos. O jogo político, dessa forma, pressupõe
racionalidade e procedimentalidade, e se opõe ao comportamento impulsivo e irracional.

Por outro lado, há um tratamento analítico e conceitual segundo o qual a política é


percebida a partir de seu caráter de representação dramática e performática (Gomes,
2004). Desviar o foco do olhar do jogo para a brincadeira implica em, não deixando de
lado o eventual caráter estratégico das ações, reconhecermos a primazia do aspecto lúdico
e interacional da política sobre a disputa orientada de interesses racionais. Isso porque a
brincadeira política representa uma ação direta sobre a realidade, um conflito pelo
controle da cena, mas é, antes de mais nada, um comportamento que questiona os limites
do Estado, o uso da força e as próprias bases da autoridade política.

A definição de brincadeira política remonta a W. Lance Bennett (1979; Santos e Chagas,


2017; Chagas, 2017), que afirma que ela é frequentemente a primeira forma de ação
política assumida por grupos reprimidos ou alienados, sem sofisticação ideológica ou
estruturas organizacionais que sustentem o engajamento político continuado. Ainda
assim, ele diz, a brincadeira política pode redefinir questões, criar novos papeis sociais,
dissolver velhas hostilidades, e transcender o status quo.

Fundamentalmente, para Bennett, a brincadeira envolve a transformação de objetos


lúdicos em experiências, e pode operar a partir de formas recreacionais ou de atividades
sérias que prevejam recompensas emocionais ou intelectuais. Ela pode compreender
riscos como modo de explorar as consequências de se quebrar as regras do jogo. Nesse
sentido, toda brincadeira política tem um caráter provocador, que desafia e ameaça o
poder.

Deixar de encarar a política como jogo e passar a encará-la como brincadeira resulta em
assumir o princípio prático e coletivo da política, de negociação e adaptação, em
detrimento da dimensão competitiva e autointeressada. É por isso que Bennett classifica
a brincadeira como uma atividade, no mais das vezes, cooperativa, geralmente iniciadas
a partir de grupos com laços comuns ou que enfrentam condições sociais ou econômicas
semelhantes. Pois é nos cenários sociais permeados de restrições e privações, inclusive
de liberdades individuais, que a brincadeira emerge, permitindo um certo grau de

38
expressão privada de sentimentos em relação a alvos particulares, mas centrando-se
sempre em torno de símbolos e elementos tidos como de oposição comum, prontamente
satirizados pelos interagentes. A brincadeira é uma experiência liminar, que performatiza
e dramatiza as liberdades individuais a partir de comportamentos familiares, generativos
e imitativos, habitualmente sustentados pela emergência de atores que exortam seus
semelhantes a seguir a performance.

Como sugere John Street (2000), a política, como a cultura popular, diz respeito a se criar
uma “audiência”, uma constituency, pronta a compartilhar anseios e expectativas. Desse
modo, a performance que embasa a brincadeira é calcada em duas dimensões que
atravessam a experiência social: ela é, por princípio, um processo intersubjetivo, e,
portanto, implica em uma negociação com o outro; e, de modo geral, incorpora elementos
metacomunicativos (cf. Schütz, 1951), através dos quais espera-se que a mensagem seja
interpretada de acordo com a intenção que lhe é condizente. A brincadeira deve fazer
sentido para o grupo, provocar reações.

Mas como emerge a brincadeira na prática? Como são percebidas essas características
que pudemos descrever acima? Há situações concretas em que a brincadeira pode ser
identificada?

Como a brincadeira é performada?

Ilustro minha resposta com a seguinte passagem, a título de comentário a respeito de um


microepisódio: no dia 27 de abril de 2018, a “ex-feminista” Sara Winter visitou a
Universidade Federal Fluminense, a suposto convite de um professor do Departamento
de História, para uma palestra. A comunidade acadêmica se mobilizou e protestou contra.
Winter estava chegando. Os protestos levaram a militante conservadora a se empoleirar
em uma sala com sua equipe, de onde transmitiu um live streaming para seus seguidores,
para informar que estaria sendo mantida em “cárcere privado” (sic). Por azar do destino,
eu não estive na UFF nesse dia, mas pude acompanhar a intensa movimentação nas mídias
sociais.

No mesmo dia, à noite, Sara Winter publicou uma série de tweets sobre o ocorrido, entre
os quais uma exortação: "Pais e mães do Rio de Janeiro, pensem muito antes de colocarem

39
seus filhos na UFF". Sucinta e fragorosamente clara, a mensagem rapidamente se
disseminou pela rede. Ela foi retuítada mais de 300 vezes e favoritada por mais de mil
usuários diferentes, na ocasião de minha última consulta, quase nove meses depois do
ocorrido. Pouco antes do início do período eleitoral em 2018, era uma das mensagens que
geraram maior engajamento no perfil de Winter, que viu, de lá para cá, subir de cerca de
8,4 mil para mais de 30 mil seu número de seguidores. Mas o que chamou mais a atenção
é que o tweet não foi apenas compartilhado por quem de fato compartilha das ideias e dos
ideiais da ex-ativista, ele foi memetizado, se transformou em uma peça satírica, uma
espécie de leitmotiv cômico. Foram muitos os alunos da UFF compartilhando
ironicamente o print daquele tweet no Facebook. Outros tantos retuitando orgulhosos e
afrontosos a mensagem original, que tinha lá o seu tom de alerta, mas que naturalmente
se converteu, nesses círculos, em chacota.

Fui então tentar entender melhor o fenômeno. Com uma coleta através da API do Twitter,
cheguei a um número de 368 retweets. A diferença equivale a dados privados ou
mensagens removidas após um determinado período de tempo. Em seguida, compus a
rede com os perfis que cada um dos retuitadores seguiam, a fim de mapear fluxos de
circulação da mensagem (quadro 1). O resultado é expresso no grafo 1. Longe de me
deixar seduzir pelo fetiche dos grafos e das análises de big data, enxergo nesse
microepisódio um caso emblemático para entendermos como a piada é construída em
torno da subversão de sentidos.

Quadro 1. Tweet e rede de retweets de Sara Winter

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Fonte: Twitter / Elaboração própria.

A mensagem de Winter foi retuitada por 99 de seus seguidores apenas, um quantitativo


baixo para alguém que se pretende uma influenciadora digital. Os não-seguidores
respondem por 269 retweets, e se dividem em basicamente dois grandes grupos: um
fortemente conectado (em azul e verde nos mapas) e outro, mais frouxo e desarticulado
(em vermelho), responsável sozinho por cerca de um quinto do número absoluto de RTs.
O grupo verde diz respeito a religiosos conservadores. O grupo azul representa os
bolsonaristas. O perfil de Jair Bolsonaro em si não entra na conversa, mas é ele próprio,
no geral, o usuário mais retuitado por Sara Winter. Não é de se espantar que ela consiga
mobilizar uma rede próxima ao pré-candidato, com fãs que rapidamente se engajaram em
replicar a mensagem, a fim de disseminar o alerta moral ("pais e mães conscientes, tirem
seus filhos da escolinha!").

Uma vez acionada, essa rede concentra a maior parte dos retweets, de tal modo que, ainda
que seja o grande estopim, Sara é apenas o sétimo ator mais importante do arranjo. Antes
dela, estão dois de seus seguidores diretos e quatro outros não-seguidores, que tomaram
contato com a mensagem intermediados pela pequena rede engajada de seguidores. Em
especial, não mais do que meia dúzia de usuários respondem pela ativação desta primeira
onda de militância, mas eles estão de tal maneira conectados entre si que a mensagem
alcança enorme visibilidade em um intervalo curto de tempo. Um total de 80% dos
retweets se dá nas primeiras 24h após a publicação. Mas é só no final desse intervalo de

41
tempo que começam a surgir as primeiras replicações da mensagem no segundo grande
grupo, e é esse que mais me interessa (quadro 2).

É nesse ponto que o tweet de Sara Winter começa a ser replicado com ironia. Ele deixa
de ser uma mensagem moral clara e sem profundidade para ganhar uma conotação satírica
ambígua. Há, nesse grupo, um considerável contingente de alunos e ex-alunos da UFF,
de vários cursos diferentes, que exibem com orgulho o mais fino humor autodepreciativo.
“Hoje quando eu fui estudar eu tava só a Sara Winter”, “a uff acabou com a minha vida
e eu tenho PROVAS”, “Me sentindo mais rejeitado que a Sara Winter na UFF”, “sara
winter na uff: eu fui eu tava”, são alguns dos comentários feitos por esses perfis, no calor
do momento.

Quadro 2. Rede de retweets jocosos

Fonte: Elaboração própria.

Os retweets deste grupo cumprem, portanto, uma finalidade completamente distinta


daqueles feitos pelo primeiro. E, diferentemente dele, não se trata de um emaranhado
coeso. Muito pelo contrário. São, em sua maioria, atores avulsos, ligados por laços fracos,
falando para micro-audiências, dispersos temporal e espacialmente na rede, e distantes do
núcleo original por que circulou o alerta de Sara. Ao invés de meros replicadores da
mensagem original, o comportamento dessa rede é autônomo e imprevisível. A autora
original da mensagem perde o controle sobre o seu significado, que é traduzido e
reapropriado para outros contextos e com outras audiências em mente. É quando a

42
mensagem deixa de ser puramente replicada, e ganha um contorno metacomunicativo,
que a piada emerge. Nesse momento, e na mão desses atores, o fenômeno deixa de ser
apenas um viral e se transforma efetivamente em um meme.

A brincadeira política caminha junto com outros vetores importantes para a sua
disseminação. Em primeiro lugar, ela é responde a um certo clima de opinião (cf. Noelle-
Neumann, 1993). Tomando-se o conceito de Noelle-Neumann (1993; 2017) emprestado,
podemos afirmar que a brincadeira compreende uma ação de desobediência e
transgressão. Ela atua no sentido de desconstruir uma determinada atmosfera e,
simultaneamente, prover elementos para a consubstanciação de outra, geralmente a partir
da dessacralização da política e do político. Além disso, a brincadeira política se insere
em um processo mais amplo de superficialização da política a que temos assistido
recentemente com cada vez mais ênfase. Este processo diz respeito a uma condição
ambígua, em que a informação política é paulatinamente desqualificada, tornando-se rasa
e não implicando em qualquer ganho epistêmico aos interagentes, ao passo que mais e
mais pessoas, que anteriormente não tinham qualquer acesso ao debate público, se
beneficiam de uma mínima porta de entrada. É, assim, com essa dubiedade ética e
epistêmica, que a brincadeira se viabiliza e se visibiliza.

Nem toda brincadeira, porém, enseja um protesto ou um movimento de resistência à


ordem ou ao status quo. Diferentemente do que Bennett supõe, a brincadeira é também
um artifício na mão de grupos reacionários. Em que medida compreender o humor
incutido nesses repertórios pode nos proporcionar um maior entendimento sobre seus
objetivos?

Os limites da brincadeira

As assim chamadas teorias do humor há muito reconhecem pelo menos três interpretações
distintas com relação aos efeitos do riso. Asa Berger (2012), por exemplo, estabelece que
um dos modos de compreender o humor é como a expressão de incongruências. Por esse
prisma, o humor emerge quando há uma quebra na expectativa sobre como as ações se
desenrolariam. Mas é possível também enxergar no humor um dispositivo de alívio e
conformação de identidades coletivas. Nesse caso, o humor emerge de modo geralmente
autodepreciativo e aliado a um movimento de questionamento de padrões vigentes. A

43
terceira vertente de interpretação é a que compreende o humor como um facilitador da
difusão de estereótipos e afirmação de superioridade sobre o sujeito ou objeto da piada.
Essa perspectiva é normalmente associada a uma leitura hobbesiana do riso e sugere que
o humor pode ser encarado como um recurso de opressão frente a grupos minoritários ou
marginalizados (cf. quadro 3).

Mas como pode a brincadeira política se afinar com este tipo de humor?

Quadro 3. Brincadeiras de mau-gosto?

Fonte: Conteúdo coletado a partir do Twitter.

Angela Nagle (2015), ao investigar os comportamentos e a cultura troll em ambientes


online como o 4chan, observou que esses grupos encontram na transgressão um forte
apelo para a manifestação de seus sentimentos políticos. De modo geral, argumenta,
grupos de esquerda e movimentos sociais tentaram abraçar a tática da transgressão em
diferentes oportunidades (cf. quadro 4). Movimentos feministas como o Fêmen ou outros
grupos radicalizados são pródigos em utilizar a transgressão como tática ou repertório
para as ações que desempenham. Para a perspectiva progressista, contudo, a transgressão
moral sempre foi, como afirma Nagle, uma “barganha com o demônio”, porque a luta por
igualdade é essencialmente um tema moral.

Quadro 4. Brincadeira como ação popular e coletiva

44
Fonte: Conteúdo coletado a partir do Twitter.

Há, porém, uma diferença fundamental, ainda que tênue, entre o humor de superioridade
praticado como provocação ao status quo e aquele que o afirma. No primeiro caso, a
transgressão é um modo forçoso de provocar reflexão a respeito da igualdade de direitos.
Trata-se de uma ação, usualmente tomada coletivamente, para reivindicar
reconhecimento, denunciar, ou simplesmente resistir. Em contrapartida, a brincadeira
tomada a partir de grupos reacionários reclama para si uma liberdade de expressão
irrestrita, sem amarras, doa a quem doer. Como argumentam Whitney Phillips e Ryan
Milner (2017; cf. tb. Phillips, 2015), estamos diante de uma lógica ambivalente, em que
o divertimento é uma espécie de capital, acumulado com base na visibilidade que as ações
ganham e no dano impingido aos adversários políticos. A partir de uma retórica investida
de dubiedade e cinismo, o desfecho da piada se resume a uma afirmação pessoal e
autocentrada (cf. crítica no quadro 5).

Quadro 5. Críticas às “mitadas”

Fonte: Conteúdo coletado a partir do Twitter.

45
A brincadeira política empreendida desse modo, a qualquer custo, não é mais uma disputa
ética, alimentada por uma ideologia que prega o estado de natureza disfarçado de
liberdade individual. Há uma distância enorme, por exemplo, entre caçoar de um político
e ofender sua honra ou ameaçar sua integridade física. A política, nesses termos, deixa de
ser investida do caráter de brincadeira e se converte, pura e simplesmente, e mais uma
vez, em jogo.

Referências

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Berger, Arthur Asa. An anatomy of humour. New Brunswick e Londres: Transaction


Publishers, 2012.

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brincadeira política (political play). In: Calabre, Lia; Cabral, Eula Dantas Taveira;
Siqueira, Maurício; Fonseca, Vivian. Memória das Olimpíadas no Brasil: diálogos e
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46
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Pimentel Jr., J. Spots eleitorais e a decisão do voto: o caso da campanha presidencial de


2010. Tese de Doutorado (Ciência Política). São Paulo: USP, 2015.

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Van Zoonen, L. Van. Entertaining the citizen: when politics and popular culture
converge. Lanham: R&L, 2005.

47
A APLICAÇÃO DO BRANDING NAS MICROS E
PEQUENAS EMRESAS DE CERVEJA ARTESANAL DE
POÇOS DE CALDAS

Marco Antônio Boareto Reghin

Resumo: O presente artigo visa discutir o branding no mercado das micros e


pequenas empresas de cerveja artesanal da cidade de Poços de Caldas, cidade
referência turística do sul de Minas Gerais. Considerando que o mercado vem
crescendo e a cidade já conta com vários pontos de cervejarias instaladas ao
seu redor, o objetivo deste trabalho é estudar e apontar como essas micros e
pequenas empresas de cervejas artesanais trabalham a sua comunicação, em
especifico a gestão de branding. É importante ficar atento ao mercado de
serviços em pleno século XXI, dado que, a aplicação estratégica de branding
pode se tornar um diferencial para essas cervejarias artesanais. O estudo
parte da hipótese de que um número expressivo de cervejarias da cidade não
utiliza dessa técnica para cuidar de sua marca. Como resultado, pretende-se
apresentar o diagnóstico do mercado cervejeiro artesanal em Poços de Caldas
e apontamentos iniciais de como elaborar estratégias de posicionamento
frente ao público alvo.
Palavras-Chave: Branding. Micro Empresa. Pequena Empresa.
Comunicação. Publicidade.

1 Introdução
O cenário de cervejas artesanais no Brasil, desde 2010, cresce consideravelmente.
Isto porque, com a crise econômica que se instalou no país, empresas como Ambev,
Heineken, entre outras declinaram diante do mercado nacional. Informa reportagem
publicada no site da revista Diário, Comercio, Industria e Serviço (DCI).

Segundo a Associação Brasileira da Industria da Cerveja (CervBrasil), a bebida


do tipo artesanal faz parte do segmento de cervejas especiais, que são consideradas:
artesanal, premium e importada.

Em um levantamento feito pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e


Abastecimento (MAPA), publicado no site da revista Correiro* no ano de 2018, o Brasil
se encontra em terceiro lugar no mundo como o país que mais consome cerveja, atrás
apenas dos Estados Unidas e da China.

As cervejas artesanais, chegaram ao Brasil para ficar. Seu público, em


levantamento feito pela Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), é formado entre
homens e mulheres. Entre os homens a faixa de idade de consumo vária de 18 a 65 anos,
já entre as mulheres essa faixa e variada, com idade entre 30 e 65 anos. Já os consumidores
deste tipo de bebida estão localizadas entre as classes A e B, levando em consideração

49
que o mercado de cerveja artesanal ainda conta com preços bastante elevado se
comparado às cervejas populares.

As cervejas designadas artesanais cresceram mercadologicamente 91% em 2017


e seus estabelecimentos duplicaram nos últimos três anos, de 356 estabelecimentos para
679, crescimento este de 37%. Dados retirados do Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA).

O estado de Minas Gerais, aproveitou desta onda e em 2018 é o terceiro estado


com mais estabelecimentos que fazem bebidas de cervejas artesanais, no total são 87.
Além de ser considerado a “Bélgica Brasileira”, conta ainda com 27 medalhas no
concurso brasileiro de cerveja e três marcas (Baker, Falk Monastério e Verace) que foram
eleitas as melhores cervejas do mundo na “Word Beer Awards 2017”.

Diante deste segmento que vem crescendo e ganhando mercado dia após dia, os
fabricantes de cervejas artesanais precisam buscar diferenciação em seu serviço para
conquistar os consumidores.

Sabe-se que, a região de Poços de Caldas conta com algumas micros e pequenas
empresas de cervejas artesanais, o que acaba gerando uma disputa de mercado. Assistindo
a tal cenário, surge a inquietação no presente artigo em, buscar entender como estas
empresas buscam diferenciar o seu trabalho a partir da aplicação de branding nessas
micros e pequenas empresas de cervejas artesanais de Poços de Caldas.

Para tanto, o artigo busca entender como as Cervejarias Gorillaz e Gonçalves,


situadas na cidade de Poços de Caldas, utilizam de branding para gerar lembranças de
marca em seus consumidores.

2 Micros e pequenas empresas


Segundo SEBRAE (2013), empresas no qual o faturamento chegam no máximo a
R$ 360 mil são consideradas microempresas. Já para pequenas empresas a renda anual
não pode ultrapassar R$ 3,6 milhões. A partir deste valor estas já não enquadram em
micros e pequenas empresas.

Perius e Wittmann (2003, p. 165) conceitua micro e pequenas empresas como:

As micros e pequenas empresas caracterizam-se pela importância o


desenvolvimento regional, fator que eleva suas importâncias no
desenvolvimento econômico social brasileiro, uma vez que são

50
responsáveis por grande parte de arrecadações de tributos e gerações
de empregos.

Sendo assim, micros e pequenas empresas tem papel de destaque na sociedade.


Sua valorização é de extrema importância, uma vez que tem potencial de geração de
empregos e influencia, positivamente, no sistema econômico onde está localizada.
Em contra mão a essa valorização positiva, preocupa-se com o tempo de
existência das micros e pequenas empresas no ambiente sócio econômico. Para Perius e
Wittmann (2003 p, 174) “[...] um grande número destas empresas fecham as portas a cada
ano [...]”. Isto ocasiona um prejuízo social econômico, causando impactos sociais nas
famílias que investiram para abrirem seu próprio negócio.

Segundo Perius e Wittmann, é importante ter cuidado ao abrir uma micro e


pequena empresa, porque essas exercem um papel fundamental frente a sociedade. Ao
contrário do que se pensa, em uma eventual falha e posteriormente a isto, finalizar as
tarefas de um empreendedorismo afeta diretamente no mercado econômico do espaço em
que estava inserido.

3 Branding
As marcas que utilizam de branding entendem que, não são vistas como um
vendedor de produto ou serviço. Elas têm a capacidade de modificar certas naturezas de
quem a consomem, criando culturas e influenciando em determinados aspectos. Os
consumidores então, se sentem apaixonados a ponto de amarem determinada marca por
tudo aquilo que ela transmite.

Martins (2006, p. 8) esclarece que:

Branding é o conjunto de ações ligadas à administração das marcas.


São ações que tomadas com conhecimento e competência, levam as
marcas além de sua natureza econômica, passando a fazer parte da
cultura e influenciar a vida das pessoas. Ações com capacidade de
simplificar e enriquecer nossas vidas num mundo cada vez mais
confuso e complexo.

“Uma marca tem de parecer um amigo”, segundo Howard Schultz, presidente


executivo – Starbucks. É a marca que através de branding executado de forma correta
atrai os consumidores. Porém não se trata de uma simples atração. É através de ações
relacionadas ao branding que a marca transforma quem o consome.

51
Para Alice Tybout (2017), é importante conhecer os conceito de branding. Segundo ela,
“branding começa com uma visão geral dos desafios que os gerentes das marcas
enfrentam [...]”.

Estes conceitos segundo ela, são divididos em três etapas:

1. Posicionamento de marca;
2. Design de marca;
3. Significado da marca.

4 Histórico das Cervejarias e Cidade de Poços de Caldas


4.1 Cervejaria Gorillaz
A cervejaria iniciou no espaço da casa de Adriano Moreno, como prazer e hobby,
eram fabricadas algumas bebidas artesanais a partir de alguns produtos básicos e panelas
improvisadas.

Adriano Moreno e sua esposa começaram a apresentar algumas das cervejas


fabricadas em casa nos eventos de família e encontro com amigos. Com um feedback
positivo, o casal resolveu investir, abrindo a primeira cervejaria artesanal da cidade de
Poços de Caldas: a cervejaria Gorillaz.

Em 2018, a marca conta com uma fábrica aberta às visitas, para degustação de
cerveja e um espaço denominado A Jaula. Este de entretenimento e diversão, onde a
empresa serve todas as suas receitas de cerveja artesanal – Lager, Ipa, Bock, Stout e Red
Ale.

4.2 Cervejaria Gonçalves


A cervejaria deu início em seus trabalhos no ano de 2013, porém, não contava
com uma fábrica. Primeiramente, os sócios se juntaram e começaram a testar
experimentos a partir de outras cervejas já fabricadas.

Após receber o prêmio da Acerva Mineira, como a terceira melhor cerveja Pale
Ale do estado de Minas Gerais, em 2014 resolveram fundar a fábrica.

Em 2018, a cervejaria Gonçalves, conta com um bar que apresenta uma


programação diversificada – jogos de futebol todas as quartas - feiras, UFC aos sábados
e Food Trucks.

52
A marca conta com uma “lojinha” para os turistas que estão na cidade de Poços
de Caldas, estes podem desfrutar de cinco bebidas, que são feitas na casa – Pilsen, Munich
Helles, Weiss, American Ipa, Double Ipa.

Por fim, aos que se interessarem em conhecer e desfrutar de um pouco mais de


conhecimento da bebida artesanal, é possível agendar visitas, que contam com um mestre
cervejeiro, como guia.

4.3 A Cidade de Poços de Caldas


Conseguinte, optou-se por essas duas cervejarias que nasceram localmente. Pois
a cidade de Poços de Caldas localizada no Sul de Minas Gerais e uma parada turística,
com uma gama de pessoas que passam pela cidade anualmente.

Segundo Secretaria Municipal de Turismo, atende em satisfação 72% dos turistas,


sendo que 49% desses, tem ensino superior. Dos turistas que frequentam a cidade de
Poços de Caldas, 92% pretendem voltar, sendo que 65% pensam em ser um destino único
pensando para viagem.

5 Conceito de Posicionamento: Como as cervejarias utilizam do branding


O presente artigo, diante os conceitos listados pela autora, Tybout (2017) no livro
“Branding – Gestão de Marcas”, irá analisar o posicionamento de marca das cervejarias
artesanais Gorillaz e Gonçalves em seus respectivos sites.

Segundo Tybout (2017, p. 5)

Posicionamento de marca refere-se ao significado especifico,


intencional de uma marca na mente dos consumidores. Mais
exatamente, o posicionamento de uma marca articula a meta que um
consumidor atingirá usando a marca e explica por que ela é superior
aos outros meios de atingir essa meta.

De acordo com Tybout, o posicionamento de uma marca inicia em seu


fundamento, ou seja, gerentes desenvolvem fundamentos formais de marca, pois querem
assegurar uma visão diante a organização. Estes fundamentos segundo a autora, não são
entendidos como algo “amigável” ao olhar dos consumidores. No final, o que o público
vai identificar serão: preço, canais de comunicação e design da marca.

Para Tybout (2017) “os formatos e a terminologia de apresentação da posição de


uma marca variam conforme a empresa, porém certos componentes são geralmente
críticos”.

53
A fim de estabelecer uma leitura analítica sobre o posicionamento das cervejarias
analisadas, usaremos os quatros componentes sugeridos por Tybout (2017, p. 7). São eles:

1. “Uma breve descrição dos consumidores-alvo em termos de algumas características


identificadoras, como dados demográficos e psicográficos (atividades, interesses, opiniões).
Essas características visadas costumam ser selecionadas tendo como base a categoria e o
uso da marca”;
2. Uma declaração da meta visada que será́ atingida mediante o consumo da marca,
comumente denominada quadro de referência. O quadro de referência pode orientar a
escolha de alvos, identificar situações nas quais a marca poderia ser usada e definir
concorrentes relevantes (por exemplo, marcas que afirmam atingir a mesma meta);
3. Uma declaração que esclareça por que a marca é superior as alternativas no quadro de
referência, denominada ponto de diferença;
4. As evidências que comprovem as alegações relacionadas ao quadro de referência e ao ponto
de diferença, denominadas razões para acreditar. Esse elemento final é mais importante
quando as alegações são relativamente abstratas (alegações de crença) quando
comparadas a alegações concretas (confirmáveis), porque alegações concretas muitas
vezes são por si mesmas razões para acreditar.

5.1 Analise de Posicionamento


A partir dos itens acima, passamos a analisar o site da cervejaria Gorillaz e Gonçalves
a fim de compreender ambas declarações de posicionamentos.

Diante os estudos dos componentes utilizados por Tybout, é possível identificar


declaração no site da marca Gorillaz nos quatros estágios de apresentação de uma marca.

No estágio 1 de Tybout, em que o elemento retratado é o de posicionamento, os


consumidores alvos da marca Gorillaz, desde geográfico até psicográfico, no texto inicial
da página do site (imagem1), são direcionados ao público consumidor da marca. Que
seriam os amantes de cerveja.

Imagem 1: Primeira tela do site da cervejaria Gorillaz

Fonte: www.cervejariagorillaz.com.br

Consequente a isso (imagem 2), no quadro de referência de posicionamento de


marca, segundo a autora, a marca se declara como a cervejaria que tem “as melhores

54
cervejas”. O posicionamento, insinua ao consumidor ao ler essa frase, que ao consumir
as cervejas artesanais Gorillaz, vai estar provando das melhores qualidade de cerveja
artesanal.

Imagem 2: Segunda tela do site da cervejaria Gorillaz

Fonte: www.cervejariagorillaz.com.br

Por fim (imagem 3), as declarações textuais que o leitor irá encontrar, se confundi
entre o ponto de referência e as razões. Conceitos apresentados por Tybout acima. O
público que busca o site é levado a impulsão que a cervejaria, segundo a marca, é “o
melhor lugar para tomar a melhor cerveja”, se auto posicionando em seu discurso porque
a marca é superior as outras. Além de declarar “sem dúvida”, que o bar (cervejaria) é o
melhor lugar para reuniões com amigos(as). O consumidor ao ler esse posicionamento,
entende que o Gorillaz é onde deve ir tomar cerveja artesanal com seus amigos(as).

Imagem 3: Terceira tela do site da cervejaria Gorillaz

Fonte: www.cervejariagorillaz.com.br

Diante os quatros componente de posicionamento de Tybout, as declarações


apresentadas pela cervejaria artesanal Gonçalves, é possível identificar discursos perante
o percurso da história da cervejaria, do bar e da fábrica (imagem 1, 2 e 3).

55
No texto da imagem 1, a marca de posiciona diante o discurso do quadro de
referência – conceito apresentado pela autora. Declaração esta que, instiga o consumidor
a entender que ali estará tomando uma das três melhores cervejas Pale Ale de Minas
Gerais.

Imagem 1: Primeira tela do site da cervejaria Gonçalves

Fonte: www.cervejariagoncalves.com.br

Ao discurso apresentado no título, “o bar da cervejaria” (imagem 2), é dividido


entre o consumidor alvo e o ponto de referência. A marca discursa para o consumidor,
que o posicionamento da empresa é, atrair aqueles que “são apreciadores de chope
artesanal de primeiríssima linha”. O leitor após ler isso entende que se ele gosta e é adepto
aos chopes e deseja tomar uma bebida de qualidade, ele se torna um consumidor
Gonçalves.

Consequentemente, (imagem 2), a marca se posiciona utilizando o ponto de


referência, que está relacionado as programações diversas e ao aluguel de choperia e
acessórios. A cervejaria conversa com o consumidor, declarando que para eventos
festivos a cervejaria Gonçalves o acompanhará.

Imagem 2: Segunda tela do site da cervejaria Gonçalves

56
Fonte: www.cervejariagoncalves.com.br

Enfim, em seu último texto (imagem 3), a marca reforça seu ponto de referência,
se posicionando diante o consumidor, que a cervejaria lhe dá o benefício de conhecer e
aprender conteúdos sobre cervejas artesanais ao lado de um mestre cervejeiro.

Imagem 3: Terceira tela do site da cervejaria Gonçalves

Fonte: www.cervejariagoncalves.com.br

Por fim, uma marca visa atingir um público inicial no seu posicionamento, porém
o discurso que se adota, vai além, buscando alvos adicionais quando o primeiro alvo fica
saturado.

Para Tybout (2017) “Ao tentar atingir vários alvos, é importante considerar se um
dos alvos estará ciente do consumo da marca pelo outro alvo e, se estiver, como seus
sentimentos em relação à marca serão afetados”.

6 CONCLUSÃO
Após análise de ambas cervejarias, pode-se concluir que, tanto a Gorillaz como a
Gonçalves, utilizam do formato de posicionamento apresentado pela autora Alice Tybout
(2017).

Em contra mão a análise e a utilização dos métodos de posicionamento, foi


possível encontrar na cervejaria Gonçalves, um posicionamento mais seguro em seus
discurso. Através da leitura da página inicial do site, conclui-se que, a marca Gonçalves,
apresenta um posicionamento mais retraído, menos trabalhado e com um discurso não
enfatizador.

Um posicionamento de branding desse tipo, dificulta para o consumidor ou


possíveis consumidores, o entendimento da marca, o que ela deseja passar para atrair.

57
Podendo interferir direto, na hora da escolha final do consumidor, de qual a melhor
experiência na hora de tomar cerveja artesanal.

Por outro lado, a marca de cerveja artesanal Gorillaz, se posiciona de maneira


forte, direta e enfatizante. É possível encontrar no discurso, ao decorrer da página inicial
do site, claramente as teorias apresentadas por Tybout (2017).

Isso agrega valor de marca, além de mostrar ao seus consumidores e possíveis


consumidores, quais as experiências que serão adquiridas ao frequentar os
estabelecimentos da marca.

7 Referência Bibliográfica

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em: 30 nov. 2018.

58
AS MARCAS INDICIAIS DE VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NA
PUBLICIDADE 1
THE SIGNS OF SYMBOLIC VIOLENCE IN ADVERSTISING
Larissa Rodrigues Natalino 2
Sônia Maia Teles Xavier 3

Resumo: Pretende-se, nesta pesquisa, compreender a frequência da incidência de


elementos indiciais de violência simbólica na publicidade, e a forma como tais
elementos se manifestam. Para isso, investiga-se em que medida estes podem
cooperar para a perpetuação de um modelo social excludente, mesmo que de forma
velada. Pode-se inferir que as marcas indiciais de violência simbólica na
publicidade são frequentes e quase naturalizadas, e fazem parte de uma
manutenção da ordem estabelecida das classes dominantes perante as classes
marginalizadas. Entende-se que uma mudança na esfera publicitária contribuiria
para trazer mais voz e representatividade aos grupos sociais que sofrem com os
efeitos da dominação social simbólica. Para isso, utiliza-se os métodos de análise
de conteúdo, e de discurso, com o objetivo de mapear e examinar as peças
publicitárias escolhidas. Foram selecionadas 40 peças das categorias de comidas,
bebidas e sucos, e de produtos de limpeza, do ano de 2009 e 2015. Resultados
apontam que a mudança de paradigmas na publicidade vem acontecendo de forma
lenta e pouco significativa.

Palavras-Chave: Violência Simbólica. Publicidade e Propaganda. Análise de


Conteúdo. Análise de Discurso.

1. Considerações iniciais
As relações simbólicas de poder, perceptíveis, na sociedade, podem contribuir para a
desigualdade entre os grupos sociais que a compõem. A violência simbólica, que surge dessa
desigualdade, pode se manifestar de diversas formas, e é possível encontrar indícios de sua
presença na publicidade.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Propaganda e Marketing do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018. Constitui-se em parte de uma pesquisa de Iniciação Científica, fomentada pela FAPEMIG (Fundação de
Amparo à pesquisa de Minas Gerais) desenvolvida entre os anos de 2016/2017.
2
Centro Universitário do Leste de Minas Gerais. Pós-graduanda em Marketing Estratégico pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), graduada em Comunicação Social – Publicidade e
Propaganda pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais (UNILESTE/MG – 1º sem. 2017). E-mail:
larissarodr96@gmail.com
3
Centro Universitário do Leste de Minas Gerais. Mestre em Filosofia pela Universidade Gama Filho (2007),
especialista em Ética e Filosofia do Direito - Universidade Gama Filho, Licenciatura em Filosofia (2016) e
Licenciatura em Letras: Língua Portuguesa, Inglesa e Literatura Brasileira, Portuguesa e Inglesa
(UNILESTE/MG - 1º sem. 2003). E-mail: sonteles2@gmail.com

59
Portanto, visa-se a investigar, no discurso publicitário, por meio da Análise de
Conteúdo e de Discurso, a incidência de violência simbólica em peças publicitárias dos anos
de 2009 e 2015. Pretende-se, com isso, verificar se houve uma mudança significativa na
esfera publicitária no que diz respeito à maneira como o discurso é proferido, e como certos
grupos marginalizados são representados.
A importância deste trabalho justifica-se pela frequência em que peças publicitárias são
denunciadas ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), por
ofenderem alguns grupos específicos e pelas poucas sanções que são realizadas. Uma vez que
o próprio órgão de regulamentação publicitária não se atenta a estes problemas, percebe-se o
quanto a violência simbólica é naturalizada, e é por meio do aprofundamento de estudos
dessa área que será possível compreender que tais discursos não são naturais, e seus efeitos
nocivos à sociedade são reais.

2. A cultura que domina


Os símbolos são parte do modo como representamos e damos significados à realidade e
ao mundo. Bourdieu (1989, p.8) chama o mito, a língua, a arte e a ciência de sistemas
simbólicos. O autor (1989, p.9) esclarece que “os sistemas simbólicos, como instrumentos de
conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são
estruturados”, referindo-se à presença do poder simbólico nesses sistemas, que busca a
legitimação na construção de uma realidade que pode ser explicada pelo tempo, espaço,
número e causa, naturalizando assim, o poder simbólico.
Para Bourdieu (1989, p.10), os sistemas simbólicos são carregados de funções que são
sempre relacionadas aos interesses das classes dominantes. E é a partir de tais sistemas que
surge a cultura dominante, que é formada pelas ideologias, crenças e tradições típicas dessa
classe. A mídia a apresenta e coloca em segundo plano, culturas diferentes, uma vez que estas
são formadas por pessoas que, em sua maioria, detêm um grande poder simbólico perante a
sociedade. Bourdieu (1989, p.10), explica mais sobre a cultura dominante nos seguintes
termos:
A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante
(assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e
distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu
conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para
a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções
(hierarquias) e para a legitimação dessas distinções.

60
A mídia apresenta a cultura dominante como referência única e correta, pois, segundo o
autor citado (1989, p.10-11), os sistemas simbólicos, como a comunicação, por exemplo, tem
uma função política de legitimar a dominação e marginalizar a chamada subcultura. É através
das representações simbólicas e da incidência de discursos, que são marcados por violência
simbólica, que a mídia pode contribuir para a manutenção da ordem estabelecida das classes
dominantes sobre as classes marginalizadas. Bourdieu (1989, p.47) define a violência
simbólica da seguinte forma:
A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode
deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe,
(...) fazem esta relação ser vista como natural; ou, em outros termos, quando os
esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os
dominantes (...), resultam da incorporação de classificações, assim naturalizadas, de
que seu ser social é produto.

Para o autor citado (1998, p.11 e p.46), a violência simbólica é fruto da dominação de
uma classe sobre outra, que, muitas vezes, pode ser vista como natural, já que possui raízes
históricas, agentes e instituições que contribuíram para sua manutenção. O autor cita as
famílias, Igreja, Escola e o Estado como exemplos, mas levando em consideração a função
política da comunicação já citada, é inegável que essa tem contribuído historicamente e
continua contribuindo para o fortalecimento dessa dominação.
A autodepreciação também se torna comum entre os indivíduos de grupos dominados
(mulheres, negros, pobres, homossexuais...), como explica Bourdieu (1998, p.46, 49, 52),
uma vez que esses vêm sendo impedidos de ocupar espaços que os dominantes ocupam
historicamente, o que acaba contribuindo para a falsa consciência de que esses papeis
simbólicos são naturais e, de certa forma, imutáveis. Novamente é necessário apontar como
agente importante da cultura, a mídia, que muitas vezes se utiliza de discursos repletos de
estereótipos a respeito dos grupos que são marginalizados e contribui para que a
autodepreciação se mantenha.

3. Poder simbólico versus capital simbólico


Segundo Bourdieu (1989, p.136-137), existe um espaço de relações em que se
estabelece o poder,
(...) o qual é tão real como um espaço geográfico, no qual as mudanças de lugar se
pagam em trabalho, em esforços e sobretudo em tempo (ir de baixo para cima é
guindar-se, trepar e trazer as marcas ou estigmas desse esforço). (...) Falar de um
espaço social, é dizer que não se pode juntar uma pessoa qualquer com outra pessoa
qualquer, descurando as diferenças fundamentais, sobretudo econômicas e culturais.

61
E nesse espaço, acontecem as relações de forças simbólicas, que se fazem presentes até
no discurso do indivíduo, como explicado por Foucault (1996, p.17), o que lhe é permitido ou
proibido de expressar, de acordo com a sua posição social, econômica, política e/ou de classe.
Segundo Bourdieu (1989, p. 145) as relações de força simbólica acontecem também, pois
existe uma distinção entre os indivíduos que ele chama de “o capital simbólico”, nos
seguintes termos:
O capital simbólico – outro nome da distinção – não é outra coisa senão o capital,
qualquer que seja a sua espécie, quando percebido por um agente dotado de
categorias de percepção resultantes da incorporação da estrutura da sua distribuição,
quer dizer, quando conhecido e reconhecido como algo de óbvio.

Percebe-se que, quando o indivíduo entra em um campo, que tem suas próprias regras,
todos os tipos de capital dele são transformados em capital simbólico. É a partir de seu capital
simbólico, que será julgada a posição social no campo desse indivíduo, legitimando assim a
desigualdade.
O poder simbólico está ligado às relações de poder e saber, como assegura Foucault
(2010, p.30), “O poder produz saber (...), não há relação de poder sem constituição correlata
de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações
de poder”. Segundo o autor, as relações de poder estão diretamente ligadas ao campo do
saber. Pode-se afirmar que, na sociedade atual, existe uma manipulação do saber pelas
grandes empresas e instituições que detêm poder. Os indivíduos, que constroem um grande
campo de saber, acabam por viver a mercê das grandes instituições econômicas uma vez que
estas se apropriam do conhecimento que estes produzem como forma de legitimação de
poder. Pode-se perceber na mídia, principalmente a televisiva, uma tentativa de disfarçar que
pessoas que pertencem a classes diferentes, possuem diferentes capitais simbólicos.

4. As duas faces do poder

A partir da perspectiva foucaultiana (1979, p.8), o poder deve ser considerado “(...)
como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir (...)”, porém é importante ressaltar que o poder só
existe, pois existe desigualdade entre as posições que os indivíduos ocupam na sociedade.
Não existiria poder, se não existisse alguém para sofrer seus efeitos, uma vez que ele se
baseia em relações que são criadas. Contudo, para o autor, definir o poder pela punição e

62
considerá-lo apenas negativo é questionável, pois a própria classe/indivíduo pode querer
viver sob seus efeitos, pois pode lhe trazer conforto, comodidade, prazer ou até mesmo,
simplesmente, por não desejar tal responsabilidade.
Neste contexto, percebe-se que a união entre classes e grupos que sofrem opressão se
faz muito importante, pois é necessário mostrar ao indivíduo oprimido que ele não está
sozinho, e que sua opressão não é natural, mas está ligada ao capital e ao poder simbólico.
Foucault (1979, p.78), aponta para o problema dos movimentos revolucionários das
mulheres, prisioneiros, homossexuais e etc..., que eram aliados à revolução proletária: apesar
de lutar contra a coerção e controle que eram exercidos sobre eles, não se preocupavam em
reorganizar o poder, e sim em mudar o seu titular. Para o autor citado,
As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais
iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de
controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento
revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem
reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança
de titular.

Entretanto, percebe-se atualmente nos movimentos sociais, como o feminista, LGBT, o


movimento negro, e outros, que as principais pautas não dizem respeito à mudança de titular
no poder, e sim à criação de leis e oportunidades que buscam a equidade entre classes
opressoras e as classes oprimidas, e além disso, existe um reconhecimento das diferenças,
mas exige-se respeito a essas diferenças. Em frente à valorização das diferenças dos grupos
sociais, surge a pauta da representatividade, que trata da representação desses grupos na
mídia em geral, com a publicidade sendo um dos meios para alcançá-la.

5. O corpo como objeto


A representação das pessoas na publicidade está ligada ao aspecto social do corpo
humano. O corpo vem assumindo funções há muito tempo, segundo Foucault (1979, p. 184-
185) “o corpo humano se tornou essencialmente força produtiva, a partir dos séculos XVII e
XVIII”, e as pessoas indesejáveis que não podiam contribuir para essa força produtiva foram
excluídas da sociedade.
As pessoas indesejáveis se tornaram aquelas que não cumpriam a função de objeto de
venda, porque a publicidade deixa de lado a função produtiva do corpo, e passa a objetificá-
lo. Baudrillard (1991, p.117) aponta para uma mudança na esfera da publicidade, que coloca

63
a mercadoria em segundo plano e passa a exaltar valores de pertencimento ao ambiente
social. Segundo o autor,
a publicidade está totalmente em uníssono com o social, cuja exigência histórica se
encontra absorvida pela pura e simples procura do social: procura de funcionamento
do social como de uma empresa, como de um conjunto de serviços, como de um
modo de vida ou de sobrevivência (é preciso salvar o social como é preciso preservar
a natureza: o social é ó nosso nicho). (...) E a verdadeira publicidade está hoje no
design do social, na exaltação do social sob todas as suas formas, no apelo insistente,
obstinado a um social cuja necessidade se faz rudemente sentir.

Pôde-se perceber, que a mercadoria deixou de ser o foco da publicidade, e o corpo


social acabou tornando-se objeto de venda, porém as classes marginalizadas continuaram
sendo excluídas da sociedade e ignoradas pela mídia de forma que não tinham
representatividade alguma. Entretanto, quanto mais esses grupos foram ganhando voz, e suas
características foram sendo aceitas até pelas classes opressoras, a publicidade, a televisão e as
outras mídias, passaram a representá-los.
As marcas não procuram representar os grupos marginalizados, pois entendem a
importância em representar a diversidade, mas sim utilizam de um discurso velado de
pertencimento, que faz parte da estratégia do marketing social 4, pois hoje existe uma pressão
popular para que se apresente um discurso que seja inclusivo. O discurso, segundo Foucault
(1970, p.10),
(...) não é simplesmente aquilo que se manifesta (ou oculta) o desejo; é também
aquilo que é o objeto do desejo; é visto que isto a história não cessa de nos ensinar- o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,
mas aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual podemos nos apoderar.

O autor (1970, p.37) explica que existem processos que agem sobre os sujeitos que
proferem discursos, limitando seus poderes, dominando suas falas e selecionando os sujeitos
que serão permitidos ou impedidos de o proferirem. O que relaciona-se à representação que
os grupos sociais têm na publicidade, e os discursos feitos por seus representantes, que
possuem diversos elementos indiciais daquilo que é externo ao discurso.

4
“O termo marketing social apareceu pela primeira em 1971, para descrever o uso de princípios e técnicas de
marketing para a promoção de uma causa, idéia ou comportamento social. Desde então, passou a significar uma
tecnologia de gestão da mudança social, associada ao projeto, implantação e controle de programas voltados
para o aumento da disposição de aceitação de uma idéia ou prática social em um ou mais grupos de adotantes
escolhidos como alvo”. Fonte: Kotler e Roberto, 1992, p.25.

64
6. Análise de Conteúdo das peças publicitárias
Levando-se em consideração os aspectos externos ao discurso, foram utilizadas, como
metodologia desta pesquisa, a Análise de Conteúdo (AC) e a Análise de Discurso (AD), a fim
de dar sequência à investigação para verificar a existência de indícios de violência simbólica
em campanhas publicitárias. A Análise de Conteúdo, segundo Duarte e Barros (2008, p.282)
é considerada “(...) ‘uma técnica de pesquisa para a descrição objetiva, sistemática e
quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação’.”
As peças publicitárias escolhidas para análise foram agrupadas e divididas em
categorias como previsto por Duarte e Barros (2006, p.288): “Em sua concepção original, a
autora (BARDIN) estruturou o método de análise de conteúdo em cinco etapas: organização
da análise; a condição; a categorização; a inferência; o tratamento informático.” Junto à
análise de conteúdo foi realizada a Análise de Discurso com o intuito de entender como a
escolha de certas palavras podem contribuir para a construção do sentido da mensagem.
Segundo Brandão (2004, p.06),
(...) a AD, definida inicialmente como ‘o estudo lingüístico das condições de
produção de um enunciado’ não se limita a um estudo puramente lingüístico, isto é a
analisar só a parte gramatical da língua (a palavra, a frase), mas leva em conta outros
aspectos externos à língua, mas que fazem parte essencial de uma abordagem
discursiva: os elementos históricos, sociais, culturais, ideológicos que cercam a
produção de um discurso e nele se refletem; o espaço que esse discurso ocupa em
relação a outros discursos produzidos e que circulam na comunidade.

Os elementos históricos, sociais, culturais e ideológicos do discurso, citados pela


autora, podem ser percebidos nos discursos publicitários, que refletem comportamentos e
costumes comuns à sociedade. Brandão (2004, p.05), também apresenta a característica
polifônica do discurso: a presença de diálogos com outras vozes e outros discursos, e é
possível perceber este diálogo nas campanhas publicitárias, ao se apropriarem de falas que
fazem parte do senso comum, para surtir um efeito de familiaridade no público buscando
persuadir e vender.
Para analisar o critério de intencionalidade nas peças publicitárias analisadas é
importante atentar-se não só à escolha das palavras, mas também àquilo que é deixado
implícito, pois segundo Brandão (2004, p.03), os discursos que deixam significados nas
entrelinhas são extremamente comuns, e muitas vezes são feitos de tal forma para isentar a
responsabilidade do autor, àquilo que é dito.

65
Além do que é deixado implícito, existem ainda as mensagens subliminares, que
segundo Lindstrom (2009, p.68) “(...) são definidas como mensagens visuais, auditivas ou
sensoriais que estão um pouco abaixo do nosso nível de percepção consciente e que só podem
ser detectadas pela mente subconsciente.” O autor (2009, p.76) ainda fala que “o poder da
publicidade subliminar tem pouco a ver com o próprio produto. Na verdade, ele reside em
nosso cérebro”. Logo entende-se que o discurso é carregado de intenção em tudo que é dito,
não dito e principalmente no que é deixado aberto para interpretação, além das condições de
produção desses discursos.
Levando-se todos esses aspectos em consideração, foram selecionadas 40 peças
publicitárias das categorias de comidas, bebidas e sucos, e da de produtos de limpeza, do ano
de 2009 e 2015, a fim de investigar se houve mudanças significativas nesse período de seis
anos. As peças selecionadas são das grandes marcas do mercado e foram produzidas pelas
principais agências de publicidade brasileiras, que contam com acervo online. Elas foram
analisadas nos seguintes termos: enredo, discurso analisado, perfil dos personagens,
incidência de violência simbólica, e qual a representação de poder simbólico encontrado na
peça. A tabela em sua integra pode ser visualizada no seguinte link: http://bit.ly/violencia-
simbolica-tabelas.

FIGURAS 1 e 2 – Gráficos 2009 e 2015: Violência simbólica em publicidades do segmento de alimentos e


bebidas
FONTE - AUTORAS, 2016.

66
FIGURAS 3 e 4 – Gráficos 2009 e 2015: Perfil racial dos personagens em publicidades no segmento de
alimentos e bebidas
FONTE - AUTORAS, 2016.

Em 2009, das dez peças publicitárias do ramo de alimentos e bebidas analisadas, cinco
apresentam indícios de violência simbólica que reforçam os estereótipos de gênero. Já no ano
de 2015, este número cai para três. Porém a maioria das peças publicitárias ainda se utiliza de
estereótipos em relação à questão de gênero. As mulheres são associadas a características
tidas como inferiores aos homens, como a ingenuidade, o “chilique”, descontrole e também
ao papel social de mães, como se o cuidado dos filhos fosse de responsabilidade exclusiva
delas. Já a figura masculina aparece sempre com um perfil brincalhão, inteligente, e no caso
da representação do pai, este aparece aventureiro e mais livre de responsabilidades do que as
mães.
Em 2009, sete comerciais apresentam apenas personagens que podem ser lidos como
brancos e em 2015, tal falta de representatividade pode ser notada em 6 peças. Levando-se
em consideração que a maioria da população do Brasil não é branca 5, percebe-se a falta de
representatividade na publicidade brasileira, o que pode contribuir para a manutenção da
lógica racial em que vivemos.

5
Fonte: UOL ECONOMIA Disponível em: http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-
representam-54-da-populacao-do-pais-mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm. Acesso: 04/05/2016

67
FIGURAS 5 e 6 – Gráficos 2009 e 2015: Violência simbólica em publicidades no segmento de produtos de
limpeza
FONTE - AUTORAS, 2016.

FIGURAS 7 e 8 – Gráficos 2009 e 2015: Perfil racial dos personagens em publicidades no segmento de
alimentos e bebidas
FONTE - AUTORAS, 2016.

Foram encontrados indícios de violência simbólica de gênero em quatro peças


publicitárias entre as dez selecionadas que fazem parte da categoria de produto de limpeza, e
que foram vinculadas em 2009. Já em 2015, este número subiu para oito, revelando que,
mesmo com a importância da responsabilidade social e com a utilização de estratégias de
marketing social, a publicidade de produtos de limpeza ainda é muito preconceituosa.
Percebe-se que a grande a maioria de peças publicitárias de produtos de limpeza utilizam-se
de discursos que sugerem que a tarefa doméstica é de exclusiva obrigação da mulher, e que
também são marcados por um falso empoderamento feminino que tem por objetivo reforçar e
valorizar a dupla jornada de trabalho das mulheres. Também pôde-se perceber que a grande

68
maioria dos personagens presentes nas peças publicitárias selecionadas, são pessoas dentro
do padrão de beleza imposto pela mídia: magras, jovens e principalmente brancas.
De forma geral, percebe-se que a incidência de violência simbólica de gênero é a mais
comum, e muitas vezes quando o discurso é ofensivo à raça e à orientação sexual, ele
também vem acompanhado de machismo. Consequentemente, o sistema de poder simbólico
mais encontrado na AC, é o de patriarcado.
A fim de investigar a frequência de discursos preconceituosos, como os apresentados, e
suas intenções, serão analisadas duas peças publicitárias dentre as que foram categorizadas.
A primeira peça a ser analisada, é um comercial intitulado Vestiário produzido pela
agência AlmapBBDO, para a marca de chocolates, Snickers Brasil, em 2015. No comercial, a
atriz Cláudia Raia, encontra-se em um vestiário masculino, e exibe um comportamento
grosseiro, que não condiz com o do resto dos personagens inseridos na cena. Após jogar uma
toalha em um dos personagens e o xingar, exibindo seu comportamento estressado, outro
personagem pede para ela comer um Snickers, e ao perguntar o porquê ela diz: “Você dá
muito chilique quando está com fome.”. Quando ela morde um pedaço do Snickers,
transforma-se em um homem aparentemente jovem como o resto dos personagens. Depois, o
mesmo personagem que ofereceu o chocolate pergunta se ele está melhor, e Rafa confirma.
Por fim, aparece uma locução que diz: “Você não é você quando está com fome” seguida de
uma imagem do chocolate e do logotipo da marca.

FIGURAS 9 e 10 – Reprodução comercial “Vestiário”, Snickers, 2015


FONTE – YOUTUBE, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HNpDnr9JQZg

69
FIGURAS 11 e 12 – Reprodução comercial “Vestiário”, Snickers, 2015
FONTE – YOUTUBE, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HNpDnr9JQZg

A representação da personagem por uma mulher, somente enquanto ela está com fome
exibindo um comportamento tido como chato, descontrolado, chamado de “chilique”, pode se
configurar como um grande índice de violência simbólica contra a mulher. A transformação
num homem quando esta fome é saciada, reforça estereótipos de que a mulher é associada a
comportamentos exagerados, negativos e o homem tido como tranquilo e associado a
características positivas.
Esse discurso e representação não são novos à marca Snickers, na verdade o comercial
analisado faz parte da campanha “Fora de si” lançada em 2013, que então tinha a atriz Betty
Faria como personagem principal. Nos dois outros comerciais, intitulados, “República” e
“Louça”, são associadas à mulher, tarefas como limpeza de casa e características como o
‘chilique’ e descontrole.
O comercial “Vestiário” recebeu diversas reclamações no CONAR tendo sido levado a
julgamento pelo seu Conselho de Ética em 25/11/2015, porém foi deliberado por
unanimidade de votos, o arquivamento da representação. A defesa do anunciante e da agência
foi de que o comercial não tinha intenção de depreciar a mulher, e sim de utilizar do bom
humor para mostrar a irritação de pessoas quando estão com fome. O arquivamento da
denúncia pelo Conselho de Ética do CONAR mostra que tais discursos são tão implícitos e
corriqueiros, que acabam sendo naturalizados. Porém, apesar do tom humorístico do
comercial, seu conteúdo pode influenciar muito para o reforço e manutenção de estereótipos
acerca de gênero.
A segunda peça a ser analisada é um comercial da Doritos, intitulado “YMCA”,
produzido pela agência AlmapBBDO em 2009. O comercial se passa dentro de um carro,
onde quatro amigos comem Doritos enquanto a música “YMCA” está tocando. Um dos

70
amigos começa a fazer a coreografia da música enquanto os outros três olham para ele com
estranhamento e surpresa. No fim do comercial, uma locução em off diz “Quer dividir
alguma coisa com os amigos? Divide um Doritos”.
A música “YMCA” do Village People obteve grande repercussão com o público
homossexual nos anos 70, sendo amplamente associada a tal público, logo o estranhamento e
surpresa dos amigos ao personagem saber a coreografia da música, traz um ar de julgamento
de sua atitude e possível orientação sexual. A frase que aparece no fim do comercial “Quer
dividir alguma coisa com os amigos? Divide um Doritos” contribui para a ideia de que
atitudes relacionadas à homossexualidade são vergonhosas e devem ser mantidas em segredo,
indiciando dessa forma uma mensagem carregada de homofobia. O comercial recebeu
diversas denúncias no CONAR, porém, teve seu processo arquivado e ainda foi inscrito no
anuário do Clube de Criação de São Paulo, demonstrando o conformismo da comunidade
publicitária com peças preconceituosas.

FIGURAS 13 e 14 – Reprodução comercial “YMCA”, Doritos, AlmapBBDO, 2009.


FONTE – YOUTUBE, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iCX7r4-kYfQ

Como apontado anteriormente, atualmente, com a pressão popular, as marcas têm


procurado exibir maior representatividade em suas campanhas publicitárias. A própria
Doritos lançou em 2015, uma edição limitada, chamada Doritos Rainbows, um salgadinho
colorido em apoio a causa LGBT+. Com o slogan "There is nothing better than being
yourself” em tradução livre: “Não há nada mais corajoso do que ser você mesmo", a marca
mudou completamente o discurso retratado no comercial feito em 2009, e recebeu muitos
elogios por isso.

71
FIGURA 15 – Doritos Rainbows, 2015.
FONTE – REVISTA EXAME, 2015, disponível em: http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/doritos-lanca-
salgadinho-colorido-em-apoio-a-causa-lgbt

7. Considerações finais
A análise bibliográfica bem como a Análise de Conteúdo e do Discurso veiculado nas
peças publicitárias selecionadas aponta para frequentes indícios de violência simbólica
velados e naturalizados, contra diversos grupos tidos como minorias.
Foucault (1996), explicita que todos os discursos são carregados de intenção, então
podemos deduzir que encontram-se indicações de violência simbólica na mídia, pois existe
um motivo para tal: a legitimação da cultura dominante e a manutenção do poder simbólico.
Por meio de tais discursos, das representações, e da incidência de violência simbólica,
percebe-se que as campanhas publicitárias podem contribuir para o reforço de estereótipos e
comportamentos nocivos à sociedade, além de reforçarem relações de poder simbólico que
podem naturalizar as opressões que os indivíduos de classes não dominantes sofrem.
Lipovetsky (2000, p.02) aponta para o caráter mutável da publicidade da seguinte forma:
A publicidade e marketing desempenham papéis fundamentais, mas em constante
movimento. Ou seja, nada é inatacável ou perene. A posteridade é como o horizonte,
uma linha que se afasta à medida que o indivíduo se aproxima. Se existe, permanece
um mistério. Não se pode estipular os critérios de acesso a ela. Como a moda, tudo é
passageiro.

Segundo o autor, a publicidade está em constante movimento, e é possível inferir que o


corpo acabou tornando-se objeto de venda da publicidade, e os grupos que não cumpriam
essa função eram reprimidos, ignorados pela mídia e não tinham representatividade alguma.
Porém a razão principal para a repressão ou representação midiática dos grupos sociais

72
continua sendo econômica, e com esses grupos ganhando cada vez mais voz, e se tornando
grandes públicos de consumo, surgem discursos publicitários mais inclusivos.
Entretanto, levando-se em consideração a análise de conteúdo realizada e a comparação
entre as peças publicitárias de 2009 e 2015, percebe-se que a mudança de paradigmas na
publicidade, vem acontecendo de forma lenta e pouco significativa. Logo, atentando-se ao
caráter mutável da publicidade, verifica-se que uma mudança definitiva na esfera publicitária
no que diz respeito à incidência de violência simbólica, será possível apenas com uma maior
fiscalização e apoio do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR),
com a análise de peças publicitárias feitas pela comunidade científica de forma a
desnaturalizar discursos nocivos a certos grupos da sociedade, e também com a
responsabilidade das grandes agências brasileiras, contribuindo assim para a construção de
uma sociedade mais igualitária.

Referências

BATISTELLA, Alessandro. Relações de poder: algumas reflexões teóricas. Disponível em:


http://www.upf.br/seer/index.php/ph/article/view/4384. Acesso em: 11/04/2016.
BAUDRILLARD, J. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Analisando o discurso. 2009. Disponível em:
http://paginapessoal.utfpr.edu.br/cfernandes/analise-do-
discurso/textos/analisandoodiscursonagaminebrandao.pdf/view Acesso em: 16/10/2016
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 1998. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
Disponível em: http://lpeqi.quimica.ufg.br/up/426/o/BOURDIEU__Pierre._O_poder_simb%C3%B3lico.pdf
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LINDSTROM, Martin. A lógica do consumo: Verdades e mentiras sobre o que compramos. São Paulo:
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73
Atuação da mídia e de políticas afirmativas do
Estado no enfrentamento à violência doméstica 1

Jean Costa SOUSA 2


Magno Luiz MEDEIROS 3

Resumo: A violência doméstica e familiar tem se tornado pauta em diversas


mídias. Os veículos de comunicação contribuem para a construção da memória
coletiva da sociedade. Nessa perspectiva, aborda-se o papel da comunicação, a
complexidade da opinião pública e os conflitos de poder no contexto das narrativas
que buscam construir e legitimar o discurso da violência simbólica. Assim, torna-se
relevante a discussão do tema pelo viés da comunicação. Para tanto, mostra-se
essencial analisar a integração ou a importância dos processos midiáticos, o
comportamento dos meios de comunicação e a atuação estatal por meio de
políticas afirmativas em prol do enfrentamento à violência doméstica.

Palavras-Chave: Comunicação; Políticas afirmativas; Violência doméstica.

Introdução
Na relação entre igualdade de gênero, políticas públicas de combate à violência
doméstica, comunicação pública e poder, e a translinearidade dessa relação com o papel da
ação comunicativa, é o foco que despertou esse trabalho. Para tanto, utiliza-se, dentre outros,
das contribuições de Cabral Filho e Cabral (2017) para afirmar a importância e a necessidade
das mediações que envolvem os atores em processos de ação comunicativa.
Condições equivalentes de participantes entre os distintos setores sociais colocam
em evidência o papel das mediações em termos mais complexos e dinâmicos que os
de simples ações entre indivíduos destituídos de história ou posicionamento
político, estabelecendo as devidas distinções entre atores envolvidos e a ausência de
diálogo, de competência comunicativa, de atuação política e, por consequência, de
justiça. (CABRAL FILHO; CABRAL, 2017, p. 241-2).

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho GT1 “Comunicação, Propaganda e Marketing” do 3º CONEC -
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas, em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Linha de Pesquisa em Mídia e Cidadania, da
Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). E-mail:
jeancostadf@gmail.com.
3
Coautor, Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Informação e
Comunicação da Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). E-mail: magno.ufg@gmail.com.

74
Pretende-se discutir, no contexto da ação comunicativa, os dispositivos de normas
presentes na perspectiva de Habermas, qual o papel da comunicação, da opinião pública e do
poder, bem como as políticas afirmativas de combate à violência doméstica e familiar no
Brasil. Tem-se como marco o paradigma das relações de poder entre os indivíduos, no qual
busca-se alcançar uma vida livre e igualitária (TEMER; NERY, 2009).
Nesta perspectiva, é necessário entender os diálogos do campo da Comunicação, que
traz a participação dos indivíduos dos processos sociais e interagem com a ação
comunicativa, evidenciando as suas contribuições, com todos os envolvidos, como o governo,
os meios de comunicação, as mulheres e homens que estão vivenciando situação de violência
doméstica.
De acordo com os dados do Atlas da Violência 4 de 2018, foram assassinadas 4.645
mulheres no Brasil no de 2016, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100
mil brasileiras. Esses números mostram um aumento de 6,4% em dez anos.
Diante deste cenário, torna-se relevante a discussão do tema pelo viés da
comunicação, isso porque os crimes contra as mulheres tornam-se pauta na mídia. Discutir
principalmente direitos das mulheres na sociedade e o que houve com suas lutas durante
esses anos. Trazer para a pauta o fenômeno gênero, que perpassa o panorama da violência
contra as mulheres, mobilizações que buscam conter essa violência a partir da implementação
de políticas públicas efetivas. Só assim será possível garantir o direito de igualdade a todos os
cidadãos brasileiros, sejam mulheres ou homens, conforme determina a Constituição
Brasileira de 1988.
A violência doméstica e familiar é resultado de uma cultura machista e patriarcal e
pode ser compreendida como violência estrutural da sociedade, “produto histórico da
constituição imaginária da sociedade”. (STREY, 2004, p. 32). Está ligada com a relação de
disparidade de poder entre mulheres e homens, e também a desigualdade de direitos
enfrentados pelas mulheres na sociedade. Portanto, com a constitucionalização dos direitos

4 Cf. “Atlas da Violência 2018: políticas públicas e retratos dos municípios brasileiros”, notadamente dados
referentes a homicídios e violência contra as mulheres e violência étnico-racial. Trata-se de dados coletados no
Brasil, englobando registros e estatísticas analisados e produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP). Os óbitos são contabilizados a partir da Classificação Internacional de Doenças
(CID-10) correlacionados com os códigos X85-Y09 e Y35-Y36, que são provocados por agressões e óbitos.
Esses dados se referem ao período de 2006 a 2016. Disponível em:
<http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/atlas-da-violencia-2018/ >. Acesso: 16 de jul. de 2018.

75
fundamentais, e a implementação de políticas públicas afirmativas, conquistou-se a
promulgação da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da
Penha. A lei garantiu um olhar específico e um espaço diferenciado no ordenamento jurídico
brasileiro no que tange ao enfrentamento da violência contra as mulheres. Com os avanços na
legislação, questões que envolvem a violência doméstica passaram a ser vistas com mais
profundidade por diversos setores da sociedade, dos meios de comunicação e dos
governantes.
Dessa maneira, é fundamental compreender que a comunicação é uma extensão do
indivíduo que busca transformar permanentemente as suas relações na sociedade. Assim, a
opinião pública pode ser compreendida como sendo uma expressão de um determinado grupo
em um contexto histórico e social. Nesse aspecto, as dimensões de gêneros são estruturas
entre homens e mulheres que são estabelecidas a partir de desigualdades de poder entre eles.

Comunicação: processo e corporeidade


A comunicação é um processo de interação constitutivo ao ser humano. Como
extensão do seu corpo, é expressada pela fala, pela visão, pela audição, pelo tato e até mesmo
pelo paladar. Podemos conhecer ou descobrir o perfil de uma pessoa pela simples maneira do
seu cotidiano alimentar. Assim, é impossível limitar o conceito de comunicação a um caráter
instrumental. Pesquisas têm a cada dia reconhecido que há uma certa tendência a essa
convergência de pensamento que remete ao caráter processual, interacional e transformador
da comunicação. Para Cabral Filho e Cabral (2017):

Pensar a comunicação como processo nos diversos campos do conhecimento e


atribuir a ela uma dimensão crítica como componente de um processo de
transformação visando a emancipação da sociedade é uma proposta que revitaliza e
dá fôlego crítico da Escola de Frankfurt. (CABRAL FILHO; CABRAL, 2017, p.
248).

É preciso ver a comunicação para além de sua dimensão pragmática. É preciso


considerá-la, ainda, como um campo de conhecimento e objeto de estudos, compreender suas
dimensões, suas estruturas no processo de notícias, procurar refletir o papel da mídia na
esfera pública, que influi na sua legitimação, tendo a mídia como espaço de conflito e poder.

76
Nesta acepção, a comunicação é mais que um mecanismo de troca de informações,
que não se reduz apenas às informações. Deve ser compreendida como um processo
dinâmico de circulação de informação, saberes e experiências, que é permanente e de
múltiplas influências. A comunicação é a conexão da disseminação do conhecimento e da
interação.
Nesse contexto, o poder da mídia é baseado não só na tecnologia das comunicações de
massa, mas também na habilidade discursiva que busca impor uma hegemonia ou um
consenso em torno de certas narrativas. As autoras Temer e Nery (2009, p. 97) afirmam que,
para Habermas, a “reabilitação pode liberar o homem das relações de poder criadas pela
razão instrumental e colocá-lo mais perto da utopia da comunicação”. Portanto, os indivíduos
podem entre si fecharem entendimentos de planos em comum acordo, conforme o combinado
entre eles para que não haja desvio e insucesso na ação. Temer e Nery (2009, p. 96)
acrescentam: “Se a linguagem for clara, sem distorções nas palavras (ou mau uso
intencional), ela torna-se uma garantia para o entendimento, pois apoia-se na compreensão
mútua entre os diversos atores sociais que trabalham em busca de consenso”.
No que se refere à comunicação, Habermas procura desencarcerar o importante papel
da ação comunicativa evidenciando, assim, a todos os envolvidos, a sociedade, a mídia, o
governo, e qualquer outro que seja opressor ao segmento. Ele critica a interferência da mídia
nessa dinâmica, como também a confirmação dos processos na esfera pública que se dá pela
afirmação dos atores envolvidos.
Deste modo, vale destacar a contribuição de Habermas quanto à Teoria do Agir
Comunicativo, que entende pela:

Compreensão de uma teoria sistêmica que dê sustentação à capacidade de


entendimento mútuo entre indivíduos autônomos, mas a partir de uma análise
derivada da racionalização e da colonização do mundo da vida, já resultantes de sua
compreensão da esfera pública burguesa, tal como anteriormente apresentada.
(CABRAL FILHO; CABRAL, 2017, p. 242).

Assim, os autores buscam a translineação com o ramo do direito, o que podemos


assemelhar ao direito à cidadania que a Constituição Federal traz, projetando a viabilização
do processo democrático. Que muitas vezes a mídia transgride esse direito deixando o
indivíduo sem acesso à cidadania, o que resulta em uma mudança estrutural da esfera pública.

77
Posto que esfera pública podemos partir do prisma da distinção entre público e
privado, entre Estado e sociedade, o que caracteriza estabelecer os limites de cada um. Pois
não há democracia imaginável sem essas duas dimensões. Os autores Cabral Filho e Cabral
(2017, p. 243) reconhece relativa transformação “da imprensa que passa a se fortalecer como
atividade social na aliança com o comércio, formando assim um processo de legitimação
através da compreensão da opinião pública”.
A sociedade compreende essa transformação a partir do processo de comunicação,
que pode ser entendido pela compreensão e interpretação dos signos, “no qual os
participantes são capazes de construir um universo simbólico orientado ao entendimento
recíproco” (TEMER; NERY, 2009, p. 96).
Então ressaltamos, conforme Cabral Filho e Cabral (2017, p. 244), que a ação
comunicativa “ocorre a partir de relações interpessoais que buscam alcançar compreensão
sobre o que motiva a interação entre os envolvidos, bem como sobre o entendimento que
implica o desdobramento em futuras ações”. Dessa forma, podemos entender a sociedade a
partir das “dimensões de mundo da vida e de sistemas”, deixando claro a separação da
relação dos fluxos comunicativos. (CABRAL FILHO; CABRAL. 2017, p. 244).
A comunicação tem o poder de aproximar os indivíduos de forma geral e permite
compreender o seu direito, é essa nova forma de olhar que “permite compreender possíveis
aproximações e distinções de Habermas com outros pensadores relacionados à Escola de
Frankfurt” (CABRAL FILHO; CABRAL. 2017, p. 244).
Nessa perspectiva, os meios de comunicação de massa entram na sociedade às vezes
de forma abusiva, ou outras de maneira que assegure a existência de determinados grupos de
interesses. Segundo Tuzzo (2005, p. 39), “o convívio informal é ditado pela própria mídia e
seus agentes sociais se informam ou se divertem a partir do que a mídia apresenta, sempre
como produto já pronto e acabado”. Entretanto, é evidente que há interesse de manipulação
por parte dos meios de comunicação, quando a mídia se utiliza dos veículos para impor certas
narrativas. A imposição de valores, a partir de narrativas simbólicas, é observável nas
telenovelas, por exemplo, quando trabalha o tema de violência doméstica e familiar.
Proporcionando à sociedade reflexão sobre determinada temática, as narrativas
midiáticas, em especial a telenovela, trazem campanhas publicitárias que remetem ao

78
combate à violência doméstica contra as mulheres. Corrobora com essa ideia Tuzzo (2005, p.
40): “Habermas não nega o fato de que há uma forte tendência para a dominação total dos
meios, auxiliada, inclusive pela busca constante de ampliação do capital e pelo processo de
venda de produtos pelos veículos de comunicação de massa, a chamada publicidade”.
Porém, a sociedade pode decidir o que é relevante para manter a discussão no seu
meio e uma linguagem mais apropriada. Entretanto, essa decisão está dentro de uma opção de
escolha que a mídia venha a propor ou talvez impor. Com isso as pessoas fazem uso do
espaço democrático, embora não percebam que essa escolha ofertada está dentro duma bolha,
e, assim, recriam suas discussões, o que também não deixa de ocupar o seu espaço de pensar
e refletir. Como afirmam Temer e Nery (2009):

Para se chegar a uma linguagem clara é necessário o abandono da razão


instrumental, ou da razão instrumentalizada para a persuasão, para a busca de poder
e para a dominação, presas aos esquemas da subjetividade, e obter uma razão, de
natureza intersubjetiva, que valorize a interação entre os sujeitos, a razão
comunicativa. (TEMER; NERY. 2009, p. 96).

É necessário que a sociedade reconheça seu espaço de fala e pertencimento e ter a


consciência que os meios de comunicação não podem ter o total controle desse espaço,
assumindo a manipulação de todo o produto. Nesse sentido, o grupo social precisa se
perceber e se compreender enquanto grupo identitário, que reúnem traços comuns de
identificação e de introjeção intersubjetiva.

As relações sociais são estruturadas a partir do mecanismo de identificação, que se


apresenta como a introjeção, que é a atribuição ao outro de suas próprias
características. Elementos fundamentais para o reconhecimento das semelhanças e
diferenças como princípios construtivos do indivíduo. (TUZZO, 2005, p. 55).

Seguindo esse pensamento e “considerando a necessidade de expressão dos


indivíduos como forma de interação ao meio social, podemos considerar a hipótese da
‘espiral do silêncio’”, como afirma Tuzzo (2005, p. 55). Isso se dá devido ao medo das
pessoas de se sentirem isoladas caso exponham suas ideias que vão contra a opinião
dominante. As pessoas tendem a temer mais o isolamento que ao próprio erro. Vale
destacar que Cabral Filho e Cabral (2017, p, 251) ressaltam que, para Habermas, “a

79
comunicação (ou sua ausência) contribui para a afirmação (ou não) do Estado democrático de
direito”.
Entramos num jogo em que ambos os lados têm sua vertente: a sociedade, que possui
o poder de fala como instrumento de comunicação - a opinião pública - e, por outro lado, os
meios de comunicação, que fazem uso de recursos tecnológicos para controlar o poder e
influenciar a sociedade com seu pensamento. A opinião pública para Noelle-Neumann (2017)
não é monopólio daqueles que creem que tenham aptidão, domínio ou poder para isso.

O Caminho da Teoria da Espiral do Silêncio, Opinião Pública e Poder


A perspectiva da Teoria da Espiral do Silêncio, proposta pela cientista social
alemã Elisabeth Noelle-Neumann (2017), após período pós-guerra fria, consiste na omissão
opinativa pelos indivíduos por medo de isolamento ou crítica, quando tal opinião se
demonstra conflitante com a dominante. A pesquisadora procurava “explicar a questão das
minorias silenciosas nas sociedades democráticas” (TEMER; NERY, 2009, p. 94).
Para tanto, de acordo com Noelle-Neuman (2017), há uma ameaça da sociedade aos
indivíduos com o isolamento, esse medo é o ponto crucial ativador da Espiral do Silêncio.
Certos grupos sociais experimentam um contínuo medo do isolamento, assim, com este medo
do isolamento, o indivíduo procura avaliar de forma contínua o clima de opinião. Esse
processo de avaliação contamina, influi no comportamento em público, camufla opiniões e,
especialmente, na expressão pública ou no ocultamento das opiniões.
No entanto, cada um acredita ser um único a pensar algo de certo modo diferenciado,
o que acaba por gerar um bloqueio opinativo. Assim, a pessoa deixa de expressar sua opinião
própria por temor de violar um tabu ou um princípio, seja por medo de ser ignorado, seja por
receio de ser menosprezado. Mesmo quando não há concordância com uma regra, se cada
indivíduo supor que todos os demais concordam com ela, ao final é como se todos
concordassem realmente com aquela norma. Segundo Temer e Nery (2009, p. 94), trata-se de
medo e de esforço do indivíduo para se fazer parte da comunidade a qual pertence. As autoras
ressaltam que “o ‘instituto de sobrevivência’ faz com que o cidadão comum siga a opinião e
o comportamento do que pensa ser a maioria da população”.

80
Com base nesta teoria, é relevante o alerta de que a mídia possui uma força de todo
ainda não dimensionada, devido às diferentes táticas com que é sucessivamente apropriada
por diferentes grupos. Corroboram Temer e Nery (2009, p. 95): “À medida que as pessoas se
calam, acabam, indiretamente, reforçando as opiniões dos meios de comunicação”. Diante
disso, cabe a percepção profissional de como conduzi-la à formação da opinião pública, com
vistas às finalidades que fomentem o bem comum.
A partir dessa perspectiva, as pesquisadoras salientam a relevância da comunicação
social para a formação da “opinião pública”, que parece ser consensual (TEMER; NERY,
2009).
Assim, como o termo ‘comunicação’, o conceito de ‘opinião pública’ se torna difícil
de ser definido com rigor e precisão epistemológica. Pois ambos estão em constante processo
de definição conceitual. Segundo Temer e Nery (2009, p. 95), “a complexidade desse
conceito é questionada por diversos estudos que comprovam que, na verdade, existem
conjuntos de opiniões diversas que, em algumas situações, apresentam tendências
majoritárias”.
Nessa perspectiva, Noelle-Neumann (2017, p. 100) enfatiza que a opinião pública
“não é o monopólio dos que acreditam ter vocação para isso”, pois nem sempre a opinião
majoritária quer dizer que seja a opinião da maioria. Tuzzo (2005, p. 46) confirma: “A
opinião pública não necessariamente reflete a opinião da maioria, mas, sim, reflete a opinião
de uma parcela dominante da sociedade”.
Entretanto, o processo de debate crítico em grupo pode levar a opinião pessoal do
indivíduo a uma opinião pública. Desde que seja algo aberto e discutido em locais
compartilhados. Teremos então, conforme Tuzzo (2005, p. 46), “a opinião de uma esfera
pública de pessoas privadas reunidas num público”. A propósito da dualidade entre a opinião
de massa e a opinião pública, a autora esclarece:

A massa já se caracteriza como um agrupamento de indivíduos diferentes do que


identificamos como público, podemos considerar que a opinião pública não se
forma a partir da opinião de massa, mas sim, surge numa esfera de público em
oposição àquilo que é privado, sem ser, contudo, aquilo que faz da maioria.
(TUZZO, 2005, p. 46).

81
Afinal, público é uma multiplicidade de sentidos distintos, é uma abertura como
podemos ver o processo eleitoral quando o indivíduo tem a possibilidade de escolha de se
manifestar de maneira anônima com voto secreto.

Políticas Afirmativas no Combate à Violência Doméstica no Brasil


A Constituição Brasileira Federal de 1988 (CF) estabelece a proteção às minorias
sociais abrindo caminhos para se garantir os direitos de cidadania. Assim, a Carta Magna
busca assegurar o balizamento das oportunidades daqueles que de alguma maneira estão em
desfavorecimento e marcado por discriminações. Com a constante luta do movimento
feminista no país em prol dos direitos das mulheres, como a sua inclusão numa sociedade que
se faça presente, a CF prevê a garantia de direitos básicos às mulheres – direitos civis,
políticos e sociais, especialmente no campo do trabalho.
O movimento ao longo do tempo foi se alterando, modificando as suas políticas de
reivindicações e se adequando às novas demandas do momento histórico. A mulher procura
se proteger, pois entende que o simples direito a determinadas áreas não lhe garante a devida
proteção. Com efeito, ela almeja e luta por políticas públicas mais afirmativas, que garantam
o direito à maternidade e à proteção ao trabalho. Ressaltamos que houve grandes avanços
quanto às políticas públicas e liberais para as mulheres, abrindo portas para se garantir a
igualdade de direitos entre homens e mulheres. Fazendo cumprir o que propõe os direitos
fundamentais da Carta Magna do Brasil de 1988, que é não só o formal, mas o material,
garantia de gênero, raça, etc.
Importante observar que, embora as mulheres lutem por igualdade de direitos, elas
não constituem uma minoria em termos quantitativos, e, sim, uma minoria social quanto à
igualdade de gêneros. A diferença é de uma cultura dominante dos gêneros, que é
desfavorável de direitos. Louro (2017) busca entender o gênero como constituinte da
“identidade dos sujeitos”.
Habermas (2002), atento às relações de gênero e pela luta de grupos por políticas
igualitárias, faz o seguinte apontamento:

A luta política por reconhecimento tem início como luta pela interpretação de
interesses e realizações peculiares aos gêneros; à medida que logra êxito, essa luta

82
modifica a identidade coletiva das mulheres, e com ela a relação entre os gêneros,
afetando assim, de forma imediata, a auto compreensão dos homens. A escala de
valores da sociedade como um todo entra em discussão; as consequências dessa
problematização chegam até as áreas centrais da vida privada e atingem também os
limites estabelecidos entre as esferas pública e privada. (HABERMAS, 2002, p.
239).

Enfim, compreende-se que foram importantes e necessárias todas as lutas feministas


ao longo deste período até hoje. Os avanços conquistados têm provocado reflexões e
questionamentos sobre os espaços que mulheres ocupam na sociedade contemporânea.
Temos aí o reconhecimento das mulheres que souberam interagir com os diversos públicos,
exercendo o poder de liderança que tem de forma vantajosa, mantendo a honestidade e a
reputação.
Nestes termos, merece destacar o poder da comunicação. Segundo Tuzzo (2005, p.
50), “quem detém a comunicação detém o poder e, numa sociedade em que a comunicação é
capaz de construir a realidade dos fatos, aquele que possui o poder de construir a realidade
conquista o poder sobre a existência das coisas”. As mulheres, mesmo sendo considerada
uma minoria social, é possível conquistar os espaços dentro da sociedade, utilizando os
espaços que os meios de comunicação disponibilizam. Isso é fazer uso e cumprir seu direito
de cidadania tanto dos meios jurídicos como dos meios sociais.
No discurso de aplicação dos meios de comunicação, Cabral Filho e Cabral (2017)
compreendem que:

As questões críticas que se colocam para futuros desdobramentos, em torno dos


quais a contribuição de Habermas segue sendo de extrema vitalidade, se concentram
na representação social que os debates engendram, além da legitimidade para
proporcionarem mudanças políticas efetivas do ponto de vista deliberativo.
(CABRAL FILHO; CABRAL, 2017, p. 251).

Dentro dessa linha de atuação, cada vez mais os meios de comunicação, por meio da
internet, estão presentes na sociedade. É impossível hoje cogitar a realidade sem o uso desses
mecanismos. Ao mesmo tempo, vemos o distanciamento dos atores que utilizam essas
plataformas de manifestação em rede social virtual e a sociedade. Entretanto, é legítimo as
campanhas publicitárias de combate à violência doméstica que são realizadas no Brasil.

83
A propósito, Cabral Filho e Cabral (2017, p. 252) afirmam que “a obra de Habermas
deixa em aberto a possibilidade de implementação de estratégias” para o enfrentamento dos
desafios e preservação do princípio da esfera pública. Pois o movimento feminista e as lutas
para erradicar a violência doméstica e familiar são de fundamental importância para a
sobrevivência digna das mulheres. Trata-se de processos de transformação, de
conscientização que serve de força e controle para promoção de acesso à comunicação, mas
também como construção da realidade
Contudo, a Carta Magna de 1988 preconiza no artigo 5º que haja igualdade a todos,
sem qualquer distinção de natureza, e garante a inviolabilidade do direito à liberdade, à
segurança, à propriedade, à vida e que mulheres e homens são iguais em direitos e
obrigações. Voltando ao argumento da comunicação pública e ao direito constitucional a
todos, em especial às mulheres para que exerça a cidadania, é importante desarticular um
sistema que reproduz desigualdades de gênero. Onde é relevante trazer para discussão as
formas das estratégias de intervenção e sensibilizar os meios de comunicação e o poder
público, que são um dos elementos fundamentais para afinar olhar sobre essa desigualdade de
direitos, assim, estimular inquietações, provocar mudanças nesse cenário de mazelas.
Uma vez que a comunicação, segundo Sodré (2013), ocupa uma posição reflexiva no
contexto da vinculação social.

Posição reflexiva sobre a vida social, se não com “um” objeto claramente
discernível, certamente com um “nó” ou um núcleo objetivável, onde se entrelaçam
problematizações diversas do que significa a vinculação social. (SODRÉ, 2013, p.
222).

Logo, esta comunicação é uma vinculação social que dá poder ao indivíduo, que está
aberta a todos e não deve ser opressora. Embora, frequentemente, seja ameaçada e
manipulada pelos meios de comunicação, portanto, é crucial a garantia dos direitos às
mulheres a esse espaço. Isso é a execução da cidadania na medida em que elas usufruam de
uma democracia, que é ao mesmo tempo usuária e decisora legítima dos serviços ofertados.
Nesse sentido, é imprescindível destacar a importância das políticas públicas de ações
afirmativas para as mulheres que vivem ou estão em situação de violência doméstica,

84
considerando sobretudo a noção de cidadania que aponta não só as conquistas
constitucionais, mas o uso do poder da comunicação do “agir comunicativo”.

A Propagação das Políticas Públicas no Combate à Violência Doméstica


Na conjuntura, são muitas lutas e movimentos para conquistas de mudanças no
cenário de direitos e garantias de igualdade de gêneros que as mulheres vêm buscando ao
logo dos anos no Brasil. No contexto de avanços advindos com a Constituição Federal de
1988, conquistou-se a Lei nº 11.340, promulgada em agosto de 2006, conhecida como “Lei
Maria da Penha” – LMP. Uma lei que traz mecanismo de aceleração nos processos sobre
violência doméstica e familiar, que são vividos por milhares de mulheres em todo o país.
Importante ressaltar que essa violência geralmente é vivenciada por seus parceiros ou
companheiros, a LMP também coloca que o possível agressor não necessariamente é alguém
do sexo masculino.
Com a implementação desse instrumento, as mulheres adquirem em âmbito judicial e
em políticas públicas, a efetivação e concretização de um dos quesitos das suas
reivindicações por igualdade entre homens e mulheres, que a Constituição do Brasil propõe
nos direitos fundamentais.
Assim, destacamos que essa desigualdade entre homens e mulheres não está ligada
somente à questão de força ou sexo, e sim, de gênero. De acordo com Louro (2017), essa
“diferença” ocorre em diversas camadas e em vários contextos. De acordo com Strey (2004,
p. 13), violência de gênero é “aquela que incide, abrange e acontece sobre/com as pessoas em
função do gênero ao qual pertencem. Isto é, a violência acontece porque alguém é homem ou
é mulher”.
O artigo 5º da LMP, em seu caput, é claro na definição de violência doméstica e
familiar: “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. A partir dessas premissas, podemos
afirmar que é preciso considerar as diferenças com uma sensibilidade sempre maior para o
contexto. Portanto, olhar para a violência de gênero “implica na tentativa de imposição

85
cultural sobre o que seja ser homem ou mulher e nas decorrentes relações de poder entre
ambos” (STREY, 2004, p. 15).
Nessa perspectiva, os meios de comunicação têm se utilizado de vários instrumentos
para provocar reflexões e, às vezes, se legitimar com as narrativas midiáticas impostas aos
diversos públicos. É o que vemos nas campanhas publicitárias de enfrentamento da violência
doméstica. Então, é necessário buscar a compreensão do que é comunicação e como está
sendo realizado esse viés comunicacional. Nesse processo, a sociedade buscar compreender o
que foi posto e, a partir daí, procura organizar de forma comum a todos o plano de ação.
Os meios de comunicação constituem importantes dispositivos utilizados como
contribuição para as políticas de enfrentamento à violência doméstica, como por exemplo, na
ampla divulgação da LMP, desde a sua promulgação, em 2006. Assim, a mídia é usada como
suporte de propagação dessas ideias. Embora a mídia faça uso de campanhas educativas
contra a violência doméstica, muitas dessas iniciativas não são utilizadas de maneira
adequadas, o que pode ocasionar o possível isolamento das mulheres que vivem ou estão em
situação de violência doméstica, achando que sua opinião não pode ser aceita por
determinado grupo.
Outra medida que destacamos sobre desenvolvimento de políticas públicas no
enfrentamento à violência doméstica é a junção de áreas diferentes. Entende-se hoje que é
algo que se deve ser trabalhado com a multidisciplinariedade de áreas, assim, os resultados
influenciam a concepção de ações. Nesse caso, merece destaque que compreender os papeis
sociais e a as políticas públicas, os investimentos em programas de combate a tal mazela, se
traduz na possibilidade de uma reeducação que atinja as subjetividades relacionadas à
questão de gênero, e também ao comportamento das mulheres agredidas.
As contribuições na perspectiva do agir comunicativo pode, neste sentido, contribuir
com a formulação de campanhas educativas contra a violência doméstica e familiar no Brasil,
garantindo a todos os sujeitos serem compreendidos como autores e destinatários dessa
comunicação pública. Para Tuzzo (2005, p. 44), “os meios de comunicação de massa devem
ser vistos como uma oportunidade nunca antes experimentada de revitalização do indivíduo,
massa deve deixar de significar anonimato, passividade e conformismo”. Assim, não se pode
limitar o campo da comunicação pública, pois todos têm sua relevância na mídia ancorada

86
nos costumes e tradições. Também promove o reconhecimento da responsabilização da
violência doméstica perpetrada, ressignificando assim as suas próprias relações de gênero.

Considerações Finais
A comunicação é o campo que traz bastante discussão, além de estar inserida
transversalmente em todos as áreas de conhecimento. O papel dos meios de comunicação, a
complexidade da opinião pública e os conflitos de poder são fatores instigantes para se
compreender o fenômeno da violência simbólica na sociedade contemporânea. A busca dessa
compreensão passa necessariamente pela discussão acerca de políticas públicas de
enfrentamento à violência doméstica. E contribui, ainda, para analisar historicamente a luta
das mulheres pela efetivação dos direitos humanos, de maneira tal que possam ser aceitos e
difundidos para um processo de aprendizagem social daquilo que o bem comum e a justiça
demandam. Nesse contexto, procura-se garantir a todas as mulheres os seus direitos de
cidadania, nos quais elas são ou deveriam ser protagonistas de sua história e também
destinatárias das normas jurídicas.
Desse modo, buscam-se os direitos fundamentais, constantes da Carta Magna de
1988, notadamente os dispositivos constitucionais que garantem a igualdade e a equidade
entre mulheres e homens. Para a efetivação dessa prática, foi criada a LMP, promulgada em
agosto de 2006, com a proposta de aplicar mecanismos jurídicos para coibir e punir a
violência doméstica e familiar no país. Portanto, é plausível e necessária a implementação de
políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica e familiar, envolvendo os
governantes, a sociedade em geral, os meios de comunicação e todos(as) aqueles(as) que
atuam, direta ou indiretamente, na proteção aos direitos humanos.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto Constitucional


promulgado em 05 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas
Constitucionais números 01/92 a 39/2002 e pela Emendas Constitucionais de Revisão
números 01 a 06/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2003.

87
BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher... Diário Oficial da República Federativa do Brasil.
Brasília, 8 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 16 jul. 2018.

CABRAL FILHO, A. V.; CABRAL, E. D. T. Jürgen Habermas (1939-). Clássicos da


comunicação: os teóricos: de Peirce a Canclini. AGUIAR, Leonel E BARSOTTI, Adriana
(Orgs.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George


Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo, SP: Loyola, 2002.

LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. 16ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

MEDEIROS, Magno. Mídia e poder: dinâmica conflituosa do sujeito-desejante. TEMER,


Ana Carolina (org.). Mídia, Cidadania e Poder. Goiânia: FACOMB/FUNAPE, 2011.

NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. A espiral do silêncio: opinião pública: nosso tecido


social. Trad. Cristina Derosa. Florianópolis, SC: Estudos Nacionais, 2017.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede.


8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

STREY, M. N.; AZAMBUJA, M. P. R.; JAEGER, F. P. Violência, gênero e políticas


públicas. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS, 2004.

TEMER, Ana Carolina R. P. e NERY, Vanda C. A. Para entender as Teorias da


Comunicação. 2ª ed. Uberlândia: EDUFU, 2009.

TUZZO, Simone A. Deslumbramento coletivo: opinião, mídia e universidade. São Paulo:


Annablume, 2005.

88
CANAL FORNECEDOR PETROBRAS 1
produzindo um site direcionado a um público
PETROBRAS SUPPLY CHANNEL: developing a website targeted to a
stakeholder
Eric Moreira Silva 2
Rafael Figueiredo Cruz e Silva 3

Resumo: Grandes empresas multinacionais deparam-se com desafios de


comunicação e relacionamento diariamente. São desafios relacionados à dimensão,
dispersão geográfica e heterogeneidade dos públicos da corporação.
Nessas empresas, a realidade da própria organização é quase tão complexa quanto
a dos públicos. Os intrincados arranjos organizacionais e o grande número de
normativos que regulam as atividades das grandes multinacionais em seus diversos
campos de atuação torna ainda mais complicada a tarefa de fortalecer os vínculos
com os públicos.
Se essa grande empresa é uma sociedade de economia mista – como é o caso da
Petrobras – a legislação é ainda mais rígida, uma vez que há leis específicas para a
atuação de órgãos e empresas públicas.
Esse foi o cenário com o qual nos deparamos no final do 1º semestre de 2017,
quando se iniciou o projeto de reformulação do Canal Fornecedor, um site
direcionado a fornecedores de bens e serviços das empresas que compõem o
sistema Petrobras.
Neste artigo, apresentaremos um estudo de caso da construção de um novo
ambiente digital direcionado ao público fornecedores da Petrobras.

Palavras-Chave: Públicos. Comunicação mediada por computador. Gerenciamento


de projetos. Lei das Estatais. Petrobras.

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho de Comunicação, Propaganda e Marketing do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Consultor de Presença Digital da Petrobras. MBA em Comunicação Corporativa (Fecap/Comunique-se).
Email: ericmoreira@gmail.com .
3
Profissional de comunicação da Petrobras. Mestre em Comunicação (UFMG). Email: rcruzesilva@gmail.com .

89
1. Petrobras e relacionamento com públicos

A Petrobras é a principal empresa brasileira que atua no setor de energia, com foco na
exploração de petróleo e gás. Esse é um mercado altamente complexo em sua gestão de
comunicação e relacionamento com públicos. Uma condição básica de atuação de uma
empresa petrolífera é ter acesso à reservas, grandes áreas continentais e/ou marítimas onde
estão as formações rochosas com petróleo. O acesso a essas áreas é fortemente regulado pelo
poder público.

É um mercado também economicamente volátil, com preços e custos atrelados


internacionalmente, o que expõe sua cadeia produtiva – clientes, fornecedores e
consumidores – à flutuações de preços que exigem cuidados no relacionamento como
públicos.

Soma-se a isso o risco ambiental de uma atividade extrativista, suportada por grandes
indústrias de processamento e refino, expondo comunidades vizinhas a diferentes tipos de
ameaças como vazamentos, incêndios e eventuais incidentes.

Sob a ótica de risco, tem-se acima uma fração dos desafios na gestão de comunicação e
relacionamento com diferentes públicos em uma empresa da complexidade da Petrobras.

Portanto, como já observado por Fábio França:

É preciso se convencer de que o trabalho de relações públicas exige que se defina


com clareza a quais públicos estamos nos dirigindo e qual a interdependência
existente nessa associação com relação às pressões exercidas entre as partes e às
vantagens que podem ser auferidas desse convívio. (FRANÇA, Fábio, 2012) 4

Porque, se é relativamente simples observamos as pressões que o público exerce sobre uma
organização, o desafio é maximizar as oportunidades nos diferentes relacionamentos que se
estabelecem.

Os públicos citados acima enxergam diferentes oportunidades no relacionamento produtivo


com uma empresa de petróleo e gás.

O poder público, por exemplo, tem acesso à verbas de compensação, em forma de royalties e
demais tributos, que tem potencial de transformar realidades de cidades e países inteiros.
Apenas em 2017, conforme a própria Petrobras reporta em seu Relatório Integrado, a
empresa pagou em tributos o equivalente a R$ 140 bilhões para a União, Estados e
municípios brasileiros.

4
FRANÇA, Fábio
Públicos: como identificá-los em nova visão estratégica: business relationship / Fábio França / 3 ed. – São
Caetano do Sul, SP Yendis Editora, 2012

90
Comunidades vizinhas estão expostas a riscos ambientais, por conseguinte, exigem os
devidos cuidados na prevenção, bem como pressionam por prioridade na contratação de mão
de obra local e estímulo ao desenvolvimento da cadeia produtiva em suas regiões.

Clientes e consumidores tem acesso à produtos que são absolutamente essenciais no contexto
atual. Gasolina, diesel, gás natural, e demais derivados do petróleo colocam máquinas,
transportes, pessoas e sociedades inteiras em movimento, se tornando parte indissociável do
cenário urbano em que vive a maior parte da população global.

Além de todas as questões acima expostas, a realidade é que a Petrobras mantém


relacionamento com um leque amplo de públicos. Em seu Plano de Comunicação, Marcas e
Relacionamento, a Petrobras estabelece um total de 13 públicos estratégicos, como forma de
direcionar seus esforços de comunicação e relacionamento.

FIGURA 1 – Públicos Estratégicos Petrobras

91
2. O relacionamento com o público fornecedor na Petrobras

Fornecedores, foco do estudo em questão, tem especial atenção com a natureza extrativista de
exploração de petróleo e gás. É um mercado que demanda equipamentos e máquinas em
grandes volume e de especificações únicas. Além de considerável volume de mão de obra.

No Brasil, ainda temos um fator de complexidade em especial, que é o avanço da exploração


em águas ultraprofundas, conhecida como pré-sal. Um cenário que exige o uso de tecnologias
ainda mais específicas, em condições remotas e amplia as possibilidades de contratação de
bens e serviços de alto valor agregado.

Para se ter uma dimensão do impacto da atividade na economia brasileira, leve-se em


consideração os números consolidados pela Fundação Getúlio Vargas em seu Caderno de
Métricas Industriais: 4% do PIB brasileiro (segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, o PIB brasileiro em 2017 foi de R$ 6,6 trilhões) e 1 milhão de empregos diretos e
indiretos.

Acessar os recursos ligados ao grande volume de contratações de bens e serviços gerados


pela Petrobras sempre foi alvo de disputas na economia mundial. De forma resumida, opõe
conceitos que se apresentam mais protecionistas, com políticas industriais que buscam
fomentar o desenvolvimento do mercado de fornecedores brasileiros, com aqueles que se
enxergam mais liberais, abrangendo empresas internacionais e que alegam atuar em bases
mais competitivas e conectadas com o contexto de globalização econômica.

Lidar com esses esforços que muitas vezes são antagônicos é parte do desafio de gestão de
públicos na Petrobras, em linha com a forma como define Andrade (1989)

O agrupamento espontâneo de pessoas adultas e/ou de grupos sociais organizados,


com ou sem contiguidade física, com abundância de informações, analisando uma
controvérsia, com atitudes e opiniões múltiplas quanto à solução ou medidas a ser
tomadas perante ela; com ampla oportunidade de discussão, e acompanhando ou
participando do debate geral por meio da integração pessoal ou dos veículos de
comunicação, à procura de uma atitude comum, expressa em uma decisão ou
opinião coletivas, que permitirá a ação conjugada. (Andrade, 1989, pg.41) 5

3. Lei das Estatais, Lava Jato e centralização do relacionamento

O relacionamento da Petrobras com as empresas que fornecem e/ou querem vir a fornecer
bens e serviços se dá sobre uma extensa regulação governamental a que a Petrobras é
submetida para realizar seus processos de contratação

Com base na Lei das Estatais (13.303/16), que rege toda a contratação de bens e serviços no
âmbito da administração pública direta e indireta (esta última na qual se enquadra a
Petrobras), o poder público normatiza a forma como a Petrobras deve informar ao mercado

5
ANDRADE, Cândido Teobaldo de Souza
Psicosociologia das relações públicas. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1989

92
suas necessidades de contratação, exigindo transparência e equidade de condições de
competição.

Normatização de tamanha complexidade surgiu como fruto de um contexto que se acentuou


após os desdobramentos da Operação Lava Jato. A operação, notória mobilização
investigativa de natureza policial e jurídica ocorrida no Brasil, teve como foco o
desmantelamento de captações de recursos ilíticos para financiamento de campanhas
partidárias; assim como em denúncias de enriquecimento ilícito por parte de congressistas, e
membros do Poder Executivo.

A Petrobras, apesar de formalmente reconhecida como vítima pelo Poder Judiciário, viu seus
índices de reputação junto à opinião pública sofrer queda expressiva, por ter seus recursos e
sua governança amplamente expostos no âmbito da operação.

Diante desse cenário, a consolidação da Lei das Estatais em 2016, surge como uma resposta a
uma demanda por maior transparência e equidade de condições em todas as contratações da
Petrobras.

Ainda assim, apesar do novo contexto trazido pela Lei das Estatais, é importante esclarecer
que o público fornecedor para a Petrobras sempre foi composto por um universo grande de
empresas que atuam em diferentes setores da economia e é impactado diretamente pelas
decisões de negócio tomadas pela empresa.

O impacto da Lei das Estatais se refletiu na própria organização interna da Petrobras,


aprofundando a centralização dos processos de contratação de bens e serviços, de forma a
buscar agilidade e retenção de conhecimento especializado no assunto.

Essa centralização trouxe como benefício direto o foco no relacionamento com o público
fornecedor sendo planejado a partir de uma estrutura organizacional única na empresa.

Sendo assim, abriu-se a possibilidade de repensar e replanejar a estratégia de Presença Digital


voltada para o fornecedor.

4. Presença Digital para o público fornecedor

Até o início do projeto em análise, a Presença Digital da Petrobras voltada para o público
fornecedor se encontrava muito defasada. Fruto direto da gestão descentralizada que ainda
vigorava na gestão do relacionamento com os fornecedores. Diferentes áreas com diferentes
tipos de demandas sinalizavam necessidades distintas de conteúdos a serem disponibilizados
para o público. Sem uma área que analisasse tecnicamente o que era pertinente de estar
presente no antigo Canal Fornecedor, a área responsável pelo ambiente digital não detinha os
meios necessários para tratar as demandas e devidamente organizar o ambiente.

Com o passar do tempo, o ambiente foi se tornando um grande inventário de documentos e


normativos que regulam o relacionamento da Petrobras com seus fornecedores, mas com
baixa conexão nos desafios de comunicação ligados ao público. Em paralelo, a estrutura

93
técnica de backend e frontend foram ficando defasadas, tornando o processo de gestão e
manutenção lento e custoso para a Petrobras.

FIGURA 2 – Homepage antigo site Canal Fornecedor


FONTE – www.petrobras.com.br/canalfornecedor (projeto desativado)

Soma-se a isso outro complicador: o antigo Canal Fornecedor não era o único ambiente
digital voltado para o público. Existia, e ainda existe, um canal transacional, voltado para o
relacionamento com fornecedores já cadastrados, intitulado Petronect. Trata-se de canal
especializado, contratado por empresa terceirizada, responsável por operar a gestão do banco
de dados de fornecedores e divulgar as oportunidades de contratação.

A Petronect possui ainda uma identidade visual própria, configurando-se assim um ambiente
claramente distinto do Canal Fornecedor. Ao concentrar informações de serviço, sempre foi o
foco de interesse do público no relacionamento com a Petrobras.

Aqui, entra um desafio fundamental no projeto. Era necessário reformular o Canal


Fornecedor, de modo que ele fosse reconhecido como o principal canal digital no
relacionamento com o público. O fato de que a Petronect, com identidade distinta da marca

94
Petrobras e gestão terceirizada, sempre deteve o foco de atenção do público nos meios
digitais foi considerado um entrave no relacionamento com os fornecedores. Um entrave que
precisava ser superado.

Chegou-se a cogitar a integração dos dois ambientes em um único integrado. No entanto,


áreas especializadas da Petrobras alertaram que ter um terceiro como gestor do cadastro era
uma prática considerada transparente e muito comum no mercado. Decidiu-se então pela
reformulação do Canal Fornecedor, absorvendo alguns dos conteúdos que até então estavam
presentes na Petronect.

5. Análise crítica, mapeamento de conteúdos e governança de informações

Definido um escopo e uma equipe de trabalho, o primeiro passo foi realizar um mapeamento
completo dos conteúdos que estavam no antigo Canal Fornecedor.

Esse mapeamento foi realizado em 4 encontros presencias em que foram realizadas


navegações profundas no ambiente em busca de:

• Definir a criticidade das informações presentes no ambiente. Eram realmente


necessárias? Ou descartáveis, ou até mesmo não eram para estar disponíveis?
Cada conteúdo foi classificado então como:

o FUNDAMENTAL: conteúdo crítico no relacionamento com o público que


deveria estar presente no ambiente da forma como estava no antigo
Canal.
o RELEVANTE: conteúdo reconhecidamente importante, mas que poderia
ser revisado na sua forma.
o NEUTRO: conteúdo que a equipe de gestão do projeto não detinha o
conhecimento e/ou informações necessárias para analisar. Conteúdo era
submetido para uma área que pudesse analisar
o DESNECESSÁRIO: conteúdos que deveriam ser excluídos

• Mapear os responsáveis técnicos pelas informações: à medida que os conteúdos


eram analisados, eram apontadas as áreas que poderiam nos auxiliar na revisão
dos mesmos; e também eram previamente definidos os novos gestores das
informações que permaneceriam.

Essa etapa foi fundamental para:

• alinhar os objetivos do projeto;


• aproximar os membros da equipe de gestão;
• elaborar o briefing para agência de comunicação digital;
• nortear a construção de uma arquitetura de informação para o projeto.

95
6. Site Novas Regras de Contratação: uma estratégia para se adequar ao prazo

Em paralelo ao esforço de reformular o Canal Fornecedor, surgia a necessidade de comunicar


ao mercado as mudanças trazidas pela Lei das Estatais aos processos de contratação de bens e
serviços da Petrobras.

No entanto, o projeto que se construía a partir do mapeamento de conteúdo apontava para um


prazo maior do que aquele que estava sendo colocado pela legislação e das mudanças
internas que estavam acontecendo na Petrobras no que diz respeito aos processos de
contratação.

A solução encontrada foi de abrir um projeto à parte, específico para explicar as novas regras
de contratação e que serviria como um piloto para a reformulação do Canal Fornecedor.

Utilizaríamos uma arquitetura de informação em linha com a que foi concebida originalmente
para o novo Canal Fornecedor, mas de forma reduzida. Assim, conseguiríamos atender o
prazo, testar a solução e teríamos um ganho de produtividade, assim trabalharíamos de forma
paralelizada na continuidade da reformulação do Canal Fornecedor.

Assim, nasceu o site Novas Regras de Contratação, um projeto concebido e desenvolvido em


4 meses, e que atendeu o objetivo de funcionar como um piloto para o futuro Canal
Fornecedor.

96
FIGURA 3 – Homepage site Novas Regras de Contratação
FONTE – contratacao.petrobras.com.br (projeto desativado)

7. O novo Canal Fornecedor

Como já citado anteriormente, o relacionamento do público fornecedor com a Petrobras é


fortemente regulado pelo poder público.

Essa característica tem um impacto direto no conteúdo do Canal Fornecedor. Foi adotado um
tom didático para explicar para os atuais e potenciais fornecedores como são divulgadas as
oportunidades de contratação de bens e serviços pela Petorbras; assim como o funcionamento
de uma licitação e suas etapas; a dinâmica contratual; as regras de compliance e as vantagens
de se tornar um fornecedor cadastrado.

Esses temas foram a base da arquitetura de informação em uma taxonomia que busca ser
direta e funcional:

• Regras de Contratação
• Cadastro de Fornecedores
• O Funcionamento de uma Licitação

97
• O Funcionamento de um Contrato
• Compliance

FIGURA 4 – Homepage site Canal Fornecedor


FONTE – www.petrobras.com.br/canalfornecedor

Suportado pelo Sistema de Identidade da Marca Petrobras - marca.petrobras.com.br –, que


preconiza o uso de linguagem próxima e a construção de diálogo relevante entre a marca e
seus públicos, o projeto busca incentivar as empresas que tem interesse em trabalhar com a
Petrobras para se cadastrarem e conhecerem em detalhes todo o processo de contratação e
suas etapas.

Um dos grandes desafios do projeto foi justamente evitar uma linguagem fria e técnica que
vinha sendo a tônica no relacionamento entre a Petrobras e o público fornecedor. Todo um
esforço foi realizado no sentido de compreender efetivamente o que se queria expressar e
produzir conteúdo que fosse acessível para leigos.

Aqui, tem-se um ponto extremamente importante que é fazer com que a área que cuida da
comunicação digital seja co-responsável pelo projeto de forma integral. E não só do lado
mais técnico de construção e desenvolvimento de um website.

Ao se colocar como área de comunicação que define a forma como a marca se expressa,
saímos de uma posição de apenas atender a um cliente interno e nos colocamos co-gestores
do projeto, sendo acionados, e tendo poder de decisão, sempre que é necessária qualquer
mudança no ambiente, ainda que seja para atualizar conteúdos mais técnicos.

8. Lançamento e Resultados

No dia 19 de julho de 2018, após todas as fases de produção de conteúdo e desenvolvimento


técnico realizado em parceria com a agência W3Haus, o projeto finalmente foi lançado.

98
Foram 7 meses de projeto, considerando o tempo entre lançarmos o site-piloto de Novas
Regras de Contratação e concluimos o novo Canal Fornecedor.

Um marco importante na época do lançamento foi a decisão de manter o grupo de gestão do


projeto ativo de forma permanente no acompanhamento de métricas e discussão de
melhorias.

Ficou definido uma periodicidade mensal para esses encontros de gestão do ambiente. Tem
sido espaços importantes de maturação do projeto e discussão produtiva que quebram a
lógica da área de comunicação digital ser acionada apenas sob demanda.

Em 2 meses, números importantes foram conquistados. O ambiente registrou mais de 112 mil
visualizações de página, realizadas por 20.533 usuários. O tempo médio de permanência no
período de 3 minutos e 20 segundos.

Números relevantes, ainda mais se considerando o cenário de restrição eleitoral em que foi
feito o lançamento do projeto. Um período em que a Petrobras fica impossibilitada de usar
mídia paga, seja em redes sociais ou buscadores, para impulsionar a visibilidade de páginas e
conteúdos digitais.

O esforço agora tem sido de promover melhorias gráficas e visuais em um conteúdo que
ainda está muito textual. Assim como, dar visibilidade para o projeto junto à segmentos do
público fornecedor que são considerados os mais relevantes na estratégia competitiva da
marca.

99
COMUNICAÇÃO EM ORGANIZAÇÕES INOVADORAS: 1
a ressignificação das empresas e construção de Startups
na Sitcom Silicon Valley
COMMUNICATION IN INNOVATIVE ORGANIZATIONS: to
companies and building Startups on the Silicon Valley
Sitcom
Valdecy dos Reis Lima Junior (PUC Minas) 2

Resumo: O artigo busca, a partir da série televisiva Silicon Valley (EUA, HBO, 2014 – 2017), estudar a
ressignificação das empresas com o surgimento das Startups. O trabalho pretende identificar elementos de
gestão encontrados na obra, aproximando-os da teoria. O corpus é constituído pelos episódios das 4 primeiras
temporadas (2014 – 2017), em que são mostrados o funcionamento do Vale do Silício, o nascimento da Startup
fictícia Pied Piper e as suas dificuldades. Como principais teóricos, Ries (2011) propõe uma metodologia
enxuta na construção desses negócios, com uma rápida inserção no mercado. Na questão organizacional,
Weiler (2010) trabalha o relacionamento em um ambiente diversificado, assim como Kunsch (2009) que aborda
a importância da comunicação organizacional diante de novos paradigmas globais. O estudo ainda aborda a
inovação, em que segundo Schumpeter (1961) é gerada pela chamada destruição criativa, de antigos negócios
na busca pelo novo. Como hipótese verifica-se os perfis profissionais e a contribuição para o negócio, criando
um modelo diversificado, propício à inovação.

Palavras-Chave: Startup. Comunicação. Organização. Empresas. Tecnologia.

1. A SÉRIE: DESBRAVANDO SILICON VALLEY


Atualmente em 2018, a série Silicon Valley, que é uma Sitcom com grande destaque
na emissora HBO, está renovada para a sexta temporada. (GOMES, 2018). O diferencial da
série é trazer uma amostra do mundo das tecnologias e das empresas inovadoras, situando o
cotidiano dos personagens no chamado Vale do Silício 3.
O programa gira em torno de Richard Hendricks e sua empresa recém criada, Pied
Piper, que fornece o serviço de compressão de dados 4. A empresa foi criada em uma

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho GT1 (Comunicação, Propaganda e Marketing) do 3º CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018. Artigo originário de uma pesquisa PROBIC financiada pela FAPEMIG.
2
Estudante de Graduação do 7º Semestre do Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da PUC
Minas – Campus Poços de Caldas, e-mail: juniorreislima18@gmail.com
3
O Vale do Silício segundo Normand (2014) é um ambiente que exalta otimismo, como se tudo fosse possível,
um ambiente de inovação que fica localizado na Califórnia.
4
Na série Silicon Valley, a compressão de dados aparece como sendo a redução do tamanho de arquivos digitais
sem percas, permitindo que um vídeo que antes era muito grande possa ser acessado do seu smartphone com as
mesmas características originais.

100
incubadora de negócios comandada por Erlich Bachman, que é apresentado como
irresponsável e que não consegue gerenciar a própria vida, quem dirá uma incubadora com
empresas potenciais. Nesse espaço é apontado ainda um estrangeiro de descendência
paquistanesa chamado Dinesh Chugtai, que se mudou para o Vale com o objetivo de
desenvolver um negócio bem sucedido, assim como ocorre segundo Normand (2014), ao
relatar a importância da diversidade para a chamada cultura do Vale. Em que, muitos
estrangeiros buscam fazer parte desse ecossistema pelos empregos nas áreas tecnológicas e
pela educação, assim como informa Belline (2018, Web). A autora relata que mesmo com as
distinções, existem pontos em comum aos jovens do Vale, como por exemplo, o sonho de
fazer a diferença na vida das pessoas.
Há ainda Bertram Gilfoyle, que se diz satanista e carrega um humor peculiar, garante
cenas inusitadas ao longo da produção. Esse ponto interage com a colocação de Cardoso
(2018, Web), que compara um exagero do programa ao descrever a realidade, em que apesar
de pontos claramente ficcionais, é bastante plausível comparar as ocorrências do seriado com
questões vistas por ele no mercado de trabalho. Um dos exemplos que pode ser observado, é
a chamada mania dos nerds. O episódio Bachmanity Insanity mostra uma disputa entre as
teclas espaços e tabs na hora de programar. Richard é aficionado por tabs e não consegue ver
outra pessoa usando espaços, terminando até um relacionamento devido a esse
perfeccionismo. Oliveira (2016) estuda como as mudanças de paradigmas chega na
ressignificação da figura do nerd. Agora, jovens que antes eram considerados antissociais,
uma figura não quista, passa a ter fama. Isso é dito também por Erlich a Richard no episódio
The Cap Table, quando Richard é alertado que as pessoas vão começar a se aproximar dele
com interesse em sua criação tecnológica.
Há mais dois moradores na incubadora, ambos também merecem destaque: Jian-
Yang, que veio da China e não entende muito bem a língua inglesa e a cultura ocidental,
sendo outro exemplo dessa diversidade. (NORMAND, 2014). E por fim, Cabeção, que é
apelido de Nelson Bighetti, que se intitula como uma pessoa sem potencial e que não sabe
fazer nada, isso por não ser segundo ele mesmo, inteligente como os demais integrantes da
incubadora. Outro personagem importante é Jared Dunn, ele faz parte do elenco principal do
seriado, e traz à narrativa uma visão administrativa, diferente dos outros personagens
principais ele não é programador, mas sim da área empresarial.

101
2. REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLOGIA
O referencial teórico foi analisado para responder a seguinte pergunta: Como os
gestores de uma empresa inovadora em sua fase inicial pode trabalhar a comunicação
organizacional diminuindo erros? Para isso foi utilizado teorias como Weiler (2010), que em
sua monografia trabalha a questão da comunicação organizacional e a gestão de pessoas para
o bom funcionamento corporativo. Enquanto Kunsch (2009), em seus estudos, expõe a
comunicação da empresa em um manual que reúne teorias do campo com a contribuição de
diversos autores, gerando assim uma produção de conteúdo colaborativa. A autora afirma que
a obra, dividida em dois volumes, é de grande validade para o ensino e também para
aplicações práticas em empresas. Essas serão as principais teorias de análise. Que ainda
contará com a inovação por Schumpeter (1961), pontos sobre a cultura do Vale do Silício por
Normand (2014), a abordagem de Startup para Reis (2012) e das mudanças pela digitalização
por Martel (2015). Serão utilizadas para contextualizar os episódios selecionados das quatro
temporadas e dar embasamento teórico ao tema.
A metodologia utilizada na pesquisa, seleciona quatro temporadas da série, formados
por trinta e oito episódios. Os capítulos da série foram analisados e então categorizados em
onze temáticas selecionadas para cumprir o objetivo de diminuir os erros de gestão, utilizada
de forma a conectar com a inovação proposta pelo ambiente da série. O primeiro tema discute
a diferenciação de Startup; o segundo busca entender a importância que o investimento tem
para esses negócios; o terceiro fazer uma reflexão sobre a imagem da organização; o quarto
verifica como funciona a economia de comunhão; o quinto, a dinâmica da relação entre
negócios e territorialização; o sexto, apresenta a interação glocal e a gerência das crises
empresarias; o sétimo, a ambiência digital com a fomentação de mudanças na forma de
atuação empresarial; o oitavo, a necessidade de uma equipe conectada e com diversidade; o
nono apresenta o tratamento da questão de multidisciplinaridade e liderança na equipe; o
décimo reconhece aspectos sobre a reconfiguração dos negócios e competitividade; e, por
fim, o décima primeiro tema que discute a questão do processo e interação.
Portanto, espera-se contribuir para que gestores, em fase inicial do seu negócio,
possam conectar-se com a série Silicon Valley e aprenderem sobre as temáticas citadas acima,
e assim suavizar falhas em Startups. A visualização dessas etapas ao longo do artigo,
permitirá que as pessoas entendam melhor a dinâmica apresentada por esses novos negócios e

102
compreendam que trabalhar e estudar a gestão corporativa pode acontecer de forma divertida,
tendo como plano de fundo uma Sitcom.

3. ANÁLISE: MINIMIZANDO ERROS NA ABERTURA DE STARTUPS


É imprescindível destacar que Startups se diferem em alguns quesitos das empresas
tradicionais. Segundo Ries (2011), comumente as empresas necessitam de um longo
planejamento, diferente da Startup que não têm como planejar de forma totalmente precisa
por ser inovadora e muitas vezes criar o seu próprio campo de atuação, ofertando até mesmo
um produto que ainda não existe. O autor relata que essas alterações permitiram com que
novas ideias surgissem para solucionar problemas que afetam o usuário diariamente,
insistindo que é preciso estar o quanto antes no mercado. É preciso fazer tudo de forma
rápida, sempre testando seu produto junto ao público, verificando assim a sua viabilidade.
Ries (2011) cita um método chamado de Startup Enxuta, em que segundo ele, você deve
pegar a essência de seu produto, construir o necessário, e então o que levaria anos para estar
no mercado pode ser lançado para teste em meses, nascendo assim o chamado MVP (produto
mínimo viável).
No episódio To Build a Better Beta, Richard está com o protótipo pronto, mas
inseguro quanto ao lançamento. Então, um dos funcionários entrega a tecnologia para ser
testada por um terceiro, e após receber um feedback positivo, Richard e todos os envolvidos
concordam em lançar no mercado. Esse teste é monitorado pela equipe e os feedbacks são
colhidos para que ocorram melhorias no produto.
Para Normand (2014) Startup é uma empresa com base tecnológica, que visa resolver
problemas da sociedade e que precisa ser escalável e repetível. Um elemento importante para
a criação de uma Startup, é a chamada disrupção. Essa disrupção ocorre segundo Cândido
(2011), em um ambiente concorrido que traz a necessidade de inovar. Sendo assim, a
disrupção é o desconstruir algo já existente para se alcançar o novo, encontrar facilidades. O
termo foi cunhado inicialmente nos estudos de Schumpeter (1961).

A obra de Joseph Schumpeter (1942), intitulada “Capitalism, Socialism and


Democracy” ao tratar do conceito de Destruição Criadora elucida consequências
que ocorrem no mercado que também são observadas com a concorrência de
inovações disruptivas, como é o caso da descontinuidade de produtos tecnológicos
oferecidos no mercado. (SCHUMPETER, 1942 apud CANDIDO, 2011, p. 09).

103
Martel (2015) relata que, em geral, uma Startup muitas vezes precisa utilizar de
capital próprio dos fundadores para sair do papel. Porém, é comum que com o objetivo de se
tornar escalável e o fato de não haver capital suficiente, ela seja estruturada e os envolvidos
saiam em busca de um aporte. O primeiro investimento fica a cargo do business angel:
Clavier (apud Martel, 2015) revela que os business angels investem de quinhentos mil a dois
milhões de dólares por sete a dez por cento de participação no negócio. Outro número
exposto por ele, fala que investidores de San Francisco recebem cerca de duas mil empresas
com pretensão de serem investidas por ano, esse número se reduz a apenas vinte, mostrando
que é um cenário bem disputado. Já com a estruturação do negócio, entra em ação para
Martel (2015) os investidores tradicionais, cada rodada que uma empresa participa esse valor
tende a subir. Essa é uma questão bem debatida na série, por exemplo, no episódio Sand Hill
Shuffle, acontece um contratempo com o investidor atual da Startup que deixa esse cenário
instável. Essa mudança de cenário, faz com que novos investidores sejam procurados, porém
Richard recebe uma proposta bem acima do que a empresa entrega no momento, resolvendo
então negociar o valor de investimento para baixo, visando alcançar marcas mais realísticas e
controlar melhor o fluxo de caixa. Com esse exemplo, Richard busca corresponder às
expectativas no prazo certo.
Na narrativa, Richard está desenvolvendo um aplicativo de música voltado aos
compositores, para a reprodução, o arquivo de áudio passa por um processo de compressão
de dados. É nesse momento que a Startup chama atenção de dois investidores: Peter Gregory
e Gavin Belson. Ambos disputam a empresa embrionária de Richard. Na ocasião, em
Minimum Viable Product, Peter oferece duzentos mil dólares por cinco por cento avaliando o
algoritmo de compressão em quatro milhões, atribuindo plenos poderes a Richard para
comandar sua empresa, enquanto Gavin chega a oferecer dez milhões de dólares para que a
Hooli possa controlar completamente a Startup. Depois de refletir criticamente, ele decide
ficar com a empresa e fazer uma parceria com a Raviga. É então que surgem as crises
internas e externas de gerir um negócio inovador sem experiência.
Toni in Kunsch (org.) (2009), discursa sobre a importância da imagem para a
organização, sendo que as pessoas agem segundo o que veem e não pelo que de fato a
organização é. Os dirigentes estão tão próximos de seu objeto, da empresa, que sofrem de
uma miopia, não enxergam as falhas que chegam aos públicos (internos e externos). Então,
para garantir um melhor andamento, a imagem precisa ser administrada e construída a partir

104
do contato com um objeto novo, e a insistência de se lembrar desse objeto, fazendo com que
essa lembrança esteja ligada às emoções. O autor cita que a imagem é algo particular, que
alguns podem ter medo de sapo, enquanto outros podem achá-lo inofensivo. Para alguns, sua
empresa será vista como ameaça, enquanto para outros, com grande inspiração. “Os públicos
das organizações formam suas imagens por meio da percepção e da sua maneira de lidar com
as informações.” (TONI in KUNSCH (org.), 2009, p.244 - 245).
Em To Build a Better Beta, a tecnologia da empresa de Richard foi apresentada e
testada em sua maioria por desenvolvedores que acharam o seu funcionamento interessante.
Em suma, a avaliação foi positiva, porém quando chegou ao mercado a empresa foi
contestada pela dificuldade que a tecnologia trazia ao público, requerendo para sua utilização
um conhecimento mais avançado. Ries (2011) fala justamente isso, que é necessário testar
seu protótipo junto das pessoas certas, senão o teste não valerá de nada. Esse fato fez com
que a concorrência visse uma oportunidade de trabalhar de forma diferente. Já o público em
um grupo focal no episódio Daily Active Users, disse que ficou totalmente apavorado com a
plataforma, que a tecnologia fez com que se sentissem estúpidos. Foi nesse momento que
Richard entendeu que a imagem que ele tinha da própria empresa como gestor, na verdade,
era uma imagem viciada, não bastava confiar apenas na tecnologia para o sucesso.
Medrano in Kunsch (org.) (2009) infere que apesar do mundo estar se cercando pelo
individualismo, competição exagerada e exigência de resultados, surge um sistema
preocupado com o bem-estar próprio e o bem comum: a chamada economia de comunhão
(EdC). Segundo o autor, essa economia expõe a solidariedade como valor institucionalizado,
indo de encontro à competição e o individualismo. “Fundamentada em uma filosofia de
cunho solidário, de acordo com seus princípios e finalidades, e com estrutura de gestão de
empresa capitalista, a economia de comunhão quer ser uma resposta ao problema social.”
(MEDRANO in KUNSCH (org.), 2009, p.276). Essa economia se apoia na vertente do dar e
não apenas ter, de mostrar a pessoa humana e não o capital como o centro da empresa. A
formação da empresa pelo EdC se apoia em diversas vertentes de condições de trabalho. É
dito que esses membros são treinados em relação às normas, e verifica-se a necessidade de
ventilação, dos níveis aceitáveis de barulhos, de pensar até mesmo a iluminação do espaço.
Relata ainda que procura extinguir excessos de horários trabalhados, sendo um ambiente
descontraído e amigável, visando promover o trabalho em grupo para evolução pessoal, tudo
objetivando gerar uma harmonia no trabalho e viabilidade comunicativa.

105
No episódio Minimum Viable Product, Richard conversa com o pessoal da incubadora
sobre a ideia de aceitar a proposta de Peter Gregory para gerenciar seu próprio negócio. Ele
revela que está na hora de fazer diferente e mudar as relações corporativas, que será uma
empresa com o jeito deles. Essa mesma fala é questionada no episódio Bad Money, quando
Richard vem com uma proposta de aquisição feita por Gavin, e então Gilfoyle o questiona,
fala que não trabalharia com Gavin de forma alguma. Há muitas confusões internas, como no
episódio Customer Service, em que Dinesh e Gilfoyle têm o conteúdo dos telefones trocados
e ameaçam um ao outro, nenhum dos dois querem ter sua privacidade vasculhada, gerando
um grande conflito. Em Signaling Risk, Jared que sempre tenta apaziguar essas situações, vê
como necessário sugerir a colocação de cubículos 5, separando o espaço de trabalho em áreas
para priorizar a produção, aplicando ainda o método Scrum 6. Sobre o aspecto social, a série
mostra o exagero dos personagens e o que não fazer. Gavin tem uma mania de exemplificar
suas falas de liderança com o uso de animais reais, em The Uptick, ele relata que tem a
memória boa igual a de um elefante e não esquecerá o que o conselho empresarial fez, porém
o animal acaba morrendo em território da empresa. Ou quando Erlich organiza uma festa em
uma ilha, perde todo o dinheiro de Nelson Biguet e é responsabilizado pelo sumiço de um
grande artefato, que segundo ele: “está no fundo da baía de San Francisco.” (To Build a
Better Beta).
Pereira, Costa, et al. in Kunsch (org.) (2009) discute a importância da territorialização
para uma empresa. Como se deve interagir com o espaço que está inserida, mesmo
pertencendo a uma era globalizada, em que a internet derrubou fronteiras. Informando que a
instituição tem que se preocupar com o desenvolvimento sustentável local. Uma organização
segundo os autores, é criada justamente para circular recursos na região em que está
localizada, se preocupando com o público de interesse: tanto externo, quanto interno.
Mostrando como é necessário haver uma articulação dos públicos da marca com o chamado
ambiente cultural.
No caso, o território em que a série se passa é o chamado Vale do Silício. A região é
apresentada com uma simbiose de constantes movimentações, ideias mirabolantes surgindo a

5
Dentro da cultura corporativa, o cubículo se tornou um ícone, o pequeno espaço reservado para cada
funcionário de uma empresa no qual eles contam com uma relativa privacidade para realizar o trabalho. <
https://gizmodo.uol.com.br/origem-dos-cubiculos/> Acessado em: 19/10/2018.
6
Scrum, que é fundamentado na teoria de controle de processos empíricos, emprega uma abordagem iterativa e
incremental para otimizar a previsibilidade e controlar riscos.
<https://www.trainning.com.br/download/guia_do_scrum.pdf> Acessado em: 21/10/2018.

106
todo o momento e o fracasso como algo bom. (NORMAND, 2014). O Vale proporciona às
pessoas a oportunidade de recomeçar, assim como as empresas, que não podem ter medo de
fazer grandes alterações em seus processos: episódio Founder Friendly, com as alterações
que a troca de CEO 7 gera na mudança da filosofia organizacional. Já em Minimum Viable
Product, o local apresentado é tão insano que mostra a equipe do time de marketing da Hooli
fazendo uma reunião em bicicleta compartilhada, algo criticado por Cabeção.
Normand (2014) estuda essa cultura do Vale e suas particularidades, servindo de
inspiração para novos modelos de negócios. Abordando, por exemplo, essa cultura de admitir
seus erros e aprender com eles. Pereira, Costa, et al. in Kunsch (org.) (2009) revela que não é
apenas a empresa que precisa interferir no território, mas também o território proporcionar
direcionamentos. Se tornar conhecido no Vale é bom, porém se tornar uma fraude pode
afastar todos os investidores que formam uma rede, eles levam a credibilidade segundo
Normand (2014) muito a sério. No caso, o episódio The Uptick mostra que Richard não
consegue dar prosseguimento a um negócio, pois sabia que estava com usuários crescentes
falsos. Erlich o repreende, pois logo ficariam taxados como sendo uma empresa fraudulenta,
o que Normand (2014) chama de confiabilidade. O autor aborda que ninguém no Vale vai
checar ou duvidar da sua palavra, mas se eles descobrirem algo, você verá portas sendo
fechadas.
Em Minimum Viable Product, Cabeção fala o seguinte: “...Esses caras inventam um
software medíocre que talvez vale alguma coisa um dia, e agora moram aqui, a grana está
rolando solta no Silicon Valley e nunca chega na gente.” O ecossistema do Vale do Silício
está recheado de empresas inovadoras, e jovens que buscam destacar sua ideia entre tantas e
assim conseguir um investimento. (MARTEL, 2015).
Pereira, Costa, et al. in Kunsch (org.) (2009) infere padrões e hábitos aceitos nas
culturas locais e globais, trazendo o termo glocal. Que o discurso coletivo empodera, e que o
cidadão se tornou um ator social. Alguém que exige interatividade, produtos personalizados,
serviços e uma comunicação adaptada para seu perfil. O consumidor procura o melhor
produto que atenda às suas necessidades a curto prazo e que o deixe confortável socialmente
a longo prazo. E que a mídia é o locus central da atualidade, de conexões. Os autores
destacam ainda que gerenciar a imagem da organização em um mundo marcado pela grande

7
Chief Executive Officer, que significa Diretor Executivo.

107
disseminação de informações, a exposição de visibilidade e o entretenimento, deixa a
empresa fragilizada.

A organização que lida com a crise é o momento da retomada da continuidade do


diálogo. A organização que lida com a crise de maneira a reestabelecer o equilíbrio
de suas atividades e não teme pelo eventual desgaste de sua credibilidade (por saber
que poderá recuperar mais à frente) pode, sim, reerguer-se, caso o golpe na sua
reputação não seja definitivo. (PEREIRA; COSTA; et. al in KUNSCH (org.), 2009,
p.313).

Na série, a crise aparece por exemplo em Optimal Tip-to-Tip Efficiency, nesse


episódio um ocorrido pode prejudicar a empresa e viralizar, fazendo com que perca valor de
mercado. Por causa dessa situação e também pelo fato de um concorrente ter alcançado a
mesma pontuação Weissman 8, Jared leva ao público a ideia de Pivotar 9. Já Richard utiliza o
individualismo e talento próprio para executar uma nova versão de seu software, por fim, eles
ganham uma competição de Startups. Runaway Devaluationem apresenta outro exemplo, eles
utilizam o termo: estupro cerebral, para referir ao momento em que são convidados para uma
rodada de investimentos e recebem algumas perguntas aprofundadas sobre o funcionamento
do sistema, algo que deixam eles surpresos. A equipe fornece alguns dados, e então Erlich
percebe que isso é um roubo de informações.
Essa mudança na comunicação organizacional cria a necessidade de uma estratégia
bem definida, abrindo espaço para a chamada ambiência digital. Segundo Corrêa in Kunsch
(org.) (2009), essa ambiência vem com o foco de tornar as relações descentralizadas, com
pluralidade e de forma vertical, sem depender de uma certa hierarquia. A sociedade
conectada é o que faz as empresas quererem e conseguirem inovar, e são por vezes aceitas
flexibilizações. A autora relata que a cultura das organizações estão se adaptando a uma nova
perspectiva evolutiva, em que a virtualidade real demonstra que as relações existentes são
simultâneas: do eterno com o efêmero. Assim, efêmero por necessitar se adequar, e eterno
por conversar com o passado e o futuro cultural do espaço/tempo. “De acordo com essa
proposição, o espaço de fluxos substitui o espaço de lugares e, dessa forma, passado, presente
e futuro podem interagir na mesma mensagem, caracterizando um tempo intemporal.”
(CASTELLS 1999, 2003 apud BARICHELLO in KUNSCH (org.), 2009, p.349).

8
Weissman score é uma pontuação fictícia para medir taxa de redução de um arquivo e o tempo necessário, sem
perdas, utilizada na série como um parâmetro de aperfeiçoamento tecnológico.
9
Segundo Ries (2011), pivotar é ter realizado experimentos, testado seu produto e então percebido a
necessidade de se prosseguir para outro caminho com a empresa.

108
Sobre essa ambiência, o episódio The Blood Boy mostra uma disputa de hierarquia na
empresa com a decisão estratégica de lançamento. Gavin deseja um evento grande para
impulsionar seu nome no mercado, enquanto Richard quer algo pequeno para focar primeiro
na tecnologia, seguindo o que havia sido planejado. Richard fala que eles levaram um bom
tempo para planejar esse lançamento e que mudar a estratégia vai retirar mais tempo deles.
Há também diversas discussões entre Richard e Erlich, como no episódio The Lady. Fica
claro que pelo fato da empresa operar na casa de Erlich, ele acredita que possui mais
influência nas decisões do que deveria, pois tem apenas dez por cento de participação. Já a
questão intemporal aparece na inovação do aplicativo lançado. Durante a série, Richard
sempre destaca sua confiança na tecnologia, que retém pela disrupção, dois princípios:
escalabilidade e repetibilidade. (NORMAND, 2014). O autor afirma que escala é alcançar
vários lugares de forma rápida, e repetível é ter seu modelo presente de forma intemporal,
podendo se adequar ao apresentado por Barichello in Kunsch (org.) (2009) em seus estudos.
Em The Lady, a Pied Piper adota uma política de reclamação escrita para casos de
assédio no trabalho, Jared reforça que não há a necessidade de se identificar, é cômico, pois
no momento a empresa tem um número baixo de integrantes. Porém, Jared relata que é bom
começar a implementar essa cultura empresarial no início, assim a empresa vai crescer
sabendo seus valores. Ele destaca o fato de que a organização tem uma nítida representação
masculina e que cairia bem priorizar a contratação de uma mulher. Gilfoyle responde que
discorda e que a empresa tem que se preocupar apenas em contratar a melhor pessoa para o
cargo, sem olhar o gênero. Na entrevista de contratação para possíveis funcionários, Carla
passa por um constrangimento e diz que não é uma engenheira mulher, e sim, que é apenas
uma engenheira. Então Jared fala: “A gente quer as melhores pessoas que por acaso sejam
mulheres, independentemente de serem ou não mulheres, essa parte é irrelevante.” Abre
espaço para a discussão sobre o ambiente diversificado. (WEILER, 2010).
Weiler (2010) cita que a organização depende muito da equipe para alcançar os
objetivos, e que é importante na composição desse pessoal a interdisciplinaridade. Jared que
trabalhava na Hooli, passa a ter Richard como inspiração e busca entrar na empresa por
entender mais da parte de negócios, de como executar um plano e apresentar ao investidor
Peter Gregory, definindo quem será a equipe e quanto de participação todos terão na
empresa. (Sand Hill Shuffle). Os integrantes da incubadora passam por entrevistas, e diante
disso, Cabeção admite que é uma pessoa “inútil” e que não contribuirá em nada no

109
desenvolvimento, assim Richard precisa decidir se mantém seu melhor amigo, ou se manda
ele embora da empresa.
O plano de negócios é exigido por Peter, que pergunta a Richard: “Me fala o que eu
comprei.” Richard então fica sem saber como descrever seu produto, e diz: “Você comprou
um algoritmo...”, então Peter responde que não, que o algoritmo é um produto da empresa e
quer ver a empresa funcionando, com um plano estratégico, planilha de cotas, previsão de
investimentos, plano de negócio, ou outro documento relevante que possa ter preparado. E
deseja saber principalmente, se os integrantes da empresa são essenciais e não receberam
uma porcentagem de forma irrelevante, cita os dez por cento de Erlich, por ser dono da
incubadora.
Schuler in Kunsch (org.) (2009) trabalha a questão do ambiente multidisciplinar da
organização, o qual deve se destacar a imagem do líder, que precisa compreender o
funcionamento orgânico desse espaço. Aponta, ainda, haver alguns conflitos internos e a
preocupação de ser aceito. “Pessoas com baixa autoestima sofrem, seguidamente, do que se
chama de fobia do sucesso” (BUENO in KUNSCH (org.), p.258, 2009), como se fosse
gerado um sabotador interno, uma personalidade, que irá contribuir para que o sucesso não
aconteça. Já Duarte e Monteiro in Kunsch (org.) (2009) relata como o líder é uma figura
importante, porém para potencializar a comunicação nas organizações, é necessário que o
funcionário seja um cidadão ativo, ressignificando até mesmo o papel do gestor de
comunicação. Segundo os autores, o gestor precisa se preocupar mais em ouvir do que
ordenar, comprovando em seus estudos que ter os funcionários participando de forma ativa
como colaboradores da empresa, garante a ela chances maiores de se destacar no mercado.
Sobre liderança, Richard sofre de baixa autoestima. A série mostra, por exemplo, em
Optimal Tip-to-Tip Efficiency, sua insegurança e ansiedade ao pensar nos próximos passos da
empresa. Mônica fala o seguinte: “As coisas vão ficar insanas para você Richard, vai ter mais
ofertas de investimento do que vai saber o que fazer com elas, vai ter que tocar os negócios,
contratar equipe, alugar escritórios, uma assistente, Peter vai ter mais participação ativa e vai
ser bem mais duro, as pessoas vão querer o crédito pela sua ideia e vão tentar processar
você... Se achava uma loucura chegar aqui não vai acreditar no que tudo isso vai se
transformar, em breve vai dirigir milhares de empregados que vão respeitar você, e Gavin
Belson não vai se afastar tão cedo.” Richard passa mal se mostrando em pânico. Quanto a
importância da liderança, um exemplo é a trocas de CEO na terceira temporada, expondo

110
brigas gerenciais e posicionamentos divergentes entre Richard e Jack Baker. Já no episódio
Server Error, Richard mente para os integrantes, dizendo que eles podem levar os servidores
para Stanford, que lá terão um maior poder de processamento para manter os dados de um
cliente seguro na rede. Nesse capítulo, ele entra em conflito com todos os funcionários que o
repreende pela sua autoridade e falta de comunicação, então Richard fala que isso aconteceu
porque eles sempre diziam que ele tinha medo de se arriscar, de sair da zona de conforto.
Bueno in Kunsch (org.) (2009) relata que o marketing e a comunicação, colocou o
mundo dos negócios de cabeça para baixo. Que a globalização permitiu com que o mundo
dos negócios fosse impactado de forma drástica, surgindo novos modelos de gestão e uma
maior vigilância dos consumidores. O autor ainda fala sobre o chamado mercado de nicho,
que vem segundo Bueno in Kunsch (org.) (2011) pulverizando o tradicional mercado de
massa. A cauda longa do mercado de nicho, é por Anderson (2006 apud Bueno in Kunsch
(org.), 2009), três forças associáveis: democratizar as produções e distribuição, reduzir custos
de consumo e ligar oferta e demanda. Um exemplo que viabilizou isso é a chegada do
computador pessoal. O autor afirma que na teoria de Chis Anderson sobre a Cauda Longa,
surge o comprador para qualquer tipo de coisa, valendo de um estoque virtual para que as
mercadorias saiam com custos reduzidos. Ainda o que dá valor a empresa são os ativos
intangíveis, agregar valor junto ao público, exigindo uma nova postura das organizações. A
inteligência competitiva pelo autor, viabiliza a superação dos concorrentes, uma melhor
inserção no mercado, e o aumento da produtividade. Nunca para ele, a organização deve ter
como foco apenas resultados e lucros, precisa estar associada à responsabilidade social,
diversidade e valores pessoais e profissionais. Sendo essencial promover o diálogo da
organização com seus públicos de interesse. Deve-se superar a mão de obra como um simples
recurso, para a mão de obra como um fator de essência da organização, um preceito de quem
construirá a história da empresa. “Essa é, definitivamente, a nova ética da inteligência.”
(BUENO in KUNSCH (org.), 2009, p.385).
A série aborda a questão da competitividade, mostrando que não é porque uma
empresa é grande e detém um capital como a Hooli, que empresas menores não possam
entrar no mercado trazendo uma ameaça. Isso fica evidente logo no primeiro episódio,
quando Richard passa de consumidor de tecnologia, com um emprego estável, para a
gerência de sua própria empresa, recusando até mesmo vender seu algoritmo. A questão
abordada por Anderson (2006 apud Bueno in Kunsch (org.), 2009) de que é possível vender

111
qualquer coisa, nota-se em uma fala peculiar de Jack Barker sobre os vendedores na terceira
temporada em Terms of Service, Richard fala para Barker que os vendedores estão querendo
tirar os diferenciais do produto, pois faz com que fique mais difícil vender, como por
exemplo, a rede neural. E questiona: “se eles como vendedores, se realmente são bons, não
era para vender coisas difíceis?” Mas estão precisando comprometer o produto. Jack
responde que não é assim que funciona, para manter os melhores vendedores, é necessário
dar a eles algo fácil de vender, do contrário vão embora. Outra questão, é na quarta
temporada, em Daily Active Users, quando a plataforma está pronta, porém os usuários ativos
são desastrosos. A narrativa da série mostra como a criação de um grupo focal e a chamada
publicidade de ensinamento pode ser uma saída quando o assunto é vender um produto novo.
Igual dito por Ries (2011), quando cita que as Startup precisam entender seu mercado com a
validação correta, que talvez é um nicho que nem mesmo existe pela inovação.
Quanto a inteligência competitiva abordada pelo autor, Gavin no episódio The Lady,
cita o conceito Moonshot. Segundo Gavin: "É uma ideia tão grande, tão ousada, que é
impossível, até ela não ser mais... Até pouco tempo, as pessoas chamavam a ideia de mandar
o homem à lua de Moonshot, até não ser mais.” Esse discurso é implementado no lançamento
de uma nova divisão da empresa, chamado de “XYZ”, uma divisão que segundo Gavin:
“nenhum sonho é impossível.” Quanto às práticas organizacionais propostas pelo autor que
vai além de obter lucro, a Hooli por muitas vezes mostra-se uma empresa sem preocupação
ambiental, apesar de passar isso em suas propagandas, como o discurso apresentado logo no
primeiro episódio. Os exageros de Gavin para se mostrar como um líder respeitado para seus
sócios, chegam a causar a morte de um animal no episódio The Uptick, gerando um princípio
de crise para a instituição, que tenta esconder o fato da mídia.
Quando se fala de personalidade da organização, Marchiori in Kunsch (org.) (2009)
diz que é a junção de efeitos comunicativos gerados pelos indivíduos que a compõe. E essa
modificação da personalidade será realizada apenas pelos próprios indivíduos, criando um
mecanismo próprio, a depender da equipe. “Em resumo, a cultura é compartilhada, ressalta o
comprometimento das pessoas com valores, tem sentido emocional, estabelece identificação
dos membros e aprova ou não comportamentos.” (MARCHIORI in KUNSCH (org.), 2009,
p.297). Segundo Oliveira in Kunsch (org.) (2009) não há como retirar o processo humano da
organização. E para amenizar conflitos e auxiliar no convívio relacional entre agentes, existe
a negociação. “Negociação significa mudança do comportamento, da postura e da opinião

112
dos atores envolvidos, bem como pressupõe a intersubjetividade dos interlocutores,”
(OLIVEIRA in KUNSCH (org.), 2009, p.327). É nesse espaço que surge a importância da
ética, e então discute a questão dos escândalos empresariais e de como isso pode prejudicar a
empresa, abrindo espaço para que os consumidores exijam transparência na atuação dos
mercados, mostrando que nos tempos atuais, século XXI, é exigido pelas pessoas um
comportamento moral. É necessário segundo a autora uma dinâmica maleável.
No episódio Meinertzhagen's Haversack, quando informado sobre a criação de uma
caixa para empresas que ficarão guardadas em locais de servidores, e não da plataforma a ser
utilizada pelos consumidores. Os integrantes originais da Pied Piper elaboram um plano,
querem utilizar as horas de trabalho para passar por cima das ordens do chefe e
desenvolverem outra empresa por baixo dos panos, ação chamada de Skunkworks, Iriam
fingir que estavam trabalhando na caixa pedida por Jack, porém na verdade estariam
executando a plataforma dos consumidores. Fica claro, que a falta de negociação entre os
agentes da empresa podem causar tumultos, como o exemplificado. Mostrando que a equipe
precisa estar alinhada e atenta ao que está acontecendo dentro da instituição.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, sobre a construção e visão dos gestores de uma empresa inovadora em sua
fase inicial, é interessante olhar o que está presente na série. O artigo utiliza uma metodologia
que separa o referencial teórico em temas que corroboram para a diminuição de erros desses
gestores, e como esse perfil está mudando e contribuindo para a ressignificação das empresas,
com o surgimento das Startups. Como visto, por Normand (2014), a cultura do Vale admite
que os erros sejam reconhecidos e que, esse reconhecimento é o começo para que sejam
sanados.
Na série, o ambiente conhecido por Vale do Silício permitiu analisar a questão da
comunicação organizacional e estudos de aspectos gerenciais de inovação. É necessário para
isso como foi explicitado, recortes com possíveis aplicações ao desenvolvimento de um
ambiente saudável e produtivo dentro das Startups, muitas vezes testadas pela relação dos
personagens da série. A teoria foi exemplificada por cenas descritas ao longo do artigo, que
podem ser conferidas diretamente no episódio utilizado como referência. Essa aplicação
revela que o seriado apesar de ser uma comédia de ficção, é atual e contribuiu com

113
ensinamentos reais, trazendo exageros, mas com eles um conteúdo de grande relevância.
(CARDOSO, 2018, WEB).
O seriado inova ao apresentar o Vale do Silício de forma peculiar por ser uma Sitcom,
revelando conceitos importantes que, se conectados com as pessoas, contribuem certamente
para repensar uma nova visão empresarial. Como por exemplo, Moonshot e Skunkworks. E
expõe ainda, ferramentas de gestão, como o método Scrum. Sendo portanto, Silicon Valley
mais profunda do que se pensa pelo tempo de cada episódio e por ser uma comédia ficcional.
Verifica-se assim que é completamente possível conectar o conteúdo dos seus episódios com
a criação de uma empresa inovadora, contribuindo para a gestão.

REFERÊNCIAS:
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<https://www.napratica.org.br/porque-vale-do-silicio/> Acessado em: 18/08/2018.
CÂNDIDO, ANA CLARA. Inovação Disruptiva: Reflexões sobre as suas características e implicações no
mercado. <https://run.unl.pt/bitstream/10362/6912/1/WPSeries_05_2011ACC%25C3%25A2ndido-1.pdf>
Acessado em: 01/09/2018.
CARDOSO, Carlos. Desocupados recriaram a cena mais irritante de Silicon Valley.
<https://meiobit.com/383807/viska-alerta-de-bitcoin-silicon-valley/> Acessado em: 02/09/2018.
GOMES, Rafaela. HBO renova as séries 'Silicon Valley' e 'Barry'. 2018. <http://cinepop.com.br/hbo-renova-
as-series-silicon-valley-e-barry-172358> Acessado em 01/09/2018.
JUDGE, Mike; ALTSCHULER, John; KRINSKY, Dave. Produtor: KLEVERWEIS, Jim. Silicon Valley. 4
Temporadas (2014 – 2017), Estados Unidos, HBO.
KUNSCH, Margarida M. Krohling (org.). Comunicação Organizacional – Volume 1: Histórico, fundamentos
e processos. São Paulo, Saraiva, 2009.
KUNSCH, Margarida M. Krohling (org.). Comunicação Organizacional – Volume 2: Linguagem, gestão e
perspectivas. São Paulo, Saraiva, 2009.
MARTEL, Frédéric. Smart: O que você não sabe sobre a internet. Rio de Janeiro, 2016.
NORMAND, Reinaldo. Vale do silício - entenda como funciona a região mais inovadora do planeta. 2014.
<www.valedosilicio.com> Acessado em: 14/08/2018.
OLIVEIRA, Érico Fernando de. Smart is the new sexy: a ressignificação do nerd na sitcom The Big Bang
Theory. <http://portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-3053-1.pdf> Acessado em: 03/09/2018.
RIES, Eric. Startup Enxuta. São Paulo: Lua de papel, 2011.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de
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WEILER, Aline. Comunicação interna e gestão de pessoas: Facilitando os relacionamentos em um ambiente
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114
ESTRATÉGIAS COMUNICACIONAIS DO MINISTÉRIO DA
SAÚDE FRENTE AO MOVIMENTO ANTIVACINA 1

COMMUNICATION STRATEGIES OF THE MINISTRY OF


HEALTH AGAINST THE ANTIVACY MOVEMENT
Waldinéia Stefane Ferreira de Oliveira Costa 2

Resumo: No dia 11 de julho de 2018, o Ministério da Saúde do Brasil publicou uma nota em seu
portal online comunicando que a Xuxa, que teve uma extensa carreira como
apresentadora infantil na televisão brasileira, será no ano de 2018 a madrinha da
campanha de vacinação infantil para combate às doenças de poliomielite e o
sarampo. Em um vídeo publicado junto à nota, Xuxa diz que “esse papo de ‘não
precisa vacinar’ é mentira. Tem de vacinar, sim”. Esse discurso de combater a
prática da não vacinação, vem de encontro com a crescente onda de movimentos
antivacina no Brasil, considerando que no ano de 2016 o país apresentou a pior
taxa de imunização dos últimos doze anos. Neste sentido, objetiva-se com o artigo
compreender como o discurso do movimento antivacina no Brasil, que é
caracterizado por pais que optam não vacinar os seus filhos conforme orientação
da Organização Mundial de Saúde (OMS), tem sido trabalhado por meio das
estratégias comunicacionais do Ministério da Saúde do Brasil. Como quadro
teórico, será utilizado os conceitos de midiatização, comunicação pública e suas
interfaces.

Palavras-Chave: antivacina. Ministério da Saúde. Estratégias comunicacionais.

1. Introdução

No dia 24 de maio de 2017 o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONAS)


publicou uma nota em seu portal online intitulada por, “Vacinar é preciso”. Em linhas gerais,
o intuito da nota era de combater alguns discursos veiculados pelo movimento antivacina, e
esclarecer a importância da conscientização social para garantia de que todas as crianças
sejam levadas para serem vacinadas, considerando que a vacinação é fundamental para
imunização de doenças que podem afetar seriamente a saúde da criança e até causar
mortalidade infantil. A nota destacou que a prática de vacinação é recomendada pela

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Grupo de Trabalho Comunicação, Propaganda e Marketing do 3º.
CONEC: Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de
outubro de 2018.
2
Mestranda pelo PPGCOM da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas). E-mail:
waldineia_stefany@hotmail.com.

115
Organização Mundial de Saúde (OMS), e que as vacinas infantis ofertadas no Sistema Único
de Saúde (SUS), é uma das principais conquistas da saúde pública no Brasil.
A nota do CONASS ainda apontou para como o movimentos sociais que condenam a
prática de vacinação no Brasil passaram a ganhar certa notoriedade na esfera midiática.
Segundo a nota:

Recentes matérias jornalísticas apontaram as possíveis repercussões da atuação dos


“grupos anti-vacina”, que disseminam informações sem qualquer evidência
científica nas redes sociais em vários países, inclusive no Brasil. O CONASS vem
a público repudiar a atuação destes grupos, que tentam minar a credibilidade
das vacinas e consequentemente o alcance das ações de imunização, considerando
as evidências epidemiológicas e sua eficácia e segurança (CONASS, 2017, grifo
nosso).

Um dos reflexos da preocupação de órgãos ligados à questão da saúde no Brasil sobre


o crescimento dos movimentos antivacina, foi que a nota publicada pelo CONASS foi
endossada pelo Ministério da Saúde do Brasil e diversos outros órgãos nacionais do ramo,
que sublinharam sobre como o movimento antivacina passou a ter uma maior repercussão no
país, principalmente no contexto digital e redes sociais online.
De acordo com o jornal BBC, em artigo publicado no mês agosto de 2017, a partir
daquele contexto se percebia a crescente preocupação das autoridades de saúde brasileiras
sobre a atuação do movimento antivacina no Brasil. O artigo apontava que essa preocupação
poderia ser evidenciada por meio da taxas decrescentes do número de crianças vacinadas no
país nos últimos anos, considerando que isso pode acarretar sérios riscos à saúde pública,
como surtos e epidemias de doenças fatais, sendo que algumas delas já haviam sido
erradicadas no país, como o caso da poliomielite, conhecida como a doença causadora da
paralisia infantil.
Segundo os dados do artigo da BBC (2017), no ano de 2016 o Brasil registrou a pior
taxa de imunização dos últimos doze anos, considerando que a meta de vacinação proposta
pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de atingir 95% da população não foi alcançada,
uma vez que apenas 84% da população foi vacinada neste ano. Para a BCC, existem três
pontos centrais que podem nortear a avaliação da queda das taxas de vacinação no Brasil,
sendo eles, “o desabastecimento de vacinas essenciais, municípios com menos recursos para
gerir programas de imunização e pais que se recusam a vacinar seus filhos ”(BBC, 2017).
Esse último ponto, sobre a recusa de alguns pais ou responsáveis de levarem as crianças para

116
vacinar, conforme aponta a Carla Domingues (2017), coordenadora do Programa Nacional de
Imunização (PNI), é atravessada por diversos fatores, como sociais e religiosos, e apesar de
ser um movimento com maior força na Europa e nos EUA, tem se mostrado preocupante no
cenário brasileiro.
Com base nesses apontamentos, objetivamos a partir da análise do site oficial do
Ministério da Saúde do Brasil compreender como este órgão tem se posicionado por meio da
sua comunicação direcionada a sociedade sobre o crescimento do movimento antivacina no
país, e também compreender como o movimento antivacina tem reverberado socialmente por
meio da esfera midiática, principalmente no contexto digital.

2. Um breve histórico do movimento anti-vacina

Os pesquisadores Paulo Roberto Vasconcellos-Silva e Luis David Castiel (2010),


ambos da Fundação Oswaldo Cruz, escreveram em um artigo sobre a internet na história dos
movimentos antivacinação sobre a importância de diferenciar os recentes movimentos
antivacina, de outros movimentos históricos sobre a recusa da vacinação, como no Brasil, o
fato histórico denominado por Revolta da Vacina.
De acordo com Silva e Castiel (2010) a Revolta da Vacina foi um evento histórico que
surgiu por meio de um movimento popular que ocorreu no Rio de Janeiro no ano de 1904,
cujo principal motivo se deu pelo fato de que população de menor renda daquele período se
recusou a aceitar a obrigatoriedade, imposta pelo governo, de serem vacinados contra a
doença da varíola. Segundo os pesquisadores um dos pontos que fizeram com a população se
opusesse a tomar a vacina foi a falta de informações sobre o motivo da e os benefícios da
vacinação naquele período.Distante do panorama descrito anteriormente, para Silva e Castiel
(2010) os movimentos antivacina atuais reverberam em uma esfera onde a população possui
grande acesso de informações e conhecimentos sobre o papel social das vacinas e suas
funções.
Silva e Castiel (2010) consideram que as mídias de massa, e principalmente a internet
e as tecnologias de informação e comunicação (TICs) através das suas redes, hardwares e
softwares passaram a ampliar e modificar em escala crescente a forma com que as pessoas
passaram a consumir diversos tipos de conteúdos, o que de certo modo, complexificou o
processo comunicacional. Para os autores, grande parte das pessoas passaram a assumir as

117
informações anônimas disponíveis nas redes como fontes de credibilidade, e é neste cenário
que os movimentos antivacina passaram a ganhar força.
A partir dessa perspectiva, Castiel e Silva (2010) apontam como esse cenário tem
afetado diretamente o campo da saúde, uma vez que este se encontra atravessado por diversas
informações que surgem anonimamente nas redes, de maneira incalculável, e muitas das
vezes são tomadas como verdades, e passam a questionar e colocar em xeque o pensamento
científico e especializado de profissionais da área. Castiel e Silva afirma que:

Atualmente existe uma crescente credibilidade da internet nas questões de saúde,


ultrapassando mesmo a confiança antes atribuída aos médicos. A oferta de recursos
para acesso à informação se expandiu de forma impressionante - há websites usados
para controvertidos autodiagnósticos - uma possibilidade tão atraente (porque
acessível), quanto arriscada (porque perigosamente simplificadora) (CASTIEL E
SILVA, 2010).

Porém, Castiel, Grip e Silva (2014) colocam que um pouco antes da popularização da
internet e sua consolidação como uma fonte global de informações, o movimento antivacina
teve um fato marcante, no ano de 1998, quando o Dr. Andrew Wakefield, médico de
nacionalidade inglesa, publicou um artigo em um periódico da área médica chamado por
Lancet, onde desenvolveu uma tese na qual associava a vacinação como causa da doença de
autismo. Segundo Castiel, Grip e Silva (2014, p. 610) Wakefield propunha que a vacinação
causava “uma condição inflamatória intestinal a expor crianças vacinadas às toxinas
causadoras do autismo.” A tese de Wakefield sobre a associação entre a vacina tríplice, nome
dado no Brasil, mas nos países de língua inglesa conhecida pela sigla MMR, e o autismo
provocou um grande conflito na área da saúde. A vacina responsável por imunizar doenças
como sarampo, caxumba e rubéola, representava um grande avanço para a medicina como
diversas comprovações científicas, e por isso após a análise da tese que associava o uso da
vacina a doença de autismo, a General Medical Council inglesa publicou um artigo refutando
todas as afirmativas propostas por Wakefield.

Suas afirmações originaram reações enfáticas em vista das excessivas extrapolações


e a questionável metodologia empregada, o que levou o General Medical Council -
GMC (conselho federal de medicina inglês) a cassar seu registro profissional. O
GMC identificou conflito de interesses na sua associação com advogados que
buscavam indenizações e na descoberta de uma patente de vacina anti-sarampo
(supostamente segura) registrada em seu nome, além de procedimentos invasivos e
desnecessários impostos às crianças sob investigação (CASTIEL E SILVA, 2010).

118
Apesar do apontamento de todas as falhas da tese em associar os casos de autismo
com a vacina tríplice viral, Castiel, Grip e Silva (p. 612, 2014) apontam que “dúvidas ainda
se alimentavam nos ciclos de atenção gerados por debates, frequentemente divulgados pelas
mídias americanas e, sobretudo, por web sites em mútua referência a fóruns de comunidades
virtuais.” Os autores destacam que os movimentos antivacina continuaram a reverberar e
passaram a ter maior força em países europeus e nos EUA, mas que devido à potência da
internet e seu alcance global, esses movimentos começam a se ramificar para outros países.
Os autores reiteram que:

As redes virtuais antivacinação têm ampliado seus espaços, sobretudo pela força
das celebridades que abraçaram a causa em debates veiculados pela TV americana e
inglesa o que parece ter comprometido a cobertura dos programas de imunização
ingleses e americanos, apesar das evidências epidemiológicas que se opuseram as
teses anti MMR (tríplice viral) (CASTIEL; GRIP; SILVA, p. 610, 2014).

A partir das colocações apresentadas, percebemos que a ampliação do movimento


antivacina está atrelada com a amplificação dos meios de comunicação e as possibilidades
dos indivíduos colocarem para circular suas informações e perspectivas sobre os mais
diversos assuntos, principalmente no contexto da internet.

2.1 Reflexos dos movimentos antivacina no Brasil

Em fevereiro de 2014, o jornal BBC publicou uma matéria intitulada por “Brasil
também tem adeptos do movimento antivacina”, o destaque inicial da matéria estava
centrado em comunicar que apesar de uma expressividade tímida no país, os movimentos
antivacina já eram debatidos em grupos discussões online e que já estavam sob alerta das
autoridades de saúde brasileira, pois foi verificado em uma pesquisa realizada pelo Ministério
da Saúde no ano de 2014 que a média de vacinação de crianças pertencentes a classe
econômica A, estava decrescendo, sendo que apenas 76,3% das crianças dessa classe eram
vacinadas, quena a média nacional era de 81,4%. De acordo com a matéria, Jarbas Barbosa,
naquele período secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, relatou que esse

119
dado era preocupante, pois “a queda no estrato mais alto se dá justamente porque alguns pais
não vacinam o que é um problema grave”(BBC, 2014).
A BBC (2014) também aponta que outros acontecimentos trouxeram mais vigor para
o debate dos movimentos antivacina no Brasil, como por exemplo, a ocorrência de 26 casos
de sarampo no bairro Vila Madalena em 2011, considerada com uma região de classe média
alta na cidade de São Paulo. Segundo a matéria, os casos estão relacionados ao fato de uma
criança que morava na região não ter sido vacinada contra a doença por opção da família.
A matéria da BBC (2014) apresentou o relato de alguns pais “antivacinas” focando
em quais são os argumentos e pontos de vista destes sobre a decisão de não vacinar os seus
filhos. Um dos relatos foi personificado por uma mulher, cuja profissão era terapeuta floral.
Segundo ela, “acredito que com tantas vacinas, estamos criando gerações de imunidade cada
vez pior, criando um sistema imunológico burro.” Em outro relato, um homem identificado
pela profissão de Agente de Turismo, disse que “é preciso pesquisar os elementos das
vacinas, esclarecer os prós e contras. O bom de viver na nossa época é justamente encontrar
muita informação disponível.” A partir dessas falas, percebe-se que os pais apresentam uma
justificativa calcada em opiniões sem fundamentação científica ou de algum profissional
especializado no assunto.
De acordo com o infectologista e pediatra, Arondo Prohmann de Carvalho, membro
da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a escolha de alguns pais de não vacinarem os
filhos pode ser considerada como irresponsável, ele ainda reitera que “orientados de maneira
errônea, esses pais põem em risco não apenas a própria criança, mas toda a população.” Em
confirmação desse apontamento feito por Carvalho, o jornal El País em junho de 2015
escreveu uma matéria sobre o perfil dos “antivacinas” e apresentou alguns dados que
reforçaram a preocupação de autoridades governamentais brasileira com a ascendência do
movimento no país e os impactos sociais causados pelo movimento. Segundo o jornal, após
os casos de sarampo registrado em 2011, associados ao fato de que o surto começou após
uma família não ter vacinado uma criança em São Paulo, em 2012 o número de crianças
infectadas com a doença continuou crescendo expressivamente no Brasil, sendo que em
relação ao ano anterior, 2011, foram registrados mais de 5.298 casos, representando 135% a
mais.

120
Um blog nomeado por Brasil sem vacinas 3, hospedado no endereço virtual
https://brasilsemvacinas.wordpress.com/, colocou em sua descrição que o seu objetivo é
“divulgar artigos para informar a população sobre o perigo das vacinas.” O primeiro artigo do
blog foi publicado em janeiro de 2016 e não existem publicações desde maio de 2017. Em
um dos artigos do blog, alocado na categoria “autismo” é titulado por, “Tribunal italiano
vincula o Mercúrio e Alumínio em vacinas com as causas do autismo. A Mídia continua
escondendo a informação”. A matéria do site afirma que um bebê italiano desenvolveu o
autismo depois de receber a vacina “INFANRIX Hexa” para a pólio, difteria, tétano, hepatite
B, coqueluche e influenza tipo haemophilus B.

No dia 24 de setembro de 2014, o Programa Nacional de Compensação Vacinas da


Itália concordou que a vacina da GSK “INFANRIX Hexa” para a pólio, difteria,
tétano, hepatite B, coqueluche e influenza tipo haemophilus B induzia autismo
permanente e danos cerebrais na criança previamente saudável , cujo nome foi
mantido privado para a segurança. A vacina, que contém vários antígenos,
timerosal (mercúrio), várias formas de alumínio, formaldeído, recombinante
(geneticamente modificado) componentes virais e vários conservantes químicos,
comprovadamente causaram autismo a o jovem logo depois que ele recebeu as três
doses da vacina, o que levou a família para pedir o caso antes do Ministério da
Saúde da Itália (BRASIL SEM VACINA, 2016).

O blog não disponibiliza nenhuma confirmação de autoria e nem apresenta fontes


científicas para embasar as proposições sobre a influência das vacinas em casos de doenças,
conforme defende as teses ali apresentadas, isso reforça o que já colocamos anteriormente
sobre como as redes possibilitam a disseminação de informações anônimas que acabam
sendo assumidas como discursos de verdade.
No dia 11 de julho de 2018, o Ministério da Saúde do Brasil, publicou uma nota em
seu portal online comunicando que a Xuxa, será a madrinha da campanha de vacinação
contra a poliomielite e o sarampo em 2018, também popularmente conhecida como vacina do
Zé gotinha. 4 De acordo com a nota, a campanha televisiva e nas redes sociais, começará em
06 de agosto de 2018, em todo território nacional, tendo como principal objetivo reforçar e

3
O blog é anônimo é também conta com uma página no facebook, que até o momento do encerramento
do artigo contava com 851 curtidas. Endereço do blog: https://brasilsemvacinas.wordpress.com/

4
Segundo o ministério da saúde o nome Zé Gotinha para representar o mascote de vacinação foi
escolhido na década de 90 por estudantes de todo o Brasil. Fonte: http://www.blog.saude.gov.br/servicos/32941-
zegotinha-conheca-a-historia-do-simbolo-da-vacinacao-no-brasil.html

121
resgatar a importância da vacinação em crianças. Em um vídeo publicado junto à nota, Xuxa
diz que “esse papo de ‘não precisa vacinar’ é mentira. Tem de vacinar, sim”. Esse discurso de
combater a prática da não vacinação vem de encontro com a crescente onda de movimentos
antivacina no país, que no ano de 2016, apresentou a pior taxa de imunização dos últimos
doze anos, de acordo com o CONASS 5.
A partir do exposto, percebe-se que de forma gradual os movimentos antivacina
afetaram alguns discursos sociais no Brasil, e apesar de ser mais difundido entre as classes de
maior renda econômica, conforme os dados apresentados, a partir das conversações online
por meio de sites de redes sociais, blogs, entre outros canais de comunicação, esse
movimento vem ganhando espaço para representar suas informações, o que acaba ampliando
o acesso a pautas que os movimentos antivacina defendem.

2. Conceitos de Midiatização e o entrelaçamento com o movimento antivacina

O uso da palavra conceitos no plural deve-se ao fato de que os estudos sobre teorias
que trabalham a conceituação de midiatização não são unívocos no campo da comunicação,
ressaltando que esse conceito ainda reverbera diferentes perspectivas e desdobramentos no
campo comunicacional.
Em busca de demarcar uma linha de pensamento central para o conceito de
midiatização, Martino (2012, p. 222), propõe entender o processo de midiatização “como o
conjunto das transformações ocorridas na sociedade contemporânea relacionada ao
desenvolvimento dos meios eletrônicos e virtuais de comunicação.” Para o pesquisador, esse
conceito transforma a concepção das mídias apenas como transmissoras de informações, e as
coloca num lugar de organizadora social, sendo uma das principais responsáveis por trocas
simbólicas e produção de sentido na sociedade.
Ampliando o conceito de midiatização, Sodré considera que esse processo significa
uma “[...] tendência à virtualização das relações humanas, presente na articulação do múltiplo
funcionamento institucional e de determinadas pautas individuais de conduta com as
tecnologias da comunicação” (SODRÉ, 2006, p. 21). Segundo Sodré, estamos imersos em um

5
Segundo o CONASS, os índices apresentando em 2016 colocaram a situação da vacinação no país em
estado de alerta. Fonte: http://www.conass.org.br/queda-da-imunizacao-no-brasil/

122
“bios midiático” onde a mídia se tornou uma esfera indissociável da vida social, para ele, isso
significa que “[...] estamos imersos na virtualidade midiática, o que nos outorga uma forma
de vida vicária, paralela, "alterada" pela intensificação da tecnologia audiovisual conjugada
ao mercado” (SODRÉ, 2013, p. 108).
Para Hjarvard, a midiatização se apresenta como um conceito chave para elucidar
como a mídia influencia os processos sociais e culturais, segundo ele “a mídia é, ao mesmo
tempo, parte do tecido da sociedade e da cultura e uma instituição independente que se
interpõe entre outras instituições culturais e sociais e coordena sua interação mútua.”
(HJARVARD, 2012, p. 54). O pesquisador afirma que esse conceito tem sido utilizado para
compreender as transformações sociais em campos balizadores da sociedade como, política,
ciência e religião. Um ponto importante destacado por Hjarvard é sobre como o processo de
midiatização possui especificidades de acordo com determinadas sociedades.

A midiatização não é um processo universal que caracteriza todas as sociedades.


Ela é, essencialmente, uma tendência que se acelerou particularmente nos últimos
anos do século XX em sociedades modernas, altamente industrializadas e
principalmente ocidentais, ou seja, Europa, EUA, Japão, Austrália e assim por
diante. Conforme a globalização avança, cada vez mais regiões e culturas serão
afetadas pela midiatização, mas provavelmente haverá diferenças consideráveis na
influência que ela exerce (HJARVARD, 2012, p. 65, grifo do autor).

Castiel, Grip e Silva (2014) aproximando o conceito de midiatização e seu


atravessamento no campo da saúde, apontam que a transição da “sociedade dos meios” para a
“sociedade midiatizada” fez com que um fato jornalístico, ligado a uma representação do
real, de certa forma passou a ser assimilado pelos indivíduos como a própria realidade
representada. Os autores recuperam a ideia de Anthony Giddens para afirmar que “bem antes
da era das redes virtuais, na época das prensas mecanizadas, as mídias se nos apresentam
como “portas de acesso” a fornecer condições de consolidação de vínculos simbólicos com
sistemas abstratos que tendem a se expandir e complexificar” (CASTIEL; GRIP; SILVA,
2014, p. 610). Nesta perspectiva, os autores consideram que desde os primeiros meios de
comunicação mais difundidos na sociedade, como o jornal, a mídia se revelou como um
agente influente na sociedade, responsável por provocar reflexões e rupturas com o
tradicional.
Os pesquisadores Castiel, Grip e Silva (2014) colocam que a popularização da internet
e das redes sociais online como fonte de diversos tipos de informações sobre o campo da

123
saúde, transformaram debates aleatórios em fontes de verdade, sendo este um dos principais
motivos da força dos movimentos antivacina. Os autores consideram que pela busca
desenfreadas de informações, sobre os diversos assuntos que permeiam a vida cotidiana, as
pessoas acabam sendo influenciadas por discursos duvidosos que emanam incessantemente
nas redes.

Para uma sociedade culturalmente estruturada sob a sombra de riscos que se


multiplicam, sobretudo pela exposição dos canais midiáticos, a exigência por
decisões reflexivas de todos a todo momento e acerca de todos os pormenores da
vida cotidiana se dá sob condições nas quais descrédito e crença se alternam ao
sabor dos apelos mais enfáticos, reflexivos ou não (CASTIEL; GRIP; SILVA,
2014, p. 612).

Destacamos que Castiel, Grip e Silva (2014), reiteram que não se pode reduzir apenas
a mídia o papel de expandir de forma “mágica” os movimentos antivacina, os pesquisadores
também abordam alguns elementos que fazem parte desses movimentos. Para eles, como o
autismo ainda é um tema de difícil compreensão e consenso no meio científico, em busca de
respostas, pessoas que gostariam de compreender melhor sobre a doença, busca através da
internet encontrar mais informações sobre o assunto, e muita das vezes é ali que encontram
discursos com uma linguagem mais clara sobre assunto. Além disso, os autores destacam que
a internet se torna uma rede de apoio social através das experiências e relatos “reais” que são
materializados em blogs, fóruns, comunidades online e entre outros. Segundo os
pesquisadores, “nessas redes de suporte, muitos outros rostos e relatos se misturam a novas
enunciações e incompletudes a ampliar o abrigo-tormento das certezas provisórias”
(CASTIEL; GRIP; SILVA, 2014, p. 611).

3. Comunicação pública do Ministério da Saúde frente ao movimento antivacina


De acordo com Duarte (2009, p. 3) “ a comunicação pública diz respeito à interação e
ao fluxo de informação relacionados a temas de interesse coletivo[...] inclui tudo que diga
respeito ao aparato estatal, às ações governamentais, partidos políticos, terceiro setor e, em
certas circunstâncias, às ações privadas.” Para o autor, é por meio da comunicação pública
que ocorre a interação entre os atores sociais, considerados por ele como o governos, Estado
e sociedade civil, sendo esta última formada por partidos, empresas, terceiro setor e cidadãos
ordinários.

124
Duarte (2009) considera que é por meio da comunicação pública que os interesses
coletivos são dialogados, negociados e compartilhados, buscando apresentar pontos de
convergências para a tomada de decisões que devem beneficiar o coletivo.
A partir dessas perspectivas, buscamos analisar o site do Ministério da Saúde do
Brasil (MS) na aba de assuntos relacionados sobre o tema da vacinação e verificar como a
comunicação pública é trabalhada de forma estratégica para conseguir comunicar a população
sobre a vacinação, e principalmente, considerando a forma com que o MS aborda sobre a
questão das campanhas contrárias a prática de vacinação promovidas pelo movimento
antivacina.
A estrutura do site do MS é concentrada em direcionar os usuários para
compreenderem melhor sobre o que são as campanhas de vacinação ofertadas a população, e
em destacar importância das vacinas para o combate de diversas doenças. O texto principal
do site é intitulado por, Entenda por que a vacinação evita doenças e salva vidas. Em linhas
gerais, o texto aborda sobre como a vacinação é importante para evolução da saúde pública
no Brasil, e a necessidade de pessoas se conscientizarem constantemente sobre a importância
da vacinação.
Outro ponto de destacado pelo MS no texto, é sobre a importância das pessoas
buscarem uma validação a partir de fontes confiáveis sobre as informações circuladas na
internet sobre questões relacionada ao tema da vacinação, reforçando que a prática de
proliferação de boatos sobre os malefícios causados por causa de vacinas tem afetado
negativamente o cenário de saúde nacional, uma vez que doenças que já haviam sido
erradicadas, retornaram nos últimos anos.
Com o objetivo de oferecer informações didáticas desmentindo algumas informações
não verídicas sobre as questões relacionadas à prática de vacinação, o MS apresenta na
página principal da aba sobre vacinas um quadro informativo para validar as informações
oficiais do órgão.

125
Fonte: Ministério da Saúde do Brasil

A questão das fake news sobre as vacinas é um ponto que o MS trabalha de forma
incisiva, oferecendo diversos materiais informativos de comunicação para esclarecimentos
das principais notícias falsas sobre o tema.
Para Ivana Bentes (2018) , ao analisar o contexto atual sobre a produção exacerbada
de fake news, pontua que, é comum que em sociedades modernas, que vivenciaram o
processo de queda das macronarrativas, existir uma pluralidade de vozes e disputa de
sentidos, para ela “agora, existe uma espécie de ‘ruidocracia’, com muitas pessoas disputando
a produção de verdades, o que coloca a autoridade do médico, do professor ou do político,
por exemplo, sob suspeita” (BENTES, 2018).
Em entrevista à Revista Radis, especializada em comunicação e saúde da Fiocruz, o
pesquisador Cláudio Maierovitch, afirmou que a área da saúde sempre se viu atravessada por
informações não científicas e de origem duvidosa, porém, com a ampliação das redes de
comunicação online, esse fato vem se tornando cada vez mais recorrente e preocupante, como
no caso dos movimentos antivacina no Brasil. Para o pesquisador “é um perigo constante as
pessoas deixarem de adotar uma medida sabidamente importante para sua proteção porque
foi mal informada ou recebeu informação mentirosa” (MAIEROVITCH, 2018).

126
4. Considerações finais

Apesar de ser considerado tímido em relação aos movimentos antivacina dos países
europeus e dos EUA, o crescimento do movimento antivacina no Brasil começou, desde
meados de 2014, a provocar reflexões mais intensas em alguns campos sociais e se tornar
pauta de notícias para veículos midiáticos. Alguns reflexos sociais ampliaram o olhar e a
preocupação de autoridades para os reflexos sociais que poderiam estar acarretando esses
movimentos, como o índice da pior taxa de imunização dos últimos doze anos em 2016.
A internet e os seus múltiplos meios e plataformas de comunicação, mostra-se como
um agente de grande influência para se compreender a ascensão dos movimentos antivacina
em escala mundial, graças a sua condição de acesso global, a internet amplifica o acesso a
relatos e narrativas de qualquer lugar do mundo, além de ser considerado um espaço “neutro”
onde pode ser colocado qualquer tipo de informação, e no caso específico da saúde, sem
nenhuma comprovação científica.
Ao realizarmos uma análise reduzida sobre o Ministério da Saúde do Brasil por meio
do seu site oficial vem buscando usar a comunicação pública de forma estratégica para
combater as reverberações do movimento antivacina Brasil, percebemos que este tem
buscado reforçar os ganhos históricos e sociais para a saúde pública com a inserção de
diversas vacinas para a população, e intensificado a circulação de informações que
desmistificam as fake news circuladas sobre o tema.
Concluímos, portanto, que os movimentos antivacina no Brasil podem ser
considerados como um fenômeno social de ordem complexa, pois se encontram atravessados
por várias instâncias da vida social que demandam um olhar mais crítico e atencioso para
esses movimentos, pois, apesar de se tratar de escolher individuais, as ações dos movimentos
antivacina podem provocar diversas transformações sociais.

Referências
BBC. Vacinação em queda no Brasil preocupa autoridades por risco de surtos e epidemias de
doenças fatais. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41045273. Acesso em 01 de
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BBC. Brasil também tem adeptos do movimento antivacina. Disponível em:


https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/02/140220_vacinas_brasil_mdb. Acesso em 01 de ago
de 2018.

127
BRAGA, José Luiz. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, M. Â.; JANOTTI JUNIOR, J.;
JACKS, N. (Org.). Mediação & Midiatização. Salvador: COMPÓS-EDUFBA, 2012. p. 31-52.

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Disponível em: http://www.blog.saude.gov.br/servicos/32941-zegotinha-conheca-a-historia-do-
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128
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129
Estratégias de Marketing e Comunicação no Esporte
Eletrônico:
Estudo de Caso do Dreamhack Leipzig 2017
STRATEGY OF MARKETING AND COMMUNICATION AT
ELETRONIC SPORT:
Case Study of Dreamhack Leipizig 2017
Paulo José Fiorite do Lago 1
Herlander Alves Elias 2

Resumo: Este trabalho assume o esporte eletrônico como um fenômeno na


atualidade, os campeonatos pagam premiações na casa dos milhões de dólares
para os jogadores. O envolvimento de marcas neste ambiente é um dos principais
fatores que movimentam este mercado.
O estudo é focado no campeonato de esporte eletrônico chamado Dreamhack
Leipzig 2017, que tem como objetivos: identificar quais ações de marketing e
comunicação foram utilizadas, como acontece a interação entre marca e público e
como os participantes veem o posicionamento da marca e o evento em si.
Foram feitas entrevistas semi-estruturadas com nove empresas que estavam na área
de exposição do evento, também foram feitas entrevistas com nove participantes e
com o organizador do evento. Um segundo método, utilizado para compreender de
forma clara o evento e captar dados adicionais, foi a observação participante, em
que o pesquisador se inseriu no evento durante toda sua realização. Através dos
resultados obtidos foi possível identificar diversas estratégias de marketing e
comunicação utilizadas pelas empresas no evento.

Palavras-Chave: Marketing de eventos. E-sports. Jogos Eletrônicos. Tribos


Urbanas. Comunicação.
.

1. Introdução.
É evidente a popularização dos jogos eletrônicos nos dias de hoje. Com a evolução da
tecnologia e da internet tornou-se fácil o acesso aos jogos, pessoas de diversas idades
passaram a jogar. Mas, no meio desse desenvolvimento, os jogos eletrônicos foram se
modificando e criando diversas vertentes, uma delas é o esporte eletrônico, também
conhecido como e-sport, são jogos competitivos em que a disputa entre jogadores é a
principal característica. Consequentemente, os esportes eletrônicos abriram as portas para
grandes campeonatos e disputas profissionais.

1
Paulo José Fiorite do Lago: Universidade da Beira Interior, mestre, paulo_fiorite@msn.com
2
Herlander Alves Elias: Universidade da Beira Interior, doutor.

130
Neste artigo, que se originou de uma dissertação de mestrado, estudam-se as estratégias
utilizadas pelas empresas no campeonato de esporte eletrônico Dreamhack Leipzig 2017, em
sequência é identificado o público que frequenta este tipo de evento e quais suas
características.

2. Compreendendo os jogos eletrônicos.

O ato de jogar está presente na humanidade desde seus primórdios, mas a busca por
criar uma definição correta para este termo teve uma grande demora. Tanto os jogos
tradicionais quanto os eletrônicos se desenvolveram ao longo dos anos, novas formas de
jogos surgiram. Nossa abordagem é direcionada ao jogo na sua versão eletrônica. Segundo
SANTAELLA (2004) o termo correto na língua portuguesa para se referir é jogos
eletrônicos, independentemente da plataforma em que está situado, seja computador,
consolas, portáteis, telefone/smartphone. Entretanto, o termo em inglês “game”, ou no plural
“games”, é comumente utilizado na língua portuguesa para se referir aos jogos eletrônicos,
diversos pesquisadores já usam o termo “games” em suas pesquisas. Cabe ressaltar que neste
trabalho será usado o termo técnico “gamers” para se referir a jogadores de jogos eletrônicos
(videogame players).
JUUL (2004) usa a diferença entre os jogos tradicionais e eletrônicos para explicar
corretamente o seu conceito, a versão eletrônica possui automação e complexidade,
possibilitando manter e calcular regras por si próprio, ampliando assim um universo de jogos
mais ricos. Para facilitar está compreensão, pode-se dizer que para os jogos eletrônicos não se
aplicam as mesmas regras dos que aos tradicionais, como por exemplo a lei da gravidade, que
em muitos jogos eletrônicos é utilizada de forma totalmente diferente. RANHEL (2009)
complementa que não há forma de os algoritmos negociarem as regras, pois são rígidos e os
resultados são quantificados automaticamente.
O esporte eletrônico, também conhecido como e-sport 3, é novo na sociedade, sua
força e proporção ainda é desconhecido por muitos. Mas, para compreendermos o seu
conceito WAGNER (2007) explica que o esporte eletrônico é definido como uma área de

3
E-sport: Eletronic sport – Esporte eletrônico.

131
atividades esportivas onde as pessoas desenvolvem e treinam capacidades mentais ou físicas
no uso das tecnologias de informação e comunicação.
O seu consumo é diferente de um jogo eletrônico tradicional, o e-sport é baseado na
organização e competitividade, já outros jogos baseiam-se na narrativa e no divertimento.

3. Marketing de eventos e comunicação estratégica.

De forma geral podemos entender o evento como uma ocasião específica que requer o
encontro de pessoas com uma mesma finalidade. A partir desta premissa, o evento terá um
tema principal que é a justificação da sua realização (GIACAGLIA, 2003). Para ampliar a
compreensão ZANELLA (2003) conceitua eventos como um local e data definidos onde se
reunirão pessoas com o mesmo objetivo, além de estabelecer e criar novos contatos.
Com uma visão básica do evento estabelecida podemos agora começar a conceituar o
termo com a visão direcionada ao marketing.

O Marketing de Eventos está sendo rapidamente reconhecido pela maioria


das empresas de promoção de vendas, propaganda, relações públicas e executivos
de marketing, os eventos são vistos como possibilidades incomparavelmente
melhores para combinar marcas, unir empresas ou oportunidades de negócios ou, na
mídia, utilizá-los como promoção da imagem da empresa (VAVRA, 1993, p.219).
Em complemento KOTLER E KELLER (2009) afirma que ter capacidade de criar seu
próprio evento e experiências é de grande importância, pois se bem executado irá gerar
interesse e envolvimento de consumidores e da mídia.
HOYLE (2002) apresenta os três “E’s” do marketing de eventos, sendo eles
Entretenimento (Entertainment), Excitação (Excitement) e Empreendimento (Enterprise). O
Entretenimento diz respeito a oferecer algo único que não pode ser encontrado em outro
lugar, isto fará com que as pessoas saiam de suas casas em busca de algo diferente para se
entreter. A Excitação deve estar presente desde o planejamento, o desenvolver de uma ação
que deixe as pessoas ansiosas, pode ser um palestrante, uma apresentação, uma celebração,
entre outros. O importante é garantir a excitação das pessoas com o elemento apresentado e
certificar que ele seja entregue como proposto. Em suma, o Empreendimento é a utilização de
algo ainda não experimentado, ter iniciativa e assumir riscos, dar a oportunidade as pessoas
de experimentarem novo, isto é, uma das principais características dos pioneiros do
marketing de eventos.

132
A importância do patrocínio no universo dos eventos é fundamental, pois embora
existam eventos onde não há patrocínio, a maior parte utiliza esta estratégia. Para definir o
que é o patrocínio, NETO (2003) apresenta-o como uma forma de propaganda, contudo
diferente das tradicionais. O seu impacto na mente do consumidor pode ser considerado
maior, pois atinge o consumidor em um momento distinto do que está habituado.
Para compreender o conceito de patrocínio de forma direta, podemos considerar como um
acordo entre duas partes, sendo o patrocinador responsável por fornecer dinheiro, bens ou
serviços, o patrocinado em troca oferece espaço para o patrocinador associar sua marca a
determinado evento (CONTURSI, 2003). Em complemento NETO (2003) afirma que o
patrocínio é uma ação de marketing promocional que permite que uma empresa alcance
objetivos, como por exemplo: promover a marca, posicionar produto, promoção de vendas e
estabelecer comunicação com cliente e parceiros. Por fim, KOTLER (2009: 319) afirma
“Uma empresa pode construir uma identidade por meio dos eventos que ela patrocina. ”
Mudando um pouco o foco neste momentos, passamos a falar de uma vertente da
comunicação que tem ganho destaque nos últimos anos é a comunicação estratégica, tanto no
meio académico quanto profissional tem-se feito necessário. Uma definição direta para a
comunicação estratégica é “o uso da comunicação, de forma intencional, para atingir os
objetivos organizacionais” (HALLAHAN et al., 2007). Seguindo uma linha de raciocínio que
nos direciona para a comunicação, BATEMAN (1998) ressalta que em uma organização toda
a comunicação deve ser administrada.
Porém, é importante destacar que a comunicação estratégica não é necessariamente
direcionada só para produtos ou marcas. TORQUATO (2002: 162) afirma que "o poder da
comunicação pode ser designado como poder expressivo. Ele é capaz de alterar estados de
comportamentos e, dependendo das formas como é utilizado, poderá ser decisivo para o tipo
de participação do funcionário e para eficácia global dos programas empresariais".

4. Tribos Urbanas.
As tribos urbanas multiplicaram-se nas últimas décadas e podem ser facilmente
encontradas nas cidades. A compreensão das tribos urbanas é importante para este trabalho
para reconhecermos os gamers como uma tribo e identificar as suas principais características.

133
Como ponto de partida precisamos compreender o que é tribo em relação ao contexto
deste trabalho. OLIVEIRA, CAMILO e AASSUNÇÃO (2003) explicam que estas tribos se
relacionam através de diversos fatores como o estilo musical, a imagem estética e as práticas
de lazer, quando identificadas passam a criar agrupamentos e formam grupos que
compartilham da mesma semelhança, as tribos de modo geral são importantes contextos de
desenvolvimento. O compartilhamento destes elementos somados de códigos, como por
exemplo as gírias, servem como contribuição para definir a imagem de cada tribo.
Em 1985 o termo “tribos urbanas” foi criado por MAFESSOLI (2005) para organizar
indivíduos na pós-modernidade, devido ao surgimento de diversos grupos nas grandes
cidades, emergiu-se junto a eles a necessidade de compreender este fenômeno. As tribos
urbanas são grupos criados dentro de cidades que estabelecem contatos com outros
indivíduos que compartilham dos mesmos interesses.
OLIVEIRA et all (2003) complementa o termo como “agrupamentos
semiestruturados, constituídos predominantemente de pessoas que se aproximam pela
identificação comum a rituais e elementos da cultura que expressam valores e estilos de vida,
moda, música e lazer típicos de um espaço – tempo”.
Com base nas características usadas para identificar uma tribo urbana, reunimos
informações para criar a seguinte definição de gamers como tribo: Gamers: Surgiu na década
de 70 junto com a popularização das consolas. São um grupo de pessoas que se dedicam a
jogar jogos eletrônicos com seriedade e não apenas como passatempo. Possuem
conhecimento técnico de hardware e software ligados as plataformas de jogos, têm o seu
próprio vocabulário com gírias, expressões e palavras. A sua interação acontece na maior
parte das vezes no ambiente virtual, embora participem de eventos, feiras e campeonatos de
e-sport.

4. Análise Empírica.

4.1 Objeto de Estudo


O objeto escolhido para dar suporte ao desenvolvimento deste trabalho é um
campeonato de esporte eletrônico chamado Dreamhack Leipzig 2017. O evento aconteceu no
espaço Leipzig Trade Fair na cidade de Leipzig, na Alemanha no período de 13 a 15 de

134
janeiro de 2017. O campeonato foi especificamente do jogo Counter Strike Global Ofensive,
da marca Valve.
O site do Dreamhack Leipzig (s.d.) divulgou os dados referentes a 2017, o espaço
destinado para o evento possuiu uma área total de 30.750 m², atribuído para todas as atrações
do evento. O número de pessoas que participaram do evento foi de 15.100, incluindo os
participantes da Área LAN.

4.2 Metodologia
Foram selecionadas duas metodologias para o desenvolvimento da pesquisa. A
primeira, foi a recolha de dados a partir da entrevista semi-estruturada. Por sua estrutura
parecer uma conversa informal, faz-se um método eficaz para recolha de dados no tipo de
evento analisado.
A outra metodologia foi a observação participante, podemos resumir este método
como a inserção do pesquisador no campo de pesquisa, afim do próprio pesquisador
experienciar todo tipo de acontecimento que decorre ao longo do tempo naquele grupo, enfim
traduz essa experiência a dados de pesquisa.

4.3 Resultados
A análise deste trabalho é dividida em três momentos, o primeiro diz respeito às
marcas, afim de compreender a interação, as estratégias e as ações. As entrevistas realizadas
com as empresas são o principal meio de análise, contudo a entrevista com o organizador do
evento serve de apoio. O segundo momento é dedicado ao público, através das entrevistas
realizadas com os participantes, compreende-se a forma em que percebem e interagem com
as marcas, neste momento a entrevista com o organizador também serve de suporte. Em
terceiro e último momento é apresentada toda a experiência que o pesquisador obteve
participando do evento, usando o conteúdo adquirido através da observação participante.
Devido à dificuldade encontrada para compreender os nomes dos entrevistados por
serem de origem alemã, utilizaremos para identificar as entrevistas da seguinte forma:
Entrevistas de empresa: “Número”. Empresa –“Nome da Empresa”, exemplo: 1.Empresa-
Zotac. As Empresas entrevistadas foram: Zotac, Iiyama, Asus, Tesoro, Fnatic, Artic,
Ballixtics, Benq e Gigabyte.

135
Já no caso dos participantes para manter o anonimato foram classificados como:
Participante 1, Participante 2, e assim por diante. O organizador será identificado como 1-
Organizador-Christian Gute. Todas as entrevistas estão disponíveis na versão original da
dissertação que originou este artigo.

4.3.1 Entrevistando Empresas


Com base nas respostas das entrevistas realizadas com empresas levantamos as
seguintes informações.
a) Os principais profissionais que devem estar presentes nos estandes são os de
Marketing e Relações Públicas. Afirmação retirada com base nas respostas das
seguintes empresas: 1.Empresa-Zotac, 3.Empresa-Asus, 4.Empresa-Tesoro,
5.Empresa-Fnatic, 8.Empresa-Benq, 9.Empresa-Gigabyte.

b) O setor de Marketing é o principal setor que escolhe se a empresa deve ir até a


determinado evento. Respostas retiradas das entrevistas com: 2.Empresa-Iiyama,
3.Empresa-Asus, 4.Empresa-Teroso, 5.Empresa-Fnatic, 6.Empresa.Artic,
9.Empresa-Gigabyte.

c) Os principais motivos para as empresas irem ao evento foram: Aumentar o volume


de vendas, expandir o conhecimento da marca entre o público e fortalecer o
crescimento deste tipo de evento e a indústria gamer. Estas afirmações foram
retiradas com base em todas as entrevistas.

d) As principais funções a serem realizadas no evento de acordo com as empresas


entrevistadas foram: 1) Fazer o público testar os produtos. 2)Apresentar novas
tecnologias. 3) Vender produtos. 4) Produzir conteúdo. 5) Coletar dados sobre o
evento.

e) Os elementos de comunicação declarados pelas empresas no evento para comunicar


com o público foram: flyers, expositores de balcão (displays de acrílico),
televisores, brindes personalizados e internet.

136
f) Em resposta à pergunta que buscava saber se as empresas estavam sentindo o
público mais próximo da marca durante o evento, foi obtido um resultado divido
onde uma parte dos entrevistados declarou sentir o público mais próximo, já a outra
parte declarou não sentir o público mais próximo. Porém neste item é importante já
apresentar alguns dados a observação participante onde foi possível identificar que
todas as empresas que declararam sentir o público mais próximo possuíam algum
diferencial exclusivo nos estandes, por exemplo tecnologias exclusivas no mercado,
desafios com recompensas para os participantes, palco exclusivo com palestras no
estande. Já as empresas que não declararam sentir o público mais próximo não
possuíam nenhum tipo de diferencial exclusivo para se aproximar do público.

4.3.2 Entrevistando o público.


Esta etapa da pesquisa buscou compreender melhor o público e sua interação com as
marcas. As respostas a seguir foram retiradas das entrevistas realizadas com os participantes
do evento.
a) Os motivos principais para os participantes irem ao evento foram: Encontrar amigos
(Participante 4, 5, 6 e 9). Assistir ao campeonato de e-sport (Participante 3 e 8).
Experienciar o evento em geral (Participante 1, 2 e 7).

b) Os principais fatores que influenciam a escolha de qual estande os participantes


visitariam foram: Estandes que chamam atenção (Participante 3). Ver tudo que
puder no tempo livre (Participante 2, 5 e 9). Estandes que possuíam ligações com
gostos pessoais (Participante 4).

c) Com base em todas as repostas dadas pelos participantes a interação com as marcas
foram boas. Vale ressaltar o Participante 1 que declarou se identificar com a
personalidade das pessoas presentes nos estandes por compartilharem mesmos
gostos. Assim como os Participantes 2, 3, 8 e 9 declararam que as marcas foram
atenciosas e amigáveis.

d) Os participantes declararam seu sentimento ao participar do evento de várias formas


positivas, palavras como legal, ótimo e incrível foram usadas. Em destaque o
Participante 1 declarou que se sentia em família naquele ambiente, pois não

137
precisava se envergonhar de quem ele realmente era. Assim como o Participante 3
declarou que não era somente pelos jogos, mas sim pela união das pessoas com os
mesmos gostos.

4.3.3 Observando as marcas e o evento.


Para iniciar esta análise é apresentado a primeira coisa que foi notada ao entrar no
evento, a palavra investimento é suficiente para descrever o sentimento. O local escolhido é
um dos principais espaços para feiras e convenções de toda Alemanha, possui
reconhecimento internacional no qual empresas de diversos países escolhem o Leipzig Messe
para realizar convenções devido à excelente estrutura, estas informações foram obtidas em
uma conversa informal com os funcionários da recepção.
Mas o que levou a ver o investimento foi toda a estrutura do evento, desde os estandes
das marcas até espaços e palcos. As empresas e a própria organização não hesitaram em
investir em grandes estruturas e iluminações. Uma forma de exemplificar são os
computadores disponíveis para teste nos estandes, independente do ramo da empresa,
utilizavam hardware de alto custo e estavam a todo tempo disponível para o público testar da
forma que quiser.
A análise de estrutura agora estende-se para os palcos do próprio evento. O local onde
se passou o campeonato de esporte eletrônico contou com um palco de qualidade
surpreendente, grandes telas interativas de alta resolução, iluminação personalizada que
respondia de acordo com o jogo e som de alta qualidade. Toda a comunicação do jogo foi
passada de forma clara e eficaz para os espectadores.
Já o outro palco possuía uma estrutura que suportava diversos tipos de atrações, como
pequenos campeonatos, palestras e concursos. A sua função era ter um conteúdo extra para
entreter os participantes, também possuía grandes telas de alta qualidade e diversos assentos.
Um primeiro exemplo que podemos citar foi uma discussão sobre a Realidade Virtual com
diversos profissionais da área. Mas a atração que mais movimentou este palco foi o Concurso
de Cosplay 4, onde diversas pessoas se fantasiaram de personagem de jogos e subiram ao
palco para competir pela melhor fantasia.

4
Cosplay: Pessoas que se vestem igual a personagem de jogos ou desenhos.

138
Outro item que merece destaque foi o uso da comunicação visual, estabelecida de
forma estratégica e completa, os participantes conseguiam localizar-se facilmente no evento
devido a diversas placas de sinalização. Na mesma linha os estandes souberam como
comunicar bem a sua marca, era facilmente identificado a qual empresa o estande pertencia, e
havia informações sobre produtos disponíveis de forma fácil de encontrar.
O foco agora direciona-se para uma parte da análise que possuí grande relevância para
as empresas e só pode ser identificado pela observação participante. O uso da linguagem
adequada e do conhecimento sobre os jogos eletrônicos por parte das pessoas que estavam
representando as marcas em seus estandes, foi certamente algo que fez enorme diferença
durante a interação. Embora foi feita aproximação com todos os estandes presentes, alguns
casos não houve margem para a conversa se estender para assuntos fora do produto
apresentado. Entretanto, certos estandes proporcionaram conversas que que superaram o
esperado.
Durante toda a interação o pesquisador buscou coletar diversos dados sobre cada
estande para compor uma grelha que contém informações a respeito dos elementos de
comunicação e estratégias de marketing identificados. Deve ser levado em consideração que
a interação foi feita partindo do pressuposto que o pesquisador era apenas um participante do
evento, mantendo a posição de observador participante. Não deve ser descartada a hipótese
de alguma margem de erro, pois durante a interação algum elemento pode não ter sido
identificado pelo observador ou não foi mencionado pelo funcionário do estande. Os estandes
analisados foram somente de marcas que estavam interagindo com o universo dos jogos
eletrônicos, estandes do ramo alimentício por exemplo, não foram analisados.
A primeira grelha apresenta os elementos de comunicação que foram considerados
básicos, o critério para estabelecer os elementos foi a fácil identificação no estande.

139
Os elementos de comunicação mencionados acima servem de referência para
estabelecer o básico da comunicação que deve compor um estande. Com ressalva para a
venda que irá depender da estratégia estabelecida anteriormente pelo planejamento da marca.
A próxima grelha apresenta as estratégias de marketing identificadas em cada estande.

140
Certamente o uso de estratégias de marketing são um diferencial para os estandes,
ampliando não somente a interação com o participante, mas também a fixação da marca na
cabeça do consumidor.

4.3.4 Observando os participantes.


Esta etapa começa com uma análise geral da expressão dos participantes, pode-se
afirmar que a grande maioria demonstrava felicidade, viam-se facilmente risadas, conversas
altas e empolgadas e sorrisos nos rostos.
A partir desta interação foi observado que em quase todos os casos os participantes
queriam conversar somente sobre jogos, todo assunto girava em torno do universo dos jogos
eletrônicos. O que se pode notar é a necessidade de os participantes aproveitarem aquele

141
espaço para interagirem com pessoas que possuíam os mesmos gostos. A linguagem, embora
em inglês, era própria dos gamers, termos próprios do universo gamer foram usados com
muita frequência. Estas observações servem novamente para reafirmar os gamers como tribo
urbana.
Direcionando o foco da análise para os participantes que estavam na área do
campeonato de esporte eletrônico, é surpreendente ver a emoção com que pessoas torcem
pelas equipes, comemoram com gritos e aplausos cada boa jogada feita. Levando em
consideração as respostas dos participantes dadas em entrevistas que demonstraram estar
desapontados por as grandes equipes não estarem presentes. Mesmo com este, porém, a área
estava sempre muito movimentada e os participantes estavam realmente envolvidos com o
jogo.

Conclusão
O esporte eletrônico evoluiu rapidamente nos últimos anos, principalmente em
proporção. O número de espectadores já alcança os esportes tradicionais, este é um dado que
só reafirma que este fenômeno é atual e não algo que está projetado para ser grande no
futuro. Por ser tão recente, diversas pessoas, empresas e pesquisadores, ainda não
compreendem de forma clara o esporte eletrônico e os campeonatos.
Dentre os objetivos apresentados neste trabalho, foi possível identificar o
posicionamento utilizado pelas marcas no torneio. Sendo importante relembrar que cada
empresa possui metas e estratégias diferentes, fator que resulta no objetivo de cada uma.
Porém, tornar-se conhecida entre os gamers é um objetivo que todas partilham, e mesmo
aquelas que já são, utilizam de estratégias para tornar mais forte essa relação. Outro objetivo
proposto que foi possível identificar foram os diversos meios de comunicação utilizados
pelas marcas, assim como as estratégias, principalmente em relação a interação entre público
e marca.
Sobre o público foi possível compreender como é a sua visão em relação às empresas,
além de perceber como interagem entre si e a sua ligação com o campeonato. Este é um fator
de grande importância para empresas compreenderem de forma mais detalhada sobre os
gamers como público. E podemos afirmar claramente que o os gamers são uma tribo urbana,

142
pois conforme já apresentado, possuem linguagem própria, partilham de emoções, têm
conhecimento específico, entre outros.
Deve-se dar mérito à organização do Dreamhack Leipzig 2017 que planejou o evento
com excelência, além de toda a comunicação, estrutura e atrações, a equipe disponibilizou
informações sobre turismo, rotas, transporte, hospedagem, entre outros, fatores estes que
certamente auxiliaram grande parte dos participantes que eram de fora da cidade, resultando
numa melhor experiência do público com o evento.

143
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Computer Games, Architecture and Urbanism: The Next Level. New York: Springer, pp. 182–185, 2007
VAVRA, T. G. Marketing de Relacionamento. São Paulo: Atlas, 1993
ZANELLA, L. C. (2003). Manual de organização de eventos: planejamento e operacionalização. São Paulo:
Atlas, 2003

144
O SURGIMENTO DE UM NOVO MARKETING: COMUNICAÇÃO, VERTENTES E
CONSEQUÊNCIAS COM PERSPECTIVA ANALÍTICA.

Aluna: Nirvana Maciel da Silva


Orientadora: Profª Me. Kátia Balduíno de Souza

RESUMO

Como aconteceu o processo de chegada do atual Marketing 4.0 na sociedade e quais foram suas
consequências para o posicionamento das marcas? As empresas vivem hoje nova novas
exigências e cada vez mais estão adaptando e reposicionando seus princípios e valores pessoais,
na finalidade de determinar sua identidade como empresa, ao mesmo tempo em que assumem
participação ativa nas discussões da sociedade. Essa estratégia define um novo Marketing
denominado Marketing de Personalidade, que não só está presente em várias campanhas
atuais como se mostra tendência para o Marketing do futuro.

Palavras-chave: Comunicação. Marketings Atuais. Novo Marketing. Marketing do Futuro.

ABSTRACT

How did the process of Marketing 4.0 happen to appear in the society and what was the
consequence for brand positioning? Companies live new requirements nowadays and are
adapting and repositioning its principles and personal values even more, in order to determine
its identity as a brand, while assuming active participation in society. This strategy defines a
new Marketing called Marketing of Personality, that not only is present in current campaigns
but also shows itself as a trend, present in the future of Marketing.

Palavras-chave: Communication. Current Marketing. New Marketing. Marketing of


Future.

145
1 INTRODUÇÃO

Entender o dinamismo do mercado é analisar a harmonia entre as mudanças externas e


as novas estratégias internas que se dão necessárias para se adaptar ao novo cenário.
Um bom exemplo para ilustrar essa situação e introduzir esse tema: o aquecimento
global. Resumidamente esse fenômeno é definido pelo aumento na temperatura da terra,
consequência causada por fatores naturais e artificiais. Mas qual foi a consequência para nós,
seres vivos, diante dessa situação? Enquanto muitas espécies correm o risco de serem extintas
do planeta, outras desenvolveram a capacidade de adaptação, em que passaram a possuir
habilidades que os tornassem aptos a enfrentar uma situação nova, mesmo fora da sua zona de
conforto.
Assim vivem as empresas hoje. Ou se adaptam, criam novas experiências, novos
preceitos e estratégias, ou simplesmente “morrem”.
Com o passar dos anos a tecnologia vai marcando a história, o consumidor vai
constantemente mudando seu comportamento, o meio ambiente passa por adaptações e em uma
escala micro e macro pode-se dizer que nada permanece constante, portanto a empresa que não
se adapta a todo esse excesso de informação perde seu lugar no mercado.
É exatamente essa grande quantidade de mudanças e informações em pouco tempo que
impõe como tendência para o futuro um posicionamento e comprometimento maior da marca,
principalmente baseado em seus valores e definição da sua personalidade.
Nesta necessidade de adaptação surge um possível “Marketing” que se baseie em
valores de identidade e questionamentos que focam mais no social do que na necessidade de
lucro. Ainda não está presente na teoria, mas na prática o Marketing de Personalidade já
existe e promete estar cada vez mais presentes na vida das marcas que seguem tendências.

2 O SURGIMENTO DE UM NOVO MARKETING

Foi através de todo esse estudo, principalmente do Marketing social e de valor, que foi
identificada e necessidade do surgimento de um novo tipo de Marketing, denominado
Marketing de Personalidade. A tabela abaixo define cada um deles, na finalidade de entender
suas diferenças e justificar a real necessidade do seu surgimento:

Tabela 1: Relação entre os marketings

146
Marketing Social Marketing de Marketing de
Causas Personalidade

Objetivo Mudança de Propósito de doação Gerar valores de


Primário comportamento/atitu de uma parte do identidade e
de para contribuir lucro para causas personalidade para a
com o bem-estar sociais. empresa e contribuir
geral das pessoas para o desenvolvimento
e/ou meio ambiente. social/pessoal.

Características A concorrência Uma parte do lucro O Lucro é secundário e


corresponde à da empresa em não necessariamente
mudança de causas sociais, como esperado. Necessidade
comportamento/atitu forma de relacionar de participação ativa na
de da sociedade. a boa ação à sociedade.
reputação da marca.

Foco Empresa/Público Empresa/Público Empresa/Social

Aspectos Se o público não O lucro destinado à Risco de prejuízos


Negativos muda o empresa nem financeiros para a
comportamento ou sempre é empresa.
não toma uma satisfatório, o que
atitude a respeito, a pode ser visto como
campanha não foi enganação pelo
eficiente. público.

Resultado Mensurado pela Mensurado pelo Não pode ser


mudança de lucro destinado à mensurado com
comportamento/atitu doação. precisão.
de.
Fonte: Desenvolvida pelo próprio autor.

O valor presente no Marketing de personalidade é diferente do Marketing de Valores.


No Marketing de valores é agregado valor ao seu produto/serviço. O valor do Marketing de
personalidade envolve o valor pessoal da empresa a ser disseminado, ou seja, os valores que
sua personalidade jurídica carrega. Pode ser comparado ao valor pessoal de cada um, suas
crenças e seus pensamentos pessoais. É uma característica marcante do marketing 3.0 e
4.0(citados anteriormente), em que a empresa desenvolve uma cultura, com valores sociais à
mostra do público, e influência da marca acaba disseminando esse pensamento e influenciando
na discussão e formação de opinião da sociedade.
Para diferenciar melhor o novo marketing do marketing de valores, o conceito de Gilbert
A. Churchill, Jr.(2010) afirma que,
O marketing voltado para o valor pressupõe que os clientes estejam dispostos e sejam
capazes de realizar trocas o farão quando os benefícios das trocas excederem os custos

147
e os produtos ou serviços oferecerem um valor superior em comparação com as outras
opções. (CHURCHILL, 2010, p.13,14)

Comparando de uma forma mais direta, o Marketing de valores se preocupa em


demonstrar e aplicar esse valor no cliente, já o marketing de Personalidade aplica esse valor
para determinar sua própria identidade, sem focar na tentativa de influenciar seu público ou de
obter qualquer forma de lucro.

Cases para entendimento


Marketing social - Fundação pró-sangue – Doação de sangue
Sobre a Fundação Pró-sangue: 1
A Fundação Pró-Sangue (FPS) é uma instituição pública ligada à Secretaria de Estado
da Saúde e ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
mantendo com a última estreito laço de cooperação acadêmica e técnico-científica. Como
instituição voltada às áreas de medicina transfusional e terapia celular, é considerada referência
para a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Organização Mundial da Saúde (OMS)
e para o Ministério da Saúde.

Figura 1: Campanha doação de sangue - Pró sangue

1
Informação extraída do site: http://www.prosangue.sp.gov.br/artigos/institucional.html

148
Fonte: https://catracalivre.com.br

A campanha com painéis da fundação pró-sangue teve como principal objetivo


promover a doação de sangue. Para isso, distribuiu painéis com carregadores de celular e o
seguinte texto de apoio: “Se você precisar, estamos aqui. Por que não retribuir o favor? Nós
precisamos de sangue”.
Como principal característica do Marketing social, a campanha foi muito eficaz na
tentativa de gerar atitude por parte da população, relacionando a dependência das pessoas a um
aparelho eletrônico com a necessidade de receber uma doação que possa salvar a vida de outras.
Para mensurar o resultado das campanhas de Marketing social, é importante analisar o
número de doadores de sangue antes e depois da campanha, ou seja, se houve alguma parcela
da população que tomou a atitude de doar sangue após ser atingido pela peça publicitária.

Marketing de Causas - Lacoste – Save Our Species 2

3
Sobre a Lacoste:

2
Imagens retiradas dos sites: http://adnews.com.br/negocios/crocodilo-da-lacoste-e-substituido-por-animais-em-extincao-em-
colecao-capsula.html / https://www.publicitarioscriativos.com/lacoste-substitui-crocodilo-da-marca-por-animais-em-extincao/
http://www.hypeness.com.br/2018/03/lacoste-substitui-tradicional-crocodilo-por-animais-em-extincao-para-campanha/
3
Informação extraída do site: https://www.lacoste.com/br/corporate-group.html

149
A empresa Lacoste é considerada hoje referência no segmento têxtil.
Dois produtos da Lacoste são vendidos a cada segundo: têxteis, artigos de couro,
fragrâncias, calçados, artigos de cama e mesa, óculos de sol, relógios, moda íntima, inclusive a
tradicional polo Classic Fit.

Figura 2: Campanha Lacoste – Save Our Species

Fonte:http://emais.estadao.com.br

Pela primeira vez na história, a icônica marca Lacoste está substituindo o famoso jacaré
da sua logomarca por outros animais. Mas não qualquer animal. A empresa inseriu 10 novos
tipos de estampa com animais em risco de extinção em camisetas polo, e o número de camisetas
que será vendido corresponderá ao número de animais correspondentes que ainda existem na
natureza.
O slogan da campanha, “Save our species” (Salvem nossas espécies), chama o público
da Lacoste a refletir sobre uma situação que está cada vez mais recorrente e preocupante no
mundo: a extinção de animais. Uma parte dos lucros será doada para a causa, contribuindo
assim de forma ativa.

150
O novo Marketing de Personalidade
Suas características podem mostrar muito sobre quem você é, assim como o seu
posicionamento sobre determinado assunto. Você é um conjunto do que ouviu das pessoas à
sua volta (família, amigos, colegas), e o conjunto de uma cultura agregado a suas opiniões
pessoais, que fazem você concordar, discordar, aderir ou não a alguma opinião alheia. Por isso
existem tantos posicionamentos diferentes, de forma tão complexa. Mas isso é o que te define
e molda sua personalidade.
Quando se fala de marca não é diferente. Cada empresa cria a sua cultura, suas regras e
seus valores. O objetivo principal do marketing de personalidade é determinar eles, sejam a
visão da maioria ou não, e muitas empresas estão aproveitando a tendência de desconstruir
paradigmas ou gerar discussão para a sociedade, ao mesmo tempo em que consolidam seus
valores e identidade particulares.
De acordo com Ivan Pinto no livro de Lívio Giosa (2009) “o consumidor é um cidadão,
e a empresa que o quer como consumidor de suas marcas precisa convencê-lo de que é, também,
uma empresa cidadã. ” (PINTO, 2009, p.28)

Afirmações de Kotler (2017) também provam que o consumidor de hoje demanda o


Marketing de personalidade:
Os consumidores deveriam ser considerados colegas e amigos da marca. E a marca
deveria revelar seu caráter autêntico e ser honesta sobre seu verdadeiro valor. Somente
então ela será confiável. (KOTLER, 2017, p. 27)

Estudos de caso - Pão de Açúcar – O que faz você feliz? 4


Sobre o Pão de Açúcar: 5
Pertence ao segmento de hipermercados e oferece soluções eficientes e inovadoras,
cuidando sempre dos pequenos detalhes, de modo a deixar a sua compra mais fácil e gostosa.
Pão de Açúcar: "lugar de gente feliz".
A campanha abaixo é uma das que sugere o surgimento de um novo Marketing, em que
a empresa gera uma discussão pessoal ou geral na população. Nesse Marketing, a marca não
está influenciando uma mudança de comportamento direta nem insinuando algum tipo de

4
Imagens retiradas dos sites:
http://foodandnews.com/4297-p%C3%83o-de-a%C3%87%C3%9Acar-lan%C3%87a-movimento-pela-
felicidade/https://marcelowpereira.wordpress.com/2011/11/23/anuncio-do-mercado-pao-de-
acucar/http://blogs.diariodonordeste.com.br/target/noticias/natal-pao-de-acucar-lanca-
campanha/https://www.youtube.com/watch?v=OyGeiESrhCg

5
Informação extraída do site: https://www.paodeacucar.com/institucional

151
compra de seus produtos. Portanto, o objetivo principal é mostrar qual o valor construído pela
marca e contribuir com a sociedade na busca da sua identidade pessoal, dando voz a cada um
que for atingido.

Figura 3: Campanha Pão de Açúcar - O que faz você feliz?

Fonte:http://www.inteligemcia.com.br/clarice-falcao-canta-pela-felicidade-em-campanha-do-pao-de-acucar/

Dove – Real Beleza

Sobre a Dove: 6
Empresa atuante no segmento de cosméticos e cuidados com a beleza feminina.
Não importa o que você busca: sejam produtos que oferecem o tratamento que você
precisa, sejam dicas e conselhos sobre cuidados para seus cabelos, pele ou axilas, pois tudo que
você vir aqui foi pensado para fazer você se sentir bonita.

6
Informação extraída do site: http://www.dove.com/br/home.html

152
Figura 4: Campanha Dove - Real Beleza

Fonte:http://www.b9.com.br/

Outro exemplo é a campanha da Dove, que lançou um único produto com diferentes
embalagens representando as diferentes formas do corpo da mulher, o que indica que foi feito
todo um planejamento de campanha para desconstruir uma ideia e representar as diferenças no
corpo feminino e a beleza de cada um deles, mostrando o valor que define a marca Dove.
O resultado dela foi extremamente negativo, pois o público em geral questionou se a
marca estava insinuando que as mulheres possuem apenas sete diferentes tipos de corpo.
A marca investiu em uma proposta para gerar discussão sobre o corpo da mulher, que
cada vez mais define um único padrão de beleza feminino e consequentemente discrimina os
demais. A Dove ainda conseguiu ir além, pois a campanha teve uma repercussão negativa que
provavelmente já era esperada por eles, insinuando que a preocupação com o lucro não era o
objetivo principal, e sim a discussão sobre a exigência desnecessária de um padrão para o corpo
feminino.
Concluindo as relações entre esses três tipos de Marketing, o diagrama abaixo ilustra e
define as principais características de cada um deles:

Figura 5: Diagrama - Marketing Social, Marketing de Causas e Marketing de Personalidade.

153
Fonte: Desenvolvida pelo próprio autor.

3 A TENDÊNCIA DO MARKETING DE PERSONALINDADE PARA O FUTURO


O estudo acerca das tendências que o Marketing segue, baseado em fatores internos e
externos, mostra que é notável o crescimento do compromisso social para demonstrar ainda
mais proximidade com as pessoas.
De acordo com Marcos Cobra (2011) “É preciso, portanto, conhecer o mercado que estará
fragmentado em células. E a segmentação de mercado será cada vez mais com base em valores
sociais e estilo de vida. ” (COBRA, 2011, p. 792)
Daí a importância em nomear o Marketing de Personalidade, que não só está presente
na prática como é a aposta para o sucesso de muitas empresas. De acordo com Lívio Giosa
(2009), “No entanto, o cliente quer mais… Quer que a empresa lhe atraia para ações novas e,
até, intangíveis, capazes de atingi-lo pelas mudanças de comportamento, valores e de atitudes.
” (GIOSA, 2009, p. 133)

154
As afirmações acima mostram que o mercado pede mudanças e inovação, baseadas
principalmente em valores para determinar o posicionamento da empresa e aplicar esse
posicionamento na construção da formação de opinião da sociedade.

4 METODOLOGIA

As metodologias utilizadas em determinada pesquisa representam as principais etapas


estratégicas que são definidas como as mais apropriadas para dissertar sobre determinado tema.
No caso deste artigo, foram utilizadas: pesquisa bibliográfica, pesquisa digital e estudo de
casos.
Para dissertar sobre o tema a ser apresentado, é preciso estruturar o assunto e conduzir
o leitor para denominar os argumentos que sustentam o tema. Nesse caso, é importante aplicar
a pesquisa bibliográfica, que demonstra esse caminho com todas as informações já presentes
na teoria atual.
Com a chegada da tecnologia, a comunicação se tornou cada vez mais horizontal, e a
variedade de fontes permitiu um aumento do acesso à diferentes formações de opinião. Através
da pesquisa digital é possível agregar à teoria novas visões, agregadas às mudanças presentes
na tecnologia.
Segundo Minayo (1994) os estudos de caso contribuem para exemplificar a teoria
apresentada, dando assim mais credibilidade aos fatos apresentados. Neles, o leitor tem a
oportunidade de analisar a situação presente no texto e estimular seu senso crítico quanto à
afirmação apresentada.

5 CONCLUSÃO

Depois de anos estudando a comunicação e suas vertentes, sempre foi inquietante o


porquê de o Marketing apresentar tamanha quantidades de análises e estudos voltados para
suas atuações com bases capitalistas. Será que era possível provar que existem vários tipos de
Marketing que não têm como fins principais o lucro, quebrar paradigmas sobre o conceito e
fixar na mente das pessoas a real beleza do Marketing?
O Marketing é tão poderoso, tão influente, que muitas vezes nem se pode ver sua mágica
acontecendo. Ele simplesmente acontece e muitas vezes o consumidor é atingido sem nem
mesmo perceber essa troca. Você mesmo está desenvolvendo estratégias de Marketing em

155
diversas situações do cotidiano: quando elabora uma surpresa para uma pessoa querida,
quando desenvolve uma ideia no trabalho, ou até mesmo quando prepara toda aquela
apresentação para convencer seus pais a fazer aquela viagem tão sonhada. É muito mais do
que apenas capital, é um processo de tanta influência no mundo que pode ser responsável por
desenvolver determinada cultura, formar opiniões, quebrar paradigmas, ou seja, pode
realmente ser a ferramenta que irá mudar o mundo de incontáveis formas.
A partir dessa reflexão e de muito estudo em campanhas já desenvolvidas e veiculadas
no mercado, surge então a primeira e principal conclusão: a teoria e a prática nem sempre
andam juntas. Afinal de contas, a teoria está lá para ser acrescentada, aguardando novas
mudanças que a prática apresenta de forma inovadora a cada dia, por isso é quase impossível
mostrar instantaneamente na teoria toda a prática em determinado conceito e sua
complexidade. Mas é a análise profunda de um assunto que mostra que sempre é possível
agregar, segmentar e atualizar a teoria de forma a tornar cada vez mais claro o estudo do
Marketing e registrar como se deram tais mudanças. O surgimento do Marketing de
Personalidade representa a oportunidade de todo e qualquer estudante e/ou profissional
contribuir com melhorias nos estudos de profissionais ou curiosos pelo assunto, ou seja, fazer
parte do sucesso de cada um deles e incentivar não só a eles como a sociedade a desenvolver
a criatividade e capacidade de reflexão sobre o que já foi ensinado. Agregar conhecimento é
se tornar uma parte dele, e estar apto a entender como as mudanças na sociedade pré-
determinam e muitas vezes exigem novas estratégias para suprir demandas. E quando essa
nova ideia surge, vem à mente o seguinte questionamento: como não foi criado antes, como
já não haviam pensado nesse elemento do Marketing, diante dessa tendência marcada para o
futuro? Talvez já tenham pensado, mas é a vontade de mostrar para o mundo uma nova
perspectiva e o estudo complexo para desenvolver cada vez mais segurança na veracidade do
assunto que dão a beleza e forma à obra e, principalmente, a sensação de dever cumprido:
agregar conhecimento e teoria provando que o Marketing de Personalidade é atual e
revolucionário, e que pode incentivar o nosso mundo e as pessoas a desenvolverem o poder
da reflexão.

6 REFERÊNCIAS

156
AMARAL. S. A. Os 4 Os 4Ps do composto de marketing na literatura de ciência e informação.
Scielo Brasília, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tinf/v12n2/04.pdf>. Acesso
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CHURCHILL, Jr. Marketing - Criando valor para os clientes. São Paulo, Saraiva, 2010.

COBRA, M. Administração de Marketing. São Paulo, Atlas S.A., 2011.

GABRIEL, M. Marketing na era digital - conceitos, plataformas e estratégias. São Paulo,


Novatec, 2010.

GIOSA, L. As grandes sacadas de marketing do Brasil. São Paulo, SENAC, 2009.

KOTLER, P. Marketing 3.0 – as forças que estão definindo o novo marketing centrado no
ser humano, Rio de Janeiro, Campus Elsevier, 2010.

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Alegre, Bookman, 2011.

________, P. Marketing 4.0 - do tradicional ao digital. Rio de Janeiro, Sextante, 2017.


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Natalenses. AEDB, Natal, 2007. Disponível em:
<https://www.aedb.br/seget/arquivos/artigos07/1169_Artigo%20Marketing%20com%20Caus
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NICKELS, W.G.; WOOD, M.B. Marketing: relacionamentos, qualidade, valor. Rio de


Janeiro: LTC, 1999.

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sociais e a construção de marcas. São Paulo: Makron Books, 2000.

VAZ, Gil Nuno. Marketing Institucional: Mercado de Idéias e Imagens. São Paulo, Pioneira,
1995, p. 280.

157
ARTICULAÇÕES SIMBÓLICAS NO JORNALISMO 1
acontecimentos e seus elementos constituintes
SYMBOLIC ARTICULATIONS IN JOURNALISM
evens and their constituent elements
Kelly De Conti Rodrigues 2

Resumo: O atual ambiente social conta com uma grande abrangência de


dados que circulam e convergem nas mais diversas plataformas. Neste
trabalho, estudaremos as construções do acontecimento e suas articulações
de sentido dentro desse cenário. A partir desse pressuposto, analisaremos
elementos discursivos que influenciam a construção simbólica do
acontecimento, com foco em materiais produzidos por sites jornalísticos
brasileiros a respeito dos candidatos que pleitearam cargos nas eleições
nacionais de 2018. Com esse objetivo, a Análise do Discurso será a
metodologia que guiará o estudo. Focaremos nas produções que se baseiam
no Jornalismo de Dados e nos elementos que influenciam a construção
simbólica do fato.

Palavras-Chave: Análise do Discurso 1. Eleições 2. Jornalismo de Dados 3.

1. Introdução
Entre os estudos dos veículos de comunicação, diversas abordagens tratam do papel
destes na construção do acontecimento. As divergências entre estas, em grande parte,
permeiam o potencial de influência desses meios na sociedade. Ou seja, entre essas diferentes
abordagens, as propostas e análises variam, entre outros aspectos, no que se refere à forma
como tratam o quanto e se eles são capazes de agir sobre o conhecimento e as percepções dos
indivíduos em relação ao seu espaço de vivência. E, consequentemente, se também são
capazes de influenciar os modos de construção social da realidade.
Consideramos esse debate relevante nas pesquisas em Comunicação, uma vez que são
determinantes no modo de observar o objeto investigado. Por esse motivo, vale ressaltar que
trabalhamos com a percepção de que é necessário haver um equilíbrio nos modos de
considerar o papel dos veículos midiáticos. Trata-se de trazer a perspectiva de seu papel de
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho 2 Comunicação e Discurso do 3º. CONEC: Congresso Nacional
de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Discente do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho (UNESP), doutoranda, decontik@yahoo.com.br.

158
construtor da realidade, mas sem desconsiderar ou negligenciar a importância dos outros
atores e instituições. Isso inclui os modos como estes enxergam os meios de comunicação e
suas produções e, em contrapartida, também influenciam estas. Essa maneira de analisar, com
isso, considera que os próprios produtores estão inseridos em um contexto social a partir do
qual são atores – não necessariamente únicos ou principais modeladores da construção da
realidade, mas de grande importância nesse processo – e também adaptam seus discursos e
modos de organizar os conteúdos – conscientemente ou não – às expectativas desse local e
temporalidade. Sendo que, da mesma forma, estes são construídos e constroem os meios. Ou
seja, atuam reciprocamente um sobre o outro. Não se trata de uma tentativa de qualificar
graus de relevância na composição da sociedade, mas de entender que o conjunto desta é
construído nessa interação.
Dentro desse cenário de troca de influências, o estudo focará a visão dos veículos de
comunicação e a construção simbólica mobilizada por produções jornalísticas. Analisaremos
os aspectos de construção discursiva que influenciam na forma de narrar os acontecimentos
sociais e seus efeitos de sentido.
Consideramos que, em um ambiente social em que os dados circulam e convergem
nas mais diversas plataformas, fica ainda mais evidente o quanto eles estão presentes na
construção social da realidade. Eles permitem traçar perfis, projetar acontecimentos,
disseminar mensagens estratégicas, entre outros aspectos. O mesmo vale para a utilização
dessas bases de dados dentro do jornalismo, como veremos nas análises.

2. Jornalismo e construção simbólica


Charaudeau (2010, p. 67) questiona como os indivíduos poderiam “trocar palavras,
influenciar-se, agredir-se, seduzir-se, se não existisse um quadro de referência?” Sem este
instituto norteador, não seria possível atribuir valor aos atos de linguagem e,
consequentemente, construir sentido e atingir o receptor.
A partir dessa ideia, remete-se que, para ser compreendido por seu interlocutor, o
produtor do discurso deve levar em conta “os dados da situação de comunicação”, os quais
tomam como base nas convenções e normas do comportamento linguageiro da sociedade, que
tornam possível a comunicação humana ao gerarem valores e simbologias. “A situação de

159
comunicação é como um palco, com suas restrições de espaço, de tempo, de relações, de
palavras, no qual se encenam as trocas sociais e aquilo que constitui o seu valor simbólico”
(CHARAUDEAU, 2010, p.67).
Como ato discursivo, o jornalismo também se insere nesse jogo de regulação das
práticas sociais. Ele é produto de um lugar social e, bem como ocorre com qualquer outro
grupo ou prática humana, também sofre influência dos conflitos que permeiam as trocas do
local de sua origem. Os meios de comunicação como um todo são questionados a partir de
sua função social. No caso do jornalismo, interroga-se os efeitos de sentido na colocação de
seus discursos, de sua intertextualidade e de sua face de legitimidade diante de seu público.
Nessa linha de pensamento, trabalhamos com o aspecto do acontecimento como visão
social do mundo. Para Charaudeau, o acontecimento “[...] nunca é transmitido à instância de
recepção em seu estado bruto; para sua significação, depende do olhar que se estende sobre
ele, olhar de um sujeito que o integra num sistema de pensamento e, assim sendo, o torna
inteligível”. Ele ainda acrescenta que

O universo de discurso acha-se, pois, a meio caminho entre um “fora da linguagem”


e o processo linguageiro. Ele abarca os acontecimentos do mundo, mas estes só
ganham sentido por meio de uma estruturação que lhes é conferida pelo ato de
linguagem através de uma tematização. As noções de propósito, de universo de
discurso e de acontecimento estão, pois, intrinsecamente ligadas (CHARADEAU,
2010, p. 95).

Esse ponto é reforçado pelo contrato midiático, conforme descrito pelo autor (2010, p.
114), que determina as condições de encenação da informação. Nesse processo, o dispositivo
“[...] não comanda apenas a ordem dos enunciados, mas a própria postura do leitor”. O autor
explica que este se trata do esquema da construção de sentido aplicado à comunicação
midiática, sendo esta realizada segundo o processo de transformação e transação. Ele
descreve o funcionamento do seguinte modo:

O “mundo a descrever” é o lugar onde se encontra o “acontecimento bruto” e o


processo de transformação consiste, para a instância midiática, em fazer passar o
acontecimento de um estado bruto (mas já interpretado), ao estado de mundo
midiático construído, isto é, de “notícia”; isso ocorre sob a dependência do processo
de transação, que consiste, para a instância midiática, em construir a notícia em
função de como ela imagina a instância receptora, a qual, por sua vez, reinterpreta a
notícia à sua maneira.

Essas articulações entre a construção simbólica e do acontecimento serão centrais nesta


pesquisa. A proposta não é focar no JD exclusivamente no seu aspecto tecnológico de busca

160
de bases e manipulação de softwares para a elaboração de conteúdo, mas como o uso destes e
a dimensão social e simbólica de sua construção discursiva são determinantes para a
representação do acontecimento.
Em relação ao JD, aliás, vale ressaltar que o final da década de 1960 foi determinante
na utilização de bases de dados numéricas na produção noticiosa. Nesse momento, Philip
Meyer, então repórter do Detroit Free Press, ajudou na consolidação do chamado Jornalismo
de Precisão, a partir do qual derivaram as técnicas do Jornalismo Guiado por Dados,
conforme ficou mais conhecido atualmente. Para ele, esse fazer jornalístico seria uma “volta
da força da objetividade” às redações, uma vez que, naquele momento, o New Journalism
possuía grande espaço nos veículos de comunicação. O repórter, aliás, defendia a
cientificidade desse processo ao afirmar que “o novo jornalismo de precisão é um jornalismo
científico. (...) Isso significa tratar o jornalismo como se ele fosse uma ciência, adotando
método científico, objetividade científica e ideais científicos em todo o processo de
comunicação de massa” (MEYER, 2002, p.5) 3.
O autor, portanto, trabalha com a visão mais alinhada à objetividade do JD, ao
contrário do que se pretende adotar nesta pesquisa. Contudo, trata-se de uma bibliografia
importante por se tratar de uma das primeiras tentativas de conceituação e de ter influenciado
consideravelmente os pensamentos e as práticas a respeito dessa técnica. Outros trabalhos
atualizados do autor também foram considerados neste trabalho, uma vez que ele traz
relevantes contribuições sobre essa perspectiva histórica e também as técnicas utilizadas para
elaboração de conteúdos nessa linha. Ele destaca, por exemplo, os desafios dos profissionais
dessa área quando iniciou os trabalhos com o Jornalismo de Precisão e também daqueles que
trabalham atualmente.
Quando a informação era escassa, a maior parte de nossos esforços estavam
voltados à caçar e reunir dados. Agora que a informação é abundante, processá-la
tornou-se mais importante. O processamento acontece em dois níveis: 1) análise
para entender e estruturar um fluxo infinito de dados e 2) apresentação para fazer
com que os dados mais importantes e relevantes cheguem ao consumidor. Como
acontece na ciência, o jornalismo de dados revela seus métodos e apresenta seus
resultados de uma forma que possam ser replicados (MEYER, 2014, s.p.)

Essas considerações são importantes para compreender o funcionamento da produção


desses conteúdos e como isso influencia nas escolhas da maneira de narrar o acontecimento.

3
Tradução livre.

161
É esse ponto que Bradshaw (2014) destaca como o diferencial do Jornalismo de Dados (JD)
em comparação ao restante do jornalismo. Para ele, o JD reúne as “[...] novas possibilidades
que se abrem quando se combina o tradicional ‘faro jornalístico’ e a habilidade de contar uma
história envolvente com a escala e o alcance absolutos da informação digital agora
disponível”. Ou seja, é a capacidade de buscar e entender o fluxo de dados e também de
como apresentá-los ao consumidor, como observado na citação de Meyer (2014).
Nessa linha de abordagem contemporânea do Jornalismo de Dados, também
consideramos, entre outros, os trabalhos de Suzana Barbosa (2007), Sandra Crucianelli
(2010), Jonathan Gray (2012) e Paul Bradshaw (2014). Esses autores podem contribuir por
meio de reflexões teóricas e práticas do Jornalismo de Dados. Eles trazem percepções sobre
as ferramentas e técnicas utilizadas pelos jornalistas para busca e filtragem desses dados para
a produção de notícias, a exemplo do que investiga Crucianelli (2010). Assim como
colaboram apontamentos a respeito das transformações do jornalismo digital em função da
utilização das bases de dados, das funcionalidades destas, da organização do conteúdo e de
como os usuários atuam como fontes informativas, como no trabalho de Barbosa (2007).
Também contribuem, entre outros aspectos, para as reflexões a respeito dos processos de
elaboração dos conteúdos do jornalismo de dados, como explorado por Gray (2012) e
Bradshaw (2014).
Neste trabalho, portanto, analisaremos as articulações simbólicas na narrativa do
jornalismo de dados. Para isso, traremos algumas classificações que servirão de guia para as
observações e estudo dos sentidos e seus efeitos na percepção sobre o acontecimento.

3. Tematização, personagens e bases de medida: percepções sobre o


acontecimento
A narrativa em torno de números e bases de dados, como qualquer elemento
discursivo, passa pela construção de seus elementos de composição e também atua como um
recurso argumentativo. Vale destacar também que todo discurso é produzido de forma
intersubjetiva, o que torna essencial compreendê-lo como histórico e subordinado aos

162
enredos sociais e culturais. Partindo dessas inferências, analisamos a matéria “Mesmo com
vitória, Doria tem pior desempenho do PSDB em SP desde 1990” 4, publicada pelo portal
UOL em 28 de outubro de 2018, pouco após a confirmação dos resultados do pleito para
governador do estado de São Paulo. O candidato eleito pelo PSDB (Partido da Social
Democracia Brasileira) concorreu com Marcio França, do PSB (Partido Socialista Brasileiro).
Os dois chegaram ao segundo turno após Doria obter 31,77% dos votos e França 21,53% na
primeira etapa das eleições, sendo que Paulo Skaf, do MDB (Movimento Democrático
Brasileiro), alcançou uma margem próxima do segundo colocado, com 21,09%.
Como proposta de análise, consideramos algumas categorias para compreender a
produção de sentido e a construção simbólica do conteúdo em questão, a saber: a tematização
e projeções, a participação dos personagens e as bases de medidas utilizadas. No primeiro
aspecto, observamos o direcionamento da temática das matérias, verificando se trazem
previsões de desdobramentos com base nos dados e que mecanismos discursivos utilizam
para isso. No que se refere aos personagens, identificaremos quem são eles e como
participam das matérias, observando que papel que lhes é atribuído no acontecimento
relatado (por exemplo, como o de autoridade para reforçar a veracidade ou de participante do
fato e sua interferência nele). Já as bases de medidas compreendem a análise de como é
representada a importância dos dados apresentados, o que faz com que eles sejam os
destaques escolhidos e de que modo isso é relatado.
A notícia inicia com o destaque para o desempenho do candidato João Doria em
comparação com seus antecessores ao reafirmar a informação do título de que teve o “pior
desempenho de seu partido na disputa pelo governo do estado desde 1990”. Também
salientam a curta margem de votos que lhe garantiu a vitória ao acrescentar que “o tucano
obteve 51,75% dos votos válidos, enquanto Márcio França (PSD) teve 48,25% -- uma
diferença de apenas 741.507 eleitores”.
Na sequência, reforçam a comparação de Doria com seus antecessores ao trazer
também os resultados do primeiro turno. A notícia demonstra o resultado inferior do atual
governador ao observar que “ao não decidir o resultado no primeiro turno, Doria já havia

4
Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/28/mesmo-com-vitoria-joao-
doria-tem-pior-desempenho-do-psdb-em-sao-paulo.htm

163
quebrado uma tradição que vinha desde 2006 de vitórias tucanas na primeira fase da
eleição. Em 2014, Geraldo Alckmin foi reeleito com 57,31% -- ou mais de 12 milhões de
votos. No pleito anterior, havia conseguido 50,63% dos votos, mas seu desempenho pode ser
considerado melhor do que o de Doria neste ano, uma vez que foi eleito já no primeiro turno.
Com José Serra, em 2006, foram 57,9% dos votos – quase o dobro de Doria no primeiro
turno, em 7 de outubro deste ano, quando alcançou apenas 31,77% dos votos”. Ainda nesse
ponto, outro dado levantado se refere ao fato de que, no primeiro turno, Doria obteve um
número total de votos “bem distante da média de seus correligionários, inclusive com menos
votos do que o total de eleitores que não escolheu candidato (a soma de brancos, nulos e
ausentes)”. A notícia disponibiliza um link para uma página do próprio UOL 5 que traz um
levantamento que demonstra que Doria teve 19,47% destes, enquanto o total daqueles que
não escolheram candidato foi de 38,71%.
Após esses detalhamentos a respeito do número de votos, a matéria destaca a
manutenção da hegemonia do partido no estado de São Paulo, uma vez que o PSBD elege o
governador desde 1994. A única derrota desde sua fundação, em 1988, ocorreu em 1990,
quando Mário Covas ficou em terceiro lugar.
Na segunda parte da matéria, a temática gira em torno das eleições nacionais. Com o
intertítulo “votação de nanico em disputa presidencial”, afirma que “Nas eleições
presidenciais, o PSDB também amargou uma situação inédita nos últimos 24 anos: desde
1994, todos os tucanos que concorreram foram pelo menos ao segundo turno. Em 2018, o
candidato da sigla, Geraldo Alckmin, alcançou apenas 4,76% dos votos e ficou de fora,
chegando apenas em quarto lugar e somando pouco mais de 5 milhões de votos”.
A notícia interliga as duas temáticas anteriores ao trazer, na terceira parte, o
questionamento “Bolsodoria ajuda ou atrapalha?”. Nesse momento, abordam que o fato do
candidato ao Executivo nacional pelo PSDB, Geraldo Alckmin, estar fora do segundo turno
levou Doria a ligar sua imagem ao concorrente Jair Bolsonaro, do PSL (Partido Social
Liberal), que sempre liderou a disputa. Eles destacam que “o discurso, parecido com o do
presidente eleito, falava em endurecer a atuação da polícia no combate ao crime, entre

5
Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/raio-x/governadores-1-turno/estados-em-que-
a-quantidade-de-ausentes-brancos-e-nulos-supera-a-de-eleitores-do-candidato-mais-votado/?uf=sp

164
outras propostas”. Também lembram que Bolsonaro gravou um vídeo desejando boa-sorte a
Doria, mas sem declarar oficialmente apoio. Ainda trazem o fato de que a campanha passou a
utilizar o vídeo nas suas divulgações, além de criar e propagar a expressão “Bolsodoria”
como estratégia para fortalecer essa ligação. Finalizam com a consideração de que esse
método não funcionou na capital do estado, já que conquistou número de votos inferior ao de
Marcio França (41,9% a 58,1%).
Como observado, os personagens principais trazidos são o governador eleito por São
Paulo, João Doria, e seu partido, o PSDB. A “atuação” deles na narrativa é a de terem
conseguido uma vitória que também significou uma derrota: a perda de espaço no cenário
paulista, conforme apontado pelos números subsequentes. Estes demonstraram, de acordo
com a notícia, que a atuação de ambos nas eleições de 2018 representou uma perda de
prestígio no estado em que os “tucanos” são historicamente hegemônicos.
A respeito da categoria de tematização, fica evidente que a proposta não foi noticiar a
vitória no pleito, mas um fato que chamou mais a atenção devido aos dados, que foi essa
perda de espaço do PSDB no cenário paulista. As medidas usadas pela matéria para tal
afirmação são os apontamentos (1) de que foi o pior desempenho do partido desde 1990, (2)
da pouca margem de vantagem de sua vitória sobre França e (3) também de quebrar a
“tradição” de conquistar o cargo ainda no primeiro turno. Nesse ponto, os sentidos da
tematização trazidos projetam para imaginar o que causou essa diminuição da hegemonia e
também se essa deve ser a tendência do partido. Outro ponto relevante é o fato de que a
notícia poderia se limitar a destacar a vitória de Doria, mas a utilização e interpretação das
bases de dados são capazes de agregar uma nova significação ao acontecimento ao trazer
outras visões, conforme destacado.
Já a segunda e a terceira parte destacam a derrota do partido em cenário nacional, o
que levou Doria a adotar a estratégia de ligar sua imagem ao concorrente do PSL, que liderou
toda a disputa nacional. A construção discursiva demonstra a incerteza se tal recurso foi algo
eficiente ou não, já que ele foi eleito, porém não o ajudou a obter a maioria de votos na
capital. A importância de se considerar os contextos em que as produções jornalísticas são
publicadas faz-se presente nesse ponto, por exemplo, devido ao fato de que o conteúdo
destaca o fato de que Doria foi prefeito de São Paulo, mas não recorda as divergências que a

165
indicação de seu nome para o governo causou na capital. Isso porque o candidato havia feito
a promessa, durante as campanhas para a prefeitura, que não deixaria o cargo para se
concorrer nas eleições estaduais.
A outra categoria que consideramos nas análises é a das bases de medidas utilizadas.
Estas são importantes por terem grande impacto nos sentidos do discurso. Isso porque são
elas que determinam o que faz um dado ser relevante e dimensionam o acontecimento dentro
do cenário descrito. Na notícia em questão, é possível notar que as medidas utilizadas são,
essencialmente, os dados históricos, sobretudo no estado de São Paulo. Isso fica evidente
quando comparam o desempenho de Doria com os de seus correligionários, mostrando que o
atual governador foi pior (já que a diferença em relação a seu concorrente foi menor se
comparado a disputas anteriores), e também que não conseguiu vencer as eleições no
primeiro turno, algo que acontecia com seu partido desde 2006. No segundo tópico, também
apontam que, nos últimos 24 anos, os tucanos que concorreram à presidência foram ao menos
para o segundo turno, algo que não ocorreu nestas eleições.
O que é importante observar nesse aspecto se trata do fato de que os sentidos
produzidos por esses dados são dimensionados a partir da medida de comparação. No caso
analisado, a percepção que a matéria objetiva transmitir – ou seja, que a vitória não tem
apenas aspectos positivos, pois significa também uma diminuição de hegemonia do partido –
é possível ser notada a partir da comparação dos dados atuais com os desempenhos
anteriores.
Esse sentido não seria transmitido da mesma maneira se houvessem apenas números
da campanha de Doria, sem que se medisse o que eles representam em relação a outros
momentos. A perda de prestígio do candidato é reforçada quando também destacam que seus
números na capital paulista foram piores se comparados com os de sua eleição como prefeito.
A matéria afirma que “ele alcançou apenas 41,9% dos votos do eleitor paulistano (França
ficou com 58,1%) no segundo turno. O número é menor do que há dois anos, na eleição para
prefeito de São Paulo, quando o candidato tucano venceu no primeiro turno, com 53,29%.
Fernando Haddad, que disputava a reeleição e ficou em segundo, teve apenas 16,7%”. O
sentido de perda de hegemonia está presente nesse apontamento ao demonstrar que Doria
perdeu eleitores no local. É evidente que outros elementos também influenciam nesse

166
número, como a disputa ser por um cargo diferente, o seu adversário ser outro e também o já
mencionado fato de que o candidato havia prometido não deixar a prefeitura para concorrer
nessas eleições.

4. Considerações
Os veículos de comunicação e suas produções estão inseridos na perspectiva de que
todo discurso é histórico e subordinado aos enredos sociais e culturais. Essa consideração é
relevante de se observar ao estudar os efeitos de sentido de seus conteúdos.
No que se refere ao Jornalismo de Dados, é necessário também acrescentar a
importância ao fato de que a narrativa com base em números e bases de dados, como
qualquer elemento discursivo, passa pela sua composição para a produção de sentidos,
conforme destacado anteriormente. Com isso em vista, partimos do pressuposto que, com
base nos dados, ele reforça a veracidade do acontecimento, confere valores a ele, faz
previsões de desdobramentos, etc. Dessa forma, ele reconstrói o acontecimento. Ele não
aprofunda um fato já existente – função que muitas vezes lhe é atribuída –, mas cria novos a
partir das análises dos dados e formas de narrar o acontecimento.
Neste trabalho, portanto, buscamos estudar essas construções e suas articulações de
sentido. A partir desse pressuposto, analisamos alguns dos elementos discursivos que
influenciam a construção simbólica do acontecimento. Isso pôde ser notado na análise da
matéria “Mesmo com vitória, Doria tem pior desempenho do PSDB em SP desde 1990”,
publicada pelo portal UOL.
Ela serviu como base para observar como os aspectos simbólicos da narrativa são
determinantes para a produção de sentidos. Entre os elementos analisados, a tematização, o
papel dos personagens e a base de medida dos dados evidenciaram como essas escolhas
determinam a visão sobre o acontecimento. Ou seja, as percepções e sentidos sobre o fato são
bastante demarcados pela sua composição. O evento (a vitória de Doria), com isso, ganhou
novos contornos semânticos a partir da interpretação dos dados e elaboração de uma narrativa
que tematizou o aspecto de uma suposta perda de hegemonia de seu partido.

167
Referências

BARBOSA, Suzana. Jornalismo digital em bases de dados (JDBD): um paradigma para produtos jornalísticos
digitais dinâmicos. 2007. 329 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Culturas Contemporâneas), Faculdade de
Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. Disponível em:
http://www.facom.ufba.br/jol/pdf/tese_suzana_barbosa.pdf.

BERGER, Peter L.; LUKHMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do
conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1985.

BRADSHAW, Paul. O que é Jornalismo de Dados? In : Manual de Jornalismo de Dados. Disponível em:
http://datajournalismhandbook.org/pt/introducao_0.html. Acesso em: 23 out. 2018.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

_______.. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.

CHAPARRO, Manuel. Estatística não é coisa com que se brinque. Disponível em:
http://www2.eca.usp.br/pjbr/arquivos/comentarios_mural4.htm. Acesso em 23 out. 2018.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2010.

CRUCIANELLI, Sandra. Ferramentas digitais para jornalistas. Disponível em:


https://knightcenter.utexas.edu/hdpp_pt-br.pdf.

FIORIN, José Luiz. Argumentação. São Paulo: Editora Contexto, 2016.

GRAY, Jonathan. The data journalism handbook: how journalists can use data to improve the news.
Sebastopol: O'Reilly, 2012.

MEYER, Philip. Precision Journalism: a reporter's introduction to social science methods. Lanham:
Rowman& Littlefield Publishers, 2002.

__________. Por que o Jornalismo de Dados é importante? Disponível em


http://datajournalismhandbook.org/pt/introducao_2.html. Acesso em 29 jan 2018.

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

PÊCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes Editores, 2008.

SAAD, Elizabeth. Linguagens da informação digital: reflexões conceituais e uma proposta de


sistematização. In: Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação (BOOC). Disponível:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/correa-elizabeth-saad-linguagens-informacao-digital-reflexoes-conceituais-
proposta-sistematizacao.pdf. Acesso em 29 jan 2018.

168
COMUNICAÇÃO E CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO NO
DISCURSO DO JORNALISMO TELEVISIVO
POPULARESCO 1
Análise dos programas O Homem do Sapato Branco e
Documento Especial – Televisão Verdade
COMUNICATION AND CONDITIONS OF PRODUCTION OF
THE DISCOURSE IN THE YELLOW PRESS TELEVISION
JOURNALISM: Analysis of the programs O Homem do
Sapato Branco and Documento Especial – Televisão
Verdade
Carlos Alberto Garcia Biernath 2

Resumo: Em um discurso, diversas situações podem influir quando de seu


pronunciamento: desde o auditório até o enredamento de elementos que serão
colocados neste discurso fazem parte de uma situação geral que presencia o
nascedouro de um discurso: o contexto imediato, em sentido estrito, e o contexto
amplo. Tais situações nos ajudam a pensar nas condições de produção de um
discurso. No jornalismo popularesco televisivo, esse discurso que hoje se
apresenta, voltado ao policialesco, parece convergir com o discurso de programas
de cunho semelhante exibidos há décadas na televisão brasileira. Em vista de tais
considerações, este trabalho propõe-se a analisar os programas Documento
Especia, em 2 edições de 1989, no propósito de entender as condições de produção
que compuseram a carga discursiva da atração.

Palavras-Chave: Documento Especial. Discurso. O Homem do Sapato Branco.

1. Discurso e poder
A fim de abrirmos a discussão sobre discurso, iniciemos abordando a definição do
termo em um contexto mais macro, pensando na definição literal que podemos encontrar no
dicionário 3: “1. Fazer discurso; 2. Discorrer; 3. Raciocinar”. No excessivo uso que este termo
tem ganhado no vocabulário da sociedade em geral, não somente em acadêmicos ou analistas
do discurso, talvez essa significação atinja a diferentes sentidos. No uso mais convencional,
conforme nos indica o próprio dicionário, o discurso poderia ser entendido como a
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Discurso do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Unesp – Bauru, doutorando no programa de Comunicação (bolsista CAPES), beto.biernath@gmail.com.
3
Fonte: Dicionário Priberam. Disponível em: <https://www.priberam.pt/DLPO/discursar>. Acesso em: 28 fev.
2018.

169
mensagem, a fala de um alguém que o pronunciou. Assim, para alguns, o vocábulo pode
indicar, tão somente, esse conteúdo dito pelo sujeito ante a uma plateia.
Todavia, o discurso é compreendido em um contexto sensivelmente mais amplo para
alguns pensadores. Como nos ensina Eni Orlandi (2012, p. 15), “a palavra discurso,
etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento”. No
esclarecimento da analista do discurso, podemos depreender que há, assim, uma
movimentação da fala de outrem: o que é colocado pelo sujeito percorre, atinge esse
movimento para chegar a um outro alguém.
Se pensarmos que um conteúdo textual envolve uma interação linguística entre os
interlocutores de uma determinada situação retratada, como, por exemplo, em um texto,
entendemos que será por meio desse discurso que a posição do orador estará demarcada.
Quando um determinado sujeito age negativamente ao que lhe foi dito, é possível entender
que sua postura retrata uma discórdia, naturalmente. Tal acepção pode ser entendida porque
“não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em
sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (PÊCHEUX, 1975 apud ORLANDI,
2012, p. 17). Portanto, aquela definição mais básica que trouxemos anteriormente, de uma
simples mensagem, já pode ser observada sob novos contornos, uma vez que toda e qualquer
mensagem trará em seu bojo determinada intenção do sujeito que a proclamou.
E esse discurso congregará algum efeito além da intenção do orador? Se é no discurso
que as relações de poder ficam demarcadas, conforme vimos, também será nele próprio que
ficam demarcadas um jogo de poder, que interessa a quem deseja dominá-lo. Nessa
concepção de discurso, vale mencionarmos os estudos de Michel Foucault (1999). Para ele,
esse discurso que emana do sujeito tem forte relações com o poder. Ele poderá ser moldado
ao sabor de diversos estratagemas, para que assim o detentor desse discurso possa mantê-lo
sob controle, dentro de determinados padrões.
O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto
que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo
que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, 1999, p. 10).
Esses discursos que se ligam ao poder revelam, em epítome, criações de efeitos de
verdade, à medida em que as instituições, mais uma vez, os colocam. Ainda segundo
Foucault (1999, p 8-9), em toda sociedade a produção do discurso é “controlada, selecionada,

170
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar
seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório”.
Fundamentalmente, na concepção foucaultiana o discurso será o lugar da emergência
das falas, determinando a construção de saberes sobre o mundo e sobre uma suposta
‘verdade’ legítima – o que, em nosso ver, não passa de uma construção arbitrária. De tal
modo, o discurso está envolvido numa luta simbólica pelo significar o mundo sob um viés
legitimado.
Na sequência, abordaremos a constituição desse discurso nas mídias, de maneira breve,
a fim de pensarmos na representação dos nossos objetos empíricos junto à audiência.

2. O discurso nas mídias


Pensemos, a partir de então, como esse discurso pode ser trabalhado na comunicação –
sempre mantendo em vista o jornalismo televisivo, que incorpora os programas popularescos
que mobilizamos como objetos empíricos neste trabalho.
O procedimento discursivo da notícia – égide do jornalismo e fulcral para o
entendimento da comunicação como um processo –, de acordo com Charaudeau (2012), pode
ser percebido como uma sequência de bases cruciais a saber: a mecânica de construção dos
sentidos; a natureza do saber que é transmitido pelo acontecimento; e o efeito de verdade –
assim interpretado pelo receptor.
Se é no discurso que buscaremos aprofundar nosso estudo, visando entender os
meandros que caracterizam a informação jornalística, é preciso compreender como a notícia
se constitui, desde sua observação por parte do sujeito-jornalista. É justamente nesse caminho
que a mecânica de construção do sentido da notícia se compõe por um duplo processo,
segundo Charaudeau (2012): transformação e transação. No processo de transformação,
aponta Charaudeau (2012, p. 41), “há o movimento de “transformar o ‘mundo a significar’
em ‘mundo significado’, estruturando-o segundo um certo número de categorias que são, elas
próprias, expressas por formas”. Nisso, tais categorias agirão na identificação dos seres do
mundo “nomeando-os”, “qualificando-os” com determinada propriedades, “narrando” as
ações destes seres, “argumentando” o motivo dessas ações e “modalizando-os” conforme
suas atitudes e ações (CHARAUDEAU, 2012).
Já no processo de transação, o sujeito produtor do ato linguístico dará uma significação
psicossocial a seu discurso, conferindo a este um determinado objetivo.

171
Aqui se coloca, portanto:
as hipóteses sobre a identidade do outro, o destinatário-receptor, quanto a seu saber,
sua posição social, seu estado psicológico, suas aptidões, seus interesses etc.; o
efeito que pretende produzir nesse outro; o tipo de relação que pretende instaurar
com esse outro e o tipo de regulação que prevê em função dos parâmetros
precedentes (CHARAUDEAU, 2012, p. 41).
Ainda neste processo de transação, podemos inferir que os sujeitos interagirão
conforme suas contribuições enquanto participam do jogo comunicativo: haverá uma espécie
de circulação de um objeto de saber que um pode possuir e o outro não, pois um deles será o
responsável por transmitir, enquanto o outro ficará com a função de receber, compreender e
interpretar, sofrendo assim uma alteração em seu estado inicial de conhecimento. De tal
modo, é no ato de informar – processo em que a notícia se insere – que o processo de
transação se insere.
O processo de transação comandará o processo de informação, ainda conforme
Charaudeau (2012). Esquematizando a constituição da notícia, teremos:

FIGURA 1 – O esquema constitutivo da notícia


FONTE – Charaudeau (2012, p. 42).

Partindo da premissa de que há jornalismo – ou deve(ria) haver – no momento em que


ocorre a ruptura de um fato, ou seja, a ‘quebra’ da normalidade, entende-se que esse
acontecimento interessa ao veículo de comunicação, pois ali está algo novo a ser publicado.
Certeau (1994, p. 286) entende que “o grande silêncio das coisas muda-se no seu contrário
através da mídia”. Contudo, há indagações acerca deste momento em que a notícia surge.
Também é preciso considerar o posicionamento do jornalista enquanto profissional.
No processo de produção da notícia, as etapas de seleção dos assuntos que tornar-se-ão
pautas, a metodologia empregada na apuração destes, o sujeito-jornalista que se insere no
código deontológico de sua profissão, sua escrita e até mesmo a aceitação do seu grupo de

172
colegas profissionais, acaba por caracterizar uma identidade profissional e, também, de um
sistema de referências que compõe a definição de um saber de grupo. Essas ‘regras do meio’
denunciadas na produção noticiosa não denotam somente aquilo que os jornalistas
estereotipam de si mesmos, mas também implica em uma correlação direta com o “fazer
notícia”, graças a modos de produção inerentes à empresas jornalísticas e seus interesses.
Patrick Charaudeau (2012) assevera que algumas notícias podem extrapolar o
‘simples’ rompimento da normalidade, prolongando-se por mais tempo. É o caso de greves,
conflitos, casos de corrupção etc. Para ele, relacionar a origem da notícia à ruptura de algo,
ou seja, a um acontecimento, seria como confundir o próprio acontecimento e o surgimento
deste acontecimento. “Propomos chamar de ‘notícia’ a um conjunto de informações que se
relaciona a um mesmo espaço temático, tendo um caráter de novidade, proveniente de uma
determinada fonte e podendo ser diversamente tratado (CHARAUDEAU, 2012, p. 132).
A partir dos motivos expostos anteriormente, entendemos que o próprio conceito de
verdade no jornalismo não é, senão, uma construção discursiva, que tem como base um saber
narrar específico, inscrito nas regras profissionais do meio. Este narrar que faz parte de um
relato do acontecimento, não de uma narrativa criada a partir de um ponto de vista adotado
pelo sujeito que presenciou o acontecimento, de acordo com Traquina (2005). Isto porque,
assumindo essa proposição de que há uma narrativa criada, a legitimidade profissional dos
jornalistas pode ser colocada em jogo, pois: “Estes (os jornalistas) resistem bastante à noção
de que a notícia não é um relato mas uma construção” (HALL, 1984, p. 4 apud TRAQUINA,
2005, p. 17).
O discurso jornalístico da televisão – veículo de comunicação dos objetos que
estudamos neste trabalho – engendra universos de sentidos ainda mais complexos do que as
notícias do impresso, graças à capacidade de unir os sentidos da audição, da fala e da imagem
– do visual em si. Essa estruturação de sentidos da televisão é, para Charaudeau (2012),
altamente solidária entre fala e imagem, ao ponto de ser difícil apontar qual das duas é mais
importante. A capacidade única da televisão envolve uma sequência temporal breve, que
sobrepuja a instância dos que a observa, norteando este olhar para os dramas de mundo
apresentados . Portanto, “pode-se dizer que a televisão cumpre um papel social e psíquico de
reconhecimento de si através de um mundo que se fez visível” (CHARAUDEAU, 2012, p.
112).

173
O contato da audiência com a construção midiática do real se dá a todo tempo. A
instituição do real, por meio da informação, se dá “desde a manhã até a noite, sem pausa. (...)
Articulam nossas existências ensinando-nos o que elas devem ser” (CERTEAU, 1994, p.
287). E isto é observado em reportagens televisivas por meio de uma expressão reflexiva.
Através de um tipo de realismo, o relato do sujeito-jornalista contará com alguns elementos
que imbricarão esse efeito de realidade quando:
Passa ainda por uma nova definição do estatuto da personagem (que sai do
anonimato e se torna protagonista num perfil intermédio entre o herói da tragédia e
o da farsa, por vezes oscilando entre um e outro) e por uma representação do espaço
por formas fechadas, puras e abstractas, pela criação de um “lugar fechado” onde a
história contada se possa analisar como uma série de reviravoltas e manobras
(PONTE, 2005, p. 45).
Desta forma o real passa a conferir uma certa legitimação junto ao telespectador,
buscando atingir a audiência com base em características discursivas como aquelas que
expusemos anteriormente. Aqui, cabe ressaltarmos também, especificamente no caso dos
programas que analisamos, o papel dos apresentadores nessa construção discursiva. Jacinto
Figueira Junior, de O Homem do Sapato Branco, quanto Roberto Maya, de Documento
Especial – Televisão Verdade, participavam das atrações de maneiras distintas, mas atuando
diretamente na conformação dos efeitos de sentido das atrações popularescas.

3. A análise do discurso de tradição francesa e as condições de produção


A Análise do Discurso de linha francesa mantém filiações históricas em um espaço de
questões criadas na relação entre três domínios disciplinares: a Linguística, o Marxismo e a
Psicanálise. Talvez a área que mais tenha influenciado o desenvolvimento da AD, a
linguística se conforma no entendimento de que não há transparência na linguagem, ou seja, a
língua é seu objeto próprio, regida por sua ordem própria, conforme pontua Orlandi (2012).
Braga (1980 apud Brandão, 2002, p. 11) observa que a linguagem enquanto discurso “é o
sistema-suporte das representações ideológicas”. Assim, na AD, a língua não é mais encarada
somente como estrutura, mas sim como acontecimento. Cabe também a ressalva de
Maingueneau (1989, p. 18) nesse sentido, quando o autor coloca que “a AD não é, pois, uma
parte da linguística que estudaria os textos, da mesma forma que a fonética estuda os sons,
mas ela atravessa o conjunto de ramos da linguística”. Portanto, para a AD:

174
a. a língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se
da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da
linguagem);
b. a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos);
c. o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também
pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso
redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela
ideologia. (ORLANDI, 2012, p. 19-20).
A premissa da AD como metodologia pode ser entendida, em suma, como um método
de investigação que permite observar os sentidos investidos em um discurso – seja ele
textual, imagético ou da natureza que for, em nosso entendimento –, a fim de perceber as
imbricações ideológicas dos sujeitos produtores deste discurso. Assim, a AD “visa a
compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de
significância para e por sujeitos” (ORLANDI, 2012, p. 26).
Como um dos conceitos que podem ser trabalhos na Análise do Discurso, as Condições
de Produção ajudam a entender a constituição do discurso dos nossos objetos empíricos. Para
isso, utilizaremos os conceitos de contexto imediato, em sentido estrito, e contexto amplo,
ambos apresentador por Orlandi (2012). Essencialmente, tais condições compreenderão os
sujeitos e a situação.
Essas condições de produção podem ser consideraras, como circunstâncias da
enunciação, em sentido imediato e em sentido amplo, quando envolvem o contexto sócio-
histórico e ideológico. Nesse raciocínio, é permissivo partir de uma análise que investigue o
contexto imediato considerando um teor mais ‘aparente’ do discurso, relacionado ao
momento da produção desse discurso. Orlandi (2012, p. 31) também indica a necessidade de
se observar as condições de produção a partir de um contexto amplo: “é o que traz para a
consideração dos efeitos de sentidos elementos que deram da nossa forma de sociedade, com
suas Instituições”. Recorrendo aos nossos objetos, no programa Documento Especial a
abertura de algumas edições – como na edição que aqui estudamos – era seguida de dizeres
que indicavam, sobre a cor vermelha como cor de fundo, que imagens fortes seriam exibidas
e estariam a cargo da audiência o acompanhamento destas, conforme podemos observar
abaixo:

175
FIGURA 2 – Dizerem alertam ao telespectador a inadequação das imagens que seriam exibidas
FONTE – Documento Especial – edição Delírio na Madrugada (1989, Rede Manchete).

Em uma brevíssima análise, no contexto amplo, entendemos a cor vermelha utilizada


na apresentação como atrelada ao sangue, dando a ideia de violência, do insólito, quando
aliada à mensagem que versa sobre as cenas fortes que viriam a seguir – muito embora a cor
seja congruente ao movimento de esquerda, os programas traziam conteúdo popularesco, o
que pode causar essa confusão entre a utilização do vermelho atrelado ao violento ou ao
popularesco. O contexto imediato indica a atenção que a audiência deve(ria) ter sobre
possíveis incômodos com as cenas a serem exibidas.
Assim, na AD, o dispositivo desenvolvido para auxiliar no entendimento das condições
de produção imbricará em si como se configurou o discurso em sua época de produção. São
casos que veremos quando pensarmos nas atrações enquanto representantes de produtos
midiáticos que revelam uma cultura popular(esca).

4. Aspectos lacônicos sobre popular X popularesco


A fim de elucubrarmos um entendimento acerca dos objetos empíricos deste trabalho,
apresentaremos algumas considerações sobre a definição de cultura popular. Cabe ressaltar
que parece haver uma confusão entre os termos ‘popular’ e ‘popularesco’, uma vez que
ambos podem ser utilizados para indicar situações que talvez não lhes diz respeito. Para

176
tentarmos entender mais, abordaremos a seguir o que alguns autores pensam sobre cultura
popular e o que seria esse popularesco
Traçando um resgate que nos ajude a entender as origens dessa cultura popular, Stuart
Hall (2003, p. 247-248) inicia seu relato reforçando a seguinte ideia:
No decorrer da longa transição para o capitalismo agrário e, mais tarde, na
formação e no desenvolvimento do capitalismo industrial, houve uma luta mais ou
menos contínua em torno da cultura dos trabalhadores, das classes trabalhadoras e
dos pobres. (...) As mudanças no equilíbrio e nas relações das forças sociais ao
longo dessa história se revelam, frequentemente, nas lutas em torno da cultura,
tradições e formas de vida das classes populares.
Tais conflitos atestam que essa mudança para o capitalismo pode sucumbir alguns
aspectos ‘tradicionais’ da cultura popular, reorganizando-a a partir de novas feições de
formas e práticas culturais. Nesse processo, sob o pretexto de ser para seu próprio bem, o
povo é que acaba por ser objeto dessas alternâncias. Essa possível ‘miscigenação’ de novos
contornos parece resultar em novas formas dessa cultura popular: há todo um modo de
relação com as formas de vida dos trabalhadores, entre um período e outro, e com as
definições entre si destes próprios trabalhadores.
Refletir sobre essas questões pode nos ajudar a delinear a ideia de cultura popular. De
acordo com as ponderações de Hall (2003, p. 248), “a cultura popular não é, num sentido
‘puro’, nem as tradições populares de resistência a esses processos, nem as formas que as
sobrepõe. É o terreno sobre o qual as transformações são operadas”. Essas modificações que
as diferentes culturas sofrem podem se constituir em regimes de cultura popular.
Mostrando algumas definições sobre cultura popular, Hall (2003) discute alguns
significados: o primeiro deles faz menção à definição comercial que “popular” pode ganhar.
Em tal raciocínio, emprega-se o termo em uma visão mais parecida com a Indústria Cultural,
atribuindo que algo seria “popular” porque são consumidos pelas massas, que assimilariam
esse conteúdo e o apreciariam imensamente.
Mas e o que seria o popularesco? Mais uma vez, recorremos ao dicionário 4: “1. Que é
vulgar ou de baixa qualidade: programa de televisão popularesco; 2. Que imita o que é
popular”. Em ambas definições, percebemos um certo sentido pejorativo ao termo, atrelando
este à baixa qualidade e à uma imitação do popular. Nessa definição, podemos recorrer aos

4
Fonte: Aulete Digital. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/popularesco>. Acesso em: 29 jul. 2018.

177
estudos da professora Vera França (2009), que elucida diferentes significações ao termo,
esclarecendo que daí provém relações com o povo, que se destina e ele e lhe é característico.
Voltando o termo ao significado de cultura, popular representaria o que é produzido pelo
povo, oriundo do próprio povo, ao passo em que popularesco não seria produzido pelo povo,
embora revelado a ele como se tivesse.
Deste modo, o conteúdo popular, transmitido a partir de um meio de comunicação – a
televisão, no caso deste trabalho – abarcaria outras delineações. Para Martín-Barbero (2001,
p. 322): “pensar o popular a partir do massivo não significa (...) alienação e manipulação, e
sim novas condições de existência e luta, um novo modo de funcionamento de hegemonia”
(MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 322). De acordo com o autor, então, o conteúdo midiático
seria (re)tratado quando de sua essência popular e já ressignificado contornaria outros modos
de funcionamento e hegemonia. No bojo desse raciocínio, França (2009, p. 40) aponta que a
cultura popular pura, hoje, já está quase extinta, e que os representantes essências dessa
cultura já não a produzem mais: “a ideia do popular enquanto produzido pelo povo se
esvazia: nesta nova dinâmica cultural, a ele só cabe o papel de recepção”. Assim, o conteúdo
midiático exibido não passa de algo investido de traços do popular: “Pode-se também
chamar de popular aquilo que se dirige ao povo e que, buscando ativar o consumo pelos
mecanismos de identificação, se parece com ele, assume algumas de suas características”,
define França (2009, p. 41).
Munidos de todo arcabouço teórico que expusemos acima, abordando as características
do discurso midiático, da teoria que norteia este trabalho e dos conceitos de popular,
iniciaremos nossas análises, objetivando entendermos como o discurso das atrações se
caracterizou conforme as condições de produção inerente aos anos da produção dos
programas.

Breves análises dos objetos empíricos


Inicialmente, faremos uma brevíssima apresentação de cada programa, bem como da
edição que analisamos no presente artigo.
O Homem do Sapato Branco: O programa estreou em 1966, pela TV Globo. Como
era exibido durante o regime militar, sofreu duras críticas, mas alegava que mostrava a
realidade “nua e crua”. Durante sua exibição na TV Globo, chegou a ser retirado do ar pelo
AI-5, em 13 de dezembro de 1968, por ser considerado inadequado pelos censores do regime

178
militar. Foi o grande precursor deste gênero jornalístico na televisão brasileira, inspirando o
formato de programas atuais como o Programa do Ratinho, por exemplo, e telejornalísticos
que adotam essa linha, como os famigerados Brasil Urgente e Cidade Alerta. Segundo o site
“Memória Globo 5”, nas vésperas do Natal de 1968, o apresentador prometeu uma
distribuição de presentes na porta da Rede Globo, em São Paulo. Conforme os meios de
comunicação da época, 50 mil pessoas compareceram à emissora e o tumulto provocou
feridos.
A edição que analisamos, exibida em 12/12/1981 pelo Sistema Brasileiro de Televisão
(SBT), foi veiculada em um contexto político de um Brasil que vivenciava o final do governo
militar (1 de abril de 1964 – 15 de março de 1985). Talvez aí possamos entender alguns
posicionamentos do apresentador Jacinto Figueira Junior: dentre os casos apresentados,
chama-nos a atenção aquele em que duas mulheres assaltantes, a vítima do crime e alguns
policiais comparecem no palco. Entrevistados pelo apresentador, os policiais relatam que as
duas mulheres haviam roubado uma bolsa. Ao aproximar-se de uma das criminosas, a quem
diz ser “bonita”, Jacinto pergunta quantos roubos essa mulher já havia cometido; ao ouvir a
resposta de que aquele seria o primeiro crime, o apresentador desfere dois tapas na face da
criminosa – sem muita força, mas encostando suas mãos no rosto da mulher – alegando que
ela mentia. Essa autoridade do apresentador Jacinto Figueira Junior, que cobrava severamente
a assaltante, e nos ajuda a entender que o contexto imediato de tal fato caracterizava
justamente que o apresentador estava em grau de superioridade com a assaltante, propondo-se
a puni-la por ser um alguém que não aceitava mentiras.
Documento Especial – Televisão Verdade: Criado e idealizado em 1989 por Nelson
Hoineff. Nasceu com a ideia de apresentar temáticas que eram pautadas por duas premissas
básicas: sexo e corrupção. Em entrevista ao canal do YouTube SonharTV 6, Hoineff afirmou
que à época de criação do programa “existiam dois Brasis: o que era mostrado na televisão e
outro em que existia sexo e corrupção”. A atração permaneceu na Rede Manchete até 1992,
quando passou a ser exibido pelo SBT; já em 1996, a atração foi adquirida pela Rede
Bandeirantes – já descaracterizada de suas pautas polêmicas –, mantendo-se no ar até 1997,

5
Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/auditorio-e-variedades/o-homem-
do-sapato-branco.htm>. Acesso em: 30 nov. 2018.
6
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Cd0zzkVXiMY>. Acesso em: 28 nov. 2018.

179
quando chegou ao fim – embora existam programas de nomes semelhantes, nenhum deles
tem relação com o originalmente criado por Nelson Hoineff.
Na edição observada por este trabalho, chamada de “Delírio na Madrugada” e exibida
em 1988 pela Rede Manchete, temos a apresentação do que seria o cotidiano de um
“personagem das noites cariocas”, nas palavras do apresentador Roberto Maya: travesti Laura
de Vison (07/11/1939 – 08/07/2007), registrada como Norberto Chucri David. O programa
mostrava que Laura dava aulas de história durante o dia, caracterizada como o professor
Norberto, com vestes de homem, e assumia a identidade de Laura de Vison durante a noite,
quando apresentava-se em uma casa noturna carioca frequentada por um público
homossexual. A edição versava sobre a sexualidade em geral – algo que vai ao encontro do
que Hoineff colocou como algo não exibido pela televisão à época, o que nos ajuda a
entender o contexto amplo do final da década de 1980, ao alvorecer da redemocratização do
Brasil. Esse contexto sócio-político da época revela alguns aspectos parecidos em relação ao
programa predecessor. Assim, por mais que esse contexto imediato indicava a transmissão de
situações não vistas antes pela televisão, em um contexto amplo podemos entender a rotina
de Laura, que via-se como um professor caracterizado como homem durante o dia e à noite,
já livre de suas obrigações profissionais, podia dar-se ao prazer de assumir uma nova
‘identidade’.
Outrossim, na comparação entre as duas atrações, notamos que o programa de Jacinto
Figueira Júnior não era mais exibido, o que pode revelar que as condições de produção entre
os programas, embora aparentemente semelhantes em relação a aspectos sócio-polícitos,
diferenciaram-se conforme este contexto se alternava.

Considerações
Na análise que desenvolvemos ao longo de todo o percurso do trabalho, pudemos
entender que o discurso midiático se conformará seguindo alguns processos de produção da
notícia – valores que venham a interessar ao sujeito-jornalista que tornará um acontecimento
em notícia.
No primeiro programa, O Homem do Sapato Branco, pudemos notar que a atração já
exibia elementos que fariam parte de uma cultura popularesca: a violência, como na
reportagem que analisamos especificamente. Isso deve(ria) representar aquilo que seria o
cotidiano da cultura popular – essencialmente a audiência da atração. Ainda nesse sentido, o

180
programa posterior, Documento Especial – Televisão Verdade, trouxe novos elementos a este
tipo de programa, apresentando pautas que antes não eram vistas nas atrações, mas também
produzidas por sujeitos-jornalistas que não talvez não fizessem parte dessa cultura popular
que seria premente à audiência.
Na observação das condições de produção, muito embora sejam 7 anos de diferença
entre a exibição dos programas, as análises nos permitiram entender que ainda no começo da
década de 1980 havia um posicionamento autoritário do sujeito-jornalista em relação aos
personagens do programa – como exposto quando de seus atos em relação à criminosa que
estava no palco. Assim, quando o Documento Especial, já em 1988, apresentou algo que
talvez não encontrasse valor suficiente para ser exibido no programa anterior, entendemos
sensíveis diferenças no contexto imediato que permeou, à época, a produção de ambas as
atrações. Porém, cabe reforçar, ambas as atrações buscaram atingir a audiência com temáticas
que, mesmo (re)conformadas em produções atuais, mantém em si elementos semelhantes na
busca pela captura da audiência: crimes – e o programa como ‘julgador’ – e sexualidade, que
conformam, talvez, essa disputa pelo discurso.

Referências

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 2002.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petropólis, RJ: Vozes, 1994.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999.
FRANÇA, Vera V. O popular na TV e a chave de leitura dos gêneros. In: GOMES, Itania Maria Mota (Org.).
Televisão e realidade. Salvador: EDUFBA, 2009
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik; Adelaine La Guardia Resende
et al. (trad.) Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro.
UFRJ, 2001
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2012.
PONTE, Cristina. Para entender as notícias: linhas de análise do discurso jornalístico. Florianópolis: Insular,
2005.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são.
Florianópolis: Insular, 2005.

181
FATO OU FAKE? O DISCURSO DA REDE GLOBO NO
COMBATE ÀS NOTÍCIAS FALSAS 1
Carolina Luiza Teles Ramos de Vasconcelos (UFPE) 2
Alfredo Eurico Vizeu PEREIRA JUNIOR (UFPE) 3

Resumo: O artigo busca compreender como a imprensa brasileira tem utilizado um


discurso ideológico em prol da democracia para combater as notícias falsas que
circulam nas redes sociais, as chamadas fake news. Nossa análise se concentra no
aparato criado pela Rede Globo para este fim, através do projeto “Fato ou Fake”,
que reúne jornalistas de todas as plataformas da empresa para checagem de
conteúdo suspeito. Partimos do pressuposto de Charaudeau (2013) sobre o ato de
comunicar ser um fenômeno social e, no caso das mídias, ligado às lógicas
econômica e tecnológica, para então perceber que efeitos de sentido são produzidos
com o discurso empregado. Entre as conclusões, observamos que “Fato ou Fake”
busca solidificar uma imagem de credibilidade por parte da Rede Globo, além de
ser uma tentativa de retomar o controle dos processos de produção de conteúdo
perdido com a crescente utilização das redes sociais para elaboração e divulgação
de notícias.

Palavras-Chave: Comunicação. Discurso Midiático. Fake News. Ideologia.


Telejornalismo.

1. Introdução
O uso da internet na sociedade contemporânea é uma realidade que não dá para ser
contestada. No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad C),
divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em fevereiro de 2018,
mostrou que 116 milhões de pessoas tinham acesso à internet – dados de 2016 –, o que
representa 64,7% da população. Entre os brasileiros da faixa etária que vai dos 18 aos 24
anos, a taxa de conexão era de 85%.
A facilidade do acesso cresceu com a massificação da venda dos smartphones, que
dispensam o uso de um computador com provedor de internet. E o interesse se diversificou
diante de tantas opções de conteúdos a serem consumidos e compartilhados. Cada vez mais

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Discurso do 3º CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Jornalista e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE). E-mail: vasc.carolina@gmail.com
3
Orientador do trabalho. Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: a.vizeu@yahoo.com.br

182
empresas e formadores de opinião buscam visibilidade por meio da internet, seja para
oferecer produtos ou mesmo ideias.
Junto a esse fenômeno, assistimos também ao crescimento da utilização das redes
sociais como WhatsApp, Facebook, Youtube e Instagram. O Brasil era o maior usuário de
redes sociais da América Latina em 2016, segundo estudo da agência eMarketer, publicado
pelo site da Forbes Brasil. A pesquisa estimou que, há dois anos, 93,2 milhões de brasileiros
tinham acessado as redes sociais. Redes essas que passaram a ser responsáveis, assim, por
uma transformação na forma das pessoas se relacionarem, construírem narrativas e realidades
sociais distintas das hegemônicas:
As novas plataformas digitais permitem uma comunicação entre diferentes grupos
muito mais dinâmica, trazendo à tona criações artísticas colaborativas, processos
democráticos de participação e gestão de projetos de forma coletiva.
(GUARESCHI, 2013, p. 172).

Essa nova forma de participação na comunicação também deu espaço para o fomento
de narrativas deturpadas e inconsistentes com a realidade, apresentando-se até como uma
negação desta por muitas vezes. As fake news, notícias falsas que circulam nas mais diversas
plataformas das redes sociais, têm ganhando cada vez mais espaço nos debates relacionados à
comunicação porque se apresentam como um desafio a ser lidado e entendido de maneira
sistemática pelos profissionais dos veículos e também por pesquisadores.
Apesar de o termo ter sido disseminado em 2016, durante a campanha presidencial
nos Estados Unidos, ele data do século XIX. E fazendo uma viagem ainda mais longa pelo
tempo, o assunto fake news já foi tratado em 1690, durante tese de doutorado de Tobias
Peucer, a primeira em Jornalismo a ser apresentada numa universidade.
Em sua tese, Peucer faz um estudo comparativo entre Jornalismo e História, tendo o
primeiro uma identificação com a perspectiva do singular. Num dos parágrafos que compõem
o texto, ele aborda a incompatibilidade dos relatos falsos com a atividade jornalística:
Relaciono com a vontade do escritor de periódicos a credibilidade e o amor à
verdade: não seja o caso que, preso por um afã partidário, misture ali
temerariamente alguma coisa de falso ou escreva coisas insuficientemente
exploradas sobre temas de grande importância (PEUCER, 2004, p. 19).

Podemos apreender que, desde o século XVII, a temática das notícias falsas já era
objeto de observação e estudo por parte dos pesquisadores em Jornalismo, mesmo num
período em que a industrialização ainda estava longe de alcançar o seu auge e no qual a

183
imprensa ainda não era vislumbrada como indústria, com seus equipamentos caros e
modernos para rodar as publicações. Os jornais comuns, muito mais de caráter político-
partidário, eram escritos por profissionais liberais que tinham suas pequenas tipografias.
Peucer, nesse âmbito, aponta para uma responsabilidade do autor de textos em periódicos que
torna a sua atividade peculiar e significativa. E, de fato, a profissionalização do jornalista
reforça cada vez mais essa posição.
Trazendo a discussão para o momento atual, vemos as fake news mais uma vez
ganhando corpo durante um pleito eleitoral, desta vez no Brasil. E o principal meio de
disseminação tem sido as redes sociais. É nesse cenário que se concentra nossa análise de
como os grandes veículos de comunicação têm participado de um jogo de forças em vista de
exercer um posicionamento que nega essa realidade, além de se apresentarem como
guardiões da democracia e da verdade da informação, espelhada num desejo de manter a
credibilidade e aumentar a audiência.

2. O discurso ideológico da mídia


Partimos do pressuposto de Charaudeau (2013), de que comunicar é um fenômeno
social, para entender como as fake news se inserem nesse contexto e como a mídia opera um
discurso ideológico no sentido de se mostrar a maior interessada nesse papel social, de modo
que, desempenhado de maneira organizada e responsável (como pregam as próprias
empresas), venha a se tornar um bastião da verdade, da pluralidade e do compromisso com o
público – uma missão compartilhada com status de vocação, quase um sacerdócio.
A informação que circula entre os grupos sociais e que alcança a mídia mediante
prévios critérios estabelecidos, de modo a rechaçar o que não é considerado importante ou
uma boa história, é uma construção dos próprios grupos sociais que depende do campo de
conhecimentos nos quais estão inseridos. E que passa por uma reinterpretação pela mídia. A
informação divulgada, por si, é uma forma de discurso que busca um efeito de verdade para
atrair o seu receptor.
O que não se pode esquecer é que a mídia desempenha, primeiramente, de forma
ainda mais contundente nas sociedades modernas capitalistas, um papel ligado à questão
econômica:
[...] trata-se de um organismo que se define também através de uma lógica
comercial: uma empresa numa economia de tipo liberal e, por conseguinte, em
situação de concorrência com relação a outras empresas com a mesma finalidade.

184
Por essa lógica, cada uma delas procura “captar” uma grande parte, se não a maior
parte, do público. (CHARAUDEAU, 2013, p. 58-59).

Essa função social, ligada à lógica comercial, é aqui entendida como uma questão
ideológica. Compreendemos que a ideologia perpassa a existência humana em qualquer
esfera da vida em sociedade (independente do grau de modernização no qual ela está inserida
e no modelo de organização, incluindo o político, seja considerado de esquerda ou de direita)
e no campo da comunicação não é diferente, em nenhum momento histórico. Para delimitar
nossa área de investigação, partimos do conceito de ideologia apresentado por Stuart Hall
que, a nosso ver, é o que melhor abrange um sentido aplicado às mídias para falar sobre
discurso ideológico.
Por ideologia eu compreendo os referenciais mentais – linguagens, conceitos,
categorias, conjuntos de imagens do pensamento e sistemas de representação – que
as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e
tornar inteligível a forma como a sociedade funciona. (HALL, 2003, p. 267).

Para a mídia, essa função ideológica de mostrar o funcionamento da sociedade se


reflete justamente na sua forma de operacionalizar a produção de notícias diariamente,
minuto a minuto, nas suas mais variadas formas. Decifrar e definir as relações sociais em
diversos campos como a política, por exemplo, são atividades executadas pelas empresas de
comunicação na medida em que utilizam práticas de organização socioprofissionais para
difundir seus enquadramentos e sua própria realidade construída a partir do seu lugar de fala
mercadológico. E esse lugar de fala é impregnado de ideologia.
Tendo o poder, na sociedade em rede, como o processo mais fundamental, em função
desta ser definida a partir de valores e instituições, como descreve Castells (2015), partimos
dessa questão para abordar as relações de poder na mídia, que é perfeitamente considerada
uma instituição nos moldes como o são a Igreja, as associações e os partidos políticos.
Os veículos de comunicação ligados aos grandes conglomerados, que atuam em
diversas plataformas (rádio, TV, internet e impresso), seja no jornalismo ou no
entretenimento, são tidos como hegemônicos, quer pela influência que exercem – sobre o seu
público e sobre os seus pares de menor potencial e poder aquisitivo –, quer pela estrutura
econômica da qual dispõem para alcançar maior audiência (aqui como mais uma prova do
caráter de mercado que envolve as relações da mídia). É essencial pensar, nessa contenda,
nos vieses que perpassam o papel da mídia:

185
A finalidade última de todo ato de comunicação não é informar, mas persuadir o
outro a aceitar o que está sendo comunicado. Por isso, o ato de comunicação é um
complexo jogo de manipulação com vistas a fazer o enunciatário crer naquilo que se
transmite. Por isso, ele é sempre persuasão (FIORIN, 2016, p. 77).

Essa persuasão citada por Fiorin só é possível graças ao estabelecimento de um poder


velado, escondido e aceito pela sociedade. Quando Bourdieu (1989) fala do poder simbólico
como sendo um poder que não é percebido e que só pode ser exercido com a cumplicidade,
ainda que inconsciente, daquele que está sujeito ou que exerce tal forma de dominação,
percebemos como essa é uma questão intrínseca à mídia. Revestida de uma aura de executora
de um papel social altivo e nobre, a mídia levanta sua bandeira da imparcialidade e da
objetividade para estabelecer formas de poder. É uma construção da realidade que permite a
reprodução da ordem social:
As relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder
que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado
pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações (BOURDIEU,
1989, p. 11).

É o que Charaudeau (2013) também vai chamar de lógica simbólica, que impõe aos
meios de comunicação quase que uma necessidade, uma obsessão pela participação na
construção da opinião pública. Só que esse processo depende da situação de troca existente a
partir da instância de produção. Nesse ponto, o jornalista é a figura mais importante, dotada
de papéis que refletem um contrato de informação midiático entre empresa e público.
Contrato este que não está registrado em lugar algum, mas que se faz entender no dia a dia
dos processos comunicacionais. Não é necessário um documento que firme esse contrato,
mas tanto imprensa quanto público reconhecem tal acordo.
Esse discurso ideológico da mídia, que ajuda a construir uma realidade permeada de
interesses por vezes escusos, se afasta cada vez mais de um papel realmente social e
preocupado com os princípios do direito humano à comunicação, indo justamente de
encontro ao discurso tão propagado por ela.
Para Guareschi (2014, p.156) o chamado tripé da dignidade humana está balizado em
consciência, liberdade e responsabilidade. E a mídia pode ser entendida aqui como uma
instituição que tem o dever de estar em consonância com esse tripé, ratificando esses
princípios. Só que essa responsabilidade é completamente diferente da que é praticada por
várias agências ideológicas da sociedade, como escola, igrejas, família e, claro, a mídia. Nas

186
sociedades modernas, essa responsabilidade costuma vir de estímulos como castigo e
coerção, balizados em normais e leis instituídas pelos poderes executivo, legislativo e
judiciário.

3. A guerra contra as fake news: o aparato da Rede Globo


Mesmo antes do projeto Fato ou Fake, a Rede Globo, em sua emissora de TV, já
contava com um embrião de checagem de notícias muito compartilhadas. O quadro Detetive
Virtual, do programa dominical Fantástico, começou a fazer esse trabalho, porém restrito a
imagens que poderiam ter passado por algum tipo de manipulação. A cada semana, um vídeo,
escolhido dentre os enviados pelos telespectadores, é apresentado. No intervalo comercial, os
telespectadores são estimulados a participar de uma votação para opinar sobre tal vídeo,
dizendo se acha ser verdade ou não, se o conteúdo apresentado teria passado por alguma
maquiagem para esconder detalhes imperceptíveis a uma observação mais descuidada.
Alguns momentos específicos das imagens, inclusive, são mostrados mais de uma vez para
que o olhar atento do telespectador possa perceber algum tipo de manipulação e também
participar da investigação, mesmo que do sofá de casa.
O papel do Detetive Virtual é ir em busca da verdade – desvendar se as imagens são
verdadeiras ou foram distorcidas para construir outro sentido. Para isso, conta com a análise
de especialistas das mais diversas áreas do conhecimento científico, que vão tentar provar
algum ponto específico do vídeo que ateste a sua veracidade ou não.
A preocupação em combater as notícias falsas tomou grande proporção na imprensa
brasileira, incluindo-se aí a Rede Globo, nos últimos meses, principalmente com a
aproximação de mais um pleito eleitoral para eleger o mais importante representante do poder
executivo, no qual se passou a ter dimensão de como as campanhas tomariam conta
principalmente do Facebook e do WhatsApp.
Maior empresa de comunicação do país, a Rede Globo foi pioneira em lançar um
projeto para checagem de informações suspeitas que circulam nas redes sociais, divulgando o
que é verdadeiro ou falso e tirando dúvidas dos seus telespectadores (no caso da TV) e
internautas (no caso do portal G1). Os assuntos são os mais diversos: saúde, educação,
política, segurança pública, entretenimento, etc. O projeto, lançado no fim de julho de 2018,
integra 70 jornalistas de todo o grupo Globo (G1, Globo, Globo News, Extra, O Globo,

187
Valor, Época e Rádio CBN) também na checagem de discursos políticos e declarações de
candidatos em debates até de outras emissoras 4.
O aparato da Rede Globo é composto por uma bancada reforçada, que passa uma
imagem determinada em manter seus telespectadores, ouvintes, leitores e internautas
informados sobre o que de fato aconteceu em relação a um assunto específico. Dentro da
seção, há inclusive um Banco de Boatos, com as mensagens que viralizaram nas redes
sociais. Tais mensagens são checadas e confirmadas ou desmentidas. E passam a compor esse
banco que pode ser acessado por qualquer pessoa, a qualquer momento, contando também
com um campo de busca, onde o internauta pode pesquisar algum tema específico.
Outra ferramenta de destaque que compõe o projeto é a criação de uma espécie de
grupo no aplicativo WhatsApp, no qual qualquer pessoa pode mandar uma mensagem para
ser inscrita e, a partir daí, receber conteúdo produzido pelos jornalistas do Fato ou Fake por
meio de links com as checagens realizadas. Também há um "bot" (robô), no Facebook e no
Twitter, que responde o que é falso ou verdadeiro se o assunto já tiver sido checado pela
bancada.
A metodologia passa por uma checagem diária de notícias muito compartilhadas e que
pareçam duvidosas. Os jornalistas trocam mensagens entre si e se dividem na apuração do
que precisa ser conferido. As fontes envolvidas são procuradas para que se posicionem e há
ainda a consulta a testemunhas e especialistas que possam ajudar a esclarecer os fatos – seja
porque presenciaram algum fato ou porque têm domínio reconhecido sobre determinado tema
de acordo com sua profissão ou cargo exercido.
Na página do Fato ou Fake, na internet, em matéria publicada no dia 30 de julho de
2018, a Rede Globo, por meio do portal de notícias G1, expõe o que é a seção recém-criada.
O uso de palavras como “esclarecer” e “alertar” e de expressões a exemplo de “impedir a
difusão de rumores”, “para conferir pra você”, “a gente confere”, “a gente informa” e “se não
confere não é jornalismo” corroboram esse empenho em demonstrar a autoridade para dizer
que um fato é ou não verdade. A empresa confere um selo, uma chancela, que a coloca numa
posição privilegiada de detentora do conhecimento, além de responsável pelo esclarecimento
dos discursos que circulam na sociedade.

4
Para mais detalhes sobre o projeto “Fato ou Fake?”: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/07/30/g1-
lanca-fato-ou-fake-novo-servico-de-checagem-de-conteudos-suspeitos.ghtml. Acesso em: 20 ago. 2018.

188
Em muitas edições dos jornais da Globo News, TV fechada do Grupo Globo, foram
apresentadas algumas das mais polêmicas informações que ganharam as redes sociais,
apontando o carimbo do Fato ou Fake, como o caso da suposta distribuição do chamado Kit
Gay (apelido do projeto “Escola sem homofobia”) a crianças de seis anos pelo candidato do
Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência, Fernando Haddad. Para se ter ideia, a
reportagem foi construída ouvindo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que à época havia
notificado o candidato Jair Bolsonaro (PSL) para que retirasse vídeos da internet, o
Ministério da Educação (MEC) e uma editora responsável pela tiragem do livro alvo da
polêmica, que nunca foi distribuído em escolas públicas, como circulava nas redes sociais.
Esse foi um dos assuntos que dominaram a campanha eleitoral e a maior empresa de
comunicação do país não poderia deixar passar essa oportunidade para massificar a
importância da sociedade discutir e compartilhar o conteúdo produzido pela emissora no Fato
ou Fake. Além disso, reforçar ainda o trabalho de apuração focado em “ouvir todos os lados”,
numa clara demonstração de acesso irrestrito às fontes.
Essa é visivelmente uma aplicação da Teoria da Agenda, nos moldes explicados por
McCombs (2009), quando a mídia assume um papel de determinar os assuntos que ganham
notoriedade da opinião pública (e desencadeiam a ação) e como há um modelamento dessa
opinião pública. Nunca antes se ouviu tanto falar em fake news como nos últimos meses. A
realidade das notícias falsas invadiu as discussões na sociedade brasileira, seja em casa, no
trabalho, na escola ou em qualquer outro ambiente de convívio social. Era necessário apontar
o que o público precisava saber acerca desse tema. E os principais veículos de comunicação
brasileiros embarcaram nessa empreitada.
As sabatinas com os candidatos à presidência também foram alvo de investigação,
para que os leitores e telespectadores tivessem conhecimento sobre se o que os entrevistados
disseram era ou não verdade. Há ainda várias matérias publicadas no intuito de ensinar a
população a identificar uma fake news. A espécie de manual com dicas práticas aborda um
passo a passo de ações a serem executadas como: não ler apenas o título da reportagem,
desconfiar de textos alarmistas e com informações vagas, não compartilhar se não tiver
certeza da veracidade do conteúdo, conferir a data da publicação e, o mais importante,
conferir a publicação num veículo profissional de imprensa. Esse é o ponto crucial na
intenção de produzir o efeito de sentido primordial: fazer com que a população entenda que

189
só um veículo profissional de imprensa pode apontar o que é credível, verdadeiro e
inquestionável.

4. Considerações
Através do caminho teórico traçado, é possível perceber a narrativa criada pela Rede
Globo no combate às fake news. Em dois meses do projeto Fato ou Fake, até o dia 8 de
outubro de 2018, o conglomerado divulgou durante reportagem que foram 114 boatos
desmentidos em redes sociais e 653 declarações de políticos checadas 5. Considerando apenas
as frases ditas por candidatos à presidência ou à vice-presidência, 220 eram verdadeiras, 97
eram falsas e 145 foram classificadas como “Não é bem assim”, quando o fato divulgado
tinha alguma informação imprecisa, mas não era completamente taxado como falso.
A própria divulgação desses números confirma o que seria a importância de um
serviço como esse, na visão empresarial. Sem esse trabalho do grupo, como a população
saberia o que de fato aconteceu? É nisso em que esse discurso de poder está apoiado. A Rede
Globo se auto-insere num grupo de praticantes de um jornalismo ético. Afinal de contas, ao
apresentar quais notícias são fake news, o grupo se exclui completamente de uma posição de
quem divulga esse tipo de notícia e se afasta cada vez mais desse lugar de obscuridade das
redes sociais. A posição passa a estar um patamar acima, no degrau de “revelador da
verdade” - é um juiz que observa e confere um status ao conteúdo a partir de suas próprias
narrativas e construções jornalísticas de critérios de noticiabilidade, enquadramentos e
operacionalização da apuração.
A Rede Globo, aqui utilizada como objeto de estudo, assim como outros grandes
conglomerados de comunicação que possuem projetos neste sentido, de trazer à luz a
“verdade jornalística”, a exemplo do grupo Folha de S. Paulo, não tem encontrado meios para
diminuir a força das redes sociais. A busca por informação em grupos na internet parece ser
um caminho sem volta em nossa sociedade cada dia mais conectada. E essa busca, a nosso
ver, está assentada em lugares de poder, lugares de verdade fora da mídia tradicional – em
muitos casos ligados a instituições como família e Igreja. Em função disso, a Rede Globo tem
buscado estratégias para retomar e ratificar uma imagem de credibilidade. E uma forma

5
Balanço do projeto foi publicado em reportagem do telejornal Bom dia Brasil:
https://globoplay.globo.com/v/7072356/. Acesso em: 10 out. 2018.

190
“legítima” dessa retomada seria justamente apontar o que é verdade ou não nos discursos que
circulam na sociedade.
Neste ponto, faz-se necessária uma importante reflexão a respeito do papel da
imprensa brasileira:
[...] a comunicação é fundamentalmente educação; [...] o comunicador, o jornalista,
possui um papel crucial e estratégico, absolutamente indispensável, se estivermos
decididos, de fato, a progredir na busca da materialização do Direito Humano à
Comunicação através da construção de uma comunicação verdadeiramente
democrática, participativa, humanizadora. (GUARESCHI, 2013, p. 143).

Ao se colocar no papel de instituição que revela a verdade sobre os fatos, é notória a


tentativa de reocupar espaços perdidos pelas verdades que circulam nas redes sociais. Mas
essa perda de espaço também é justamente uma reposta da sociedade para a falta de um
ambiente democrático dentro da própria mídia. Enquanto os grandes veículos de
comunicação do Brasil, os chamados de referência, não cumprirem, de fato, com seu papel
democrático e humanizador, e enquanto continuarem a reverberar as mesmas práticas de
produção de informação, outros espaços passarão a ganhar força.
O grande perigo é que esses outros lugares de fala também não se concretizam como
democráticos. Primeiro porque há de se questionar quem são os produtores desse novo tipo
de conteúdo. É visível que a produção continua concentrada, enquanto a maioria da
população apenas replica o que é divulgado. Segundo porque, em muitos casos,
principalmente como percebido no pleito eleitoral para presidente do Brasil em 2018, essas
brechas por onde circulam informações paralelas têm sido responsáveis por uma onda de
desinformação generalizada.
Não obstante, o tabu ético que envolve o trabalho do jornalista faz com que as
empresas não externem essa busca pela retomada da credibilidade. Afinal, é como se essa
credibilidade nunca tivesse sido posta em dúvida. Os princípios deontológicos do Jornalismo
continuam sendo a bandeira dos veículos de comunicação. É por meio da afirmação de um
caráter ético que a Rede Globo tem pautado a importância de um jornalismo que busca levar
ao seu público o que é verdade, esclarecendo o que é fato ou fake, já que:
[...] é impossível existir um fenômeno que não tenha sua dimensão ética. Todas
as ações humanas, todas as relações que estabelecemos, todos os fenômenos que
são frutos de ações e relações contêm e carregam, implicitamente, uma dimensão
ética, de valor. (GUARESCHI, 2004, p. 111).

191
Neste sentido, ponderamos que o discurso da empresa passa muito mais por uma
questão de preservação da democracia, completamente desvinculado do aspecto
mercadológico e da manutenção da audiência. Vê-se nas fake news um prejuízo para a
tomada de decisões no país. Propomos, assim, uma reflexão no sentido inverso: que esse
aparato montado parte de uma questão de afirmação mercadológica e de demarcação de
território, escondido sob um véu da imparcialidade. Na geografia da comunicação brasileira,
o espaço dos grandes veículos de comunicação sempre foi o hegemônico, mesmo que
acobertado por um discurso de preservação da ética, da responsabilidade social e da isenção.

Referências:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989. 311 p.

CASTELLS, Manuel. O Poder da Comunicação. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra,


2015.

CHARAUDEAU, Patrick. O discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2013. 285 p.

CHAUÍ, Marilena. ROCHA, André (Org). A ideologia da competência. Belo Horizonte:


Autêntica Editora. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014.

______. O que é ideologia. 2ed. São Paulo: Brasiliense, 2008. P. 102-118.

EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: UNESP/ BOITEMPO. p. 10-40.

FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2016. 126 p.

GUARESCHI, Pedrinho. O direito humano à Comunicação: pela democratização da


mídia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2013.

______. Os construtores da informação: meios de comunicação, ideologia e ética.


Petrópolis: Vozes, 2000. p. 37-68.

______. Psicologia social crítica: como prática de libertação. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004. p. 111-139.

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora


UFMG, 2003. P. 265- 293.

MCCOMBS, Maxwell. A Teoria da Agenda: a mídia e a opinião pública. Petrópolis: Vozes,


2009. 240 p.

192
MÉSZAROS, I. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.

PEUCER, Tobias. Os Relatos Jornalísticos. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis,


v. 1, n. 2, p. 13-30, jan. 2004. ISSN 1984-6924. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view/2070/1812>. Acesso em: 10
ago. 2018.

SANTOS, Jéssica; SPINELLI, Egle. Pós-verdade, fake news e fact-checking: impactos e


oportunidades para o jornalismo. In: Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, 15.,
2017, São Paulo. Anais... São Paulo: ECA/USP, 2017. p. 1-18.

THOMPSON, J. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 41-99.

193
IMAGEM E DISCURSO: ESTUDO SEMIÓTICO DOS
CANDIDATOS À PRESIDÊNCIA DO BRASIL EM 2018

IMAGE AND DISCOURSE: SEMIOTIC STUDY OF THE


CANDIDATES FOR THE PRESIDENCY OF BRAZIL IN 2018
Taís de Souza Alves Coutinho 1

Resumo: A proposta do artigo é estudar, à luz da semiótica de Charles Sanders


Peirce e do diálogo de teóricos brasileiros como Lúcia Santaella, como se dá a
construção da imagem e do discurso de três dos candidatos à presidência da
República no Brasil em 2018: Jair Bolsonaro, Marina Silva e Ciro Gomes. Com
base nos conceitos fenomenológicos de primeiridade, secundidade e terceiridade, a
ideia é apresentar de que forma há a re(significação) do homem público criado ou
apresentado à mídia e seu comportamento na busca pelo voto. É importante
destacar, para isso, não só a imagem e os signos que a representam, mas quais os
signos culturais utilizados no contexto para identificá-los como pessoas públicas no
processo de elaboração do discurso dos que postulam o cargo. O corpus de análise
é o primeiro debate transmitido entre os candidatos, exibido pelo canal de televisão
Band, no dia 9 de agosto deste ano.

Palavras-Chave: Estudo semiótico. Imagem. Discurso. Candidatos 2018.

1. Imagem e discurso

Uma das ferramentas que mais domina a comunicação na contemporaneidade é a


imagem. “Somos consumidores dela; daí a necessidade de entendermos como a imagem
comunica e transmite as suas mensagens” (JOLY, 1994, p.1).
Tentar entender como a imagem comunica e transmite mensagens é um dos desafios da
sociedade atual. Martine Joly utiliza os termos utilização, decifração e interpretação. “A
tarefa do analista é precisamente a decifração das significações que a aparente naturalidade
das mensagens visuais implica” (JOLY, 1994, p. 47).
A proposta do artigo é justamente verificar a construção da imagem e do discurso de
três candidatos à presidência do Brasil, nas eleições 2018, durante o primeiro turno, sendo

1
Professora: Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG Ubá), mestre, tais.alves@uemg.br.

194
eles Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), Ciro Gomes, do Partido Democrático
Trabalhista (PDT) e Marina Silva da Rede Sustentabilidade (REDE).
Sob a luz da semiótica americana, com base nos estudos de Charles Sanders Peirce
sobre a relação triádica entre os signos e suas representações é possível traçar um panorama
dos candidatos e como se transformam em verdadeiros “personagens”, a partir da imagem e
discurso, ressaltada pela mídia e os reflexos na relação com o eleitor. A teoria da imagem e
alguns aspectos do discurso aparecem como fundamentais nessa construção. Como esse
percurso pode auxiliar o candidato e sua assessoria na busca pelo voto. As representações
culturais de cada postulante e as ideologias incluídas nas propostas surgem como um pano de
fundo para a análise do processo de semiose.
O corpus escolhido foi o primeiro debate entre os candidatos promovido pelo canal de
televisão aberto BAND, em parceria com o Google e o Youtube, no dia 9 de agosto de 2018.
Oito candidatos participaram do evento sendo eles: Alvaro Dias (Podemos), Cabo
Daciollo(Patriota), Geraldo Alckimin, Marina Silva (Rede), Henrique Meirelles (MDB), Jair
Bolsonaro (PSL), Guilherme Boulos (Psol), Ciro Gomes (PDT). Nesse período, o ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda era considerado candidato. Segundo a
emissora, Lula foi convidado a participar do debate, porém, foi impedido pela Justiça, por se
encontrar preso na cidade de Curitiba, no Paraná, por acusações de envolvimento em
corrupção. A escolha se justifica, dentre outros fatores, porque o debate foi o único com a
participação do então candidato, Jair Bolsonaro.

2. A construção do candidato: a semiótica como processo de ressignificação

“Abordar ou estudar certos fenômenos sob o seu aspecto semiótico é considerar o seu
modo de produção de sentido, por outras palavras, a maneira como eles suscitam
significados, ou seja, interpretações” (JOLY, 2007, p.30). A proposta de se utilizar a
semiótica como aporte teórico para a análise dos candidatos vem justamente da possiblidade
de interpretação das mensagens construídas pela imagem e discurso das campanhas e dos
candidatos ao cargo de presidente(a) do Brasil.

195
É interessante perceber como o conceito de signo de Charles Sanders Peirce,
corroborado por Lúcia Santaella se encaixa nesse contexto, no sentido de que cada candidato
cria sua campanha com base em representações que podem até sofrer alterações de acordo
com a audiência (eleitor). “O mundo inteiro está permeado de signos, se é que ele não se
componha exclusivamente de signos” (CP, 5448, apud Santaella, p. 62).
Peirce, em suas afirmações sobre signo ressalta:
O ponto de partida da teoria dos signos é o axioma de que as cognições, as ideias e
até o homem são essencialmente entidades semióticas. Como um signo, uma ideia
também se refere a outras ideias e objetos do mundo. Assim, tudo sobre o que
refletimos tem um passado (PEIRCE, apud Santaella, p. 62).

Essas cognições e/ou ideias que temos de pessoas e do que está a nossa volta são
construídas por meio de signos. Assim, cada um dos candidatos à presidência também
trabalhou com uma serie de representações de seus pensamentos, expressões, ideologias e, até
mesmo no seu modo de agir ou se comportar diante da mídia e, consequentemente, do
eleitorado.
Para Peirce, há três elementos formais e universais que se apresentam à percepção e à
mente: primeiridade, secundidade e terceiridade. A primeiridade se refere ao acaso, à
possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade. Já a secundidade representa a
ideia de dependência, dualidade, ação e reação, conflito, dúvida. E a terceira etapa seria a
postura de generalidade, de representação (SANTAELLA, 2008, p. 7). Assim, qualquer coisa
que esteja presente à mente tem a natureza de um signo.
É importante salientar a existência das classificações a que o signo está sujeito: quanto
a ele mesmo, quanto ao objeto e quanto ao interpretante.

TABELA 1
Classificação da tricotomia de Peirce
Signo em si mesmo Signo com seu objeto Signo com seu interpretante
Quali-signo Ícone Rema
Sin-signo Índice Dicente
Legi-signo símbolo Argumento
FONTE – SANTAELLA, 2000, p. 62.

196
Na análise quanto ao interpretante é preciso levar em conta as questão emocional, a
energética e a lógica. Assim “a semiose acontece como um processo ininterrupto
infinitamente em direção ao objeto dinâmico e progride infinitamente para o interpretante
final” (SANTAELLA, 2008, p. 42).
O estudo semiótico de análise requer o entendimento do diálogo entre os signos, no
qual o próprio interpretante é um signo que responde a outros signos. O responsável pela
análise está na posição do interpretante dinâmico ou intérprete singular (p. 42). E o
interpretante final seria justamente o resultado interpretativo a que todo intérprete estaria
destinado a chegar se os interpretantes dinâmicos fossem levados até seu limite último (p.
26).
O estudo foi realizado conforme a mensagem em si mesma, ao objeto e à
interpretação das mensagens. “A semiótica nos habilita a compreender o potencial
comunicativo de todos os tipos de mensagens, nos variados efeitos que estão aptos a produzir
no receptor. Esses efeitos vão desde o nível emocional, sensório até os níveis metafóricos e
simbólicos” (SANTAELLA, 2008, p. 59).

2.1 Jair Messias Bolsonaro

Jair Messias Bolsonaro, 63 anos, capitão da reserva do Exército. Em 2018, Bolsonaro


filiou-se ao Partido Social Liberal (PSL) e lançou-se candidato à Presidência da República.
Desde os primeiros dias sua campanha se concentrou nas redes sociais. No dia do debate, o
candidato apresentava 17% da preferência dos eleitores na pesquisa.
O presidenciável apresentou um discurso conservador, enfatizando a imagem de
homem religioso, chefe de família e guardião dos bons costumes: “sou uma pessoa humilde
como outra qualquer e me orgulho da minha honestidade” (2018). Bolsonaro optou por não
criar conflito com outro candidato no debate. Reafirmou seus propósitos como a
representação do candidato de extrema direita. Apostou em signos que representam a vontade
do brasileiro e a representação de uma possível salvação para a realidade atual: “respeito à
Constituição, à democracia e à liberdade”.

197
FIGURA 1

FONTE: divulgação do candidato

2.2 Marina Silva


Maria Osmarina Marina Silva de Lima é historiadora, professora, psicopedagoga,
ambientalista. Foi vereadora, deputada estadual pelo Acre, Senadora, Ministra do Meio
Ambiente e candidata à presidência pela terceira vez.
No debate também optou por ressaltar problemas graves brasileiros como o
desemprego, a criminalidade, a violência. Relembrou a necessidade de o Brasil recuperar a
sua credibilidade com outros países. Ressaltou sua imagem de mulher humilde. “Sei o que é
não ter emprego, sei o que é ser mulher, jovem que teve dificuldade para alimentar a sua
família” (2018). Signos que aparecem com a representação da mulher brasileira na imagem
de Marina Silva: pobre, lutadora e defensora de um projeto de sustentabilidade com
responsabilidade social.

198
FIGURA 2

FONTE: divulgação do debate

2.3 Ciro Gomes

Ciro Ferreira Gomes nasceu em Pindamonhangaba, São Paulo, em 1957 e fez sua
carreira política no Ceará. Formou-se em Direito na Universidade Federal do Ceará e cursou
economia em Harvard, nos Estados Unidos. Foi prefeito, deputado estadual, deputado
federal, governador, duas vezes ministro e candidato à Presidência da República.
Durante o debate, iniciou seu discurso destacando como promessa a redução do
desemprego no Brasil. “Vou aumentar em dois milhões o número de empregos no país em
meu primeiro ano de governo e limpar o nome de 63 milhos de pessoas com nome sujo no
Serviço de Proteção ao Crédito (SPC)” (2018). Em sua fala enfatizou a necessidade de se
consertar as contas públicas, retomar as obras paradas e se disse contra a Reforma
Trabalhista. Ciro foi considerado como uma alternativa de representação da esquerda nas
eleições de 2018.

199
FIGURA 3

FONTE: divulgação do debate

A tabela a seguir mostra os candidatos e a utilização de signos que a sociedade


brasileira reconhece e os interpreta como sendo algo necessário a um político. É fácil
perceber a tentativa de buscar símbolos com os quais a população tem identificação e julga
como favoráveis aos postulantes à presidência da República.

TABELA 2
Representações por meio de signos
Candidatos Jair Bolsonaro Marina Silva Ciro Gomes

Símbolos ou Capitão/militar Defensora do meio Opção de


representações Militar ambiente representante da
Símbolo da internet Mulher esquerda
Origem humilde Experiente

FONTE: da autora

200
3. Considerações finais

Com esse artigo pretendeu-se demonstrar como discurso e imagem são construídos e
ressignificados por meio de signos. O objetivo do analista é precisamente decifrar aas
significações que a aparente naturalidade das mensagens visuais implica. Dessa forma, é
possível concluir que os candidatos à presidência da República escolhidos como corpus deste
trabalho utilizaram signos para criar uma representação de suas propostas.
Utilizaram-se conceitos como primeiridade, secundidade e terceiridade para que
fossem apresentadas algumas reflexões sobre o contexto semiótico como suporte para um
estudo sobre os fenômenos que possibilitam ao emissor da mensagem chegar ao interpretante
final. Assim é possível juntar vários signos já conhecidos da sociedade em um contexto que
se pretende criar. Com o apoio da mídia, isso se torna possível. Há a junção de várias
representações para a construção da sua imagem de candidato/personagem do processo
eleitoral.
A ideia é proporcionar ao leitor uma pequena reflexão sobre as possibilidades de
contribuição da comunicação e semiótica para a promoção de discussões críticas sobre o
processo de construção da imagem e do discurso.

201
4. Referências
DEBATE NA BAND, 2018. Disponível em: <https://bandnewstv.band.uol.com.br/videos/16489071/primeiro-
debate-para-presidente-na-band-e-bandnews. Acesso em 11 de agosto 2018.

ECO, Umberto. Tratado geral da semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2007.


JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Lisboa, Ed. 70, 2007
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2000.
______, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Cengage
Learning, 2008.
_______, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2008.

202
Lula por Lula -
Uma análise Semiótica do discurso de Lula antes de sua
prisão
Natália Silva Giarola de Resende 1

Resumo: Neste trabalho, temos como objetivo examinar se o ex-presidente Luiz


Inácio Lula da Silva construiu o ethos de credibilidade, o ethos de virtude e o ethos
de competência (CHARAUDEAU, 2006), durante seu discurso proferido no dia 07
de abril de 2018, em frente ao Sindicado dos Metalúrgicos do ABC, em São
Bernardo do Campo, São Paulo. O mesmo foi realizado antes de o ex-presidente se
entregar à Polícia Federal. Para essa discussão, tomaremos como arcabouços
teóricos-metodológicos a Semiótica Discursiva, desenvolvida por Greimas, no que
concerne o percurso gerativo de sentido. A partir da articulação entre os
fundamentos teóricos - entre eles a semiótica tensiva e o ethos político - e as
reflexões resultadas da análise da semiótica, verificamos a manutenção dos ethé
propostos.
Palavras-Chave: Discurso Político. Acontecimento. Ethos. Semiótica.

Introdução
O discurso político vem sendo largamente estudado, desde Platão até pesquisadores
do discurso do século XXI, interligando áreas como Ciências Políticas, Comunicação e
Linguística. Nesse sentido, o analista do discurso Patrick Charaudeau (2009, p. 56) trata o
discurso político intrinsecamente ligado ao poder. “A instância política encontra-se no lugar
em que os atores têm o poder de fazer – isto é, de decisão e de ação – e um “poder fazer
pensar – isto é, de manipulação. É o lugar da governança”.
O sujeito político, portanto, cria uma imagem de si (ethos) de um ser que passa
credibilidade, confiança e virtude, construindo uma imagem de poder e saber fazer. Sendo
assim, o objetivo deste trabalho é examinar se Lula construiu os ethé de credibilidade, virtude
e competência (CHARAUDEAU, 2006). Para essa discussão, tomaremos como corpus seu
discurso proferido no dia 07 de abril de 2018, em frente ao Sindicado dos Metalúrgicos do
ABC, em São Bernardo do Campo, São Paulo, no que se refere a parte sobre a condenação e
as ações realizadas pelo ex-presidente Lula em seu mandado.
O discurso que constitui esse corpus foi realizado antes do ex-presidente se entregar
à Polícia Federal. Nos perguntamos, portanto, se Lula constrói um ethos positivo sobre sua
1
Doutoranda em Estudos Linguísticos pela UFMG, com interesse pela área de Semiótica e Análise do Discurso.
Mestre em Discurso e Representação Social (UFSJ - 2017) e graduação em Comunicação Social - Jornalismo
pela Universidade Federal de São João Del-Rei (2013).

203
imagem, mesmo tendo sido condenado em segundo instância por corrupção e lavagem de
dinheiro no o caso do triplex em Guarujá (SP).
Para desenvolver este estudo, foi utilizado como recurso teórico-metodológico a
Semiótica Discursiva, a partir dos trabalhos de Greimas e Courtés (1979) Diana Barros
(1994, 2002), Lara e Mate (2009) e Fontanille (2015), correlacionado com a noção ethos
político desenvolvida por Charaudeau (2006) e a noção de acontecimento prevista por
Zilberberg (2001).
Na primeira parte do trabalho, foram discutidas as questões do acontecimento da
prisão do Lula, por meio da semiótica tensiva. Em um segundo momento, apresentamos os
ethé políticos proposto por Charaudeau (2006) e, por fim, a análise semiótica por meio
percurso gerativo de sentido, em que o texto é um objeto material analisável em três níveis
autônomos: (1) as estruturas fundamentais; (02) as estruturas narrativas e (03) estruturas as
discursivas.
1. A PRISÃO DE LULA ENQUANTO ACONTECIMENTO
Começamos este artigo considerando a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva como um acontecimento, previsto na Semiótica Tensiva. No entanto, antes de
adentrarmos a tensividade proposta por Claude Zilberberg, faz-se necessário uma breve
contextualização 2 sobre os motivos da prisão do ex-presidente.
Segundo matéria publicada pela jornalista Natália Oliveira no site do jornal O
Tempo, no dia 06 de abril de 2017, o processo que resultou na prisão do ex-presidente Lula
teve início em 2014, com a denúncia de lavagem de dinheiro envolvendo um tríplex
localizado em Guarujá (São Paulo), ligando o caso ao esquema de corrupção na Petrobras 3.
Conforme publicação do site Jornal Nacional, em 07 de março de 2017, o caso foi levado ao
juiz Sérgio Moro, responsável pelas investigações da Lava Jato 4 em Curitiba.

2
De acordo com Lara e Matte (2009, p.340), a semiótica toma o texto como objeto de significação, procurando
descrever o que o texto diz e como diz, examinando, em primeiro lugar, o plano de conteúdo. Nesse sentido, o
contexto é visto, pela semiótica, como outros textos nos quais o texto dialoga. Desse modo, a prisão de Lula será
descrita, neste trabalho, com base em textos publicados pelos jornais O Tempo e a Folha de São Paulo e pelo
site do Jornal Nacional, da Rede Globo. A escolha dos mesmos ocorreu por relevância de pesquisa no site
Google.
3
Segundo publicação realizada pela UOL (2015), o escândalo da Petrobras foi descoberto na operação Lava
Jato, conduzida pela Polícia Federal (PF), em março de 2014. O objetivo era apurar suposto esquema de desvio
e lavagem de dinheiro envolvendo diretores da estatal, grandes empreiteiras e políticos.
4
De acordo com publicação da Folha de São Paulo (2017), a “Operação Lava Jato é a maior investigação sobre
corrupção conduzida até hoje no Brasil”, tendo início em 17 de março de 2014.

204
Em julho de 2017, o ex-presidente foi condenado a nove anos e meio de prisão por
corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Ele recorreu à sentença em liberdade. Em janeiro
de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a sentença, em segunda instância,
com um aumento da pena para 12 anos. Em março, do mesmo ano, o Tribunal Regional
Federal (TRF-4) rejeitou o recurso contra a condenação e a prisão de nove anos e seis de Lula
foi decretada, pelo juiz Sérgio Moro, no dia cinco de abril de 2018. De acordo com o site da
Folha de São Paulo, “Lula é o primeiro presidente da história do Brasil a ser preço por
condenação penal. Em 1980, então líder sindical, ele foi preso por motivos políticos, sob
acusação de ‘incitação à desordem’, no período final da ditadura militar” (FOLHA, 2017).
Feita as considerações sobre o entorno da prisão do ex-presidente Lula, observamos
alguns fatos que nos permitem identificar uma instância semiótica que elucida a lógica do
fato em análise, a concessão. Essa encontra-se no que a semiótica contemporânea intitulou de
“gramática tensiva”. Para compreendê-la, é necessário realizar uma breve descrição teórica
da Semiótica Tensiva. Segundo seu precursor, o semioticista francês Claude Zilberberg, o
espaço tensivo é compreendido como o eixo semântico que articula intensidade e
extensidade, propiciando a análise de qualquer grandeza semiótica.
Para Zilberberg (2006, p.170) a intensidade une o andamento e a tonicidade, já a
extensidade, a temporalidade e a espacialidade. A intensidade está ligada à noção de força,
energia; ela faz sentir os efeitos passionais. Por outro lado, a extensidade é controlada pela
intensidade.
O espaço tensivo, responsável por receber e qualificar as grandezas do campo de
presença, surge da ligação entre o eixo da intensidade (sensível) e o eixo da extensidade
(inteligível). Vale destacar que um fato semiótico só tem existência no e pelo espaço tensivo,
que possuirá, por sua vez, uma valência nos dois eixos previstos no diagrama.
Visto alguns conceitos da Semiótica Tensiva, embrenhamos no nosso foco: a noção
de acontecimento. Para Zilberberg (2011) “o acontecimento é uma valência intensiva
complexa e compõe um andamento extremo, o da instantaneidade, e uma tonicidade superior,
sempre difícil de formular” (ZILBERBERG, 2011, p.174). O acontecimento está ligado,
portanto, ao surpreendente, ao inesperado e é controlado pela lógica concessiva (ainda que...
mesmo que), opondo-se, ao regime da implicação (se... então), que embasa toda a Semiótica
Clássica (MENDES, 2017).

205
Segundo Bertrand (2013, p.15), “é por meio da concessão que o acontecimento
surge e rompe com o sistema de esperas estabilizadas”. Nesse caso, não se espera que um
presidente da república seja preso. Logo, Lula figura-se como o primeiro, como mostra o
excerto da Folha de São Paulo (2017)
Excerto 01 (Folha de São Paulo):
Lula é o primeiro presidente da história do Brasil a ser preso por condenação penal.

Vemos um fato semiótico que adentra o campo de presença dos brasileiros com uma
intensidade elevada, com as investigações contra o ex-presidente. Essas denúncias vão
ganhando uma progressão e ampliação até atingir o nível de saturação com a prisão de Lula,
como podemos notar no gráfico abaixo:

FIGURA 01: GRÁFICO ACONTECIMENTO SEMIÓTICO.


FONTE: ELABORADO PELA AUTORA

Por conseguinte, correlato ao acontecimento zilberberguiano, teríamos um gráfico


com curva descendente, com uma duração longa e persistente, com a saturação sendo o ponto
máximo da intensidade. A midiatização do fato ajuda a colaborar para que a ordem do
acontecimento ocorra, divulgando o inesperado da novidade, no caso, a condenação de um
ex-presidente. Ela também contribui para que o fato semiótico se mantenha intenso, pois a
mídia promove um deslocamento temporal.
Por outro lado, a mídia também utiliza da instância da implicação, em que “se” o
presidente é corrupto, “então” deve-se prendê-lo, com base no julgamento dos juízes. O
mesmo equivale para os políticos e apoiadores da decisão. Já no excerto abaixo, encontramos
uma nova concessão
Excerto 02 (Brasil 247):
Um levantamento com diversos juristas brasileiros sobre o julgamento do recurso do ex-
presidente Lula no TRF4 em Porto Alegre, contra a sentença do juiz Sérgio Moro sobre o
triplex do Guarujá, indica que há uma posição comum: não há provas para confirmar a
condenação de 9 anos e meio de prisão; no geral, criminalistas, professores, advogados
destacam que há falhas na sentença de Moro.

206
Se tomarmos a perspectiva dos que defende a liberdade do ex-presidente, como no
excerto 02, entramos em uma nova concessão. “Ainda que” não há provas, Lula está preso.
Portanto, a concessão transgride de um “então”: Se Lula é corrupto, então deve ser preso,
tornando-se, uma concessão - “ainda que não haja provas, ele está preso”.
2. O ETHOS NO DISCURSO POLÍTICO
Após entendermos a prisão do ex-presidente Lula por meio do acontecimento
semiótico, iremos agora trabalhar com a questão do ethos político proposto pelo francês
Patrick Charaudeau, em seu livro Discurso Político. Conforme explica o autor, foi Aristóteles
que introduziu a noção de ethos em sua obra sobre a Retórica. Segundo ele, existe, em todo
discurso, uma força implícita de persuasão. O filósofo grego explica que para convencer um
auditório, o orador utiliza algumas técnicas para a manutenção de seu discurso persuasivo,
entre eles encontra-se o ethos, que representa à imagem de si próprio. Outras ações utilizadas
são o logos e o pathos, em que o primeiro tem como função convencer, utilizando a razão, e o
segundo produz uma emoção no auditório, levando-o a agir.
Charaudeau (2006) define ethos como a imagem que o enunciador projeta, de si
mesmo, durante o processo de enunciação. Além disso, ele proporciona a construção, por
meio do discurso, de uma personalidade do enunciador pelo enunciatário. Para Charaudeau
(2006, p. 253), o ethos é construído por meio da interação verbal, uma vez que todo ato de
linguagem tem como princípio um sujeito que precisa de outro para existir, tendo, para autor,
a língua como principal meio de poder e de persuasão.
Isto posto, um dos principais pressupostos que moldam o discurso político são os
ethé de credibilidade e identificação. Nesse trabalho, iremos abordar apenas o ethos de
credibilidade e dois dos seus desdobramentos, os ethé de virtude e competência. A
credibilidade, segundo Charaudeau (op.cit.) é o resultado de uma construção identitária
discursiva, em que o sujeito de fala construí uma imagem na qual os outros o julguem como
digno de crédito.
No discurso político, a credibilidade é um item primordial, já que possibilita o
político a tentar persuadir os eleitores que o mesmo possui um certo poder. Mas, a
credibilidade, de acordo com Charaudeau (op.cit.), deve seguir a evolução de sinceridade,
performance e eficácia. O ethos da virtude está ligado a imagem de honestidade pessoal do
político, que é construída por meio do tempo. Esse ethos está ligado à “imagem de fidelidade

207
e de coragem do sujeito político [...], remetendo à retidão e à sinceridade tanto na vida
pública como na vida privada” (CHARAUDEAU, 2006, p.123). Em outras palavras, há uma
lealdade e transparência entre o enunciador e o enunciatário.
Por fim, o ethos de competência liga-se a questões como saber e habilidade. O
político deve “ter conhecimento profundo do domínio particular no qual exerce sua atividade,
mas deve igualmente provar que tem os meios, o poder e a experiência necessários para
realizar completamente seus objetivos” (CHARAUDEAU, 2006, p.125). Ou seja, o político
deve mostrar ter conhecimentos sobre o meio em que está inserido e que sabe agir de maneira
eficaz.
3. LULA LÁ, LULA AQUI : UMA ANÁLISE SEMIÓTICA
Utilizaremos, nesta parte do trabalho, a teoria e a metodologia da Semiótica
Discursiva, no que tange ao percurso gerativo de sentido, para traçar os percursos narrativos e
os temas e figuras utilizados no discurso proferido pelo ex-presidente Lula, no dia 07 de abril
de 2018, em frente ao Sindicado dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, São
Paulo. O mesmo foi realizado antes do ex-presidente se entregar à Polícia Federal.
Iremos analisar a transcrição do vídeo do discurso realizada pela Folha de São
Paulo, mais especificamente quando Lula inicia sua fala sobre seu mandato como presidente
e os processos de investigação contra ele. Percorrido o percurso gerativo, buscaremos
interligar com a noção dos ethé políticos propostos nesse trabalho: credibilidade, virtude e
competência.
3.1 – Teoria Semiótica
A semiótica greimasiana, que servirá como base dessa seção, nasceu na década de
1960, no auge do estruturalismo, com base na tradição saussuriana e hjelmsleviana e também
na teoria da narratividade de Vladimir Propp, no seu tratamento dos contos folclóricos russos.
De acordo com essas abordagens, o significado resulta da apreensão das diferenças a partir do
nível da combinação e da seleção e na base das relações entre uma estrutura formal e uma
estrutura de conteúdo, o que leva a proposição de uma estrutura elementar da significação.
De acordo com o Dicionário de Semiótica (COURTÉS; GREIMAS, 1979, p.415), a
semiótica é uma teoria da significação, que possui como objetivo explicar as condições de
produção e de apreensão do sentido. Em vista disso, compreendemos que o campo empírico
da semiótica é o discurso, em que a unidade de análise é um texto, seja ele verbal ou não-
verbal. Por conseguinte, o foco da análise, conforme explica Fontanille (2015, p.29)

208
direciona-se para os mecanismos que constituem a materialidade discursiva, buscando
apreender o que se diz e o como se faz para dizer aquilo que se diz. Noutros termos, atenta-se
ao plano do conteúdo, ou seja, as estruturas lógicas do percurso gerativo do sentido, caminho
que percorre os níveis fundamentais, narrativo e discursivos.
3.2 – Os percursos do discurso de Lula
Greimas e Courtés (1979, p. 207) explicam que o percurso gerativo é um dispositivo
da Teoria Semiótica que se vale para simular a produção/interpretação de texto 5. Lara e Mate
(2009), acrescentam que o percurso é um movimento cíclico que sai do discurso, passa pelo
narrativo até chegar ao fundamental voltando para o discursivo. Portanto, ele é composto por
três campos autônomos: (1) estruturas semânticas elementares – nível fundamental; (02)
estruturas narrativas e (03) estruturas discursivas.
Sendo que, a primeira corresponde a uma forma mais simples e abstrata, marcada
pelas oposições semânticas mínimas, já a segunda organiza a narrativa do ponto de visto de
um sujeito, e, por fim, a discursiva tem a narrativa assumida por um sujeito da enunciação.
Além disso, cada uma dessas estruturas possui componentes na sintaxe e na semântica.
A sintaxe do nível fundamental, primeira etapa na geração do sentido, é entendida
como “as primeiras articulações da substância semântica e das operações sobre elas
efetuadas” (BARROS, 2002, p.17). Portanto, são componentes que estabelecem uma relação
entre dois termos-objetos, que, por sua, geram uma dupla natureza de conjunção e disjunção.
Para compreender seu funcionamento, temos o quadrado semiótico, proposto por Greimas. O
autor compreende o quadrado como a “representação visual da articulação lógica de uma
categoria qualquer” (GREIMAS e COURTÉS, 1974, p.364). Assim, o quadrado é uma
reunião de dois tipos de oposições binárias.
Excerto 03 (Discurso do Lula trecho 01):
É por isso que eu sou um cidadão indignado, porque eu já fiz muita coisa com meus 72 anos.
Mas eu não os perdoo por ter passado para a sociedade a ideia de que eu sou um ladrão (...)
E eu digo todo dia: nenhum deles, nenhum deles, tem coragem ou dorme com a consciência
tranquila da honestidade, da inocência que eu durmo. Nenhum deles.

No excerto três, a oposição fundamental é composta pela categoria inocente vs.


culpado, que prevalece durante todo o discurso em análise. Desse modo, teríamos o seguinte
quadrado semiótico:

5
Entenderemos como texto o que Fontanille (2014) descreve como “aquilo que se dá a apreender, o conjunto
dos fatos e dos fenômenos que ele se presta a analisar”. (FONTANILLE, 2014, p.85).

209
FIGURA 02: QUADRADO SEMIÓTICO.
ELABORADO PELA AUTORA
Dessa maneira, inocência e culpa são termos que mantêm uma relação de oposição,
dentro do mesmo eixo semântico, projetando, cada um deles por negação, um novo termo,
seu contraditório (não-inocência e não-culpa). Devemos levar em consideração ainda os
complementos no quadrado semiótico, pois são eles que constituem as estruturas de
mediação.
Nesse caso, inocência e não culpa são complementares, pertencendo ao mesmo
gênero, já que ambas são opostas a “culpado”. Do mesmo modo, culpado e “não inocente”,
ambos opostos a “inocente”, fazem parte do mesmo gênero, sendo também complementares.
“Não culpa” e “não inocência” são subcontrários, ambos produzidos pela negação dos
contrários. Desse modo, é possível, por tanto, a partir de “culpado”, compreender a posição
de “inocente”, por meio da mediação de “não culpado”, que é construída pelo ex-presidente
Lula.
Em complemento à sintaxe fundamental, há a categoria semântica, que se projeta
sobre o quadrado que a articula em categoria tímica de /eufórica/ X /disfórica/. Na qual, a
euforia é a “relação de conformidade do ser vivo com o meio ambiente, e disfórica, sua não-
conformidade” (BARROS, 2002, p.24). Continuando a análise, teríamos a inocência como
um termo eufórico, positivo para o texto em questão e a disforia, a negatividade, no termo
culpado.
A transição para as estruturas narrativas ocorrem de maneira continua levando
sempre em conta o nível anterior. Segundo Barros (2002), a sintaxe narrativa é compreendia
como “o simulacro do fazer do homem que transforma o mundo. Desvendar a organização
narrativa consiste, portanto, em descrever e explicar as relações e funções do espetáculo,
assim como em determinar seus participantes”. (BARROS, 2002, p.27).
A sintaxe narrativa trata das pressuposições lógicas, de acordo com as quais cada
texto possui um ou mais programas que envolvem uma transformação de estado. Deve-se
esclarecer que um estado em uma narrativa se expressa pela relação de junção (conjunção ou

210
disjunção) de um sujeito com um objeto, no qual são investidos determinados valores. Desse
modo, o enunciado elementar da sintaxe narrativa é definido pela relação entre dois actantes:
o sujeito e o objeto.
Essa relação de transformação de um sujeito do fazer que transforma um sujeito de
estado a entrar em conjunção ou disjunção com seu objeto-valor pode ser observada nos
programas narrativos (PN). Segundo Barros (2002, p.31), um PN é formado por um
enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. O programa é representado da seguinte
forma:

FIGURA 03: PROGRAMA NARRATIVO


FONTE: BARROS, 2002, P.31
Para melhor compreensão, tomemos os excertos abaixo:
Excerto 04 (Discurso do Lula trecho 02):
Eu sonhei, eu sonhei que era possível um metalúrgico, sem diploma universitário, cuidar mais
da educação que os diplomados e concursados que governaram esse país. Eu sonhei que era
possível a gente diminuir a mortalidade infantil levando leite feijão e arroz para que as
crianças pudessem comer todo dia. Eu sonhei que era possível pegar os estudantes da
periferia e colocá-los nas melhores universidades desse país para que a gente não tenha juiz e
procuradores só da elite. Daqui a pouco vamos ter juízes e procuradores nascidos na favela
de Heliópolis, nascidos em Itaquera, nascidos na periferia. Nós vamos ter muita gente dos
Sem Terra, do MTST, da CUT formados. Esse crime eu cometi. [...]E se for por esses crimes,
de colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar
carro, pobre viajar de avião, pobre fazer sua pequena agricultura, ser microempreendedor,
ter sua casa própria. Se esse é o crime que eu cometi (...).

PN01 = F (melhorar educação e saúde)


[ S1 (Lula) (S2 (população brasileira minoritária) ∩ Ov )]
Ao considerarmos o PN01 temos um programa de aquisição transitiva, ou seja, há
uma conjunção em relação ao objeto-valor e o sujeito do fazer que é diferente do sujeito de
estado. Uma vez que Lula, enquanto sujeito de fazer (esse crime eu cometi), transforma o
sujeito de estado, a população minoritária, pobre e negro, entrando em conjunção com seu
objetivo-valor, a melhoria da educação e da saúde (de colocar pobre na universidade, negro

211
na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião, pobre
fazer sua pequena agricultura, ser microempreendedor, ter sua casa própria).
Observemos agora o seguinte excerto:
Excerto 05 (Discurso do Lula trecho 03):
Eles decretaram minha prisão. E deixa eu contar uma coisa pra vocês: eu vou atender o
mandado deles. Eles não querem o Lula de volta porque pobre, na cabeça deles, não pode ter
direito (...) Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque
eu não sou um ser humano, sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês. .Não
adianta parar o meu sonho, porque, quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de
vocês e pelos sonhos de vocês.

PN02 = F (extinguir ideais do Lula) [ S1 (“Eles”) (S2 (Lula) U Ov )]


Notamos nesse excerto um percurso de privação transitiva ou espoliação, no qual o
sujeito de fazer é diferente do de estado e tem uma relação de privação com seu objetivo
valor, já que se encontram em disjunção. No PN02 podemos entender a personificação de
“eles”, por meio das marcas linguísticas deixadas no texto, como a Tribunal Regional
Federal, Juiz Sérgio Moro, Lava Jato e a Rede Globo. Desse modo, “eles” tinham como
objeto-valor privar as ideias de Lula (“eles não querem o Lula de volta porque pobre, na
cabeça deles, não pode ter direito”), por meio da prisão (“Eles decretaram minha prisão. E
deixa eu contar uma coisa pra vocês: eu vou atender o mandado deles”.). No entanto, com
base no fragmento em análise, os sujeitos do fazer não conseguiram realizar tal disposição
com seu desejo, uma vez que os ideias de Lula não “morreriam” com sua prisão (“Não
adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou um
ser humano, sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês”).
Ainda na sintaxe narrativa há as sequências narrativa canônica. Segundo Lara e
Matte (2007), elas se constituem em quatro fases – manipulação, competência, performance e
sanção, que formam os “programas narrativos que se encadeiam para formar os percursos
que, juntos, compõem o esquema narrativo canônico” (LARA E MATTE, 2007, p.25).
Excerto 05 (Discurso do Lula trecho 04):
(...) Eu tô sendo processado e eu tenho dito claramente: “O processo do meu apartamento,
eu sou o único ser humano que sou processado por um apartamento que não é meu”. E
ele sabe que o Globo mentiu quando disse que era meu. A Polícia Federal da Lava Jato,
quando fez o inquérito, mentiu que era meu. O Ministério Público, quando fez a acusação,
mentiu dizendo que era meu. E eu pensei que o Moro ia resolver e ele mentiu dizendo que era
meu e me condenou a nove anos de cadeia.

Excerto 06 (Discurso do Lula trecho 05):


(...) É por isso que eu sou um cidadão indignado, porque eu já fiz muita coisa com meus 72
anos. Mas eu não os perdoo por ter passado para a sociedade a ideia de que eu sou um ladrão.
Eu não estou acima da Justiça. Se eu não acreditasse na Justiça, eu não tinha feito partido

212
político. Eu tinha proposto uma revolução nesse país. Mas eu acredito na Justiça, numa Justiça
justa, numa Justiça que vota um processo baseado nos autos do processo, baseado nas
informações das acusações, das defesas, na prova concreta que tem a arma do crime.

Excerto 07 (Discurso do Lula trecho 06):


(...) Eu não tenho medo deles. Eu até já falei que gostaria de fazer um debate com o Moro
sobre a denúncia que ele fez contra mim. Eu gostaria que ele me mostrasse alguma coisa de
prova. Eu já desafiei os juízes do TRF4 que eles fossem prum debate na universidade que
eles quiserem, no curso que eles quiserem, provar qual é o crime que eu cometi nesse país.

Ao observarmos os excertos acima percebemos um percurso narrativo de


manipulação ou destinador-manipulador, em que Lula tem um papel actancial (destinador-
manipuladir), que manipula por sedução, persuadindo o destinatário por um saber. Ou seja,
Lula acredita saber que é inocente e apresenta provas, em seu discurso, como notamos nos
itens em negrito. Logo, ele transforma a competência modal do destinatário, ao fazer com que
ele quebre o contrato imaginário de crer na justiça, previsto com o judiciário, fazendo-o
assumir um fazer interpretativo em prol de Lula.
Há, portanto, como explica Barros (2002, p.38), um novo contrato fiduciário com o
ex-presidente Lula, o espaço cognitivo de persuasão e da intepretação e a aceitação ou recusa
do contrato, que cabe, ao destinatário. Assim, temos a manipulação (a firmação do contrato
entre destinador-manipulador e sujeito), a competência (a doação de competência modal ao
sujeito), a performance (a própria ação do sujeito) e a sanção (o destinador-julgador
interpreta a ação do sujeito e a sanciona positiva ou negativamente).
Na semântica narrativa temos a “instância de atualização dos valores” (BARROS,
2002 p. 45). Aqui, a categoria tímico-fórica, do nível fundamental, converte-se em categoria
modal, na qual modifica a relação do sujeito com o objeto valor. Segundo Greimas (1983,
p.71), a modalização é a modificação de um predicado por outro, tendo inicialmente quatro
modalidades fundamentais: /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/, que caracterizam um
predicado regente. Já o predicado regido é estabelecido pela modalidade do /fazer/. Desse
modo, surgem as modalidades deôntica do /dever-fazer/ e do /poder-fazer/, a volitiva do
/querer-fazer/ e a epistêmica do /saber-fazer/.
Excerto 07 (Discurso do Lula trecho 06):
(...) se for por esses crimes, de colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre
comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião(...) Esse crime eu cometi. Se esse é o
crime que eu cometi eu quero dizer que vou continuar sendo criminoso nesse país porque vou
fazer muito mais. Vou fazer muito mais.

213
Partindo do excerto acima temos Lula como sujeito realizado, uma vez que seu
estado final é conhecido. O sujeito do fazer (Lula) saber-fazer políticas públicas ao “colocar
pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro,
pobre viajar de avião”, tornando-se, portanto, um sujeito realizado. Além disso, ele também
querer-fazer muito mais pelo país (vou continuar sendo criminoso nesse país porque vou
fazer muito mais. Vou fazer muito mais), no entanto ele ainda não pode-fazer, sendo um
sujeito virtualizado devido a impossibilidade de fazer.
Partimos agora para o último nível de análise, o discursivo. Ele é definido, segundo
Greimas e Courtés (1979), pela instância da enunciação e diz respeito, ainda, a aspectos como
o modo de constituição dos percursos temáticos e figurativos e das isotopias. Na sintaxe
discursiva, o sujeito da enunciação se projeta no discurso para gerar o efeito de sentido que
deseja (LARA e MATTE, 2009, p.118), com a instauração de eu-aqui-agora (debreagem
enunciativa, que cria um efeito de subjetividade) e um ele-lá-então (debreagem enunciva,
efeito de objetividade).
Desse modo, ao analisar o tempo do discurso de Lula encontramos um debreagem
enunciativa de pessoa. Em que o enunciador delega a voz ao narrador (debreagem de 1º
GRAU), por meio da pessoa demarcar (eu é quem diz eu) e um nós inclusivo (eu+tu), como
notamos em “eu cometi esse crime; eu acho que; nós agora estamos num trabalho delicado”.
Há um efeito de sentido de veracidade e credibilidade, o EU, Lula, quer mostrar suas
conquistas e o uso da primeira pessoa fortalece e da credibilidade para seus posicionamentos.
O tempo do texto é o tempo presente durativo, ou seja, o momento de referência é
mais longo do que o momento da enunciação. O momento de referência presente é o agora
que ocorre em 07 de abril de 2018. Em relação a ele, temos o momento do acontecimento que
pode ser sinalizado pelos verbos fui e tiveram. Portanto, temos uma debreagem temporal
enunciativa, com efeito de sentido de pontualidade, uma continuidade. Por fim, o espaço, há
um aqui do presente, que coincide com o momento da enunciação.
Por sua vez, a semântica discursiva compreende as manifestações temáticas e
figurativas das estruturas narrativa subjacentes. Desse modo, o sujeito da enunciação, por
meio dos temas e figuras, proporciona a coerência semântica do discurso que, por sua vez, irá
gerar efeitos de sentido e de realidade. Barros (2002) descreve que o tema garante a
manutenção semântica, na passagem doo narrativo para o discursivo, e a figurativização
proporciona o acréscimo de sentido previstos nessa conversão.

214
Com tal característica, a tematização é compreendida como “uma formulação
abstrata dos valores, na instância discursiva, e sua disseminação em percursos” (BARROS,
2002, p.115). Ou seja, tematizar é estabelecer as relações e dependências temáticas. Já a
figurativização constitui “um novo um novo investimento semântico, pela instalação de
figuras do conteúdo que se acrescentam, “recobrindo-o”, ao nível abstrato dos temas”
(BARROS, 2002, p.116). Nesse caso, o sujeito da enunciação utiliza alguns procedimentos
para figurativizar o discurso e para investir os temas discursivos, uma vez que, as figuras
recobrem os temas.
O texto em análise é temáticos-figurativos, ou seja, é recoberto por figuras. Ele parte
de temas como justiça, reconhecimento, coragem, qualificação pessoal e profissional e são
recobertos por figurais, tais como "ladrão", "quadrilha criminosa"; "mídia", "judiciário",
"honestidade", "metalúrgico", "presidente" e outros.
Há de considerar ainda o conceito de isotopia. Como observa Barros (1994, p.74), a
isotopia é a linha sintagmática do discurso, bem como a explicitação de sua coerência
semântica. Ou seja, ela é a responsável por assegurar a coerência semântica do discurso, por
meio de recorrência de traços semânticos, ou seja, temas e figuras. Com base no que
analisamos anteriormente, podemos dizer que a isotopia predominante é a política-judicial.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo no artigo foi examinar, por meio da Semiótica de linha francesa, se
Lula construiu os ethé de credibilidade, virtude e competência proposto por Charaudeau
(2006), durante seu discurso proferido antes de se entregar à Polícia Federal. Inicialmente,
entendemos o caso da prisão de Lula por meio da semiótica tensiva, como um acontecimento,
que evidenciou um esquema de ascendência, com seu ápice na prisão do ex-presidente Lula,
sendo marcado, principalmente por operações concessivas.
Por meio das análises resultantes do percurso gerativo de sentido proposto por
Greimas, podemos afirmar que Lula utiliza os ethé de virtude e competência para enfatizar o
ethos de credibilidade em seu discurso. Entendemos, nesse sentido, que o ethos da
credibilidade é um poder-fazer.
Portanto, ao retomarmos aos estudos do nível narrativo, temos Lula como um
sujeito do fazer, que manipula seus destinatários, apresentando provas, por meio da
construção de um ethos de competência, ou seja, de agir de maneira que conheça a vida
política, seja por meio da idade (porque eu fiz muita coisa com meus 72 anos), ou por meio

215
de experiência de governo (eu sonhei que era possível um metalúrgico, sem diploma
universitário, cuidar mais da educação que os diplomados que governam esse país;).
Ou ainda, por conhecimentos técnicos (eu até já falei que gostaria de fazer um
debate com o Moro sobre a denúncia que ele fez contra mim, um debate para provar qual é o
crime que eu cometi) e um ethos de virtude, mostrando honestidade pessoal (mas não os
perdoo por ter passado para a sociedade a ideia de que um sou um ladrão) e de fidelidade e
lealdade com seus eleitores (o que eles não se dão conta é que, quando mais eles me atacam,
mais cresce a minha relação com o povo brasileiro).
Notamos o predomínio da desembreagem enunciativa, ou seja, o uso da primeira
pessoa, criando um efeito de sentido de subjetividade, por meio da presença de marcas de
enunciação no enunciado. Em relação ao tempo, o passado é marcado pelas conquistas e
pelas ações realizadas por Lula, enquanto e presente coincide com o momento da enunciação.
Observamos um breve futuro, quando o ex-presidente cita que gostaria de fazer muito mais
pela população em um possível novo mandato.
Com a narrativa projetada no discurso, encontramos tanto no ethos de virtude como
no ethos de competência uma sensibilização e identificação do enunciatário com o
enunciador. Essas são facilitada pelo uso de figuras e temas que articulam o binarismo
inocência x culpa. As figuras e os temas propiciaram, no interior do simulacro de “verdade”
(parecer verdadeiro) a apreensão do posicionamento ideológico de Lula. Além disso,
percebemos que a utilização maciça do “eles”, enquanto a mídia e o judiciário, se figuram no
papel actancial de antissujeitos, impedindo o ex-presidente Lula de alcançar seu objeto-valor:
provar sua inocência.
Isto posto, entendemos que a imagem do ethé de Lula está presente nas marcas
deixadas no enunciado, portanto uma imagem discursiva, em que temos um fazer
manipulatório de um destinador (Lula), que possui como intuito aderir seu destinatário (a
população brasileira) a sua causa, sua inocência. Lula se constrói como um sujeito do fazer,
saber, em que se pode confiar.

5. REFERÊNCIAS

BARROS, D. L. P. de. Teoria semiótica do texto. 4 ed. São Paulo: Ática, 1994.

216
_________________. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo:
Humanitas/EdUSP, 2002.

BERTRAND, Denis. Política e Concessão. In: FULANETI, Oriana N, BUENO, Alexandre


Marcelo. et al. Princípios teórico-discursivos. São Paulo: Contexto, 2013. p. 11-21.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Tradução Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da


Cruz. São Paulo: Contexto, 2006.

ENTENDA o processo que levou ao decreto da prisão de Lula. 2018. Disponível em:
<https://www.otempo.com.br/capa/política/entenda-o-processo-que-levou-ao-decreto-da-
prisão-de-lula-1.1593176>. Acesso em: 11 jun. 2018.

GREIMAS, Algirdas Julien e COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo:


Cultrix, 1989. Impresso na Editora Pensamento.

JURISTAS são unânimes: não há prova contra lula. 2018. Disponível em:
<https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/338384/Juristas-são-unânimes-não-há-prova-
contra-Lula.htmv>. Acesso em: 09 jun. 2018.

LARA, Glaucia Muniz Proença; MATTE, Ana Cristina Fricke. Ensaios de semiótica:
aprendendo com o texto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 159 p.

LEIA a íntegra do discurso do ex-presidente Lula antes de se entregar à PF. 2018. Disponível
em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/leia-a-integra-do-discurso-do-ex-
presidente-lula-antes-de-se-entregar-a-pf.shtml>. Acesso em: 05 jun. 2018.

LULA é preso. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/lula-e-


preso.shtml>. Acesso em: 11 jun. 2018.

MENDES, Conrado Moreira. Semiótica tensiva: fundamentos teóricos. Línguas & Letras
(UNIOESTE), v. 16, p. 321-342, 2015.

PRISÃO de Lula é consequência da condenação no caso do triplex. 2018. Disponível em:


<http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/04/prisao-de-lula-e-consequencia-da-
condenacao-no-caso-do-triplex.html>. Acesso em: 11 jun. 2018.

QUER entender o que acontece na Petrobras? Veja este resumo. Disponível


em:<http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/02/05/quer-entender-o-que-acontece-
na-petrobras-veja-este-resumo.htm>. Acesso em: 08 jun. 2018.

UOL. Quer entender o que acontece na Petrobras? Veja este resumo. 2015. Disponível
em:<http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/02/05/quer-entender-o-que-acontece-
na-petrobras-veja-este-resumo.htm>. Acesso em: 14 dez. 2016.

ZILBERBERG, Claude. Elementos de Semiótica Tensiva. São Paulo: Ateliê, 2011.

217
O consumo do modo de vida de Downton Abbey: análise das interações dos jantares
no seriado.

Lye Renata Prando 1


Maria Isabel Galvão de França 2

Resumo: O presente artigo tem por objetivo, uma análise sobre a ótica do discurso
publicitário no seriado épico televisivo britânico Downton Abbey, expostos na trama
durante as refeições e como, a partir de seus regimes de interação e sentido, estes valores
incentivam o consumo, hábitos, comportamento e modos de vida através dos produtos
utilizados em cena e comercializados pela internet. Também propomos observar a partir
do referencial teórico da semiótica de A. J. Greimas, especialmente da sociossemiótica de
E. Landowski e dos desdobramentos de A. C. de Oliveira e através do mapeamento e da
catalogação dos modos de comer, representando a organização familiar, o poder e luxo
da aristocracia, de que forma o consumo desses produtos representa a apropriação dos
valores expostos na narrativa e, em que o sentido, para o interlocutor dá-se pela
identificação com tais valores determinando essas práticas como fonte de construção do
ser social para si e para o outro.

Palavras-Chave: Consumo. Discurso Publicitário. Downton Abbey. Narrativas.


Sociossemiótica.

Summary: This article aims, an analysis of the optics of the advertising discourse on
British television epic Downton Abbey, exposed in the plot during meals and how, from
their schemes of interaction and meaning, these values encourage consumption, habits,
behaviour and ways of life through the products used on stage and marketed over the
internet. Also we propose watching from the theoretical framework of semiotics of a. j.
Greimas, especially the sociossemiótica of e. Landowski and unfolding of a. c. de Oliveira
and by mapping and cataloging the ways of eating, representing the family organization,
power and luxury of the aristocracy, how the consumption of these products represents the
ownership of the values given in the narrative and, in that sense, to the other party given
by identifying with those values by determining these practices as a source of social
construction for themselves and for each other.

Keywords: Consumption. Advertising Discourse. Downton Abbey. Narratives. Social


semiotics

Introdução
Neste artigo, através do seriado épico televisivo britânico Downton Abbey,
1
Docente nos cursos de Graduação em Publicidade e Propaganda da faculdade Cásper Líbero e do Centro
Universitário FIAM FAAM, Doutoranda do PPG-COS/ PUC-SP, E-mail: lyeprando@uol.com.br.
2
Doutora em Comunicação, Pesquisadora. E-mail: maria.isabel@uol.com.br

218
analisaremos a ótica do discurso publicitário, construído com a utilização do conceito de
Storytelling e recortamos, a partir dos modos de comer apresentados na série, a produção
de significados, consumo de valores, de estética e de apropriação de objetos e artigos que
transmitam e impulsionem a comunicação através da narrativa televisiva e os transportem
para os destinatários seu atual momento, ainda que a série seja histórica.
O artigo traz cenas dos jantares e sua organização estética com as características do
abstrato e a representação de conceitos de forma imaginária transportando para o
entretenimento cultural, atribuindo significados variados, mas ressaltando o sentido e o
esclarecimento deste, pelo espetáculo.
Ressaltamos o deliciar-se do destinatário ao consumir as peças, artigos, objetos,
significados e valores presentes que foram agentes facilitadores da assimilação em tempo
real da era Eduardiana 3, período em que a série é transmitida. Deste modo, o próprio
conceito se revela como técnica para comunicar-se, controlar, convencer e seduzir o
destinatário e a ele se vender não só como produto midiático como também uma série
produtora de significados.

A Narrativa do Modelo Storytelling


Nas últimas duas décadas, o consumo da mídia televisiva, tais como outras mídias,
em função da internet, vem sendo construída uma nova forma de entreter o público que se
transformou em usuário ativo onde antes exercia um papel totalmente passível diante da
pequena tela. Para este novo consumidor ativo, o cardápio de programação televisiva tem
características formais do modelo narrativo, o Storytelling, que tem particularidades para a
compreensão e fruição da trama e uma estrutura que visa entrelaçar a compreensão dos
espectadores, sua participação, inovações tecnológicas a indústria criativa e as
conveniências midiáticas e comerciais.
Salmon destaca o conceito de Storytelling como uma técnica de comunicação que
visa controle e poder através da narrativa que traça e obtém um formato industrial neste
caso de entretenimento e performático para convencer seduzir e consequentemente vender

3
A era Eduardiana também é conhecida como período Eduardiano, que compreende os anos de 1901 a 1910
durante o reinado de Edward VII, filho da rainha Vitória e que marca o fim da era Vitoriana. Ao contrário de
sua mãe, o rei não evitava relacionar-se socialmente e era o líder elegante de uma elite, influenciada pela arte
e pela moda da Europa continental. Este período é marcado pelo equivalente na França a Belle Époque.

219
como um produto midiático. Para o autor é a narrativa e palavra ganhando um forma
industrial e, lança-se de uma performance a fim de seduzir, convencer e vender não só o
produto midiático como um estilo de vida, uma leitura e releitura histórica.
Ainda neste contexto de Storytelling destacamos o pragmatismo de seu discurso
que revela uma função como narrativa para que desta forma possa persuadir pessoas a
mudarem de crenças, hábitos, valores ainda que por um momento. Este fato é também
analisado por Zygmunt Bauman sobre o conceito de Liquidez na Pós-Modernidade e ao
dinamismo, tornando mais leve e fluída uma sociedade e a modernidade por esta
suplantada.
O apelo à narrativa histórica tem a união dos aspectos de uma peça de novela com
começo, meio e fim, lineares entre si e pressupõe um final feliz ou cordial mas, justamente,
por fazer parte de uma sociedade pactuada em contexto histórico, cujo interesse é trazido
pelo que é esteticamente belo, dinâmico, tem um apelo por vezes cultural, por vezes
ecológico ou até mesmo do politicamente correta, ainda que tais expressões camuflem
formas de violências ocultas sob as imagens que visam apenas a informação que lhe cabe
no contexto. Pierre Bourdieu, classifica como fast-thinkers ou em tradução livre:
pensadores de “ideias feitas” que tem como princípio o caráter geral e são aceitas por todo
mundo. Deste modo, estabelece-se uma comunicação instantânea pois por vezes ela pode
ser aparente e em outras vezes inexistente. Importante que haja o entendimento comum e,
sobre este, a televisão exerce papel fundamental como instrumento de comunicação que
aborda sobretudo com uma fórmula especial de homogeneização de entendimento
subestimando capacidades não prevendo sua própria facilidade de influências, devido sua
extraordinária extensão. Como afirma o autor:
A televisão é um instrumento de comunicação muito pouco autônomo, sobre o
qual pesa toda uma série de restrições que se devem às relações sociais entre os
jornalistas, relações de concorrência encarniçada, implacável, até o absurdo, que
são também relações de convivência, de cumplicidade objetiva, baseadas nos
interesses comum ligados à sua posição no campo de produção simbólica e no
fato de que têm em comum estruturas cognitivas, categorias de percepção e de
apreciação ligadas à sua origem social, à sua formação (ou à sua não formação).
(...) Quando, nos anos 60, a televisão apareceu como um fenômeno novo, certo
número de “sociólogos” (com muitas aspas) precipitou-se em dizer que a
televisão, enquanto “meio de comunicação de massa”, ia “massificar”.
Supostamente, a televisão ia nivelar, homogeneizar pouco a pouco todos os
telespectadores. De fato, era subestimar as capacidades de resistência. Mas,
sobretudo, era subestimar a capacidade que a televisão teve de transformar os
que a produzem e, de maneira mais geral, os outros jornalistas e o conjunto das
produções culturais (através do fascínio irresistível que exerceu sobre alguns
deles). O fenômeno mais importante, e que era bastante difícil de prever, é a

220
extensão extraordinária da influência da televisão sobre o conjunto das
atividades de produção cultural, aí incluídas as atividades de produção científica
ou artística. (Bourdieu 1997, pág. 53)

Sob esta tutela, percebemos também a utilização do Storytelling, quando se


apropria ou faz uso de um fato histórico, assim alcança três facetas: a inter, a multi e a
transdisciplinaridade e tal fato passa a ser explicado didaticamente aos telespectadores que
com toda teatralidade, comedia e drama necessários para que este, telespectador interaja e
delicie-se.
O Storytelling faz o uso da imagem, como um portal e tende a produzir significados
para facilitar a assimilação, ainda que traga, em tempo real, cenas do passado, para os
telespectadores em suas casas. Caso as peças sejam, por exemplo, cenas de um passado
inconcebível no cotidiano da maioria ela, não deve ter um apelo demasiadamente expresso
e sim plausível em seu momento. Sobre a realidade e o imaginário, no contexto televisivo,
Ciro Marcondes Filho, coloca que:
Enquanto a vida do real transcorre de forma regular, repetitiva, cotidiana, a
mente do homem, ao contrário, trabalha ansiosa por inovações, melhorias
mudanças de vida. As pessoas vivem permanentemente em conflito entre esses
dois mundos. Somente aquele que vive só, isolado dos outros e da agitação das
cidades, entregue à degradação física, já não sonha mais. O homem comum,
porém, tem esperanças, vontades, desejos, que não existem só para ele, mas para
todos os demais. É o imaginário. Ele é social, coletivo, e a forma como se
organiza é por meio de símbolos.
(...) O elemento vivo das pessoas, seu “motor”, aquilo que as faz ter vontade de
viver, não está o real, no cotidiano nem no mundo do trabalho e sim no
imaginário. E a televisão é a forma eletrônica mais desenvolvida de dinamizar
esse imaginário. “Ela é também a maior produtora de imagens. (Filho, 1988
págs. 10 e 11).

Assim sendo, enquanto fatos ou partes dos fatos do passado, tem por característica
o abstrato, quando se torna uma representação ou uma mistura de conceitos de forma
imaginária, transporta este para o entretenimento cultural. Entretanto, é muito importante
destacar o esforço dos historiadores na validação da cientificidade da história e, para tanto
é necessária a submissão dos fatos aos métodos científicos, mas nem sempre se pode ser
integralmente aplicada a todos os campos das ciências experimentais, pode-se aplicar os
métodos das ciências sociais. Neste ponto, Ciro Flamarion Cardoso, externa bem sobre a
intensidade das leituras sobre a história quando delineia o termo como “polissêmico”,
atribuindo significados variados, mas ressaltando a necessidade de esclarecer o sentido que
está empregado no contexto de seu uso. Para nosso estudo, além da importância da
cientificidade da história para o próprio ensino, entendimento, interação com outras formas

221
do processo da construção humana de sobrevivência. é importante para dar o tratamento
para uma nova possibilidade de comunicação e dar a ele uma espetacularização como
conteúdo histórico à serviço do sentido do entretenimento.
A história oficial é sempre polidimensional e multifocalizada e dá uma perspectiva
global, que é típica do que podemos comunicar atualmente e, para tanto, existe uma
necessidade iminente de que haja ou se opte por um ponto de vista e considerar a ideologia
e a subjetividade da seleção histórica ou parte dela que acaba por tornar-se objeto e
conteúdo. Porém é impossível que não se corra o risco da anacronia. Diferentemente da
necessidade de compreensão do presente através do passado e o passado através do
presente, que é basicamente a preocupação e a fundamentação dos historiadores. Recriar
algo no presente que distante está por dois, três, quatro séculos, pode sofrer com a
influência da época do criador e retransmitir significados do presente como objeto de
consumo para o seu público e a época que este vive e o interesse em consumir cultura.
Outro aspecto importante a ser destacado é a responsabilidade da produção como em tornar
as série, além da narrativa um midiático convincente e adequado ao publico alvo em
questão e as necessidades de seus anseios próprios e a causa de sua contemporaneidade em
relação ao tema histórico, que em si estabelece a ciência dos signos ao apelar pela
linguagem em como a história será abordada, para quem, quanto e quando.

Downton Abbey Como Objeto


Downton Abbey é uma série britânica, produzida para televisão pela companhia
Carnival Films, para o canal ITV. É um drama histórico que se passa em uma propriedade
fictícia que batiza a série e que está localizada em Yorkshire, que é o maior condado
histórico Inglês.
Ao norte faz limite aos condados de Durhaam, ao longo do rio Tees e
Westmorland, a oeste faz divisa com Lancashire e Cheshire. Ao sul faz fronteira com
Derbyshire, Nottinghamshire e Lonconshire e a leste pelo Mar do Norte.
O drama aborda a história fictícia de uma família aristocrática, do conde de
Grantham, os Crawley e seus criados, durante o reinado de Jorge V, início do século XX.
A série estreou em setembro de 2010 na Inglaterra e em 2012 no Brasil a primeira
temporada de seis.
O que vamos analisar neste artigo, são os modos de comer desta narrativa e como a

222
trama se desenrola neste ambiente e em torno das refeições. Podemos observar primeiro o
elaborado sistema de hierarquia dos criados, sendo eles, lacaios, governança e mordomos,
bem como a rígida organização da rotina de seus empregadores e do castelo e construção
de um jantar. A relação e os segredos encobertos e descobertos sobre a família e a relação
destes com os empregados. São intrigas, dilemas, brigas entre moradores de Downton
Abbey.

Os Rituais de um Jantar Tradicional dos Anos 1910


A narrativa específica deste estudo apresenta inúmeras refeições em seu enredo,
que compreendem o café da manhã, chás, almoços e jantares. Para este artigo utilizaremos
o jantar como fonte de interação social, expondo os interesses pessoais, comerciais,
familiares e de negócios nos diálogos e arranjos estéticos e de função social.
A organização do jantar era parte inicial desses encontros na Era Eduardiana e a
anfitriã se esmerava em encontrar os melhores arranjos entre as pessoas, comida, bebida,
louças e entretenimento. A fase inicial dessa organização eram as cartas convites enviados
às pessoas ilustres ou que se relacionavam com a família ou mantinham negócios. Estas,
posteriormente confirmavam suas presenças, e neste período rigidamente formal e com a
hierarquia evidente e impecavelmente seguida.
Os jantares nos castelos se iniciavam entre 20h00 e 21h00 e iam até o 23H00 ou
23h30. Os detalhes a serem observados pela anfitriã para que os jantares fossem sucesso do
ponto de vista de alimentação e de conversação são os cuidados com a mesa, a decisão dos
lugares para cada convidado se sentarem, o tipo de Serviço 4 e por fim o entretenimento.
O luxo e o requinte de uma mesa posta para os jantares em Downton Abbey
estavam nos detalhes estéticos, na qualidade dos artigos, objetos, louças, pratarias e na
simetria de sua disposição. Toalhas e guardanapos brancos, um pano de lã embaixo para

4
Atualmente nos restaurantes algumas modalidades de servir a mesa que são praticadas, têm sua origem nos
hábitos familiares de determinadas épocas históricas e até remotas. No Serviço à Inglesa, há dois tipos: direto
e indireto. No direto, o prato já aquecido sobre o sous-plat (se houver), pelo lado direito do comensal e o
garçom apresenta a travessa pelo lado oposto, esquerdo e serve a refeição com o talher apropriado,
diretamente ao prato. A retirada dos pratos é feita pelo lado direito. Leva-se em consideração para a execução
o sentido horário. No Serviço à Inglesa indireto, é apresentado ao comensal pelo garçom a travessa à
esquerda para depois colocá-la em uma mesa auxiliar ou guéridon. O garçom serve sobre o prato aquecido as
porções e serve já montado pelo lado direito. A vantagem do Serviço à Inglesa Indireto é a facilidade e
liberdade dos movimentos do trabalho do garçom além de poder compor melhor a montagem do prato e sua
apresentação sem perturbar o comensal ou interferir em sua conversa.

223
manter a toalha no lugar, e os guardanapos dobrados estilo “chapéu de bispo”, cujo o nome
revela seu formato. Talheres de prata, louça filetada a ouro, taças de cristal lapidadas para
água, vinho branco, vinho tinto e vinho do porto. Compondo cada lugar à mesa, são
dispostos molheiras e saleiros de pratas individuais, bem como o cartão de menu escrito e
o cartão com nome do convidado.
A elegância da mesa em cena é composta por candelabros de prata ao centro e nas
laterais, sustentando grandes velas brancas acesas antes de todos se acomodarem em seus
lugares. A composição também permitia arranjos de flores, folhas e frutas.

Definindo os Lugares Mesa - Status e Interesses


A definição dos lugares à mesa na série é de responsabilidade da anfitriã, a
Condessa, cujo objetivo era dividir de modo a garantir a integração entre os convidados e a
conformidade do jantar.
De acordo com o livro "The Butler's Guide to Running the Home and Other
Graces" de Stanley Ager e Fiona St. Aubyn 5, o chefe da casa senta-se na cabeceira ou no
centro da mesa, ao seu lado o convidado de honra. À frente do chefe da casa, sua esposa e
ao lado dela a esposa do convidado de honra ou outro convidado de honra. A anfitriã deve
sempre organizar as pessoas à mesa de acordo com os interesses comuns ou com os
objetivos pessoais ou de negócios dos jantares. Os convidados ilustres de Downton Abbey
ao longo do seriado foram os candidatos a noivos da filha do conde, a mãe do conde,
políticos, herdeiro do castelo.

5
O mordomo de carreira Stanley Ager escreveu o livro "The Butler's Guide to Running the Home and Other
Graces", em tradução livre: "Guia do mordomo para correr a casa e as outras graças" com a ajuda da neta de
sua ex-empregadora, Fiona St. Augyn. Foi originalmente publicado em 1980 e relançado em 2012 É um livro
sobre como administrar uma casa britânica grande e formal. Ager iniciou sua carreira de mordomo em 1922,
quando então tinha 14 anos, e passou trinta anos trabalhando para a família no St. Michael's Mount, um
castelo em Cornwall, Inglaterra.

224
Imagem 1 – Cena da mesa posta e posicionamento dos convidados

Fonte: cena extraída do produto audiovisual Downton Abbey

A Refeição
Uma única refeição poderia ter de 8 a 22 pratos servidos meticulosamente pelos
empregados, seguindo o sentido horário da mesa, curvando-se o suficiente para as pessoas
servirem-se. Uma refeição com exemplo de oito pratos, seguia a seguinte ordem:
1) Aperitivos – bebidas servidas na sala de estar aos convidados antes de seguirem
para a sala de jantar.
2) Sopa – porção leve de sopa quente ou fria.
3) Peixe – servido quente ou frio e acompanhado de um pedado de pão duro para o
caso de alguma espinha do peixe for encontrado.
4) Entrada – consiste em aves de caça acompanhada por legumes assados e um
macarrão.
5) Sorvete – utilizado para limpar o paladar para a degustação dos próximos
pratos.
6) Assado – é o coração da refeição e o último prato pesado, pode ser carne ou
aves acompanhadas de vários vegetais.
7) Salada – um prato muito simples e leve para ajudar na digestão, geralmente
folhas frescas com molho simples.
8) Doces – oferecido vários tipos de doces em porções pequenas para que o
convidado deguste todas as iguarias preparadas.

225
Adicionar, harmonizar ou combinar os pratos é o que faz a diferença na
organização dos jantares. Cada um destes pratos é acompanhado por vinho branco, vinho
tinto, vinho do porto e água. Após a refeição as mulheres se dirigiam à sala de estar para
tomarem um chá ou café e conversarem, e os homens ficavam na sala de jantar para tomar
um conhaque ou vinho do porto fumando charuto e conversando sobre os assuntos de
negócios ou assuntos familiares importantes que exigiam decisões. O jantar se encerra com
o entretenimento, para novamente unir homens e mulheres para um jogo de cartas, ouvir
música ou ver uma orquestra tocar.
Adicionar ou combinar os pratos, organizar os convidados e decidir o
entretenimento é o que faz a diferença na organização dos jantares. Em Downton Abbey as
cenas ficam por conta da degustação de alguns pratos, os aperitivos servidos na sala de
estar ou biblioteca, bem como o entretenimento nestas áreas. Nos anos de 1910, em
castelos como Downton Abbey o jantar bem articulado que transcorre naturalmente reflete
a nobreza da família e uma boa administração da equipe dos serviçais.

A Perspectiva Sociossemiótica do Discurso Publicitário e seus Desdobramentos


Não podemos desvencilhar o estudo sobre consumo sem que pensemos em
preservação, transformação e absorção e aprendizagem da cultura na transmissão da
mensagem, são estes processos que ocorrem por ocasião das “práticas sociais” e que
concomitante a isso, organizam-se em processos discursivos e, neste ponto vem nos
socorrer a ciência semiótica que estuda a significação e o universo dos signos. Na linha
francesa da semiótica, o modelo analítico da significação que vai além da frase e da
palavra e sim nas dimensões do discurso. Assim define Bertrand (2003), para o autor,
quando se trata da descrição e análise das estruturas significantes que moldam os discursos
sociais e individuais se trata da significação, então define que: “a linha divisória está aqui
definida: a palavra “signo” desapareceu: é que não se trata mais do signo, mas da
significação” (Bertrand, 2003:15).
Já, para Semiótica Greimasiana, tem como base, o estudo da linguagem, a
capacidade humana de comunicação em um processo da construção do “saber social”.
Ainda sobre o discurso, Fontanille, (2008) concebe que:

226
Quando se escolhe como ponto de partida o discurso, dá-se conta rapidamente de
que formas cristalizadas ou convencionais que nele encontramos estão longe de
serem unicamente signos, pois uma das propriedades mais interessantes do
discurso é a sua capacidade em esquematizar globalmente nossas representações
e nossas experiências. Do mesmo, o estudo dos esquemas do discurso toma
rapidamente o lugar do estudo dos signos propriamente ditos. (p. 83).

Assim sendo, sobre o discurso, partimos da noção que é um processo que produz
sentidos em suas práticas sociais, fazendo parte de um mecanismo: a produtividade
discursiva. Considerando então, o discurso é o resultado de uma expressão humana
produtora de sentidos, experiências e representações. Há um diálogo aqui entre a linha
teórica francesa que baseia as ideias de Fontanille sobre a análise de discurso e a semiótica
priorizada por Greimas (2001) que baseia-se na teoria da linguagem que faz a análise do
percurso do sentido inserido no texto. Neste diálogo, podemos considerar que o discurso
acontece na desconstrução estruturais, dando sentido a fim de atribuir significados.
Para Pais (2005), há uma conexão entre a significação no processo de produção
discursiva e o saber e, este reflete sistemas de valores de uma sociedade e, de forma
paradoxal, transmite aos integrantes um sentido de continuidade e estabilidade. Isso
porque, a visão de mundo e de uma sociedade linguística e sociocultural e suas ideologias
então sempre em reformulação e em constante “vir a ser”. Deste modo, um mesmo
discurso simultaneamente pode pertencer a um outro universo de discurso o que
caracteriza a interdiscursividade que Mikhael Bakhtin propõe sobre a relação entre outros
textos discursivos, deste modo, para o linguista, não há originalidade total em nenhum
discurso, pois relacionando-se, reproduzem-se. O mesmo acontece com ideologias, onde
ideias também passam pelo mesmo processo semelhante a interdiscursividade mas, aqui
voltada pelo pensamento e este atrelado a interdiscursividade na construção do discurso.
São nas redes de comunicação que se caracterizam as linguagens. Um discurso
publicitário por exemplo, podem estar introduzido em um outro universo discursivo que
pode ser educacional, científico, político, religioso, entre outros, mantendo o sujeito
contemporâneo, refletindo neste, os sistemas de valores e universos de discursos.
O sistema de valores e os universos de discursos, têm em si um fomento para a
plenitude do exercício da cidadania do consumo, ou de qualquer situação de senso comum
como saúde, felicidade, infelicidade entre outros.
Ainda para Pais (2007), nosso processo histórico, se deve ao esforço humano pela

227
busca da sobrevivência ou condições melhores para viver. Nisso inclui situações políticas
mais favoráveis , melhores condições de trabalho, de carreira, justiça social, há então uma
movimentação de pessoas que intensifica e a troca de experiências de culturas diferentes,
valores, visões distintas que conflitantes ou não justificam a constituição de manifestações
populares e universos discursivos.

O Discurso e o Consumo do Modo de Vida de Downton Abbey


A semiótica discursiva é uma especificidade da sociossemiótica. Esta, estuda os
discursos sociais não literários que incluem: discursos tecnológicos, políticos, científicos,
jornalístico, publicitário, pedagógico, religioso, jurídico, etc. É portanto, vista como uma
ciência que trata da apreensão do sentido, que se constrói no momento da interação, nas
diferentes práticas discursivas e sociais. Conforme PRADOS, 2006). Podemos dizer que
estes universos de discurso são sociais pois, na textualidade, o enunciador e o enunciatário
são coletivos e o emissor e receptor, são individuais. Assim sendo, os discursos, são
gerados por um segmento social, partido político, instituição, grupo, comunidade
científica, legisladores, entre outros. O sujeito coletivo está indefinidamente em
construção, uma vez que, “a alteridade do Outro é um dos elementos da identidade do
Nós” (LANDOWSKI. 1992:23). Para o autor, a Sociossemiótica, aborda não só o estudo
da terminologia e das figuras mas também da questão do funcionamento global e, também
da eficácia social desta atividade discursiva.
Bertrand (2003), aborda que o texto literário, em si, é um conjunto de significações
e gera condições de contexto em sua leitura. Diferente dos outros textos, incorpora
contextos e carrega em si seu código semântico que é constantemente atualizado pelo seu
leitor, que independe das intenções do autor. Deste modo, defende que o texto tem um
sentido soberano sobre a relação à intenção subjetiva de seu autor.
Conforme a perspectiva da Sociossemiótica, o método de análise do percurso
gerador de sentido, para descrever os microssistemas de valores sustentados ou saber
social. De acordo com Greimas (2001) as estruturas narrativas do discurso se reconhece
em manifestações do sentido, fazendo-se necessário, uma distinção entre dois níveis de
análise e de representação: um nível aparente de narração e um nível imanente. No
primeiro, diversas manifestações das narrativas estão subordinadas às exigências
específicas linguísticas das quais se expressa. O segundo nível, o imanente, a análise,

228
constitui uma forma haste estrutural comum onde a narratividade está organizada
anteriormente à sua manifestação.
Este seriado é uma produção audiovisual de muito sucesso comercial na história da
televisão inglesa e incentivou o consumo dos artigos e objetos de cena na obra. O consumo
desses objetos de cena, nos dias atuais é o ponto central desse estudo, bem como o
significado dos valores exibidos no seriado por seus destinatários.
As mídias se tornaram a grande tela da visibilidade das interações
contemporâneas. De um lado, a relação comunicativa que tem nela lugar é
integrada pelos destinadores, os grupos detentores das mídias, das marcas, as
grandes instituições, o estado, a igreja. De outro a integram os destinatários
formados pela audiência massiva, pelo público-alvo, público segmentado.
(OLIVEIRA, 2008, p.27).

Em parte do período em que o seriado foi ao ar, alguns objetos estavam à venda em
sites específicos para este fim, como por exemplo, o www.downtonabbeyathome.com. Os
objetos do cenário e figurino poderiam ser comprados e entregue em casa. Neste artigo, o
foco são os objetos dos jantares que poderiam ser comprados: castiçal, aparelho de jantar,
xícaras, taças e vinhos. Yvana Fechine afirma que (...) a construção do sentido está
ancorada em um processo interacional entre sujeitos ou entre sujeito e objeto (...) em
FECHINE (2014) e a posse desses objetos confere aos destinatários a posse dos valores em
circulação na narrativa e, aqui categorizamos a compra d e objetos e inserção de valores
conforme a tabela abaixo:
Tabela 1: categorização da compra de objetos e inserção de valores
CATEGORIAS DA EXPRESSÃO
Prata, madeira, cristal, porcelana, linho, seda,
Formatos Matéricos
ouro, veludo, porcelana.
Retilineidade, estética, assimetria,
Formantes Eidéticos
enquadramento, alinhamento, aquecimento.
Escuro, claro, fosco, brilhante,
Formantes Cromáticos monocromático, tonalidades, luz, meia luz,
clima, tonalizantes.

Elegância, requinte, nobreza, tradição, luxo,


formalidade, riqueza, poder, status, diversão,
Valores Expostos nos Jantares
bom gosto, paladar apurado, intimidade,
comportamento, etiqueta.
Fonte: produção das autoras

229
Considerações Finais
Os jantares no seriado são os sempre um evento que reúne pessoas em um
momento de conversação, convivência e degustação de pratos elaborados e vinhos
escolhidos. Os valores de luxo, riqueza, elegância e intimidade impulsionaram o consumo
dos objetos da mesa, em que o consumo destes objetos confere ao destinatário a posse
destes valores, presente na consumo e uso destes no seu dia-a-dia com as pessoas de sua
convivência.
Embora a série seja fictícia e não histórica, percebemos como a utilização do
Storytelling, alcança facilmente a inter, a multi e a transdisciplinaridade através da
teatralidade que atinja o telespectador e assim encontramos na série o deliciar-se deste ao
consumir peças, artigos, objetos e valores presentes na trama. Trama esta, que produziu
com eficácia a construção de significados que foram facilitadores de sua assimilação, em
tempo real da época em que se passa e atual em que é assistida que lhe confere a
razoabilidade de sua proposta.
O conceito o storytelling na trama foi muito bem utilizado como técnica de
comunicação e do controle através da narrativa do entretenimento performático, seduzindo
e convencendo o destinatário e se vendendo como produto midiático e gerando
significados sobre estilo de vida, modos de comer, leitura e releitura histórica,
cordialmente pragmática.
Sobre a perspectiva sociossemiótica do discurso publicitário e seus desdobramentos
partindo do método da descrição de modalidades discursivas, podemos fazer uma
correspondência com a metatermos, enquanto termos de uma metalinguagem. Em uma fase
narrativa do discurso, os modelos de análise dos valores que são manifestados foram
desenvolvidos. Assim são modelos normalizados com base no saber compartilhado ou
segundo Pais (2007) é um mundo semioticamente construído.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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232
O IMPACTO DO FENÔMENO DAS FAKE NEWS NA
INSTITUIÇÃO JORNALÍSTICA1
THE IMPACT OF THE FAKE NEWS PHENOMENON IN THE
JOURNALISTIC INSTITUTION
Carolina Gandon Brandão 2

Resumo: Este artigo objetiva refletir sobre a interferência do fenômeno das fake
news na instituição jornalística. A partir da pesquisa bibliográfica e da análise de
discurso, observou-se que a desinformação e seus possíveis impactos sociais
configuram uma oportunidade para as instituições jornalísticas ratificarem seu
capital de credibilidade e relevância social. Através do discurso, o jornalismo
aciona estratégias de legitimação: se apresenta como um saber perito, se coloca a
serviço do consumidor para monitorar esses movimentos e oferecer informações
verdadeiras, ressignifica sua relevância na sociedade democrática.

Palavras-Chave: Fake news 1. Pós-verdade 2. Jornalismo 3. Instituição 4. G1 5.

1. Introdução
O jornalismo se consolidou como a instituição autorizada a narrar a realidade.
Sustentado na credibilidade construída historicamente e em nome do interesse social, leva
informações a público, atualiza o cotidiano, articula temas complexos e vigia o campo
político. Paralelamente a esse modelo profissionalizado de selecionar e hierarquizar o que é
notícia, o acesso à Internet ampliou a autonomia individual para receber, enviar e
compartilhar mensagens; permitiu que informações emitidas por cidadãos atinjam larga
escala, o que era prerrogativa do Jornalismo.
O advento da Internet ampliou o fluxo de informações, o acesso à pluralidade de
fontes e a participação dos consumidores, que tornaram-se tecnicamente capazes de produzir,
compartilhar e discutir com velocidade conteúdos não intermediados por jornalistas
(ANDERSON et al, 2013). Nesse ambiente propagam, paralelamente ao trabalho de

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Discurso do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Mestranda no Programa de Comunicação e Informação da Faculdade de Biblioteconomia e
Comunicação, carollinabrandao@gmail.com

233
checagem da imprensa, múltiplas versões sobre os acontecimentos, boatos e inverdades, entre
elas as fake news.
Este artigo objetiva refletir sobre as possíveis interferências desse fenômeno na
instituição jornalística. A partir da pesquisa bibliográfica, contextualiza a institucionalização
do jornalismo moderno, para caracterizar a atividade, seus preceitos e o contrato social
estabelecido. Problematiza os conceitos de real jornalístico e pós-verdade, discorre sobre as
fake news e os desafios introduzidos ao jornalismo nesse cenário. Por fim, emprega a análise
de discurso para compreender os sentidos ofertados pela organização G1 nesse contexto, a
partir do lançamento da seção Fato ou Fake, serviço de checagem de conteúdos suspeitos do
Grupo Globo. Considera o discurso na perspectiva de Maingueneau (2001), como orientado –
pela construção sob a perspectiva de um locutor e pelo desenvolvimento linear no tempo –,
construído em função de uma finalidade e sempre contextualizado, de forma que não se pode
atribuir sentido a um enunciado extraído de contexto.

2. A institucionalização do jornalismo moderno


A construção do paradigma moderno de jornalismo coexistiu com o processo
civilizatório europeu entre os séculos XVII e XIX. Esse período foi marcado pelo surgimento
do Iluminismo, que, centrado na emancipação do indivíduo pela razão, inseriu ideias
impulsionadoras de transformações, como o industrialismo, a instituição das democracias
liberais, o desenvolvimento científico das áreas exatas e naturais e o progresso tecnológico.
Nesse cenário de revoluções e efervescência cultural, se consolidaram as ideias que são
preceitos da atividade jornalística, como a liberdade de expressão, antes restrita pelos
controles impostos pela igreja e pelas monarquias, e a busca pela verdade às luzes da razão,
que também passa a movimentar o desenvolvimento científico (GUERRA, 2008).
Tal processo intelectual e filosófico interfere na institucionalização do jornalismo
moderno durante o século XIX. Entre as transformações da nova fase, está o declínio do
discurso argumentativo de influência político-partidária, a ascensão da relevância dos fatos e
o distanciamento entre acontecimento e opinião. O financiamento partidário, restritivo da
audiência, é substituído pelos anunciantes, que requisitam a ampla circulação dos veículos. A
partir dessa ruptura, os jornais afirmam a neutralidade, que ratifica a presunção de
objetividade e a credibilidade do produto jornalístico, comprometido exclusivamente com os

234
fatos. Nesse novo modelo, a conduta profissional esperada inclui a abstenção de exprimir os
próprios sentimentos e ideiais sobre o fato ou de impedir que a subjetividade interfira no
conhecimento da realidade (GUERRA, 2008). Segundo Charron e De Bonville (2016), esse
processo constitui a passagem do jornalismo de opinião para o jornalismo de informação.
Assim, o jornalismo moderno se consolida a partir do contrato de mediação da
realidade, centrado nos fatos e nos ideais de verdade, objetividade e imparcialidade. O
compromisso com o factual é a sua essência, já que a mediação proposta só se efetiva na
comunicação do real, no discurso construído a partir de informações verídicas. A verdade é,
então, um requisito para a qualidade da informação e para legitimidade da função (GUERRA,
2008), já que
o jornalismo não pode, sem deixar de existir, escapar dessa imposição essencial:
representar o real de uma maneira que dê a todos os agentes sociais engajados em
sua produção, jornalistas, fontes de informação, anunciantes – e leitores – a
convicção do real. O conjunto desses agentes deve conservar a segurança recíproca
dessa convicção, quer dizer, ter a certeza de que “todo mundo joga o jogo do
realismo. O jornalista é submetido a um imperativo não só de verossimilhança
compreendida no sentido de “conformidade com a realidade”, mas também de
veracidade: o que ele relata é tido como verdade (CHARRON & DE BONVILLE,
2016, p. 188).

Segundo Guerra (2005), diante da complexidade da missão jornalística, que visa a


atender necessidades sociais de comunicação, são desenvolvidos padrões de conduta, papeis e
vínculos com a sociedade que, ao se consolidarem, resultam na sua institucionalização.
Berger e Luckmann apud Guerra (2005) apontam que em um segundo momento desse
processo ocorre o controle pela sociedade, em que a legitimação social deve ser honrada com
o cumprimento do contrato estabelecido. Assim, a instituição jornalismo delimita as
características que definem e que orientam os padrões consolidados. Representa uma ideia
que aponta para o “dever ser”: a instituição jornalística tem a missão de narrar a realidade de
acordo com as regras que legitimam a sua existência; abarca deveres e convenções aos quais
está atrelada a crença social no seu fazer especializado.
Nesse sentido, Miguel (1999), a partir do conceito proposto por Giddens (1991) de
sistemas especialistas – fundamentados na relação de confiança entre o público e o saber
técnico –, qualifica o Jornalismo como um sistema perito. Estruturado na credibilidade, tem a
confiança do público na sua competência especializada para narrar a realidade. O consumidor
de notícias confia na veracidade das informações veiculadas, na seleção dos acontecimentos

235
mais relevantes, na descrição e na hierarquização dos elementos mais importantes do relato.
A crença no saber perito é construída e ratificada na experiência cotidiana, que
comprova o funcionamento dos sistemas especializados, como o resultado do medicamento, a
solidez das edificações e a sustentação do avião no ar. O saber jornalístico, entretanto, é
preeminentemente não verificável, já que reduzido número de consumidores pode confirmar
a precisão de cada notícia. O questionamento global da seleção de notícias é inviável, já que o
número de fatos que o indivíduo tem acesso sem a imprensa é restrito. Desse forma, a
principal estratégia de credibilidade da instituição jornalística é se vincular à verdade, impôr
que o fato relatado é indiscutível (MIGUEL, 1999).

3. O real jornalístico e a era Pós-verdade


Para Charron e De Bonville (2016), o jornalismo de informação se apresenta como
servidor do real. Apoiado na liberdade de expressão e na independência do jornal, relata as
aparências de forma objetiva e neutra sem a intenção de modificá-las, mas de esclarecê-las.
Apesar dessa pretensão, o real apresentado pelas empresas jornalísticas representa reduzido
fragmento dos acontecimentos e sofre interferência de diversos fatores, como o meio, as
condições técnicas de trabalho, o intermédio de fontes e as percepções sociocognitivas,
correspondentes aos valores da sociedade em que os jornalistas se inserem, que orientam o
real jornalístico.
Lippmann (2008) também critica a associação proposta pelo jornalismo entre verdade,
notícia e realidade. Enquanto a notícia objetiva remeter a um evento, apresentar a verdade
significa “trazer à luz fatos escondidos, colocá-los um em relação ao outro e fazer um quadro
da realidade no qual homens possam agir” (LIPPMANN, 2008, p. 179). Argumenta que a
verdade jornalística representa uma versão entre a multiplicidade de percepções possíveis, a
partir das lentes subjetivas que cada ser enxerga o mundo. Assim, para ele, o jornalista ideal
não reconhece no seu texto a verdade absoluta, mas transmite o seu caráter hipotético e
apresenta o real percebido como proposta de debate.
Zask (2008) ressalta a relevância que Lippmann atribuía ao conhecimento dos fatos.
Essencial ao processo de evolução das sociedades, subsidia a tomada de decisão, a
participação social e o processo político. Nesse horizonte, a atividade jornalística é percebida
como imprescindível às comunidades democráticas, pelo seu papel de reunir e difundir fatos

236
relevantes. Segundo o autor, Lippmann também defendeu que os jornais são capazes de
canalizar, contribuir para canalizar ou acelerar a formação da opinião pública, já que “o
ambiente invisível nos é relatado principalmente por intermédio de palavras” (LIPPMANN,
2008, p. 69).
O jornalismo, então, interfere nas percepções sociais sobre os acontecimentos. A
atividade, apresentada como fidedigna ao real, é realizada por seres humanos, suscetíveis a
diferentes interpretações dos eventos e impressões próprias da realidade, apesar do esforço
em alcançar a objetividade. Além da subjetividade, a mediação do real está sujeita a erros
profissionais e distorções, intencionais ou inconscientes.
Groth (2011) destaca o desafio profissional do jornalista de averiguar tudo o que
publica na diversidade e na velocidade das exigências diárias. Além da universalidade e da
atualidade, a rotina de produção, em diversos momentos, inviabiliza verificar a informação.
Assim, notícias e comentários errôneos são divulgados pelos jornalistas. Sejam erros
involuntários, conscientes, provocados pela falta de tempo ou induzidos por fontes mal
informadas (ou interessadas em mal informar), inverdades impactam na imagem institucional
do jornalismo, centrada na verdade, confiabilidade e atualidade da informação. Por isso, cada
jornalista deve estar ciente que seus erros não oneram somente a si, mas a sua profissão e a
imprensa. Anderson et al (2013) também ressaltam que faltas profissionais como plágio,
desonestidade e intenções ocultas, equívocos e material requentado podem abalar a reputação
do jornalismo de forma rápida e irreparável.
Nesse sentido, Guerra (2005) lembra que o jornalismo moderno se estrutura nos
parâmetros de verdade e de relevância das informações, o que torna a mentira e a distorção
dos fatos graves faltas profissionais. Para uma instituição que tem a verdade como principal
pilar, notícias falsas e equívocos podem significar o abalo do acordo social.
Sem compromisso com os ideais de clareza, verdade e objetividade, essência do
jornalismo, emerge a pós-verdade, contexto em que fatos têm menos relevância que
emoções. Segundo a Oxford Dictionaries, o termo foi empregado pela primeira vez em 1992
por Steve Tesich em seu ensaio para a revista The Nation, em que criticou a postura da
sociedade americana de desprezar as informações e a busca pela verdade dos fatos políticos.
A expressão se popularizou a partir do artigo “Arte da Mentira”, publicado na revista The
Economist, quando o uso da expressão cresceu em 2000%. Assim, em 2016, foi eleita a

237
palavra do ano pelo dicionário, que a definiu como um adjetivo “que se relaciona ou denota
circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do
que apelos à emoção e às crenças pessoais”.
A pós-verdade impõe novos desafios à comunicação. Representa o contexto em que a
ideia de Verdade é substituída pela multiplicidade de versões e a objetividade é rejeitada:
apesar da inconsistência dos dados, cidadãos compartilham as informações que vão ao
encontro de suas crenças e sentimentos, sobretudo as de conteúo político. Entre os diversos
exemplos empíricos, estão os boatos amplamente divulgados de que o Papa Francisco
apoiava o candidato Donald Trump e de que, durante o período em que foi secretária de
Estado, Hillary Clinton aprovou a venda de armas para jihadistas.
A Internet viabilizou amplo acesso a informações e agilidade para publicar e
compartilhar diferentes afirmações, verdadeiras ou não. Através de mídias como Facebook,
Twitter e Whatsapp, mentiras e boatos são propagados paralelamente ao trabalho de
checagem da imprensa, provocando impactos na comunicação social, interferências na
opinião pública, sobretudo no campo político. A Era pós-verdade é o pano de fundo do
fenômeno das fake news e instaura a indiferença à verdade e a prevalência das emoções sobre
a realidade objetiva.

4. Fake news e jornalismo


Lazer et al (2018) definem fake news como informações fabricadas – que imitam o
formato, mas não o processo ou a intenção das organizações jornalísticas – divulgadas por
canais que não têm as normas editoriais e os processos da mídia para garantir precisão e
credibilidade. A expressão tornou-se evidente em 2016, quando foi amplamente utilizada por
Donald Trump enquanto concorria às eleições presidenciais nos Estados Unidos, geralmente
para denominar notícias desfavoráveis a ele. O termo foi eleito como “palavra do ano” de
2017 pelo Collins Dictionary, que o definiu como “informações falsas, muitas vezes
sensacionalistas, disseminadas como se fossem notícias”.
Eleito presidente, Trump utilizou o termo em diversas pronunciações em ataques à
imprensa. Em julho de 2017, publicou em sua conta oficial no Twitter um vídeo montado em
que agride e derruba uma pessoa com o logotipo do canal de notícias Cable News Network
(CNN) em frente ao rosto. Em janeiro de 2018, divulgou, também em seu perfil no Twitter,

238
os vencedores do seu “Prêmio Fake News”, em que premia dez nomes, incluindo jornais e
redes de notícias como The New York Times, The Whashington Post e CNN. Na mesma
publicação, o presidente americano declarou que “apesar de uma cobertura da mídia corrupta
e desonesta, há muitos grandes jornalistas que respeito e muitas boas notícias para que os
americanos fiquem orgulhosos”.
Entre outras manifestações que desqualificam os meios de comunicação, no dia 17 de
fevereiro de 2017, o presidente americano publicou em sua conta no Twitter: “as mídias de
notícias falsas (@nytimes, @NBCNews, @ABC, @CBS, @CNN) não são minhas inimigas,
são inimigas do povo americano”. E, na coletiva de imprensa no dia anterior, mencionou que
a mídia não diz a verdade sobre o seu governo, que “a imprensa ficou tão desonesta que se
não falarmos sobre isso estaremos fazendo um tremendo desserviço ao povo americano” e
que “o nível de desonestidade está fora de controle”. Em oposição às notícias jornalísticas
sobre o seu governo, o presidente americano criou em sua página no Facebook, informativos
em que divulga propagandas da sua gestão, com o título de “notícias reais”.
As repetidas ofensivas à imprensa realizadas por uma personalidade pública podem
criar interferências na imagem que a sociedade forma da instituição jornalística. Como
estratégia comunicacional, Trump utiliza as redes sociais e estabelece uma comunicação
direta com os cidadãos, o que amplia a repercussão das mensagens. Suas declarações se
opõem à razão de ser do jornalismo, que se fundamenta na relevância da informação às
sociedades democráticas e à entrega da verdade, associando mentira e jornalismo,
apresentando a imprensa como inimiga da sociedade.
Segundo Lazer et al (2018), a confiança dos cidadãos nos meios de comunicação de
massa apresentou mínimos históricos em 2016. No mesmo sentido, uma pesquisa realizada
pela Universidade de Monmouth em março de 2018 apontou que 77% dos entrevistados
declararam acreditar que a televisão e os veículos impressos divulgam fake news. Esse
percentual é maior que o obtido em 2017 em pesquisa similar, de 63%.
Paralelamente, no mesmo ano em que o neologismo fake news se popularizou, em
2016, ocorreu a vitória de Trump como presidente dos Estados Unidos, a saída da Grã-
Bretanha da União Europeia e a derrota do plebiscito que propunha o acordo de paz entre o
governo colombiano e as Farcs, eventos que tiveram em comum a ampla divulgação de
notícias falsas em suas campanhas. A repercussão de fatos falsos adquiriu novas proporções

239
com o acesso à Internet. A ampla divulgação de inverdades pelas redes sociais e sua possível
interferência sobre esses resultados ressignificou o debate sobre informação, veracidade e
democracia.
Segundo Anderson et al (2013), o advento das novas tecnologias de informação e
comunicação introduziu mais que ferramentas, mas transformações econômicas, sociais,
políticas e culturais. Provocou a ampliação do fluxos de informações, o acesso a uma
pluralidade de fontes e a participação mais ativa dos consumidores, que tornaram-se
tecnicamente capazes de produzir, compartilhar e discutir com velocidade conteúdos não
intermediados pela mídia tradicional ou por jornalistas profissionais. Esse cenário introduz
novos desafios ao jornalismo. A ampla repercussão de inverdades pelas novas mídias,
intensificada com o fenômeno das fake news, poderia levar à perda da credibilidade no que se
lê, impactando na relação entre o cidadão e a instituição jornalística. Além disso, a perda de
anunciantes para outras plataformas, crise de financiamento, implica na necessidade de
repensar culturas e modelos de negócio, há a ameaça do declínio no papel da imprensa como
formadora de opinião, diante à diversidade de veículos, e o desafio de ratificar o contrato
estabelecido, fortalecer junto ao público a relevância da atividade.
O fenômeno das fake news e suas consequências sociais, ainda pouco claras, parecem
constituir uma oportunidade para ratificar a necessidade de um sistema profissionalizado de
mediação do real. A Internet ampliou a autonomia individual para o compartilhamento de
mensagens, ofereceu mais possibilidades de expressão, pluralidade de fontes e conteúdos
gratuitos sem os filtros de empresas ou governos, mas também configurou um cenário de
multiplicidade de versões, incertezas e discursos movidos pela emoção. A propensão humana
a acreditar em fatos que vão ao encontro das próprias opiniões, o viés de confirmação, e a
facilidade de propagação das inverdades resultam em interferências nas percepções
individuais da realidade. Lazer et al (2018) apontam que informações falsas no Twitter
costumam ser retweetadas por muito mais indivíduos, e mais rapidamente, que informações
verdadeiras, sobretudo com conteúdos políticos. Resultado semelhante foi evidenciado por
pesquisadores do Massachustts Institute of Technology (MIT), que analisaram 126 mil
notícias propagadas pelo Twitter entre 2006 e 2017, tuitadas por aproximadamente três
milhões de pessoas. Segundo o estudo, os fatos falsos, geralmente mais inusitados e

240
estruturados para atingir sentimentos, tem uma probabilidade 70% maior de ser
compartilhado do que informações verdadeiras.
Conforme apontado pelos estudos, as desinformações se propagam rapidamente.
Entretanto, os esclarecimentos dos fatos não têm a mesma força de repercussão e muitas
inverdades não são desmentidas. Como resultado, é possível que haja interferência na
formação da imagem de pessoas públicas, de organizações e de fatos, nas percepções da
realidade e nas opiniões, como aponta o estudo de Allcott & Gentzkow (2017). Os
pesquisadores analisaram dados sobre o consumo de fake news antes da eleição presidencial
americana de 2016. O resultado indica a possibilidade de interferência das inverdades no
resultado, já que o candidato eleito, Donald Trump, teve 22 milhões de vezes mais notícias
falsas favoráveis compartilhadas do que as que beneficiaram a oposição.
Esse cenário de desinformação e os possíveis impactos sociais ratificam a força das
instituições. Diante do incerto, o cidadão tende a buscar por empresas com capital de
credibilidade para monitorar esses movimentos e informar-se. Como resposta, veículos
jornalísticos criaram espaços dedicados à checagem dos fatos. Visando ao reconhecimento e
à fidelização dos públicos, adotam estratégias de legitimação para orientar a construção das
suas imagens na alteridade. Entre essas ações, estão os discursos institucionais, que,
enunciados com o objetivo de fortalecer o contrato social estabelecido, se reconfiguram nessa
conjuntura.

5. Projeto Fato ou Fake


A exemplo dessas iniciativas, cita-se a notícia de lançamento 3 do projeto Fato ou
Fake, que integra as equipes de jornalistas do Grupo Globo: G1, O Globo, Extra, Época,
Valor, CBN, Globo News e Tv Globo.
A partir matéria acessada pelo portal de notícias G1, G1 lança Fato ou Fake, novo
serviço de checagem de conteúdos suspeitos, buscou-se identificar os sentidos propostos
acerca do fenômeno das fake news e do trabalho jornalístico.

3
Notícia de lançamento da campanha disponível em https://glo.bo/2v0lhzU Acesso em 14/08/2018.

241
TABELA 1
Sequência discursiva na notícia.

Fake News Jornalismo


Especialistas afirmam que a disseminação de Seção vai identificar as mensagens que causam
conteúdos falsos é um dos principais desafios a serem desconfiança e esclarecer o que é real e o que é
enfrentados hoje, pois ela prejudica a tomada de falso.
decisões e coloca em risco a democracia […].
[...] O objetivo é alertar os brasileiros sobre
conteúdos duvidosos disseminados na internet ou
pelo celular, esclarecendo o que é notícia (fato) e o
que é falso (fake).

[...] Também irá checar discursos de políticos [...]. O


objetivo é confrontar as versões dadas como oficiais
e impedir a difusão de rumores.

[…] Ao juntar forças entre as diversas redações,


será possível verificar mais – e mais rápido […].

Jornalistas farão um monitoramento diário para


identificar mensagens suspeitas muito compartilhadas
[…].

Os jornalistas irão monitorar as redes sociais por


meio de um amplo leque de ferramentas […].
Também haverá um "bot" (robô) no Facebook e no
Twitter [...].

[…] os jornalistas irão investigar a fonte que deu


origem a ela, se está fora de contexto ou é antiga e
se as imagens apresentadas correspondem ao que é
narrado. Em seguida, serão ouvidas as pessoas
citadas.

A apuração segue com a manifestação de fontes


oficiais, testemunhas e especialistas que possam
ajudar a esclarecer o que está escrito ou dito na
mensagem
FONTE: autora.

O lançamento da editoria foi precedido por uma campanha de divulgação em


televisão, rádio e jornal com o mote Duvide. Um dos vídeos de divulgação foi destacado
como representativo da ideia do projeto e transcrito na notícia.

242
TABELA 2
Sequência discursiva no vídeo de divulgação.

Fake News Jornalismo


[…] Só que hoje em dia é muito difícil separar o fato […] É para isso que serve o jornalismo. Para
do fake, saber se é inventado ou se aconteceu conferir pra você.
mesmo […].
Se você tem dúvida, a gente confere. Se você não
sabe se é verdade, a gente checa a fonte. Um bom
jornalista não publica nada sem duvidar antes. Se não
confere, não é jornalismo.

[…] Porque a dúvida leva à verdade e a gente só


trabalha com ela. Jornalismo é isso. A gente duvida,
a gente confere, a gente informa.

[…] E conferindo, a gente descobre o que de fato é


fato e o que de fato é fake (…).

[…] Fato ou fake. É jornalismo para o fake não


virar news.
FONTE: autora.

A partir do mapeamento das sequências discursivas, percebe-se que os sentidos


associados às fake news apresentam o fenômeno como um desafio e um perigo às sociedades
democráticas, que requerem informações verdadeiras para interpretar cenários e tomar
decisões. A distinção entre conteúdos falsos ou verdadeiros é delineada como complexa, que
demanda o trabalho profissionalizado dos jornalistas para ser realizada. Nesse ambiente, o
jornalismo é apresentado como o serviço técnico capaz de distinguir e esclarecer o que é
verídico, como uma fonte segura de informação.
Três núcleos constroem os sentidos sobre a instituição jornalística: o trabalho
profissionalizado, o papel institucional e a oposição entre fake news e jornalismo. Os
atributos do jornalismo profissional descritos incluem o monitoramento diário e a utilização
de ferramentas e procedimentos próprios. Esse saber perito (MIGUEL, 1999), conhecimento
especializado na checagem dos fatos, é oferecido como passível de verificação, já que o
veículo se propõe a explicitar a metodologia utilizada. Além de transparecer como acontecerá
a verificação do fato, evidencia a estrutura das organizações envolvidas, que contam com
“amplo leque de ferramentas” e fortalece a comunicação com o leitor, que poderá sugerir

243
checagens e se cadastrar para verificar os links das conferências realizadas pelo aplicativo
WhatsApp.
A união entre redações do Grupo Globo é ressaltada como elemento de qualidade ao
serviço de apuração, por unir maior número de profissionais e possibilitar verificações mais
ágeis. Esse trabalho coletivo, apesar de relacionar organizações da mesma empresa, e o
aperfeiçoamento na função da checagem vai ao encontro da ideia de Anderson et al (2013)
para a necessária adaptação do jornalismo ao cenário de transformações em que se insere:
especialização e condução de trabalhos em parceria. Os autores propõem que modificações
otimizadoras de recursos humanos e financeiros são um desafio necessário para a imprensa
na transição para a era pós-industrial.
À instituição jornalística é atribuído o papel de esclarecer o que é real e o que é falso,
alertar sobre conteúdos suspeitos e impedir a difusão de rumores. As atribuições de conferir,
checar e informar são reafirmadas no novo contexto, bem como as garantia de clareza e
transparência: das fontes, em que se propõe a descrever o percurso da apuração, da
metodologia, detalhada ao leitor, e de correções, já que possíveis alterações serão
identificadas na reportagem. Por fim, apresenta o jornalismo como oposto e como força
contra as fake news: “é jornalismo para o fake não virar news”.
Para Anderson et al (2013), demonstrar conhecimento, revelar fontes e explicitar
metodologias são vias de adquirir boa reputação. A partir do discurso do veículo, verifica-se
que o fenômeno das fake news pode ser uma oportunidade de ratificar a força das instituições
dotadas de capital simbólico e capacidade técnica para selecionar o relevante no amplo fluxo
de informações disponíveis e levar a público notícias claras, inteligíveis e verdadeiras nesse
cenário de desinformação.

Considerações
A ampla repercussão de fatos falsos poderia representar um impacto negativo à
instituição jornalística, pela perda na credibilidade no que se lê. Entretanto, as iniciativas
empresariais de checagem evidenciam que a desinformação pode ser uma oportunidade de
reapresentar o papel do jornalismo na seleção do que é relevante e na checagem dos fatos,
reafirmar os valores institucionais e ratificar o contrato estabelecido, centrado na verdade.

244
O jornalismo apresenta-se como cumpridor de um papel social próprio, não realizado
por outras instituições. Entretanto, não basta à instituição autoproclamar-se legítima, é
necessário o reconhecimento da sociedade. Assim, o jornalismo, “como todas as instituições,
possui um discurso cujo propósito é afirmar a sua legitimidade social” (GOMES, 2009, p.
67).
As propostas de sentido mapeadas problematizam o desafio da desinformação, e
ratificam o papel e a razão de ser da instituição jornalística – checar os fatos e levar a verdade
à sociedade –, coloca o jornalismo a serviço da sociedade – que confere as dúvidas do leitor –
e em oposição ao fenômeno das fake news, associando jornalismo a informação, verdade,
clareza e transparência.

Referências
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election. In: Journal of Economic Perspectives. Vol. 31, n. 2, 2017.
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245
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S
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l
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2
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0

246
O VIVENCIAR DA PERDA: UMA ANÁLISE ENTRE O
SENSÍVEL E O INTELIGÍVEL NA NARRATIVA DE “BE
RIGHT BACK”

THE LIVING OF LOSS: A TRANSFERRED ANALYSIS


BETWEEN THE SENSITIVE AND INTELLIGIBLE
IN THE NARRATIVE OF "BE RIGH BACK"

Mariana Vitti 1

Resumo

A relação entre sujeitos é um espaço de significações e assunto abordado pelas produções


midiáticas de entretenimento. O presente artigo se constrói na análise do episódio “Be Right
Back” da série norte-americana televisa Black Mirror, produzida por Charlie Brooker e lançada
em 2011 pelo Channel Four. Black Mirror, ficou conhecida por ser uma série do gênero ficcional
que aborda temáticas relacionada à tecnologia da comunicação e à relação social mediada pelos
aparatos tecnológicos, tendo sempre uma perspectiva futurista e crítica sobre a interação
humana submissa à tecnologia. Considerando a relação intersubjetiva como espaço prolífero da
criação de sentidos, utilizaremos a teoria Semiótica do Discurso (GREIMAS,XXX ), para
compreender o percurso gerativo de sentido do texto. Dialogando também com a Sócio-Semiótica
de Landowski (2014) proponho a análise dos regimes de interação presentes na trama. Assim
definido, o artigo tem por objetivo apreender as significações produzidas por um produto da
cultura d massa que ganhou repercussão mundial ao abordar temas atuais da relação entre o
tecnológico e o humano, que não mais pode ser compreendida de maneira binária, visto que, o
que ainda nos distingue das máquinas é o afeto.

Palavras-Chave: Semiótica Discursiva, Interação, Black Mirror, Novas Tecnologias

1. Introdução

Sabe-se que é das interações, especialmente as intersubjetivas, que se constrói o


sentido, as quais são responsáveis diretas pela construção da identidade dos sujeitos. Por ser
um campo fértil da construção de sentidos, é alvo certeiro das produções midiáticas da
cultura de massa. O presente trabalho se presta à análise do episódio “Be Right Back” da
série britânica televisa Black Mirror, produzida por Charlie Brooker e lançada em 2011.

1
Mestranda em Comunicação pelo PPGCOM – PUC Minas, email: marianavittirc@gmail.com

247
Black Mirror ficou conhecida por ser uma série do gênero ficcional que aborda temáticas
relacionadas à tecnologia da comunicação e à relação social mediada pelos aparatos
tecnológicos, tendo sempre uma perspectiva futurista e crítica sobre a interação humana
submissa à tecnologia.

O episódio em análise levanta questões sobre a memória pessoal, a individualidade e


a imortalidade, contando a história de um casal que leva uma vida bucólica até serem
abruptamente separados, quando Ash, o marido, morre em um acidente automobilístico.
Martha, então viúva, vive desconsoladamente seu luto quando descobre que está grávida. É
nesse momento que recorre à tecnologia para conseguir lidar com a perda e com os conflitos
advindos dela. A clonagem humana é a figurativização do tecnológico nesse episódio. Depois
de uma gradativa relação de aproximação entre o sensível e o inteligível, figurativizados
respectivamente por Martha e o Robô de Ash, a personagem decide efetivamente comprar um
boneco clone de seu falecido marido. Além das semelhanças físicas, o Novo Ash é
desenvolvido por um sistema de inteligência artificial que compila as informações (imagens,
textos e sons) deixadas por ele nas redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram,
YouTube, etc. A análise de seu comportamento online permite a reconstrução bastante
verossímil da identidade de Ash, o que iguala o robô quase que perfeitamente ao homem. No
decorrer da trama, são gerados conflitos em torno da interação entre os personagens que
levará a um desfecho perpassado pelas questões da tecnologia como viés de escape
emocional

Considerando a relação intersubjetiva como espaço privilegiado da criação de


significações, utilizaremos a Semiótica discursiva como ferramenta analítica do objeto. A
escolha dessa teoria se justifica pelo pertinente método de análise de textos sincréticos que
relaciona distintas linguagens de manifestação no mesmo texto. Greimas, principal expoente
da semiótica de linha francesa, teve seus estudos fundamentados pelas teorias linguísticas de
Saussure e Hjelmslev (MATTE; LARA, 2009), desenvolvendo, assim, um método que sugere
compreender o conteúdo dos textos a partir da apreensão separando-o metodologicamente da
expressão. O texto, tratando texto como qualquer objeto passível de significação, pode ter seu
plano do conteúdo compreendido a partir do percurso gerativo de sentido que caminha em
uma orientação gradual de enriquecimento semântico (BARROS, 2001). Sendo assim, temos
uma hierarquia de três estágios que engendram todo o percurso, sendo eles: o nível

248
fundamental, mais abstrato que é pela oposição semântica de base, na qual identificam-se as
estruturas elementares do discurso. O nível narrativo, caracterizado pela transformação de
estado entre sujeitos e objetos de valores e, por fim, o nível das estruturas discursivas que é o
mais complexo e mais próximo da superfície da manifestação.

Assim, propõe-se, neste trabalho, analisar todo Be Right Back à luz do o percurso
gerativo de sentido, de modo integrar a análise das interações previstas pela sociossemiótica,
a partir do diálogo entre os conceitos da Semiótica standard, proposta por Greimas (1976) e a
sociossemiótica, desenvolvida por Landowski (2014) . Após análise do plano do conteúdo
constituinte do texto, objetiva-se analisar a homologação entre plano da expressão e o plano
do conteúdo, levando em consideração as categorias eidéticas, cromáticas e topológicas
correlacionadas pelo semi simbolismo (PIETROFORTE, 2004).

Assim definido, este artigo tem por objetivo apreender como se constroem as
significações produzidas por um produto da cultura de massa que ganhou repercussão
mundial ao abordar temas centrais para o debate sobre a relação entre cultura, tecnologia e
sociedade, suscitando problemáticas que englobam os novos impasses da sociedade
contemporânea.

2. O percurso gerativo de sentido


A semiótica tem por objeto o sentido; interessa-se pelo parecer do sentido que se
apreende por meio das formas da linguagem. De acordo com Barros, “procura descrever e
explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz” (BARROS, 2005, p.11).
Compreende-se texto como objeto de significação. Sendo assim, a semiótica deve ser
entendida como a teoria que busca compreender os sentidos do texto pela análise interna ou
estrutural. Bebendo das fontes linguísticas saussurianas, que compreende o signo linguístico
pela divisão entre significado e significante, chegamos ao conceito de função semiótica a
partir de Hjelmslev, sendo o texto uma junção do plano de conteúdo, referente à imanência e
do plano da expressão, ligado à manifestação. É a partir desta relação que “procura explicar o
ou os sentidos do texto pelo exame, em primeiro lugar, de seu plano do conteúdo”
(BARROS, 2005, p.11). A análise começa então pelo plano do conteúdo, relacionado ao
sentido, para posteriormente chegarmos até à materialidade. Destrinchamos o Percurso
Gerativo de Sentido engendrado pela superposição dos níveis fundamental, narrativo e
discursivo.

249
2.1 Nível Fundamental
A sintaxe fundamental se encarrega da relação estrutural mínima que está imanente ao
discurso. Um termo só é capaz de gerar significação na relação. Sendo assim,
a estrutura elementar define-se, em primeiro lugar, corno a relação que se estabelece
entre dois termos objetos — um só termo não significa —, devendo a relação
manifestar sua dupla natureza de conjunção e de disjunção (BARROS, 2001, p 20)

Para categorizar essa oposição de termos e criar uma metodologia aplicável a


qualquer texto, foi desenvolvido o quadrado semiótico, uma representação lógica do nível
fundamental, que distingue termos contraditórios, contrários e complementares. Sendo sua
configuração assim estabelecida:

Na qual temos S1 e S1 em relação de contradição; S2 e S2 também em relação de


contradição. S1 com S2 e S1 com S2 em relação de contrariedade e por fim, S1 com S2 e S1
com S2 como termos complementares. É importante ressaltar que só é possível que se
estabeleça esta relação na estrutura elementar quando S1 e S2 forem termos “polares de uma
mesma categoria semântica (BARROS, 2001, p 21)”. As ligações realizadas no quadrado
semiótico negam um conteúdo e afirmam outro, tornando assim, a significação possível de
ser narrativizada. Tratando da semântica fundamental, temos categorias semânticas que
produzem microuniversos semânticos. O que rege as estruturas fundamentais é a projeção da
categoria tímica euforia vs. disforia. Sendo a euforia relacionada à aceitação do ser humano
com o meio em que está inserido e a disforia à não aceitação. Assim sendo, cria- se os valores

250
virtuais, já que ainda não estão ligados a nenhum sujeito.

2.2 Nível Narrativo


Passamos então do nível fundamental para o nível das estruturações narrativas. Os
valores virtuais agora são reconhecidos como valores ideológicos, por estarem associados a
um sujeito. A gramática narrativa é caracterizada por dois pontos principais, primeiro pela
mudança e transformação de estados dos sujeitos participantes e segundo pelo
estabelecimento e quebra de contratos entre destinador e destinatário sempre em relação ao
objeto de valor. O esquema canônico narrativo, de acordo com Greimas (2014), é constituído
por quatro fases: manipulação, competência, performance e sanção.

É o destinador manipulador que define e doa os valores modais do sujeito. Seu


percurso é formado por duas etapas: a atribuição de competência semântica e a doação de
competência modal. A atribuição da competência semântica está ligada aos valores que os
sujeitos imprimem no objeto. Para que ocorra a doação da competência modal, antes é
necessário que o destinatário manipulado creia nos valores criados pelo destinador. Já a
competência modal está associada à manipulação em si, e é quando o destinador doa ao
destinatário valores modais do querer-fazer, dever-fazer, saber-fazer e do poder-fazer.

A sanção encerra o ciclo da sintaxe narrativa, podendo ser cognitiva ou pragmática.


No primeiro caso, o julgamento é feito pela verificação das ações do sujeito- manipulado e
dos valores com que se relaciona. Cabe então ao destinador-julgador verificar se o sujeito
cumpriu com o que foi estabelecido na manipulação, tendo como base os valores
anteriormente estabelecidos. Por outro lado, a sanção pragmática, é o reconhecimento do
cumprimento dos compromissos assumidos pelo contrato narrativo e então julgado
positivamente, recebendo uma retribuição, ou negativamente, recebendo uma punição.

2.3 Nível Discursivo


O nível discursivo é o mais concreto e enriquecido semanticamente. Está mais
próximo à manifestação e é caracterizado pelas figuras, temas e isotopias que “conferem ao
texto unidade semântica (MATTE, LARA, 2009, p 16)”. O discurso realiza-se em um
enunciado, que por sua vez é produzido por uma enunciação (PETROFORTE, 2004). Nele
encontramos categorias de tempo, espaço e pessoas, que até o nível narrativo não eram

251
reconhecidos. Pode-se brevemente definir figuras como termos que remetem a elementos do
mundo natural efetivamente existente ou construído como tal. As figuras são mais concretas e
podem ser iconizadas ao mundo real. Já os temas são, ainda de acordo com Fiorin (2012)
categorias que organizam, classificam, ordenam elementos, e subjazem às figuras. Já a
isotopia pode ser entendida como o plano de leitura que imprime no texto uma unidade de
sentido. Segundo Matte e Lara, “pode ser definida como a recorrência de categorias sêmicas
ao longo de um texto, sejam elas temáticas (abstratas) ou figurativas (MATTE, LARA, 2009,
P 46).” Veremos, na análise do texto, a seguir que é possível depreendermos diferentes
isotopias de um mesmo discurso.

3. Os regimes de interação
A sociossemiótica é um desdobramento da semiótica greimasiana, que considera além
da manipulação, mais três regimes de interação existente entre sujeitos. Sendo assim,
Landowski, principal expoente da sociossemiótica, propõe ao todo quatro regimes
interacionais, sendo eles: programação, manipulação, ajustamento e acidente; os dos
primeiros marcados pelo inteligível; os dois últimos pelo sensível. Os regimes de interação a
que somos submetidos refletem nossa maneira de estar no mundo como ser simbólico e
produtor de sentido que se constrói entre o contínuo e o descontínuo (LANDOWSKI, 2014).
Como seres complexos, nossas respostas às interações são as mais diversas possíveis. A
relação do sujeito com o objeto e o valor nele inserido depende inteiramente da forma como
foi contemplada ou recebida pelo sujeito.

Partindo da programação, temos a interação do fazer-ser, aquela em que o sujeito age


sobre alguma coisa do mundo. Do ponto de vista da narrativa, a operação se confunde com a
execução da performance, que é a mudança de estado das coisas a partir da ação do sujeito. A
programação concerne em primeiro lugar da relação do homem com as coisas, com o
tecnólogo, justamente por estabelecer uma interação unívoca na qual há um sujeito operando
sobre outrem. O risco e as imprevisibilidades aqui são reduzidas ao máximo, trata-se de uma
relação de regularidade.

Em uma gradação que caminha do inteligível para o sensível, apresenta-se no


próximo estágio as interações estratégicas, sendo elas a manipulação e o ajustamento.
Entretanto, vale ressaltar que um regime não é excludente a outro
matizar ou dialetizar a oposição entre programação e estratégia não é somente

252
admitir que se trata de uma distinção cuja aplicação varia em função da relatividade
dos contextos e culturas. É também reconhecer a pluridimensionalidade e, por
conseguinte, a polissemia das grandezas de todas as ordens com as quais podemos
tratar (LANDOWSKI, 2014, p 34)

A manipulação, por sua vez, exige um maior grau de interação, pois diferente do
fazer-ser, resultará em um fazer-fazer. Manipular implica misturar-se, adentrar em certo grau
na vida e no interior do outro. Encontra-se na ordem da intencionalidade, ficando evidente
assim o porquê o risco já se faz presente, ainda que em menor grau.

Já o regime do ajustamento está submetido competência estésica do sujeito: o fazer-


sentir. Não se trata mais de uma relação em que se pode prever, ou tentar convencer o outro
de acordo com valores pré-estabelecidos, pois o comportamento do sujeito pode variar de
acordo com a diversidade de contextos.
é, ao contrário, na interação mesma, em função do que cada um dos participantes
encontra e, mais precisamente, sente na maneira de agir de seu parceiro, ou de seu
adversário, que os princípios da interação emergem pouco a pouco (LANDOWSKI,
2014, p 46).

No ajustamento, a fluidez do sentir é considerada como parte do processo interacional


e faz dele um intrigante jogo entre crenças, desejos e intenções. Se na manipulação fala-se em
persuasão do sujeito, aqui diz respeito ao contágio.

Por fim, chegamos então ao regime do acidente, ao lado descontínuo da matriz de


interação entre sujeitos. Este regime está associado àquilo que não pode ser previsto e nem
evitado, como por exemplo desastres naturais. O outro é denominado o acaso, aquele que não
dá margens para nenhuma interpretação fundada em razão e na prática, não oferece garantia
alguma de seu resultado. No acidente temos o princípio da aleatoriedade.

4. Plano da expressão e semissimbolismo


Quando saímos da análise do plano do conteúdo e partimos para análise do plano da
expressão, nos deparamos com as categorias sensíveis que engendram o texto. Como já dito
anteriormente, é no plano da expressão que o sentido se manifesta através de sons, cores,
imagens, gestos, gostos e cheiros. Podendo ser um texto visual, auditivo, tátil, gustativo ou
olfativo. Em muitos casos, o plano da expressão funciona apenas como veículo do conteúdo,
como são os textos jornalísticos, por exemplo. Já em outros, encontramos significações na

253
manifestação, e o que correlaciona estes sentidos é a relação semissimbólica. O
semissimbolismo é, portanto, quando “uma forma da expressão é articulada com uma forma
do conteúdo” (PIETROFORTE, 2012, p 42).

Considerando que o objeto deste artigo é um texto sincrético, sua análise levará em
consideração as categorias cromáticas, relacionada às cores predominantes nas cenas e
topológicas, referente à disposição dos elementos e personagens da trama. A partir da relação
entre as significações presentes no conteúdo e na expressão, é possível estabelecermos uma
relação semissimbólica que fomenta os sentidos inferidos neste texto.

5. Análise semiótica de Be right Back


Como objetivado anteriormente, a análise do episódio “Be Right Back” da série Black Mirror
será feita a partir do percurso gerativo de sentido, analisando seus três níveis. Serão também
utilizadas as contribuições da sociossemiótica desenvolvida por Landowski para explanar
sobre os regimes de interação que regem os sujeitos da narrativa ficcional. Por fim, propõe-se
a compreensão dos sentidos depreendidos da relação semissimbólica que compõe o texto.

5.1 O nível fundamental em Be right Back


Retomando brevemente à narrativa de “Be Right Back” temos o sujeito Martha em conjunção
com a presença de seu marido Ash. A partir do momento em que ele morre, Martha entra em
disjunção com o objeto de valor, aqui estabelecido como a presença de Ash. É importante
ressaltar que o valor investido no objeto, neste primeiro momento, é a presença de seu
companheiro e o sujeito ontológico. Esquematicamente no quadrado semiótico de oposição
axiológica teríamos:

254
Assim, neste primeiro momento, no microuniverso semântico ocorre uma marcação
fórica dos termos da estrutura. O texto do exemplo marca a presença com a euforia e a
ausência com a disforia, sendo o primeiro positivo e o segundo negativo em relação aos
valores que se projetarão no nível narrativo por meio do sujeito.

Porém, o que nos chama atenção na trama é que o percurso aqui estabelecido como a
passagem entre a Presença e a Ausência, irá sofrer uma mudança ao longo da estória. Assim
que Martha descobre que está grávida, ela decide se render aos aparatos tecnológicos que
prometem uma interação bastante realística com seu falecido marido. Em um processo
gradual, Martha então passa a entrar em conjunção com a presença de Ash novamente, porém
agora, mediada pela tecnologia. Apesar de chegar tê-lo ele fisicamente ao seu lado, por meio
de um boneco-robô que compila as informações (imagens, textos e sons) deixadas por ele nas
redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram, YouTube, etc., fazendo da experiência de
interação entre estes sujeitos ainda mais próxima do real, ao desenrolar da narrativa fica claro
que o sujeito Martha não entra mais em conjunção com a Presença de Ash, uma vez que,
embora o robô pareça ser a cópia perfeita de seu marido, ele não cumpre com as expectativas
emocionais e sensíveis que envolvem a relação entre ambos. Portanto, temos estruturalmente:

255
Desta forma, podemos concluir que o percurso fórico em direção à Presença não se
completa, ficando a narrativa no campo da “Não Presença” já que o sujeito “Novo Ash” não
cumpri o papel do objeto de valor presença.

5.2 Percurso dos sujeitos na narrativa


A sintaxe narrativa que organiza os papéis subjetais e objetais, é caracterizada por um
enunciado de fazer regendo um enunciado de estado. No que diz respeito ao Enunciado de
Estado temos o sujeito Martha em disjunção com o objeto de valor Presença de Ash. O
enunciado de fazer portanto é a transformação do estado de disjunção para o estado de
conjunção do sujeito com o objeto. Vamos compreender como ocorreu a transformação de
estados desta narrativa.

Primeiramente é estabelecido um contrato fiduciário entre destinador manipulador e


destinatário manipulado, no qual ambos compartilham das mesmas crenças e valores.

É ele (destinador), na narrativa, a fonte de valores do sujeito, seu


destinatário: tanto determina que valores serão visados pelo sujeito quanto
dota o sujeito dos valores modais necessários à execução da ação
(BARROS, 2005, p 30)

Ou seja, na narrativa quem exerce o papel de destinador é Sara, a amiga que apresenta
o novo Software de Inteligência Artificial para Martha. O percurso do sujeito destinador é
caracterizado pela doação de competência semântica ao destinatário, ou seja, o fazer-crer. É
preciso que ambos os sujeitos creiam nos mesmos valores, sendo assim, caso ter contato com
um ente falecido não fosse um valor em comum, a narrativa se encerraria sem o

256
estabelecimento de um contrato e, portanto, sem as outras etapas que a sucedem. Após a
doação da competência semântica (fazer-crer) se pressupõe a doação da competência modal
na qual destinador doa ao destinatário valores modais, neste caso o poder-fazer e o saber-
fazer contato com alguém que já morreu. A doação de competência modal é a própria
manipulação, que no caso do objeto analisado se dá por tentação, quando Sara oferece um
objeto de valor positivo (a presença de Ash, para Martha.) Cumprida a manipulação, o sujeito
destinatário está apto e competente para exercer sua performance, ou seja, a transformação de
estado que se realiza no contato entre Martha e o Novo Ash.

Esta é uma análise do percurso dos sujeitos, destinador manipulador e destinatário


manipulado. É válido ressaltar que temos também o percurso do sujeito julgador, responsável
pela sanção. Porém, não entraremos em sua complexidade por compreender que as
significações da trama estão presentes nos percursos analisados.

5.3 - Uma interação entre o ajustamento e a programação


De acordo com os regimes de interação propostos por Eric Landowski 20 se
reconhecem os sujeitos dotados de sensibilidade, por isso a interação se faz não no fazer- crer
mas no fazer-sentir. É partindo dessa ideia que iremos analisar a relação entre os sujeitos
Martha e o Novo Ash. Conforme explicitado na seção anterior, a relação entre destinador e
destinatário da trama ocorreu por manipulação. O que nos interessa agora é a interação
sensível que existe entre um sujeito movida pelo sensível e outro sujeito movido pelo
inteligível.

Do ponto de vista de Martha, sua relação com o sujeito Novo Ash acontece com base
no regime de ajustamento, tendo em vista que durante toda a narrativa ela tenta fazer com que
suas expectativas se adequem as ações do outro.

Imagem 1: Nesta cena Martha e o Novo Ash tentam manter relações sexuais da
mesma maneira como acontecia anteriormente com seu marido. Porém, é necessário que
ocorra uma interação de ajustamento, tendo em vista que o boneco não corresponde às suas
expectativas, Martha tem que se adequar às limitações do boneco-robô. O Novo Ash
entretanto, responde à essa interação de acordo com o regime da programação, seguindo a

257
lógica de ser uma máquina literalmente programada para ser operada (fazer-ser).

Este tipo de disparidade acontece durante toda a trama, e pode também ser
representada pela Imagem 2, que figurativiza uma cena de briga entre os dois, na qual o
personagem não reage da maneira com que ela espera em uma situação de tensionamento.

A interação não mais se assentará sobre o fazer-crer, mas sobre o fazer


sentir – não mais sobre a persuasão entre inteligências, mas sobre o
contágio, entre sensibilidades: fazer sentir que se deseja para fazer desejar
[...]” (LANDOWSKI, 2014, p 54)

Figura 1: Ajustamento
Fonte: Black Mirror 2011- Ep 01x02

258
Figura 2: Ajustamento vs programação
Fonte: Black Mirror 2011- Ep 01x02

O ponto chave da narrativa, tomada à luz dos regimes interacionais, é compreender


que enquanto um personagem age sob a lógica da programação e do inteligível, outro age sob
à lógica do ajustamento e do sensível. Todo o conflito da trama acontece pela disparidade
estabelecida na passagem da programação para o ajustamento. Neste caso a interação por
ajustamento não ocorre entre os dois sujeitos porque a premissa de doação da competência
semântica do fazer-sentir não pode ser apreendida por parte de um dos sujeitos, visto que, por
ser uma máquina, consegue apenas cumprir seu papel temático pré-estabelecido referente ao
fazer-ser no mundo.

5.4: Nível discursivo: um convite à reflexão crítica sobre a relação entre a


humanidade e a tecnologia.
No último nível, mais completo e enriquecido semanticamente, podemos depreender
as figuras, temas e sequencialmente à isotopia recorrente do discurso. Por se tratar de uma
série televisiva – um produto do entretenimento – nota-se que é um texto repleto de figuras
que são representadas por elementos do mundo natural (personagens, casa, roupas, cores,
cemitério, etc.). Estas figuras recobrem os temas que podem ser inferidos, sendo algum deles:
a morte, a tecnologia, a perda, o relacionamento, entre outros possíveis de serem
compreendidos por meio das recorrências figurativas. Entretanto, a isotopia, ou seja, o plano
de leitura desta trama nos leva para a reflexão da relação entre o humano e o tecnológico. Até
que ponto nossas relações são mediadas por máquinas? Além da questão da relação entre o

259
sensível e inteligível, também podemos pensar o encadeamento da construção da identidade a
partir das redes sociais. Seria esta uma nova forma de construção social e identitária a partir
da materialização de nossa memória? Estas são apenas algumas questões que suscitadas pelo
episódio e que merecem contemplações mais aprofundadas sobre, o que não compete a este
trabalho. Entretanto, fica evidente a importância de uma análise bem estruturada para que o
texto seja lugar fértil de significações e posteriores reflexões críticas.

5.5 - Semissimbolismo: A expressão da ausência


É certo que o texto é uma junção entre o plano do conteúdo e o plano da expressão. A
análise feita até aqui se atentou para o percurso gerativo de sentido, que engloba os níveis do
conteúdo. Neste momento iremos olhar nosso objeto a partir da ótica da manifestação e
compreender os sentidos que estão entrincheirados entre o conteúdo e a expressão.

Partindo para a análise semissimbólica das cenas de Be Right Back podemos


compreender primeiramente a categoria cromática como significante no texto. Isso porque,
nela, estão presentes sentidos que depreendemos do plano do conteúdo, ou seja, as cores aqui
são formas de significação. Ao analisar a matiz predominante nas cenas, percebemos que
quando a narrativa está tratando da ausência (oposição fundamental de base entendida no
nível fundamental) as cores utilizadas são frias, azulados (imagens 3,4 e 5). Por outro lado,
nas cenas em que Martha e Ash estão juntos a matiz são de cores quentes, alaranjados
(imagens 1, 2 e 6).

Além da categoria cromática, o plano das cenas também muda de acordo com o
momento da narrativa. Tratamos então da categoria topológica, que relaciona a disposição
espacial dos elementos. É perceptível que os planos mais abertos evidenciam a solidão da
personagem, enquanto os planos mais fechados são os que mostram a interação entre eles.
Sendo assim, a homologação estaria na relação entre plano aberto/ausência (anexos 3,4 e 5) e
plano fechado/presença (imagens 1, 2 e 6).

260
Longe de ser uma coincidência, a análise semissimbólica deste episódio se justifica pela
riqueza de significações que podem ser depreendidos. Conscientemente ou não, o
enunciatário é contemplado por um texto semioticamente enriquecido de sentidos em todas
suas formas de ser.

Imagem 3 – Cores Frias / Plano Aberto/ Ausência


Fonte: Black Mirror 2011- Ep 01x02

261
Imagem 4 – Cores Frias / Plano Aberto/ Ausência
Fonte: Black Mirror 2011- Ep 01x02

Anexo 5 – Plano aberto / Cores Frias / Ausência


Fonte: Black Mirror 2011- Ep 01x02

262
Anexo 6 – Plano Fechado / Cores Quentes / Presença
Fonte: Black Mirror 2011- Ep 01x02)

6. Considerações finais
A análise desenvolvida neste trabalho cumpre seu objetivo de depreender as
significações presentes na narrativa ficcional de “Be Right Back”. Apesar de ter uma
temática voltado ao tecnológico futurista, Black Mirror nos faz refletir sobre as questões
vivenciadas atualmente diante dos novos aparatos tecnológicos aos quais somos submetidos.
Não podemos mais distinguir com clareza o humano do tecnológico, o sensível do inteligível.
Nos entrelaçamos às tecnologias deixando rastros pessoais de nossas memórias, criando
assim uma materialidade virtual do que antes era construído apenas na interação pessoal. No
caso de Martha, ela poderia ter aceitado a morte, vivenciado o luto e aprendido a lidar com a
ausência de seu marido. Entretanto, preferiu reconstruir a representação física de uma pessoa
a partir de lembranças virtuais. Problematizo que esta não é uma questão longe de ser
contemplada por nós. Recorremos aos escapes do tecnológico para lidar com problemáticas
pessoais, o que esquecemos é que ao lidar com outro sujeito devemos considerar o afeto, a
ordem do sensível e não a previsibilidade programada do inteligível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

263
BARROS, D. L. P. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo:
Humanitas/EdUSP, 2001, p. 72 à 134.
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São Paulo: Humanitas/EdUSP, 2001. p. 7-71.
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FIORIN, José Luiz. “Três questões sobre a relação entre expressão e conteúdo”. Em busca do
sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2012.
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LEMOS, A. Isso não é Muito Black Mirror. Salvador: EdufBA. 2018
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MENDES, C. M. Modalizações do fazer no episódio “Hino Nacional”, do seriado Black
Mirror. Revista Significação, São Paulo, v. 44, n. 48, p. 32-52, jul-dez. 2017. Disponível em
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PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo:
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TEIXEIRA, Lucia. “Para uma metodologia de análise de textos verbovisuais”. In:
OLIVEIRA, Ana Claudia; TEIXEIRA, Lucia. Linguagens na comunicação:
desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009.

264
AS PRIMEIRAS ONDAS ENTRE AS MONTANHAS:
memórias do surgimento do rádio em Ouro Preto 1
THE FIRST WAVES AMONG THE MOUNTAINS:
memories of the consolidation of radio in Ouro Preto
Rafael Medeiros 2
Nair Prata 3

Resumo: As questões acerca do rádio local demandam algumas reflexões


complexas porque acionam diferentes características intrínsecas à construção
social, dinâmicas de proximidade, marcos geográficos, memórias, afetos, formação
cultural, dinâmicas de interação e, mais recentemente, às mediações por meios
digitais. O rádio local tende a gerar formas comunicacionais partilhadas com a
população, retratando a realidade com base em diferentes componentes identitários
e vínculos de pertença. Como parte de uma pesquisa em andamento, o artigo se
propõe a reconstituir a história da Rádio Itatiaia Ouro Preto através da realização
de entrevistas de história oral com seus primeiros funcionários e entusiastas,
buscando nas memórias desses sujeitos os afetos e experiências que determinaram
o surgimento da mais tradicional rádio da antiga capital de Minas Gerais.

Palavras-Chave: memória. história. rádio. Ouro Preto. Rádio Itatiaia Ouro Preto

1. Introdução

A história centenária da radiodifusão brasileira foi construída a partir de diferentes


iniciativas heterogêneas e não centralizadas. O rádio desde o começo foi tido como um meio
de integração entre as populações de regiões distantes e, nas cidades do interior, as emissoras
locais até hoje exercem uma posição de centralidade em diversos aspectos da vida social,
anunciando objetos perdidos, veiculando notas falecimentos, convites para missas e até

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Memória nas Mídias do 3º. CONEC: Congresso
Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP). Graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Publicidade e
Propaganda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Membro do Grupo de
Pesquisa Convergência e Jornalismo (ConJor), e-mail: rfmedeiros13@gmail.com
3
Jornalista, doutora em Linguística Aplicada (UFMG), com estágio de pós-doutoramento na Universidad de
Navarra (Pamplona, Espanha). Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Ouro Preto (UFOP). Diretora Científica da Intercom e vice-presidente da Associação Brasileira
de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar). Membro do ConJor, e-mail: nairprata@uol.com.br

265
mesmo servindo de elo de comunicação entre pessoas da sede do município e habitantes da
zona rural através de recados individuais que um cidadão manda para outro.
Como desdobramento de uma pesquisa mais abrangente 4, o presente artigo busca
reconstituir e documentar a história da emissora mais tradicional da cidade de Ouro Preto,
Minas Gerais, a Rádio Itatiaia Ouro Preto. Nos idos iniciais da pesquisa foi realizada uma
busca documental que constatou a existência de parcos dados que pudessem contextualizar a
constituição da Rádio Itatiaia Ouro Preto. Assim, após a localização de sujeitos que
contribuíram de maneira direta para a concepção e efetivação da emissora, foram realizadas
entrevistas de história oral com o objetivo de identificar as características fundantes da então
Rádio Cultura de Ouro Preto e buscar descrever a conjuntura da mídia ouro-pretana daquela
época. O uso desse método para recuperação histórica da emissora se justifica por sua
utilidade na “obtenção de dados sobre o passado inexistentes em arquivos e em documentos
de outra natureza, como os escritos, os iconográficos e os audiovisuais” (RIBEIRO, 2015, p.
75).
As entrevistas foram realizadas com o primeiro jornalista e programador da emissora,
Maurílio Torres, com a primeira secretária, Maria Nazaré Oliveira e com o bispo emérito
Francisco Barroso Filho (Dom Barroso), incentivador da rádio nos primeiros anos da
emissora. A escolha desses três sujeitos se justifica através da concepção de que “os
depoimentos ajudam a recuperar informações sobre fatos e processos que só podem ser
conhecidos pela narrativa daqueles que os viveram diretamente ou daqueles que os
presenciaram de alguma maneira” (RIBEIRO, 2015, p. 75). Dessa forma, o trabalho usa os
depoimentos e dados já documentados em jornais para buscar elementos que ajudam a
entender como se deu a criação da Rádio Itatiaia Ouro Preto.

2. Antes das ondas: o desenvolvimento da imprensa em Ouro Preto

A pesquisa não tenciona fazer uma contextualização histórica detalhada da imprensa


ouro-pretana, porém é importante destacar algumas iniciativas que deram a Ouro Preto a
centralidade no desenvolvimento da imprensa mineira, sobretudo nos anos da cidade como

4
A pesquisa é desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFOP como uma
dissertação de mestrado que tem por objetivo entender como os ouvintes da Rádio Itatiaia Ouro Preto
percebem as mudanças nas experiências cotidianas de escuta e produção de sentido a partir da migração da
emissora de AM para FM.

266
capital da então província das Minas Gerais (1823-1897). De acordo com Mendes (2007), o
desenvolvimento da imprensa mineira foi tardio, considerando que em outras províncias a
tipografia e os periódicos já estavam consolidados. A partir de 1823, com a publicação do
Compilador Mineiro, a imprensa em Minas Gerais foi se consolidando lentamente.

A imprensa na Província começou timidamente e mostrava fragilidade. Até 1825, as


Minas não tiveram mais de um jornal circulando simultaneamente. O Compilador
Mineiro durou menos de três meses, de 13 de outubro de 1823 a 9 de janeiro de
1824. Era publicado três vezes por semana (segundas, quartas e sextas), e, em sua
curta vida, produziu 29 edições. O jornal foi muito bem recebido pela população. O
primeiro número esgotou-se rapidamente e teve que ser reimpresso (MENDES,
2007, p. 76).

Enquanto capital de Minas Gerais, foram publicados 167 jornais impressos em Ouro
Preto. Depois disso, a centralidade nas publicações migrou pra Belo Horizonte, junto com a
capital do Estado. Na época de criação da Rádio Cultura de Ouro Preto, já em 1973, eram
publicados poucos periódicos na cidade, destacando O Ouro Preto (órgão oficial da
prefeitura) e o Jornal de Ouro Preto, que produzia “um discurso novo sobre a cidade”
(DRUMMOND, 2011, p. 377). Não havia nenhuma outra emissora de rádio ou TV instalada
na cidade.
Depois de consolidada, a Rádio Ouro Preto se tornou o principal meio de
comunicação da cidade (BARROSO, 2018; OLIVEIRA, 2018) e tomou para si a hegemonia
na divulgação de informações locais para uma população de mais de 60 mil habitantes
(IBGE, 1980). A linha do tempo abaixo (figura 1) busca, assim, indicar o surgimento de
veículos e anos iniciais de periódicos, emissoras de rádio e TV de Ouro Preto, evidenciando
as que circundaram os anos de surgimento da Rádio Cultura de Ouro Preto.

267
Figura 1 – Linha do tempo da imprensa ouro-pretana

Fonte: Elaborada pelo autor com dados da pesquisa e de Mascarenhas (1982), Drummond (2011), Gomes
e Maia (2013).

268
Através dessa pequena contextualização histórica é possível perceber a importância da
Rádio Itatiaia Ouro Preto como veículo mais tradicional da cidade. De acordo com Nair Prata
(2002), a tradicionalidade é um dos fatores determinantes para que uma emissora de rádio
tenha um público fiel. Assim,

a tradição é importante porque, mesmo que não dê uma audiência grande, mas fique
no ar muitos anos, o programa acaba tornando-se sinônimo da emissora. Assim,
também viram sinônimo da emissora o locutor, aquele formato determinado, a
linguagem utilizada (PRATA, 2002, p. 6).

Nesse viés, o rádio, enquanto mídia próxima da audiência, tem ainda mais
possibilidade de manter um público fiel porque agrupa outros aspectos relacionados à
memória coletiva, afetos e identidade. Na medida em que o imaginário coletivo concebe a
importância dos meios de comunicação, a existência de uma emissora próxima gera esse
sentimento de pertença porque ela reverbera acontecimentos da vida cotidiana do ouvinte,
que se vê representado e percebe “no rádio mais um componente de inserção na vida urbana”
(MAIA, 2006, p. 6). Através da rádio ele pode mandar recados, pedir músicas, interagir com
locutores, ele pode se escutar nessa emissora - que passa a ser também dele.

3. Em 1930, as primeiras ondas

A primeira iniciativa de criação de uma emissora de rádio na cidade de Ouro Preto


data da década de 1930, quando o eletricista da Companhia Industrial Ouro-Pretana, José
Russo, operava os canais de telefonia para que fosse feita a transmissão das cerimônias da
Semana Santa de Ouro Preto por algumas rádios de Belo Horizonte. Russo teve então a
iniciativa de montar uma rádio que poderia ter a centralidade nesse processo de cobertura dos
acontecimentos locais. Assim, pouco tempo depois, a Rádio Itacolomi entrou no ar. “A
estação, embora clandestina e de pequeno alcance, foi durante mais de 14 anos o único e
autêntico veículo de comunicação local” (MARINHO, 1982, p. 2).
A Rádio Itacolomi operou dessa maneira até a segunda guerra mundial, quando teve
suas atividades paralisadas. A emissora voltou ao ar na década de 1950, “funcionando num
cômodo da própria residência de José Russo. Transmitia programação de certo requinte com

269
discos e ao vivo [...]” (id. ibid) e teve seus melhores momentos na década de 1960, quando
passou a funcionar com um transmissor de 80 watts. Nessa época a Itacolomi foi transferida
para as salas da Associação Comercial de Ouro Preto - onde mais tarde seria instalada a
Rádio Cultura de Ouro Preto - e desativada poucos anos depois.
A segunda iniciativa se deu em 1967, quando um grupo de empresários e entusiastas
da radiodifusão tentou fundar na cidade uma emissora que seria chamada Rádio Ouro Preto,
porém o projeto não foi adiante por dificuldades na aquisição de um canal de ondas médias
(TORRES, 1982, p. 6). “Antes de ter a Itatiaia eu e um grupo tentamos instalar uma rádio em
Ouro Preto porque a gente achava que a cidade precisava ter uma rádio, mas não tivemos
dinheiro pra isso” (TORRES, 2018). Assim, depois do fechamento da Rádio Itacolomi, Ouro
Preto teve uma nova emissora apenas em 1973, quando o empresário Januário Carneiro, dono
da Rádio Itatiaia e vice-presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e
Televisão (ABERT), comprou a concessão pertencente à Rádio Cultura de Itabirito e instalou
a Rádio Cultura de Ouro Preto na antiga Vila Rica.
Embora as rádios Itacolomi e Cultura tenham funcionado no mesmo local em
períodos diferentes, a pesquisa não identificou outros elementos conectores entre elas, até
porque a Cultura era legalizada e surgiu com uma estrutura mais robusta que a Itacolomi
quando o rádio brasileiro já estava em outro estágio de desenvolvimento.

4. Rádio Ouro Preto: a onda principal e mais duradoura

A história da Rádio Itatiaia Ouro Preto 5 teve início oficialmente no dia 27 de abril de
1974, quando a emissora começou a funcionar com o nome de Rádio Cultura de Ouro Preto,
sendo a primeira rádio da legalizada da cidade (MARINHO, 1982, p. 2). Antes disso, a rádio
operou em caráter experimental desde 1973 e foi instalada inicialmente nos fundos da
Associação Comercial de Ouro Preto, à Rua Teixeira Amaral, no centro da cidade, ocupando
a frequência de 1490 quilohertz no dial.
Cinco anos mais tarde a sede da Rádio Cultura de Ouro Preto foi transferida para a
Rua Padre Antônio Gabriel de Carvalho, no bairro Antônio Dias, quando passou a ocupar a

5
Na contextualização histórica aqui proposta, a nomenclatura utilizada busca acompanhar as mudanças de
nome que a emissora passou. Assim, no texto pode aparecer Rádio Cultura de Ouro Preto, Rádio Ouro Preto
ou Rádio Itatiaia Ouro Preto a depender da época em que se referencia, exceto quando explicitado.

270
frequência 610 kHz e adotou o nome de Rádio Ouro Preto, como já era chamada pelos
moradores desde sua inauguração. Sobre essa mudança de sede, Padre Simões afirma que a
emissora “alojou-se [...] no salão paroquial de Antônio Dias, em convênio com o então
preclaro Padre Francisco Barroso, como a ‘Rádio Ouro Preto’” (SIMÕES, 1996, p. 9). Em
entrevista concedida ao pesquisador, o primeiro jornalista e programador da rádio, Maurílio
Torres ressalta que a emissora saiu da sede da Associação Comercial por falta de dinheiro e
então mudou “para uma sala que o vigário da época, Dom Barroso, emprestou” (TORRES,
2018). Dom Barroso (2018) rememora esse período:

Eu tinha acabado de construir o salão, mas não tinha utilizado o porão não, só a
parte de cima. Em baixo eu tinha construído pra usar de salas de catequese, mas ele
[Januário Carneiro], com aquela necessidade veemente de um lugar melhor pra
rádio, disse: "Olha, o senhor vai poder utilizar a rádio como se a rádio fosse da
paróquia e eu posso pagar um aluguel, mas o senhor me permite fazer umas
adaptações aqui?". Como a gente ainda estava em transição, eu disse: "Pode
modificar para o melhor funcionamento da rádio, você pode fazer essa reforma aí".
Então ele mexeu, fez uma adaptação, e a parte de baixo do salão ficou sendo a rádio
(BARROSO, 2018).

De acordo com uma das primeiras funcionárias da emissora, Maria Nazaré de Oliveira
(2018), a programação pioneira da Rádio Cultura de Ouro Preto foi configurada a partir de
notícias locais e Música Popular Brasileira. A programação musical contava também com um
programa de música clássica todos os domingos. Maurílio Torres, que estruturou a primeira
programação da rádio, evidencia que “era uma programação mais requintada, mas tinha
utilidade pública” (TORRES, 2018). O requinte citado pelo jornalista aparece como um
resquício elitista das primeiras programações de rádios brasileiras. Vale ressaltar que não
cabe adjetivar desse modo a programação da Rádio Cultura de Ouro Preto, por mais que
houvesse espaço até mesmo para música clássica na grade, “a programação da Rádio Cultura
era popular, mas de bom gosto” (TORRES, 2018).
Ainda pároco, Dom Barroso apresentava dois programas na grade inicial da emissora,
Palavra de Vida e A Hora do Angelus, cujo conteúdo “era o comentário do evangelho do dia
e a aplicação do evangelho na vida das pessoas” (BARROSO, 2018). Com a participação da
Igreja nos idos iniciais da Rádio, o aluguel do salão paroquial não era cobrado e a emissora
passou a efetivamente se desenvolver a partir desse período. Segundo Oliveira (2018), a
emissora transmitia ainda missas importantes das igrejas da católica Ouro Preto. Nesses casos

271
de transmissões externas, que demandavam uma produção mais estruturada, a equipe da
emissora “arrumava o patrocinador para transmitir” porque era necessário solicitar e pagar
uma linha telefônica especial para a ocasião ou, na falta de patrocinadores, era preciso
solicitar “algum telefone emprestado da casa dos vizinhos para falar do estúdio pra igreja.
Alguém perto da igreja emprestava o telefone e aí o locutor citava o nome da pessoa”
(OLIVEIRA, 2018).
As falas dos entrevistados ratificam que a rádio desde o começo buscou se inserir no
cotidiano da cidade e se aproximar da população através da difusão de acontecimentos
finítimos dos municípios de Ouro Preto, Mariana e Itabirito 6. Além disso, a emissora
divulgava recados pessoais dos moradores, sobretudo entre a população da zona urbana e das
áreas rurais e distritos dessas cidades, já que a Rádio Ouro Preto representava por vezes a
forma de comunicação mais rápida entre as localidades mais distantes da sede. Sobre essa
prestabilidade específica da emissora, Nazaré Oliveira (2018) rememora que “as pessoas
mandavam recado sim. Quando uma pessoa às vezes estava doente na Santa Casa, por
exemplo: ‘Fulano mandou avisar que está internado’. A gente fazia isso sim, porque isso é
serviço de utilidade pública” (OLIVEIRA, 2018). Dom Barroso também recorda ter enviado
“avisos pras comunidades rurais. Naquele tempo a gente ia pra Lavras Novas, Chapada,
Salto, Santa Rita e eu mandava recado pra essas comunidades todas através da rádio, como se
fosse um telefone” (BARROSO, 2018). Essa função ainda é bastante comum em muitas
emissoras do interior, sobretudo nas que transmitem em Amplitude Modulada (RADDATZ,
2011).
O jornalismo da Rádio Ouro Preto já nessa época era baseado em informações locais
e prestação de serviços. Maurílio Torres salienta que “as notícias eram mais de Ouro Preto
[porque] era obrigatório na programação das rádios ter notícias locais” (TORRES, 2018) e
Nazaré Oliveira relembra que além das notícias cotidianas, “a equipe fazia coberturas da
Semana Santa, do Vinte e Um de Abril, Sete de Setembro e de qualquer outra solenidade que
tinha” (OLIVEIRA, 2018). A primeira funcionária da Rádio Cultura lembra ainda que

6
A Rádio Ouro Preto divulgava informações de Itabirito pela proximidade, porém as notícias
majoritariamente eram das cidades de Ouro Preto e Mariana. “Até porque Itabirito tinha a rádio deles”
(OLIVEIRA, 2018). Ainda hoje a Rádio Itatiaia Ouro Preto informa sobre acontecimentos da cidade de
Itabirito, porém são informações esporádicas de acontecimentos considerados de relevância para a região de
maneira geral.

272
frequentemente eram transmitidas missas de diferentes paróquias da cidade e rememora as
dificuldades na realização desse tipo de cobertura externa nos anos iniciais da rádio: “A gente
pedia telefone emprestado da casa dos vizinhos pra falar do estúdio pra igreja. Alguém perto
da Igreja emprestava o telefone e aí a gente citava o nome da pessoa” (id. Ibid.). Esse trecho
da entrevista mostra também a boa aceitação da emissora pela comunidade, no que a
entrevistada complementa que “a população sim, a população gostava [da rádio]. A gente
recebia um telefonema atrás do outro” (OLIVEIRA, 2018) e Maurílio Torres salienta que
desde o começo a Rádio Ouro Preto “teve muito apoio da população porque a programação
tinha utilidade pública. [...] Então até mesmo o pessoal dos bairros de periferia ouvia a rádio”
(TORRES, 2018).
Considerando uma das principais características do veículo, o imediatismo, a rádio
tinha centralidade na divulgação das listas dos vestibulares da Universidade Federal de Ouro
Preto. Nessa época, também de acordo com Oliveira (2018), os funcionários ficavam “até de
madrugada, às vezes, porque era interessante para a rádio e a rádio ficava cheia de estudantes
enquanto não saíam os gabaritos” (OLIVEIRA, 2018). A rádio ainda prestava serviços que
são típicos de emissoras locais, como anúncios de achados e perdidos. Desse modo, o rádio
local – incluindo a Rádio Itatiaia Ouro Preto –

cumpre sua função voltada principalmente para a informação e o serviço, mas


fortalece sua trajetória pela afinidade com o ouvinte que nele se enxerga e se vê
representado pela linguagem, pelas temáticas e pela possibilidade de ouvir seu
nome, o nome do seu amigo, da localidade onde mora ou dos lugares que frequenta
(RADDATZ, 2011, p. 1).

Como evidência do tradicionalismo da emissora e da proximidade com seus ouvintes


com base na comunidade local desde o seu começo como Rádio Cultura de Ouro Preto, e
ainda hoje, a emissora é chamada pela população apenas de Rádio Ouro Preto. No Programa
Antônio Carlos, transmitido pela Rádio Itatiaia Ouro Preto no dia 21 de outubro de 2016, o
apresentador Antônio Carlos de Souza, ao comunicar o falecimento de um fiel ouvinte da
emissora, também notabiliza essa questão: “Ele [o ouvinte] e seu radinho sempre sintonizado
na Rádio Itatiaia Ouro Preto, ele não aceitava a mudança do nome da rádio” (SOUZA citado
por SANTOS, 2017, p. 46).

273
Se a Rede Itatiaia atualmente tem nos noticiários esportivos e transmissões de partidas
de futebol uma das bases de sua programação, a Rádio Ouro Preto desde cedo transmitia os
campeonatos de futebol amador da cidade e noticiava sobre clubes e eventos. Maurílio Torres
reaviva esse início das transmissões esportivas pela emissora:

Muita gente falava pra mim que em Ouro Preto não tinha movimento esportivo.
Não tinha porque não existia uma rádio para fazer a cobertura. Então a gente
resolveu fazer uma programação esportiva, criou a Copa Januário Carneiro 7 e fazia
a transmissão (TORRES, 2018).

Ainda na década de 1980, com o processo de automatização das emissoras de rádio de


maneira geral (KLÖCKNER, 2010, s.p), a Rádio Ouro Preto cresceu e também se
modernizou. Sobre esse período de crescimento da emissora, o Jornal de Ouro Preto noticiou
em sua edição número 6, de 29 de agosto de 1982 que a “Rádio Ouro Preto terá mais potência
e alcance mundial” (TORRES, 1982, p. 6) a partir da instalação de um novo transmissor, de
uma nova antena e equipamentos mais modernos.
Embora em bom estado e atendendo às necessidades da rádio ouro-pretana, os
equipamentos que compunham a parte técnica da Rádio Ouro Preto eram todos repassados
pela Rádio Itatiaia de Belo Horizonte. No começo, “o transmissor que a rádio usava [...] era o
um transmissor antigo da Itatiaia de Belo Horizonte que o Januário trouxe pra cá. Era um
equipamento meio velho” (TORRES, 2018). Dom Barroso também destaca que “quando a
rádio de Belo Horizonte renovava o seu material, seu equipamento, mudava o estúdio, por
exemplo, o estúdio antigo que era em Belo Horizonte vinha pra cá. O equipamento que era
trocado lá vinha pra Ouro Preto” (BARROSO, 2018). O bispo esclarece que eram bons
equipamentos, o que “quer dizer que a Rádio Itatiaia sempre teve um cuidado de aprimorar a
Rádio Ouro Preto. Ela nunca ficou parada, ela sempre cresceu” (id. ibid).
Mesmo que já pertencente ao grupo de comunicação da emissora sediada em Belo
Horizonte, no dia 01 de janeiro de 2004 a emissora passou a se chamar Rádio Itatiaia Ouro
Preto, deixando de ser tida como retransmissora de alguns programas da rádio com sede em

7
A hoje extinta Copa Januário Carneiro foi idealizada pela equipe da então Rádio Ouro Preto em 1980 e em
pouco tempo se tornou um dos principais torneios da região. O Jornal de Ouro Preto de março de 1982
destaca a festa de entrega de troféus da Copa ao Ferroviário de Cachoeira do Campo, campeão da copa
naquele ano (MORETZSOHN, 1982, p. 5).

274
Belo Horizonte para se tornar uma das cinco emissoras da rede, a mais antiga delas no
interior de Minas Gerais.
Em 2016, já iniciado o processo de migração para FM 8, a Rádio Itatiaia Ouro Preto
mudou mais uma vez de sede, sendo instalada no bairro Bauxita. A emissora assinou o termo
aditivo de outorga em março de 2017 e em julho do mesmo ano passou a transmitir em FM a
mesma programação do AM. O engenheiro de radiofrequência da Rede Itatiaia, Clayton
Bomfim, esclarece que “a operação vai ficar em paralelo durante um período (com
transmissões nas duas frequências) para que o ouvinte não sofra aquele corte seco. Ainda será
definido quanto tempo vai durar essa transmissão simultânea” (BOMFIM apud BRITO,
2017, s.p). Justamente pela operação simultânea nos dois dials, algumas vertentes dos
impactos do processo de migração ainda não são conhecidos, mas a emissora já passa por
modificações desde que começou a transmitir em FM.

5. Considerações Finais

A Rádio Itatiaia Ouro Preto está inserida de maneira bastante estável na vida cotidiana
da cidade, por ser uma emissora tradicional, com mais de quatro décadas de existência, e por
manter uma linha editorial que se aproxima da população através dos atributos discorridos
acima, de tradicionalidade, proximidade e formação do sentimento de pertencimento.
A imprensa ouro-pretana teve pouca linearidade ao longo de sua história. Embora o
primeiro jornal de Minas Gerais tenha sido editado na cidade – então capital do estado,
nenhum meio de comunicação local foi perene até a chegada da Rádio Cultura de Ouro Preto.
Através dos depoimentos e da pesquisa documental foi possível perceber ainda que a
fundação da Rádio Ouro Preto partiu de uma necessidade da população em ter um canal de
comunicação que reverberasse as notícias locais e representasse fielmente o cotidiano da
cidade. Dessa forma, em pouco tempo a rádio conseguiu se tornar o principal meio de
comunicação de Ouro Preto.

8
A migração de emissoras AM para FM é um processo muito significativo para o panorama da radiodifusão
nacional considerando que nunca foi realizado algo dessa magnitude no Brasil. Os principais motivos
apontados pelo então Ministério das Comunicações para a migração são ligados à melhora da qualidade do
som, menor interferência no sinal e a possibilidade da sintonia via dispositivos móveis, que suportam apenas
a faixa FM.. Nesse cenário, das 1.781 emissoras comerciais que operavam em AM no Brasil, 1.622
solicitaram a mudança de frequência e 650 delas já estavam operando na faixa de FM em maio de 2018.

275
A emissora começou com características bastante amadoras, com programação pouco
definida e funcionando durante algumas horas por dia, porém aos poucos a rádio foi tomando
forma e se profissionalizando. Vale citar uma frase da primeira secretária da Rádio Ouro
Preto, Nazaré Oliveira, que demonstra essa forma de construção inicial e os afetos que
marcaram as experiências de escuta dos ouvintes e as memórias daqueles que construíram o
mais tradicional veículo de imprensa ouro-pretano: “A maioria do povo que trabalhava lá
trabalhava era por amor à arte mesmo. [...] A gente batalhou demais pra essa rádio continuar,
sabe?” (OLIVEIRA, 2018).

Referências

BARROSO, Francisco. Entrevista: Dom Barroso. Ouro Preto, ago. 2018.

BRITO, Priscila. Agora em uma nova sintonia. O Tempo. Publicado em 03 jan. 2017. Disponível em:
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2007. 212 fl. Tese (Doutorado em Comunicação Social), Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo,
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OLIVEIRA, Maria Nazaré. Entrevista: Nazaré Oliveira. Ouro Preto, ago. 2018.

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RADDATZ, Vera Lucia Spacil. Rádio AM "avisa": uma expressão da cultura local. In: KLÖCKNER, Luciano;
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RIBEIRO, Ana Paula Goulart. A história oral nos estudos de jornalismo: algumas considerações teórico-
metodológicas. In: Revista Contracampo, v. 32, n. 2, ed. abril-julho. Niterói: Contracampo, p. 73-90, 2015.

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Jornalismo) - Instituto de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2017.

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TORRES, Maurílio. Rádio Ouro Preto terá mais potência e alcance mundial. In: Jornal de Ouro Preto, Ouro
Preto, 29 ago. 1982.

TORRES, Maurílio. Entrevista: Maurílio Torres. Ouro Preto, ago. 2018.

276
DO SUBJETIVO AO SOCIAL 1
um estudo dos relatos de domésticas no Facebook
FROM THE SUBJECTIVE TO THE SOCIAL
a study of housemaids reports on Facebook
Enise de Castro Silva 2

Resumo: Através do conceito pragmatista de experiência podemos, dentre outras


coisas, colocá-la no centro dos nossos esforços para compreender as interações
sociais e seus desdobramentos. Entretanto, a parte que nos é acessível da
experiência alheia através de um relato é apenas uma fração do que foi realmente
experimentado pelo sujeito que o faz. Tendo isso em mente, esse trabalho se propõe
a refletir sobre a relação entre os relatos produzidos por empregadas domésticas
para a página “Eu, empregada doméstica”, no Facebook, e a passagem de uma
perspectiva subjetiva das situações vivenciadas para uma compreensão
compartilhada de uma falta de reconhecimento de uma classe de trabalhadoras
mulheres, frequentemente pobres e negras. Para isso, pretendo captar nas
narrativas dessas mulheres os principais traços que caracterizam o que é ser
empregada doméstica no Brasil, estabelecendo uma relação com a compreensão
histórica do que é trabalho e dos atravessamentos de gênero, classe e raça nessa
questão.

Palavras-Chave: Empregadas domésticas. Experiência. Relato. “Eu, empregada


doméstica”.

1. Introdução
O presente artigo busca refletir sobre como é possível, através do conceito pragmatista
de experiência, perceber a relação entre os relatos produzidos por empregadas domésticas
para a página “Eu, empregada doméstica”, no Facebook e a passagem de uma perspectiva
subjetiva das situações vivenciadas para uma compreensão compartilhada de uma falta de
reconhecimento de uma classe de trabalhadoras mulheres, frequentemente pobres e negras.
Esse exercício compõe um dos esforços feitos no âmbito da minha dissertação de
mestrado, sob orientação da professora doutora Paula Guimarães Simões, do Grupo de
Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (GRIS) da UFMG. A etapa que apresentarei de forma

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Memória nas Mídias do 3º. CONEC: Congresso
Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais
(PPGCOM – UFMG), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), e-
mail: enise.c.s@gmail.com.

277
sumária nas próximas páginas foi uma das necessárias para a construção da metodologia que
será utilizada para analisar os relatos da página no texto da dissertação.
O artigo está dividido em outras quatro seções e considerações finais. A seção a seguir
traz uma breve história e contextualização da página “Eu, empregada doméstica”, objeto de
estudo do meu trabalho. Logo após, o conceito de experiência é apresentado dentro do
pensamento pragmatista, tendo John Dewey (1980) como principal referência.
Em seguida, é trabalhada a questão que dá nome a esse artigo, a passagem de um
aspecto subjetivo para uma problemática social por meio dos relatos das domésticas no
Facebook. Posteriormente, explico um pouco melhor como isso ajudou a delinear os
contornos do percurso metodológico desenvolvido.
Por fim, faço uma avaliação do que foi apresentado e as expectativas para o futuro do
trabalho.

2. “Eu, empregada doméstica”


No final do ano de 2015, foi possível assistir a uma série de movimentações online de
mulheres com o intuito de denunciar o machismo 3 e seus desdobramentos na nossa
sociedade. Diversas delas compartilharam relatos nas redes sociais digitais – Twitter e
Facebook – de assédios, estupros e situações em que o machismo marcou suas histórias de
vida e relações com homens por meio, por exemplo, das hashtags #primeiroassedio e
#meuamigosecreto. Entendo que esse cenário ajudou a consolidar um tipo de uso das
hashtags para divulgação de relatos associados a uma causa – como a luta contra o machismo
e a cultura do estupro, no caso das tags citadas. E é nesse contexto que vai emergir, mais
tarde, a #euempregadadoméstica.
A hashtag foi utilizada pela primeira vez por Joyce Fernandes, também conhecida
como Preta Rara, que é ex-empregada doméstica, rapper e historiadora. Com o objetivo não
só de relatar sua experiência, mas também de incentivar outras mulheres a fazê-lo, Joyce, em
sua página pessoal do Facebook, posta um texto contando o que ouviu de sua patroa em seu

3
“#PrimeiroAssédio: Mulheres compartilham no Twitter primeira vez que sofreram assédio”Disponível em:
<http://www.huffpostbrasil.com/2015/10/22/primeiroassedio-mulheres-compartilham-no-twitter-primeira-
vez_a_21693923/> Acesso em 28/11/2018.
“Meu primeiro assédio” Disponível em: <http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/meu-primeiro-
assedio.html> Acesso em 28/11/2018.
“20 relatos da hashtag #meuamigosecreto que precisam ser lidos” Disponível em:
<http://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2015/11/20-relatos-da-hashtag-meuamigosecreto-que-
precisam-ser-lidos.html> Acesso em 28/11/2018.

278
último trabalho como doméstica, e escreve no final #euempregadadoméstica. Em
entrevistas 4, ela conta que recebeu por comentários e mensagens diversos relatos de outras
mulheres, isso pouquíssimo tempo depois de postar o seu. Dessa forma, ela teve a ideia de
reuni-los em uma página no Facebook, inaugurando em 19 de julho de 2016 5 a página “Eu,
empregada doméstica”.
Assim que foi lançada, logo no primeiro dia, recebeu 20 mil curtidas. Na data de
entrega desse trabalho 6, esse número subiu para 162 mil likes e a página continua sendo
movimentada por Joyce, embora os tipos de publicação tenham se modificado e diversificado
desde o lançamento. Essa intensa movimentação e o grande alcance nas primeiras horas de
operação de uma página que trata de histórias de vida frequentemente ignoradas pelo discurso
hegemônico, chamaram minha atenção para esse objeto, que vem sendo, como dito na
introdução desse artigo, estudado na minha dissertação.
Os motivos que levam mulheres a se identificarem e relatarem os acontecimentos de
suas próprias vidas sob o rótulo “Eu, empregada doméstica” indica que, mesmo que suas
vivências sejam únicas e particulares, existe algo que todas essas mulheres compartilham e
que diz de características e problemas da nossa sociedade. Para tentar compreender esse
movimento, recorremos ao conceito pragmatista de experiência, que será apresentado a
seguir.

3. O conceito de experiência
Antes de entrar propriamente no conceito de experiência, apresentarei brevemente
algumas características do pragmatismo que trazem implicações importantes para o conceito
e vão auxiliar na compreensão dele.
A autora Thamy Pogrebinschi (2005) caracteriza o pragmatismo como uma matriz
filosófica, da qual Charles Pierce (1839-1914) é o grande fundador. Apesar de ser ele quem
nomeia, inaugura e fornece as bases dessa corrente de pensamento, ela aparece na formulação
desse autor “limitada” a uma teoria da significação. Segundo a autora, os responsáveis por

4
“Ex-empregada doméstica lança campanha nas redes sociais para denunciar abusos de patrões” Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/salasocial-36857963> Acesso em 30/10/2018.
“Por meio da Internet, empregadas domésticas relatam abusos de patrões” Disponível em:
<http://odia.ig.com.br/brasil/2016-07-24/por-meio-da-internet-empregadas-domesticas-relatam-abusos-de-
patroes.html> Acesso em 29/11/2018.
5
Fonte: Sobre. Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/euempregadadomestica/about/?ref=page_internal> Acesso em: 18/10/2018
6
Em 30 de novembro de 2018.

279
expandir o pensamento pragmático de Pierce e dar-lhe outras aplicações são William James
(1842-1910) e John Dewey (1859-1952).
Nas obras desses três autores, segundo Pogrebinschi (2005), é possível identificar
características comuns a uma mesma matriz de pensamento. O antifundacionalismo, o
conseqüencialismo e o contextualismo são as ideias que, de acordo com ela, compõe o núcleo
comum do pensamento pragmático.
O antifundacionalismo se refere à negação da existência de grandes verdades que
fundamentam a priori o pensamento. “Trata-se, afinal, de negar que o pensamento seja
passível de uma fundação estática, perpétua, imutável” (POGREBINSCHI, 2005. p. 26). Em
James ele dá forma a uma teoria da verdade, em que essa adquire caráter processual, de
constituição nas relações e interações. Isso permite que, por meio do pensamento pragmático
sejam questionados significados e conceitos muito cristalizados, pois as ideias e as
interpretações que surgem das interações e não são aspectos descolados delas, são parte
imprescindível da experiência.
Em Dewey, Pogrebinschi (2005) afirma que o antifundacionalismo aparece como uma
negação da segurança filosófica baseada na certeza do conhecimento fundado na relação com
objetos imutáveis e fixados. Segundo ela, Dewey entende que os fundamentos tentam
substituir os acidentes e incidentes, na tentativa de oferecer uma sensação de segurança e
previsibilidade onde de fato não há. Isso faz com que, no pensamento filosófico dele, a
importância se volte para a prática e as ações. O autor aponta que, na tentativa de buscar
fundamentos e segurança, a filosofia deixa de olhar para a ação que é fonte de incertezas e
está sempre sujeita à frustração. E, para ele, é na ação que emergem os valores e as noções
como, por exemplo, bom e mau.
O consequencialismo é um traço que diz respeito ao direcionamento do olhar para o
futuro que o pensamento pragmático tem, recuperando o passado apenas quando ele for
metodologicamente necessário para o estabelecimento das consequências futuras de ações e
proposições. Nesse ponto, Pogrebinschi (2005) nota maior diferenciação entre as perspectivas
dos três pragmatistas originais, entretanto, esse não é um detalhe de grande diferença nesse
momento. O que aqui interessa em relação a essa característica é que, estando na base do
pensamento que fornece o conceito de experiência com o qual desejamos dialogar, o
consequencialismo aponta para a ligação existente entre o futuro, as ações no presente e, de
certo modo, o passado. Isso será importante para que seja possível estabelecer as relações

280
entre a ação de relatar das mulheres, suas consequências e suas motivações, tanto a nível
subjetivo quanto a nível social.
Dando seguimento, a terceira característica listada por Pogrebinschi (2005), o
contexualismo, fornece um modo de olhar e ajuda a consolidar a justificativa de buscar no
conceito pragmatista de experiência fundamentos para o trabalho com a página “Eu,
empregada doméstica”. O contextualismo pragmatista chama a atenção para o importante
papel de se levar em conta o contexto nas investigações filosóficas:
Em outras palavras, trata-se de reivindicar consideração às crenças políticas,
religiosas, científicas, enfim, à cultura da sociedade e às relações que mantém
com as instituições e práticas sociais. A este corpo de crenças, o pragmatismo
chama de experiência. (POGREBINSCHI, 2005. p. 49)

Segundo a autora, o lugar de surgimento da experiência é a prática e ela pode ser


considerada o mais abrangente dos contextos. Desse modo, é na prática que emerge a
experiência, que além de trazer o contexto imbricado, também o constitui.
Semelhantemente a isso, John Dewey (1980) afirma que a experiência é algo
intrínseco à natureza, que não só acontece nela, mas que também a compõe. Uma vez que a
experiência pode ser considerada esse contexto abrangente, que informa sobre instituições e
práticas sociais, ela se dá em meio a ele e é sua parte integrante. Por isso, de acordo com o
autor, a análise da experiência é reveladora de aspectos ocultos da natureza ou simplesmente
do mundo com o qual nos relacionamos. Como a experiência está no e compõe o mundo,
olhando para ela, podemos descobrir do que se trata esse mundo.
Ele descreve em A arte como experiência que “A experiência ocorre continuamente,
porque a interação da criatura viva com as condições que a rodeiam está implicada no próprio
processo da vida.” (DEWEY, 1980. p. 89). Sendo parte da vida, a experiência pertence ao
domínio do cotidiano e o que Dewey faz é ancorar a reflexão filosófica às ações e práticas
cotidianas. E esse caráter contínuo da experiência é o que, segundo ele, faz com que em
grande parte do tempo ela se configure enquanto incompleta. Tal incompletude é fruto da
nossa dispersão cotidiana e do fato que nem sempre atingimos o fim da experiência iniciada.
Entretanto, quando algo é experienciado de maneira completa recebe o nome de uma
experiência, ou ainda aquela que possui caráter estético, que possui grande poder
transformador e de afetação do sujeito. Ela é marcada por singularidade e unicidade, capaz de
transformar permanentemente quem a vivencia:

281
Em uma experiência, o fluxo vai de algo a algo. Como uma parte conduz a
outra e como outra parte traz aquela que veio antes, cada uma ganha distinção
em si própria. O todo permanente é diversificado por fases sucessivas que
constituem ênfases de seus variados matizes. (DEWEY, 1980. p. 90)

A partir do trecho, vê-se que a experiência de caráter estético concretiza um processo


em que as partes são diferenciadas ao mesmo tempo em que constituem um todo distinto
daquele de antes da experiência. E aqui é possível perceber as características do pragmatismo
emergindo através do conceito: centrando a emergência na ação, compreendendo que essa
gera consequências que são, ao mesmo tempo, constituídas por um contexto e parte dele. E,
assim, a transformação empreendida pelo vivenciar da uma experiência afeta tanto o sujeito
quanto o aspecto do mundo com o qual ele se relaciona, e não apenas concretamente.
Em uma outra diferenciação entre experiências, Dewey (1980) contrapõe experiências
primária e secundária. A experiência primária seria a matéria bruta da experiência, o objeto
experienciado sem um grande trabalho reflexivo sobre ele. Já a experiência secundária é fruto
de um processo reflexivo um pouco mais estruturado em cima do fragmento de natureza
vivenciado. A maioria das experiências do nosso cotidiano são primárias e é necessário que
sejam porque a reflexão constante sobre diversas ações repetitivas que executamos impediria
que houvesse uma grande evolução do mundo. Apesar disso, essas ações repetitivas
constituem a matéria bruta da experiência, que podem trabalhadas reflexivamente. É desse
modo que, um aspecto do mundo que até então era dado como não-conflituoso pode ser
transformado.
Partindo disso, é possível pensar que os sujeitos podem transformar o mundo e a si
mesmos por meio da ação reflexiva sistemática sobre suas experiências. Mas para que tal
transformação aconteça, é fundamental ter a experiência e se apropriar dela, pois como bem
aponta Quéré (2010), essa possui um caráter impessoal e objetivo: embora o sujeito participe
ativamente dela, ele não é seu dono ou portador, a não ser que faça a apropriação.
Segundo o autor, o sujeito e seu entorno são fatores que possuem o mesmo peso,
agem cooperativamente para a constituição experiência em sua forma bruta. Apesar disso,
diferentemente de objetos inanimados, o sujeito é capaz de se apropriar, controlar e reordenar
a experiência a seu propósito, ao mesmo tempo que se produz através dela:
O processo a-subjetivo da experiência se presta especialmente a apropriações.
Apropriar-se da experiência é dizê-la e fazê-la sua. Isso implica um ato de
interpretação a partir de uma perspectiva. Mas implica também uma extração:

282
para se apropriar da experiência, e dizê-la sua, o sujeito precisa abandonar seu
estatuto de “fator” e se extrair do agente integrado que a produziu, postular
um sujeito individual capaz de responder por ela. Assim o sujeito se produz
nas interpretações da experiência (QUÉRÉ, 2010. p. 32)

A extração do sujeito da experiência que ocorre na tomada de posse acusa uma


transformação de todos os elementos engajados na experiência, inclusive os objetos, que,
segundo Dewey, ao passassem pelo processo reflexivo se tornam objetos “refinados”:
A diferença é a existente entre aquilo que é experienciado como o resultado
de um mínimo de reflexão incidental e aquilo que é experienciado em
conseqüência de investigação reflexiva contínua e dirigida. Pois os produtos
derivados e refinados experienciam-se somente por causa da intervenção do
pensamento sistemático. (DEWEY, 1980, p. 7)

Isso quer dizer que, o que é experienciado como resultado de um processo reflexivo
não seria possível de ser vivido de outra forma. Ainda assim, a produção dos objetos
refinados só acontece a partir de uma primeira experiência com objetos em seu estado bruto e
grosseiro, o que torna impossível substituir ou hierarquizar as experiências.

4. Do subjetivo ao social
Tendo em vista os relatos presentes na página “Eu, empregada doméstica”, pensar a
ação de reflexão que modifica a experiência é de suma importância. Dado o número de
relatos que Joyce recebeu depois de realizar a postagem abaixo em seu perfil pessoal no
Facebook, é possível entender que, ao se depararem com relatos de outras mulheres, as
empregadas ou pessoas que relatam para a página se apropriam da experiência, refletindo
sobre os acontecimentos de suas vidas ou das vidas de conhecidas como domésticas.

283
FIGURA 1 - Print do relato de Joyce em seu perfil pessoal

FONTE: Perfil de Joyce Fernandes no Facebook. 7

Como é possível observar na Figura 1, o relato de Joyce não é extenso e não usa
palavras diretamente acusatórias em nenhum momento. Entretanto, esse relato gera toda a
movimentação que culmina na criação da página “Eu, empregada doméstica”, que só nos três
primeiros meses publica os mais de 200 relatos que compõe o corpus da minha pesquisa de
mestrado.
Nesse sentido, o que Quéré (2010) sinaliza como a capacidade de apropriação da
experiência vai de encontro a um outro aspecto dela para o qual ele e o próprio Dewey (1980)
chamam atenção: seu caráter inenarrável. Por ser algo que se vivencia, algo pelo qual se age e
é afetado, ao mesmo tempo em que é algo objetivo e do qual não temos posse, a experiência
não é passível de ser narrada em sua totalidade. Nunca seremos capazes de fazer com que
outra pessoa, através do nosso relato, tenha acesso ao mesmo objeto do mundo que nós, nas
mesmas condições, pois essas coisas são únicas da interação entre nós e esse objeto.

7
Disponível em: <https://www.facebook.com/profile.php?id=1697347352> Acesso em: 08 de abril de 2017.

284
Quando Joyce publica seu relato e outras pessoas se sentem interpeladas a fazer seus
próprios relatos, é porque, de algum modo, existe a identificação de uma vivência em
comum. Por isso, o ato de se apropriarem da experiência, moldando-a com o propósito de
fazer parte do conjunto “Eu, empregada doméstica”, diz tanto de um trabalho reflexivo
subjetivo quanto da emergência para a visibilidade de uma questão social.
Por meio da reflexão sobre a experiência, de sua apropriação pelo sujeito e do
refinamento dos objetos, é possível nomear e dar palavras a certos aspectos marcantes da
experiência de um grupo de pessoas no mundo quando falamos em sociedade, pois, como
afirma França “se é social, impessoal, ela [a experiência] está, por outro lado, intimamente
relacionada com o processo de constituição e posicionamento dos sujeitos” (FRANÇA, 2010.
p. 43).
Ainda que cada um vivencie o aspecto de uma maneira única, a comunhão de fatores
presentes no processo pode levar a posicionamentos semelhantes ao de outros sujeitos, que se
reconhecem em situação análoga. Essa é uma potente ferramenta de aperfeiçoamento e
expansão do processo reflexivo e, consequentemente, do refinamento do objeto, culminando
numa compreensão mais aprofundada de certas características da própria sociedade que
marcam o estar no mundo dessas pessoas.
A página “Eu, empregada doméstica”, ao despertar e convidar as mulheres a darem
seus relatos, abre um espaço de reflexão que ultrapassa o nível subjetivo, embora se ancore
nele. Ao relatarem, as sujeitas ali presentes se constituem e se posicionam nesse lugar de
empregadas domésticas (ou pessoas que possuem algum vínculo com elas), em defesa dos
seus direitos enquanto humanas, mulheres e trabalhadoras. Reunir os relatos sob o rótulo no
singular que começa com o pronome “eu” aponta para a subjetividade e até para a
individualidade. Entretanto, as duas coisas também apelam para a coletividade daquela
experiência de ser doméstica com todas as suas marcas de trabalho, gênero, raça e classe
social, porque “eu, empregada doméstica” composto por vários relatos de sujeitas distintas
afirma que as situações não são vividas por um indivíduo, mas por uma coletividade.

5. Implicações metodológicas
Como foi visto acima, por meio da apropriação da experiência, as pessoas que relatam
para a página “Eu, empregada doméstica” se constituem enquanto sujeitas ao mesmo tempo
em que modificam e produzem novos significados do que é entendido como ser empregada

285
doméstica. Apontamos anteriormente que a página tem em seu nome uma reinvindicação a
uma imagem unificada de empregada doméstica, pelo uso do singular, mas que ao mesmo
tempo diz de uma coletividade de experiências diferentes atravessadas por determinados
aspectos comuns, que dizem de problemas e características da nossa sociedade.
Ao trazer o conceito pragmatista de experiência para dialogar e tentar compreender
esse objeto, o objetivo é de encontrar ferramentas que possibilitem visualizar esse quadro
social maior que comporta o significado de ser empregada doméstica no Brasil construído na
página partindo das experiências subjetivas dessas mulheres. Isso porque, como colocado
pela pensadora Patricia Hill Collins (2016), que fala sobre o lugar de outsider within, ou
estrangeiras de dentro, como traduzem Corrêa e Guimarães-Silva (2018), das feministas
negras, a autodefinição e autoavaliação são fundamentais para a construção de um
pensamento próprio dessas pessoas.
Como estrangeiras de dentro das casas das famílias para quem trabalham, as
empregadas domésticas são, por excelência, as pessoas mais adequadas para produção de
significados acerca do que é ser empregada doméstica no Brasil e na vida delas mesmas. Por
isso, ao construirmos um percurso metodológico para tratar dos relatos da página, buscamos
por métodos que nos permitissem tomar como central as falas dessas mulheres.
Desse modo, depois de uma primeira leitura do corpus em que similaridades temáticas
entre relatos foram encontradas, optamos por fazer três movimentos analíticos.
Primeiramente, a categorização dos relatos em eixos temáticos inferidos através da leitura, a
fim de organizar o material e ver sobre quais assuntos as mulheres mais falam na página. Em
segundo lugar, uma análise de enquadramento (GOFFMAN, 2012) dos relatos dentro de cada
categoria encontrada, a fim de ver como as próprias mulheres definem as situações que
viveram. Em terceiro lugar, uma análise do posicionamento das mulheres frente a situação e
aos demais participantes.
Embora estejam listados como três momentos distintos, no contato com o material,
eles se misturam e ajudam a compor uns aos outros. O primeiro movimento, de categorização
dos eixos temáticos, foi o único completo na dissertação até o momento. Apesar disso, para
que ele fosse concluído, foi preciso ler todos os relatos e já inferir possíveis enquadramentos
para agrupá-los com seus semelhantes, afinal de contas, estamos tentando partir, o mais
próximo que conseguimos, da experiência dessas mulheres.

286
6. Considerações finais
Do modo que foi colocado no princípio do texto, essa é uma breve apresentação de
um esforço que vem sendo feito no interior da minha dissertação de mestrado, de utilizar o
conceito de experiência como base para orientar o desenvolvimento de uma metodologia de
trabalho. Até o momento, uma das três fases apresentadas foi concluída, a de categorização.
A partir dela, foram encontrados seis diferentes grupos de relatos: privação de
condições básicas, violência psicológica e simbólica, violência física e sexual, racismo e
xenofobia, relatos de Joyce e agradecimentos. O próximo passo é, dentro de cada um desses
grupos, realizar a análise de enquadramento, para depois analisarmos os posicionamentos.
Acreditamos que a experiência pragmatista foi fundamental nesse processo para
construir o olhar de que é necessário e interessante partir dos relatos das mulheres para a
página “Eu, empregada doméstica” para visualizar questões que envolvem ser doméstica no
Brasil, como o racismo, o machismo, a desigualdade social, entre outras coisas.
Além disso, por causa das possibilidades oferecidas pelo olhar pragmatista, nas
próximas fases do trabalho acredito que será possível estabelecer as relações do retrato da
doméstica brasileira feito pela página com toda a história dessa classe trabalhadora no país,
entendendo também, quais as implicações da ação dessas mulheres para um futuro próximo.

287
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288
O MELODRAMA BRASILEIRO: 1
as tramas nacionais e os territórios de ficcionalidade
THA BRAZILIAN MELODRAMA: the national frames and the territories of
fictionality
Maressa de Carvalho Basso (UFSCar) 2

Resumo: A maior parte das produções ficcionais carrega uma tipificação,


principalmente no que diz respeito às obras melodramáticas. Essa tipificação tem
responsabilidade pela proximidade cultural que leva uma para inúmeros países.
Dessa forma, acontece um fluxo de cultura entre os países que “incluem um número
crescente de telenovelas que vão para espaços culturais e mercados fora do
comum, à margem daqueles que restritamente apelam para similaridades ou
proximidades culturais” (STRAUBHAAR, 2004). Estes são fundamentais no
processo de produção de narrativas como melodrama, trama policial, aventura,
entre outros. São esses territórios que circulam por um mercado considerável de
bens simbólicos globalizados. O presente artigo pretende analisar de forma
documental e histórica de que forma o melodrama, utilizando-se dos territórios de
ficcionalidade, está presente na construção das tramas narrativas das telenovelas
nacionais.

Palavras-Chave: Melodrama. Telenovela. Territórios de ficcionalidade. Produção


seriada.

1. MELODRAMA

O melodrama está presente no subtexto da atuação, das entrelinhas do diálogo


e da mise-en-scène. Alguns autores o identificam como um tipo de estratégia para realizar
uma leitura da vida por meio de uma narrativa cotidiana. Este gênero trata do relato de fatos
corriqueiros da vida comum a partir de um ponto de vista e uma perspectiva comum. Seu
interior traz articulações simples e verdadeiras da vida e de relacionamentos, em que a
clareza moral transcende, assumindo gestos cotidianos.
Neste gênero, há uma tensão entre aparência e essência, que se materializa na
atuação carregada e em uma plasticidade da imagem saturada de signos e significados em
narrativas caracterizadas por modelos de excesso e hiperdimensionamento, “ou seja, nas
tensões morais cotejadas pelo gênero nunca se perde a dimensão da espetacularidade da cena
na qual o olhar do outro é um elemento sempre presente” (BRAGANÇA, 2007, p. 31).

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho Comunicação e Memória nas do 3º. CONEC: Congresso Nacional
de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Mestre em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos. E-mail: maressa.basso@gmail.com.

289
Os melodramas irão transcorrer com frequência em narrativas de cunho moral.
É o caso de Stella Dallas (King Vidor, 1937) e Imitação da Vida (Imitation of Life, Douglas
Sirk, 1959), por exemplo. O crítico Luiz Carlos Oliveira Jr. comenta essa dimensão do
melodrama:
Um dos aspectos centrais do melodrama seria justamente sua
extraordinária capacidade de usar ações e os fatos do mundo real, da
vida social, como uma espécie de metáfora que se reporta ao reino da
verdade espiritual e dos significados morais latentes. A realidade é
amplificada por uma dramaturgia do excesso que torna sensível a
presença, nas situações do dia a dia, de motivações obscuras, de
emanações do inconsciente (essa região do ser em que se escondem
nossos desejos elementares e nossos tabus). Dentro de um contexto
aparentemente realista e cotidiano, encena-se um drama hiperbólico e
sobrecarregado. (OLIVEIRA JR, 2012: 42)

Apesar deste formato industrializado e designado para a grande massa, as


telenovelas tem um teor melodramático que lhe confere um poder considerável. Martín-
Barbero é pioneiro em afirmar que o melodrama é a base das telenovelas, produto tão
característico em países como Brasil e México. Em suas pesquisas o autor pode averiguar um
aspecto esbanjador com emoções exageradas e exacerbadas que aparentemente aparecem
para quebrar a rigidez do cotidiano do telespectador (1992). A partir daí é possível encontrar,
de forma subconsciente, uma rejeição dos públicos desse tipo de produção audiovisual com a
sociedade moderna, que é símbolo de frustração de realizações reais.
As telenovelas estão carregadas de melodrama na medida em que o que o
acontece nas tramas é uma forma de selecionar fatos da vida diária e apresentá-los de um
jeito dramático e exagerado, fazendo assim possível a distinção entre o que é real e o que é
irreal.
Neste sentido de “drama de excesso” a primeira impressão perpassada pelo
melodrama é de que as narrativas têm pouco a ver com a aparente realidade e uma
aproximação muito maior com um drama interior. Brooks (1995) mostrou, por meio de
estudos fundamentados, que o gênero não é apenas um recurso de manipulação de linguagem
para conquistar um público, mas sim uma forma de problematizar características sociais.
Assim, os estudos mais recentes sobre o melodrama não se detêm no
desenvolvimento do gênero exclusivamente, mas procuram abordá-lo
como um sistema ficcional de produção de sentido, traduzido num
campo de força semântico, no qual determinados elementos e

290
características próprias operam sentidos que se desvelam quando
tocados pelo gesto interpretativo. (BRAGANÇA, 2007, p. 19)
Diante disso é possível afirmar que existe no melodrama uma característica
importante e relevante, que é representar a vida. Essa realidade é representada nas narrativas
muitas vezes não de forma aparente, mas por uma “moral oculta 3” (BROOKS, 1995) que
opera na realidade a fim de gerar novas descobertas e articulações. Ainda “podemos
legitimamente afirmar que o melodrama se torna o principal modo para descobrir, demonstrar
e fazer operante o universo moral essencial na era pós-sagrada” (BROOKS, 1995, p. 15) 4.
O melodrama busca, de certa forma, uma realidade transcendental em que
existe um vitorioso acontecimento sobre a imobilidade dos fatos e das coisas, no qual o
recurso do excesso é uma estratégia de aproximação da verdade. Portanto o gênero, com suas
características estilísticas, conseguiu incorporar a necessidade de um público que almejava
encontrar obras com sentidos mais próximos da realidade. É o que Bragança (2007)
determina como fator fulminante para o surgimento do chamado “melodrama social”.
O melodrama, como um gênero das classes trabalhadoras, evocava de
certa forma a vulnerabilidade e a insegurança características desta
transição para uma cultura de mercado própria da primeira metade do
século XIX e que se intensificaria no transcorrer daquele século,
quando ruíam uma certa estabilidade e a simplicidade de uma fé
religiosa tradicional e patriarcal. (BRAGANÇA, 2007, p.40)
O sensacionalismo também confere ao melodrama um envolvimento
emocional junto ao público, aproximando-o ainda mais do realismo. Essa mise-en-scène
carregada de forma excessiva e sensacionalista, embora pareça cheia de coincidências
improváveis, carrega em suas entrelinhas “uma forte carga de corporeidade, de risco, de
perigo iminente, de vulnerabilidade, que estava muito intimamente implicada na vida das
classes mais populares” (BRAGANÇA, 2007, p. 42) aproximando-se muito do realismo.
O melodrama é um gênero originário do século XVIII e que teve seu
desenvolvimento durante o contexto histórico da Revolução Francesa com temáticas que
refletiam os ideais da época que eram “liberdade, igualdade e fraternidade”.

3
Moral Occult: The narrative voice, with its grandiose questions and hypotheses, leads us in a movement
through and beyond the surface of things to what lies behind, to the spiritual reality which is the true scene of
the highly colored drama to be played out in the novel. (...) The novel is constantly tensed to catch this essential
drama, to go beyond the surface of the real to the truer, hidden reality, to open up the world of spirit. (BROOKS,
1995)
4
“We may legitimately claim that melodrama becomes the principal mode for uncovering, demonstrating, and
making operative the essential moral universe in a post-sacred era”3 (BROOKS,
1995, p. 15).

291
As paixões políticas despertadas e as terríveis cenas vividas durante a
Revolução exaltaram a imaginação e exacerbaram a sensibilidade de
certas massas populares que afinal podem se permitir encenar suas
emoções. E para que estas possam desenvolver-se o cenário se
encherá de prisões, de conspirações e justiçamentos, de desgraças
imensas sofridas por vítimas e traidores que no final pagarão caro
suas traições. [...] Antes de ser um meio de propaganda, o melodrama
será o espelho de uma consciência coletiva (MARTÍN-BARBERO,
2003, p. 152).
Dessa forma, Martín-Barbero (2003) coloca que o melodrama é uma espécie
de gênero carnavalesco que se constituiu em uma matriz cultural, ou seja, é uma fórmula que
mesmo se repetindo ao longo do tempo vai se atualizando e produzindo sempre novos
sentidos. O autor aponta, por meio de uma importante discussão conceitual, que o melodrama
é gênero de maior expressão na América Latina, sendo mais aberto ao jeito de viver e de se
reconhecer junto à população. Foi o melodrama que ajudou a definir o perfil que seria
aplicado nas telenovelas brasileiras a partir da década de 1950. Isso porque ele é, por
excelência, moderno e ao mesmo tempo romântico, marcado tramas emocionantes e com
reviravoltas constantes.
O melodrama faz crescer a importância da mise-en-scène. No interior
dessa lógica, adereços, mobiliário, também a troca de ambientes, as
irrupções violentas, o movimento intenso são aspectos que ganham
destaque. Devem cooperar na concretização da história, para que o
realismo da cena intensifique as emoções suscitadas. (...) Destinam-se
também a sensibilizar camadas da platéia menos habituadas às
convenções teatrais. Para este grupo que apenas começa a se tornar
assíduo às casas de espetáculos, mercê da revolução social em curso,
dizem muito pouco as sutilezas de linguagem de que se alimentava o
fino gosto da aristocracia (HUPPES, 2000, p. 104).
Com sua estrutura simples, parecida com a da comédia de costumes, é possível
afirmar que o melodrama traz como uma de suas características uma apresentação das
personagens e da situação logo no início da narrativa, para em seguida apresentar uma
complicação e no fim, uma resolução. Tudo isso sempre de acordo com a moral vigente.
No enredo do melodrama o traço principal é a surpresa iminente –
marca que se encontra inserida na elasticidade característica da trama.
Em comparação com outras formas artísticas, observa-se que nem a
variação temática nem o colorido linguístico, todavia presentes,
sequer rivalizam com a importância que o desdobramento inesperado
tem neste gênero. É aqui que o artista aplica o máximo de
criatividade. Leva o espectador de sobressalto a sobressalto para um

292
desfecho, que nem sempre concede o repouso do final feliz.
(HUPPES, 2000, p. 28)
Diante disso, é possível destacar, de acordo com Huppes (2000) as principais
características do gênero. Entre elas podemos destacar a bipolaridade, que estabelece
contrastes em níveis horizontais e verticais. Horizontalmente existe a oposição de
personagens com valores opostos, como o vício e a virtude. Já verticalmente existe a
alternância de situações de desolação e desespero, com outros momentos de serenidade e
euforia. “Em geral o polo negativo é mais dinâmico, na medida em que oprime e amordaça o
bem. Mas no final (...) a virtude é restabelecida e o mal conhece exemplar punição”
(HUPPES, 2000, p. 27).
Huppes (2000) coloca ainda que a organização do enredo, com um interesse
dramático elevado e fatores que corroboram para intensidade emocional em cada cena, como
a trilha sono marcante, é o que faz o melodrama ganhar o status de natureza de arte. Isso fez
com que o gênero ganhasse determinada importância progressiva. Diante disso, pode-se,
ainda apoiado no que foi afirmado por Huppes (2000), colocar que a arte, ou os artifícios, são
colocado em prática a fim de gerar reações no público ao qual se deseja agradar. Isso gera
como consequência a integração e imersão do espectador na trama narrativa.
Se a história apresentada é dolorosa, fica com o autor a decisão de
adoçar o tom, de amenizá-lo, de introduzir elementos risíveis. Ou, ao
seu talante – no caso de não recear que o luto excessivo afugente a
plateia – pode multiplicar as lágrimas, aguçar o desespero. O trabalho
é explicitamente móvel e arbitrário, por conseguinte. (HUPPES,
2000, p. 30)
Outra característica marcante e que deve ser levada em consideração é o fato
de que o melodrama não aparece como um todo que não pode ser dissolvido e articulado. Isso
quer dizer que é possível fragmentar as obras melodramáticas conjugando partes dela. Assim
as formas de qualificação estéticas “passam a incidir principalmente sobre a maneira como o
agrupamento se processa, passando para segundo plano aspectos tradicionais e importantes,
como motivação interna e verossimilhança externa (...)” (HUPPES, 2000, p. 30).
Brooks (1995) afirma que o melodrama é uma forma canônica de imaginação,
sendo mais que um gênero dramático de aceitação massiva. Para ele o contexto em que o
gênero que reflete a incessante luta a favor da moralidade em que os maus, os vilões, devem
ser punidos e removidos para que a sociedade volte ao andamento normal e o as virtudes

293
vençam. Outra característica marcante é que as narrativas melodramáticas têm uma
linguagem muito fácil e clara que elucida ainda mais a compreensão para o público.
O gênero melodramático se liga a um mundo mais simplista, no qual as
personagens têm projetos que dependem de esforço próprio, mas que tem chances
verdadeiras de se concretizarem. Por ser tão claro e emocionante, o melodrama acabou
firmando-se como gênero capaz de estimular o a curiosidade do espectador e surpreendê-lo.
No enredo do melodrama o traço principal é a surpresa iminente –
marca que se encontra inserida na elasticidade característica da trama.
(...) É aqui que o artista aplica o máximo de criatividade. Leva o
espectador de sobressalto em sobressalto para um desfecho, que nem
sempre concede o repouso do final feliz. A capacidade para
surpreender deve certamente ser associada ao caráter do enredo. (...)
Para o espectador, a possibilidade de sobrevirem novos episódios
permanece como uma suspeita e uma inquietação a lhe instigar o
interesse. Sentimentos que, de resto, não o abandonarão até as
cortinas se fecharem, e que responde pelo estado de vigília
ininterrupto a que fica submetido. (HUPES, 2000, p. 29)
As narrativas melodramáticas são em sua essência românticas e modernas e
apresentam contrastes importantes entre valores, chamados pela grande maioria dos autores
de vício versus virtude. Com um enredo de tramas emocionantes e com reviravoltas
constantes, é possível afirmar que as histórias trazem sempre algum tipo de lição de moral em
que o bem vence o mal. Ao conhecer autores que tratam especificamente deste gênero em
suas obras, como Martín-Barbero (2003) é possível delinear características importantes,
como: situações claras e fortes; interesse dramático elevado; trilha sonora que reforcem a
intensidade das emoções retratadas em cena; grandiosidade do espetáculo; expressão do
sentimento por gesto ou fisionomia da personagem; e exposição total dos traços de
personalidade e de atitudes relevantes para trama.
O melodrama é um tipo de narrativa que lida com mundos mais simples e que
é capaz de encantar o público que se sente estimulado pela curiosidade e que se sente
abastecido pela fuga diária da sua realidade para viver por alguns minutos a realidade de
outras personagens.
O entendimento do caminho feito para que o melodrama chegasse nos moldes
atuais só é possível se as suas origens forem retomadas. O que antes era tido como um
monopólio do bom gosto impedia que o gênero agradasse a massa como um todo. O início
dessas novas adaptações se deu em razão das exigências das condições comerciais e

294
industriais de produção. A partir daí, a linguagem amadureceu e foi possível notar o
cruzamento da matriz melodramática com outros gêneros, como a comédia.
Martín-Barbero afirma que o melodrama sofreu inúmeras transformações entre
as nomenclaturas de formato e gênero, mas que a matriz melodramática está sempre presente
e em manutenção. Mas dentro disso é preciso compreender por quais mecanismos esse
melodrama consegue manter-se como matriz diante de tantos novos formatos de ficção
seriada que vão da clássica telenovela, passando pelos seriados, séries, minisséries, entre
outros.
Segundo este autor, a televisão tem um papel decisivo no âmbito do
reconhecimento social e cultural, sendo mutável a ponto de fazer, desfazer e refazer as
significações das identidades coletivas de uma determinada comunidade. Ele coloca ainda
que as telenovelas são as narrativas com maior capacidade de cruzar memória e formato
dentro das lógicas comerciais de globalização e das dinâmicas culturais da sociedade.
O melodrama está presente de forma muito destacada no subtexto das atuações
e das entrelinhas do diálogo. Há uma tensão entre aparência e essência, que se materializa na
atuação carregada e em uma plasticidade da imagem saturada de signos e significados. As
estruturas sociais engessadas e arcaicas são confrontadas por personagens inconformados
com sua própria condição de reprimidos. Os melodramas irão transcorrer com frequência em
narrativas de cunho moral.
Ang (1985), por meio de uma experiência com telespectadores, coloca que os
consumidores do melodrama, em sua grande maioria, gostam da sensação que as tramas
criam neles e a forma com a qual se envolvem. Gostam de chorar, rir, desejar, sentir raiva e
medo junto com as personagens durante o desenvolvimento da narrativa. E é isso que faz
com que as telenovelas consigam o que pode-se ser chamado de engajamento emocional.
Este pode ser definido como uma prática afetiva de prazer em que o melodrama da telenovela
é levado a sério na medida em que ocorre uma absorção de identificação emocional e
envolvimento sentimental.
Um aspecto importante sobre o melodrama é que é um gênero com
durabilidade sólida e maleabilidade, garantindo com que ele perdure por mais de dois séculos
na esfera dos espetáculos. Isso tudo se deve ao fato de que seu contexto se transformou, bem
como o contexto em que está inserido. É nesse momento que entra a manutenção da matriz

295
melodramática, tão destacada por Martín-Barbero. Isto pode ser explicado levando em
consideração que as mudanças fazem com que o melodrama dialogue com o contexto atual,
sendo maleável o suficiente para a necessidade da operação social.
Martín-Barbero ainda coloca que a televisão é um importante instrumento do
reconhecimento sociocultural, sendo que a telenovela é a narrativa ficcional que consegue
melhor unir a dinâmica entre memória e formato e entre as lógicas da globalização e das
dinâmicas culturais. E é justamente esse tipo de produto que faz progredir de forma
importante o desenvolvimento da indústria audiovisual latino-americana. Isso porque essas
tramas obtém sucesso ao mesclar os avanços tecnológicos midiáticos com velhas histórias
que integram a vida cultural de um povo.
É sempre importante frisar que não estamos falando do melodrama composto
por lutas românticas do homem contra a sociedade, mas sim de um melodrama que resistiu ao
fim dos valores burgueses e que em grande parte das vezes não traz de forma direta uma luta
entre o bem o mal, mas sim uma mescla disso tudo em um espaço de formação de opinião
pública. É esse tipo de melodrama que a indústria brasileira das telenovelas, mais
especificamente as telenovelas chamadas “Globais”, está exportando para o mundo, sendo
rápida e eficaz à necessidade dos seus públicos.
O melodrama vem agradando o gosto do público desde que o gênero começou
a ganhar espaço desde a revolução francesa. A luta contra os vilões, que tem atitudes que são
contra os bons princípios e a moral e devem ser confrontados para que a virtude vença caiu
no gosto popular e ganhou cada vez mais fãs nos meios de comunicação. As obras que
“valorizam a ação, destacam o embate entre vício e virtude e exploram as sugestões do
cenários tendo em mira o impacto sobre a plateia” (HUPPES, 2000, p. 9) ganharam o coração
do público por todos os lugares do mundo.

Muito mais complexo do que parece à primeira vista, o melodrama


deve ser capaz de monitorar a reação do público – para oferecer-lhe a
dosagem adequada – enquanto desenvolve histórias no palco.
(HUPPES, 2000, p. 12)
Com uma linguagem muito clara, capaz de mostrar claramente a pretensão da
ação, esse gênero criou no público um reconhecimento. Por meio de sua capacidade de
adaptação, o melodrama formalizou o imaginário, fazendo com que a luta pela moral se
tornasse visível.

296
Cada gênero, embora carregados de inúmeras significações, carregam
características que são consideradas unânimes. No caso do melodrama esses aspectos que não
geram discussões controversas são a durabilidade do gênero e a maleabilidade do mesmo.
Isso, aliado ao sentimentalismo, garante uma hegemonia ao melodrama no mundo dos
espetáculos.
Diante disso, é possível afirmar com clareza que os brasileiros detêm
atualmente um know-how de modelo de narrativa ficcional feita para exportação, fazendo
com que o fluxo tradicional desse tipo de comércio tenha mudado os lugares habituais de
países periféricos e centrais. Fato é que a telenovela produzida no Brasil, com seu padrão
técnico e esquema melodramático renovado, conseguiu ingressar de modo contundente no
mercado mundial do entretenimento. Xavier (2003) salienta que a incorporação de um senso
de “a vida como ela é” nas tramas melodramáticas da Rede Globo são fatores importantes
para o reconhecimento imediato do público.
Em resumo, o padrão narrativo das telenovelas nacionais encaixa-se
perfeitamente nesta sociedade de formação frágil em que a modernização depende de uma
manutenção do atraso, atendendo um mercado de consumidores que se identifica com sua
lógica e que necessita de um preenchimento passivo da vida cotidiana individual.

1.1 Melodrama e telenovelas brasileiras

A maior parte das produções ficcionais carrega em sua essência uma


tipificação, principalmente no que diz respeito às obras melodramáticas. Talvez seja essa
tipificação das obras uma das responsáveis pela proximidade cultural que leva uma
determinada produção para inúmeros países do mundo. Dessa forma, acontece um fluxo
importante de cultura entre os países que “incluem um número crescente de telenovelas que
vão para espaços culturais e mercados fora do comum, à margem daqueles que restritamente
apelam para similaridades ou proximidades culturais” (STRAUBHAAR, 2004).
Mesmo essa proximidade sendo altamente ligada e baseada na linguagem,
existem outros níveis que também são capazes de abrigar a similaridade, como vestimentas e
gestuais. Isso porque a audiência, ou seja, o público, normalmente opta por escolher

297
programas que estejam mais próximos ou sejam mais relevantes para suas particularidades
culturais e linguísticas.
É nesse panorama que o melodrama aparece: sendo a ponte de ligação entre
culturas distintas por meio da proximidade por meio do gênero. De acordo com Straubhaar
(2004), as obras melodramáticas facilitam essa interação e aceitação entre culturas. Isso deve-
se ao fato de que o melodrama tem uma estrutura comum que cobre muitas culturas, que, de
alguma forma, estão inerentes a essa forma comum. Conteúdos melodramáticos cabem quase
todas as partes do mundo, perpassando por diversas formas culturais.
A telenovela aparece neste meio porque o “melodrama dá preferência a
enredos sentimentais” (HUPPES, 2000, p. 9). Enredos estes que cercam as tramas das
telenovelas por todos os lados, já que a telenovela aparece como um produto muito próximo
do espectador.
A telenovela brasileira teve sua trajetória construída de modo muito dinâmico
quando nos referimos a sua narrativa. Né década de 1970 o estilo folhetinesco dos
dramalhões mexicanos foi deixado de lado, mudando a lógica e o eixo temático, tornando-os
mais realistas e próximos do cotidiano.
Essa peculiaridade das telenovelas brasileiras faz com que não seja exagero
dizer que existe uma cultura de novela no Brasil, já que desde seu surgimento, com raízes
originalmente melodramáticas, esses produtos permitiram que os sujeitos fossem construindo
suas identidades. Essa afirmação pode ser percebida pela relação que o público tem com a
telenovela, fazendo, algumas vezes, seu planejamento diário tendo o horário da trama como
referência de tempo. Embora a novela seja parte importante na construção da brasilidade, é
importante destacar que o público não assimila o conteúdo que assiste de forma passiva,
reagindo da forma que considera mais pertinente.
As tramas nacionais conseguem unir os aspectos importantes do melodrama,
fundindo drama, romance e violência, aliando a aspectos peculiares da cultura brasileiras.
Com as telenovelas pode-se exemplificar o quanto o melodrama tem capacidade de se adaptar
e se popularizar na contemporaneidade. Além disso, o fato de as telenovelas serem
carregadas de oralidade, narrada basicamente por diálogos, é um aspecto bastante
característico das tramas melodramáticas.

298
1.2 Territórios de Ficcionalidade: a aproximação da audiência

Os territórios de ficcionalidade são fundamentais no processo de produção de


narrativas como melodrama, trama policial, aventura, telejornais, minisséries, filmes,
telenovelas, entre outros. São esses territórios que circulam por um mercado considerável de
bens simbólicos que são nomeados de várias formas como internacionalizado, globalizado e
mundializado.
Estudar os territórios de ficcionalidade no interior das tramas é pensar sempre
em narrativas ficcionais com mobilidade, dinamismo, fluidez, com fios e pedaços
entrelaçados, enovelados. Acreditamos que, apesar da origem dos territórios de ficcionalidade
situar-se na literatura, em um passado longínquo, é possível verificá-la no presente,
percebendo que transformações, adaptações ocorreram com o passar dos tempos, mas,
mesmo assim, os territórios guardam originalidade, pois é notório que traços culturais
tradicionais presentificam-se resgatando e atualizando matrizes culturais (MARTÍN-
BARBERO, 1993) na temporalidade social.
O conceito de “territórios de ficcionalidade” (Calvino, 1993; Borelli, 2001;
Lopes, Borelli, Resende, 2002) foi concebido como um elemento de mediação nas relações
entre produtores, receptores e produtos. Estes territórios são compreendidos como matrizes
presentes em diversas manifestações da cultura de massa e são fluídos, dinâmicos, se
entrelaçando e se encontrando em um processo contínuo de transformação, redefinição e
hibridização. Isso significa que a mesma narrativa pode apresentar traços de inúmeras
matrizes.
Borelli (2000) afirma que inúmeras pesquisas de recepção feitas em vários
países do mundo demonstraram que os territórios de ficcionalidade são uma das faces dos
padrões de produção que corroboram para que produtos como as telenovelas perpassem
fronteiras. Eles
(...) colaboram no processo de dissolução das fronteiras entre
realidade e ficção, seduzem o receptor provocando lágrimas, risos,
medos, ansiedades, alegrias e funcionam como suporte na
composição do imaginário coletivo contemporâneo. Como parte
integrante da cultura popular de massa articulam, conflituosamente,
manifestações da cultura popular com dimensões culturais massivas e
eruditas. (BORELLI, 2000, p. 2)
Além disso,

299
(...) Podem ser conceituados como matrizes culturais, gêneros
ficcionais, arquétipos, modelos, padrões, textualidades; caracterizam
universalidades, repõem tradições, restituem memórias e resgatam,
seletivamente, na modernidade, traços de um passado e de um tempo
aparentemente perdidos. Constituem, também, um significativo
elemento de mediação na relação que se estabelece entre produtores,
produtos e receptores: todos são capazes de reconhecer histórias,
textos, mensagens, sinais. (BORELLI, 2000, p. 2)
Borelli (2000) demonstra em sua pesquisa que os territórios de ficcionalidade
ativam mecanismos de identificação que podem ser dirigidos a diferentes segmentos do
público. De forma geral, o melodrama não deve ser tido apenas como um gênero literário,
mas sim como uma matriz originária em que a forma pode ser encontrada e estudada em
diversificadas manifestações culturais, que completam e fazem parte do cotidiano do
espectador. A autora afirma que a expressão “o dramalhão é nosso”, empregada por José
Paulo Paes em 1990, expressa de forma sucinta e precisa o que os produtores brasileiros
fizeram com a telenovela ou transpor as características do gênero para as narrativas
ficcionais.
O gênero mantém-se atual mesmo diante de muitas atualizações, com um
conteúdo que abarca sentimentalismo e moralidade, evitando finais tragicamente tristes e
envolvendo temáticas – mistério, amor, ódio, segredo – que sensibilizam e deixam o público
envolvido. Em uma colocação completamente pertinente, Borelli (2000) esclarece que este
espectador passa a ser “confidente do autor” (BORELLI, 2000, p. 3), participando de cada
descoberta no decorrer da trama. Para ela “a angústia do espectador é essa: saber tudo e nada
poder sobre os acontecimentos: a não ser torcer pela vitória do herói e aguardar que o happy-
end restaure a ordem moral” (BORELLI, 2000, p. 3).
As telenovelas brasileiras adaptaram o gênero melodramático em suas
histórias desde o início, mas foi apenas na década de 1970 que pode-se notar de forma
evidente a incorporação de um cotidiano mais ligado à vida do público espectador.
Isto pode apontar para a existência de uma certa confluência
entre a necessidade de inovação, própria à indústria cultural, e o
desejo de alguns autores em romper com o padrão folhetinesco para -
quem sabe? - conseguir imprimir, no contexto televisual, sua marca
autoral. Estas alterações revelam, ainda, a existência de uma maior
sintonia dos produtores culturais com as manifestações mais gerais
emergentes na sociedade brasileira, deste período. (BORELLI, 2000,
p. 5)

300
Portanto, uma das marcas dessas produções é heterogeneidade, que mescla de
modo uniforme matrizes diferentes ao melodrama. Este é o fator culminante para responder
de modo direto às necessidades de produção, recepção e consumo televisuais. É possível
perceber e reiterar que essas matrizes dos territórios de ficcionalidade transformam-se com o
processo de modernização e as transformações do imaginário coletivo; mas modificam-se
também de acordo com mercado de bens simbólicos e a indústria cultural. Nesse sentido,
estas abandonam a repetição de antigos modelos, usam recursos tecnológicos e busquem,
ainda, adequar seus padrões de produção para legitimar espaços e públicos já conquistados.
Diante disso, pode-se afirmar que essas transformações contemporâneas
tornaram cada vez mais difícil encontrar apenas um gênero em uma mesma narrativa
ficcional. Isso torna os territórios de ficcionalidade cada vez mais dinâmicos e adaptáveis, ou
seja, por meio deles “é possível dialogar com sua forma originária, desde que ela possa ser
atualizada no momento presente. Isto transforma os gêneros ficcionais em formas originais,
historicamente recicladas, (...) mas necessitam adequar-se às especificidades dos públicos
particulares” (BORELLI, 2000, p. 7).
Como já citado anteriormente os territórios de ficcionalidade são fundamentais
para que os produtos se adaptem a lógica globalizada do mercado sem perder sua marca
local, despertando sentimentos nos espectadores. As telenovelas brasileiras pertencem a essa
indústria massiva e globalizada e poderiam ser classificadas como produtos que movem-se de
forma confortável pelo mais diversos aspectos dos territórios de ficcionalidade no sentido de
se aproximar do público.

CONCLUSÃO

Sendo assim, esse conceito é capaz de nortear nossa compreensão sobre a


forma pela qual as telenovelas brasileiras conectam-se com a audiência por meio de
mudanças temáticas e narrativas e demonstram a influência do telespectador nas possíveis
mudanças estruturais da teleficção. Como já colocado neste estudo, o melodrama é gênero
original das telenovelas, que foi agregando ao longo dos anos e da sua história outros
territórios de ficcionalidade, como o drama, a aventura, o humor, entre outros. Esses

301
territórios pelos quais a telenovela vai se desenhando possuem fronteiras muito sutis que em
grande parte das vezes se entrelaçam e se reciclam.
(...) nada impede, por exemplo, que matrizes do romance policial
surjam mescladas a outras, do romance de aventura; ou que
personagens do mocinho, do típico cowboy, da vamp erótica, do
bufão e da fada bondosa possam compor uma mesma narrativa de
características também melodramáticas. (BORELLI, 2000, p. 06)
E são as demandas sociais que fazem com que esses novos territórios de
ficcionalidade incorporem temáticas novas ao drama original oriundo das telenovelas.
Podemos afirmar que a partir da emergência de visibilidade de novos grupos
sociais, a modernização patente do Brasil, a evolução do debate sobre temas antes tidos como
tabus fizeram com essa heterogeneidade nacional pudesse ser inserida na tela da TV sem
deixar de responder e suprir as necessidades do mercado, de consumo e de produção.
De acordo com Borelli (2000), os gêneros ficcionais possuem essa capacidade
camaleônica e de extrema importância de partir de características universais globalizadas e
atender também às demandas locais, articulando-se de forma harmoniosa com as
peculiaridades de cada classe social, idade, região, sexo e as todas outras variáveis de
público. Sendo assim, as telenovelas brasileiras trazem em suas tramas narrativas marcas
importantes da evolução técnica e social do meio televisivo e de uma sociedade como um
todo.

302
Referências

ANG, Ien. Watching Dallas. Soap Opera and the Melodramatic Imagination. London: Methuen, 1985.
BORELLI, Sílvia. Telenovelas Brasileiras - territórios de ficcionalidade: universalidades e segmentação.
In: V Congreso Latinoamericano de Ciencias de la Comunicación (ALAIC), 2000, Santiago - Chile. Sociedad
de la Información: convergencias, diversidades. Santiago - Chile: Universidad Diego Portales, v. 1. 2000, p.2-
151.Disponível em: http://www.eca.usp.br/associa/alaic/chile2000/16%20GT%202000Telenovela/silviaBor
elli.doc. Acesso em: 15 de out de 2017.
BRAGANÇA, Maurício de. Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada.
ECO-PÓS, v.10, n.2, julho-dezembro, pp. 29-47, 2007.
BROOKS, Peter. The melodramatic imagination. Balzac, Henry James, Melodrama and the mode of
Excess. USA: Yale University Press, 1995
HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. De los medios e las mediaciones, México, Gustavo Gilli, 1993.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Viagens da telenovela: dos muitos modos de viajar em, por, desde e com a
telenovela. IN: LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Telenovela: internacionalização e interculturalidade.
São Paulo: Loyola, 2003.
OLIVEIRA JR, Luiz Carlos. Em defesa do melodrama. In: Douglas Sirk, o príncipe do melodrama. São
Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Ministério da Cultura, 2012. p. 39-48.
STRAUBHAAR, Joseph. As múltiplas proximidades das telenovelas e das audiências. IN: LOPES, Maria
Immacolata Vassallo de. Telenovela: Internacionalização e Interculturalidade. São Paulo: Loyola, 2004.
XAVIER, Ismail. O olhar a cena: melodrama, Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003.

303
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS JOVENS SOBRE O
JORNAL DAQUI 1
SOCIAL REPRESENTATIONS OF YOUNG PEOPLE ABOUT
DAQUI JOURNAL
Gardene Leão de Castro 2

Resumo: Nessa pesquisa, utilizando como referencial teórico as Representações


Sociais, buscou-se compreender como jovens de diferentes classes sociais (alta,
média e baixa), moradores de Goiânia, recebem, compreendem e (res)significam as
representações midiáticas envolvendo a temática da criminalidade, violência e
juventude, analisando especificamente as matérias publicadas no Jornal Daqui. Os
jovens dos três extratos (Colégio Medicina, Colégio Fractal e Região Noroeste)
afirmaram que periódico é sensacionalista, violento, com notícias superficiais,
subestimando a capacidade de intepretação de seu público leitor. É possível
perceber que os jovens possuem uma visão muito crítica sobre a cobertura
midiática sobre juventude, violência e criminalidade. Apesar de vivenciar a
violência de formas distintas em suas comunidades, eles são unânimes em afirmar
que a mídia não é imparcial ou neutra ao retratar o seu cotidiano. Eles não se vêm
como perigosos e bandidos, e não se reconhecem como sujeitos criminais.

Palavras-Chave: Mídia. Violência. Juventude. Representações Sociais.

Apresentação
O objetivo dessa pesquisa foi compreender as representações sociais de jovens de
diferentes estratos sociais da cidade de Goiânia sobre os discursos midiáticos a respeito de si.
Apenas a título de selecionar os grupos de jovens considerando a estratificação social, a
inspiração de uma teoria de classes foi a de Pierre Bourdieu (2007). Diante da
impossibilidade e mesmo pelo fato de ser dispensável estabelecer rígidos critérios para
perceber as posições de classe na estrutura social, foram utilizados como indicadores os
bairros de moradia, considerando que a localização no território reproduz a distância e as
desigualdades sociais entre as classes, as instituições escolares frequentadas pelos jovens, já
que acesso à educação é um bom indicador proxy de renda no Brasil, ou seja, escola pública,
escolas privadas e destas, considerando o valor das suas mensalidades. A partir desses

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Memória nas do 3º. CONEC: Congresso
Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Professora efetiva da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG. Doutora em Sociologia. Mestre em
Educação. Pós-Graduada em Assessoria de Comunicação. Pós-Graduada em Juventude. Graduada em Relações
Públicas. gardeneleao@gmail.com.

304
indicadores, os grupos foram formados considerando-os como representantes das classes
baixa, média e alta. Com relação à técnica empregada para conhecer e captar os discursos dos
jovens, foi utilizado o grupo focal. É importante salientar que a pesquisa em representações
sociais trabalha com metodologias variadas, cabendo ao pesquisador fazer o melhor uso das
que escolher.
Durante a realização dos grupos focais, foi apresentado um roteiro com a apresentação
da capa do Jornal Daqui e com algumas matérias. O objetivo era apreender qual a
representação social dos jovens de diferentes extratos sociais diante da cobertura do Daqui
sobre juventude; violência e criminalidade. A seguir, serão apresentados os principais relatos
dos jovens, a partir da discussão nos grupos focais, através da construção do Mapa
Representacional, a partir da proposta de leitura flutuante, proposta por Spink (1994).

305
A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DOS JOVENS SOBRE O JORNAL DAQUI
(Fonte: elaboração da autora)

Irreversibilidade
Periculosidade
E quando a repórter vai perguntar, ela
pergunta é para o policial. Ela faz toda a ...As pessoas se acostumam, a gente tá se
paradinha dela lá com o policial. Então acostumando com essa brutalidade. Renato,
Individualismo
... eu acho que tá enfatizando o jovem como ser tudo que o policial falar ali vai pra mídia. Colégio Medicina.
perigoso para a sociedade, não como se fosse Carlos, Região Noroeste.
uma esperança, mas sim como algo que pode Quando você as histórias e conhece o cara,
ser uma bomba que pode estourar a qualquer “Ele (o jornal) não analisou a família do você vai ver e morreu o cara. Aí você vai ler a
hora. Emanoel, Região Noroeste. cara, não analisou o histórico, tipo parada e tá distorcida a história. Pra quê você
financeiro dele, só passou o resultado...” vai querer ler isso. Eu não quero. Carlos, Região
E o jornal coloca a violência como algo Diego, Colégio Fractal. Noroeste.
institucionalizado, que é algo normal e o povo vê Ao mesmo tempo que eles trazem
isso como leu a noticia, não se comove e ai tá matérias que só demonizam a pessoa,
Para mim uma matéria que liga droga e até
normal, vamos seguir nossa vida mesmo. eles deixam matérias como educação,
mesmo ao adolescente devia ter algo que
Marcos, Região Noroeste. saúde e tenta focar só na violência
explicasse porque tá acontecendo. Porque eles
mesmo... Roberto, Colégio Fractal.
não querem saber se tem provas para isso, um
Ou seja, só esta mostrando o lado negativo do negro, jovem e que matou vai todo mundo
jovem, ate agora não teve uma noticia que falou
O sensacionalismo no Daqui
linchar o jovem. Roberto, Colégio Fractal.
o jovem estudou e fez uma pesquisa da UFG e Por que: “prejuízo para a
se deu bem, só mostrou o lado negativo. Diogo, malandragem?”. A gente não quer
Região Noroeste. dar prejuízo. A gente quer acabar ...no jornal mesmo e na televisão eles escodem
com a malandragem. Eduardo, muita coisa. Tipo, eles mostram mortes, ao invés
A questão da matéria é a matéria feita assim Região Noroeste. de mostrar educação, parece que eles querem
condensada, você pega os principais pontos e que a pessoa, a população continue boba.
destaque, é uma questão de matéria ...eles só focam na violência e no André, Região Noroeste.
descartável. Fernando, Colégio Medicina. esporte, para bitolar as pessoas...
Roberto, Colégio Fractal.
Aquele programa Casos de Família, eles falam:
“olha lá, aquele bando de favela. Ah nem.
...qualquer coisinha o jovem é
Tadinho deles”. Ah nem”. Eles colocam que a
vagabundo, então tipo eu acho que
Improdutividade isso ainda é um veículo
gente não tem cultura. Ganha dinheiro com o
quê? Com a desgraça dos outros, uai. Roberto,
sensacionalista demais...Ravi,
Região Noroeste.
...as reportagens que são feitas, é para mim Colégio Medicina.
antes de tudo superficialidade. Porque se eu Insanidade
fosse de um outro jornal, eles poderiam Eu acredito que todas as matérias de
evidenciar o que levaram o fato, ou seja, os violência eles distorcem. Muitos fatos Além de colocar o problema social das drogas,
motivos.... Augusto, Colégio Fractal. que eu presenciei e vi, não saiu a tem de falar da gravidade do crime .. Colégio
história igual...Aparício, Região Fractal.
Igual eu. Se eu morrer aqui, amanhã, aí já vai Noroeste.
falar, não, é um traficante. Morreu um traficante Aí está a história de pessoas drogadas que
do estado de Goiás. E ele era um dos maiores querem dinheiro a qualquer custo. Marcos,
traficantes da noroeste. Eles agigantam. Ambiguidade
Colégio Medicina.
Roberto, Região Noroeste.
..se a gente for observar nos jornais, esses
tipos de reportagem, a gente vive vamos Tem um colega meu que ele fuma. O nome dele
É igual aquele cara que matou as mulheres aqui é Sequim. A gente deixou de ser amigo porque
em Goiânia. Lembra? Tem muitas pessoas que dizer assim muito raso,... Gustavo, Colégio
Medicina. ele começou a roubar de nós. A pessoa começa
morreram que jogaram nele também. Roberto, a ser escravo da droga. A nóia faz a cabeça
Região Noroeste dela. André, Região Noroeste.
É bom ver a diferença de tratamento por
Não, os mendigos não foi ele que matou. Não. causa de dinheiro. Eu acho que o que faz
girar o tratamento diferente pela polícia é o Pessoa noiada, ninguém fica perto dela. É como
Foi um colega meu... Ele está preso. Aí depois se fosse uma pessoa leprosa, assim. Ninguém
de um tempão. Apareceu esse cara aí das dinheiro. Roberto, Região Noroeste.
quer ficar perto dela. Você é mal visto, uai.
mulheres. E falou que era ele que tinha matado Roberto, Região Noroeste.
os mendigos. Ah... Conversa! Como assim? Outra coisa é o racismo. Na real. Um
Carlos, Região Noroeste. playboy sempre olha diferente para mim e
para minha namorada. André, Região
Noroeste.
Meu amigo tomou dois tiros na nuca, dormindo.
Agora, tipo, uma menina jovem, de um bairro lá, É que nem, tipo assim: eu ando de skate,
uma menina rica toma um tiro, no outro dia eles faço artesanato. Aí eu entro no
falam até espumar o canto da boca. O meu supermercado. Para comprar. Aí eu dou
amigo, até hoje, não deu nada. Agora, se fosse umas duas voltas e vejo que tem alguém
uma pessoa rica, ia procurar saber o que era, seguindo a gente. Preconceito total, sabe?
quando... André, Região Noroeste. Eduardo, Região Noroeste.

A polícia fala: “seu preto”, vagabundo.


Kevin, Região Noroeste.

306
O sensacionalismo no Jornal Daqui

Ao apresentar a capa do Jornal Daqui para os participantes dos 3 grupos focais, os


jovens foram motivados a relatar suas impressões sobre o periódico. Todos concordaram que
o jornal é sensacionalista, violento, apresentando notícias rasas, sem aprofundamento:
Você está perguntando o que a gente acha. Além de ser muito
resumida, é tipo um deboche. Por que: “prejuízo para a
malandragem?”. A gente não quer dar prejuízo. A gente quer
acabar com a malandragem. Então por que eles colocam
prejuízo? Tipo assim, é uma coisa meio que desinformada. Não
é o correto. Eduardo, Região Noroeste.

Como muitos jornais no Brasil, eles só focam na violência e no


esporte, para bitolar as pessoas, manipulando a informação
que chega até elas. O futebol é quase igual a um circo
alegórico no Brasil. Roberto, Colégio Fractal.

...se você pegar um jornal desse e retratar a gente, se você é


jovem, não trabalha e tá estudando, se você não tá
trabalhando, você é vagabundo, porque antigamente eles
trabalharam e estudaram, aí qualquer coisinha o jovem é
vagabundo, não sei o que, então tipo eu acho que isso ainda é
um veículo sensacionalista demais... Ravi, Colégio Medicina.

Porque, tipo assim, isso é como se chamar todos de idiota, que


quem tá comprando de idiotas, porque você tá vendendo uma
coisa que agride a intelectualidade das pessoas, porque você
não é capaz de pensar mais do que isso, não vai procurar mais
do que isso. Gustavo, Colégio Medicina.

Os jovens identificam o Daqui como sendo um veículo de comunicação


sensacionalista e afirmam que esse tipo de publicação subjuga a inteligência do público
leitor. Como aponta Gustavo (Colégio Medicina): “...é como chamar todos de idiota...
porque você tá vendendo uma coisa que agride a intelectualidade das pessoas, porque você
não é capaz de pensar mais do que isso...” O não aprofundamento das notícias e a
descontextualização dos fatos também foram características relatadas por esses jovens.
Segundo Roberto (Colégio Fractal): “como muitos jornais no Brasil, eles só focam na
violência e no esporte, para bitolar as pessoas, manipulando a informação que chega até
elas”. A crítica dos jovens dialoga com os estudiosos do jornalismo sensacionalista, como
Angrimani (1995) e Dias (1996). Para os autores, a falta de aprofundamento, a construção de

307
notícias rasas e a banalização da violência são características inerentes aos jornais
sensacionalistas.
O jovem Eduardo, da região noroeste, afirma: “A gente não quer dar prejuízo... Então
por que eles colocam prejuízo”?. Segundo o dicionário Aurélio da língua portuguesa,
prejuízo significa “perda, juízo antecipado e irrefletido etc”. Nesse caso, o texto jornalístico
postula que os jovens causam danos à sociedade. Esse sentido já está ancorado socialmente,
através de pensamentos estereotipados em relação ao que é ser jovem, associando o mesmo à
noção de problema, farra, baderna, falta de compromisso e falta de responsabilidade. A
objetivação desse discurso se dá nas práticas de segregação espacial da cidade, defesa da
redução da maioridade penal, apoio às ações violentas de policiais etc.
Conforme é possível perceber, os jovens participantes dos grupos focais possuem uma
visão distinta da representação social sobre o que é ser jovem presente no discurso do Jornal
Daqui. Eles não ancoram a associação da juventude como problema ou como perigo, mas sim
a questionam, ao dizer que “a gente não quer dar prejuízo” e “aí qualquer coisinha o jovem é
vagabundo”. Diferentemente da sujeição criminal percebida nos jovens moradores das
favelas do Rio de Janeiro, apontada por Misse (2008), os jovens de Goiânia não se veem
como sujeitos criminais. Ao contrário, criticam a mídia e os estereótipos propagados pela
mesma que vinculam sua identidade à do bandido.
Já os jovens da região noroeste, além de criticar a produção jornalística do Daqui,
como fizeram os jovens de classe média e alta (Colégio Fractal e Colégio Medicina), deram
exemplos de casos reais que aconteceram próximos a eles e que foram que deturpados nas
notícias publicadas pelos veículos de comunicação, como o Daqui:
Eu acredito que todas as matérias de violência eles distorcem.
Porque eles querem colocar como mais pesado. Muitos fatos
que eu presenciei e vi, não saiu a história igual. Aparício,
Região Noroeste.

Teve um caso de um assassinato que teve lá. Foram três


pessoas. Aí só uma tinha envolvimento. Aí eles colocaram como
se todo mundo tivesse envolvimento com drogas. Aparício,
Região Noroeste.

Teve também um amigo meu lá no Finsocial que morreu. Eles


falaram que era tráfico de drogas. Tráfico de drogas pesado.
Mas não era [...]. André, Região Noroeste.

308
Segundo os jovens, as matérias sobre violência publicadas pelo Daqui são distorcidas,
como relata Aparício (Região Noroeste): “Muitos fatos que eu presenciei e vi, não saiu a
história igual”. André (Região Noroeste) conta que um amigo, que veio a óbito, não tinha
envolvimento com drogas, mas foi apontando pela mídia como sendo traficante.
Após afirmarem que os jornais sensacionalistas não retratam a realidade da região
noroeste de forma imparcial, incriminando muitos jovens e justificando suas mortes
principalmente pelo envolvimento com o tráfico ou uso de drogas, eles apontaram várias
situações em que foram vítimas da violência, principalmente a violência policial:
Eles abordaram. Tinha algumas pessoas que estavam lá
fazendo o tráfico. Aí, tipo, foi todo mundo que estava lá na
pista 3, sabe? Levou todo mundo preso. Jogou droga em cima da
gente. Falou que era tráfico de drogas. Agrediu a gente. Carlos,
Região Noroeste.

É bem assim, sabe. Os polícia. Quando eles estão revoltados


com sua cara, já era. Aí eles pegam e eles mesmo falam, já: vou
pegar você, vou dar um “pau” em você e ainda jogo as drogas
em cima de você. E vou levar você preso”. Eles falam isso para
ganhar a promoção do dia. Dois dias de folga e ainda ganham
R$ 150, dependendo do caso... E se isso for divulgado na mídia,
sai que o policial é herói. Davi, Região Noroeste..

Pelo menos comigo. Eu não sei com os demais. Você vai na


bondade. A primeira coisa, quando eles te abordam, é
perguntar se tem passagem, entendeu? Porque se você falar:
“sim, eu tenho”. A forma de agir já é diferente. Se você tem
passagem, você já é vagabundo, sabe. Eduardo, Região
Noroeste.

Geralmente, quando não tem muitas pessoas, sabe. Eles querem


bater. Eles querem levar para um lugar para saber das coisas.
André, Região Noroeste.

Os relatos dos jovens moradores da região noroeste demonstram que eles sofrem as
consequências concretas do processo de incriminação, apontado por Misse (2008), que
associa a transgressão como um atributo inato da juventude das periferias. A representação

3Pistaé um termo utilizado pelos jovens para designar um local de encontro. Nesse caso, indica um
lugar específico da comunidade onde os jovens da região noroeste se reúnem para socialização
todas as quintas-feiras à noite (A Praça da Paz, Região Noroeste).

309
que vincula o jovem como perigoso e violento, propagada pela mídia e; consequentemente,
ancorada no imaginário popular, faz com que a sociedade e os agentes de segurança associem
a questão do aumento da violência como consequência da pobreza urbana.
Durante os relatos, os jovens da região noroeste enfatizaram que sofreram agressões
físicas e simbólicas, sendo vítimas preferenciais da violência policial. Como relata Carlos
(Região Noroeste): “Eles abordaram. Tinha algumas pessoas que estavam fazendo o tráfico.
Aí, tipo, foi todo mundo que estava lá na pista. Jogou droga em cima da gente”. A
estigmatização é ainda mais intensa quando os jovens já possuem passagem pela polícia,
como conta Eduardo (Região Noroeste): “Se você tem passagem, você já é vagabundo,
sabe.”. No texto jornalístico, estes jovens já não têm possiblidade de recuperação, como
aponta Misse (2008), e sofrem as consequências da sujeição criminal.
Portanto, os jovens das periferias urbanas, como os moradores da região noroeste, são
considerados pela mídia como os mais propensos a cometer crimes. A objetivação desse
imaginário produz consequências concretas na vida desses sujeitos, como a demanda por
medidas cada vez mais punitivas e severas contra os mesmos e a defesa de políticas públicas
rigorosas e repressivas, como o clamor pela aprovação da redução da maioridade penal. Esses
jovens são os possíveis de serem mortos, os outsiders, já que não farão falta, pois fazem parte
de mais uma estatística da violência urbana, retratada pelos veículos de comunicação, como o
Daqui, de forma estigmatizada e sensacionalista.
Contudo, mesmo que exista uma representação midiática que ancora a juventude
como uma fase de riscos, problemas e crises, é possível perceber que os jovens participantes
dos grupos focais não ancoraram tal percepção. Os jovens de classe média e alta possuem
uma visão crítica diante do conteúdo midiático, fazendo contraponto com sua vivência do que
é ser jovem, através de um processo de subjetivação, contestando o sentido amplamente
socializado sobre o que é ser jovem na atualidade. Já os jovens da região noroeste, além de
possuir um senso crítico diante da cobertura midiática, contam que sofrem as consequências
concretas da objetivação que rotula o jovem como perigoso e violento, relatando casos reais
em que sofreram as consequências da violência em seu cotidiano.
Portanto, os jovens participantes dos três grupos focais, de classes sociais distintas,
demonstram que realizam um processo de subjetivação diante do conteúdo midiático sobre si
mesmos, produzindo uma representação diferente do sentido socialmente ancorado sobre
juventude, pobreza e criminalidade. Segundo Foucault (2005), se por um lado o sujeito é

310
constituído por imposições, por outro há um processo de subjetivação, possibilitando a
criação de um sujeito livre e autônomo, capaz de se posicionar de formas distintas,
redefinindo novas formas de ser e de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Para o
autor, o indivíduo não é totalmente assujeitado em relações de poder. Há capacidade de
autonomia, com a possibilidade de resistência diante dos modelos normativos, assim como
relatado por esses jovens ao realizarem uma leitura crítica do conteúdo midiático do Daqui.

Irreversibilidade
Após a discussão sobre as características do Jornal Daqui, durante a realização dos
grupos focais, foram apresentadas matérias vinculadas às categorias encontradas no estudo da
representação social do Daqui em relação à juventude goianiense. A seguir, o primeiro trecho
de notícia apresentada aos jovens:
Rapaz, de apenas 21 anos, admite que se envolveu em mais de 40 assassinatos nos
últimos dois anos na região. A Polícia Civil de Goiás prendeu no feriado da Semana
Santa um homem considerado um dos criminosos mais perigosos e procurados da
região... Depois de um ano e meio de investigações, Japinha é suspeito de ser o
autor ou coautor em 29 inquéritos de assassinato...Alessandro Souza Santos é
considerado um traficante de médio porte e maioria de suas vítimas foi morta a tiros
em disputa territorial por causa do tráfico de drogas conforme apontaram as
investigações da Polícia Civil. “As vítimas eram geralmente traficantes rivais,
usuários devedores e testemunhas de outros assassinatos executadas como queima
de arquivo” contou Fernando Gili (DAQUI, 23/04/14).

Uma das categorias encontradas na análise das notícias Daqui foi a irreversibilidade,
que aponta a recuperação do infrator como algo improvável. Há, no texto jornalístico, uma
afinidade entre as práticas criminais desses jovens e suas trajetórias de vida. Segundo Misse
(2010), as representações de “irrecuperabilidade” conduzem à justificativa do extermínio do
sujeito criminal.
Diferentemente do processo de incriminação do jovem das periferias presente nos
textos do jornal Daqui, os jovens estudantes do Colégio Fractal e do Colégio Medicina, de
maneira geral, questionaram os motivos que levaram esse jovem a cometer crimes. Portanto,
a maioria dos participantes dos grupos focais não ancorou o conteúdo midiático sem criticá-
lo. Eles apontaram a falta de contextualização da notícia em relação às questões de
desigualdade social e a ausência de matérias que tratam de outros temas além da violência,
como saúde, esporte, educação, cultura, entre outros:
Ele (Daqui) cumpre o papel dele de informar o resultado, mas
ele se esquece do papel que levou o jovem a fazer isso, porque

311
ali não analisou a família do cara, não analisou o histórico,
tipo financeiro dele, o que ele passou, o cara do tráfico de
drogas, só passou o resultado, o cara se envolveu com tráfico
de drogas, só mostrou o resultado. Diogo, Colégio Fractal.

Tá jogado aí, a informação, você não tem nada do cara, você


não sabe qual que é a história dele, o contexto, 40 assassinatos,
cada assassinato tem um contexto diferente do que ele cometeu,
provavelmente, do jeito que tá jogado aí... A gente debateu no
início, aquela coisa sensacionalista que te deixa, acaba por não
pensar, você tá vendo isso daí, aí acabou, não sabe o que tá
acontecendo [...] Gustavo, Colégio Medicina.

Ao mesmo tempo que eles trazem matérias que só demonizam a


pessoa, é algo que poderia ser necessário às pessoas, eles
deixam matérias como educação, saúde e tenta focar só na
violência mesmo, é algo que vem demais no Brasil. Roberto,
Colégio Fractal.

...esse cara desde pequeno deve ter visto assassinato, deve ter
visto coisas que pra gente é chocante, viveu isso aí, então pra
ele o que é certo é isso aí, matar pessoa pra ele ver, agora que
nem vocês estavam citando, não é certo, mas eu acho que eles
acreditavam no ser mais fácil, pra se desenvolver na sociedade.
Ravi, Colégio Medicina.

Para os jovens estudantes de classe média e alta, alunos dos colégios Fractal e
Medicina, é preciso contextualizar os casos de violência retratados pela mídia, pois a
desigualdade social deve ser denunciada e discutida. Diogo (Colégio Fractal) aponta que o
jornal “...não analisou a família do cara, não analisou o histórico, tipo financeiro dele, só
passou o resultado...” Para Ravi (Colégio Medicina), “esse cara desde pequeno deve ter visto
assassinato, deve ter visto coisas que pra gente é chocante...”.
A apresentação dessa notícia gerou uma discussão durante o grupo focal realizado no
Colégio Medicina. Enquanto a maioria afirmou que é preciso contextualizar os casos de
violência divulgados pelo Daqui, dois jovens argumentaram que esse é o caso de um garoto
“irrecuperável”, com problemas psicológicos, que cometeu uma atitude desumana, como é
possível perceber nos trechos a seguir:
[...] mas o fato do cara matar uma pessoa já é algo desumano,
você não tem direito. Pedro, Colégio Medicina.

...o que cada um passou, a realidade de cada um, o pensamento


de cada um é que ela fica muito longe do que é a realidade que

312
a gente precisa, que é segurança, eu acho que tem que punir
mesmo, tem que prender, se for preciso, eu não vejo a solução
tão distante “vamos no interior”, não é porque o cara não tem
situação, não tem dinheiro, que ele não dá educação para o
filho que mostra pra ele o caminho do que é certo e errado, se
ele tá num ambiente que ele vai ver morte, que ele vai ver
tráfico, tipo na porta da casa dele, mas os pais deles, os avós
dele ensinaram o que é certo e o que é errado, não é porque é
periferia que ele vai privar isso, então tá longe de se buscar
uma solução... Cassio, Colégio Medicina.

Contudo, logo em seguida, os jovens do Colégio Medicina voltaram a afirmar que é


preciso reconhecer o contexto da realidade de exclusão e violência que levaram esse jovem a
cometer crimes:
Eu acho que tá num ambiente de traficante, então se o cara
pensar diferente, ele não vai sair tão fácil. Cleuber, Colégio
Medicina.

Acho que o negócio do contexto não pra mostrar que ele possa
estar certo, mas pra mostrar o meio que influenciou pra formar
um cara desse. Márcio, Colégio Medicina.

É igual o vídeo que o Cris passou pra gente, o cara nasceu no


Rio de Janeiro, no meio, como que é o nome? Não sei, morou
debaixo de igreja, concreto, marquise, pra tentar sobreviver e
um dia o cara, pilhado, invadiu um ônibus e fez um monte de
gente refém e no final acabou matando uma mulher e morreu
pelos policiais. Então tem a parte do contexto que envolve ele e
não é apresentado o contexto. Concordo com o Márcio que
vilaniza demais, 40 assassinatos é muita coisa, só que o
contexto que vem atrás disso e a gente não sabe [...], o cara
tem 40 assassinatos, mas desde quando? [...]. Esse é o contexto
que a gente não sabe, o contexto, de onde o cara vem, como que
o cara sobreviveu até os 21 anos [...] Ravi, Colégio Medicina.

Já os jovens da região noroeste continuaram a denunciar abusos, tortura e violência


policial sofrida por eles ou por pessoas conhecidas. Questionaram os termos utilizados no
texto apresentado, como “investigações da polícia civil” e afirmaram que a fonte das notícias
usualmente é a polícia. Eles relataram o processo de incriminação vivido por eles durante as
abordagens policiais e afirmaram que sofrem preconceito por serem moradores das periferias
urbanas:

313
Esse negócio que eles falam toda vez: “as investigações da
polícia civil”. Você já viu como é que é uma investigação da
polícia civil? O que eles fazem? Nossa! Meu irmão teve tráfico,
um monte de coisa. E eles torturam a pessoa. Mesmo se eu não
estou envolvido, eu praticamente tenho que falar que eu estou
envolvido. Porque não tem como. Eles, tipo, afogam, fazem um
monte de coisa, tipo: foi naquela casa; tem que ser ali. Se não
foi ali... Aquela pessoa vai sumir. Vai sumir! Não tem como
você falar o contrário. Carlos, Região Noroeste.

Só para você ter uma ideia. Porque que não tem como negar.
Depois que ele te trouxe, você já vai estar quebrado. Aí eles vão
falar o seguinte para você: “moço, nós vamos lá no IML. Na
hora que chegar lá no IML, se você falar alguma coisa, já era
para você, veio”. Porque na volta, quem vai levar você? Não é
eles que te levam para a delegacia? Já passou o IML. Você vai
registrar mais o quê? Davi, Região Noroeste.

E quando a repórter vai perguntar, ela pergunta é para o


policial. Ela faz toda a paradinha dela lá com o policial. Então
tudo que o policial falar ali vai pra mídia. Carlos, Região
Noroeste.

Tem um cara da Band lá, aquele gordão, lá, o Batista Pereira,


aquele do Chumbo Grosso, na época, aí. Ele pegou, perguntou
para o delegado e chegou e perguntou para nós: “vocês vão
querer que faz reportagem?” Os meninos todos ficaram
calados. Eu falei: “Moço, que nada que pode. Nós vamos sair
tudo daqui, moço. Aqui não tem ibope para a mídia não”. Aí o
delegado chegou e falou: “Você tá pagando. Você já tá é preso
e já tá pagando.” Eu falei: “Que nada, moço, eu não vou ficar
dando ibope para esses comédia aí não”. Aí ele foi e me deu
altos murros na barriga, ainda, e pegou e falou: “Não, deixa
esses caras aí. Não faz reportagens deles não”. Davi, Região
Noroeste.

Olha essa notícia, o que fala: Rapaz, de apenas 21 anos, admite


que se envolveu em mais de 40 assassinatos. Aí, mais ali, em
baixo, na quinta linha: depois de um ano e meio de
investigações, Japinha é suspeito de ser o autor ou coautor em
29 inquéritos de assassinato. Pula mais duas linhas: por tráfico
de drogas. Tudo que está escrito ali, cara, a pessoa que tá
lendo pensa: porra, um cara desse tá livre? A pessoa vai
comprar o jornal e vai sentir medo. Eduardo, Região Noroeste.

Quando eu vejo uma coisa assim eu não sei para que o jornal
serve muito bem. Ali só fala sobre o cara, que ele tem não sei

314
quantos assassinatos. Fala dele, essa coluna aí fala
inteiramente dele. O jornal Daqui é um jornal para sair
somente o lado ruim? Não tem cultura. É futebol, putariagem e
cultura fica nada. A gente não tem cultura, a gente quer
cultura. Só tem crime, futebol e tudo mais. Só isso. O único
esporte é futebol. Não tem mais nenhum tipo de esporte. Mais
nada. Eduardo, Região Noroeste.

Os jovens da região noroeste relataram casos reais em que foram vítimas da violência,
do preconceito e da incriminação pela polícia. Denunciaram torturas e todo tipo de abuso,
como relata Carlos (Região Noroeste): “Eles torturam a pessoa... Eles, tipo, afogam, fazem
um monte de coisa, tipo: foi naquela casa; tem que ser ali. Se não foi ali... Aquela pessoa vai
sumir...” .
Esses constataram que a desigualdade social traz consequências concretas para suas
vidas, em um processo de objetivação, pois eles são vítimas de uma violência física e
simbólica. Criticaram a forma como a mídia retrata sua realidade, afirmando que ela instiga o
medo no público leitor. Também questionaram a própria utilidade de um jornal que só
divulga fatos violentos, sem dar espaço para assuntos relacionados à cultura etc, como aponta
Eduardo (Região Noroeste): “Quando eu vejo uma coisa assim eu não sei para que o jornal
serve muito bem. Ali só fala sobre o cara, que ele tem não sei quantos assassinatos. .. O
jornal Daqui é um jornal para sair somente o lado ruim?...”. E identificam que a principal
fonte para a produção das notícias é a polícia, como argumenta Carlos (Região Noroeste): “E
quando a repórter vai perguntar, ela pergunta é para o policial... Então tudo que o policial
falar ali vai pra mídia”.
Segundo Caldeira (2000), a fala do crime é contagiante, fragmentada e repetitiva. As
pessoas parecem compelidas a continuar falando sobre o crime. A repetição de histórias,
contudo, só serve para reforçar as sensações de perigo e insegurança, alimentando um círculo
em que o medo do crime é reproduzido e ampliado, como denunciado pelo jovem Eduardo
(Região Noroeste): “A pessoa vai comprar o jornal e vai sentir medo”.
Ao observar o discurso dos jovens dos diferentes extratos sociais (classes alta, média
e baixa), percebe-se que a vivência do crime é distinta em cada classe social. Conforme
demonstram os depoimentos e em diálogo com as reflexões de Caldeira (2000), as pessoas da
classe trabalhadora vivenciam a violência no seu dia-a-dia, não apenas em seu bairro, mas
especialmente nele. Por serem vítimas diretas da violência urbana, as pessoas na periferia têm

315
medo da polícia, já que ela é responsável por um alto número de assassinatos, a maior parte
deles nas regiões periféricas.
Já os jovens de classe média e alta, devido à repetição da fala do crime, se sentem
ainda mais inseguros, mesmo não tendo sido vítimas diretas da violência. Segundo Roché
(1993), a insegurança se estrutura mais a partir de percepções subjetivas em relação ao crime
do que em relação aos fatos que realmente aconteceram.
Para o autor, a desordem e o medo do crime alteram as percepções de convívio
coletivo e contribuem para a disseminação do sentimento de insegurança. Esse medo está
ligado ao aumento de incivilidades, como vandalismos e delinquências, aumentando o
descrédito em relação à atuação policial e a estigmatização dos atores que supostamente
cometem crimes.
Devido ao sentimento de insegurança ancorado socialmente, as classes altas e médias,
em um processo de objetivação, se refugiam e se isolam cada vez mais em condomínios
fechados, com equipamentos modernos de vigilância e controle. Nesses locais, os moradores
têm acesso a um amplo complexo de segurança e de lazer, o que faz que eles desejem
conviver somente com seus pares. Segundo Caldeira (2000), a segregação socioespacial das
cidades faz com que a convivência nos espaços públicos seja cada vez escassa, o que reforça
ainda mais o isolamento, o distanciamento e estigmatização dos moradores das periferias
urbanas.
A exposição da violência retratada pela mídia ancora a associação entre juventude,
violência e criminalidade, gerando um sentimento de insegurança que aprofunda as
diferenças sociais, segrega as cidades e estigmatiza os jovens moradores das periferias
urbanas, que são estereotipados indiscriminadamente como violentos e criminosos. Tal
ancoragem, conforme já exposto, faz com que haja um processo de objetivação que aumenta
ainda mais as desigualdades e a segregação desses jovens ao seu universo. O espaço público
das cidades já não é para todos, visto que quando esses jovens saem das suas regiões e tentam
frequentar as áreas nobres das cidades, eles são taxados como perigosos, sofrem constantes
abordagens policiais, em um processo de incriminação que identifica tais áreas como um não
lugar para esses jovens. Os jovens da região noroeste participantes do grupo focal denunciam
os preconceitos e estereótipos que recaem sobre eles:

316
Aí a pessoa te vê na rua, te acha diferente, sua roupa, seu jeito
de andar, e fala: olha ali aquele cara lá, o magrão, vai querer
me roubar, não sei o quê [...] Carlos, Região Noroeste.

Por que é diferente quando eles abordam na periferia e em um


bairro nobre? Você já viu a Rotam fazendo abordagem, tipo,
em uma pessoa de um bairro nobre, assim? Na rua? Na praça?
Nunca! Carlos, Região Noroeste.

Você anda no centro. Eu e minha namorada. A gente passeia no


centro. A gente toma uma abordagem. A polícia quase não
enquadra a gente. A gente vai andar na periferia. A gente toma
abordagem de esquina em esquina. André, Região Noroeste.

Os jovens da região noroeste de Goiânia denunciaram situações em que foram vítimas


de preconceito e da violência policial durante momentos em que circulavam pela cidade. Eles
perceberam que as abordagens policias são distintas nas diferentes regiões de Goiânia.
Caldeira (2000) também aponta a estigmatização vivenciada pelos jovens moradores das
periferias urbanas, fazendo com que o crime e os criminosos sejam associados aos espaços
que lhes deram origem: as favelas e regiões periféricas.
Outra notícia apresentada aos três grupos focais relata o caso de um menino
“irrecuperável”, detido por roubar um carro de uma moradora do Setor Bueno:
Garoto de apenas 14 anos e um comparsa foram detidos por roubar carro de mulher
no Setor Bueno... Segundo a PM, o menor já tem registro de três passagens por
porte de arma de fogo. A vítima do assalto não quis ser identificada, mas afirma que
era o garoto quem dava as ordens para o comparsa, de 20 anos, durante o roubo.
Eles entraram no carro e ordenaram que ela dirigisse. “Um deles já levantou a
blusa e mostrou a arma. Enquanto isso, o outro deu a volta e os dois entraram no
carro e aí mandou eu seguir”, relata. (DAQUI, 03/04/14, p.7).

Novamente, os jovens estudantes do Colégio Fractal e do Colégio Medicina


afirmaram que a falta de oportunidades, de estrutura familiar, o não acesso aos direitos
básicos, como educação, saúde, cultura, esporte etc é o que leva os jovens e adolescentes a
optarem pelo mundo do crime. Segundo eles, a possiblidade de ascensão social por meio do
caminho de violência é o que incentiva esses jovens a escolherem a criminalidade.
A maioria dos participantes dos grupos focais se colocou contra a redução da
maioridade penal, visto que, para eles, não há possiblidade de recuperação no sistema
carcerário brasileiro. Além disso, apontaram que menos de 10% dos crimes são cometidos
pelos jovens. Eles apresentaram uma postura crítica diante do conteúdo midiático, afirmando,
por exemplo, que a mídia utiliza o termo “menor” para inferiorizar o adolescente, visando

317
criminalizá-lo. Outra crítica foi a alta lucratividade das indústrias de segurança, alimentadas
pelo medo e o sentimento de insegurança, demandando o aumento da criação de dispositivos
de vigilância e controle.
Isso que eles sempre colocam que jovem de 14 anos, eles
querem enfatizar a idade de que 14 anos pode ser isso, ela
colocou como o menor sendo o mandante, então tenta enfatizar.
Sérgio, Colégio Fractal.

Quem tem acesso à informação é a mídia, quem controla a


grande mídia? São as grandes indústrias, quem tem muito
dinheiro, então vamos tirar a população desse controle, só pra
ter acesso à informação, claro que não. Diogo, Colégio Fractal.

Infelizmente no começo do ano eu era influenciado, fui


influenciado pela mídia e a minha concepção sobre a
maioridade é que deveria ser reduzida pra 16 anos e até 14
anos, só que aí, como eu citei eu fui influenciado... Eu fico
imaginando um garoto, por exemplo, não chega a ser um cara
que roubou, beleza, mas a perspicácia dos caras, o tanto que
eles são cruéis lá dentro o que eles podem fazer com um garoto
de 14 anos, por mais que ele tenha os erros dele e tal, o cara
tem chance, não é igual ao de 21 anos que todo mundo citou,
mas 14 anos eu peguei e falei “não é justo”, não é que não é
justo, mas é algo absurdo chocar duas realidades que acho que
não daria certo pela crueldade e infelizmente por causa do
nosso sistema carcerário, que é super lotado e pessoas de todos
os tipos, essa é a minha concepção. Pedro, Colégio Medicina.

E falando de dados, também, já de todos os crimes cometidos


por menores de idades não passa de 10%, então, tipo, não é
uma coisa tão exagerada assim, mas é o sensacionalismo, você
viu “ah, 14 anos, ah, 16 anos” aí, tipo esse jornal, o Daqui, o
O Popular também faz isso, você pode ver, faz você pensar o
cara tem 14 anos, tipo ensino fundamental lá, fazendo o 8° ano
se for pensar nos seus primos, nos seus irmãos e roubou um
carro tipo mandando, sabe, isso é muito estranho. Ravi,
Colégio Medicina.

A pessoa não tem escolha porque uma coisa é usar a gente que
mora, porque tipo assim a gente não tá passando por isso, se
for pegar, por exemplo, uma favela lá do Rio ou São Paulo,
velho você acha que os cara tem escolha? Tipo assim ou ele vai
para a escola a escola, do outro lado e chega na sala de aula e
vê um professor que tá nem aí para ele, aí ele pensa “mano,
vou estudar para virar esse cara?” Aí beleza, ele anda na rua e
o traficante oferece para ele um trabalho que vai dar uma

318
maior grana massa mesmo e ele olha para o traficante e tá
rodeado de mulheres, rodeado de carro, rodeado de tudo que
ele deseja, você acha que ele vai escolher? Tipo assim é uma
escolha dele, mas é uma coisa programada pelo o sistema, não
foi ele que escolheu, foi alguém que escolheu. Diogo, Colégio
Fractal.

Acho que o motivo de tudo ser assim, tudo mesmo, em questão


de violência, eu acho que a violência é extremamente lucrativa
pra o Estado, para as empresas que tipo tentam prevenir a
violência. Hoje em dia, você paga imposto para ter segurança e
você paga, tipo assim, eu pago van porque não posso ir de
ônibus, porque é muito perigoso, é muito absurdo. Fernando,
Colégio Medicina.

Uma das principais consequências da ampla exposição da violência é sua


representação sempre presente nas relações corriqueiras, demandando a segurança privada
como solução, como relatam Porto (2010) e Caldeira (2000). O jovem Fernando (Colégio
Medicina) ilustra essa tendência: “eu acho que a violência é extremamente lucrativa pra o
Estado, para as empresas que tipo tentam prevenir a violência”.
O sentimento de insegurança faz com que os promotores imobiliários tenham maior
lucratividade para vender imóveis que oferecem segurança, como apontam Caldeira (2000) e
Magrini (2013). A consequência desse sentimento é a segregação espacial das cidades, onde
as classes com maior poder aquisitivo se isolam e circulam somente em espaços considerados
seguros pelas mesmas, mesmo que elas não tenham sido diretamente vítimas da violência,
aumentando a segregação especial dos moradores das periferias e a repressão contra os
mesmos.
Ao analisar a notícia que apresenta um adolescente de 14 anos cometendo uma
infração, os jovens da região noroeste também se manifestaram contrários à proposta de
redução da maioridade penal, relatando casos em que vivenciaram a violência em seu
cotidiano. Novamente, a fala dos jovens da periferia é diferente dos jovens das classes alta e
média, pois enquanto os jovens de classe alta e média contrapõem o discurso ancorado pela
mídia que retrata o jovem como violento e perigoso, os jovens de classe baixa sofrem as
consequências reais de tal objetivação, relatando casos em que são vítimas diretas da
violência ou relembram exemplos de pessoas próximas. Eles dialogaram com o texto
noticioso de forma crítica, analisando seus sentidos e as intenções por trás da produção da

319
notícia. Portanto, não houve assimilação e ancoragem do discurso do Jornal Daqui, e sim o
questionamento do mesmo.
Eles falaram que o carinha atirou nos policiais. Mas, tipo
assim: aí o cara estava lá dentro. Eles falam na matéria que foi
troca de tiros. Uma vez que eles mataram um colega meu lá. O
que que aconteceu? Na hora que a gente chegou, eles
começaram a atirar, ele chegou e eles mataram ele. Eles deram
um tiro nele. Ele tentou correr. Aí eles pegaram a arma dele e
deram um tiro. Igual apareceu ali na matéria. Tipo assim: os
cara estão errados. Mas quando um policial chega e faz uma
parada dessa, ele está mais errado ainda. E sempre sai na
mídia é que o cara é que estava errado. Que foi ele que deu o
tiro, foi ele que matou, ele que é drogado, é sempre a droga que
está lá, ele deu o tiro, ele que errou, a droga é que tá lá. Carlos,
Região Noroeste.

Esse colega nosso, não houve troca de tiro nenhuma. Na


verdade, ele só tentou correr. Pegaram a arma dele e deram um
tiro depois. O policial é o super herói na mídia e a gente acaba
sendo mal visto por causa dos polícia. Roberto, Região
Noroeste.

Queriam queimar a imagem do menor, dizendo que ele estava


com a arma, e tal, mas, diante da situação, né. O menor tá ali,
vamos fuder o menor [...] Ravi, Região Noroeste.

Os jovens da região noroeste criticam as notícias do Jornal Daqui, ao silenciar fontes


e não abordar a totalidade dos acontecimentos. Eles denunciam episódios em que pessoas
conhecidas foram mortas pela polícia, sem que houvesse troca de tiros ou uma ação que
justificasse a morte desses jovens. Como conta Roberto (Região Noroeste): “Esse colega
nosso, não houve troca de tiro nenhuma... Pegaram a arma dele e deram um tiro depois. O
policial é o super herói na mídia e a gente acaba sendo mal visto [...]” e Carlos (Região
Noroeste): “Uma vez que eles mataram um colega meu lá [...] Aí eles pegaram a arma dele e
deram um tiro [... ]. E sempre sai na mídia é que o cara é que estava errado [...]”.
Eles contextualizaram as questões de desigualdade social e privação de direitos aos
moradores das periferias urbanas. E relataram que, muitas vezes, não há outra opção para o
jovem, a não ser o caminho da criminalidade, visto que ele convive com a violência como
única referência desde cedo:
Eu acho que a gente já cresce no meio da criminalidade, do
roubo, não sei o quê. Tipo, o exemplo que eu tenho no meu

320
redor lá é um traficante que está ostentando dinheiro. O maior
exemplo. Tipo, a gente não tem opção. Muitas vezes o menino
vai roubar, vai fazer alguma coisa, porque, muitas vezes, ele
nem sabe que é errado fazer aquilo ali. Ele faz porque sabe que
o cara da quebrada dele faz e ganha dinheiro com aquilo.
Carlos, Região Noroeste.

Em seus relatos, os jovens da região noroeste se posicionaram contra a redução da


maioridade penal, denunciando a ineficácia do sistema carcerário:
Esse negócio da maioridade penal eu acho errado. Acho que
poderiam investir em cultura, investimento social do que
construir presídio pra criança. Ravi, Região Noroeste.

Aí chega o cara, fala que menor de idade é criminoso, tem que


ir para a cadeia e foda-se. Porque não olha lá atrás? Aí chega
na mídia que o menor é aquilo, o menor é isso, o menor vende
droga, mata, faz isso e aquilo, mas não olha no começo. Como
é que ele foi criado. Que dia que mostra a casa do moleque,
que o moleque tá lá, roubando. O que aparece na capa do
jornal? Porque não tirou a foto da casa dele e mostrou,
porquê? Da “escola” (fez sinal com as mãos de aspas) que ele
estudou? Como é que é? Carlos, Região Noroeste.

Tem um negócio de aprendizado. O menor vai preso. Lá na


cadeia tem um cara de 20, 20 e poucos anos. Ali é uma escola
pra ele. Aí a criança entra para o crime e ela só sabe aquilo.
Ela tenta sair, mas aí já não tem como mais. Que nem eles
falam: você vem com a gente. Você é nosso agora, entendeu? O
governo não deu moral pra você. Então a gente vai cuidar de
você. Entendeu? Roberto, Região Noroeste.

...Aqui em Goiânia tem três lugares que apreendem menores,


que é o Case, no Vera Cruz, o 7º e o BA. Tipo assim. Eles falam
assim: o 7º é purgatório. O BA é o inferno. O Case é a paz.
Meu irmão ficou lá no Case, porque lá é tipo “parado”. Mas
nos outros lugares, se você ver o jeito que é, é feio demais. Aí
eu vi uma matéria que eles vão misturar os maiores de idade
com os menores de idade, pra redução. Mas o que que adianta,
se os lugares que apreendem menores aqui em Goiânia já estão
desse jeito, imagina se eles fazem isso? Não tem recuperação.
Só piora. Carlos, Região Noroeste.

É muito complicado. Como é que você vai julgar uma criança?


Ela tem que crescer. Tem que aprender ainda. Até nós ainda.
Temos que aprender muito ainda. E a criança é o período que

321
ela tem para se formar, é aquilo ali. Se ela só vê coisa ruim, ela
só vai fazer coisa ruim pra frente. Eduardo, Região Noroeste.

Esses jovens muitas vezes não têm seus direitos essenciais atendidos, como o acesso à
educação, cultura, esporte, segurança etc de qualidade, por isso não conhecem outra realidade
a não ser a exclusão. Como relata Davi:
Porque que lá no bairro não tem um trem melhor, lá. Vai lá no
[Bairro] Finsocial, lá, pra você ver o que que tem. É noiado
pra cima e pra baixo. Gente fumando maconha normal na rua.
E cadê que tem uma praça, de boa. Tem um campão. Tá lá.
Largado lá. Os bancos tão lá tudo quebrado, lá. O parque
Fonte Nova, lá, eles nunca mais arrumaram. A quadra de jogar
bola, tudo estragada. Não. Sem contar, que tem toque de
recolher, moço. Você pode acreditar que não, mas tem. Fica
jogando bola lá na quadra depois das nove. O que você ganha?
Você ganha é paulada nas costas. Toque de recolher da polícia.
Você tá lá, foda-se, moço, lá tem igreja. Davi, Região Noroeste.

Ao analisar os discursos dos jovens dos Colégios Medicina, Fractal e Região


Noroeste, é possível perceber uma crítica à cobertura midiática sobre juventude e violência.
Eles afirmam que é necessário contextualizar a realidade das periferias urbanas, denunciando
casos de abuso policial e de uma cobertura midiática que estigmatiza os jovens. Há uma
violência simbólica exercida por um discurso muitas vezes velado, como no caso da defesa
da redução da maioridade penal.
Em relação à categoria irreversibilidade, encontrada na análise das notícias do Daqui
em 2010 e 2014, os jovens dos três grupos focais contrapuseram tal discurso, sem ancoragem
do discurso jornalístico, apontando, primeiramente, que é preciso analisar o contexto em que
esses crimes envolvendo jovens e adolescentes aconteceram. Enquanto os jovens de classe
média e alta questionaram a ancoragem que reforça a não possibilidade de recuperação do
sujeito infrator, os jovens da região noroeste reforçaram que sofrem as consequências da
objetivação que apoia, por exemplo, ações violentas da polícia contra esse segmento social.
Portanto, os jovens não ancoraram grande parte do conteúdo midiático do Daqui, apontando a
ausência de matérias que trataram o jovem a partir de outra perspectiva que não só da
violência, contextualizando a desigualdade social em Goiânia.

Referências

322
ANGRIMANI, D. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São
Paulo: Summus, 1995.

BOURDIEU, P. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Edusp/Porto Alegre:


Zouk, 2007.

CALDEIRA, T. São Paulo: três padrões de segregação espacial in: CALDEIRA, T. P. do R.


Cidade dos muros. Crime segregação e cidadania em São Paulo. SP: Editora 34 / Edusp,
2000. p.211 a 255.

DIAS, A. R. F. O discurso da violência - as marcas da oralidade no jornalismo popular. São


Paulo: EDUC/Cortez, 1996.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MAGRINI, M. Vidas em enclaves. Imaginário das cidades inseguras e fragmentação


socioespacial em contextos não metropolitanos. Tese (doutorado) - Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, São Paulo, 2013.

MISSE, M. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre
a categoria “bandido”. Lua Nova, São Paulo, 2010.

_________. Sobre a construção social do crime no Brasil: esboço de uma intepretação.


Acusados & Acusadores - Estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de
Janeiro: Revan, 2008.

ROCHÉ, S. Le Sentiment d’insécurité. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.

SPINK, M. J. Desvendando as teorias implícitas: uma metodologia de análise das


representações sociais. In: GUARESCHI, P. e JOVCHELOVITCH, S. Textos em
representações sociais. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 117-145.

323
Violência Contra a Mulher e Ética do Jornalismo nos Portais
Paraibanos 1
Violence Against Women and the Ethics of Journalism in the
Paraibanos News Ports
Alessandra Clementino dos Santos (UEPB) 2
José Pedro da Silva Júnior (UEPB) 3
Maryanne Marques Gonçalves Paulino de Sousa (UEPB) 4
Ada Kesea Guedes Bezerra (UEPB) 5

Resumo: O trabalho é resultado do Projeto de Iniciação Científica “Jornalismo,


Gênero e Violência: um Estudo da Percepção e Representação da Mulher e da
Pessoa Trans em Sites Paraibanos de Notícia”, que vem sendo realizado por
estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Estadual da Paraíba. O recorte
selecionado dará conta apenas dos casos de violência contra a mulher noticiados
entre os quatro primeiros meses de 2018 nos portais Paraíba Online, Jornal da
Paraíba, ClickPB, PBagora e Blog do Márcio Rangel (total de 61 casos,
repercutidos em 181 matérias), fazendo um comparativo entre o que dizem os
manuais de ética jornalística e o que é publicado na mídia. Desta maneira,
utilizaremos como método de investigação a Análise do Discurso como descrita por
Orlandi (2009) na perspectiva de perceber o material empírico enquanto um
discurso, fruto de uma construção sócio-histórica e subjetiva. Traremos ainda
Bucci (2000) e Christofolleti (2008) para entender um pouco mais sobre a ética na
imprensa e o compromisso do jornalista para com a sociedade.

Palavras-Chave: Jornalismo Online. Representação Social. Gênero. Violência


contra a Mulher. Ética.

Abstract: The work is the result of the Scientific Initiation Project "Journalism,
Gender and Violence: A Study of the Perception and Representation of Women and
Trans Person in Paraibano News Sites", which is being carried out by students of
the Journalism course of the Universidade Estadual da Paraíba. The selected
clipping will only cover cases of violence against women reported in the first four
months of 2018 in the portals Paraíba Online, Jornal da Paraíba, ClickPB, PBagora
and Blog do Márcio Rangel (total of 61 cases, reflected in 181 stories), making a
comparison between what the journalistic ethics manuals and what is published in
the media say. In this way, we will use Discourse Analysis as described by Orlandi
(2009) as a method of investigation in the perspective of perceiving the empirical
materials as a discourse, the result of a socio-historical and subjective
construction. Will also bring Bucci (2000) and Christofolleti (2008) to understand a
little more about ethics in the press and the journalist's commitment to society.

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho Comunicação e Memória nas Mídias do 3º. CONEC: Congresso
Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Participante do projeto. Estudante de Graduação 7º semestre do Curso de Jornalismo na Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB). E-mail: ale.clementino.santos@gmail.com
3
Participante do projeto. Estudante de Graduação 7º. semestre do Curso de Jornalismo na Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: jpsj.02@gmail.com
4
Participante do projeto. Estudante de Graduação 6º semestre do Curso de Jornalismo na Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB). E-mail: maryannemgps@gmail.com
5
Orientadora do projeto. Professora do Curso de Jornalismo na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e-
mail: ada.guedes@gmail.com

324
Key-Words: Online Journalism. Social Representation. Gender. Violence against
Women. Ethic.

1. Introdução

A “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a


Mulher”, também conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, por ter sido adotada em
Belém no dia 9 de junho de 1994, define Violência contra a Mulher como “qualquer ato ou
conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.” (CONVENÇÃO
INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS, 1994). Promulgada no ano de 2006 e
tida como o principal marco no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as
mulheres no Brasil, a Lei Maria da Penha amplia essa significação ao acrescentar “dano
moral ou patrimonial” como uma das formas de Violência contra a Mulher. Podendo essa
ocorrer: a) dentro do ambiente doméstico e familiar; b) na comunidade e/ou; c) perpetrada ou
tolerada pelo Estado ou seus agentes.
Considerada um tipo específico de violência contra a mulher, a violência doméstica e
familiar é aquela que se origina dentro do “âmbito da unidade doméstica e familiar, ou em
qualquer relação íntima de afeto em que o agressor conviva ou tenha convivido com a
vítima” (LEI MARIA DA PENHA, 2006). Segundo dados do Mapa da Violência 2015:
Homicídio de Mulheres no Brasil, as maiores vítimas da violência doméstica e familiar estão
entre mulheres. Em apenas dois estados brasileiros (Amapá e Sergipe) o quadro não se
repetiu. Quando falamos em agressores desconhecidos, a maior quantidade de vítimas está
entre homens. Em apenas quatro estados (Piauí, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro e Mato
Grosso do Sul) os números, conforme dados de 2013, não se mostraram dessa maneira.
Considerando faixa etária, entre 16.166 agressões contra crianças, 13.264 são infligidas pelos
pais (pai, mãe, padrasto e madrasta), um total de 82% e apenas 2.523 por desconhecidos
(15,6%). Entre mulheres adultas, de um total de 46.847 agressões, 23.414 são provocadas por
seus parceiros (cônjuges, ex-cônjuges, namorados e ex-namorados). Esse grupo é cinco vezes
maior que o grupo de agressores desconhecidos das vítimas (4.554). Com idosas, o maior
número está entre filhos, 2.206 de um total de 6.312. Já entre adolescentes, conforme dados

325
de 2014, 5.257 agressões são causadas por desconhecidos, enquanto 3.466 são
autoprovocadas.
O estudo ainda situa o Brasil na quinta posição 6 do ranking de homicídios de mulheres:
4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres. A maior parte das vítimas são mulheres negras
(pretas ou pardas) na faixa etária entre 18 e 30 anos. Diante disso, percebemos o jornalismo
como uma ferramenta necessária uma vez que se constitui gente social e histórico com a
capacidade de produzir representações, os agendamentos e enquadramentos dados pelos
meios de comunicação tornam possível contribuir para combater os índices de violência
contra a mulher, mas também negligenciar ou mesmo reforçar seu aumento. Não
pretendemos estabelecer uma relação simplista entre os altos índices de violência e o que é
divulgado no jornalismo, mas sim entender de que maneira alguns elementos discursivos
utilizados podem causar atribuições de sentidos de modo a promover a desigualdade entre os
gêneros, desqualificando ou desconstruindo a representação social dos sujeitos.
Este trabalho é resultado do Projeto de Iniciação Científica “Jornalismo, Gênero e
Violência: um estudo da percepção e representação da mulher e da pessoa trans em sites
paraibanos de notícias” que vem sendo realizado por estudantes do curso de Jornalismo da
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) desde o ano de 2017. O projeto, que está em seu
segundo ano de atividades, tem por finalidade analisar como a mulher e a pessoa trans são
percebidas e representadas através do discurso jornalístico em matérias que envolvam
violência divulgadas nos portais de notícia paraibanos ClickPb, Blog do Márcio Rangel,
Jornal da Paraíba, Paraíba Online e PBAgora. No primeiro ano foi realizada a observação
diária e sistemática dos portais durante oito meses (de setembro de 2017 a abril de 2018).
Demos prioridade a casos recentes e que tratavam explicitamente de violências de gênero,
excluindo assaltos, acerto de contas, tráfico de drogas, agressões entre mulheres ou que eram
desdobramentos de casos de antes do início do levantamento. Foram contabilizados um total
de 144 casos de violência, repercutidos em 391 matérias. Destes, 141 eram referentes a casos
de violência contra a mulher, contabilizando 125 matérias, enquanto 3 eram de violência
contra a pessoa trans, um total de 16 matérias ou 4% do nosso material de análise.
Para este artigo, o recorte selecionado dará conta apenas dos casos de violência
contra a mulher noticiados entre os meses de janeiro a abril de 2018, um total de 61

6
Ficando atrás de: El Salvador (8,9 assassinatos a cada 100 mil mulheres), Colômbia (6,3), Guatemala (6,2) e
Rússia (5,3).

326
repercutidos em 181 matérias. Para isso, utilizaremos como método de investigação a Análise
do Discurso como descrita por Orlandi (2009) na tentativa de compreender de que forma se
deu a construção noticiosa destes casos de violência, principalmente no que se refere ao
tratamento dado às vítimas e aos suspeitos. Sendo assim, objetivamos perceber como as
concepções sócio-históricas das relações de gênero influenciam e são influenciadas através
do discurso jornalístico, além de fazer um comparativo entre o que dizem os manuais de ética
jornalística e o que é publicado na mídia.

2. O Gênero como Construção Social

No final do século XX, feministas contemporâneas passaram a se utilizar do termo


“gênero” como forma de reivindicar uma maior definição no campo de estudos, cujas teorias
eram percebidas como insuficientes para justificar as desigualdades persistentes entre
mulheres e homens. “Gênero” indica, antes de mais nada, uma rejeição ao determinismo
biológico inerente a termos como “sexo” ou “diferença sexual”, sendo utilizado como forma
de se referir às “construções sociais” dos arquétipos “homem” e “mulher”. Ele é, “segundo
essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado.” (SCOTT, 1989, p.7)
Para Scott (1989), o gênero é formado por duas proposições que constituem o núcleo
essencial do termo e várias subpartes que se encontram ligadas entre si. “Elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos”, e “uma
forma primeira de significar as relações de poder” são algumas das afirmativas elucidadas
pela autora. Como parte destas relações sociais, a palavra implicaria em quatro elementos: os
símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas e freqüentemente
contraditórias; conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos
símbolos que tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas; as instituições e
organizações sociais e; a identidade subjetiva.
A natureza desse processo, dos atores e das ações, só pode ser determinada
especificamente se situada no espaço e no tempo. Só podemos escrever a história
desse processo se reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo
categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado
definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas,
elas contém ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas.
(SCOTT, 1989, p.27-28)
Segundo Bourdieu (2010), essa construção histórico-social de “homem” e “mulher”
está relacionada ao habitus, o princípio unificador de práticas incorporado e reproduzido

327
pelos homens e pelas instituições, como a família, a escola, a igreja, etc. Esse processo
acontece sob a forma de hexis corporais opostos e complementares, que faz do corpo um
depositário dos princípios de visão e divisão sexualizantes entre o que é tido como masculino
(práticas perigosas e que requerem força) e feminino (atividades domésticas e ocultas, tidas
como “vergonhosas”), estimulando ou desencorajando certas condutas de acordo com o sexo.
À elas, cabe viver de acordo com os “princípios femininos”: ter boa conduta, usar roupas
“comportadas”, ser dócil, esposa, mãe de família, entre outras características que a sociedade
espera. Bourdieu (2010, p. 39) denomina isso de “confinamento simbólico”, um cerco
invisível que tem a função de limitar “o território deixado aos movimentos e aos
deslocamentos de seu corpo”.
Envoltas e limitadas pelas relações de poder e pelos esquemas de pensamento que se
expressam nas oposições da ordem simbólica e pela crença de que não se tem que pensar, as
mulheres são vítimas da chamada “violência simbólica”. Uma forma de poder que é usada
para manter viva a imposição da dominação e que age sem qualquer coação física, se
proliferando apenas no inconsciente dos seres e sendo legitimada através de discursos. Isto
faz com que algumas pessoas não só não questionem essas práticas como também as
naturalizem, a exemplo do “comportamento submisso” da mulher. Isso acaba se tornando um
ciclo que vem a reforçar a ideia da dominação, uma ideia que acontece não só através da
violência simbólica, mas também por meio de outros tipos de violência, entre elas a física.

3. A Ética no Jornalismo

O jornalismo tem nas suas narrativas cotidianas pessoas reais como protagonistas.
Dessa forma, cabe às organizações jornalísticas, aos repórteres e aos editores uma grande
responsabilidade não apenas quanto ao que será ou não noticiado, como também de que
forma essas informações aparecerão no texto. Nesse sentido, agir com retidão e atuar com
responsabilidade e comprometimento ético é tão importante quanto executar com precisão e
correção as etapas de produção de uma notícia. A credibilidade dos meios também depende e
se alimenta disso.
Segundo Christofoletti (2008), a ética dos jornalistas tem duas dimensões: individual
e social. Na primeira estão contidos os valores pessoais, cultivados pelo indivíduo, suas
convicções morais. Na segunda, são mobilizados os valores que absorvemos socialmente, nos

328
grupos (família, escola, amigos, igreja, trabalho ― onde entrariam as redações jornalísticas
―, etc). Em suas decisões, portanto, o jornalista
recorre não só à sua consciência, mas também às regras sociais: a linha editorial da
sua empresa, as definições do que é notícia para o jornalismo, uma imagem do
perfil moral do seu leitor, o ambiente de concorrência mercadológica, o contexto
sociocultural e histórico em que está mergulhado… (CHRISTOFOLETTI, 2008, p.
17).
Ou seja, além dos seus próprios valores, no exercício de sua profissão ele é também
influenciado pelos princípios do jornalismo. Já Eugênio Bucci (2000, p. 11) acredita que “a
ética só existe porque a comunicação social é um lugar de conflito”, muitas vezes confronto e
dilemas entre opostos (bem e mal, certo e errado, ricos e pobres), onde devem prevalecer os
direitos do cidadão. Acima disso, é imprescindível ter ciência de que é no debate público que
a ética encontra seu fundamento.
Atualmente um fator em específico interfere na ética jornalística: os novos processos
jornalísticos no ambiente digital, promovidos pela tecnologia. Se antes o tempo entre o
acontecimento e a divulgação e distribuição da notícia era maior, hoje esse intervalo é quase
inexistente, especialmente no jornalismo online, onde quem se destaca é quem noticia o fato
primeiro. Os jornalistas precisam ser mais ágeis e eficientes, eliminando muitas vezes,
algumas etapas importantes do processo de produção. Ouvir os dois lados e apurar bem os
dados, por exemplo, são regras do bom jornalismo que estão constantemente sendo
esquecidas e ultrapassadas em nome do imediatismo exigido pela era da internet.
São falhas cometidas em nome do profissionalismo, mas que não se justificam. A
veracidade do que é divulgado é uma característica sine qua non da profissão; está acima de
qualquer meio e suas particularidades. Para regular, melhorar e manter a qualidade do
trabalho dos jornalistas (independente da plataforma utilizada), existem os Códigos de Ética.
Diferente das leis, que são dispositivos de controle social aplicados a todos de uma
comunidade com o objetivo de harmonizar relações e garantir direitos, punindo os que as
desrespeitam, os Códigos de Ética funcionam como indicações de conduta e dependem muito
mais da consciência e disposição das pessoas em segui-los. Ou seja, são instrumentos auto-
reguladores, e preveem reações àqueles que descumprem seus princípios, sendo julgados
pelas comissões éticas formadas por representantes da categoria.
Além dos códigos mais gerais e conhecidos, como o da Federação Internacional dos
Jornalistas (FIJ), o Código de Ética e Auto-Regulamentação da Associação Nacional de
Jornal (ANJ) e o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (assinado pela Federação

329
Nacional dos Jornalistas, Fenaj), existem também códigos específicos para tipos de veículos,
como o Código de Ética da Radiodifusão Brasileira (da Associação de Emissoras de Rádio e
Televisão, Abert) e Princípios Éticos da Associação Nacional dos Editores de Revistas
(Aner). Há ainda manuais próprios dos grandes veículos de comunicação, que dão indicações
de como seus profissionais devem agir, e outros instrumentos autorreguladores e parâmetros
orientadores do campo. Esses códigos são reformados de tempos em tempos para manter a
qualidade diante de novas circunstâncias, atitudes e tecnologias que surgem
(CHISTOFOLETTI, 2008, p. 81-86).
Alguns deles, como o da ANJ, da Aner e o da Abert assinalam valores para o
exercício jornalístico, mas não prescrevem comportamentos ou atitudes específicas para os
profissionais. Outros, como o código da Fenaj, dão orientações de conduta profissional,
indicando valores a serem seguidos e atitudes condenáveis. Entre as práticas mais condenadas
por ele estão: “impedimento da manifestação de opiniões divergentes; exposição de pessoas
ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida; uso do jornalismo para incitar a violência, a
intolerância e o crime; cumplicidade com a censura ou omissão diante dela”, e ainda:
“divulgação de informações visando interesses ou vantagens pessoais; publicação de
informações mórbidas, sensacionalistas ou desumanas”. (CHRISTOFOLETTI, 2008, p. 86-
87).
É preciso lembrar também que muitos desses códigos são feitos sem uma conversa e
negociação direta com as empresas jornalísticas, esquecendo-se que o capital e as
intervenções políticas interferem na prática cotidiana dos profissionais, o que acaba
promovendo a fragilização e não cumprimento dos códigos e manuais. As punições aos
transgressores dos códigos, quando constam sanções, também não são tão severas, não
passando de advertência pública. Esse é um dos maiores problemas da regulamentação ética
da profissão, pois dá brechas para que ocorram falhas éticas sem grandes consequências para
o veículo e/ou o jornalista.
Segundo Christofolleti (2008, p. 88), “é verdade que nenhum código de ética
deontológico é perfeito e que há limitações na própria natureza dos textos, mas o fato é que
não basta que os jornalistas conheçam as regras do jogo. Eles precisam pô-las para
funcionar”. E, especialmente no novo cenário de rápido avanço tecnológico em que o
jornalismo está inserido, é necessário ter ainda mais cuidado com os dilemas éticos e
resguardar sua credibilidade profissional e ética a fim de fidelizar seu público e conquistar

330
outros. É preciso também repensar uma ética que inclua os novos atores do mercado
jornalístico, visto o crescimento da participação do público no processo de produção e
difusão informativa.

4. Corpus e Abordagem Metodológica

Nosso corpus de análise é constituído por 61 casos de violência contra a mulher,


repercutidos em 181 matérias entre os meses de Janeiro e Abril de 2018 nos portais de notícia
paraibanos ClickPB, Blog do Márcio Rangel, Jornal da Paraíba, Paraíba Online e PBAgora.
O material selecionado foi retirado da editoria “Policial” dos portais, com exceção do Jornal
da Paraíba que substitui o termo por “Vida Urbana”. Como método de estudo optamos pela
Análise de Discurso, que busca analisar a língua enquanto trabalho simbólico em sua
produção de sentido e não somente comunicando uma determinada mensagem, ou seja, o
objeto é o próprio discurso que é tratado pela AD como o espaço onde se pode perceber a
“relação entre língua e ideologia” (ORLANDI, 2009, p. 17), uma ação que acaba por gerar e
reforçar significados constitutivos do homem e de sua história.
Ainda de acordo com Orlandi (2009, p. 19), o discurso possui duas características
relevantes: primeiro, ultrapassa o esquema primário da comunicação - emissor, receptor,
código e mensagem - e sua linearidade imediata, se constituindo enquanto “processos de
identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc”;
segundo, é necessário considerar as condições de produção (o lugar historicamente delegado
aos sujeitos reportados na mensagem e a forma como a sociedade incorpora esses lugares) e
as circunstâncias da enunciação (o contexto, o cenário imediato, no caso, o conteúdo
noticioso apreendido como jornalismo enquanto campo detentor da verdade).
Ao se tratar da memória em relação ao discurso, ela deve ser compreendida como
interdiscurso (diferente de intertexto), que “é definido como aquilo que fala antes, em outro
lugar, independente. [...] O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o
sujeito significa em uma situação discursiva dada”. (ORLANDI, 2009, p.31). No momento
em que analisamos as notícias jornalísticas, que abordam a violência contra a mulher nos
portais paraibanos, todos os seus sentidos já ditos por outros jornalistas, em algum lugar,
outro momento, têm efeito sobre o que as notícias produzidas hoje dizem e significam em
suas palavras.

331
Nosso trabalho, enquanto analistas, foi perceber o material empírico aqui observado,
as matérias que tratam de violência contra a mulher enquanto um discurso, fruto de uma
construção sócio-histórica e, porque não dizer, subjetiva. A presente análise é um estudo para
refletir as práticas jornalísticas atuais, mas sem esgotar o tema, pois como Orlandi (2009, p.
15), acreditamos ser o discurso um processo em curso que, etimologicamente, tem a ideia de
movimento, não sendo um ciclo fechado.

5. A Violência contra a Mulher nos Portais Paraibanos

Dos 61 casos analisados (relativos aos meses de janeiro à abril de 2018), 11 (18,03%)
são relacionados a estupro infantil e 50 (81,97%) a violência contra a mulher. Destes 50
casos, 40 (80%) são de agressão física 一 18 (45%) resultantes em morte e 22 (55%) não
resultantes em morte 一, 6 (12%) são de estupro (ou tentativa), 2 (4%) são de cárcere
privado, 1 (2%) de violência patrimonial e 1 (2%) de atos obscenos. Quando se trata do
número de replicações, foram 181 matérias. Os casos de estupro infantil repercutiram em 32
matérias (17,68%) e os de violência contra a mulher em 149 matérias (81,07%). Destas 137
replicações, 111 foram referentes aos casos de agressão física (82,32%) ― sendo 81 (66,9%)
de casos que resultaram em morte e 40 (33,1%) de casos que não resultaram em morte ―, 14
(9,4%) de casos de estupro, 10 (6,7%) de cárcere privado, 3 (2%) de violência patrimonial e 1
(0,7%) de atos obscenos.
As matérias são, muitas vezes, pobres em informação: poucas linhas que apenas dão
conta do crime em si, correspondendo ao lide básico do jornalismo ― o quê, quem, como,
onde, quando e por que ―, sem que haja qualquer aprofundamento na temática ou
responsabilidade social sobre o assunto. Os portais sequer divulgam o número da Delegacia
da Mulher em suas notícias. Nesse sentido, além de negligenciar um aspecto importante da
função social do jornalismo que é a prestação de serviço, eles não cumprem com o que dita o
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros em seu Art. 6º, que afirma ser dever do jornalista:
“XIV - combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos,
políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de
qualquer outra natureza”.

332
Além disso, é comum a prática de replicação de matérias, tal como está escrito, de
outros portais e sites de notícia, nomeando ou não sua origem. Percebe-se também que aos
finais de semana há uma redução ou não publicação de casos de violência contra a mulher.
Na segunda-feira, no entanto, faz-se uma espécie de “ronda policial”, através da qual os
portais publicam numa mesma notícia vários casos de violência que ocorreram nos dias
anteriores, não apenas de violência contra a mulher.
É notória também a utilização de fatos e/ou situações incomuns destes crimes para
construir as chamadas das matérias. O inusitado se torna um critério de noticiabilidade e, por
vezes, desvia ou retira a atenção do crime cometido contra a mulher. “Homem vende moto
para comprar arma, mata mulher e se mata” 7, é o título da notícia do PBAgora do dia 26/01.
A busca pelo sensacionalismo faz com que os portais muitas vezes incorram em erros crassos
de português, o que acaba gerando dubiedade de ideias, como é o caso da matéria “Mulher é
morta a facadas pelo companheiro e encontrada com criança no colo” 8, do Paraíba Online do
dia 05/02, que gera dúvidas sobre como aquela criança teria surgido nos braços dela. Na
intenção de despertar a curiosidade do leitor, o portal exagera na quantidade de informações e
acaba desinformando o seu público.
O sensacionalismo, porém, não se encontra apenas nos termos. A morte por si só é
usada como um elemento para chamar a atenção do leitor. Os números mostram que, embora
a diferença entre a quantidade de casos de agressão física resultante em morte (18 [45%]) e
aqueles que não resultaram em morte (22 [55%]) seja pequena, a discrepância no volume de
replicações é considerável: foram 81 matérias dos casos com morte (66,9%) e apenas 40 de
casos sem morte (33,1%). Portanto, ignorando o Código de Ética, que também é preciso
quanto ao sensacionalismo: “Art. 11. O jornalista não pode divulgar informações: II - de
caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em
cobertura de crimes e acidentes”, os portais mostram-se negligentes, fazendo uso de fatos e
expressões sensacionais para causar impacto e chocar os leitores, sem que haja, de fato,
qualquer preocupação com o crime de violência contra a mulher.
Ainda sobre a construção do texto noticioso, percebeu-se também falhas na apuração,
que acabam gerando contradição entre os portais ou dentro do próprio portal, como

7
Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180126213219/homem-vende-moto-para-
comprar-arma-mata-mulher-e-se-mata>. Acesso em 25 de outubro de 2018.
8
Disponível em <https://paraibaonline.com.br/2018/02/mulher-e-morta-a-facadas-pelo-companheiro-e-
encontrada-com-crianca-no-colo/>. Acesso em 25 de outubro de 2018.

333
incompatibilidades nos perfis dos personagens envolvidos (idade, cidade, etc) e situação do
suspeito. Exemplo deste tipo de erro foi publicado nos dias 10 e 11/04 no PbAgora. No dia
10, a matéria “Suspeito de estuprar criança de 10 anos em Alhandra é queimado vivo” 9 diz
que “O corpo do rapaz estava queimado e, segundo o policial, trata-se do acusado de estuprar
uma menina de 10 anos no dia anterior no município.” Já no dia seguinte, 11, o PbAgora
afirma que “Ele [o suspeito] está foragido.” 10 É interessante pontuar que não foram lançadas
erratas e/ou pedido de desculpas do portal.
Os dados contraditórios levantam questionamentos acerca do cuidado dos jornalistas
em apurar os fatos e também sobre a troca de informações dentro da própria equipe do site.
Desta forma, é possível identificar dois tipos de transgressões que ferem o Código de Ética. A
primeira é sobre a apuração e divulgação de informações imprecisas, que vai contra o Art. 4º
“o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, razão pela
qual ele deve pautar seu trabalho pela precisa apuração e pela sua correta divulgação”. E a
segunda violação, sobre a falta de notificação quando o portal comete um erro, infringe o Art.
12, “VI - promover a retificação das informações que se revelem falsas ou inexatas e
defender o direito de resposta às pessoas ou organizações envolvidas ou mencionadas em
matérias de sua autoria ou por cuja publicação foi o responsável”.
Expressões como “briga doméstica” 11, “o casal já estava separado há algum tempo,
mas o rapaz ainda era apaixonado pela ex-esposa” 12, “crime passional” 13, “o crime pode ter
sido motivado por excesso de ciúmes” 14, “após uma briga” 15, “após pedido de separação”16 e

9
Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180410130720/suspeito-de-estuprar-crianca-de-10-anos-
em-alhandra-e-queimado-vivo>. Acesso em 19.05.2018.
10
Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180411134229/apos-cirurgia-menina-estuprada-segue-
internada-e-sem-previsao-de-alta>. Acesso em 19.05.2018.
11
Matéria do PBAgora, “Preso em briga doméstica, homem é suspeito de pisotear bebê”, do dia 19.03.2018.
Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180319155326/preso-em-briga-domestica-
homem-e-suspeito-de-pisotear-bebe>. Acesso em 24 de outubro de 2018.
12
Matéria do Blog do Márcio Rangel, “Homem troca moto por arma, mata a ex-mulher e em seguida tira a
própria vida”, do dia 27.01.2018. Disponível em <http://www.blogdomarciorangel.com.br/2018/01/homem-
troca-moto-por-arma-mata-ex-mulher-e-em-seguida-tira-propria-vida.html>. Acesso em 24 de outubro de 2018.
13
Matéria do ClickPB, “Policial é suspeito de participação em morte de casal na BR-230”, do dia 08.01.2018.
Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180108154749/policial-e-suspeito-de-
participacao-em-morte-de-casal-na-br-230>. Acesso em 24 de outubro de 2018
14
Matéria do PBAgora, “Homem mata esposa grávida a facadas e depois se mata na Paraíba”, do dia
16.01.2018. Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180116174643/homem-mata-
esposa-gravida-a-facadas-e-depois-se-mata-na-paraiba>. Acesso em 24 de outubro de 2018.
15
Matéria do Jornal da Paraíba, “Homem mata esposa grávida após briga e depois tenta suicídio”, do dia
16.01.2018. Disponível em <http://www.jornaldaparaiba.com.br/vida_urbana/homem-mata-esposa-gravida-
apos-briga-e-depois-tenta-suicidio.html>. Acesso em 21 de outubro de 2018

334
“manter relações sexuais” 17, são utilizadas pelos portais e, mesmo que de forma não
intencional, provocam a atenuação dos crimes e do contexto da violência contra a mulher,
aparentando, muitas vezes, uma tentativa de justificar o crime.
Além disso, há em alguns conteúdos dos portais termos e discursos que expressam certa
culpabilização da mulher por alguns crimes cometidos contra ela. Exemplo disso é o caso de
uma jovem de 16 anos assassinada pelo companheiro, publicado pelo ClickPB em 16/01:
“Segundo os vizinhos, o casal havia brigado. A mulher teria confessado uma traição, que
teria motivado o crime do acusado.” 18. Embora essa possa ter sido a justificativa dada pelo
suspeito, o portal toma para si o discurso, ou seja, não descreve como sendo a fala do
entrevistado, o que naturaliza o fato de que a traição da mulher daria o aval para o
companheiro cometer um crime contra ela.
Outra situação identificada que infringe tanto o Código de Ética quanto outros
instrumentos autorreguladores e parâmetros orientadores do campo é a exposição de vítimas
e acusados. Segundo o que versa o Art. 7º do Código de Ética, o jornalista não pode “IV -
expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação,
mesmo que parcial, pela voz, traços físicos, indicação de locais de trabalho ou residência, ou
quaisquer outros sinais”. O Guia de monitoramento Violações de Direito na Mídia Brasileira,
organizado pela ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) - Comunicação e
Direitos 19, vai além, e diz que essa exposição pode se referir tanto às vítimas quanto aos
acusados/suspeitos ou qualquer outra pessoa envolvida na narrativa. Um dos casos desse tipo
de violação identificados na pesquisa foi o da matéria “Jovem de 18 anos é assassinada com
oito facadas e principal suspeito é seu companheiro” 20, publicado pelo ClickPB em 12/03. Na
matéria, foi indicado não somente o nome da vítima e sua idade, como também a comunidade

16
Matéria do Paraiba Online, “Após pedido de separação, homem mata companheira a facadas e comete
suicídio”, do dia 28.02.2018. Disponível em <https://paraibaonline.com.br/2018/02/apos-pedido-de-separacao-
homem-mata-companheira-a-facadas-e-comete-suicidio/>. Acesso em 24 de outubro de 2018.
17
Matéria do Blog do Márcio Rangel, “Homem é preso acusado de manter relações sexuais com enteada de 11
anos”, do dia 24.04.2018. Disponível em <http://www.blogdomarciorangel.com.br/2018/04/homem-e-preso-
acusado-de-manter-relacoes-sexuais-com-enteada-de-11-anos.html>. Acesso em 24 de outubro de 2018.
18
Matéria do ClickPB, “Grávida de 16 anos é assassinada a facadas pelo companheiro no Agreste”, do dia
17.01.2018. Disponível em <https://www.clickpb.com.br/Policial/adolescente-de-16-anos-e-assassinada-
facadas-pelo-companheiro-no-agreste-234234.html>. Acesso em 24 de outubro de 2018.
19
Disponível em <www.andi.org.br/file/51969/download?token=F9OHVwg_>. Acesso em 24 de outubro de
2018.
20
Disponível em <https://www.clickpb.com.br/Policial/jovem-de-18-anos-e-assassinada-com-oito-facadas-e-
principal-suspeito-e-seu-companheiro-236778.html>. Acesso em 22 de outubro de 2018.

335
e o bairro da cidade onde o casal morava e que o crime aconteceu. Além disso, divulga o
apelido do suspeito.
No caso dos acusados/suspeitos, há ainda um agravante, pois a transgressão se
configura como sendo violação da presunção de inocência, que está prevista no Código de
Ética, Art. 9º “A presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade jornalística”. O
jornalista, com base apenas em depoimento de policiais, vítimas e testemunhas, divulga nome
ou imagem do acusado/suspeito, tratando-o como autor do crime, sem que a autoria tenha
sido comprovada, ou seja, sem que ele tenha sido julgado e condenado pelo suposto crime.
Exemplo disso é o caso “No Vale, PM prende suspeito de tentar matar sua esposa a
pedradas” 21, publicado pelo PBAgora no dia 28/04. O portal, embora chame o homem de
“suspeito”, apresenta o nome, a idade, além de uma foto na qual aparece o corpo e parte do
rosto (de perfil) dele no momento em que está sendo colocado no carro da polícia 22.
Em ambos os casos, há desrespeito à integridade, submetendo as pessoas expostas à
identificação e à danos na reputação, vida pessoal e profissional, bem como à possibilidade
de novos crimes (no caso das vítimas) e de linchamento e morte (dos suspeitos), podendo
gerar consequências irreversíveis para a vida dessas pessoas e de seus familiares.
Ao contrário do último caso exemplificado, em que o suspeito é exposto como se
fosse o autor do crime, mesmo sem ter ido a julgamento, foi possível perceber que quando se
trata de policiais como suspeitos o tratamento é diferenciado. Exemplo disso é o caso de um
policial militar suspeito de matar a esposa no Sertão. O fato foi noticiado pelos cinco portais
pesquisados e três deles chamaram o policial unicamente de “suspeito”, mesmo depois do
mesmo ter se entregado à polícia 23. Todos os portais construíram suas notícias baseadas,
essencialmente, em falas das autoridades responsáveis pela investigação, eximindo-se da
responsabilidade de falar do policial. Nota-se, portanto, que quando o suspeito é uma pessoa
revestida de poder ou autoridade o tratamento dos portais é diferente de quando se fala sobre

21
Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180428231032/no-vale-pm-prende-suspeito-
de-tentar-matar-sua-esposa-a-pedradas>. Acesso em 24 de outubro de 2018.
22
Optamos por não colocar a imagem e/ou nome e idade do suspeito no artigo para não reproduzir e perpetuar
as violações aqui pontuadas.
23
Disponíveis em <http://www.blogdomarciorangel.com.br/2018/01/subtenente-da-pm-e-preso-suspeito-de-
matar-esposa-na-paraiba.html>; <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180126184840/policial-
suspeito-de-matar-esposa-no-sertao-se-apresenta-a-policia>; <https://www.clickpb.com.br/Policial/subtenente-
da-policia-militar-suspeito-de-matar-esposa-se-entrega-policia-234764.html>;
<https://paraibaonline.com.br/2018/01/policial-militar-e-acusado-de-matar-a-esposa-no-sertao/>;
<http://www.jornaldaparaiba.com.br/vida_urbana/policia-procura-subtenente-acusado-de-matar-esposa-dentro-
de-casa.html> Acesso em 24 de outubro de 2018.

336
pessoas comuns, fazendo uso de apuração e divulgação mais cuidadosa, seguindo melhor o
que regem as entidades éticas e reguladoras do jornalismo.
Outro ponto identificado na pesquisa refere-se ao silenciamento de um crime em
detrimento de outro, ou seja, a preferência dos portais em noticiar ou dar ênfase aos crimes
cometidos contra os suspeitos (como linchamento ou assassinato) ou sua prisão, do que aos
crimes de violência contra a mulher que eles supostamente cometeram. Exemplo disso é a
matéria do dia 17/03 do PbAgora, que traz a morte de um suspeito de assassinar a
companheira no início do mês em João Pessoa 24. No entanto, a matéria dá preferência, desde
a chamada até o corpo do texto, a falar sobre a morte do homem e não sobre o crime do qual
ele é suspeito, fornecendo poucas informações sobre isso. O portal também não tinha postado
nenhuma matéria anterior a esse dia, falando sobre o assassinato da mulher.

6. Conclusão

Diante de todas essas transgressões éticas, de conteúdo e tratamento dos personagens,


foi possível apreender de que forma os portais percebem e noticiam casos de violência contra
a mulher. Embora as mídias pesquisadas e estudadas neste artigo tornem visível o quadro
desse tipo de violência na Paraíba, pouco se aprofundam no tema ou tentam sair do senso
comum, além de se mostrarem descuidadas com a apuração e divulgação dos casos. Desta
maneira, através dos seus discursos, acabam por reforçar preconceitos e valores que
perpetuam a ideia de dominação masculina, e promovem silenciamentos e invisibilidades.
É imprescindível esse tipo de crítica e confronto a uma prática que só reforça
estereótipos. Por outro lado, ratificamos que o imediatismo próprio da produção de conteúdos
noticiosos em plataforma online não justifica tal conduta, que fere diretamente o que versa os
códigos e manuais de ética jornalística. Tais resultados revelam ainda a emergência do
diálogo e mesmo confronto, com os profissionais responsáveis pelos portais aqui estudados, o
que se fará na próxima etapa do projeto de pesquisa, pois a crítica fomenta o debate mas não
altera o estado da arte, não transforma realidades, o que embora pareça utópico, se constitui
objetivo maior, e porque não dizer contribuição, deste trabalho para com o jornalismo
paraibano.

24
Disponível em <http://www2.pbagora.com.br/noticia/Policial/20180317111532/suspeito-de-assassinar-
companheira-e-encontrado-morto-na-capital>. Acesso em 24 de outubro de 2018.

337
Referências

BRETON, Philippe; PROULX, Serge. Sociologia da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Pierre Bourdieu; tradução Maria Helena Kühner. - 9ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

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CANAVILHAS, João (Org.). Webjornalismo: 7 características que marcam a diferença. Covilhã: UBI, Livros
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201404_webjornalismo_jcanavilhas.pdf>. Acesso em 21 de novembro de 2018.

CARVALHO, Carlos Alberto de; LEAL, Bruno Souza. Jornalismo e Homofobia No Brasil - Mapeamento e
Reflexões. São Paulo: Intermeios, 2012.

CRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no jornalismo. São Paulo: Contexto, 2008.

Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Vitória: Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), 2007.
Disponível em <http://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2016/08/codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros-
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ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. 8ª ed. Campinas: Pontes, 2009.

SCOTT, Joan. Gênero: uma Categoria útil para Análise Histórica. Tradução de Christine Rufino Dabat;
Maria Betânia Ávila. New York, Columbia University Press. 1989.

VARJÃO, Suzana. Violações de direitos na mídia brasileira: Pesquisa detecta quantidade significativa de
violações de direitos e infrações a leis no campo da comunicação de massa. / Suzana Varjão. Brasília, DF:
ANDI, 2016. 148 p.; (Guia de monitoramento de violações de direitos; v.3). Disponível em
<www.andi.org.br/file/51969/download?token=F9OHVwg_>. Acesso em 21 de novembro de 2018.

Sites Analisados

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338
VIOLÊNCIA URBANA NO RIO DE JANEIRO: 1
Memória e fontes de imprensa
URBAN VIOLENCE IN RIO DE JANEIRO:
Memory and press sources
Mariana Dias Antonio 2

Resumo: A memória sobre alguns fenômenos e episódios da violência urbana no


Rio de Janeiro tem sido fortemente influenciada por fontes de imprensa. Entretanto,
a preocupação com a complexidade destas fontes e suas formas de produção e
circulação só foi reincorporada em pesquisas de caráter histórico recentemente.
Neste artigo apresentamos narrativas históricas e sociológicas sobre dois
fenômenos cuja memória tem sido influenciada por discursos de imprensa,
sobretudo do jornal Ultima Hora: a “Operação mata-mendigos” entre 1962 e
1963; e o Esquadrão da Morte entre 1968 e 1969. Posteriormente nos apoiamos em
edições do mesmo jornal para confirmar ou falsear partes dessas narrativas,
revelando inconsistências e suprindo lacunas. Os recortes temporais analisados nos
dois casos não compreendem a totalidade dos eventos e seus desdobramentos, mas
justificam-se pela maior concentração de fontes e sua apropriação na construção
dessas narrativas.
Palavras-Chave: Operação mata-mendigos. Esquadrão da Morte. História.
Imprensa. Violência.

1. Introdução
Há quase um século, Walter Lippmann (1922) apontaria algumas complicações na
mediação entre leitor e acontecimento operada pelos jornais, e seu conceito de
pseudoambiente permitiria tratar de eventuais falhas, ruídos e vieses na construção subjetiva
dos acontecimentos comunicados. Lucy Maynard Salmon (1923) daria um passo adiante,
elencando cuidados ao historiador que se apropria das fontes de imprensa e propondo uma
análise que compreenda diversas facetas da prática jornalística: história da imprensa como
um todo; personalidade do veículo analisado (negócios, hábitos, slogans, nome, credos,
emblemas, modalidades); captação e distribuição de notícias; especialidades dos repórteres e

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Memória nas Mídias do 3º. CONEC: Congresso
Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Licenciada em História pelo Centro Universitário Dr. Edmundo Ulson (Brasil), mestra e doutoranda em
História pela Universidade Federal do Paraná (Brasil). Membro discente do “NEMED - Núcleo de Estudos
Mediterrânicos” (UFPR/Brasil) e do grupo de pesquisa “Cultura e Poder” (UFPR/Brasil). O presente trabalho
foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001. E-mail: mariana.diasant@gmail.com.

339
correspondentes; padrões textuais (entrevistas, editoriais, críticas); ilustrações; publicidade;
autenticidade, veracidade e garantias de credibilidade dos conteúdos.
A proposta de Salmon cairia no esquecimento, mas persiste a busca por uma
História que compreenda profundamente certos processos comunicacionais (BARBOSA;
RIBEIRO, 2011; HERSCHMANN; RIBEIRO, 2008). Tal empreendimento é necessário e
oportuno, uma vez que as fontes de imprensa se apresentam como material farto e de fácil
acesso aos pesquisadores. Se pensarmos na violência urbana no Rio de Janeiro ao longo da
década de 1960, a “Operação mata-mendigos” e o Esquadrão da Morte constituem exemplos
de como os discursos jornalísticos influenciam e contribuem para a memória coletiva. Estes
discursos se apresentam tanto em pesquisas históricas ou sociológicas que utilizam fontes de
imprensa 3 quanto em livros escritos por jornalistas. 4 Mas como as informações colhidas em
velhas páginas de jornal ou relatos de jornalistas foram apropriadas pelos pesquisadores?
Adiante apresentamos a “Operação mata-mendigos” e o Esquadrão da Morte a partir
de historiadores e sociólogos e questionamos as narrativas resultantes frente às fontes de
imprensa, especificamente do jornal Ultima Hora. Para a “Operação mata-mendigos” nos
apoiamos nas obras de John Watson Foster Dulles (2000), Marly Silva da Motta (2001) e
Robert Sterling Rose (2010). Para o Esquadrão da Morte nos apoiamos nas obras de Michel
Misse (1999), Robert Sterling Rose (2010) e David Maciel de Mello Neto (2014).
Salientamos que ambos os fenômenos se estendem para além dos recortes temporais aqui
abordados. Nossa opção por breves recortes e um único periódico visa apresentar detalhes
negligenciados em recortes mais amplos. A escolha do jornal Ultima Hora se justifica pela
forte presença do periódico na literatura, e a escolha dos recortes para cada caso se justifica
pela maior concentração de fontes e sua apropriação por pesquisadores.

2. “Operação mata-mendigos” (1962-1963)


Em 1963 a imprensa carioca enfocaria o extermínio de moradores de rua atirados
nos rios Guandu e da Guarda por policiais do Serviço de Repressão à Mendicância (SRM). O
caso teve ampla repercussão em janeiro de 1963, quando uma das vítimas – Olindina Alves

3
Sobre a “Operação Mata-Mendigos”, Cf. Dulles, 2000; Motta, 2001; Rose, 2010. Sobre o Esquadrão da Morte,
Cf. Mello Neto, 2014; Misse, 1999; Rose, 2010.
4
Sobre a “Operação Mata-Mendigos”, Cf. Lacerda; 1978; Louzeiro, 1965; Wainer, 1988. Sobre o Esquadrão da
Morte, Cf. Barbosa, 1971; Barbosa; Monteiro, 1980; Pinheiro Junior; Ribeiro, 1969.

340
Jupiaçu – escapou com vida e denunciou seus algozes ao jornal Ultima Hora (DULLES,
2000). Entre as possibilidades para tal “limpeza urbana” especulava-se a visita da rainha
inglesa Elizabeth II ao Brasil e os preparativos para o aniversário de 400 anos da cidade do
Rio de Janeiro, em 1965 (ROSE, 2010).
O governo estadual da Guanabara ordenaria rapidamente a prisão preventiva do
guarda-noturno Pedro Saturnino dos Santos e a expulsão e prisão dos policiais José Mota,
Nilton Gonçalves da Silva, José Prata e Mário Teixeira. Alguns dias depois, o chefe do SRM
Alcino Pinto Nunes também seria preso, acusado como mandante dos crimes (MOTTA,
2001). Mesmo com tais medidas, o governador Carlos Lacerda e sua gestão não tardaram a
aparecer na imprensa, sobretudo no Ultima Hora, jornal de oposição que passou a chamar
Lacerda de “mata-mendigo” (MOTTA, 2001; ROSE, 2010).
Devido à repercussão do caso nas esferas política, administrativa e midiática, uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi instalada em fevereiro de 1963 para apurar os
crimes cometidos. Entre seus membros estavam os deputados José Bonifácio Diniz de
Andrada (PSD) e Ib Teixeira (PTB), respectivamente como presidente e vice-presidente da
CPI; Paulo Duque (PR) como relator; Célio Borja (UDN), Everardo Magalhães de Castro
(PDC), Nelson José Salim (PSD), Nina Ribeiro (UDN), Rubem Cardoso (PSP) e Synval
Sampaio (PTB) como membros (DULLES, 2000; MOTTA, 2001).
Ao longo do inquérito parlamentar, indícios do envolvimento de Carlos Lacerda no
crime são apresentados pela oposição, sobretudo pela proximidade do governador com Cecil
de Macedo Borer, nomeado para chefiar o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)
(MOTTA, 2001). Entre as recomendações que os integrantes da CPI enviaram ao governador
constava a demissão de Borer, que foi negada por Lacerda e desencadeou um pedido de
impeachment. O presidente da comissão negaria o pedido por falta de fundamentação legal
(DULLES, 2000), e somente os policiais diretamente envolvidos no caso foram julgados e
sentenciados à prisão (ROSE, 2010).
A “Operação mata-mendigos” carece de estudos dedicados, usualmente margeando
narrativas sobre outros assuntos com os quais estabelece alguma intertextualidade. A redução
do evento em poucas páginas traz consigo perdas e imprecisões que se evidenciam até
mesmo na leitura comparada dos três livros aqui utilizados. Dulles (2000) indica o início do
inquérito parlamentar em 6 de fevereiro e Motta (2001) em 12 de fevereiro de 1963; Rose

341
(2010) menciona o pedido de impeachment contra Lacerda sem comentar a negativa de José
Bonifácio Diniz Andrada, algo que apenas Dulles (2000) comentaria; Motta (2001) e Rose
(2010) sinalizam o início da matança de moradores de rua em agosto de 1962, enquanto
Dulles (2000) sinaliza dezembro do mesmo ano.
Quanto ao início do inquérito parlamentar, Dulles (2000) se apoia nos periódicos O
Estado de São Paulo (6, 7 e 13/02/1963, edições não localizadas) e Correio da Manhã
(12/02/1963); mas o autor poderia incorrer em tal equívoco mesmo se utilizasse o Ultima
Hora, pois a edição de 6 de fevereiro de 1963 aponta que a CPI “[...] instituída para apurar os
crimes praticados contra legiões de mendigos, mortos no rio da Guarda ou deportados da
Guanabara, irá até o último mata-mendigo [...]” (ULTIMA HORA, 06/02/1963, p. 7).
Marly Silva da Motta (2001) não sinaliza suas fontes para a informação, mas a
leitura de trechos próximos indica o contato da pesquisadora com os autos do inquérito
parlamentar. Caso a historiadora recorresse ao Ultima Hora, a edição de 13 de fevereiro de
1963 comenta a primeira reunião da CPI ocorrida no dia anterior (ULTIMA HORA,
13/02/1963). A utilização dos autos por Motta demonstra a cautela da pesquisadora mesmo
com um tema periférico em sua obra, bem como a busca por informações que não foram
retransmitidas por jornalistas, mas sua narrativa sinaliza apenas a “instalação” da CPI, sem
mencionar sua criação a partir da Resolução nº 34 de 8 de fevereiro de 1963, também
constante nos autos.
Sobre o pedido de impeachment de Carlos Lacerda, Rose (2010) sinaliza diversas
edições do Ultima Hora entre janeiro e março de 1963 5 e Dulles (2000) sinaliza apenas
edições de março de 1963. 6 Apontada por ambos os autores, a edição de 22 de março
comenta um eventual pedido de impeachment a ser realizado na reunião daquele dia, após a
devolução do ofício que requisitava ao governador o afastamento de Cecil Borer (ULTIMA
HORA, 22/03/2018). No dia seguinte o jornal retifica sua previsão frustrada e comenta a
ausência de decisão sobre o fato por não existir elemento oficial da devolução do ofício
(ULTIMA HORA, 23/03/1963). Edições posteriores não retomam o assunto, de modo que é

5
Respectivamente as edições de 23, 25, 28 e 30/01/1963; 1,4 e 8/02/1963; 4, 11, 12 e 22/03/1963; bem como o
Correio da Manhã de 03/02/1963.
6
Respectivamente as edições de 10, 11, 12, 14, 22 e 23/03/1963; bem como O Estado de São Paulo de 9 e
23/03/1963. O Ultima Hora de 10/03/1963 é indevidamente referenciado, uma vez que o jornal não circulava
aos domingos.

342
inconclusiva a observação de Dulles (2000) sobre a fundamentação legal do pedido e apenas
uma análise detalhada dos autos traria maiores esclarecimentos.
Quanto às primeiras mortes de moradores de rua, Motta (2001) sinaliza o Ultima
Hora de 29 de agosto 1962 e Rose (2010) cita apenas a investigação de dois repórteres do
jornal no mesmo período, nos levando a crer que recorreram à mesma fonte. Entretanto, a
reportagem de Amado Ribeiro e Paulo Aghiarian publicada nessa data documenta o percurso
de aproximadamente 300 quilômetros pela Estrada Magé realizado por uma viatura da SRM
que levava moradores de rua para longe da Guanabara numa espécie de “Operação Limpeza”,
supostamente determinada pelo governador, mas sem qualquer referência a execuções
(ULTIMA HORA, 29/08/1962).
O levantamento de edições do periódico nos anos de 1962 e 1963 aponta as
primeiras execuções de moradores de rua pelo SRM em 15 de outubro de 1962, data
confessada pelos implicados José Mota, Pedro Saturnino dos Santos, Anísio Magalhães
Costa, Mário Teixeira e Nilton Gonçalves da Silva durante o inquérito administrativo no
Regimento de Cavalaria Caetano de Faria. Tal confissão seria noticiada em 9 de fevereiro de
1963 (ULTIMA HORA, 09/02/1963).
A primeira denúncia da execução de moradores de rua seria publicada em 23 de
janeiro de 1963, quando a sobrevivente Olindina Alves Jupiaçu acusa os policiais do SRM de
lançá-la no rio da Guarda junto a outras vítimas (ULTIMA HORA, 23/01/1963). Dulles
(2000) utiliza esta edição e comenta o caso de Olindina, mas recorre a uma reportagem de 21
de janeiro de 1963 para sinalizar a descoberta de 12 cadáveres no rio Guandu em dezembro
de 1962. O autor se equivoca ao sinalizar a transformação do SRM num “Pelotão de
Extermínio”, uma vez que a matéria acusa a existência de tal pelotão na Invernada da Olaria
(2ª Subseção de Vigilância) e não faz qualquer referência ao SRM, bem como não menciona
moradores de rua entre os cadáveres encontrados (ULTIMA HORA, 21/01/1963).
Uma particularidade do fundo Ultima Hora do Arquivo Público do Estado de São
Paulo torna o caso nebuloso para o pesquisador incauto, uma vez que seu acervo iconográfico
agrupa num mesmo bloco temático as fotografias da Invernada da Olaria, “Operação mata-

343
mendigos” e Esquadrão da Morte. 7 Adicionalmente, a CPI sobre o extermínio de moradores
de rua também investigaria a Invernada da Olaria, e esta delegacia por vezes figuraria na
imprensa carioca como um Esquadrão da Morte.
Não encontramos nenhuma reportagem no período analisado que vincule o crime em
questão à visita da rainha inglesa ou à comemoração dos 400 anos da cidade do Rio de
Janeiro, mas isso não significa que o argumento de Rose (2010) independa da imprensa
carioca. Tal narrativa consta no livro Do Esquadrão ao Mão Branca, dos jornalistas Adriano
Barbosa e José Monteiro (1980), que comenta o protagonismo do delegado Ariosto Fontana
na investigação criminal do caso. A origem do argumento é inconclusiva, uma vez que nem o
relatório do inquérito criminal menciona a rainha inglesa ou a comemoração. 8

3. Esquadrão da Morte (1968-1969)


O surgimento dos grupos de extermínio denominados pela imprensa como
Esquadrão da Morte remonta à década de 1950, precisamente o ano de 1957, com a criação
do Grupo ou Serviço de Diligências Especiais (GDE/SDE), 9 conforme sugestão de Cecil de
Macedo Borer (então chefe da seção de trânsito da Polícia Civil) ao Chefe da Polícia Federal,
Amaury Kruel. Liderado por Eurípedes Malta de Sá, o grupo tinha como principal objetivo
refrear a crescente onda de crimes que se espalhava pela cidade do Rio de Janeiro (MELLO
NETO, 2014; ROSE, 2010).
O aumento regional da criminalidade coincide com o reordenamento urbano nos
municípios da Baixada Fluminense, ocasionado por dinâmicas populacionais e de
infraestrutura urbana, entre as quais estariam: processos de remoções, levando à ocupação de
encostas de morros e subúrbios; loteamento de antigas lavouras de café, cana-de-açúcar e
laranja; processos de migração intermunicipais e interestaduais; e uma rápida ruptura com as

7
Nossa pesquisa junto ao acervo ocorreu em quatro momentos distintos (21 de janeiro de 2014 / 27 de
novembro de 2014 / 23 de maio de 2016 / 6 e 7 de junho de 2017), de modo que eventualmente as fotografias
podem ter sido reagrupadas ou recatalogadas.
8
O relatório do inquérito criminal n. 16/63 do 36.º DP (Santa Cruz) consta junto aos autos da CPI sobre o caso
sem sua documentação anexa. Os autos da CPI podem ser consultados junto à Assembleia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro.
9
Como apontado por Mello Neto (2014), o Serviço de Diligências Especiais corresponde à Turma Volante de
Repressão a Assaltos a Mão Armada (TVRAMA). Na imprensa predominam os termos SDE ou GDE (Serviço
de Diligências Especiais e Grupo de Diligências Especiais), possivelmente devido à lotação do grupo na Seção
de Diligências Especiais do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP).

344
dinâmicas sociais tradicionalmente rurais (MISSE, 1999; MELLO NETO, 2014). Tais fatores
sujeitariam parte da população a meios escusos de sobrevivência e obtenção de renda (que
compreendem desde o subemprego até atividades ilícitas, como pequenos furtos, tráfico de
entorpecentes e jogo do bicho), favorecendo a criação do que Michel Misse denomina como
fantasma social, “[...] um inimigo interno específico cujo perigo será representado como
tanto maior quanto maior for sua incorporação por membros da sociedade” (MISSE, 1999, p.
176), e o conceito de sujeição criminal situa de maneira sui generis o fenômeno. Grosso
modo, a sujeição criminal pode ser entendida como a atribuição de expectativas quanto à
irrecuperabilidade do indivíduo – caso um crime tenha sido praticado – ou um pré-
julgamento deste indivíduo quanto à expectativa de praticar crimes, tornando-o passível de
extermínio. O sujeito criminal conhecido como “marginal” passa a ter maior destaque na
imprensa a partir da década de 1960, emergindo nesse contexto o Esquadrão da Morte como
forma particular de “resolução de problemas” que contava com o apoio da população para
suas práticas.

A « campanha pela pena de morte », desfechada no início dos anos 60 no


parlamento, e que até hoje, volta e meia, reaparece, possui uma ambivalência que
exige um exame mais cuidadoso. À primeira vista, é uma demanda legítima, de um
segmento da população, por uma mudança nas leis que permita o agravamento das
penas, como meio de dissuação criminal. Dado, no entanto, que ela é desfechada
praticamente na mesma época em que aumentam os linchamentos e aparecem os
chamados « esquadrões da morte », passa a comunicar alguma legitimidade às
práticas arbitrárias e punitivas da polícia e de pequenos grupos da população, ao
mesmo tempo em que argumenta pretender controlá-las legalmente (MISSE, 1999,
p. 173).

Pouco tempo após a criação do Grupo de Diligências Especiais, o jornal Ultima


Hora passaria a alcunhá-lo como “comandos suicidas” ou “os suicidas”. O uso do termo
“Esquadrão da Morte” em alusão ao grupo viria apenas em janeiro de 1958, inicialmente no
jornal O Globo (20 de janeiro de 1958), seguido pelo Correio da Manhã (8 de abril de 1958)
e Ultima Hora, sendo este último apenas no ano seguinte (12 de março de 1959) (MELLO
NETO, 2014). Inicialmente ovacionado pela imprensa e apoiado pela população, o grupo
passa a ser duramente criticado após a morte do motorista da TV Tupi Edgar Faria de
Oliveira, em fevereiro de 1958, vindo a desaparecer das manchetes policiais em 1961
(MELLO NETO, 2014).

345
A partir de 1960, sob a liderança de Milton de Oliveira Le Cocq, outro grupo
categorizado como Esquadrão da Morte passa a perseguir marginais considerados
irrecuperáveis, obtendo grandes êxitos em capturas e execuções. Entretanto, a morte de
Milton Le Cocq em 27 de agosto de 1964 durante uma perseguição ao bandido “Cara-de-
cavalo” provocaria intensa revolta na classe policial e uma enfática busca por vingança. A
busca se encerra na madrugada de 3 de outubro de 1964, quando o bandido é localizado e
executado com vários tiros (ROSE, 2010). Em 27 de agosto de 1965 seria criada a Scuderie
Detetive Le Cocq, em homenagem ao policial morto, que contaria com vários membros
espalhados pelo Brasil – e até mesmo nos EUA, Portugal e Alemanha – em um curto espaço
de tempo. A organização inicialmente filantrópica também seria referida como um Esquadrão
da Morte (MELLO NETO, 2014; ROSE, 2010).
A desterritorialização do grupo, o avolumamento de cadáveres encontrados e a
cristalização de um modus operandi mais ou menos estável levariam a uma
fantasmagorização do Esquadrão da Morte a partir de 1968 (MELLO NETO, 2014). Os reais
executores enquanto indivíduos são inconclusivos, mas há diversos indícios que sinalizariam
um crime do Esquadrão da Morte, como marcas de enforcamento, manietamento, disparos de
diversos calibres, corpos abandonados em locais desertos, cartazes junto aos corpos e
ligações de “relações públicas” às redações de jornais informando onde encontrar um novo
cadáver (MELLO NETO, 2014; ROSE, 2010). Nesse período o Esquadrão da Morte seria
amplamente noticiado, sobretudo pela imprensa popular. A partir do vasto material
produzido, alguns periódicos ganhariam destaque enquanto fontes para futuras pesquisas, a
exemplo do Ultima Hora.
Debruçado em fontes de imprensa, David Maciel de Mello Neto (2014) aponta
diferentes fases do processo acusatório no contexto do Esquadrão da Morte. Entre 1958 e
1964 a acusação seria operada pela imprensa, contra “policiais matadores” responsáveis pela
execução de “homens de bem”, apresentando-se como problema público e estimulando-se
mecanismos de criminação e incriminação. Este período igualaria o policial homicida ao
marginal, sobretudo com a morte do motorista Edgar Faria de Oliveira. A partir de 1968 a
acusação seria operada pelo próprio Esquadrão da Morte, sem a possibilidade de apontar os
agentes envolvidos (fantasmagorização), buscando a legitimação de discursos que

346
apresentassem a vítima como passível de extermínio e evitando os mecanismos de
incriminação.
Uma análise mais detalhada de edições do Ultima Hora compreendidas entre os
anos de 1968 e 1969 revela um cenário um pouco mais complexo. Sustentam-se as
afirmações sobre a fantasmagorização do grupo e evasão dos mecanismos de incriminação
(através deste mesmo efeito), mas a operação do processo acusatório e a busca por
legitimação de discursos podem ser apresentadas de outra forma. A análise de matérias e
fotografias confirma as tentativas de construção da vítima enquanto criminosa e exterminável
operadas pelo Esquadrão da Morte através de cartazes ou ligações telefônicas às redações de
jornais. Entretanto, nota-se um segundo processo acusatório operado pela imprensa contra o
grupo, ainda que seja difícil sinalizar indivíduos específicos devido à fantasmagorização.
A matéria “DEVASSA NO ESQUADRÃO” (Ultima Hora, 12/10/1968) apresenta
vários elementos que contrapõem a síntese do autor sobre o período. Noticia-se a indicação
do promotor Rodolfo Avena, do I Tribunal do Júri, para investigar crimes atribuídos à
polícia, com destaque para os do Esquadrão da Morte. Na descrição das vítimas não constam
termos demeritórios, sendo uma delas “aluno do Científico do Colégio Pedro II”, e outra um
“pacato operário”. O jornal apresenta o parecer de Jurandir Manfredini, diretor do Serviço
Nacional de Doenças Mentais, para quem haveria “indícios de ‘sadismo homossexual’ na
ação dos criminosos”. O promotor declara que todos os crimes ocorridos na Guanabara
seriam investigados, alegando que “[o] Ministério Público não pune apenas os favelados”,
além de endossar as palavras de Jurandir Manfredini. A matéria também critica os delegados
da Baixada Fluminense por negarem informações à imprensa com o propósito de acobertar e
proteger os criminosos.
O exemplo acima não figura sozinho entre as edições do Ultima Hora que fazem
referência ao Esquadrão da Morte entre 1968 e 1969. O grupo também é descrito como: uma
“praga” com “crimes sem precedentes” (Ultima Hora, 23/11/1968); “organização maldita”
(Ultima Hora, 22/02/1969); “pessoas inescrupulosas” e com “os métodos mais requintados e
sanguinários de eliminação do sêr humano” (Ultima Hora, 08/03/1969); entre outros. As
vítimas podem figurar como: “regenerado” (Ultima Hora, 03/10/1968), “comerciante”
(Ultima Hora, 22/02/1969), “evangelista”, “recuperado” (Ultima Hora, 07/07/1969), entre
outros. As denúncias das práticas de extermínio podem ser encontradas até mesmo em textos

347
opinativos (Ultima Hora, 15/07/1969). Apesar de minoritários, casos como estes não são
estatisticamente insignificantes, e a vinculação de juízos negativos ao grupo e positivos a
algumas vítimas dificulta a legitimação das práticas de extermínio perante a opinião pública,
de modo que as fontes sinalizam um cenário mais complexo que a síntese previamente
apresentada, e apenas uma análise mais detalhada das formas de obtenção, preparo e
circulação do conteúdo noticioso nos permitiria maiores esclarecimentos.
Tais aspectos não foram negligenciados por Mello Neto (2014), que dedica várias
páginas à história, estrutura organizacional, profissionais e práticas de redação no Ultima
Hora, mas restrições de acervo podem ter induzido um acesso indireto a padrões do
supracitado período. A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional não contempla edições do
jornal publicadas na segunda metade da década de 1960, e o uso desta plataforma pode ter
levado o autor a projetar linearmente um padrão mantido em 1964-1965 ou traçar padrões
gerais da imprensa a partir de periódicos menos enfáticos sobre o Esquadrão da Morte (como
o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã). Poucas edições do Ultima Hora no período 1968-
1969 figuram em seu corpo de fontes, sendo inconclusiva a forma de acesso. Um acervo
alternativo seria o fundo Ultima Hora do Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde
pudemos encontrar mais de 100 edições do jornal com alguma menção ao Esquadrão da
Morte nos anos de 1968 e 1969, e trabalhos que se utilizam desse corpo de fontes evidenciam
a coexistência de processos acusatórios distintos e a ambivalência axiológica nas páginas do
periódico (ANTONIO, 2017; LEITÃO 2017).

4. Considerações Finais
Narrativas específicas sobre a “Operação mata-mendigos” e o Esquadrão da Morte
ainda são escassas no âmbito acadêmico, apesar de certo progresso recente quanto ao
Esquadrão da Morte. Usualmente esses dois fenômenos parasitam narrativas maiores sobre
criminalidade, violência e repressão ou sobre a história política e administrativa do Rio de
Janeiro. Ao confrontarmos algumas dessas narrativas com as notícias do período, seja de
maneira pontual ou seriada, fica evidente o valor e a complexidade do registro jornalístico
para a construção ou contestação de uma memória coletiva.
Salienta-se que os conteúdos jornalísticos aqui abordados não devem ser lidos como
registros fidedignos de um fato ocorrido, tendo em vista as eventuais estratégias retóricas e

348
mercadológicas potencialmente adotadas, como é o caso do sensacionalismo, da hipérbole e
da frequente oposição política que acompanha o Ultima Hora ao longo de sua história.
Salienta-se também que parte do conteúdo aqui apresentado resulta de pesquisas ainda em
andamento, podendo sofrer eventuais retificações no futuro.
O confronto contínuo de diversas fontes, trabalhos e relatos sincrônicos ou
diacrônicos evidencia diversos ruídos e lacunas em memórias muitas vezes bem
estabelecidas. Nesse contexto ficam evidentes os papéis de diversos atores num cenário
diacrônico de convergência e monitoramento. Quem disponibiliza quais informações, para
qual público, em qual meio e a partir de quais materiais? Jornalistas, arquivistas,
historiadores e sociólogos se sucedem na construção de determinadas memórias, num
processo com diversas possibilidades de ruído ou censura: eventos ou detalhes não
noticiados; acervos perdidos, degradados ou destruídos; levantamentos lacunares de fontes. A
atenção desses agentes também se remodela em diferentes momentos históricos: o que é
noticiável; quais documentos são dignos de preservação; quais eventos são dignos de um
estudo histórico ou sociológico. Questões como essas no âmbito historiográfico confirmam a
percepção da História como uma relação comunicacional, quando não um encadeamento de
relações comunicacionais.

Referências
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Morte (1968-1969). 2017. Dissertação (Mestrado em História), Setor de Ciências Humanas, Universidade
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ULTIMA HORA. Patética Revelação da Única Mendiga-Sobrevivente da Chacina do Rio da Guarda -
"PELOTÃO DE EXTERMÍNIO" MATOU MEUS COMPANHEIROS: FOMOS ATIRADOS DA PONTE!
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5. Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/386030/87688>. Acesso em: 13 jul. 2018.
ULTIMA HORA. GOVÊRNO QUER ACABAR COM INQUÉRITOS PARLAMENTARES. Ultima Hora, Rio
de Janeiro, 23 mar. 1963. p. 5. Disponível em: <http://memoria.bn.br/docreader/386030/87700>. Acesso em: 13
jul. 2018.
ULTIMA HORA. ESQUADRÃO DA MORTE: CHEFE ERA UM PERITO. Ultima Hora, Rio de Janeiro, 22
fev. 1968. p. 6. [Fundo Última Hora - UH Digital - APESP].

350
ULTIMA HORA. FAMÍLIA, NOIVA E ADVOGADO AFIRMAM: -POLÍCIA MATOU UM JOVEM
REGENERADO. Ultima Hora, Rio de Janeiro, 03 out. 1968. p. 6. [Fundo Última Hora - UH Digital - APESP].
ULTIMA HORA. DEVASSA NO ESQUADRÃO. Ultima Hora, Rio de Janeiro, 12 out. 1968. p. 6. [Fundo
Última Hora - UH Digital - APESP].
ULTIMA HORA. ESQUADRÃO DA MORTE: UMA PRAGA SE ALASTRA. Ultima Hora, Rio de Janeiro,
23 nov. 1968. p. 6. [Fundo Última Hora - UH Digital - APESP].
ULTIMA HORA. ESQUADRÃO ACUADO PELA JUSTIÇA QUER MATAR AINDA MAIS. Ultima Hora,
Rio de Janeiro, 08 mar. 1969. p. 6. [Fundo Última Hora - UH Digital - APESP].
ULTIMA HORA. BÍLIA COM MATADORES. Ultima Hora, Rio de Janeiro, 07 jul. 1969. p. 6. [Fundo Última
Hora - UH Digital - APESP].
ULTIMA HORA. QUANTO VALE A VIDA DE UM HOMEM? Ultima Hora, Rio de Janeiro, 15 jul. 1969. p.
6. [Fundo Última Hora - UH Digital - APESP].

351
A IMAGEM DE AÉCIO NEVES NO MITO DA MINEIRIDADE
NO FOLHA DE S.PAULO 1
THE IMAGE OF AÉCIO NEVES IN THE MINEIRITY MYTH
IN THE FOLHA DE S.PAULO

Willian José de Carvalho (UFJF) 2


Luiz Ademir de Oliveira (UFSJ) 3

Resumo: O presente artigo discute as construções identitárias de Aécio Neves (PSDB) em sua
trajetória política. Por meio dos Enquadramentos Noticiosos, o estudou busca identificar como o
tucano acionou símbolos da cultura da mineiridade (ARRUDA, 1990) e ao mesmo tempo refletem
às identidades híbridas da modenidade (HALL, 2004). A partir da pesquisa documental, tomando
como base o levantamento das notícias do jornal Folha de S. Paulo, são analisadas as marcas
identitárias que se manifestam mescladas e ao mesmo tempo com alguma das características mais
salientes, a partir dos perfis em que a imagem de Aécio é construída e se apresenta nas diferentes
fases de sua carreira. Foram coletadas 24 notícias durante o decorrer dos anos eleitorais em que o
político concorreu em algum cargo eletivo iniciando em 1986 nas Eleições Gerais da Constituinte
até 1998, onde Aécio disputou a última eleição geral para Deputado Federal. A partir da análise
pôde-se perceber que o psdebista permeia entre o político conciliador a jogos de disputas de
poder, revelando um hibridismo identitário.

Palavras-Chave: Mineiridade. Identidades Híbridas. Mídia e Política. Jornal Folha de São


Paulo.

1. Considerações Iniciais

Aécio Neves da Cunha (PSDB) iniciou sua carreira política como secretário pessoal
do seu avô, Tancredo Neves, em 1982, o acompanhando na campanha eleitoral para
governador de Minas Gerais. O seu primeiro cargo eletivo foi em 1987, com o primeiro
mandato para deputado federal por Minas Gerais, exercendo o cargo até 2002, totalizando
quatro mandatos. Presidiu a Câmara dos Deputados no biênio de 2001–2002, renunciando ao
cargo em dezembro de 2002, para assumir o governo de Minas Gerais. Aécio foi eleito
governador de Minas Gerais e reeleito na eleição de 2006, tendo desta vez a maior votação já

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho 4 (Comunicação e Política) do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
e bolsista FAPEMIG modalidade PAPG – Comunicação na UFJF. Graduado em Jornalismo pela Universidade
Federal de São João del-Rei (UFSJ), wjcjornalismo@gmail.com.
3
Orientador do trabalho, Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, docente do Curso de Jornalismo da
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UFJF, e-mail: luizoli@ufsj.edu.br.

352
registrada no estado. Em 2010 concorreu ao senado federal e foi eleito com a maior votação
do estado. Em 2013 foi escolhido presidente nacional do PSDB, e, em 2015 foi reeleito.
Em 2014, foi candidato à Presidência da República por seu partido, tendo como
principais adversários a candidata à reeleição, Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores
(PT), e Marina Silva do Partido Socialista Brasileiro (PSB). No primeiro turno da eleição,
Aécio obteve 33,55% dos votos válidos, conseguindo manter-se na disputa no segundo turno
contra Dilma, que obteve 41,59%. No segundo turno, conseguiu 48,36% dos votos, perdendo
para Dilma Rousseff, que se reelegeu numa das eleições mais disputada da história do país.
Ao longo do segundo mandato de Dilma até o processo de impeachment da petista,
que aconteceu em 31 de agosto de 2016, Aécio foi um dos principais articuladores da
oposição e do processo de deposição da presidente. No entanto, tornou-se também alvo de
investigação da Operação Lava Jato depois que vazaram os áudios das denúncias de Joesley
Batista, presidente da JBS, contra Temer, seus aliados e contra o senador mineiro. Em função
disso, em 18 de maio de 2017, foi afastado do cargo de Senador pelo ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Retornou ao cargo no final de junho, sendo novamente afastado pela primeira turma do STF
em 26 de setembro. No mês seguinte, o Senado autorizou sua volta ao exercício do mandato.
No dia 17 de abril de 2018, o tucano se tornou réu na operação Lava-Jato, após aceitação da
denúncia feita pelo Ministério Público no STF.
O tucano sempre utilizou características da chamada cultura da mineiridade ao se
inserir no jogo político de uma forma mais conciliadora, transitando entre segmentos de
centro, esquerda e direita, mesmo que em Minas Gerais já adotasse posições bastante
conservadoras. Porém, com a possibilidade de uma vitória no segundo turno das eleições
presidenciais de 2014, apontada pelas pesquisas de intenções de votos, o senador assumiu
uma postura bastante agressiva. A nova postura entrou em contradição com o que ele
apresentava na sua trajetória. Aécio mantinha uma postura de líder mais conciliador que
transitava bem até entre os oposicionistas, como entre segmentos de centro-esquerda
(OLIVEIRA & LEAL, 2016). Entende-se, aqui, no entanto, que estas marcas identitárias se
mesclam. O conciliador também tem momentos de uma postura agressiva ao mesmo tempo
que o senador investigado por corrupção busca se reerguer recorrendo aos símbolos da
mineiridade.

353
De uma trajetória de sucesso baseada na política de conciliação, chegando a um dos
nomes mais importantes da política nacional, a postura agressiva e o papel como um dos
principais líderes de oposição ao governo da petista Dilma Rousseff no processo de
impeachment e o envolvimento em escândalos de corrupção, chegando a ser aceito como
réu na Lava-Jato, nos propõe um debate acerca da sua imagem.
Deste modo, o presente artigo tem como objetivo investigar a construção e ou a (des)
construção da imagem de Aécio Neves no jornal Folha de S. Paulo, tomando como
parâmetro dois eixos conceituais - de identidades híbridas de Hall (2004) e o conceito de
mineiridade estudado por Arruda (1990). Pretende analisar como oscilou de uma política
conciliadora baseada na cultura da mineiridade para uma postura agressiva e de um político
envolvido numa série de escândalos de corrupção. Para isso, serão analisadas como corpus
de análise períodos específicos da sua carreira até antes de se tornar presidente da Câmara
dos Deputados em 2002, a fim de traçar como o tucano construiu sua imagem até ali.
Adota-se como procedimentos metodológicos: a pesquisa bibliográfica, a pesquisa
documental e executa-se uma análise de enquadramento (GOFMANN, 1974; PORTO,
2004).
2. A Identidade em Questão e a Mitologia da Mineiridade
Diante do processo de globalização vivenciado na contemporaneidade ocasionado
principalmente pelos avanços tecnológicos, torna-se importante trazer o debate sobre
questões identitárias. Estamos em um momento no qual os recursos comunicacionais e
informacionais se mostram tão diversos e ao mesmo tempo tão híbridos, tão mesclados.
Tais mudanças proporcionaram uma quebra de fronteiras, que antes era delimitada por
distâncias geográficas, mas que hoje se supera por meio das novas tecnologias,
especialmente pela internet (BAUMAN, 2005; HALL, 1997; WOODWARD, 2005).
Hall (1997) enfatiza que o momento atual é de rediscussão a respeito das identidades
na teoria social, pois as velhas fontes de identificação, que estabilizaram o mundo por
durante os últimos dois séculos estão agora em declínio e fragmentação, dando lugar a
novas identidades surgidas do processo de mudança que ora desloca as estruturas e
processos centrais das sociedades modernas. Sobre o tema, Bauman (2005) afirma que a
identidade exerce um papel fundamental hoje no mundo. Os indivíduos passaram a criar a
sua própria identidade e não mais a herdar. Não apenas partem do zero, mas passam toda

354
uma vida a redefinindo. A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença são
estabelecidas por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades.
No caso da identidade regional, as marcas estão na fala com sotaque, na vestimenta,
em hábitos e atitudes e até mesmo, na produção de conteúdo. O conceito de identidade pode
estar ligado às representações (WOODWARD, 2005). Jacks (1999) também entra em
consonância com esta afirmativa, quando diz que a cultura regional também é um dos
fatores de determinação no qual diferenciam determinado grupo a partir de práticas
culturais, fornecendo-lhes uma identidade própria. Ou seja, uma cultura regional envolve
subculturas, no interior da qual uma pode ser hegemônica.
Apesar de não haver um consenso sobre os estudos de identidade regional entre os
pesquisadores, alguns argumentam - especialmente os sociólogos, os cientistas sociais e
políticos – que o tema é extremamente importante quando estudam os mecanismos
construídos pelo poder institucionalizado ou pelas classes e grupos que exercem o poder
(REIS, 2007). E por isso nos torna caro o conceito de Hall (1997) em que revela como as
culturas nacionais são construídas pelo discurso de pertencimento ao local de origem e pela
formação de um sentimento de identidade e lealdade à ideia de nação.
O termo mineiridade adquire maior amplitude e complexidade quando investigado em
sua dimensão ideológica O ideário sobre a identidade mineira se origina por volta do século
XIX, quando surgiu um discurso político elaborado com o intuito de apresentar uma suposta
unidade do território em questão, devido a um processo de formação econômica, política e
cultural um tanto fragmentado, além de interesses econômicos e políticos distintos. A
construção da ideia de “mineiridade” viria a promover a homogeneização do coletivo e a
solidificação de Minas Gerais no cenário político nacional (GUIDA & EVANGELISTA,
2005).
Uma lista de características pode classificar o sentido de ser mineiro: um ser
desconfiado, introvertido, irônico, hospitaleiro, proseador, político hábil que luta pela
liberdade, busca a caminho da democracia e não perde de vista o jeitinho mineiro de
resolver os impasses por meio da conciliação. Esses atributos e muitos outros são
adjudicados para definir àqueles que vêm de Minas, mas também são aceitos e auto
atribuídos pelo próprio mineiro que se vê um legítimo representante. No dia a dia, estes
predicados são perceptíveis nos atos e nas práticas sociais executadas pelos mineiros. Na

355
política, o mineiro é visto como líder conciliador em função do equilíbrio, bom senso e
valorização da estabilidade (ARRUDA, 1990).
No entanto, os mineiros e seus políticos não necessariamente são assim: eles se
representam/são representados dessa maneira. Portanto, torna-se necessário apontar que para
este estudo não nos interessa o que seria o “real”, e sim sua representação, que toma por base
muito daquilo que se diz do povo mineiro. E todas essas características contribuem para
configurar a representação social e, portanto, para que seus enunciados sejam legitimados
enquanto produzidos por um sujeito “político mineiro”, faz-se necessário, entre outros
aspectos, levar em consideração as condições de produção em que a cadeia discursiva é
elaborada (ARRUDA, 1990; ÂNGELO, 2005; REIS, 2007).
Em relação ao emprego político da identidade mineira, não é diferente. A história de
Minas nos revela que o discurso da mineiridade está impregnado nos textos de representantes
da elite local há séculos, e mesmo na atualidade conserva muitas de suas principais
características. A mídia reflete estes contextos ao reproduzir os discursos proferidos pelos
políticos. Dos vindos de Minas, temos Tancredo Neves, que explorou as vozes das
montanhas com, possivelmente, um vigor ímpar na história de Minas e, tenha personificado
essa “aura” da mineiridade também devido ao contexto pós-ditatorial em que produziu as
falas a que nos referimos. Mas em outras falas de políticos eminentes, o recurso à
mineiridade celebrizou-se, como Milton Campos, Juscelino Kubitschek e Itamar Franco.

3. Mídia: Ênfase Personalista e Espetacular


Outro efeito gerado pela globalização, além das identidades fragmentadas e
efêmeras pela multiplicidade de culturas híbridas, é a relação simbiótica entre mídia e
política. Tudo isso devido à ampliação do alcance dos meios tradicionais de comunicação e,
pelo avanço dos meios e dispositivos tecnológicos. Hoje, a mídia posiciona-se como um ator
social e político (LIMA, 2006) e, a partir desta perspectiva, cada vez mais observamos como
consequência o personalismo e a espetacularização. Os atores usam o poder do campo
midiático para enfatizar seus discursos (RODRIGUES, 1990) e, o Estado se transformou
numa grande empresa teatral, sempre preocupado em produções espetaculares para atingir o
respeitável público eleitor (SCHWARTZENBERG, 1997).

356
Discute-se hoje a centralidade da mídia a partir do seu poder simbólico. Bourdieu
(1989), ao debater o tema, afirma que o poder simbólico é utilizado – consciente ou
inconscientemente – como instrumento de dominação nos revelando que os sistemas
simbólicos exercem um poder estruturante (conhecer o mundo), na medida em que são
também estruturados. E a estruturação decorre da função que os sistemas simbólicos possuem
de integração social para um determinado consenso, aqui tratado como o da hegemonia, ou
seja, de dominação.
“As relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder
que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material e simbólico acumulados pelos
agentes" (BOURDIEU, 1989, p.11). O que ocorre é uma relação de luta, principalmente,
simbólica que as diferentes classes estão envolvidas para imporem a definição do mundo
social conforme seus interesses. Os sistemas simbólicos diferenciam-se segundo sua instância
de produção e de recepção (modus operandin e opus operatun). Desse modo, o poder
simbólico é uma forma transformada e legitimada de outras formas de poder.
No campo político, Scwartzemberg (1997) afirma que anteriormente a políticas antes
eram ideias, hoje, são pessoas, ou melhor, personagens, pois cada dirigente parece escolher
um emprego e desempenhar um papel. Para o autor, o espetáculo está no poder e diante disso o
autor revela que a mídia e o poder estão atrelados de forma inexorável na sociedade moderna.
Isso ocorre em detrimento da sociedade, que passa por uma verdadeira "lavagem cerebral",
acreditando não nos políticos ou em suas plataformas, mas em verdadeiros atores.
Assim, podemos trazer neste debate o conceito de Gomes (2004) que argumenta que
estamos vivendo a política do espetáculo. São atores políticos que encenam, usam dos
recursos de marketing político, estratégias estas que planejam modos de chocar, comover,
divertir e dramatizar. Os meios de comunicação, especialmente a grande mídia tradicional,
tornaram-se importantes canais para que os atores políticos ganhem visibilidade.
Na perspectiva construcionista, ao compreender que as notícias são construções
sociais partilhadas pelo jornalismo e pela sociedade, a notícia é vista como ferramenta que
ajuda a construir a própria realidade. Berger e Luckmann (1985) abordam a realidade não
como o sentido de algo fixo e único, mas do ponto de vista de quem entende várias
realidades e acredita que todas elas são plausíveis por se constituírem como consequências
de questões sociais específicas.

357
Quanto à imprensa, os autores entendem que há uma construção social da realidade.
No caso da mídia, esta construção ocorre via linguagem mediada pelos aparatos tecnológicos,
seja impresso, televisivo, radiofônico ou cibernético. Traquina (2001) amplia este debate e
aponta que o fazer jornalístico se explica através da: (a) Teoria Estruturalista – na qual delega
às fontes primárias e institucionalizadas o poder de agendar a mídia; e (b) Teoria
Etnoconstrucionista – no qual procura compreender os diversos fatores que interferem no
processo de produção da notícia, como a linha editorial do veículo, o fator mercadológico, as
rotinas de produção, a cultura profissional dos jornalistas, os recursos disponíveis, entre
outros. Diante disso, podemos dizer que a mídia agenda temas, hierarquiza e disponibiliza um
repertório discursivo para o público.
Segundo Lima (2006), nas democracias atuais, o debate político se dá
majoritariamente no cenário midiático. A mídia transformou-se em importante ator político,
pois é por meio dela, que tais eventos têm visibilidade nesta era de globalizada. Deste modo,
a mídia se tornou uma fonte de legitimidade substituindo a opinião pública tradicional
(RODRIGUES, 1990), começou a ocupar um espaço na era moderna, ocupando-se da função
de palco, onde os diversos agentes buscam obter visibilidade e legitimação perante a opinião
pública e os campos sociais em geral.
A primeira sistematização sobre o conceito de enquadramento, denominado framing
analysis, foi realizada por Erving Goffman publicada em 1974. A ideia de enquadramento
(frames) derivava da preocupação de Goffman em entender como cada sujeito particular
classificava e organizava uma dada situação social e atribuía sentido à realidade ao seu redor.
Para o autor, “enquadramentos são entendidos como marcos interpretativos mais gerais,
construídos socialmente, que permitem às pessoas dar sentido aos eventos e às situações
sociais” (GOFFMAN apud PORTO, 2004, p. 78).
Mais adiante, após o surgimento de inúmeros estudos que ampliaram as noções de
enquadramento com análises do discurso da mídia nas esferas sociais e políticas, Porto
(2001) explica que o conceito de enquadramento tem sido utilizado para definir os princípios
de seleção, ênfase e apresentação usados por jornalistas para organizar a realidade e o
noticiário. O autor argumenta que, na cobertura de assuntos públicos, enquadramentos
permitem aos jornalistas e suas audiências organizar e interpretar temas e eventos políticos.
Ao produzir a notícia, os jornalistas se baseiam em discursos que estão presentes na esfera

358
pública, mas também contribuem com seus próprios enquadramentos, “dando formas aos
pacotes interpretativos que fazem parte de qualquer cultura”. O enquadramento dado pela
mídia tem um importante efeito na interpretação desses problemas, bem como na opinião
pública em geral (PORTO, 2001).

4. A Construção de Áecio Neves no Jornal Folha De S. Paulo: O Carater


Personalista na Política
4.1 Metodologia e corpus de análise
O presente estudo adotou como procedimentos metodológicos a pesquisa
bibliográfica, a pesquisa documental - com a coleta de notícias do jornal Folha de S. Paulo
– e a análise de conteúdo (BARDIN, 2010) mesclada à análise de enquadramento (PORTO,
2001). Tendo como objetivo analisar a construção da imagem de Aécio Neves (PSDB), foi
feita uma análise a partir de 24 notícias ligadas ao tucano durante o período de 1986,
quando iniciou sua carreira política em cargos eletivos até 1998, fim do seu terceiro
mandato como deputado federal.
Os atributos ligados à mitologia da mineiridade servirão de base para o critério de
categorização, que será usado na análise do material coletado com o objetivo de investigar
de que maneira o jornal Folha de S. Paulo representa a imagem de Aécio Neves e como o
jornal utiliza-se da narrativa desta mitologia para descrever ações do político. Seguem as
categorias pré-estabelecidas a partir do debate teórico apresentado, tendo como referência
características que são atribuídas a mitologia da mineiridade (ARRUDA, 1990) e também a
questões sobre o personalismo que podem ser compreendidas a partir de pacotes
interpretativos no processo de enquadramento noticioso (PORTO, 2001): a) o político
conciliador e articulador; b) personalismo e herança política de Tancredo Neves c) da
cordialidade mineira à disputa de poder. Novamente vale ressaltar que estes atributos não
definem o que é realmente ser mineiro, mas a partir de convenções sociais são adjudicados
para definir o político mineiro e por isso eles nos tornam caros para o debate deste estudo.
Quadro 01: Notícias sobre Aécio Neves encontradas no Folha de S. Paulo
Nº Data Notícia Editoria Página
1 01/04/1986 Impugnação de Aécio Brasil 04
2 14/07/1986 Jogo de Espelhos Opinião 04
3 01/08/1986 Pimenta da Veiga diz que sua chapa é o consenso do PMDB-MG Política 08
4 20/11/1986 PMDB deverá fazer sua maior bancada Política 10

359
5 21/12/1986 Herança política determina dividendos de uma carreira política Política 07
6 02/09/1992 ACM não vai defender e nem atacar Collor Brasil 06
7 21/09/1992 Disputas nas capitais esquentam na reta final Brasil 08
8 29/09/1992 PMDB e PT dominam disputa em 8 capitais Brasil 15
9 05/10/1992 Um quarto dos votos são nulos e brancos Especial 06
10 07/01/1998 Para ACM críticos têm interesses inconfessáveis Brasil 04
11 08/01/1998 Convocação extra atrai só a metade dos parlamentares Brasil 04
12 20/03/1998 Deputados fazem lobby para manter Albuquerque Brasil 04
13 17/04/1998 FHC quer Constituinte restrita em 99 Brasil 01
14 21/04/1998 No velório, tucanos se perguntam ‘e agora’? Brasil 06
15 23/04/1998 Governo usa morte para aprovar reforma Brasil 13
16 24/04/1998 Presidente convoca reunião para votar reforma até maio Brasil 04
17 03/06/1998 Temer admite inflação em prol do social Brasil 07
18 16/09/1998 PMDB propõe acelerar votação de reformas Brasil 07
19 31/10/1998 Só 28 deputados são ‘donos’ do mandato Brasil 09
20 02/11/1998 (Painel) Duas visões Brasil 04
21 02/11/1998 (Painel) Pé atrás Brasil 04
22 06/11/1998 ACM critica Serra e fala em ‘remoção Brasil 08
23 04/12/1998 (Painel) Acerto Federal Brasil 04
24 24/12/1998 Bola furada Brasil 04
Fonte :Elaboração própria
A partir das categorias de enquadramento elencadas anteriormente, foi feito um
mapeamento das 24 reportagens. Do total, 13 (treze) se enquadram na categoria “O político
conciliador e articulador: traços da mineiridade”, correspondendo 54,16%. Já o
enquadramento “Da cordialidade mineira a disputas de poder” teve oito notícias (33,33%).
Por fim, o “Personalismo e herança política de Tancredo Neves” ficou com três notícias
(12,51%). Nesse sentido, os dados revelam que a característica de político conciliador e
articulador principais traços que rementem ao mito da mineiridade são mais utilizados pela
Folha para descrever a imagem de Aécio Neves.

4.2 O político conciliador e articulador: traços da mineiridade


Esta categoria de enquadramento foi a que se encaixou em maior número de notícias
coletadas durante o período analisado. Em uma análise geral das notícias, pôde-se perceber a
postura do político em ações na qual esteja articulando alguma decisão política em torno de
uma ideia conciliadora, buscando uma estabilidade no cenário apresentado. Conforme revela
o Quadro 2, foram 13 notícias ou 54,16% do total.

Quadro 2 – Enquadramento “O político conciliador e articulador: traços da


mineiridade”
1 Pimenta da Veiga diz A formação da chapa de Pimenta da Veiga na convenção do PMDB-MG para ser o
que sua chapa é o candidato da sigla nas eleições. O apoio de Aécio Neves na articulação do

360
consenso do PMDB- lançamento da candidatura do deputado a vaga de governador na convenção
MG estadual.
2 ACM não vai defender Com a possibilidade de votação do impeachment de Fernando Collor de Melo, a
e nem atacar Collor Folha apresenta um infográfico com as posições dos deputados federais contra,
neutros e a favor do impeachment. Aécio Neves (PSDB) é mostrado como a favor do
afastamento do presidente.
3 Para ACM (Antônio Após crítica de empresários, o Congresso nacional se reúne para debater sobre
Carlos Magalhães), reforma da Previdência. Aécio Neves diz que a votação é importante para o país.
críticos têm interesses
inconfessáveis
4 Deputados fazem Com o convite de FHC para José Serra assumir o Ministério da Saúde, deputados
lobby para manter fazem lobby para a manutenção de Carlos Albuquerque. Aécio Neves, responsável
Albuquerque por avisar FHC sobre as manifestações diz que o PSDB irá apoiar a decisão do
presidente e que a sigla não interferirá na reforma ministerial.
5 FHC quer Constituinte O presidente FHC defendeu a proposta da Constituinte em 1999 de forma restrita em
restrita em 99 busca de acelerar as reformas tributárias, políticas e do Poder Judiciário. Aécio
Neves, líder da sigla na Câmara, diz que não faltará empenho em aprová-la até
agosto.
6 No velório, tucanos se Com a morte do Ministro das Comunicações Sérgio Motta, deputados tucanos
perguntam ‘e agora’? mostram preocupação com a influência do presidente do Senado, Carlos Magalhães
(PFL) no governo de FHC. Indesejados no velório, ACM e o filho do deputado, Luís
Eduardo Magalhães (PFL), foram recepcionado somente pelo deputado Aécio
Neves.
7 Governo usa morte Com a morte do Ministro das Comunicações, FHC busca convencer junto com seus
para aprovar reforma líderes no Congresso os deputados para a reforma da Previdência como última
homenagem a Luís Eduardo. Aécio quer decidir as próximas votações em uma
reunião de líderes governistas.
8 Presidente convoca Com o esforço de manter o calendário da Reforma da Previdência, articula uma
reunião para votar super reunião para garantir a aprovação da emenda. Aécio diz que FHC não
reforma até maio modificará o limite mínimo de idade para aposentadoria -aos 55 anos para mulheres
e 60 anos para homens.
9 Temer admite inflação O presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, diz que a possibilidade de
em prol do social aumentar dois pontos na inflação em prol do social seria admissível. O líder do
governo na Câmara, Aécio Neves diz que o governo não faria isso, pois prejudicaria
especialmente os mais pobres e que controlar a inflação é o maior investimento no
social.
10 PMDB propõe Temer defende a estratégia da reeleição de FHC já no primeiro turno e um pacto
acelerar votação de institucional dos políticos eleitos em outubro para garantir a aprovação da reforma
reformas tributária. Aécio Neves, líder do governo na Câmara, apoiou a estratégia dos aliados.
11 Só 28 deputados são Levantamento realizado pela Folha revela que somente 28 deputados foram eleitos
‘donos’ do mandato sem contar com os votos do partido. Aécio Neves diz que o levantamento é
importante, pois, revela que, a grande maioria dos parlamentares se elegem com os
votos partidários e por isso que devem respeitar as questões pragmáticas defendida
por suas siglas.
12 ACM critica Serra e Nota divulgada pelo Ministro da Saúde, José Serra, com avaliação dos investimentos
fala em ‘remoção do governo FHC em saúde gerou polêmicas entre os deputados e ACM aponta que o
impacto negativo atrapalha a votação da Reforma da Previdência. Aécio Neves
tratou o assunto com panos quentes e disse que as críticas de Serra não atrapalham a
votação do ajuste fiscal;
13 Bola furada Um dos nomes para ocupar o Ministério do Desporto, Turismo e da Juventude foi o
líder do PSDB na Câmara, Aécio Neves. Porém o mesmo recebeu ligação de Paulo
Hoslander (PTB) justificando vários motivos para que o tucano não aceitasse o
convite. A principal justificativa é que Aécio perderia projeção caso entrasse na
pasta. O mesmo já não tinha aceitado.

361
Na matéria “PMDB acelerar votações de reformas”, veiculada no dia 18 de agosto de
1986, Aécio Neves é destacado como articulador da candidatura de Pimenta da Veiga nas
disputas internas da sigla a pré-candidato ao governo do estado. Posteriormente, Pimenta da
Veiga desistiu de ser o candidato e o partido lançou Newton Cardoso que saiu vitorioso, mas
o papel de Neves neste momento buscou garantir estabilidade nas disputas internas do
partido. Nestas eleições, o mineiro candidatou-se para deputado federal da Constituinte e saiu
vitorioso com uma expressiva votação (236 mil votos e foi o deputado federal de Minas mais
votado daquela eleição).
Já em 1992, período de grande instabilidade política no país devido a ações do
governo Fernando Collor de Melo como o congelamento das contas da grande maioria dos
brasileiros, altos índices de inflação e baixa popularidade do presidente, foi pautada na
Câmara dos Deputados a possibilidade de votação do impeachment do presidente. A Folha
traz informações a partir de um infográfico que Aécio Neves votaria a favor do afastamento
do presidente. A saída de Collor da presidência foi apontada por muitos políticos e por
veículos de imprensa como a melhor possibilidade para retomar a estabilidade do país. Já no
PSDB, Aécio assume a postura conciliadora do tucano novamente ligada a um papel de
conciliação como pode ser visto na notícia “ACM não vai defender e nem atacar Collor”
publicada no dia 02 de setembro de 1992.
Em 1998, em tempo de eleições gerais, em que Fernando Henrique Cardoso buscava a
reeleição à Presidência do país, uma pauta em especial movimentava o debate político da
época: a emenda constitucional com o objetivo de reformar a Previdência. Diversas opiniões
movimentavam o debate. Empresários criticavam algumas posturas dos deputados federais.
Aécio era o líder do partido (PSDB) na Câmara e também um homem de confiança do
governo FHC. No debate a respeito da reforma da Previdência, o tucano colocava-se a favor
da aprovação como era a posição do Planalto como pode ser visto na notícia do dia 07 de
janeiro do mesmo ano.
Antes das eleições, o governo de FHC buscou fazer uma reforma ministerial em busca
de fortalecer a sua força política para a disputa presidenciável, em que o seu opositor era Luís
Inácio Lula da Silva. José Serra (PSDB) foi convidado para ocupar o Ministério da Saúde,
porém alguns aliados desejavam a manutenção de Carlos Albuquerque. Na notícia de 20 de
março de 1992, “Deputados fazem lobby para manter Albuquerque”, o líder do PSDB na

362
Câmara estava responsável para informar FHC sobre as posições dos bastidores, declarou que
não interferiria nas questões da reforma ministerial e que o partido apoiaria o Planalto na
decisão tomada. Novamente, podemos ver o destaque a uma postura conciliadora, em que o
político assumia o papel de articulação. Essa postura também foi destacada nas matérias FHC
quer Constituinte restrita em 99, veiculada em 17 de abril de 1998.
Em outros momentos do ano, a postura conciliadora e de político articulador de Aécio
foi apontada no Folha de S. Paulo. No episódio da morte do Ministro das Comunicações,
Sérgio Motta (No velório, tucanos se perguntam ‘e agora’?), o jornal retratou que somente o
neto de Tancredo recepcionou o presidente do Senado Antônio Carlos Magalhães (PFL) e o
seu filho do deputado, Luís Eduardo Magalhães (PFL). Outro fato também mexeu com o
governo de FHC. Em menos de 24h, um dos principais articuladores do presidente na
Câmara, o deputado Luís Eduardo Magalhães, também veio a óbito. O fato foi utilizado pelo
Planalto para ser um dos motivos para a aprovação da Reforma da Previdência. O papel de
Aécio neste momento foi apresentado pela Folha como estrategista para o objetivo do
governo, como pode ser visto na matéria “Governo usa morte para aprovar reforma”. A
postura também foi retratada na notícia “Presidente convoca reunião para votar reforma até
maio”.
Nas matérias “Temer admite inflação em prol do social” e “Temer admite inflação em
prol do social”, novamente a postura de articulação política se faz presente. Na primeira
notícia, o líder do PSDB posiciona-se contra a proposta de Michel Temer (PMDB) para
aumentar dois pontos na inflação. E, na segunda, o tucano coloca-se a favor de um pacto
institucional dos políticos para garantir a reeleição de FHC. Já nas matérias “Só 28 deputados
são donos do mandato”, ACM critica Serra e fala em remoção”, o político é retratado como
equilibrado e estrategista diante das situações apresentadas. Até a postura de recusar o
Ministério de Desporto, Turismo e da Juventude feita pelo deputado é lhe atribuída como
uma postura acertada em busca de algo maior em um futuro próximo.

4.3 Personalismo e a herança política de Tancredo Neves


Outro fator característico para definir aqueles que vem de Minas é a valorização da
família. Dentro do ideário social da mineiridade, os moradores das “terras das Montanhas”
têm um grande apreço a família e apreço aos antepassados. Aécio é neto de Tancredo Neves e

363
de certa forma herdou um capital político proveniente do seu avô. Tancredo é um dos
políticos mais importantes da história do país e especialmente muito querido pelos mineiros.
Observa-se que este enquadramento aparece na construção de Aécio Neves. No corpus
analisado, foram três notícias com este enfoque.

Quadro 3 – Personalismo e a herança política de Tancredo Neves


1 Impugnação de Aécio PSB diz que vai impugnar a candidatura de Aécio Neves a Assembleia Constituinte,
devido seu avô, Tancredo Neves ter sido governador de Minas.
2 PMDB deverá fazer Uma retranca que noticia o número significativo de vitórias de candidatos a
sua maior bancada deputados federais por MG. Aécio é citado atribuindo-lhe uma expressiva votação e
a sua posição de neutralidade em relação aos candidatos ao Governo de Minas
Gerais.
3 Herança política Declaração de Andrea Neves, irmã do deputado eleito, na qual diz que a quantidade
determina dividendos de votos recebida pelo político em minas gerais é uma homenagem ao seu avô
de uma carreira Tancredo Neves.
política

Na nota intitulada “Impugnação de Aécio”, na edição de 01 de abril de 1986, o


Partido Socialista Brasileiro (PSB) apontava que desejaria impugnar a sua candidatura de
deputado federal à Assembleia Federal Constituinte. A morte de Tancredo Neves completava
um pouco mais de um ano e apesar do tempo ainda estava presente na memória dos
brasileiros e em especial dos mineiros. Aécio era o secretário pessoal do seu avô e no
momento da doença e morte sempre esteve muito presente. Segundo o entendimento do PSB,
devido ao avô ter sido governador de Minas Gerais e também presidente eleito no processo
de (re) democratização do país, a sigla entendia que a candidatura de Neves estava contra a
legislação da época.
Já na matéria de 20 de novembro de 1986, “PMDB deverá fazer sua maior bancada”,
o jornal Folha de S. Paulo apontava que o partido iria fazer sua maior bancada. Neste
período, Aécio pertencia à sigla e conseguiu uma expressiva votação no estado de Minas
Gerais. Aécio tinha articulado a candidatura de Pimenta da Veiga nas convenções estaduais
para ser o candidato do partido nas eleições para governador, mas da Veiga desistiu no meio
do processo e Newton Cardoso saiu como o candidato do partido para a disputa do pleito
estadual e derrotou Itamar Franco (PFL). Após a desistência de Pimenta, o neto de Tancredo
mostrou-se neutro em relação à disputa para o governo de Minas Gerais.
Aécio saíra vencedor no pleito e a expressiva votação foi atribuída como uma
homenagem dos mineiros a Tancredo Neves, que morreu antes de ser empossado presidente

364
do Brasil., como pode ser visto na matéria “Herança política determina dividendos de uma
carreira política”. A declaração foi feita pela irmã do deputado eleito, Andrea Neves, um dos
principais nomes ligados à carreira do político na atualidade. Os valores familiares foram, de
certa forma, o principal capital político para o início da carreira de Aécio. A sua imagem
sempre esteve ligada à imagem do seu avô e a comoção nacional e especialmente de Minas
Gerais fora a sua principal campanha para a eleição do pleito.

4.4 Da cordialidade mineira a disputas de poder


Dos muitos atributos utilizados para definir aqueles que vem de Minas Gerais, talvez
estes são mais utilizados no mundo da política. Dentro do cenário, o mineiro é visto também
como um ser discreto e com o poder de articulação. Além de conciliador, apegado às
tradições e à continuidade, prudente, avesso a radicalismos e político habilidoso para
resolução de conflitos, para a condução do país em momentos difíceis e para mudanças ou
transições sem rupturas ou traumas. A mineiridade, quando tomada pela política, assume uma
dimensão ideológica que tem determinadas funções.
Porém, como nos aponta Hall (1997) quando cita Marx, o homem é o responsável por
fazer sua história, porém deve submeter-se às condições que lhes são dadas. Em sua teoria ele
visualizava o ser humano em dois pontos chaves. Uma é a essência universal do homem, e a
outra é que essa essência é atributo de cada indivíduo singular, o qual é sujeito real. Diante
dessa concepção, podemos compreender que este sujeito não vive uma identidade única,
existe um hibridismo identitário, pois o mesmo sofre interferências dos diversos ambientes
que está inserido.
A mineiridade sempre foi atribuída ao tucano, mas nos momentos de disputas de
poder em especial, as qualidades não são tão presentes nas suas ações. Isso pode ser
observado em oito notícias em que prevalece o enquadramento “Da cordialidade mineira a
disputas de poder”.
Quadro 4 – Enquadramento “Da cordialidade mineira a disputas de poder”
1 Jogo de Espelhos O lançamento da possível candidatura para governador do deputado estadual
Pimenta da Veiga por parte de Aécio Neves na convenção da sigla.
2 Disputas nas capitais Em pesquisa de intenções de votos realizada pelo Datafolha, são apontadas as
esquentam na reta final corridas eleitorais nas capitais. Em Belo Horizonte o deputado Aécio Neves
(PSDB) aparece em quarto lugar com 10% das intenções de votos.
3 PMDB e PT dominam Em pesquisa de intenções de votos realizada pelo Datafolha, são apontados o
disputa em 8 capitais favoritismo do PMDB e do PT em oito capitais. Em Belo Horizonte o deputado

365
Aécio Neves (PSDB) aparece em quarto lugar na intenção de votos com 14%
4 Um quarto dos votos Aponta o número de votos nulos e brancos nas eleições municipais e em um
são nulos e brancos infográfico indica a derrota de Aécio Neves, já no PSDB, na disputa para prefeito
de Belo Horizonte, O candidato ficou em terceiro lugar com 131.073 (12,37%)
votos.
5 Convocação extra atrai Em segundo dia de reunião do Congresso Nacional a baixa dos parlamentares
só a metade dos chegou a 49%. Na pauta sobre a Reforma da Previdência, Aécio diz que as três
parlamentares comissões serão instaladas se a oposição indicar os membros para a Comissão da
Reforma.
6 (Painel) Duas visões Aécio Neves defende que o PSDB deve entrar na disputa para concorrer uma vaga
ao senado e não ficar fora das negociações como é o desejo de Tarso Jereissati
(PSDB-CE).
7 (Painel) Pé atrás Com proposta de Aécio Neves para presidência da Câmara, a esquerda está
desconfiada do seu interesse em cacifar para tentar retirar um ministério da cota do
PMDB.
8 (Painel) Acerto Federal A bancada do PSDB-CE fechou com a reeleição de Aécio Neves para a liderança
da sigla na Câmara em 99. O deputado também tem o apoio de pequenas bancadas
e costurou o apoio com os novatos em reunião.

No início de sua carreira política de forma “independente” no PMDB, Aécio se


envolveu já em uma disputa interna dentro do partido, como podemos ver na notícia “Jogo
dos Espelhos” publicada no dia 14 de julho de 1986. No ano de 1992, já no PSDB, o tucano
candidatou-se para prefeito de Belo Horizonte. Nas notícias “Disputas nas capitais esquentam
na reta final”, “PMDB e PT dominam disputa em 8 capitais”, e “Um quarto dos votos são
nulos e brancos”, todas referentes ao momento do pleito eleitoral a disputa da capital mineira,
Aécio não saiu o vencedor, ficou em terceiro lugar, mas de certa forma projetara o seu nome
no cenário de Minas Gerais, especialmente no midiático, tendo em vista que uma campanha
para deputado federal não tem grandes proporções midiáticas como para os cargos
executivos.
Para debater a questão da Reforma, o Congresso Nacional se reuniu em convocação
extra como noticiou a Folha em 01 de janeiro de 1998, porém a baixa presença dos
parlamentares chegou a quase da metade dos deputados e senadores. A oposição do governo
era acusada de atrasar o debate e outros assuntos também se tornavam importantes na pauta.
Na notícia “Convocação extra atrai só a metade dos parlamentares”, a postura do tucano foi
apresentada como de articulador, mas a estratégia por traz estava ligada a questões de poder.
Segundo Aécio, caso a oposição não indicasse os membros para compor a Comissão sobre à
Reforma, os governistas também iriam dificultar a formação de mais suas comissões que
eram de interesse da oposição.

366
Com uma carreira política consolidada e buscando o seu quarto mandato na
Assembleia Federal, o tucano já se articulava em jogos de disputa do poder. Na notícia “Duas
Visões” de 02 de novembro de 1998, o político defendia que, apesar de um possível acordo
entre os aliados, o PSDB deveria disputar uma vaga no Senado pelo estado do Ceará em
busca de poder negociar vantagens para o partido posteriormente. No mesmo momento
também se articulava a sua candidatura para Presidência da Câmara dos Deputados. Michel
Temer (PMDB) era o então presidente da Câmara, mas a oposição enxergava uma estratégia
do tucano para cacifar para tentar retirar um ministério da cota do PMDB.
Não se lançando candidato para presidente da Câmara dos Deputados, Aécio
trabalhou a sua reeleição para ser o líder da sigla no ano seguinte. Os acordos aconteceram,
principalmente, com o PSDB do estado do Ceará, além do apoio das pequenas bancadas e
com os deputados recém-eleitos nas eleições federais de 1998.
Em todos estes momentos citados, podemos enxergar uma outra postura atribuída a
Aécio Neves. A articulação política estava presente, mas elas não vinculava-se a uma ação
conciliadora e sim disputa de poder. O tucano envolveu-se em negociações para buscar um
controle de certas situações, como, por exemplo, em esferas que fogem do seu mandato como
é o caso a disputa do senado no Ceará.

5. Considerações Finais
Diante da discussão teórica e da análise das matérias do jornal Folha de S. Paulo,
pode-se chegar a algumas reflexões importantes. A mídia acrescenta ao campo político um
caráter espetacular, exigindo a adequação às suas linguagens e métodos. Outro ponto
encontrado está ligado às identidades construídas na contemporaneidade. Fica cada vez mais
evidente a construção de identidades híbridas e o papel que a mídia possui no reforço da
construção e ou desconstrução dessas identidades. Tal afirmativa relaciona-se ao fato de que
a mídia tem poder para legitimar ou não um determinado discurso político, uma vez que a
forma como a informação é divulgada impactará na formação da opinião da população em
geral. Dessa forma, pode-se afirmar que os jornais, por exemplo, são atores relevantes no
reforço de construções de identidades.
Ao analisar as notícias do Folha de S. Paulo, pode-se encontrar atributos ligados ao
conceito de mineiridade para descrever a figura pública de Aécio Neves no início da sua

367
carreira parlamentar e como estes predicados reforçaram a imagem que o mesmo desejava
projetar. Das 24 notícias analisadas, a grande maioria (87,49%) estavam ligadas a estes
predicados como a cordialidade mineira, a herança familiar, a política conciliadora e papel
de articulação, constatando a afirmação que o político e o jornal acionaram símbolos da
mineiridade para projeção e uma identidade. Porém, especialmente, em momentos em que
uma disputa de poder estava em jogo, o político se distancia de certa forma da cordialidade
e da estabilidade para arranjar acordos em que a um certo controle não fosse “tirado” de
suas mãos.
Diante dos fatos aqui analisados, é possível afirmar que, em decorrência do
personalismo, especialmente dentro do mundo político, o tucano transitou entre outra identidade
não ligada a mineiridade. Esse hibridismo identitário muito se dá como nos aponta Hall (1997),
devido às condições que lhes são dadas. Ou seja, o sujeito não vive apenas com uma
identidade, pois o mesmo sofre interferências dos diversos ambientes que está inserido.
Enfim, a figura de “bom moço” nem sempre esteve presente na trajetória de Aécio Neves,
especialmente em momentos de disputas de poder.

6. Referências Bibliográficas
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cultural do Brasil. Editora Brasiliense, 1990.

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TRAQUINA, Nelson. Estudos do jornalismo no século XX. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001.

369
DO PROTAGONISMO AO ANTAGONISMO: 1
As fake news na desconstrução da imagem política
FROM PROTAGONISM TO ANTAGONISM:
The fake News in the deconstruction of a political image
Licia Frezza Pisa 2
Miguel Quessada 3

Resumo: Na era da pós-verdade, as fake news encontraram eco nas


redes sociais. Depois que um boato cai na rede, ele é proliferado em
uma velocidade recorde e vai ao encontro do viés de confirmação de
quem o propaga. Na esfera política e principalmente em ano
eleitoral, os boatos voltam à tona ao mesclar verdades com mentiras
com o objetivo de enganar e reforçar o preconceito e o ódio daqueles
que são contrários a alguns candidatos. Um meio de se compreender
a construção do discurso veiculado pelas fake news é utilizando a
Análise do Discurso, que compreende o sentido sendo produzido
social e historicamente, perpassado por certas ideologias e
produzindo determinadas imagens. O trabalho analisará a trajetória
da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) e como o discurso das
fake news tem invertido as bandeiras da parlamentar e a colocado
como antagonista no meio em que ela sempre protagonizou suas
principais lutas, invertendo assim, a construção da sua imagem.

Palavras-Chave: Fake news. Boatos. Pós-verdade. Maria do Rosário.


AD.

Introdução

A ideologia e a propaganda nazista foram fundamentais para disseminação do


antissemitismo. Herf (2014), contudo, demonstra que a propaganda encontrou eco porque o
sentimento de antissemita já existia no povo alemão. A disseminação da propaganda utilizava

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho 4 Comunicação e Política do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Licia Frezza Pisa: Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais -
IFSULDEMINAS, Doutora em Comunicação Social, licia.pisa@ifsuldeminas.edu.br
3
Miguel Quessada: Aluno do IFSULDEMINAS, Pós-graduando em Mídias e Educação,
miquessada@yahoo.com.br

370
de todos os recursos disponíveis da época, sendo espalhada por todo tipo de transporte
público, murais e em qualquer lugar que reunisse uma concentração de pessoas. O autor
explica que o regime nazista jamais cansava de afirmar publicamente de que a culpa era dos
judeus e isso era repetido constantemente. Hitler nomeou Goebbels para o ministério da
Propaganda e Otto Dietrich para chefiar e controlar toda a imprensa. Apesar do último
exercer um papel decisivo, somente o primeiro é lembrado pela maioria. Isso deve ao fato de
que Dietrich tentou se livrar da condenação imputando todos os crimes a Goebbls - já morto
na época do julgamento. A ele é atribuída a frase de que uma mentira repetida mil vezes
torna-se verdade. Ou talvez, seja essa frase uma fake news atribuída a ele. É inegável,
contudo, que a disseminação de mentiras contra os judeus reforçou o antissemitismo do povo
alemão.
Traçado um paralelismo com o presente, a repetição de mentiras – principalmente no
âmbito político – corrobora para que as pessoas tomem como verdades aquilo que vem ao
encontro de suas crenças, mesmo carecendo de fontes fidedignas. E uma vez a mentira
tomada como verdade, não é fácil convencer as pessoas de que a informação é falsa. Os
boatos sempre existiram. De acordo com Simões (2017), na informática eles ficaram
conhecidos como hoax. Na comunicação: fake news. Há ainda quem confere o nome de
desnotícia, visto que a linguagem é similar à jornalística. No campo jurídico, a divulgação de
boatos pode ser enquadrada como calúnia, injúria ou difamação. Na linguagem bíblica-cristã
é vista como falso testemunho. Apesar de o termo ser recente, a propagação de mentiras com
a finalidade de prejudicar pessoas e autoridades sempre existiu e manteve registros na história
como forma de comprovação.
Lutar contra as fake news tem sido a tônica das discussões em ano eleitoral. Embora a
legislação preveja criminalizar os que divulgam boatos, é sabido que a velocidade de
propagação das fake news nem se compara a uma ação que é ajuizada. Mais que combater
pelas formas legais, é preciso educar o indivíduo para receptividade das informações que
recebe. Nesse contexto, o artigo mostrará por meio da análise do discurso como uma
parlamentar com pautas voltadas para os direitos humanos, segurança pública e contra a
pedofilia é vítima de boatos com o intuito de tirar o protagonismo da deputada em causas que

371
a deixaram conhecida e como as fake news criadas agem de forma colaborativa a fim de
prejudicar a imagem política da deputada Maria do Rosário (PT-RS).

A pós-verdade e as fake news

Anualmente, o departamento da universidade de Oxford – responsável pela


elaboração de dicionários – elege uma nova palavra. Em 2016, o termo escolhido foi o
substantivo post-truth, que traduzido para o português significa pós-verdade. É creditado ao
dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich o uso do substantivo pela primeira vez em um
ensaio para a revista The Nation. O dicionário reconhece que o termo pode ter sido usado
anteriormente, mas não com o sentido que lhe é atribuído na atualidade conforme descrito
pelo dicionário: "qualidade de aparência ou ser sentida como verdadeira, mesmo que não
necessariamente verdadeira". O termo pós nesse caso não se refere a uma época depois da
verdade, mas a um contexto em que a verdade é irrelevante, principalmente no âmbito
político. Em relação ao ano de 2015, o uso da palavra na Internet aumentou dois mil por
cento devido ao contexto do Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) e da eleição
dos EUA. Ambos os acontecimentos foram alimentados por hoax. O portal Potilize 4 mostrou
que 33 das 50 fake news mais disseminadas no Facebook estavam relacionadas à política.
Em monitoramento realizado pelos economistas Hunt Allcot e Matthew Gentzkow 5 foi
constatado que as postagens pró-Trump foram compartilhadas 30 milhões de vezes ao passo
que as pró-Hillary atingiram apenas 8 milhões de compartilhamentos. Boatos como o que o
Papa Francisco apoiava Trump e que o presidenciável oferecia uma passagem de ida à África
e ao México foram alvos de grande interação por parte dos internautas.
No mesmo ano, a revista britânica The Economist publicava um artigo chamado a
Arte da Mentira. Nele, a verdade é vista como secundária e o objetivo é reforçar
preconceitos, tendo como protagonista Donald Trump. A revista o considera como o
exponencial da pós-verdade e diz que habita em um mundo fantástico em que a certidão de
Obama foi falsificada, que os Clintons são assassinos entre outras declarações. O periódico

4
MERELES, Carla. Notícias Falsas e Pós-Verdade: o mundo das Fake-news e da (Des)informação. Disponível
em: < http://www.politize.com.br/noticias-falsas-pos-verdade/> Acesso em 20 dez. 2017.
5
VENTURINI, Lilian. Qual o impacto das fake News sobre o eleitor dos EUA, segundo este estudo. Disponível
em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/01/14/Qual-o-impacto-das-fake-news-sobre-o-eleitor-dos-
EUA-segundo-este-estudo) Acesso em 20 de fev.2018

372
define a pós-verdade e a relação dela com Trump como “a reliance on assertions that “feel
true” but have no basis in fact. His brazenness is not punished, but taken as evidence of his
willingness to stand up to elite power”. 6 Dessa forma, nas campanhas eleitorais, o que
importa são os sentimentos e não os fatos. A revista havia feito uma previsão que caso
Trump perdesse as eleições, a pós-verdade não seria tão ameaçadora quando comparada a
países como Rússia e Turquia, em que os autocratas usam essas técnicas para calar os
oponentes. O fato é o Donald Trump tornou-se o 45° presidente dos EUA e ele acusa a
maioria da imprensa estadunidense de desonestidade e de servirem à oposição. O portal G1 7
mostrou que no fim de 2017, ele organizou um concurso a fim de coroar o rei das notícias
falsas e apresentou três candidaturas: CNN, ABC e a revista Time. As categorias são: notícia
falsa, mais falsa e a mais falsa, visto que os três órgãos de imprensa tiveram que retificar
matérias que publicaram sobre o então presidenciável.
A revista Super Interessante 8 realizou um balanço das palavras e expressões que
marcaram 2017, e entre os termos apresentados, apareceu fake news, que foi consolidada
com a eleição de Trump. Se em 2016, o dicionário de Oxford escolheu a post-true como
palavra do ano, em 2017 o dicionário Collins elegeu as fake news como a expressão que
sintetizou o ano, visto que houve um aumento de 365% do uso da palavra. O periódico
ainda cita o estudo da FGV que apontou que nas eleições de 2014 mais de 10% das
interações nas redes sociais foi realizado por contas automatizadas. O estudo vem ao
encontro da reportagem produzida pela BBC 9, que mostrou que foi utilizado um exército de
perfis falsos para influenciarem as eleições do país. A revista Época 10 abordou que em 2017
as fake news viraram notícias e que elas foram usadas para manipular as eleições. Diante da

6 6
Tradução: uma confiança em afirmações que parecem verdadeiras, mas não têm base em fatos. Sua ousadia
em não ser punida, mas tomada como prova de sua disposição ao enfrentar o poder da elite.
7
Disponível em: < https://g1.globo.com/mundo/noticia/trump-organiza-concurso-para-coroar-o-rei-das-noticias-
falsas.ghtml> Acesso em 10 de jan. 2018
8
ELER, Guilherme. As palavras e expressões que marcaram 2017. Disponível em : <
https://super.abril.com.br/sociedade/as-palavras-e-expressoes-que-marcaram-2017/> Acesso em 11 jan. 2018
9
GRAGNANI, Juliana. Exclusivo: Investigação revela exército de perfis falsos usados para influenciar as
eleições no Brasil. Disponível em < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-42172146> Acesso em 12 jan.2018.
10
EPOCA. Retrospectiva 2019: o ano em que as fake News viraram notícias. Disponível em<
https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2017/12/retrospectiva-2017-o-ano-que-fake-news-viraram-
noticia.html> Acesso em 13 de jan. 2018

373
crise da indústria do jornalismo, as fact-checking - agências de jornalismo especializadas em
checar informações - ganharam espaço.
O dicionário Collins 11 define fake news como informações falsas, muitas vezes
sensacionalistas, divulgadas para enganar leitores. Simões (2017) aponta hoax como
sinônimo de fake news, sendo que o primeiro uso é ligado à informática e o segundo à
comunicação, mas ambos podem ser usados para abordar mentiras na Internet. Soprana e
Valera (2018) esclarecem que o termo fake news está sujeito a interpretações de várias
nuances: “a depender do contexto pode significar informação imprecisa, manchete
sensacionalista, peça humorística, charge irônica, discurso de ódio ou conteúdo
propagandístico 12” (online). Tardáguila (2018) admite que o termo não dá conta de sua
abrangência. Apesar de difundida, a consultoria Ideia Big Data mostra que 45% dos
brasileiros nunca ouviram falar no termo. Mas nem tudo está perdido. A mesma consultoria
revela que 67% dos brasileiros busca a imprensa para saber se uma informação é verídica ou
não.

Boatos: História e propagação

DiFonso (2009) classifica os boatos como afirmações sobre informações não


verificadas que circulam em relação a assuntos que pessoas consideram importantes; surgem
em situações de ambiguidade, ameaça real ou potencial e são usados por pessoas que tentam
compreender ou gerenciar riscos. Para o autor, são atos de comunicação.
Darnton (2012) traz em sua pesquisa que os libelos informavam uma população
alfabetizada e semialfabetizada da França produzindo calúnias contra as figuras públicas. O
autor afirma que “calúnia e difamação sempre foram um negócio sórdido [...] Ao destruírem
reputações, ajudaram a deslegitimar regimes e derrubar governos em diversas épocas e
lugares” (p. 20). Os libelistas afirmavam que havia notícias falsas e verdadeiras e que isso de

11
VEJA. Fake News é eleita a palavra do ano por dicionário Collins Disponível em <
https://veja.abril.com.br/mundo/fake-news-e-eleita-palavra-do-ano-por-dicionario-collins/> Acesso em 14 de
jan. 2018
12
SOPRANO, Paula; VALERA, Gabriela. Ecos da Guerra aos Fatos. Disponível em: <
https://epoca.globo.com/tecnologia/experiencias-digitais/noticia/2018/01/ecos-da-guerra-aos-fatos.html> Acesso
em 20 jan. 2018

374
certa forma cabia ao leitor descobrir o que era boato ou não da vida sexual e política dos
atores ligados à

igreja, à monarquia, à polícia e a toda esfera de poder. E mesmo toda a repressão policial
mostrou incapaz de conter os boatos. Em alguns casos, o contratado para investigar os
libelistas era o próprio criador das mentiras.
O registro da calúnia, contudo, é muito anterior à Idade Média. Matheus (2016)
explica que o historiador Tácito (55-120) considerava as notícias falsas como um fator
histórico, visto que ele falava das forças dos boatos, pois as pessoas fingem enquanto
acreditam, fantasiam e acreditam, ou ainda, imaginam e ao mesmo tempo acreditam nas
próprias imaginações. Mais antigo ainda que Tácito, são os escritos bíblicos. Os judeus, por
exemplo, eram frequentemente alertados, inclusive um dos dez mandamentos é sobre a
calúnia: “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Ex. 20:13). Mais adiante consta
outra declaração: “Não espalharás notícias falsas, nem darás a mão ao ímpio para seres
testemunha de injustiça” (Ex.23:1). Entretanto, as advertências são repetidas em outros livros
da Bíblia, como Provérbios em que diz: “O homem perverso provoca dissensão, e o que
espalha boatos afasta bons amigos” (Pv. 16:28). A bíblia deixou um legado de versos que
tratam a respeito da calúnia e do perigo para aqueles que dela utilizam. O Papa Francisco foi
mais além e comparou as notícias falsas como táticas de cobra ao dizer que a primeira fake
news foi dita pela serpente. Para o pontífice, elas são um sinal de atitudes intolerantes e
hipersensíveis e levam apenas a difusão de arrogância e ódio, o que seria o resultado final da
mentira.
DiFonzo (2009) afirma que as pessoas aceitam qualquer tipo de informação não
apenas por serem ingênuas, mas por alimentar as relações sociais e fortificar as opiniões
anteriores. Os boatos são classificados pela tensão emocional que provocam três tipos
sensações: esperança, medo e ódio. E o que o autor chama de viés negativo é o responsável
para a tendência humana dar mais crédito a uma informação negativa do que uma positiva.
Na política, os boatos têm o propósito de justificar o preconceito em relação ao grupo rival. E
não pode cair na ingenuidade de acreditar que as pessoas que compartilham boatos são
ingênuas ou desprovidas de inteligência. Apesar de não usar o conceito de viés de
confirmação, DiFonzo atribui que as pessoas compartilham o boato porque "ele está em

375
consonância com os sentimentos, ideias, atitudes, estereótipos, preconceitos, opiniões ou
condutas dos ouvintes de forma que o ouvinte está em uma condição favorável à aceitação do
boato” (p. 120). Já Sundar (2018) explica que o fenômeno psicológico do viés da
confirmação corresponde à tendência

inata de acreditar em informações que confirmam ou correspondam às nossas crenças ou


concepções. De forma diferente dos jornalistas, que procuram diferentes lados de uma
história, os consumidores de notícias são impulsionados pelo desejo de preservar o próprio
ego, facilitando assim a crença em boatos que se adaptam às suas convicções.
Fernandez (2018) aponta que o leitor deve participar de maneira crítica no consumo
de notícias, já que ele possui o direito de receber uma informação verdadeira e deve criticar o
que produz notícia falsa. Com base no estudo realizado pela Pew Research 13 acerva das
eleições presidenciais nos EUA, foi constado que 14% dos que divulgaram hoax pela rede,
fizeram sabendo que a informação era falsa. Por isso, além de fornecer ferramentas básicas
para avaliar a credibilidade de uma notícia, é preciso oferecer uma perspectiva cívica que
deve começar na escola por meio da alfabetização midiática. Como a maioria dos jovens usa
as redes sociais para conquistar o acesso à informação, a autora defende que a alfabetização
midiática deva fazer parte do currículo escolar de modo que se forneça aos jovens as
ferramentas para que avaliem a qualidade de informação e que já existem diversas iniciativas
nesse sentido, mas que não se pode ser restrito apenas às escolas, mas aos veículos de
informação também. E ela vê na rede mais que um lugar de amplificação de notícias falsas,
mas a oportunidade de lutar contra essas notícias e de conseguir um jornalismo de qualidade.
As falsas informações também atingiram a Igreja a ponto de o Papa Francisco
escrever uma mensagem para o LII dia mundial das comunicações sociais. No documento A
verdade vos tonarás livres: Fake News e jornalismo de paz, o líder máximo da igreja católica
reconhece que ninguém pode se eximir da responsabilidade de contrastar as falsidades e
louva as “iniciativas educativas que permitem aprender como ler e avaliar o contexto

13
Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/01/22/Como-as-%E2%80%98fake-
news%E2%80%99-podem-ser-um-incentivo-%C3%A0-%E2%80%98alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-
midi%C3%A1tica%E2%80%99> Acesso em 23 jan. 2018.

376
comunicativo, ensinando a não ser divulgadores inconscientes de desinformação, mas atores
do seu desvendamento 14”.

O processo de disseminar e consumir informação falsa ou distorcida sem perceber,


devido à ausência de interpretação crítica e checagem de fontes, construindo para infecção
generalizada da desinformação na web é chamado de zumbificação da informação (LEITE;
MATOS 2017). Nessa metáfora, definida pelos autores, há uma proposta de "cura" que
envolve processos individuais de aprendizagem e coletivos de desenvolvimento. Um
problema apontado é que o excesso de informação sobrecarregou o sistema cognitivo e ela
perdeu sua principal finalidade: informar.
Gordon (2018) 15 explica as pessoas que caem em fake news não são apenas fanáticas
por algum candidato ou partido, mas não pensam de forma analítica, ou como o próprio autor
define: são preguiçosas na hora de pensar. O pensamento analítico é a tendência do indivíduo
de questionar as próprias crenças e intuições.

Ativismo nas redes sociais

Tanto Recuero (2009) como Ugarte (2008) resgatam o conceito de Baran (1964) ao
discutirem as três topologias básicas das redes de comunicação: distribuídas, centralizadas e
descentralizadas. Coube a Franco (2008) aplicar o mesmo conceito às redes sociais. Recuero
(2009) traz ainda o conceito de rede igualitária (BARABÁSI, 2003) que se equivale à rede
distribuída, já que cada nó possui mais ou menos o mesmo número de conexões. Ugarte
(2007) explica que nas redes distribuídas – redes de iguais – ninguém depende de ninguém
para levar ao outro a sua mensagem. Essas redes levam vantagem sobre as descentralizadas,
já que não dependem de nenhum filtro para que a informação chegue a outrem. No

14
Disponível em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications/documents/papa-
francesco_20180124_messaggio-comunicazioni-sociali.html> Acesso em 26 jan. 2018
15
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/pesquisador-de-fake-news-atribui-propagacao-de-boatos-
preguica-de-pensar-23179051 Acess0 em 23 nov. 2018

377
jornalismo, o autor já sinalizava o fim do modelo tradicional da fábrica de notícias, já que as
fontes não estão disponíveis apenas aos jornalistas, e cabe a ele, a análise e a interpretação
das fontes. As redes distribuídas permitiram autonomia ao usuário e ao romper a divisão
“entre emissores e receptores, a nova estrutura da informação acaba com o jornalista como
técnico especializado, fazendo, de cada um, um jornalista do seu próprio meio” (p. 30).

Ugarte (2008) aborda ainda o desenvolvimento do ciberativismo, que é gerado no


discurso, nas ferramentas e na visibilidade. “Um ciberativista é alguém que utiliza Internet, e,
sobretudo, a blogosfera, para difundir um discurso e colocar à disposição pública ferramentas
que devolvam às pessoas o poder e a visibilidade que hoje são monopolizadas pelas
instituições (p. 42)”. O ciberativismo é visto como uma estratégia para que outros tomem
conhecimento daquilo que publicamos.
O advento da Internet, conforme mostra Recuero (2009, p. 24) trouxe a possibilidade
de expressão e sociabilização através das ferramentas de comunicação mediada pelo
computador (CMC). A rede social – composta de atores e suas conexões – permite a conexão
de um grupo social. Ela traz dois conceitos que explicam a manutenção da rede social pelos
autores. O primeiro é o imperativo da visibilidade (SIBILIA, 2003), que é a necessidade de
exposição pessoal que exacerba o individualismo e de que precisa ser visto para existir no
ciberespaço. Outra ideia é a de Donath (1999) que defende que a percepção do outro é
essencial para interação humana.
Mais que expressar e sociabilizar, as redes sociais difundiram informações por meio
das conexões entre os atores de modo mais rápido e interativo. Muitas das informações são
difundidas de forma epidêmica e alcançam grandes proporções, que na visão de Barabási
(1964), é consequência da existência de indivíduos bem conectados nas redes sociais. A
difusão de informações nas redes leva em conta o capital social relacional e o cognitivo. Este
último tem a intenção de informar ou gerar conhecimento. Um exemplo abordado por
Recuero – uma fake news, apesar da autora não utilizar o termo – foi a de que o Orkut seria
pago. Isso fez com que “as pessoas sentissem na obrigação de repassá-la aos seus conhecidos,
para que todos soubessem do fato (p.120)”. O crescimento da Internet também foi abordado
por Difonzo (2008) na perspectiva dos boatos. A Internet preparou o caminho para a

378
disseminação de boatos desprovidos de fundamento, mas também permitiu às pessoas a
possibilidade de verificarem os fatos.
Karnal (2018) explica que a Internet facilita a vida de quem odeia e permitiu aos
idiotas a construção de um bloco expressivo. Para ela, a Internet não transformou ninguém
em pessoas odiosas, mas gerou tranquilidade na disseminação do ódio do covarde, dando-lhe
“proteção da distância física e do anonimato. O pior do ódio social, que é universal, agora

pode ser dirigido sem custos (p.8).” Além da dist6âncua e do anonimato, há a possibilidade
de dialogar com todas as pessoas sem a necessidade da veracidade já que “a mentira é usada
por alguém que tem noção da verdade. Quando minto, falto com a verdade. A pós-verdade é
quando não considero isso relevante. Não importa saber se é verdade. O que importa é a sua
eficácia (p.109).”

Quem fabrica e quem desmente os boatos

Lopes e Matsuki (2016) listaram alguns sites de cunho humorístico que produzem
notícias falsas com intuito de divertir, mas que muitas vezes são levados a sério e as pessoas
compartilham os boatos como se fossem verdades. O maior portal desse tipo é o
Sensacionalista, que é parceiro da UOL, da Veja e produz diariamente diversos boatos. Outro
portal é o Joselito Muller, considerado por Lopes 16 como um site especializado em notícias
políticas. Já Matsuki 17 o considera como o site mais polêmico e especialista em produzir fake
news contra políticos de esquerda. Há ainda os sites G17 18, Sacizento 19, Enfu 20, entre outros.
Para Lopes, o layout jornalístico desses sites corrobora para que o leitor acredite na história.
Esses sites veiculam anúncios e se enquadram no grupo que fabrica mentira para obter uma
vantagem pecuniária. Usar o boato para obter dinheiro era um recurso usado pelos libelistas
na Europa que, em alguns casos, enriqueceram ao difamar os poderosos (DARNTON, 2012).

16
LOPES, H. Gilmar. Disponível em: < http://www.e-farsas.com/arquivo-htm> Acesso em 18 de jan. 2018
17
MATSUKI, Edgar. Para curtir e não acreditar. 7 sites de notícias falsas que enganam os incautos. Disponível
em: < http://www.boatos.org/brasil/7-sites-de-noticias-falsas-que-enganam-incautos.html> Acesso em 19 jan.
2018
18
Disponível em:< http://www.g17.com.br/> Acesso em 20 de jan. 2018
19
Disponível em:< http://sacizento.bol.uol.com.br> Acesso em 20 de jan. 2018
20
Disponível em: < https://www.enfu.com.br/> Acesso em 20 de jan. 2018

379
Bergmasco, Bronzatto e Gonçalves (2018) além de reconhecerem o grupo que visa ao
dinheiro por meio de anúncio, também admitem que entre os propagadores há os “militantes
empenhados em atacar a reputação dos adversários políticos de seus candidatos” (Revista
Veja, 51, p. 44). Seja com viés pecuniário ou político, as agências de fact-checking fazem o
papel checar os fatos, isto é, um confrontamento de histórias com dados, pesquisas e registros
(Agência Pública, 2017). O início dessa prática remonta ao ano de 1991, quando o jornalista
Brooks Jackson recebeu a missão de checar as informações dos candidatos à presidência dos

EUA: George Bush e Bill Clinton em 2003. No Brasil, a pioneira é agência Lupa, que desde
2004 atua com checagem das notícias. Além de identificar o que é verdadeiro ou falso, ela
lista as frases que analisa com oito etiquetas, a saber: verdadeiro (a informação está
comprovadamente correta); verdadeiro, mas (a informação está correta, mas o leitor merece
mais explicações); ainda é cedo para dizer (a informação pode vir a ser verdadeira. Ainda não
é); exagerado (a informação está no caminho correto, mas houve exagero); contraditório (a
informação contradiz outra difundida antes pela mesma fonte); insustentável (não dados
públicos que comprovem a informação), falso (a informação está comprovadamente
incorreta) e de olho (em monitoramento).
Outros dois exemplos de fact-checking são os sites Boatos 21 e o E-farsa 22, gerenciados
por Edgard Matsuki e Lopes, respectivamente. A Veja possui o blog Me engana que eu
posto 23, comandado pelo jornalista João Pedroso de Campos. Há também o Aos Fatos 24 que é
especializado em analisar os fatos políticos e, à semelhança da Lupa, também faz uma
classificação nas declarações da seguinte forma: verdadeiro, impreciso, exagerado,
contraditório, insustentável e falso. Matsuki (2018) lista algumas características para
identificação de um hoax e que a forma como os textos são elaborados conferem sucesso ao
boato. Informações exatas como datas tendem a perder a validade. Já textos que trazem a data
como um amanhã circulam por mais tempo. Pedido de compartilhamento e caráter alarmista
também são sinais de que o texto pode ser falso. Por fim, cita quatro características de ouro:
“textos vagos (sem citar fontes, locais ou datas), alarmistas, com pedido de compartilhamento

21
Disponível em: < http://www.boatos.org/> Acesso em 22 jan. 2018
22
Disponível em: < http://www.e-farsas.com/> Acesso em 22 jan. 2018
23
Disponível em: < https://veja.abril.com.br/blog/me-engana-que-eu-posto/> Acesso em 22 jan. 2018
24
Disponível em: < https://aosfatos.org/> Acesso em 22 jan. 2018

380
e com erros de ortografia. A última característica denota que muitas pessoas que criam os
boatos não têm o domínio da norma culta da língua portuguesa” (online).

As fake news envolvendo Maria do Rosário

Conforme informa o site do partido dos Trabalhadores 25, Maria do Rosário foi eleita
deputada estadual no em 1998 e posteriormente deputada federal nas próximas legislaturas:

2002, 2006, 2010, 2014 e 2018. Na Câmara Federal atuou como relatora da CPI Mista que
investigou redes de exploração sexual de crianças e adolescentes. No ano de 2011, no então
governo Dilma Roussef, ela assumiu o ministério dos Direitos Humanos.
Em 2013, começaram os primeiros boatos contra a parlamentar. Para combater as fake
news, a deputada criou em seu site a seção Compartilhe a Verdade em que ela desmente
todos os boatos produzidos. Há fake news que a própria equipe da parlamentar desmente e
outras que constam os links de agências de fact-checking como Boatos e E-Farsas
desmentindo as notícias falsas. A seguir há um quadro com 17 boatos espalhados entre os
anos de 2013 e 2018 que foram desmentidos tanto pela deputada como pelas agências
verificadoras. Entre as leis aprovadas, são de autoria da deputada:
 Lei que define a exploração sexual como crime hediondo (Lei 12.798 / 2013).
 Lei dos Crimes Sexuais (Lei 12015/2009)
 Aumento das penas nos crimes sexuais contra crianças e adolescentes
(107642003)
 Lei do aumento da pena nos crimes de homicídio e lesão corporal contra
agentes públicos (Lei 13.142/2015)
 Lei da Escuta Protegida (13.431/2017)

Boato Ano Origem Tema Envolvido Características

1. Maria do 2013 Joselito Muller Segurança Pública e Após um bandido ser


Rosário se Direitos Humanos baleado, a ministra
comove com prestava solidariedade ao
vídeo de bandido ladrão.
sendo baleado

25
Disponível em:< http://www.pt.org.br/maria-do-rosario> Acesso em 23 de out. 2018

381
2. Maria do 2013 Desconhecida Segurança Pública e Se o PM não tivesse
Rosário critica PM Direitos Humanos matado os 3 assaltantes,
que matou 3 não haveria três famílias
assaltantes chorando.
3. Maria do 2014 Joselito Muller Redução da maioridade Após a se arrepender de
Rosário confunde penal uma fala, ela pega o
controle remoto controle e finge falar ao
com celular. celular para não dar
entrevista.
4. Deputada quer 2015 G1News5 Segurança Pública Com a proibição da defesa
proibir o uso da pessoal, as vítimas não
defesa pessoal e reagiriam aos
alguns tipos de “desassistidos (bandidos”
luta
5. Susana 2015 A autoria foi do Direitos Humanos e O boato dizia que os
Richthofen ao sair site Joselito Muller Segurança Pública ativistas dos Direitos
da prisão é Humanos haviam recebido
recebida por Susane ao sair da prisão.
Maria do Rosário
6. Susana 2015 A autoria foi do Direitos Humanos e O boato dizia que os
Richthofen ao sair site Joselito Muller Segurança Pública ativistas dos Direitos
da prisão é Humanos haviam recebido
recebida por Susane ao sair da prisão.
Maria do Rosário
7. Maria do 2015 Desconhecida Segurança Pública Ela fez um apelo às
Rosário pede que famílias para que
famílias recebam recebessem presos na ceia
presos na Ceia do de Natal.
Natal.
8. Maria do 2016 Notícias policias Segurança Pública O projeto tem como
Rosário quer do Brasil objetivo impedir a morte
proibir a de bandidos que invadem
instalação de cerca as residências.
elétrica.
9. Ministra dos 2016 Desconhecida Segurança Pública e A deputada teria exigido
DH pede Direitos Humanos rápida indenização às
indenização aos famílias que tiveram os
presos mortos em seus presos mortos.
Manaus
10. Maria do 2017 Desconhecida Estupro O perdão se justificaria
Rosário perdoaria visto que os estupradores
um estuprador, são frágeis e
caso fosse desequilibrados.
estuprada.

11. Deputada 2017 Juntos pelo Brasil Segurança Pública e A deputada exigia
exigiu explicações Direitos Humanos explicações pela
pelos 10 bandidos “brutalidade” cometida
mortos pela com os bandidos
polícia.

12. Wyllys 2017 Desconhecida Pedofilia Um cartaz nas mãos da


(PSOL-RJ) e a parlamentar em que dizia
deputada Maria do que a pedofilia não era
Rosário (PT-RS) crime, mas doença.
propuseram um

382
projeto para
descriminalizar a
pedofilia.
13. Maria do 2017 Desconhecida Segurança Pública O decreto prevê janelas
Rosário cria maiores para proteger as
decreto após vítimas da sociedade
ladrão morrer em
janela
14. Maria do 2017 Informe Rondônia Segurança Pública e A deputada garantiria mais
rosário quer fechar Direitos Humanos direitos aos presos como o
acordo com o aumento do auxílio
PCC e FDN reclusão
15. Projeto de lei 2017 Sociedade Oculta “Ideologia” de Gênero Apesar da autoria não ser
prevê uso de da deputada, há uma foto
uniformes unissex dela com Jean Wyllys na
nas escolas chamada
16. Maria do 2018 Desconhecida Segurança Pública, Mostra que a deputada é
Rosário diz que Tráfico e Intervenção contra a intervenção
traficantes Militar militar e apoia o tráfico
precisam de
diálogo, na do
exército com
armas.
17. Maria do 2018 Desconhecida Segurança Pública e A deputada ainda
Rosário contratou Diretos Humanos considerava a facada em
advogado para Jair Bolsonaro como um
defender Adélio arranhão.
Bispo

Considerações Finais

É possível perceber, como aponta DiFonzo (2009), que as notícias atribuídas


carregam um teor emocional de medo e ódio, dividindo a sociedade entre mocinhos e
bandidos, enaltecendo a dicotomia bem e mal, sem um olhar de empatia para uma sociedade
complexa como a brasileira, que traz traços da maneira como foi sendo desigualmente
constituída. Medo da sociedade civil perante os bandidos e ódio aos bandidos e à deputada
que defende os Direitos Humanos para todos são discursos que encontram eco na lógica de se
acreditar nas próprias crenças e, por isso, são fortalecidas pela sociedade. O teor das fake
news difunde informações que são contrárias as que a deputada defende, pois propõe que os
direitos humanos devem ser para todos, principalmente para pessoas que tiveram uma vida
medíocre e sem acesso à quase nada previsto na constituição. O lado humano toma lugar do
lado perverso e isso é que fortalece a ideia negativa e contrária proposta nas notícias falsas.

383
Referências

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São Paulo. Sociedade Bíblica Brasileira, 1993
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<https://apublica.org/2017/06/truco-o-que-e-fact-checking/> Acesso em 19 de jan. 2018.
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influenciar as eleições no Brasil. Disponível em < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-
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(entrevista por e-mail)
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384
UGARTE, David de. O poder das redes: Manual ilustrado para pessoas, organizações e
empresas chamadas a praticar o ciberativismo. Tradução de Glenda Ávila e Oriana Jara.
[2008]. Acesso em 24 de dez. 2017.
VEJA. São Paulo: Abril, edição 2565, ano 51, n. 3, 17 de janeiro de 2018. 100 p.
TARTÁGUILA, Cristina; ORTELADO, Pablo. Entrevista concedida à CBN. São Paulo, 4 de
jan. De 2018 Disponível em <https://soundcloud.com/lupanews/polarizacao-politica-e-redes-
sociais-propiciam-aumento-das-fake-news>.

385
ENQUADRANDO BOLSONARO: 1
Greg News e a imagem do presidenciável

FRAMING BOLSONARO:
Greg News and the image of the presidential
Paulo Henrique Basilio Santana 2
Waldinéia Stefane Ferreira de Oliveira Costar 3

Resumo
Diante de um cenário caótico na política e na democracia surge Jair Bolsonaro (PSL) com seu discurso
violento, intolerante e preconceituoso, tentando alcançar a presidência do Brasil. Este artigo tem como objetivo
analisar como o candidato é enquadrado pelo programa Greg News de Gregório Duviver na HBO Brasil, num
programa exibido no dia 6 de julho de 2018, que segue uma linha diferente da já utilizada por outros nos meios
de comunicação. Observaremos tal questão através da imagem desenvolvida do deputado federal por meio do
enquadramento. Seguiremos linhas de conceitos como: enquadramento (GOFFMAN, 2012) , comunicação
política (GOMES, 2004). De antemão, podemos perceber que Duvivier tenta entender o interesse dos eleitores
em Bolsonaro e, seguindo a lógica deles, o apresentador mostra vários dados e novos candidatos ao público. O
jornalista usa de fatos para apresentar o deputado, como suas próprias falas e sua repercussão na sociedade.

Palavras-Chave: Enquadramento. Imagem Pública, Celebridade Política, Jair


Bolsonaro.

1. Introdução
Veiculado pela emissora de televisão fechada HBO, o programa Greg News estreou
no Brasil em maio de 2017, e se apresentou como um programa destinado a falar de notícias
relacionadas a política em um tom humorístico. Segundo a HBO o programa apresenta temas
importantes sobre o Brasil e o mundo de forma irreverente e humorística, com base na
interpretação de Gregório Duvivier, âncora da atração. Vale ressaltar que a HBO destaca que
apesar do tom cômico adotado no programa, todas notícias veiculadas serão contextualizadas

1
Artigo apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação & Política do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018
2
Mestrando pelo PPGCOM da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas). E-mail:
paulobasilio28@gmail.com..
3
Mestranda pelo PPGCOM da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMinas). E-mail:
waldineia_stefany@hotmail.com

386
e baseadas em fontes comprobatórias sobre o assunto abordado, um reforço dessa perspectiva
é o slogam do programa que diz que, “Humor é coisa séria”.
A segunda temporada do programa, começou a ser exibida em março de 2018 e no dia
06 de julho de 2018 o Greg News apresentou sobre o tema Bolsonaro. No começo do vídeo,
já fica destacado a forma de enquadramento que a temática será trabalhada, e isso é reforçado
na descrição textual do vídeo no Youtube, que expõe a frase “O programa da semana é para
você que me odeia. Vamos falar do Bolsonaro?” (HBO, 2017).
Como base nos pontos levantados, o objetivo do presente artigo é entender como o
programa enquadra Bolsonaro, agregando (ou não) status à sua imagem pública, bem como
manter sua condição de celebridade política. A intenção não é verificar o quão efetivo esse
episódio foi para a sua vitória, mas sim tentar apreender como ele é enquadrado e como essa
tentativa se fez na televisão.
Nessa tentativa, vamos abordar as noções de enquadramento, performance, imagem
pública e celebridade política. Para a nossa metodologia, decidimos por uma análise de
conteúdo, a qual trabalhamos com categorias para melhor observação do objeto.

2. Enquadramento e Performance
De acordo com Goffman (2012), em sua experiência cotidiana, os sujeitos acionam
“quadros” mentais que os permitem definir o tipo de situação em que se encontram e, dessa
forma, de que maneira devem se portar. O enquadramento, portanto, seria a mobilização
desses quadros da experiência. Segundo Goffman (2012) , o acionamento destes quadros nos
permite responder à pergunta: “o que está acontecendo aqui?” A partir do enquadramento dos
acontecimentos, os indivíduos reconhecem o evento em que estão inseridos e adotam uma
postura adequada àquela situação. O enquadramento é o mecanismo que permite, por
exemplo, que uma pessoa, ao se deparar com um grupo de indivíduos sentados em bancos em
uma sala, possa identificar se aquela situação se trata de uma palestra ou de um culto
religioso.
É importante destacar, tal como afirmam França, Silva e Vaz (2014), que os quadros
mobilizados pelos indivíduos não são construções individuais, mas sim fornecidos
culturalmente. São imbuídos de convenções sociais inerentes ao contexto em que os sujeitos
se encontram e internalizados por estes em seu processo de socialização. Estes quadros são
constantemente atualizados e transformados pelos indivíduos no decorrer dos processos

387
comunicativos, de forma que não se configuram como matrizes interpretativas estagnadas e
perpetuamente fixas.
Já o conceito de performance diz da maneira como os sujeitos se dão a ver durante a
interação, na medida em que criam papéis através dos quais se apresentam no processo
comunicativo. Esta é a perspectiva adotada por Goffman, para quem “a própria vida é uma
encenação dramática” (GOFFMAN, 2012, p.124). Desta forma, para o autor, a performance
estaria relacionada a um processo de encenação dos sujeitos, os quais agiriam de forma
calculada durante as interações a fim de causar determinada impressão em seus
interlocutores.
Tanto o conceito de enquadramento quanto o de performance se inter-relacionam. A
partir da definição da situação presente, os indivíduos articulam sua melhor performance para
aquele momento. Schechner (2003) afirma que a vida cotidiana envolve

anos de treinamento e aprendizado de parcelas específicas de comportamento e requer


a descoberta de como ajustar e exercer as ações de uma vida em relação às
circunstâncias pessoais e comunitárias (SCHECHNER, 2003, p.27).

Dessa forma, o acionamento dos quadros sociais, aprendidos culturalmente, orientam


os sujeitos a desempenhar sua melhor performance para as situações dadas. Em sua obra
Footing, Goffman (1981) trata da postura ou posicionamento dos interlocutores engajados em
uma interação, tal como explica Simões: “o footing é construído e transformado a partir dos
discursos dos participantes de uma interação e está diretamente ligado aos enquadres dos
acontecimentos” (SIMÕES, 2012, p.190). Goffman (1981), portanto, estuda as alterações de
posicionamento promovidas pelos sujeitos de acordo com a mudança dos quadros de sentido
acionados durante a interação. Uma mudança de enquadramento demanda uma alteração na
performance dos sujeitos, e esta mudança pode ocorrer diversas vezes em uma mesma troca
comunicativa, tal como o próprio autor destaca. Essas mudanças de postura têm muito a ver
com o que os indivíduos em interação esperam uns dos outros em determinada situação, ou
seja, os interlocutores agem de acordo com expectativas criadas durante o contexto da
interação. Esse enquadramento tanto da mídia quanto do próprio sujeito é responsável por
várias produções dentro dessa sociedade midiatizada, como a imagem pública de
celebridades por exemplo.

388
3. Imagem Pública e Celebridade Política
A imagem pública de um sujeito ou um grupo pode ser entendida como “um
complexo de informações, noções, conceitos, partilhados por uma coletividade qualquer, e
que o caracterizam” (GOMES, 2004, p. 254). É válido ressaltar que esse processo está em
constante desenvolvimento e (re)configuração, já que uma “imagem pública não é uma
entidade fixa, definitiva, sempre igual a si mesma e assegurada para todos os seres reais”
(GOMES, 2004, p. 264). Os posicionamentos encarnados pela figura pública, como também
as relações estabelecidas entre ela e outros atores sociais, atuam nesse permanente fazer-se da
imagem pública, que pode ser vista como “o resultado de disputas simbólicas exibidas ao
imaginário coletivo em busca de respostas” (WEBER, 2009, p. 12). Esse processo de
constituição se realiza, em grande medida, através dos discursos midiáticos.

A imagem pública nos chega como nos chega o mundo: mediado pelo sistema
institucional e expressivo da comunicação, instrumento predominante onde e por
onde se realiza a visibilidade social. Novos instrumentos de produção, gerenciamento
e circulação da imagem, praticamente fora do controle direto dos indivíduos e dos
grupos de convivência, transformam qualitativamente o próprio objeto “imagem
pública”. A comunicação de massa, que é também sujeito de interesses sociais e, às
vezes, políticos, organiza e cifra os materiais que nela circulam segundo lógicas e
princípios muito específicos (GOMES, 2004, p. 264).

Entendemos por imagem pública, tendo como referência Gomes (2004), o


aglomerado de informações, conceitos e noções que partilhamos coletivamente acerca do
sujeito político. Para Gomes “no caso das imagens públicas não lidamos propriamente com
pessoas, mas com persona e/ou máscaras teatrais, não lidamos com a formação de uma ideia
sobre alguém originada pelos anos de convivência, mas com o processo psicológico e social
de caracterização” (GOMES, 2004, p. 258). Esta ideia reforça o que Simões (2012) e França
(2014) têm falado acerca da inferência da mídia na produção das celebridades, a imagem é
perpassada pelo meio midiático. O processo social e psicológico de caracterização é
desenvolvido no dia-a-dia por meio das imagens que nos são transmitidas pela televisão, dos
artigos que lemos nos jornais, das fofoquices presentes nas revistas acerca da vida das
celebridades, das conversas e discussões com o grupo de amigos de todo o processo de
midiático presente em nossa sociedade,. Gomes (2004) ainda nos apresenta outra
característica da imagem pública, ao dizer que “a imagem pública do ideal é tão-somente o
conjunto de propriedades que um público considera dever existir em uma pessoa ou

389
instituição para que esta seja capaz de cumprir adequadamente determinada função real”
(GOMES, 2004, p. 274).
Baseando em Gomes (2004), a adoração da personalidade baseia-se numa verdade
aparente uma vez que, adoramos uma imagem e não o sujeito em si. Sendo assim, a
personalidade política necessita criar uma aura de boa reputação. O sucesso de sua carreira
(política e célebre) depende disso. Os seus atos são deixados para segundo plano e muitas
vezes “camuflados” por acontecimentos acerca da esfera pessoal da personalidade política. A
ordem é a criação de um “bom nome” e de uma imagem ideal capaz de seduzir os cidadãos.
A reputação é o que torna a personalidade política credível, acreditável e louvada pelo povo.
Segundo Sennett (1992) “o político ao focar a nossa atenção nos seus impulsos torna-se um
líder plausível porque dá a aparência de possuir um comportamento espontâneo de acordo
com esses impulsos e ao mesmo tempo consegue manter o controlo de si mesmo” (SENETT,
1992, p. 270), acrescentando que “quando este controle espontâneo é alcançado, os impulsos
parecem reais, portanto, o político é alguém em que podemos acreditar” (SENETT, 1992, p.
270). Portanto, a celebridade política precisa, constantemente, ter cautela na condução e
manutenção de sua imagem pública, uma vez que seu sucesso é realizado nessa produção.
É nesse sentido que a visibilidade midiática tem uma função indispensável na
configuração da imagem pública. Ela deve ser pensada não apenas como “um meio pelo qual
aspectos da vida social e política são levados ao conhecimento dos outros: ela se tornou o
fundamento pelo qual as lutas sociais e políticas são articuladas e se desenrolam”
(THOMPSON, 2008, p. 37). No entanto, é fundamental destacar que a constituição da
imagem pública não tem seu fim nos limites dos dispositivos midiáticos. Afinal, “a imagem
pública começa a existir apenas na recepção, ainda que certamente possa ser programada — e
frequentemente o seja — na emissão” (GOMES, 2004, p. 267. Grifo do autor). É na estreita
interlocução entre mídia e sociedade que a imagem pública é constituída, sustentada,
controlada, atualizada e/ou modificada. E é nesse embate simbólico no cenário de
visibilidade contemporâneo que as celebridades se constituem.
Para John Street (2004) - um dos pioneiros em observar as celebridade políticas -
existem duas distinções a respeito das celebridades políticas (CP): as celebridades políticas 1
(CP1) e as celebridades políticas 2 (CP2). As CP1 se referem aos políticos eleitos que
anteriormente atuavam em outra área que não a política, ou ainda políticos que usam a
imagem de celebridades para endossar algum argumento. Ou seja, congressistas que se

390
tornam célebres e usam desse status para levantar público em vez de propostas efetivas para o
povo, são vistos da mesma forma que pessoas já célebres que tentam pleitear um cargo
público. Podemos usar alguns exemplos internacionais e nacionais para trazer mais clareza ao
conceito, Donald Trump, Arnold Schwarzenegger, João Dória (PSDB), Alexandre Frota
(PSL), Jean Wyllys (PSOL) e Jair Bolsonaro (PSL). Já, as CP2 são as celebridades que usam
sua visibilidade midiática para debater questões públicas e políticas, não estando atreladas a
cargos da esfera decisória institucional, mas são assim classificadas por apoiarem o debate
aberto de argumentos sociais relevantes e representarem de algum modo um movimento
social, mesmo que não em sua completude, como exemplo, podemos apresentar: Beyonce,
Madonna, Letícia Sabatella, Iza, e entre outros.
Street (2004) é um tanto quanto pessimista ao se tratar da inserção de celebridades na
política e tece duas principais críticas quanto a essa realidade. A primeira se relaciona ao fato
de um sujeito ser celebrado não indica que ele possua as qualificações necessárias para
ocupar cargos públicos, e as celebridades na política seriam, na verdade, uma amostra da
crise de representação. Na mesma obra, o autor aponta que ter uma boa postura na televisão e
jogo de negociação são pressupostos que podem e estão solapando as propostas políticas,
quando o contrário seria mais desejado, afinal as propostas políticas de um candidato
deveriam ser mais interessantes no jogo político. Se portar bem na televisão e saber a arte de
negociar seriam praticamente inerentes às celebridades, segundo ele: “Se a democracia
não é nada, mas a legitimação pela forma mais bem-sucedida de comunicação, então
o artista de comunicação é o melhor democrata” (STREET, 2004, p. 439). São
arguições fortes que incomodam e nos impedem de refletir sobre a cultura das celebridades
na política.
A segunda crítica é de ordem narcísica. Há uma atenção exagerada para com a
imagem e aparência dos políticos, em detrimento da expertise que possuem ou deveriam
possuir: “Os políticos se tornaram estrelas, a política torna-se uma serie de espetáculos e os
cidadãos se tornam espectadores” (STREET, 2004, p. 441). Essa crítica não é quanto à boa
vontade, à índole ou ao caráter do candidato, mas sim, quanto à sua representação política,
uma vez que menospreza os conhecimentos mínimos para o fazer político. Ou seja, o quanto
o candidato, ou o congressista tem de conhecimento para exercer o seu cargo, é maior ou o
semelhante à sua popularidade, podemos nos questionar também, sobre qual o real motivo de
sua existência na política: suas propostas sociais ou sua visibilidade. O autor se apoia em

391
outros estudos para críticas duras e complementa que “celebridades não têm o conhecimento
de ou experiência em políticas públicas: questões políticas graves se tornam banalizadas
na tentativa de elevar celebridades a filósofos-celebridades” (STREET, 2004, p. 440). De
fato, essa crítica é muito contundente, uma vez que essas celebridades que alcança a esfera
decisória política podem sim ser despreparadas, tendo com a única ou maior motivação para
receber seus votos o simples fato de ser célebre.
Se apoiando em Street (2004), Mark Wheeler (2013) empenha seus esforços em
entender as celebridades políticas e a celebrização da política. Em sua obra, o autor endossa
as críticas de Street, no entanto não de maneira tão pessimista. Wheeler tenta apresentar
algumas celebridades no campo político que possuem uma função social, porém ele nos
alerta para um entrecruzamento de representação, ou seja, a celebridade que antes era alvo de
identificação e projeção individual, agora se torna alvo desses mesmos itens, no entanto mais
ao lado da esfera pública. Sendo assim, o que projetamos e nos identificamos estamos dando
crédito para um determinado cargo público, e até mesmo o máximo cargo público de um país
e/ou estado, ao passo que essas pessoas concorrem a presidência e governos estaduais.

4. Enquadrando Bolsonaro a partir de Greg News

O programa Greg News é transmitido no canal de televisão por assinatura HBO Brasil
e teve sua estreia em maio de 2017. De acordo com a HBO, o programa é definido como um
espaço onde Gregório Duvivier apresenta notícias importantes sobre o Brasil e o mundo, com
base em sua interpretação, de forma irreverente e humorística, porém trabalhando a
informação de forma contextualizada e baseada em fontes comprobatórias sobre o assunto
abordado, neste sentido destaca-se que o slogam do programa é “Humor é coisa séria”.
Os temas abordados no Greg News estão de alguma forma associados a assuntos
políticos, e o formato do programa segue um modelo muito próximo do Last Week Tonight
with John Oliver, programa de televisão estadunidense considerado do gênero late-night talk
show, que é caracterizado pela forma com que os apresentadores noticiam um fato por meio
um monólogo e de forma cômica. Segundo Goes (2017) desde a década de 1990 começaram
a surgir esse tipo de programa informativo com tom cômico sobre política na televisão

392
estadunidense como os programas “Politically Incorrect” e “The Daily Show”. Para ele, esse
formato de compartilhamento de notícias foi gradualmente sendo utilizado como uma das
principais fontes de informação sobre política.
Goes (2017), aponta que o programa Greg News desde sua estreia já deixou claro que
seria um programa voltado para abordar assuntos políticos de uma forma mais cômica, além
de sinalizar a falta de imparcialidade de posicionamento do apresentador Gregório Duvivier,
que é assumidamente de esquerda, mas destacando que o programa buscava apresentar as
perspectivas políticas tanto de direita quanto de esquerda de forma igualitária.
No dia 06 de julho de 2018, o Greg News apresentou um programa com o tema
Bolsonaro, e tendo em vista a conjuntura política que o Brasil atravessava naquele período,
três meses antecedentes de um eleição presidencial que tinha Bolsonaro como vice líder nas
pesquisas de intenção de voto para a Presidência da república brasileira, o programa se
colocou como um espaço de diálogo com os potenciais eleitores do Bolsonaro. No vídeo
completo do programa postado no Youtube através do canal oficial da HBO, a descrição do
programa na chamada textual que apresenta uma breve descrição do vídeo, demarca o que
colocamos anteriormente sobre o posicionamento político do apresentador Gregório
Duvivier, ela diz: “O programa da semana é para você que me odeia. Vamos falar do
Bolsonaro?” (HBO, 2017).
O programa com a temática do Bolsonaro veiculado no Greg News teve duração de
aproximadamente trinta minutos, e em linhas gerais, o principal objetivo do vídeo foi apontar
as contradições apresentadas por Bolsonaro, a partir dos principais pontos por ele defendidos
na construção da sua imagem pública. Neste sentido, com base na metodologia de análise de
conteúdo, a partir de uma observação do vídeo do programa postado no canal oficial da HBO
no Youtube, levantamos três categorias principais que reforçam a forma como a imagem de
Bolsonaro é enquadrada no programa. A categorias escolhidas foram, a forma de
comunicação do Bolsonaro, perfil de liderança projetado por Bolsonaro e sua visão
econômica capitalista liberal.
Considerando a análise proposta a partir da categoria de enquadramento sobre a forma
de comunicação do Bolsonaro, o programa destacou que Bolsonaro, apesar de ter uma
carreira de quase vinte oito anos como deputado federal, em sua grande parte das suas falas,
sempre se posicionava com o objetivo de se afirmar como um dos principais candidatos
representantes da “nova” política necessária para mudar o Brasil, além de destacar

393
repetitivamente em seus discursos sobre a necessidade de renovação partidária que a
Presidência da República do Brasil precisava para transformar o quadro de crise econômica e
social naquele período destacado.
Um dos pontos que o programa também sublinha, é a forma com que Bolsonaro se
propõe a conversar com seus potenciais eleitores de forma “direta”, ou em termos populares
“sem papas na língua”, abordando assuntos do cotidiano brasileiro, imersos em uma
perspectiva política, de forma mais “aberta”, principalmente sobre temas sociais que são em
certo modo complexo e estavam sendo debatidos amplamente na sociedade brasileira
provocando diversas divergências de opiniões, como o tema da legislação do aborto e a
garantia de alguns direitos civis, como o casamento, para casais homessexuais. Porém, a
forma redutora e simplista com que Bolsonaro aborda temas que demandam uma reflexão
mais análitica e problematizadora, é colocada no Greg News como uma forma de repressão
do debate e supressão da liberdade de expressão e escolha de grupos minoritários.
Sobre as formas de comunicação exploradas por Bolsonaro, é apontado no programa
que as falas dele são sempre enunciadas de forma incisiva, e em geral, geram polêmicas, pois
afetam diversos grupos sociais, como por exemplo, as suas falas sobre segurança pública, que
foi uma das principais bandeiras defendidas durante sua campanha eleitoral, sobre a “licença
para matar” que ele defendia para garantia do direito de policiais e autoridades competentes
na eliminação de bandidos, que na visão dele, causam o caos da segurança pública no Brasil,
além da constante defesa de Bolsonaro para a liberação do porte de armas de fogo em maior
acesso para os cidadãos brasileiros.
Outro marco constantemente reverberado nos discursos do Bolsonaro apresentado no
programa, é a forma com que o presidenciável considerava o período de Ditadura Militar no
Brasil de forma positiva, destacando falas em que Bolsonaro se diz favorável a prática de
tortura, e que a Ditadura deveria não só ter torturado, mas sim matado seus opositores.
No que tange a análise sobre como o Bolsonaro projeta a sua imagem de liderança, é
destacado no programa a forte associação que este faz da sua imagem com o militarismo,
talvez essa postura seja justificada considerando o fato que Bolsonaro desempenhou
atividades militares no exército brasileiro antes de ingressar na política, e para ele a disciplina
militar, principalmente nas escolas de formação de base, é algo que deve ser valorizado e
ampliado no Brasil. Neste sentido, Bolsonaro se coloca como um líder que considera ser
necessário ter “pulso firme” na tomada de decisões políticas, e defende que as lideranças se

394
atente a atender os desejos sociais dos grupos majoritários, que por ele são definidos pelos
cidadãos que defendem os valores da família tradicional brasileira, sendo que os grupos
considerados por ele como minoritários, como população indígena, quilombola, comunidade
LGBTQI+, e entre outros, devem se adequar às regras sociais criadas por esses grupos.
Ainda sobre a forma com que a imagem de liderança projetada por Bolsonaro é
enquadrada no Greg News, um dos pontos abordados no programa é sobre como o
presidenciável se apresentava como um dos candidatos à Presidência que mais se destaca
para ser um ativista no combate a corrupção política no Brasil, contudo, o programa
apresenta a contradição dessa perspectiva defendida por Bolsonaro, uma vez o mesmo em
entrevista já havia admitido que o partido o qual pertenceu grande parte de sua trajetória
política, o PP (Partido Progressista) havia recebido propinas da empresa JBS, que foram
destinadas do partido para a conta pessoal de Bolsonaro para realização de campanha, e ainda
ao ser questionado dessa prática, reiterou que a prática de recebimento de propina é “comum”
em todos os partidos do Brasil.
Na perspectiva do enquadramento de Greg News sobre a visão econômica de
Bolsonaro, destaca-se as falas do presidenciável sobre o seu desconhecimento de questões
econômicas, pois este considera que isso é um assunto que deve ser explicado por sua equipe
econômica e não considera ser necessário ter total domínio sobre o tema. Considerando esse
desconhecimento da pauta econômica que é assumida pelo próprio Bolsonaro em algumas
falas veiculadas na mídia, o programa ainda destaca que apesar de atualmente o
presidenciável defender uma postura econômica liberal, valorizar o privatização de empresas
estatais e etc, em dissenso com essa perspectiva, Bolsonaro já havia questionado a prática de
privatização adotada durante o governo presidencial de Fernando Henrique Cardoso, além de
ter se posicionado contrário a instalação do Plano Real que foi fundamental para o
desenvolvimento e estabilização econômica do país.
Com base nos enquadramentos propostos no Greg News com o tema Bolsonaro,
analisamos que o programa usa o recurso de questionar a forma de representação política
apresentada na construção da imagem pública do Bolsonaro na perspectiva do seu eleitorado,
buscando desconstruir as afirmativas defendidas por Bolsonaro a partir das suas próprias
falas e perspectivas defendidas. Assim o programa visa explicitar as contradições presentes
na defesa dos principais argumentos favoráveis ao Bolsonaro.

395
5. Considerações Finais

A partir das leituras teóricas que realizamos, bem como a análise do programa,
conseguimos perceber o quanto a imagem pública é importante para a manutenção e
desenvolvimento do status de celebridade. O enquadramento midiático que é dado para esse
célebre também é um ponto relevante para esse desenvolvimento.
Não fizemos, nem pretendíamos fazer, um juízo de valor sobre o que foi abordado e
sua real afetação na sociedade, uma vez que o candidato citado foi eleito no segundo turno
nas eleições de 2018. No entanto, não podemos descartar a tentativa de diálogo e explanação
de ideias e opiniões do programa, de fato ela é extensa e profícua para abordar o tema tão
polêmico e complexo.
Pretendemos com esse trabalho, entender esse enquadramento de uma forma diferente
de outros meios midiáticos que conseguimos apenas observar que o programa tenta realmente
usar atributos destacadas e realçados pelo candidato e seu eleitorado e dialogar sobre eles de
um forma embasada e próxima do público.
Além disso, o programa não tenta se mostrar apartidário, muito pelo contrário, ele deixa
claro que é contra Bolsonaro, explica seus motivos através de falas e ações do candidato, e
mostra outros (quase todos) adversário como opções mais viáveis.
Esperamos que esse trabalho sirva para alimentar e proliferar ainda mais o campo de
comunicação política do Brasil, bem como, reforçar nossos empenhos em entender
fenômenos da linha de Bolsonaro, para que assim possamos compreender para resistir.

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397
LULA PRESO AMANHÃ 1
memes e disputas simbólicas sobre a prisão do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva
LULA IN JAIL TOMORROW: memes and symbolic disputes
around the former president Luiz Inácio Lula da Silva's
arrest
Maicon José de Faria Milanezi 2

Resumo: Os acontecimentos políticos em uma sociedade em midiatização se dão


em meio a dinâmicas que fazem transbordar os limites de ação das pessoas. Com
novas possibilidades de interação, em grande parte possibilitada pelos sites de
redes sociais (SRS), as disputas de sentidos encontram novos cenários, gêneros
discursivos e, também, incidem transformações que extrapolam o aparato
midiático. Tendo isto em vista, este trabalho investiga os memes compartilhados no
Twitter no contexto da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
2010) e os sentidos em disputa nesse acervo de imagens polissêmicas. Utilizando os
trabalhos de Braga (2006a, 2006b, 2012), Hjarvard (2012, 2014), e os critérios de
classificação de memes políticos desenvolvidos por Chagas et al. (2017), entre
outros, nós buscamos averiguar as perspectivas imbricadas nesses conteúdos e
como eles representam este fato da História brasileira recente..

Palavras-Chave: Memes políticos 1. Midiatização 2. Luiz Inácio Lula da Silva 3.

1. Introdução
Os fatos políticos, sejam eles de qualquer dimensão, assim como os demais
acontecimentos da vida coletiva ou individual, são relatados, divulgados e comentados
segundo recortes, formatos e vieses os mais variados. Sobretudo nos dias atuais, nos quais
vemos uma diversidade de maneiras de os indivíduos – profissionais da comunicação ou
amadores que dominam certas habilidades características daqueles – de relatarem
acontecimentos e tornarem-se um difusor de informação para determinado grupo, essa
perspectiva pode ser facilmente reconhecida.
Quando se trata da repercussão de um escândalo político, as maneiras de construção da
realidade desse fato ganham ainda mais meandros possíveis e subterfúgios trazidos à tona
para o enquadrar na narrativa que se pretende passar adiante a respeito dele. O fato

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho GT4: Comunicação e Política do 3º. CONEC: Congresso Nacional
de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp, Mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, eumaiconmilanezi@gmail.com.

398
jornalístico não é a realidade, mas sim a construção de uma realidade baseada nos
acontecimentos concretos filtrados por fatores subjetivos e as intenções daqueles que o
enunciam. Ao ser, portanto, uma narrativa construída, e se ver, nos dias atuais, emergida em
um caldo intenso de relatos de acontecimentos, as narrativas sobre os escândalos políticos
serão dotadas, na busca de chamar atenção e destacar-se nesse amálgama, de características
próprias das narrativas ficcionais, construindo personagens, viradas nos enredos e capítulos
que se encadeiam para cativar e mobilizar a opinião das espectadoras e espectadores (PRIOR,
2015).
Essa maneira de enunciar os escândalos políticos não está presente apenas nos meios
tradicionais de comunicação – jornais, revistas, rádios e TVs –, encontra força, sobretudo,
nos sites de redes sociais (SRS) nos quais o compartilhamento de conteúdos é favorecido
pelos mecanismos interativos presentes em sua construção. O apelo apoiado no engajamento
e a instantaneidade que caracteriza as redes sociais digitais neles construídas demandam,
também, essas estratégias para despertar trocas, tornando-se um ambiente propício para
disputas quanto às formas de narrar certos fatos, especialmente no campo político.
Tais disputas, na sociedade em vias de midiatização, dão-se em meio a processos de
transformação que têm redesenhado as instituições bem como os processos sociais pela
influência da mídia, também esta uma instituição com modus operandi determinado,
apresentando novas formas de as pessoas realizarem suas ações e viverem suas vidas
(HJARVARD, 2014). Assim, temos no âmbito político a personalização da política
caracterizada pela conversacionalização, uma interação mais direta e íntima entre atores
políticos e os demais, conciliando tribunas e palanques tradicionais com as redes virtuais. O
que faz da midiatização da política “processo pelo qual a instituição política gradualmente se
torna dependente das instâncias midiáticas e de sua lógica” (HJARVARD, 2014, p. 76).
Entretanto, esse processo é amplo e não se limita apenas a transformações baseadas na
influência técnica e institucional da mídia; diz respeito, contudo, a um reordenamento
sociotécnico através do qual se reafirma a posição do sujeito como participante ativo, e
observa o processo comunicativo de maneira mais complexa para além do contraponto
emissor-receptor. Ao enfocar a circulação, tem-se em vista que os campos sociais não se
mantêm apartados uns dos outros da mesma forma como antes se determinou; os sentidos
produzidos por eles estão, desse modo, em contato e engendram influências mútuas que
reestabelecem seus processos (BRAGA, 2012).

399
Um fator que se deve destaque é que “na sociedade em midiatização o esforço
produtivo para circular se faz na conformação da escuta prevista ou pretendida” (Braga,
2012, p. 40), ou seja, os discursos, as “falas”, são pensadas tendo em vista as respostas que se
pretende obter através delas. Essas respostas retornam de maneira diferida e difusa na
sociedade, não apenas como resposta direta ao emissor, que busca antevê-la para enquadrar
possíveis entendimentos.
Em meio a esse esforço de construção de narrativas, interação e circulação, vê-se,
quando se aponta os escândalos políticos, um formato midiático que ganha centralidade nos
SRTs na construção de sentidos sobre eles: os memes políticos. A investigação sobre memes
políticos tem se mostrado importante perspectiva para observar os acontecimentos políticos
recentes, sejam eles eleitorais (CHAGAS, 2016; SÉKULA, 2016; BRASIL, 2017), sejam
outros não relacionados (CASTRO, 2017; SOUZA, 2017).
Em vista disso, o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento
001 como fruto de um exercício de aplicação metodológica parte de uma pesquisa de
mestrado em execução, com o qual pretendemos analisar a repercussão sobre um fato
político, aqui representado pela prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
2010). A partir dos memes compartilhados nos dias que sucederam o pedido de prisão do
líder político, visamos compreender o que é possível auferir através desse formato midiático,
sobretudo no que diz respeito a aprovação e a desaprovação dessa prisão como forma de
descobrir, também, se a corriqueiramente apontada polarização sobre os acontecimentos
recentes no Brasil se vê representada nas disputas simbólicas sobre este acontecimento.

2. Sites de redes sociais, interação e memes nos acontecimentos políticos


As pesquisas recentes que relacionam comunicação e política, especialmente no âmbito
das transformações trazidas a partir do uso intenso das ferramentas da internet, buscam
entender tanto a capacidade de desconstrução de políticos e candidaturas por páginas de sites
de redes sociais (SANTOS JUNIOR, 2014, 2016a, 2016b, 2016c), quanto como o humor
oriundo de conteúdos gerados pelas usuárias e usuários podem ser utilizado como estratégia
de campanha de certas candidaturas (FREIRE, 2016), bem como entender como se dão as
trocas dentro dos perfis dos atores políticos a partir da lógica midiatizada da
conversasionalização (MAIA, 2017a, 2017b). Essas pesquisas, entre muitas outras desse

400
campo, demonstram como, nos últimos anos, a política deixou de ser assunto apenas dos sites
institucionais de governo ou candidaturas e portais de notícias para ter espaço nas redes
sociais digitais construídas nos sites pensados como plataformas que se estruturam para
incentivar suas formações.
Das Jornadas de Julho, de 2013, passando pela Primavera Árabe, os protestos da praça
Tahrir, o Brexit, à eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, as redes
sociais digitais, diretamente manipuladas ou não, tornam-se locais de organização, discussão
e concretização de movimentos políticos, de ações de governo e de surgimento de uma esfera
pública conectada que dá espaço tanto para ações de democracia direta quanto para
mobilização de extremismos e disseminação de informações falsas e diversionistas. Esses
acontecimentos, intensamente relatados e enunciados vão ganhando espaço a partir das redes
até ocupar as mídias tradicionais, assim mobilizando mais e mais pessoas a se posicionarem
sobre esses assuntos.
Isso se dá, sobretudo, porque a internet traz para o centro das possibilidades uma nova
prática da comunicação política, uma vez que abre caminho para o ambiente político a esses
cidadãos e cidadãs que antes não viam como participar nesse espaço reservado sob o
comando dos políticos e da mídia tradicional (ROSSETO, 2014). Agora, a participação, seja
qual for sua forma, se estendeu a outros indivíduos, que utilizam as ferramentas e
instrumentos da internet para atuarem de maneira mais presente e próxima.
Um dos SRTs com características mais marcantes nesse sentido é o Twitter, que se
constrói com base em objetividade e dinamismo nas suas trocas e, apesar de não ser o site
com o maior número de usuárias e usuários no Brasil 3, é um

local de ressonância de temas e discussões políticas que são divulgadas pelos mais diversos
meios de comunicação. […] as questões sociais repercutem e ganham diferentes
desdobramentos; o que se acredita ter efeito na opinião dos indivíduos a respeito dos temas
em discussão (ROSSETTO, 2014, p. 25).

Além disso, ao fazerem parte dessa rede, as usuárias e usuários também veem outros
anseios seus sendo atendidos pelas características da sua construção, porque, segundo
Rossetto (2014): 1) têm acesso de forma mais direta às informações políticas; 2) podem

3
No Brasil, o site de rede social mais usado é o Facebook, tendo atingido o número de 127 milhões de usuárias
e usuários mensais no primeiro trimestre de 2018, seguido pelo aplicativo de troca de mensagens WhatsApp,
com 120 milhões (OLIVEIRA, 2018). Segundo notícias recentes (idem, 2017) o número de brasileiras e
brasileiros que usam o Twitter tem aumentado, mas a empresa não divulga os números atingidos, com notícias
mais antigas (CORREIO 24 HORAS, 2012), falando sobre 33,3 milhões de usuárias e usuários.

401
participar com menos filtros do processo político, não só receber informação, pois estão em
linha-direta com os seus atores; e 3) é ferramenta de trabalho prática e acessível àquelas e
àqueles que trabalham com política, sejam profissionais dela, sejam cobrindo seu dia a dia
como jornalistas.
Esses ambientes, nos quais os sujeitos participantes encontram a possibilidade de se
mostrarem mais presentes e construírem suas trocas, grupos e suas relações sociais on-line –
onde o relacionamento individual é central e base para cada um deles –, ensejam, logo, uma
cultura de participação. A cultura de participação assenta-se na produção de conteúdo pelas
usuárias e usuários (JENKINS, 2016, 2009), o que se mostra central para a dinâmica e
funcionamento desses sites de redes sociais, cujos mecanismos se alimentam desse amálgama
formado pelos conteúdos advindos das mídias tradicionais, notícias e entretenimento, e aquilo
que é produzido a partir deles por quem neles se insere.
Os grandes acontecimentos, ou ao menos aqueles que se mostram latentes e polêmicos,
tal como os escândalos políticos, que se descortinam a partir das narrativas e suas
capacidades de configuração e instituição da realidade (PRIOR, 2015), acionam o
engajamento e a produção e circulação intensa de conteúdo. É nesse ambiente de criação que
se viabilizam os memes, os quais são objeto de nossa análise neste trabalho.
Os memes, da maneira que conhecemos hoje, partem do fundamento teórico
desenvolvido por Richard Dawkins no final dos anos 1960. O teórico da biologia evolutiva,
desenvolve sua teoria da transmissão cultural humana pensando na transmissão desse
conteúdo e sua difusão na evolução biológica dos organismos vivos. Assim, estabelecendo
um paralelo com o conceito de gene, ele desenvolve, por sua vez, o conceito de meme –
originado do termo grego mimeme (ou μίμημα), da mesma raiz de mimese – que seria a
unidade de transmissão cultural ou imitação social.
Suas ideias, que destacam o papel da imitação na construção de certa congruência
cultural mesmo através da evolução das gerações, tem certa aderência com trabalhos que
tentam compreender o grau zero da comunicação e, nesse esforço epistemológico, apontam
também – a partir de outras perspectivas, deve-se destacar –, para o papel da imitação como
base do processo comunicacional (BRAGA, 2015).
O pensamento de Dawkins, com os anos, vai ganhando outros desdobramentos e outras
proposições quanto às maneiras de difusão da informação. Blackmore (2000) expande a
compreensão de memes para além de apenas ideias, pensando neles também como

402
comportamentos que se replicam socialmente, propagados por meio da imitação, a partir de
um indivíduo “hospedeiro” concebido como máquina de memes. A autora vê os sujeitos
como “feitos de cérebro, corpo e meme” (INOCÊNCIO, 2016, p. 4).
Contudo, quando pensamos em memes de internet, falamos de algo que está muito
além do que inicialmente foi pensado por Dawkins. Adota-se esse termo para designar
conteúdos da internet que “podem se apresentar como uma imagem ou uma analogia, uma
frase de efeito, um comportamento difundido, um desafio, um jingle, entre outros” (FREIRE,
2016, p. 14). Para Chagas et al. (2017), adotado como conteúdo da internet, pode-se encará-
los, em si, como uma mídia, capaz, ela própria, de estabelecer sentidos e formatos. E,
segundo Shifman (2014), só é possível entendê-los em conjunto, formando o que ela
classifica, por sua vez, como um novo gênero midiático do ambiente virtual.
Dessa forma, o conceito de meme vem se consolidando através de diversas pesquisas e,
atualmente, ao observarem as dinâmicas de produção e difusão dos produtos nas redes sociais
digitais, tentam demonstrar a importância da observação desse fenômeno na compreensão de
acontecimentos dentro ou fora dos sites de redes sociais. Acreditamos, por sua vez, que os
memes indicam, também, um consumo de mídia próprio da sociedade midiatizada porque
apontam para uma maior participação na hora de sua produção e difusão, não se
estabelecendo de forma linear e nem mesmo previsível (FREIRE, 2016).
Ademais, “os memes atuam como termômetros de afetos e opiniões, mensurando o que
está em voga e dando ainda mais repercussão a eles” (FREIRE, 2016, p. 90). Sendo capazes,
por essas suas características, de

fornecer indícios acerca de como temas cotidianos e debates públicos podem se entrelaçar
com produtos do entretenimento e mobilizar milhões de pessoas, funcionando como
micronarrativas colaborativas marcadas pela inovação no formato, pela articulação dos
signos, com alto poder de síntese (densos no conteúdo e simples no formato) e pelo
exercício da transposição da comicidade (INOCÊNCIO, 2016, p. 1).

Como peça de construção de narrativas, o meme, então, também serve para a


composição da realidade que se relata a respeito dos diversos acontecimentos e serve, no que
lhe concerne, para a análise a respeito de como isso se deu ao observarmos um recorte
específico após sua ocorrência. Uma vez que tem forte presença, como já dissemos, em meio
aos fatos de grande repercussão, em um caso no qual se mobilizou afetos, disputas e
bandeiras da forma que se deu com a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não
se notaria o contrário.

403
A prisão do ex-presidente Lula insere-se no contexto da ultramidiática Operação Lava
Jato. Iniciada em 2014, a operação sediada em Curitiba-PR tem revisitado contratos e
negócios executados, sobretudo pela estatal Petrobrás, suspeitos de movimentarem esquemas
de propina com envolvimento de empresários em benefício de diversos partidos e lideranças
políticas. Balizada no importante esforço por uma administração pública mais idônea, ela é
notória pelas acusações de apresentar um forte viés anti-Partido dos Trabalhadores,
fundamentadas, por exemplo, no episódio que dá início à narrativa que culminará na prisão
do presidente: a divulgação ilegal, seguindo contestada condução coercitiva do ex-presidente,
de interceptação telefônica entre Lula e a então presidenta Dilma Rousseff, em março de
2016.
Foi nessa época que o site direitista O Antagonista, na ansiedade de um furo, foi o
responsável pela criação, a partir de uma manchete sua, do meme “LULA PRESO
AMANHÔ, talvez o de maior longevidade no período, sendo retomado em todos os
capítulos subsequentes do processo: a apresentação da denúncia do caso tríplex, em setembro
de 2016; a condenação em primeira instância pelo ex-juiz federal Sérgio Moro, em julho de
2017; a condenação em segunda instância em prazo recorde entre os processos da operação,
em janeiro de 2018; e os acontecimentos finais, em abril de 2018, como o julgamento e
negação de habeas corpus pelo Supremo Tribunal Federal (4), a decretação da prisão (5), a
resistência com o povo (5, 6 e 7) e a prisão em Curitiba (7).
É nesse cenário de escândalos políticos, que mais parecem enredos ficcionais por suas
reviravoltas e narrativas em disputa, que se insere nossa análise. Centrado nesse boca a boca
digital de informações constituído a partir do Twitter, onde circulam memes mobilizadores de
discursos sobre o fato, pretendemos entender, a partir do conjunto dos memes imagéticos
compartilhados nos momentos derradeiros da sequência apresentada, o posicionamento das
usuárias e usuários quanto seu apoio à prisão do líder político brasileiro.

3. Materiais e métodos para uma análise dos memes


A pesquisa com memes, entre os trabalhos de maior destaque, segundo Chagas e Toth
(2016), estão aqueles desenvolvidos pela pesquisadora Limor Shifman (2014), que se
utilizam da análise de conteúdo direcionada que, com base em um livro de códigos, são
definidos e realizados por um grupo de codificadores. Essa abordagem é a que tem sido

404
utilizada no Brasil, a partir, especialmente, da proposta de taxonomia apresentada por Chagas
et tal. (2017).
Para este exercício metodológico, nós partimos dessa abordagem, tendo em mente,
sobretudo, a definição de um recorte sobre o material a ser analisado. Chagas e Toth (2016)
vão definir oito recortes primários para a pesquisa de memes considerando: recorte por tema
(que pode ser pensado baseado no “evento digital”, termo, hashtag; ou “autoria”, uma
coleção sistemática feita por terceiros); recorte relacional (“nós”, baseado nos atores que
publicam determinado conteúdo; ou “conexões”, pensando a repercussão de determinado
conteúdo pelos laços da rede); recorte por espaço (seja “virtual settlement” fundando em
certa plataforma, perfil; ou “virtual placement”, utilizando dados georreferenciados,
pensando a origem do conteúdo) e recorte por tempo (seja ele “externo”, determinado por
evento ocorrido no mundo físico; ou “interno”, a difusão ou sobrevida de dado conteúdo na
rede).
Tendo em vista esses recortes, o presente trabalho fundou-se, na hora de delimitar a
abrangência de seu conteúdo, no recorte por tema baseado em “evento digital”, uma vez que
se centrou nos memes imagéticos postados a partir de tuítes que utilizavam o termo “Lula”;
quanto ao espaço, fundou-se no “virtual settlement”, pois coletou os materiais publicados no
site de redes sociais Twitter; e recortou o tempo com base em um evento “externo”, definido
pelos dias 5, 6, 7 e 8 de abril de 2018, do dia da decretação da prisão ao dia posterior ao qual
o ex-presidente decidiu, enfim, entregar-se para ser preso.
As principais categorias utilizadas na hora de classificar os memes encontrados partem
da tipologia de memes apresentada por Chagas et al. (2017) com base na classificação
proposta por Shifman (2014). Os memes, segundo estes autores, definem-se sobretudo em
três tipos: memes persuasivos, memes de ação popular e memes de discussão pública. Eles
são assim pensados tendo em vista a sua finalidade, a sua linguagem, seu alcance e forma de
circulação e a sua atitude em relação à política (TAB. 1).
Os memes persuasivos, como bem o nome diz, fundamenta-se na busca de angariar
apoio e convencer outrem a respeito do que eles expressam, pensando em despertar o
engajamento no próximo. Os memes de ação popular, por sua vez, partem de uma construção
coletiva de sentido para mobilizar o cidadão comum e demonstrar engajamento ao próximo,
muitas vezes são difíceis de serem entendidos fora do contexto de origem. Já os memes de
discussão pública se caracterizam como comentários despropositados/piadas sobre o que

405
representa, com o propósito de familiarizar o próximo e a si junto à política. Os memes
persuasivos e de ação popular, especialmente, atuam para estreitar a relação das pessoas com
o universo político, os políticos e a política aparecem como sujeito, já nos memes de
discussão pública isso não é tão evidente, com os políticos e a política aparecendo como
objeto (CHAGAS, 2016).
TABELA 1
Modelo teórico para a classificação de memes.

Quanto à Quanto à Quanto ao Quanto à atitude


finalidade de linguagem e forma alcance e à forma política
engajamento de expressão de circulação
Memes Despertar Estratégia de apelo e Propagação viral Dogmatismo
persuasivos engajamento (no convencimento, (a mesma peça é ideológico
outro) propaganda replicada de modo
idêntico)
Memes de ação Demonstrar Dinâmica de ação O conteúdo é Cinismo
popular engajamento (ao coletiva, solidária e reapropriado e
próximo) emergente circula entre
convertidos
Memes de Demonstrar Piada avulsa e O conteúdo é Ironia
discussão engajamento (ao autossuficiente reapropriado e
pública próximo) circula em
diferentes grupos
sociais

FONTE – CHAGAS, 2016, p. 10.

Para empreender a coleta dos memes foi por nós utilizada a ferramenta de Busca
Avançada do Twitter 4, através da qual delimitamos a palavra-chave definida – “Lula” – e o
recorte temporal – de 5 a 8 de abril de 2018. Atentamo-nos aos resultados presentes na coluna
“Fotos” e também utilizamos como critério de seleção para esse exercício de coleta a
presença nas imagens de alguma inscrição textual ou colagem. Isto reduziu nosso escopo, no
entanto, era algo que se adequava ao propósito desse exercício, pensado para o
aprimoramento dos critérios da coleta futura para nossa dissertação.

4. Resultados
Após a exploração teórica e a apresentação das balizas metodológicas que buscam
definir tipos e taxonomias para a pesquisadora ou pesquisador de memes realizar suas
análises, que expusemos anteriormente, partimos agora para a aplicação dessas perspectivas à
nossa amostra. De início, mostra-se importante ilustrar, a partir da tipologia principal

4
Disponível em: < https://twitter.com/search-advanced?lang=pt>.

406
apresentada na TAB. 1 presente acima, como se conformam visualmente esses memes,
segundo as imagens que coletamos (N = 203) (TAB. 2).
TABELA 2
Tipologia aplicada aos memes da prisão de Lula.

Meme persuasivo Meme de ação popular Meme de discussão pública

FONTE – O autor.

Em números gerais, encontramos com nossa amostra, mesmo após os recortes e


critérios estabelecidos, um material capaz de permitir-nos apresentar algumas considerações e
inferências sobre como se deu a circulação de sentidos e as disputas sobre a prisão do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A TAB. 3, a seguir, apresenta, enfim, os dados
principais da nossa classificação.
TABELA 3
Tipos de memes na amostra.

N %
Persuasão 88 43,3 %
Ação popular 28 13,8 %
Discussão pública 73 36 %
Outros 14 6,9 %
Total 203 100 %

FONTE – O autor.

Os memes sobre a prisão do ex-presidente mobilizam, portanto, em sua maioria


(46,3%, N = 88), a argumentação sobre o fato, baseada sobretudo no convencimento de por
que aprovar ou opor-se a essa medida (o que nos levou a analisar, também, como a amostra
se divide quanto a esse contraponto, conforme apresentamos a seguir na TAB. 4). Esses
memes elencam argumentos jurídicos, emocionais, entre outros, para tentar desqualificar a
resistência de Lula quanto ao cumprimento da medida (como demonstra o meme persuasivo

407
do Quadro I), a validade da decisão, ou para construir argumentos que transformariam o
processo sofrido pelo líder político em uma perseguição política.
Há também substancial destaque para os comentários despropositados/piadas sobre o
acontecimento (36%, N = 73). O que serve, a seu modo, para constatarmos o desejo das
usuárias e usuários de demonstrar o engajamento partindo-se da ironia e da brincadeira,
participando assim do acontecimento midiático que deriva do acontecimento político que
naquele está imbricado. São esses os memes que mais se dispõem das referências do
entretenimento, reapropriadas pelos indivíduos no reflexo da cultura de participação.
No entanto, encontramos modesta presença de memes de ação popular (13,8%,
N = 18), o que, no entanto, não se deveu ao fato de não terem acontecido dinâmicas de ação
coletiva no período analisado. Esse resultado deu-se, preponderantemente, em razão dos
critérios de seleção na coleta, por terem desconsiderado imagens que não apresentassem
inscrições textuais ou colagens e sobreposições. Isso gerou certo desvio, contudo ainda assim
acreditamos na solidez de nossa amostra para a análise a qual nos propusemos realizar. Por se
tratarem de memes de relação mais explicita ao fato que ilustram, os memes persuasivos e os
de discussão pública representam as disputas mais diretamente e foram pouco afetados por
esse critério de seleção.
Uma vez que este trabalho se estabelece como um exercício de aplicação para
auferirmos critérios e soluções a serem usadas para calibrar e aprimorar a coleta de dados de
nossa pesquisa de dissertação, ressaltamos que esse processo de aprendizagem foi
fundamental. Como próprio do processo científico, baseado no aprimoramento de técnicas e
procedimentos, nós ressaltamos isso para ilustrar que entre erros e acertos, comprovações e
refutações, a pesquisadora ou o pesquisador progride no seu fazer atuando com transparência
ao explorar seu objeto.
TABELA 4
Tipos de memes de acordo com o discurso sobre o fato.

N %
Aprovação 71 35 %
Oposição 75 36,9 %
Outros 56 27,6 %
Total 203 100 %

FONTE – O autor.

408
Muitas vezes uma conclusão fácil, e ao mesmo tempo frágil, de se chegar, quando são
analisados acontecimentos no arrepio de seus impactos, a de tomá-los como polarizados, no
que diz respeito à prisão do ex-presidente Lula, ela pode ser observada a partir dos dados
levantados por nós quanto aos memes. Há um forte contraponto entre os memes que trazem
discursos de aprovação (35%, N = 71) e aqueles de oposição (36,6%, N = 75) à prisão. Sejam
aqueles que se utilizam da persuasão ou mesmo do humor para compor seus argumentos ou
para simplesmente deslegitimar os levantados por outrem.
Nota-se, porém, expressiva quantidade de memes que tangenciam o tema sem se
colocar nesse contraponto (27,7%, N = 56). Evidenciando, à vista disso, que entre os dois
polos encontram-se aqueles que estão produzindo ou compartilhando memes imagéticos sem
participar da disputa dos afetos sobre o fato. Esses sujeitos e seus discursos, inserem-se no
acontecimento tendo em vista a interação e a construção de relacionamentos à margem das
disputas, porém completamente motivados pela intensa circulação de sentidos que elas
movimentam na rede.

4. Considerações finais
A partir dos estímulos constantes e insistentes que são mais e mais injetados nos
sujeitos através das redes sociais digitais na sociedade em vias de midiatização, além de
poder ser notada a formação de identidades mutantes e fragmentárias que vão se recompondo
no calor dos acontecimentos (SODRÉ, 2010), podemos identificar em um formato, ele
também híbrido e fruto de tantas intertextualidades, como é o meme, um objeto de análise
importante, sobretudo quando se fala em acontecimentos políticos.
Da mesma forma que a cobertura midiática da política tradicional acarretou em
mudanças na forma de os sujeitos políticos comporem seus discursos e sua atuação,
fortalecendo, assim, a midiatização da política (HJARVARD, 2014), trabalhamos com a
perspectiva de que o meme é um dos caracterizadores da midiatização política no contexto
das redes sociais e suas disputas. Isso porque se vê aliado a uma linguagem aberta à
participação da usuária e usuário de forma mais direta e presente.
A aproximar o indivíduo conectado aos temas políticos, seja através da persuasão, das
ações coletivas ou das piadas construídas com a linguagem do entretenimento, outras
ferramentas para se narrar a realidade são apresentadas. Assim elas, por um lado, servem para
gerar o acirramento quanto às perspectivas apresentadas por essas narrativas enquanto, por

409
outro lado, apresentam a possibilidade a uma gama maior de pessoas de demonstrar
posicionamento, engajamento ou apenas interagir sobre o escândalo político mais recente.
Ao analisarmos nossos dados, pudemos, pois, confirmar esta tendência neste caso da
prisão do ex-presidente – em meio aos memes que foram utilizados para demonstrar
posicionamento sobre o caso, muitos apenas serviram ao propósito da participação
despropositada. Dessa maneira, acreditamos que os memes se constroem como indicadores
capazes de revelarem tendências e discursos por detrás da sua, à primeira vista, irreverência e
espontaneidade, fruto de serem fabricados em uma lógica participativa que para muitos seria
incapaz de ter relevância ou possibilitar discussões.
Podemos dizer, portanto, que a investigação a partir desses conteúdos, sobretudo
partindo dos acontecimentos políticos, possibilita à pesquisadora ou pesquisador observar
dinâmicas em um campo no qual os atores que se utilizam desses conteúdos o fazem para se
inserir em um cenário no qual, de outro modo, possivelmente não conseguiriam adentrar. Por
essa razão, acreditamos na relevância desse nosso exercício que pretendemos aprimorar na
continuidade de nossa pesquisa.

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412
MAPEANDO IMAGENS DE DESINFORMAÇÃO E FAKE
NEWS POLÍTICO-ELEITORAIS COM INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL 1
Tarcízio Silva 2
Pedro Barciela 3
Pedro Meirelles 4

Resumo: O fenômeno das chamadas “fake news” trouxe uma nova camada de complexidade aos
estudos de democracia digital. Se estudos de mídias sociais com técnicas de
monitoramento cresceram nos últimos anos, o fechamento tanto de APIs quanto a
emergência de canais alternativos de circulação de informação - como o Whatsapp
- traz novos desafios ao dimensionamento de fake news e desinformação no
contexto eleitoral. O artigo é um relato de desenvolvimento e aplicação de
metodologia experimental de reconhecimento e mapeamento automatizado de
imagens ao contexto político-eleitoral. A partir do levantamento de 500 imagens de
difamação e “fake news” sobre o ex-presidente e pré-candidato Luís Inácio Lula
da Silva, foi aplicada técnica de varredura online de imagens (reconhecimento de
imagens através da Google Vision) similares para o levantamento de websites que
as (re)publicaram. Como resultado, apresentamos dados aplicados sobre os
principais websites e seus tipos de conexões na rede.

Palavras-Chave: fake news, difamação, campanhas de desinformação, Whatsapp, computação


visual.

1. Desinformação política, fake news e mídias sociais


A desinformação como estratégia política recebeu holofotes nos últimos anos, sendo
amplamente discutida em casos especialmente claros como o Brexit e a eleição de Donald
Trump nos EUA (KUCHARSKI, 2016). Relatórios de jornalistas (GRASSEGGER &
KROGERUS, 2017) e pesquisadores (ARNAUDO, 2017; TUFEKCI, 2017) mostraram o
papel da circulação de conteúdo desinformativo nestes contextos, muitas vezes ligados ao uso
de sistemas automatizados de publicação ou impulsionamento e propaganda.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Política do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Tarcízio Silva, Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, Mestre em Comunicação e Cultura
Contemporâneas pela UFBA e Diretor de Pesquisa no IBPAD. E-mail: tarcizio@ibpad.com.br
3
Pedro Barciela, Bacharel em Turismo pela UFSCAR e consultor político especializado em monitoramento de
mídias sociais. Email: pebarciela@gmail.com
4
Pedro Meirelles, Mestrando em Cultura e Territorialidades pela UFF, Bacharel no curso de Estudos de Mídia
da UFF e Pesquisador no IBPAD. E-mail: pedro.meirelles@ibpad.com.br

413
No Brasil, as eleições de 2018 foram especialmente aguerridas quanto à circulação de
fake news em diversos espectros políticos, com especial intensidade nas posições de ultra-
direita. No período pré-eleitoral, estudo realizado pelo INCT - Instituto da Democracia e da
Democratização da Comunicação identificou que os brasileiros acreditam que busca no
Google e "redes sociais" são canais mais frequentes para exibição de notícias falsas; e que há
uma correlação entre extremos de autoidentificação ideológica e exposição às notícias falsas
(VON BULOW & STABILE, 2018).
Mesmo antes do início da campanha, algumas figuras políticas tornaram-se nos últimos
anos alvos preferenciais de campanhas de desinformação articuladas. Esta intensidade de
notícias falsas parece estar relacionada em grande medida com a visibilidade de figuras
políticas nas medições de intenção de voto. O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva foi
alvo de campanhas de boatos em toda sua trajetória política, de fases tidas como radicais até
o período posterior a seus mandatos, apesar da alta aprovação da população.
A construção de inúmeros regimes de verdade sobre a figura do candidato, presidente e
ex-presidente Lula tomou variadas formas de acordo com as afiliações a enunciados
específicos. Em conclusão de mapeamento de trajeto temático de notícias sobre o filho do ex-
presidente, Fábio Luís da Silva (ou “Lulinha”), Junior e Drummond concluem que a
construção histórica e social inserida em regimes de funcionamentos e em canais
institucionais que controlam, em nossas sociedades midiatizadas, a circulação e
reprodução dos enunciados midiáticos, classificando-os e (in)validando-os como
(i)legítimos, é reconhecer que a verdade depende de uma perspectiva política da
qual ela não escapa e o discurso qualificado como verdadeiro traz consigo todo um
conjunto de mecanismos e procedimentos, estratégias e táticas que atuam em sua
produção e manutenção, conferindo à verdade uma existência dentro de relações de
poder (JUNIOR & DRUMMOND, 2018, pp. 46-47).

A plataformização da web leva a algumas particularidades da circulação de informação


e desinformação devido a características de alguns ambientes. Nos interessa aqui sobretudo a
dificuldade dupla de estudar a circulação de mensagens construídas como imagem e em
sistemas com ambientes semi-privados tais como o Whatsapp. Para tanto, é essencial
compreender características básicas das mídias sociais e coleta de dados na comunicação
política na relação com campanhas eleitorais.

414
Braga et al. (2018, p. 181) elencam três conjuntos de questões abordadas na Ciência
Política e Comunicação Social quanto aos estudos de campanhas eleitorais online: a)
questões sobre presenças e audiências - “buscam compreender tanto o nível da adoção de
ferramentas digitais quanto a forma como tais tecnologias são de fato utilizadas pelos atores
que emitem informação política via tecnologias digitais”; b) questões sobre estratégias
discursivas - “fazem análise de conteúdo de mensagens emitidas por atores políticos em
plataformas digitais, buscando compreender suas estratégias ou natureza das interações em
plataformas tais como o Facebook e o Twitter”; c) questões sobre fenômenos políticos e
outros aspectos sistêmicos - “os dados de mídias sociais são proxys (indicadores indiretos)
para compreender-se outros fenômenos ou questões teóricas relevantes para o estudo dos
processos políticos e comunicativos”.
Quanto ao uso dos dados provenientes de monitoramento/pesquisa em mídias sociais
para engenho de estratégias discursivas, Buckstegge e Stabile (2016) listam quatro dimensões
de informação que podem ser levantadas sobre os usuários/eleitores em campanhas online: 1)
voto - apoio a partidos, apoio de outro candidato, rejeição e desconhecimento, declaração de
voto; 2) candidatos - visão do eleitor; 3) eleitor - dados demográficos e comportamentais; 4)
políticas públicas - questões locais e geolocalizadas. De forma alguma exaustivos, essas
dimensões funcionam como um panorama - um framework - para organizar a complexa tarefa
de estruturação do monitoramento político nas mídias sociais. Isso porque, para além dos
diferentes quadros de informação a serem considerados no contexto eleitoral, ainda há uma
série de dados disponíveis nas plataformas que podem - e devem - servir como fonte
interpretativa dos levantamentos e cruzamentos a serem desenvolvidos no acompanhamento
dos resultados.

Paralelo a esse contexto de dados em abundância, há um fenômeno relativamente


recente que tem dificultado cada vez mais a pesquisa em mídias sociais. Por muito tempo,
desde sua popularização, as plataformas têm disponibilizado acesso aos dados através de
APIs, “séries de comandos que permitem a usuários e aplicativos se comunicarem com os
sites e requisitarem dados hospedados em seus servidores” (ALVES, 2016, p. 74). No
entanto, devido aos escândalos que chegaram ao grande público quanto à má utilização
desses dados por atores políticos influentes, possivelmente interferindo em eleições no

415
mundo todo, plataformas como Facebook - e todo seu aglomerado midiático, que envolve
também Instagram, por exemplo - têm fechado cada vez mais as portas de acesso 5.
Esse obstáculo atinge principalmente pesquisadores acadêmicos/independentes de
pequeno e médio porte, conforme ratificado por Rieder (2018) e Bruns (2018), em ensaios
direcionados à plataforma. Como uma maneira de superar esse obstáculo, outros
pesquisadores como Alves (2016) e Freelon (2018) têm já apostado em técnicas de scraping,
a “criação de robôs para ler os códigos dos sites e ‘raspar’ os conteúdos das páginas” (p. 74).
Embora, tecnicamente, seja uma opção viável, envolve também algumas questões éticas e
possivelmente legais que devem ser consideradas pelos pesquisadores, conforme apontado
por Freelon: “a extração de conteúdo automatizada em larga escala consome um valor
absurdo de banda larga dos sites fontes, motivo pelo qual várias das plataformas mais
populares da web [...] proíbem essa prática de modo explícito em seus Termos de Serviço” 6
(p. 3, tradução nossa).
O monitoramento do WhatsApp torna-se ainda mais complexo uma vez que não existe
nem uma API de acesso nem possibilidade técnica para scraping. Ainda assim, é a plataforma
social mais utilizada no Brasil, superando Facebook, Instagram, Twitter e YouTube - todas
com um panorama de monitoramento já bem coberto tanto por ferramentas comerciais plenas
quanto por alternativas acadêmicas/de código aberto para extração de dados. Além de a
dificuldade de monitorar o WhatsApp, surge também o obstáculo quanto ao monitoramento
de imagens. Ainda que algumas ferramentas comerciais de monitoramento já tenham
desenvolvido técnicas de computação visual, essas ainda são muito direcionadas para
contextos mercadológicos e publicitários, desfalcando atores políticos. Portanto, encontrar
métodos eficazes para realizar o monitoramento visual na plataforma se faz imprescindível
tanto mercadológica quanto academicamente, sobretudo quanto às problemáticas de
proliferação de informações falsas através de conteúdos visuais.
Na próxima seção apresentamos definições e conceitos básicos do uso da inteligência
artificial para computação visual, recurso que possibilitou o experimento e aplicação do
mapeamento de websites ligados à imagens encontradas por conveniência no Whatsapp.

5
Mais sobre as mudanças na API do Facebook e seu impacto no monitoramento e pesquisa em mídias sociais
pode ser encontrado nesse texto do pesquisador Marcelo Alves: https://www.marceloalves.org/blog/novas-
modificacoes-na-facebook-graph-api-o-que-muda-para-monitoramento-e-pesquisa
6
“Automated, large-scale content extraction exerts a substantial bandwidth toll on target sites, which is why
many of the web’s top platforms (including Facebook and Google) explicitly forbid it in their TOS”.

416
2. Inteligência artificial, visão computacional e APIs
Recursos de inteligência artificial são desenvolvidos há décadas por cientistas da
computação em torno do mundo. Domínios de aplicação como processamento de linguagem
natural, robótica e computação visual materializam inovações com variados graus de
mistificação na relação com a cultura popular. Como apontam Osoba e Welser VI (2017), há
uma distinção fundamental entre inteligência artificial geral e a inteligência restrita (“narrow
AI”). A primeira trata da capacidade, buscada por muitos pesquisadores, de desenvolver um
sistema que consiga pensar e resolver problemas de modo amplo – e ainda está muito longe
de ser criada. Entretanto, a inteligência artificial restrita é realidade e relativamente pervasiva
em plataformas digitais.
Aqui especificamente estamos interessados nas aplicações da chamada “visão
computacional”. Esta, por sua vez, é parte do sub-campo da “computação visual” que inclui a
coleta, análise e síntese de dados visuais através de computadores, com objetivos diversos
como a identificação de rostos e biometria, a análise de representações de objetos, entidades,
conceitos e contextos em imagens, entre outros (WANG, ZHANG & MARTIN, 2015).
Produção de gráficos de computador, realidade virtual aumentada e visualização são outros
campos já populares da computação visual.
O reconhecimento inteligente de objetos, conceitos, faces, atividades e outras variáveis
em imagens estáticas ou em movimento possui inúmeras aplicações para os campos da
comunicação. A Figura 1 abaixo demonstra como elementos de uma imagem seriam
reconhecidos automaticamente em um dos recursos do “Google Vision”, que faz parte da
suíte de serviços da Google Cloud Computing.

417
Figura 1: Reconhecimento de imagem com Google Vision

Para além do que já pode ser impressionante na identificação automatizada dos objetos
como no exemplo acima, o grande avanço que os sistemas de visão computacional traz é a
possibilidade de analisar milhares - ou mesmo milhões - de imagens em conjunto e procurar
padrões entre elas.
Na interface com a comunicação, os trabalhos afiliados aos programas de investigação
sobre “analítica cultural” são exemplos, tais como estudo de ativismo político (MANOVICH,
TIFENTALE & YAZDANI, 2014), comparação de selfies através de diferentes culturas
(TIFENTALE & MANOVICH, 2015), e até o mapeamento semântico e geoespacial de
cidades (RYKOV et al, 2016; REDI et al, 2016). Nesta perspectiva, observar e analisar
cultura “significa ser capaz de mapear e medir três características fundamentais, que são
diversidade, estruturas (ex. redes de clusters e outros tipos de relações), e dinâmicas
(mudanças temporais)” (MANOVICH, 2018, p.10) 7.
Verticalmente, nos campos da comunicação política e eleitoral, a visão computacional
tem sido aplicada à compreensão da construção de “home styles” entre Democratas e

7
Tradução nossa: “means to be able to map and measure three fundamental characteristics. These
characteristics are diversity, structures (e.g., clusters networks, and other types of relations), and dynamics
(temporal changes)”.

418
Republicanos nos EUA (ANASTASOPOULOS et al, 2016, 2017), análise de propaganda em
vídeo (QI et al, 2016), comparação de manifestações entre ativistas de esquerda e direita no
Brasil (OMENA, RABELLO & MINTZ, 2017) e uso de reconhecimento de texto em
“memes” políticos (DE SMEDT & JAKI, 2018), entre outros.
A Google Vision faz parte de uma tendência que se intensificou desde 2014 como uma
corrida pelo mercado de processamento de dados através de inteligência artificial
disponibilizada por APIs. Outros exemplos famosos são a IBM Watson, Microsoft Azure e
Amazon Web Services, usadas por milhares de empresas em torno do mundo.

3. Experimento: fake news em torno do pré-candidato Lula


Além da identificação de objetos, conceitos e entidades em imagens como visto em
exemplo na Figura 1, o Google Vision possui outros recursos como identificação de
expressões emocionais em rostos, marcação de cores, filtragem de pornografia e violência e
também mapeamento de imagens na web em modalidades como:
• Imagens com correspondência total na Web: imagens iguais à(s) inserida(s) no sistema;
• Imagens com correspondência parcial na Web: recortes da(s) imagem(ns) inserida(s) no
sistema;
• Páginas Web com imagens correspondentes: listagem das páginas web onde a(s)
imagem(ns) correspondentes foram também compartilhadas.

Este terceiro recurso foi utilizado para descobrirmos onde imagens de desinformação e
fake news foram compartilhadas e os websites mais frequentes.
Para tanto, o primeiro passo tratou-se da busca colaborativa de imagens entre os
membros da equipe do co-autor Pedro Barciela, responsável por time de monitoramento que
atuou nas eleições. Durante alguns dias, a equipe buscou organizar imagens recebidas no
Whatsapp ou já mapeadas no monitoramento de mídias sociais contínuo do projeto.
Resultando em 500 imagens de boatos, fake news e ataques, todas foram processadas com
script baseado na proposta de Mintz (2017; 2018) criado na linguagem Python.
O processamento de dados com o script que acessa os recursos da Google Vision
resulta em dados tabulares similares ao que pode ser visto na Figura 2. Além de resultado
específico referente a cada imagem específica, também são calculados automaticamente a

419
quantidade de vezes que um domínio específico hospedou imagens iguais a cada uma das
imagens inseridas no sistema.

Figura 2: Resultados do script de processamento de "Website with Matching Images"

A planilha resultante listou ao todo 3.367 observações de 2.325 websites diferentes.


Dessa forma, o procedimento permitiu à equipe contabilizar quantas imagens, dentre a
amostra de 500, foram compartilhadas em cada website. O ranking de presença das imagens
tornou-se um indicativo de potencial inclinação articulada à desinformação intencional.
Evidentemente, a simples presença das imagens em cada domínio referido não significa
que o website divulga as imagens com fins maliciosos. É o caso, por exemplo, do website
Boatos.org que esteve entre os mais presentes – mas seu objetivo é justamente explicar
boatos que circulam na internet. A etapa a seguir, portanto, foi analisar os 100 sites com
maior número de ocorrências, resultando na Tabela 1.

URL Bandeira Site Tipo Contagem


Jornal
www.imprensaviva.com Anti-PT Imprensa Viva opinativo 155

www.arturhoje.com.br Neutra Artur Hoje Imprensa 58

fichacorrida.wordpress.com Pró-PT Ficha Corrida Blog 48

www.humorpolitico.com.br Neutra Humor Político Site 36

limpinhoecheiroso.com Pró-PT bloglimpinhoecheiroso Blog 33

jornalggn.com.br Neutra GGN Imprensa 31

abobado.wordpress.com Anti-PT Abobado Blog 17

www.otaviosaleitao.com.br Anti-PT Otávio Sá Leitão Blog 29

420
www.agrobrasil.com.br Anti-PT AgroBrasil Blog 24
Jornal
www.jornaldopais.com.br Anti-PT Jornal do Pais opinativo 21

www.boatos.org Neutra Boatos.org Site 21

g1.globo.com Neutra G1 Imprensa 19


Jornal
pensabrasil.com Anti-PT Portal Pensa Brasil opinativo 18

cidadeverde.com Neutra Cidade Verde Imprensa 18

vindodospampas.blogspot.com Anti-PT Vindo dos Pampas Blog 17

www.tribunadainternet.com.br Neutra Tribuna da Internet Blog 17

Como podemos ver na Tabela 1, o website Imprensa Viva lidera com folga o uso das
imagens. Com 155 imagens diferentes, significa que 31% da amostra das imagens foi usada
em páginas do website. Vale notar também a tentativa de outros websites com
posicionamentos claros a favor do PT em criar contra-narrativas, usando as imagens para
denunciar táticas de ataque contra o partido e seus candidatos.

5. Aplicações Pós-Mapeamento
Posteriormente ao mapeamento dos principais sites difusores de boatos e notícias
falsas, foi necessário fazer um monitoramento em “tempo real” que permitisse que: a) a
equipe de monitoramento pudesse ser notificada a partir da publicação de novos conteúdos
nesses websites e; b) fosse observada a disseminação e compartilhamento de notícias falsas,
seja nas mídias sociais online ou aplicativos de mensagens instantâneas como o Whatsapp.
Foram usadas duas ferramentas para fazer a coleta de tudo o que era produzido pelas
centenas de sites e portais que foram mapeados como potenciais disseminadores de notícias
falsas: V-Tracker e Buzzsumo. Enquanto o V-Tracker permitia uma análise qualitativa
posterior a partir de conteúdos e temas abordados pelos diversos sites, o Buzzsumo permitiu
receber alertas de acordo com o engajamento de cada publicação nesses sites. Assim, para
além do processamento de dados realizado a partir do V-Tracker, alertas e um controle sobre
o alcance de determinadas publicações era possível a partir do Buzzsumo.
Em ambas as ferramentas o cadastro foi feito a partir da coleta e limpeza de links
coletados a partir do Uberlink. É interessante observar que o volume de publicações nesses

421
sites e portais é muito grande, quase sempre referenciado ou apenas replicando conteúdos de
outros sites/portais que já façam parte de seus agrupamentos. Em suma, o processo possibilita
a) classificar as notícias coletadas pela ferramenta de monitoramento; b) definir as
prioridades e encaminhá-las para o jurídico e; c) antecipar a possíveis ataques coordenados
pautados por fake news.

Notícias Falsas x Boatos


Aqui é essencial compreender que muitas das notícias falsas compartilhadas durante
este período eleitoral não necessariamente se baseavam em publicações, textos ou matérias de
sites ou portais, mas se sustentavam em conteúdo de caráter amador/denúncia. Assim, os
principais vetores de notícias falsas não foram, essencialmente, matérias e publicações
disseminadas por sites e portais, considerando-se que grande parte dos boatos não era pautada
por denúncias com grande densidade teórica, mas sim por vídeos/imagens que embasassem
as acusações falsas feitas por usuários nas redes sociais online.

Compreendendo Diversas Etapas do Processo


Uma vez mapeados os sites e portais responsáveis pela publicação e compartilhamento
de notícias falsas, fez-se necessário também compreender o que buscávamos - e aqui
entender o funcionamento do aplicativo Whatsapp foi essencial. Compreender os principais
conteúdos compartilhados nos grupos de apoiadores pró-Bolsonaro em regiões estratégicas
do país como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo fez com que o trabalho de
monitoramento destes portais pudesse ser muito mais efetivo, uma vez que foi possível
acompanhar quais sites, vetores de notícias falsas, alcançavam esses grupos e até mesmo
fomentavam as pautas abordadas dentro desses grupos regionais.

Ações Judiciais
Também é importante compreender que, infelizmente, nem todas as ações de
difamação, fake news ou boatos compartilhados pelas redes pró-Bolsonaro resultaram em
processos judiciais. Basicamente, a justiça eleitoral brasileira permitiu que, nas redes sociais
online, as ações de difamação contra candidatos ocorressem quase que de forma anárquica
em nome da “liberdade comunicativa”. Um dos exemplos mais expressivos dessa
jurisprudência durante o período eleitoral foi a negativa do juiz Luis Felipe Salomão em um

422
pedido para que fossem excluídos conteúdos onde o candidato Fernando Haddad era
chamado de pedófilo por usuários 8. Assim, todas as acusações precisavam ser selecionadas e
embasadas teoricamente para, posteriormente, serem encaminhadas ao TSE.
Desta forma, alguns processos foram adotados para se certificar e demonstrar que as
ações possuíam um planejamento, ações orquestradas geopoliticamente, alcance e motivações
nítidas dentro do período eleitoral. Assim, para além de monitorar as notícias e matérias
publicadas e compartilhadas nos principais portais previamente mapeados, prints de grupos
de usuários pró-Bolsonaro em regiões estratégicas eram apresentados à equipe jurídica a fim
de corroborar a “linha cronológica” aqui planejada pelos apoiadores do candidato que viria a
ser eleito, por exemplo.

Google Trends
Entre todas as ferramentas utilizadas durante o período, sejam elas pagas ou gratuitas,
uma se mostrou extremamente efetiva no monitoramento de regiões geopoliticamente
essenciais durante o período eleitoral: o Google Trends. Por meio dele foi possível
acompanhar o surgimento de inúmeras notícias falsas no período eleitoral, com destaque para
“Jean Wyllys ministro da Educação de Fernando Haddad”. Em regiões como Minas Gerais e
Baixada Fluminense as buscas por esse tema tiveram enorme crescimento em períodos
específicos da eleição, sem que publicações com alcance significativo fossem feitas em
plataformas como Facebook, Twitter ou Instagram.
Desse modo, é possível supor que um dos primeiros fenômenos ocasionados por fake
news disseminadas essencialmente pelo Whatsapp é levar o usuário impactado pela notícia a
buscar referências sobre ela no Google. Por conseguinte, ações de disseminação de fake news
extremamente segmentadas em regiões específicas do país tendem a produzir um volume
significativo de novas buscas no Google, listando assim inúmeras notícias falsas entre os
“Aumento Repentino” da ferramenta.
Aqui já é possível compreender de forma mais abrangente o processo de
monitoramento e análise que foi colocado em prática durante o período eleitoral. Devido à
escassez de tempo, recursos, compreensão por parte do Tribunal Superior Eleitoral e até
mesmo imparcialidade do órgão, foi crítico que os processos fossem monitorados de forma

8
https://oglobo.globo.com/brasil/ministro-do-tse-mantem-no-ar-postagens-que-chamam-haddad-de-pedofilo-
23176276

423
holística, não respondendo a uma hierarquia de etapas ou até mesmo uma lógica única de
disseminação desses materiais.
Em suma, para além do volume de publicações dos sites e portais previamente
identificados e monitorados, os temas por eles abordados e a frequência com que eram
abordados foi extremamente fundamental para o processo. Muito além de produzirem
processos específicos contra esses sites e portais, eles auxiliaram no embasamento jurídico
que permitia atuar contra outras formas de conteúdo com maior alcance e engajamento em
outras redes sociais online como Facebook, Twitter e Instagram.

Conclusão: o caos nos processos


Mais do que nunca é preciso compreender o processo de disseminação de notícias
falsas como uma forma de censura 2.0, onde o excesso de fake news e boatos impedem
muitos usuários de saber onde procurar, o que procurar e como procurar por fontes confiáveis
que desmintam esses conteúdos.
Durante o período eleitoral, o dia 21 de outubro foi extremamente significativo. Após
coletiva do TSE acerca da disseminação de fake news e acusações de que esses conteúdos
poderiam partir da campanha de Jair Bolsonaro, foi possível supor que a justiça brasileira, até
aquele ponto, não havia conseguido compreender o que enfrentava.
Tratam esses conteúdos – fake news, boatos - como casos isolados. Misturam, na
mesma cesta, acusações de fraude nas urnas, ataques contra a ministra Rosa Weber e ameaças
contra os candidatos. Aqui, o TSE não considera que, segundo levantamento das agências
Aos Fatos e Lupa, de 123 notícias falsas desmentidas, 104 eram contra o candidato do PT,
Fernando Haddad, enquanto apenas 19 prejudicavam Jair Bolsonaro, do PSL, e seus aliados 9.
Assim, abordam, analisam e investigam a questão como se ela fosse obra do acaso, de
um lobo solitário atrás de um computador, por livre e espontânea vontade. Não mencionam,
sequer uma vez, sites e/ou páginas em redes sociais online que transformam a prática em algo
rentável. Também ocorreu a evitação do enfrentamento das denúncias de Caixa 2 que teriam
impulsionado a campanha de Jair Bolsonaro no Whatsapp, eleito como o "vilão" da
empreitada, como se uma ferramenta por si só dispusesse da capacidade de criar, promover e
intensificar a divulgação de conteúdo falso contra candidatos.

9
https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/das-123-fake-news-encontradas-por-agencias-de-checagem-104-
beneficiaram-bolsonaro/

424
Não tratam o problema como ele realmente é. Preferem, de forma rasa e simplista,
tratar como “desinformação” e propor que a partir desse escândalo o eleitorado brasileiro
estaria “amadurecendo”. Acreditamos, a rigor, que se trata de uma nova roupagem de
invisibilização de informações, porque as fake news são, sim, uma forma moderna de
censura, onde o eleitor, inundado e atingido por uma avalanche de conteúdo não consegue
diferenciar o que é verdade e o que é mentira. Ainda assim, exigir e aplicar o conhecimento
de especialistas na área não foi realizado a tempo pelas principais instituições pertinentes
como o TSE.
Nas palavras do vice-procurador geral eleitoral, Humberto Jacques, "o tempo de
desordem informativa é um aprendizado para todos" 10. São tempos sombrios, com a
democracia extremamente ameaçada, com aplicações desproporcionais de ações à apologia
explícita por tortura, realizado pelo candidato da ultra-direita. O Brasil e suas instituições não
estão funcionando normalmente. Muito pelo contrário, desde 1964 elas nunca estiveram tão
ameaçadas. Aplicar e entender métodos digitais e circulação de dados e informações na web é
essencial para os comunicadores e ativistas da contemporaneidade e esperamos que este
relato colabore no desenvolvimento contínuo destes métodos.

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Limão, 2016.

10
Como dito em Coletiva de Imprensa realizada em 21/10/2018
https://www.youtube.com/watch?v=y2ANy_v3JHk

425
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427
Peculiaridades da construção de líder político a imagem internacional: uma
análise de uma campanha de relações públicas na construção de V. V. Putin
imagem no Equador
Peculiarities of building political leader’s image internationally: an analysis
of a PR campaign in building V.V. Putin`s image in Ecuador
Rakitskaya Polina Igorevna 1

Abstract. The paper examines the correlation between public relations (PR) and culture
through a case study of building the political leader`s image by Russian mass media in Ecuador.
By applying the circuit of culture as a framework, the paper illustrates how RT, as one of the
most famous Russian mass media abroad, created a certain image of V.V. Putin in Ecuador by
using online text and visual materials. The paper shows a parallel between the creating of a
certain image of the political leader and the image of his country in general in the international
arena. The paper demonstrates what culture levels should be used during creating PR-campaign
and what culture volumes should be considered on a basis of Circuit of Culture model. The
paper will be useful for students, studying international public relations especially in a political
sphere and for those students, who are interested in studying mass media. The paper is necessary
for PR specialists in general, political PR specialist and journalists.

Keywords: International Public Relations. Russia. Ecuador. Circuit of Culture. Political


image.

Introduction
Nowadays, the role of PR specialists in the framework of international public relations
and possibilities of making a well-designed PR campaign are very high and important. No one
can deny the fact that market is growing and getting wider crossing boarders. The fast expansion
of communication and modern technologies are seen to be definitely changing society and the
process of obtaining and perception of information among people from different countries.
For better or worse, the use of communication techniques is now highly pervasive
i n most societies. Different countries have adopted different strategies in order to
confront the specific challenges they face. More and more countries around the world
are embracing nation branding in order to differentiate themselves on the world stage
and to strengthen their economic performance, primarily in terms of exporting, inward
investment and tourism. Nowadays Nations are making increasingly conscious efforts to
hone their country image in recognition of the need to fullfil three major objectives: to
attract tourists, to stimulate inward investment and to boost exports.

1
Ural Federal University in honor of the first President of Russia B. N. Yeltsin, student,
polinarakitskayabr@gmail.com

428
A political PR specialist should promote his native country in a good light, build up an
attractive image of the political leader and cope with situations, when foreign countries try to
create a negative image of his country on the international arena, that can affect people`s mind
and cause negative attitude toward the country for many years.
Considering these reasons, a competent PR specialist should focus not only on work
inside the country but internationally. The biggest problem is a misunderstanding of using right
and effective tools which leads to the wrong PR strategy and, therefore, to poor results.
This problem is typical for PR specialists of any country. They may face to some
difficulties during their work, especially abroad. The main reason of these difficulties is
obviously the same: they pay attention only to those PR tools, which probably can be influential
and persuasive in their native countries. Nowadays, PR managers face new challenges which
make them work hard in developing new skills helping them to understand, what methods will
be effective in the country where the PR specialist is going to work, and which are not.
According to this, the most important thing is a clear understanding of what exactly
should be taken into account while promoting goods, company or even building up a good image
of the country internationally.
Literature review
Firstly, it`s necessary to clarify the definition of the terms: public relations and
international public relations. In general, public relations is a strategic management of
communication and relationships between organizations and their publics, or in the public
sphere, which include political, cultural and social aspects (Seitel, 2007; van Ruler and Verčič,
2002). The main difference between these terms is that international public relations is based on
PR specialists` work in foreign countries. It means that international public relations is an effort of
a company, institution, or government, which is planned and organized for establishing mutually
beneficial relations with the publics of other nations (Wilcox, Cameron, Ault, and Agee, 2007).
For building successful relations and communication between different nations, PR
specialists have to consider their peculiar properties and create a clear PR strategy to achieve the
main goals. Because of the variety of different theories, which can be used by PR specialist
while working in different countries, the problem to choose the best approach of doing public
relations abroad still exists.
Shaping the image of a country in international environment is one of the most important
elements of foreign policy, including also international relations – political, economic and
cultural (Ociepka, 2002). It is connected with creating a positive image of a country and its

429
leader among other entities, including other countries, nations and international organizations.
The image of a country is created in a complex environment, in the process of information flow
and other forms of communication. Among many methods of this kind B. Ociepka (2002)
enumerates: influence on the foreign media and journalists, influence through media events in
own country, promotional and advertising actions, influence through the products of mass
culture, including sport.
The role of the media in creating the image of a country leads to a situation where media
organizations are treated as symbolic elites that are necessary to participate in the transmission of
the image (Eisenstadt, Giesen, 1995). They not only make the selection of the image, but first of
all communicate it to groups of recipients. And according to M. Krzyżanowski (2008), they also
hold temporary power over the discourse that is taking place.
That is why politicians are trying to instrumentalize the mass media. Adaptation of
foreign policy to the mass media implies that politicians are accepting public relations
counsel. The dominating motive of political action is no longer the substantial quality of policy,
but the creation of newsworthy events, and public relations practitioners know how news is
selected by journalists.
Perception of an entity by others is the basis for acknowledging its role and place in the
hierarchy of nations. According to Anholt's nation image hexagon (2006), it includes six
communication channels: tourism, export brands, foreign and domestic policy, investment and
immigration, people as well as culture and heritage. Subjective understanding of economic
abilities of a given country in the world is also important, along with modernity, technological
development, infrastructure and transport network (Ostaszewski, 2008).
As Boorstin (1961) noted “pseudo-events” are important for image building as they gain
attention or create a certain impression. There are hundreds if not thousands of examples
which demonstrate that the staging of pseudo-events has become routine. These make up much
of media coverage. Nowadays, sport and global events are becoming that tool which attracts a
huge mass attention. Mickiewicz (2009) emphasises, the area of physical activity is becoming an
element of building the national brand that is to position a country as regards its attractiveness.
This may be the source of prestige, political power but it also increases the probability of
investment or visiting a country by a larger number of foreign tourists.
It is necessary to stress that in the positioning of a country brand strategy, the image and
reputation of a president is a critical element that directly affects the image of a place. The

430
reputation of its political leader can improve or deteriorate a country’s image, be it for their
acting or thinking, or how well they communicate and collaborate with the mass media.
Most important elements according to which the image of political leader is built include:
symbols, colors, interior, exterior, clothes, logos, commercials etc. As Orzekauskas Petras and
Smaiziane Ingrida (2007) note, as time goes by the concept of the image deepens, becoming
more complex and it no longer relies on impression or construct created by the graphic
designers. As Orzekauskas Petras and Smaiziane Ingrida (2007: 91) note that more attention is
paid to communications in image building, the influence of emotional factors in image building
is pointed out and the importance of the systematic building of relations is pointed out, with
more factors that contribute for image building.
Lilleker (2006:95) finds two sources of the increased importance of image in politics: one
is the lack of interest by media about politics and politicians in general, and the second one is the
interest that media show for the famous (celebrity) people. As a result of this, a need exists not to
limit the public presence of politicians only in presence of programs relevant for politics, but
rather in amusing, sports, music programs, which makes the politicians celebrities and trivializes
the politics.
Rein, Kotler and Stoller (1987) indicate that in order to build the image of a politician or
a political entity, primarily it should be recognizable to the citizens, which is the first and maybe
the most important step in image building. Hence, the primary task in image creation is visibility
and recognizable of the politician, that is, the political entity in public. Kapferer (1992) indicates
few characteristics that are of key importance for image building such as: physical
characteristics, cultural characteristics, the organizational/personal identity of the party entity/the
politician, the reflection of the previously indicated elements in the society and internalization of
the same.
There are two levels of image building: personal style of communication with the
communication skills on one hand and media coverage of the activities of political parties on the
other hand. The image of a country leader is a result of the strains of professionals obliged for
public relations for image creation at a level of interpersonal communication or at a level of
massive communication and at a level of international communications. Building politician
image internationally leads to take into account also cultural characteristics of the country where
the leader is going to be promoted.
There is a number of theories that proves us the necessity of cultural aspects. For
example, The Excellence theory, which is a part of the generic/specific theory, proposes a set of

431
generic, normative principles of public relations practices, but it also mentions that different
forms of public relations practice can be found in different locations (J. Grunig, 1992).
Hofstede's cultural dimensions theory describes the effects of a society's culture on the values of
its members, and how these values influence people`s behaviour. He claimed, that there are five
cultural variables (power distance, uncertainty avoidance, masculinity/femininity,
individualism/collectivism and long-term orientation/short-term orientation), which influence
communication and relationships (Hofstede, 2001). Countries have been analyzed by these
cultural variables, so all of them have special characteristic according to Hofstede’s dimension.
That fact means that it is necessary for PR specialists to take into account the cultural
characteristics of the location, where the PR campaign will be held in the frame of international
public relations.
Schools about personal influence in public relations consists of three schools where one
of them provides the information that public relations models may vary based on cultural
determinants (Falconi, 2011). In addition, this model of public relations shows us possible
influences of culture on the development of public relations in a nation or culture (Sriramesh,
1992). The circuit of culture theory introduce us the value of cultural features. This theory was
created as a tool of cultural analysis, initially by members of the British Centre for
Contemporary Cultural Studies (CCCS), and later developed as a conceptual basis to the 1997
Culture, Media & Identities series (Leve, 2012). They stress situational particularities in
constructing the existent meaning of a certain product, and point out the constraints within the
larger sociological contexts in shaping the interaction of local factors (Han & Zhang A., 2009)
The Circuit of Culture includes the moments of production, representation, consumption,
regulation and identity. Regulation is different types of control at various levels (laws, policies
and rules) (Curtin & Gaither, 2007, p. 38). Representation is “the form an object takes and the
meanings encoded in that form” (Curtin & Gaither, 2007, p. 40). Objects obtain meanings
depending on “how we represent them” (Hall, 1997, p. 3). Production is the process of making a
communication message, product, or campaign, focusing on tactical levels of practice in public
relations. Cultural norms, specific circumstances, technological availability, and economic
factors can influence the process (Hall, 1993). Consumption is a special process of decoding
when people make sense of a product in alignment with their own cultural patterns and value
systems. Their decision usually based on the social context of their everyday lives. Identity refers
to the “meanings that accrue to all social networks, from nations to organizations to publics”
(Curtin & Gaither, 2007, p. 41).

432
Taking into account culture is essential in carrying out international communication as a
PR specialist has to be able to build so-called «communication bridge» between nation-state and
the foreign publics.
The aim of this study is to find out how political public relations specialists, working in
the framework of international public relations, can conduct a correct PR campaign to create the
image of a country`s political leader, thereby building a certain image of the country in the
international arena. After analyzing all these theories, it was decided to choose the Circuit of
Culture theory for the study. It is optimal and demonstrates the main criteria that PR specialist
can use during his work abroad in the frame of international public relations. Applying the
circuit of culture model, the present study addresses two research questions:
• RQ1: What features should be taken into account by public relations specialists during
the conduct of a political PR campaign in foreign countries in order to achieve the goals and
beneficial results in light of the «circuit of culture»?
• RQ2: How knowledge of cultural aspects of the country can be used by political PR
specialists during a PR campaign in practice?
Case study
As it has already been mentioned, that the lack of knowledge and experience of carrying
out PR campaign abroad is still exist in many countries. Russia is not an exception. Since in this
country the sphere of advertising, promotion and public relations began to develop relatively
recently, a Russian PR specialist may have some difficulties during his work, especially in
foreign countries. Talking about the political sphere, today there is a tendency when a number of
foreign countries, pursuing their interests, forms a certain image of Russia on the international
arena. In most cases, it is a negative image of the political leader and the country in general.
Therefore, the Russian PR specialist should be well-prepared to work against this situation and
design a right PR campaign, by using useful tools, which can build up a good image of the
country and its political leader, even change negative attitude to Russia in the frame of
international relations.
Today the mass media continue to ‘occupy the most significant place for most people
when they access the world beyond their immediate environment’ (Taylor, 1997). Due to the
rapid development of Internet spaces, Internet media, social networks, people have the
opportunity to get information in the shortest time frames, which in turn build up a certain image
of politics, political situation and the country as a whole in people`s mind. Indeed, it is the most
effective communication channel and tool, which can be used during the political PR campaign

433
abroad. That is why the Russian mass media, which carries out its activities in foreign countries,
were looked through.
For this research, it was decided to choose Russia Today (RT) for analyzing PR
specialists` work in the field of creating and promoting the image of V.V. Putin and the image of
Russia in general. With its first international news channel launched in 2005, RT is now a global,
round-the-clock news network of eight TV channels, broadcasting news, current affairs and
documentaries, with digital platforms in six languages. It acquaints international audiences with
a Russian viewpoint on major global events and also play important role in the building of
Russia`s image in the international environment. It`s possible to call RT as one of the most
popular Russian news representatives abroad, because it has a total weekly audience of 100
million viewers in 47 of the 100 countries where RT broadcasts are available.
In the study, text and visual materials (photos, videos) were analyzed, which were used
by PR specialists of this news channel in Latin America, namely in Ecuador, which contain
information about the Russian President and Russia itself, which in turn create a certain image of
the country and its political leader in another culture. Nowadays, relations between Russia and
Ecuador are developing in a good way very rapidly. For example, in 2016, the chairperson of the
National Assembly of Ecuador, Gabriela Rivadeneira, noted the beneficial cooperation of these
countries that are experiencing great rapprochement in recent decades - the Euro-Asian countries
and the Latin American Caribbean region. Moreover, in the same year, a number of bilateral
documents were signed between Russia and Ecuador, which subsequently strengthened the
developing partnership of these two countries. Based on this, RT needs to create a positive image
of Russian President and the country as a whole during the PR campaign in Ecuador.
Regulation
The moment of regulation is a starting point of understanding public relations
communication.
In general, it`s necessary to note that the Ecuadorian mass media function at all levels:
radio, television, print mass media and the Internet mass media. It means that society gets
information by all communication channels. The panorama of ownership in mass media in
Ecuador is marked by two genres: state media and private media (Punín I, Martínez A. &
Rencoret N, 2014). Their activities are based on legislative norms.
The Constitution of Ecuador guarantees freedom of expression. However, the legislation
of Ecuador contains a number of norms that actually limit the freedom of the mass media. Media
law in Ecuador is civic oriented, which means that the state regulates artistic, cultural and moral

434
standards, including monitoring the content of mass media (mostly the content of radio and TV
programs). Various other state laws provide that the government can require all radio and
television stations to broadcast official programs, news, and announcements. There are also laws
that limit the amount of space you can use for political advertising per day and laws that require
you to reveal the amount of money spent on political advertising. Although the Constitution of
Ecuador guarantees media agents’ freedom of press, there is considerable self-censorship among
those, who write and publish news about sensitive political, social, or military issues. This
example demonstrates us the government regulation of the content of news and programming.
Talking about the Internet mass media in Ecuador, we can see almost the same situation:
the state monitoring of the mass media activities. Indeed, Ecuador maintained a contradictory
position on Internet freedom. On the one hand, the government has engaged in widespread
campaigns to improve Internet access and digital literacy across the country. On the other hand,
the decline of online freedom by new repressive laws is also apparent and governments have
begun to crack down on Internet activity after having focused surveillance and censorship to
traditional media for years (Valentim K., 2016).
In this case, RT as a private Internet mass media in Ecuador based on these legislative
norms, takes into account possible sanctions and has a content, which is allowed in the country.
Otherwise, its activity could be forbidden.
Representation
RT is an Internet news platform that consists of articles, hot news, radio programs, photo
and video materials. We analyzed the website's appearance of this media in Ecuador and figure
out how it presents itself in this location.
There are some common things that are still the same for each version of news portal. RT
has a uniform style and an approved logotype. Its logotype looks simple – a green square with
two black letters, which mean an abbreviation of the full name of the Internet edition (Russia
Today).
We found some things that are typical to the Internet media editions in Ecuador. Firstly,
reports and videos are in Spanish – a native language of this country. Using of native language,
even instead of the international foreign language, is important to political PR specialists during
their PR campaign in foreign countries, because it helps them to avoid a misunderstanding that
can be caused by language barriers. Secondly, there are several links to social networks such as
Facebook, Twitter, YouTube, Instagram, Telegram, where RT publishes news. It means that
these channels are the most popular there and can be used by PR specialists for publishing hot

435
news, making online PR campaign and getting a feedback from the target audience. Looked
through other Ecuadorian Internet editions it was noticed that the menu bar of RT had been
designed in a similar style. Probably, this decision was made, because the process of searching
for information is easier and faster for Latin American users when they see the accustomed
structure.
Taking these features into account, RT carries out its activities in Ecuador successfully.
Production
We have already mentioned, that people in Ecuador use all kind of mass media to get
news. However, PR specialists need to figure out the most available, popular and often used way
of getting information among the people in Ecuador, before making their PR campaigns there.
In Ecuador there are 894 radios and 494 television channels. Radio is still the most
important media with the most coverage, credibility in all regions of the country. However, only
the 8% percent of the population that listens to the news. Most people listen to music and sports
programs (Mata M., Espinoza V., Polanco N., Tusev A., 2017). In this case, political PR
specialist doesn`t need to rely on this kind of communication channel, because it won`t be very
effective. Television is also very popular media, which is dominated by TV novels and news
programming. Every Ecuadorian family has at least one television and watches it regularly (p.
126). Nevertheless, it isn`t the best way for PR specialists to promote their politician leader`s
image and country`s image abroad, because of the costliness, limit of time for TV news
programs and impossibility to reproduce the information if you have already missed the news
broadcast. For our research, it is impossible to ignore the impact of newspapers and magazines.
Ecuador has its own large print mass media, such as «El Comercio», «El Tiempo», «Ноу»,
«El Telegrafo», «El Uni-verso», «La Нога». This amount of print mass media demonstrates that
there is a need in receiving information and news by this channel in Ecuador. However, there is
an interesting fact, which shows the example of the print mass media`s digitalization. All these
newspapers and magazines exist in digital format and have their own web platform for
publishing news. Moreover, in 2013 Associated Press reported that the President of Ecuador
offered to transit all printed newspapers of the country into the Internet. As we can see, the
access to the Internet is positive and generates an obligation for mass media to act within the
context of a web platform (Punín I, Martínez A. & Rencoret N, 2014).
To sum up, traditional mass media is still relevant and popular for announcing news,
creating advertising and PR campaigns in Ecuador. However, the government keeps up with time
and not only makes the Internet accessible to all regions of the country, but also digitize print

436
mass media. That is why the main editor of RT chose a right way and designed this mass media
as a web platform, where people can receive news faster and in the shortest time frames. RT
gives an opportunity to watch political programs and listen to the radio broadcasts about politics.
Thus, taking into account the Ecuadorians` need in watching television programs and listening to
the radio. In addition, it gives political PR specialists an opportunity to use several
communication channels and PR tools for promoting the politician's image at the same time.
Consumption
To create an effective PR campaign and promote the image of a national political leader,
it is necessary to understand Ecuador`s culture and behaviour of local people.
According to the Hofstede theory, in Ecuador there is a large level of Power Distance (78
scores), which means that Ecuadorians perceive inequality among different social classes as a
fact of life. In the political life, the military plays an important role, because they are considered
as an elite group of society. The career of a political leader is impossible without their support.
Russia has bigger level of Power Distance (93 scores), so in this case it is very similar to
Ecuador. There are not too many publications that represent Putin with the military, mainly
during important Russian holidays. Anyway, some visual materials were founded. These
materials show the Russian President, who is surrounded by military. They play a role of
supporting, which can be admirable among Ecuadorian society.
The level of individualism is extremely low (8 scores). It means that Ecuador is a
collectivist country. It is characterized by the division into so-called "groups" and the use of
slogans "we", "together", etc. Taking into consideration the high rate of PDI, we can say that
groups often have their own strong identities associated with race and class differences.
Relationship between people are prioritized and more important than tasks. However, working as
a group of people by using a cooperative effort Ecuadorians can reach achievements quickly.
They prefer a context-rich communication style, so they often speak profusely and write in an
elaborate fashion. After analyzing visual material, it was found out that photo and video
publications about V.V. Putin do not reflect the spirit of collectivism so much. The majority of
photos shows us a single strong political leader or with several people in official events.
Probably, the main reason is that the level of individualism is higher in Russia (39 scores), so
they try to promote Putin based on individualistic values. However, there are some photos and
videos, which demonstrate us elements of collectivism. For example, after the president election
of 2018 V.V. Putin told his winning speech to the Russian citizens from the Manézhnaya square.
Video demonstrates us Putin in front of the big crowed of people, that looks like a big united

437
group. Also, he pronounced some phrases, which leads to collectivistic culture and persuade
people to make a cooperative effort for a common bright future (for example: «to move forward
we have to go hand in hand with every citizen of the country»). Looked through Putin’s
interview, it was noticed that he is presented as a political leader, whose speech is usually well-
prepared, but he prefers speaking profusely and in context-rich communication style. Also, he
usually says the word «we» while describing some political situations, Russian policy, his
activities and the nation (for example: «We are doomed to success»; «We have no right to fail»;
«We should work hard all together, if we want to reach the goals», «All together we are a full-
scale work that can build a great Russia», etc.). These characteristics are close to Ecuadorians
that is why PR specialists used them to promote a certain image of the Russian President.
There is a stereotype that Latin Americans avoid hard work. Nevertheless, according to
the high level of masculinity (63 scores) they are interested in getting a high position at work,
competitive, status-oriented and driven by achievement and success. This value system goes
through the organizational life. People want to belong to those groups which give them status
and rewards linked to performance. They often sacrifice their free time activities. It is difficult
for them to not think about work and often it only happens through drinking, a common practice
among the working classes. Visual and text materials of the current year mostly show the
President`s activity (visiting different events, meetings with state leaders, building up
partnerships with foreign countries). It means that he is interested in developing of the country
and driven by achievements and success. Ecuadorians can have a good attitude toward these
publications, because they demonstrate him as a hard-working politician. However, there are not
so many publications about meetings with simple workers, who could demonstrate their willing
to work or their interest of building good career prospects. That is why it`s hard to make a
conclusion about the country and people in a whole. Talking about free time activities, it is
necessary to say that there are some photos and videos, which shows us Putin`s possibilities to
combine work with leisure (riding a horse, fishing, hunting, doing Taekwondo, playing hockey,
etc.) 2. Probably, the main reason is that the level of masculinity is lower in Russia (36 scores).
Ecuadorians could not admire this kind of representation of a political leader, because they spend
most of their time at work, rather than doing activities for fun. One more fact is that all Putin`s
free time activities are healthy. There are some materials, which shows us him with a glass of
beer. Below these pictures it`s always said that he doesn`t mind about beer, but drinks it very
rarely, because it`s necessary to take care about your health (for example: "I like Radeberger, but

2
https://actualidad.rt.com/viral/274437-putin-explicar-fotos-medio-desnudas

438
I try to drink less because it provokes 'Bierbauch', which in German means 'beer belly').
Probably, PR specialists kill two birds with one stone here. We mentioned that working class can
forget about work through drinking, so they will pay attention to these photos and realize that he
sometimes behaves as a simple worker (like they). At the same time, text materials provide
Ecuadorians with the information about his preferences of a health way of living, which is good
for creating the image of political leader in people`s mind.
A high score on Uncertainty Avoidance (67 scores) means they use several mechanisms
to avoid ambiguity in life. However, they rely on their government or a figure of authority (such
as the military) who lead them towards to changes, which is due to a high PDI and collectivistic
type of culture. In turn, the state gives them the ability to rely on it, because of extensive and
detailed legislation and prevailing of social conservatism. For this dimensions it is possible to see
publications about Putin, where he is supported by local people. It also means that the majority
of people in Russia trust him and rely on government`s decisions. That is a good idea to
demonstrate this similarity to Ecuadorians.
There is no score for Ecuador in two dimensions: Long Term Orientation and Indulgence.
The first one describes how every society should to link its own past with the challenges of the
present and future. The second one demonstrates how people control their desires and impulses.
Identity
The main traits of Ecuadorian society are: national pride of being Ecuadorians; strong
sense for uniqueness and distinctness from their neighbors; the religiousness and the religious
beliefs; importance of the cultural traditions and the historical heritage of the country; positive
self-image and open expression of emotions (Petkova, 2015).
To create up a good political image of V.V. Putin it`s necessary to take into account
Ecuadorian identity and try to use those PR tools and visual materials that will demonstrate it.
After analyzing these materials, it was noticed that RT promote Russian political leader in a
good light, by using features of Ecuadorians` identity. Firstly, there is information that Putin
strengthens the spirit of patriotism among the people and emphasizes the uniqueness of the
Russian people (for example: «Russia will be sovereign or won`t be»; «… our one, unique and
beloved great Russia», etc.). Vladimir Putin honors the cultural and historical traditions of his
country. Taking a part in a huge event, dedicated to Anniversary of the soviet victory in the
Battle of Stalingrad, he pronounced a great speech, which shows his esteem to Russian history.
(for example: «we refer to the great traditions of our nation»). Especially, the esteem of cultural
and historical values is noticeable, when the President talks about the annexation of Crimea to

439
Russia. He respects the religion and participating in religious ceremonies. For example, some
visual materials show how the Russian president participated in the Baptism of the Lord, one of
the main celebrations of the Orthodox Church. The head of state was dressed in traditional
clothes. Then he took the clothes off and immersed in frozen water for several times. PR
specialists try to build his positive image. They publish articles and use visual materials, which
show us V.V. Putin`s respect to veterans; to women; to Russian sportsmen; his reaction to the
tragic event that happened in Kemerovo; memories of his modest childhood and even his dream
to become a taxi driver. The situation is twofold with the expression of emotions. On the one
hand, a number of publications show the restrained and serious leader of the country. On the
other hand, there are many pictures, and videos, where Putin is friendly, smiling and isn`t hiding
his positive emotions, telling jokes, etc. Moreover, one of the reports includes memes about V. V
.Putin, where he is riding a bear. Perhaps, some common stereotypes about Russia were used as a
PR tool here.
To conclude, political PR specialists, who build up the image of V. V. Putin with a help
of RT, understand the importance of Ecuadorians` identity and use it during the promotion, but
not always.
Conclusion
Thus, it is possible to come to the conclusion that the main differences in the international
promotion from local promotion are differences in the culture of foreign countries and behaviour
of local people. Because of these reasons, PR specialists need to rely on the knowledge of the
culture study, while developing a PR communication strategy.
The usage of the circuit of culture model in this study helps to understand what should be
taken into account while the conducting of a political PR campaign in foreign countries and how
political PR specialists can create the right image of a political leader and the image of the
country abroad. Despite the territory of PR campaign launching, political PR specialists need to
use knowledge about the cultural characteristics of the country, analyze the context in which
there will be a campaign and create specific meanings and call for concrete actions.
The Circuit of Culture has proved useful of a conceptual tool for probing the complexities
of cultural construction of meaning. After considering the culture of Ecuador by all components
of The Circuit Culture theory, we got a special structure, which can be useful for political PR
specialists during their work.

440
Since the promotion with the help of the media is one of the easiest ways to create and
promote a positive image of a political leader abroad, it is necessary to use the right text and
visual materials (photos, videos) in practice.
After analyzing this type of materials, it was conclude that RT as a Russian news portal
takes into account the cultural characteristics of the country and the behavior of Ecuadorians
during publishing news about V.V. Putin to get the desirable result - a positive image of the
President of Russia and the country among the population of Ecuador. However, not all cultural
aspects are taken into account and some materials are very similar to what is usually published
by political PR specialists on Russian information resources. Perhaps for more effective creation
and promotion of the politician`s image, it is necessary to adapt the information to local people
as much as possible.

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Acesso em: 10 jun. 2018.

446
“POLÍTICO” OU “PROFESSOR”: 1
Qual imagem Anastasia (PSDB) constrói?
“POLITICAL” OR “PROFESSOR”:
What image does Anastasia (PSDB) build?
Deborah Luísa Vieira dos Santos 2
Iolanda Pedrosa Borges da Silva 3
Luiz Ademir de Oliveira (UFSJ) 4

Resumo: Atualmente, não é possível pensar em eleições sem remeter à participação


dos mass media e à nova ambiência política e midiática. Além disso, com o
crescimento do acesso à internet, torna-se relevante pesquisar como as mídias
digitais são integradas na comunicação estabelecida entre político e eleitorado.
Nesse sentido, o presente artigo investiga que imagens o pré-candidato a
governador de Minas Gerais e líder nas pesquisas de intenção de voto, Antônio
Anastasia (PSDB), tem construído junto ao eleitorado no Facebook. Parte-se da
Análise de Conteúdo de sua fanpage em julho de 2018, mês no qual ocorreu a
convenção que lançou Anastasia como pré-candidato do PSDB. Busca-se observar
ainda como o tucano constrói sua imagem em um momento de desgaste dos
partidos políticos e crise econômica do estado.

Palavras-Chave: Meios de Comunicação. Facebook. Pré-campanha. Personalismo.


Antônio Anastasia.

1. Considerações Iniciais
O artigo visa a pesquisar como os meios de comunicação influenciam na política e
contribuem para o crescente personalismo político, ao construir e reforçar personagens, com
campanhas focadas mais na imagem e trajetória pessoal e política dos candidatos em
detrimento dos próprios partidos. Como objeto de análise tem-se a fanpage do pré-candidato
ao governo de Minas Gerais, Antônio Anastasia (PSDB), e as publicações feitas em julho e
2018, mês no qual ocorreu a convenção do partido que o oficializou sua pré-candidatura. A
proposta é observar por qual imagem o tucano deseja ser reconhecido por seu eleitorado:

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho 4 (Comunicação e Política) do 3º. CONEC: Congresso Nacional
de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
e bolsista do Programa de Bolsas de Pós-Graduação (PBPG) da UFJF. Graduada em Jornalismo pela
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), e-mail: dlvs1@hotmail.com.
3
Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), e-mail:
iolandapedrosa.jor@gmail.com.
4
Orientador do trabalho, Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, docente do Curso de Jornalismo da
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UFJF, e-mail: luizoli@ufsj.edu.br.

447
“Professor” ou “Político”? Esta pensada de forma estratégica para a conquista e manutenção
de eleitores em um momento de desgaste dos partidos políticos e crise econômica vivenciada
por Minas.
Historicamente, Minas Gerais foi berço de importantes atores políticos que chegaram a
ocupar lugares de destaque no cenário nacional, como Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves
e Itamar Franco. Tancredo Neves é considerado como um dos principais articuladores da
redemocratização brasileira e foi governador de Minas pelo PMDB de março de 1983 a
agosto de 1984. Em 1985, foi eleito presidente do Brasil em eleições indiretas, contudo,
faleceu antes de ocupar o cargo. José Sarney, na época do PFL, tomou posse em seu lugar e
governou até 1990, quando houve as primeiras eleições com a participação popular após o
período ditatorial no Brasil.
Com a saída de Tancredo Neves do governo mineiro, 1984, assumiu seu vice, Hélio
Garcia. Nas eleições de 1986, Newton Cardoso (PMDB) venceu e permaneceu no cargo até
1990, quando reassumiu seu opositor Hélio Garcia, pelo extinto Partido das Reformas
Sociais. Em 1994, Eduardo Azeredo (PSDB) foi eleito.
Em 1998, Itamar Franco (PL), antes aliado dos tucanos e participante da implantação
do Plano Real durante o governo Fernando Henrique, rompeu a aliança para disputar como
governador de Minas. Em 2002, o neto de Tancredo Neves, Aécio Neves (PSBD), venceu
para governador do estado em 1º turno com uma votação recorde de 58% dos votos válidos.
Em 2006, Aécio Neves foi reeleito em 1º turno. Em 2010, Aécio apoiou o seu sucessor e
companheiro de partido, Antônio Anastasia (PSDB). Em 2014, Fernando Pimentel (PT),
apoiado pelo PMDB, interrompeu a hegemonia tucana e derrota Pimenta da Veiga.
Contudo, há fatores que influenciaram nas campanhas eleitorais de 2016 e devem
influenciar nas deste ano, dentre eles: Minas Gerais enfrenta uma grave crise econômica, na
qual o estado está inadimplente com os municípios, deve aos seus servidores e aposentados.
Há também um contexto de descrença na política por parte dos eleitores e desgaste dos
partidos políticos devido aos casos de corrupção e Operação Lava Jato.
Como um dos pré-candidatos a governador de Minas Gerais, tem-se o senador e ex-
governador do estado, Antônio Anastasia (PSDB). Anastasia 5 foi eleito vice-governador de
Minas em 2006, ao lado do então governador eleito e companheiro de partido, Aécio Neves.

5 Biografia disponibilizada pelo site da Revista Época. Disponível em: < https://epoca.globo.com/tudo-
sobre/noticia/2016/05/antonio-anastasia.html > . Acessado em: 01 ago. 2018.

448
Antônio Anastasia assumiu o cargo de governador em 2010, sendo reeleito no pleito do
mesmo ano. Em, 2014, venceu como Senador pelo estado. O pré-candidato é formado em
Direito pela UFMG, onde atuou como Professor de Direito Administrativo. Como Senador
foi nomeado pelo PSDB para ser relator do pedido de impeachment contra a Presidenta
Dilma (PT). Anastasia foi citado na Operação Lava-Jato, em março de 2015, sendo a
denúncia arquivada por falta de provas. O seu partido e as lideranças do mesmo, como o
Senador Aécio Neves, sofreram desgaste da imagem devido à mesma operação e outros
escândalos.
Antônio Anastasia segue líder nas pesquisas de intenção de voto 6 para governador de
Minas, com 19,4%, seguido do atual governador, Fernando Pimentel (PT), que possui 12,6%.
Em um momento de crise política e econômica, em sua Fanpage na aba “Sobre”, Antônio
Anastasia se coloca como “Professor”, apesar de estar a mais de 20 anos na carreira política.
Contudo, será que essa é a imagem que ele sustenta perante seus eleitores e seguidores na
rede social?
Para tanto, é relevante compreender a construção da realidade enquanto processo social
capaz de interferir na própria formação do sujeito. Ainda, como os meios de comunicação e
seu desenvolvimento são parte deste processo. Vivemos em uma Era Midiatizada, na qual os
meios de comunicação alteram a lógica dos demais campos sociais. Tendo-se ainda o
desenvolvimento da comunicação como fator capaz de causar alterações socioculturais, o
trabalho observa como a ascensão da internet e suas redes sociais estão inseridas nesse
processo e como seu uso é cada vez mais estratégico nas campanhas eleitorais, contribuindo
para uma interação político-eleitorado cada vez mais personalista.
Para isso, foi realizada uma Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011) da fanpage de
Anastasia, no período que compreende todo o mês de julho, no qual ocorreu a convenção do
PSDB em que o mesmo foi oficializado como candidato a governador de Minas.
2. Mídia e a Construção da Realidade e do Sujeito
A realidade faz parte de uma construção coletiva, que repetida com certa frequência
torna-se um hábito, se tipifica e, por fim, é institucionalizada (BERGER e LUCKMANN,
2007). A institucionalização implica historicidade e controle e se manifesta em coletividade.
Esse é o processo de formação dos campos sociais e suas instituições que compõem a

6 Pesquisa Eleitoral para Governador Minas Gerais 2018 – Data Tempo/CP2 de Julho de 2018. Disponível em: <
https://www.eleicoes2018.com/pesquisa-eleitoral-minas-gerais/ > Acessado em: 01 ago. 2018.

449
sociedade, as quais possuem seu conjunto de regras, valores, linguagem, ideologias e hábitos
particulares, uma espécie de microcosmos social (BERGER e LUCKMANN, 2007;
BOURDIEU, 1989). Para que esse processo se consolide, ele tem que ser legitimado e
disseminado para as novas gerações.
O indivíduo compreende a realidade da sociedade em que vive e internaliza suas regras
a partir dos processos de socialização, é por meio deles que ocorre a introdução do indivíduo
na sociedade ou de uma parte dela, sendo parte da forma como o indivíduo significa o mundo
a sua volta, interage com os outros sujeitos e exterioriza seu habitus (BERGER e
LUCKMANN, 2007, BOURDIEU, 1989). A sociedade é, portanto, um produto humano
criado para organizar o mundo e construir a realidade (exteriorização), ela é objetiva e possui
regras, valores e linguagens bem definidas e institucionalizadas, sendo compartilhadas e
reconhecidas pela coletividade. O indivíduo interioriza essas normas, sendo um produto
social, capaz de construir o mundo e este mesmo mundo construir a ele enquanto sujeito, sua
identidade (BERGER e LUCKMANN, 2007; SILVA, 2008).
As identidades são construídas e adquirem sentido a partir da linguagem e dos sistemas
simbólicos que as representam. Esta representação simbólica torna-se o meio pelo qual o
mundo é classificado e a realidade é construída. Ainda, as identidades não são unificadas,
pode haver diferenças conflitantes entre as mesmas, ou papéis sociais assumidos de acordo
com cada situação (SILVA, 2008). Portanto, a formação social e do próprio sujeito só é
possível através da utilização e transmissão dos símbolos, desde que esses sejam
reconhecidos pela coletividade e auxiliem na forma de significar o mundo – poder simbólico
(BOURDIEU, 1989).
A comunicação participa do processo de construção da realidade e legitimação dos
acontecimentos ao servir de meio pelo qual os símbolos são transmitidos. De acordo com
Thompson (2008), antes a comunicação era feita por meio da interação face a face, na qual os
sujeitos compartilhavam um mesmo tempo e espaço no momento da troca de informações;
com o surgimento do telefone, cartas, telégrafo, a interação passou a ser considerada como
“mediada”, tendo um suporte pelo qual a comunicação entre as pessoas é realizada, o que
flexibilizou a questão espaço-tempo. Por fim, chega-se a uma era de interação “quase
mediada”, em que há uma hibridização desses meios de comunicação com os novos (rádio,
TV e, mais recente, a internet), havendo uma ruptura espaço-temporal, na qual uma

450
mensagem pode chegar a um número cada vez maior de pessoas, em locais e tempos
diferentes (THOMPSON, 2008).

Em virtude da capacidade de fixação, os meios técnicos podem armazenar


informações ou conteúdos simbólico, e por isso são considerados como diferentes
tipos de “mecanismos de armazenamento de informação”, preparados, em diferentes
graus, para preservar informações ou conteúdo simbólico e torná-los disponíveis
para uso subsequente. (THOMPSON, 2008, p. 26)

Esse processo contribuiu para modificações socioculturais e altera, ainda, a relação


entre “público” e “privado”. O “público” estava relacionado a co-presença, ao
compartilhamento de informações e debates em um espaço comum. Com o aparecimento da
mídia criou-se novas formas de publicidade que são bem diferentes da anterior, não mais
limitada ao compartilhamento de um espaço comum. “Público” e “privado” relacionam-se
com o que é visível ou não. Assim, ações ou eventos podem tornar-se públicos pela gravação
e transmissão para outras pessoas em diferentes tempos e espaços (THOMPSON, 2008). Ou
seja, essa nova realidade impõe uma diferenciação entre existir e existir publicamente; a
existência física não garante a existência social, sendo esta última alcançada por intermédio
dos media. (RUBIM, 2000).
Para além, o processo de midiatização faz com que o campo midiático seja um campo
“semi-independente” da sociedade, o qual os demais campos e instituições têm de se adaptar,
obrigando, em menor ou maior grau, que os mesmos se submetam à sua lógica (BRAGA,
2012; HJARVARD, 2012; THOMPSON, 2008). Passamos de uma “sociedade dos meios”, na
qual a transmissão da mensagem era do emissor para o receptor; para uma “sociedade
midiatizada”, em que os receptores são ativos no processo de comunicação (FAUSTO
NETO, 2010), o que se intensifica com a ascensão da internet e suas redes sociais.
3. Interface Mídia e Política
O campo político não está alheio à interferência do campo midiático. Na política, a
interação mediada possibilita o maior contato entre os atores políticos e seus eleitores,
mesmo que eles não ocupem o mesmo tempo e espaço. Ou seja, por meio do uso dos mass
media, a interação entre político e eleitorado passa a ser mais abrangente. Ao adotar a lógica
e gramática da mídia, os agentes políticos são transformados em verdadeiros atores,
utilizando os meios de comunicação de palco para a disputa eleitoral (HJARVARD, 2012;
MANIN, 1995; SCHWARTZENBERG, 1977).

451
Ademais, as relações de comunicação são também relações de poder que necessitam do
capital material ou simbólico adquiridos pelos atores sociais envolvidos, os quais colaboram
para o acúmulo de poder simbólico desses agentes (BOURDIEU, 1989; MIGUEL, 2003).
Assim, mesmo o campo político tendo suas especificidades e características próprias, ele se
apropria do discurso midiático para alcançar o público eleitor, construir significados e atingir
seus objetivos.
Por muito tempo, a representação esteve ligada à relação de confiança entre eleitores e
partidos políticos, uma vez que essas pessoas se identificavam com as ideologias de
determinados partidos e com os mesmos estabeleciam uma relação de fidelidade (MANIN,
1995). Esse cenário veio se alterando por uma série de fatores, como: a centralidade da mídia
para a política; as estratégias cada vez mais personalistas de campanhas; e os partidos
tornam-se cada vez mais parecidos entre si (partidos catch-all), visando abranger o maior
número de eleitores (ALBUQUERQUE e DIAS, 2002; MANIN, 1995).
Para Manin (1995), através do uso dos meios de comunicação, a “democracia de
partido” dá lugar à “democracia de público”, o que significa que em lugar da identificação
partidária, os eleitores passam a escolher o candidato por sua personalidade e aptidões
pessoais, a identidade/imagem que o mesmo constrói nos meios de comunicação. Com o
desenvolvimento dos media, o eleitorado passa a conhecer os candidatos pela utilização da
mídia e, nesse contexto, a vitória passa a ser do melhor comunicador, de quem melhor utiliza
a lógica da mídia a seu favor. (MANIN, 1995; MIGUEL & BIROLI, 2010;
SCHWARTZENBERG, 1977). Isso contribui para que o eleitor vote de forma diferente de
uma eleição para outra, dependendo do contexto no qual se insere e das personalidades dos
candidatos (ALBUQUERQUE e DIAS, 2002).

A política, outrora, eram as ideias. Hoje, são as pessoas. Ou melhor, as


personagens. Pois cada dirigente parece escolher um emprego e desempenhar um
papel. Como num espetáculo. Doravante, o próprio Estado se transforma em
empresa de espetáculos, em ‘produtor’ de espetáculos. A política se faz, agora,
encenação. Agora, todo dirigente se exibe e se dá ares de vedete. Por aí vai a
personalização do poder. (SCHWARTZENBERG, 1977, p. 9)

Para Schwartzenberg (1977), o poder, antes anônimo e abstrato, agora, ganha uma
fisionomia – a fisionomia do dirigente. Diferente do poder pessoal, o qual uma única pessoa
controla todos os poderes, a personalização do poder apresenta-se como uma máscara. O
político assume a máscara da personagem, diferencia-se dos demais, aparece diante do seu

452
público e conquista seus votos, chegando assim ao poder. O poder, assim, personaliza-se, é
encarnado na personagem e ela passa a simbolizar a nação ou partido, representando o poder
do grupo que nele se encarna. Entretanto, o candidato ao assumir um determinado papel deve
mantê-lo até o final, mesmo que isso cause constante ensaio e vigilância. Caso contrário,
pode acabar com sua possibilidade de vitória, uma vez que o eleitorado pode achar estranho
ou se decepcionar com a mudança repentina de um candidato. A representação torna-se uma
simulação, um fingimento da realidade, capaz de seduzir e persuadir o público, com intuito
de conquistar o seu voto. Este personagem se adequa a cada situação e contexto vigente.
Desse modo, com o aparecimento dos meios de comunicação, os atores políticos e os
aspirantes a esse meio tiveram de se atentar às suas apresentações diante do público e à
imagem pessoal, agora mediada e construída pela mídia (THOMPSON, 2008;
SCHWARTZENBERG, 1977). Mesmo o campo político tendo suas especificidades e
características próprias, ele se apropria do discurso midiático para alcançar o público eleitor,
construir significados e atingir seus objetivos. Ou seja, os atores políticos são moldados de
modo a construir uma realidade sobre si – que nem sempre coincide com o real – capaz de
gerar identificação e projeção do público.
4. Comunicação Política e Internet
A internet foi criada para fins militares na década de 1960, nos Estados Unidos
(CASTELLS, 1999). Nas décadas seguintes, essa rede de comunicação foi incorporada para
as mais diferentes finalidades, inclusive para as relações interpessoais e, é nesse contexto,
que surgem as redes sociais. O que sugere que “os novos princípios mais democráticos
devem estar alicerçados em uma interface cultural entre homem e novas tecnologias”
(PINHEIRO, 2009, p. 101). Assim, o surgimento da internet e seu desenvolvimento
impactaram o homem e os diferentes setores da sociedade, inclusive, a política.
O uso das plataformas digitais incorporadas às campanhas teve início na década de 90,
nos Estados Unidos. Somente no século XXI, com o potencial da web 2.0, que as estratégias
de campanhas passaram a explorar questões que são próprias da internet, como a interação, a
participação em tempo real, a convergência de mídia. A disputa com maior incorporação das
redes sociais até então foram as eleições presidenciais dos EUA de 2010, na qual Obama foi
eleito (AGGIO, 2011).
No Brasil, a primeira campanha a utilizar a internet foi em 1998 e, na época, menos de
3% dos eleitores tinha acesso à internet (SOUSA e MARQUES, 2017). Todavia, somente nas

453
eleições de 2010 permitiu-se a utilização dos recursos digitais, como as mídias sociais
(AGGIO, 2015). No início, foram usados os websites e blogs, domínios ainda bastante
particulares, os quais permitia o controle sobre as ferramentas e dos recursos utilizados, bem
como, controle de como a comunicação se estabeleceria. Com o advento e popularização das
redes sociais, como o Facebook, perde-se um pouco esse controle, o que força os partidos e
candidatos a adaptarem suas campanhas a exploração desses ambientes nos quais os usuários
criam as regras e conferem os sentidos.
Se a democracia digital possibilita novas formas de interação e de participação política,
destacam-se os investimentos cada vez maiores em ferramentas como as redes sociais, como
é o caso do Facebook nas disputas eleitorais. Nesse sentido é válido destacar que, de acordo
com a última pesquisa do CONECTAí Express, divulgada pelo IBOPE Inteligência 7 em
agosto de 2017, o Facebook (86%) é a segunda rede social mais utilizada pelos brasileiros,
perde apenas para o Whatsapp (91%), isso torna seu estudo relevante.
As campanhas políticas têm passado por alterações devido às transformações na
comunicação, inclusive devido à utilização das plataformas virtuais, isso porque mais do que
permitir a comunicação dos indivíduos, elas ampliaram a capacidade de conexão dos sujeitos
(RECUERO, 2009; CASTELLS, 1999). Esse novo cenário acarreta novos desafios ao
planejamento das estratégias de campanha e construção da imagem pública dos candidatos,
sendo um meio integrante “da estratégia dos núcleos de comunicação das campanhas a
tentativa de atrair a militância espontânea a fim de ampliar a visibilidade da agenda defendida
pelo candidato” (MIOLA e MARQUES, 2018, p. 3-4). Isso contribui para que, mesmo em
tempos fora das disputas, os agentes políticos se apresentem aos usuários dessas redes, tanto
em termos políticos quanto pessoais (SOUSA e MARQUES, 2017). A disputa online,
portanto, diminui o distanciamento entre a esfera civil e a política e, em temos de
representatividade, essa participação online pode ser mais rica se comparada às iniciativas
presenciais (AGGIO, 2015).
Contudo, as disputas nos meios de comunicação digitais ocupam-se de uma abordagem
mais informativa do que interativa. Isso ocorre por uma série de fatores, dentre eles o custo
em responder cada mensagem encaminhada, possibilidade da perda de controle da agenda e a

7 A pesquisa tem como objeto os aplicativos de redes sociais que os brasileiros mais possuem. Disponível em: <
http://www.ibopeinteligencia.com/noticias-e-pesquisas/whatsapp-e-o-app-de-rede-social-mais-usado-pelos-internautas-
brasileiros/ > Acessado em: 01 jul. 2018.

454
zona de conforto criada pela possibilidade do candidato se abster de discussões sensíveis para
si (STOMER-GALLEY apud MIOLA e MARQUES, 2018).
Isto posto, torna-se importante compreender como a mídia (tradicional e digital)
interfere nos processos sociais, como as disputas eleitorais, tendo como objeto as eleições
para governador de Minas Gerais em 2018. Principalmente, vindo de um contexto de
mudanças na legislação eleitoral, desgaste dos partidos políticos, descrença na política por
parte da população brasileira e todo contexto vigente.
5. Estudo de caso: a análise da fanpage de Antônio Anastasia
Esse estudo de casos busca investigar quais recursos foram utilizados na página do pré-
candidato à eleição, Antônio Anastasia (PSDB), procurando indícios da construção da
imagem do mesmo.
5.1 Metodologia e Corpus de Análise
Como corpus de análise, foram analisadas as publicações do pré-candidato ao governo
de Minas Gerais, Antônio Anastasia (PSDB), por meio da utilização do aplicativo Netvizz 8,
compreendendo todas as publicações do mês de julho de 2018. Para análise dos dados, foi
utilizada a Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011), tomando como base as seguintes
categorias de análise para mapear os tipos de conteúdos e formatos acionados (TAB 1):
TABELA 1
Categorias de Análise – conteúdos das mensagens no Facebook
Categoria Descrição
Imagem do candidato Construção da imagem do candidato a partir dos
atributos pessoais, qualidades, trajetória de vida e no
campo político.
Construção da imagem do estado Ressalta pontos positivos de Minas Gerais e sua
população, construindo uma imagem positiva.
Desconstrução da imagem do estado Ressalta pontos negativos de Minas Gerais,
desconstruindo a imagem do mesmo.
Temas Políticos Propostas e discussão sobre temáticas como saúde,
educação, segurança pública, entre outras.
Resposta ao ataque de adversários Postagens que visam defender a imagem do candidato
frente a acusação de opositores.
Crítica a adversários Críticas e ataque aos opositores e seus partidos.
Menção a partidos Postagens que citam o partido do pré-candidato e/ou
partidos aliados.
Pré-campanha Postagem na qual o político fala suas propostas e já se
coloca como candidato ao governo.
Visibilidade na mídia Participação em entrevistas, programas, reportagens,
entre outras formas de aparição direta na imprensa e
suas distintas plataformas.

8“Extraia gratuitamente dados de usuários das páginas e grupos do Facebook”, publicada pelo site Tech Tudo. Disponível
em: < https://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/netvizz.html > Acessado em: 02 ago. 2018.

455
Eventos Postagens que destacam a participação do pré-
candidato em eventos como debates, conferências,
reuniões, entre outros, que não foram promovidos
pelo próprio político.
Apoio de líderes, políticos e/ou populares Mensagens de apoio feitas pelo ator político e/ou
recebidas.
Agenda Divulgação de agenda do candidato e outros eventos
Prestação de contas Postagem sobre o que o político tem feito na gestão
atual ou passada.
Fatos Contemporâneos Postagens sobre os fatos que estão ocorrendo
concomitante no cenário atual, como datas
comemorativas, Copa do Mundo, etc.
Pesquisa de Intenção de Voto Postagens com a divulgação das últimas pesquisas de
intenção de voto.
Mobilização e apelo ao engajamento dos seguidores Tentativa de mobilizar a participação dos seguidores
em alguma campanha ou programa.
Outros Não se encaixam em nenhuma das categorias acima.
FONTE – PRÓPRIOS PESQUISADORES

Dentro do conteúdo “Imagem do candidato” estabeleceu-se ainda a diferenciação de


quando o candidato constrói sua imagem fazendo menção a sua trajetória como político
(governador, senador, entre outros cargos ocupados na carreira) e como professor/servidor.
Quanto ao formato foram utilizadas as seguintes categorias: Fotos/Imagens, Gráficos,
Charges, Vídeos, Áudios, Links, Evento, GIF, Transmissão ao vivo, Texto e Outros.
Ainda, é importante ressaltar que cada postagem feita nas páginas, devido a própria
natureza da internet, pode compreender mais de um conteúdo e mais de um formato.
5.2 Contexto Político e Econômico
O cenário de 2018 apresenta-se mais conturbado que o anterior, visto que o país
enfrenta uma grave crise política e institucional, o que promete eleições acirradas e
fragmentadas. Desde a eleição presidencial bastante disputada de 2014, entre Aécio Neves
(PSDB) e Dilma Rousseff (PT), a polarização ganhou mais evidência. Ao assumir a
presidência, Dilma Rousseff começou a sofrer com a oposição até dos partidos aliados, como
do PMDB (agora MDB). Isso culminou no impeachment em agosto de 2016, assumindo o
vice, Michel Temer (MDB). Para além, o cenário ainda inclui o desgaste após denúncias de
corrupção, principalmente com a Operação Lava Jato, que envolve políticos dos mais
diversos partidos e empresários; a crise econômica vigente, e fragmentação das forças
políticas.
Outro fator de relevância é a disputa eleitoral de 2016 na capital mineira, indicando os
rumos da política no estado. No 1º turno, o candidato tucano que liderava as pesquisas, João

456
Leite, foi para o 2º turno com o candidato do PHS e outsider político, Alexandre Kalil.
Entretanto, Kalil acabou se elegendo como prefeito de BH em segundo turno de forma
surpreendente e com forte utilização das redes sociais.
O pleito para governador estadual de 2018 será o primeiro no qual as mudanças na
legislação eleitoral sobre propaganda estarão em vigência. Em 2015, as alterações reduziram
o tempo de Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) de 20 para 10 minutos por
bloco, sendo um à tarde e outro à noite. Este bloco deve ser dividido proporcionalmente entre
todos os candidatos, o que culmina em poucos minutos – ou segundos – para alguns. O
período de propaganda também foi reduzido de 45 para 35 dias. Outra mudança foi o veto das
doações feitas por empresas. Portanto, torna-se relevante verificar quais os impactos dessas
mudanças nas campanhas e se isso acarreta, ou não, uma migração para e as redes sociais.
Além disso, Minas Gerais enfrenta uma crise econômica sem precedentes. O estado
está inadimplente com municípios e, de acordo com a Associação de Municípios 9, deve um
montante de quase 5 bilhões de reais, sendo o setor mais afetado o da Saúde. Sendo que esse
não repasse vem afetando o funcionamento dos próprios municípios. Ainda, os salários dos
professores e demais servidores públicos 10 está sendo parcelado e sofre atrasos. Ainda, as
obras públicas estão paradas ou atrasadas por falta e recursos. Esta crise que vem
contribuindo para a construção de uma imagem negativa do Governo Pimentel e sendo
utilizada pelos opositores nas suas respectivas campanhas.
5.3 Análise dos conteúdos acionados
O pré-candidato e ex-governador de Minas, Antônio Anastasia (PSDB), mais de 89
mil curtidas e seguidores em sua página no Facebook. Nela, o tucano responde a quase todos
os comentários feitos nas postagens. Todavia, o conteúdo das mesmas ainda é informacional,
os comentários não repercurtem diretamente nos assuntos de suas publicações.
Na sua fanpage, Anastasia declara-se como “Professor”. Além disso, na aba “Sobre”,
na qual há uma breve biografia sobre o pré-candidato, ele – sua equipe – coloca como
“Conquistas” os cargos ocupados na carreira política, mas reforça a profissão na qual
trabalhou: “Professor”.
9
“Governo de Minas deve R$ 4,7 bilhões a prefeituras, diz Associação de Municípios”, veiculada no G1.
Disponível em: < https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/governo-de-minas-deve-r-47-bilhoes-a-
prefeituras-diz-associacao-de-municipios.ghtml > Acessado em: 01 ago. 2018.
10
“Sem data para pagar, governo de Minas atrasa salários de novo”, veiculada no Estado de Minas. Disponível
em: < https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/08/01/interna_politica,977155/sem-data-para-pagar-
governo-de-minas-atrasa-salarios-de-novo.shtml > Acessado em: 01 ago. 2018.

457
Ao se colocar como “Professor”, profissão na qual atuou como servidor público, o
pré-candidato aciona uma personagem bastante simbólica. Ao se colocar como “Professor”,
Anastasia atinge dois aspectos: a) Afasta sua imagem da política, já que o eleitorado está
descrente neste campo devido às constantes denúncias de corrupção, que inclusive envolve
seu partido e lideranças do mesmo; e b) Há uma aproximação de uma parcela do eleitorado
que está insatisfeita com o atual governador e oponente na disputa de 2018, uma vez que a
categoria dos professores e demais servidores se encontra inconformada com os atrasos de
seus salários.
Como “Professor”, Anastasia mostra-se próximo e empático aos problemas
vivenciados por essa categoria e usa isto como ferramenta para a conquista de votos.
No mês de julho de 2018, Antônio Anastasia fez 58 postagens em sua fanpage,
aproximadamente 3 posts por dia. Como formato das publicações, o tucano utiliza mais
“Fotos/Imagens” (presente em 46,5% dos posts), seguida de “Vídeos” (39,6% das
publicações) e de “Texto” (8,6%), categoria estabelecida para postagens que contenham
somente textos sem a presença de outro recurso.
As categorias mais acionadas foram: “Imagem do candidato”, presente em 39,6% das
publicações; seguida de “Pré-campanha”, presente em 37,9%; e “Prestação de contas”,
presente em 13,7%. É válido observar que essas categorias contribuem para a construção da
imagem do candidato, focam nas suas qualidades e aptidões pessoais e políticas, sendo assim
de cunho personalista. Para além, a categoria de “Prestação de contas”, usada para apresentar
aos seguidores os trabalhos desenvolvidos enquanto Senador da República pelo estado de
Minas, foi mais acionada no início do mês de julho. Ao se aproximar a convenção do PSDB,
na qual o mesmo foi oficializado como candidato a governador, as postagens assumem um
tom diferente, passam a enfatizar a trajetória do mesmo enquanto ex-governador do estado.
Categorias que apresentam propostas e o programa de governo, como a categoria
“Temas Políticos”, assume valor expressivo se somado todos os temas abordados nas
postagens (estradas, segurança pública, educação, economia, proteção dos animais, saúde e
municípios), estando presente em 17,2% das publicações.
A categoria “Menção a partidos” é acionada somente para citar partidos aliados. Em
nenhum momento, o pré-candidato cita seu próprio partido, sendo uma possível estratégia de
preservação de sua imagem frente aos escândalos os quais envolveram seu partido e

458
lideranças, como o senador Aécio Neves. Em “Apoio de líderes, políticos e populares”,
presente em apenas 6,8% das publicações, há pouca participação de lideranças políticas.
As categorias acionadas e seu respectivo número de postagens estão a seguir (TAB. 2):
TABELA 2
Conteúdos postados pelo pré-candidato Anastasia
Conteúdo Número de postagens Porcentagem do total (%)
Imagem do candidato 23 39,6
Construção da imagem do estado 6 10,3
Desconstrução da imagem do 6 10,3
estado
Temas políticos: Estradas 1 1,7
Temas políticos: Segurança Pública 1 1,7
Temas políticos: Educação 2 3,4
Temas políticos: Economia 3 5,1
Temas políticos: Proteção dos 1 1,7
animais
Temas políticos: Saúde 1 1,7
Temas políticos: Municípios 1 1,7
Crítica a adversários 2 3,4
Menção a partidos 2 3,4
Pré-campanha 22 37,9
Eventos 4 6,8
Apoio de líderes, políticos ou 4 6,8
populares
Prestação de contas 8 13,7
Fatos contemporâneos 3 5,17
Pesquisa de intenção de voto 1 1,7
Mobilização e apelo ao 1 1,7
engajamento dos seguidores
Outros 5 8,6
FONTE – PRÓPRIOS PESQUISADORES

A categoria “Imagem do candidato” foi subdividida para que se pudesse verificar se


aparece mais a imagem/personagem “Anastasia político” ou de “Anastasia professor”,
enfatizada em sua fanpage. A seguir, os resultados obtidos (TAB. 3):
TABELA 3
Personagens acionados pelo candidato em sua fanpage
Personagem citado Número de postagens
Senador 10
Professor 2
Governador 6
Político 1
FONTE: PRÓPRIOS PESQUISADORES

É possível notar que o personagem “Anastasia político” ainda prevalece se comparada


ao “Anastasia Professor”. Isto demonstra certa contradição entre a personagem que Anastasia
deseja apresentar (Professor/servidor) e a que ele realmente apresenta em sua rede social

459
(Político). Apesar disso, reforça a imagem de bom administrador, a qual o candidato utiliza e
utilizará nas disputas, ao construir uma imagem positiva enquanto ex-governador de Minas.
6. Considerações Finais
O pré-candidato a govenador de Minas, Antônio Anastasia (PSDB), como visto,
utiliza já de forma estratégica sua página no Facebook para alcançar seu eleitorado e
construir uma imagem positiva sobre si, com vistas à conquista de votos para pleito de 2018.
O cenário político e econômico vigente no estado e no país também estão refletidos em suas
postagens. A maioria das mensagens acionadas possui cunho personalista ao valorizar a
trajetória política e pessoal do candidato, com nenhuma menção a seu partido e a lideranças
do mesmo.
A internet já é usada de forma estratégica, todavia a comunicação não é estabelecida
de forma interativa. Mesmo o pré-candidato (ou sua equipe) respondendo aos comentários
das postagens, esses comentários não influenciam na produção do conteúdo das fanpages, ou
seja, ainda só é publicado aquilo que o candidato e sua equipe julgam necessários e
interessantes naquele momento para a promoção de sua imagem. Contudo, a internet
possibilita uma aproximação pré-candidato e eleitorado antes do período da campanha
propriamente, o que contribui para a manutenção da visibilidade e presença no imaginário
social.
Ao acompanhar as redes sociais de um dos pré-candidatos à disputa, tem-se uma visão
de como pode ser o pleito de 2018, quais as personagens a serem construídas e acionadas
pelos candidatos, de acordo com a necessidade do momento, para atrair mais eleitores e
angariar votos objetivando a vitória.

Referências

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461
REDES E COMPORTAMENTO ELEITORAL: 1
o ambiente online nas eleições de 2018
NETWORKS AND ELECTORAL BEHAVIOR:
the online environment in the 2018 elections
João Guilherme Bastos dos Santos (PPGCOM-UERJ) 2
Vanessa Cristine Cardozo Cunha (PPGCOM-UERJ)3
Karina Silva dos Santos (PPGCOM-UFF) 4

Resumo: Este trabalho relata as observações preliminares da pesquisa sobre as campanhas


presidenciais nas mídias sociais, com ênfase nas diferenças entre as plataformas digitais mais
usadas e nas novas dinâmicas comunicacionais possibilitadas pelo ambiente digital,
principalmente na plataforma Whatsapp. Utilizamos métodos combinados, apoiados na imersão
de inspiração etnográfica, por um lado, na análise quantitativa de redes por outro e em
metodologia própria para composição de redes. Os candidatos e suas redes de apoio analisados
até agora foram: Fernando Haddad (PT), Jair Bolsonaro (PSL), Ciro Gomes (PDT), Marina
Silva (Rede), Geraldo Alckmin (PSDB), Guilherme Boulos (PSOL) e Henrique Mereilles (PMDB).
Mais do que monitoramento e acompanhamento das redes, buscamos entender como diferentes
grupos estão interconectados e compõem uma grande rede de grupos de Whatsapp dedicados à
geração, circulação e interpretação de informação política.

Palavras-Chave: Eleições 2018 . Informação política. Mobilização online.

1. Introdução
Este trabalho é resultado preliminar de uma série de investigações que o grupo de
pesquisa Tecnologias de Comunicação e Política vem realizando desde abril de 2018 no
ambiente online. Logo, este estudo compõem um esforço mais amplo de análise das
estratégias das campanhas dos candidatos à presidência, em 2018, no ambiente conectado.
Neste artigo apresentamos alguns resultados iniciais da análise das dinâmicas

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Política do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
É membro associado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD),
pesquisador do grupo Tecnologia da Comunicação Política (PPGCOM-UERJ), doutorando em Comunicação
Social pela UERJ, gui_bsantos@hotmail.com
3
É membro associado ao Instituto Nacional em Ciência e Tecnologia (INTC-DD), pesquisadora voluntária do
grupo Tecnologia da Comunicação Política (PPGCOM-UERJ), mestre em Comunicação Social pela UERJ,
vanessa_cardozo07@hotmail.com
4
É pesquisadora do grupo Tecnologia da Comunicação Política (PPGCOM-UERJ), mestranda em
Comunicação Social pela UFF; kaarinasantos93@gmail.com.

462
comunicacionais em grupos de apoio dos candidatos à presidência na plataforma Whatsapp.
Admitindo a importância crescente das mídias digitais para a comunicação política,
buscamos uma perspectiva multidisciplinar e multicausal, entendendo os sistemas de
comunicação contemporâneos em que estamos inseridos como um conjunto de plataformas
interconectadas com diferentes linguagens e gramáticas, em que é preciso compreender a
presença de emissores principais, secundários e alternativos; máquinas estatais e partidárias
experimentando profissionalmente as possibilidades persuasivas das novas tecnologias;
usuários com diferentes perfis, com interesses e intenções variados – para listar algumas das
variáveis incidentes sobre a cultura política e decisão eleitoral dos cidadãos conectados
brasileiros.
Devido ao desenvolvimento acelerado das mídias digitais e suas diferentes
apropriações, ainda não existem estudos no campo da Comunicação Política que foquem nas
dinâmicas comunicacionais na plataforma Whatsapp e o papel desta mídia na circulação da
informação política online. Assim, os investimentos anteriores do grupo de pesquisa TCP em
pesquisas na rede de forma imersiva levaram a um dos primeiros estudos focados em análises
de Whatsapp, especificamente na aplicação de métricas e análise estrutural de redes.
Ao começar meses antes do início da pré-campanha, a análise engloba não apenas o
período eleitoral, mas o processo de constituição de diversos grupos ao longo do tempo e a
extinção de outros grupos devido a ataques, bem como o processo de aprendizado que
moldou algumas estratégias utilizadas durante o período eleitoral. Apesar do Whatsapp ser
considerado consensualmente a plataforma protagonista das eleições em 2018, a novidade
central não está relacionada apenas a produção de notícias falsas, mas a um fator que parece
não receber atenção na maioria das análises sobre o potencial da rede para divulgar notícias
falsas e como se dá a circulação de informações políticas em uma rede social fechada.
O sucesso da utilização desta plataforma para viralização de conteúdos políticos, no
entanto, é contra-intuitivo, porque o WhatsApp possui design de um espaço de comunicação
privado, sem algoritmos de impulsionamento de visibilidade ou entrega direcionada de
conteúdos, que limita número de postagens compartilhada diretamente e número de pessoas
que podem pertencer a um grupo. A velocidade exigida pela viralização de uma notícia falsa
antes que seu desmentido se propague exige um aumento exponencial de visibilidade a cada
compartilhamento, incompatível com índices normais de compartilhamento individual em

463
redes privadas. Por esta razão, torna-se indispensável para os estudos do campo da
Comunicação Política se debruçar nas especificidades desta plataforma para compreender as
dinâmicas possíveis neste ambiente e os potenciais impactos nas lógicas das campanhas
eleitorais na internet.

2. Campanha eleitoral, personalismo e mobilização política online: os


caminhos da polarização

O debate sobre Internet e Política, precisamente sobre identificação partidária, redes


sociais online e voto, tem apontado para a crescente importância da mobilização política
online na tomada da decisão eleitoral, principalmente num contexto de baixa informação e de
polarização política entre duas correntes: o petismo e o antipetismo.
Para compreendermos tal antagonismo, é preciso contextualizar brevemente as raízes
dessa polarização. Trabalhos como o de Limongi & Cortez (2010) dissertam que o PT e o
PSDB constituíram, ao longo dos anos 1990, os dois pólos dessa disputa, alternando-se frente
ao Poder Executivo. De acordo com esses autores, a polarização da disputa presidencial
contribuiu para uma estruturação pragmática do sistema político-partidário brasileiro, na
medida em que grande parte das facções passou a gravitar em torno dos projetos de governo
capitaneados por essas duas grandes siglas.
Nesse sentido, a conciliação delineou o modus operandi da política contemporânea
brasileira, inclusive no decorrer dos governos de Lula e de Dilma. A percepção sobre a
conciliação como estratégia usual da práxis partidária coaduna com as ideias de Singer
(2008), para quem a experiência política do Lulismo se explica como uma variante da via
conservadora da modernização. Trata-se de um modelo no qual, embora haja uma tímida
alavancagem dos mais necessitados, os setores reacionários agrários e as elites dominantes
permanecem com seus interesses intactos. É, portanto, no reformismo fraco (2008, p.10) dos
governos petistas que a política esvazia ideologicamente o Estado, como agente condutor da
mudança, para saciar as grandes oligarquias.
Vale frisar, contudo, que os mandatos voltados aos interesses do grande capital
financeiro não foram suficientes, a longo prazo, para manter o Partido dos Trabalhadores no
poder. Por mais que esse tenha adotado um programa de governo muito similar ao de seu

464
oponente, sua presidenta foi deposta por um Golpe de Novo Tipo (Pérez-Liñan, 2007),
arquitetado por uma oposição e judiciários inconformados e apoiado por setores da sociedade
descontentes com o acirramento da crise política e com os sucessivos escândalos de
corrupção, este posteriormente também desgastou a imagem do PSDB.
Parte inconteste desse processo, a mídia desempenhou um papel de destaque no
declínio do Partido dos Trabalhadores. Estudos recentes, como o elaborado pelo cientista
político Fernando Azevedo (2016), comprovam a atuação dos três maiores veículos do país
(Folha, Estadão e O Globo) na construção de uma grande narrativa antipetista, que ganhou
força durante as Manifestações de Junho de 2013.
A proporção dessas manifestações e a velocidade com que alcançaram parte de suas
demandas causaram uma surpresa em boa parte dos estudiosos do país. Sobre essa velocidade
de divulgação Aldé e Santos (2013) relatam que, se por um lado não possuíam uma “voz
uníssona”; por outro, entrevistas realizadas pelo Ibope revelaram uma convergência nos tipos
de insatisfações. Segundo o órgão, 77% dos manifestantes reivindicaram melhoria no
transporte público e que citaram como principais problemas: a falta de investimento na saúde,
na segurança pública e na educação - pautas essas que, como veremos adiante, foram
apropriadas pelas novas direitas e ressignificadas pelos ideários de Jair Messias Bolsonar.
No que tange às redes sociais online, Moreira e Santiago (2013) destacam o uso da
internet e de smartphones como um dos principais instrumentos de comunicação e de
mobilização dos atores que compuseram o caldo das manifestações. A emergência desses
grupos organizados em rede, sob ponto de vista de Castells (2013), advém de um forte
sentimento de descrença nas organizações tradicionais (partidos políticos e associações) e na
emergência de movimentos organizados em rede com base em coalizões formadas em torno
de valores.
Desse modo, a internet passou a comportar uma série de canais de comunicação
digital com potencialidade para abastecer informacionalmente os seus seguidores, cumprindo
uma função importante como meio alternativo à grande mídia. Diante da instabilidade
política e do potencial da internet como ferramenta de construção de identidades políticas, as
Novas Direitas encontraram nas redes sociais online o terreno fértil para se posicionarem
discursivamente contra o PT e, posteriormente, contra o sistema político-partidário brasileiro,

465
colocando-se como a única opção viável aos eleitores que prezam pela “honestidade” e pela
“moral cristã” na vida pública.
Assim, o processo eleitoral de 2018 ocorreu sob um clima de polarização e de
fragilidade das instituições democráticas. Dentre os motivos para a vulnerabilidade das
instituições, não podemos deixar de enfatizar as frustrações do governo Temer, cujos planos
de recuperação da economia prometidos para os meses de 2017 jamais se concretizaram. Pelo
contrário, o desemprego e as fragilidades política e econômica fragilizaram a posição
brasileira no cenário internacional. Aliado a isso, as graves denúncias de corrupção contra o
presidente interino e contra vários políticos associados ao golpe de novo tipo inviabilizaram
as candidaturas presidenciais das lideranças tradicionais.
No campo eleitoral, o PT construiu uma estratégia de oposição às medidas
impopulares de Temer e à prisão do ex-presidente Lula, o qual se manteve candidato até o
último momento para garantir a transferência de votos a Haddad no segundo turno. Também,
no campo político, estiveram presentes outras duas candidaturas que analistas consideram
como expressão da centro-esquerda brasileira.
A novidade, contudo, foi a eleição de um candidato vinculado a um pequeno
partido de extrema-direita, com fortes posições conservadores e de cunho fascista associadas
a uma agenda econômica ultraliberal. Sob a alegação de impedir a “volta do PT, Bolsonaro
conquistou o agronegócio, as igrejas e mídias conservadoras e o empresariado nacional
dominado pelo capital financeiro. Esses atores, por sua vez, cooptaram setores democráticos
da burguesia nacional e das classes médias que desaprovam os governos petistas, mesmo
aquelas que recusam a pauta moralista do candidato.
No que diz respeito às redes, a conexão entre políticos e eleitores no ambiente
online passou a funcionar mais do que nunca como instrumento de legitimidade política, pois
proporciona acesso direto ao grande público. Em vista disso, Marques (2016) afirma que a
comunicação política digital tem contribuído, de forma única, para a gestão das aparências de
atores políticos, os quais investem massivamente em técnicas que simulam uma relação de
espontaneidade com o internauta-eleitor.
Como consequência, observamos uma profissionalização cada vez maior das
campanhas, na medida em que a proporção permanente entre indivíduo e representado traz a
necessidade constante de mensurar a aceitabilidade do usuário. Além disso, a comunicação

466
digital possibilita implementar iniciativas que transformam internautas ávidos (ALDÉ, 2011)
em agentes que cooperam na construção de candidaturas, por meio do compartilhamento ou
da produção de conteúdo.
Soma-se a isso a preocupação constante dos candidatos em empregar ferramentas
digitais de comunicação para prender a atenção dos eleitores em suas campanhas eleitorais. O
fenômeno das redes, inclusive, tem levado a formação da segunda tela, exigindo das
coordenações de campanha a elaboração de estratégias integradas, aptas a captar a atenção de
um público cada vez mais disperso e que consiga otimizar os recursos financeiros e humano
nessa disputa.
É nessa circunstância que o sistema de estrelato, no qual o atributos do carisma se
associam à imagem pública, toma conta das eleições presidenciais de 2018, em que os
candidatos usaram, de modo ainda mais pragmáticos, as mídias sociais online para conquistar
os seus eleitores. Embora faça parte de um esforço maior, este artigo diz respeito justamente
ao ambiente do Whatsapp, composto por redes de diversas matizes.
A análise desses grupos permitiu contemplar um modelo de participação política
baseado no consumo de escândalos, em que a construção da imagem pública de candidatos
segue as mesmas premissas associadas aos ícones da cultura pop (BOORSTIN, 2012;
MARSHAL, 1997; AIRES E CAMARA, 2017). Dito isso, ainda que o personalismo não seja
um fenômeno recente o investimento massivo nas redes sociais online - e especialmente no
Whatsapp - é uma forma de alcançar a esfera pública e popular, mediando a forma como o
candidato é visto por seus pares.
No que concerne aos caminhos da recepção, a Teoria da Escolha Racional (DOWNS,
1957; POPKIN, 1994) reforça o ponto de vista aqui defendido, visto que grande parte dos
usuários não está disposta a arcar com o alto custo para a obtenção da informação política, o
que inclui acompanhar o que os candidatos escrevem nas redes, os estrategistas empregam
uma série de ferramentas digitais e recursos teatrais para aproximar determinada notícia de
seu receptor.
Esse quadro leva a formação de fenômenos mais recentes, como a utilização da
chamada segunda tela, que exige das coordenações de campanha a elaboração de estratégias
integradas, aptas a captar a atenção de um público cada vez mais disperso, com o intuito de

467
otimizar os recursos financeiros e humanos empregados, o que traduz o investimento dos
analistas dos cinco presidenciáveis na novidade do momento, a rede social Whatsapp.

3. Eleições 2018 e a novidade do momento: o Zap Zap

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), realizada


pelo IBGE, o aplicativo de mensagens Whatsapp possui atualmente 120 milhões de usuários
ativos no Brasil e 1,5 bilhão no mundo 5. Considerando ainda que, segundo o Instituto, 116
milhões de brasileiros acessam à Internet e que 95% destes internautas utilizaram o celular
para este acesso. Logo, fica evidente que o uso do aplicativo Whatsapp é um fenômeno
incontestável na vida cotidiana do internauta brasileiro. Agora cabe questionar quais
impactos essa inovação está trazendo para a comunicação da sociedade civil e, mais
especificamente, para a aquisição de informação política do cidadão comum.
O investimento na utilização do WhatsApp para difusão de notícias, inclusive falsas, é
completamente previsível, mas o sucesso desta estratégia possui aspectos contra-intuitivos e
de difícil compreensão. Por um lado, o investimento é previsível porque esta é a rede que
melhor responde ao problema “até onde esta tecnologia é rastreável?‟. Pois estamos lidando
com uma rede social fechada, um espaço de comunicação privado e criptografado, garantindo
assim o anonimato das fontes primárias de publicação e proteção ao conteúdo circulado. A
difusão de notícias falsas enfrenta um dilema: precisa ser escondida do escrutínio público e
preferencialmente ocupar lugares em que sua visibilidade seja limitada ao mesmo tempo em
que seu impacto eleitoral exige que alcance grandes públicos. Logo, como investir em grande
energia da campanha em uma rede privada com um alcance tão limitado? Nesse contexto,
todas as campanhas eleitorais de candidatos à presidência nas eleições de 2018 investiram
energia nesta plataforma? As proporções de uso foram semelhantes?
Baseado neste ponto, testamos a hipótese que norteia nosso estudo ainda em
construção, confirmada até o momento em todos os levantamentos feitos durante o período
eleitoral: no lugar de uma rede de pessoas conectadas através de grupos, o WhatsApp
também pode ser entendido como uma rede de grupos interconectados por participantes em
comum que regulam o intercâmbio de informações e permitem lógicas de difusão viral de

5
Ver em: <https://www1.folha.uol.com.br/tec/2018/07/facebook-chega-a-127-milhoes-de-usuarios-mensais-no-
brasil.shtml>

468
notícias falsas dentro de uma rede de fechada. Este tipo de rede é conceituada como rede
bipartite, ou seja, uma rede em que grupos não estão formalmente associados entre si, mas
em que participantes em comum podem constituir conexões e fomentar dinâmicas de rede.
Esta rede interconectada de grupos e atores pode ser investigada a partir de aplicação de
métodos de análise de redes, que vem sendo testada ao longo do projeto em questão.
Devido à complexidade do desenvolvimento da redes de grupos que encontramos,
descartamos a possibilidade de analisar apenas a quantificação de conteúdos falsos nos
grupos, uma vez que ao analisar apenas a quantidade em grandes grupos estaríamos
assumindo que postagens em diferentes grupos são equivalentes, ignorando dinâmicas
básicas de redes complexas e as especificidades de cada componente da rede. Por isso,
buscamos neste trabalho apresentar a constituição do nosso microcosmo de análise e o
trabalho imersivo que estamos desenvolvendo nestes grupos. Vale destacar que não temos a
pretensão aqui de compor uma rede exaustiva de grupos políticos interconectados no
Whatsapp e nem apresentar redes completas de campanhas eleitorais no aplicativo de
mensagens (o que seria impossível no contexto atual). Contudo, o estudo pretende a partir da
investigação de um microcosmo de grupos oferecer um quadro capaz de identificar padrões
de comportamento, articulação e circulação de informação para buscar compreender as
possíveis dinâmicas no ambiente conectado nas últimas eleições, auxiliando também na
compreensão de modelos de rede e aplicável em redes mais amplas.
As observações preliminares desta análise são resultado da análise de uma base com
438,4 mil mensagens de WhatsApp circuladas em 90 grupos políticos interconectados. A
constituição desta amostra inicialmente surgiu, em abril de 2018, a partir de 2 grupos
públicos divulgados através de links em uma fanpage no Facebook chamada Direita
Conservadora 6. A partir deste momento iniciamos um acompanhamento com inspiração em
abordagem etnográfica nestes 2 ambientes e optamos por entrar em todos os grupos públicos
de Whatsapp que foram divulgados através de links dentro do grupo que estávamos. Neste
percurso compomos 68% do nosso microcosmo de rede de grupos políticos de Whatsapp.
A rede é diversa – 28 grupos autodenominados conservadores ou pró militares, 24
grupos de apoio a PSL e Bolsonaro, 18 grupos de apoio ao PT ou a Haddad, 9 para
discussões de política geral ou suprapartidária, 4 de apoio ao PSDB ou Geraldo Alckmin, 4

6
Ver em: http://www.facebook.com/direitaconservadora Acesso em maio de 2018

469
de apoio a Marina Silva, 2 de apoio a Ciro Gomes, um grupo de apoio a Henrique Meirelles –
e aponta que 99,11% das pessoas, independente de opção partidária, estão interconectadas
indiretamente através de uma rede de perfis que conectam e compartilham notícias entre os
grupos - boa parte delas, falsa. Embora a proporção aproximada entre os perfis seja de um
perfil estrangeiro a cada 50 brasileiros, nos comentários esta proporção passa a ser de um
comentário estrangeiro para pouco mais de trinta brasileiros, indicando maior atividade. Só
dois países têm mais de mil mensagens registradas, o Paraguai com 8.161 mensagens
enviadas e EUA/Canadá com 3.401. Os demais países aparecem em um número
consideravelmente menor de vezes e apenas sete aparecem mais de cem vezes: Portugal
(636), Espanha (311), Bolívia (191), Chile (182), Venezuela (151), Argentina (115) e Reino
Unido (101).
Durante os últimos cinco meses, identificamos uma rede com 90 grupos de WhatsApp
com matizes políticos diversos e apoio a seis candidatos diferentes (todos com links
publicamente disponíveis em redes abertas), conectados a 9.812 perfis anonimizados
(vértices) através de 11.832 conexões (arestas), confirmou que 99,11% dos perfis –
independentemente da opção política – estão conectados direta ou indiretamente através de
uma rede de pessoas que funciona como intermediários entre grupos. Após resultados
positivos em uma fase teste com todos os candidatos, a entrada em grupos privilegiou grupos
de apoio ao candidato Jair Bolsonaro por serem mais numerosos e ativos. Cerca de 85% dos
perfis (8.354) está em apenas um grupo, mas os 15% presentes em mais de um grupo estão
distribuídos de modo a garantir interconexão em toda rede. Dos 1.458 presentes em mais de
um grupo, 1.107 estão em apenas dois. A circulação de informações entre grupos, portanto,
não está concentrada em poucos atores. Uma vez que a distribuição destas conexões é
assimétrica, grupos com o mesmo número de participantes podem ter papéis completamente
diferentes considerando a dinâmica coletiva da circulação de informações na rede. Isso
confirma nossa hipótese e exige que a análise do WhatsApp considere modelos de redes e
suas características.
A esmagadora maioria das pessoas responsáveis pelas interconexões entre grupos está
em apenas dois grupos. Esta distribuição de conexões (distribuição de grau) aponta para uma
rede com características de conectividade completamente diferentes do Facebook –
submetido a características de conexão preferencial (preferential attachment) em que poucos

470
atores hiper conectados tendem a ganhar mais conexões de um grande número de atores
pouco conectados. Esta estrutura aponta para uma dinâmica em que o intercâmbio de
informação depende de inúmeros atores transitando informações entre os grupos e não um
grande disseminador dentro de vários grupos bombeando notícias para milhares de pessoas.
A rede abaixo retrata a estrutura de conexões entre grupos analisados. Em verde,
grupos 28 grupos autodenominados conservadores ou pró militares e 24 grupos de apoio a
PSL e Bolsonaro, em vermelho 18 grupos de apoio ao PT ou a Haddad, em rosa 9 para
discussões de política geral ou suprapartidária, em azul grupos de outros candidatos (4 de
apoio ao PSDB ou Geraldo Alckmin, 4 de apoio a Marina Silva, 2 de apoio a Ciro Gomes,
um grupo de apoio a Henrique Meirelles).

Figura 1 - Estrutura de conexões entre grupos analisados

Fonte - Gephi

471
Um dos modos mais recorrentes de uso do WhatsApp, principalmente a rede de
grupos de apoio à candidatura do presidenciável Jair Bolsonaro, está relacionado às chamadas
distorções participativas: em redes como Youtube, Facebook e sites de notícias em que curtir,
comentar ou votar são abertos a participação voluntária e sem maiores custos, estes grupos
distribuem links em grupos de WhatsApp para participação massiva e quase mecânicas,
distorcendo a representatividade na proporção de likes e dislikes de vídeos e postagens, bem
como a proporção de comentários favoráveis e desfavoráveis a cada candidato. Isso interfere
na percepção de relevância e aceitação dos conteúdos em questão nas redes em que foram
postados, podendo conduzir algoritmos de visibilidade ao erro, amplificando ainda mais a
distorção dos climas de opinião e gerando mídia espontânea.
Além disso, outra estratégia recorrente no WhatsApp observada durante o processo
imersivo envolve o ataque a grupos adversários. O método mais simples é disponibilizar o
link de acesso a um grupo de WhatsApp em grupos dispostos a invadi-lo. Após a entrada, os
novos membros postam sistematicamente conteúdo impróprio ao grupo invadido, seja
campanha do candidato adversário, xingamentos, conteúdo pornográfico, um grande número
de ofertas de serviços ou séries de vídeos pesados que comprometem a memória e capacidade
de processamento do celular de membros do grupo. O método mais complexo envolve
entrada e simulação de apoio até que se possa estar entre os administradores do grupo, muitas
vezes sob pretexto de adicionar novos apoiadores, e em seguida excluir sistematicamente os
membros do próprio grupo ou mudar a foto e/ou nome para candidatos adversários levando a
saídas voluntárias de seus membros.
Durante a observação, presenciamos por diversas vezes jornalistas e pesquisadores
que publicaram informações de algum modo prejudiciais à campanha tiveram o link para suas
redes sociais revelados, o que possibilitou ondas de ataques nas redes sociais que hospedam
os perfis em questão. Mesmo estatísticos responsáveis por campanhas que mostram o
candidato Jair Bolsonaro atrás de outros candidatos nas primeiras pesquisas de segundo turno
tiveram seus perfis em redes sociais compartilhados desta maneira.

472
4. Considerações Finais

Com os avanços tecnológicos foram introduzidas novas formas de interação, bem como de
investimentos em estratégias eleitorais digitais. Nas eleições de 2018, o Whatsapp se mostrou
uma ferramenta valiosa de mobilização online e de circulação da informação política. Por ser
uma grande rede bipartite, abarca grupos de diversas matizes e com quadros de referências
próprios, que se utilizam desse meio para reforçar as suas identidades grupais e interpretar os
acontecimentos da cena pública, num contexto de baixa informação e de polarização. Nesse
sentido, cabe frisar que o apoio dos grandes veículos à candidatura de Alckmin e seu extenso
tempo de TV não foram suficientes para conter o crescimento de Jair Bolsonaro, que utilizou
as redes para apresentar suas propostas, tanto em lives para emissoras conservadoras (Record
e RedeTV) quanto em investimentos massivos em engajamento nas mídias sociais. Assim,
consideramos o Whatsapp uma ferramenta relevante para a vitória do candidato, dado que
compõe uma rede de grupos interconectados, por participantes em comum, que regulam o
intercâmbio de informações e que permitem lógicas de difusão viral de notícias falsas.

Referências

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Estratégia em rede para resistência civil.. In: Ricardo Fabrino Mendonça; Marcus
Abílio Pereira; Fernando Filgueiras. (Org.). Democracia Digital: publicidade,
instituições e confronto político. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016.

AZEVEDO, Fernando. A grande imprensa e o PT (1989-2014). São Carlos:


EdUFSCar, 2017
BOORSTIN, D. The Image. A guide to pseudo-events in America. Nova York: Vintage
Books, 2012.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da


internet. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

DOWNS, Anthony. An Economic theory of democracy. New York: Harper Collins, 1957.

473
LIMONGI, Fernando & CORTEZ, Rafael (2010). “As eleições de 2010 e o quadro
partidário”. Novos Estudos Cebrap, n. 88, p. 21-37

PRADO, J.L.A; PRATES, V. Sintoma e fantasia no capitalismo comunicacional. São


Paulo: Estação das letras e cores, 2017.

PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Presidential impeachment and the new political instability in


Latin America. Cambridge University Press, 2007.

POPKIN, Samuel. 1994. The Reasoning Voter: Communication and Persuasion in


Presidential Campaigns. Chicago: University of Chicago

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis:


Vozes, 1998.

SINGER, André. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos estudos - CEBRAP, São
Paulo, n. 85, p. 83-102, 2009. Disponível em . http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
33002009000300004

474
A montagem no filme As Cartas de Iwo Jima 1
The Picture Montage in the movie The Letters from Iwo
Jima
Luiza Pires Bastos 2

Resumo: A Segunda Guerra Mundial é considerada a maior guerra da história da


humanidade, levando-a também, a ser um produto muito explorado na indústria de
entretenimento. A Guerra de Iwo Jima, que é explorada no filme de Clint Eastwood,
foi a primeira batalha travada nas terras japonesas durante a Segunda Guerra
Mundial. Os Estados Unidos pretendia conquistá-la, pois a ilha possibilitava a
implantação de uma base área americana que ficaria próxima às demais ilhas do
Japão. Com muitos mortos e feridos de ambos os lados, a batalha de Iwo Jima é
considerada uma das mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial, tendo como
figura central o general Tadamichi Kuribayashi, que devido ao seu conhecimento
sobre o inimigo montou uma estratégia adequada, fazendo a batalha durar 35 dias.
O diretor americano decide gravar o filme sobre as duas perspectivas, americana e
japonesa, ambas com enfoque em seus conflitos psicológicos. Na adaptação
japonesa vemos o dilema de doar sua vida pelo bem da nação, porém com a dor de
não ver mais a família. Para isso, Clint se utiliza muito dos recursos de montagem
e, em especial, da iluminação.

Palavras-Chave: Segunda Guerra Mundial. Clint Eastwood. Montagem. Ilha de


Iwo Jima.

1. A Segunda Guerra
A Segunda Guerra Mundial teve início em 1939 e durou até 15 de agosto de 1945, com a
rendição do Japão após o ataque das bombas atômicas pelos Estados Unidos em Hiroshima e
Nagasaki, em 6 e 9 de agosto, respectivamente. O país nipônico foi o último integrante do
Eixo a declarar sua derrota, colocando, portanto, um fim à guerra.

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho Comunicação, Imagem e Produção Audiovisual do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Estudante de Mestrado em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná. E-mail:
luiza.bastos28@gmail.com

475
O Japão foi criado desde a Era Meiji3 – quando o país se abriu novamente depois de 260
anos de reclusão (Era Tokugawa4) – a acreditar que tinham origem divina. Segundo a crença,
os deuses Izanagi e Izanami criaram o arquipélago e enviaram um de seus descendentes – o
filho da deusa do Sol, Amaterasu – para governar o novo reino, dando origem ao território
japonês. Por isso, o imperador seria a figura máxima e divina, para a qual todos deviam
obediência e respeito, pois era considerado um descendente dos deuses. A crença “reforçava
o orgulho de que os japoneses seriam racialmente homogêneos, sem nenhuma mistura com
outros povos” (FERREIRA; TOBACE, 2012, p. 21). Até a derrota, na Segunda Guerra
Mundial, todas as escolas e livros didáticos ensinavam essa versão. Foi só a partir dessa
época que os cientistas e historiadores obtiveram o aval para publicar pesquisas sobre a
verdadeira história da origem nipônica. Além disso, o Ministério da Educação ordenou que
todos os estudantes riscassem a história da origem divina do Japão de seus livros.

FIGURA 1 – Livro Riscado


FONTE: MADE IN JAPAN, 2012, p. 24.

Esse pensamento engajou os japoneses a entrarem em diversas guerras. E as


sucessivas vitórias que conquistavam, inflavam ainda mais o espírito de que eles seriam uma
nação melhor que as demais. A primeira delas foi na Primeira Guerra Mundial, em que o
Japão conseguiu a vitória ao lado dos Aliados em 1918. Crente do seu poder bélico, o país
avançou sobre o leste da China e implantou bases militares na Sibéria Oriental, buscando se
expandir ainda mais. As atitudes começaram a incomodar a opinião internacional, gerando
divergências com os Estados Unidos, que eram contra a expansão japonesa no continente e
visavam deter o avanço japonês sobre o continente asiático.

476
A crise que assolou os Estados Unidos em 1929 chegou também ao Japão, o que fez
com que o número de desempregados aumentasse e a concentração da riqueza nas mãos dos
capitalistas ficasse ainda mais evidente. A corrupção gerava cada vez mais descontentamento
da classe operária e isso abria espaço para os ideais fascistas. A união de militares ambiciosos
com civis descontentes estourou diversas rebeliões, que culminaram em 1930, quando a
política passou a ser dirigida pelos militares. A partir de então, o Japão começou a retroceder.
Em 1939, o mundo dividiu-se entre Aliados (EUA, Grã-Bretanha, França e União Soviética)
e Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Em 1940, o controle militar no Japão se tornou ainda mais
rígido.
Na madrugada de 8 de dezembro 1941, a aviação japonesa atacou a base naval
americana de Pearl Harbor e declarou oficialmente guerra contra os Estados Unidos e a Grã-
Bretanha. O contra-ataque dos aliados começou em abril de 1942 e o Japão, já esgotado pela
guerra, perdeu as ilhas de Iwo e Okinawa. As cidades nipônicas passaram a ser
bombardeadas constantemente.

2. A Sangrenta Batalha de Iwo Jima


Foi a primeira batalha travada em terra japonesa durante a Segunda Guerra Mundial.
Os Estados Unidos pretendiam conquistá-la por dois motivos. O primeiro era que a Ilha de
Iwo Jima (Ilha do Enxofre) possibilitava a implantação de uma base aérea americana que
ficaria próxima às demais ilhas do Japão, dando a perspectiva de disparar maiores ataques
aéreos ao país, além de poder receber pousos de emergência de quaisquer naves avariadas
durante a guerra. O outro motivo, e não menos importante, era o efeito moral devastador que
isso causaria aos japoneses por perderem uma ilha que era considerada sagrada para os
nativos. O governo nipônico sabia disso e cogitou a hipótese de destruí-la por completo,
porém acabou optando pela resistência.
A figura central e essencial nesse conflito foi o general Tadamichi Kuribayashi. O
general foi aos Estados Unidos para realizar estudos militares e por lá ficou durante dois
anos. Devido ao seu conhecimento sobre o inimigo e a certeza de que tinham maior poder
bélico, Kuribayashi montou uma estratégia adequada, tornando uma luta que deveria durar
sete dias (segundo a perspectiva americana), em uma batalha de 35 dias, com muitos mortos e
feridos de ambos os lados.

477
Entretanto, Kuribayashi e seu plano não eram bem-vistos pelos outros colegas do
exército imperial, que por vezes desacatavam suas ordens e vinham a cometer suicídio
durante a luta, por considerar seu plano um “meio de fuga”, que iria contra a honra japonesa.
Ao desembarcar na ilha de Iwo Jima no dia 10 de julho de 1944, encontrou os
soldados escavando trincheiras ao longo da praia. Depois de conhecer cada pedaço da ilha, o
general recém-chegado ordenou que cancelassem o plano de lutar na praia. Iniciaram o plano
de escavação de túneis, resultando em uma rede de 29 quilômetros de túneis a dez metros do
solo. E foram esses túneis que protegeram os japoneses dos três dias de bombardeio e do
desembarque dos fuzileiros americanos do dia 19 de fevereiro de 1945, às 8h30. Quando
estes chegaram à ilha, a encontraram totalmente vazia, não esperando o ataque que viria a
seguir. Em apenas quatro dias, os americanos tiveram em torno de 900 baixas. Porém,
também causaram mortes ao inimigo, possibilitando que conquistassem o icônico Monte
Suribachi, no dia 23 de fevereiro, e cravassem uma bandeira americana no topo do monte.
Uma foto registra o grande momento, essa imagem seria um dos maiores símbolos
americanos durante a Segunda Guerra e uma fonte para convencer os investidores a doar
mais dinheiro.

FIGURA 2 – Cravando Bandeira Americana no Monte Suribachi


FONTE: DAVID JORDAN, 2011.

Após conquistarem o sul, os fuzileiros passaram a investir sobre o norte da ilha,


usando infantes de lança-chamas, que abriam caminho e queimavam os inimigos.
A batalha durou até o dia 26 de março de 1945, quando os invasores declararam que a
ilha estava totalmente conquistada.

478
Segundo o Departamento de História da Guerra da Agência de Defesa, o total de
soldados japoneses que lutaram foi de 20.933, sendo que apenas 1.033 voltaram vivos.
Enquanto os americanos possuíam 110 mil soldados, 6.821 foram mortos e outros 21.865
foram feridos. O número de mortos supera os da histórica batalha na Normandia, conhecida
como Dia D. Por isso, a batalha de Iwo Jima é considerada uma das mais sangrentas da
Segunda Guerra Mundial.
O general dos fuzileiros navais, Holland Smith, em uma entrevista afirmou que: “As
perdas do exército atacante superaram as do defensor. Quando os confrontos terminaram, a
capacidade de combate de cada uma das divisões americanas havia caído para menos de
50%”.
O general Kuribayashi morreu em ação, na madrugada do dia 26 de março. Porém, ele
já esperava por isso, preparando a sua família para o seu fim diversas vezes. Na carta enviada
à esposa no dia 25 de junho de 1944, o general escreveu: “Desta vez, também estou
desesperado. Acredito que eu tenha 99% a 100% de chance de não voltar vivo [...] não
precisa me enviar nada, seja uísque ou qualquer outra coisa. Além de não saber se chegará,
pode ser que já não esteja vivo” (KURIBAYASHI; YOSHIDA, 2007, p. 202-204). Na última
carta enviada à família, no dia 17 de março de 1945 vemos que o general lamentou por não
cumprir sua promessa com o imperador e se despediu da família certo da morte, entretanto,
cheio de arrependimentos.
A bravura demostrada pelos oficiais e soldados faria um demônio chorar de
verdade. Entretanto, diante do violento e incessante ataque, nossos combatentes
sucumbiram um a um. Contra as expectativas, chegamos ao ponto de não ter
alternativa senão entregar este território para as mãos inimigas – o que me é
verdadeira e insuportavelmente humilhante. Peço muitas e muitas vezes as mais
profundas desculpas. [...] tendo em mente a gratidão pelo imperador, sem nos
arrependermos pelos ossos partidos e corpos destroçados. Ao pensar que a terra do
imperador não ficará eternamente em paz enquanto a ilha não for retomada, mesmo
em espírito, juro esperar que cedo ressurja a tropa imperial. Nesta derradeira
despedida, novamente manifesto meus mais sinceros sentimentos. Ao mesmo
tempo, rezo fervorosamente pela vitória e segurança do país imperial. Aqui
despeço-me eternamente. (KURIBAYASHI; YOSHIDA, 2007, p. 208).

Com o final da batalha em Iwo Jima, o exército americano caminhou para Okinawa,
desembarcando na ilha em 1 de abril de 1945, conquistando-a em 9 de abril.
A resistência militar durou até agosto, quando os americanos lançaram a primeira
bomba nuclear em Hiroshima e, posteriormente, outra em Nagasaki. O número de vítimas,
mortos e desaparecidos ultrapassou os 200 mil. Tornando-se inviável continuar na guerra, no

479
dia 15 de agosto de 1945, o Imperador Hirohito comunicou a rendição do país. Pela primeira
vez na história, o Japão foi derrotado em uma guerra e teve que se curvar para outro país. O
Imperador Hirohito fez uma declaração à população, indicando os novos rumos do país e
ainda afirmou que “era apenas humano (...), não se estribam no falso conceito de que o
imperador é um Deus presente e que o povo nipônico é superior aos demais, por isso, está
destinado a governar o mundo” (YAMASHIRO, 1997, p. 287).

3. Montagem
Montagem consiste em coordenar a passagem de um plano para o seguinte. O uso da
montagem como recurso cinematográfico começou em 1900-1910, com o objetivo de contar
histórias de forma mais coerente. Em 1896, o ilusionista George Méliès já começaria a usar
truques que seriam o princípio da montagem, como: quadro a quadro e superposição de
imagens. Segundo Denise Guimarães em seu texto Animação como opção Tecnoestética em
Vinhetas de Abertura de Filmes, ela afirma que “Foi Méliès quem uniu pela primeira vez
várias cenas teatrais ou quadros móveis, transformando o cinematógrafo em cinema”
(GUIMARÃES, p. 23, 2010). Apesar disso, foi com o cineasta russo Sergei Eisenstein que a
montagem revolucionou e ganhou grande importância para a sétima arte. A priori filmes de
duas horas contavam com cerca de 300 a 500 planos. Atualmente usa-se em torno de dois mil
planos, sendo 24 quadros para cada um segundo.

4. A Montagem no filme
O diretor norte-americano Clint Eastwood já tinha interesse de filmar sobre a Guerra de
Iwo Jima quando James Bradley (filho de um dos fuzileiros que combateu na ilha, John
Bradley) lançou o livro Flags of Our Fathers (Bandeiras de Nossos Pais) em maio de 2000.
A ideia inicial era apenas fazer uma adaptação do livro de Bradley, que conta a
história de seis soldados que cravaram a bandeira no Monte Suribachi no dia 23 de fevereiro
de 1945 e tiveram o ato registrado pelas lentes de Joe Rosenthal, imortalizando os seis.
Ao iniciar a gravação, Clint teve alguns empecilhos. O primeiro foi que o governo
japonês não liberou a gravação do filme na ilha de Iwo Jima, pois isso mexeria com a
memória dos mortos. Além disso, ao saber dos planos para gravar o sangrento combate, os
japoneses se opuseram ao fato de serem vistos como os vilões da batalha. Em meio a isso,

480
Clint se deparou com as cartas do general japonês Kuribayashi, ficando encantado com a
sensibilidade do militar. Em suas próprias palavras:
Viajei ao Japão para pesquisar mais informações para o filme A Conquista da
Honra, que mostra a conquista americana da ilha de Iwo Jima. Mas mudei minha
perspectiva sobre aquele momento histórico ao descobrir as cartas do general
Tadamichi Kuribayashi. A obra apresenta um lado humano tão forte que comecei a me
interessar mais pelo lado pessoal do general Kuribayashi do que pela guerra em si.
Percebi que tinha em mãos uma história que não era sobre a batalha. [...] descobri nelas
um sujeito único, um homem bastante sensível e devotado à família (YOSHIDA, apud
EASTWOOD, 2007, p. 17).

Com isso, o diretor decidiu gravar a batalha pelos dois pontos de vistas: americano e
japonês. Apesar da equipe de produção ser basicamente americana, os pontos cruciais para o
sucesso do filme foram as escolhas da roteirista e do elenco. A roteirista escolhida foi Iris
Yamashita, que embora tenha nacionalidade americana, estudou por alguns anos na
Universidade de Tokyo. Ela conseguiu manter a essência japonesa daquele período, que
consistia em uma dedicação plena ao imperador e ao país, sem ter medo de doar a sua vida.
Quanto ao elenco, ele foi composto exclusivamente por atores japoneses, contando com
nomes de peso para a indústria de entretenimento nipônica, como Ken Watanabe e Ninomiya
Kazunari. O primeiro ficou conhecido por sua atuação em O Último Samurai (2003) e
Memórias de uma Gueixa (2005). O segundo é cantor do popular grupo japonês Arashi,
tendo atuado em diversas novelas nacionais e considerado um ídolo entre os jovens.
O filme conta a história de dois personagens centrais, o soldado e o general
Kuribayashi. Saigo era padeiro e tinha acabado de descobrir que seria pai quando foi
convocado para a guerra. Já no começo do filme é possível ver que ele não queria estar ali,
pois declarou a um colega: “os japoneses deveriam dar logo a ilha para os americanos e
acabar logo com isso. Kuribayashi, por outro lado, chega à ilha já ciente de sua morte e
pronto para lutar até ao fim para o bem de seu país e da coroa. Luta até o fim ao lado de seus
soldados, incentivando-os com a frase: “Sempre estarei à frente de vocês”. Apesar de vermos
o lado intelectual do militar, o filme nos privilegia com os momentos que Kuribayashi é
apenas um bom esposo e um bom pai. Em seus períodos de relaxamento, ele escreve cartas
para seus entes queridos, no entanto, não fala muito da guerra (apenas com sua esposa). Ao
comunicar-se com seus filhos, prefere contar sobre sua plantação e as galinhas que os ajudam
a se alimentar na ilha. Adverte os filhos a cuidarem-se, escovarem os dentes e obedecerem a
mãe.

481
Embora a montagem do filme em questão siga muito as tradições de montagem da
indústria hollywoodiana, alguns pontos devem ser ressaltados. A produção possui uma
narrativa circular, ou seja, ela começa e termina com a mesma cena: em 2005 quando
historiadores estão cavando e descobrindo as cartas escritas pelos soldados japoneses, ao final
da narrativa vemos o personagem Saigo enterrando as cartas do esconderijo do general. Não é
de hoje que os diretores utilizam a montagem para começar o filme pelo que seria o fim,
apesar de um recurso muito usado, não perde seu poder de atrair o espectador por meio da
expectativa do que irá acontecer. O filme se encerra com todas as cartas, entre um áudio de
cada um dos soldados lendo os escritos, como uma espécie de memória, em uma fusão de
vozes dos personagens, encerrando o longa da mesma forma que começou, fazendo jus ao
nome do filme.

FIGURA 3 – Historiadores encontrando as cartas 3

Dito isso, percebemos que a montagem não segue o padrão clássico da narrativa, 1-2-
3. Sendo mais uma sequência 3-1-2 com inserções de flashback. Voltando a falar do uso de
áudio nas cartas, esse é um ponto interessante da produção, as cartas são feitas pelos dois
personagens centrais e também por Shimizu, um soldado japonês que chegará mais tarde na
ilha depois de ser deposto do seu cargo original. Todas elas aparecem no filme em off, como
pensamentos sendo externalizados.
A técnica de fusão – quando sobrepõe o plano A com o plano B – é utilizada apenas
nos flashback, tanto no momento que o personagem vai para a memória, como quando ele
retorna. Todavia, as lembranças só aparecem no filme quando Kuribayashi recorda sua
viagem aos Estados Unidos, quando Saigo relembra da família no minuto 34 e ao final do
filme quando o soldado Shimizu conta sua história para outro colega.

3
Todas as imagens foram captadas pelo autor através do DVD do filme.

482
FIGURA 4 – Fusão

O ritmo do filme é, em geral, lento. Remetendo de fato às produções de guerra


nipônica, como Nobi e Túmulo dos Vagalumes. Durante quase toda a primeira hora mostra o
plano estratégico dos japoneses para reprimir o avanço americano e é apenas na segunda hora
que vemos a guerra em si, embora não seja o foco do filme. Há poucas cenas da luta e quando
elas aparecem, não focam nas pessoas. Clint deseja trazer ao filme muito mais a batalha
psicológica dos personagens do que a batalha em si, um fato presente nos outros dois filmes
citados. Sendo, possivelmente, um dos motivos centrais do filme ter feito tanto sucesso na
terra do sol nascente. Do total arrecadado, 44% (30 milhões de dólares) desse faturamento
vieram apenas dos cinemas nipônicos.
Em um artigo escrito pelo professor de Cultura Visual, Ikui Eiko, e seu colega, Aaron
Gerow, para a revista Japan Focos, do dia 7 de maio de 2007, os estudiosos relatam que até
então, os únicos que viam os filmes de Clint no Japão eram aqueles que já conheciam suas
obras, entretanto, não foi o que se notou com Cartas de Iwo Jima. Na estreia, o cinema estava
lotado de um público que raramente ia ao cinema. “Jovens e velhos falavam em estar
sinceramente comovidos com o filme, elogiando e declarando que ‘este é um filme que um
japonês deveria ter feito’” (EIKO; GEROW, 2007).
Artifícios como campo e contracampo, que é quando mostra-se uma extremidade da
linha e depois corta para a que está do outro lado, são amplamente utilizados nos diálogos. E
também o uso de establishing shot (plano introdutório), quando introduz o espectador à ilha
de Iwo Jima em 2005, com os vestígios da guerra.

483
FIGURA 5 – Campo e contracampo

FIGURA 6 – Establishing shot

Uma cena merece uma atenção especial pelo uso da montagem, cena que os soldados
do regimento de Saigo decidem fazer um suicídio coletivo depois de perceber que não teriam
como vencer a batalha. Dessa forma, continuariam honrando o imperador e seu país. Os
colegas se matam um a um diante dos olhos do soldado que, ao final do ato, em vez de seguir
seus companheiros, vira as costas e corre para ajudar outra divisão. Vemos nessa cena o uso
da continuidade intensificada, que consiste em enquadramentos mais próximos e cortes mais
rápidos para aumentar a expectativa do espectador. Segundo Bordwell em seu livro A Arte do
Cinema: Uma Introdução, quanto mais próximo é o plano, mais atenção o espectador presta
(p. 385, 2013). Para criar o clima de tensão que a cena exige, a cada novo tiro, retornamos à
feição de Saigo e sua angústia e dúvida sobre que atitude tomar. A medida em que o número
de soldados vai diminuindo e seu momento de cometer o ato suicida de aproxima, a câmera
também vai se aproximando de seu rosto e mostrando claramente seu semblante de medo,
ansiedade e apreensão, focando cada vez mais nos rostos e no sofrimento de cada um dos
militantes. No entanto, assim que ele decide não cometer o ato e tentar ajudar outro
regimento, a câmera volta a filmar em plano americano e médio.

484
FIGURA 7 – Cena do suicídio

A montagem também é responsável pelas relações gráficas existentes no filme, essas


consistem na escolha de iluminação, cenário, fotografia, enquadramento e afins. Clint
Eastwood opta por uma montagem que privilegia a pouca iluminação e pouco uso dos
recursos sonoros. As cenas externas são escassas, ocorrendo mais ao início do filme. Ao
chegar à ilha, o General Kuribayashi se depara com o exército japonês montando trincheiras
na praia, ato que ele logo suspende. O plano de Kuribayashi é que a luta ocorra dentro das
cavernas, por isso, a maior parte das cenas ocorre dentro dos túneis. Portanto, possuem pouca
iluminação, a maior parte do filme foi rodado dentro das cavernas, fazendo com que o
espectador fique carente da iluminação, pois algumas cenas são quase completamente
escuras, além de explorar o uso das sombras. Certos diálogos são vistos através das sombras e
só ouvimos o off da conversa. Segundo a teoria semiótica de Peirce, os elementos cromáticos
escolhidos possuem um significado icônico, em outras palavras, um significado imagético.
Na produção em questão o diretor opta pelo uso do preto, branco e tons de bege. Abusou do
alto contraste e da baixa saturação, tornando o filme opaco. A escuridão se dá por conta da
maior parte do filme ter sido gravado dentro dos túneis. O uso do preto e branco com raras
nuances cromáticas como vemos em Cartas de Iwo Jima, transmite a sensação de agonia e
prepara o espectador – mesmo que inconscientemente – a cenas de medo e morte. Não tem
como falar das relações gráficas de Cartas de Iwo Jima sem compará-las ao seu “filme
irmão”, A Conquista da Honra. Nesse o diretor escolheu nos flashbacks das cenas de guerra,
os tons acinzentados e uma baixa saturação. Todavia, quando vemos as cenas da campanha

485
para arrecadação de dinheiro, os tons de azul predominam, dando uma aparência fria ao
filme, iconicamente falando, reflete ao conflito interno dos personagens.
Desde que um objeto típico da nova mídia é colocado diante de elementos
advindos de diferentes fontes, tais elementos precisam ser coordenados e ajustados
para se encaixarem. (...) através do processo de produção, elementos retêm suas
identidades separadas e, por conseguinte, podem ser facilmente modificados,
substituídos ou apagados. Quando o objeto está completo, ele pode ser ‘saída’ de uma
‘corrente’ única na qual elementos separados não estão mais acessíveis.
(MANOVICH, 2001, p. 139) 4

FIGURA 8 – Diferença de iluminação em ambos os filmes.

Por fim, nota-se o uso da montagem paralela em algumas cenas. Essa consiste em
alternar planos de um acontecimento, para outro, em outro lugar. Um recurso muito
explorado pelo diretor americano D. W. Griffith e com ele que ganhou popularidade entre os
filmes hollywoodianos. Clint Eastwood usa o artifício na cena que os americanos iniciam a
invasão à ilha enquanto intercala com a preparação dos soldados japoneses dentro dos túneis.
E também na primeira hora de filme, quando o General Kuribayashi está ao telefone.
Embora os dois filmes de Clint sobre a guerra de Iwo Jima explorem o lado
psicológico dos seus personagens, eles são feitos de maneiras distintas. Em A Conquista da
Honra, as cenas de guerras são reduzidas, focando mais na turnê dos três soldados e do
conflito por serem considerados heróis, enquanto os colegas ainda batalham para conquistar a
ilha, quando a batalha em si é mostrada através de flashbacks, sendo poucas as cenas de luta.
Já em Cartas de Iwo Jima, estamos literalmente no front. O drama psicológico fica por
conta de Saigo e o general Kuribayashi, e vemos novamente uma oposição de valores. Saigo
sofre por não estar perto de sua família e escreve várias cartas (que não se sabe se chegaram
ao seu destino), contando os dramas da guerra e como ele queria que o Japão se rendesse para

4
Since a typical new media object is put together from elements that come from diferente sources, these
elements need to be coordinated and adjusted to fit together. (...) Throughout the production process, elements
retain their separete identities and, therefore, can be easily modified, substituted, or deleted. When the object is
complete, it can be ‘output’ as a single ‘stream’ in which separete elements are no longer accessible.

486
voltar logo para casa. É possível entender que Saigo é posto na história para agradar o
público americano, pois seus valores são americanos. Saigo não tem o orgulho ou o
pensamento suicida que a tropa imperial tem. Ao contrário de Kuribayashi, que apesar de ter
vivido dois anos nos Estados Unidos, está ali na guerra para dar tudo de si e morrer por sua
bandeira. Kuribayashi representa o típico soldado imperial da época. Ao final do filme,
vemos Saigo em uma maca com os demais sobreviventes. O olhar do soldado paira sem
destino e então retomamos a 2005, com os historiadores achando as cartas escondidas,
fechando assim, o ciclo da história.

5. Conclusão
Clint decide filmar a guerra de Iwo Jima sobre a perspectiva dos japoneses depois de
se deparar com as cartas do General Kuribayashi, que estão compiladas no livro Cartas de
Iwo Jima, editado por Tsuyuko Yoshida. Como muitos filmes americanos sobre a Segunda
Guerra, podiam acontecer de haver uma distorção da visão nipônica da guerra, colocando
esses como vilãos e os americanos os heróis. Fato que vemos em filmes como Red Sparrow
(2018), estrelado pela Jennifer Lawrence e dirigido por Francis Lawrence. O filme conta a
história de uma espiã russa que precisa descobrir quem é o informante que está passando
informações confidenciais aos americanos. Vemos, porém, uma distorção total da polícia
russa e uma apologia à CIA. Os agentes russos são postos como vilões que apenas pensam no
bem da pátria, não se importando com as pessoas e demais sentimentos: são frios e torturam
seus colegas sem piedade. A maldade chega a tal ponto, que a personagem de Jennifer
Lawrence pede socorro aos americanos e solicita cidadania americana. Não é o que vemos no
filme de Clint. O diretor de Cartas de Iwo Jima consegue se manter fiel e imparcial aos fatos.
Devido a sua fidelidade aos fatos e buscando a melhor forma de produzir o filme, cuidando
de detalhes como luz, montagem e atores, é que Clint Eastwood conseguiu produzir um filme
de sucesso, que não apenas conquistou os americanos e os japoneses, mas também o mundo.
O reconhecimento disso foi ele ter sido indicado a quatro Oscar, tendo ganho o de Melhor
Edição de Som em 2007, além do Globo de Ouro no mesmo ano. Também ganhou como
melhor filme pela Academia Japonesa de Cinema, em 2008.

O texto literário não é uma estrutura fechada, mas aberta (ou melhor,
estruturação, como o último Barthes entendia) a ser retrabalhada por um contexto

487
ilimitado. O texto alimenta-se e alimenta um intertexto infinitamente permutável, que
é visto através das sempre mutáveis redes de interpretações (STAM, 2000, p. 57). 5

REFERÊNCIAS

A Batalha de Iwo Jima – Filmes perdidos da Segunda Guerra Mundial. History Channel,
2012.

BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. São Paulo:
Ed. 1. Editora Unicamp, 2013.

EIKOH, Ikui. Letters from Iwo Jima: Japanese Perspectives. Japan Focus, n. 5, 2007.

FERREIRA, Andréia; TOBACE, Ewerthon. A origem dos filhos do sol. Made In Japan, São
Paulo, n. 143, p. 20-27, 2012.

Guia da Cultura Japonesa. São Paulo: Editora JBC.

GUIMARÃES, Denise. Interlocuções sígnicas entre vinhetas cinematográficas e videoarte.


Livro Socine. 2012. v.2. p. 113-131.

GUIMARÃES, Denise. Animações como opção tecnoestética em vinhetas de abertura de


filmes. Revista Dispositiva. PUC/MG. V.6. n.10. 2010. p. 19-39.

HIRASAKI, Cesar; FERREIRA, Andreia. O Japão tradicional. Made In Japan, São Paulo,
n. 146, p. 10-27, 2013.

JORDAN, David. História da Segunda Guerra Mundial: a maior e mais importante guerra
de todos os tempos. São Paulo: Ed. 1. M. Books do Brasil Editora Ltda., 2011.

KODANSHA. Talking about Japan Q&A. 3. Ed. [S.I.:s.n].

KURIBAYASHI, Tadamichi; YOSHIDA, Tsuyuko. Cartas de Iwo Jima. São Paulo: Ed. 1.
Editora JBC, 2007.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: The MIT Press, 2001.

NOVIELLI, Maria Roberta. História do cinema japonês. Brasília: Editora Universidade de


Brasília, 2007.

5
The literary text is not a closed, but na open structure (or, better, structuration, as the later Barthes would have
it) to be reworked by a boundless contexto. The text feeds on and feeds into na infinitely permutation intertext,
which is seen through ever-shifting grids of interpretation.

488
PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectivas, 1990.

SAITO, Cecilia. et al. Japonicidades: estudos sobre sociedade e cultura japonesa no Brasil
Central. 1 Ed. Curitiba: CRV, 2012.

STAM, R. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. Film adaptation. Rutgers: The
State Universaty, 2000, p. 54-76.

YAMASHIRO, José. Japão, passado e presente. 3. Ed. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-
Japão, 1997.

489
ESTUDO E ANÁLISE DA REPRESENTATIVIDADE LGBTTI+ DE PERSONAGENS
EM HQS

STUDY AND ANALYSIS OF LGBTTI+ REPRESENTATIVENESS OF


CHARACTERS IN COMICS
Ericlys Porto Rodrigues 1
Resumo: Na mudança da sexualidade de alguns personagens à criação de novas personas
LGBTTI é de costume a baixa visibilidade destinadas a esses figuras ou sua
elaboração estereotipada. Neste contexto, o trabalho se propõe a investigar as
representações LGBTTIs nas histórias em quadrinhos tal como seu papel na
cultura visual e as suas consequências para a comunidade, em especial para a
construção e referencial da identidade dos jovens. Para tal, fez-se levantamento
das personagens LGBTTIs no universo das HQs e analisaram-se suas construções
morfológicas e históricas com base em conceitos do campo de Design de
personagem. Concluiu-se que como ferramenta midiática visual, as narrativas em
formas de quadros possuem grande inserção no público jovem, agindo para tal
como ferramenta educadora de comportamento, e como a maior parte das suas
representações seguem uma normativa não é comum que haja representatividade
ampla nos personagens, sendo assim faltoso à comunidade uma vez que
representações não necessariamente são representativas para aqueles ali
retratados.

Palavras-Chave: Representatividade; HQs; Design de Personagem; Cultura Visual..

1. Problematização e Justificativa
É sabido por dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2016), que
em um período de 3 anos (2013-2016), cerca de 19,5 mil registros de união de pessoas do
mesmo sexo foram feitos e ainda assim, de acordo Leite e Neto (2013) a mídia gera e ressalta
discursos heteronormativos que são absorvidos sem nenhuma objeção ou indagação por parte
dos sujeitos, fazendo com que de forma “naturalizada” a realidade normativa seja absorvida
pela consciência.
As representações feitas e difundidas na sociedade exercem na mesma, um importante
papel, pois de acordo com Iung e Portugal (2012,p. 27-39) às formas quais representa-se
através da cultura visual formulam o pensamento e “Do ponto de vista educativo, torna-se
crítico compreender a importância das representações, porque podemos ajudar a dirigir a
construção do conhecimento”.

1
Graduando em Design pela Universidade do Estado de Minas Gerais.

490
Para modificar essa norma enraizada é necessário uma mudança do cenário
representativo atual de forma que impacte a parte carente de representações.
As consequências dessa naturalização para a comunidade de lésbicas, gays,
transsexuais, travestis, interssexuais etc., ou seja aos LGBTTI+, transparece como não
reconhecimento pessoal, principalmente em jovens, uma vez que não se encontram dentro da
normativa. De acordo com o Grupo Gay da Bahia (2017), GGB, entre 18-29 anos é o período
de maior número de casos de violência contra LGBTTI+, sendo essa não só externa, mas do
próprio indivíduo. O Grupo afirma que casos como suicídio, são sim pertencentes à rejeição
social.
De acordo com o exposto, uma vez visto que as representações guiam a construção do
conhecimento e definem comportamentos, este trabalho pretende contribuir com a construção
de um cenário onde as representações tenham representatividade fazendo com que a parcela
LGBTTI+ da sociedade se reconheça dentro de um veículo de comunicação em massa.

2.Cultura Visual
A imagem que por definição de Santaella e Nöth (1998) é uma representação material,
plástica ou algo que aciona em você uma determinada resposta por ter com ela alguma
relação simbólica ou de semelhança, sempre esteve presente na história. A relação homem-
figura tem sua origem primitiva
Acerca do domínio da imagem, Santaella e Nöth (1998) relatam sobre uma divisão de
duas partes, a qual a primeira corresponde ao domínio como mera representação visual, tais
como gravuras, fotografias, pinturas e desenhos, e a segunda parte é correspondente ao
imaterial situado em nossas mentes que em geral se configuram como representações
mentais. Ressaltam também que, como partes de um todo, na imagem não existem
separadamente, pois não há representações mentais sem origem material e concreta, como
não há representações visuais que não se originaram na mente daquele que a produziu.
Implicitamente é entendido que a imagem ultrapassa o ato de ver e atua também em uma
experiência mental.
Tratando-se de imagem, pode-se citar a cultura visual como meio, no qual esta faz-se
fundamental, uma vez que, em vertentes específicas, a cultura visual se prontifica ao estudo e
experiência da imagem apenas.

491
Sérvio (2014, p.201) afirmação:
Para os autores que trabalham com Cultura Visual as imagens importam, pois, em
vez de simplesmente refletirem a realidade ou um contexto (como costuma entender
o senso comum), nossa relação com as imagens afeta/constrói percepções sobre
o mundo e sobre nós mesmos, influenciando nossas ações. Portanto, as imagens
estão intrinsecamente conectadas à política e à relações de poder. Contudo, isso não
significa que os autores focam seus esforços exclusivamente na interpretação de
imagens ou no papel delas na dinâmica social. (Grifo do autor)

De acordo com Mitchell (2005), há uma preocupação em saber o quê e de que forma
as imagens possuem significados enquanto signos e símbolos, e como possui vitalidade e
poder para exercer emoções e alterar comportamentos humanos. Como é sabido, a área do
conhecimento responsável por estudar tanto as linguagens quanto os signos é denominada de
Semiótica.
Sobre os signos da semiótica, Santaella (p.8, 2008) relata:
É qualquer coisa, de qualquer espécie (uma palavra, um livro, uma biblioteca, um
grito, uma pintura, um museu, uma pessoa, uma mancha de tinta, um vídeo etc) que
representa uma outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz um efeito
interpretativo em uma mente real ou potencial, efeito este que é chamado de
interpretante do signo.

Assim de acordo com Santaella (2002), a falta de conhecimento de um contexto, impossibilita


que o representante possa atribuir aos signos significados

Sem conhecer a história de um sistema de signos e do contexto sociocultural em que


ele se situa, não se pode detectar as marcas que o contexto deixa na mensagem. Se o
repertório de informações do receptor é muito baixo, a semiótica não pode realizar
para esse receptor o milagre de fazê-lo produzir interpretantes que vão além do
senso comum. (SANTAELLA, 2002, p.6)

Por muito tempo, vivendo em um cenário de representações seletivas, a sociedade em


sua construção se tornou, em partes, incapaz de interpretar a diversidade como fator comum
no seu meio. É inerente, portanto, atribuir um valor social e cultural às representações feitas
e ressaltar seu papel na construção social.

3.Gênero, Sexo e Sexualidade


A sociedade em relação a sua parte LGBTTI+, sigla referente a lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, transgêneros, intersexuais e etc, em grande número, age de forma

492
exclusiva e agressiva. De acordo com o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil: 2013
(2016), foram registradas por Disque Direitos Humanos (Disque 100), 1.695 denúncias de
3.398 violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 1.906 vítimas e 2.461
suspeitos. O perfil descrito das vítimas em sua maioria caracterizam um maior registro de
casos homofóbicos relacionados HomensCisgêneros, “sexo biológico masculino (73,0%).
Outras 16,8% são do sexo biológico feminino. Os não informados contabilizaram 10,2% dos
casos.”. Vale ressaltar que o Relatório por convenção própria para auxiliar no entendimento,
classificou “casos homofóbicos” como todos os casos relacionados a comunidade LGBTTI+.
Os casos registrados e levantados demonstraram também, que 38% das violações
ocorriam casas e 30,89% na rua, sendo que dentro da classificação “casa” 25,7%, aconteciam
no lar da própria vítima, que em maioria, 33%, possuía de 18-24 anos, seguido de 21,2% 25-
30 anos.
Percebe-se um contexto de constante pressão e amedrontamento para as pessoas
LGBTTI+, pois uma vez em que se vive dentro de uma sociedade agressiva, o indivíduo
passa a sofrer não só violências externas, mas internas também como por exemplo, auto
agressões e, em casos extremos, suicídio. Silva (2011) menciona que adolescentes que se
descobrem com tendência homossexual ou gay, se sentem desamparados em decorrência da
intolerância social e falta de apoio familiar, e que tal sentimento poderá ser potencializado e
causar-lhe danos psicológicos, autoestima comprometida, baixo rendimento escolar, entre
outros.
Sobre as consequências à comunidade, pode-se citar a homofobia internalizada. Silva
e Barbosa (2014, p.70) em estudo ao suicídio entre a comunidade LGBTTI+, afirmam:

Em virtude das várias formas de expressão do preconceito e da pressão invisível da


sociedade, os próprios homossexuais internalizam a homofobia, direcionando
sentimentos de não aceitação a si mesmos. Esta negação, ou não aceitação da
condição homoerótica, de origem externa ao sujeito, proveniente da lógica sádica de
uma sociedade na qual o entendimento de uma dada manifestação de orientação
sexual considerada um desvio da suposta normalidade, pode trazer uma série de
danos psicológicos ou mesmo materiais para gays e lésbicas

Teixeira-Filho e Rondini (2012) realizaram um estudo baseados nos autores


Blumenfeld (1992), Isay (1998) e Hardin (2000), e fizeram uma listagem de 12 efeitos
negativos e destrutivos acarretados nos adolescentes ao sofrer pressão e terror social. O item
“Baixa autoestima e imagem negativa do próprio corpo, depressão, vergonha,

493
defensibilidade, raiva e/ou ressentimento – o que pode levar ao suicídio já em tenra
juventude;” relaciona-se ao jovem e sua própria imagem, sendo que ele não reconhece ou não
compreende.
Se retomada a afirmação de que vive-se atualmente em uma sociedade de
representações falhas, pode-se fazer uma relação direta a este comportamento auto-
destrutivo. Com uma convivência heteronormativa, somada a representações também
normativas, o indivíduo não pertencente a essas definições se sentirá, e abertamente será
colocado, em um patamar de indivíduo errado, ou não pertencente ao todo. Neste contexto, a
colocação feita por Iung e Portugal (2012, p.30) :
As maneiras com que representamos através da esfera da cultura visual dão forma
ao nosso pensamento. Do ponto de vista educativo, torna-se crítico compreender a
importância da representação, porque podemos ajudar a dirigir a construção do
conhecimento

Complementa o entendimento de que enquanto a sociedade viver em um único padrão


representativo de forma correta e dominante, não será, por meio da cultura visual, possível
formular o pensamento inclusivo social e muito menos a aceitação e identificação daqueles
indivíduos não presentes na normativa.

4.História em Quadrinho
Os quadrinhos localizavam-se no patamar hostilizado da linguagem, sua definição e
entendimento,enquanto expressão, não tão simples de se definir eram deixadas de lado pela
acadêmia.

[...] apesar de seu potencial para a pesquisa, as tiras de quadrinhos, as revistas de


histórias em quadrinhos, e os cartuns [...] permaneceram virtualmente não-
estudados por décadas. Quando finalmente achou o seu caminho para os “labs” da
universidade Americana nos anos 1940, na maioria das vezes ela era tratada como
um pária, um perigo para a juventude, para a moral, para o próprio tecido da
sociedade Americana. (LOMBARD,1999, p. 17 apud VERGUEIRO, 2009,)

Andrus (2009) expõe que além de agirem como informação imagética diferenciada,
os quadrinhos salientam influência ao psiquismo humano. Palhares (2009, p.7) expõe e
salienta também o papel cultural e social das HQ's da seguinte forma: "A linguagem dos

494
quadrinhos, de forma inconsciente ao leitor, criava sensações de profunda significação
cultural e social."

Em visão similar Ranslan; Silva; Bessa (2013) afirmam:

O homem possui a imagem como uma das mais antigas e relevantes configurações
de linguagem e comunicação. Configuração essa que também está presente nas
Histórias em Quadrinhos e possui relação própria com o contexto social e
mercadológico atual. Como meio de comunicação de massa as histórias em
quadrinhos tem boa penetração popular, em especial para com os
jovens.(RANSLAN;SILVA; BESSA, 2013, p.3)

Bonifácio e Cerri (2005) afirmam que os quadrinhos articulados de conhecimento


histórico podem considerar-se como referencial visual importante . E é neste âmbito que se
destaca, desta forma, a necessidade de que o processo de elaboração e criação das histórias
em quadrinho seja feito de forma correta e coesa, uma vez que como fonte visual, por
associação fará o papel de “educadora” visual à diversidade encontrada na sociedade.

5.Design de Personagens
Independe do veículo, pode-se dizer que dentro de qualquer trama, as personagens ali
apresentadas exercem papel fundamental, pois regem a história e ligam o receptor
diretamente ao mundo ali descrito. McCloud(2008) relata, que encontrar um “terreno
comum” das experiências dos personagens com os leitores ajuda a conectá-los
emocionalmente.
Nesteriuk (2011) afirma que o personagem pode ser entendido como representação de
uma entidade que vivencia e pratica as ações de uma história. Para a construção de tal peça
importante a um contexto, a personagem deve ser elaborada da melhor forma possível,
exigindo assim a utilização de alguns métodos. Métodos estes do Design de Personagens ou
character design.
De acordo com Seegmiller (2008), o design de personagem não apenas desenha em
um papel, uma vez que há a necessidade de se considerar múltiplos fatores no processo
criativo. Ainda se tratando do autor, pode-se destacar o fato de que o mesmo menciona que o
processo deve ser feito por partes, contendo briefing, entendimento do problema, busca de
referencial, elaboração da história, entre outros passos até que se chegue no resultado, o
personagem.

495
Seegmiller (2008, p.20) mensura a seguinte passagem acerca do papel do character
design que se relaciona ao conceito de interpretações :

Mais do que apenas criar ou desenhar alguma coisa, o design de personagens tem o
poder de trazer à tona as crenças, expectativas e reações do público quanto aos
aspectos formais, compleição física e o caráter destes personagens.

O receptor terá que ler a representação, sentir qual o seu objetivo e assim se
identificar. A identificação se dá através de reconhecimentos e assimilações vivenciadas pelo
leitor. Segundo os estudos de Santaella (2005) a respeito da teoria semiótica de Peirce,
semioticamente somos capazes de adentrar as mensagens permitindo com que possamos
entendê-las não somente em seus contextos imediatos, mas também em seu contexto
histórico. De maneira semelhante pode-se colocar a personagem de uma narrativa, dentro de
seu mundo somos capazes de vê-la em sua instância, mas também em sua história e
similaridades com o conhecido.
Vê-se desta forma que o desenvolvimento de um personagem depende de fatores além
de o contido entre lápis e papel, depende de estudos relacionados ao comportamento social e
de que forma será absorvido entre o seu receptor. É necessário que se pense tanto em quem
receberá a informação, quanto em quem são as geradoras da mesma. Assim, é entendível que
o uso e aplicação do design de personagens faz-se valer, para que as representações
LGBTTI+ aconteçam de forma enriquecedora para a comunidade representada.

6. Metodologia
O seguinte trabalho teve seu processo metodológico baseado no modelo de
aperfeiçoamento metodológico de Alexandre Schermach (2015), o qual conta com as
seguintes etapas: 1. Definição do problema; 2. Coleta de dados e análise; 3.
Desenvolvimento; 4. Seleção; 5. Produção; 6. Verificação; 7. Apresentação; 8. Solução. E
também, no método de McCloud(2008) para construção de histórias em quadrinhos e
personagens

7.Desenvolvimento
Para o desenvolvimento e entendimento do público consumidor de HQs foi aplicado
em meio digital (grupos específicos de cultura geek,nerd), o formulário que contabilizou 58

496
participantes. O público registrado no formulário, contabilizou uma porcentagem de 37,9%
de orientação sexual Bissexual, 32,7% homossexuais, 22,4% heterossexuais, 5,1%
panssexuais e 1,7% se diz assexual.É possível também pontuar que 50% dos participantes
foram mulheresCis, 46,6 % homensCis, e igualmente, 1,7 % mulhertrans e interssexo.
48,3 % se afirmam em relação ao gênero masculino, 46,6% ao feminino e 5,2% não
expressam seu gênero dentre a definição binária.
Vê-se desta forma que o público de maior interesse, faixa de 18 aos 28 anos, se
relaciona diretamente a faixa etária a qual em levantamento bibliográfico se destacou ser o
período de maior número de auto agressões por parte da comunidade LGBTTI+ entre 20-29
anos. Problemas psicológicos tais como estas que, por Teixeira-Filho e Rondini(2012),
implicam em: não aceitação, depressão, raiva e ressentimento do indivíduo.
Uma vez identificado, por meio da pesquisa em formulário, que o gênero de maior
consumo é o de super-heróis listou-se dentro deste, os personagens LGBTTI+.

8. As personagens
Rute
Para a elaboração da primeira personagem buscou-se referência sobre características
físicas e comportamentais, de pessoas lésbicas e também de pessoas negras. A proposta era
criar uma persona principal feminina e negra. Como visto em estudo , foi constatado que a
infância é um período de grande dificuldade para se entender e se debater sobre assuntos
LGBTTI+, desta maneira foi definido assim, que a personagem para melhor papel de
discussão com os receptores fosse uma personagem infantil.
Ilustrado na Figura 28, em primeiro momento buscou-se formas e expressões simples
e de fácil entendimento, uma vez que McCloud(2008) aponta que a personagem deve ser de
morfologia de entendimento prático ao interpretante.

497
FIGURA 1 – Estudo de estilo
FONTE - Do Autor,2018.

Como representação negra e feminina, foi feito um levantamento de ícones nacionais


que expressassem tal definição. Desta forma a pequena ruth teve sua maior inspiração em
Ruth de Souza(1921) primeira mulher negra a participar do teatro, cinema e televisão
nacionais. A personagem conta também com uma variação de penteados, e acessórios
expressivos da cultura negra brasileira.

FIGURA 2 – Painel Semântico Rute


FONTE - Do Autor,2018.

498
FIGURA 3 – Rute
FONTE - Do Autor,2018.

Anima e Animus
Para a abordagem da identidade de gênero foram-se criados duas personagens. Os
referenciais foram figuras que de certa forma não apresentam forte distinção de gênero, como
por exemplo Willow Smith, Jaden Smith e 2de1 e também os conceitos da feminilidade e
masculinidade do inconsciente de Carl Gustav Jung (1875-1961) .

FIGURA 4 – Painel Semântico - Anima e Animus


FONTE - Do Autor,2018.

O intuito de serem uma dupla, no caso são irmãos gêmeos, é de demonstrar que o
masculino e feminino necessitam de equilíbrio para o funcionamento de um todo.

499
FIGURA 5 – Conceito - Anima e Animus
FONTE - Do Autor,2018.

Um é uma mulher trans nomeada de Anima, o outro homem Cis bissexual, Animus.
Seus poderes funcionam apenas quando juntos, caso contrário serão apenas destrutivas suas
habilidades. Anima é ligada a luz da noite, à lua. Animus a luz do dia, ao sol.

FIGURA 6 – Anima e Animus


FONTE - Do Autor,2018.

Rose
Com principal inspiração em Rosely roth(1956-1990) uma das líderes do movimento
por luta aos direitos lésbicos no Brasil, a super-heroína Rose, representa o corpo gordo. A
personagem tem inspiração física e de personalidade em outras duas mulheres, Ellen Gomes
de Oléria(1982), Ellen Oléria, Artista ativista, lésbica nacional, e Mary Beth Patterson,de

500
nome artístico Beth Ditto(1981) cantora norte-americana gay, gorda e ativista em prol dos
movimentos LGBTTI+.

FIGURA 7 – Painel Semântico Rose.


FONTE - Do Autor,2018.

Assim, em seu processo de criação buscou-se expressar força e segurança aliados às


características físicas do corpo. A personagem, com fins de crítica, não possui poderes. Desta
forma toda sua trajetória deve-se às suas habilidades técnicas e de sua inteligência, que a fez
forte devido a criação de armas tecnológicas.

FIGURA 8 – Conceito - Rose.


FONTE - Do Autor,2018.

Rose é a líder da equipe, que possui mais 2 integrantes em sua formação, e como
mencionado anteriormente, usa de aparatos criados por ela mesma.

501
FIGURA 9 – Rose.
FONTE - Do Autor,2018.

9.Considerações Finais

As representações, como apresentadas ao longo deste trabalho, mostram-se de grande


importância ao entendimento e compreensão do homem visual. Desta forma, as personagens
criadas e aplicadas ao veículo HQ são a busca por enriquecimento cultural visual
fundamental para um melhor entendimento social dos temas LGBTTIs+. Assim, o resultado
deste projeto visa proporcionar a longo tempo, uma melhor inserção da comunidade
LGBTTI+ à sociedade junto ao empoderamento da mesma.

Referências

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504
MAGIA (BRUXARIA) DA MULTIPLICAÇÃO 1
Linguagens e mercado no caso Harry Potter
MAGIC (WITCHCRAFT) OF MULTIPLICATION
Languages and market in Harry Potter´s case
2
Gláucia Davino
3
José Estevão Favaro

Resumo: As formas de produção e de acesso às informações e entretenimento se


multiplicaram historicamente, na medida em que novos canais de mídia (físicos,
eletrônicos e digitais) se estruturaram. Se, para nossos antepassados, traços em
pedras, gestos e oralidade já foram maneiras de trocar informações, seus
descendentes não se contentaram com elas e, ao longo do tempo, criaram e
aperfeiçoaram maneiras de criar e registrar conteúdos, para transmitir às novas
gerações. Para contar e/ou conhecer histórias, hoje, dispomos de mídias e
linguagens múltiplas que, além do enraizamento individual, conseguimos fazer
convergências, combinatórias e hibridizações que potencializam a oferta
igualmente múltiplas de experiências. A transmidiação é como uma constelação
(universo próprio) de histórias, sobre a qual se tem liberdade de escolher. O
mercado do entretenimento alimenta essa reconfiguração do contar histórias, que
dá longevidade de sucesso, diversificação de público e multiplicação do
faturamento. A franquia Harry Potter é o exemplo desse artigo que se apoia em
informações, publicações e comentários nas mídias contemporâneas.
Palavras-chave: Harry Potter; Linguagem Transmídia; Marketing

1. Fenômeno de massa: magia, mistérios e superação


Joanne (Kathleen) Rowling é uma celebridade no mundo do entretenimento atual, faz
palestras, tem forte presença nas redes sociais e ganhadora de honras e prêmios. A história de
vida dessa escritora emoldura, permeia e acompanha o sucesso internacional de suas criações,
personagens e criaturas de um mundo mágico complexo e misterioso em que o bem e o mal
lutam sob poderes e saberes das feitiçarias dos bruxos, mas onde não basta nascer bruxo...
tem que aprender. É a história de uma mulher que enfrentou obstáculos para chegar onde

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho GT 05 (Comunicação, Imagem e Produção Audiovisual), no 3º
CONEC: Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de
outubro de 2018.
2
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutora em Ciências da Comunicação (USP), glau.dav@gmail.com.
3
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor em Educação, Arte e História da Cultura (UPM),
jestevao05@gmail.com

505
chegou - e não foram poucos e nem fáceis de superar, segundo o conteúdo biográfico exposto
em seu site, contado em entrevistas, em palestras, reiterado pela autora e replicado, com mais
ou menos detalhes, nos meios de comunicação. A vida de “Jo” (Joe, como é chamada
carinhosamente) não é novidade, pelo menos para os fãs (se alguém ainda não sabe, poderá
saber por um clic de busca na internet). A sua história pessoal alimenta o olhar positivo sobre
seu caráter, suas criações, sua produção, sua força em criar os mundos imaginários, sua
empatia com o público e em utilizar seu sucesso e dinheiro em favor de ações filantrópicas,
i.e., sua biographical storytelling legitima a autora como escritora e pessoa de valor para a
história da humanidade. Vejamos o exemplo, na ocasião dos vinte anos da primeira edição de
seu livro, que encontramos na Revista Exame Negócios:
No começo dos anos 1990, Rowling fez as malas e voltou para a Escócia
após um casamento infeliz com um marido abusivo em Portugal. Sem
emprego e com um bebê para criar sozinha, começou a receber ajuda do
governo e tentar sobreviver. (jul./2017)

Casamento infeliz, marido abusivo, desemprego, bebê para criar sozinha e a ajuda para
sobreviver (pobreza) são situações dramaticamente (na literatura, cinema e outras artes
narrativas) fortes em qualquer história, real ou fictícia. Mas para piorar, o sonho e o
investimento na criação daquele universo dos bruxos foram sequencialmente recusados, por
muitas editoras. Isso mostrava que universo editorial deu as costas àquela desconhecida - que
apenas desejava publicar seus livros para crianças. Pouco depois, faria fortuna com seus
livros. Ela mesma conta, para mostrar aos seus leitores, um episódio de como foi mal aceita:
“The “K” stands for Kathleen, her paternal grandmother’s name. It was added at her
publisher’s request, who thought a book by an obviously female author might not appeal to
the target audience of young boys”. (Grifo nosso. J.K.ROWLING – site).
Empenho, insistência, superação e, finalmente o aceite e assinatura de contrato (com a
“mentora” Bloomsbury Children's Books 4), naquele momento difícil de sua vida, lhe
proporcionaram oportunidades que foram muito além de seu desejo inicial de publicar o
primeiro da série de sete livros das aventuras da personagem Harry Potter, amigos e aliados,
durante todo período escolar em Hogwarts, the school of witchcraft and wizardry. Como nos
contos, a “salvadora” (a editora do bem) acolheu essa mulher frágil e foi “recompensada”

4
No Brasil, os livros de Rowling foram editados pela Rocco.

506
pelos milhares e milhares de dólares. No artigo de curiosidade sobre casos de
arrependimentos na história da humanidade, do site Reak World (maio 2018), as editoras que
recusaram o manuscrito, com respostas bem desagradáveis, encabeçam a lista dos
amargamente arrependidos. No mínimo as doze pessoas que leram e recusaram o livro – fora
toda equipe e empresa -, são alguns deles, “imagina se você é um desses caras que perdeu a
chance de publicar uma franquia de 6 bilhões de dólares, aposto que eles nunca contariam pra
ninguém pra não passar vergonha” (Iden). E assim, tantas outras publicações sobre o
fenômeno, trazendo manchetes que ajudam a enobrecer essa biographycal storytelling.
A história da gênese da série de livros, da primeira publicação e da biografia da autora
permeia o mito Harry Potter, o universo dos bruxos, ou melhor, o “universo J.K. Rowling”.
Em suma, ela foi uma criança leitora, que gostava de escrever histórias. Foi para a
universidade aos dezoito anos, onde estudou francês e os clássicos, o que a ajudou a “criar os
feitiços da série” em latim. Formada, teve diversos empregos, dos quais destacou sua
inspiradora passagem pela “Anistia Internacional” (JKRowling site).

A franquia Harry Potter e outras séries de livros, em outros universos, não poderiam deixar a
própria história da autora fora do contexto de marketing. Ela se tornou um mito e isso
alavanca a venda de qualquer que seja a história que ela conte. Em comunhão com o mundo
Harry, sua marca é sustendada por sua storytelling de heroína, numa sociedade patriarcal 5.
A história de vida de J.K. é de fato inspiradora. Seu discurso como
paraninfa na formatura da turma 2009 da universidade Harvard, sobre os
benefícios do fracasso e a importância da imaginação, foi publicado em
formato de livro.
J.K. compartilha histórias de sua vida e provoca os alunos a repensarem o
conceito do fracasso. A renda da obra é revertida a instituições beneficentes,
que trabalham contra o analfabetismo infantil por todo o mundo. (BLOG
SARAIVA, s/d)
Very Good Lives: The Fringe Benefits of Failure (2015, Sphere) é o livro ilustrado (dentre
outros que escreveu) a partir do conteúdo daquele discurso em Harvard, universidade que
apoiou financeiramente a publicação do livro. O lucro da venda desse título, em 2015, e do
livro The Tales of Beedle the Bard (Bloomsbury), desde 2008, é revertido para sua própria
Fundação, a Lumos, criada em 2005 e cuja atividade filantrópica é a de auxiliar as crianças

5
Ver referência sobre o tema em Murdock, M. The heroine’s journey: Woman’s quest for wholeness. Boston,
MA: Shambhala, 1990.

507
orfãs a viverem num ambiente de família, um lar. Harry Potter era órfão, não é mesmo? O
nome da autora e a personagem da saga potencializam a sensibilização daqueles que possam
apoiar a causa, com doações, por exemplo.
For many, the only option is to put their child in an institution or orphanage.
Poverty, discrimination, war or natural disaster are all factors that can cause
children to become separated from their families. For many desperate parents
seeking help, their only option is to put their child in an orphanage or other
institution. With support, most families could care for their children. And children
without families could be looked after in family-style environments, or community-
based services, where they can be provided with the care to meet their needs (site
Wearelumos)

A comparação entre JK, Harrry e seu grupo de amigos é evidente, tendo como
personagem feminina a inteligente e sábia Hermione – jornada feminina. Pobreza (sem saber
que descobrirá sua riqueza), abandono, mas que alcança seu propósito de vida ajudando os
outros pela sabedoria, persistência e resiliência são traços das histórias contadas sobre a
autora e sobre as personagens, portanto, são estruturantes no storytelling da marca Harry
Potter. A riqueza financeira permitiu a Rowling se dedicar a outras atividades, além da
criativa, incluindo a publicação de outros livros (mesmo com pseudônimo masculino).
Ministrar palestras, se comunicar com o público pelo Twitter e outras mídias sociais e ações
de filantropia.
Ha quem goste de comparar a história de JK Rowling, a autora de Harry Potter, a
um conto de fadas. É fácil entender o motivo: Rowling era muito pobre e dependia
de benefícios sociais para sustentar sua família quando o primeiro livro foi
publicado, em 1997. Quase instantaneamente, ela se tornou milionária e, depois,
bilionária.
Mas essa é uma visão simplista. A trajetória de JK Rowling é muito mais calcada
em persistência, resiliência e propósito que num final feliz repentino – traços que,
não por acaso, também aparecem no protagonista da série. (ÉPOCA NEGÓCIOS,
jul./ 2017)
As obras de Rowling já fazem parte da cultura em muitas partes do mundo e ela
continua a influenciar a sociedade com seu carisma e novas obras. Para a geração de jovens
adultos de hoje, que cresceram lendo Harry Potter, e de seus filhos, por “herança cultural”, o
mundo Harry se manterá vivo, assim como o são, até agora, as historias infantis compiladas -
de manuscritos, documentos históricos, histórias orais - e escritas pelos irmãos Griims.
... a obra dos irmãos foi decisiva para moldar nossa concepção de Literatura Infantil
(...) personagens de contos de fadas nos acompanham desde as nossas primeiras
impressões de infância. São parte integrante de nossa cultura e formação como
leitores, fundamentais para estimular a nossa capacidade de imaginação. Os
personagens dos contos dos Grimm povoam filmes, desenhos animados, brinquedos
e uma infinidade de outros produtos e artefatos, de modo que podemos duvidar que

508
hoje possa haver alguém que nunca tenha ouvido falar no sapo que virou príncipe
ou na casinha de doces onde mora uma bruxa malvada. (VOLOBUEF, 2013)
Mas, como todo autor de magia e/ou da idade média (receitas, conhecimentos, segredos
públicos, medicina, etc.), foram revelados os “rastros criativos” de Jo, os textos originalmente
escritos à mão: anotações e rabiscos em papéis “estranhos” 6.
As criaturas e o criador inseparavelmente definem o universo ficcional Harry Potter.
Outro fato que ilustra a saga foi que, em 1990 as paisagens das estações de trem de Londres e
seus vagões inspiraram as primeiras concepções do “bruxinho”. Com universo muito mais
amplo do que a soma dos sete romances, Jo levou cinco anos para estruturá-lo e em 1997
foram publicadas mil cópias de Harry Potter and the philosopher´s stone, o primeiro livro,
sendo que quinhentas foram doadas a bibliotecas na Inglaterra. A primeira edição não surtiu
efeito imediato, mas permitiu que o livro fosse distribuído, compartilhado e apreciado. “No
ano de 1988, foi realizado nos EUA um leilão para vender os direitos de publicação do livro e
foi ganho pela Scholastis Ink”. A partir desse leilão foram abertas as possibilidades de
realização dos filmes, dos quais Rowling participou ativamente com suas observações, dando
início a saga nos cinemas, com a exibição do primeiro filme em 2001. A partir desse leilão
foram abertas as possibilidades de realização dos filmes, dos quais Rowling participou
ativamente com suas observações, dando início a saga nos cinemas, com a exibição do
primeiro filme em 2001 (FAVARO e FAVARO, 2017, 759).

1ª capa Britânica. Versão Adulta. EUA, Brasil e Itália França Suécia


Ilustração:Thomas Ilustração: outros países. Ilustração: Serena Ilustração: Jean- Ilustração: Alvaro
Taylor Michael Ilustração: Mary Liglietti Claude Gotting Tapia
Wildsmith Grand Pré
IMAGEM 1: Primeiras capas do livro, em alguns países.
FONTE: Revista Capricho. Ed. Abril. On-line, Publicado em 25 jun 2017, 20h33

6
Imagens desses objetos ilustram o site da autora (https://www.jkrowling.com/)e alguns como hiperlink para
conteúdos específicos, como por exemplo, o comentário de que a peça de teatro não se transformará em filme,
i.e., é apenas um boato. Os boatos ajudam a autora a se comunicar com o público.

509
A primeira onda de sucesso de vendas do livro infantil foi atribuída às boas críticas, ao
encantamento de crianças, jovens e pais pelas histórias e personagens. O fenômeno, reanimou
o segmento no mercado, mas não se limitou a ele, o que surpreendeu foi que, a partir daí, o
interesse de crianças e jovens pela literatura e pela escrita também aumentou. Para alguns,
Harry Potter foi o primeiro livro de suas vidas. Assim, o mundo Potter-Rowling se tornou
real e se espraiou por outras mídias e linguagens, sendo o cinema a primeira, quando a
Warner comprou os direitos dos livros para irem para as telas. A franquia estava formada e a
capacidade mágica da multiplicação pareceu, aos olhos dos espectadores, como num toque de
varinha.

2. Transmidiando a bruxaria da multiplicação

A magia da multiplicação contém ingredientes que não escapam ao marketing, como a


jornada de Jo Rowling, já mostrada na sessão anterior. A saga Harry Potter se desenvolveu
na contemporaneidade, em paralelo ao surgimento de outras telas, gadgets, formas de contar
histórias, tanto para acessar o consumidor no sistema de massas, de nichos, individual e/ou
participativo. Trata-se de mais de vinte anos do primeiro livro e viveu-se o testemunho do
aumento exponencial dos produtos derivados. Em 2017, na Meio & Mensagem 7, publicaram
Pode-se dizer que vivemos em uma época muito melhor do que anos atrás e que
vamos viver uma fase muito melhor. Quando foi lançado em 1997, o universo da
franquia era muito limitado e as crianças eram muito pequenas, e portanto as
políticas de marketing eram restritas e focada em apenas algumas categorias de
produto. Na época, lidávamos apenas com produtos ligados diretamente ao tema do
filme, com brinquedos e réplicas, e agora temos um universo expandido de faixas
etárias, com produtos que apenas trazem as cores e elementos do filme como uma
referência. (BALAN JULIO, 2017)
A saga de Harry (período de escola) termina, mas o universo mágico não promete
terminar, ao contrário, o filme Fantastic Beasts: The Crimes of Grindelwald (David Yates,
2018, Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald) 8 está aí para provar que narrativas,
apoiadas pela indústria do entretenimento, suas marcas, o imaginário e franquias continuarão
a alimentar o que o ser humano mais gosta, o contar, ouvir, ressignificar e o recontar histórias
que atualizem sua existência.

7
Publicação semanal de revista profissional nas áreas de marketing e publicidade.
8
Adaptado, pela própria autora, de seu livro homônimo, que conta histórias paralelas àquelas vividas por Harry
e os seus entes queridos, i.e., mas dentro do mesmo universo (não espaço físico, nem cronológico).

510
A transmidiação narrativa, sabemos, não é novidade se pensarmos suas estratégias
estruturais, que expande o alcance do espectador sobre aspectos desconhecidos das histórias
conhecidas, dentro do próprio universo fictício, pois este é sempre um universo em expansão.
Se há uma cidade, há pessoas nessa cidade. Se há “bruxos e trouxas” 9, eles vivem e
interagem entre si, naquele espaço. Um universo ficcional, portanto, torna-se um repositório
infinito de possibilidades. Quase não se percebe a narrativa transmidiática, pois ela já está
incorporada às formas de consumir, às histórias dessas grandes marcas e à percepção do
mundo. A web para onde convergem as formas expressivas é um loco com facilidade de
acesso e navegação intuitiva pelos hiperlinks computacionais. Clicamos aqui, vamos para
outro lugar, exatamente quando desejarmos, não que todas as plataformas de linguagem
sejam digitais (o teatro não o é, por exemplo). O exemplo de Matrix (Irmãos Wachowski,
1999) se encaixa na mesma medida que a de Harry Potter.
Transmidia tends to apply storytelling techniques to various genres from
exhibitions to science fiction films, TV series to festivals (Kim & Hong,
2013). For example, the Matrix, which is the Warner Bros narrative, is an
aesthetic expression built on a set of characters, subjects, and brands,
contributing to the construction of the fictional world, which can be
replicated and adapted across different platforms, generating continuous
revenue for manufacturers. As Jenkins (2006) says; “The Matrix, in the age
of media convergence, combines multiple narratives to create a story that
can not be included in a single athlete.” Such narrative labels can be
reproduced and adapted to different media and genres. (DIKER e
TAŞDELEN, 2018; 294. Sublinhado nosso)

O cinema foi a segunda plataforma e uma das mais tenazes na expansão da narrativa de
Harry Potter. Nos filmes, personagens, espaços e ações se materializam de forma única diante
dos olhos do público. No mundo inteiro, o rosto e corpo de Daniel Radcliffe se eternizou
como os de Harry e assim com todas personagens. Essa característica de permanência visual,
gestual e auditiva é própria do cinema (reprodutibilidade técnica) que dá vida eterna visual às
personagens no registro das imagens dotadas de um corpo “emprestado”, mas encarnado na
personagem – é o corpo dela.

9
“Bruxos”, no universo Harry Potter são aqueles que são filhos legítimos, consanguíneos, de outros bruxos (pai
e mãe). “Trouxas” são os que não têm essa autenticidade, mas podem frequentar a escola de bruxos, fazer
magias, etc.

511
Como sabemos, games, outros livros pertencentes à diegesis das histórias, esportes
(quadribol – jogo inventado), HQs, dramaturgia teatral, televisiva, aplicativos, sons
(podcasts, música) bonecos, parques temáticos, eventos, web e etc. são as plataformas que
distribuem todas as narrativas e conflitos que supostamente estejam acontecendo nos demais
segmentos do universo, com personagens que sequer ainda sejam conhecidos, mas que a
autora pode conhecer e/ou inventar. Serão esses os potenciais promotores de interesse e
curiosidade para o espectador/leitor em se manter ativo consumidor das histórias.
A quantidade de aventuras, portanto, torna-se infinita. As plataformas (tecnologia)
ajustam a matização de linguagens: verbal (oral ou escrita), audiovisual (cinema e TV),
musical (trilha musical dos filmes), performática (teatro, dança), imersiva (3D, VR, AR) 10,
etc.
Dessa forma, as ofertas de diversificação de experiências para os fãs ou espectadores
comuns fica em constante mutação, o que acarreta mais consumo. Por exemplo, a experiência
de voar de vassoura em Hogwarts “em primeira pessoa” (o consumidor), que é um dos
entretenimentos oferecidos no parque temático da Universal (EUA) 11, expande as histórias
que assistimos no filme, pois o consumidor começa a fazer parte do universo, imerso nele e
tendo que interagir com seus elementos e a volumetria dos espaços. Trata-se de uma
experiência que a estrutura transmidiática permite, sem obrigar ninguém a seguir um único
caminho.
O site oficial da autora “Jkrowling.com”, onde constam seus livros, biografia, links de
venda e informações pessoais, etc., o site “Pottermore.com”, exclusivo desse universo e onde
os fãs “se encontram oficialmente” e todas as redes sociais disponíveis (twitter, instagran,
facebook...), são canais alimentados de forma controlada (pelos detentores dos direitos,
principalmente a autora) para que a vida ficcional criada alí continue. Como exploramos no
item inicial, as opiniões da autora, suas revelações e ações fazem parte do marketing
“contaminado” de entretenimento. A conexão emocional é fator engajador e fidelizador às
marcas, como bem o sabem os profissionais de marketing. A possibilidade de participação

10
Imagens em três dimensões, realidade virtual e realidade aumentada, respectivamente.
11
Trata-se de simulador que te faz parecer que está no jogo de quadribol (por consequência estaria voando na
vassoura)

512
pessoal no mundo Harry, juntamente com outros fãs e a própria autora incentivam e
sinalizam a continuidade para outras histórias com novos conteúdos.
Se alguém quiser estar a par e se sentir cúmplice dessas histórias, basta um clic.
Logicamente que, fora desses espaços digitais criados para a marca, é impossível o controle
da autora sobre manifestações com propósitos de valorização ou desvalorização de Potter.
Qualquer que seja a publicação não é necessariamente ruim, pois causa buzz que gera notícia
(verdadeira ou falsa) e faz fãs e não fãs entrarem nos canais para participarem. Por exemplo,
o caso do fã Steve Vander Ark (perdeu a causa) que pretendia publicar um compêndio que
escreveu sobre o mundo Harry Potter se destacou, como um espetáculo, nas midias, com
direito à espera de alguns dias para o veredicto. Mais uma vez, Rowling vitoriosa, conseguiu
proteger seus direitos. Outro caso de chamada de atenção pela autora não se refere a Harry
Potter, mas aos livros sobre o detetive Cormoran Strike, assinados com o pseudônimo de
Robert Galbraith. A revelação “ocasional” (não intencional?) de sua identidade provocou
aumento de procura dessa série. O sétimo livro, “Para anunciar o título, a autora da saga
"Harry Potter" fez uma espécie de jogo com seus seguidores no Twitter.” (O GLOBO,
Cultura, 2017). Também provocou a curiosidade dos fãs que, como detetives, buscaram
solucionar o mistério. Essas são algumas das estratégias adotadas, i.e., a autora e os
fatos que deveriam ser considerados periféricos se tornam tão importantes quanto suas
obras.
Sim, dar opinião, discutir as narrativas, levantar dúvidas, fazer provocações não se
limitam às da autora, mas aos consumidores de diversos países, idades e sexos. O que
há de mais rico na transmediação é esse item inconstante e criativo dos consumidores.
É também uma forma de balizar e conhecer a fundo para quem se está escrevendo.
Quem são e quais os perfis dessas pessoas? Como elas pertencem ao universo Harry
Potter, definido por suas regras próprias ficcionais? Como se inter-relacionam? Trata-se
de uma grande chave para que a marca possa manter-se ativa, que as ficções possam
evoluir e, com certeza, influenciar toda a literatura de massa. Permite que as mídias
escolhidas sejam as mais adequadas para aquele segmento de história.
Ainsi, les auteurs peuvent puiser dans les textures implicite et zéro pour
trouver de nouveaux récits qui conviennent aux différents médias. Les
univers fictionnels sont donc une solution à la recherche de nouvelles
histoires et permettent de négocier les conditions d’un récit dans un média
(FRÉDÉRIC e LIFSCHUTZ, 2017)

513
Conhecendo o público, as mídias preferidas que declinam determinados nichos, é
possível criar especificamente para determinada plataforma onde eles atuam com mais
insistência. Por exemplo, tem-se que criar uma história adequada para o uso narrativo e
de design de experiência da plataforma game. Que tipo de conflitos? Quais alternativas
para erros e acertos? Que tipo de recompensa? Que tipo de imagem, de identificação
com personagens e objetos? E mais, o que o jogo pode revelar ao seu público sobre algo
que pode revelar segredos de outra história em outra plataforma, em outra
circunstância narrativa? Quanto mais plataformas, mais modalidades e histórias
deverão ser criadas, segundo suas características intrínsecas. Personagens de universos
diferentes podem, eventualmente, “visitar” outros, perceptível ou não para o
espectador, dependendo de seu conhecimento anterior.

3. Chegando ao fim de um ciclo, prenuncio dos próximos


A convergência das mídias é um fenômeno social e cultural de organização, troca de
conhecimentos, produtos e experiências, no contexto contemporâneo, pelas tecnologias
digitais e as redes disponíveis. Para Jenkins (2009) a convergência dos meios é composta pela
interligação das diferentes linguagens (meios tecnológicos) disponíveis a todos, pelo
repositório de dados, informações e conhecimento no cyberespaço (inteligência coletiva de
LÉVY, 2003), ao alcance de todos (gratuitamente ou não) individualmente ou em grupo e a
prática participativa, i.e., a intervenção e/ou produção de conteúdos pelos usuários.
A transmediação, no grau que o fenômeno Harry Potter alçou, tem refletido as
mudanças para as manifestações narrativas, sem perder ou eliminar, a forma mais básica dos
últimos séculos, o da escrita impressa, na figura dos livros editados e vendidos. O que eram
livros infantis se tornaram marca. Além dos livros, a marca é comercializada por diversos
segmentos sociais e econômicos através da franquia, um modelo de negócios adotado há
muitos anos no mercado de entretenimento e que implica em estratégias de marketing
baseadas em diagnosticar as necessidades dos clientes e oferecer a eles soluções alinhadas a
elas e a seu perfil, criando fidelização não apenas pelo lado racional de escolha, mas sim pelo
lado emotivo, i.e., estabelece um autêncico relacionamente com seus clientes, oferecendo um
produto de valor.

514
O Marketing Potter-Jo atualiza e identifica necessidades e desejos dos seus clientes,
pois o diálogo mediado está aberto às participações dos clientes, como coparticipantes das
soluções (KOTLER, 2003; 11) independentemente.
A série recorte dentro de um universo bem mais amplo e que faz parte do imaginário de
crianças e adultos em todo o mundo, assim como tantas histórias lendárias (ocidentais e não
ocidentais) que ultrapassaram séculos. Se tomarmos de memória, muitas das fábulas antigas
foram apropriadas, adaptadas e/ou atualizadas por outros autores literários e/ou empresas de
entretenimento, com a difusão de novas linguagens. Não são apenas as lendas que se inserem
na cultura e na memória social. Há personagens da literatura, do teatro, do cinema e das
telenovelas (principalmente no Brasil) e/ou séries que se perpetuaram, fazem parte da história
do mundo. Harry Potter e o universo ao qual pertence são um caso contemporâneo por dois
motivos: a primeira onda de sucesso, quando a primeira publicação começou a repercutir e a
interessar crianças, jovens e adultos, e em seguida o forte investimento e planejamento de sua
expansão. Em 2015, foi lançado o livro Fantastic Beasts and Where to Find Them (Animais
Fantásticos e Onde Habitam) dentro do mesmo universo, o mundo dos bruxos, mas não mais
em torno de Harry Potter, nem de Hogwarts daqueles tempos. Nessa obra, que virou filme, já
lançado no Brasil, se debruçam outras já planejadas.
A transmediação de Harry Potter é irreversível, ele tornou-se uma personagem de nosso
tempo, foi para o museu (Boston), para o teatro, para a casa das pessoas e continua a
repercutir nos corações dos fãs. Não nos parece impossível, como o mundo de Disney, a
marca Harry Potter cruzar o tempo além do de sua criadora e autora.
Essa estratégia da multiplicação de obras a partir de uma matriz de um mundo fictício
tem repercutido em outros casos, outras ficções, outros mundos, que não o de JK Roling
Potter. Muitos autores já escrevem (às vezes já encomendados) visando a difusão de sua
história, personagens e universo em séries para TV, filmes, HQs e objetos, assim como o faz
JK Rowling, desde a assinatura dos contratos de adaptar a obra para filmes. Não será
necessário esperar demais. Enquanto estamos consumindo as novas histórias, outras já estão
sendo alimentadas para serem oferecidas ao público.

Referências
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515
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https://epocanegocios.globo.com/Carreira/noticia/2017/07/como-fracasso-e-
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(Acesso em set, 2018)

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https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/07/jk-rowling-6-fatos-que-voce-
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Vozes, 1998.

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modificação 10/01/2013 16h45. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental-arquivo/contos-de-
fadas-dos-irmaos-grimm. (acesso em setembro, 2018)

WEARELUMOS – Site oficial da Fundação Lumos. Disponível em:


https://www.wearelumos.org/ (acesso em setembro, 2018)

517
OS ELEMENTOS INTERTEXTUAIS DO DIÁLOGO ENTRE
WOODY ALLEN E INGMAR BERGMAN EM INTERIORES
(1978) E A OUTRA (1988), COM PERSONA (1966). 1
THE INTERTEXTUAL ELEMENTS OF THE DIALOGUE
BETWEEN WOODY ALLEN AND INGMAR BERGMAN IN
INTERIORS (1978) AND ANOTHER WOMAN (1988) WITH
PERSONA (1966).
Alexandre Silva Wolf 2

Resumo: A intertextualidade é entendida como elemento presente na teoria do cinema


contemporâneo. Woody Allen em suas obras busca os mais diversos tipos de
diálogos, com períodos literários, escritores famosos, períodos históricos do
cinema e mesmo com diretores que ele admira, neste caso Ingmar Bergman, os
homenageando a partir da prática intertextual. Neste artigo analisamos em
paralelo três obras: Interiores (Interiors, 1978) e A Outra (Another Woman, 1988)
de Allen em relação a Persona (Persona, 1966) de Bergman. Partindo da obra de
Bergaman como hipotexto, Allen cria dois novos hipertetxtos que não escondem
sua origem, e sim, dão oportunidade para a criação de duas novas obras fílmicas
representantes da praxis do cinema contemporâneo.

Palavras-Chave: Cinema. Intertextualidade. Woody Allen.

1. Introdução

O objetivo desse artigo é compreender em que medida o conceito da intertextualidade


pode ser aplicado e relacionado às teorias do cinema e suas aplicações na compreensão do
diálogo proposto pelas narrativas criadas por diretores como Woody Allen a partir de
diálogos realizados por ele em relação a outros cineastas, intitulados muitas vezes como
homenagens, como é o caso de alguns de seus filmes relacionados a obra do cineasta Ingmar
Bergman.

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho Comunicação, Imagem Produção Audiovisual do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Doutorando em Comunicação e Linguagens, Universidade Tuiuti do Paraná. Mestre em Comunicação e
Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná. Especialista em História da Arte Moderna e Contemporânea
pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Professor assistente mestre na FAE Centro Universitário,
lecionando nos cursos de comunicação social, design e negócios. E-mail: xewolf@gmail.com.

518
2. Narratividade e Estilo Cinematográfico

O narrar faz parte do ser humano. Contar histórias faz parte da construção da própria
civilização. As artes em geral se apropriaram dessa forma de expressão e, obviamente o
cinema toma a narração como uma de suas principais ferramentas. Muitas são as histórias
narradas pelo cinema, mesmo quando um filme tem a pretensão única de contar algumas
horas da vida de um homem. E dentro de um princípio básico, a organização dessa narrativa
obedece a uma ordem que supõe no mínimo um ponto inicial e um desfecho.
O termo narratologia, a ciência da narrativa, foi criado por Tzvetan Todorov e depois
retomado por Gerard Genette que intensificou as pesquisas nessa área (GAUDREAUL,
2009). O narrar sempre foi desenvolvido a partir de duas formas principais: a narrativa escrita
e a narrativa oral. A primeira deu origem a literatura e a segunda a representação da narrativa,
seja ela transmitida por um narrador único ou pela transmissão da história através de outra
mídia como o cinema.
Toda narrativa pressupõe duas temporalidades, a primeira é aquela da coisa narrada e a
outra é a temporalidade da própria narração. O narrar também nos coloca a situação do irreal.
(METZ,2004) Quando tratamos com uma narrativa sabemos de antemão que lidamos com
algo irreal, algo contado por alguém. Esse contar se orienta por um discurso fechado, no qual
o acontecimento é tratado como sua unidade fundamental. A partir disso, podemos entender
que uma narrativa é um discurso fechado que desrealiza uma sequência temporal de
acontecimentos que poderiam ser oriundos do real ou do irreal. O cinema nos permite dar
existência a uma narrativa mesmo que as imagens e sons propostos pelo filme estejam
situados fora do imaginário tomado como real pelos seus espectadores.
A narrativa cinematográfica se origina pelo registro da interpretação do ator em um
determinado ambiente intermediado pelo aparato mecânico, a câmera filmadora. É inegável a
influência desse objeto sobre o resultado dessa narrativa. A posição da tomada do plano e as
suas movimentações possíveis podem intervir na percepção que o espectador terá dessa
performance, forçando o olhar deste, ou mesmo, dirigir a sua interpretação de acordo com os
desejos de quem opera a câmera.

519
Ao contrário da língua natural, sistema específico de signos, o relato é universal: é a
razão pela qual um e outro dependem de disciplinas diferentes. [...] ...uma narrativa
escritural nunca será uma narrativa cinematográfica pela razão principal de que uma
é monódica, a outra, polifônica. Ao encenar ações, o cinema remete ao teatro; ao
utilizar o verbo, remete ao romance, etc. Porém, os coeficientes de teatralidade ou
verbalidade são, necessariamente, transformados pelo fato de o filme por em jogo
simultaneamente numerosos materiais de expressão. GAUDREAULT (2009, p.189)

Essa discussão referente ao aparato mecânico do cinema nos permitiu pensar em um


narrador que opera externamente a narrativa principal, gerando uma outra visão do mesmo
tema, um ente externo que escreve a partir de suas impressões um olhar específico sobre o
objeto narrado. Essa escrita se dá a partir das escolhas desse narrador externo em relação aos
posicionamentos de câmera entre outras escolhas como locações, figurinos, ambientação, etc.
Além da tomada, do registro fílmico, estabelecer esse olhar característico desse narrador
externo, temos também a influência da narrativa realizada a partir da montagem, elemento
posterior também gerenciado, muitas vezes, por esse mesmo narrador. A montagem adequada
da sequência de planos, organizados cronologicamente ou não, nos trarão a sensação da
narrativa.
A obra cinematográfica possui um caráter polifônico e se organiza a partir de muitos
signos (imagens, ruídos, diálogos, menções escritas, músicas). Esses elementos na maioria
das vezes trabalham em uníssono, porém muitas vezes podem aparentemente se
desorganizarem e apresentarem diferentes resultados daqueles que esperamos como habituais
de uma narrativa. Aqui novamente as decisões do narrador externo irão definir quais desses
elementos devem ou não ficar em evidência dando um sentido a narrativa.
Chegamos a conclusão de que o narrar dentro do cinema está diretamente relacionado a
essa figura externa, decisor das sequências e dos elementos que devem ser destacados para a
contação da história, que inegavelmente cabe a personagem do diretor de cinema, ao cineasta.
Aqui nesse momento podemos relacionar o narrar com esse indivíduo e podemos pensar nas
questões referentes ao estilo cinematográfico.
O conceito de estilo é oriundo da história da arte e possui um significado amplo e
muitas vezes vago. Geralmente se relaciona a um grupo de características eventualmente
constantes e definidas que permitem a identificação de uma obra de arte ligada a um período
histórico, a uma região, a um grupo de artistas, a um único artista ou de uma fase em sua
carreira ou ainda de uma corrente estética, permitindo assim relacionar uma obra à sua

520
origem. A palavra estilo é derivada do latim (stills), que se tratava de um instrumento de
metal pontiagudo utilizado como ferramenta para escrever ou desenhar. Essa denominação,
depois de um certo tempo passou a ser utilizada para designar uma maneira especial de fazer
qualquer coisa. Em seguida passou a ser entendido a partir do pressuposto de que cada época
tem o seu próprio estilo, uma vontade artística ou formativa que pode auxiliar na
determinação de desenvolvimentos estéticos regionais e cronológicos. Atualmente o conceito
de estilo vem sendo substituído pelo de poética. Dentro das pesquisas relacionadas ao Pós-
Modernismo, esse conceito vem recebendo nova atenção como um elemento importante na
compreensão das obras de arte.
Entende-se o estilo cinematográfico como um conjunto de procedimentos estéticos
utilizados de forma sistemática por um cineasta na confecção de suas obras cinematográficas.
Essa forma estética de realização fílmica gera uma espécie de imagens que tem certas
técnicas e princípios de construção em comum quando analisamos a obra de um determinado
diretor de cinema.

...mise-en-scène (encenação, iluminação, representação e ambientação),


enquadramento, foco, controle de valores cromáticos e outros aspectos de
cinematografia, da edição e do som. O estilo, minimamente, é a textura das imagens
e dos sons do filme, o resultado de escolhas feitas pelo(s) cineasta(s) em
circunstâncias históricas específicas. [...] ...estaremos falando, minimamente, sobre
escolhas técnicas características, só que, agora, na medida em que estas se mostram
recorrentes em um corpo de obras. Podemos também estar falando sobre
propriedades, como estratégias narrativas ou assuntos ou temas preferidos. [...]
...características recorrentes de encenação, filmagem, cortes e som continuarão a ser
parte essencial de qualquer estilo individual ou grupal. BORDWELL (2013, p.17)

Partindo desses pressupostas podemos supor que os cineastas buscam resolver


problemas estilísticos a partir da reprodução de padrões já existentes, revendo ou
sistematizando ou mesmo rejeitando esquemas já em circulação. Porém devemos primeiro
responder à pergunta inevitável, com as limitações pessoais de rigor: o que é na verdade esse
estilo de cada cineasta? Se entendermos estilo característica do olhar de um diretor, ou a sua
mera formalização visual e sonora de uma história, a resposta poderia ser infinita, e também
muito reducionista. Ou seja, pensamos que o problema na realidade está em estudar
separadamente a forma e o conteúdo, espelhando-se nos estudos de estética das artes visuais,
buscando entender o processo em que a primeira acaba criando o segundo.

521
Uma das ferramentas para a construção formal de uma obra cinematográfica pode ser
encontrada nos conceitos de intertextualidade. Julia Kristeva (1974) definiu o termo
intertextualidade como uma relação de co-presença entre dois ou vários textos, ou seja, a
presença efetiva de um texto no outro. Essa manifestação se dá de diversas formas como por
meio da citação, sua forma mais explícita e literal, no plágio, que é um empréstimo não
declarado mas que ainda é literal e, na alusão, menos explícita e que supõe a percepção de
uma relação entre dois textos.
Gérard Genette (2006) define a intertextualidade como um palimpsesto, um hipertexto,
onde todas as obras são derivadas de uma obra anterior, por transformação ou imitação,
dando origem a o termo transtextualidade.

...este objeto é a transtextualidade, ou transcendência textual do texto, que definiria


já, a grosso modo, como “tudo que coloca em relação, manifesta ou secreta, com
outros textos. A transtextualidade ultrapassa então e inclui a arquitextualidade, e
alguns outros tipos de relações transtextuais.... (GENETTE, 2006, p.11)

Para uma melhor compreensão de seu pensamento, Genette (2006) trata ainda sobre a
intertextualidade como uma práxis onde poderiam-se distinguir dois tipos de práticas
intertextuais. A primeira prática apresenta-se a partir de uma co-presença, ou seja, o texto A
está presente no texto B e, a segunda demonstra uma relação de derivação, o texto A é
retomado e transformado em B, atendendo o conceito da hipertextualidade. A partir dessas
práticas podemos interpretar as atividades de citação, referência, alusão, plágio, paródia e
pastiche. As quatro primeiras estariam enquadradas nas práticas de co-presença. A citação
apresenta-se como fragmentos emprestados, identificados de forma específica de acordo com
a mídia utilizada. A referência não expõe o texto citado, mas o identifica a partir de um título,
nome de autor ou uma situação específica. A alusão apresenta-se na maioria das vezes de
forma semântica, sem ser intertextual propriamente dita, mas também pode remeter um texto
anterior sem a característica de heterogeneidade própria da citação. O plágio é uma retomada
literal do texto de origem. As duas últimas, paródia e pastiche, apresentam a relação de
derivação. A paródia parte de uma transformação da obra precedente, sendo para fazer uma
caricatura, reutilizar ou mesmo transpor o texto de origem mantendo uma ligação estreita
com este. O pastiche, por sua vez, deforma o hipotexto, porém busca imitá-lo. Ambas as

522
práticas, paródia e pastiche, apresentam uma maior homogeneidade pois derivam do
texto anterior mas sem torná-lo presente.
Para Koch e Travaglia (1995), a intertextualidade pode ser entendida como um fator de
coerência textual, onde um texto permanece em constante diálogo com outros textos e
depende diretamente de um locutor, de seu referencial, de sua ideologia e de todas as
condições que induzem o seu processo produtivo.
A partir do que foi dito até aqui podemos entender que a prática intertextual pode ser
compreendida como adequada ao fazer cinematográfico. Percebemos que ela é utilizada
como ferramenta necessária a criação de novos produtos fílmicos dando origem a objetos
diferenciados e criativos. Essa atividade vem sendo utilizada por diferentes diretores no
transcorrer de suas carreiras e pode perfeitamente ser analisada nesta busca de entender o
conteúdo estilístico de uma obra fílmica como resultante de uma forma oriunda de narrativa
gerada a partir de um fazer intertextual.

3. A intertextualidade, o estilo e a montagem cinematográfica

Compreendemos que a prática intertextual pode ser entendida como adequada ao fazer
cinematográfico. Percebemos que ela é utilizada como ferramenta necessária a criação de
novos produtos fílmicos dando origem a objetos diferenciados e criativos. Essa atividade vem
sendo utilizada por diferentes diretores no transcorrer de suas carreiras e pode perfeitamente
ser analisada nesta busca de entender o conteúdo estilístico de uma obra fílmica como
resultante de uma forma oriunda de narrativa gerada a partir de um fazer intertextual. Em
determinados resultados , filmes no caso, alguns diretores expressam diálogos intertextuais
com outros, na maioria das vezes de forma proposital. Esse propósito de forma alguma
diminui a potencialidade da obra criada pois ela apenas dialoga com uma anterior.
O problema, aqui exposto, centra-se na questão de verificar se obras que levam a
assinatura de Woody Allen, a partir de sua forma de criar narrativas, algumas vezes
inventivas e outras inovadoras, apresentam a possibilidade real da promoção de uma
variedade de opções de diálogos como esperamos. Os textos utilizados por Allen são
originários de lugares que aparentemente são distantes e distintos. A conversa entre eles

523
poderia retratar as transformações sociais e culturais por que estamos passando, ou não.
Poderíamos estar vendo uma nova opção estética que vai além dos pressupostos estabelecidos
nas teorias do modernismo avançado, que retrataria o passado e o presente, o erudito e o
popular, mas sem se distanciar da natureza do meio a que se destina e de sua origem. Em
diversos momentos de sua carreira, a partir de entrevistas, Allen fala repetidamente de sua
admiração pela obra de Bergman e a influência que possivelmente a estética deste causou
sobre os resultados obtidos pelas suas obras. Verdade que ele também cita outros nomes
como Federico Fellini, Kenji Mizoguchi, Orson Welles, Akira Kurosawa e Jean Renoir.
Porém, é inegável que alguns de seus projetos têm uma proximidade maior com obras do
cineasta sueco.
Sua primeira manifestação dialógica mais expressiva com Bergman aparece em seu
filme Interiores (Interiors, 1978). Este projeto não foi muito bem recebido pela crítica
cinematográfica, possivelmente desencorajando o cineasta a dar continuidade nessa proposta
de filmes com temáticas e estilo próximos ao do cineasta sueco. Entretanto, nos anos 80,
Allen retoma essa proposta com outros filmes como A Outra (Another Woman, 1988). Essa
retomada chega ao seu ápice com o trabalho de direção de fotografia de Sven Nykvist, sueco
e parceiro de Ingmar Bergman em diversos de seus filmes. Nossa análise está centrada no
diálogo intertetxtual, nítido ou não, dos filmes citados acima com a obra Persona (Persona,
1966) de Ingmar Bergman. O intuito é apresentar trechos que nos mostrem esses diálogos
mas principalmente demonstrar a potencialidade das obras que se originam a partir da
intertetxtualidade.

A montagem (ou seja, a progressão dramática do filme, em suma) obedece, assim,


exatamente a uma lei do tipo dialético. cada plano comporta um elemento (apelo ou
ausência) que encontra respostas no plano seguinte: a tensão psicológica (atenção
ou interrogação) criada no espectador deve ser satisfeita pela sequência dos planos.
A narrativa fílmica surge então como uma série de sínteses parciais (cada plano é
uma unidade, mas uma unidade incompleta) que se encadeiam numa perpétua
superação dialética. (MARTIN, 2013, p.156)

4. O diálogo intertextual dos filmes Interiores (Interiors, 1978) e A


Outra (Another Woman, 1988) com Persona (Persona, 1966)

Persona (Persona, 1966), roteiro e direção de Ingmar Bergman, conta a história de


uma atriz que numa representação da tragédia Electra para de falar, entrando num estado de

524
semi catatonia. Os médicos não encontram uma explicação física ou neurológica para essa
crise. A atriz é internada em um hospital, onde fica sob os cuidados de uma jovem
enfermeira. Sua médica sugere que ela passe uma temporada em sua casa de praia, ainda sob
os cuidados da mesma enfermeira. As duas mulheres ficam isoladas do mundo e acabam se
tornando cada vez mais próximas. No transcorrer do filme, a enfermeira perde o controle
sobre si mesma e sente-se extremamente ligada à atriz e, ao mesmo tempo, oprimida pelo seu
silêncio. Gradualmente, a persona da atriz se confunde com a da enfermeira e as identidades
das mulheres parecem se unir em uma só.
Uma das marcas registradas desse filme é a fotografia de Sven Nykvist (FIG.1) que
cria uma atmosfera quase fantasmagórica à cena, o que nos deixa em dúvida se a trama está
relacionada a um sonho ou apenas a realidade das duas mulheres. Esse diretor de fotografia
foi uma escolha quase constante na carreira de Bergman, fazendo parte de seu staff na
maioria de seus filmes. Nykvist, a partir da fotografia em preto e branco, marcou as
personagens a partir de uma luz frontal que visualmente indica uma parte do rosto das atrizes
escurecida e outra iluminada, como se elas estivessem em pedaços, partes de si mesmas,
causando uma sensação de incompletude. Notamos esse efeito na sequência do quarto da
atriz, onde Bergman nos tira da visão ampla do ambiente para focar unicamente no rosto da
personagem e Nykvist, a partir de um fadeout na luz nos dá a sensação do tempo passando e a
noite chegando. O trabalho de ambos parece nos levar a compreensão do significado
dramático da trama, da universalidade para o extremamente particular que a narrativa nos
apresenta.

FIGURA 1 - Frame do filme "Persona"


FONTE: O próprio filme analisado

525
Interiores (Interiors, 1978), de Woody Allen, se desenvolve a partir de dramas que se
originam de uma grande reviravolta na vida de uma família rica. Segredos escondidos por
toda uma vida aparecem, rancores, temas banais tornam-se grandes rusgas e, todos as
personagens acabam se encontrando em meio a diversas crises existenciais que vão desde o
trabalho, a depressão, a religião até o casamento e a vida familiar (FIG.2). Os silêncios
imperam durante a narrativa assim como os tempos mortos, dando uma intensidade ao caráter
reflexivo e sombrio da obra. As personagens femininas estão em evidência. As luzes e as
sombras buscam acentuar a condição emocional dos membros da família. O passado surge
como um fantasma. A sinopse por si só denuncia claramente um diálogo com Ingmar
Bergman (FIG. 3), porém quando analisamos o filme, percebemos a tentativa clara e sem
reservas de Allen em se aproximar do estilo e da técnica do diretor sueco.
A escolhas de Allen, os símbolos utilizados na sua composição, a casa a beira mar com
janelas que deixam entrar a luz de fora , a direção de arte que reflete a personalidade das
personagens, os figurinos sempre austeros e em tons térreos, melancólicos, os grandes
espaços limpos e semi-vazios se aproximam da ambientação e a direção de arte do filme de
Bergman. A fotografia sombria de Gordon Willis cria ambientes quase na penumbra, na
busca de um eterno crepúsculo que apresenta o estado de espírito dos personagens e suas
personalidades confusas e perdidas. Além dessas marcas observadas, o diálogo se evidencia
desde a primeira sequência do filme quando uma das personagens passa mão por um vidro
executando o mesmo movimento do menino se relacionando com as imagens dos rostos,
projetados em uma parede, das personagens do filme do diretor sueco.

FIGURA 2 - Frame do filme "Interiores"


FONTE: O próprio filma analisado

526
FIGURA 3 - Frame do filme "Persona"
FONTE: O próprio filma analisado

Persona usa a sua temática para se movimentar entre a desconstrução e a construção da


narrativa. Em determinado momento, o filme simplesmente se queima, no meio da projeção
e, em seguida, retorna ao mesmo ponto em que estava, dando continuidade a trajetória das
personagens. O filme de Bergman intercala planos-sequências com muitos closes em rostos e
em partes dos corpos das atrizes. Em um momento de quebra dessa perspectiva, o cineasta
sueco apresenta uma sequência filmada a partir de um travelling muito longo (FIG. 4),
registrando uma caminhada das personagens numa praia. Allen utiliza as mesmas escolhas
técnicas gerando efeitos semelhantes em Interiores. Um desses momentos de diálogo entre os
dois cineastas acontece quando Allen, a partir da sequência registrada a beira do mar também
com um travelling longo (FIG.5), busca uma certa quebra de ritmo na sua narrativa,
exatamente o que anteriormente foi executado por Bergman. Entretanto, a tensão das duas
sequências dentro dos filmes são opostas em resultado, em Persona ela é mais agressiva e em
Interiores possui uma leveza estranha em relação ao restante do que é apresentado no filme.

FIGURA 4 - Frame do filme "Persona"


FONTE: O próprio filma analisado

527
FIGURA 5 - Frame do filme "Interiores"
FONTE: O próprio filma analisado

A Outra (Another Woman, 1988), filme roteirizado e dirigido por Woody Allen,
apresenta a narrativa sobre uma professora universitária que pede uma licença de suas
atividades para escrever o seu novo livro (FIG.6). Ela aluga um apartamento para
desenvolver essa atividade e, acaba escutando através do sistema de ventilação, as sessões de
psicanálise que acontecem no seu vizinho. A princípio ela tenta não ouvir, bloqueando a
entrada de ar com almofadas. Entretanto, ela escuta a sessão de uma jovem grávida e se
sensibiliza com seu conflito emocional. A partir disso, a professora e filósofa, começa a
questionar suas próprias escolhas, a falta da paixão em sua vida, seu relacionamento com a
família e com seus amigos. Mais uma vez notamos na narrativa uma aproximação com as
tramas impostas por Bergman para as suas personagens femininas.
Allen filma entre as ruas de Nova Iorque, em interiores minimalistas, usa as sombras e
os closes para salientar o rosto da atriz principal. A fotografia é assinada por Sven Nykvist,
diretor de fotografia da maioria dos filmes de Bergman, sendo essa a primeira vez que
trabalha com o diretor americano. O fotógrafo faz uso de uma luz que lembra o outono, o que
nos faz pensar em uma analogia com o momento vivido pela professora de filosofia (FIG.7).
As cores utilizadas são predominantemente quentes, com tons de marrom e bege, deixando a
suposta realidade representada mais austera e sombria. Essas escolhas, acrescidas com a
fotografia de Nykvist, mostram mais uma vez um diálogo intertextual evidente, partindo de
Allen em relação a Bergman.

528
FIGURA 6 - Frame do filme "A Outra"
FONTE: O próprio filma analisado

FIGURA 7 - Frame do filme "A Outra"


FONTE: O próprio filma analisado

4. Considerações finais

A importância da intertextualidade no âmbito das teorias do cinema é inegável. As


abordagens relacionadas ao cinema de autor e suas críticas deram espaço para essa teoria
sobre os intertextos que é oriunda das teorias da crítica literária. As práticas cinematográficas
da dita pós-modernidade apresentaram paródias, colagens e muitas outras formas
relacionadas ao fazer intertextual, reafirmando a possibilidade da análise fílmica relacionada
a esse tema. Diretores como Woody Allen se apropriaram dessas práticas e as transformam
em peças fílmicas únicas e essenciais que representam a contemporaneidade do cinema.
Diversas são as possibilidades de análise fílmica que podem ser utilizadas para serem
feitas comparações entre peças cinematográficas. Uma delas poderia ser a narrativa, o roteiro.
Outras a fotografia, as escolhas da direção de arte, figurino e assim por diante. Todas essas

529
opções refletem o estilo de um diretor em relação ao de outro, caracterizando uma
continuidade de marcas, uma forma específica de narrar. Essas marcas, essas narrativas,
podem ser organizadas a partir da montagem que dá a unidade ao todo de uma obra fílmica
específica.
Woody Allen apresenta seu próprio estilo e para essa construção opta por profissionais
que irão colaborar com seu trabalho. É nítido, dentro de seu diálogo com a obra de Ingmar
Bergman que uma de suas principais opções está ligada a direção de fotografia. Dentro do
recorte que escolhemos ele trabalhou com três profissionais. Gordon Willis foi seu parceiro
por oito anos e nesse período foi o diretor de fotografia de Interiores (Interiors, 1978). Aqui
Allen demonstra uma busca de diálogo intensa com Bergman a partir da fotografia de Willis.
Em seguida, Allen passa a trabalhar com Carlo di Palma e, num pequeno intervalo de dois
anos ele associa-se a Sven Nykvist, quando filma A Outra (Another Woman, 1988). Aqui o
diálogo se acentua, como se Allen busca-se uma assinatura bergmaniana em seus filmes. Eles
realizam mais três filmes juntos que não fazem parte de nossa escolha para análise neste
momento.
A partir das análises apresentadas neste artigo, podemos perceber o forte diálogo
intertextual provocado por Woody Allen em direção a Ingmar Bergman. Estas possibilidades
aparecem desde a construção do roteiro, com preponderância das personagens femininas ou
mesmo pelo ambiente psicológico representado, assim como pelas escolhas de locações,
direção de arte e figurinos. Porém o elemento que mais denuncia essa prática dialógica é
claramente a fotografia. Mesmo no momento em que Allen ainda não trabalhava assistido
pelo diretor de Bergman, ele já tencionava a relação intertextual com o diretor sueco. Esse
elemento tomou mais forma, evidenciando pontos de contato, no último filme analisado.
Entretanto cabe-nos finalizar este artigo, notando que Allen de maneira nenhuma quer tomar
o lugar do outro cineasta e sim se apropria de elementos que enriquecem o seu produto
fílmico, tornando-o único e característico de sua obra.

530
Referências Bibliográficas

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BORDWELL, David. Sobre a História do Estilo Cinematográfico. Campinas: Unicamp, 2013.
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Terra, 1977.
CARRIÉRE, Jean-Claude. A Linguagem Secreta do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
GAUDREAULT, André; JOST, François. A Narrativa Cinematográfica. Brasília: Editora UNB,
2009.
GENETTE, Gerard. Palimpsestos – A Literatura de Segunda Mão. Belo Horizonte: Faculdade de Letras,
2006.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Imago: Rio de Janeiro, 1991.
KOCH, Ingedore G. Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A Coerência Textual. São Paulo: Contexto, 1995.
KRISTEVA, Julia. História da Linguagem. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1988.
KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2013.
METZ, Christian. A Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 2004.

Filmes
ALLEN, Woody. Interiores (Interiors, 1978). Manaus: Sony DADC, 2011.
ALLEN, Woody. A Outra (Another Woman, 1988). Manaus: Sony DADC, 2013.
BERGMAN, Ingmar. Persona (Persona, 1966).São Paulo: Versátil, 2006.

531
OS USOS COLONIZADORES DE “IMAGENS DE ARQUIVO”
POR ADAM CURTIS 1
The colonizing ways of using archive footage by Adam
Curtis
Rafael Ghiraldelli da Silva 2

Resumo: Este trabalho se propõe a debater processos de seleção, apresentação e


ressignificação de imagens de arquivo empregados na realização de alguns
documentários dirigidos pelo cineasta inglês Adam Curtis (1955 - ) –
nomeadamente, “The Trap: What Happened to Our Dream of Freedom” (2007),
“Bitter Lake” (2015) e HyperNormalisation (2016). Tal análise servirá para
tecermos relações entre os conceitos de “imagem de arquivo” propriamente dito
com o de “banco de dados”, identificado por MANOVICH (2001) como
característico da linguagem das “novas mídias” (new media). Veremos como o
primeiro conceito se torna defasado na medida que o segundo abarca cada vez
mais propostas de atualização/questionamento da retórica hegemônica (e
ocidental) de montagem cinematográfica a partir de perspectivas descoloniais. Não
se pretende discutir o quão fragmentada a cronologia dos fatos de uma dada
narrativa audiovisual pode ser, mas sim de identificar, segundo MIGNOLO (2010),
em quais possibilidades contemporâneas de montagem reside uma “desobediência
epistêmica”, descolonial por definição.

Palavras-Chave: Imagem de arquivo. Memória. New media. Banco de dados.


Descolonial.

1. Introdução
O audiovisual vem permitindo a reutilização (e ressignificação) de imagens e sons
desde os princípios da montagem enquanto recurso criativo cinematográfico que logo iria
permear outros formatos. Basta lembrarmos do quanto séries de televisão de grande apelo
popular tais como “Star Trek” (“Jornada nas Estrelas”), “Friends” ou “Power Rangers”
reciclaram sequências originalmente gravadas para um dado episódio com o intuito de
reutilizá-las em muitos outros. Muito menos do que “preguiça” da parte dos profissionais
envolvidos, há restrições organizacionais, logísticas, técnicas e de orçamento que fizeram (e

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Imagem e Produção Audiovisual do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (linha de pesquisa em Poéticas Visuais e
Processos Criativos) do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (PPGAV/IA/Unicamp). E-
mail: <ghiralds@gmail.com>.

532
fazem) isso ser necessário para projetos de TV no geral – em maior ou menor medida,
conforme suas especificidades narrativas.
Falando de cinema, é bem conhecido dentre vários outros o exemplo dos estúdios Walt
Disney, que reutilizaram material previamente gravado como referência para elaborar
sequências inteiras de filmes seus dos anos 1960 e 1970, tais como “A Espera Era a Lei”
(1963), “Mogli - O Menino Lobo” (1967) e “Robin Hood” (1973). Contudo, diferentemente
do conceito de “imagens de arquivo” que iremos empregar neste artigo, o conteúdo original
não se apresenta nesses casos de forma explícita. Não é evidente ao espectador que assiste
“Mogli” que as imagens animadas dos filhotes de lobo no começo do filme têm por
referência sequências com filhotes de cachorro originalmente desenvolvidas para “101
Dálmatas” (1961) sem ter o conhecimento prévio disso (FIG 1).

FIGURA 1 – Stills de “101 Dálmatas” e de “Mogli” em comparação.


FONTE – SCREEN Rant, 5 Disney Movies That Stole Footage From Other Films, 2015.

Vale frisar que, quando falamos de imagem de arquivo no âmbito do audiovisual,


falamos de uma qualidade de explicitude da qual podemos determinar a fonte, mas que não
denuncia necessariamente seu significado ou razão-de-ser original. A imagem ou o som se
apresentam tal qual antes (ou próximos o bastante disso), mas passam a não representar mais
a mesma coisa de antes, dependendo das intenções do autor-montador em vista.

533
É nessa chave que diversos cineastas vêm trabalhando no sentido de atualizar a forma
do documentário dentro daquilo que Bourriaud (2009) identifica como sendo estética da pós-
produção. Objetivando escapar do formato de “cabeças falantes” exaurido pelo
telejornalismo, esses profissionais desejam (re)imprimir uma marca autoral própria do
formato experimental do filme-ensaio em seus trabalhos, partindo da forma como
recombinam imagens e sons oriundos de fontes diversas. A intenção aqui passa a ser a de
alinhar esse conteúdo a favor de uma determinada tese estabelecida a partir da decisão
antecipada de um tema. Trata-se de um procedimento afim ao da escritura de um ensaio
literário:

No ensaio [...] o tema vem antes, e é esse lugar que assegura o literário do resultado.
A separação entre intenção e resultado que a literatura opera no romance, no ensaio
se dá por uma generalização do prévio. Tudo se transfere ao dia que antecede a
escritura, quando se escolhe o tema. Caso se acerte na escolha, o ensaio já está
escrito, antes mesmo de escrevê-lo. É isso que o objetiviza diante dos mecanismos
psicológicos do autor, fazendo do ensaio algo além de uma exposição de opiniões
(AIRA, 2007, p. 72).

Realizar filmes e/ou narrativas seriadas que possuem uma potência poético-estética
capaz de transcender a mera exposição de opiniões é a principal meta criativa de cineastas
britânicos contemporâneos tais como John Akomfrah (1957 - ) e Adam Curtis (1955 - ).
Enquanto o primeiro (nascido em Gana e naturalizado britânico) realiza documentários quase
que exclusivamente a partir de imagens de arquivo que propõem a visibilização da memória
do sujeito afrodiaspórico a partir da recuperação de seus traços identitários captados em
filmes de época, Curtis analisa intersecções possíveis entre sociedade, cultura e tecnologia
em uma toada crítica às políticas de controle embutidas em artefatos vários da
contemporaneidade 3, em filmes e séries documentais criadas para a British Broadcasting
Corporation (BBC).
Em seus projetos de pelo menos uma década atrás em diante, Curtis vêm
desenvolvendo uma linha autoral de montagem de documentários que, progressivamente,
aboliu o uso de entrevistas para se concentrar unicamente em imagens de arquivo oriundas,

3
Esse é objeto de estudo de teóricos tais como o estadunidense Langdon Winner, que, em seu ensaio de 1986
“Do artifacts have politics?” (“Os artefatos têm política?”), discorre sobre como aplicações práticas de ciência
e tecnologia numa dada sociedade condizem com a ideologia dominante em termos socioeconômicos, étnicos,
de gênero, etc.

534
em sua maioria, das videotecas da própria BBC. Tal metodologia de edição condiz com o
preceito identificado por Manovich (2001) como sendo uma das principais características da
nova mídia – o uso de um banco de dados de conteúdo já existente, modularizado, como
ponto de partida para a elaboração de novas narrativas.
De fato, o advento do vídeo – e, mais tarde, do cinema digital – instrumentalizou Curtis
com saberes e técnicas de tratamento, mixagem e manipulação de imagens que lhe seriam
muito úteis no sentido de individualizar seu trabalho de argumentação fílmica. Contudo, há
outras questões em jogo que merecem ser discutidas em detalhe nas seções seguintes deste
artigo. Nelas, iremos concentrar nossa análise em três dos projetos mais recentes de Curtis: a
minissérie “The Trap: What Happened to Our Dream of Freedom?” (2007) e os longas-
metragens “Bitter Lake” (2015) e “HyperNormalisation” (2016).

2. “The Trap”
“The Trap” (“A armadilha”) é uma série em três episódios que discute como
perspectivas de racionalização de relações interpessoais oriundas da “teoria dos jogos” (game
theory) resultaram em estudos e práticas de controle/gerenciamento comportamental e/ou
ideológico em sociedades para as quais se desejava estabilidade desde o início da Guerra
Fria. O primeiro episódio se concentra em comentários acerca da influência exercida pelas
opiniões do matemático estadunidense John Nash (1928-2015) sobre supostos
comportamentos individualistas inerentes ao ser humano que poderiam anular-se na busca
por benefício próprio – e que, consequentemente, levariam a uma condição social auto-
estabilizada. Essa foi uma ideia atraente aos tecnocratas da época, que viram no
neoliberalismo uma alternativa de concretização de tal proposta de equilíbrio
socioeconômico.
Sendo a base do ideário político de estadistas tais como Ronald Reagan e Margaret
Thatcher nos anos 1980, as iniciativas de incentivo ao livre mercado levaram à fácil aceitação
de perspectivas racionalistas derivadas de outros campos de estudo. Segundo o argumento
desenvolvido por Curtis, esse foi o caso da teoria do “gene egoísta” proposta pelo biólogo
britânico Richard Dawkins – bem como de um retorno a análises biologizantes feitas por
alguns documentários de então em relação a etnias não-brancas.

535
No segundo episódio da série (“The Lonely Robot”), Curtis confronta o antropólogo
estadunidense Napoleon Chagnon a respeito de seu filme de 1975, “The Ax Fight” (“A luta
de machado”). Nele, Chagnon e sua equipe argumentam que registraram uma briga de
indígenas de tribos yanomami diferentes na qual os indivíduos com parentesco mais próximo
(isto é, mais geneticamente afins) se colocavam instintivamente um ao lado do outro para
lutar contra seus parentes mais distantes. O registro da luta em si demora onze minutos, mas
Chagnon e seu parceiro de trabalho Tim Asch dedicam o restante do tempo de “The Ax
Fight” para retomar quadros específicos da sequência filmada com os indígenas e congelar a
imagem com o intuito de apontar indícios que justifiquem sua tese de sobrevivência incutida
pelos genes em seus “portadores” em comum.
Essa perspectiva genocêntrica de estudos antropológicos vem sido refutada há décadas,
mas Chagnon mantém-se firme em sua convicção. Tanto que, quando questionado por Curtis
a respeito da possibilidade de ele ter levado machetes para uma das tribos envolvidas na luta
como uma das razões para a escala do conflito, Chagnon se irrita e abandona a entrevista
(FIG. 2).

FIGURA 2 – Napoleon Chagnon expressa indignação e se prepara para abandonar a entrevista conduzida por
Curtis. Tradução do autor (da legenda): “Você não acha que uma equipe de filme no meio de uma luta numa
aldeia [yanomami] tem algum efeito?”.
FONTE – CURTIS (dir.), 2007.

Claro que podemos questionar a veracidade do ato de Chagnon capturado em filme,


uma vez que o restante da sua entrevista e os trechos de “The Ax Fight” foram mantidos por

536
Curtis neste episódio específico da série Afinal, se Chagnon realmente discordasse da linha
de argumentação defendida por Curtis, não era esperado que ele tivesse desautorizado o uso
de suas imagens posteriormente? Quanto a isso, o cineasta britânico não nos dá pistas do que
aconteceu nos bastidores, mas percebe-se aí uma dedicação de Curtis em desconstruir
certezas que, invariavelmente, repercutem na manutenção de relações de colonialidade 4 entre
os povos de países “desenvolvidos” e os de nações “emergentes” ou “subdesenvolvidas”.
Isso se torna mais evidente no terceiro e último episódio de “The Trap” (“We Will
Force You To Be Free”), no qual Curtis comenta sobre como a racionalização do conceito de
liberdade e a simplificação das narrativas de conflito em termos de “Bem versus Mal”,
decorrentes tanto da ideologia neoconservadora como das definições do filósofo russo-
britânico Isaiah Berlin (1909-1997) acerca de um tipo positivo de liberdade em relação a um
tipo negativo 5, influenciou a política externa de países tais como os Estados Unidos e o Reino
Unido dos anos 1980 em diante. Aqui, o destaque é dado para dois estudos de caso do que
Curtis denomina como “terapia de choque” 6 de implantação de sistemas capitalistas de
economia liberal: a Rússia após o desfazimento da União Soviética, e o Iraque após a retirada
de Saddam Hussein (1937-2006) do poder.
Em ambos os países, tais políticas, orientadas por um conceito (im)positivo de
liberdade, não levaram em conta especificidades locais e acabaram resultando em situações
de colapso econômico – ou ainda, no caso do Iraque, em conflitos diretos entre facções
políticas rivais, e entre a população local e seus “salvadores” (FIG 3), membros das forças de
coalização lideradas por tropas estadunidenses e britânicas.

4
Importante indicar que compreendemos colonialidade como um elemento constituinte do “ser moderno”
eurocêntrico que continua as relações de subalternização inauguradas pelo colonialismo na forma atualizada do
capitalismo global (RESTREPO; ROJAS, 2010). A partir dessa noção, estudiosos de chamada inflexão
decolonial (tais como o equatoriano Aníbal Quijano) propõem três níveis de subjugação: a colonialidade do ser
(que impõe formas hegemônicas de se identificar dentro de categorias étnico-raciais, sexuais e/ou de gênero), a
do saber (que envolve a subalternização de epistemologias locais/tradicionais) e a do poder (que envolve a
subalternização por vieses político-administrativos, militares e/ou econômicos).
5
Isaiah Berlin, em seu ensaio “Dois conceitos de liberdade” (1958), define liberdade positiva como um ato de
autorrealização, na qual o indivíduo detém o poder e os recursos para cumprir suas próprias potencialidades e
determinar seu próprio destino. A liberdade negativa, por sua vez, é a liberdade de contenção externa que, na
perspectiva da ideologia liberal, implica na não-interferência do Estado sobre as ações individuais. Trata-se de
uma espécie de etapa prévia à liberdade positiva. Contudo, numa perspectiva de crítica marxista, tal
categorização da liberdade é artificial, já que tanto a liberdade positiva como a negativa são indistinguíveis entre
si na prática e são interdependentes.
6
Esse é um conceito também descrito pela jornalista canadense Naomi Klein em seu livro “A Doutrina do
Choque: a ascensão do capitalismo do desastre” (2008), no qual traça um histórico de intervenções político-
econômicas a favor do capitalismo global (e da hegemonia estadunidense dentro deste sistema) que vai do golpe
militar no Chile em 1973 até a Guerra do Iraque iniciada em 2003.

537
FIGURA 3 – Soldado estadunidense discute com iraquianos. Tradução do autor (da legenda): “Estamos aqui
pela porra da sua liberdade, então, recuem agora!”.
FONTE – CURTIS (dir.), 2007.

Curtis se utiliza extensamente de imagens de arquivo combinadas a entrevistas com


autoridades no intuito de comprovar as falácias de uma forma de liberdade imposta por
potências capitalistas. Contudo, nenhum espaço é reservado para entrevistar representantes da
população iraquiana, além daquele pouco já compreendido pelas imagens de arquivo. A voz
mega-enunciadora do saber 7, presente tanto na narração quanto no formato final da
montagem dos episódios de “The Trap” permanece sendo somente a de Curtis. Deseja-se aí
um reconhecimento de autoria que torna

[...] visíveis os pressupostos estéticos e epistemológicos. Esse novo documentário


auto-reflexivo mistura passagens observacionais com entrevistas, a voz sobreposta
do diretor com intertítulos, deixando patente o que esteve implícito o tempo todo: o
documentário sempre foi uma forma de re-presentação, e nunca uma janela aberta
para a “realidade”. O cineasta sempre foi testemunha participante e ativo fabricante
de significados, sempre foi muito mais um produtor de discurso cinemático do que
um repórter neutro ou onisciente da verdadeira realidade das coisas (NICHOLS,
2005, p. 49).

É justamente essa fabricação de significados que implica em problemáticas da forma


como imagem e voice-over se mesclam em alguns momentos de “The Trap”. Um exemplo a
7
A “voz-de-Deus” identificada por Nichols (2005) como recurso utilizado desde os princípios do cinema
documental como forma de validação epistemológica sobre o que se apresenta para o espectador.

538
ser destacado é o de imagens de grandes contingentes de pessoas africanas ou asiáticas (FIG
4), sobre as quais a voz de Curtis comenta sobre como seus respectivos governos ou
processos de mobilização política de oposição visavam aliená-las a seu favor. Destitui-se
assim de tais indivíduos a capacidade de pensar por si só, relegando-os através dos
procedimentos de montagem à condição de “massa” manipulável. Isso vai de encontro ao que
Curtis defende explicitamente.

FIGURA 4 – Tradução do autor (da legenda): “[...] ao entrar na mente das pessoas, tornando-as zumbis
passivos”.
FONTE – CURTIS (dir.), 2007.

3. “Bitter Lake”
“Bitter Lake” é um filme de 2015 em que Curtis se utiliza quase que exclusivamente de
imagens de arquivo 8 para discorrer sobre como processos de exportação de fundamentalismo
religioso saudita levaram à intensificação de conflitos em andamento no Afeganistão desde
antes da ocupação soviética do país nos anos 1980. Contudo, Curtis comenta também sobre
projetos desenvolvimentistas encabeçados por empreiteiras estadunidenses no Afeganistão e
outras iniciativas de intervenção estrangeira que datam desde as tentativas de ocupação
britânica do país no século XIX.

8
Segundo o que Curtis comenta em postagem no seu blog de julho de 2010
(<http://www.bbc.co.uk/blogs/adamcurtis/entries/4b818aed-775b-324e-9d46-3e550e8229ae>), boa parte dessas
imagens de arquivo foram obtidas dentre 18 terabytes de conteúdo audiovisual digitalizado a partir de tudo o
que foi gravado pela BBC no Afeganistão nos últimos trinta anos, sem cortes.

539
O filme em questão se caracteriza por ter um ritmo de montagem mais lento que o da
montagem em “The Trap”, apesar de recorrer a uma fragmentação da cronologia dos fatos
narrados. Os planos que registram imagens mais próximas do tempo presente duram mais
tempo, e isso faz com que haja mais espaço para o espectador refletir sobre o sentido das
imagens que vê.
Interessa muito a Curtis comentar as formas pelas quais as tentativas de ocidentalizar o
Afeganistão refletem ideais hegemônicos de modernidade. Isso fica claro pela forma crítica
em que apresentam registros de soldados estadunidenses recolhendo dados biométricos ou
interrogando fazendeiros afegãos (FIG 5) sem saberem de fato quem deles é ou não talibã.

FIGURA 5 – Fazendeiro afegão tendo seu DNA recolhido por soldados da coalizão EUA-Reino Unido no
Afeganistão.
FONTE – CURTIS (dir.), 2015.

Curtis também faz uso de sequências extraídas do filme de comédia britânico “Carry
On Up The Khyber” (1968, dir. Gerald Thomas), no qual as relações entre colonizador e
colonizado são ridicularizadas a ponto de se desconectarem totalmente com a realidade de
incontáveis mortes ocasionadas pelo domínio imperialista britânico sobre os povos que
habitavam a região atualmente compreendida pelo Paquistão. Atores e atrizes brancos
interpretam personagens afegãos e indianos no filme 9 (FIG 6) de forma exagerada, afetada ou

9
Temos aqui um exemplo de whitewashing - termo que descreve a exclusão da representação de indivíduos
racializados (pessoas não-brancas). Isso se dá principalmente no processo de adaptação de uma determinada

540
estereotipada, enquanto que, da outra parte, soldados britânicos mantêm a ordem colonial (e a
certeza de sua masculinidade) não usando cuecas por baixos de seus kilts.
Por mais que a sátira atinja também o lado dos colonizadores em “Carry On Up The
Khyber”, como se pode notar, a perspectiva do filme como um todo não deixa de ser
etnocêntrica (branca, no caso) – e, portanto, produto direto do dualismo
modernidade/colonialidade (MIGNOLO, 2010) que organiza muitas das relações político-
administrativas e/ou de dependência econômica até os dias de hoje.

FIGURA 6 – Still de cena de “Carry On Up The Khyber” (1968) utilizada em “Bitter Lake”, na qual aparecem o
“Khasi de Khalabar” (interpretado por Kenneth Williams) e sua filha (Angela Douglas). Tradução do autor (da
legenda): “Sim, apenas o rajá mais rico e poderoso do norte da Índia [...]”.
FONTE – THOMAS (dir.) apud CURTIS, 2015.

Entretanto, a exposição crítica dessas formas de representação do Outro (isto é, do


indivíduo racializado) por Curtis pouco faz para que os afegãos tenham voz própria em
“Bitter Lake”. As raras vezes em que eles falam para a câmera se dão por meio de entrevistas
datadas ou por registros do cotidiano em que a violência nas ruas e a chegada de artefatos
tecnológicos do estrangeiro coexistem, (re)vistos segundo uma óptica por vezes exotizante
(FIG 7).

narrativa para o formato de filme, série de TV, história em quadrinhos ou outro produto audiovisual viabilizado
por partes interessadas brancas.

541
FIGURA 7 – Boneca que dança conforme toca músicas folclóricas. Curtis, no entanto, não informa se essas
melodias são de fato afegãs ou se vêm de outra localidade.
FONTE – CURTIS (dir.), 2015.

Imagens como essa, inclusive, nos remetem diretamente a cenas de “Nanook, o


Esquimó” – filme dirigido por Robert J. Flaherty em 1922 que estabeleceu as convenções do
etnodocumentário por muitas décadas a vir – nas quais Allakariallak (interpretando o
“personagem” de Nanook) fingia seu fascínio ao ouvir os sons emitidos por um gramofone
pela “primeira” vez (FIG 8).

FIGURA 8 – Still de “Nanook” em que o protagonista “investiga” de onde sai o som emitido pelo gramofone.
FONTE – FLAHERTY (dir.), 1922.

542
Outras relações possíveis entre “Bitter Lake” e a tradição inaugurada por
documentários como “Nanook” se dão pela “voz-de-Deus” do autor-diretor. Afinal, a
narração dos fatos no filme de Curtis ainda se dá pela retórica do especialista estrangeiro que
aproxima o filme em questão (tal como em “The Trap”) a um modo expositivo de
documentário (NICHOLS, 2016). O convite à reflexão não deixa de ser feito ao espectador
de “Bitter Lake”, mas pouco se faz para romper com o estereótipo de um país incapaz de se
autogovernar – por mais que haja um cuidado do diretor em não retratar todos os afegãos
como possíveis agressores ao reconhecer devidamente a diversidade cultural e ideológica das
múltiplas comunidades locais.

4. “HyperNormalisation”
“HyperNormalisation” (2016) é o projeto mais recente de Curtis. Ele discorre a respeito
da simplificação maniqueísta dos jogos globais de interesse político, segundo os preceitos da
ideologia neoconservadora dominante durante o Governo Reagan (1981-1989), e de como
tais formas de gerenciamento da política externa estadunidense não deram conta da
complexidade do mundo. Fala-se aqui, especialmente, da complexidade do mundo islâmico,
do qual entidades como a Al-Qaeda, o Taliban e o Estado Islâmico surgiram em decorrência
de intervenções político-militares de potências capitalistas no Oriente Médio como um todo.
Grande parte dessa atitude dos Estados Unidos, por exemplo, em relação a outros
países se deve à “teoria da modernização”. Elaborada pelo economista Walt Whitman
Rostow (1919-2003), trata-se de uma de linha de estudos que acredita que, ao se colocar
determinadas tecnologias nas mãos de membros-chave das elites socioeconômicas, países
considerados “subdesenvolvidos” irão inevitavelmente se desenvolver na forma de
sociedades capitalistas avançadas. Essa foi uma das razões que motivaram intervenções
estadunidenses em países como o Iraque e o Afeganistão, tal como documentado em “Bitter
Lake”.
Grande parte dos problemas de representatividade identificados em “Bitter Lake”,
inclusive, se mantêm na forma como Curtis constrói cada um dos arcos narrativos em
“HyperNormalisation”. Falta ainda voz a grupos subalternizados, enquanto líderes de nações
como a Líbia ou o Egito durante a Primavera Árabe são retratados de forma quase caricatural,

543
por meio de imagens de arquivo. Isso se dá, principalmente, com a vilanização escrachada de
figuras como a do ex-presidente sírio Hafez al-Assad (1930-2000) e a do coronel Muammar
Gaddafi (1942-2011) (FIG 9).

FIGURA 9 – Coronel Muammar Gaddafi espantando mosquitos antes de uma entrevista – cujas imagens sem
edição foram recuperadas por Curtir para “HyperNornalisation”.
FONTE – CURTIS (dir.), 2016.

5. Conclusão
Dentre os projetos analisados, nos parece que “Bitter Lake” é aquele em que Curtis se
mostra mais atento a uma (falta de) ética na fatura de imagens realizadas às custas de
populações desprivilegiadas no quadro global de distribuição de riquezas. Se ele comete
deslizes no que toca o alinhamento das imagens selecionadas com sua linha de raciocínio
crítico, isso não se dá por falta de pesquisa. Pelo que se pode concluir da data das postagens
feitas no blog oficial de Curtis (<http://www.bbc.co.uk/blogs/adamcurtis>), por exemplo, as
pesquisas sobre o Afeganistão que dariam origem a “Bitter Lake” começaram já em 2009.
Em paralelo, Curtis pesquisou as consequências do processo de colonização na região da
atual República Democrática do Congo – o que resultaria em material para uma outra
minissérie sua de 2011 – “All Watched Over by Machines of Loving Grace”.
Diante de tanto conteúdo coletado com o passar dos anos, nos resta indicar como arma
do crime a faca de dois gumes compreendida pelo processo de montagem audiovisual digital.
Afinal, segundo afirma Dubois (2004), por mais que ferramentas de software e de hardware

544
especializado permitam cortar, sobrepor, incrustar ou alterar a temporalidade de planos
diferentes com grande facilidade, seu uso ainda está sujeito a convenções de ordem cultural,
política, econômica ou pedagógica.
No caso de Curtis, há uma tensão entre a tradição de documentários educativos de
“padrão BBC” à qual ele responde e a necessidade pessoal de explorar soluções estéticas
possibilitadas pelas novas tecnologias de montagem no intuito de consolidar a tão desejada
marca autoral. Contudo, cremos que o lado da tradição pesa mais em Curtis – o que acaba lhe
distanciando de propostas tais como as de John Akomfrah. Retomamos aqui o seu exemplo
para mencionar que, desde seu primeiro documentário (“Handsworth Songs”, 1986) até seus
projetos de videoinstalações mais recentes, há um desejo claro de concretizar uma
desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2010) na forma de cinema. Em outras palavras,
Akomfrah representa uma recusa às tradições hegemônicas do audiovisual que há tanto
tempo invisibilizam pessoas não-brancas e na qual reside possibilidades infindáveis de
crescimento para Curtis enquanto cineasta.
Em tempo, é preciso considerar que, uma vez que se propõe a trabalhar exclusivamente
com imagens de arquivos, Curtis precisa lidar com um material gravado previamente por
pessoas com uma visão não tão desconstruída do Outro quanto a sua. Nesse sentido, sua
experiência profissional como um todo não pode ser desprezada, mas se Curtis vem optando
por descolonizar sua perspectiva crítica, esperamos que busque fazê-lo para além da
superficialidade das imagens na ilha de edição – e a favor dos sons, das vozes dos indivíduos
sub-representados em seus e em tantos outros filmes.
É preciso superar criativamente as limitações e os riscos do uso exclusivo de imagens
de arquivo. E é Akomfrah, inclusive, quem oferece caminhos interessantes para refletir sobre
o potencial colonizador dessas formas de sub-representação desde antes das tecnologias do
cinema digital e das discussões contemporâneas acerca do lugar de fala no audiovisual.
Contudo, isso deverá ser assunto para um artigo futuro.

Referências
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BOURRIAUD, N. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo, SP:
Martins/Martins Fontes, c2009. 110 p

545
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color. son. 136 min.
____________ (dir.) HyperNormalisation [Longa-metragem]. Reino Unido: British Broadcasting Corporation,
2016. color. son. 166 min.
____________. The Medium and the Message (Adam Curtis’ blog). Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/blogs/adamcurtis>. Acesso em: 14 out. 2018.
____________ (dir.) The Power of Nightmares: The Rise of the Politics of Fear [Minissérie para TV]. Reino
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____________ (dir.) The Trap: What Happened to Our Dream of Freedom? [Minissérie para TV]. Reino
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DUBOIS, P. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo, SP: CosacNaify, 2004. 323p.
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MANOVICH, L. The language of new media. Cambridge, MA: MIT, c2001. 354 p.
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546
XEQUE MALTE
o desenvolvimento de uma identidade visual e naming
XEQUE MALTE
the development of visual identity and naming
Igor Antônio Lima de Camargo 1
André Luiz Castro 2
Angélica P. Marsicano Tavares 3
Daiany Kenea da Paz 4

Resumo: Xeque Malte é um projeto que apresenta os fundamentos do design na


comunicação visual de uma cervejaria artesanal fictícia, relatando a importância
da aplicação dos elementos necessários ao processo criativo de identidade visual.
O objetivo é fornecer uma imagem que impõe um vínculo de fidelidade aos clientes,
os posicionando como referência no mercado. Além disso, é proposto o processo de
naming, que mostra o progresso estratégico da formação do nome ‘Xeque Malte’.
Criamos uma marca moderna, sofisticada e única, através de cinco pontos cruciais
na metodologia de criação: desenvolvimento do briefing; estudos e pesquisas de
mercado; brainstorming; elaboração de croquis; processo de vetorização e
finalização. Como resultado do processo de criação, vislumbramos a importância
da identidade visual para posicionar no mercado e transmitir a mensagem ideal
para o público alvo e afins. Observamos o valor de conhecer melhor o cliente para
que todas as expectativas sejam superadas. O foco nos pequenos detalhes é um dos
principais pontos de visão que fazem a diferença na comunicação visual.

Palavras-Chave: Xadrez, Logotipo, Cervejaria, Marca, Xeque, Malte.

1. Introdução
A cada dia crescendo e ganhando força no mercado mundial o segmento da cerveja
artesanal vem conquistando o paladar dos brasileiros que apreciam o deguste de novos
sabores e sensações valorizando desde a sua qualidade de produção até sua cor, textura e
aroma. Assim, pequenos cervejeiros chamados homebrew (feito em casa), estão procurando
expandir os seus empreendimentos. Um importante passo para o sucesso destes novos

1
Aluno do 6º período do curso de Design da Faculdade Uniessa, igorcamargodesign@gmail.com
2
Orientador do trabalho. Professor dos cursos de Design e Publicidade & Propaganda da Faculdade Uniessa
(Uberlândia/MG), Mestre em Tecnologias, Comunicação e Educação pela Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), profalucastro@yahoo.com.br.
3
Orientadora do trabalho. Professora do curso de Design e Arquiteturada Faculdade Uniessa (Uberlândia/MG),
Mestre em Computação gráfica e realidade virtual na pós graduação da engenharia elétrica UFU,
angelicamarsicano@gmail.com
4
Aluna do 6º período do curso de Design da Faculdade Uniessa, daianykpaz@hotmail.com

547
negócios está diretamente relacionado ao design gráfico que, acompanhando esta evolução,
através da identidade visual pode agregar valor à marca, adaptando-a e/ou destacando-a no
mercado além de gerar proximidade com os clientes. Desta forma, para a diferenciação,
crescimento e desenvolvimento de um empreendimento, não basta apenas o produto ser bom,
mas também ter a comunicação visual como estratégia essencial para transmitir a mensagem
atraindo o público alvo.

1.1 Problema
Nesse contexto, este artigo apresenta um projeto de design gráfico com solução de
identidade visual, juntamente com processo básico de naming 5, para um empreendimento
fictício de dois irmãos que pretendem expandir sua produção de nanocervejaria caseira para
uma cervejaria de alto padrão na cidade de Uberlândia.

1.2 Justificativa
Em outubro de 2017, a prefeitura de Uberlândia oficializou o programa de fomento ao
setor cervejeiro regulamentando as cervejarias artesanais e favorecendo a produção artesanal
bem como a comercialização. Desde então, este segmento vem se expandindo por aqui.
Apostando neste mercado promissor, os irmãos Reis pretendem se estabelecer no mercado
como referência da cerveja artesanal não somente pela qualidade do seu produto mas também
pela apresentação do mesmo e do ambiente de descontração, entretenimento e cultura a ele
relacionado.

1.3 Objetivos
Neste aspecto, o projeto gráfico de comunicação visual desta empresa tem como
objetivos:
• Compreender os processos e técnicas utilizadas para a criação da comunicação visual;
• Estabelecer o processo de “naming” para a identidade da marca;
• Criar o logotipo conceitual buscando uma fundamentação semântica que reflita em
aparência, sonoridade, posicionamento e memorização da marca;

5
Naming – é o trabalho de escolha do nome do produto, serviço ou empresa estabelecendo uma relação direta
com o posicionamento pretendido. Fonte: http://i10as.com.br/naming

548
• Aplicar de forma estratégica os elementos da identidade visual valorizando o design
enquanto agente transformador do posicionamento de um produto no mercado e diferencial
no reconhecimento da marca.

1.4 Metodologia
Afim de se atingirem os objetivos almejados, primeiramente é delineado um
briefing 6 a partir de entrevistas informais com os clientes. Absorver o máximo de
informações necessárias torna-se primordial para um resultado efetivo.
Na sequência iniciam-se as pesquisas de mercado em geral, averiguando as empresas
correlatas atuais de acordo com os requisitos propostos a analisar e seus conceitos. Análise de
projetos similares ajudaram a identificar os principais pontos a serem seguidos, além de
distinguir e torna a marca única, duradoura, adaptável e memorável. Contribuindo com as
pesquisas, foi realizado um questionário com perguntas baseado nos conhecimentos gerais de
uma cervejaria artesanal.
Posteriormente ocorre o chamado Brainstorming, conhecido como “tempestade de
ideias”, momento o qual se coletam e mesclam informações essenciais para o
desenvolvimento de todo o trabalho, principalmente para a criação do nome da cervejaria
artesanal.
Logo após, é iniciada a fase de processo criativo, na qual se desenvolvem diversos
esboços/croquis aplicando as informações adquiridas para se chegar a um melhor resultado
criativo, estético e funcional para a comunicação da marca. Testes de vetorização por meio
dos softwares computacionais foram incrementados através de grids, conhecido para auxiliar
a estrutura base do desenho, favorecendo do uma melhor precisão e equilíbrio simétrico para
o símbolo e tipografia do logotipo.

2. Fundamentação Teórica

2.1 Primórdios da Cerveja

De acordo com MÜLLER (2002) a cerveja é uma bebida alcoólica feita a partir da
fermentação do extratos obtidos do cozimento de cereais maltados. Descoberta por acaso,

6
Briefing – Briefing é um conjunto de informações, uma coleta de dados para o desenvolvimento de um
trabalho.
Fonte: https://www.significados.com.br/briefing/

549
registros de 6 mil anos atrás relatam as primeiras práticas da produção, onde os sumérios,
também denominado como povo mesopotâmio, animavam-se ao produzirem a bebida
alcoólica, porém naquele tempo o líquido era mais forte e escuro além das probabilidades de
contaminação. (PORTAL BREJAS)
Ainda na antiguidade, a cerveja fermentada era tão valorizada, que leis foram criadas
para “respeitar” a sua forma e ingredientes de produção, além de serem usados pelos egípcios
como moeda de troca. O “bebida divina”, assim também denominado, também serviu como
remédio natural, contendo um efeito diurético e diversas outras finalidades a fins medicinais.
A cerveja expandiu sua produção principalmente ao Norte da Europa, onde por conta do
clima úmido, o desenvolvimento da matéria prima, a cevada, era favorecida. (GLOBO, 2016)
Na idade média, as assembleias se responsabilizaram pela produção, tornando-se uma
atividade familiar. No entanto, apenas os monges da época souberam aperfeiçoar e guardar a
fórmula da cerveja, pois eram os únicos capazes de ler e escrever. (PORTAL BREJAS)
Aproveitando a grande extensão, os artesãos das cidades iniciaram também a fabricar
cerveja, consequentemente levando os poderes de públicos a se atenta-se com o costume do
consumo do mesmo. As tabernas ou cervejarias eram lugares onde debatiam posições e
negócios importantes que acabava entre um gole e outro de cerveja. A partir do século XII, já
com técnicas mais aperfeiçoadas, fábricas de pequeno porte foram surgindo nas cidades
europeias e, os cervejeiros já sabiam que a água tinha uma grande imponência na qualidade
da cerveja. Por isso, a seleção da localização das cervejarias eram feitas em nas proximidades
de fontes de uma boa água.

2.2 Logotipo

Segundo a Associação dos Designers Gráficos (ADG), o termo logotipo vem do grego
“logos” + “typos” = palavra, significado + figura. É a representação visual que identifica uma
empresa, com o objetivo de diferenciar e relaciona-se com seus consumidores. (VOLLMER,
2012)
David Airey, afirma que o logotipo sempre estará presente em nossa rotina diária, como
por exemplo nas etiqueta de roupas, smartphones, TVs e computadores. Isso desafia muitas
empresas que querem se diferenciar visualmente no mercado, pois existe uma grande vasta de
informação produzida nos últimos anos que tem “sobrecarregado” a humanidade ao ponto de

550
ignorar as mesmas. (AIREY, 2010). Em outra visão, isso também cria grandes oportunidades
para bons designers desenvolverem projetos superando todas as expectativas. (AIREY,
2010).

2.2.1 A importância do Briefing


No desenvolvimento de um excelente logotipo, é preciso primeiro captar todas as
informações necessárias, absorvendo questões como saber o que é a empresa, o porque ela foi
criada, quais seus objetivos e pretensões, além de também conhecer sobre a sua história. Para
retratar bem a identidade visual de um empreendimento, é também primordial obter o
máximo de dados, caso ao contrário os resultados podem ser frustrantes. (CESAR, 2015).
“Está tudo no briefing do projeto”, assim diz David Airey, a melhor forma de conseguir
todas as informações necessárias para a criação de um projeto de logotipo são através de bons
diálogos com os clientes, sempre com perguntas fundamentais para se conseguir as respostas
especificas e essenciais. (AIREY, 2010).

2.2.2 Menos é mais


A solução mais simples na maioria das vezes é a mais eficiente. Isso acontece pois um
logo minimalista ajuda a cumprir grandes partes das necessidades de um projeto, tornando
mais fácil de ser reconhecido. (AIREY, 2010). Traços originais e compreensíveis são de
excelência importância, sendo muito notável lembrar se certos elementos são realmente
necessários na composição. (BERGSTRÖM, 2009).

2.2.3 Função, Durabilidade e Adaptação


Um logo precisa estabelecer grandes relações, interatividade e fidelidade,
principalmente com os potenciais consumidores, atravessando gerações e barreias ao ponto
das empresas poderem também aumentarem os preços/valores de seus produtos e/ou serviços,
pois assim os próprios clientes estarão disposto a pagar por algo digno. (AIREY, 2010). Já
Newton Cesar também declara que um logo precisa ser atemporal, ou seja, que resista ao
tempo e não seja uma tendência passageira. (CESAR, 2015).

Por que a criação de uma marca é importante? Porque as pessoas geralmente


escolhem os produtos com base no valor percebido em vez de pensarem no valor
real (AIREY, 2010).

551
Um exemplo clássico proposto por David Airey é a empresa de flocos de milho e trigo,
Kellogg’s. A empresa de cereal, ainda usa a mesma assinatura de Will Keith Hellog desde de
1906 até hoje, tendo apenas sutis modificações (FIG.1). O efeito dessa permanência visual

construiu uma resistência de confiança entre seus consumidores ao longo dos anos,
posicionando a Kellogg’s como uma das maiores fabricantes de cereais do mundo. (AIREY,
2010).
FIGURA 1 – Assinatura de Kellogn. Antes e depois logotipo da Kellogg’s.
FONTE - AIREY, 2010.

O símbolo de uma marca também precisa transmitir uma mensagem fixa e concreta
baseado no conceito da empresa. Símbolos facilmente identificados são reconhecidos e
memorizados pelos consumidores de forma mais eficientes. Por isso é muito importante a
criação de um logo onde possa ser versátil (FIG. 2), abordando ao minimalismo e
simplicidade, onde possa adaptar em vários meios de comunicação diferentes, sem que perca
a sua consistência. (AIREY, 2010).

FIGURA 2 – Logotipos Responsivos. Uso da técnica de adaptação do logotipo sem perder a essência para o uso
em diferentes interfaces.
FONTE - publicitarioscriativos.com

2.2.4 Singularidade
Um logotipo singular é diferenciar-se da concorrência sendo reconhecido de forma
fácil, simples e clara. Um dos primeiros passos para um logo tornar-se único, é refletir de

552
modo preciso, a essência e estilo da empresa em relação ao seu cliente. De acordo com David
Airey, uma das melhores técnicas para um logo original é focar em algo que seja facilmente
identificado, ao ponto de apenas a sua silhueta ou forma o distingue. O uso do o preto e
branco enfatizar a desenvolver marcas singulares, pois o contraste realça a forma ou ideia.
(AIREY, 2010).
Ao criar um logo, o designer possui uma grande missão: serem únicos e diferenciados.
O poder de comunicar, representar e se destacar são grandes meios para se obter sucesso com
a sua marca em um enorme mercado competitivo. (WHEELER, 2008)
Ser original é uma tarefa difícil, mas não impossível, pois é isso que fará o diferente das
outras. É preciso mostrar que não é só mais uma empresa no mercado, precisa transmitir o
real sentido e emoção. No processo criativo, qualquer informação que tenha ligação com o
empreendimento tem que ser expressada no papel em forma de traços e rabisco. Teste,
estilize e veja o que ninguém conseguiu ter a mesma visão. (CESAR, 2015).

2.2.5 Conceito
Grande parte dos melhores logos que existem hoje em dia representam algo possuindo
o seu significado aplicado de forma clara ou abstrata. Conceituar um logotipo transmite
relevância, sendo que entender o que é representado eleva ainda mais o reconhecimento da
marca. (WHEELER, 2008)
É importante pensar em um conceito que possa representar a empresa no presente e
evoluir positivamente no futuro. Essa evolução pode ocorrer através da intenção original, mas
também pode forma-se e possivelmente ser redefinido através da experiência vivida pelo
consumidor, adicionando uma nova visão significativa. (WHEELER, 2008)
Torna-se um marcante desafio para o designer absorver e unir essa grande massa de
informações da empresa, seu público alvo e todo conhecimento do mercado para desenvolver
uma forma/figura mais ideal, autêntica, simples e principalmente funcional. No entanto para
o público da empresa, é raro entender todo esse significado de forma instantânea. Por isso é
preciso esclarecer, sustentar e comunicar o significado, sendo função da empresa aproveitar
cada oportunidade e compartilhar o conceito criando um aspecto cultural da marca.
(WHEELER, 2008).
A bandeira norte-americana não se tornou um símbolo imediatamente reconhecível
e universal da liberdade e da democracia até que isso fosse comunicado muitas
vezes. (WHEELER, 2008).

553
2.2.6 Cores
As cores apenas existem por conta de uma emissão de ondas luminosas, que causa
sensações quando atravessam os nossos olhos. A visão humana capta essas ondas ao pontos
de reconhecer conforme reage a dimensão das mesmas. Por isso, a cor sempre exerce um
papel importante na comunicação visual através do psicológico das pessoas, estimulando a
sensações quentes, frias, confiança, sofisticado, dentre vários outros. (CESAR, 2010).
Para a comunicação visual as cores precisam ser funcionais pois são importantes meios
comunicativos a ser usado. Se preocupar de como o receptor vai reagir com as cores
destinados a usar é a necessidade do estudo da psicologia das cores para decidir algo ideal.
(BERGSTRÖM, 2009). Uma citação clássica de Bergström, relata a aplicação das cores
acromáticas, preto e branco, onde juntas, transmite um aspecto influente, atraente e
imponente. Existem também diversas combinações de contrastes harmônicos que possam
favorecer bons significado a imagem que queria usar, no entanto caso mal combinados torna-
se algo amador e com impressão negativa. (BERGSTRÖM, 2009).

3. Processo de criação da identidade visual Xeque Malte


Denomina-se Identidade Visual como uma representação visual e verbal de uma marca
por meio de expressão e comunicação onde possamos vê-la, toca-la, ouvir e observar, com
objetivos de serem principalmente funcionais, memoráveis, significativos, diferenciais e um
reconhecimento imediato. (WHEELER, 2008)
Uma identidade visual fácil de lembrar e imediatamente reconhecível viabiliza a
conscientização e reconhecimento da marca. A identidade visual engatilha a
percepção e desencadeia associações a respeito da marca. A visão, mais do que
qualquer outra sentido proporciona informações sobre o mundo que nos rodeia.
(WHEELER, 2008).

3.1 Conhecendo o cliente.


Por se tratar de um briefing fictício, as propostas foram baseada através de pesquisa
realizadas conhecendo as principais cervejarias do Brasil e regiões de Uberlândia-MG.
Captando também as principais exigências do mercado, como o público alvo e a coleta de
dados sobre a atual evolução desse empreendimento.
Os irmãos, Fernando e Marcelo, amam fazer e personalizar fórmulas das cervejas
artesanais. No entanto, o ambiente onde realizavam todo o trabalho estava ficando
incompatível com a demanda de produção a seguir e por isso decidiram evoluir para algo

554
melhor. Além das cervejas, possuem admiração pelo xadrez, acompanham campeonatos e
torneios sempre quando possam estar presentes. Acreditam que é uma ótima forma de treinar
o raciocino e realçar a concentração.
As expectativas dos irmãos Garcia abrange torna-se um referencial da cerveja artesanal pela
qualidade oferecida em seu produto e ambiente. Tendo como público alvo, homens e
mulheres, entre 20 a 45 anos de classe A e B. A comunicação visual deve ser sofisticada,
singular e moderna, criando fidelidade significativa com os clientes, e assim posicionando
uma alta imponência no mercado. Os principais concorrentes atuais são a Cervejaria Alienada
e UberBrau, duas grandes empresas que possuem reputação competitiva na região.

3.2 Processo de Naming e Aplicação da Temática.


Após o desenvolvimento de um completo briefing com o cliente, para criação do nome
da cervejaria, foram realizados pesquisas precisas para conhecer a fundo o atual mercado das
cervejas artesanais que se adaptam no mundo e no Brasil.
Tendo como visão geral, observamos uma maior interatividade com os consumidores
em cervejarias que adaptavam-se a sua estrutura através de temáticas onde abriam grandes
probabilidades e oportunidades de opções para comunica-se com o cliente de forma direta e
indireta. Uma delas que podemos destacar é a cervejaria Alienada, localizada em Uberlândia-
MG (FIG. 3), onde aborda um tema espacial/galáxias, possibilitando a empresa explorar e
desmembrar diversas opções como extraterrestres, espaço naves, astros e dentre outros
adaptado para o meio das cervejas artesanais.

FIGURA 3 – Garrafas de cerveja com rótulos personalizados. Aplicação da Identidade Visual da Cervejaria
Alienada em seus produtos utilizando a sua temática espacial/galáxias.
FONTE - www.alienada.com.br

555
Através dessa busca de referências e inspirações foi abordado para a cervejaria a
temática de um dos jogos de tabuleiros conhecido mundialmente, o xadrez. Um jogo
estratégico onde conseguimos abordar questões especificas para a criação do nome e também
da identidade visual da empresa.
O xadrez é um jogo de tabuleiro estratégico feito para 2 jogares, sendo definido por um
tabuleiro de 64 casas e 32 peças (cada jogador possui 16 peças) que serão movimentadas de
acordo com a função que cada peça determina. Existem diversas lendas onde caracteriza a
origem do jogo, no entanto, a mais comum e contada mundialmente é de que teria surgido na
Índia.
Baseado na temática do xadrez, o objetivo foi adaptar o tema para o meio da cerveja
artesanal. Assim foi realizado um brainstorming, conhecido também como tempestade de
ideais com a intenção de “desmembrar termos” através de seus adjetivos, sinônimos,
significados, e depois mesclarem as palavras e conceitos abordados.
Após longas tentativas e rabiscos, analisamos a conclusão do nome da cervejaria como
Xeque Malte. Sendo que Xeque, vêm de origem persa "Shah”, que significa algo soberano,
nobre e honrado liga a casa de um rei. (SURNAMEDB, 2015). Já a palavra Malte é um dos
principais ingredientes feito a partir da cevada para realizar a produção da cerveja.
(OCANECO, 2015). O nome Xeque Malte também foi baseado na expressão similar a xeque-
mate do jogo de xadrez onde significa a finalização do jogo onde o rei é atacado.

3.3 Desenvolvimento do Logotipo Xeque Malte


No desenvolvimento de criar algo original, foi proposto a junção de figuras abstratas e
ao mesmo tempo perceptíveis e objetivo. De acordo com o nome Xeque Malte, a ideia seria
mostrar a imagem de uma empresa onde seria denominada como “autoridade do malte”, a
cervejaria que possui domínios e qualidades na produção com as melhores opções para quem
deseja algo sofisticado.

3.4 Definição do conceito


O conceito inicial na construção do logo foi aplicado na concepção de dois grandes
irmãos unidos estrategicamente por um único negócio. Assim, no símbolo, os irmãos são
representados por uma coroa e ao centro um losango representando o principal ingrediente
para produção da cerveja, o malte. A coroa vem das peças mais poderosas estrategicamente
do xadrez, o rei e a rainha, sendo que o objetivo é transmitir algo superior mas não

556
determinado por um gênero e sim algo neutro. Já o malte são grãos de cevada ou de outros
cerais onde foram colocados em um grande recipiente para atingir um “grau” de germinação
das sementes, no entanto esse processo é interrompido após os mesmos liberarem os
aminoácidos, açúcares e substancias necessárias para a produção da cerveja.
Os traços da composição do logo foram inspirados nas antigas escritas de origem
germânica, conhecida como runas. Os símbolos rúnicos era um antigo alfabeto dos habitante
no norte da Europa, que na mitologia nórdica significava força e poder divino.
(WEMYSTIC). A questão é que nesta região, existiam também grandes admiradores da
cerveja, o povo nórdico, conhecido também como vikings, degustavam a bebida em suas
reuniões e festas. (NORSKCRAFTBEER).
Destacamos duas runas que foram baseadas simbolicamente no logotipo (FIG. 4): a
Runa Daeg que significado o equilibro, crescimento, transformação e prosperidade; Runa
Othala representando propriedade, importância familiar e segurança. (WEMYSTIC).

FIGURA 4 – Representação de duas escritas rúnicas. A esquerda temos a Runa Daeg; já a direta a Runa Othala.
FONTE - www.wemystic.com.br

3.5 Definição do conceito


É fundamental uma marca expressar como principal intuito formas que possam
distinguir das demais concorrentes, pesquisando, explorando e conhecendo importantes
características se destacando nesse imenso mercado. Para se chegar a um resultado preciso e
funcional, foram feitos vários croquis (FIG. 5) sendo capaz de acompanhar o processo de
aperfeiçoamento a cada traço.

FIGURA 5 – Evolução no desenvolvimento dos croquis feitos com o objetivo de criar o logotipo ideal para a
cervejaria Xeque Malte.
FONTE – Autoria própria.

557
Seguidamente, após a realização dos esboços, foi feita a seleção de um único desenho
que de fato atingiu as primeiras expectativas do conceito e assim digitalizado para ser
vetorizado no computador.
A vetorização é feita desenhando virtualmente seguindo os mesmos traços do rabisco
original. No entanto, foi visto a necessidade do uso de grids com o objetivo de uma maior
precisão, equilíbrio e aperfeiçoamento as linhas.
O grid para a construção do símbolo foi inspirado a partir do próprio tabuleiro de
xadrez, transformando as 64 casas do jogo em uma “malha gráfica” (FIG. 6). Interligando os
pontos de intersecções, formando o tracejado desejado e em seguida aplicando espessura nas
linhas para que ficasse paralelo entre o espaçamento e preenchimento do traçado.

FIGURA 6 – Representação do processo de aplicação do grid para desenvolvimento do logotipo.


FONTE – Autoria própria.

Na finalização do símbolo, além dos significado iniciais, foram estudados e aplicados


outras técnicas durante o seu desenvolvimento: a presença de forma abstrata da letra “M”; a
Gestalt usando a lei da unificação e a lei da unidade.
Na tipografia do logotipo, foi utilizado para a composição a fonte Bebas Neave. Essa
família tipográfica além de expressar sofisticação, amigável e minimalista, possui um
alongamento estreito em suas letras que nos lembra do mesmo alongamento das peças mais
altas do xadrez (FIG. 7). Também podemos destacar a harmonia na sua junção com o
símbolo, sendo utilizado na diagramação das letras a proporção áurea, contribuindo a uma
visão mais agradável aos olhos (FIG. 8).

FIGURA 7 – Diagramação da tipografia do logotipo.


FONTE – Autoria própria.

558
FIGURA 8 - Versões principais finalizadas de uso do logotipo.
FONTE – Autoria própria.

3.6 Aplicação da identidade visual


Confira a seguir, o resultado da aplicação em mockups 7 (FIG. 9), do material produzido
para composição da imagem da cervejaria Xeque Malte.

FIGURA 9 – Aplicação da identidade visual em mockups de papelaria e possíveis aplicações.


FONTE – Autoria própria.

7
Mockup – Na área de desenvolvimento de software, é uma representação do design de um projeto que será
apresentado ao cliente. - http://www.vaicomtudo.com/o-que-e-mockup-onde-e-usado.html

559
4. Conclusão
Em um empreendimento que possui bons produtos, ótimos serviços e tendo uma forte
missão, a identidade visual torna-se muito importante para fazer a diferença transmitindo a
mensagem ideal para o seu público alvo e a fins, assim gerando lucros.
No estudo apresentado, podemos perceber as técnicas necessárias para compreender
todo o processo de criação do logotipo e papelaria. Juntamente com o valor de conhecer
melhor o cliente para que todas as expectativas não seja apenas atendidas e sim superadas. O
foco nos pequenos detalhes é um dos principais pontos de visão que faz um talentoso
designer se destaca.

Referências

ALIENADA. Como Surgimos? disponível em: https://www.alienada.com.br/ | acessado em junho de 2018.


ARNO MÜLLER. Cerveja!. 1. ed. rev. e ampl. Canoas: ULBRA, 2002.
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DAVID AIREY. Design de logotipos que todos amam. 1. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Altas Books, 2010.
G1, Especial Publicitário: Somos Todos Cervejeiros. WEBSÉRIE ESPECIAL: A HISTÓRIA DA
CERVEJA. disponível em: http://especiais.g1.globo.com/especial-publicitario/somos-todos-
cervejeiros/infografico/a-historia-da-cerveja/a-historia-da-cerveja.html | acessado em maio de 2018.
LARA VOLLMER, ADG BRASIL. ABC da ADG. 1. ed. rev. e ampl. Curitiba: Blucher, 2012.
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institui-o-programa-de-fomento-a-producao-artesanal-de-cerveja-e-sua-comercializacao-no-ambito-do-
municipio-de-uberlandia-mg - 10 de outubro de 2017 | acessado em maio de 2018.
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OCANECO, Silvano Spiess. O que é Malte?. disponível em: http://www.ocaneco.com.br/afinal-o-que-e-malte/
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PORTAL BREJAS. História da Cerveja. disponível em: http://www.brejas.com.br/historia-cerveja.sht |
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SÓ XADREZ. Curiosidades: Xeque-mate!. disponível em: http://soxadrez.com.br/conteudos/curiosidades/ |
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SURNAMEDB. Last name: Shah. disponível em: http://www.surnamedb.com/Surname/Shah#ixzz1SP60S1SF
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WEMYSTIC. Runas: O Significado desse Oráculo Milenar. disponível em:
http://www.wemystic.com.br/artigos/significado-das-runas/ - 17 de setembro de 2015 | acessado em maio de
2018.

560
Abstract

This article shows the development and foundations for the creation of visual
communication of a fictitious craft brewery, reporting the importance of applying the design
concepts and principles needed in the creative process of visual identity. The objective is
provide a business image impressive, creating a tight loyalty with its customers and
positioning as a benchmark in the beer market. The idea is create a modern, sophisticated and
unique brand based on the theme of the chess game, which is the admiration established by
the customers, meeting and exceeding the requirements proposed in the briefing, which help
to assemble the compositional aspect of this project.

Keywords: Chess, Logo, Brewery, Brand, Sheik, Malt.

561
A REPRESENTAÇÃO DAS NOVAS CONFIGURAÇÕES
FAMILIARES NA PUBLICIDADE 1
uma análise semiótica do protagonismo infantil a partir
das campanhas da Nestlé de 1990 a 2017
César Augusto Toratti 2

Resumo: Este artigo se propõe a analisar a forma como a publicidade representa


as novas configurações familiares a fim de entender em que medida é possível
identificar um protagonismo das crianças nas narrativas direcionadas para o
consumo familiar. Como metodologia, foi realizado, a partir da semiótica
greimasiana, um estudo comparativo entre os discursos identificados em três vídeos
de campanhas publicitárias da marca Nestlé, desenvolvidas entre as décadas de
1990 a 2017. São eles: Crescimento em Ninho de 1994, Ninho Fases: Torcer pelo
seu filho faz bem de 2006 e Ninho Alimente a liberdade do seu filho, de 2017.
Escreva aqui o resumo em itálico com, no máximo, 1.000 caracteres.

Palavras-Chave: Publicidade. Consumo. Discurso.

INTRODUÇÃO
Ao observar o comportamento das famílias na contemporaneidade, Bevilacqua (2016)
aponta para uma relação de inversão de papéis entre pais e filhos, em que as crianças ocupam
um lugar de destaque no processo de decisões familiares. Partindo de tal premissa, o objetivo
geral deste artigo é identificar como a publicidade brasileira representa as novas
configurações familiares analisando, principalmente, o papel da criança nessa estrutura
narrativa. Para tanto, será utilizado como corpus de análise o discurso de campanhas de
diferentes épocas da Nestlé a fim de promover um debate sobre o papel da publicidade na
produção de subjetividades nas sociedades contemporâneas.
A metodologia usada na análise será a Semiótica Discursiva, aplicada a partir dos
fundamentos teóricos presentes no livro Semântica estrutural de Greimas (1976).

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho César Augusto Toratti do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
PontificiaUniversidade Católica de Minas Gerais, Graduando 6º Período de Comunicação Social, Publicidade
e Propaganda. E-mail: toratticesar@gmail.com

562
Publicidade e Sociedade

A publicidade tem como um dos seus objetivos estudar aquilo que é público, que
acontece na sociedade. (AUTOR, ANO, p.x). como e de que forma uma ideia determinada
chega ate seu publico e que publico é esse. os meios utilizados, se é foto, vídeo, uma ação de
rua, uma campanha, e quais serão as estratégias usadas, como; cores, tipos de musica, o tipo
de discurso, quem serão os objetos principais.
A publicidade pratica a técnica de comunicação na produção de ideias que junto ao
publico acontece uma atitude dinâmica e favorável para o lado comercial. Outro aspecto
muito importante na publicidade é que ela é o principal fator da construção da reputação de
uma marca ou empresa, ela é capaz de criar um posicionamento e muda-lo também, de
produzir sentimentos que realmente tocam as pessoas no seu emocional, é capaz de cair na
cultura popular e se consagrar por décadas e marcar uma geração.
A publicidade se alimenta das tendências da sociedade e a envolve de uma forma
conjunta de ideologia contemporânea. Ela por sua vez replica a realidade a fim de
acompanhar as tendências do cotidiano e direcionar em grupos as prioridades do seu discurso
para que assim possa se dar o poder de compra ao consumidor que a publicidade o representa
ou valoriza esse publico.
Segundo Schiffman e Kanuk (2000), o comportamento do consumidor é uma ciência
interdisciplinar que investiga as diversas formas do indivíduo se relacionar ao consumo.
Assim, analisar o consumidor é estudar o que, e como, o por que, o quanto, onde e com que
frequência, os indivíduos sociais compram e consomem os produtos e serviços oferecidos na
sociedade do consumo.
O cenário brasileiro o consumo tem como um ponto importante a década de 1950 que
ocorreu a comunicação massiva pela mídia televisiva que alavancou a economia do pais. Foi
o mesmo período de industrialização automobilística e também da construção de Brasília, e
também as promoções do impacto de compra, (GIACOMINI, 1991).

A história da Nestlé

563
A história da marca Nestlé começou na Suíça, em Vevey, no ano 1866, quando o
farmacêutico Henri Nestlé, preocupado com a os altos índices de mortalidade infantil, decidiu
estudar e se aprofundar em uma composição de alimento simples que envolvesse leite, açúcar
e farinha de milho para uma melhor concentração de nutrientes e acabar com a desnutrição.
Nestlé, então, tentou várias composições até conseguir produzir uma farinha Lacta que,
quando misturada com água, virava um alimento saboroso e rico em nutrição. (OPERA
MUNDI, 2014). Em 1921, a Nestlé chega ao Brasil, na cidade de Araras, interior de São
Paulo, onde instala sua primeira fábrica, para a produção do leite Milkmaid, que mais tarde
ficaria conhecido pelo nome de Leite Moça.
Com o passar dos anos, a Nestlé se tornou uma empresa multinacional, especializada
em alimentos e nutrição humana. Em 2018, a marca atua em doze segmentos entre eles,
chocolates, leites, cafés, cereais e nutrição e é a maior companhia de alimentação do mundo.
Conforme aponta Feitoza (2009), a marca é conhecida por “fazer grandes investimentos em
publicidade televisiva, tendo sido vencedora de vários prêmios em marketing, além de ter sua
propaganda atendida por quatro agências de publicidade no Brasil - Mccann Erickson,
Publicis Salles Norton, JWT e W Brasil” (FEITOZA, 2009, p. 2). Para a autora, a Nestlé
possui grande credibilidade junto aos brasileiros, o que justifica a sua relevância enquanto
objeto de estudo.

O ninho da marca: a análise semiótica da representação gráfica da Nestlé

Em um primeiro exercício simples, a fim de conhecer, semioticamente, a construção da


marca podemos analisar a representação gráfica da Nestlé, isto é, o seu logotipo. Segundo
Cesar (2008), trata-se do maior símbolo da identidade do cliente, fortalecendo e
representando o conjunto entre empresa, produto e consumidor. Para Cesar (2008), “ quando
uma empresa presta um serviço, divulga ou vende um produto, ela espera que o consumidor
se lembre do seu nome. É indispensável para ela que o nome seja associado à sua marca ou
ao produto. (CESAR, 2008, p.113).

564
Imagem 1: Logotipo da marca Nestlé

A partir do logo acima, observa-se um galho de árvore, um ninho de passarinhos e dois


passarinhos menores olhando em direção a outro passarinho maior, que supostamente seria a
mãe deles. Esse desenho e toda a sua composição de elementos remete a uma família e ao
sentido de nutrição, pois o ninho é o lugar de nutrir e alimentar.
A imagem representa também crescimento. Se olharmos a composição de elementos
dos traçados, da esquerda para direita, vemos o sentido de evolução, como a escrita como
uma linha, como um gráfico, os passarinhos menores estão à esquerda enquanto o passarinho
maior à direita. Essa imagem simboliza lugar de afeto de alimentação de crescimento, um
lugar de Ninho de passarinhos. No entanto, também traz a tradução de que Nestlé significa
Ninho, o sobrenome do fundador, Henri Nestlé.
Contudo o carro chefe da Nestlé e o principal objeto de pesquisa desse artigo é o Leite
em Pó Ninho.
Semiótica greimasiana

Como metodologia, foi realizado, a partir da semiótica greimasiana, um estudo


comparativo entre os discursos identificados em três vídeos de campanhas publicitárias da
marca Nestlé, desenvolvidas entre as décadas de 1990 a 2017. São eles: Crescimento em
Ninho de 1994, Ninho Fases: Torcer pelo seu filho faz bem de 2006 e Ninho Alimente a
liberdade do seu filho, de 2017.
Para Greimas (1976), a relação de se comunicar repousa na estrutura de troca e na
interação dos diversos protagonistas na transmissão e na recepção de sinais ou mensagens.
Portanto, o autor desenvolve um exercício de leitura da persuasão, para o enunciador e no

565
plano do enunciatário, o fazer interpretativo, que assim gera uma transformação de um estado
de crença em outro aspecto. Isso ocorre a partir de uma verdade já reconhecida frente a uma
comparação do que é proposto pelo enunciador, envolvendo o que e o receptor já estava
crendo.
O percurso gerativo de sentido, conforme proposto por Greimas, ocorre em três níveis:
Narrativo, discursivo e profundo, como analisaremos a seguir.

Vídeo 1: Crescimento em Ninho. Qualidade e Confiança.


Ano: 1994.
Duração: 1 minuto.

O comercial começa com uma jarra de leite sendo despejada em uma xícara, depois
como uma apresentação sombreada de uma lata de leite Ninho girando. Em seguida, colheres
de leite em pó são colocas em copos, latas de Leite Moça sendo abertas, sempre mostrando o
logo da Nestlé, com uma música de ópera que lembra muita a canção Aleluia tocando o filme
inteiro.
Com ênfase em Ninho, durante o comercial aparecem outras marcas da Nestlé, como
Creme de Leite e Mocilon. Porém, na medida em que o vídeo vai se dirigindo para seus 30
segundos todos os produtos começam a ser despejado, principalmente o Leite Ninho. Vemos
xícaras sendo cheias com leite, copos com creme bem batido, todas as cenas em plano
detalhe, dando até para reparar nas bolhas que surgem em meio ao leite. E, então, a logo
Nestlé toma conta das embalagens até que com um Aleluia que se repete 4 vezes um ultimo
copo é completado nas mãos de uma pessoa em um céu azul, uma mulher toma um gole
desse leite nesse instante e as cenas são cortadas, um copo de leite é derramado e a musica de
Ópera se sessa, apenas o leite que se derrama em alguma superfície se ouve, então uma voz
calma e aconchegante narra a Seguinte frase “ De quem mais entende de leite , para você que
mais entende de vida” essa locução vem acompanhada de uma serie de crianças tomando
leite em copos, brincando com seus pais comemorando alguma coisa muito feliz, como se o
leite fosse talvez o motivo, e a ultima cena se dá, de uma criança no colo de sua mãe
tomando leite e deixa aquele famoso bigode de leite que geralmente as crianças deixam sem
perceber, e acaba limpando com a língua como se estivesse ainda sim aproveitando cada gota
do leite. A imagem é cortada o logo da Nestlé aparece em rotação sentido anti-horário com

566
fundo azul escrito Nestlé de Branco, e o conceito da campanha, que é narrado pela mesma
voz do comercial “Nestlé qualidade e confiança”
Analise Semiótica
Analise semiótica proposto por Greimas (1976) se desenvolve:
Discursivo: o sujeito responsável pela enunciação assume a narrativa tornando o
sentido compreensível, com características definidas para atores, objetos, falas e gestos entre
eles e os produtos em questão.
Narrativo: o enunciado de estado, se coloca em ser bem nutrido com Nestlé ser
saudável e logo feliz. Enunciado de fazer, a ação de sempre confiar nos produtos Nestlé, pois
eles são os que mais entendem de leite. Narrativa mínima de Liquidação com final conjunto
do fator eufórico de consumir produtos Nestlé. Nas fases de narrativas complexas Do
enunciador observamos:
Tentação: apaixone-se pela Nestlé, imagens de leite sendo derramado copos cheios,
crianças e adultos tomando leite.
Sedução: a felicidade de quem consome Nestlé, a alegria a saúde bem nutrida.
Afetividade de compromisso e segurança com o receptor da autoridade de quem entende
melhor do seu filho.
Segundo Greimais (1976) esse tipo de ação se resulta na categoria de propagação da
venda de um sentimento, a felicidade. Na complexidade do discurso todos os produtos Nestlé
que são apresentados de forma linear e depois a felicidade e bem estar, principalmente das
crianças.
Fundamental: Nível em que se estabelece o eixo semântico sobre o qual o texto se
constrói ao decorrer do filme, representa-se graficamente a sintaxe sumária das
transformações que ocorrem entre os termos de uma categoria semântica. Tal sintaxe funda-
se em relações de contrariedade”Pra quem mais entende de leite, pra você que mais entende
de filho.” A Nestlé se coloca em primeiro lugar de quem mais entende de leite, as
responsáveis pelas articulações mínimas de uma narrativa se desenvolve na felicidade do
valor eufórico manifestado.

567
Figura 1: Video Crescimento em Ninho 1994.

Vídeo 2: Ninho fases


Ano 2006
Duração 30 segundos .

Feita a análise do primeiro vídeo passamos a analisar a segunda peça do nosso corpus:
O pai entra em casa abrindo a porta, como se estivesse acabado de chegar do trabalho, de
terno com as coisas na mão, uma gravata já meio solta, e com uma musica de fundo com um
ar de desvendar, procurar, bem comum em desenhos animados como um descubra do
personagem. O pai pega uma bolinha de futebol na mão e grita pela casa o nome de
“Dani...Dani...” e uma voz remetendo a primeira pessoa do pai, narra enquanto joga a bola
rolando aos pés de alguém , como se fosse uma criança já que ele esta se abaixando, com a
locução : “ Eu sempre torci um por um menino, mais ai entro em campo... a Daniela”
notamos talvez um desanimo ou uma decepção, porém ele retorna a narração “ Fiquei sem
defesa, amor artilheiro, me acertou no ângulo” nesse momento uma lata de Ninho aparece e

568
ele a abraça atrás em segundo plano sua filha. Ele brinca com ela já que é uma criança ele
tenta ensinar ela a jogar futebol, comemora o pouco esforço que ela faz para aprender
bebendo leite e deixando aquele tradicional bigode quando bebe. Ela cresce e essa mudança
ocorre com a frase narrada: “ Virei titular de uma filha linda” após isso ela esta jogando
Futsal em uma quadra e o pai torcendo na arquibancada, ela da um chute ao gol e erra,
imediatamente olha pro seu pai e leva as mãos na cabeça, o pai com a frustração de torcedor
sorri pra ela com ar de compreensão, essa cena retorna ao texto da narração dizendo que a
vida é uma caixinha de surpresa, e que ele adoro a sua, ele comemora com a filha na quadra e
uma forte locução institucional entra no comercial dizendo, que Ninho tem um leite pra cada
fase do seu filho, porque Ninho como os pais das crianças, são fanáticos pelos seus filhos,
Ninho também se preocupa, se importa e torce pelo seu filho, e encerra, “Torcer pelo seu
filho faz bem”.
Notamos também a relevância de abordar essa temática do futebol pelo contexto que se
encontrava, o ano desse vídeo é de 2006, nesse ano acontecia a décima oitava edição da Copa
do Mundo FIFA de Futebol, na Alemanha, e culturalmente é um evento muito valorizado no
Brasil. É claro no texto o uso de palavras e frases de torcedores de futebol, artilheiro, acertou,
fanático, caixinha de surpresa entre outras.
Podemos perceber que dos 30 segundos que compõe o vídeo por volta dos 13 segundos
aparece uma Resolução do Ministério da Saúde na parte inferior central da tela, é a
Resolução nº222 de 5 de agosto de 2002 na qual se descreve : “O ministério da saúde adverte
o aleitamento materno evita infecções e alergias e é recomendado até dois anos ou mais”
Analise semiótica:
Plano semiótico tem o intuito de analisar o que é anunciado e o controle há adequação
do que seria novo e desconhecido pelo recptor. O plano proposto é caracterizado por uma
simples afirmação, mais como uma tentação de vivencia e experiência.
Esse processo de manipulação, segundo Greimas (1976), pode ser realizado de três
formas distintas:
a) segundo o querer, por tentação e sedução

569
O fato de ter filhos, de viver esse momento feliz com eles, e eles serem crianças bem
nutridas, saudáveis e a ninho través desse discurso seduz o espectador por ter filhos assim.

E a tentação de beber o leite, sendo que de 3 vezes que a criança Daniela aparece em 2
ela esta bebendo Ninho.
a. segundo o poder, por ameaça e provocação.
Esse discurso não se compromete a ameaça, porém ele provoca a insegurança talvez de
que ninho acompanha todas as fases do seu filho, pra ele crescer bem e saudável e assim
poder jogar bola, correr brincar sorrir e ser feliz como a Daniela, então estabelece uma
afinidade com Ninho através dessa provocação do enunciador.
b. Terceiro o saber, em que a ‘natureza dos fatos’ é apresentada na forma de
argumentações lógicas, oferecendo-se à interpretação do sujeito como uma proposição da
razão: o enunciador convoca procedimentos de manipulação segundo o saber para convencer
o enunciatário, apelando às “razões” do próprio enunciatário.
A questão que todos os pais vão querer ver seus filhos como a Daniela, isto é, bem e
feliz, talvez segurando um copo cheio de leite, essa argumentação lógica que apenas confere
o que o sentimento paterno já sabe. A convocação desses procedimentos de manipulação se
dá pela voz do pai mansa e calma, que envolve bordões de futebol no amor que ele sente pela
filha, a estratégia de discurso em resaltar que o time do pai é o filho, e torcer pra ele é amar!
Discursivo: O sujeito que se coloca como enunciador é o que vive a ação no filme
sendo este o pai e o narrador parcialmente, esse sentido se da de forma fática e compreensível
através de gestos, objetos, frases, falas, olhares e ações.
Narrativo: o enunciador de estado mostra sua paixão pela filha e pelo futebol, através
da tentação o discurso narrativo em ter um filho que pode ser feliz saudável e praticar
esportes bem alimentado. Na narrativa mínima se encontra a projeção de sedução em Ninho é
como você é fanático pelo seu filho, sendo quase um cúmplice fiel nas conquistas do seu
filho, atingindo a sansão de vê-lo crescer feliz, bem saudável e acompanhado de Ninho, a
segurança de nutrição. O discurso envolve sentido de liquidação com características de fator
eufórico, não alimentar seu filho com ninho é um valor disfórico relacionado a má atenção na
criação da criança, o contrario de Fanático pelo seu filho, contrario de torcer por ele.

570
Liquidação com final conjunto do fator eufórico de consumir produtos Nestlé. Nas fases de
narrativas complexas do enunciador observamos.

Fundamental: é o período em que se relaciona qual a forma discursiva se desenvolve na


função de Complementaridade pela paixão do pai pelo futebol se complementa com a paixão
pela sua filha, e também pela contrariedade em que ele esperava um menino e entrou em

campo, metáfora de campo pra sua vida uma garota, sendo que futebol na cultura popular e
pela época do vídeo é um jogo apreciado e mais comum jogado por meninos, e ela sendo uma
garota o pai insiste que ela aprenda o futebol.

Figura 2: Video : Ninho Torcer pelo seu filho faz bem; Nestlé 2006

Vídeo 3: Alimente a liberdade do seu filho


Ano : 2017
Duração 1 minuto

Feita a análise da peça iremos ao terceiro vídeo do nosso corpus:


Exibido nos intervalos comerciais do fantástico, Esse vídeo começa com uma narração de
uma mulher como se ela estivesse concluindo qualquer outro assunto e justificando talvez o
próximo tema que ela ira falar ou que até mesmo o meio em que estava falando, o texto
começa: “ Ok, vamos colocar frente a frente você, e o seu filho[...]” nesse momento o vídeo
começa a passar varias imagens de crianças lado a lado com seus pais, como; a criança com
8 anos e o pai com 8 anos, mostrando a semelhança entre os dois, em formas de fotos, de

571
vídeo, e uma legenda embaixo de cada foto e vídeo, na da criança o nome dela, “Chris” e na
outra foto “Pai do Chris”. E a narração continua, mostrando a semelhança entre os dois,
dizendo que ele pode ter o seu sorriso, e citando outros exemplos de filhos que são iguais aos
pais quando criança, e pontuando que as crianças que podem ser igual a você, pais e mães,
elas observam o mundo com outro olhar, e nesse momento uma criança no balanço vê de

cabeça pra baixo o parquinho. O vídeo da ênfase muito na aproximação que pai e filho
possuem, contudo a narração diz: “ á diferença é que ele consegue fazer isso !” e uma foto de
uma garotinha chamada Duda do lado de sua mãe, vem correndo em uma aula de balé e faz
uma grande acrobacia, e a narradora diz: “ Uau..!” e suspira. Logo depois disso um garoto faz
uma manobra de skate e vários sorrisos aparecem de pais e filhos juntos e uma frase : “ Seu
filho já tem muito de você, ajude-o a encontra o que é só dele, com o seu amor e cuidado”
após essa fala se segue um pai realmente muito parecido com seu filho o ensinando a amarrar
os sapatos e o garoto esta tomando um copo de leite, após beber um pouco ele deixa uma
marca como se fosse um bigode de leite e o limpa com a boca mesmo, e uma lata de ninho
aparece atrás em um cenário totalmente cinza inclusive as roupas do pai e do filho. A voz da
mulher que narra o texto chega a um ponto que estremece a fala como se existisse um choro,
uma emoção contida, quando um garoto esta de mãos dadas com sua mãe, e pedi gentilmente
pra poder ir brincar no parquinho, “ E assim ele poder ter, o seu carinho e as próprias
escolhas, os seus ensinamentos, o próprio caminho e o seu amor, o futuro dele” nesses
segundos finais aparece crianças soltando das mãos das mães, pais soltando a bicicleta pro
filho poder pedalar sozinho, crianças correndo sozinhas na praia, como se fosse um sinal de
liberdade. A musica se encerra o logo do ninho aparece, o conceito da campanha se desenha
na tela que é, O seu amor, o futuro dele.
Em todas as cenas existe um elemento em amarelo que liga um plano ao outro, e todo
o cenário que envolve contribui diretamente pra ênfase nesse elemento. A voz que começa
locução do começo é a mesma que assina a campanha no final, e se usa muitos recursos de
pausas como se fosse algo realmente sentido pela voz dessa mulher, de uma conversa muito
próxima com o telespectador, falando diretamente com o pai ou mãe, e o assunto de Ninho é
ele: seu filho, na assinatura da campanha não se denomina o sujeito como, seu filho, seu

572
pequeno, seus filhos, apenas é escrito, Ele, O Seu Amor, o Futuro Dele, de você para com seu
filho.
Analise semiótica
Discursivo: As roupagens utilizadas pelo discurso se remete a relação de sentimento
emotivo, na qual não fala diretamente do produto porém sim de um sentimento sendo este o
objetivo do filme vender a emoção do carinho e cuidado.

Narrativo: Síntese da narrativa em que Ninho mostra em seu discurso o estado de fazer
a ação de tomar algo, no caso; a cuidada, alimentar a liberdade, garantir o seu amor e o futuro
dele, no sentido do verbo de fazer, alimentar.
A relação dos principais elementos propostos pelo ninho, isto é, pai e filho, entram em
um discurso de junção de um fator eufórico do carinho, do cuidado e do amor. Narrativas
mínimas de liquidação colaboram em um final conjunto dos pais e filhos entrando em um
sentimento único de compreensão.
O sentido narrativo se estabelece também na sedução do proposto pela ninho em dar
amor e carinho, para seu filho, ensinar seus robes, seduzir pela a imagem de fazer o
espectador relembrar que seu filho já tem muito de você. Pela narrativa complexa mostrada
pela ninho, a competência é manifestada em forma de carinho, amor, cuidado, sendo que
esses elementos garantem o futuro do seu filho. Seu amor seu carinho, seus ensinamentos,
tudo isso faz com que ele escolha seu próprio caminho, sendo que este caminho é o futuro
dele, no filme esse é o período onde ocorre a Performance, fase que revela a transformação
do sentido. A verificação da performance observamos pela constatação da Sanção onde
vemos crianças feliz felizes, saudáveis correndo e sorrindo.
Fundamental: Efeito de contrariedade oposições semânticas do pai e filho que mostra a
oposição dos dois em aspectos diferentes, porém ainda sim notamos também a presença de de
complementaridade em ser pais e filhos parecidos com cargas semânticas parecidas, mas
ainda sim diferentes. O valor apresentado é o cuidado com os filhos, fator positivo
manifestado como Eufórico.

Considerações Finais

573
O objetivo geral deste artigo foi identificar como a publicidade brasileira, e de forma
mais detida a marca de alimentos Nestlé, representa as novas configurações familiares
analisando, principalmente, o papel da criança nessa estrutura narrativa. Como corpus de
análise foram utilizados três vídeos publicitários: Crescimento em Ninho de 1994, Ninho
Fases: Torcer pelo seu filho faz bem de 2006 e Ninho Alimente a liberdade do seu filho, de
2017.
De forma geral, observa-se que a marca Nestlé, por meios das campanhas publicitárias
da linha Ninho, se compromete a cuidar das pessoas, em especial, das crianças. Por meio da

analise, é possível perceber que a marca dá a autoridade aos pais e associam-lhes a narrativas
que remetem à ideia de proteção, de carinho.
Porém, com o passar do tempo, quando comparados os vídeos, notamos uma mudança
estratégica de prioridade nas narrativas apresentadas. Através de uma análise semiótica,
notamos que no primeiro filme, Crescimento em Ninho de 1994, acontece uma demonstração
maior de produtos um foco direcionado ao alimento. Como são abertas as embalagens, as
cores. Ainda assim, vemos crianças felizes no final, como se Ninho fosse a causa dessa
felicidade e segurança, de correr brincar ser saudável.
No segundo filme, Ninho fases 2006, nota-se que já ocorre uma mudança no foco da
propaganda em falar menos do produto e mais do filho, no caso, da filha Daniela.
No entanto, no terceiro filme dessa análise, Alimente a Liberdade do seu Filho de 2017,
o produto Ninho passa despercebido e fica em segundo plano dentro da narrativa. Seguindo,
ainda, o intuito de 2006 em focar na criança nesse comercial notamos que Ninho presa pelo
sentimento, que envolve pais e filhos, e a relação entre eles de existir aspectos que os façam
ser parecidos.
A partir dos vídeos selecionados, com o decorrer do tempo (1994 a 2017), notamos
uma mudança gradativa de posição de discurso em deslocar do produto, falar de pessoas e
depois falar de sentimento, dando importância ao humano ao sentir, a preocupação ao
cuidado.
Esse tipo de mudança de discurso prioriza a autoridade de compra, pois o sentido
produzido pelo enunciador é voltado unicamente para a proteção e carinho das crianças. O
estudo do comportamento do consumidor fala exatamente sobre isso, falar de criança, mas

574
não falar com a criança, pois a prioridade é o filho. Porém o discurso não é infantil, é
carinhoso é harmonioso.
Basicamente, é isso que a empresa busca com seus consumidores, de forma indireta
com os pais para com os filhos. Conclui-se que o intuito das narrativas analisadas é uma
aproximação.

REFERÊNCIAS

AGENCIA ABOUND. Sigmificado das marcas Disponivel em:


<https://agenciaabound.com.br/significado-das-marcas/ > Acesso : 10 Out.2018
MUNDO DAS MARCAS. Nestlé Good Food Good Life. Disponivel em:
http://mundodasmarcas.blogspot.com/2006/06/nestl-good-food-good-life.html Acesso: 23
Out.2018.

CESAR, Newton. Direção de arte em propaganda. Brasília: Ed. Senac, 2008.

OPERA MUNDI OUL. Historias, Morre o fundador da Nestlé alimentos. Disponível


em:<https://operamundi.uol.com.br/historia/35929/hoje-na-historia-1890-morre-o-fundador-
da-nestle-alimentos> Acesso: 23 Out.2018.

NESTLÉ. Aboutus history logo evolution. Disponivel em:


<https://www.nestle.com/aboutus/history/logo-evolution > Acesso: 23 Out.2018.
GIACOMINI FILHO, G. Consumidor versus Propaganda. São Paulo: Summus. 1991.

GREIMAS, A. J. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.

SCHIFFMAN, L., KANUK, L. Comportamento do Consumidor. Rio de Janeiro. LTC.


2000.

575
YOUTUBERS-MIRINS: 3
Um estudo de caso da inserção de Ana Clara Barbosa no universo
da marca de cosméticos Salon Line
YOUTUBERS-MIRINS: A case study of the insertion of Ana Clara Barbosa in the universe of
the cosmetics brand Salon Line
Jade Karoline Tomaz Bernardo 4
Cíntia Maria Gomes Murta3

Resumo

Sabe-se que o espaço publicitário infantil brasileiro é formado, predominantemente, por


modelos da raça branca. No entanto, já é possível perceber, em 2018, um pequeno
crescimento de crianças negras na mídia. Em contrapartida, ainda não é possível afirmar
que o negro é bem representado nos meios de comunicação de massa. Tendo em vista que as
marcas vêm se reposicionando a partir de uma demanda da sociedade, as mudanças de
discurso geram uma visibilidade e alcance maior do público. Uma dessas marcas é a Salon
Line, que oferece produtos desde tinturas até linhas infantis e vem crescendo nas redes
sociais e no mercado gradativamente quando o assunto é cabelos cacheados e crespos. A
partir do estudo, observou-se que em suas postagens nas redes sociais, Instagram e
Facebook, a marca vem divulgando seus produtos infantis, porém, até maio de 2018 não
possuía à frente de suas campanhas uma criança-propaganda oficial. Esse artigo apresenta
um estudo de caso da inserção da youtuber-mirim Ana Clara Barbosa no universo da marca
de cosméticos e, como metodologia do trabalho, foram usados os conceitos de engajamento e
mobilização social para analisar a ação estratégica da marca nas redes sociais.

Palavras-Chave: 1. Publicidade infantil 2. Diversidade 3. Meios


digitais 4. Youtubers Mirins 5.Engajamento Social

INTRODUÇÃO

Desde o surgimento da mídia, tem sido imposto um padrão capilar de beleza feminina
que se resumiu, por muito tempo, a cabelos longos e lisos. Os anúncios publicitários, a
televisão, o cinema e as revistas contribuíram para reforçar e naturalizar esse entendimento

3
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho 6 (Comunicação, Consumo e Tendências) do 3º.
CONEC: Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de
outubro de 2018.
4
Jade Karoline Tomaz Bernardo: Graduanda, Comunicação Social - Publicidade e Propaganda, pela PUC
Minas, campus Poços de Caldas. E-mail: jady_bernardo@hotmail.com. Bolsista Probic.
3
Cíntia Maria Gomes Murta: Mestra em Imagem e Som, pela UFSCar, docente no curso de Publicidade e
Propaganda, da PUC Minas, campus Poços de Caldas. E-mail: cintia@pucpcaldas.com.br

576
no Brasil. O cenário midiático, desse modo, fez com que os modelos e padrões estéticos
impostos e que serviam como referência para mulheres não as refletissem, de fato, uma vez
que mais de 53% da população feminina no país é formada por mulheres negras e pardas
sendo, em sua maioria, cacheadas ou crespas. Assim, por muito tempo, essa parcela
importante de consumidoras não se identificava com a imagem midiática e os produtos que
lhes eram oferecidos.
Com a chegada da internet, os meios tradicionais de comunicação passaram a disputar
espaço com outros conteúdos. Esse cenário reconfigura a paisagem midiática a partir de
novos ambientes e uma reformulação do que é belo e aceitável passou a ser pensada, abrindo-
se para novos nichos de consumidores e dando visibilidade a outras culturas e concepções,
por exemplo, dos movimentos antirraciais como o “black is beautiful”, “Black Power”, entre
outros. É nessa efervescência de suportes de comunicação que surgem, também, os novos
comunicadores, presentes nas principais redes sociais como Youtube, Instagram, Snapchat,
Twitter e Facebook, Tratam-se de produtores de conteúdo capazes de comunicar-se com seus
nichos e além, a partir de temas, abordagens e formatos diversos, ampliando vozes que nem
sempre puderam ser ouvidas. O cenário é rico, desse modo, para produção de conteúdo sobre
Diversidade.
As marcas não ficaram de fora e, atentas às mudanças, estão se (re) posicionando e
criando maneiras para se adaptar à nova realidade, oferecendo produtos para uma demanda
que sempre existiu, mas era invisível. A Salon Line é uma das marcas que vem crescendo no
seguimento de beleza, ao oferecer produtos para cabelos cacheados e crespos com preços
acessíveis a todos os públicos, desde o masculino até o infantil. Por meio do seu
posicionamento, a marca realiza ações que contribuem para a discussão a respeito da
diversidade, do empoderamento e da inclusão social.
Em especifico, este trabalho analisa a ação realizada pela Salon Line utilizando a
imagem da youtuber-mirim negra Ana Clara Barbosa no universo infantil da marca de
cosméticos. Por meio do estudo proposto procura-se responder às seguintes questões: como a
marca de cosméticos Salon Line aproxima a youtuber-mirim Ana Clara Barbosa de seu
universo? Quais as estratégias utilizadas para divulgar a linha #todecachinho a partir da ação
analisada?

577
No entanto, para responder a tais questões, dadas as características da Ana Clara
Barbosa - uma criança, negra e youtuber - precisaremos antes falar sobre identidade feminina
negra, discurso de ódio e silenciamento das mulheres nas redes sociais.

A NOVA GERAÇÃO DE CRIANÇAS

No decorrer dos últimos anos, nota-se o quanto a publicidade infantil vem sendo um
assunto em evidência nas mídias tradicionais e nos meios digitais. O olhar ao tema entrou em
alta, tanto que, iniciou-se um julgamento histórico na luta a proibição da publicidade voltada
a crianças, ao evidenciar campanhas abusivas utilizando a imagem indevidamente do público
infantil. Contudo, observa-se que empresas não desistiram desse segmento lucrativo e a partir
desse ponto vem-se investindo em maneiras formais para utilizar a imagem das crianças,
principalmente por meio das mídias online.
Segundo os autores Antonia Lima, Rejane Lima e Paulo Eduardo Cajazeira (2016), a
Agência Brasil de Comunicações publicou uma matéria em julho de 2015 na qual afirma que
81% dos jovens e crianças têm acesso à internet, enquanto 48% do total veem vídeos no
YouTube. Não é novidade que crianças adoram assistir vídeos nessa plataforma virtual. A
plataforma, percebendo o crescimento exponencial desse mercado, divulgou no mês de junho
de 2016 a chegada ao Brasil do YouTube Kids, uma plataforma direcionada unicamente para
crianças entre 2 a 8 anos. O aplicativo, dentre outras principais funções, tem a possibilidade
de os pais personalizarem o que vai ser acessado pelos filhos, dependendo da sua faixa etária.
O Youtube também permite que o usuário produza o seu próprio conteúdo e o disponibilize
de modo público. Neste caso, os pequenos deixam de ser espectadores e passam a
protagonistas.
Lima, Lima e Cajazeira (2016) explicam que o fenômeno dos youtubers-mirins é
recente. Diversas crianças de todo o país publicam vídeos semanalmente sobre dicas,
brinquedos, tutoriais, historinhas, suas rotinas, receitas e afins. Como de costume, marcas
convidam os youtubers-mirins para participarem de eventos e testarem seus produtos,
ocasionando assim uma interação e reconhecimento entre público-alvo, marca e a figura
pública. Outra prática realizada pelos geradores de conteúdo é a realização de vídeos
intitulados “recebidos do mês”, onde abrem presentes de diversas marcas e apresentam o

578
produto para os espectadores. Alguns dos vídeos são, inclusive, patrocinados por tais
empresas.
Ao estudarem o alcance de tais conteúdos, por um outro viés, os pesquisadores
Andrade e Pischetola (2016) mencionam que as mídias sociais e a internet trouxeram
mudanças substanciais em todas as esferas da vida humana e podem se tornar, também, um
ambiente para expressar o ódio. Para os autores, isso acontece principalmente por causa de
três fatores: um suposto anonimato; a ausência de uma figura humana presencial e, por fim, o
isolamento no ato da construção de raciocínios argumentativos.
Dessa maneira, ao disponibilizarem seus vídeos de modo público, os youtubers-
mirins, apesar de serem crianças, também estão expostos a sofrer comentários maldosos que
caracterizam uma parcela das conversações em rede.

A IDENTIDADE DAS MULHERES NEGRAS NO YOUTUBE E A


TENTATIVA DE SILENCIAMENTO

No Youtube, a presença de produtoras de conteúdo capazes de comunicar-se com seus


nichos e além, a partir de temas, abordagens e formatos diversos, amplia vozes que nem
sempre puderam ser ouvidas. Desse modo, o ambiente online proporciona uma expansão
desses discursos. Para Souza (2018), “cabelos, maquiagem e beleza são assuntos fortes [...]
que apontam a questão da estética negra como agenciadora da construção de identidade”
(SOUZA, 2018, p.109).
No Brasil, os cabelos carregam um amplo significado e atuam como um importante
meio de construção de identidade. Segundo King (2015, p.8) "os cabelos são considerados
em diversas culturas como elementos marcantes da construção da beleza feminina",
fornecendo informações sobre as características de cada indivíduo. Para Santos (2014), por
sua vez, o cabelo como parte de um corpo social, pode ser utilizado para melhor compreensão
das relações entre o negro e a sociedade. Além de compor o marco pessoal, no entanto, serve
para incluir ou excluir um indivíduo de um grupo social.
No ponto de vista do consumo, o cabelo é uma das partes do corpo humano que mais
recebe atenção quanto aos cuidados estéticos. Para Santana (2014), isso ocorre porque o
cabelo ocupa posição central na sociabilidade das mulheres. Segundo a autora, “a forma

579
como é retratado na mídia impressa e nas redes sociais pode reforçar padrões de dominação
ou apoiar estratégias de acomodação e resistência a tais padrões” (SANTANA, 2014, p.132).
Ao analisar a construção da identidade da mulher negra na plataforma Youtube, Souza
(2018) aponta que a participação feminina tem sido uma forma de resistência e de afirmação
do seu lugar como ser humano. Ao aproximar a discussão dos discursos de ódio observados
na internet com a questão apresentada é possível perceber uma relação já que para a autora,
“com a hegemonia branca, houve um certo silenciamento e uma tendência a ver o negro
como feio” (SOUZA, 2018, p.109).
Segundo Andrade e Pischetola (2016), conceituar o ódio não é algo fácil pois, por um
lado, o sentimento é visto como raiva ou expressão de violência. Já em outra face, é
entendido como o contrário do amor ou como uma incapacidade de amar. No entanto, para
Glucksmann (2007, p. 15 apud Andrade e Pischetola 2016), o ódio não é um fenômeno
irracional, restrito ao campo dos sentimentos obscuros, mas sim um “discurso”. Segundo os
autores, desse modo, “o ódio é uma expressão articulada, intencional e preparada por meio de
uma linguagem verbal”. (ANDRADE; PISCHETOLA, 2016, p. 1380).
Em seus estudos sobre a questão, Glucksmann (2007, p. 265-270 apud Andrade e
Pischetola 2016) apresenta algumas conclusões sobre o ódio como discurso. Entre as
descobertas do autor estão as de que: o ódio se camufla, reveste-se de falsos álibis que o
justifiquem; o ódio é insaciável, desencadeia uma onda argumentativa sem trégua e não
admite o diálogo com os diferentes; o ódio se nutre de sua devoração, é um discurso
ensimesmado, que repete sua lógica interna à exaustão, sem diálogos ou empatias com
aqueles que pensam diferente.
Desse modo, a internet se apresenta como um ambiente propício para a proliferação
de discursos de ódio, como será visto a partir da apresentação daquilo que aconteceu com
uma menina negra de apenas 11 anos de idade: Ana Clara Barbosa, que possui um canal na
plataforma Youtube desde de 2016.

ANA CLARA BARBOSA: DISCURSO DE ÓDIO X REDE DE APOIO

Em sua conta, a youtuber-mirim Ana Clara compartilha vídeos de sua rotina, desde
vídeos de tutoriais de maquiagem até brincadeiras. Em maio de 2018, a criança passou por

580
uma tentativa de silenciamento por meio da enxurrada de mensagens de ódio que recebeu em
um dos seus vídeos, com comentários preconceituosos em relação a seu cabelo crespo e sua
cor negra. (Figura 01)
Figura 01- Comentários ofensivos na canal de Ana Clara

Fonte: reprodução Youtube 5


Conforme podemos ver nas imagens, os discursos proferidos por usuários da
plataforma ressaltam ofensas à youtuber-mirim ou ainda se mostram como falas
preconceituosas, mas que são camufladas de elogios: “Seu cabelo não é cacheado aff seu
cabelo e crespo, duro Mas vc é fofa (sic) ”; ou ainda “Oooooi florzinha, tudo bom? Então, o
seu cabelo não eh cacheado ele eh crespo Mais muito lindo (sic) Outra coisa franja só tem
quem tem cabelo liso ou encaracolado quem não possuem franjas são as crespas ou
encaracoladas Eu sou cacheada que tal fazer um Black Power vai ficar lindona bjos e sucesso
para o seu canal”.
Desse modo, é possível perceber que o preconceito em relação à estética da identidade
negra ainda está longe de se extinguir no Brasil. Os negros ainda são sub-representados e
quando representados, ocupam papéis de servidão. Ou seja, na mídia são mostrados como
empregadas domésticas, marginais, entre outros. Viana e Belmiro (2018) apresentam o
conceito de “eixos de discriminação” (Crensham (2002) apud VIANA; BELMIRO 2018)
que, por meio de metáforas, explica de que maneira a mulher negra é atingida por múltiplas
formas de exclusão articuladas. Nesta perspectiva, as pessoas de pele escura e de cabelos
5
Disponível em: <http://www.eqso.com.br/noticias/62177-
youtuberde11anosuohostilizadacomcomentuariosracistas >. Acesso em: 4 de outubro de 2018

581
crespos foram tidas, historicamente como feias, por conta da naturalização da ideia de uma
beleza branca e de cabelos lisos. Para Souza (2018), “o padrão branco ainda é visto como
ideal de beleza, mas esses discursos e presenças dessas e outras pessoas negras colaboram
para a subversão dessa ideia” (SOUZA, 2018, p.109). Como se percebe no objeto analisado,
muitos dos comentários racistas associam-se ao fenótipo de Ana Clara.
Tendo em vista esses dados e informações, os comentários direcionados a Ana Clara,
ganharam visibilidade em rede. Se por um lado, o discurso de ódio mostrou-se mais uma vez
presente, por outro, o fato desencadeou o surgimento de uma rede de apoio que gerou, por
meio de uma mobilização digital, diversos compartilhamentos, e um crescimento exponencial
no canal da youtuber.
Toro (2011) afirma que a mobilização acontece “quando um grupo de pessoas, uma
comunidade ou uma sociedade age em busca de um objetivo comum, resultados decididos e
desejados por todos” (TORO, 2011, p. 5). Ou seja, a internet como meio de interação e
aproximação interpessoal é capaz de promover mobilizações sociais em torno de uma
determinada causa, seja ela política, religiosa, econômica ou cultural. Para tanto, segundo o
autor, é preciso que o agente mobilizador tenha em seu alcance duas ‘armas’ da comunicação
a seu favor: uma boa argumentação e um público que se identifique com a causa.
Em dois meses, ocorreu uma verdadeira mobilização nas redes em prol de Ana Clara,
que passou de cerca de mil inscritos para 20.000 e os números continuaram crescendo
(VIANA; BELMIRO, 2018). Além deste crescimento, famosos também se comoveram e
deixaram comentários positivos no canal, funcionando como verdadeiros agentes
mobilizadores da causa.Um destes famosos foi o Whindersson Nunes, o youtuber brasileiro
com o maior número de inscritos em seu canal (Figura 02)
Figura 02- Comentário de Whindersson Nunes no canal de Ana Clara
Fonte: reprodução Youtube 6

4
Disponível em: <http://www.eqso.com.br/noticias/62177-
youtuberde11anosuohostilizadacomcomentuariosracistas >. Acesso em: 4 de outubro de 2018

582
Foi a partir da visibilidade dada ao caso, por meio da comoção e compartilhamento,
que a marca de cosméticos Salon Line entrou em contato com a menina via rede social por
meio de uma mensagem em sua rede social. (Figura 03).

Figura 03. Mensagem da marca Salon Line no canal da Ana Clara

Fonte: reprodução Youtube 7


ANÁLISE - A ENTRADA DA SALON LINE EM CENA: APROXIMAÇÃO DA
MARCA

A marca de cosméticos Salon Line surgiu originalmente com produtos destinados a


cabelos quimicamente tratados, visando adequá-los ao padrão imposto pela sociedade. Em
2014, no entanto, a empresa lançou a marca #todecacho, com um seguimento de produtos
voltados aos cabelos cacheados, sem nenhum componente que pudesse alterar os fios. E,
desde então, a marca cresceu e possui linhas direcionadas ao público masculino e infantil que
possuem cabelos cacheados ou crespos.
A marca utiliza, desde a sua entrada no mercado, as redes sociais como uma vitrine
para a venda, mesmo que indiretamente uma vez que utiliza as plataformas digitais para falar
com seu público-alvo. As postagens que a marca realiza em suas contas, nas mais diversas
redes sociais em que está presente, seguem um padrão de identidade visual e trazem em seus
discursos o incentivo ao empoderamento dos cabelos cacheados/crespos. Por meio desse

7
Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2018/05/youtuber-negra-de-11-anos-recebe-enxurrada-de-
posts-racistas-mas-internet-se-une-para-ajuda-la/ >. Acesso em: 4 de outubro de 2018

583
posicionamento, a Salon Line busca, assim, aproximar-se dos seus consumidores acarretando
um engajamento maior do público com a marca.
Segundo o dicionário Michaelis (2015), engajamento ou engajar-se pode significar
luta por ideais (principalmente políticos, sociais e filosóficos), alinhamento a alguma ordem
de ideias ou envolvimento ativo com questões políticas. Desse modo, para Grohmann (2018),
as pesquisas em comunicação usam engajamento como uma expressão para nomear as
atividades dos sujeitos em processos comunicacionais que impactam principalmente os
exemplos de “engajamento de público” e “consumidores engajados”. (GROHMANN, 2018).
Nesse sentido, a noção de engajamento de fãs se tornou uma das estratégias de
comunicação mais eficazes nas redes sociais. No dia 28 de maio de 2018, por exemplo, a
marca de Cosméticos Salon Line divulgou em seus perfis no Facebook e no Instagram uma
ação juntamente a Amanda Mendes, que atualmente é uma das embaixadoras de cabelo
crespo da marca, em que Ana Clara é recebida na sede da Salon Line. (Figura 04)

Figura 04- Ação da Salon Line juntamente com Ana Clara

Fonte: extração Facebook 8

Na mesma época, foi veiculado no canal da youtuber-mirim um vídeo de 3 minutos e


17 segundos em que é apresentado um pouco de como foi o dia de Ana Clara com a marca.
Nota-se que edição do vídeo foi realizada por uma equipe de profissionais da marca, pois a

8
Disponível em: <https://www.inteligemcia.com.br/comentarios-preconceituosos-resultam-em-nova-garota-
propaganda-para-a-salon-line/>. Acesso em: 16 de outubro de 2018

584
identidade visual do vídeo é a mesma utilizada pelas contas oficiais da Salon Line. A estética
desse vídeo é bastante diferente dos vídeos amadores postados por Ana Clara em seu canal no
Youtube, antes de ganhar notoriedade e chamar atenção da marca.
Pode-se perceber que a atual garota-propaganda da marca Salon Line teve um
treinamento de práticas no Youtube, oferecido pela marca de cosméticos, uma vez que
durante o vídeo são mostradas cenas em que a menina aparece assistindo a uns slides onde lê-
se: “Boas práticas no YouTube”. (Figura 05).

Figura 05- Vídeo postado no canal de Ana Clara Barbosa

Fonte: extração Youtube 9

Além do treinamento oferecido, a youtuber recebeu cuidados de tratamento capilar e


uma sessão de fotos com a linha de produtos Kids. (Figura 06)
Figura 06- Post da ação da Salon Line com Ana Clara

6
Disponível em: :< https://www.instagram.com/p/BjIsvX5Bb62/>. Acesso em: 16 de setembro de 2018
7
Disponível em:< https://www.youtube.com/channel/UCTnSqM8I_s7JDDJeQJJm2nQ/featured>. Acesso em:
28 de outubro de 2018

585
Fonte: Instagram6

Após esta ação, a marca não fez nenhuma divulgação ou postagem referindo-se a Ana
Clara. Somente no dia 06 de setembro, após três meses, a marca divulgou nas redes sociais
oficiais uma postagem anunciando Ana Clara Barbosa como primeira embaixadora Kids da
linha de produtos voltadas para o público infantil. (Figura 07).

Figura 07- Pots anunciando Ana Clara como a nova embaixadora da linha Kids

Fonte: extração Facebook 10

A divulgação aconteceu na maior feira nacional voltada para cabelos crespos,


cacheados e lisos, a Beauty Fair. Nesta feira, que acontece em São Paulo todos os anos,
marcas diversas apresentam lançamentos em estandes e o evento é aberto para visitação do
público.
Por meio dessas ações, a marca teve um engajamento benéfico com os internautas,
com um número significativo de comentários positivos nas postagens publicadas em ambas
plataformas digitais, Facebook e Instagram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Disponível
10
em:
<https://www.facebook.com/salonline/photos/a.247340338635837/1865116206858234/?type=3&theater>.
Acesso em: 16 de setembro de 2018

586
O presente estudo teve como objetivo compreender como a marca de cosméticos
Salon Line se aproximou da youtuber-mirim Ana Clara Barbosa e quais estratégias foram
utilizadas para divulgar a sua linha infantil.
Sabe-se que o Brasil é um país com 53% da população constituída por negros e pardos
(IBGE, 2014) no entanto, presenciamos fatos contraditórios. Visto que a maioria da
população é composta por negros, um número significativo em relação a outras etnias, não se
vê ainda uma representatividade nos meios comunicacionais, e quando representados, sofrem
ataques preconceituoso, ferindo assim, a moral dos mesmos. Portanto, este é um estudo no
sentido de pensar práticas da Publicidade contemporânea em um momento no qual o discurso
da diversidade não pode mais ser ignorado pelas mídias e marcas no Brasil.
Acreditamos que a internet e as redes sociais possibilitam a promoção de mudanças
nas maneiras de interação entre o público e um determinado segmento de nicho, fazendo-se
assim, com que as marcas consigam definir mais facilmente seu público alvo e criando deste
modo, uma “relação” entre ambas as partes. Por esta condição, vem à tona um processo que
dá visibilidade e investe não apenas na figura feminina, por exemplo, como no poder de
escolha, muitas vezes negado a ela. Junto à progressiva corrente do feminismo, a expressão
do empoderamento aparece trazendo reflexões e inserções de novas políticas voltadas às
mulheres e que refletem, também, no discurso da mídia acerca delas. O feminismo, desse
modo, é um movimento social-político que está, tardiamente, em andamento no Brasil.
Quaisquer que sejam as marcas que não fazem parte dessa mobilização, está fadada a ser
duramente criticada pela sociedade
A marca de cosméticos Salon Line foi uma das marcas a levantar bandeira em relação
ao racismo e ao empoderamento das cacheadas e crespas quando comentou no vídeo da
youtuber Ana Clara Barbosa que, como foi visto, sofreu ataques em seu canal no Youtube.
Com uma ação direcionada, a Salon Line agradou pessoas anônimas, que antes não
consumiam seus produtos e tampouco sabiam da existência da marca no mercado, e manteve
uma coerência discursiva.
Visando tudo o que foi apresentado neste artigo, consideramos que as marcas estão se
humanizando, ou seja, estão levantando bandeiras em prol de causas que antes não eram
reconhecidas e, ao se posicionarem dessa forma, criam também uma forma de combater ao
crescente discurso de ódio, observado nas redes.

587
REFERÊNCIAS

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diferença como letramento midiático e informacional na aprendizagem. São Paulo: PUC,
2016.

GROHMANN, Rafael. A noção de Engajamento: sentido e armadilhas para a pesquisa


em comunicação. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 25, n. 3, p, 1-17, setembro, novembro e
dezembro de 2018.

KING, Ananda Melo. Os cabelos como fruto do que brota de nossas cabeças. Geledés
Instituto da Mulher Negra, 2015. Acesso em: 5 mai. 2018.

LIMA, Antonia; LIMA, Rejane de Sousa; CAJAZEIRA, Paulo Eduardo Lins. A reinvenção
da publicidade infantil nas mídias digitais: analise de caso de youtubers mirins.
ARTIGO cientifico Universidade de Federal do Cariri, Juazeiro do Norte, CE, 2016

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Disponível em: <https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2015/08/Mulher-cabelo-e-
m%C3%ADdia.pdf>. Acesso em: 18/09/2017.

SANTOS, Nádia Regina Braga dos. DO BLACK POWER AO CABELO CRESPO A


CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA ATRAVÉS DO CABELO. Disponível em:
<http://myrtus.uspnet.usp.br/celacc/sites/default/files/media/tcc/artigo_nadia.pdf>. Acesso
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SOUZA, Dayana. Que voz é essa? Identidade e narrativa da mulher negra no Youtube. In:
Estudando cultura e comunicação com as mídias sociais. 2018.

588
TORO, Bernardo. Mobilização Social: um modo de construir a democracia e a
participação. Edição: 1 Coleções: comunicação e mobilização. Autêntica, 2007.

VIANA, Pablo Moreno Fernandes; BELMIRO, Dalila Maria Musa. Consumo e Cidadania:
Todecachinho e midiatização do racismo brasileiro. Belo Horizonte: PUC, 2018.

589
A COMUNICAÇÃO DIALÓGICA NA PÁGINA DO FACEBOOK
DAS ONGS ANIMAL E CLUBE DOS VIRA-LATAS: 1
estudo comparativo entre Brasil e Portugal
THE DIALOGIC COMMUNICATION ON ANIMAL AND
CLUBE DOS VIRA-LATAS NGOS FACEBOOK PAGE:
comparative study between Brazil and Portugal
Carla Niz 2
Ana Leonor Morais Santos 3

Resumo: A evolução da comunicação no contexto digital fez com que empresas e


organizações repensassem nas estratégias de comunicação e se adaptassem aos
novos meios online, considerando a influência que as redes sociais têm na
sociedade. Com este artigo pretende-se analisar se as ONGs de proteção à causa
animal utilizam suas páginas do Facebook como canal de comunicação para criar
relacionamento entre organização e público, através do diálogo e da interação,
para atingirem seus objetivos. Para isso foi preciso investigar e identificar quais as
ferramentas dialógicas utilizadas na página do Facebook da Animal e Clube dos
Vira-Latas, a fim de avaliar a comunicação realizada por essas ONGs e fazer o
comparativo entre Portugal e no Brasil.
Como abordagem metodológica, foi efetuada a análise quantitativa e qualitativa
através de uma análise de conteúdo, baseada nos princípios dialógicos de Kent &
Taylor, nas fanpages das ONGs selecionadas, concluindo-se a necessidade em
desenvolver o aprimoramento das potencialidades dialógicas das páginas.

Palavras-Chave: Organizações Não-Governamentais. Facebook. Relações


públicas. Comunicação dialógica. Princípios dialógicos.

Introdução
O presente artigo é apenas uma parte da dissertação de mestrado de comunicação
estratégica, defendido no ano de 2017.
As redes sociais acabaram por se tornar uma grande aliada das necessidades da
comunicação de organizações sem fins lucrativos; o Facebook por exemplo, conta com mais
de 2 bilhões de usuários ativos na rede, de acordo com o site Terra (2017, junho 27). Surge,
então, a possibilidade das organizações se aproximarem, criarem diálogo e interagirem com

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho GT7 Comunicação, Convergência e Cultura Midiática do 3º.
CONEC: Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de
outubro de 2018.
2
Carla Niz: Mestre em Comunicação Estratégica, carlaniz@hotmail.com.
3
Ana Leonor Morais Santos: UBI/LabCom.IF, Doutora em Filosofia, amorais@ubi.pt.

590
os seus públicos, bem como divulgarem e recolherem informações sobre produtos ou
serviços prestados, colaborando para a captação de recursos, além de difundir sua imagem.
Tomar conta de um perfil empresarial pode não ser uma tarefa fácil e, apesar de ainda
não existir uma maneira certa para ajudar as organizações a gerenciarem sua página nas redes
sociais, pesquisas anteriores sobre o desenvolvimento de relacionamento online oferecem
informações sobre como essas redes devem ser usadas para promover o crescimento e
estreitar o relacionamento com o público. Eis que surge o profissional de relações públicas,
com um importante papel na gestão do processo comunicacional dentro desse novo contexto
digital, exercendo a função de um agente propulsor na construção da opinião, trabalhando a
imagem da organização, promovendo o diálogo e criando relacionamentos duradouros com o
público dentro das redes sociais.
Diante deste cenário, apresenta-se o objetivo deste estudo, que é compreender o papel
das redes sociais, especificamente o Facebook que possui uma plataforma gratuita, para as
organizações do Terceiro Setor, em particular as ONGs de proteção à causa animal, a fim de
perceber se essas organizações estão a adaptar a sua comunicação às novas tecnologias de
informação, para chegar até ao seu público-alvo. Com isso, surge o tema deste estudo, o qual
se centra em analisar a importância da utilização da comunicação dialógica para os processos
comunicacionais de Organizações Não-Governamentais, sustentado pela perspectiva
dialógica das relações públicas.
O foco deste trabalho são as fanpages das ONGs Animal (Portugal) e Clube dos Vira-
Latas (Brasil), consideradas um meio de comunicação que aproxima o público da ONG,
tornando-o um possível colaborador da causa. Dessa forma, este estudo centrou-se na
identificação e análise da utilização das ferramentas de comunicação dialógica em ambas as
páginas e avaliação das abordagens estratégicas das ONGs em Portugal e no Brasil. Assim, a
pergunta que orientará o presente estudo é a seguinte: As ONGs Animal e Clube dos Vira-
Latas estão sabendo empregar as ferramentas de comunicação dialógica em suas páginas do
Facebook, criando um espaço para a construção de relacionamento com o seu público?

1. Desafios Enfrentados pelas Organizações Sem Fins Lucrativos

Para descrever os desafios enfrentados pelo pelas organizações sem Fins Lucrativos, é
imprescindível conceituar o que é Terceiro Setor.

591
Para SALVATORE (2004), o Terceiro Setor:

Consiste no conjunto de actividades de organizações da sociedade civil, criadas


pela iniciativa de cidadãos que têm como objectivo prestar serviços públicos, seja
na saúde, na educação, na cultura, nos direitos humanos, na habitação, na protecção
do ambiente, no desenvolvimento local, ou no desenvolvimento pessoal
(SALVATORE apud VILTOLINI, 2004, p. 27).

A partir de agora destacaremos alguns dos principais obstáculos enfrentados pelas


organizações sem fins lucrativos. Para JACQUES (2010), em virtude do crescimento do setor
sem fins lucrativos e da diminuição das contribuições públicas, essas organizações acabam
por ter de competir entre si para atrair e reter doadores, surgindo, assim, uma nova dinâmica
na obtenção de donativos.
Enquanto isso, QUINTEIRO (2006) aborda a questão da profissionalização do serviço
de voluntariado, como um importante fator de crescimento consolidado para o Terceiro Setor.
Para a autora, os profissionais que trabalham como voluntários precisam de ter um
envolvimento e comprometimento com a causa e, além disso, a ONG deve-lhes cobrar o
profissionalismo da atividade que desenvolvem, assim como a concretização de metas.
Outro desafio a ser enfrentado pelas organizações sem fins lucrativos é o cuidado com
a identidade visual. Segundo VIEBIG (2006, p.88), as ONGs fazem comunicação, mas não
dão importância à identidade visual e isso acaba por implicar diretamente na formação da
imagem da instituição. Ela afirma que “a falta de clareza na comunicação visual de um
empreendimento reflete uma confusão na exposição de ideias, bem como na formação de
conceitos, comprometendo o sucesso nos negócios”. De acordo com a autora, uma proposta
de comunicação visual envolve a definição dos princípios organizacionais da instituição,
como a criação do manual de utilização do logotipo e padronização da utilização da marca.
Para MANZIONE (2006), o Terceiro Setor deve-se concentrar na comunicação
institucional. Uma vez que o seu principal objetivo é captar recursos financeiros para a
realização de projetos, é necessário fazer-se um trabalho de comunicação direcionado para a
credibilidade da organização, pois é isso que vai lhe garantir recursos.
Ao comparar as afirmações dos autores, sobre quais são os desafios a serem
enfrentados pelas organizações sem fins lucrativos, percebe-se que os assuntos estão
relacionados à gestão e comunicação.

592
Segundo KUNSCH, “a comunicação é imprescindível para qualquer organização
social. O sistema organizacional se viabiliza graças ao sistema de comunicação nele
existente, que permitirá sua realimentação e sua sobrevivência. Caso contrário, ele entrará
num processo de entropia e morte” (1986, p.29). Em suma, pode-se afirmar que uma
comunicação bem desempenhada é capaz de trazer benefícios para qualquer organização;
conhecer o público-alvo, criar estratégias, ter uma boa reputação e uma boa imagem, são
apenas algumas estratégias competitivas para sobreviver em meio a concorrência.

2. O uso das Redes Sociais no terceiro setor


Por ser um fenômeno da atualidade, as redes sociais tornaram-se objeto de estudo de
vários autores que estão à procura de compreender melhor seu impacto para nossa sociedade.
Para RECUERO (2012), o grande sucesso das Redes Sociais deve-se à web 2.0, que expandiu
a capacidade de interação entre os usuários. É fato que estes sites têm provocado um grande
impacto para a sociedade moderna, modificando a maneira como se comportam e se
relacionam, por isso precisamos de pensar em como esse processo tecnológico está
(re)construindo sentidos e significados, como essa interação em rede está a mudar nosso
modo de ser e agir. Para as organizações sem fins lucrativos, que não têm verba para
investirem, essas redes tornaram-se aliadas na busca por públicos que têm os mesmos
interesses.
Atualmente, existem diversas redes sociais com as mais variadas finalidades. Para este
artigo iremos abordar apenas o Facebook, levando em consideração que a análise deste
trabalho baseou-se nas funcionalidades dessa rede, mais especificamente das páginas
empresariais. O perfil empresarial do Facebook é uma página criada para empresas,
instituições privadas ou públicas, e para quaisquer tipos de empreendimentos ou negócios,
além de ser gratuita.
As autoras KANTER e FINE (2011), na sua obra Mídias Sociais Transformadoras,
dissertam sobre como as ferramentas digitais proporcionaram visibilidade e mudanças
significativas na qualidade de vida de determinados grupos sociais.

(...) as ferramentas de mídias sociais essenciais às organizações sem fins lucrativos


caem em uma das três categorias gerais de uso: Iniciadores de conversações como
Blogs, Youtube e Twitter; Ferramentas de colaboração incluindo Wikis e Google
Groups. Criadores de redes como sites de redes sociais, por exemplo, Facebook,
MySpace e Twitter (KANTER e FINE, 2011, p. 6).

593
No entanto, cabe ressaltar que a criação de um perfil na rede social não é sinônimo de
sucesso, seja essa organização privada ou de cunho social. Para que o sucesso aconteça é
preciso saber gerenciar as suas ferramentas de maneira eficaz, por isso, contratar um
profissional que possua conhecimento de comunicação, da plataforma e de suas ferramentas,
poderá contribuir para que haja interação entre a organização e o público, auxiliando no
alcance dos seus objetivos.
Com este estudo buscamos absorver informações sobre as razões por que as redes
sociais são importantes para o Terceiro Setor. Por isso, apresentamos alguns dados sobre o
número de usuários nas redes sociais em Portugal e no Brasil.
O uso das redes sociais em Portugal triplicou nos últimos sete anos de acordo com os
dados apresentados pela empresa Marktest Consulting em 2016. De acordo com Esperança
Afonso, responsável pelo estudo da Marktest, o número de utilizadores de redes sociais em
Portugal cresceu de 17,1% para 54,8%". O número de pessoas ativas nas redes sociais em
Portugal é de 6,10 milhões e o Facebook é a rede social mais acessada pelos Portugueses,
com 64%. No Brasil, os dados sobre os usuários são de acordo com a pesquisa do We Are
Social, disponível no site Digital in (2016). Realizada ao longo do último trimestre de 2015, a
pesquisa aponta que uma média de 45% da população brasileira está ativa em redes sociais
em geral. O Facebook é uma das redes sociais mais acessada pelos brasileiros, com um total
de 103 milhões de usuários, sendo que 54% do público é do gênero feminino.
Conforme os dados apresentados, podemos perceber que atualmente a maioria da
população está presente nas mídias sociais, e as organizações do Terceiro Setor que não se
encontram inseridas neste contexto digital acabam por perder espaço e oportunidade de
interação. Na visão dos relações públicas, o fato de as organizações estarem inseridas dentro
de novas mídias, de forma refletida e profissional, tem sido um fator de extrema importância,
seja por meio de um website institucional, seja por uso das redes sociais (GONÇALVES &
ELIAS, 2013).

3. Comunicação Dialógica
A comunicação dialógica no ambiente online pode ser entendida como qualquer
negociação, troca de ideias e opiniões que pode acontecer entre dois ou mais indivíduos,
como por exemplo entre cliente e empresa. Devido à natureza da comunicação dialógica e à

594
sua ênfase num processo de comunicação negociada, é considerada como uma forma mais
ética de conduzir o diálogo público e de se fazer relações públicas (KENT & TAYLOR,
1998). De acordo com KENT & TAYLOR (1998) as relações entre públicos e organizações
podem ser criadas, adaptadas e transformadas através da internet, isso porque existem
diversos recursos para a construção de websites com visual atraente e economicamente bem-
sucedidos.
Em vista disso, os autores abordam a importância de utilizar as características
específicas da Web para criar, adaptar e mudar as relações entre as organizações e os seus
públicos. Para isso, KENT & TAYLOR (1998) sugerem cinco princípios que funcionam
como um guia para a criação e o estabelecimento de um diálogo de sucesso com o público,
são eles: Utilidade da Informação: Função referente aos conteúdos, mensagens e informações
que possam ter valor para o público; Loop Dialógico: Função que promove a interatividade,
permite a troca e o compartilhamento de informações entre público e organização, dando
destaque a relevância do feedback na construção de relacionamento com o público; Gerar
Retorno de Visitas: Esta função refere-se à existência de conteúdos que levam o público para
a repetição da visita à página; Facilidade de Navegação: Esta função define se existe
facilidade de acesso, navegação e procura da informação dentro da plataforma analisada;
Conservação das Visitas: Esta função permite manter o visitante na página 4. Cada um desses
princípios atua na qualidade da interação que há entre visitante e empresa analisada, e gera
uma série de fatores que servem de subsídio para uma análise não apenas do site de uma
empresa, mas de qualquer ambiente online, inclusive de redes sociais, como por exemplo,
Facebook, Twitter, Instagram, entre outros que atualmente está a ser mais utilizado que
websites. Os cinco princípios apresentados serão utilizados como base para a análise da
comunicação dialógica das páginas selecionadas para este estudo.

4. Sobre as ONG’s
Animal é uma organização portuguesa não-governamental e sem fins lucrativos, que
trabalha em defesa dos direitos fundamentais dos animais não-humanos. Esta ONG foi
fundada na cidade do Porto, por Arthur Mendes, em 4 de dezembro de 1994. A ONG Animal

4
Tradução nossa:
Usefulness of Information, Dialogic Loop, Generation of Return Visits, The Intuitiveness/Ease of the Interface
and Rule of Conservation of Visitors.

595
está presente na web através do seu website e das redes sociais Facebook, YouTube, Twitter e
Instagram, Atualmente possui grande influência na rede, com mais de 100 mil seguidores
(informação de acordo com a data da análise deste trabalho) As informações aqui
apresentadas sobre a ONG Animal 5 encontram-se disponíveis em seu website e na sua página
do Facebook 6.
O Clube dos Vira-Latas é a maior organização não governamental, sem fins
lucrativos, de cuidado animal do Brasil. Foi fundada em 2001 e desde então já contabilizou
mais de 9000 adoções. Mantém ao seu abrigo mais de 500 animais, que são cuidados e
alimentados diariamente. A ONG faz-se presente no Facebook desde o início de março de
2010. Atualmente possui grande influência na rede, com mais de 600 mil seguidores
(informação de acordo com a data da análise deste trabalho), além de suas publicações
alcançarem uma grande repercussão nacional. A ONG também possui perfis em outras redes,
como Twitter, Instagram e YouTube, além de aparecer bastante na mídia. As informações
aqui apresentadas sobre a ONG Clube dos Vira-Latas 7 encontram-se disponíveis em seu
website e na sua página do Facebook 8.

5. Metodologia
A escolha da amostra deu-se a partir de uma pesquisa realizada pela web durante a
primeira semana de setembro de 2016, em busca das ONGs de proteção à causa animal que
possuíssem maior relevância nas redes sociais.
Foram escolhidas a Animal (Portugal) e o Clube dos Vira-Latas (Brasil), levando em
consideração que essas eram as páginas que mais possuíam seguidores nos seus respetivos
países, aquando da data da pesquisa. O tempo da análise foi escolhido pensando num período
que fosse representativo para ambos os países, de forma que pudéssemos compreender como
as organizações se comportam nas suas páginas em cada país. O mês de outubro compreende
o dia mundial dos animais, já o mês de novembro foi escolhido para percebermos como
costumam agir num período considerado “comum”, pois não havia nenhuma data

5
Informações sobre a ONG Animal, disponível em: http://animal.org.pt/sobre_animal/. Acesso em 24-04-2017.
6
Informações no Facebook da ONG Animal, disponível em:
https://www.facebook.com/pg/ONGANIMAL/about/?ref=page_internal. Acesso em 24-04-2017.
7
Informações sobre Clube dos Vira-Latas, disponível em: http://www.clubedosviralatas.org.br/o-clube. Acesso
em: 24-04-2017.
8
Informações no Facebook da ONG Clube dos Vira-Latas, disponível em:
https://www.facebook.com/pg/ClubeDosViraLatas/about/?ref=page_internal. Acesso em: 24-04-2017

596
comemorativa durante esse mês; dezembro foi escolhido por ser o mês do Natal, uma época
do ano em que a solidariedade se encontra mais estimulada nas pessoas.
A recolha de dados para esta análise possui uma abordagem qualitativa, que de acordo
com VERGARA (2005, p.15), nada mais é do que uma técnica para o tratamento de dados
que visa identificar o que está sendo dito a respeito de determinado tema, porém este estudo
necessitou de uma análise quantitativa a fim de quantificar quais os princípios com maior e
menor adoção. Para a realização da análise de conteúdo tomamos por base os conceitos de
análise dialógica de KENT & TAYLOR (1998; 2001). Os cinco princípios em análise foram
operacionalizados em 58 critérios de avaliação. Os critérios escolhidos correspondem a todas
as ferramentas que a plataforma Facebook disponibiliza para a criação de uma página,
conforme estudo realizado; no entanto irá considerar-se o fato de que todas as ferramentas
disponíveis na plataforma sejam empregadas.
Os dados recolhidos foram registrados no programa Excel, software da Microsoft,
através de duas variáveis, sendo cada um dos itens pontuado com o símbolo ✓ para
“presente” e Ø para “não presente”.
Para tornar mais compreensível a investigação, será analisada, separadamente, cada
uma das páginas e posteriormente será feita uma síntese geral, com o objetivo de percebemos
as semelhanças e diferenças entre as ferramentas utilizadas nas páginas das organizações, e
por fim será apresentada uma comparação dos resultados entre as ONGs dos dois países.

6. Resultados
Após a coleta dos dados foi possível olhar para os resultados recolhidos no âmbito da
análise de conteúdo, feita nas páginas das duas ONGs, para responder à questão de pesquisa e
compreender se as organizações adotam os cinco princípios dialógicos nas suas páginas, e
perceber se existem diferenças na comunicação feita por elas. Abaixo, na tabela 1,
apresentam-se os números e percentagens dos princípios adotados:
Tabela1: Adoção dos princípios dialógicos nas páginas Animal (Portugal) e
Clube dos Vira-Latas (Brasil).

Princípios
ONG Animal (Portugal) Clube dos Vira-Latas
Dialógicos

597
Não % %
Presente Presente Não presente
presente Presente Presente
Utilidade da
10 6 62,5% 12 4 75,0%
Informação
Loop dialógico 10 7 58,8% 13 4 76,5%
Conservação de
7 3 70,0% 4 6 40,0%
Visitas
Facilidade de
8 0 100% 5 2 71,4%
navegação
Gerar Retorno de
6 1 85,7% 3 4 42,9%
visita

Em síntese à análise quantitativa da adoção dos princípios dialógicos, os resultados


revelam que todos estão presentes em ambas as páginas analisadas, entretanto nota-se que
existe diferença em sua utilização, conforme se vê na tabela abaixo:
Tabela2: Análise dialógica comparativa entre as Página Animal (Portugal) e
Clube dos Vira-Latas (Brasil).

Na análise da fanpage Portuguesa Animal, os itens com maiores indicadores foram o


da facilidade de navegação, que alcançou os 100%, sendo esse o princípio que obteve melhor
utilização na página. Em segundo lugar ficou o item “gerar retorno de visita”, com média de
85,7%. Em terceiro o item “conservação de visitas”, com média de 70%. No item “facilidade
de navegação” percebe-se que a página supre as necessidades de seus seguidores, que podem

598
acessar a página e conseguir facilmente descobrir suas facilidades de navegação, passando a
ser um visitante frequente. Cabe ressaltar que na plataforma Facebook é mais fácil a
navegação do que em websites, isso porque a rede social possui padrões; um exemplo é o
tempo de carregamento de imagem: no Facebook existe um sistema de compactação de
imagens que faz com que a sua qualidade seja reduzida automaticamente ao fazer o upload.
Isso é feito para que suas imagens sejam carregadas de forma rápida, diferente de um
website, no qual o seu desenvolvedor é quem dever tomar cuidado para não pôr imagens
muito pesadas que demoram a ser carregadas. O segundo princípio com maior presença na
página da Animal é o gerar retorno de visitas, que com a ajuda da facilidade de navegação faz
com que o utilizador passe a ser um visitante frequente, fazendo com que essa ação gere
retorno de visitas conservando-o em sua página. O terceiro é a conservação de visitas, que
como se pode perceber está ligado aos outros princípios, realçando a importância da
comunicação dialógica como um todo.
Na análise da fanpage brasileira Clube dos Vira-Latas, os itens mais presentes foram
o loop dialógico, em primeiro, com média de 76,5%, seguido da utilidade da informação e
facilidade de navegação, ambos com mesma média de 75%. O loop dialógico foi o princípio
melhor utilizado pela página. Como já vimos, este item é responsável por ferramentas que
promovam interação com usuários, tornando-os mais próximos da organização. Apesar deste
princípio ter alcançado a maior média entre os outros analisados, ainda pode ser melhor
explorado, como se viu nos critérios analisados. A utilidade da informação ficou em segundo
lugar, demostrando que a página está preocupada em manter seus usuários bem informados e
compreende que a utilidade das informações divulgadas é fundamental para atender o seu
público. E por último, está a facilidade de navegação, mostrando que a página dispõe de uma
estrutura com conteúdo organizado e com facilidade para encontrar informações.
Os dados evidenciam que o princípio do loop dialógico, com média de 58,8%, e
informação útil, com 62,5%, são os menos explorados pela página portuguesa Animal, ao
passo que na página brasileira os princípios menos explorados foram “conservação de visita”,
que possui a média mais baixa analisada nas páginas com 40%, seguido do “gerar retorno de
visitas”, que possui a segunda menor média da análise de 42,9%.
O resultado final constatou que a página portuguesa Animal foi a que melhor se
destacou e soube usar estrategicamente as ferramentas de comunicação do Facebook, com

599
adoção de 41critérios, dentro dos 58 analisados no estudo, enquanto a página brasileira Clube
dos Vira-Latas fez a adoção de apenas 38. Apesar de o resultado revelar que a página Animal
fez a melhor utilização dos princípios, ainda existem itens importantes a serem melhorados,
tais como: o envio de mensagens, possibilidade de publicar no mural da página, fazer
marcações e check-ins, bem como rapidez de interação e respostas aos seguidores.
Com os resultados obtidos pode-se confirmar que não existe semelhança entre elas,
pois enquanto a página da Animal se destacou por utilizar muito bem a facilidade de
navegação (100%), a página do Clube dos Vira-Latas saiu-se melhor na utilização do
princípio “loop dialógico” (76,5%). A única semelhança que existe é que na página do Clube
dos Vira-Latas nos princípios “utilidade de informação” e “facilidade de navegação” tiveram
a mesma média (75%). Tendo em conta a análise dialógica, os resultados revelaram que as
páginas das organizações dos dois países adotam os princípios dialógicos de forma
diferenciada, pois as estatísticas evidenciam diferentes resultados.
Com isso, pode-se afirmar que “ter um canal de comunicação aberto não representa
um diferencial. O que marcará a diferença entre as empresas modernas será a qualidade
adotada no relacionamento com seus públicos” (SCHMIDT, 2002, p.174). Desse modo é
possível perceber a importância do relações públicas como um propulsor da comunicação
dentro de qualquer organização, pois é ele quem irá estreitar o relacionamento com o público
através de um diálogo participativo e uma comunicação bidirecional.

7. Conclusão
Com um longo caminho teórico percorrido, chega-se ao momento de apresentar as
principais reflexões alcançadas nessa investigação, que pretendeu estudar a utilização das
ferramentas de comunicação dialógicas na página do Facebook das ONGs Animal (Portugal)
e Clube dos Vira-Latas (Brasil), com o objetivo de identificar e analisar a utilização das
ferramentas de comunicação dialógica nas suas páginas.
Dada a importância da internet e das mídias sociais no processo de comunicação,
criação e construção de relacionamentos, ponderou-se sobre a relevância da análise dialógica
no âmbito das organizações do Terceiro Setor, mais especificamente das ONGs, levando em
consideração que essas organizações não possuem renda suficiente para investirem em
comunicação, pois vivem e mantêm-se de doações. Entende-se, então, que essas organizações
que praticamente dependem da internet para realizar a sua comunicação, devem usá-la no seu

600
potencial máximo para criar relacionamentos com os públicos, já que esse é um meio de
comunicação de fácil acesso e não requer recursos financeiros (caso não queira fazer
publicações ou anúncios patrocinados, é claro), além de possuir um alcance muito maior do
que os meios de comunicação tradicionais.
Com este estudo, foi possível perceber a quantidade de pessoas que se fazem
presentes nas redes sociais a procura de informação e conteúdos em geral, por isso a
necessidade de que as páginas sejam intuitivas e apelativas, de maneira a gerar interesse e
maior curiosidade. Por esse motivo, torna-se essencial à atuação de um profissional de
comunicação, que saiba criar, planejar e gerenciar conteúdo nessas páginas, pois é ele que
enfrenta o desafio de fazer com que a comunicação se apoie no dialogismo e seja
bidirecional. No entanto, contratar um profissional para cuidar da rede social de uma ONG
não é algo viável para essas organizações que dependem de doações para contribuírem com a
sua causa, nesse ponto, encontra-se um dos desafios enfrentados pelas organizações do
terceiro setor conforme vimos no nosso referencial teórico, para isso deve-se tentar trabalhar
com serviço voluntário de profissionais da área da comunicação que tenham conhecimento
em gerenciamento de mídias e que estejam dispostos a colaborar com a causa.
Em resposta à questão que norteou esse estudo é possível concluir que, apesar de
alguns dos princípios dialógicos não estarem tão acentuados, todos eles já começaram a ser
trabalhados, alguns com resultados bastante satisfatórios e notórios, tanto para as ONGs,
como para os que acessam as páginas em estudo.
Também se concluiu que a ONG Animal (Portugal) foi a página que atendeu mais aos
princípios dialógicos em estudo, pois mostrou que é fácil navegar na sua fanpage e que
fornece motivos para que os visitantes permaneçam nela e retornem sempre que sentirem
necessidade. No que se refere à ONG Clube dos Vira-Latas (Brasil), concluiu-se que também
incorpora informações úteis, tenta promover o diálogo por meio de comentários e interações
nas suas publicações, mas a limitada publicação de conteúdo diário fez com que página tenha
ficado com um baixo índice de conservação de visita, bem como a falta de facilidade da
navegação e no retorno de visitas, demostrando debilidade em comparação à comunicação
dialógica feita pela Animal.
Dessa forma, as Relações Públicas Comunitária, no caso do Terceiro Setor, podem
contribuir significativamente no processo de gerenciamento das redes sociais,

601
proporcionando às organizações uma oportunidade de melhorar as suas estratégias na rede.
Esses profissionais costumam oferecer um aspecto mais teórico, mas que se revela numa
forma mais prática de fazer a comunicação funcionar, tornando-a mais estratégica e
funcional, utilizando ferramentas das RPs para isso, uma dessas são os cinco princípios. A
abordagem do relações públicas no presente trabalho serviu para demonstrar a importância da
teoria dialógica das RPs, como vantagem competitiva face à concorrência no setor não
lucrativo.
Essa pesquisa serve para realçar que o uso das redes sociais é uma tendência mundial,
que conecta milhares de pessoas ao redor do mundo, e que as organizações devem fazer parte
dessa rede para divulgarem os seus produtos e serviços, uma vez que se não o fizer ficará
para trás, levando em consideração que essas mídias se popularizam com brevidade. No
entanto, para que isso traga resultados efetivos, é preciso haver o domínio das suas
ferramentas.
Consideramos que os resultados alcançados são promissores, pois este trabalho serviu
para perceber que embora as ONGS façam uso das ferramentas, ainda não as utilizam em sua
capacidade máxima, deixando de aproveitar os benefícios disponibilizados pelo Facebook,
uma plataforma gratuita que não depende de custos para a realização da comunicação,
tornando-se um meio vantajoso para as ONGs que não dispõem de recursos financeiros para
investirem em comunicação.

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604
A CONVERGÊNCIA E A TRANSFORMAÇÃO DA
ORGANIZAÇÃO JORNALÍSTICA: 1
o surgimento dos veículos nativos digitais

CONVERGENCE AND THE TRANSFORMATION OF THE


JOURNALISTIC ORGANIZATION:
the rise of the digital native media
Rodrigo Henrique Leite Lorenzi 2

Resumo: Partindo do pressuposto que a convergência é um fenômeno de conceito


esquivo, dinâmico e multidisciplinar, que pode ser apreendido a partir de quatro
instâncias principais: editorial, profissional, empresarial e tecnológica
(SALAVERRÍA, AVILÉS, MASIP, 2010), propõe-se, neste artigo, uma discussão
teórica sobre as principais características da convergência, os processos de
remediação de mídias anteriores (BOLTER, GRUSIN, 2000) e seus impactos sobre
os modelos de formatação organizacional jornalísticos. Entende-se que, diante das
contribuições geradas pela cultura da convergência (JENKINS, 2008), somadas à
imbricações tecnológicas, econômicas e sociais, surgem novos formatos,
organizações e linguagens para dar conta de uma audiência que se fragmenta
cada vez mais e exige múltiplas abordagens para atrair e reter a sua atenção
(KOLODZY, 2009). Os veículos nativos digitais aparecem neste cenario
competitivo da industria midiática para disputar a atenção da audiência,
utilizando-se de estratégias tradicionais na busca pela legitimação organizacional
diante do público (WU, 2016), mas também numa procura pelo desenvolvimento de
estratégias próprias que contribuam para a viabilidade financeira, editorial e
profissional do veículo como fonte jornalística (SEMBRAMEDIA, 2017;HARLOW;
SALAVERRÍA, 2016; SALAVERRÍA et al, 2018).

Palavras-Chave: Convergência. Jornalismo Digital. Nativo digital.

Introdução
Inovações tecnológicas têm historicamente contribuido para mudanças paradigmáticas
na sociedade, seja por permitir novos tipos de comunicação, novos tipos de produção, novas
profissões ou vários destes elementos ao mesmo tempo. O campo jornalístico acompanha
estas mesmas evoluções que se solidificam a partir de processos constantes de mudanças, o
que afeta a maneira como a informação jornalística é produzida, distribuída e consumida.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Convergência e Cultura do 3º. CONEC: Congresso
Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, e-mail: rodrigollorenzi@gmail.com.

605
Novos fluxos, novas plataformas e novos meios de transportar a informação à audiência
associados às diferentes formatações das empresas jornalísticas, com todos os fatores que
determinam a sobrevivência e manutenção de uma organização privada no mercado, sugerem
rupturas que afetam de maneira diversas todos os atores envolvidos nestes processos.
A convergência, elemento que tem ficado em evidência como importante fator
contextual do desenvolvimento da sociedade e do campo comunicacional, é localizada
também como fator estrutural das mudanças pelas quais campo jornalístico vem passando ao
longo das últimas décadas. Conceitualmente, não há consenso sobre a definição de
convergência no campo comunicacional (SALAVERRÍA, AVILÉS, MASIP, 2010), mas
pode-se entendê-la como um processo em fluxo contínuo que modifica as relações entre
tecnologias, indústrias, audiências, modos de consumir e outros elementos possíveis que
complementam este cenário (JENKINS, 2008; BARBOSA, 2008).
A partir das múltiplas dinâmicas e alterações no ecossistema comunicacional que
surgem a todo momento, o objetivo deste trabalho se situa em compreender melhor a
influência do processo de convergência na configuração das empresas jornalísticas, em
especial as organizações que nascem direta e exclusivamente nos meios digitais. Para tanto,
serão trazidos para a discussão autores que tratam da convergência a partir de diferentes
perspectivas e outros que se debruçam sobre os veículos jornalísticos nativos digitais numa
tentativa de entender as principais características desse arranjo organizacional específico
jornalístico.

Perspectivas sobre a convergência


Durante as décadas de 1980 e 1990, com a inserção e popularização dos computadores
no meio jornalístico, algumas mudanças começaram a ocorrer e impactar profundamente as
rotinas produtivas de veículos de comunicação, em especial meios impressos como jornais e
revistas. Fidler (1997) cita o aumento exponencial da utilização de recursos gráficos
especialmente ao longo da década de 1980 nos veículos americanos como um dos indicativos
das transformações que estavam tomando conta das redações. Junto com a maior facilidade
de edição da parte gráfica dos jornais, surgem também novos perfis profissionais necessários
para dar conta dos potenciais percebidos a partir da incorporação de aparatos tecnológicos na
época, configurando expansões e impactos em diferentes esferas no campo profissional.
Relembrando os postulados de Paul Saffo, Fidler (1997) diz que apesar das previsões feitas a

606
respeito do futuro dos dispositivos e demais tecnologias, é diante dos impactos cruzados que
tomam forma a partir da implementação e ampla utilização da tecnologia que se configura a
real dimensão de como esses dispositivos serão apropriados e reconfigurados pelo público em
geral, sendo difícil, portanto, antever com precisão os usos que serão feitos a partir da
disponibilização de novos recursos técnicos na sociedade.
Jenkins (2008) observa os efeitos do cenário de hibridização de contextos que se mostra
crescente a partir da popularização das redes telemáticas e da web durante a década de 1990 e
2000, em que espaços de discussão e construção colaborativa ganham forma especialmente
no meio da comunicação e do entretenimento. O autor chama de convergência este processo
contínuo de influência, apropriações e reconfigurações que os usuários fazem da tecnologia à
sua disposição, e que fica mais evidente nas últimas décadas com a maior acessibilidade a
dispositivos tecnológicos como computadores e smartphones, além da quantidade
imensurável de informações disponíveis e em fluxo constante na Internet. Ao contrário de
autores que definem a convergência como algo estático ou um ponto final, o autor propõe a
concepção de que, na verdade, a convergência é um processo, um continuum que vê nas
constantes intersecções e na imprevisibilidade seu modo de existir.
Os impactos da convergencia, segundo Jenkins (2008), altera em profundidade relações
constituídas entre públicos, tecnologias e indústrias, mudando a maneira como nos
relacionamos com nossos objetos de interesse e mudando também as lógicas necessárias para
as empresas se inserirem e atuarem neste contexto de maneira natural e próxima do
consumidor. Kolodzy (2009) destaca a fragmentação da audiência como um dos principais
reflexos da convergência, que para a autora, significa uma nova maneira de pensar, produzir e
distribuir as notícias a partir dos potenciais identificados em cada plataforma numa tentativa
de alcançar e captar uma audiência cada vez mais diversa e distraída. As mudanças
tecnológicas, econômicas e sociais que surgem a partir das reconfigurações observadas ao
longo do processo de convergência desafiam principalmente as empresas do mercado
jornalístico a inovarem intensa e contantemente para atrair os consumidores e reter seu
público já consolidado (KOLODZY, 2009); por isso a convergência vêm sendo debatida em
estudos e análises sobre as práticas do meio com importante frequência: seus impactos são
múltiplos, constantes e significativamente determinantes. Além disso, diz Kolodzy (2009),
outra consequência observada na constituição da convergência jornalística é a movimentação

607
que surge contra a consolidação dos grandes grupos comunicacionais, ingrediente chave para
entendermos o surgimento dos veículos nativos digitais, como será discutido posteriormente.
Os processos de reconfiguração das plataformas midiáticas pré-existentes e também das
configurações feitas a partir de mídias insurgentes fazem parte do que Bolter e Grusin (2000)
denominam de remediação. Para os autores, o que a Internet faz, por exemplo, é uma
atualização (refashion) da televisão, assim como a própria televisão se adapta às
características introduzidas pela Internet, configurando um processo de influência mútua.
Nesta perspectiva, a convergência pode ser entendida como “a remediação mútua de, pelo
menos, três tecnologias importantes – o telefone, a televisão e o computador- sendo que cada
um destes [também] é um híbrido de práticas tecnológicas, sociais e econômicas [...]”
(BOLTER, GRUSIN; 2000, p.224) 3. Ainda de acordo com os autores, além de se fazer
presente a remediação constante de antigas tecnologias, é pouco provável que haja
canibalização das mídias que predominavam anteriormente, já que elas passam por processos
de atualização e reconfiguração a partir de novos contextos que surgem a todo momento, mas
não deixam de existir.
[...] A convergência é frequentemente entendida erroneamente como uma solução
única, quando na verdade, conforme as tecnologias vão surgindo, elas remedeiam
umas às outras de várias maneiras e em várias dimensões para produzir dispositivos
e práticas diferentes. Convergência significa maior diversidade para tecnologias
digitais na nossa cultura. Por isso, ao conformar duas ou mais tecnologias juntas, a
remediação multiplica as possibilidades. (BOLTER, GRUSIN, 2000, p.225) 4
Na visão de Salaverría, Avilés e Masip (2010), as tecnologias digitais de comunicação
facilitam o processo multidimensional que é a convergência midiática, afetando quatro
principais esferas do ecossistema comunicacional: a tecnológica, a empresarial, a profissional
e a editorial, estando presente, portanto, em toda a jornada de produção e distribuição da
informação jornalística. Como consequência, de acordo com os autores, é possível observar
uma integração de ferramentas, espaços, métodos de trabalho e linguagens que antes existiam
de maneira isolada, aproveitando o que há de melhor nas plataformas em que o conteúdo
passa a ser oferecido, seja por inovação da organização ou por demanda da audiência. Os
autores localizam o processo de convergência no início do desenvolvimento dos sites de

3
“Convergence is the mutual remediation of at least three important technologies -telephone, television, and
computer- each which is a hybrid of technical, social, and economic practice […]”.
4
“Convergence is often misunderstood to mean a single solution, but in fact, as these technologies appear, they
remediate each other in various ways and in various ratios to produce different devices and practices.
Convergence means greater diversity for digital technologies in our culture. It may always be true that, by
bringing two or more technologies together, remediation multiplies the possibilities.”

608
redes sociais, em que coexistem dois elementos fundamentais para a configuração de um
novo contexto: as plataformas que surgem com grande potencial de alteração das dinâmicas
existentes, e as mídias tradicionais, que se veem perdendo a hegemonia e se ajustam às
lógicas que surgem a partir de então. Dada a relevância dos dispositivos móveis neste novo
cenário, Barbosa et al (2013) reforça que a lógica que se impõe não é de oposição entre as
mídias anteriores e as mais recentes, mas sim de que é neste continuum multimídia que se
forma um novo jeito de se fazer jornalismo, especialmente voltado para contemplar as
necessidades que surgem com o impulso das redes digitais.

Convergência e as transformações no jornalismo


Assim como em outras empresas da indústria criativa, as organizações jornalísticas
passaram por transformações ao longo da década de 1990 que evidenciavam mudanças na
maneira como as próprias empresas se entendiam. Dá-se início a um afastamento do modelo
tradicional e industrial de produção da notícia para que se priorize uma formatação mais
dinâmica e multimídia, chamada de jornalismo pós-industrial (ANDERSON, BELL,
SHIRKY, 2012). A partir da profusão das redes telemáticas, a organização em rede também
passa a ser uma das características predominantes deste novo horizonte da produção
jornalística, afastando-se ainda mais da centralização e das evidentes hierarquias que se
constituem nos modelos anteriores (CASTELLS, 2016; DEUZE, WITSCHGE, 2018).
Levando-se em consideração os diferentes ritmos de adaptação às necessidades insurgentes
dentro das organizações jornalísticas, entende-se que, pelo menos, iniciou-se durante a virada
do século, um movimento de surgimento de sistemas de cooperação entre áreas antes
fundamentalmente separadas; equipes, departamentos e profissionais que não mantinham
contato anteriormente passam a se articular em parceria, o que além de alterar as rotinas
dentro das empresas também afeta os produtos gerados a partir deste novo modo de
organização (DEUZE, 2007).
Para Deuze (2007), esta movimentação transformativa dentro dos veículos jornalísticos
ilustra com maestria os efeitos da convergência, que se explica pelo desejo das empresas em
construir relações com seus leitores e consumidores. Para isso, tecnologias cada vez mais
baratas e de fácil utilização são articuladas para promover conteúdos e plataformas que
privilegiem um perfil de utilização característico dessa nova audiência também, que se
mostra mais ativa e participativa. Ainda segundo o autor, ao mesmo tempo em que se

609
constroem mais pontes de diálogo com a audiência, fica evidente que na cultura da
convergência, o poder de controle sobre a criação de conteúdo foge do ambiente corporativo,
aspecto que concorda com o que aponta Jenkins (2008).
A colaboração entre times técnicos e de engenharia, que tradicionalmente tinham papel
de suporte nos ambientes jornalísticos, passam agora a contribuir com o processo criativo
também, principalmente em tempos de práticas inovadoras e alta disponibilidade de dados
que favorece o jornalismo guiado por dados, por exemplo. As habilidades técnicas, agora
valorizadas por facilitar a coleta, a análise e a mineração de dados dentro do ambiente
jornalístico, propõem novos desafios aos gestores de veículos que lidam com informação
(KÜNG, 2013; SALAVERRÍA et al, 2018). A partir da multiplicidade de opções e potenciais
que foram se desenvolvendo diante do fluxo convergente de tecnologias, linguagens,
possibilidades profissionais e editoriais, facilitando a produção e distribuição da informação,
houve uma proliferação de novos modelos organizacionais, entre eles companhias e redes de
menor porte que prestam serviços locais, especializados e focados em nichos específicos,
contrastando diretamente com os negócios tradicionais, mais rígidos, de grande porte e
burocraticamente estruturados que sobreviviam no mercado até então (DEUZE, WITSCHGE,
2018).
Para Harlow e Salaverría (2016), estes novos modelos de negócio ganharam força na
virada do século com uma crescente diversificação das modalidade de existência dos veículos
online, que se articulam em formatos mais generalistas, como os grandes portais, ou também
como publicações online especializadas, de atuação direta em nichos específicos; de qualquer
maneira, iniciam-se movimentos de combate progressivo à proeminência dos veículos
tradicionais. Além do seu caráter formativo mais dinâmico e contra-hegemônico, em
entrevistas com representantes destes veículos, os autores reportam que vários destes sites
citam o trabalho investigativo, o uso de tecnologias inovadoras (bases de dados, infográficos
interativos, mapas dinâmicos), debates públicos, linguagens e divulgação de documentos de
políticas públicas como alguns de seus diferenciais, desenvolvendo uma espécie de DNA,
talvez idealizado, nesta nova corrente de possibilidades e motivações para se articular com e
para a sociedade. A tentativa de renovação dos modelos tradicionais jornalísticos serve como
referência para o trabalho de meios online que surgem como alternativa ao que já existe como
opção para a audiência (HARLOW, SALAVERRIA, 2016).

610
Surgimento dos nativos digitais
Para Küng (2015), o surgimento de uma cultura de startups é uma das premissas
necessárias para entender os novos modelos de negócio e gestão dentro das organizações de
mídia. Segmentação das redações em unidades menores, autossuficientes em suas dinâmicas
e atuações, que contam com equipes diversificadas e com diferentes backgrounds contribuem
para uma atuação mais próxima do que se entende por independente. Deuze e Witschge
(2018) inferem que esta é uma das estratégias para produzir conteúdos de maneira inovadora,
captar a atenção da audiência, inspirar novas formas de atuação em todos o mercado e,
potencialmente, atrair novas formas de investimento para dentro do cenário financeiro dos
veículos. Dessa forma, segundo os autores, nasce a tendência de organizações menores e de
atuação estritamente online junto com o século XXI ao redor de todo o mundo.
Pela riqueza de possibilidades e pela recência de sua formatação como fenômeno no
âmbito comunicacional e organizacional, há múltiplas maneiras de se pensar tipologias
quando se trata de veículos digitais. Critérios como plataforma, temporalidade, alcance, foco,
propósito econômico e dinamismo são alguns dos possíveis para entender que formas de
organização têm se estabelecido nestas primeirs décadas de organização em rede e Internet
(SALAVERRÍA, 2017; SALAVERRÍA et al, 2018). Nossa proposta não foca em entender
que tipos de orgnizações exclusvamente digitais existem, mas sim as principais
características que delineiam a partir das primeiras experiências em todo o mundo, em
especial na América Latina.
Harlow e Salaverría (2016) relatam que, depois do primeiro veículo jornalístico nativo
digital de que se tem conhecimento na América Latina, o El Faro, publicação nascida em El
Salvador em 1998, diversos outros foram sendo criados e ganhando repercussão ao longo dos
anos, mas que este fenômeno se tornou claro apenas em junho de 2010, pouco mais de dez
anos depois dos primeiros nativos digitais. Foi nesta data que, segundo os autores, 10
organizações nativas digitais se juntaram para formar um grupo chamado de Aliados, um
coletivo de jornalistas e empresas jornalísticas que eram referências de atuação mais
transparente, independente e com rigor nas coberturas dos eventos latinoamericanos, de
maneira a se apresentarem como uma alternativa à cobertura dos meios tradicionais. A
ascensão dos veículos nativos digitais se deu graças, também, à estagnação do crescimento
dos veículos tradicionais, que passaram a enfrentar dificuldades diante dos novos cenários de
consumo da informação possibilitados pelos avanços tecnológicos e popularização de

611
dispositivos móveis e sites de redes sociais (HARLOW; SALAVERRÍA, 2016). A
consolidação deste segmento de mercado como elemento de competitividade econômica fica
evidente a partir de 2014 e 2015, que é quando, segundo dados da Sembramedia (2017),
identifica-se um crescimento representativo no número de novas organizações nativas digitais
atuantes no campo jornalístico. Assim, fica evidente a expansão econômica deste modelo de
negócio, que ainda é recente e bastante díspar em seus modos de funcionamento e
composição.
Com uma missão em comum de ‘regenerar o jornalismo’, muitos dos nativos digitais
se desenvolvem a partir de uma ligação mais estrita com o jornalismo investigativo, os
direitos humanos e o perfil da mídia independente. Além disso, por nascerem direto em
plataformas digitais, há uma tendência, ou um desejo, de se construir portais informativos
com maior utilização dos recursos interativos e conversacionais nativos dos ambientes
digitais, além de propor também uma comunicação mais acessível e exploratória do que os
conteúdos ofececidos nos demais veículos (SALAVERRÍA et al., 2018). Apesar de um dos
valores centrais dos nativos digitais seja apresentar alternativas à cobertura do meio
tradicional, há portais que se estabelecem no mercado como sites de entretenimento, como
por exemplo o Buzzfeed, e que, mais tarde, aderem também ao jornalismo como segmento de
atuação e produção de conteúdo. Wu (2016) aponta que sites como o Buzzfeed, que têm
raízes no entretenimento e que profissionalizaram sua produção de conteúdo informacional
para se inserirem no campo jornalístico, adotam rotinas e processos tradicionais de produção
da informação para que o conteúdo se assemelhe de alguma forma ao produzido por
empresas jornalísticas tradicionais, que já contam com uma credibilidade construída durante
um longo período de tempo junto ao público e provavelmente herdadas de meios impressos.
Para Lowrey (2012), as novas empresas de mídia anseiam por legitimidade, então buscam
nos padrões estabelecidos pelas mídias tradicionais os parâmetros para compor suas próprias
práticas e rotinas, mesmo que ela acabe passando por uma homogeneização durante este
processo, afastando-se do seu potencial de diferencial.
Dentre as características apontadas por estudos que se debruçaram exclusivamente
sobre o nativos digitais na América Latina, é possível destacar alguns elementos em comum
observados entre os estudos. O financiamento das iniciativas nativas digitais é uma questão
central, que se desdobra de maneiras inusitadas em cada caso. Segundo o estudo da
Sembramedia (2017), 65% dos nativos digitais entrevistados informaram que tinham, pelo

612
menos, três fontes diferentes de receita. A partir disso, o estudo identificou níveis de
organização, que foram criados a partir de dois fatores: a audiência estimada dos veículos e
os tipos de financiamento em que se apoiam. No nível mais alto, as audiências são superiores
a 20 milhões de acessos mensais e a publicidade é a origem majoritária de receita; no
intermediário, aparecem consultorias, treinamentos e auxílios como fontes financeiras
determinantes para a sustentabilidade da empresa, evidenciando a existência de múltiplas
incorrências de receita simultaneamente; no último, em que o tráfego mensal dos nativos
digitais não ultrapassa os 10 mil acessos, acaba tornando o cenário de investimento em
publicidade pouco atrativo para os anunciantes, restringindo os caminhos de acesso aos
recursos necessários para ampliar e qualificar a produção da informação.
A tendência comum encontrada pelos pesquisadores é a tentativa de subsistência com
base em mais de uma fonte de renda, contando especialmente com a publicização do espaço e
da audiência dos sites, o que pode ser considerado uma alternativa pouco inovadora e
bastante comum no meio comunicacional. Apesar da rejeição de alguns nativos digitais a este
tipo de financiamento, como por exemplo o Nexo, no Brasil, que não tem publicidade em
nenhum espaço do portal, Salaverría et al (2018) aponta que, na América Latina, os banners
ainda são fonte frequente de financiamento, assim como a criação de anúncios nativos ou
branded content, que configuram tipos de veiculação publicitárias atreladas aos potenciais do
ecossistema digital. Além destes, serviços de treinamento, crowdfunding, doações e
subvenções se destacam como possibilidades também, segundo os autores. O modelo de
assinaturas, comum nas grandes organizações jornalísticas que mantêm um fluxo contínuo de
conteúdo digital, é pouco presente entre os nativos digitais, aponta o estudo. A busca por uma
pluralidade de fontes de receita pode ser compreendida como alternativa ao dinamismo
intenso do contexto de distribuição da informação digital, em que mudanças tecnológicas
ocorrem em ritmo acelerado e tendências nascem e morrem em alta velocidade através dos
sites de redes sociais, o que compõe, portanto, um cenário crítico e altamente instável para
que se estabeleça a viabilidade financeira destes empreendimentos (WU, 2016).
Quanto ao conteúdo produzido pelos empreendimentos nativos digitais, Salaverría et al
(2018) destacam que as maiores receitas geradas entre os nativos digitais são aqueles que
investigam corrupção, mas que também têm atuado em coberturas de entretenimento, o que
contribui pra o aumento do número de visitantes do site. O caso do Buzzfeed ilustra essa
conjuntura de aliança entre entretenimento e conteúdo jornalístico, já que o portal é um site

613
criado prioritariamente para entreter e divertir, sem compromisso com informação e
tratamento jornalístico e que, desde o início da sua trajetória, conta formatos inovadores de
trasmissão da informação, popularizando conteúdos em forma de listas, games interativos e
com uso abundante de gifs, para mais tarde começar a investir em reportagens e coberturas
jornalísticas também (WU, 2016). O conteúdo de entretenimento serve, em alguns casos,
como catalisador do crescimento do portal de informação, ajudando a abrir espaço para o
veículo dentro do mercado de comunicação, para que, depois, o posicionamento da empresa
seja melhor trabalhado com conteúdos de diferentes relevâncias. O caso do site americano
FiveThirtyEight ilustra movimentações similares, já que, de acordo com o manifesto 5
divulgado pelo seu editor-executivo e fundador Nate Silver em 2014, sete anos após o início
do blog que tratava exclusivamente de política e foi ganhando representatividade,
consolidou-se a decisão de ampliar a cobertura de assuntos. Desde então até o momento,
pautas de esportes, ciência e cultura ampliam o espectro de atuação da organização,
viaibilizando crescimento de audiência e relevância no meio jornalístico. A busca pela
credibilidade jornalística também pode ser elencada como uma estratégia de tentar legimitizar
o trabalho do veículo, que procura criar junto à audiência sua relevância para poder ampliar
sua atuação junto ao público, aproximando-se do que são os veículos tradicionais em termos
do seu reconhecimento como fonte de informação segura (WU, 2016).
Um segundo ponto em comum às pesquisas é o desconhecimento em profundidade, de
ferramentas de análise de performance digital dos conteúdos e da audiência dos portais, que
são a base para a mensuração da atuação dos veículos nativos digitais. Quando questionados
por Salaverría et al (2018) sobre o tamanho da sua audiência geral e da audiência mobile,
dada a relevância que dispositivos móveis vêm demonstrando nos mais diferentes arranjos
sociais, entre 12 a 20% dos veículos entrevistados não souberam responder cada uma dessas
informações, o que evidencia uma tendência de baixa profissionalização da mensuração dos
desempenho dos nativos digitais em termos de estratégias e gerenciamento dos canais de
distribuição da informação produzida. Outros 38%, ainda segundo os autores, responderam
que não trabalhavam com uma base de dados dos usuários cadastrados nas suas plataformas,
o que evidencia pouco conhecimento sobre a audiência, sobre os potenciais da mensuração
digital e das possibilidades de ampliação tanto da base de usuários como do engajamento

5
Disponível em <https://53eig.ht/2osLQfi>. Acesso: 06 de março de 2018.

614
destes usuários com o conteúdo disponível nos portais. Após uma revisão do cenário
brasileiro de nativos digitais e contatando a baixa senioridade da utilização dos recursos de
mensuração e gestão inteligente dos canais digitais, Lüdtke (2016b, online) reforça que, para
os veículos desta natureza, é altamente recomendável “um nível mais aprofundado de uso das
redes, que contemple monitoramento e analytics e que proporcione um diferencial
competitivo na concorrência pela atenção das comunidades de leitores”.
Newsletters e podcasts são formatos já se fazem presentes nas estratégias dos nativos
digitais, principalmente nos de maior porte, que contam com estruturas mais robustas para
produção e edição de produtos audiovisuais, além do manejo de bases de dados de leitores, o
que serve também para estabelecer mais vias de contato com a audiência, complementando o
fluxo natural de postagens em sites de redes sociais (PEW RESEARCH CENTER, 2018;
SEMBRAMEDIA, 2017). À exceção de casos pontuais, que contam com uma estrutura de
produção da informação mais robusta, observa-se a não utilização aprofundada das
potencialidades permitidas pelo ambiente online, apesar das organizações serem nativas
digitais (HARLOW; SALAVERRÍA, 2016). Esta característica se aplica tanto em termos de
tecnologia (interatividade, uso de bases de dados, processamentos de alta velocidade) como
de estratégia (mensuração de resultados, segmentações de audiência, personalização de
experiências). Ter nascido digital não coloca automaticamente os veículos como especialistas
e referências de utilização dos affordances das plataformas digitais, até pela multiplicidade de
dispositivos que existem, das diferentes formas de consumo de conteúdo e das múltiplas
linguagens disponíveis, além dos recursos necessários para financiar o desenvolvimento de
iniciativas inovadoras, o que foge da realidade e do alcance, muitas vezes delimitado a uma
atuação mais local ou especializada, dos veículos nativos digitais.
Outro aspecto determinante que vem sendo pontuado nos estudos sobre nativos digitais
para além da forma de organização e no conteúdo que produzem, é a composição do quadro
de lideranças executivas dessas empresas, o que contribui para compor uma visão sobre o
novo perfil de gestão que está se desenvolvemtno no mercado jornalístico. Do total de
empreendimentos latinoamericanos entrevistados pela Sembramedia (2017), 62% têm pelo
menos uma mulher entre seus fundadores, desempenhando papéis fundamentais nas equipes
executivas e de gestão, cenário bastante diferenciado do encontrado nos veículos tradicionais.
Salaverría et al (2018) elencam ainda a falta de orientação ao mercado como um dos
desafios enfrentados pelos nativos digitais, em especial os de menor porte. Conhecimentos de

615
mercado e de negócios são escassos entre gestores e profissionais com poder de decisão neste
tipo de empreendimento, muito também pelo alto valor ideológico dos projetos, de se
configurarem como uma tentativa alternativa de oferecer conteúdo de qualidade e plural. A
ligação dos nativos digitais com a comunidade, os valores locais da notícia e a proposição de
uma comunicação mais horizontal, que prioriza os ideais democráticos e de participação do
público no meio social são as principais características identificadas por Salaverría et al
(2018) como diferencial de posicionamento dos nativos digitais. A falta de planejamento de
negócios também é apontada por Lüdtke (2016a), que identifica uma falta de preparo e de
assistência especializada para as articulações de marketing, vendas e finanças, o que
prejudica a subsistência a longo prazo dessas iniciativas no mercado. Como resultado, ainda
são desconhecidas formas definitivas de financiamento sólido que promova a disseminação
de novos veículos nativos digitais, o que ainda assim não impede a multiplicação dessas
iniciativas no mercado de comunicação e jornalismo.
Ambos jornalistas e gestores de mídia precisam ser treinados de maneira diferente
agora. O elemento mais importante que falta entre os nativos digitais são as
habilidades de negócio, marketing, vendas e administração. Com o suporte e o
treinamento corretos, essas organizações conseguiriam migrar de um estado de
sobrevivência rapidamente para um de prosperidade. (SALAVERRÍA et al, 2018,
p.243)
Ao invés de reconfigurar o modo de fazer jornalismo a partir das possibilidades das
novas plataformas e possibilidades tecnológicas, os nativos digitais têm migrado o jeito
antigo de se fazer jornalismo para o digital, com adaptações aos formatos e métodos de
distribuição possibilitados pelo digital, mas sem melhores aproveitamentos das ferramentas e
informações de mensuração da audiência e nem da produção facilitada pelos recursos
multimídia à disposição (SALAVERRÍA et al, 2018).

Considerações finais
Levando-se em consideração as profundas mudanças que vêm impactando o cenário
tecnológico e social dentro do qual se desenvolvem as organizações jornalísticas, o
surgimento de iniciativas independentes e potencialmente diferenciadas vai tomando formas
plurais, com distintos espectros de atuação e com níveis próprios de proximidades e
distanciamentos em relação aos modelos tradicionais de organização das empresas que
produzem jornalismo. Os reflexos da convergência neste cenário podem ser observados tanto
no modo de organização do empreendimentos jornalísticos até na linguagem, no conteúdo e
no perfil profissional necessário para dar conta das múltiplas possibilidades de transmissão de

616
um intenso fluxo de informação demandado por uma audiência que não se configura mais
como uma, mas sim como várias e interseccionais dentro de um amplo espectro de existência.
Os veículos nativos digitais surgem nesta ambientação de profundas modificações
para potencialmente transformar e oferecer alternativas de consumo da informação para um
mercado dominado por grandes organizações detentoras de investimentos e subsídios
altíssimos, portanto contam com a inovação, a independência, o conhecimento endêmico e
local da região de atuação e os recursos alternativos de apresentação das informações para
adquirir relevância no meio comunicacional. Apesar da recência do desenvolvimento das
iniciativas nativas digitais, é possível delinear contornos já existentes, mas principalmente
desafios importantes que devem transformar seu modo de existir, atuar e se posicionar daqui
pra frente e, pelo menos em parte, impactar de maneira significativa as lógicas predominantes
no mercado, fazendo com que eles se consolidem como alternativas possíveis e atrativas
numa economia da atenção.

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618
A CULTURA POP DO JAPÃO E SUA INFLUÊNCIA NOS
LIVE-ACTION E NA CULTURA DA CONVERGÊNCIA1

THE POP CULTURE OF JAPAN AND ITS INFLUENCE IN


THE LIVE-ACTION AND CONVERGENCE CULTURE
Marianna Costa Oliveira 2

Resumo: O presente artigo propõe gerar uma reflexão sobre a cultura da


convergência e a importância da participação do público em conjunção com as
indústrias midiáticas. Também irá articular conceitos sobre o cinema, sua evolução
e a utilização de novos recursos tecnológicos para a construção de uma nova
linguagem cinematográfica que utiliza as mais variadas fontes de representações
para sua criação. Também contextualizará sobre a cultura popular japonesa e as
aplicações e influências na cultura da convergência. Para tanto serão estudados
autores que discutem os temas citados como: André Parente, Gilles Deleuze,
Arlindo Machado e Denise Guimarães, Cristiane Sato e Henry Jenkins.

Palavras-Chave: Cultura da convergência; Anime; Mangá, Comunicação, Cinema.

1. Introdução

O cinema começou como um aparelho que se transformou ao fazer do movimento não


apenas uma ilusão, mas uma produção do novo. “O cinema (...) pode, em função de seus
diversos usos, integrar regimes sócio-imagéticos diferentes: o cinema como a mais velha
ilusão do movimento, o cinema como arte de reprodução e arte das massas, o cinema como
automatismo espiritual” (PARENTE, 1993, p. 16).
O presente artigo propõe gerar um paralelo entre cultura da convergência, o cinema e
as animações japonesas. Percebe-se a influência da linguagem da computação gráfica, das
adaptações literárias e dos games no desenvolvimento dos filmes no mundo contemporâneo.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho de comunicação e convergência midiática do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Coordenadora do núcleo de Design da Universidade Paranaense - UNIPAR Mestra em Comunicação e
linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná- UTP, marianna@prof.unipar.br.

619
Esse trabalho também irá articular conceitos sobre a cultura da convergência, sobre a
participação das comunidades de fãs em conjunto com as indústrias midiáticas e o
crescimento do interesse pela cultura popular japonesa nas adaptações cinematográficas
chamadas de live-action. Considera-se que a cultura da convergência modificou a forma
como as empresas se relacionam com os consumidores.
Vivemos em uma sociedade imersa cada vez mais numa cultura que cultua o visual e
que possui seu grande modelo de representação no cinema (GUIMARÃES, 2005).
Para tanto, a metodologia utilizada para o desenvolvimento do trabalho foi o estudo em
profundidade em referências como André Parente, Gilles Deleuze, Arlindo Machado e
Denise Guimarães, por se tratar de pesquisadores que permeiam a área do cinema, Cristiane
Sato pelos estudos sobre a cultura Japonesa e Henry Jenkins pela abordagem e estudos sobre
a cultura da convergência

2. Evolução Tecnológica e a Cultura da Convergência

Foi no final do séc XIX e início do século XX que os primeiros filmes foram
materializados pelos irmãos Lumière, eles eram produzidos inicialmente para retratar as
cenas da vida cotidiana. Nesse período a câmera era fixa e o plano era imóvel, sendo
realizadas em plano único e sem cortes.
A partir de David Griffith que podemos constatar uma destacada evolução da
linguagem cinematográfica, com o desenvolvimento de técnicas narrativas, empregadas no
cinema e na televisão.
Parente (2009, p.27) salienta que “o cinema faz convergir três dimensões diferentes
em seus dispositivos: a arquitetura da sala, herdada do teatro italiano, a tecnologia de
captação/projeção, cujo formato padrão foi inventado no final do século XIX, e, finalmente, a
forma narrativa”, cada aspecto envolve, um conjunto de técnicas voltadas para a realização de
um espetáculo que produz no espectador a ilusão que ele está diante dos próprios fatos ali
representados. (PARENTE, 2007).
Produzida mecanicamente durante muito tempo, outro ponto de destaque é a
montagem que era produzida manualmente. Cortavam-se os fragmentos de película e os
colavam em ordem predeterminada pelo roteiro do filme.

620
“A evolução do cinema, a conquista de sua própria essência ou novidade se fará
pela montagem, pela câmera móvel e pela emancipação da filmagem, que se separa
da projeção. O plano deixará de ser uma categoria espacial, para torna-se temporal;
e o corte será um corte móvel e não mais imóvel.” (DELEUZE, 1985, p.12)

Conforme Parente (1993) observa, novas questões sobre a produção de discurso


surgem com o aparecimento das tecnologias e seus enunciados. Desde seu surgimento, a
forma com o cinema se relacionada com as imagens vem sofrendo alterações, assim como
aconteceu com a câmera, a montagem também sofreu grande modificações.
Machado (1997) explica também como o conceito de plano modifica-se ao tratar do
cinema atual, pois o próprio conceito revela-se “[...] cada vez mais inadequado para descrever
o processo organizativo das novas imagens, pois em geral há sempre uma infinidade de
“planos” dentro de cada tela, encavalados, superpostos, recortados uns dentro dos outros”.
Um dos fatores que contribuíram para essa modificação foi a evolução tecnológica,
que proporcionou a invenção de novos equipamentos e novas tecnologias da informação.

Hoje em dia, as ações do cineasta abrangem todo um universo de parâmetros que


leva em conta, também, o ponto de vista, as dimensões, os movimentos e muitos
outros fatores envolvidos no processo de filmagem. O plano, por exemplo, faz parte
de um vocabulário técnico que se convencionou mundialmente, mas que não
obedece a normas rígidas, levando-se em conta que, a cada produção, podem surgir
planos inovadores em função do roteiro. (GUIMARÃES, 2005, P. 13)

Importante destacar que com o rápido avanço tecnológico dos últimos anos, houve o
surgimento de novas perspectivas de participação e interação das pessoas com os meios de
comunicação e as indústrias midiáticas, sejam elas alternativas como: canais no youtube,
facebook, twitter entre outros ou tradicionais como: estúdios de cinema, editoras de livros e
quadrinhos, canais de televisão, desenvolvedores de jogos, entre outros, indicando então o
início da cultura da convergência.
A convergência não possui apenas um significado, ela engloba três fatores
importantes: 1) fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia; 2) Cooperação
entre múltiplos mercados midiáticos – cinema, literatura, videogames entre outros; e 3) A

621
mudança de comportamento do público que passa de uma participação passiva, para a busca
das experiências de entretenimento da mídia que se tornaram fãs (JENKINS, 2006).

A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A


convergência altera a relação entre as tecnologias existentes, indústrias, mercados,
gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática
opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento.
(JENKINS, 2006, p.43)
Em contrapartida, é possível perceber que as novas empresas de mídia que surgiram
com a internet estão tentando comunicar-se com os consumidores e também estão tentando
interagir com as comunidades de fãs. As mídias entenderam a importância que os
consumidores fiéis, aqueles que, participam, discutem e espalham a marca por prazer, tem
para a criação e produção de novos conteúdos (JENKINS, 2006).
Jenkins também evidência que para entendermos melhor sobre a convergência é
necessário entender também as transformações culturais.

A convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticadas que
venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores
individuais e em suas interações sociais com outros [...] Por haver mais informações
sobre determinado assunto do que alguém possa guardar na cabeça, há um incentivo
extra para que conversemos entre nós sobre a mídia que consumimos. (JENKINS,
2006, p.30)

Com o início do século XXI, os consumidores foram estimulados a buscar por novas
informações e conectar-se com um universo de conteúdo de mídia em todo lugar.
A convergência tecnológica faz parte do conceito de cultura da convergência, e é
nessa convergência que se encontra o viés cultural e social. Algumas pessoas se tornam fãs
de um seriado popular, copiam partes de diálogos e podem posteriormente resumir os
episódios, discutir as cenas e as polêmicas, os roteiros, criar fan fictions 3, gravar as trilhas
sonoras e publicar tudo isso na internet (JENKINS, 2016).
Um exemplo de aplicabilidade desse conceito é a trilogia Matrix (1999), o filme aliou
também a narrativa transmídia 4 para atrair diferentes públicos e alcançar maior interesse dos

3
Fan Fiction é um termo que se refere, originalmente, a qualquer narração em prosa com histórias e personagens extraídos dos conteúdos dos
meios de comunicação de massa. (JENKINS. 2006, p.384)

4
Narrativa Transmídia: São histórias que se desenrolam nas mais variadas plataformas de mídias, sendo que, cada uma contribui de forma
individual para a compreensão do universo da franquia. (JENKINS. 2006, p.384)

622
fãs. O conceito de narrativa transmídia advém da participação de diferentes plataformas de
mídia que contribuem de forma individual para toda a franquia. Detalhes que foram
introduzidos no filme podem ser expandidos para a televisão, para quadrinhos e livros. A
transmídia pode ser considerada como um universo expandido, que pode ser explorado e/ou
experimentado por diferentes mídias.
No processo de desenvolvimento do filme The Matrix (1999) é possível distinguir a
influência que as animações e os quadrinhos japoneses tiveram na construção da narrativa
transmídia do filme. Os criadores conhecidos como Irmãos Wachowski homenagearam
diversas obras clássicas japonesas como Akira 5 e Ghost in the Shell.

[...] todo o interesse dos Wachowski pela narrativa transmídia pode ter-se originado
na fascinação por aquilo que o antropólogo Mimi Ito definiu como a cultura “mídia
mix” do Japão. Por um lado, a estratégia da mídia mix dispersa conteúdos em vários
meios de radiofusão, em tecnologias portáteis como game boys ou telefones
celulares, em itens colecionáveis e em diversos centros de entretenimento. [...] Por
outro lado, essas franquias dependem da hipersociabilidade, ou seja, elas
incentivam várias formas de participação e interações sociais entre consumidores.
(JENKINS, 2006, p.159)

A participação maciça do público está impactando a relação dos consumidores com as


empresas e os veículos de comunicação, assim como também o significado de consumir
mídia, pois a percepção e a cultura dos consumidores estão mudando.
A cultura da convergência baseia-se também nas conexões sociais, ou seja, como os
consumidores se associam com a marca ou produto que escolhem e como eles se
movimentam online e estabelecem proximidade por longos períodos.

Se os antigos consumidores eram previsíveis e ficavam onde mandavam que


ficassem, os novos consumidores são migratórios, demonstrando uma declinante
lealdade a redes ou a meios de comunicação. Se os antigos consumidores eram
indivíduos isolados, os novos são mais conectados socialmente. Se o trabalho de
consumidores de mídia já foi silencioso e invisível, os novos consumidores são
agora barulhentos e públicos. (JENKINS, 2006, p.47)

5
Escrito por Katsuhiro Otomo entre os anos de 1982 a 1990, possui um filme de animação homônimo lançado em 1988. Disponivel em:
<http://www.imdb.com/title/tt0094625/> Acesso 02 janeiro 2017.

623
3. A Cultura Popular Japonesa e os Live-action

A cultura pop no Japão surgiu após a ocupação dos Estados Unidos no país devido sua
derrota na 2º Guerra Mundial, o governo norte americano instalou-se em Tóquio e o que
antes era proibido, pela inimizade dos países, agora estava em todos os lugares da Capital e
em toda a mídia Japonesa– cinema, rádio, jornais e revistas. O Japão estava recebendo uma
enorme quantidade de produtos da cultura popular norte americana.

“[...] como as músicas das big bands, as produções de Hollywood e os comics.


Coisas antes inaceitáveis [...], tornaram-se corriqueiras. Mas ao invés de meramente
copiar aquilo que vem de fora, é do âmago dos japoneses pegar influências
estrangeiras e reinventá-las conforme a cultura local”. (SATO, 2001, p.14)

A cultura norte-americana influenciou em grande parte a cultura popular no Japão,


porém conforme Sato (2007) esclarece, são mais de dois mil anos de histórias e tradições que
não poderiam ser substituídas pelo “Amerian Way” 6 da pós-segunda guerra.
No ocidente a cultura popular japonesa cresceu de tal modo que não é um exagero
pensar que o primeiro contato que temos com o ocidente seja exatamente a sua cultura
popular, sendo a cultura popular classificada como “materiais culturais que foram
apropriados e integrados à vida cotidiana de seus consumidores” (JENKINS, 2006).
Porém nem sempre foi assim, na década de 1960 o mercado norte-americano tornou-
se extremamente fechado para as importações de cultura japonesa, contudo as empresas de
mídia japonesas perceberam que por meio de fluxos alternativos era possível conquistar o
mercado ocidental (JENKINS, 2006).

A animação japonesa já era exportada ao mercado ocidental desde os anos de 1960,


quando Astro Boy 7 (1963), Speed Racer 8 (1967) e Gigantor 9 (1965) chegaram às

6Conhecido como “American Way of Life”. Tinha como ideia central estipular o nível de felicidade de uma
pessoa atraves da quantidade de bens industrializados que ela conseguia adquirir. Disponível em: <
http://www.historialivre.com/contemporanea/entreguerras.htm> Acesso 02 janeiro 2017.

7Criada por Osamu Tezuka, era considerado o “deus do mangá”, sendo o primeiro Japonês a conseguir exportar uma série
de anime para os Estados Unidos em 1963. (SATO, 2007, p. 130)

624
TVs norte-americanas. No final dos anos 1960, entretanto, iniciativas de reformas
na televisão [...] fizeram ameaças de boicotes e legislação federal para controlar o
conteúdo considerado inadequado para as crianças americanas [...] Distribuidores
japoneses foram desestimulados e retiraram-se do mercado americano [...].
(JENKINS, 2006, p.219)

Para entendermos alguns termos que serão utilizados nesse artigo, faz-se necessário
conhecer alguns conceitos importantes como as definições de Mangá e Animê.

“Anime: significa “animação” em japonês e é a forma contraída da palavra em


inglês “animation”. No entanto, fora do Japão, anime é utilizado especificamente
para denominar desenhos animados produzidos no Japão ou com um conjunto de
características especificas que os japoneses desenvolveram. Quanto à roteirização, o
que caracteriza o animê de maneira pontual é a importância que ele tem na
sociedade japonesa. Para eles, o animê possui o mesmo peso que a produção de
filmes cinematográficos e não um formato de produção infantil. Dessa forma, o
animê trata-se de uma dos principais ramos da indústria de entretenimento japonesa,
e é atualmente o principal veículo de divulgação da cultura pop japonesa no
mundo”. (SATO, 2007, p.31)

“Mangá: significa “história em quadrinhos” em japonês, e é o resultado dos


ideogramas man (humor, algo que não é sério) e gá (imagem, desenho). Da mesma
forma do anime, para os japoneses toda e qualquer história em quadrinhos,
independente do país de origem, é chamado de mangá. No exterior, o mangá é
denominado apenas para os quadrinhos produzidos no Japão ou histórias que
possuem o conjunto de características técnicas dos quadrinhos japoneses. O mangá
no Japão é um dos setores mais importantes na indústria editoria e de
entretenimento. Assim como o anime, atualmente é um dos principais meios de
divulgação da cultura e da língua japonesa”. (SATO, 2007, p.58)

Criado pelo artista plástico Katsushika Hokusai (1760 – 1849), o termo “mangá” era
utilizado de forma diferente da definição contemporânea, pois na época não existiam as
histórias em quadrinhos no formato conhecido dos dias atuais. O termo foi utilizado como
título de uma coleção de desenhos caricatos – publicados em 1814 até 1878. A técnica
utilizada pelo artista chamava-se Ukiyo-e. Essa técnica consistia em “gravuras

8Produzido pelo estúdio de animação “Tatsunoko Production” possuía o nome de “Mahha Go Go Go”. A sério foi exportada
em 1967 e sofreu uma alteração do nome original para Speed Racer. (SATO, 2007, p.115)

9 Gigantor é um animê criado por Mitsuteru Yokoyama e Fred Ladd, ele foi adaptado do mangá Tetsujim 28-go de

Mitsuteru. Disponivel em: <http://www.imdb.com/title/tt0058807/> acesso 02 fevereiro 2017

625
multicoloridas” impressas a partir de blocos de madeiras finamente entalhadas à mão com
desenhos estilizados, que na época eram considerados arte. (SATO, 2007).

“Histórias em quadrinhos (mangás) e desenhos animados (animês) no Japão são


assuntos seríssimos. São atividades que movimentam trilhões de ienes por ano e
cujas criações atualmente influenciam vários outros setores, do entretenimento à
moda, dentro e fora do arquipélago”. (SATO, 2007, p.125)

No processo de produção do mangá no ocidente, existe uma diferença nítida e isso


influência no modo como o produto é propagado pelas mídias, no Japão os capítulos são
publicados nas revistas japonesas com periodicidade entre semanais a bimestrais, após a
conclusão da série, eles são publicados em coletâneas de livros menores. São encadernados
com alta qualidade que geralmente possuem de 180 a 200 páginas, já para o público
ocidental, os mangás são publicados em livros menores, porém manteve-se a tradição de
iniciar a história abrindo o livreto da esquerda para a direita. (SATO, 2007).
Os mangás em sua maioria são a porta de entrada para os filmes live-action 10, as
adaptações animadas, como também são inspiração para os doramas 11. Os Doramas são
poucos conhecidos pelo público ocidental, pois sua propagação na mídia é bem pequena ou
quase inexistente, geralmente o público que gosta desse estilo de novela as assiste online ou
no Netflix. Já as adaptações dos live-action são conhecidas pelo público ocidental.
Usualmente são escolhidos os animes mais populares para as adaptações como, por
exemplo, o anime Dragon Ball 12 (FIG. 02) que é uma adaptação do mangá (FIG. 01) com o
mesmo nome, que inspirou o filme Dragon Ball Evolution 13 (FIG.03)

10
Live actions são filmes adaptados de mangas ou animes onde os atores são pessoas reais, geralmente a temática segue uma história ou
enredo reduzido de uma temporada da obra escolhida.

11
Doramas também são adaptações de mangas ou animes, com atores reais, porém o formato é diferente, uma vez que o Dorama é feito em
formado seriado para televisão com construção de roteiro e filmagem de novela, geralmente a temática segue o segmento do drama.

12
Escrito e ilustrado por Akira Toriyama, o mangá foi criado em 1984 e foi publicado até 1995, tendo sua adaptação animada para
televisão exibida originalmente de 1986 a 1989 no Japão;

13
Dirigido por James Wong, em 2009.

626
FIGURA 01 – Mangá – Dragon FIGURA 02 – Anime – Dragon FIGURA 03 – Filme – Dragon
Ball Ball Ball Evolucion
FONTE - IMDb FONTE - IMDb FONTE - IMDb

Outro anime que está ganhando grande projeção nas mídias é o já citado Ghost in the
Shell, mesmo que o seu sucesso no ocidente não tenha sido longo como Dragon Ball, o
mesmo terá uma versão adaptado para o cinema e será lançado em 2017, tendo como
inspiração em um dos filmes de animação produzidos pela franquia.
Escrito por Masamune Shirow, Ghost in the Shell foi lançado em 1989, tem
influências diretas das obras de estilo cyberpunk do final da década de 1980 como o filme
Blade Runner – o caçador de androides e o mangá Akira.
A história ambienta-se em 2029, um futuro distópico onde a alta tecnologia se mistura
com uma sociedade decadente e desigual. A sociedade estava tão avançada tecnologicamente
que os seres humanos podiam acessar extensas redes de informações com seus cyber-
cérebros.
A protagonista da história chama-se Major Mokoto Kusanagi, ela é uma espécie de
hibrido humana e ciborgue altamente treinada, que atua como agente responsável pela seção
9 da segurança pública, responsável por desvendar crimes cibernéticos.
Ghost in the Shell é um exemplo dessa convergência de mídias com o discurso
transmídiatico, pois após seu lançamento no mangá, ele foi lançado em filme de animação,
depois foi para as adaptações animadas para televisão, tendo também romances inspirados na
trama. Todas as adaptações do título serviam para iniciar ou encerrar um ciclo de histórias,
fazendo que o espectador sentisse a necessidade de acompanhar os lançamentos para
entender os acontecimentos seguintes.

627
A franquia citada tem um filme live-action lançado em 2017 com o título: Vigilantes
do amanhã: Ghost in the Shell, dirigido por Rupert Sanders.
Regularmente quando se utiliza o termo adaptação ele é empregado com base no
senso comum ao tratar de obras literárias para o cinema, porém é importante compreender
que uma adaptação está primeiramente ligada ao seu conteúdo de origem, e em segundo
lugar, a forma como o conteúdo será abordado para o novo suporte tecnológico, distinto
daquele que o originou.
O cinema contemporâneo apropria-se das mais diversos tipos de narrativas presentes,
sejam os games, os quadrinhos ou as adaptações literárias.

A maioria dos filmes de hoje é originalmente capturado em película, e, na etapa de


pós-produção, transposto para tecnologia de alta definição, ou seja, para uma ilha de
edição-não linear. Essa passagem do fotoquímico ao digital, além de agilizar e
facilitar o processo, possibilita inúmeras modificações de imagens captadas por
câmeras cinematográficas, como a criação de imagens inexistentes, a manipulação e
saturação das cores originais, assim como a alteração dos sons captados e a edição
de outros, etc. (GUIMARÃES, 2005, P. 13)

Analisando algumas cenas dos trailers disponíveis verifica-se que houve uma tentativa
de aproximar o live-action do mangá, fazendo com que ficassem visualmente aproximadas, e
essa semelhança só é possível com a tecnologia de alta definição e da concepção do cinema
de pós-produção, conforme pudemos constatar nos frames (FIG. 04 – 05 – 06 – 07) a seguir:

FIGURA 04 – Corpo sintético - Anime FIGURA 05 – Corpo sintético - Filme


FONTE – Ghost in the shell: O fantasma do futuro FONTE - Vigilantes do amanhã: Ghost in the Shell
(Mamoru Oshii, 1996) (Rupert Sandres, 2017)

628
FIGURA 06 – Salto - Anime FIGURA 07 – Salto - Filme
FONTE – Ghost in the shell: O fantasma do futuro FONTE - Vigilantes do amanhã: Ghost in the Shell
(Mamoru Oshii, 1996) (Rupert Sandres, 2017)

“Ao transportar para a película todo o leque de possibilidades que as tecnologias


digitais de alta definição, conjugadas com a informática, oferecem, o filme acaba marcando a
história do cinema e enriquecendo-a”. (GUIMARÃES, 2005)
Considera-se a indústria japonesa muito poderosa, pois ela já trabalhava com a
convergência de mídias muito antes dos Estados Unidos. O ciclo de convergência começa
com o mangá que serve de inspiração para o cinema, que alimenta o rádio, que se torna
conteúdo para a televisão que cria novos produtos.

4. Considerações Finais

É possível perceber que as mudanças trazidas pela criação de novas tecnologias ao


longo do tempo e a forma com que as sociedades estão se modificando, no que tange sua
participação e interação com os novos meios de comunicação, fez com que a sociedade
modificasse para algo mais ativo nas escolhas dos produtos e informações que lhe são
apresentadas.
Também se percebe que o engajamento dos fãs e o dialogo aproximado com as
empresas favorece ainda mais a troca de novas informações e produtos, portanto, a forma
como esse relacionamento se estruturará ainda está ocorrendo, a diferença é que existem
dezenas de caminhos que podem ser seguidos, e todos estão a disposição dos consumidores
de mídia e das empresas, que estão passando também pelo processo de mudanças para as
novas mídias digitais/virtuais.

629
Pode-se afirmar, portanto, que diálogo da linguagem cinematográfica com as novas
mídias apresenta-se como deflagrador de experiências de composição e
recomposição das imagens, na tentativa de descobrir novas formas expressivas que
exploram um tempo dos deslocamentos em todas as direções. Um tempo das
imagens da cibercultura, com toda a sua constelação de processos comunicativos
midiáticos em constante transformação, que demandam de um novo aparelho
interpretativo. (GUIMARÃES, 2005, p. 23)

O diálogo entre duas mídias revela-se como um fenômeno que não pode ser menosprezado
pelas instituições de ensino e pesquisadores. Fazem-se necessárias análises sensíveis sobre a
dimensão sociocultural envolvida nesse tema em questão.

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630
CULTURA LOCAL E MEDIAÇÃO NAS REDES SOCIAIS DA
INTERNET: 1
Estudo de Caso da paródia “Empire Goiás of Mind”
LOCAL CULTURE AND MEDIATION ON THE INTERNET
SOCIAL NETWORKS: A case study of the parody “Empire
Goiás of Mind”
Diogo Carvalho Gondim Teles 2

Resumo: O presente artigo discute a relação entre cultura local e mediação nas redes sociais da internet a
partir do videoclipe “Empire Goiás of Mind”, paródia produzida pela fanpage de humor Goiânia Mil Grau
como material de divulgação do evento de música alternativa Bananada 2018. Objetiva-se, através de Análise
de Conteúdo, identificar os motivos da utilização dos signos da cultura goianiense na mediação entre a
parceria da paródia e o público do evento, ressaltando quais são estes signos, como são utilizados e porquê são
utilizados. Ao fim, busca-se apresentar um exemplo de como os usos que os usuários das redes sociais fazem da
internet são também glocalizados, confrontando a visão de uma suposta força de homogeneização cultural
promovida por este meio.

Palavras-Chave: Cultura Local. Internet. Mediação. Signo.

1. Introdução

Partindo do contexto sociocultural da cidade de Goiânia, o propósito central deste


artigo é discutir uma possível relação entre cultura local e mediação nas redes sociais da
internet, abordando como objeto de estudo o videoclipe “Empire Goiás of Mind”, paródia da
música norte-americana “Empire State of Mind” produzida e publicada pela fanpage de
humor do Facebook Goiânia Mil Grau como forma de divulgação do festival de música
Bananada 2018. Popular no cenário alternativo de Goiânia, o evento abre espaço para
gêneros musicais variados que fazem parte do gosto musical de goianienses e de diversas
pessoas ao redor do mundo, como rap e o rock, apresentando assim outra faceta de uma

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Convergência e Cultura Midiática do 3º CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Mestrando em Comunicação, na linha de Mídia e Cultura, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade Federal de Goiás. Bacharel em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, pela
Universidade Federal de Goiás (2015). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás. E-mail:
diogocgteles@outlook.com.

631
cidade a qual uma “identidade sertaneja” atribuída a ela é reconhecida por uma grande parte
de seus habitantes e pela mídia local.
Destarte, o objetivo deste artigo é identificar os motivos da utilização dos signos da
cultura local goianiense na mediação entre a parceria Goiânia Mil Grau/Festival Bananada e
o público do evento, ressaltando quais são estes signos, como são utilizados e porquê são
utilizados.

2. Culturas Locais em mundo globalizado: novas formas de vínculos com o território

Para definir os parâmetros de análise de uma cultura, partimos de um conceito


semiótico fundamentado em Geertz (2015), o qual define cultura como “estruturas de
significado socialmente estabelecidas” (GEERTZ, 2015, p. 9) que se articulam em dado
contexto através dos fluxos de comportamento de um grupo. Neste sentido, segue-se uma
abordagem de análise de cultura que visa identificar seus sistemas simbólicos a partir da
observação das práticas sociais de um grupo, manifestadas no espaço do cotidiano em seus
costumes, valores, arte, língua, etc. Para tal observação é necessário levar-se em
consideração, já de início, as transformações contemporâneas engendradas na dinâmica entre
as culturas locais e os fluxos culturais que circulam a nível global.
Se “tradicionalmente, definir uma cultura era um exercício de afirmar seus limites e o
que caberia e o que não caberia nela” (OLIVEN, 2006, p. 201), delimitando o território em
que habitavam os indivíduos pertencentes a essa cultura e suas características singulares,
segundo García Canclini (2008) as culturas locais encontram-se cada vez menos ancoradas
em torno de traços fixos e essencialistas, ao passo que ocorrem constantes cruzamentos entre
seus sistemas de significados com os de outras culturas, resultando em processos de trocas
simbólicas e materiais entre elas. Este fenômeno é explicado por Hall a partir da
globalização, “um complexo de processos e forças de mudança” (2005, p. 67) que ultrapassa
as fronteiras físicas delimitadas pelos Estados-nação. Neste contexto, “poucas culturas podem
ser agora descritas como unidades estáveis, com limites precisos baseados na ocupação de
um território delimitado” (GARCÍA CANCLINI, 2008 p. XXIX), de forma que diversas
manifestações culturais se originam da hibridação entre culturas distintas, um processo onde
as noções do que se considera como tradicional ou moderno se misturam e dão forma as
chamadas culturas híbridas.

632
Tal hibridismo é então definido por García Canclini (2008) como um conjunto de
“[...] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2008, p. XIX).
Apesar de a princípio tais processos poderem ser vistos como danosos à diferenciação local,
para Hall (2005), as culturas híbridas e as trocas simbólicas promovidas pela globalização
não devem ser vistas como o fim das culturas locais: “ao invés de pensar no global como
‘substituindo’ o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre ‘o global’ e ‘o
local’” (HALL, 2005, p. 77). Desse modo, há que se ter ciência de que as culturas locais não
se encontram mais estritamente ligadas à caraterísticas essencialistas e localidades bem
definidas. No contexto de um mundo globalizado, são produzidas, “simultaneamente, novas
identificações ‘globais’ e novas identificações ‘locais’” (HALL, 2005, p. 78, grifo do autor),
isto é, novas formas de vínculos entre os indivíduos e os territórios dos quais habitam.
Na perspectiva de Oliven (2006), estes novos vínculos com o local são essenciais ao
oferecerem, em meio ao embaralhamento das fronteiras promovido pela globalização,
“objetos de identificação mais próximos” (OLIVEN, 2006, p. 206) dos quais as pessoas
podem se posicionar no mundo a partir deles, à medida em que também “necessitamos de
marcos de referência que estejam mais próximos de nós” (OLIVEN, 2006, p. 209). As
manifestações culturais locais, nesta lógica, não perdem o seu valor de referência para os
habitantes de determinado território, mas convivem e interagem com outras manifestações
culturais de cunho global.
Pelo discutido em García Canclini (2008), Hall (2005) e Oliven (2006), pode-se
afirmar que as culturas locais não estão mais exclusivamente ligadas aquilo que se
considerava como pré-estabelecido pelo senso comum de análises culturais superficiais,
como em estereótipos regionais tais como o gaúcho que usa calças bombachas ou o goiano
que leva um estilo de vida “sertaneja”. Em meio a um contexto de intensas trocas simbólicas
e hibridações entre culturas, as culturas locais não oferecem mais respostas óbvias para
aqueles que as desejem investigar.

633
3. Contexto sociocultural de Goiânia: a hibridação entre signos urbanos e rurais

Segundo Chaul (2009), a cidade de Goiânia, atualmente com 84 anos, mescla signos
do meio urbano com o rural: “Goiânia é um pedaço de modernidade cravado no sertão de
Goiás. Capim em meio ao concreto, crescendo desordenadamente em bairros e vilas, neon em
contraste com o entardecer do interior de Goiás” (CHAUL, 2009, p. 100). Em meio a esta
mistura de signos modernos/tradicionais, urbanos/rurais, de acordo com Silva e Almeida
(2010), uma identidade sertaneja vinculada à Goiânia se encontra presente no cotidiano de
seus moradores, como no consumo de alguns pratos típicos da culinária rural e na força da
música sertaneja entre o gosto popular goianiense. As autoras observam que esta identidade
sertaneja vinculada à cidade é ainda reforçada “pela vasta influência da mídia, da difusão da
música sertaneja romântica e da publicidade em torno [...] de shows e outros eventos
denominados sertanejos ou country” (SILVA; ALMEIDA, 2010, p. 69, grifos dos autores).
Entretanto, Chaul (2009) ressalta que não se deve resumir as características culturais de
Goiânia em torno do título de “cidade sertaneja”, uma vez que a cidade possui um caráter
plural: “Qualquer rótulo será mera expressão de um mero pedaço de seu todo, de suas
mesclagens culturais [...]. Goiânia tem útero macunaímico, formação geral entre o urbano e o
rural, art déco, berrante sampliado em múltiplos tons” (CHAUL, 2009, p. 110, grifo do
autor).
A partir de Chaul (2009) destaca-se a pluralidade de manifestações culturais presentes
na cidade de Goiânia, mesmo que uma identidade sertaneja, conforme apresentado por Silva
e Almeida (2010), seja marcante em seu cenário cultural. Em relação aos eventos musicais de
Goiânia, Pablo Kossa 3 enfatiza sobre a diversidade de gêneros entre os gostos da população
goianiense: “Aqui tem rock, sertanejo, reggae, blues, jazz, rap e samba de qualidade. Como
toda grande cidade não dá para limitar culturalmente uma só manifestação” (KOSSA, 2014).
Por fim, infere-se, a partir da característica plural dos signos presentes no contexto
sociocultural goianiense, que novos vínculos entre a cidade e seus habitantes tendem a surgir,
à medida em que os “[...] referentes culturais que materializam e simbolizam os espaços e os
sentimentos de identificação com a cidade, ainda que singulares, tendem a proliferar-se, a
multiplicar-se, gerando novas identidades” (SILVA; ALMEIDA, 2010, p. 78).

3
Radialista e produtor musical, influente no cenário cultural de Goiânia.

634
4. Mediação cultural: o processo de produção e recepção de sentido em um contexto
local

Em Dos Meios às Mediações (1997), os processos comunicativos que ocorrem em


dado contexto são entendidos por Martín-Barbero como formas de práticas socioculturais,
ligando-se assim a comunicação à ideia de cultura. Ao apontar este vínculo entre os dois
conceitos, segundo Jacks (1999), Martín-Barbero “subsume o conceito de cultura, colocando-
a como mediadora de todos os processos de recepção, apropriação, re-apropriação,
significação, produção de sentido, etc” (JACKS, 1999, p. 61). Desta forma, Martín-Barbero
propõe que para se compreender a comunicação é necessário “deslocarmos o espaço de
interesse dos meios para o lugar onde é produzido o seu sentido” (MARTÍN-BARBERO,
1997, p. 269), ou seja, o contexto sociocultural onde os significados são produzidos e ganham
concretude na vida cotidiana de cada indivíduo.
Tem-se assim, entre as figuras do emissor e do receptor, o espaço ao qual Martín-
Barbero (1997) denomina de “mediação”, um conjunto de elementos que compõem uma
trama cultural e intervém na estruturação da produção e recepção de sentido. A concepção de
comunicação proposta pelo autor, ao considerá-la inalienável da situação sociocultural dos
receptores, valoriza o consumo ativo de uma mensagem, de modo que o receptor a
ressignifica conforme sua experiência cultural. Em meio a esta complexa estrutura de
emissor-mediação-receptor, Jacks (1999) observa o papel das culturas locais no processo de
recepção, ao passo que dão forma às identidades culturais, formando-se os vínculos “entre
essa cultura, constituída de normas, mitos, símbolos e imagens, e os indivíduos que já estão
estruturados por esses elementos” (JACKS, 1999, p. 68).
O fato dos signos de uma cultura local serem melhor compreendidos pelos indivíduos
que se identificam com ela pode ser explicado empiricamente com o auxílio do modelo de
codificação/decodificação proposto por Hall (2003), que indica a necessidade de uma certa
equivalência no grau de compreensão entre emissor (codificador) e receptor (decodificador)
para a construção de sentido. De acordo com Hall, toda mensagem é carregada de elementos
significativos capazes de criar efeitos em seu receptor, de maneira que,

635
antes que essa mensagem possa ter um “efeito” (qualquer que seja sua definição),
satisfaça uma “necessidade” ou tenha um ‘uso”, deve primeiro ser apropriada como
um discurso significativo e ser significativamente decodificada. É esse conjunto de
significados decodificados que “tem um efeito”, influencia, entretém, instrui ou
persuade, com consequências perceptivas, cognitivas, emocionais, ideológicas ou
comportamentais muito complexas (HALL, 2003, p. 368).

A decodificação dos signos de uma mensagem não é processada de forma igual por
todas as pessoas, podendo ocorrer distorções no que se objetiva comunicar a princípio. Isso
pode ser explicado pela assimetria que pode existir entre a codificação e a decodificação:

Os graus de simetria – ou seja, os graus de “compreensão” e “má-compreensão” na


troca comunicativa – dependem dos graus de simetria/assimetria (relações de
equivalência) estabelecidos entre as posições das “personificações” – codificador-
produtor e decodificador-receptor (HALL, 2003, p. 369).

O modo como a decodificação de signos locais pelos membros de sua cultura aparenta
ser orgânica pode ser entendido a partir dos “códigos naturalizados” citados por Hall (2003).
Em diversos contextos, certos signos podem ser amplamente distribuídos em uma cultura e
apreendidos desde cedo na vida cotidiana das pessoas que são percebidos como naturais ao
invés de socialmente construídos:

simples signos visuais parecem ter alcançado uma “quase universalidade”, embora
permaneçam evidências de que até mesmo códigos visuais aparentemente
“naturais” sejam específicos de uma dada cultura. Isto não significa que nenhum
código tenha interferido, mas, antes, que os códigos foram profundamente
naturalizados. A operação de códigos naturalizados revela não a transparência e
“naturalidade” da linguagem, mas a profundidade, o caráter habitual e a quase
universalidade dos códigos em uso (HALL, 2003, p. 371).

Desta forma, diversas práticas culturais são naturalmente assimiladas pelas pessoas
que se identificam com a cultura a qual elas estão vinculadas. Tais práticas podem ser
decodificadas por indivíduos que desconhecem seu contexto de produção de modo
completamente diferente de como alguém inserido nesse contexto cultural as decodificaria.
Baseado em Jacks (1999), Martín-Barbero (1997) e Hall (2003), infere-se que algumas
estratégias comunicativas podem ser organizadas a partir da utilização de signos de um
contexto local para se estabelecer uma relação de equivalência na troca de significados entre
emissor e receptor, com o sistema simbólico das culturas locais atuando assim no espaço da
mediação.

636
5. Redes sociais na internet e o uso “glocal” de seus usuários

A chamada “revolução digital”, a qual se encontra ligada a popularização da internet a


partir da década de 1990, trouxe novas possibilidades de interação entre pessoas através do
advento da comunicação mediada por computadores. De acordo com Recuero (2009), os
canais de comunicação online amplificaram a capacidade das pessoas de se conectarem umas
às outras e permitiram a expressão e criação de redes sociais, “formas de organização social
mais flexíveis e adaptáveis” (CASTELLS, 2006, p. 17) que não devem ser vistas como uma
novidade advinda da revolução digital. Wellman (2001) explica que: “redes sociais
complexas sempre existiram, mas recentes desenvolvimentos tecnológicos permitiram sua
emergência como uma forma dominante de organização social” (WELLMAN, 2001, p. 2,
tradução nossa) 4.
Nesse contexto de interação online entre pessoas, destacam-se sites como o Facebook,
Twitter e Instagram, que se configuram como espaços propícios para a expressão das redes
sociais na internet. A criação de um perfil nesses sites marca a “presença do ‘eu’ no
ciberespaço, um espaço privado e, ao mesmo tempo, público” (RECUERO, 2009, p. 27). A
partir de seus perfis online, indivíduos se conectam com os perfis de outros indivíduos
através de solicitações de amizade, estabelecendo assim laços sociais que podem ou não
serem a expressão de redes sociais já existentes fora do âmbito da internet.
A partir de Wellman (2001) e sua visão de que as redes sociais são “glocalizadas”
(glocalized networks), à medida em que possuem aspectos globais sem perder seus vínculos
locais, pode-se apontar o uso “glocal” do qual fazem os usuários dos sites de redes sociais.
Martel (2015) aprofunda este raciocínio ao entender que as conversas digitais não são iguais
em todos lugares do mundo, de forma que “se as redes sociais, as plataformas, as
infraestruturas e os softwares muitas vezes são globais, os conteúdos não o são. Persistem
fronteiras na internet, em virtude da língua [...] de um território, da comunidade a que se
pertence” (MARTEL, 2015, p. 9-10).

4
“Complex social networks have always existed, but recent technological developments have afforded their
emergence as a dominant form of social organization”.

637
Fundamentado em Wellman (2001) e Martel (2015), entende-se que as características
globais da internet não implicam na desterritorialização dos conteúdos compartilhados por
seus usuários e na dissolução de suas identidades culturais locais. Fanpages do Facebook
voltadas a conteúdos específicos de uma cidade e grupos de whatsapp dos moradores de um
bairro estão presentes nas mesmas plataformas que hospedam grupos de fãs de uma série
televisiva transmitida globalmente ou de uma marca transnacional de roupas. Assim,
contrapõe-se à visão de uma homogeneização promovida pela internet e suas plataformas de
redes sociais, ressaltando a “persistência do território num mundo conectado e globalizado”
(MARTEL, 2015, p. 431), ao passo que, em diversas ocasiões, pessoas se conectam a outras
pessoas na internet baseadas em redes sociais de seu cotidiano “offline”; e comunidades
virtuais se formam em torno de interesses em comum relacionados à uma cidade.

6. Metodologia

A metodologia desta pesquisa baseia-se no método qualitativo de Estudo de Caso,


firmado em um levantamento bibliográfico e em uma Análise de Conteúdo desenvolvida a
partir da letra da música “Empire Goiás of Mind”, paródia produzida pela fanpage de humor
do Facebook Goiânia Mil Grau. Optou-se por uma abordagem qualitativa, fundamentada em
Minayo (2002), devido a necessidade de se entender um fenômeno específico com mais
profundidade, enfatizando a interpretação dos dados e descobertas. Neste mesmo sentido, o
método de Estudo de Caso foi escolhido por representar um “estudo profundo e exaustivo de
um ou de poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado”
(GIL, 2008, p. 58).
Tendo em vista o objetivo de se compreender as condições de produção/recepção da
letra da paródia, identificando quais signos locais estão nela presentes, a Análise de Conteúdo
foi escolhida como instrumento de pesquisa visando a produção de inferências que
proporcionem a interpretação dos motivos pelos quais tais signos locais foram utilizados na
composição da paródia. Como explica Bardin (2010), a Análise de Conteúdo é um conjunto
de técnicas de análise das comunicações que visa obter, por procedimentos sistemáticos e
objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitem a inferência
das intenções dos autores destas mensagens, que podem ou não estarem expressas nas
“entrelinhas” do texto.

638
Seguindo os passos determinados por Bardin (2010) na execução de uma Análise
de Conteúdo, define-se, para a etapa de codificação 5 do texto, o tema 6 como unidade de
registro e a presença/ausência 7 como regra de enumeração, de forma que os temas que
indicarem signos relacionados ao contexto sociocultural de Goiânia serão agrupados em
categorias de acordo com semelhanças entre seus núcleos de sentido, sendo os resultados em
seguida interpretados conforme o referencial teórico apresentado anteriormente.

7. Análise de Conteúdo da Paródia “Empire Goiás of Mind”

Publicada na fanpage de humor do Facebook Goiânia Mil Grau em 3 de maio de


2018, a paródia “Empire Goiás of Mind” 8 foi produzida pela equipe da fanpage como

5
“Corresponde a uma transformação – efetuada segundo regras precisas – dos dados em bruto do texto,
transformação esta que, por recorte, agregação e enumeração, permite atingir uma representação do conteúdo,
ou da sua expressão” (BARDIN, 2010, p. 129).
6
“Uma unidade de significação complexa, de comprimento variável; a sua validade não é de ordem linguística,
mas antes de ordem psicológica: podem constituir um tema tanto uma afirmação como uma alusão;
inversamente, um tema pode ser desenvolvido em várias afirmações (ou proposições)” (D’UNRUG apud
BARDIN, 2010, p. 131).
7
De acordo com Bardin (2010, p. 134), a presença de determinados elementos em um texto pode ser
significativa, funcionando como um indicador de intenção. Porém, a ausência de outros elementos pode também
representar a veiculação de um sentido.
8
Letra musical da paródia:
Rasgano a Anhanguera
já que eu não tenho a Botafogo
No Santana rebaixado eu sou piloto
Busco a cremosa
Deixo os mulek com a vovó
Que hoje a gente vai sentindo o passeio das H2O
E eu vô dibrano
Os buraco da Perimetral
Nego passa desatento e quandefé já se deu mal
E tá rodado
E eu tô tipo uno na descida
Tô indo pro Bananada ver o show do Emicida
E no caminho parei no sinaleiro
Forró Boys tocando do meu lado numa saveiro
Um vendedor de água me falou
“pelo que eu vejo cêis tão tudo indo pro mesmo show sertanejo”
E eu disse “dá licença cê tá me jugano
só por causa q eu tô de butina e com meu chapéu de pano”
Eu apertei minha fivela e acelerei pro Bananada esguelando meu Santana
Colei de pulseira prata
[Refrão]
Em Goiás acham que só tem sertanejo
E é bem isso mesmo
mas também tem mais

639
material de divulgação da 20ª edição do evento de música alternativa Bananada 2018,
realizado anualmente em Goiânia. Conhecida entre o público jovem goianiense por suas
postagens irreverentes sobre o cotidiano da cidade e redublagens de cenas de séries
americanas, utilizando gírias e personagens do imaginário local, a fanpage repete seu estilo
característico de humor na paródia 9, uma ressignificação da música “Empire State of Mind”
interpretada pela cantora americana Alicia Keys. A paródia alcançou a marca de 20 mil
visualizações, 549 compartilhamentos, 418 comentários de 1,2 mil curtidas 10.

FIGURA 1 – Foto de capa da fanpage Goiânia Mil Grau


FONTE – https://www.facebook.com/goianiamilgrauoficial/. Acessado em 05/08/2018.

FIGURA 2 – Banner oficial do evento “Festival Bananada 2018”


FONTE – http://www.festivalbananada.com.br/. Acessado em 05/08/2018.

Tem altos shows na quebrada


Tipo o Bananada
Os rolê de Goiás
Goiás 2x (transcrição nossa).
9
De acordo com Bakhtin (1987), paródia é uma forma de discurso produzido a partir da subversão do sentido
original de um outro discurso, gerando frequentemente um efeito humorístico. A paródia é assim composta por
“vozes culturais” distintas e antagônicas (texto parodiado e paródia).
10
Dados obtidos através da plataforma do Facebook. Acesso em: 03 de agosto de 2018.

640
Enquanto a música original tem como tema principal a cidade de Nova York e seus
bairros, ruas e outros símbolos característicos, a paródia “Empire Goiás of Mind” referencia
vários espaços da cidade de Goiânia a medida em que seu “eu lírico”, representado em 1ª
pessoa, narra seu deslocamento até o Festival Bananada. O “eu lírico” se descreve como
vestindo acessórios associados ao “estilo sertanejo” e possui um vocabulário repleto de gírias
locais, sobretudo algumas ditas entre o público jovem.

FIGURA 3 – Postagem da paródia “Empire Goiás of Mind”


FONTE – https://www.facebook.com/goianiamilgrauoficial/. Acessado em 05/08/2018.

Optou-se pela análise de conteúdo da letra da paródia, desconsiderando elementos


visuais, devido ao seu videoclipe representar majoritariamente imagens que representam o
que já é descrito em sua parte textual. A seguir, apresentamos uma tabela elaborada de acordo
com os temas presentes na letra paródia e categorização conforme a semelhança entre os
núcleos de sentido de cada unidade de registro:

641
TABELA 1
Análise de Conteúdo da letra da paródia “Empire Goiás of Mind”

Tema Categorias Unidade de Registro Unidade de Contexto


(1) a Anhanguera (1) Rasgano a Anhanguera
(2) a Botafogo (2) Já que eu não tenho a Botafogo
Ruas e (3) Perimetral (3) os buraco da Perimetral
Espaços da Avenidas (4) sinaleiro (4) E no caminho parei no sinaleiro
Cidade
(5) passeio das H2O (5) Que hoje a gente vai sentindo ao
Locais de (6) Bananada passeio das H20
entretenimento (6) Acelerei pro Bananada

(7) a cremosa (7) Busco a cremosa


Modos de se (8) os mulek (8) Deixo os mulek com a vovó
referir a alguém (9) cêis (9) Cêis tão tudo indo

(10) dibrano (10) E eu vô dibrano


(11) quandefé (11) Nego passa desatento e quandefé
Gírias (12) rodado já se deu mal
Ações (13) esguelando (12) tá rodado e eu tô tipo uno na
descida
(13) esguelando meu Santana

(14) butina (14) cê tá me jugano só por causa que


(15) chapéu de pano eu tô de butina
Vestimenta Estilo Sertanejo (16) fivela (15) e com meu chapéu de pano
(16) eu apertei minha fivela

(17) show sertanejo (17) indo pro mesmo show sertanejo


(18) acham que só tem (18) Em Goiás acham que só tem
Música sertanejo sertanejo [...] mas também tem mais
Sertaneja
Gosto
Musical (19) show do Emicida (19) tô indo pro Bananada ver o show
Gêneros musicais (20) Forró Boys do Emicida
alternativos em (21) shows na quebrada (20) Forró Boys tocando do meu lado
Goiânia (21) Tem altos shows na quebrada tipo
o Bananada

FONTE – elaborado pelo autor (Ano: 2018).

7.1. Resultados e Discussão

A definição dos temas e categorias da tabela 1 fundamenta-se em Geertz (2015) e sua


abordagem de análise cultural a partir das práticas sociais de um grupo, e em Barbero (1997),
para quem o cotidiano é o espaço onde se dá a produção e recepção de sentido. Identificamos
assim 4 temas que se referem à cidade Goiânia e seus habitantes: espaços da cidade; gírias

642
faladas; vestimenta; e gosto musical. A partir da análise de cada tema, buscamos identificar
os motivos da utilização de signos locais na mediação entre a paródia e o público do Festival
Bananada 2018, ressaltando quais são estes signos, como são utilizados e por quê são
utilizados. Infere-se, a partir da tabela 1, que:

a) O tema Espaços da Cidade se manifesta a partir da presença de signos referentes à


ruas e avenidas de circulação do goianiense, como a avenida Anhanguera (1), a
marginal Botafogo (2) a perimetral Norte (3), o “sinaleiro 11” (4); e à locais de
entretenimento, como o shopping Passeio das Águas (5) e o próprio Festival
Bananada (6). Estes signos locais são utilizados conforme o “eu lírico” descreve o
seu percurso pela cidade até chegar ao local do Festival.
b) O tema Gírias se manifesta a partir da presença de signos referentes aos modos de se
referir a alguém, como a garota “cremosa” (7), “os mulek” (8), “cêis” (9); e à ações,
como “dibrano” (10), “quandefé” (11), “rodado” (12) e “esguelando” (13). Percebe-
se neste tema que a paródia mistura gírias tradicionais do meio rural, como
“esguelando” e “quandefé”, com gírias ditas pelo público jovem do meio urbano,
como “os mulek” e “a cremosa”.
c) O tema Vestimenta se manifesta a partir da presença de signos referentes a um estilo
sertanejo de se vestir, representado por acessórios como o calçado “butina” (14), o
chapéu “de pano” (15) e a fivela (16) de cinto. Estes signos do “estilo sertanejo” são
utilizados pelo “eu lírico” em sua resposta contrária a um julgamento de valor que
associa intrinsicamente o seu modo de se vestir ao gosto pela música sertaneja,
expressa no verso “dá licença, cê tá me jugano só pq eu tô de butina e chapéu de
pano”.
d) O tema Gosto Musical se manifesta a partir da presença de signos referentes à música
sertaneja, como “show sertanejo” (17) e “acham que só tem sertanejo” (18); e à
gêneros musicais alternativos em Goiânia, como “show do Emicida” (19),
“Forróboys” (20) e “shows na quebrada” (21). Percebe-se neste tema o
estabelecimento de uma contraposição à ideia de que o gosto musical do goianiense
está ligado estritamente à música sertaneja, à medida em que são citados o “show do

11
Modo como os goianienses se referem aos semáforos de trânsito, elemento presente nos espaços da cidade.

643
Emicida” (cantor de rap), “Forróboys” (banda de tecnobrega) e “shows na
quebrada” 12 (referindo-se ao Bananada), representando assim estilos musicais
alternativos à predominância da música sertaneja em Goiânia. A contraposição é
enfatizada no verso “em Goiás acham que só tem sertanejo [...], mas também tem
mais”.

De modo geral, os signos locais manifestados na letra da paródia são utilizados para
representar o contexto sociocultural de Goiânia e estabelecer uma relação entre o público
goianiense e o Festival Bananada 2018, a partir de “objetos de identificação mais próximos”
(OLIVEN, 2006, p. 206) do cotidiano deste público. Em outras palavras, estes objetos de
identificação são utilizados na mediação entre Goiânia Mil Grau/Bananada (emissor) e seu
público (receptor) de modo a estabelecer, conforme o sistema de codificação/decodificação
proposto por Hall (2003), uma relação de equivalência no grau de compreensão entre os dois
lados do processo comunicativo. Desta maneira, apela-se para a capacidade deste público de
decodificar os signos locais apresentados na paródia, que poderiam ser interpretados de modo
completamente diferente por indivíduos que não conhecem o contexto sociocultural de
Goiânia. Neste sentido, interpretar que “a Anhanguera” se refere à uma avenida central da
cidade e que “quandefé” se refere à uma gíria para imprevisibilidade é uma tarefa mais
simples para o goianiense do que para pessoas de outro estado do Brasil, devido serem
códigos naturalizados (HALL, 2003) em sua vida cotidiana.
O contexto sociocultural de Goiânia é também expressado na paródia a partir da
mistura entre signos rurais e signos urbanos, uma característica marcante da cidade segundo
Chaul (2009). Esta mistura é percebida na figura do “eu lírico”, um indivíduo que diz gírias
do meio rural e do meio urbano, usa acessórios relacionados ao “estilo sertanejo” enquanto
está indo “assistir ao show do Emicida” no Bananada, e por fim, não concorda quando dizem
que ele está indo a um show sertanejo só por estar vestido de tal forma. Ao apresentar signos
distintos em torno de uma única figura, a paródia representa a característica principal das
culturas híbridas (CANCLINI, 2008), que em mundo globalizado de constantes cruzamentos
entre culturas, produzem novas identificações entre indivíduos e o território que habitam
(HALL, 2005). Destarte, discute-se de forma bem-humorada, a partir do tema “gosto

12
Palavra associada às periferias urbanas.

644
musical”, sobre a hegemonia da música sertaneja em Goiânia quando ela é contraposta ao
cenário de música alternativa da cidade, representado na paródia pelo Festival Bananada.
Pode-se interpretar, finalmente, que a paródia não nega que o goianiense possua seus
vínculos com um “estilo de vida sertanejo” e que a música sertaneja seja o gênero musical
mais popular na cidade, mas sim destaca as múltiplas facetas de sua cultura local (ou quem
dirá no plural, culturas), resultantes da hibridação entre o rural e o urbano, e suas
manifestações culturais alternativas à hegemônica.
Nesta perspectiva, os signos locais de Goiânia são também utilizados para
personificar o público do Festival Bananada através do “eu lírico” da paródia e sua identidade
híbrida de elementos rurais e urbanos. Público composto em parte por goianienses que,
inseridos no contexto sociocultural da cidade, podem talvez se identificarem exclusivamente
com os gêneros musicais alternativos presentes no evento, ou até mesmo apresentarem um
gosto musical eclético entre esses gêneros e a música sertaneja.

8. Considerações finais

A partir da Análise de Conteúdo da paródia pôde-se perceber como são apresentados


indícios do contexto sociocultural de Goiânia e como o Festival Bananada 2018 se insere
nele. Compreende-se que os signos presentes neste contexto sociocultural são utilizados na
mediação entre Goiânia Mil Grau/Bananada e seu público, através da paródia, com o
objetivo de estabelecer uma relação de equivalência entre os dois lados e personificar uma
provável identidade dos goianienses que se interessam por opções alternativas de
entretenimento na capital goiana, diferindo-se de seus populares shows de música sertaneja.
Por se tratar de um material de divulgação do festival, infere-se, por fim, que esta mediação
se dá essencialmente para atrair a atenção do público do evento através de signos mais
próximos de seu cotidiano e levá-lo aos shows do Bananada 2018, de modo que, como
observa Barbero (1997) e Jacks (1999), o cotidiano possui um papel importante no processo
de recepção por ser o espaço onde os significados ganham concretude na vida das pessoas.

645
Ainda sobre a importância do cotidiano no processo de recepção, pode-se entender
como alcance da página Goiânia Mil Grau 13 entre os usuários goianienses do Facebook foi
de grande utilidade para a divulgação da paródia, já que o conteúdo da página essencialmente
está relacionado à temáticas do cotidiano de Goiânia e atrai o interesse de muitos destes
usuários, que interagem curtindo e compartilhando seu conteúdo, além de marcar amigos de
sua rede social na zona destinada à comentários das postagens. Por esse ângulo, a parceria
entre a fanpage e o Bananada 2018 para a elaboração de um material de divulgação online
configurou-se como uma estratégia frutífera para alcançar usuários do Facebook que
possivelmente moram em Goiânia e fazem parte do público-alvo do evento. A paródia
“Empire Goiás of Mind” apresenta-se como um exemplo de como os usos que os usuários do
Facebook fazem da internet são também glocalizados, à medida em que este é um conteúdo
“territorializado” (MARTEL, 2015) melhor decodificado pelos usuários que conhecem o
contexto sociocultural de Goiânia.
Em um mundo globalizado e conectado online, onde ocorrem constantes trocas
simbólicas entre culturas e pessoas podem conversar com outras pessoas localizadas em
lugares distantes, persistem ainda certas fronteiras da vida “offline”, devido a diversidade de
idiomas, tradições e símbolos de contextos socioculturais diversos a partir dos quais as
pessoas podem se posicionar no mundo “glocalmente” (WELLMAN, 2001). Permanecem
assim certos vínculos de pessoas com o território que habitam, mesmo que suas redes sociais
estejam também inseridas em uma trama onde conectar-se com o mundo todo parece ser a
regra.

Referências bibliográficas

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São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
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13
A página possui 218.591 seguidores até o momento. Informação fornecida pela plataforma da rede social
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646
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647
IMAGEM E AMBIGUIDADE NAS PRÁTICAS DO PHONEUR
COTEMPORÂNEO 1
IMAGE AND AMBIGUITY IN CONTEMPORARY PHONEUR
PRACTICES
Adriano Chagas 2

Resumo: Este trabalho posiciona os smartphones no centro de uma transformação


tecnológica que altera os modos de ser e agir do homem da atualidade. Ao mediar
inúmeros processos comunicacionais e de subjetivação, o telefone celular pode ser
um mecanismo que age a favor da pasteurização do homem, em oposição a uma
nova geração criada com o hábito de seu manuseio. Indivíduos e seus dispositivos
conectados à internet produzem, circulam e consomem imagens audiovisuais dentro
de uma esfera pública digital. Assim, contribuem para a releitura dos conceitos de
lugares, não lugares e espaços. O sujeito conectado a ambientes virtuais registra e
compartilha suas produções com outros, assumindo a condição de um phoneur,
termo que associa o telefone, na língua inglesa, à figura do flâneur, personagem
que vagava pelas ruas de Paris no século XIX. O artigo aborda a força e a
ambiguidade do telefone celular, equipamento de certa dubiedade nele próprio,
como um ambiente paradoxal móvel e portátil. A reflexão é amparada por
pensamentos de Henry Jenkins, Giorgio Agamben, Maurice Blanchot, Marc Augé e
Paula Sibilia.
Palavras-Chave: Audiovisual. Smartphone. Imagem. Cinema. Video.

Introdução

Nos anos 1990, quando alguém atendia um telefone celular em público, tal gesto
causava espanto e constrangimento. Como poucas pessoas tinham acesso a um aparelho de
telefonia móvel, o uso da tecnologia costumava despertar a atenção de quem estava por perto.
Hoje, a evolução dos primeiros equipamentos que só permitiam a comunicação por voz é o
smartphone. O telefone celular, conectado à internet, está tão integrado ao cotidiano que o
seu uso, o dia a dia, não provoca o interesse ou a reação de mais ninguém.
Estes Dispositivos Híbridos Móveis de Conexão Multirredes (LEM0S, 2008)
cumprem a finalidade essencial de tornar viável a comunicação entre usuários e vão muito

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Convergência e Cultura Midiática do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Professor da Estácio-RJ, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense – UFF (Conceito
CAPES 6), adriano.chagas@gmail.com.

648
além. Suas multifunções envolvem o envio e recebimento de mensagens de texto e
multimídia, o compartilhamento de conteúdo pela tecnologia Bluetooth 3 e a captação,
processamento, distribuição e exibição de arquivos áudio e vídeo.
A disponibilidade da tecnologia gera imagens cada vez mais nítidas e com maior
resolução. Por meio dos smartphones conectados à internet, estas imagens também são
compartilhadas. Tais ações contribuem para o estabelecimento de um novo paradigma da
imagem audiovisual, cuja razão de ser não consiste na anulação das características da
imagem clássica do cinema, mas na constituição de uma relação definitiva de coexistência.

O dispositivo

A filosofia apoia a definição do celular como um dispositivo, cuja origem está no


termo latino dispositio. Nesta perspectiva, a palavra surge associada a um conjunto de
práticas, saberes, medidas e instituições, com o objetivo de gerir, governar, controlar e
orientar os gestos e pensamentos dos homens de forma utilitária. O filósofo italiano Giorgio
Agamben propõe a abordagem do dispositivo como um termo técnico decisivo do
pensamento do francês Michel Foucault (AGAMBEN, 2005). Foucault chegou muito perto
de uma definição, ao considerar o aparato como
um conjunto heterogêneo de discursos, instituições, estruturas arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não
dito. O dispositivo é a rede que se estabelece entre estes elementos, tem uma função
estratégica e está sempre inscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre
ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida, condicionam-
no. Assim, o dispositivo é: um conjunto de estratégias de relações de força que
condicionam certo tipo de saber e por ele são condicionados (LÓPEZ, 2011, p.47).

Desta forma é possível batizar de “dispositivo” qualquer coisa que tenha a capacidade
de “capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar gestos,
condutas, opiniões e discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2005). A definição de
Agamben se estende ainda às prisões, aos manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão,
as fábricas, as disciplinas e as medidas jurídicas. O filósofo inclui ainda nesta categoria a
caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os

3
Tecnologia que permite a formação de uma rede de comunicação de dados, sem fio.

649
computadores, os telefones celulares, e até a linguagem, talvez o mais antigo dos
dispositivos.
As características multifuncionais do telefone celular, com seus aplicativos 4,
impulsionam o aparelho a um contexto indissociável dos usuários, como um canivete suíço
da sociedade digital e midiática, conforme previu Henry Jenkins. Se, antigamente, o pequeno
objeto supria algumas demandas do trabalhador braçal, hoje é o smartphone que atende as
mais diversas necessidades do cidadão urbano.
Giorgio Agamben crê que a disseminação dos smartphones contribuiu para tornar as
relações entre as pessoas ainda mais abstratas. Dessa forma, o homem é tido como objeto da
tecnologia, um indivíduo que desempenha as mais simples e rotineiras atividades do
cotidiano por meio das múltiplas funções do aparelho. Independentemente da intensidade do
desejo que o impulsionou, ele apenas conquistaria um número pelo qual pode ser,
eventualmente, controlado. Assim, surge a figura com o corpo social mais dócil e frágil
jamais constituído na história da humanidade: uma espécie de terrorista virtual, um
personagem que executa pontualmente tudo o que lhe é dito. Deixa que os seus gestos
cotidianos, sua saúde, divertimentos, ocupações, alimentação e até seus desejos sejam
comandados e controlados por dispositivos, nos mínimos detalhes.
Claramente, trata-se de uma visão pessimista, quase apocalíptica, para as
circunstâncias que envolvem o uso dos telefones celulares na contemporaneidade. De fato, os
smartphones reconfiguram hábitos e comportamentos do homem urbano em muitas
circunstâncias. Por ora, é fácil perceber que esta nova realidade, por exemplo, contribui
positivamente para questões de otimização de tempo e a facilidade de comunicação, além de
aplicações em educação, pesquisa, lazer, entretenimento e diversas atividades profissionais.
Há que se considerar, ainda, o nascimento de uma nova geração digital, criada com o
hábito do manuseio de dispositivos. Este fenômeno é iniciado cada vez mais cedo, ainda na
fase que antecede a consolidação da coordenação motora das crianças. Esta nova classe de
usuários tende a conviver com o telefone celular de uma forma diferente do que as gerações
anteriores, testemunhas desta mudança de comportamento. Assim, entre eles, não haverá
qualquer estranhamento ou questionamento da onipresença dos equipamentos na quase

4
Programa instalado em smartphones, concebido para processar dados eletronicamente. Sua finalidade, em geral, é reduzir o
tempo de execução de uma tarefa pelo usuário.

650
totalidade dos processos da vida diária. Portanto, se a vida converge para o dispositivo, o
telefone celular é um forte candidato à condição de equipamento pleno, total, e palco central
dos eventos que compõem o fenômeno da convergência.

O dispositivo e o cotidiano

Em um primeiro momento, o cotidiano pode ser entendido como aquilo que somos e o
que somos mais frequentemente no trabalho, no lazer, no sono, na rua e no privado da nossa
existência. Segundo Maurice Blanchot (2007), o cotidiano é
a platitude (o que nos atrasa e o que retumba, a vida residual de que se enchem
nossas latas-de-lixo e nossos cemitérios, rebotalhos e detritos), mas essa banalidade
é, não obstante, também o que há de mais importante, se remete à existência em sua
espontaneidade mesma e tal como esta se vive, no momento em que, vivida,
subtrai-se a todo enformar-se especulativo, talvez a toda coerência, toda
regularidade (BLANCHOT, 2007, p. 237).

Para o crítico francês, esta experiência surge e se torna ainda mais evidente nas ruas
das grandes metrópoles. E, nesta condição, a rua assume um caráter paradoxal, ou seja,
supera em importância os locais que ela conecta. O cotidiano, neste viés, é responsável por
pasteurizar um homem que, na rua, recusa-se a ser diferente de seus semelhantes.
Naturalmente, no final dos anos 1960, época em que este conhecimento foi produzido, a
tecnologia ainda não havia criado, desenvolvido e popularizado a telefonia celular nem a
comunicação de dados móveis.
Desta forma, transportado para os dias atuais, o homem que preenche e está presente
no vazio apontado por Blanchot, o faz ao lado de seu dispositivo. 5 Neste raciocínio, se o
teórico francês indica que o homem, a rua e o cotidiano podem ser vividos por uma série de
atos técnicos separados, representados por objetos como o aspirador, a máquina de lavar, o
refrigerador, o aparelho de rádio ou o automóvel, por que não incluir nesta lista, também, o
telefone celular?

O dispositivo, o cotidiano, os lugares e os não lugares

5
Cabe destacar que a escrita, a imprensa, o jornal e o rádio, quando surgiram, também tiveram impactos na sociedade. Hoje,
a escrita também se manifesta nos smartphones por meio das mensagens de texto e em mídias sociais como o Twitter.

651
Se é fato que o telefone celular está presente em todos os momentos da vida cotidiana,
e nos espaços urbanos caracterizados por Maurice Blanchot, há que se analisar o pensamento
do antropólogo francês Marc Augé, no livro “Não lugares”. Ele associa a expressão aos
ambientes transitórios e impessoais, desprovidos de significado. Estes ambientes são
quantificáveis em indicadores de superfície, distância e volume, como
as vias aéreas, ferroviárias, das autoestradas e os habitáculos móveis ditos “meios
de transporte” (aviões, comboios, autocarros), os aeroportos, as gares e as estações
aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, os parques de recreio, e as grandes
superfícies de distribuição, a meada complexa, enfim, das redes de cabos ou sem
fios que mobilizam o espaço extraterrestre em benefício de uma comunicação tão
estranha que muitas vezes não faz mais do que pôr o indivíduo em contato com uma
outra imagem de si próprio (AUGÉ, 2010, p.68).

É preciso esclarecer que, ao abordar o não lugar, Michel de Certeau o faz justamente
para associá-lo a uma qualidade negativa, de uma ausência do significado que o nome lhe
impõe. Nesta perspectiva, os não lugares surgem e se proliferam a todo momento. Como
consequências deste fenômeno, por exemplo, estão o aumento das experiências individuais e
as provações de solidão, embasadas pela conectividade dos smartphones e seus inúmeros
aplicativos. Estamos aqui diante da reconfiguração de um paradigma comportamental, agora
verificado em sujeitos de todas as idades e classes sociais, independentemente da hora, dia ou
local.
O telefone celular, assim, assumiria o papel do dispositivo capaz de transformar um
não lugar em um lugar, na medida em que conecta o usuário e permite que ele participe de
acontecimentos, independentemente de onde estiver localizado. Ao mesmo tempo, um
smartphone também poderia agir no sentido contrário, convertendo lugares em não lugares,
por meio da conectividade do indivíduo às redes sociais. Da mesma forma, a internet em si,
acessada pelos smartphones, poderia também configura um lugar ou um não lugar, para onde
o indivíduo é transportado pelo manuseio de seu dispositivo. No mundo real da
contemporaneidade
os lugares e os espaços, os lugares e os não lugares, emaranham-se,
interpenetram-se. A possibilidade do não lugar nunca está ausente seja de
que lugar for. O regresso ao lugar é o recurso de quem frequenta os não
lugares (e sonha por exemplo com uma residência secundária enraizada nas
profundidades de um solo natal). Lugares e não lugares opõem-se (ou
chamam-se) como as palavras e as noções que permitem descrevê-los
(AUGÉ, 2010, p.90).

652
O usuário e seu dispositivo móvel portátil desmancham a proposta de que o espaço da
modernidade só conhece indivíduos que não seriam identificados, socializados e localizados
em lugares, exceto nos momentos de entrada e saída deles, caso de instalações como as
alfândegas dos aeroportos e as fronteiras. Da mesma maneira, lugares com significados
específicos, como estações de transportes coletivos ou garagens, também poderiam
desaparecer para o surgimento de um não lugar, exatamente pelo manuseio do smartphone
conectado à internet.
A reconfiguração dos espaços públicos em função da onipresença dos telefones
celulares da modernidade e a reconfiguração dos hábitos dos seus usuários já se tornou uma
realidade no mundo moderno. Em 2012, o prefeito da Filadélfia, nos Estados Unidos, pintou
uma espécie de "e-lane" 6 em uma calçada para chamar a atenção para o problema dos
pedestres distraídos ao telefone celular. Também nos EUA, em 2014, um experimento do
canal de televisão National Geographic em Washington DC criou calçadas separadas para
pedestres que estivessem ou não manuseando smartphones. 7 A cidade chinesa de Chongqing,
no mesmo ano, dividiu a calçada de uma via importante, com sinalização em chinês e inglês,
construindo um ambiente específico para quem está ou não usando seus dispositivos 8. Mais
recentemente, a cidade holandesa de Bodegraven implantou um projeto piloto que refle no
chão a sinalização para pedestres que aguardam o momento de atravessar a rua. 9
Dentro deste contexto, é possível afirmar que um indivíduo que circula por estes
locais privilegia o seu próprio telefone celular, em vez de seu percurso. A criação deste
espaço para pessoas que caminham empunhando seus smartphones torna legítimo duas
modalidades simultâneas de percepção do espaço público. A primeira é a da relação do
indivíduo com sua cidade, uma vez que ocorre, pelas autoridades locais, o reconhecimento da
demanda do sujeito estar sempre conectado. A outra é a do próprio transeunte, que deixa de
lado o percurso e passa a se concentrar apenas nas ações de sair e chegar.

6
Em uma tradução livre, o termo corresponderia a uma espécie de “calçada para usuários de smartphones”. Disponível em
7
A notícia está disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/news/article-2696568/TV-puts-fast-slow-lanes-DC-
sidewalk.html>.
8
A notícia está disponível em: <https://www.theguardian.com/world/shortcuts/2014/sep/15/china-mobile-phone-lane-
distracted-walking-pedestrians?CMP=twt_gu>.
9
A notícia está disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39158280>.

653
O dispositivo, o cotidiano, os lugares, os não lugares e as imagens

O reposicionamento de lugares e espaços por meio dos dispositivos móveis portáteis


se traduz no compartilhamento das experiências de um usuário. Neste processo de
transformação de sentido por meio de imagens, há rascunhos, autorretratos, vídeos amadores
de acontecimentos, filmes curtos de denúncias ou mesmo episódios de violência, nem sempre
veiculados com autorização de seus protagonistas. Tais comportamentos, até então, eram
impossíveis de serem verificados sem a existência dos telefones celulares conectados à
internet.
Mas por que os telefones celulares são tão importantes na vida das pessoas? Muitos
usuários assumem os dispositivos como extensão de seus corpos e suas personalidades. Uma
resposta preliminar pode estar nas pesquisas que apontam o papel destes dispositivos na
inclusão simbólica dos indivíduos – especialmente dos jovens – na lógica cultural própria da
contemporaneidade: instantânea, móvel e virtual.
É importante destacar que os dispositivos são repletos de significados e operam como
verdadeiros sistemas de comunicação. Os aparelhos são apropriados pelos indivíduos para
sua própria construção e constituição, como também do mundo que os cerca. Assim, mesmo
enquadrando os smartphones como verdadeiros protagonistas de sistemas de comunicação, é
possível constatar com facilidade que uma parcela dos usuários de telefones celulares, ao
decidir pela compra de um produto específico, adquire também um leque de significados
simbólicos que expressam o seu pertencimento ao sistema social.
A sociedade contemporânea tem como característica atual o crescente aumento no
volume de circulação e consumo de imagens, tanto nos espaços digitais quanto nas mídias
convencionais. Boa parte destas imagens possui sua origem em dispositivos como o telefone
celular. Independentemente dos seus usos e das certezas que envolvem esta questão, torna-se
essencial verificar que o aparelho foi elevado à condição de ferramenta de monitoramento.
As práticas dos usuários com o dispositivo, agora remodeladas, confundem público e
privado e reconfiguram os hábitos sociais. O smartphones, nos dias atuais, podem ser
considerados uma espécie de Panóptico 10, da forma como o conceito foi adotado pelo filósofo

10
Termo que define uma penitenciária ideal, criado em 1785 pelo filósofo inglês Jeremy Bentham. Sua planta permite a um
único vigilante observar todos os prisioneiros de forma imperceptível.

654
Michel Foucault, no livro “Vigiar e Punir”, a respeito de uma sociedade disciplinar. Ele
apontou que, a partir do século XVIII, iniciou-se um processo de disseminação de
dispositivos disciplinares que possibilitaram a vigilância e o controle social de forma cada
vez mais eficaz. Nenhum indivíduo está ou estará a salvo de ser capturado pela câmera do
smartphone de outro usuário, independentemente do motivo da gravação. Os registros não
escolhem hora, lugar ou razão e correm o mundo, instantaneamente compartilhados nas redes
sociais.
O hábito de fotografar, filmar e compartilhar imagens, expondo a própria intimidade
na internet, vias redes sociais, criando uma superexposição do usuário, aponta para a
construção de sujeitos que justificam seu comportamento para legitimar a sua forma de ser e
estar no mundo. Este ambiente que envolve além das imagens, as mensagens escritas e de
áudio, é analisado pela professora e pesquisadora Paula Sibilia. No livro “O show do eu: a
intimidade como espetáculo”, ela discute os limites de inclusão do homem do século XXI no
mundo digital e analisa as práticas culturais oriundas dos processos de comunicação
mediados pelos computadores em sites, ferramentas de trocas de mensagens e redes sociais.
O telefone celular age como um elemento mediador deste cenário onde não há
interseções específicas entre os temas posicionados como extremamente privados e
absolutamente públicos. A busca pelo reconhecimento dos olhos alheios aponta para um
caminho sem fim, onde o autor é a própria obra e cada dia mais é preciso aparecer para ser,
condição que cria uma posição de vulnerabilidade para os indivíduos. As subjetividades que
Paula Sibilia aponta, nesta lógica, compõem uma espécie de mercadoria, em nome de um
espetáculo de intimidades amparado pelos contextos histórico e sociocultural que envolve
todo usuário que possui um smartphone conectado à internet.
A própria transmissão de vídeos ao vivo, que há poucos anos era um recurso
exclusivo das emissoras de televisão com seus caros equipamentos, a partir da
disponibilidade do streaming e de aplicativos para celulares e as plataformas das redes
sociais, agora está ao alcance de qualquer usuário. No entanto, o uso indevido dos recursos
alerta as companhias de tecnologia, cujos sistemas ainda são imprecisos para inibir as
práticas e ações marginais.

O dispositivo, o cotidiano, os lugares, os não lugares, as imagens e o phoneur

655
O indivíduo que hoje produz, distribui e assiste obras profissionais ou amadoras, em
canais ou linhas do tempo de redes sociais, é o consumidor da era pós-moderna, da forma
como previu o escritor estadunidense Alvin Toffler. O criador do neologismo Prosumer -
união das palavras produtor e consumidor – cunhou o termo para indicar que o consumidor
pode forçar a indústria a produzir o que ele deseja comprar. O consumidor contemporâneo é
aquele que passa a ter acesso a ferramentas de produção e distribuição de conteúdo que, até
então, estavam restritas aos grandes grupos midiáticos. Desta forma, um indivíduo estaria
apto, enquanto prossumidor, a transitar entre estes conceitos e papéis de produtor e
consumidor de mídia no ambiente digital, cuja característica principal é a queda dos
obstáculos de acesso aos conteúdos.
O telefone celular, integrado ao homem pós-moderno, protagonista de uma gama de
processos de significação de conteúdos, produção e reprodução de sentidos, reconfiguração
de hábitos e comportamentos, assume o posto de ícone da era atual. Seu usuário é um
indivíduo conectado e hábil, dentro de momento de nomadismo informativo, lúdico e
existencial.
Assim, a tela do smartphone deste indivíduo é o espaço que media a maioria dos
processos comunicacionais e o converte, de flâneur 11, na figura contemporânea do phoneur 12.
Na obra de Charles Baudelaire, o flâneur é o curioso que vaga pelas ruas para observar o que
acontece ao seu redor. Ele se locomove a pé, sem pressa, para experimentar Paris. Walter
Benjamin, para explicar a relação deste indivíduo com a cidade, o descreve como um produto
sem precedentes da vida moderna, em paralelo ao advento do turismo. Seus relatos são
inspirados nos próprios passeios que fazia pelos arredores da capital francesa.
No entanto, o phoneur é o novo personagem contemporâneo, conectado, que também
circula pela cidade, como o seu oposto, mas agora o faz com a mediação do telefone celular.
Ele interage com ela, fotografando, se comunicando com outros indivíduos, navegando em
redes sociais ou caçando Pokemóns. Se, antes, ele caminhava por Paris observando a esmo,
hoje não desgruda os olhos da tela de seu smartphone.

11
Adjetivo derivado do verbo francês flâner, aplicado aqui no sentido de andar, passear, passar o tempo, vagar.
12
Pessoa, especialmente um pedestre, que interage ou está conectado ao mundo por meio de um telefone celular. Não há
tradução na língua portuguesa para este termo, surgido a partir dos anos 2000.

656
Ao mesmo tempo, o verbo flâner, equivalente a flanar, caminhar, passear, quando
aplicado ao homem da pós-modernidade, que está ao celular o tempo todo, se converte no
phonerie. Quando está na rua, em vez de prestar atenção nas coisas ao redor, o indivíduo
permanece olhando a tela. A rua é seu mapa, porque o importante é chegar no lugar. Mas o
que está no caminho não o interessa verdadeiramente, uma vez que ele está confortável,
conectado, via celular. Voltando à definição de Marc Augé, seu telefone se transforma em um
lugar, em contraponto a um não lugar, que é o percurso onde ele está. De forma
convencional, deveria ser o contrário.
Uma vez que a mobilidade e portabilidade dos aparelhos transformaram o
comportamento dos sujeitos e transportaram o consumo do audiovisual para qualquer lugar,
em qualquer momento, em ambientes públicos ou privados, em processos de recepção
individuais ou coletivos, olhar a espectatorialidade e as características destes produtos é o
ponto de partida para a análise do contexto que envolve a produção e o consumo de vídeos
domésticos ou profissionais, por meio de - e nas telas dos - telefones celulares.
Tanto no mercado audiovisual profissional, quanto no ambiente acadêmico, o
estabelecimento de uma narrativa específica para a audiência de um conteúdo em uma tela de
pequenas dimensões, quanto a dos telefones celulares, sempre motiva debates acalorados. As
telas modernas dos smartphones introduzem um novo padrão de consumo da imagem
audiovisual que se traduz na possibilidade instantânea de escolha de sua perspectiva –
horizontal ou vertical – de acordo com a preferência do usuário.
A mesma chance da escolha do formato da imagem se aplica ao momento em que as
imagens são gravadas com a câmera do celular. Este contexto evidencia o uso social das
imagens e a importância da discussão da produção e veiculação das imagens em telas
menores, em detrimento das já tão debatidas questões relativas às telas grandes. Em primeiro
lugar, porque os dispositivos móveis portáteis ainda são um meio relativamente novo.
Depois, porque é possível perceber que esta questão ainda hiberna no horizonte dos
realizadores.
Assim, configura um grande desafio conceber uma obra que sirva, sem alterações,
para a exibição em telas de tamanhos variados: das que assumem o tamanho regular de uma
tela de cinema, até as de dimensões reduzidas, presentes em smartphones e outros
dispositivos móveis. A disparidade de tamanho entre as telas-interfaces abre caminho para

657
uma série de questionamentos relacionados ao processo de montagem, enquadramento e
planejamento de cenas nos produtos audiovisuais.
Por um lado, o público atual possui mobilidade e anseia por novas formas de
comunicação e pelo desejo de conteúdos digitais customizados para distribuição nos sistemas
multiplataforma - aos quais ele está habituado. De outro, a cadeia produtiva de vídeos para
plataformas digitais ou direcionados às telas pequenas dos telefones celulares ainda não
encontrou um modelo de narrativa específica, talvez por falta de interesse dos realizadores ou
recursos a serem investidos em produtos experimentais.
No entanto, as facilidades de compartilhamento e reprodução de vídeos não se
limitam às produções orientadas pontualmente para este mercado ou a reprodução de
conteúdo da televisão ou do cinema na tela do celular. As redes sociais são o principal canal
de compartilhamento das imagens gravadas pelos usuários em seus telefones celulares. A
mudança no uso social da imagem é consistente neste caso, pela portabilidade dos aparelhos,
sua multifuncionalidade e socialização.
Os smartphones, por utilizarem-se de arquivos digitais especializados em condensar
informação em pequenos espaços de disco ou de banda, são plataformas recentes, onde a
reprodutibilidade técnica do século XIX vem constituir uma nova vanguarda. Os telefones
celulares inauguraram uma nova fase de consumo de conteúdos, muito mais próxima de um
conceito democrático no uso dos meios técnicos, para criar e difundir informação. O valor de
se possuir um original, neste contexto, é o fato dele propiciar um ponto de partida para a mais
notável gama de reproduções, compartilhamentos, customizações e outras alterações que a
humanidade jamais havia presenciado.

Questões adicionais

Historicamente, desde a fotografia, o mundo se acostumou com a perspectiva da


imagem horizontal, panorâmica, em inúmeras relações de aspecto, da era do cinematógrafo à
chegada da televisão digital. Muitos usuários, hoje, utilizam os telefones celulares como
câmeras de vídeo com o aparelho na mesma posição em que realizam as chamadas de voz.
No caso dessas imagens serem reproduzidas no próprio dispositivo, basta posicioná-lo da
mesma forma como ocorreu a captura da imagem original. Por outro lado, este vídeo, se

658
reproduzido em um dispositivo cuja tela é horizontal - uma televisão ou um monitor de
computador, apresentará áreas pretas nas laterais da imagem.
O recurso das tarjas pretas surgiu da necessidade de adaptação de conteúdos captados
originalmente em uma proporção de tela diferente da suportada na exibição. Um exemplo
está no filme Lawrence da Arábia (1963), captado originalmente no formato Panavision, com
uma proporção de tela de 2,76. Quando era exibido na televisão, a obra recebia as tarjas
pretas para se ajustar à proporção de tela de 4:3 (1,33).
Nas diversas relações de aspecto existentes, muitos ajustes de formato ocorreram pelo
corte da própria imagem, com desperdício narrativo. De todo modo, o uso de tarjas pretas
revela características das condições de captação. As imagens geradas por telefones celulares
na vertical, quando assistidas na televisão, assumem uma área preta muito mais ampla. Sua
adaptação para as telas existentes hoje é inviável, uma vez que, na essência, a maior parte dos
casos evidencia uma imagem tremida, às vezes borrada, com pouca luz e nitidez. A
ampliação para o ajuste à tela da televisão criaria uma questão de definição, incorrendo em
descarte de informação e do centro da ação.
A portabilidade dos smartphones, as várias formas de divisão do espectro de
radiofrequências e a sua crescente capacidade de geração e transmissão de imagens
convertem-se na garantia de que pode ser possível consumir conteúdo audiovisual em todo
lugar, em qualquer contexto. No entanto, quando se trata de imagem em movimento,
pequenas telas e dispositivos móveis, é essencial promover o debate sobre a acessibilidade ao
conteúdo.
Qualquer investigação sobre espectatorialidade deve, condicionalmente, passar pela
busca de fatores estratégicos no processo cognitivo que caracteriza o consumo destes
conteúdos. O cenário do usuário, sentado em sua poltrona, assistindo a uma televisão, foi
substituído pelas ruas barulhentas, os transportes lotados e as mesas de restaurantes
especializados em refeições rápidas. Uma nova massa de consumidores aprende a isolar-se da
correria diária para mergulhar no relato de narrativas expostas nos seus telefones celulares.
A tensão estabelecida entre a programação da televisão e o telespectador - seja pelo
ar, cabo, internet ou demais formas - é alterada de forma significativa, de acordo com o lugar
físico e o suporte onde ocorre a recepção. Se a distração já ocorria no ambiente doméstico,
apesar da possibilidade de o usuário reproduzir, em casa, as condições de imersão de uma

659
sala de cinema, com a luz apagada e as cortinas fechadas, por exemplo, agora as
possibilidades de interferências e interrupções se multiplicam nos ambientes públicos das
grandes cidades.
Consumir audiovisual, em qualquer aparelho, é uma realidade. O mesmo ocorre nas
salas de cinema. O pacto do telespectador com imagem, na sala escura, se tornou permeável e
se contaminou, em função da onipresença dos telefones celulares dentro destes ambientes. A
imagem audiovisual, nos dias atuais, dá sinais de que está assumindo uma condição de
vulnerabilidade a interferências externas, o que pode acarretar na desconstrução da premissa
de uma espectatorialidade silenciosa e exclusiva.
No livro “Television Culture”, publicado originalmente em 1987, o crítico e professor
estadunidense John Fiske, apontou que o telespectador experimenta uma variedade muito
maior de modos de assistir televisão do que o espectador de cinema. Para o teórico, o ver
seria um processo ativo, afetado pelas relações sociais do próprio espectador e a situação
material ao seu redor. De todo modo, a complexidade das variáveis que envolvem a busca da
audiência e a necessidade de estudar profundamente o público e conhecer melhor os seus
hábitos, costumes e movimentos é o desafio dos realizadores de conteúdo audiovisual nos
dias atuais. A ideologia de um conteúdo, neste contexto, talvez possa ser mensurada pelo
desejo de seu público-alvo, no suporte em que ele desejar. Tanto o cinema quanto a televisão
foram reconfigurados pela tecnologia em três marcos principais.
O primeiro é o surgimento das câmeras digitais, sua miniaturização e seu
acoplamento aos mais diversificados aparelhos técnicos (smartphones, tablets,
câmeras fotográficas, etc.). O segundo marco é a possibilidade de distribuição de
imagens audiovisuais através da multiplicação de redes de compartilhamento de
vídeos através da Internet. E o terceiro fator que contribui para rearranjar esse
cenário é a multiplicação de telas de visualização de conteúdos, que nos dá uma
nova dimensão da nossa possibilidade de relacionamento com as imagens técnicas.
Podemos acessá-las em qualquer lugar que estejamos, desde que estejamos
conectados a uma rede de Internet e utilizando algum equipamento com tela
(ROSSINI, 2015, p. 238).

O celular, enquanto marco de aproximação entre o cinema e o vídeo, permite uma


portabilidade de produtos audiovisuais jamais imaginada na história. Apenas dentro de casa,
por exemplo, um indivíduo pode assistir televisão digital ou vídeos diversos, na sala, no
quarto ou em qualquer outro ambiente doméstico, graças à internet sem fio. O mesmo
smartphone pode oferecer ao usuário redes alternativas e particulares, de livre informação. E,

660
por fim, o celular também reconfigura qualquer ambiente doméstico e íntimo, com a
possibilidade de a câmera transformar o cômodo em um estúdio de televisão. Assim, se por
um lado a televisão é o meio pelo qual o cinema chega à casa e ao íntimo do indivíduo, o
celular, comprovadamente, vai além. O dispositivo móvel atua nos três eixos - estruturas
principais que integram o audiovisual: a produção das imagens, sua distribuição e a exibição
dos vídeos, filmes, e demais imagens.
De todo modo, a maioria dos conteúdos produzidos pelo celular e disponíveis em
plataformas de armazenamento e reprodução de vídeos ainda é realizado de forma amadora.
O espectador, pulverizado, a cada dia se mostra mais seduzido por estas imagens inesperadas,
de flagrantes e situações reveladoras e atípicas da televisão. Mesmo assistindo, ele não
oferece garantia alguma de que vá aderir ao que vê. A tecnologia pode favorecer o
engajamento do público, o elo social e a expansão da grade de programação para outros
suportes. O conteúdo, em broadcast ou sob demanda, também está acessível em todo lugar,
em mais um desafio para os realizadores. Independentemente da janela, a questão da
espectatorialidade assume uma complexidade maior, abre lacunas para novas investigações e
se impõe como jamais ocorreu antes na história do audiovisual.

Referências
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Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.

662
ONDE ESTÃO OS FÃS DA CELEBRIDADE VIRTUAL KAROL PINHEIRO? 1
A efemeridade de redes sociais conectadas e a celebridade virtual como mídia
completa
WERE ARE THE FANS OF THE VIRTUAL CELEBRITY KAROL PINHEIRO?
Ephemerality of connected social media and the virtual celebrity as a complete
media
Marina Paula Darcie 2

Resumo: Nos últimos anos observou-se o surgimento de incontáveis aplicativos e


redes sociais que possibilitam/facilitam a interação online. Nesse cenário, novas
ferramentas são criadas e outras perdem o interesse dos internautas, que migram
para novas plataformas seguindo o fluxo da tecnologia e das pessoas. Objetivou-se,
via questionário, compreender quais ferramentas da rede os fãs da celebridade
virtual Karol Pinheiro utilizam para buscar informações e habitar. Notou-se a
sistematização do conteúdo, por parte da influenciadora, nas plataformas
disponíveis e evasão dos entrevistados do blog para outros ambientes da rede,
como Youtube e Instagram. Concluiu-se que estas são apenas ferramentas para
Karol, e a celebridade virtual, então, foi considerada uma mídia completa e
independente. Também que as reações observadas na pesquisa exprimem o
comportamento fiel do público e sua capacidade de criar, em torno da
influenciadora, uma rede discursiva produtora de conhecimento fundamentada no
afeto.

Palavras-Chave: Comunicação. Cultura de Fã. Celebridade Virtual.

1. Introdução
As possibilidades comunicativas que surgem com a internet são inúmeras e constantes.
Dentre elas sinalizamos a grande teia de interações viabilizadas pela rede – centradas nas
novas formas de produzir, transmitir e acessar diversos conteúdos (Carreira, 2015) – e o
advento de novos personagens no sistema comunicativo (Weschenfelder, 2014) que detêm,
de forma tão semelhante quanto nos veículos de comunicação tradicionais, o poder de
influenciar e modificar a opinião do seu público seguidor. Esses novos comunicadores da
internet possuem seus próprios canais e mobilizam considerável número de pessoas com sua
fala: são novos “ídolos” sociais, celebridades virtuais que atuam em diversificadas
plataformas de comunicação online criadas com base no seu próprio discurso autocentrado
(Primo, 2009). São aqui definidos como um personagem que usa o espaço comunicativo
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Convergência e Cultura Midiática do 3º CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Radialista, mestre em Comunicação Midiática e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus Bauru – SP, Brasil. Membro do
grupo de Pesquisa em Comunicação na América Latina (PCLA). E-mail: marinapdarcie@gmail.com

663
virtual possibilitado pelas redes sociais para dialogar direta e indiretamente com seu público
seguidor e expor sua opinião sobre o próprio consumo e experiências ou qualquer assunto
com o qual tenha afinidade. Esse meio não possui barreiras e, portanto, o influenciador não é
limitado a apenas uma ferramenta de trabalho, condição que caracteriza a fluidez da
comunicação digital, em rede e compartilhada.
Além de possibilitar o surgimento de diferentes ídolos sociais que estão ancorados nas
novas plataformas de comunicação e possuem discurso amplamente difundido no seu meio
de atuação, esta realidade trouxe novas configurações para as relações e sociabilidades.
Dentro desse contexto, se torna necessário compreender como se caracterizam os processos
comunicativos entre os fãs – e seus ídolos – que desencadeiam grandes comunidades em
torno da celebridade virtual nesse espaço conectado. Quais redes habitam, como dialogam e
interagem, como consomem bens simbólicos e materiais, de que maneira se mobilizam e
ressignificam mensagens, enfim. Pensando nessas inquietações, foi delimitado como corpus
de análise o universo “As coisas mais legais do mundo” de Karol Pinheiro, que consiste em
todos seus canais oficiais na rede: o blog 3 (www.karolpinheiro.com.br), seu canal no
YouTube, perfil do Instagram, Twitter e Snapchat. Karolina Pinheiro é jornalista por
formação. Trabalhou ao longo de sete anos como colunista e editora da revista Capricho na
seção de comportamento e começou sua carreira na internet com a criação de seu blog
pessoal “Karol Pinheiro e as coisas mais legais do mundo” e seu canal no YouTube, no ar
desde julho de 2013; plataformas pelas quais começou a dialogar com seu público leitor,
órfãos desde que a revista foi descontinuada.
Esse trabalho é um recorte das inquietações trazidas acima e objetiva compreender
quais as ferramentas mais utilizadas pela comunidade de fãs da influenciadora para dialogar,
habitar e criar significado. Busca, também, esclarecer a recente sistematização de conteúdo
por Karol em suas redes de atuação. Para tanto, utilizou-se como ferramenta metodológica a
aplicação de questionário – construído na plataforma gratuita oferecida pelo Google (o
Google Forms) e pensado com vista a atender nossa demanda. Foi elaborado mirando nas
variadas formas de mobilização identificadas na bibliografia de apoio (Jenkins, 1992, 2006,
2009; Shirky, 2011; Monteiro, 2005a, 2005b; Bandeira, 2009), como inerentes ao
comportamento de fã e sua cultura.

3
Retirado do ar próximo ao fechamento desse trabalho.

664
O questionário foi divulgado entre 24 fã-clubes dedicados à jornalista no Instagram. Foi
contabilizado retorno dos seguintes fã-clubes: @fãsportugalkarolpinheiro,
@karolforeveroficial, @itslovekarolina, @foreverkarol, @cookiesdakarol, @portalkp e
@karol.kdp, que se comprometeram em responder e compartilhar o teste.
A partir da observação e sistematização dos resultados obtidos foi possível
problematizar a relação deste público com as ferramentas virtuais e o conteúdo produzido por
Karol. Tomando como referência a amostra mencionada 4, nota-se que o público da
influenciadora é predominantemente feminino e variam entre a idade de 11 e 30 anos. Sobre
a localização das entrevistadas, nota-se que a grande parte – totalizando 21 pessoas – vive no
Estado de São Paulo, onde também reside a blogueira. Percebe-se que, apesar de muitos
Estados terem sido mencionados no questionário (somando 12 Estados brasileiros), 60% das
entrevistadas residem no eixo São Paulo-Rio de Janeiro. É possível notar, também que
sudeste e sul são as regiões com mais consumidoras do conteúdo em questão. Estas duas
regiões totalizam 90% das respostas.
Por fim, foram estabelecidos para o desenvolvimento desse trabalho: um tópico
descritivo dos resultados alcançados com o apoio do questionário acerca de quais redes
sociais online são escolhidas pela comunidade de fãs de Karol para habitar; um tópico que se
destina a problematizar os dados colhidos, demonstrando a sistematização de conteúdo criada
pela influenciadora e a reação do público frente às modificações feitas nas redes que
acompanham; e, por fim, o tópico das considerações nos auxilia, com base nas fontes teóricas
consultadas, a compreender os agrupamentos de fãs em determinadas redes, seu
posicionamento frente ao conteúdo que consomem e ao seu ídolo e, finalmente, à grande rede
de afeto e informação que criam em torno da mídia Karol Pinheiro, apagando a relevância
técnica das ferramentas que acessam e priorizando o conteúdo disponibilizado e o contato
com a influenciadora.

2. Mapeamento da amostra: “Como”, “onde” e “porque”


O questionário foi criado como forma de mapear os ambientes em que estão inseridas
as entrevistadas e compreender quais ferramentas da rede utilizam para buscar e consumir as

4
O questionário ficou disponível ao longo de 30 dias no mês de junho de 2017 e contabilizou 50 respostas.

665
informações que desejam, partindo do pressuposto de que o grupo entrevistado seja
essencialmente ativo no processo de consumo (Jenkins, 1992; Natal, 2009; Shirky, 2011).
Inicialmente foi perguntado com que frequência o público acessava o blog, retirado do
ar há pouco. Como mostra a Figura 1, 37 pessoas afirmaram preferência a outras redes sociais
em relação ao blog, enquanto apenas 5 pessoas disseram acessar o canal diariamente (e uma
delas afirmou acessá-lo mais de uma vez ao dia):

FIGURA 1 – Frequência de acesso dos respondentes ao blog


FONTE – Elaborado pela autora com base nos dados do questionário, 2017.

Além da leitura prévia, é possível notar pela Figura 1 que 16% das entrevistadas tinham
o hábito de visitar o blog semanalmente, com frequência entre 2 a 5 vezes. A evasão do
público respondente desta ferramenta específica pode estar relacionada à variedade de canais
que a influencer possui para propagar seu conteúdo. Quando questionado sobre o acesso às
demais redes sociais, apenas uma entrevistada afirmou não acompanhar Karol Pinheiro em
outras redes sociais que não o blog, enquanto 98% das entrevistadas afirmou ter acesso e
consumir conteúdo através de outras redes sociais.
Dentre essas, o YouTube foi a plataforma mencionada mais vezes pelas entrevistadas:
80% delas disseram ser inscritas no canal Karol Pinheiro e consumir os vídeos postados. O

666
canal de Karol Pinheiro foi criado em julho de 2013 e, desde então, a dedicação à plataforma
é intensa. Atualmente, a influenciadora posta vídeos todas as segundas, quartas e sexta-feiras,
com exceção de algumas ocasiões especiais que cria (um exemplo é o mês de agosto de 2017
em que, além dos vídeos fixos do canal, ela fez lives 5 toda terça e quinta-feira; há, também,
algumas ocasiões em que viaja e posta vlogs diariamente). Nesse espaço, o canal de Karol
Pinheiro possui, até o fechamento desse trabalho, um milhão de inscritos e seu conteúdo já
ultrapassou 90 milhões de visualizações.
Em seguida, o Instagram é a segunda plataforma com mais acesso pelo grupo
analisado. Os perfis mencionados foram @karolpinheiro, @maqui.nobrega e
@jardimnocimento, como mostra a Tabela 1:

TABELA 1
Redes Sociais mais acessadas pelas respondentes
Redes Sociais Respondentes seguidoras
YouTube 40
Instagram @karolpinheiro 30
Instagram @maqui.nobrega 20
Instagram @jardimnocimento 15
Snapchat 10
Twitter 9

FONTE – Elaborada pela autora com base nos dados do questionário, 2017.

O perfil do Instagram de Karol, que conta quase 900 mil seguidores, combina a
confiabilidade do “ao vivo” e real (desencadeadas pelas características da rede) com a
publicidade e o negócio e considerável parte de seus fãs estão presentes nesta rede. Além do
seu perfil pessoal, a blogueira também criou um perfil (@jardimnocimento) para
compartilhar o andamento da reforma do seu novo apartamento, unindo o interesse do seu
público com sua vida privada (aqui incluindo a exploração da sua casa e todos os detalhes
que existem dentro dela) ao interesse comercial, uma vez que utiliza esse espaço para fazer a

5
Formato de vídeo em que Karol é transmitida ao vivo para seus seguidores e pode acompanhar seus
comentários em tempo real e dialogar com eles. O vídeo, quando encerrado, fica arquivado em seu canal para
quem quiser vê-lo mais tarde.

667
publicidade de marcas parceiras que colaboram com materiais de construção,
eletrodomésticos, móveis e mão de obra, por exemplo.
Entre os três perfis mais mencionados pelas respondentes consta, ainda, o de Mariana
(Maqui) Nóbrega, sócia e amiga próxima de Karol. Ambas produzem em conjunto o
conteúdo para o canal do Youtube (em que Maqui é a cinegrafista e faz participações
esporádicas no conteúdo do vídeo).
Finalmente, dentre as razões para se acompanhar as redes mencionadas acima, 71% do
grupo afirma gostar da Karol Pinheiro e do conteúdo criado por ela, sendo a combinação de
ambos os fatores a principal razão pelo acesso. Onze pessoas afirmam acessá-las
exclusivamente pelo conteúdo, frente a três pessoas que o fazem exclusivamente pela
personalidade da influenciadora. A Figura 2 ilustra os dados:

FIGURA 2 – Por que você acompanha essas redes?


FONTE – Elaborado pela autora com base nos dados do questionário, 2017.

3. Efemeridade e falência das ferramentas da rede: a celebridade virtual como uma


mídia completa
Nos últimos anos observou-se o surgimento de incontáveis aplicativos e redes sociais
que possibilitam/facilitam a interação online. Além disso, nota-se a profissionalização de
espaços que surgiram originalmente destinados à troca de informação e conteúdo entre

668
pessoas “comuns”, sem que necessitassem grande expertise tecnológica. São exemplos dessas
redes o YouTube e o Instagram, dois dos ambientes mencionados mais vezes pelos
respondentes dessa pesquisa.
Por essa mesma razão, a velocidade com que novos aplicativos – com novos gadgets –
são criados, outros muitos vão perdendo o interesse dos internautas, que migram para novas
plataformas seguindo o fluxo da tecnologia e das pessoas. Exemplo de rede que já não recebe
tanta atenção quanto no prazo de cinco anos atrás é o Twitter. Ou, com menor espaço de
tempo, o Snapchat, que perdeu parte dos acessos quando o Instagram adicionou ao seu leque
de funções o mesmo serviço prestado pelo anterior.
O fluxo de tecnologia e pessoas é intenso e constante e, dessa maneira, profissionais
que produzem conteúdo para a rede precisam se adequar às ferramentas disponíveis e migrar
quando necessário. Nota-se, quando analisado o leque de canais oficiais disponibilizados por
Karol que, nos últimos anos, houve a sistematização do conteúdo por ela produzido.
Considerando as características de cada ambiente em que atua, a influenciadora dividiu
muitos temas tratados anteriormente em seu blog entre o canal do YouTube e seu perfil no
Instagram. Alguns exemplos observados são a sessão de “Look do Dia”, do blog, que migrou
para outras redes abastecidas por ela, uma vez que as fotos de suas roupas são diariamente
postadas no Instagram, carregadas do imediatismo da publicação além de detalhes e links
diretos para o perfil das marcas que está usando. Havia também um quadro do blog chamado
“3 Fotos” em que Karol postava um resumo de sua semana em três fotos que importava do
seu Instagram pessoal e do perfil @jardimnocimento. Ainda antes de o blog ser retirado do ar
esse quadro não era atualizado devido à quantidade de imagens e vídeos que Karol posta em
tempo real através do InstaStories (ferramenta adicionada recentemente ao aplicativo do
Instagram que permite a publicação de vídeos). Outro exemplo, ainda, eram os posts
destinados a expor os produtos favoritos da blogueira que se tornaram uma sessão fixa de
vídeos mensais em seu canal do YouTube.
Dentro desse contexto, percebe-se, observando os dados do questionário, que o blog
havia recebido menos atenção dos seguidores frente a outras redes que Karol Pinheiro criou
para publicar seu conteúdo. Esse cenário parece ter sido notado, inclusive, pela
influenciadora: não há disponíveis dados como quantidade de acessos que o blog recebia
diariamente e o montante do fluxo de pessoas nessa plataforma, mas uma postagem feita por

669
Karol em maio do ano passado nessa plataforma pode dialogar com o cenário estabelecido. A
Figura 3 é reprodução de suas considerações em sua página:

FIGURA 3 – A verdade sobre qual será o futuro desse blog (texto).


FONTE – Site www.karolpinheiro.com.br Acesso em 19 de julho de 2017.

De acordo com Jenkins (1992), dentro os cinco tópicos que sintetizam o


comportamento de fã, destacamos os três seguintes:
a) O fã destina alto investimento de atenção no consumo e pode, inclusive, criar rituais
para assistir/ouvir seu ídolo e obra; é comum, também, que ele consuma um
produto variadas vezes, se necessário, caracterizando seu modo particular de
recepção;
b) Suas práticas e críticas interpretativas que podem envolver toda a comunidade para
criar um sistema de “inteligência coletiva” com a finalidade de compreender cada
lacuna possível do processo comunicativo estabelecido. Essa constante citada pelo

670
autor ressoa o comportamento crítico e criativo do fã, além da atividade coletiva
para alcançar determinado fim;
c) Outra característica é o ativismo consumidor, uma vez que os fãs podem entrar em
contato diretamente com produtoras para tratar sobre seus interesses comerciais em
relação a um produto cultural;

Em outro livro o autor define a cultura do fã como a “[...] habilidade de transformar


uma reação pessoal em uma interação social, cultura de espectador em cultura participativa”
(JENKINS, 2009, p.41). Como mostrado pelo autor e frisado acima, a recepção de um
conteúdo pelo grupo de fãs pode passar pela negociação e o contato com empresas e
produtoras de conteúdo, como forma de tratar sobre os interesses individuais e da
comunidade, em uma forma de cultura compartilhada. Nesse momento, é necessário ressaltar
que Karol Pinheiro, apesar de possuir uma equipe de apoio que responde ao comercial e à
contabilidade, por exemplo, não possui um editor ou moderador de conteúdo que responda
por ela, sendo, então, sua própria representante. Dessa forma, os comentários visualizados em
sua página com sugestões sobre o que postar são exemplos daquele comportamento a que
fazia referência o autor em Textual Poachers (1992). Para ele, é natural que haja o contato
para tratar sobre interesses pessoais, subjetivos ou comerciais em relação a um produto.
Dentre as manifestações mais comuns na postagem que mostra a Figura 3 estão leitores
pedindo que o blog não acabe e sugerindo conteúdos para serem tratados naquela plataforma.
É interessante, também, mencionar que em 2016 a influenciadora lançou seu livro “As
coisas mais legais do mundo” pela Editora Verus. Nele, Karol traz seu conteúdo de forma
literária em 100 crônicas que são exclusivas daquele veículo. Ao observar os comentários
gerados pela publicação acerca do futuro do blog, muitos leitores pediram que ela trouxesse
para aquela plataforma seu perfil de jornalista e escrevesse sobre assuntos mais imersivos e
subjetivos, assim como fez para seu livro. Estão destacados, na Figura 4, alguns exemplos:

671
FIGURA 4 – Reações de leitores.
FONTE – Site www.karolpinheiro.com.br Acesso em 19 de julho de 2017.

A discussão levantada aqui é, novamente, sobre a sistematização do conteúdo dentro


das plataformas que a influenciadora tem disponível. O lançamento do livro deixa o blog sem
conteúdo ou é possível que novos formatos de texto possam ser a chave para seu futuro?
Aparentemente o público está conformado com a divisão que vem sendo feita nos quadros
entre blog e YouTube, principalmente, e reconhece nessa divisão a necessidade de adaptação
às redes e retorno financeiro para Karol.
A influenciadora também se adapta aos pedidos de seus leitores: suas publicações no
blog, desde aquela data, haviam apresentado perfil mais literário e reflexivo, assim como
solicitado. Um exemplo foi um texto, que publicou em 12 de julho de 2017, no qual reflete
sobre a distribuição de imagens editadas para que se aproximem de um padrão social aceito
como perfeito através do aplicativo do Instagram.

672
FIGURA 5 – É só meu sono que o Instagram roubou?
FONTE – Site www.karolpinheiro.com.br Acesso em 19 de julho de 2017.

O texto, que também gerou um vídeo de desabafo para seu canal do YouTube, é uma
reflexão em que Karol conta como se permite iludir por fotos perfeitas e de que maneira esse
costume tem influência em sua auto-estima. No vídeo, publicado sete dias depois do texto,
Karol menciona a postagem do blog e afirma que aquele seria um espaço para reflexões
pessoais. Diz: “[...] tava angustiada, precisava desabafar, precisava fazer textão. E agora
estou usando o meu blog [...] para escrever. Escrever é uma coisa que eu amo, é uma coisa
que eu nunca vou deixar de fazer, acho que até quando for bem velhinha, e aí eu tenho usado
o blog para isso”.
A resposta rápida da produtora de conteúdo às várias solicitações demonstra como as
ferramentas da rede permitem o contato entre produtores e consumidores de determinada
informação e também a constante negociação a que as celebridades virtuais precisam se
submeter para manter cativa sua audiência. Outro ponto a ser mencionado nesse tópico,
quando foi notada a falência de algumas redes sociais e a queda de acessos, é que esses

673
ambientes são apenas ferramentas para Karol Pinheiro. Nota-se, a celebridade virtual é uma
mídia completa, sua própria mídia. Portanto, independente de qual veículo de mídia decidir
utilizar para propagar seu conteúdo e expor suas verdades seus leitores a acompanharão. Um
exemplo desse cenário, retomando as discussões sobre reações ao texto que refletia sobre o
futuro do blog, são comentários que afirmam “[...] você brilha em qualquer plataforma, você
se expressa de um jeito que faz eu me sentir sua amiga. Siga seu coração [...], te
acompanharei”. Reações como essa, que demonstram o afeto do público à personalidade de
Karol, podem ser vistas na Figura 6:

FIGURA 6 – Reações de leitores (2).


FONTE – Site www.karolpinheiro.com.br Acesso em 19 de julho de 2017.

Como forma de cimentar o argumento trazido, destaca-se que as reações observadas


resgatam diversos pontos mostrados até o momento. Primeiro, o carinho que a comunidade
de seguidores da influenciadora nutre pelo conteúdo que compartilha e por sua personalidade.
De fato, o acesso entre pessoas que partilham interesses e afetos é fator determinante para o
ciberespaço, já que é através deste ajuntamento que redes de debates, fóruns, canais e, claro,
comunidades de fãs são criados para a navegação do público. Shirky (2011, p.18) é defensor
de que o ciberespaço é utilizado para suprir carências sociais de indivíduos que agora,
possibilitados pela tecnologia, estão em contato com seus pares: “[...] quando usamos uma
rede, a maior vantagem que temos é acessar uns aos outros. Queremos estar conectados uns
aos outros [...]”. Segundo, através do sentido criado pelo primeiro comentário, de que a

674
leitora teria se desenvolvido acompanhando o conteúdo partilhado por Karol (aqui
compreendendo o sentido de passagem de tempo na construção da personalidade da
seguidora) exprimem o comportamento fiel do público, bem como sua característica de
buscar informações sobre seu ídolo em diversos ambientes nos quais ele estiver inserido
(Jenkins, 2006). Terceiro e, finalmente, ambos os comentários propiciam a compreensão de
que os leitores podem criar, em torno de Karol, uma rede discursiva produtora de
conhecimento fundamentada pelo afeto (Shirky, 2011).

4. Considerações
Esse trabalho destinou-se a discutir, com base em dados colhidos via questionário,
quais espaços da rede os fãs da celebridade virtual Karol Pinheiro escolhem para habitar.
Sinaliza-se que essa comunidade é uma amostra dos processos desencadeados pela internet
que se agrupam em torno de influenciadores, suscitando uma nova forma de comunicação e
mobilização, e foi escolhida para a construção da pesquisa empírica e da análise uma vez que
nesses grupos as interações e sociabilidades suscitadas pela internet podem ser visualizadas.
Notou-se, de forma geral, que as redes escolhidas pelas respondentes da pesquisa – em
sua grande maioria o YouTube e o Instagram – são ambas ferramentas que incentivam a
participação: por meio de comentários, compartilhamentos, botões que sinalizam aprovação
ou desaprovação (likes e dislikes) e, ainda, a fidelização no acompanhamento, já que é
possível inscrever-se nos canais, no caso do primeiro, e seguir o perfil desejado, no caso do
segundo. As redes escolhidas por essas pessoas para estar não apenas incentivam a
participação como a bonificam, uma vez que as comunidades de afeto e conhecimento vão
sendo construídas em torno do excedente cognitivo de cada um que escolheu estar ali. Essa
população está ocupada em trocar informações com seus pares pela rede e “[...] esse
entrosamento se correlaciona com comportamentos que não são os do consumo passivo”
(SHIRKY, 2011, p.16).
Junto a esse cenário, estipula-se que todo o conteúdo produzido e compartilhado pela
comunicadora influencer tem como característica a relação próxima com a sua vida pessoal e
suas experiências, configurando uma narrativa de si e trazendo entonação de diário,
proporcionando aos seguidores a sensação de proximidade com sua vida pessoal e fazendo,
por fim, com que a influenciadora e seu público se tornem uma grande comunidade de

675
compartilhamento. As ferramentas em que a celebridade virtual atua possibilitam o contato
mais próximo com seus fãs e isso gera um relacionamento diferente daquele observado em
outras mídias: na internet, o limiar entre produtor e consumidor de informação é mínimo, e os
seguidores de uma celebridade virtual também produzem conteúdo e informação na rede,
podendo manter um relacionamento de moderação com seu ídolo de forma quase instantânea.
Observa-se o importante papel que os fãs desempenham nessa cadeia produtiva porque eles
são os maiores propagadores de conteúdo disponibilizado na rede e reforçam o status dos
produtores independentes. “O conjunto de fãs (fandom) tem papel fundamental porque
desempenha um papel mais ativo e, por ser mais engajado, recomenda mais o conteúdo e
colabora voluntariamente para a propagação. A indicação é uma espécie de farol que joga luz
sobre algo que pode interessar ao internauta” (CARREIRA, 2015, p. 8).
Percebe-se, portanto, que a internet propiciou um espaço para que as comunidades de
fãs cresçam em torno desses novos ídolos sociais e se apropriem, para suas práticas culturais
e comunicativas, de variadas ferramentas: aquela que for mais conveniente no momento, seja
pela tecnologia, seja pelo fluxo de pessoas. Devido à mobilidade entre as plataformas que
possibilitam o consumo do conteúdo e a troca de experiências, foi percebido que Karol
Pinheiro passou a sistematizar seu conteúdo na rede considerando o fluxo de pessoas,
ferramentas em que a interação é maior e mais próxima e, provavelmente, interesses
mercadológicos. Nesse ponto é interessante retomar que seu público a acompanha
independentemente da plataforma em que está. Entende-se Karol, então, como mídia
completa e independente – as ferramentas da rede são reduzidas exatamente ao que são:
ferramentas. A influenciadora pode transitar pelos diversos canais porque ela é sua própria
mídia e seu público a acompanhará. Os veículos de comunicação são ferramentas para seu
discurso, e não moderadores/editores dele.
Finalmente, o trabalho sustenta que, cada vez mais, é criada uma infraestrutura coletiva
e recíproca, que combina o excedente cognitivo de cada indivíduo que tem acesso à rede para
criar conhecimento, reconhecimento, significação e cultura. Assim como Shirky (2011)
pretendeu em seu trabalho usado aqui como referência, pretende-se mostrar que os usuários
da rede estão criando a capacidade de conexão, comunicação e mobilização. Para o
pesquisador “[...] nosso excedente cognitivo é apenas potencial [...]. Para compreender o que

676
podemos fazer com esse novo recurso, precisamos entender não apenas que tipos de ação ele
viabiliza, mas também os comos e ondes dessas ações” (SHIRKY, 2011, p.30).

Referências
ANDERSON, Chris. A cauda longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. Rio de Janeiro: Elsevier,
2006.

BANDEIRA, A. P. "Don't tell me what I can't do!": as práticas de consumo e participação dos fãs de Lost.
Dissertação de Mestrado, PUC-RS, 2009.

CARREIRA, K. Youtuber e conteúdo audiovisual propagável, 2015. Disponível em


http://www.labcomdata.com.br/wp-content/uploads/2015/12/CarreiraKCPaperVersa%CC%83oFinal.pdf Acesso
em 12 de janeiro de 2016.

JENKINS, H. Textual Poachers: televisionfans&participatoryculture. New York: Routledge, 1992.

_______. Cultura da Convergência. São Paulo: Editora Aleph. 2009.

_______. Fans, Bloggers, and Gamers: exploring participatory culture. New York: New York University
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MONTEIRO, T. J. L. Entre a Patologia e a Celebração: a Questão do Fã em uma Perspectiva Histórica.


Artigo apresentado no XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – UERJ, 2005a.

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no interior de uma comunidade de fãs. Eco-Pós (UFRJ), Rio de Janeiro, v. 8, n.1, p. 42-56, 2005b.

NATAL, G. M. G. Cultura participativa: Um olhar de insider sobre o fã. Interin (Curitiba), v. 7, p. resenha,
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PRIMO, A. Existem celebridades da e na blogosfera? Reputação e renome em blogs. In: XVIII Encontro
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SHIRKY, C. A Cultura da Participação: Criatividade de generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro:


Zahar, 2011.

WESCHENFELDER, A. Transformações da expert em celebridade: O caso Camila Coelho. In: III Colóquio
Semiótica das Mídias - Pentálogo V Dicotomia Público/Privado: Estamos no caminho certo? Japaratinga.
Anais do Colóquio Semiótica das Mídias. Japaratinga: CISECO, 2014.

677
PARA AONDE VAI O JORNALISMO? 1
Desafios na autorrepresentação dos jornalistas

WHERE IS THE JOURNALISM GOING?


Challenges in self-representation of journalists
Ana Paula Fernandes Pimenta 2

Resumo: Este trabalho constitui uma versão resumida e direcionada de minha


monografia – de mesmo título – e possui por objetivo investigar e compreender
quais as avaliações e perspectivas do jornalista mineiro perante a atual conjuntura
e rumos de sua profissão. Entende-se que a internet revolucionou o cenário
jornalístico, influenciando diretamente no modo de produção e difusão da notícia, o
que acabou modificando a atuação do profissional. O jornalista que antes possuía
o monopólio da informação precisou se adaptar a um novo sistema
comunicacional, em que o público era também emissor. Como metodologia, foi
aplicado um questionário a jornalistas atuantes e estudantes da graduação. Ao
final, o resultado indicou o reconhecimento dos novos moldes comunicacionais por
parte dos jornalistas, assim como a urgência expressa pelos mesmos de uma
reinvenção da profissão. Percebeu-se também uma necessidade do profissional em
valorizar ideais básicos do jornalismo, para um aprimoramento da atividade.

Palavras-Chave: Jornalismo. Jornalistas. Autorrepresentação. Jornalismo Digital.

1. Introdução
Desde seu surgimento no Brasil, no início do século XIX, até os dias atuais, o
jornalismo veio sofrendo mudanças no que diz respeito a sua atuação profissional e influência
social. Começando opinativo e literário, ele ganhou moldes empresariais no século XX, mas
apenas na década de 1950, com a chegada do lide, que o jornalismo brasileiro tomou a forma
pela qual é majoritariamente visto hoje em dia: rápido e objetivo.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Convergência e Cultura Midiática do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail:
anapaulafernandespimenta@yahoo.com

678
Tem-se que as principais funções de um jornalista seriam a incessável busca pela
verdade, o poder de fiscalizar o governo e representantes públicos, de investigar e levar ao
público as várias informações acerca de um acontecimento, para que então uma opinião fosse
formada. Porém, os tempos mudaram, e com ele, o papel do jornalismo na sociedade vem se
transformando.
Ao final do século XX, com o surgimento e popularização da internet, nasceu também
um novo modelo de construção e propagação da notícia. O jornalista viu seu posto – até
então, exclusivo – de informante ser dividido com internautas também interessados em
produzir e difundir notícias e informações. Diante de tais reviravoltas, ficou evidenciada a
profunda zona de desconforto e intimidação interna e externa que o jornalismo havia
atingido, e a necessidade de se reinventar tornava-se cada vez mais próxima.
Dessa forma, o presente trabalho propõe-se a investigar e buscar compreender de que
forma as mudanças acarretadas pela internet afetaram o papel social e profissional do
jornalista, assim como analisar de que modo o profissional enxerga-se representado hoje.
Para tal, foi realizada uma extensa pesquisa bibliográfica acerca da chegada e popularização
da internet, os usos do espaço digital por parte do jornalismo, e as mudanças ocasionadas no
profissional inserido neste novo contexto comunicacional. Como objeto empírico, realizou-se
a aplicação de um questionário composto por 11 questões fechadas e uma discursiva a
jornalistas e estudantes de jornalismo de Belo Horizonte, cujos resultados são brevemente
explanados no texto abaixo.

2. A chegada do jornalismo digital

Acostumado aos meios impressos, e só mais tarde, ao audiovisual, o jornalismo, em um


primeiro momento, enxergou na internet nada além do que mais um meio de disseminação da
notícia na mesma lógica com a qual ela era apresentada nas mídias tradicionais, ou seja, o
jornalismo, inicialmente, transpôs para o ambiente virtual as notícias do mesmo modo como
estas eram apresentadas nas mídias tradicionais. Em vez de ver a web como um novo meio,
com características e potencialidades próprias, as empresas tradicionais a encararam como
uma nova ferramenta para distribuir conteúdos, originalmente produzidos em outros

679
formatos. Na melhor das hipóteses, via-se a presença na Internet como uma extensão ou um
complemento do produto tradicional. (ALVES, 2006, p. 94).
Porém, como está sendo percebido e consolidado nos dias atuais, a internet é mais do
que um meio de agrupamento e divulgação de notícias. Como citou Rosental Alves (2006),

A web representa uma mudança de paradigma comunicacional muito mais ampla que
a adição de um sentido. Ela oferece um alcance global, rompendo barreiras de tempo
e espaço como não tínhamos visto antes. A indexação do meio digital permite a
acumulação de conteúdo, rompendo os paradigmas organizacionais que o jornalismo
tinha criado. Além disso, a web oferece um grau de interatividade que também nos
era desconhecido. (ALVES, 2006, p. 95).

Quando essa capacidade de potencialização da notícia foi percebida pelos profissionais


da área, teve início, no jornalismo, a chamada Revolução Digital, que os jornalistas
procuram, ainda hoje, compreender melhor em toda sua gama de possibilidades e
complexidades. A partir dela, as práticas de produção de notícias e reportagem foram
alteradas, sendo inseridas em um universo em expansão, rodeado de novas possibilidades,
como interação, personificação do conteúdo, agilidade e instantaneidade nas publicações.
(ALVES, 2006).
Do primeiro jornal online até os dias de hoje, o webjornalismo pode ser percebido em
três gerações. A primeira, segundo Dalmonte (2009), diz respeito a justamente essa atitude
transpositiva das notícias do impresso para o digital, sem fazer alterações no conteúdo ou
criação de pontos estratégicos voltados para o meio digital. Outra característica importante
durante essa fase foi a forte ligação dos portais com seus respectivos jornais impressos. Para
Reges (2010), os jornais da época tinham medo de que, com o avanço dos portais
jornalísticos, a população deixasse o impresso de lado. Assim, as empresas utilizavam as
duas mídias de forma vinculada, em que o portal funcionava como uma espécie de meio
publicitário para o impresso.
A segunda geração do webjornalismo surgiu no final da década de 1990, e pode-se
dizer que ela se caracteriza por funcionar como uma espécie de transição entre o
webjornalismo inicial e o que é vivenciado hoje. Durante essa fase, os jornalistas já
entendiam e usufruíam de parte das potencialidades oferecidas pela internet, fazendo uso, por
exemplo, de links com chamadas para outras matérias ou conteúdos associados à publicação.
Luciana Mielniczuk (2003), citada na obra de Edson Dalmonte, define a segunda geração do

680
webjornalismo como “a fase da metáfora”, devido a sua mesclagem entre o conteúdo preso
aos limites do impresso e as possíveis amplificações trazidas pela rede.
Experimentamos, na atualidade, a terceira, e até então, última geração do
webjornalismo. Marcada pelo desenvolvimento do conteúdo jornalístico voltado para a web,
a terceira fase compreende o uso de recursos como multimidialidade, interatividade e outras
características do webjornalismo.
Nos produtos jornalísticos dessa etapa, é possível observar tentativas de,
efetivamente, explorar e aplicar as potencialidades oferecidas pela web para fins
jornalísticos. Nesse estágio, entre outras possibilidades, os produtos jornalísticos
apresentam recursos em multimídia, como sons e animações, que enriquecem a
narrativa jornalística; oferecem recursos de interatividade, como chats com a
participação de personalidades públicas, enquetes, fóruns de discussões;
disponibilizam opções para a configuração do produto de acordo com interesses
pessoais de cada leitor/usuário; apresentam a utilização do hipertexto não apenas
como um recurso de organização das informações da edição, mas também começam a
empregá-lo na narrativa de fatos. (MIELNICZUK apud DALMONTE, 2009, p.125).

Por meio das características e potencialidades do webjornalismo, tais quais


interatividade, personalização, hipertextualidade, multimidialidade, instantaneidade e
memória, o jornalismo parece adquirir na web novas formulações, ditadas agora pelas
potencialidades do universo online. Assim, a utilização da técnica da pirâmide invertida,
amplamente aplicada no jornalismo convencional torna-se duvidosa, ou simplesmente
incapaz de suprir as necessidades e capacidades do webjornalismo.
Norteando-se por esse dilema, João Canavilhas (2001) sugere a adoção de uma nova
técnica para a redação do webjornalismo: a pirâmide deitada. A partir de uma proposta de
Robert Darnton para um texto acadêmico dividido em camadas, o autor adapta o modelo para
o jornalismo, estruturando a pirâmide deitada sob o mesmo formato. Atendendo aos
primeiros requisitos da pirâmide invertida, a técnica da pirâmide deitada também inicia o
texto jornalístico com as principais informações reunidas no lide. Porém, é no
desenvolvimento da notícia que as diferenças entre uma narrativa e outra são visíveis.

Propondo uma linha de leitura livre para o internauta, a técnica da pirâmide deitada
não segue os preceitos anteriores de informações dispostas de acordo com seu grau de
importância. Ao invés disso, elas são agrupadas em setores, organizando o texto de forma
horizontal.

À lógica organizativa assente na “importância” dos factos deve suceder uma outra
assente na quantidade de informação oferecida aos leitores. Se o eixo vertical que vai

681
do vértice superior à base da pirâmide invertida significa que o topo é mais
importante que a base, então a pirâmide deve mudar de posição, procurando-se desta
forma fugir à hierarquização da notícia em função da importância dos factos
relatados. (CANAVILHAS, 2001, p.13).

Dessa forma, tem-se um texto dividido em níveis de leitura: após o lide, chamado de
Unidade Base, tem-se o nível de explicação, em que informações como “como” e “por que”
podem ser localizadas. Logo em frente, encontra-se o nível de contextualização, em que,
utilizando largamente das oportunidades textuais da internet, o texto sofre o acréscimo de
vídeos, infografias e som, a fim de completar os dados oferecidos na Unidade Base. Após a
contextualização, é mostrado o último nível: o de exploração, que busca interligar a notícia a
outros arquivos e publicações, através do uso de hiperlinks.

Com a união de todos os níveis, é formada a estrutura da pirâmide deitada. Por meio
desta, o internauta não mais fica sujeito a um texto já limitado pelo jornalista, podendo
navegar por dentro dos links disponíveis, escolhendo a melhor ordem para sua leitura.

3. O jornalista e o espaço digital

Por meio das mudanças trazidas pelo universo online, o jornalismo, e por
consequência, o jornalista, precisou se adaptar às novas estruturas impostas ao seu meio de
trabalho. Com a fusão das redações físicas e digitais, a partir de 2008, fomentada pelo
objetivo de unificar a cultura jornalística dentro da empresa e fortalecer a identidade noticiosa
dentro da companhia (GARCÍA AVILLÉS e CARVAJAL, 2008, apud PEREIRA e
ADGHIRNI, 2011), os jornalistas se depararam com uma grande gama de atividades a serem
feitas, destinadas a diferentes meios de divulgação – veículos impressos, online e
audiovisuais.

Soma-se a isso o fato de que a internet parece ter criado uma nova percepção de
tempo no indivíduo, que está acostumado agora com a notícia sempre instantânea, ávido por
novas informações e detalhes de um acontecimento.
(...) nada é mais velho do que um jornal de ontem. As mídias não têm mais horário de
fechamento e são publicadas à medida que os fatos se sucedem. Enquanto o jornal ou
a revista tem um deadline para a impressão gráfica, na tela, a notícia eterniza-se como
num vai e vem das ondas do mar. (PEREIRA e ADGHIRNI, 2011, p. 46).

682
Para Pereira e Adghirni (2011), tal mudança acarretou um dilema ao jornalista: como
produzir rapidamente e com qualidade quando não existe tempo hábil para apuração dos
fatos? O jornalista pode vir a enfrentar então uma pressão vinda de diversos lados: sociedade,
empresa, e por fim, interna.

Outra mudança no perfil do jornalista em rede é a relação que os profissionais


desenvolvem com as fontes. Antes acostumado à apuração direta e feita na rua, o repórter de
hoje, que também configura-se como editor, produtor e muitas vezes, até mesmo
diagramador, enfrenta a pauta de dentro da redação, limitando-se, muitas vezes, à
informações enviadas por assessorias de imprensa e agências de notícia.

O surgimento cada vez maior de jornalistas freelancers também é perceptível nessa


nova configuração da profissão. Segundo Figaro (2013), citada por Souza, (2017), os
profissionais estão a todo o momento a procura de novos clientes, e acabam tornando-se
“empregados de si mesmos, sempre atrás de negócios capazes de viabilidade econômica”
(FIGARO apud SOUZA, 2017, p.13). Esta situação pode ser analisada como uma
consequência da atual má valorização econômica em que a área se encontra.

Percebe-se, portanto, que ao mesmo tempo em que internet abriu os horizontes e


estendeu os limites do jornalismo, ela também criou o que pode-se chamar de nova cultura
informacional, em que a novidade atinge um novo nível de efemeridade, e a informação
precisa ser a todo instante atualizada.

4. Mudanças no papel do jornalista

Não é novidade o fato de que o jornalismo perdeu seu posto inicialmente


monopolizado em termos de divulgação da informação. Com o advento da internet e as novas
possibilidades que com ela surgiram, o espaço informacional foi tomado por uma multidão de
novos sujeitos comunicacionais, propondo diferentes formas de mediação da informação.
O surgimento do jornalismo representou a profissionalização da atividade de
mediação (Correia, 1995). Mas o advento das novas mídias e o aumento de eficácia
das assessorias de imprensa permite aos geradores de notícia uma comunicação direta
com o público, sem o intermédio do jornalista. Essa nova situação induziria alguns
teóricos (Neveu, 2002; Ramonet, 2001) a questionarem o papel do jornalista na
sociedade. (PEREIRA, 2004, p.11).

683
O jornalista que antes era acostumado a construir um primeiro contato com a
informação, para então adequá-la a uma notícia e veicular o fato, precisa lidar agora com um
público que é, de certa maneira, digitalmente competente para informar. Assim, uma posição
que antes era responsável por boa parte de seu prestígio social é hoje compartilhada entre
diversos novos cargos da contemporaneidade, obrigando o profissional jornalista a também
lutar pelo poder de noticiar.
Figaro (2017) chega mesmo a afirmar, baseado em estudos de Lafuente (2012), que,
com a atual crise vivenciada pela profissão e os diferentes modos de se produzir e veicular
uma notícia, o papel mediador do jornalismo passou a ser questionado, algo que, segundo a
autora, nunca havia sido proposto anteriormente. (FIGARO, 2017)
Com o cenário jornalístico marcado pela disputa de espaço e poder sobre a
informação, a profissão tem cada vez mais tomado proporções empresariais. Diferente do que
era visto nas primeiras décadas do jornalismo brasileiro, a notícia é hoje também sinônimo de
mercado, e o jornalista, um profissional à procura de algum lucro. O resultado disso é a
diminuição e desfavorecimento cada vez maior das redações, obrigando o jornalista a
produzir em larga escala e tempo curto, podendo comprometer, consequentemente, a
qualidade do material veiculado.

Com isso, o texto jornalístico adquire um caráter cada vez mais instrumental,
identificado com os interesses do mercado. O jornal é produzido como um manual
para a vida cotidiana. O jornalista perde a aura de herói e identifica-se, cada vez mais,
como simples operário de um sistema de produção taylorizado (PEREIRA, 2004,
p.10).

Aliado à concorrência imposta pelos meios digitais, hoje, o jornalista precisa também
lidar com a nova divisão do trabalho dentro das redações, encaixando-se agora não apenas
nas funções de repórter/redator, mas sim, um novo e imenso leque de cargos. Como explica
Souza (2017), citando Fonseca: “o jornalista tem de conhecer a pauta, apurar a informação,
redigir o texto e, se necessário, editar a matéria na página pré-desenhada (templates): titular,
selecionar fotos, legendar, propor gráficos, ilustrações, etc (FONSECA apud SOUZA, 2017,
p.10)”.
Além disso, a falta de recursos e investimentos na área, vem tornando, muitas vezes,
o ambiente de trabalho precário. Pereira (2004) comenta que este cenário marcado pela

684
pressão pode contribuir para um possível abandono do código de ética que conduz a
profissão.

A deterioração do mercado de trabalho traz um sentimento de resignação dos


profissionais às condições impostas pelas empresas. Para se manter no emprego ou
conseguir um melhor status, o jornalista se vê cada vez mais tentado a desrespeitar
algumas regras morais e deontológicas da profissão (como à checagem sistemática
das fontes ou o respeito à veracidade da informação). (PEREIRA, 2004, p. 10).

Souza (2017) aponta que, diante desse cenário, o jornalista passou a se dedicar ao
trabalho freelancer, que é geralmente feito de casa e sem uma regulamentação legitimada.
Assim, o jornalista acaba trabalhando por mais tempo, e, em muitas vezes, mesclando a vida
pessoal com a profissional.
Um outro ponto que permeia as mudanças vivenciadas pelo jornalismo e que alterou a
percepção de seu papel social é a questão da objetividade pregada e efetivamente promovida
pelo profissional. Segundo Pereira (2004), o declínio do ideal da objetividade foi um dos
motivos que acarretou o fim da chamada “idade de ouro do jornalismo”, em que a profissão
vivia seu auge enquanto forte personagem no campo social. Para o autor, a capacidade do
jornalista em mediar satisfatoriamente um fato estaria ligada ao nível de objetividade que seu
discurso traria, de forma que, à medida que esse ideal se esvai, a posição social do
jornalista também se deslocava.
A imagem do jornalista como mediador neutro, distante (e superior) aos jogos de
interesse da sociedade, estaria subjacente ao ideal de objetividade na profissão.
Segundo Moretzsohn (2002), é a partir desse ideal que os jornalistas vão
preservar suas práticas profissionais das pressões políticas e econômicas. Sob
discurso da objetividade, o jornalista aparenta o que não é (alguém que influencia
os próprios acontecimentos) e assegura seu lugar como autoridade independente,
capaz de fiscalizar os atos do governo perante a sociedade. (PEREIRA, 2004, p.6-
7)

De fato, são muitas as questões problemáticas que envolvem o atual cenário


profissional do jornalista. Para muitos autores, a ideia de que a profissão vive uma crise é
cada vez mais defendida.
Sem identidade profissional definida, pressionado pelo mercado em condições
de trabalho cada vez mais precárias e responsabilidades sociais cada vez mais
fortes, os jornalistas estão cansados. Eles jogaram fora o papel de heróis.
Ninguém mais quer ser Super-Homem. Os jornalistas querem apenas ser
profissionais respeitados em seus direitos no mercado de trabalho da informação.
(ADGHIRNI, 2005, p. 47).

685
Percebe-se, assim também, uma suposta queda do ideal místico que uma vez rondou
o jornalismo, evidenciada pelo profissional e, consequentemente, também pelo público.

5. Identidade Profissional na era digital

Compelido aos novos moldes comunicacionais, o jornalista precisou lidar com


mudanças em suas relações profissionais, que foram desde a construção do espaço de
trabalho até as funções exercidas por ele. Inscrito nesse cenário, alguns autores defendem a
ideia de que os jornalistas estariam atravessando uma possível crise de identidade, agravada
pelas novas configurações impostas ao jornalismo. Ao estudar processos identitários, Lopes
(2013) critica o termo “crise”, defendendo que a percepção de uma identidade
profissional é feita de forma fluída, e não fixa. Assim,

a identidade jornalística se dá menos pela manutenção e permanência de


critérios fixos para o reconhecimento da profissão e mais pelos processos
pelos quais essa identidade vai sendo construída, ao longo do tempo e em relações
contextuais, nas diferentes e complexas tramas da organização social. (LOPES,
2013, p.21).

Partindo do pressuposto de uma identidade profissional fluída, Grohmann (2016)


analisa as mudanças ocorridas no plano identitário do jornalismo, sendo as mais recentes
ocasionadas pelo advento e popularização das novas mídias e suas performances. O autor
explica que, especialmente após a década de 1990, houve no Brasil uma “reestruturação
produtiva do capital em relação ao mundo do trabalho em geral” (Grohmann, 2016, p.7), o
que acarretou uma reconfiguração das áreas de trabalho, com o surgimento de uma forte
flexibilização do mercado, seguida da precarização dos trabalhadores. O jornalismo, por
exemplo, viveu
uma desterritorialização da produção (MORAES, 2013), bem como uma
individualização das situações de trabalho e uma compressão nas categorias de tempo
e espaço (HARVEY, 2003). De um lado, as redações tradicionais enxugadas. De
outro, diversificam-se as relações de trabalho, como uma “liberdade” por opção ou
por imposição (GROHMANN, 2012). No meio disso, as mudanças tecnológicas,
principalmente a partir dos dispositivos móveis, propiciam uma maior facilidade na
produção de material jornalístico. Trata-se, segundo Ramonet (2012), de uma
verdadeira “explosão do jornalismo”, culminando também em diferentes
terminologias, como sem fins lucrativos, paywall, jornalismo de dados, pagamentos
por clique, video-blogging, e não só nas grandes empresas.(GROHMANN, 2016, p.
8).

686
Procurando melhor entender e exemplificar como se dá a identificação do trabalho do
jornalista, Grohmann (2016) analisou a atividade sob três perspectivas: o plano da produção;
o discurso e as esferas de trabalho; e por fim, tratou da própria “marca” jornalística, inserindo
aí a esfera de “circulação e consumo do trabalho do jornalista”. (Grohmann, 2016, p.9).
No “plano de produção”, o autor procura identificar como o jornalista pode ser
classificado e inserido na classe trabalhadora. Baseando-se nos estudos de Ricardo Antunes
(2001), ele chega à conclusão de que
o jornalista, em geral, pode ser considerado a partir das classes trabalhadoras a partir
da expressão “classe-que-vive-do-trabalho”, de Ricardo Antunes (2001), que inclui a
totalidade dos que vendem a sua força de trabalho, seja produtiva ou
improdutivamente. (GROHMANN, 2016, p.9).

Nesse contexto, o autor discute a maneira pela qual o jornalismo teve seu espaço de
trabalho precarizado e individualizado, estando os jornalistas cada vez mais incitados à
produção lucrativa. No segundo plano, Grohmann aborda a linguagem, fator que ele
considera o meio e fruto primordial do trabalho do jornalista. Sendo assim, ao trabalhar com
a linguagem, o jornalista trabalha também com a produção de sentidos, por meio de seu
discurso. Por fim, o último plano proposto por Grohmann procura entender o jornalista
enquanto “marca”, o que talvez resuma a posição do jornalista como um ser identitário. Para
o autor, o jornalista se forma como marca a partir do momento em que ele faz “uso de si por
si mesmo” para se apresentar à sociedade. (GROHMANN, 2016).

Trata-se do plano onde circulam os sentidos ideológicos sobre o mundo do trabalho


dos jornalistas e sobre a própria profissão, como sentidos sígnicos (enquanto marca)
e dos próprios processos produtivos. É, então, uma síntese dos processos
comunicacionais e das suas escolhas e seus valores enquanto trabalhador.
(GROHMANN, 2016, p.12).

Segundo o autor, a marca pode ser a função exercida pelo jornalista, como também o
nome reivindicado pelo mesmo, simbolizando ali o seu lugar de fala. (GROHMANN, 2016)
A partir da marca, o profissional estaria fazendo uso de uma “narrativa do eu”, em que o
profissional poderia se encaixar em diversas identidades, cada uma em seu momento e
circunstância, não havendo nem mesmo a necessidade de uma coerência entre elas. Para o
autor, essa terceira dimensão do jornalismo nos ajuda a compreender

o trabalho do jornalista enquanto identidades, performances e formação de


subjetividades, por onde circulam ideologias enquanto valores, escolhas e

687
posicionamentos enquanto sujeitos sociais, estando inserida também aí a discussão
ética. (GROHMANN, 2016, p. 14).

Voltando à concepção de um fazer jornalístico cada vez mais multifacetado e


caracterizado por inúmeras funções, a presença da “marca” na profissão auxilia na
legitimidade de uma identidade profissional, e consequentes meios para uma auto
representação social do jornalista.

6. A autorrepresentação dos jornalistas

Diante das observações e apontamentos realizados neste trabalho, interessa-nos


investigar no âmbito pessoal e profissional do jornalista os modos pelos quais ele se
identifica hoje, quanto a sua atuação. Para tal, um questionário contendo 12 questões – sendo
11 destas de múltipla escolha, e uma discursiva – foi aplicado à um total de 23 jornalistas –
abrangendo as áreas do digital, impresso, rádio e TV – e 43 graduandos em jornalismo, na
cidade de Belo Horizonte.
As questões foram distribuídas em quatro eixos temáticos: Função e papel social do
jornalista, Formação Profissional, Responsabilidade e ética, e Rumos da Profissão. Em uma
análise geral das respostas obtidas, alguns pontos foram perceptíveis e suas explanações
fazem-se aqui necessárias. O primeiro deles é o fato de que, em uma maioria das perguntas,
os dois grupos de respondentes – jornalistas e estudantes – foram próximos em suas
abordagens, de modo que as respostas confluíam em uma mesma alternativa ou ponto de
vista.
Tal similaridade é evidente, por exemplo, em uma questão do eixo 1 – Função e papel
social do jornalista –, que discutia o atual poder de influência dos jornalistas na sociedade: o
resultado indicou que 65,2% dos jornalistas e 76,7% dos estudantes afirmaram que o
jornalismo perdeu parte de seu poder de influência, porém, mantém ainda considerável
importância sobre outros campos da vida social.
Nos pontos abordados pelo segundo eixo – Formação Profissional – os respondentes
precisaram se posicionar quanto à questões a respeito da obrigatoriedade do diploma de
graduação para exercer a função de jornalista, por exemplo. Quanto a este ponto, novamente
jornalistas e estudantes concordaram com a necessidade de cobrança do diploma para exercer

688
o cargo de jornalista, alternativa que representou 86,9% dos jornalistas e 92,2% dos
estudantes.
Nas questões propostas pelo terceiro eixo, intitulado Responsabilidade e ética, foi
perguntado aos respondentes quais eram, segundo suas percepções, os aspectos éticos da
profissão que encontravam-se em risco hoje. Novamente, um resultado muito próximo foi
expresso pelos dois grupos em análise, em que ambos afirmaram ser a apuração e checagem
de informações o aspecto ético da profissão mais em risco, com um total de 59,1% por parte
dos jornalistas e 62,8% por parte dos estudantes.
No último eixo proposto – Rumos da Profissão –, uma das questões discutia qual o
futuro dos meios de veiculação das notícias. Mas uma vez, houve uma consonância entre as
respostas apresentadas pelos jornalistas e estudantes, já que ambos os grupos assinalaram que
o futuro dos meios de comunicação prevê uma ampliação do jornalismo digital, obtendo,
entretanto, um auxílio por parte dos veículos tidos como analógicos. As respostas,
representando 73,9% dos jornalistas e 88,4% dos estudantes pode ser entendida como uma
necessidade imposta pelos profissionais e futuros profissionais de um jornalismo cada vez
mais digital, sem, entretanto, perder de vista suas raízes, por assim dizer.
Essa mesma visão é também partilhada nas respostas presentes na questão discursiva,
que perguntava aos respondentes qual era a visão deles quanto ao futuro do jornalista como
ator social e profissional, muitas respostas indicaram que os prospectos para a profissão
encontram-se em uma remodelação do meio, com um maior engajamento da área no âmbito
digital. Entretanto, as chamadas mídias tradicionais não foram descartadas para um futuro
próximo da profissão. Tal posicionamento pode ser visto na resposta abaixo, disponibilizada
por um dos estudantes respondentes: “O futuro está na mescla entre a mídia tradicional e
mídia alternativa, não há necessidade de se fazer um exercício excludente entre elas. Há
possibilidade de ambas trabalharem em conjunto para serem uma extensão da outra alinhando
as metodologias de trabalho e sempre valorizando a apuração que é a base de qualquer
movimento jornalístico.”
Do mesmo modo, algumas respostas para a questão discursiva também indicavam
uma necessidade de resgate dos ideais básicos do jornalismo – como apuração e checagem
dos fatos – para uma melhor e mais efetiva atuação da profissão na sociedade.

689
7. Conclusão
O presente trabalho constituiu-se por uma pesquisa acerca da autorrepresentação dos
jornalistas em relação ao futuro da profissão. Entendendo que o jornalismo vem passando por
consideráveis mudanças nos últimos anos, buscamos aqui compreender a maneira pela qual o
jornalista mineiro se enxerga representado atualmente, atuando tanto como ator social quanto
profissional. A pesquisa propõe-se também a sondar o que os jornalistas enxergam como uma
possível perspectiva futura para o jornalismo, que estaria inserido agora em um novo
contexto comunicacional.
Por meio da abordagem teórica aqui explanada, buscou-se compreender as recentes
mudanças vivenciadas pelo jornalismo, interessando-nos, essencialmente, investigar de que
modo a internet e suas novas potencialidades comunicacionais alteraram a rotina profissional
do jornalista, provocando consequentes efeitos no papel e função social que o mesmo
representa.
A fim de pesquisar a autorrepresentação do jornalista, um questionário que abordava
as mudanças no meio comunicacional e um possível futuro para a profissão foi aplicado a
dois grupos de respondentes. Os resultados obtidos indicaram, de um modo geral, que os
jornalistas e estudantes de jornalismo reconhecem a – ainda em fluxo – mudança no âmbito
profissional do jornalista, como também indicam a importância do profissional encaixar-se
nesse novo cenário. Para tal, é expressa uma necessidade cada vez maior de integração das
mídias ao meio digital, sem, entretanto, abandonar o que um dia foi chamado de “jornalismo
tradicional”. O apelo a uma manutenção de pilares básicos do jornalismo, como apuração e
checagem dos fatos, foi também indicado como vetor necessário para um desenvolvimento
efetivo do jornalismo como atuante social.

8. Referências
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Mídia, Florianópolis, v.2, nº 1, p.45-57, 2005. Disponível em: <
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ALVES, Rosental Calmon. Jornalismo digital: Dez anos de web… e a revolução continua.
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690
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GROHMANN, Rafael do Nascimento. O trabalho do jornalista a partir dos processos


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691
Uma análise sobre a formação de laços afetivos entre o LoL e sua
comunidade 1

Gabriel Campedelli (PUC) 2

Resumo: O presente artigo visa investigar sobre a forma como a Riot Games,
desenvolvedora do jogo League of Legends, constrói laços afetivos entre o jogo e sua
comunidade a partir da criação de novos conteúdos. Fundamentado nas teorias de
contratos de leitura e promessas da comunicação, uma análise de conteúdo permitirá
traçar a interação promovida através de narrativas, modos de jogo, conteúdos relevantes
para a comunidade por parte da produtora do jogo, eventos esporádicos que interagem
com o seu público e como se dá o processo comunicacional entre ambas as partes. Para
isso, um estudo de caso sobre o evento “Odisseia” será analisado para compreender de
que forma o jogo utiliza da construção comunicacional para promover a interação com
seu público a fim de potencializar os laços afetivos. Portanto, será desenvolvida uma
análise de conteúdo das diferentes plataformas digitais oficiais (Twitch, Facebook,
site oficial, o software do jogo e Twitter) que a Riot Games utiliza com foco no evento
acima mencionado.

Palavras-Chave: E-sports. League of Legends. Laços afetivos. Fãs. Plataformas digitais.

1- A ascensão de League of Legends no cenário digital

Bem-vindos a Summoners Rift! Trinta segundos para liberação das tropas! Tropas
liberadas! Agora é o momento no qual duas equipes compostas por cinco integrantes estão
dentro da arena para unir-se a um único objetivo: destruir o Nexus inimigo. Entre 140
campeões, 10 são escolhidos para batalhar em um jogo estratégico, onde um milissegundo

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho 7 - Comunicação, Convergência e Cultura Midiática do 3º.
CONEC: Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de
outubro de 2018.
2
Estudante de Graduação 7º. semestre do Curso de Comunicação social – Publicidade e Propaganda da
PUC Minas – Campus Poços de Caldas, e-mail: campedelligabriel@gmail.com

692
de desatenção pode ser um erro crucial. Invocadores, é a hora de deixarem seus corações
e almas na arena. É agora! GG WP 3 !
Emoções, tensão e estratégia fazem parte de League of Legends. O jogo é
categorizado dentro gênero MOBA (MultiPlayer Online Battle Arena) e foi desenvolvido
em 2009 pela Riot Games e desde então tornou-se um dos jogos mais populares ao redor
do mundo. A Newzoo, empresa global de inteligência voltado para assuntos de jogos, e-
sports e mobile, divulgou recentemente uma pesquisa promovida desde janeiro de 2017,
e revelou que o LoL está no topo de jogos mais consumidos do mundo. Segundo a
definição do seu site oficial:

League of Legends é um jogo online competitivo que mistura a


velocidade e a intensidade de um RTS com elementos de RPG. Duas
equipes de poderosos campeões, cada um com design e estilo único,
lutam em diversos campos de batalha e modos de jogo. Com um elenco
de campeões em constante expansão, atualizações frequentes e uma
cena competitiva exuberante, League of Legends oferece diversão
incessante para jogadores de todos os níveis de habilidade. (LEAGUE
OF LEGENDS, 2018)

A popularidade de LoL revelou ao grande público uma vertente dos jogos


eletrônicos até então pouco disseminada: os e-sports. Os esportes eletrônicos são um
conceito utilizado para designar competições oficiais que possuem estruturas, premiações
e visibilidade que se igualam e, por vezes superam diversos esportes tradicionais. De
acordo com a Newzoo, o jogo frequentemente mantém-se nas primeiras posições em duas
diferentes plataformas de streaming (Youtube e Twitch) com relação a espectadores.
O destaque do jogo no meio de tantos no universo dos e-sports tem influência,
sobretudo, em seu modelo de negócios. Alguns pontos serão explanados para destacar a
sua grandiosidade neste nicho. O NerdCast, um podcast voltado para assuntos da cultura
pop, produziu um programa no qual debatem sobre as estratégias da Riot Games. O
renomado narrador de League of Legends, Diego “Toboco” Armando, no programa do
NerdCast expôs sobre a facilidade de entrada no universo League of Legends, cujo
aprendizado é muito mais simples do que outros jogos, o que possibilita uma grande
imersão por parte dos seus fãs para maximizar suas habilidades e conhecimentos acerca

3
GG WP (good game, well played)! Uma frase que todos os invocadores gostam de expressar. Tornou-se
uma marca para registrar o segundo final da partida, quando o Nexus toma o seu golpe final. É manifestada
tanto pelos vitoriosos quanto pelos derrotados. É o momento em que o espírito esportivo está acima de tudo
e reconhecem que foi uma grande partida.

693
do jogo Ou seja, um incentivo para aprofundar mais seus conhecimentos diante da
transparência que o LoL proporciona:
talvez o grande pilar pra o LoL dar certo é essa questão do jogo ser
muito mais simples de jogar diante dos concorrentes. Quando você quer
trazer um novo jogador, é melhor idealmente que ele goste do jogo e
depois perceba por si só que o jogo é complexo, mas a partir do
momento que ele tá apaixonado pelo jogo você se adequa.
(JOVEMNERD, 2018)
O League of Legends sucedeu do jogo Dota, cujas jogabilidades se assemelham
bastante. O Dota foi criado como um modo de jogo dentro do Warcraft e foi a origem do
gênero MOBA. Os desenvolvedores deste modo saíram da empresa e criaram seus
próprios jogos baseado no mesmo conceito (League of Legends e Heroes of Newerth).
Atualmente, o primeiro é um dos mais famosos do mundo e o segundo não conquistou as
mesmas proporções. De acordo com os participantes do programa NerdCast, as
estratégias de mercado entre os dois novos jogos foram bastante diferentes. O Heroes of
Newerth, segundo os convidados, foi basicamente uma cópia do Dota, enquanto o League
of Legends desenvolveu uma produção mais autêntica, construindo um universo
completamente novo.
As constantes atualizações do jogo desempenham um importante papel na
manutenção da relação entre a Riot Games e sua base de fãs e consumidores. O mercado
neste segmento tem se tornado cada vez mais competitivo, em função dos novos jogos e
da ampla gama de opções existentes. De acordo com Rein, Kotler e Shields (2008), em
um mercado extremamente competitivo e dinâmico, as marcas precisam acompanhar as
mudanças para que não percam sua base de fãs atraiam novos entusiastas. Todavia, é
necessária uma ponderação quanto às mudanças, visto que é importante manter a sua
identidade, e mudá-la radicalmente requer um planejamento a longo prazo “porque
mudanças malfeitas podem afastar blocos imensos de fãs” (REIN, KOTLER, SHIELDS,
2008, p.131). A capacidade de mudanças por parte da Riot Games é fruto de um
posicionamento extremamente eficaz no que diz respeito a compreender as necessidades
e demandas do público-alvo, pois é necessário pensar tanto em seu público casual quanto
o seu público competitivo. Na figura 1.0, a apresentação sobre as notas de atualização do
jogo explana as estratégias com ambos os públicos.

694
Figura 1 - Notas de atualização 7.16

Fonte: Riot Games (2017)

Portanto, compreender o LoL quanto às suas estratégias perpassa pela


compreensão da Riot Games com as necessidades e demandas do seu público-alvo e como
é elaborado o lugar de recepção para a sua comunidade. Para tal, os conceitos de autor-
modelo e leitor modelo de Umberto Eco (1994), contratos de leitura de Eliseo Verón
(2004), contratos de comunicação de Patrick Charaudeau (2007) e promessas de François
Jost (2004) serão abordados a seguir para compreender como se dá a formação de laços
afetivos entre ambas as partes – a produtora do jogo e a sua comunidade.

2- Sobre as formas de endereçamento

Umberto Eco (1994) é pioneiro em discursar sobre o lugar da recepção e a forma


como o destinatário da mensagem a recebe e comporta-se diante disso. Para ele, ao
desenvolver uma obra, “um conjunto de instruções nos são dadas passo a passos [...]
devemos seguir quando decidimos agir como o leitor-modelo” (ECO, 1994, p.21). Isto é,
uma obra torna-se completa quando o leitor-modelo imerge e participa da construção do
autor-modelo, pois só “se tornam claras uma para a outra somente no processo da leitura,
de modo que uma cria a outra” (ECO, 1994, p.30).

Dessa forma, quando a obra é desenvolvida, o leitor modelo é convidado a


participar da construção da obra do autor-modelo, contribuindo nas diversas
interpretações que um texto pode vir a ter. Na visão de Eco (1994), estratégias são
arquitetadas pelo autor-modelo buscando compor um leitor-modelo em um processo que
permita a sua participação.

A construção do League of Legends através de estratégias linguísticas passa por


uma grande sinergia em todos as mídias digitais. Os fãs neste processo são peças

695
fundamentais no mecanismo da produtora do jogo. Através do lançamento de campeões,
eventos, skins, campeonatos, entre outras coisas, o League of Legends constrói um
universo dinâmico de possibilidades e estimula o seu público a interpretar a mensagem,
uma vez que “uma mensagem adquire sentido apenas quando interpretada”
(CARVALHO, 2015, p.83).

Tomemos o exemplo do conceito da selva moderna, discutido no podcast


realizado pela NerdCast. Nos primórdios do jogo, a rota da selva era livre para todos os
jogadores, mas a comunidade, em especial o jogador DiamondProX revolucionou o jogo
criando um padrão de jogabilidade na jungler 4. Após isso, a Riot Games projetou
campeões baseados, com seu kit de habilidades, neste conceito para adequar-se ao jogo.
O League of Legends construiu um lugar de recepção e coube ao jogador interpretar e
construir novos significados para a obra.

A partir dos conceitos explorados por Umberto Eco (1994), Eliseo Verón (2004)
discorre sobre os contratos de leitura, nos quais discute a recepção por parte dos leitores
em relação à imprensa escrita (especialmente visando as revistas). O autor alega que tais
publicações possuem um teor de conteúdo semelhante, e utiliza a forma como se
expressam ao invés do que expressam para “compreender o vínculo criado entre suportes
de leitura e leitores” (CARVALHO, 2015, p.84).

Essas modalidades estão inseridas em um conceito denominado “dispositivo de


enunciação” que forma-se a partir de três elementos: a imagem de quem fala, a imagem
para quem o discurso é direcionado e a relação concebida fundamentada no discurso,
sendo que “o que o enunciador diz, as coisas que supostamente ele fala, constituem uma
dimensão importante do contrato de leitura” (VERÓN, 2004, p.2018). O contrato de
leitura, portanto, é a criação do vínculo entre ambas as partes e a cadeia de sentidos que
serão completos a partir da maneira como é instituída a recepção.

Diante de variados jogos no universo dos e-sports é necessário um amplo


conhecimento do seu posicionamento e como é a imagem diante do seu público.
Conforme retrata Eliseo Verón (2004), muitas produções são semelhantes e trabalham
com o mesmo tema, mas o seu modo de dizer é o que irá diferenciar diante do lugar da

4
Jungler é uma das funções dentro do jogo, chamadas lanes. Há também o Top, Mid, Adc e Suport. Cada
lane tem suas particularidades e estratégias.

696
recepção. O emissor, no caso a Riot Games, produz o seu conteúdo pensando na recepção
de sua comunidade, o consumidor do League of Legends.

Conforme fora mencionado anteriormente, o gênero MOBA possui jogos


estruturados no mesmo conceito. Todavia, o League of Legends é considerado o jogo
mais popular dentre eles. Um dos panoramas está em seu modo de dizer. Os campeonatos
mundiais evidenciam o conceito de Verón (2004) a partir de criação de conteúdos
exclusivos. Precedendo o mundial, uma skin exclusiva é lançada e fica disponível durante
a execução do campeonato. Eventos são criados como uma forma de aproximação do
mundial. Além disso, o League of Legends promove uma competição entre os torcedores,
concedendo bônus dentro do jogo para a região que tiver maior engajamento por parte de
sua torcida. Para completar, diversas produções audiovisuais são desenvolvidas para
fomentar a relação do jogo com seu consumidor, a partir de um conceito. O mundial de
2017, desenvolveu conteúdos, músicas, vídeos, animações e um espetáculo em sua
apresentação na final da competição com o tema “Legends Never Die”. Percebe-se, dessa
forma, que a proximidade e o anúncio do campeonato mundial são efetivamente
comunicados. Entretanto, tão forte quanto a mensagem é a estratégia criada pela Riot para
transmitir a informação de maneira efervescente, cativante e afetiva.

No entanto, Eliseo Verón limita-se no campo da imprensa escrita para propor o


conceito de contratos de leitura, em especial as revistas. Para ampliar a utilização da
metodologia contratual, Patrick Charaudeau (2007) desenvolveu o conceito de contratos
de comunicação, no qual o discurso é previamente definido por um conjunto de regras
que se limitam diante de determinada situação, em que “os indivíduos que querem
comunicar entre si devem levar em conta os dados da situação de comunicação”
(CHARAUDEAU, 2007, p.67). Assim como todo locutor deve reconhecer as restrições
em seus discursos, o destinatário também deve estar apto a compreender a situação.

Origina-se, portanto, o contrato de comunicação, cujos pretextos são as criações


de laços contratuais, estruturados por dados externos e dados internos. O primeiro é
externo ao locutor, não podendo controlar a situação, enquanto o segundo é intrínseco ao
locutor. Charaudeau (2007) cria a analogia que o processo da comunicação é como um
palco. Possui suas restrições de espaço, tempo, relações e palavras que são os dados. E
tanto o locutor quanto o interlocutor devem reconhecer essas restrições através de “um
jogo de regulação das práticas sociais” (CHARAUDEAU, 2007, p.67). Os dados,

697
portanto, são importantes para compreender de que forma é organizada uma abordagem
comunicativa a partir de estratégias que são construídas socialmente:

Os dados externos e internos são relevantes para o contrato porque


ressaltam as condições de restrição dos atos comunicativos. Sabemos
que não se pode abordar tudo o que se deseja durante as trocas
comunicativas e por isso os elementos situacionais e discursivos
auxiliam na orientação dos sujeitos durante os encontros, sejam eles
presenciais ou nas interações com os meios de comunicação
(MIRANDA, 2008, p.7)

Os dados externos abordam sobre as “regularidades comportamentais dos


indivíduos que aí efetuam trocas e pelas constantes que caracterizam essas trocas e que
permanecem estáveis por um determinado período” (CHARAUDEAU, 2007, p.68), e são
subdivididos em quatro categorias: condição de identidade, condição de finalidade,
condição de propósito e condição de dispositivo. Além disso, Charaudeau (2007) ressalta
que os dados externos não estão inseridos no discurso, mas semiotizados, pois
correspondem à constantes que

Todo ato de comunicação depende desses quatro fatores para assimilar os


princípios propostos. Para Charaudeau (2004), a identidade é compreender os sujeitos
inseridos nessa prática baseados em traços da personalidade. A finalidade representa que
“todo ato de linguagem seja ordenado em função de um objetivo” (CHARAUDEAU,
2007, p.69). A finalidade aponta quatro aspectos: a visada prescritiva, que estimula a
pessoa a realizar uma ação; a visada informativa, que incita a pessoa a conhecer algo; a
visada iniciativa, que incita a pessoa a crer em algo; e a visada pathos, que incita a pessoa
a sentir algo. O propósito é o assunto que será desenvolvido entre ambas as partes. E por
fim, o dispositivo é o meio em que a comunicação é desenvolvida, seja por interação face
a face, por escrito, audiovisual ou digital.

Já os dados internos são formados intrinsicamente no discurso. É a partir do


discurso que se extrai a conjuntura da comunicação e apresenta São subdivididos em três
vertentes: o espaço de locução, o espaço de relação e o espaço de tematização. A locução
é o espaço em que o locutor deve impor-se e identificar a qual destinatário se dirige. A
relação se forma a partir da formação da orientação do discurso, “estabelecendo relações
de força ou de aliança, de exclusão ou de inclusão, de agressão ou de convivência com o
interlocutor” (CHARAUDEAU, 2004, p.71). E a tematização é o lugar onde a
comunicação se forma diante de todas as outras variáveis.

698
François Jost (2004) contrapõe os conceitos de contratos de ambos os autores, pois
enfatiza que não há uma relação formada entre o emissor e o receptor. Os contratos
fundamentam-se no processo de bilateralidade, no qual há um acordo prévio entre ambas
as partes. Já o conceito de promessa se assenta no processo de unilateralidade. Dessa
forma, Jost desenvolveu o conceito de promessas para explicar a relação entre o emissor
e o receptor na televisão, da qual o receptor só “pode esperar que o prometido pelo canal
seja cumprido ou não”. (MIRANDA, 2008, p.19). Portanto, para o autor, não existe uma
relação efetivamente construída entre as duas partes. Sendo assim, a diferença
fundamental entre os conceitos de contratos e promessas está na recepção. Apesar disso,
a promessa não é desempenhada sem a consideração no seu receptor.

Para Miranda (2008), a promessa se assenta em duas hipóteses. O gênero


televisivo, para a autora, estabelece a ligação entre o emissor e o receptor. Por exemplo,
“o gênero de comédia promete fazer o telespectador rir; o dramático, chorar; e o
informativo, informar” (MIRANDA, 2008, p.10). Ainda, a promessa se constitui tanto
previamente quanto durante o programa, seja através de publicidade e outras
programações.
As skins no League of Legends são a maior fonte de renda do jogo. A cada
atualização (em geral, ocorre num espaço de tempo de duas semanas), novas skins são
lançadas. A Riot Games cria a promessa de que a skin de determinado campeão a ser
lançada é esteticamente bonita (tanto na sua artsplash quanto em jogo) e a única ação por
parte do receptor ou consumidor é a opção de compra-las ou não.
Todas as teorias exploradas possuem propriedades convergentes acerca do
emissor e receptor, pois “para melhor compreender os vínculos entre a obra e o público,
é necessário analisar tanto as perspectivas da emissão quanto da recepção”
(CARVALHO, 2015, p.103). Os conceitos foram gradualmente complementados a partir
da perspectiva sobre o lugar da recepção. É a partir da construção deste lugar que o
receptor compreende até qual ponto da obra quer construir vínculos com o emissor.
Posto isso, uma análise de conteúdo sobre o evento “Odisseia”, lançado em
setembro de 2018 pelo League of Legends será importante para compreender de que
forma o jogo forma laços afetivos com a sua comunidade a partir da investigação de
elementos que potencializam essa relação, tanto em suas redes sociais quanto in game.

699
3- As novas estratégias da Riot Games para criar laços afetivos

A Riot Games promove diferentes eventos ao longo da temporada, com diferentes


temáticas: seja para o lançamento de uma linha de skins, para a convocação aos
campeonatos mundiais ou lançamento de campeões. Ao considerar-se as perspectivas
anteriormente exploradas, observa-se que todos os eventos têm como objetivo fomentar
a qualidade e intensidade da relação com sua comunidade de fãs, ou seja, a segmentação
é diferente dos modos competitivos tradicionais.

Para desenvolver uma análise de conteúdo acerca da criação de laços afetivos, é


necessário recorrer a categorias que reincidem a diferentes eventos que o LoL promove.
De acordo com Carlomagno e Rocha (2016), a análise de conteúdo tem o intuito de
categorizar uma série de elementos que possuam características em comum, criando um
conjunto unitário. Para elencar essas categorias, usam-se dados qualitativos que
proporcionam um entendimento completo do objeto. A descrição passa por
interpretações, cruzando bases teóricas e análise minuciosa do objeto. No caso de League
of Legends, com base na observação em eventos congêneres previamente realizados,
algumas características se repetem com recorrência. Dentre elas estão um novo modo de
jogo, criação de skins, missões, recompensas e universo narrativo.

O League of Legends, como mencionado anteriormente, é considerado um dos


jogos mais populares do mundo. Em virtude disso, a sua comunidade é bastante ativa
perante ao grau de imersão no universo do jogo. Forma-se aí um lugar de recepção forte
em que a criação de vínculos passa por essas características recorrentes nos eventos.

Um panorama a se considerar acerca de sua popularidade é que o jogo é dividido


por regiões, tendo servidores em diferentes países que possuem relevância no cenário.
Portanto, cada servidor é adaptado à cultura do país, o que contribui com a criação de
laços afetivos através da compreensão dos comportamentos da comunidade em questão.
Abrem-se possibilidades para criação de conteúdo e uma aproximação maior com sua
comunidade. Observemos o site oficial do League of Legends Br acerca do evento
“Odisseia”:

700
Figura 2 - Biografia Jinx – evento Odisseia

Fonte: League of Legends (2018)

Na imagem acima, é possível observar uma linguagem corriqueira do vocabulário


português, com termos e gírias da nossa cultura. É uma forma de aproximação do jogo
com a sua comunidade através da comunicação. Conforme salienta Verón (2004), uma
das principais diferenças entre os objetos da comunicação está nas formas de
endereçamento. A Riot Games, nesse sentido consegue compreender o processo
comunicacional entre ambas as partes, cujo fator cria um lugar de recepção forte.

O evento “Odisseia” teve seu lançamento em 12 de setembro de 2018 e durou um


mês, encerrando-se dia 9 de outubro de 2018, contando com a criação de um modo de
jogo no qual cinco jogadores entram em uma batalha pelo universo. Cinco campeões
escolhidos pelo League of Legends emergiram nesse cenário intergaláctico em sua nave
Estrela da Manhã para combater diferentes criaturas nos mais variados universos em
busca de uma recompensa: a “Ora”, uma essência dourada que possui a alma e o sangue
de toda a civilização e a promessa de um poder para quem conseguir portá-la sozinho. No
entanto, há um poderoso inimigo da Estrela da Manhã em busca da mesma recompensa,
para usar em benefício próprio: o campeão Kayn. Para enfrentá-lo, os tripulantes da nave
têm que provar que são capazes de derrotar monstros do universo.

Adjacente ao modo de jogo, foram criadas skins temáticas para os campeões


incorporados à Odisseia, visto que é uma das formas mais rentáveis do jogo para
potencializar o seu lucro. A escolha dos campeões para a composição da história passa
por estratégias de composição de time, tendo um campeão em cada lane, buscando
englobar todos os jogadores. A temática das skins é trabalhada no universo narrativo
criado para o evento.

701
Além disso, missões foram desenvolvidas e à medida que os jogadores
usufruíssem deste modo, premiações foram destinadas para que pudessem ser trocadas
por diferentes recompensas dentro do jogo, como: emblemas, fragmentos de campeões,
fragmentos de skins, baús, sentinelas de visão, cromas, emotes e ícones (exceto os
campeões, todos os prêmios tem uma função exclusivamente estética).

Uma das críticas constantes feitas pela base de fãs de LoL menciona falta de novos
modalidades de jogo. É perceptível que a Riot Games tem se esforçado para ampliar este
cenário, pois possui um nicho de público forte neste segmento. Nas redes sociais
Facebook e YouTube, o feedback tem sido extremamente positivo. Com os novos modos
de jogo, o League of Legends tem desenvolvido um universo totalmente novo para
construir laços afetivos com a comunidade. Muitos consumidores do jogo têm
demonstrado uma recepção extremamente positiva diante de tal conteúdo e o grande
interesse de empenhar-se a conhecer mais sobre as histórias por trás do jogo, conforme é
exposto em comentários proferidos no canal oficial da empresa no YouTube:

Figura 3 – Comentário sobre a animação

Fonte: YouTube (2018)

Figura 4 – Comentário sobre a animação

Fonte: YouTube (2018)

702
O evento Odisseia conta também com algumas produções narrativas de imersão
no universo ficcional criado. O site oficial disponibilizou contos acerca do campeão Kayn,
o inimigo dos tripulantes. Além disso, fornece biografias adaptadas dos tripulantes da
Estrela da Manhã inserido no evento, sendo eles: Jinx (pilota), Yasuo (capitão), Ziggs
(empreendedor), Sona (templária) e Malphite (engenheiro). Todas as biografias
desenvolvidas convergem com características intrísecas dos campeões previamente
apresentados no evento.

Nas redes sociais, o jogo disponibilizou um trailer de animação, com uma proposta
bastante atual de filmagem, incorporando o ponto de vista de uma câmera que filma em
modo selfie. No vídeo, Jinx apresenta sua tripulação para a campeã Sona que, segundo
sua biografia no evento Odisseia, possui um grande poder de comunicação com a “Ora”,
a recompensa que a nave Estrela da Manhã almeja.

A personalidade dos campeões no trailer de animação harmoniza com as


biografias criadas e habilidades in game. Tendo como exemplo a campeã Jinx, sua
principal característica está em destruir tudo por onde passa com armas fabricadas por ela
mesma. Além disso é inconsequente, empolgada e imprevisível. Nas imagens
comparativas abaixo é possível perceber como visualmente as características de ataque
da personagem mantém coerência visual, ainda que em plataformas, formatos e propostas
distintos:

Figura 5 - Jinx no trailer de animação

Fonte: YouTube (2018)

703
Figura 6 – Jinx in game

Fonte: Youtube (2017)

Cada mídia que o League of Legends usufruiu para construir o universo narrativo
de Odisseia assume um papel isolado e a transposição entre os meios digitais completa
uma experiência de imersão do usuário. A experiência se inicia no software do jogo, no
qual os personagens já existem antes do evento, portanto há um conhecimento prévio da
comunidade com relação a eles. Durante o evento, a tela de login, as narrações in game,
as tropas e o mapa também foram modificados para atrair a atenção do público.

O trailer de animação empenha-se em manter todas as características dos


campeões, desde sua movimentação, suas vozes, risadas e comportamentos. O universo
se expande de forma textual em seu site oficial retratando as biografias dos campeões no
evento. Portanto, a comunidade envolvida com o jogo foi instigada a ter um conhecimento
prévio rudimentar sobre a construção do universo narrativo, através desses diferentes
elementos que a Riot Games desenvolveu para o evento. Para Jost (2006), a construção
da promessa do emissor ao receptor desdobra-se em diferentes momentos. No caso do
evento Odisseia, diferentes mídias digitais do League of Legends desenvolveram-se
isoladamente e se complementam à medida que o grau de imersão do fã progrediu para
conhecer sobre a história.

4- Considerações finais

O universo narrativo criado para o evento perpassa por uma estratégia de atingir
um público para fomentar relações a partir de uma perspectiva diferente da usual que trata
da competitividade. Ao mesmo tempo que a Riot não destrói outros modos de jogo

704
voltados para a promessa da competição, tem criado necessidades para o seu público. A
empresa tem alinhado em seu modelo de negócios o universo transmidiático para cativar
o seu público nas diferentes plataformas oficiais como o próprio software do jogo, as
redes sociais Facebook, YouTube e Twitter.

A partir das teorias exploradas de Eco (1994), Verón (2004), Chauradeau (2007)
e Jost (2004) foi possível observar que o League of Legends constrói laços afetivos a
partir da possibilidade da abertura de diálogo com a sua comunidade, usando para tal
finalidade as múltiplas possibilidades transmidiáticas. Umberto Eco (1994) abordou sobre
o lugar de recepção, no qual estratégias são elaboradas pelo emissor e cabe ao receptor
definir o seu grau de imersão na obra. Nas estratégias transmidiáticas em seus canais
oficiais, o LoL planejou conteúdos isolados, que ao se complementarem, o seu receptor
possuiria um maior nível de conhecimento acerca do evento Odisseia.

Referindo-se aos Contratos de Comunicação, Verón (2004) explanou acerca das


modalidades do dizer em uma obra. O que diferencia as diferentes obras que possuem
uma temática semelhante são as formas de sua abordagem, não propriamente o seu -
conteúdo. A partir daí, constrói-se um vínculo entre a imagem de quem fala e a imagem
para quem é direcionada a mensagem. No evento Odisseia, a proposta foi planejada de
maneira bem delimitada no que diz respeito às mídias oficiais do jogo. Cada mídia
contribuiu para desenvolver o universo narrativo do evento com suas particularidades.

O teórico François Jost (2004) discorre sobre o conceito de promessas, no qual o único
vínculo entre o emissor e receptor se dá pela expectativa da promessa ter sido efetuada.
No objeto analisado, o principal produto do evento foi o novo modo de jogo. Mas por trás
disso, todo um universo narrativo fora desenvolvido para expandir os laços afetivos entre
ambas as partes. Portanto, a promessa se constituiu a partir das suas diferentes redes
sociais, produzindo histórias e prometendo a imersão em um novo universo ficcional.

As possibilidades transmidiáticas já são uma realidade dentro do modelo de negócios


da Riot Games, usadas como ferramentas para cativar o público em várias plataformas. A
empresa consegue construir isso de maneira positiva. Em cada plataforma, trabalha-se um
segmento distinto, de maneira que nenhuma parte da história seja sobreposta, apenas
complementada. Considerando-se a boa receptividade desse tipo de iniciativa aliada às
necessidades e desejos que grande parte da sua comunidade anseia, é possível vislumbrar

705
que as narrativas transmídia aliadas à consolidação de um universo ficcional são uma
alternativa plausível no futuro próximo da Riot Games.

Referências Bibliográficas

BILBY (Ed.). Saiba mais: Odisseia. 2018. Disponível em: <https://br.leagueoflegends.com/pt/news/game-


updates/special-event/saiba-mais-odisseia>. Acesso em: 25 set. 2018.
CARLOMAGNO, Marcio C.; ROCHA, Leonardo Caetano da. COMO CRIAR E CLASSIFICAR
CATEGORIAS PARA FAZER ANÁLISE DE CONTEÚDO: UMA QUESTÃO
METODOLÓGICA. Revista Eletrônica de Ciência Política, Paraná, v. 7, n. 1, p.173-188, out. 2016.
Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/>. Acesso em: 25 set. 2018.
CARVALHO, Lúcio Flávio T. Dos filmes de máfia para os de velho oeste: um estudo sobre os contratos
de comunicação e promessas na obra de Quentin Tarantino, Ano de Obtenção. 2015. 319 p. Dissertação
(Mestrado em comunicação social)- Puc Minas, Belo Horizonte, 2015. Disponível em:
<http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Comunicacao_CarvalhoLF_1.pdf>. Acesso em: 20 set. 2018.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006. 285 p. ISBN 8572443231
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 158p.
ISBN 8571643970.
JOST, François. Seis lições sobre a televisão. 1. ed. São Paulo: Sulina, 2004. 174 p.
Jovem Nerd (2018). https://jovemnerd.com.br/nerdcast/league-of-legends-confia-na-call/. [podcast]
League of Legends: Confia na call. Disponível em: <https://jovemnerd.com.br/nerdcast/league-of-
legends-confia-na-call/> [Acesso em 10 Set. 2018].
LEGENDS, League of. Boas-Vindas a Bordo | Trailer de animação Odisseia - League of Legends.
2018. (2m26s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HevLl54L-Dg. Acesso em: 25 set.
2018.
LEAGUE OF LEGENDS (Org.). Odisseia. 2018. Disponível em:
<https://universe.leagueoflegends.com/pt_BR/odyssey/>. Acesso em: 01 out. 2018.

MIRANDA, Flávia da Silva. Contrato e promessa: contribuições para pensar o lugar da recepção. Belo
Horizonte: Mediação, 2008. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018
REIN, Irving J.; KOTLER, Philip; SHIELDS, Ben. Marketing esportivo: a reinvenção do esporte na
busca por torcedores. Porto Alegre: Bookman, 2008. 360 p. ISBN 9788577800728.
VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Paulo: Unisinos, 2004. 286 p. ISBN: 8574312347.

706
EMOÇÃO NA PUBLICIDADE 1
Uma análise das campanhas publicitárias de prevenção a
AIDS do Governo Federal Brasileiro
EMOTION IN ADVERTISING
An analysis of the Brazilian Federal Government's AIDS
prevention publicity campaigns
Gabriel Bertoloto Sati 2
Ana Cristina Salviato-Silva 3

Resumo: Este trabalho tem como objetivo verificar os processos persuasivos


presentes na peça publicitária de prevenção ao HIV/AIDS, promovida pelo
Governo Federal Brasileiro, veiculada em TV aberta, no período correspondente
ao dia primeiro de dezembro do ano de 2013, quando comemorou-se o Dia Mundial
de Luta Contra a AIDS. Buscou-se verificar: como as emoções são presentes e
determinantes nos processos persuasivos; o alinhamento da linguagem da peça
publicitária para com o target group e os preceitos das técnicas da persuasão; bem
como as eficácias persuasivas da mesma peça. Para isso utilizou-se de uma análise
qualitativa, por análise de conteúdo. Obteve-se que as propagandas
governamentais tem se afastado dos conceitos de prevenção e se aproximado da
retórica comercial típica publicitária, o que direciona o entendimento do público
para outras interpretações, que não correspondem com as quais o governo
desejava transmitir; deturpando o seu sentido original, gerando uma
desinformação numa subpopulação que já não possui muitos conhecimentos sobre
o tema: o jovem e adolescente brasileiro. O presente trabalho elucida a
importância de uma boa comunicação publicitária no que diz respeito a elaboração
de campanhas voltadas à saúde pública.

Palavras-Chave: Persuasão. Emoção. Comunicação. Prevenção. HIV.

1. O uso das emoções no processo persuasivo


Quando se fala em pesquisa de comportamento do consumidor, o método atualmente
utilizado “passa pela interação com os sujeitos de pesquisa” (ALMEIDA et al, 2015, p. 95), o
que desqualifica a sinceridade da resposta. Há ainda o viés de que “os métodos que confiam
principalmente na habilidade dos respondentes de ‘descrever e reconstruir sentimentos e
pensamentos são muito subjetivos. Muitos efeitos no organismo humano que influenciam o
comportamento não são percebidos conscientemente’” (ALMEIDA et al, 2015, p. 97 apud
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Experiência Estética do 3º. CONEC: Congresso Nacional de
Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de 2018.
2
UNIFAE, graduado em publicidade e propaganda, gabriel.bertoloto.sati@gmail.com.
3
UNIFAE, doutora em Linguística, anasalviato@uol.com.br.

707
HUBERT & KENNING, 2008, p. 273) e também que “muitos acontecimentos são absorvidos
apenas inconscientemente, sem o conhecimento consciente do sujeito” (ALMEIDA et al,
2015, p. 95 apud BECHARA & DAMÁSIO, 2005).
Assim “evidencia-se a importância do conhecimento, não apenas das necessidades
específicas declaradas pelos indivíduos, mas de suas reais motivações, conscientes ou
inconscientes” (COLAFERRO & CRESCITELLI, 2014, p. 131). Esse entendimento das
“necessidades emocionais inconscientes dos consumidores” (ALMEIDA et al, 2015, p. 97)
possibilita que haja uma compreensão ampla e mais fidedigna das reais motivações
comportamentais humanas e também para que a publicidade possa se fazer assertiva sem ser
abusiva com o público ou rechaçada por ele.
Não há muito tempo, a publicidade se utilizava quase unicamente de argumentação
racional, havendo um verdadeiro “predomínio da informação sobre a persuasão”
(GALHARDI, 2015, p. 7 apud GOMES, 2003). Todavia, já em 1982, Hirschman e Holbrook
afirmavam que os consumidores procuram a estimulação sensorial na hora das compras
(COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017). Colaferro e Crescitelli evidenciam:
Mudanças nas dinâmicas sociais, novas tecnologias, novos estilos de vida e a
presença de consumidores mais conscientes também provocaram a hegemonia da
comunicação de massa, em particular da propaganda como fonte de informação.
Com isso, desencadeou-se nessa forma de comunicação uma crise de credibilidade
[...] e os consumidores possuem uma postura mais cética, confirmando a diminuição
do poder de persuasão desta ferramenta de comunicação (2014, p. 131).
Diante desta nova realidade, coube à publicidade não só o papel de informar sobre os
produtos, mas agora era preciso persuadir, levar ao consumo; criando assim todo um aparato
para transmitir sentimentos como forma de persuadir através das propagandas (GALHARDI,
2015; COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017).
Persuadir significa levar alguém a aceitar alguma coisa diversa daquela que
inicialmente desejava. O termo originou-se do latim persuadere, que significa
aconselhar de modo completo. Portanto, persuasão pode ser considerada como a
ação de informar e expor argumentos, válidos ou não, que consequentemente
convençam o indivíduo à adoção ou não de determinados posicionamentos
(COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017, p. 270).
Podemos considerar o consumidor como indivíduo ou ainda em grupo, mas de qualquer
forma não se pode desconsiderar que em todos os casos os consumidores são pessoas, seres
humanos cercados de suas complexidades e particularidades (ZUPPANI & LIMA, 2014).

708
As pessoas adaptam suas compras a ocasiões específicas, e o modo como elas se
sentem em um determinado momento afeta o que as mesmas têm vontade de
comprar ou fazer. Porém, mais do que afetar o ato da compra em si, esta variável
ainda pode intervir durante a experiência de consumo, influenciando as avaliações
que os consumidores farão do produto, independente da qualidade real do mesmo
(ZUPPANI & LIMA, 2014, p. 37 apud SOLOMON, 2000).
Para Correia et al (2017) o ato da compra por impulso também pode ser explicado por
fatores emocionais. As pessoas estão habituadas a consumir sem que haja uma real
necessidade, buscando na verdade a aquisição de novos bens por deixar-se levar pelos
desejos de acompanhar as tendências, a fim de sentirem-se mais integrados à sociedade,
como se estivessem mais felizes e/ou satisfeitas. As consequências do comprar envolvem o
ego do consumidor e o consumo serve como diferenciação entre grupos e indivíduos. Os
autores também afirmam que:
O consumo compulsivo, segundo Rindfleisch, Burroughs e Denton (1997), é
motivado por alguns fatores, tais como impulsos, sentimentos, tensão, anseios, e,
pode ser definido como uma resposta incontrolável ou desejo de obter, usar ou
experimentar um sentimento [...] os compradores compulsivos estão interessados
em alcançar interações interpessoais positivas e aumento da autoestima em suas
compras em detrimento ao valor econômico ou utilitário (2017, p. 221).
Correia et al (2017, p. 222) ainda dizem que:
A maioria das pessoas dispensa o esforço necessário para tomar uma decisão
satisfatória, não se importando se tal decisão seria benéfica. Por esta razão, muitas
vezes a decisão é baseada em sentimentos tornando-se mais fácil para o consumidor
escolher, sem muito “esforço”, um produto que lhe agrada, ao invés de raciocinar a
cada decisão de compra (apud GARBARINO & EDELL, 1997).
Pode-se dizer, então que a mente não mudará, a não ser que usemos uma emoção para
isso (Ibidem).

2. Mudança das atitudes através da persuasão


Para Costa, Patriota e Angelo, a estrutura cognitiva do ser humano é formada a partir
de observações e conclusões, feitas pelo próprio indivíduo, que geram um conjunto de
crenças nas quais a pessoa pautara seus julgamentos; “cognição é o processo mental ou a
faculdade de conhecer, incluindo aspectos como a sensibilização, percepção, raciocínio e
julgamento” (COLAFERRO & CRISCITELLI, 2014, p. 137). Quando o sujeito faz
associações entre um objeto específico e uma avaliação pessoal temos a atitude (COSTA,

709
PATRIOTA & ANGELO, 2017, p. 270 apud ROSKOS-EWOLDSEN, YU & RHODES,
2004).
Os autores afirmam que a atitude é então uma predisposição, que fica armazenada na
memória e levará o sujeito a se comportar de maneira quase que predeterminada a respeito de
algo. É diferente de um julgamento, pois não é efêmero como este, mas estável, pois não se
pauta em informações momentâneas, mas em toda uma cadeia de avaliações pessoais. Pode
também ser entendida como “uma postura expressiva que encerra o modo de agir e releva os
sentimentos e os conceitos de uma pessoa” (COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017, p. 270
apud SCHULTZ, 2002), estando “relacionada com os aspectos do mundo do indivíduo
(COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017, p.270 apud FISHBEIN & AJZEN, 1981).
Ainda concluem que “as intenções comportamentais de uma pessoa dependeriam de
suas atitudes” (COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017, p. 270) e também que, por
consequência disso a intenção do consumidor de “desempenhar algum comportamento deve
aumentar conforme as atitudes se tornem mais favoráveis” (COSTA, PATRIOTA &
ANGELO, 2017, p. 270 apud HUERTAS & URDAN, 2006).
Dias, Maffezzolli e Pinheiro dizem que “duas são as maneiras fundamentais pelas
quais as atitudes são formadas: por meio de crenças e de sentimentos sobre o objeto da
atitude em si” (2016, p. 543). Complementarmente Costa, Patriota e Angelo afirmam: “a
avaliação geral de uma pessoa sobre um objeto de atitude é determinada pelos componentes
cognitivo e afetivo da pessoa sobre o objeto” (2017, p. 270). A partir destes dois trechos fica
evidente que na conjuntura da formação das atitudes o sentimental/afetivo é um componente
determinante; logo, o que se sente em relação a algo pode reger a maneira como nos
comportamos a seu respeito. Essa conclusão também é feita por estes autores no trecho: “os
apelos (utilitários e emocionais) inerentes nas propagandas têm um papel determinante na
consolidação de uma marca no mercado” (COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017, p. 269).
Todavia, não é porque uma emoção foi uma vez sentida, que essa mesma regerá para
sempre a relação de um indivíduo com o objeto de atitude. É através da persuasão que pode-
se gerenciar um quadro dominado por uma emoção específica, podendo-se assim reforçar
sentimentos apreciativos ou ainda fraquejar sentimentos pejorativos (COSTA, PATRIOTA &
ANGELO, 2017).“A persuasão pode salientar crenças já existentes, como também modifica-
las e/ou incluir novas crenças (...) assim, a persuasão pode ser entendida como uma

710
consequência das influências causadas na estrutura das crenças e suas associações com o
objeto em consideração” (Ibidem, p. 270).
Tem a argumentação essa capacidade graças a sua ação no aspecto sentimental, como
elucida Galhardi:
Enquanto o ato de convencer estabelece o sentido racional da argumentação
utilizando-se de dados, provas ou demonstrações, o ato de persuadir representa o
viés argumentativo construído no terreno dos sentimentos e das atitudes capazes de
sensibilizar o interlocutor à tomada de decisão (2015, p. 9).
Mudar a atitude depende de quais das predisposições serão mudadas com as
informações contidas na comunicação publicitária (COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017
apud BOHNER & DICKEL, 2011). Acrescentar conteúdo emocional à propaganda faz com
que o público avalie melhor, mais positivamente, a marca. E quanto mais memórias boas,
mais experiências positivas existirem entre consumidor e marca, mais fortes serão as
associações feitas pelo consumidor a respeito da marca e mais fortes as ligações nas quais se
pautam as atitudes (COSTA, PATRIOTA & ANGELO, 2017). “As recordações e
experiências das pessoas geralmente são mais ativadas quando envolvem aspectos
emocionais” (Ibidem, p. 272).

3. Emoções
As emoções são o modo como lidamos com os fatos que nos acometem; é através
delas que reagimos aos mais diversos tipos de estímulos que recebemos initerruptamente
(LAVAREDA & CASTRO, 2016). “A geração das emoções são as bases responsáveis por
ajudar um organismo a enfrentar os desafios e oportunidades; ou ainda, envolve mudanças na
experiência subjetiva, comportamental e fisiológica” (ZUPPANI & LIMA, 2014, p. 43 apud
OCHSNER & GROSS, 2004).
As emoções são inatas, estando presente em diversas formas de vida, mas tendo no ser
humano seu maior expoente (LAVAREDA & CASTRO, 2016; EKMAN, 2011); o próprio
Darwin chegou a estuda-las concomitantemente à Teoria da Evolução, e “pensou as
expressões emocionais como sendo partes vestigiais dos corpos humanos” (ZUPPANI &
LIMA, 2014, p. 43). Elas constituem o método natural como formulamos respostas internas a
acontecimentos externos (LAVAREDA & CASTRO, 2016) e ainda “se desenvolvem em

711
resposta a avaliações feitas sobre algo relevante ao bem-estar da pessoa” (ZUPPANI &
LIMA, 2014, p. 40).
As emoções se diferem dos sentimentos. Emoções são as respostas internas geradas a
partir de estímulos externos; é um processo internalizado, pessoal. Já os sentimentos são o
modo como se expressa as emoções; é quando o processo interno se externaliza, é o que se
demonstra aos outros. As emoções são o que se sente, os sentimentos o que se expressam
(EKMAN, 2011).
Zuppani e Lima (2014) também acrescentam que as emoções podem estimular, inibir
ou conter uma ação; e que os “consumidores também podem julgar se a experiência direta
com a marca gera benefícios emocionais. As emoções podem promover com sucesso as
metas buscadas” (ZUPPANI & LIMA, 2014, p. 40 apud TAMIR, CHIU & GROSS, 2007).
Assim além de se entender das emoções, é preciso também compreender sobre os
processos que as regulam, pois os estados emocionais gerados por elas têm papel crucial nas
decisões de compra; pois as emoções e as avaliações (atitudes), são variáveis plausíveis de
serem não controladas, mas direcionadas (ZUPANNI & LIMA, 2014).

4. O emocionar publicitário através do entretenimento


O filme publicitário é o filme do consumo; deve representar a sociedade com
veracidade, de forma que a audiência identifique o conteúdo fílmico com seu cotidiano
(RIBARIC, 2016). Deve-se também destacar “representações e identidades, expondo desejos
e necessidades de auto inserção na sociedade. Confirmando condutas, valores e regras
sociais” (RIBARIC, 2016, p. 4).
O filme publicitário, desde suas origens, incorpora as grandes metas humanas em
seu universo simbólico. O universo dos sonhos de consumo. Um mundo imaginário
fundado na realidade, na vida material da experiência humana (RIBARIC, 2016, p.
2).
Para a publicidade é importante que o público a veja pela sua relevância sociocultural,
e que haja uma percepção de suas alegorias e simbologias; sem as quais não pode construir
uma verdadeira interação, baseada em valores e elementos que constituem a sociedade na
qual se insere. É vital para a publicidade adaptar-se aos diversos cenários em que é veiculada,
para que o público seja envolto e que se produza um impacto que seja decisivo na conquista e
na persuasão dos receptores. (RIBARIC, 2016; GALHARDI, 2015).

712
As tecnologias do imaginário usam a sedução com intensidade, fazendo com que a
sociedade mergulhe em um mundo lúdico, puramente emocional. A comunicação
publicitária surpreende para encantar, encanta para emocionar (GALHARDI, 2015,
p. 16).
Bezerra (2017, p. 65) “percebe a mídia como uma ‘ambiência’, uma ‘virtualidade’ em
que estamos imersos” (apud SODRÉ 2006, p. 102), onde também se estabelece uma
“indistinção entre tela e realidade” (Ibidem). Essa transformação de conteúdo publicitário em
entretenimento faz com que o público passe a buscar o consumo de experiências (BEZERRA,
2017). Galhardi (2015, p. 7) ilustra que “a sedução desliga-se da razão para afundar cada
indivíduo nas ondas da interatividade lúdico/emocional” (apud SILVA, 2003).
Buscando novas formas de se relacionar com o consumidor, a publicidade fílmica tem
interagido cada vez mais com produtos midiáticos relacionados ao entretenimento, como
forma de acompanhar a evolução e desenvolvimento dos meios de comunicação. Essa
interação publicidade fílmica/filmes de entretenimento é possível pelo fato de ambos
possuírem uma forma narrativa análoga, que trabalha o tempo afim de prender a atenção do
espectador, e que reflete o cotidiano (RIBARIC, 2013). É com a realidade vivida pelo homem
que o entretenimento mantém uma relação indissolúvel (RIBARIC, 2013).

5. Análise do comercial de 2013


O vídeo começa apresentando ao expectador um raciocínio, proposto pela frase “tem
coisas que é melhor saber o quanto antes”. Segue-se então uma sequência de três situações,
corriqueiras e aparentemente sem riscos ou anormalidades, que propõe uma extensão da
proposta inicial às cenas subsequentes, sendo elas e seus desdobramentos da proposição
inicial: ter um filho, e saber se será menino ou menina; fazer um corte diferenciado no
cabelo, e saber que entrará na moda ou se fará moda; abrir um novo negócio, e se valerá a
pena ou não.
Logo em seguida, na mudança de quadro, apresenta-se a frase “então, com a AIDS,
também é assim”. Juntamente à frase, que é apresentada em áudio e legenda, é mostrada no
vídeo um senhor, que já aparenta idade mais avançada, entrando numa sala de consultório.
Segue-se no vídeo um conjunto de imagens, em que apresenta-se, cronologicamente: uma
figura que remete a uma doutora, que lendo algum papel (insinua-se um exame), sorri

713
enquanto fala com um suposto paciente (que a cena não mostra); dois homens jovens que
caminham num corredor de hospital na companhia de um médico, o médico diz algo a eles,
que interagem entre si, sorrindo, como num tom de descontração; e por fim jovens
interagindo em torno de uma mesa, como que num clima de confraternização.
A locução do vídeo é feita por uma voz masculina, de tom ameno. A narrativa mais se
assemelha a um locutor contando um fato sem muita relevância a alguém conhecido, do que
um pronunciamento partindo do governo federal para conscientizar sobre uma grave doença
epidemiológica que representa um sério risco à saúde pública.
No decorrer do filme são apresentados trechos com legendas, em que as mensagens
passadas são complementares aos dizeres do áudio, mas independentes deste; sendo a locução
expressa por uma legenda na parte inferior das cenas e estas em questão destacadas. Essas
legendas apresentam afirmações, sendo elas: “o teste é rápido, gratuito, seguro e sigiloso”; “o
governo federal garante o teste para todos” e “use sempre camisinha”. Estas legendas são
apresentadas em caixa alta, na respectiva ordem e em cenas diferentes ao longo do comercial,
concentrando-se mais no final deste e aparecendo de maneira mais destacada nas cenas em
que são inseridas.
No tocante ao áudio, assim como a locução, a trilha sonora de background corrobora
para a construção de uma narrativa amena, não impactando fortemente o público pela
sonoridade da peça.
Na perspectiva imagética, grande parte das cenas representam pessoas que, apesar de
por vezes se encontrarem num ambiente hospitalar, apresentam clima de descontração,
encenam falas (que não são perceptíveis no áudio do vídeo) e reproduzem gestos que
expressam tranquilidade e até por vezes felicidade. Com exceção da cena em que se propõe
abrir um novo negócio, em nenhum outro momento os atores são apresentados com
semblante que expresse seriedade, ou ainda tensão. Todo o clima do comercial é feito num
tom de ausência de preocupação, de modo que se fossem tirados áudios e legendas, não se
preveria que se trata de um tema grave como a contaminação pelo HIV.
No decorrer do comercial nota-se a presença de técnicas persuasivas, sendo elas:

Eufemismo
O conceito central e que permeia a construção da narrativa é: “tem coisas que é muito
melhor saber o quanto antes”. Segue-se uma apresentação de situações (ter um filho, cortar o

714
cabelo e abrir um novo negócio). Como já elucidado antes, as situações apresentadas são
complementos ao conceito central. Quando se apresenta a frase “então, com a AIDS, também
é assim”, faz-se uma comparação das situações descritas anteriormente com a nova situação
apresentada. É justamente na comparação que caracteriza-se o eufemismo, a dupla
linguagem; pois essa técnica “distorce consideravelmente as palavras para dar a elas uma
conotação mais positiva” (ANDREWS, VAN LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 162).
A locução compara, então, através de uma narrativa distorcida, uma possível descoberta de
uma infecção do vírus HIV ao mesmo risco de fazer um novo corte de cabelo. Nessa técnica
descreve-se as palavras de modo positivo, reduzindo assim possíveis ameaças emocionais e
fazendo com que a mensagem seja considerada mais agradável e sensível, manipulando a
percepção das pessoas ao criar um falso ambiente de segurança (ANDREWS, VAN
LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016).
Ancoragem
Quando se apresentam as situações ter um filho, cortar o cabelo e abrir um novo
negócio, temos uma ancoragem, onde as primeiras situações são positivas; quando se propõe
uma outra (então, com a AIDS, também é assim. Quanto mais cedo você souber, melhor),
mesmo sendo totalmente adversa aos fatos iniciais, o interlocutor é levado a “utilizar as
informações existentes como base para as novas avaliações” (ANDREWS, VAN LEEUWEN
& VAN BAAREN, 2016, p. 94). É fato que, descobrir a infecção pelo vírus da AIDS logo no
início da doença, aumenta a chance de um tratamento que seja eficaz em conter a
manifestação do vírus no indivíduo portador e inibir uma maior proliferação. Porém a
narrativa leva o interlocutor a comparar eventos que tem uma carga emocional positiva, à
possível descoberta de uma doença, como se fosse igualmente prazeroso ou necessariamente
bom.
Prova Social e Implementação de Intenção
Os humanos são essencialmente seres social. A convivência social foi um fator
determinante para a sobrevivência da espécie numa época remota, em que fazer parte de um
grupo significava literalmente ter chances de permanecer vivo ou não. Dentro do processo
evolutivo este instinto permaneceu, principalmente através das emoções, incrustado no ser
humano, de modo que ainda hoje o homem busca constantemente este sentimento de pertença
a um grupo (LAVAREDA & CASTRO, 2016). Atualmente, independentemente do tipo de
comportamento, “parece que um dos atalhos mais fáceis e seguros que as pessoas usam

715
quando tomam suas decisões continua a ser observar o que os outros fazem” (ANDREWS,
VAN LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 53); porém “isso não acontecerá, por
exemplo, se você não se interessa ou não se identifica com o interlocutor” (EKMAN, 2011).
A maioria dos atores presentes no comercial são jovens, e não por acaso; esse é o público que
o vídeo mais quer impactar e consequentemente mais representa. Nisso temos a técnica da
prova social: o principal público-alvo são jovens; usa-se atores também jovens para que aja
uma identificação do target com os atores; quando no comercial os atores mostram uma
inclinação positiva a respeito do tema tratado cria-se a impressão de apoio daquele grupo
específico ao assunto; e então há o impulso de copiar as decisões e o comportamento do
grupo em questão com o qual o interlocutor se identificou e tem tendência natural ao
sentimento de pertença (ANDREWS, VAN LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016; EKMAN,
2011). Temos que “os jovens são particularmente sensíveis aos efeitos da prova social”
(ANDREWS, VAN LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 53); mas há de se considerar
também que:
As campanhas governamentais muitas vezes chamam a atenção para
comportamentos problemáticos ao afirmar ‘90% das pessoas fazem X. Não faça
isso!’, em que X é um comportamento perigoso, pouco saudável ou socialmente
inaceitável. [...] Pesquisas mostram que esta estratégia faz as pessoas adotarem
esses comportamentos com mais frequência porque elas os consideram a regra”
(Ibidem).
Neste caso podemos entender o X como o esforço comunicacional do governo de que
descobrir ser soropositivo quanto antes melhor, pois assim há mais chances de se tratar. Na
contramão a pessoa pode ser levada a não realizar o exame, não descobrir a doença e,
consequentemente, não se tratar e nem deixar de proliferar o vírus, contaminando outras
pessoas. Desse modo a implementação de intenção pode ser falha, pois nesta técnica, ao final
do esforço comunicacional, o indivíduo deveria ser levado a adotar determinador
comportamento proposto pela narrativa, o que pode não acontecer, devido ao efeito contrário
surtido pela técnica anterior.
Ekman complementa: “Descrevi nove caminhos para acessar ou ativar as emoções
(...) O oitavo é a violação das regras sociais” (2011, p. 53). Posteriormente o autor completa
com a explicação de que o ser humano busca maximizar as experiências emocionais que
considera prazerosas e positivamente carregadas.
Atratividade

716
Dentro das várias cenas apresentadas temos atores em primeiro plano e, por vezes,
alguns figurantes compondo cena. Dentre os atores que são apresentados em primeiro plano,
com exceção de três, todos estão sorrindo, apresentando bons semblantes, expressando o que
o espectador pode interpretar como felicidade ou até mesmo descontração. Partindo destas
preposições, essa discussão será construída sustenta-se no princípio de que “desenvolvemos
um sentimento mais positivo em relação a propagandas que apresentam rostos confiáveis [...]
e deixamos que esse julgamento influencie as decisões que tomamos” (ANDREWS, VAN
LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 113), como se verá explicado a seguir.
Concordantemente com a asserção acima, Paul Ekman (2011) explica que o indivíduo
é levado, através das emoções, a reconhecer expressões que o autor chama de positivas
(alegria e surpresa), como que inerentemente boas, associadas ao bem. Dentro do processo de
desenvolvimento, desde o momento em que a criança começa a reconhecer os rostos das
pessoas, já com tão pouca idade, começa-se a associar rostos com a aparência de felicidade
(expressão de alegria) ao bem; passa-se assim, então, a preferir pessoas com “bons”
semblantes, mesmo que essa preferência não seja uma garantia plena do que o indivíduo
propõe-se a acreditar. (EKMAN, 2011; LAVAREDA & CASTRO, 2016; ANDREWS, VAN
LEEUWEN E VAN BAAREN, 2016).
Nossa reação ao ver essas expressões não é, em geral, uma questão intelectual,
imparcial, mesmo quando se manifesta de uma forma tão abstrata quanto uma
fotografia na página de um livro. Somos concebidos para reagir à emoção com
emoção. Em geral, sentimos a mensagem (EKMAN, 2011, p. 106, grifo nosso)
Ekman (2011) enriquece ainda mais a discussão a respeito do tema quando pontifica
que o homem possui o que chama-se por neurônios-espelho. Quando uma pessoa vê outra
expressando determinado sentimento, reconhece esse sentimento e é levado automaticamente
a senti-lo também, expressando-o consequentemente, como se o sentimento de uma pessoa
fosse refletido no rosto da outra. O autor também afirma ser o rosto a maior fonte de
expressividade humana. É através dele que começa-se o processo de externalização das
emoções, a expressão dos sentimentos. Com muito esforço até consegue-se, em certa medida,
disfarçar algum sinal de expressão sentimental que possa repercutir na linguagem corporal,
mas o mesmo não se aplica à face. Na face expressam-se as micro expressões, que são os
primeiros impulsos sentimentais que condicionam a feição, sendo indisfarçáveis e
ligeiramente perceptíveis. Lavareda e Castro têm afirmações que vão na mesma direção a

717
respeito da importância da face humana no processo, e ainda completam: “os neurônios-
espelho jogam um importante papel também na percepção de intenções, o que vai além da
simples compreensão do outro” (2016, p. 142).
Andrews, Van Leeuwen e Van Baaren, asseguram que “preferimos conscientemente
as pessoas atraentes e associamos sua aparência a um ‘bem’ inerente que se reflete de
maneira direta no produto [...] rostos atraentes produzem um sentimento positivo no
observador logo de início” (2016, p. 62). Complementarmente a essa declaração, há uma
asserção de Ekman, na qual ele diz que “apesar de variarem na expressividade, as emoções
não são invisíveis ou silenciosas. Os outros que nos observam e nos escutam podem dizer
como estamos nos sentindo” (2011, p. 72).
Há também o fator de que o ser humano tente a olhar, a buscar, a perceber mais outro
rosto humano (EKMAN, 2011). “O rosto é muitas vezes o primeiro objeto que se vê nas
interações humanas e é quase sempre considerado a contribuição mais importante para a
atratividade” (ANDREWS, VAN LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 63). A partir de
testes de medição chegou-se ao conhecimento de que ao assistir um vídeo no qual consta
outra pessoa, a parte da tela mais olhada pelo espectador é a parte do rosto de quem aparece
no vídeo (EKMAN, 2011).
Tem-se, então, de todo esse conteúdo que: o interlocutor está assistindo um comercial
que, apesar de tratar de um assunto potencialmente pesado (descoberta de infecção de um
vírus para o qual não existe cura), no vídeo consta uma carga emocional positiva; pois a todo
momento há atores que representam semblantes sorridentes, descontraídos e que por vezes
soltam algumas risadas. A partir dos princípios de atratividade e confiabilidade, mais
especificamente através da percepção facial, “processamos automaticamente todos os tipos de
características do rosto e fazemos inferências (in)conscientes com bases nesses traços”
(ANDREWS, VAN LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 110); assim conclui-se que “a
atratividade funciona, e esse sinal é dominante, difícil de ser ignorado e recompensador”
(ANDREWS, VAN LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 62).
Garantias e Autoridade
Para encerrar a discussão a respeito do comercial de 2013 falar-se-á a respeito dum
elemento que começa a aparecer mais no final do vídeo, mas que tem efeito tão importante
quanto as técnicas antes apresentadas: as garantias apresentadas através das legendas que
aparecem entremeando as imagens.

718
As legendas apresentam dizeres entre os quais “o teste é rápido, gratuito, seguro e
sigiloso”, “o governo federal garante o teste para todos” e “use sempre camisinha”. Esses
dizeres, segundo explica a técnica persuasiva (ANDREWS, VAN LEEUWEN & VAN
BAAREN, 2016), garantem seguranças ao interlocutor. No caso do referido comercial
entende-se a segurança como uma garantia de que se indivíduo contrair AIDS, é como se
“não houvesse problema maior”, afinal o governo garante seu teste, seu sigilo e seu
tratamento.
O erro não está em garantir a segurança de um diagnóstico e tratamento a alguém
infectado pelo HIV; o erro está em ter um uma comunicação voltada unicamente para o
tratamento ao invés da profilaxia. Ao assumir essa atitude comunicacional o governo assume
a postura de tratar dos efeitos, sem estancar as causas.
Os dados da UNAids também revelam que no Brasil vivem cerca de 830 mil pessoas
com HIV, ou seja, aproximadamente 0,4% da população brasileira. Perante um percentual
baixo (frisando a comparação com o todo, pois em números absolutos são altas as taxas), o
mais sensato seria uma comunicação voltada a prevenção, visando evitar novos contágios.
Outro dado é que, na medida que a média mundial de novas infecções retrai 11%, no mesmo
período, no Brasil, as novas infecções variaram entre 46 e 48 mil novos casos, fixando a
média brasileira num patamar crescente de 3%, o que não é bom.
Complementarmente às garantias temos a autoridade, expressa pelas figuras dos
atores que representam médicos e o ambiente hospitalar. Essa construção imagética corrobora
para a construção de um discurso que tem forte valor persuasivo junto ao público, pois
através da “nossa confiança – inerente – em figuras que representam autoridade, pode-se
manipular os símbolos de autoridade para que despertem confiança” (ANDREWS, VAN
LEEUWEN & VAN BAAREN, 2016, p. 147).
Ao comunicar apenas o tratamento, e não a prevenção, o discurso do governo é de que
toda a população não está suscetível a contrair a doença, mas é como se já estivesse passível
de se descobrir doente, como se já estivessem todos infectados. E essa mensagem é reforçada
(inconscientemente) através do processo de persuasão da autoridade.

719
Considerações Finais
Pode-se constatar, após as análises realizadas, que apesar de alguns pontos assertivos,
na generalidade dos casos, a comunicação governamental tende a estimular o espectador a
adotar justamente as medidas que deveria persuadi-lo a evitar: uma conduta sexual de risco.
Assim, consegue-se gerenciar este quadro situacional a partir de um gerenciamento
das emoções. Quando se assiste, se tem contato com algum conteúdo, uma mensagem, uma
comunicação chega até o espectador/interlocutor. Essa comunicação será enviada ao cérebro
onde será analisada e processada. Têm-se duas vias de processamento: a principal e a
secundária. A principal vai processar a mensagem através da racionalidade, mas vagamente é
utilizada. A grande maioria dos estímulos recebidos será processada pela via secundária, que
é operada pelas emoções (o papel das emoções dentro do processamento das mensagens já foi
elucidado no segundo capítulo). O cérebro humano recebe tantos instintos que seria incapaz
de processar tudo racionalmente, delegando a tarefa às emoções, somente quando o
processamento emocional diagnostica alguma anormalidade no estímulo é que ele é mandado
para a via principal (LAVAREDA & CASTRO, 2016).
Dessa maneira, após interpretar e analisar, o cérebro projeta uma resposta a dar a estes
estímulos. Gera-se então uma emoção, essa emoção desencadeará um processo interno que
resultará em sua expressão; ao externalizar-se, a emoção se torna um sentimento. Responde-
se aos estímulos externos toda vez que se expressa um sentimento (LAVAREDA &
CASTRO, 2016; EKMAN, 2011).
Propõe-se então o ciclo de maneira contrária: pensar a estruturação da comunicação
de forma que ela tenha uma carga emocional X; essa comunicação ao alcançar o interlocutor,
produzirá nele um sentimento relativo à carga emocional carregada pela comunicação; por
fim, seguindo o caminho reverso, esse sentimento desencadeará uma emoção também
proporcional ao interlocutor.
Pode ocorrer a dúvida: seriam capazes as emoções de moldar todo o aspecto
comportamental humano a esse ponto?
Elas podem anular o que a maioria dos psicólogos considera os motivos essenciais
que impulsionam nossas vidas: fome, sexo e o instinto de sobrevivência. As pessoas
não comerão se acharem que o único alimento disponível é repugnante. Elas podem
até morrer, ainda que outras pessoas possam considerar o mesmo alimento
saboroso. A emoção triunfa sobre o impulso da fome. O impulso sexual é

720
notoriamente vulnerável à interferência das emoções. Uma pessoa pode nunca
tentar o contato sexual por medo ou aversão, ou pode nunca ser capaz de consumar
um ato sexual. A emoção triunfa sobre o impulso sexual. E o desespero pode
subjugar até a vontade de viver, induzindo ao suicídio. As emoções triunfam sobre a
vontade de viver (EKMAN, 2011, p. 17).
Seria insensatez pensar que uma correta gerência emocional dentro da persuasão não
poderia ajudar a atenuar o problema das novas infecções de HIV.
Fazendo memória do que cada emoção pode desencadear, sugere-se uma
experimentação entre:
• Medo: não de modo que chegue ao horror, mas que faça o interlocutor entrar num
estado de alerta mediante o perigo da infecção.
• Aversão: de modo que seja capaz de provocar no interlocutor uma repulsa pela
suposta infecção pelo vírus.
• Surpresa: de modo que cause um espanto negativo pelo estado de saúde que uma
pessoa contaminada pode chegar.

Importante frisar que estudos atuais enfatizam que cada emoção atinge de modo diferente
públicos-alvo específicos. Por exemplo: enquanto o medo funciona mais com o público
adulto, a surpresa e a informação científica é mais eficaz no público jovem. Assim, toda
campanha de prevenção deve ser precedida de análise de evidências, pesquisa científica.
Pontua-se a importância de, no meio publicitário, o profissional ser fazer consciente de que é
corresponsável em todos os momentos; pois da mesma forma que a medida profilática que
parte do profissional de saúde faz a diferença, a comunicação que parte do publicitário
também. Quando se trata de saúde pública, se a campanha é mal feita, os resultados não vão
vertidos em vendas, mas em de vidas.

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721
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722
Gosto do Conteúdo ou Gosto da Forma? 1
The Taste of Content or the Taste of Form?
Igor Alexandre Capelatto (UNICAMP) 2

Resumo: O problema do gosto é a enigmática relação kantiana de que ele envolve


conhecimento e prazer, simultaneamente. Há algo estranho que nos conduz a prezar
por este ou aquele signo. Algumas vezes é estética, outras vezes, essa atração
envolve cognição. Neste panorama surge a ideia de belo e de estética. E numa
analogia entre o que é agradável e o que é repulsivo, surgem os conceitos de gosto.
Este estudo pretende investigar a noção de gosto a partir dos conceitos freudiano,
de que o prazer é realização do desejo e, flusseriano, de que o ser humano vê-se
obrigado a criar símbolos e a ordená-los em códigos para transpor o abismo que
há entre ele e o mundo (e assim compreender noções tais quais o conceito de arte).
Sendo gestos, movimentos pelos quais se manifesta uma maneira de dominar o
mundo, compatibiliza-se partir dos gestos de conhecimento e de prazer para
analisar a relação entre cultura e gosto, e como um produto ganha status de obra
de arte, com fundamento na concepção cultural do gosto.

Palavras-Chave: 1. Gosto 2. Arte 3. Cultura 4. Flusser 5. Freud

Abstract: The problem of taste is an enigmatic Kantian relation of which it engages


knowledge and pleasure simultaneously. There is something that has led us to
cherish this or that sign. Sometimes it is aesthetic, sometimes it involves cognition.
In this panorama comes an idea of beauty and aesthetics. And in an analogy
between what is pleasant and what is repulsive, the concepts of taste arise. This
study intends to investigate the idea of thinking of Freudian, that pleasure is the
fulfillment of desire and Flusser’ thinks, about the idea that human beings need to
create symbols and order them in codes to bridge the abyss between him and the
world (and assimilating notions such as the concept of art). Being gestures, to
satisfy the needs of a way to dominate the world, to be compatible of the gestures of
pleasure with the evaluation and the cultural culture of the taste.

Keywords: 1. Taste 2. Art 3. Culture 4. Flusser 5. Freud

1
Resumo submetido ao Grupo de Trabalho GT8 - Comunicação e Experiência Estética do 3º. CONEC:
Congresso Nacional de Estudos Comunicacionais da PUC Minas em Poços de Caldas, 30 e 31 de outubro de
2018.
2
Líder Coordenador e Pesquisador do Grupo Linguagem e Cinema: o Gesto em Foco, pelo IEL, UNICAMP;
Doutor pelo IA, Departamento de Multimeios, Unicamp. E-mail: capuccinoprod@gmail.com.

723
1. Realização do Desejo
Se considerarmos o desejo não como uma satisfação de uma necessidade, mas como
simbólico de uma falta (LACAN, 1995, p.9), ou seja, uma representação de uma relação de
transferência, em que o sujeito projeta no objeto uma carência, de modo que esse objeto passa
a simbolizar não mais a sua função a qual foi originalmente designado, entretanto uma função
que o sujeito a determina (representação afetiva), é possível conceber como os objetos se
tornam pessoais, no sentido subjetivo, realizando analogias, conexões com nossas emoções.
Segundo Flusser (2007, p.130), o ser humano para se interagir e integrar-se ao mundo,
precisa criar símbolos e ordena-los, ou seja, dar sentido ao mundo, mas não é apenas um
sentido lógico, funcional, mas um sentido simbólico. O ursinho de pelúcia que representa a
mãe para uma criança; na ausência da mãe, ele figura a mãe, mas não vai superar a falta da
mãe; ele não substitui a mãe, ainda que a simbolize. Há uma necessidade de dar sentido aos
objetos, as coisas, aos acontecimentos, para suprir a angústia, de modo, que o sujeito define
como sentido aquilo que lhe melhor conforta (seja através da religião: ‘Deus quis assim’, seja
pela ciência: ‘a natureza é assim’, etc.); no entanto, esse sentido não surge apenas desta
necessidade de suprir uma falta, resolver uma angústia, como uma resposta quase que
instintiva, de sobrevivência, conquanto ele começa a nascer na formação cultural do sujeito.
Aprendemos a dar sentido as coisas para determinar um mundo (uma ‘realidade’) que
convenha a nossa condição social (por exemplo, ‘Deus quis assim’, como uma resposta a
uma condição social cristã a qual o sujeito pertence).
Se o desejo é construção por meio de códigos culturais apreendidos (e como o mundo
tende a abrir diferentes perspectivas ao sujeito, é preciso formular uma associação de signos
para dar um sentido lógico ao pensamento), é preciso compreender que desejo e
conhecimento não podem se desassociar.
Nós, seres humanos, aprendemos a desejar (LACAN, 1995, p.9); nascemos contínuos,
ligados a um outro ser, e assim sendo, temos esse sentimento de falta que surge quando o
cordão umbilical é rompido. Essa descontinuidade (BATAILLE, 1987, p. 78) nos faz
perceber nosso limite, nosso contorno, nosso ser-em-si, todavia, essa descontinuidade
também nos faz perceber a carência. Na carência, criamos uma aversão a tudo que
consideramos incompleto: e assim, definimos o que é ‘correto’ e o que é ‘deficiente’
(completude e incompletude).

724
Em nossa origem, há passagens do contínuo ao descontínuo ou do descontínuo ao
contínuo. Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa
aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida (…) Ao
mesmo tempo que temos o desejo angustiado da duração desse perecimento, temos
a obsessão de uma continuidade primeira que nos une geralmente ao ser.
(BATAILLE, 1987, p15)

O prazer surge nesse panorama, como uma satisfação à uma vontade, a vontade de
completar o que está incompleto, dar continuidade ao descontínuo; essa emoção que traz um
bem-estar (alegria, júbilo, regozijo), quando conseguimos ordenar os códigos, dar sentido ao
mundo e superar os abismos que nos distanciam das incompletudes entre ser e objeto, entre
sujeito e mundo (FLUSSER, 2007, p.130), e que coloca as coisas em um estágio de
identificação, representação, na qual elas passam a ‘serem nossas’ - e então, compreende-se a
necessidade humana de dar nome as coisas (LACAN, 1985, p.215), o que as fazem
representar o sujeito, dar sentido ao mundo, situando no tempo e espaço: construindo o
sentido da história (de uma sociedade e pessoal).
A memória é apontada por Pollak (1992, p. 204) se destaca como um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa/grupo em sua reconstrução de si. [...] A lembrança é um modo de constituir
o sujeito.” (RABELLO, 2007, p.184)

Mediante o prazer, começamos a fazer uma triagem do mundo, das coisas, dos signos.
Como é da natureza do ser humano, e do universo ao qual pertencemos, a necessidade de
oposições para definir (comparar) as coisas: escuro-claro, alto-baixo, quente-frio, etc., nossas
escolhas sobre as coisas passam a serem definidas nesses contrastes. O desejo é progenitor
das contradições; desejar algo para suprir a falta é uma relação de oposição entre o pertencer
e o não pertencer, entre o preenchimento e o vazio, entre contínuo e descontínuo. E sendo, da
natureza humana, essa precisão em ter as coisas para si, em dominar o mundo e preencher o
vazio, coerentemente, é prazeroso aquilo que preenche, que dá continuidade, e angustiante
aquilo que causa falta.
Para explicar as escolhas humanas, como resposta ao prazer, não somente no campo
da satisfação (na qual entra a sedução), a sociedade elaborou o conceito de gosto. Do
latim “gustus 3”, que significa, no sentido amplo, ‘tomar o interesse por’, gosto é o termo que
designamos para explicar o que nos agrada e o que nos repugna. Todavia, se gosto é
associação entre prazer e conhecimento, gosto também pode ser apreendido (um gosto

3
In: https://www.priberam.pt/dlpo/gosto - acesso em 27/08/2018

725
adquirido). Na formulação do que Lacan (1985) chama de realização do desejo: o satisfazer-
se, observa-se o quão intensa é a função do conhecimento e do aprendizado. Passamos a
gostar das coisas (adquirir gosto por) quando descobrimos sua necessidade, sua importância.
Então o ‘eu como determinado alimento por necessidade’, e o ‘eu faço isso por que sou
‘obrigado’’ tornam-se o ‘eu não sabia que era gostoso esse alimento’, e o ‘agora eu faço
porque quero’. Quando Flusser (2007) coloca que passamos a dominar o mundo para dar
sentido a nossa existência, ele discursa sobre a ideia de que o sujeito modela o gosto a partir
de como ele foi educado a ver e pensar o mundo – podemos associar a esse processo a
memória afetiva, que é um elemento de extrema importância na formulação do gosto. A
memória afetiva é uma combinação de registros no inconsciente de nossas vivências
sensoriais e nossa imaginação. Ela afeta estados de consciência 'passados', pelos meios
sensoriais (cheiro, sabor, textura, etc.), resgatando signos do nosso inconsciente e trazendo-os
ao plano consciente – por exemplo, ‘se isso me lembra meu pai ou minha mãe, de modo
positivo, então isso é bom’. Associamos então, a nossa história à história das coisas e desta
forma, transpomos as coisas, nossas memórias afetivas. Definimos simbolicamente sabores,
cheiros, texturas etc., quando falamos, por exemplo, ‘esse sorvete tem gosto de praia’, não
que ele seja de água do mar (e ‘não o é’), mas por nos lembrar de uma infância na praia.
Nesse contexto de definir o gosto, é pertinente o fato de que construímos o gosto, de
acordo com aquilo que nos vai suprir nossa falta, mediante a realização de nosso desejo. E,
por assim, quando observamos alguma coisa, somos condicionados a procurar algo nesta
coisa que nos afeta, nos atinge, que faça sentido para nós, e a partir deste signo que nos
punge, que definimos se gostamos ou não da coisa: se atinge de maneira positiva (não apenas
numa sensação e alegria, mas como sensação de preenchimento – às vezes pode haver um
signo na coisa que nos traga a tristeza, mas que faz com que a coisa simbolize a outra coisa
perdida e portanto preencha), passamos a gostar da coisa, se nos atinge de maneira negativa,
criamos aversão a coisa (ou apenas nos tornamos indiferente a ela).
[...] o gosto é um outro saber, que não pode dar razão de seu objeto, mas que goza
dele; como uma forma especial de saber que goza do objeto belo e como uma forma
especial de prazer que julga a beleza; como um lugar privilegiado no qual emerge a
fratura do objeto do conhecimento em verdade e beleza, em conhecimento e gozo.
(OLIVEIRA, apud AGAMBEN, 2005, p. 82).

726
2. O Desejo Coletivo
Somos moldados diante da cultura, por fatores sociais, políticos e educacionais. Nossa
história infere na formação da cultura, agregando sintomas a favor de um interesse coletivo:
são os modos, os costumes, as etiquetas, as regras, a lei. Nesse interesse, que é tanto subjetivo
quanto instintivo (a natureza do ser humano exige que existam alguns regras para
sobrevivência), o gosto é modulado a favor da conveniência. Surge o que Lipovetsky (1989)
chama de moda: ferramenta de modelar e autenticar um modo de ser. Mas a moda não é só o
contemporâneo (e passageiro, reflexo de tendências e mudanças), mas também há uma moda
que permeia por um longo tempo (que se estabelece e cunha um legado). A moda é essa
ferramenta que julga a beleza, pois transforma socialmente um prazer particular, em um
prazer coletivo: e passamos a gostar das mesmas coisas (o desejo coletivo).
Neste cunho coletivo a arte se crava como objeto determinado por um gosto social. O
interesse de um grupo dominante determina o que é arte (assim como o que é moda, uma vez
que moda pode ser considerada como uma vertente da arte). Na Idade Média por exemplo,
durante o Renascimento e Barroco, a Igreja (Católica Apostólica Romana) determinou o que
era arte (padrões estéticos e regras de ‘produção’); no século XIX, os mecenas tinham forte
influência sobre os padrões artísticos, quais artistas e movimentos entrariam para a sociedade.
Há uma linha tênue entre o gosto subjetivo e o interesse social, político e econômico.
que nos aproxima das coisas, e nos faz interessar por elas; é algo crítico, quando se tem em
jogo, dois fatores conflitantes, que podem caminhar de mãos dadas, mas que atritam em
certas condições: o conhecimento (e aí entra a história social) e a estética. A atração estética
aniquila o conhecimento? Como definir o belo, enquanto estética, nessa condição pura de
atração imagética?
O chamado gosto pessoal é definido por um desejo particular do sujeito associado a
uma atração sensorial (também particular). No entanto, aprendemos a compreender as coisas,
por meio de códigos que apreendemos por meio da cultura (educação, sociedade, etc.); sendo
assim, o gosto pessoal sofre influência do desejo coletivo: a sociedade define os padrões de
beleza, da estética, conforme interesse político, social, mas também por meio de crenças que
se modificam com a ciência: houve uma época que era ser gordo era padrão de beleza (pois
associava-se a gordura a uma boa saúde), hoje temos o caminho contrário (o magro é belo,
pois é sinônimo de saudável). E, no meio destas crenças, afloram os extremos (exageros).

727
[O que facultamos como fundamento de beleza, que nos aproxima do belo e
gozamos no belo é] “o puro remeter de uma coisa à outra coisa; por outras palavras,
o seu caráter significante, independentemente de qualquer significado concreto”
(AGAMBEN, 1992, p. 146).

A arte é conduzida, assim, do mesmo modo, ao extremo: quando uma determinada obra
se torna mais importante que um conjunto de outras obras. Buscamos, culturalmente, associar
esse destaque a uma outra situação histórica, social, à qualidade (peculiaridade) do artista. Há
uma necessidade humana, para dominar o belo, de lhe conferir conteúdo, como meio de
pertencer o belo há nossa história (ou de justificar o belo), não permitindo que o belo seja
apenas subjetivo e sensorial.
O comportamento em relação ao belo como tal, diz Kant, é o livre favor:
precisamos liberar o que vem ao encontro como tal no que ele é, deixar e permitir-
lhe alcançar o que pertence a ele mesmo e o que ele pode trazer para nós.
(BERLINK, 2007, s/n)

Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação não através do


entendimento ao objecto [Objekt] com vista ao conhecimento, mas mediante a
imaginação ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto
não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte, não é lógico mas
estético, pelo que se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser
senão subjectivo [nicht anders als subjektiv]. Toda a referência [Beziehung] das
representações, mesmo a das sensações [Empfindungen], pode, porém, ser objectiva
(ela significa nesse caso o real de uma representação empírica); só não pode sê-lo a
referência ao sentimento de prazer e desprazer, mediante o qual não é designado
absolutamente nada no objecto [Objekt], mas no qual o sujeito sente-se a si próprio
[sich selbst fühlt] do modo como é afectado [affiziert wird] pela representação.
(DOS SANTOS, 2010, p.43-44)

Para Agamben (OLIVEIRA, apud AGAMBEN, 2005, p. 82), “o gosto é uma faculdade
a partir da qual proferimos juízos estéticos sobre a obra de arte”. Ao definir o belo estético,
definimos a forma da obra, e acabamos moldando a sociedade de consumo da obra, assim
sendo, moldando a moda e os modos de pensar e agir (como exemplo, temos a arte dada 4 que
fez o mundo enxergar as coisas como outras coisas, ressignificando os objetos, e o nome das
coisas, pelo qual a sociedade passou a apropriar-se de objetos do cotidiano como objetos de
decoração, ressignificando o belo, de maneira que o funcional passa a dar vez ao estético).
Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação
que se dá por meio de um deleite ou de um desprazer, desprovido de todo interesse.
O objeto de tal deleite chama-se belo. (KANT, apud BERLINK, 2007, s/n)

4
Dada, movimento criado por Arp, Ball, Duchamp, Ray entre outros artistas, que durou de 1916 a 1919, e tinha
como crítica a normatização das coisas, na arte, no mundo, no qual o processo criativo se deixava fluir pelo
aleatório, pelo acaso, e pela associação casual das coisas.

728
3. Ordenação do Desejo
“Forma e conteúdo são vistos em sua inseparabilidade: o conteúdo nasce como tal
no próprio ato em que nasce a forma, e a forma não é mais que a expressão acabada
do conteúdo [...] “a inseparabilidade da forma e conteúdo é afirmada do ponto de
vista do conteúdo: fazer arte significa ‘formar’ conteúdos espirituais, dar uma
‘configuração’ à espiritualidade” (PAREYSON, 1997, p. 55)
Gesto é o movimento no qual se articula uma liberdade, afim de se revelar ou de se
velar para o outro (FLUSSER, 2014, p.17). Segundo Flusser (ibid..), gestos são movimentos
pelos quais se manifesta uma maneira de estar no mundo. Os gestos de conhecimento
informam, numa perspectiva cultural como se comporta o sujeito diante dos códigos e
história que formulam o gosto. Diante de das coisas, somos determinados a vê-la como signo
que traz certa significação, e a agir em prol de uma resultante, que nunca é estética, por mais,
que o que nos atinja primeiramente seja o belo estético, mas conceitual: somos educados a
conferir sentido para as coisas.

O gesto traz esse ritual, observar a coisa, compreender a coisa, definir a coisa (seu
contorno, sua descontinuidade em relação as demais coisas), dar nome a coisa, e dar uma
função lógica a coisa (o que é e para que serve a coisa). Buscamos as informações que
aprendemos na nossa vivência, com a sociedade e as instituições e realizamos este gesto
conclusivo de significar as coisas.

Diante de uma obra de arte, somos designados a significa-la. Conferimos a ela uma
importância no mundo. E temos essa necessidade de responder o porquê dela ser importante.
Muitas vezes, esse é o nosso gesto primordial, pois perante a formação cultural, parece que o
conteúdo é mais importante que a forma.

Nós somos condicionados a criar essa separação, conteúdo e forma, não há uma
palavra sequer que explique o conjunto entre conteúdo e forma, talvez nos estudos somáticos,
cuja palavra soma designa “unidade corpo-mente e se apoia nas relações em rede que estão
presentes no funcionamento do corpo, entre seus diversos sistemas e do corpo com o
ambiente” (NEVES e MILLER, 2013, resumo 5), mas para as demais coisas ‘não corpo
humano’, não temos uma designação precisa dessa composição corpo-mente que pode ser
compreendida como forma-conteúdo.

5
Conceito de Soma. In: http://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/viewFile/258/242 -
acesso em 08/05/2017

729
Se conhecimento supera a forma, também o oposto é recorrente (depende do ‘ponto
de vista’): pois é inegável, que a forma define muito de sua função e vice-versa, tal qual a
forma sendo uma função percebida sensorialmente, é o primeiro contato do sujeito com a
coisa, do sujeito com a obra de arte, e consequentemente, é o ponto de start de qualquer
observação e definição.

De certa maneira, forma e conteúdo tem de estar conectados e fluindo ao mesmo


tempo, pois é pelo conteúdo que se encontram os elementos percepto-cognitivos que nos
permitem os sentidos captarem a forma (estética, contorno), e é a forma que modela a função
do conteúdo. Um simples exemplo que nos revela essa relação: uma caneca - é a sua forma
que determina que ela serve como recipiente para se colocar líquidos, ao mesmo tempo que
aprendemos que para reservar um líquido precisamos de um recipiente, portanto olhamos a
caneca e percebemos nela a capacidade de colocar líquido; a caneca foi criada para tal
função, uma coisa funcional, mas transformamos a caneca em objeto de arte quando aderimos
a ela signos outros (uma pintura, um design que remete a um conceito artístico, uma
fotografia, uma iconografia, etc.) e ela se torna uma coisa estética (um objeto de decoração,
uma obra de arte, um souvenir). Talvez nessa inseparabilidade, não seja possível definir gosto
do conteúdo e gosto da forma, teoricamente estes dois gostos estão entrelaçados 6.
Há arte quando o exprimir apresenta-se como um fazer e o fazer é, ao mesmo
tempo, um exprimir, quando a formação de um conteúdo tem lugar como formação
de uma matéria e a formação de uma matéria tem o sentido da formação de um
conteúdo. [...] formalismo e conteudismo são defeitos simétricos e complementares,
[...] para abandonar um é necessário eliminar ambos, porque eles estão juntos e
caem juntos. (PAREYSON, 1997, p. 62-9).
A forma se torna o conteúdo e o conteúdo a forma. A forma é simbolização do
conteúdo. Referencial. A coisa passa a representar não mais a sua função para qual foi
designada originalmente, mas a representar aquilo que se tornou mediante a transferência. É
quando o desejo se organiza que compreendemos o ‘todo’ da coisa: o que deseja-se é que a
coisa resolva uma angústia, que simbolize aquilo que o sujeito perdeu, preencha a sua falta, e
colocamos sobre a forma a responsabilidade dos sentidos: deve ter a cor, a textura, o cheiro, a
forma, o sabor, daquilo que estou projetando nela. E ao se organizar, a coisa se torna o
próprio gesto do desejo. O ursinho de pelúcia fala, abraça, beija, cuida, protege.

6
Conteúdo e Forma: “[...] a união de forma e conteúdo como uma junção: a forma se acrescenta ao conteúdo,
vindo-lhe de fora e, permanecendo-lhe exterior”, um “ornamento que o embeleza” (PAREYSON, 1997, p. 56)

730
4. A Retórica do Desejo
O desejo, desviado de seus fins primários, obscuros para o sujeito, em direção a
objetos secundários que aparecem para a consciência como objetos possíveis cujo
alcance depende pelo menos em parte de nossa ação voluntário e consciente.
(KEHL, 1990, p. 368)
Temos que diferenciar a alegria da fome do prazer da saciedade da experiência da
privação, já que esta nunca é vivida sem imensa angústia, a própria angústia de
morte: a dúvida sobre as possibilidades de sobrevivência do sujeito. A alegria de
desejar depende de uma certa dose de confiança no real, uma certa quantidade de
experiências de gratificação que permitam alguma espécie de prazer e de
confirmação, de aplacamento, pelo menos temporário do desejo. (KHEL, 1990,
p.366).
Quando o sujeito observa uma obra de arte e cria uma afinidade com ela, o desejo é
transferido a obra tornando-se referencial de analogia simbólica do próprio desejo. Três
instâncias são observadas: a. quando o sujeito encontra na forma, algo que lhe atinge pelos
sentidos e provoca: o sorriso da Monalisa (Da Vinci), a ferida pelas flechas em São Sebastião
(Rubens); b. quando o sujeito encontra algo no conteúdo (na narrativa, no contexto) da obra
de arte com o qual ele se identifica: a desconstrução da linguagem em Flores do Mal
(Baudelaire) ou em A Fonte (Duchamp); c. quando o sujeito transfere para a obra uma relação
com um fato externo a obra (Monalisa não representa Da Vinci ou uma obra Renascentista,
mas passa a representar o dia que o sujeito esteve em Paris, a lua de mel, o nascimento de um
filho, a celebração de um aniversário, a morte de um ente querido).
A obra de arte, quando está na condição de representação do desejo do sujeito, adquire
uma nova narrativa, que não mais é a de seu fator histórico, social, educacional, não é mais a
narrativa do autor da obra, mas é a narrativa do sujeito que a observa. O gesto de observar é o
gesto de perceber e dar sentido ao que se observa, e tornar-se parte do que se observa, é
destituir da descontinuidade, o hiato que separa sujeito e obra de arte e colocar ambos num
processo de continuidade que não se define mais onde começa um e termina outro.
Ativar a percepção é interagir com as coisas por meio dos sentidos. Eles causam
satisfação (quase que imediata), é o caminho mais direto do regozijo: e que ativa partes do
cérebro e das terminações nervosas, que nos trazem essa sensação de deleite.
Sendo satisfação sinônimo de gosto, e ao mesmo tempo tendo em sua origem (do
latim, satisfactĭo) o significado de “pagamento de uma dívida, reparação” 7, podemos definir

7
In: http://origemdapalavra.com.br/ - acesso em 28/08?2018

731
satisfação como sendo o gesto de retratar um desejo (aprender a gostar – gosto adquirido –
para compensar uma perda, para contentar a angústia).
"Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma percepção
específica, cuja imagem mnêmica fica associada, daí por diante, ao traço mnêmico
da excitação produzida pela necessidade. Em decorrência do vínculo assim
estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade for despertada, surgirá de
imediato uma moção psíquica que procurará recatexizar a imagem mnêmica da
percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação de
satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo (...)"
(Freud, 1987, p. 516).
Gosto do Conteúdo ou Gosto da Forma? Essa foi a dubiedade que fomentou essa
reflexão sobre estética e conceito. Partimos de uma dúvida e, duvidar é fundamental para tal
investigação. A dúvida é necessária diz Flusser (2011, p.11), “a dúvida é um estado de espírito
polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de outra”. O que de
fato nos atinge quando vemos uma coisa, o que nos faz interagir com uma obra de arte?
Quando lidamos com a incerteza (uma vez que o conceito de gosto sempre será subjetivo)
sobre o gosto, lidamos com a ideia de que gosto é mutável, transcende seu signo primário,
construindo novos significados, o simbólico da coisa atualiza-se conforme a história se
atualiza, conforme a cultura se renova. O sujeito passa a apreciar obras de artes que outrora
não apreciava, passa a compreender signos que outrora desconhecia, ou deixa de gostar de
alguma obra que outrora gostava.

No campo da estética, o gosto transmuta pela atualização e nossos sentidos, é uma


fusão entre o biológico e o aprendizado (aprendemos a conhecer nosso corpo e ele passa a
desfrutar mais precisamente dos sentidos de maneira que outrora não desfrutávamos). No
campo do conhecimento, o gosto se comporta como uma esponja, absorve as moléculas dos
domínios das ciências; depois funciona como uma peneira que filtra esses signos (mas não de
uma maneira precisa, pois deixa transpassar do inconsciente, por exemplo, a memória
afetiva) e por fim tenta ordená-los para dar um sentido a coisa observada. Ainda que sendo
subjetiva as respostas a essa dúvida incipiente, arrisco pois, uma pequena reflexão: Uma vez
que Conteúdo e Forma caminham juntos, o gosto é, por senão, uma predileção pelos signos
que nos satisfazem nossos desejos.
O desejo de possuir uma grande quantidade de ouro, tanto ouro quanto possível, foi,
é verdade, em grande parte arrefecido por nosso conhecimento atual dos fatores
determinantes da riqueza, mas a química não mais encara a transmutação dos metais
em ouro como impossível. (FREUD, 1981, s/n).

732
A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui
um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que
se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo
específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de
dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter
do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e,
finalmente de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de
adaptá-lo a seus desejos. (FREUD, 1927-31, p. 47)

Perfazendo essa reflexão, arremato com uma insigne elucidação realizada por
Antonioni no filme Blow up (1967), no qual Bill, o artista plástico, diz “they don't mean
anything when I do them. Just a mess. Afterwards, I find something to hang on to, like
that...” 8, ao explicar suas pinturas ao amigo Thomas.

FIGURA 1 – Frame de Blow up (ANTONIONI, 1967)


FONTE – BLOW UP, direção: Antonioni, M. Reino Unido/Itália/EUA, 1966. DVD (110 mim), color, son.

A alegria do desejar depende de uma certa dose de confiança no real, uma certa
quantidade de experiências de gratificação que permita esperar que esse lugar
externo ao psiquismo para onde se espraia a ―fome do mundo‖ seja um lugar de
onde pode vir alguma espécie de prazer e alguma espécie de confirmação, de
aplacamento, pelo menos temporário, de minhas indagações. [...] quando a
realidade cede ao acordo que o desejo faz com suas exigências, que a fome do
mundo é sentida como antecipação feliz, afirmação do sujeito que ao dizer ―eu
quero‖ está também dizendo ―eu posso‖ ou, pelo menos, ―eu acho que posso‖.
(KEHL, 1990, p. 366-7)

8 “Elas não significam nada quando eu faço-as. Apenas uma confusão. Depois, eu encontro algo para agarrar,
como aquilo...” (tradução nossa)

733
Referências

AGAMBEN, G. Gosto. São Paulo: Autêntica, 2017.


AGAMBEN, G. Gosto. Enciclopédia Einaudi. Vol. 25. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992.
BATAILLE, G. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, Porto Alegre, 1987.
BERLINCK, M. T. O método clínico-2. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo,
2007.
DOS SANTOS, L. R.. A concepção Kantiana da experiência estética. São Paulo: Trans/Form/Ação, 2010.
FLUSSER, V. A dúvida. São Paulo: Annablume, 2011.
FLUSSER, V. Gestos. São Paulo: Annablume, 2014.
FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2007.
FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). Borras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Eu e outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, S. Realização de desejos. A Interpretação dos Sonhos, Parte II. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
LACAN, J. O Seminário livro 4, A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1995.
LIPOVETSKY, G. O império do efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, v. 2016, 1989
KHEL, Maria Rita. O desejo da realidade. NOVAES, Adauto (org.). O desejo. São Paulo, Cia das Letras, 1990.
PAREYSON, L. Os Problemas da Estética (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes, 1997.
RABELO, A. Memória e subjetividade: elementos para refletir sobre a singularidade das professoras.
Educação, v. 32, n. 1, 2007.

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