Origem e Transmissão
do Texto do Novo Testamento
Concluído durante licença pós-doutoral
na Universidade de Heidelberg, Alemanha
Sociedade Bíblica
do Brasil
Barueri, SP
M issão da Sociedade Bíblica do Brasil:
Promover a difusão da Bíblia e sua mensagem como instrumento de transformação
espiritual, de fortalecimento dos valores éticos e morais e de incentivo ao desenvolvimen-
to humano, nos aspectos espiritual, educacional, cultural e social, em âmbito nacional.
Paroschi, Wilson
Origem e Transmissão do Texto do Novo Testamento / Wilson Paroschi. Barueri, SP:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2012.
ISBN 789-85-218-0544-9
Impresso no Brasil
EA9830T - 3.000 - SBB - 2012
Conteúdo
PREFÁCIO............................................................................................................................ vii
ABREVIAÇÕES.....................................................................................................................ix
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................xiii
Capítulo
1. A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS........................................................................ 1
Noções de Paleografia............................................................................................. 1
Os Livros em Seu Contexto S o cial.......................................................................... 3
Cultura O r a l..................................................................................................... 3
Letram ento....................................................................................................... 4
Uso da Escrita................................................................................................... 6
Escribas..............................................................................................................7
Preço dos Livros................................................................................................. 8
Bibliotecas......................................................................................................... 9
Os Livros do NT............................................................................................... 10
Materiais de E scrita............................................................................................... 12
P ap iro ..............................................................................................................12
Pergaminho......................................................................................................15
P apel................................................................................................................18
O Formato dos Manuscritos...................................................................................18
Rolo.................................................................................................................. 18
Códice..............................................................................................................19
Estilos e Convenções da E scrita............................................................................ 23
Escrita M aiúscula...........................................................................................23
Escrita M inúscula...........................................................................................24
Pontuação....................................................................................................... 25
Abreviações............................... 26
Contração................................................................................................. 26
Suspensão................................................................................................. 28
Ligaduras................................................................................................... 29
Símbolos............................................................................... 29
Ornamentação................................................................................................. 29
Orientações para o Leitor.......................................................................................30
Prólogos........................................................................................................... 30
Colofões............................................................................................................31
Parágrafos....................................................................................................... 31
Esticometria..................................................................................................... 32
Tabelas de Eusébio........................................................................................... 32
Colometria....................................................................................................... 33
Capítulos......................................................................................................... 33
IV CONTEÚDO
Títulos..............................................................................................................34
Fórmulas Lecionárias.......................................................................................34
Escólios............................................................................................................35
Correções......................................................................................................... 36
Sinais Críticos................................................................................................. 36
Datação e Catalogação de Manuscritos..................................................................37
Datação............................................................................................................37
Catalogação..................................................................................................... 38
4. O TEXTO IMPRESSO......................................................................................................119
Período Pré-Crítico................................................................................................119
Acúmulo de Evidências.........................................................................................129
Edições Modernas................................................................................................. 138
Projetos em Andamento.......................................................................................154
CONTEÚDO V
CONCLUSÃO.....................................................................................................................281
Apêndice
A. Distribuição dos Manuscritos Gregos
do Novo Testamento por S éculo....................................................................285
B. Distribuição dos Papiros do Novo Testamento por L ivro.............................287
νι CONTEÚDO
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................295
Prefácio
Este é um livro quase que inteiramente novo. Após o lançamento do Crítica Textual do
Novo Testamento (São Paulo: Vida Nova), em 1993, não foi necessário senão pouco tempo
para que 0 autor chegasse à conclusão de que ele podia, e devia, ser revisado, apesar de
bem recebido tanto no Brasil quanto no exterior.1 Não apenas alguns erros tipográficos
haviam passado despercebidos, inclusive para o próprio autor que participara do processo
de revisão das provas (tais erros foram corrigidos na 2a. edição, em 1999), mas também
algumas idéias poderíam ser aperfeiçoadas, outras precisavam ser mais bem fundamen-
tadas, e a própria linguagem podería em alguns momentos ser mais objetiva e quem sabe
menos provincialista e romântica. Também há o fato de que, sendo a crítica textual uma
disciplina bastante dinâmica, novas pesquisas estão sendo publicadas a todo 0 instante, 0
que amplia seus horizontes bibliográficos, disponibiliza novos dados e informações, além
de corrigir ou aprimorar conceitos. Nessas quase duas décadas, novas edições do NT gre-
go foram lançadas, novos manuscritos foram descobertos e catalogados, e novos debates
foram iniciados, como por exemplo sobre a chamada multivalência do termo “original”
quando aplicado ao texto do NT e 0 desenvolvimento de um método todo computadori-
zado (conhecido em inglês pela sigla CBGM) que promete mais coerência na avaliação de
variantes e o estabelecimento do texto.
Algumas mudanças conceituais foram inevitáveis. As mais significativas ocorreram em
relação à história do texto escrito: o abandono da teoria dos textos locais como defendida
por B. H. Streeter e, com ela, do chamado texto cesareense. A sequência e o teor geral
dos capítulos, porém, permaneceram os mesmos, embora eles tenham sido totalmente
reescritos e acrescidos de grande quantidade de material, incluindo-se amplo embasa-
mento bibliográfico, o que foi feito pensando-se especialmente no estudante brasileiro,
que nem sempre tem fácil acesso à literatura especializada. Há ainda um novo capítulo, 0
qual discute diversas tendências contemporâneas referentes ao texto do NT. O número de
apêndices, no entanto, foi reduzido. Ao contrário do volume anterior, as citações bíblicas
em português refletem a tradução do próprio autor, exceto quando alguma versão espe-
cífica é mencionada. Houve também umas poucas correções ortográficas2 e, por fim, os
títulos patrísticos, antes em português, agora seguem padrões internacionais.3 Por tudo
isso, optou-se também por um novo título.
O livro foi concluído durante licença pós-doutoral na Universidade de Heidelberg, Ale-
manha. Gostaria de registrar aqui minha sincera gratidão ao Centro Universitário Adventista
1 Resenhas críticas foram publicadas em Igreja Luterana 53 (1994): 141-144, por Vilson Scholz; Vox Scripture 1
(1995): 100-102, por Valdemar Krõker; Actualidad bibliográfica 64 (1995): 206-207, por José O’Callaghan; Andrews
University Seminary Studies 35 (1997): 146-147, por Joaquim Azevedo; e Novum Testamentum 41 (1999): 308-309,
por J. K. Elliott.
2 Um exemplo é 0 Códice Korideto, agora chamado Korideti, a fim de preservar a pronúncia original.
3 Veja Patrick H. Alexander et ah, eds., The SBL Handbook of Style: For Ancient Near Eastern, Biblical, and Early
Christian Studies (Peabody: Hendrickson, 1999).
viii PREFÁCIO
de São Paulo (Unasp), pela concessão do tempo e os recursos financeiros necessários para a
consecução do projeto. Também gostaria de agradecer a três pessoas em particular da Uni-
versidade de Heidelberg: ao Prof. Dr. Peter Lampe, Professor de Teologia do Novo Testamento
e meu “professor anfitrião,” pela constante e excelente cooperação, fundamental para o bom
andamento dos trabalhos; ao Prof. Dr. Michael Welker, Professor de Teologia Sistemática e
Diretor do Centro de Pesquisa para Teologia Internacional e Interdisciplinar, por me conceder
ali uma sala muito bem mobiliada e equipada (incluindo-se telefone, internet, computador
e impressora) e de cuja janela se tinha uma visão privilegiada e inspiradora das colinas que
ladeiam Heidelberg, incluindo-se 0 Rio Neckar e a romântica Altstadt (“cidade velha”); e à
Dra. Beate Müller, Diretora da Biblioteca de Teologia, pela sempre pronta e amável assistência
com relação aos recursos físicos e on-line da biblioteca.
Por fim, uma palavra especial de gratidão a minha família: a minha querida esposa
Eliane, por sua admirável serenidade, companheirismo e amor dedicado e fiel, e às filhas
Kéldie e Keilyn, cujo amor e alegria têm enriquecido minha vida muito além do que elas
podem imaginar ou (ainda) compreender. A essas três pessoas maravilhosas dedico de
coração este livro.
W. Paroschi
Jan., 2011
Sobre o Autor
Wilson Paroschi, doutor em Teologia pela Andrews University (EUA), com especialização
em Novo Testamento, éprofessor de Grego, Hermenêutica e Interpretação do Novo Testamento
no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Já publicou diversos livros e arti-
gos acadêmicos tanto em português quanto em inglês, incluindo-se Crítica Textual do Novo
Testamento e Incarnation and Covenant in the Prologue to the Fourth Gospel (John 1:1-18).
Em 2010, realizou estudos pós-doutorais no Centro de Pesquisa para Teologia Internacional
e Interdisciplinar da Universidade de Heidelberg, Alemanha.
Abreviações
AB Anchor Bible
ABD Anchor Bible Dictionary
ABRL Anchor Bible Reference Library
AGJU Arbeiten zur Geschichte des Antiken Judentums und des Urchristentums
AnBib Analecta biblica
ANTF Arbeiten zur neutestamentlichen Textforschung
AÒAW Anzeiger der Õsterreichischen Akademie der Wissenschaften
APF Archiv fur Papyrusforschung
ARG Archiv fiir Reformationsgeschichte
ASP American Studies in Papyrology
BDAG Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early
Christian Literature, 3a ed. rev. e ed. por Frederick W. Danker
BDF F. Blass e A. Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other
Early Christian Literature, trad, e rev. da 9a. ed. alemã por Robert W. Funk
BECNT Baker Exegetical Commentary on the New Testament
BEThL Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium
BHR Bibliothèque d’humanisme et Renaissance
BHT Beitràge zur historischen Theologie
Bib Biblica
BJRL Bulletin of the John Rylands Library
BNTC Black’s New Testament Commentaries
BRev Bible Review
BS Bibliotheca Sacra
BZNW Beihefte zur Zeitschrift fiir die neutestamentliche Wissenschaft
CBET Contributions to Biblical Exegesis and Theology
CBNTS Coniectanea Biblica: New Testament Series
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CBR Currents in Biblical Research
CINT Compendia rerum Iudaicarum ad Novum Testamentum
CJA Christianity and Judaism in Antiquity
CRBR Critical Review of Books in Religion
CRTL Cahiers de la Revue Théologique de Louvain
CTJ Calvin Theological Journal
CTR Criswell Theological Review
DPL Dictionary of Paul and His Letters
EQ Evangelical Quarterly
ET Expository Times
EtB Etudes bibliques
ETL Ephemerides Theologicae Lovanienses
ETS Erfurter theologische Studien
x ABREVIAÇÕES
1 Nas disciplinas bíblicas, a palavra “crítica” não tem necessariamente conotação negativa, muito menos pejora-
tiva. Ela deve ser entendida apenas como a aplicação das faculdades intelectuais do juízo e 0 bom senso no estudo
das dificuldades literárias ou históricas das Escrituras (veja J. K. Elliott e Ian Moir, Manuscripts and the Text of the
New Testament: An Introduction for English Readers [Edimburgo: T&T Clark, 1995], 1).
2 Fala-se às vezes em quatro diferentes tipos de originais: 0 original pré-canônico, que representaria os estágios
anteriores na composição do texto; 0 original autográfico, 0 texto como preparado pelos apóstolos e evangelistas; 0
original canônico, o texto que foi recebido no cânon e reconhecido como autoritativo; e 0 original interpretativo, 0
texto como conhecido e utilizado na vida e prática da igreja através dos séculos (Eldon J. Epp, Perspectives on New
Testament Textual Criticism: Collected Essays, 1962-2004, NovTSup 116 [Leiden: Brill, 2005], 586-588). Indepen-
dentemente da utilidade ou mesmo validade de tais dintinções, é 0 segundo (0 original preparado pelo autor) que
consiste no objeto de estudo da crítica textual. Para as razões porque deve ser assim, veja Paul Ellingworth, “Text,
Translation, and Theology: The New Testament in the Original Greek,” FilNeo 13 (2000): 61-73.
3 A ideia frequentemente citada de que “se” os manuscritos originais do NT tivessem sobrevivido “não havería
crítica textual do NT” (e.g., Alexander Souter, The Text and the Canon of the New Testament, 2a. ed. rev. C. S. C.
Williams, StT [Londres: Duckworth, 1954], 3; F. G. Kenyon, The Text of the Greek Bible, 3a. ed. rev. e aum. por A.
W Adams [Londres: Duckworth, 1975], 3) é simplória e inadequada, pois os manuscritos têm muito a nos ensinar
sobre questões paleográficas envolvendo 0 grego bíblico, antigas práticas escribais e até mesmo a interpretação do
texto, como refletida, e.g., no sistema de pontuação, correções e alterações propriamente ditas.
xiv INTRODUÇÃO
prematuro, mas não é difícil imaginar. O material de escrita da época, o papiro, não era
mais durável que o nosso moderno papel, especialmente se submetido a intenso manu-
seio ou em situações climáticas desfavoráveis. E os originais do NT devem ter sido lidos
e relidos pelas cristãos primitivos até se desfazerem por completo e literalmente caírem
aos pedaços. Seja como for, perderam-se todos. Providencialmente, porém, antes que se
tornassem ilegíveis ou desaparecessem, eles foram copiados.
Comparados aos de hoje, os recursos de produção e reprodução literária na antiguida-
de eram muito precários, e também muitas foram as adversidades enfrentadas pela igre-
ja, como desastres naturais (incêndios, terremotos, inundações), guerras e perseguições.
Mesmo assim, cerca de 5.700 manuscritos gregos do NT chegaram até nós. Apesar de que
as cópias mais completas datem do quarto século em diante, que foi quando a igreja pas-
sou a contar com o favor do império, e de que quanto mais próximas do primeiro século,
mais escassas e fragmentárias sejam essas cópias, a quantidade é significativa. E se levar-
mos em conta também os cerca de vinte mil manuscritos das versões para grupos étnicos
que não dominavam a língua grega universal, bem como os mais de um milhão de citações
feitas por antigos escritores cristãos, os chamados pais da igreja, então as testemunhas em
favor do texto neotestamentário atingem números impressionantes.4
Quando examinados, porém, esses documentos conduzem a uma triste constatação, a
de que 0 texto não permaneceu estável como gostaríamos que tivesse. O intenso processo
de cópia e recópia a que 0 NT foi submetido no período que antecedeu o advento da im-
prensa fez com que muitos e variados erros, ou leituras variantes,5 fossem introduzidos
no texto. E a grande quantidade de cópias apenas contribuiu para que as variações entre
elas aumentassem ainda mais, pois cada escriba acrescentava os próprios erros àqueles já
cometidos pelo anterior. À primeira vista, os números são assustadores. Fala-se em cerca
de trezentas mil variantes,6 0 que supera inclusive o número de palavras que 0 NT (grego)
contém, que é pouco mais de 138 mil. E opinião unânime entre os estudiosos do assunto
que não existe um único manuscrito que tenha preservado sem qualquer variação 0 texto
original dos 27 livros do NT, nem de um sequer. Um autor chegou a afirmar que “não há
uma só frase no NT na qual a tradição manuscrita seja totalmente uniforme.”7
4 E uma espécie de “constrangimento da fartura,” como declara Daniel B. Wallace (“Laying a Foundation: New
Testament Textual Criticism,” em Interpreting the New Testament Text: Introduction to the Art and Science of Exegesis,
eds. Darrell L. Bock e Buist M. Fanning [Wheaton: Crossway, 2006], 43).
5 “Variante” (ou “leitura variante”), em crítica textual, refere-se à eventual variação nas frases, palavras ou
partes de uma palavra quando a mesma passagem é comparada em dois ou mais manuscritos. A distinção feita
por Eldon J. Epp entre “leitura,” que ele define como uma variação textual insignificante, e “variante,” que seria
qualquer variação importante para os trabalhos crítico-textuais, além de inovadora, é de pouca utilidade prática
(“Textual Criticism: New Testament,” ABD, 6 vols. [Nova York: Doubleday, 1992], 6:413-414).
6 Heinrich Zimmermann menciona 250 mil variantes textuais (Neutestamentliche Methodenlehre: Darstellung der
historisch-kritischen Methode, 7a. ed. (Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1982], 18). Richard N. Soulen chega a falar em
mais de quinhentas mil variantes (Handbook of Biblical Criticism, 2a. ed. [Atlanta: John Knox, 1981], 207). Epp, porém,
após citar 0 aumento progressivo no número de variantes à medida que novos manuscritos foram sendo descobertos,
declara que trezentas mil no momento são uma estimativa mais “justa” (“Textual Criticism: New Testament,” 4:415).
INTRODUÇÃO XV
É verdade que a grande maioria das variantes diz respeito a questões de pouca ou ne-
nhuma importância. São variações na ordem relativa das palavras numa frase, no uso de
diferentes preposições, conjunções e advérbios, nas preposições que acompanham deter-
minados verbos, no uso ou não do artigo diante de nomes próprios, ou simples alterações
de natureza gramatical, muitas das quais sequer poderíam ser representadas numa tradu-
ção em língua portuguesa. Mas, infelizmente nem tudo é tão simples assim. Há também
um bom número de variantes que surgiram por razões exegéticas, teológicas ou mesmo
doutrinárias, o que faz do exercício da crítica textual muito mais que uma investigação
histórica, mas uma busca da própria essência do ensino apostólico.
O NT contém algumas das histórias e ensinos mais extraordinários jamais escritos e
não são poucos os que acreditam em sua origem divina e têm procurado pautar a vida por
ele. A presença de divergências textuais nas cópias manuscritas, portanto, pode colocar
em risco não só a credibilidade do texto e as alegações históricas e teológicas do cristia-
nismo, como também a fé de bilhões de pessoas. Em outras palavras, como saber o que
realmente aconteceu e o significado do que está escrito se não soubermos sequer o que foi
escrito.78 E exatamente esse o campo de atuação da crítica textual. Ela se dedica ao exame
criterioso da tradição manuscrita a fim de identificar as divergências, avaliar suas pro-
habilidades e assim reconstruir o texto que melhor represente o original, ou a forma pri-
mitiva do autógrafo. Seu papel, portanto, é de fundamental importância entre as demais
disciplinas bíblicas, pois ela lança as bases sobre as quais toda e qualquer investigação
deve ser construída. Sem um texto grego confiável, tão mais próximo do original quanto
possível, nada mais será confiável: análise histórica ou literária, exegese, teologia (bíblica
ou sistemática), nem mesmo sermão, para não falar em tradução. E por isso que a crítica
textual consiste num “pré-requisito para todos os demais trabalhos bíblicos e teológicos.”9
A presente obra consiste numa introdução aos trabalhos textuais do NT. Ela visa a
conduzir 0 leitor pelo mundo fascinante dos antigos manuscritos gregos, como foram pre-
parados, quem os preparou e como são avaliados (cap. 1). Ela também descreve em deta-
lhes os diferentes tipos de manuscritos e demais testemunhas do texto, como as versões
7 Merrill M. Parvis, “Text: New Testament”, IDB, S vols. (Nashville: Abingdon, 1962), 4:595.
8 Edwyn Hoskyns e Noel Davey assim expressaram 0 problema: “Se 0 exame do significado de importantes
palavras gregas que aparecem muitas vezes nos documentos do NT suscita grave problema histórico, visto que
apontam para um acontecimento histórico particular na Palestina; se não pode haver uma compreensão do NT à
parte da possibilidade de delinear 0 significado dessa história particular, pelo menos em seus traços mais gerais;
e, além disso, se essa história deve ser reconstruída a partir dos documentos do NT, uma vez que não dispomos de
outras fontes de informação: torna-se evidente que nenhuma reconstrução da história é possível a menos que 0
historiador crítico possa ter razoável confiança de que 0 texto do NT não sofreu alterações sérias durante os qua-
torze séculos em que foi copiado por escribas. Não se pode empreender um sério trabalho de investigação histórica
tendo por base textos suspeitos de extrema corrupção” (The Riddle of the New Testament, 3a. ed. [London: Faber &
Faber, 1947], 35).
9 J. Harold Greenlee, Introduction to New Testament Textual Criticism, rev. ed. (Peabody: Hendrickson, 1995),
7. Veja também Wim Weren, “Textual Criticism: The Mother of All Exegesis,” em Recent Developments in Textual
Criticism: New Testament, Other Early Christian and Jewish Literature, ed. Wim Weren e Dietrich-Alex Koch, STAR 8
(Assen: Royal Van Gorcum, 2003), 3 1 6 ־.
XVI INTRODUÇÃO
e citações patrísticas (cap. 2). Além disso, ela inclui uma seção inteira sobre a história do
texto escrito, desde sua composição nos tempos apostólicos até o final da Idade Média; a
seção termina com uma discussão abrangente dos diferentes tipos de alterações textuais e
suas características (cap. 3). Em seguida, é vez do texto impresso, suas origens no século
dezesseis e as controvérsias que lhe marcaram a história até os tempos modernos, período
esse que testemunhou o surgimento da crítica textual do NT propriamente dita (cap. 4). O
capítulo seguinte é dedicado a algumas questões um pouco mais técnicas: como identificar
e transcrever as variações presentes nos manuscritos, como utilizar um aparato crítico e
como escolher entre duas ou mais leituras divergentes (cap. 5). Segue-se então uma se-
ção prática, que analisa alguns dos casos mais notórios do NT envolvendo divergências
textuais; a intenção é dar ao leitor uma visão mais clara do modus operandi da disciplina
(cap. 6). Por fim, o último capítulo oferece um exame detalhado de algumas tendências
contemporâneas que, contrariando séculos de pesquisas e avanços, têm questionado os
próprios fundamentos da crítica textual e tentado apresentar um quadro demasiadamente
pessimista da história do texto e sua confiabilidade (cap. 7).
Afinal, o texto que temos hoje corresponde ou não àquele que foi escrito pelos apósto-
los e evangelistas quase dois mil anos atrás? Tanto tempo depois, será que a Palavra ainda
é fiel e digna de toda aceitação?10 Leia e descubra!
10 Espero que 0 (a) leitor(a) não se ofenda por essa aplicação de lTm 4.10.
CAPÍTULO ו
N oções de P aleografia
Paleografia é 0 estudo da escrita antiga. O termo deriva das palavras gregas παλαιός
(“antigo”) e γραφή (“escrita”), e se aplica, em seu sentido mais eurocêntrico, às escritas
em grego e latim, as duas línguas da antiguidade cuja vasta literatura ajudou a moldar
a cultura ocidental; o grego e 0 latim são também as línguas que contam com o maior
número de manuscritos neotestamentários. A paleografia está dividida em várias subcate-
gorias, as quais são definidas em relação tanto ao material quanto ao instrumento usados
para a escrita. Como subcategoria, a paleografia estuda a escrita preservada em materiais
portáveis e mais sujeitos ao desgaste, como papiro, pergaminho e papel. Os grafites com
1 Um colofão encontrado em muitos manuscritos não bíblicos da Idade Média revela 0 alívio do copista ao con-
cluir sua longa empreitada: “Como um viajante se alegra ao ver seu país de origem, assim também é 0 fim de um
livro para aqueles que trabalham” (cf. Bruce M. Metzger, Manuscripts of the Greek Bible [Oxford: Oxford University
Press, 1981], 20).
2 Em fins da Idade Média, um manuscrito completo das Escrituras em pergaminho podia custar 0 equivalente a
uma casa hoje em dia, 0 mesmo acontecendo com os primeiros exemplares impressos, nos séculos quinze e dezes-
seis (Μ. H. Black, “The Printed Bible,” em The Cambridge History of the Bible: The West from the Reformation to the
Present Day, ed. S. L. Greenslade [Cambridge: Cambridge University Press, 1963], 416, 423).
2 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
informações mais corriqueiras, como as que foram deixadas nas paredes de Pompeia ou
nas catacumbas de Roma, também estão ligados à paleografia. Outras subcategorias são
a epigrafia, que estuda as antigas inscrições gravadas em objetos fixos e duráveis, como
pedra, osso ou metal, e a numismática, que estuda especificamente as moedas antigas,
suas inscrições e símbolos.3
Introduzida no final do século dezessete, a paleografia estava a princípio confinada a
uns poucos indivíduos, geralmente os curadores ou colecionadores de manuscritos. O ad-
vento da fotografia e da microfilmagem, nos séculos dezenove e vinte, deu grande impulso
aos estudos paleográficos, praticamente eliminando a necessidade das longas e constantes
viagens a bibliotecas, museus e mosteiros para a consulta de manuscritos. Impulso ainda
maior está ocorrendo em nossos dias. A introdução do computador, da fotografia digital e
da internet prenunciam uma era na qual qualquer estudioso, em qualquer parte do mun-
do, poderá visualizar reproduções perfeitas de qualquer página de qualquer manuscrito.
Vários importantes manuscritos já estão assim disponíveis e os recursos têm aumentado
a cada dia.4
Três são os objetivos da paleografia. O primeiro e mais elementar consiste apenas
em permitir ao estudante ou pesquisador contemporâneo a leitura acurada de um texto
antigo, a despeito das eventuais mudanças nos caracteres e outras convenções da escrita,
como pontuação, acentuação e abreviações. Para isso, a disciplina estabelece as técnicas
mediante as quais toda e qualquer letra ou sinal gráfico possa ser identificado e rela-
cionado com equivalentes modernos. O conhecimento da língua do texto é pré-requisito
indispensável.
O segundo objetivo é a datação de manuscritos e a identificação de sua procedência
geográfica. O ponto de partida nesse processo são os manuscritos datados ou cuja data
pode ser relacionada de forma objetiva a determinados eventos ou períodos históricos.5
3 Mark D. McLean, “Palaeography,” ABD, 6 vols. (Nova York: Doubleday, 1992), 5:58-60. Há diversos manuais
de paleografia greco-latina disponíveis; entre os mais acessíveis estão B. A. von Groningen, A Short Manual of
Greek Palaeography, 3a. ed. (Leiden: Sijthoff, 1963) e Metzger, Manuscripts of the GreekBible, mas 0 mais completo
continua sendo Edward M. Thompson, An Introduction to Greek and Latin Palaeography (Oxford: Clarendon, 1912;
reimp., 2002).
4 Um exemplo é 0 Códice Sinaítico, 0 mais antigo manuscrito grego completo do NT (quarto século) e um dos
mais importantes de todos, cujas imagens digitalizadas de alta definição, juntamente com diversos instrumentos de
pesquisa, estão disponíveis no website www.codexsinaiticus.org. A iniciativa é do chamado Projeto Códice Sinaítico,
do Instituto de Conhecimento Textual e Edição Eletrônica (em inglês, Institute for Textual Scholarship and Elec-
tronic Editing, ou ITSEE), vinculado à Universidade de Birmingham e dirigido por David C. Parker.
5 Muitos documentos têm sido encontrados em meio a ruínas arqueológicas que podem ser datadas com bastante
precisão, como é 0 caso do assentamento de Qumran, destruído pelos romanos no ano 68, e de Pompeia e Herculano,
destruídas pelas lavas do Vesúvio no ano 79. Assim, qualquer documento encontrado nesses lugares, desde que 0
estrato arqueológico não esteja comprometido, certamente é anterior ao ano de sua destruição. No caso de Pompeia,
dispomos ainda de um segundo marco histórico. Visto que a cidade foi construída no ano 89 a.C., todos os documentos
ali encontrados devem ter sido escritos entre 89 a.C. e 79 A.D. Embora sempre exista a possibilidade de que alguns
moradores possam ter trazido para a cidade documentos mais antigos, não há nenhuma dúvida de que na maioria
dos casos os textos foram produzidos ali mesmo, no período entre a construção e a destruição da cidade. Para mais
informação, veja C. H. Roberts, Greek Literary Hands: 350 B.C. — A.D. 400 (Oxford: Clarendon, 1956), esp. xi-xvi.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 3
Cultura Oral
6 Para uma descrição mais detalhada da codicologia e sua controversa relação com a paleografia, veja David C.
Parker, An Introduction to the New Testament Manuscripts and Their Texts (Cambridge: Cambridge University Press,
2008), 32-33.
7 Para um estudo das características físicas e visuais dos antigos manuscritos cristãos (segundo e terceiro sé-
culos) de uma perspectiva histórica em conexão com as origens cristãs, veja Larry W. Hurtado, The Earliest Christian
Artifacts: Manuscripts and Christian Origins (Grand Rapids: Eerdmans, 2006).
4 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
que muito mais era falado e ouvido do que escrito e lido. Os poetas escreviam para que
seus textos fossem recitados ou até cantados, não para que fossem lidos,8 e várias outras
composições artísticas não eram sequer escritas, mas preservadas inteiramente de forma
oral. Na política, muito pouco também era escrito e oratória era uma disciplina impres-
cindível para quem quisesse se tornar político ou advogado, prática que remontava aos
tempos da Grécia clássica. Mesmo no período imperial, a Grécia continuou sendo referên-
cia no ensino de oratória. Muitas famílias romanas costumavam enviar seus filhos para
estudar oratória com algum famoso mestre grego, como aconteceu com Cícero e Júlio
César, no primeiro século a.C.9
Tão forte era a ênfase na oralidade que, em alguns círculos, havia até mesmo explícita
desconsideração para com a palavra escrita. Sócrates levou adiante suas indagações filosó-
ficas por meio da conversação e o debate, e não escreveu absolutamente nada. De acordo
com Platão, Sócrates chegou a advertir contra a tentativa de substituir a tradição oral pelos
livros, porque as pessoas deixariam de usar a memória.10 O mesmo sentimento foi expresso
por autores mais próximos do período helenístico, como Xenofontes11 e Diógenes Laércio.12
O próprio Platão atacou a palavra escrita como inadequada para a verdadeira educação e
filosofia;13 ele pode ter publicado sua obra em forma de diálogo exatamente para preser-
var a atmosfera do discurso oral e 0 debate, algo que estava no sangue da cultura grega
(cf. At 17.16-21). Enfim, como declara Ben Witherington, no mundo antigo “a palavra fala-
da era suprema,”14 e os registros escritos não vinham senão em segundo plano.15
Letramento
Não é fácil precisar 0 índice de letramento no período helenístico, tanto por causa
da precariedade das evidências disponíveis quanto pela abrangência de significado
8 Na verdade, era a recitação (recitatio), não 0 livro, que tomava o autor famoso (veja Tácito, Dial. 10.1-2).
9 Com 0 tempo, a oratória acabou perdendo um pouco da sua oralidade, por assim dizer, visto que a demanda
por discursos mais bem elaborados fez com que os oradores passassem a preparar pelo menos algumas anotações
antes de falar (veja Cícero, Brut. 91). Quintiliano, porém, conquanto permita que 0 orador use anotações, reconhe-
ce que ainda é preferível recitar 0 discurso de cor (/nst.2.7.1-5).
14 Ben Witherington, The New Testament Story (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), 3.
15 Sobre a oralidade no período greco-romano, veja, e.g., Rosalind Thomas, Literacy and Orality in Ancient
Greece, KTAH (Cambridge: Cambridge University Press, 1992).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 5
do termo. Certamente havia tanto na Grécia quanto na Roma antigas, mesmo entre
as classes mais baixas, várias pessoas que sabiam, pelo menos, escrever o próprio
nome. Também havia aquelas que tinham noções básicas de leitura e escrita, atributo
daqueles que são alfabetizados. Letramento, porém, vai além de mera alfabetização
para incluir também o uso frequente e competente da leitura e da escrita. Ou seja, uma
pessoa letrada é aquela que consegue ler e compreender inclusive textos mais longos e
complexos. Mesmo no caso de uma definição mais ampla, porém, que envolva a leitura
e compreensão de textos de complexidade média, tal habilidade, no período que en-
volve 0 NT, estava essencialmente limitada às pessoas do sexo masculino pertencentes
às classes aristocráticas. Segundo William V. Harris, cujo estudo se tornou referência
no assunto,16 o índice de letramento, no período em questão, raramente excedia a 10%
da população. Mesmo nos centros helenísticos mais escolarizados, tal índice nunca
era superior a 20% ou, quando muito, 30%, ao passo que nas províncias ocidentais do
Império Romano talvez não chegasse sequer a 5% ou 10%.
O letramento, porém, não estava confinado às populações masculinas das cama-
das mais altas da sociedade. Várias mulheres pertencentes à mesma classe social
também eram letradas, embora seu número fosse consideravelmente inferior ao
dos homens. Quanto às populações mais simples, as chances de haver pessoas com
boa habilidade de ler e escrever eram maiores entre aqueles que também estavam
ligados à elite social. A grande maioria dos milhões de escravos e estrangeiros em-
pregados na sociedade romana era iletrada, mas vários deles eram bem preparados
e instruídos;17 estes quase sempre pertenciam às famílias mais ricas e eram desig-
nados para trabalhar como mordomos de confiança, administradores de fazendas
ou estabelecimentos comerciais, músicos, mestres de navios e até como bancários.
Além desses, algumas classes profissionais também exigiam domínio da escrita e
leitura, como os engenheiros, médicos, advogados, agentes fiscais e outros, em-
bora haja evidências de que alguns artesãos, comerciantes e agricultores também
possuíam níveis mais baixos de instrução. Para a grande maioria das pessoas, po-
rém, “a palavra escrita continuava inacessível.”18 Durante os dois ou três séculos fi-
nais do Império Romano, os níveis de letramento encolheríam ainda mais e durante
toda a Idade Média a habilidade de ler e escrever estaria confinada a uns poucos
centros cristãos, em especial as comunidades monásticas espalhadas pela Europa e
parte do Oriente Médio.
17 O percentual de escravos no Império Romano tem sido tradicionalmente estimado em cerca de 20% da po-
pulação. Walter Scheidel fala em 10% de uma população de aproximadamente sessenta milhões de pessoas. Ainda
segundo Scheidel, só na Itália havia algo em torno de três milhões de escravos (“Quantifying the Sources of Slaves
in the Early Roman Empire,” JRS 87 [1997]: 156-169).
Uso da Escrita
Mesmo com a ênfase na oralidade e o baixíssimo nível cultural das pessoas em geral,
tanto os gregos quanto os romanos conseguiram produzir um extraordinário volume de
material escrito. Os autores eram prolíficos e escreviam sobre quase tudo, de medicina e
história a culinária e criação de cavalos, embora o que conhecemos não represente senão
uma pequena fração daquilo que foi produzido.19 Foi no período romano que 0 mercado
literário começou a se organizar e livros passaram a ser reproduzidos em escala comercial
pelos chamados scriptoria, que eram casas especializadas na produção de livros, com es-
cribas treinados e equipados com os mais variados tipos de papiros, penas e tintas. Num
scriptorium, vários copistas escreviam simultaneamente enquanto 0 texto lhes era ditado,
o que tornava o trabalho bem mais simples e dinâmico, embora não necessariamente isen-
to de problemas.20
A cultura continuava sendo predominantemente oral e os livros continuavam restritos
a uma minoria privilegiada. A grande massa da população continuava tendo pouco ou
nada que ver com os domínios do texto escrito, mas, sob os romanos, 0 uso da escrita se
tornou bem mais frequente e diversificado. “Não seria nenhum exagero dizer,” declara
Harris, “que a cultura [romana] era caracterizada pela palavra escrita.”21 Com o cres-
cimento do império, os registros oficiais se tornaram necessários a fim de viabilizar as
atividades administrativas e políticas. Quase tudo dependia da escrita: assuntos jurídicos,
emissão de leis e decretos, cobrança de impostos, manutenção do exército e questões en-
volvendo o governo das muitas cidades e províncias, que com frequência exigia 0 uso de
correspondência oficial. No âmbito civil, muitas também eram as oportunidades para 0
uso da escrita: contratos de trabalho, documentos pessoais, administração de proprieda-
des e valores e outras questões envolvendo estabelecimentos comerciais ou produção agrí
19 “Para cada folha de pergaminho ou papiro que foi preservada até aos dias de hoje,” declara Douglas C. Mc-
Murtrie, “é seguro dizer que milhares de outras se perderam para sempre. O desgaste do tempo, os excessos das
conquistas militares, o fanatismo religioso, a fúria do fogo e das inundações, e a negligência dos tolos e ignorantes,
tudo teve seu custo, e 0 que restou não é senão um fragmento dos registros uma vez escritos nas eras passadas” (The
Book: The Story of Printing and Bookmaking, 3a. ed. [Londres: Oxford University Press, 1943], 82-83). Em Esmirna,
e.g., foi encontrado 0 epitáfio de um médico romano por nome Hermógenes, filho de Charidemo, que escreveu
nada menos que 77 tratados médicos, além de uma grande variedade de livros históricos e geográficos. Tudo 0 que
restou, porém, foi 0 epitáfio. Mais nada.
20 Muitos autores e leitores da época protestavam contra a quantidade de erros escribais nos livros. Se 0
livro era em latim, a culpa costumava recair sobre os escribas estrangeiros (geralmente gregos) que suposta-
mente não dominavam muito bem a língua. Numa carta para 0 irmão, Cícero se queixou: “Eu já não sei mais
a quem recorrer para livros latinos. As cópias no mercado são demasiadamente imprecisas.” Ele se referiu a
essas cópias como “livros repletos de mentiras” (.Quint. 3.5). É claro, porém, que nem todas as cópias eram
feitas mediante ditado e a queixa de Cícero pode muito bem envolver também cópias visualmente produzidas.
T. C. Skeat salienta que os erros da maioria dos manuscritos produzidos por ditado são superficiais; “quando
eliminados, 0 texto resultante é de muito boa qualidade” (“The Use of Dictation in Ancient Book Production,”
PBA 42 [1956]: 207).
cola, recibos, cartas, material didático, enfim, uma longa lista, que podería incluir ainda
diversos usos no âmbito religioso.22
Escribas
A difusão do uso de materiais escritos no período romano abriu as portas para a proli-
feração da atividade escribal nos mais diferentes círculos governamentais e civis. Quando
a Grécia caiu sob 0 domínio romano, foi Roma que acabou sucumbindo ante a influência
da cultura e os ideais gregos. O alfabeto, os pesos e medidas, a cunhagem de moedas, 0
comércio, táticas de guerra, a construção de navios, os muitos deuses e cultos, a filosofia
(principalmente o epicureanismo e o estoicismo), a educação, as artes, a política, a arqui-
tetura (residencial e pública), o modo de se vestir, tudo foi influenciado pelos gregos.23
Até a língua grega se tornou comum em Roma, especialmente nas classes mais elitizadas
da sociedade. Grandes quantidades de livros gregos foram trazidos para Roma e, para
reproduzi-los, os romanos utilizavam preferencialmente a mão de obra dos próprios gre-
gos trazidos como escravos.
Escravos gregos eram muito procurados e, por conseguinte, eram caros. Muitos deles
eram muito mais cultos e letrados que seus próprios possuidores. Entre a aristocracia
romana, era bastante comum famílias terem seus próprios médicos gregos e professores
da língua grega. Um quadro completo de copistas (de um scriptorium) representava consi-
derável investimento. Horário protestou contra os valores pagos por escravos que tinham
algum conhecimento de grego.24 De acordo com Sêneca, até cem mil sestércios podiam ser
pagos por escravos versados na literatura grega, o que era um “preço fabuloso.”25 Alguns
escravos eram treinados como calígrafos desde a infância. Mesmo sendo escravos, porém,
eles costumavam ser pagos pelo serviço, embora a remuneração fosse baixa, especial-
mente nos primeiros tempos do império. Mais tarde, a remuneração ficou mais generosa.
Num edito sobre preços e valores promulgado no ano 301, o Imperador Diocleciano fixou
em 25 denários o valor que deveria ser pago ao escriba para cada cem linhas de texto de
22 E.g., profecias, dedicações, orações, hinos, mágicas, textos epigráficos referentes ao culto imperial e diversos
materiais escritos preservados em relicários e templos pagãos. Segundo Ramsay MacMullen, só em latim existem
cerca de 250 mil textos religiosos publicados referentes ao antigo Império Romano (Paganism in the Roman Empire
[New Haven: Yale University Press, 1981], 5).
23 Muito conhecida é a declaração de Horácio: “A Grécia conquistada conquistou seus rudes conquistadores”
(Fp. 2.1). Para mais informação, veja Charles Freeman, The Greek Achievement: The Foundation of the Western World
(Nova York: Penguin, 1999), 389-433.
25 Sêneca, Ep. 27. Na época de Sêneca, cem mil sestércios (moedas de bronze) equivaliam aproximadamente a
mil moedas de ouro, os chamados áureos. Cada áureo pesava em média 7,90 grs.
8 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
boa qualidade; se o trabalho fosse de qualidade inferior, 0 escriba deveria receber apenas
vinte denários.26
Apesar de várias cópias poderem ser preparadas simultaneamente (por meio do ditado)
e da quase sempre baixa remuneração dos escribas, o preço final dos livros no período ro-
mano era considerável. E dois eram os motivos para isso: o investimento que precisava ser
feito na infraestrutura e captação de mão de obra especializada e o alto custo dos insumos
utilizados na produção de livros, principalmente 0 papiro. Apesar de algumas declarações
ao contrário,27 o papiro, material de escrita mais utilizado nos tempos antigos, deveria
ser relativamente caro para a maioria das pessoas, mesmo no Egito, que era 0 principal
fornecedor do produto. Em Tebtunis, por exemplo, importante cidade egípcia do período
ptolomaico, um rolo de papiro custava, na virada do primeiro século, quatro dracmas, ao
passo que uma folha apenas custava dois obols. Considerando que, nessa época, um traba-
lhador qualificado recebia cerca de seis obols por dia, e um não qualificado três, o preço
do papiro mesmo para os egípcios era significativo: uma única folha (em branco) equivalia
mais ou menos ao que hoje se paga por um livro de tamanho médio.28 Em lugares como a
Grécia, Ásia Menor ou Itália, portanto, o preço do material certamente deveria ser ainda
mais alto. Ou seja, 0 papiro não era 0 material de escrita das pessoas comuns, mas apenas
das classes mais elitizadas.
A introdução do pergaminho, ao redor do segundo século a.C., não parece ter ajudado
muito. A despeito de suas óbvias vantagens sobre 0 papiro, o pergaminho não se impôs
como material de escrita senão muito lentamente. Tão grande era a fascinação com o
papiro, em uso já por muito tempo, que levou séculos para que a sociedade greco-romana
em geral passasse a empregar o pergaminho em larga escala na produção de livros. Na
segunda metade do segundo século, o médico e filósofo Galeno ainda declarava que, por
ser brilhante, o pergaminho ofuscava os olhos muito mais que o papiro, que não refletia a
luz.29 E no final do quarto século, numa carta ao amigo Romaniano, Agostinho chegou a
se desculpar por utilizar pergaminho em vez de papiro.30 Como salienta David Diringer, o
pergaminho na verdade competia mais com as tabuinhas de cera que com o papiro e era
26 Na época de Diocleciano, 25 denários era mais ou menos o que um trabalhador comum recebia por dia.
Trabalhadores qualificados podiam receber até seis vezes esse valor.
27 Naphtali Lewis, e.g., declara que “nos meios sociais mais elevados que aquele de um próspero aldeão egípcio,
a compra do papiro não parece que era considerada um gasto de maiores implicações” (Papyrus in Classical Antiqui-
ty [Oxford: Clarendon, 1974], 133-134).
28 Sobre os papiros de Tebtunis, veja Arthur E. R. Boak, Papyri from Tebtunis, parte 1 (Ann Arbor: University of
Michigan Press, 1933), 98.
29 Galeno, Op. 3.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 9
usado a princípio apenas para textos mais triviais, como registros contábeis ou anotações
diversas. Não para livros.3031
Bibliotecas
Desde o período da antiguidade clássica e através de toda a Idade Média, sempre houve
inúmeras bibliotecas cujo rico acervo era usado para propósitos educativos ou científicos;
essas bibliotecas muito contribuíram para a preservação da literatura antiga. Na Grécia,
há vários registros de bibliotecas a partir do quinto século a.C., todas particulares, como a
do poeta Eurípedes ou do filósofo Aristóteles. Em Roma, as bibliotecas particulares remon-
tam ao segundo século a.C., e se tornaram uma verdadeira coqueluche entre as famílias
aristocráticas. Sêneca protestou contra a prática daqueles que construíam bibliotecas por
mera ostentação, com prateleiras de madeira cítrica decoradas com marfim e que iam até
o teto, abarrotadas de livros (rolos de papiro) que nunca eram lidos.32
As bibliotecas públicas vieram pouco depois, tanto entre os gregos quanto entre os
romanos. No período helenístico, as dinastias diádocas, especialmente no Egito e Ásia
Menor, encheram suas cortes com os tesouros da cultura grega. Em Roma, as primeiras
bibliotecas públicas parece que surgiram apenas no período imperial. Durante 0 reinado
de Augusto, o primeiro imperador romano, havia diversas bibliotecas próximas ao fórum
de Roma. Otávia, irmã de Augusto e uma das mais destacadas mulheres na história roma-
na, construiu uma biblioteca pública em Roma em homenagem ao filho Marcelo, falecido
em 23 a.C. Em 132 A.D., o Imperador Adriano presenteou Atenas com uma magnificente
biblioteca, muito famosa na antiguidade.33 O edifício media aproximadamente dez mil
metros quadrados, e o que restou dele ainda hoje causa profunda admiração. A maior de
todas, porém, foi mesmo a famosa biblioteca real de Alexandria, construída no terceiro
século a.C. A coleção, estimada em várias centenas de milhares de volumes, a grande
maioria de autores gregos, exerceu importante papel não apenas cultural mas também
político: ela muito contribuiu para helenizar a terra do Nilo. A biblioteca existiu por
mais de seiscentos anos, tendo sobrevivido a vários incêndios e destruições parciais. Sua
30 “Esta carta evidencia a escassez de papiro, não que o pergaminho seja abundante por aqui. As placas de
marfim eu usei numa carta para o seu tio. Você estará ainda mais pronto a me desculpar por usar este fragmento de
pergaminho porque 0 que escrevi a ele não podia esperar e pensei que não escrever para você enquanto não tivesse
material melhor seria um grande absurdo. Se, porém, qualquer das minhas placas estiver com você, gentilmente
peço que as envie para mim” (Agostinho, Ep. 15.1).
32 “Hoje em dia,” diz Sêneca, “assim como banheiros e água quente, uma biblioteca se tomou um equipamento
indispensável numa casa sofisticada” (Tranq. 9.4-7).
33 De acordo com Pausânias, 0 edifício tinha cem colunas de mármore frígio; as paredes, também de mármore,
eram decoradas com estátuas e afrescos, e a abóbada do átrio central, com ouro e alabastro (Descr. 1.18.9).
10 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
existência chegou ao fim no ano 391, quando o Imperador Teodócio ordenou a destrui-
ção de todos os templos pagãos (i.e., não cristãos) espalhados pelo império.34 Durante a
Idade Média, as principais coleções de livros tanto clássicos quanto cristãos estavam em
poder das inúmeras comunidades monásticas espalhadas pelo Oriente Médio e Europa
Ocidental. Foi dessas comunidades a tarefa de preservar e transmitir aquilo de que hoje
dispomos.
Os Livros do NT
Desde o início, o cristianismo sempre foi caracterizado por uma profunda identifica-
ção com palavra escrita, o que não foi senão apenas mais um dentre os muitos legados
herdados do judaísmo. A reprodução dos textos sagrados, especialmente as Escrituras, era
parte integrante da religião judaica, que não era inteiramente dominada pela cultura oral,
como às vezes se assume. Birger Gerhardsson demonstra que havia no judaísmo do se-
gundo templo uma dinâmica interação entre as culturas falada e escrita. Ele admite que a
tradição oral muito contribuiu para o surgimento da religião judaica, mas argumenta que
bem antes da era cristã a tradição escrita já exercia forte influência, complementando e
até mesmo controlando a tradição oral.35 Em parte, isso era possível por causa do elevado
índice de letramento predominante entre os judeus. Embora os números não sejam muito
claros, há pouca ou nenhuma dúvida de que a habilidade de ler e escrever era bem mais
difundida entre os judeus que entre seus contemporâneos greco-romanos.36 Por volta do
primeiro século, o judaísmo conseguira desenvolver um forte interesse na educação básica
de modo que até mesmo pequenas comunidades tinham centros de instrução, quase sem-
pre ligados às sinagogas.37
Com o cristianismo não foi diferente, embora ao a igreja cruzar as fronteiras ju-
daicas, tanto palestinas quanto da diáspora, e passar a incorporar grandes levas de
34 John J. Norwich sugere que a destruição se deu durante os tumultos antiarianos que ocorreram em Ale-
xandria após a promulgação do decreto de 391 (Byzantium: The Early Centuries [Nova York: Knopf, 2005], 314).
35 Birger Gerhardsson, Memory and Manuscript: Oral Tradition and Written Transmission in Rabbinic Judaism
and Early Christianity, trad. Eric J. Sharpe (Lund: Gleerup, 1964), 19-32.
36 “Seria arriscado dizer que 0 judaísmo do primeiro século mantinha um sistema de educação pública altamen-
te organizado, mas as razões e oportunidades de se tornar letrado presentes na sociedade judaica não existiam, pelo
menos não na mesma medida, na sociedade greco-romana, o que significa que 0 índice de letramento era mais alto
entre os judeus que entre os gentios” (Harry Y. Gamble, Books and Readers in the Early Church: A History of Early
Christian Text [New Haven: Yale University Press, 1995], 7). Em seu abrangente estudo, Catherine Hezser assume
a posição minimalista de que o índice de letramento dos judeus do período do segundo templo era, na verdade,
inferior ao das populações greco-romanas (Jewish Literacy in Roman Palestine, TSAJ 81 [Tubingen: Mohr, 2001],
496). Suas conclusões, porém, não têm recebido suficiente apoio: elas se baseiam, acima de tudo, numa visão de-
masiadamente pessimista do sistema educacional judaico no período em questão. Hezser também tem sido cobrada
por negligenciar importantes evidências literárias do mesmo período, as quais não condizem com suas conclusões
(aparentemente) já previamente estabelecidas (veja, e.g., H. Gregory Snyder, Resenha de Jewish Literacy in Roman
Palestine, de Catherine Hezser, JBL 121 [2002]: 559-562).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO וו
conversos gentílicos, o letramento dos membros possa ter diminuído até aos índices
prevalecentes nas sociedades greco-romanas. Mesmo assim, não houve qualquer dimi-
nuição no entusiasmo ou devoção para com a cultura escrita. Os cristãos do primeiro
século continuaram sendo ardorosos usuários das Escrituras (judaicas), visto que era
por meio delas que eles justificavam sua existência e demonstravam a validade de sua
fé. Com o rápido crescimento da igreja, eles também logo tiveram de implementar
meios de comunicação escrita para manter, tanto quanto possível, a unidade doutri-
nária entre as várias comunidades espalhadas pelo mundo mediterrâneo, e foi assim
que eles começaram a ampliar seu rol de textos sagrados, produzindo aqueles que mais
tarde comporiam 0 que hoje chamamos de NT. As maiores dificuldades parece que eram
geradas mesmo pelo baixo poder aquisitivo dos membros em geral,3738 bem como pela
condição de religio ilícita conferida pelo império. As limitações financeiras somadas à
intolerância governamental não deixavam à igreja outra opção na hora de reproduzir
seus escritos senão a de utilizar mão de obra doméstica, amadora. Até o reconhecimen-
to oficial da igreja pelo império, no início do quarto século, nem sempre os livros cris-
tãos puderam ser reproduzidos nos scriptoria por escribas profissionais ou pelo menos
mais bem treinados.
A partir do segundo século, academias ou centros de educação em assuntos bíblicos
ou teológicos começaram a se formar ao redor de algumas pessoas com boa formação
cultural, tais como Valentino, Ptolomeu, Justino e Clemente. Embora as evidências sejam
precárias, não há porque duvidar que tais centros abrigavam aquelas que talvez tenham
sido as primeiras bibliotecas cristãs, onde inclusive atividades de produção e reprodução
de textos eram realizadas.39 No terceiro século, Orígenes fundou em Cesareia uma impor-
tante escola teológica cuja biblioteca se tornou referência no mundo cristão. Inúmeras có-
pias bíblicas e patrísticas foram ali produzidas até sua destruição pelos árabes, no sétimo
século. A partir de então e durante toda a Idade Média, a tarefa de copiar e preservar os
livros bíblicos esteve quase que inteiramente ligada à atividade monástica. Praticamente
cada mosteiro tinha uma biblioteca e um scriptorium. A regra, porém, não era mais a utili-
zação do ditado, mas sim o preparo de cópias visuais. Até hoje, diversos mosteiros ortodo-
xos e católicos ainda preservam importantes coleções de manuscritos bíblicos, patrísticos
e mesmo clássicos.40
37 Sobre o sistema educacional judaico, veja Gehardsson, 56-66, e esp. S. Safrai, “Education and the Study of
the Torah,” em The Jewish People in the First Century: Historical Geography, Political History, Social, Cultural and
Religious Life and Institutions, 2 vols., ed. S. Safrai e M. Stern, CINT 1 (Assem: Van Gorcum, 1974-1976), 2:945-970.
38 Não se deve pensar, porém, que o cristianismo primitivo crescia apenas entre as massas pobres e iletradas do
Império Romano. Especialmente nos centros urbanos, a fé cristã atraía conversos das mais diferentes classes sociais,
sendo a maioria das classes intermediárias. A igreja, portanto, não era nem um movimento proletário, nem uma
agremiação aristocrática (veja Wayne A. Meeks, The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul, 2a.
ed. [New Haven: Yale University Press, 2003], esp. 51-73)
M ateriais de Escrita
Diversos materiais foram usados na antiguidade para receber a escrita, como tabui-
nhas de barro, pedra, osso e madeira (recobertas ou não de estuque ou cera), vários tipos
de metais, couro e pedaços de cerâmica. No caso dos manuscritos do NT, os materiais mais
utilizados foram o papiro e o pergaminho. O papel só entrou em cena na parte final da
Idade Média.441
0
Papiro
40 Em Guardians of Letters: Literacy, Power, and the Transmitters of Early Christian Literature (Oxford: Oxford
University Press, 2000), 79-91, Kim Haines-Eitzen estabelece uma dicotomia questionável entre scriptoria formais
e 0 preparo privado, amador de cópias bíblicas, 0 que faz com que ela adote uma posição minimalista quanto à
possibilidade da produção de textos cristãos por escribas profissionais no segundo e terceiro séculos. Todavia,
mesmo que 0 cristianismo não dispusesse de nenhum scriptorium no sentido em que 0 termo veio a ser entendido
após 0 quarto século e principalmente durante a Idade Média (na verdade, nós não sabemos), não há porque negar
a existência entre alguns cristãos mais cultos e ligados a centros bíblicos ou teológicos de estruturas organizadas e
confiáveis capazes de produzir cópias bíblicas de excelente qualidade.
41 O “papel” empregado pelo apóstolo João (2J0 12) era na verdade de papiro. A propósito, a palavra “papel,”
originariamente “paper,” como em inglês, consiste apenas numa forma modificada do latim papyrus, que nada mais
é senão uma transliteração do grego πάπυρος.
42 Não é de todo impossível, porém, que Paulo já houvesse utilizado 0 pergaminho para algumas de suas Epísto-
las. Karl E Donfried apresenta várias evidências de que a palavra σκηνοποιός, empregada em At 18.3 e comumente
traduzida como “fabricante de tendas,” deveria ser expandida para incluir também a ideia de “coureiro,” ou seja,
aquele que trabalha com a manufatura do couro. Como tal, Paulo já podería ele mesmo haver preparado alguns
pergaminhos e os empregado para escrever suas Epístolas (“Paul as Σκηνοποιός and the Use of the Codex in Early
Christianity,” em Christus Bezeugen: Festschrift fur Wolfgang Trilling zum 65. Geburtstag, ed. Karl Kertelge et al., ETS
59 [Leipzig: St. Benno, 1989], 249-256).
44 André Lemaire, “Writing and Writing Materials,” ABD, 6 vols. (Nova York: Doubleday, 1992), 6:1003.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 13
caule, que era cortada em tiras estreitas e postas em duas camadas transversais sobre uma
superfície plana. A seguir eram prensadas com algum instrumento geralmente de madeira
e a substância glutinosa da medula fazia com que as camadas se colassem.4546 Depois de
seca ao sol, a folha era alisada com um osso ou pedra, ficando então pronta para receber
a escrita.47 Nos dias de Plínio, havia nada menos que nove variedades de folhas de papiro
disponíveis no mercado. Quanto mais fina, firme, branca e lisa, melhor.48
O tamanho das folhas dependia de sua qualidade e da finalidade a que eram desti-
nadas. Em geral, tinham de 13 a 30 cm de largura, mas folhas de até 45 cm podiam ser
encontradas. Como regra, só se escrevia sobre o lado em que as fibras eram horizontais,
as quais se adaptavam melhor à escrita horizontal e também serviam de guia para que o
escriba (γραμματεύς) produzisse linhas retas, ou quase retas. A tinta (μέλαν; cf. 2C0 3.3;
2J0 12) era preparada com fuligem, goma e água; eventualmente alguma substância me-
tálica também podia ser utilizada. E o instrumento de escrita era uma pequena cana
(κάλαμος; cf. 3J0 13) de 15 a 40 cm de comprimento, que procedia de uma planta pro-
duzida principalmente no mesmo Egito. Outros utensílios incluíam uma faca (γλΰφανος
ou σμίλη) para cortar e apontar a cana de escrever, pedra-pomes (κίσηρις) para alisar a
folha, um tinteiro (μελανοδόκον ou μελαδοχεΐον) e uma esponja (σπόγγος) para corre-
ções e remoção do excesso de tinta. Estojos de copistas são bem conhecidos de relevos
em monumentos e murais, como os de Herculano, junto ao Vesúvio, e de amostras que
sobreviveram.
Quanto à durabilidade, é comum ouvir dizer que o papiro era um material bastante frágil,
que perdia a cor e se desintegrava com facilidade.49 O poeta romano Juvenal (c.60-c,140) é
normalmente citado como tendo feito alusão a isso.50 Tal noção, porém, com frequência
45 O termo χάρτης também podia ser usado para designar 0 material em si, visto que, em última análise, uma
folha de papiro era 0 papiro já pronto para receber a escrita. Esse é 0 sentido da palavra em 2J0 12, daí a tradução
“papel” em praticamente todas as versões da Bíblia. O equivalente latino de χάρτης era charta, de onde vem a pala-
vra “cartório,” que basicamente designa um lugar onde se prepara e se guarda papéis forenses.
46 Plínio fala que as camadas se colavam porque eram molhadas com água do Nilo (Nat. 13.1112)־. A água
do Nilo, porém, não tem nenhuma propriedade adesiva. Quanto muito, ela era usada para ajudar a umedecer as
camadas para facilitar 0 processo de colagem. Nenhuma cola era necessária, declara E. G. Turner (Greek Papyri: An
Introduction [Oxford: Clarendon, 1968], 3).
47 A planta de papiro, ou às vezes apenas a medula da planta, também era conhecida como βίβλος ou βήβλος.
Uma vez que 0 uso mais comum do papiro era para fazer livros, essas palavras, juntamente com os respectivos
diminutivos βιβλίον/βυβλίον, vieram a significar apenas “livro.” Lucas, e.g., usa ambas as formas para se referir
aos rolos de pele animal de livros do AT (βίβλος: Lc 3.4; 20.42; At 1.20; βιβλίον: Lc 4.17,20). De βιβλίον derivam
palavras como “Bíblia,” “bibliografia” e “biblioteca."
48 Plínio, Nat. 13.23. Fato curioso mencionado por Turner é que os papiros mais antigos são também os melho-
res. A qualidade das folhas de papiro do período romano, e.g., é bem inferior à dos papiros do período ramessita,
cerca de mil anos antes (Greek Papyri, 2).
49 E.g., H. L. Pinner, The World of Books in Classical Antiquity (Leiden: Sijthoff, 1948), 13.
50 Juvenal se refere ao esforço inútil de pedir aos poetas que economizem papiro, “que, de qualquer forma, vai
se deteriorar” (Sat. 1-21).
14 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
baseada em espécimes de quase dois mil anos, é certamente equivocada. É verdade que
o papiro, assim como 0 papel, não suportava a umidade e 0 mofo, mas, em clima seco e
quente, muito tempo era necessário para que ele se fragilizasse e se tornasse quebradiço.
Quando usado e preservado em condições normais, o papiro era um produto de excelente
qualidade e bastante durável, como o próprio Plínio atestara. Ele declara haver visto do-
cumentos de quase duzentos anos, sem qualquer indicação de que já estivessem significa-
tivamente deteriorados.51
O uso do papiro como material comum para a escrita continuou até que os árabes con-
quistassem 0 Egito no ano 641, quando sua exportação se tornou praticamente impossível.
Desde o quarto século, porém, ele já vinha sendo usado quase que exclusivamente para
a literatura clássica secular; bem poucos são os manuscritos do NT desse período confec-
cionados em papiro. A primeira descoberta de papiros em tempos modernos ocorreu em
1778, em Faium, província egípcia.52 Alguns nativos teriam descoberto uma caixa de sicô-
moro enterrada contendo cerca de cinquenta rolos de papiros. Como não houvesse merca-
do para eles, todos foram destruídos por causa, segundo se diz, do cheiro agradável que
o papiro produz ao ser queimado. Apenas um rolo sobreviveu e acabou sendo repassado
por um comerciante de antiguidades ao Cardeal Stefano Borgia, por isso ficou conhecido
como Charta Borgiana. Esse foi 0 primeiro papiro grego publicado na Europa (1788). Seu
conteúdo, porém, não despertou muito interesse, pois consistia apenas numa lista de cam-
poneses empregados num projeto de irrigação em Faium, no ano 191.
Desde essa descoberta, milhares de papiros têm sido encontrados, sobretudo no pró-
prio Egito, onde 0 clima seco favoreceu sua preservação. Vários deles contêm textos lite-
rários, mas os mais numerosos são os papiros não literários, ou seja, documentos comuns
como cartas, recibos, contratos, certidões de nascimento, casamento, divórcio e falecimen-
to, procedimentos jurídicos e anotações pessoais. Tais documentos muito contribuíram
para a compreensão do grego do NT, que em sua maior parte também reflete uma lin-
guagem mais coloquial que literária. Os papiros com textos bíblicos e, por isso, relevantes
para a crítica textual são em número bastante reduzido, além de se tornarem conhecidos
somente a partir do final do século dezenove.53 Eles não representam sequer 2% de todos
51 Plínio, Nat. 13.83. Outra surpreendente indicação da resistência e durabilidade do papiro vem de Qumran:
uma tira desse material foi colada no verso de um dos rolos de couro ali encontrados (4QSama) para servir de
reforço.
52 Poucos anos antes (1752), uma biblioteca inteira de rolos de papiro (gregos) foi descoberta entre as ruínas
de Herculano. Apesar de carbonizados durante a erupção do Vesúvio no ano 79, que destruiu e soterrou a cidade,
vários deles puderam ser desenrolados e decifrados. Quase todos eram tratados filosóficos epicureus.
53 O primeiro papiro do NT veio à luz em 1868; era apenas um pequeno fragmento do sétimo século conten-
do 62 versículos de 1C0 1-7. Nos trinta anos seguintes, apenas mais quatro fragmentos se tornaram conhecidos,
sendo que nenhum era anterior ao quarto século e juntos não continham senão apenas outros sessenta versículos
do NT. A situação começou a mudar em 1897, com a descoberta dos primeiros papiros de Oxyrhynco, no Egito; até
o momento mais de quarenta dos papiros ali encontrados já foram identificados como sendo neotestamentários.
Duas das mais importantes coleções de papiros do NT, porém, os papiros Chester Beatty e Bodmer, só viriam a ser
descobertas no século seguinte, respectivamente nas décadas de 1930 e 1950.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 15
os manuscritos gregos do NT, mas são de grande importância por causa da antiguidade e
qualidade do texto.
Pergaminho
54 Também chamado διφθέρα, μεμβράνη (cf. 2Tm 4.13), δέρμα e δέρρις, embora essas duas últimas fossem
mais usadas para pele animal não tratada ou com pouco tratamento (cf. Hb 11.37).
papiro, 0 mesmo acontecendo mais tarde, no período greco-romano, exceto entre os ju-
deus, que desde os tempos do AT utilizavam rolos de pele animal para suas Escrituras. A
Carta de Aristeias, escrita provavelmente no final do segundo século a.C. para contar da
tradução do Pentateuco hebraico para o grego feita no Egito, diz que a divina Torah existia
entre os judeus palestinos escrita “em pele em letras hebraicas.” Mais adiante, Aristeias
fala das “preciosas peles, nas quais a Torah estava escrita em letras de ouro em caracteres
hebraicos.”5758 Entre os rolos do Mar Morto, embora alguns manuscritos sejam de papiro, a
grande maioria é de pele, como 0 rolo de Isaías (lQIsaa), que mede 26 cm de largura por
7,34 m de comprimento (cf. Lc 4.17). Segundo a ordenança talmúdica,59 a Torah destinada
a uso litúrgico deve ser escrita em pele de animal cerimonialmente limpo.60
Entre os gregos e romanos, porém, a predominância era mesmo do papiro. Há uma
citação de Heródoto segundo a qual parece que os gregos consideravam uma “barbárie”
a utilização de pele animal em qualquer de suas formas como material de escrita.61 Essa
pode ter sido uma das razões pelas quais o pergaminho demorou para ganhar espaço na
produção de livros. A outra pode ter sido os custos de sua produção, que eram bem mais
altos que os do papiro. Uma cabra ou ovelha provia pele para não mais que dois fólios du-
pios de pergaminho de tamanho médio (25 x 19 cm), ou seja, quatro folhas.62 Isso significa
que para a confecção de um manuscrito completo da Bíblia eram necessárias peles de 150
a duzentos animais. Manuscritos maiores requereríam o dobro disso. O chamado Códice
Sinaítico, por exemplo, que mede 43 x 38 cm e tinha originalmente 730 folhas (1460
páginas), requereu peles de mais ou menos 360 animais. Seja como for, o pergaminho só
veio a se tornar o principal material de escrita a partir do quarto século, mantendo sua
predominância até o fim da Idade Média, quando foi suplantado pelo papel.
Quando o imperador Constantino encarregou, em 331, 0 bispo Eusébio de Cesareia de
providenciar cinquenta cópias das Escrituras para as igrejas de sua recém-inaugurada ca-
pitai junto ao Bósforo, Constantinopla, conta-nos Eusébio haverem sido elas requeridas em
pergaminho.63 Jerônimo, pouco depois, relata que os volumes da biblioteca que procedia
57 Veja C. H. Roberts e T. C. Skeat, The Birth of the Codex (Londres: The British Academy, 1983), 5-6. Jack
Finegan acredita que a história contada por Plínio, de que 0 pergaminho foi “inventado” por causa dos ciúmes do
Ptolomeu do Egito, tenha “um carácter romântico” e, por isso, “não deve ser tomada literalmente” (Encountering
New Testament Manuscripts: A Working Introduction to Textual Criticism [Londres: SPCK, 1974], 25). Roberts e Skeat
vão mais longe. Para eles, a história de Plínio chega mesmo a ser “absurda” (6).
58 Uma versão em inglês da Carta de Aristeias pode ser encontrada em R. J. H. Shutt, “Letter of Aristeas,” em
The Old Testament Pseudepigrapha, 2 vols., ed. James H. Charlesworth (Nova York: Doubleday, 19832:7-34 ,(1985־.
59y.Meg. 1:9.
60 Ernst Wurthwein, The Text of the Old Testament: An Introduction to the Bíblia Hebraica, trad. Erroll F. Rhodes
(Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 7-9.
62 Kurt Aland e Barbara Aland, The Text of the New Testament: An Introduction to the Critical Editions and to the
Theory and Practice of Modern Textual Criticism, 2a. ed., trad. Erroll F. Rhodes (Grand Rapids: Eerdmans, 1989), 77.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 17
de Orígenes e Panfílio, em Cesareia, foram substituídos, pelo bispo Acácio e seu sucessor
Euzoio, por outros escritos em pergaminho.6364 O trabalho foi realizado aproximadamente
entre os anos 340 e 380 à custa de grandes gastos, mas se conseguiu assim evitar que as
obras, então em papiro, se perdessem. Diringer atribui o que chamou de “vitória final do
pergaminho sobre 0 papiro na esfera da produção de livros” ao fato de a igreja cristã ha-
ver adotado o pergaminho para escrever seus livros sagrados.65 Cerca de 75% de todos os
manuscritos gregos conhecidos são em pergaminho.66
A escrita sobre o pergaminho era feita com penas de bronze ou cobre; também se uti-
lizavam remígios de ganso, que depois chegaram mesmo a superar as penas metálicas. A
tinta era uma combinação de substâncias vegetais ou minerais e podia ser de várias cores,
incluindo-se a dourada e a prateada, porém as mais usadas eram a preta, para o texto, e
a vermelha, para os títulos e letras iniciais. As linhas eram feitas com régua (κάνον) e es-
tilete (γραφίς), e um compasso (διαβήτης) era usado para mantê-las equidistantes. Além
das horizontais, havia também as linhas verticais, que demarcavam as margens de cada
uma das colunas do texto. Curioso em vários manuscritos do século dez em diante é que
a escrita não foi feita acima das linhas, como era o costume desde os tempos da Grécia
clássica67 e 0 é ainda hoje, mas abaixo delas, isto é, os escribas fizeram com que as letras
ficassem pendentes da face inferior da linha.
Por causa de seu elevado custo, um pergaminho podia eventualmente ser reaproveita-
do, ou seja, sua escrita original era raspada para que 0 material pudesse receber novo tex-
to. O pergaminho submetido a esse processo é chamado palimpsesto (παλίμψηστος).68 E,
como geralmente 0 texto raspado é mais valioso para a crítica textual, vários métodos têm
sido empregados na tentativa de se restaurar a escrita original. As soluções químicas (como
a tintura giobertita) usadas no século dezenove frequentemente danificavam tanto o texto
quanto 0 pergaminho em si. As radiações eletromagnéticas (ultravioleta e infravermelho)
atualmente empregadas não só evitam esse inconveniente como também proporcionam
melhores resultados, seja para a leitura direta, seja para a chamada fotografia de palimp-
sesto. Em ambos os casos, o processo consiste em iluminar o manuscrito a fim de torná-lo
fluorescente, enquanto a escrita irradiada permanece quase escura. Para isso, porém, é ne-
cessário que no texto do manuscrito se hajam empregado tintas metálicas ou ferruginosas,
65 Diringer, 203.
67 Numa passagem, Platão faz referência ao modo como os garotos gregos de sua época eram ensinados a
escrever: primeiramente se traçavam as linhas com 0 estilete para que lhes servisse de guia e então eles escreviam
sobre as linhas (Prot. 326d).
68 De πάλιν, “de novo,” e ■φάω, “raspar.” O termo já aparece em alguns autores clássicos, como Catulo (Carm.
22.5) e Cícero (Fam. 12.18), mas em conexão com 0 papiro, do qual a tinta podia ser lavada, em vez de raspada.
18 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
Papel
Rolo
Os rolos antigos podiam ser tanto de papiro quanto de pergaminho. Os de papiro, porém,
eram bem mais comuns. Eles eram 0 principal veículo da literatura grega, cujo uso remon-
tava ao início do quinto século a.C. Quando a Grécia foi subjugada, no segundo século a.C.,
69 No ano 692, 0 Concilio de Constantinopla, também chamado de Segundo Concilio em Trullo, condenou 0
uso de pergaminhos bíblicos para outros propósitos, sob pena de excomunhão por um ano. Não obstante, a prática
continuou. Atualmente são conhecidos 68 palimpsestos do NT (Bruce M. Metzger e Bart D. Ehrman, The Text of the
New Testament: Us Transmission, Corruption, and Restoration, 4a. ed. [Nova York: Oxford, 2005], 22).
70 O mais antigo manuscrito grego escrito em papel (ms. 0290) é do nono século e foi produzido provavelmente
no Egito. Ele se encontra no Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai.
71 Epp, “Textual Criticism: New Testament,” 6:418 (a cifra inclui os muitos manuscritos feitos em parte de papel
e em parte de pergaminho).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 19
os romanos também os adotaram. Para se obter um rolo (κεφαλίς; cf. Hb 10.7) de papiro,
bastava colar várias folhas pela borda até se chegar ao tamanho desejado, que dificilmente
excedia a 10 m de comprimento, tamanho suficiente para receber, por exemplo, o Evangelho
de Mateus.72 Rolos maiores eram indesejáveis, por causa do desconforto do manuseio e do
risco de se rasgarem. Obras mais extensas, portanto, poderíam requerer diversos rolos, sen-
do que cada rolo era chamado τόμος.73 Muito cuidado se costumava tomar na hora de colar
as folhas: a folha da direita tinha sua borda geralmente colocada sob a folha da esquerda,
0 que facilitava o processo da escrita; a sobreposição era, em média, de 1 ou 2 cm. O lado
interno do rolo, em que as fibras ficavam na posição horizontal, era chamado recto. Esse era
0 lado em que normalmente se escrevia. O lado de fora, em que as fibras ficavam na vertical,
era 0 verso. Rolos escritos de ambos os lados eram bastante raros (cf. Ap 5.1).
O texto aparecia dividido em colunas (σελίδες) paralelas, que se sucediam umas às
outras da esquerda para a direita.74 Elas tinham de 5 a 9 cm de largura, com intervalos de
1,5 a 2 cm, permitindo assim algum espaço para anotações ou correções. Em cima e em
baixo, a margem era maior, e maior ainda era a margem deixada no começo e no fim do
rolo, onde geralmente uma tira protetora do material era colada para evitar que a folha se
rasgasse. Nos rolos destinados a uso mais frequente, colocava-se em cada extremidade um
bastão roliço (όμφαλός), cujas pontas sobressaíam acima e abaixo.75 Quando concluídos,
os rolos eram geralmente envoltos numa peça de pano ou couro (φαιλόνης) e guardados
em algum recipiente, como por exemplo um jarro.76 São conhecidos apenas quatro frag-
mentos neotestamentários de rolos e todos são opistográficos, isto é, escritos no verso de
material já usado para outro propósito. Os quatro fragmentos são de papiro.
Códice
72 Plínio declara que um rolo de papiro nunca excedia a vinte folhas (Nat. 13.77). A informação, porém, não
condiz com 0 registro arqueológico, que já documentou rolos de até cinquenta folhas (veja Turner, Greek Papyri, 173
η. 18). Talvez ο mais correto fosse dizer que, na média, os rolos tinham cerca de vinte folhas.
73 O termo deriva do verbo τέμνω, que significa “cortar.” Em latim, esses rolos foram chamados volumen, de vol-
vere, que significa “enrolar.” De “desenrolar” (explicare) veio tanto 0 verbo “explicar” quanto 0 adjetivo “explícito,”
que pode ter se originado da contração de eçp(!dt(us) est liber, “0 livro está desenrolado [até 0 fim]” (Diringer, 126).
74 Em latim, cada coluna de texto era chamada pagina, sendo esta a origem da palavra correspondente em
português.
75 Essas pontas eram chamadas de κεφαλίς, que é o diminutivo de κεφαλή, “cabeça.” Foi a partir daí que 0
termo, por implicação, passou a designar também 0 rolo propriamente dito.
76 Informações adicionais sobre as características físicas dos antigos rolos podem ser encontradas em William
A. Johnson, Bookrolls and Scribes in Oxyrhynchus (Toronto: University of Toronto Press, 2004).
20 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
borda apenas e juntar uma série de tantas folhas quantas fossem necessárias para a trans-
crição de uma obra, com 0 que resultava uma espécie de caderno. Nas obras mais extensas,
porém, isso não se mostrava muito prático, pelo que se passaram a formar os cadernos
com um número menor de folhas, mas dobradas, e vários desses cadernos juntos resulta-
vam num volume (τεύχος) semelhante aos livros modernos. São conhecidos volumes de
apenas um caderno de até cem folhas, mas muito desconfortáveis. Os volumes normais
tinham cadernos de oito, dez ou doze folhas dobradas; no ocidente, os cadernos geral-
mente tinham quatro folhas dobradas (dezesseis páginas).77 Assim surgiram os códices,
e embora 0 período aqui estudado comece com o rolo de papiro e termine com 0 códice
de pergaminho como a forma dominante de livro, Roberts e Skeat declaram que “não
há evidência alguma que indique se a mudança do material influenciou a mudança da
forma, ou vice-versa.”78 No caso dos papiros do NT, a predominância dos códices sobre os
rolos é tanta que se considera como certo que os autógrafos, pelo menos a maioria deles,
já tenham sido produzidos na forma de códice.79
No início do século vinte, Caspar René Gregory sugeriu que o códice havia sido intro-
duzido pelos cristãos na virada do terceiro para 0 quarto século,80 mas descobertas mais
recentes revelaram com suficiente clareza que 0 códice se originou em Roma, no início da
era cristã.81 A própria palavra codex (ou caudex) é latina e não têm equivalente em grego
senão apenas na transliteração κώδιξ. A princípio, porém, o termo tinha pouco ou nada
que ver com 0 formato de um livro; ele designava tão somente uma tabuinha de madeira
recoberta de cera e usada para cartas, memorandos, exercícios escolares ou qualquer outra
anotação de natureza efêmera.82 Duas ou mais dessas tabuinhas sobrepostas e amarradas
por um dos lados com cordões ou argolas formavam um díptico (dipticus), uma espécie de
77 Uma folha de papiro ou pergaminho dobrada ao meio fazia duas “folhas,” ou folia em latim. O singular fo-
lium (“fólio”) normalmente designava um livro numerado por folhas (frente e verso) e não por páginas. A palavra
“caderno" vem de quaternio, que era exatamente a designação do caderno de quatro folhas. Detalhe interessante
sobre os cadernos de pergaminho é que as páginas que se tocavam geralmente apresentavam entre si, com alternân-
cia regular, 0 mesmo lado (da carne ou do pelo). A primeira página do caderno (ou a face externa da primeira folha)
era 0 lado da carne, cuja tonalidade era mais clara e a textura, mais macia; a página seguinte, é claro, era 0 lado do
pelo. Já a terceira página (ou a face externa da segunda folha) seria o lado do pelo, e assim sucessivamente, sempre
fazendo com que as páginas que se tocassem tivessem alternadamente 0 mesmo lado do pergaminho.
78 Roberts e Skeat, 5.
79 Veja Aland e Aland, 75. Há suficiente evidência de que palavra de origem latina μεμβράνη empregada em
2Tm 4.13 era, já por mais de um século, um termo técnico para o códice de pergaminho (veja Roberts e Skeat,
15-23). Isso significa, na opinião de Donfried, que Paulo já estava familiarizado com essa forma de livro, podendo
inclusive já tê-la utilizado para redigir suas epístolas (254-256).
80 Caspar René Gregory, Canon and Text of the New Testament (Nova York: Scribner’s Sons, 1907; reimp., Northville:
Biblical Viewpoints, 1997), 322.
82 O instrumento com 0 qual se escrevia nessas tabuinhas era um ponteiro de ferro chamado stillus, de onde
provém a palavra “estilo” aplicada à composição literária. Como as tabuinhas fossem muito usadas para fins jurídi-
cos, chamou-se “código” a um sistema de leis.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 21
83 “De acordo com a evidência existente,” declara Larry W. Hurtado, “não houve uma evolução na preferência
cristã pelo códice, passando de um estágio ao outro, mas uma apropriação que parece ter sido tão completa quanto
antiga” (“The Earliest Evidence of an Emerging Christian Material and Visual Culture: The Codex, the Nomina Sa-
era and the Staurogram,” em Text and Artifact in the Religions of Mediterranean Antiquity: Essays in Honour of Peter
Richardson, ed. Stephen G. Wilson e Michel Desjardins [Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 2000], 272).
85 Ibid., 49. Para uma estatística completa dos livros gregos do primeiro ao quinto século, veja Roberts e Skeat,
37. Informações adicionais e atualizadas podem ser obtidas no Leuven Database of Ancient Books (LDAB), que está
disponível on-line (http://www.trismegistos.org/ldab/). Embora mais atualizados, os dados do LDAB são um pouco
imprecisos por causa dos muitos manuscritos classificados como folhas ou fragmentos. Ao todo, 0 LDAB contabiliza
1107 manuscritos do primeiro século, dos quais 62,3% são rolos, enquanto apenas 1,1% são códices (19,6% são
classificados como folhas ou fragmentos). No segundo século, dos 2881 manuscritos relacionados, 60,4% são rolos,
e apenas 3,8%, códices (folhas e fragmentos compreendem 19%). No terceiro século, os rolos compreendem 46,4%
de um total de 2392 manuscritos, ao passo que os códices, 16,9% (folhas e fragmentos, 21,1%). Por fim, no quarto
século, dos 1199 manuscritos, 13,8% são rolos, enquanto 46,2%, códices (folhas e fragmentos, 31,2%). De todos os
manuscritos do segundo século, apenas 1,7% (49 mss.) são cristãos, dos quais 61,2% (30 mss.) são códices e 20,4%
(10 mss.), rolos. De todos os manuscritos do terceiro século, 0 percentual de manuscritos cristãos cresce para 9%
(217 mss.), dos quais 63,5% (138 mss.) são códices e 18,8% (41 mss.), rolos. Já no quarto século, 30,9% (371 mss.)
de todos os manuscritos conhecidos são cristãos, dos quais 59,2% (219 mss.) são códices, e apenas 8% (30 mss.),
rolos (http://www.trismegistos.org/ldab/index.php, acessado em 28/12/2008).
86 As duas únicas possíveis exceções são do AT: uma cópia do livro de Ester (EOxy. 4443) e uma dos Salmos
(EBarc.Inv. 2), mas a origem cristã desses manuscritos é seriamente disputada (veja Hurtado, The Earliest Christian
Artifacts, 55-57).
22 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
bem mais fácil manuseio que os rolos; e (3) eram de custo muito inferior, porque se adap-
tavam melhor à recepção da escrita em ambos os lados da folha.8788 Outra explicação é que
os cristãos, principalmente os de origem gentílica, teriam recorrido ao códice a fim de
diferenciar seus livros daqueles que eram usados tanto pelos judeus nas sinagogas quanto
pelos pagãos, que ainda preferiam os rolos.89 Uma terceira hipótese, que pressupõe que
pelo menos a maioria dos originais tinha a forma de rolo, vincula a adoção do códice às
primeiras edições de livros ou grupos de livros do NT. Tem sido sugerido, por exemplo,
que quando as Epístolas de Paulo, supostamente os primeiros documentos do NT a serem
escritos, foram juntadas num único manuscrito (cf. 2Pe 3.15-16), esse manuscrito tinha
a forma de códice, estabelecendo assim o precedente que teria influenciado a forma dos
livros cristãos subsequentes, especialmente os livros bíblicos.90 Todas as hipóteses têm
alguma plausibilidade, mas talvez convenha destacar que não há qualquer indicação de
que os originais tenham, de fato, sido produzidos em rolos. Seja como for, ao contrário
da prática predominante na época, os cristãos primitivos preferiam o códice e, conquanto
não tenham sido seus inventores, certamente estiveram à frente do movimento que acabou
substituindo os antigos rolos pelos livros modernos.
Quanto ao tamanho, os códices bíblicos apresentam grande variedade. Geralmente, os
destinados a uso privado eram, por razões de comodidade, menores, enquanto para 0 uso
litúrgico eram escolhidos os de tamanho maior. Dois dos mais importantes manuscritos
conhecidos, os Códices Vaticano e Sinaítico, ambos do quarto século, medem respectiva-
mente 27,5 x 27,5 cm e 43 x 37,8 cm. O menor manuscrito conhecido é um do Apocalipse,
catalogado como manuscrito 0169, também do quarto século, do qual resta apenas uma
folha e mede 9,3 x 7,7 cm. O maior, 0 chamado Códice Gigante, escrito em latim no século
treze, mede 89,5 x 49 cm.
A distribuição do texto na página não seguia nenhum padrão muito rígido. Enquanto
os rolos de papiro possuíam dezenas e, às vezes, até centenas de colunas, nos códices elas
se limitavam ao tamanho das páginas. Ao que parece, à medida que avançaram os séculos,
a tendência era a redução do número de colunas por página, embora não se verifique
nenhuma regra específica. Há papiros do terceiro século, por exemplo, de apenas uma
coluna, enquanto, no século seguinte, são encontrados manuscritos em pergaminho de
três e quatro colunas por página. Do quinto século, há manuscritos de duas colunas e, do
sexto, de uma coluna. Durante a Idade Média, pode-se observar que os escribas bizantinos
87 Calcula-se que mesmo se escrito com letras pequenas e margens estreitas, um rolo com todo 0 texto do NT
teria mais de 60 m de comprimento (Frederic G. Kenyon, Handbook to the Textual Criticism of the New Testament,
2a. ed. [Londres: Macmillan, 1912; reimp., Grand Rapids: Eerdmans, 1951], 35).
88 De acordo com T. C. Skeat, a economia de papiro quando usado em forma de códice era da ordem de 44%
(“The Lenght of the Standard Papyrus Roll and the Cost-advantage of the Codex,” ZPE 45 [1982]: 169-175).
escreviam quase sempre em uma coluna, enquanto no ocidente a regra parece que era
duas colunas por página.
Dois tipos de escrita foram usados no preparo de manuscritos bíblicos, uma caracteri-
zada por letras maiores ou maiúsculas e outra por letras minúsculas. Outras convenções
gráficas incluíam sistemas de pontuação, abreviações e ornamentação de manuscritos.
Escrita Maiúscula
91 O termo “uncial” vem do latim uncia, que significa “a duodécima parte de um todo.” Empregado pela primei-
ra vez por Jerônimo (Praef. Job), 0 termo designava a escrita latina utilizada em obras literárias do quarto ao sexto
século cujas letras aparentemente ocupavam a duodécima parte de uma linha convencional, ou seja, as linhas numa
coluna teriam em média doze letras (Finegan, Encountering New Testament Manuscripts, 31). Tradicionalmente,
0 termo também tem sido aplicado à escrita grega de traçado análogo, mas em anos recentes vários autores têm
preferido o termo “maiusculo” (do latim majusculus, “de tamanho maior”), em oposição ao termo “minúsculo” (do
latim minusculus, “bastante pequeno”) para a escrita grega, ao passo que “uncial” descrevería apenas a escrita latina
(veja David C. Parker, “The Majuscule Manuscripts of the New Testament,” em The Text of the New Testament in
Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46 [Grand
Rapids: Eerdmans, 1995], 22).
92 C. H. Roberts, “Two Biblical Papyri in the John Rylands Library, Manchester,” BJRL 20 (1936): 227.
24 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
Escrita Minúscula
A partir do final do oitavo ou início do nono século, houve uma mudança na manei-
ra de escrever, conhecida em grego como μεταχαρακτηρισμός, e uma escrita com letras
pequenas, chamadas minúsculas, passou a ser usada na produção de livros.94 Derivadas
das maiúsculas, as minúsculas tinham várias afinidades com as antigas cursivas, que pa-
recem ter inspirado a forma de algumas letras.95 Eram letras mais fluidas e que, por isso,
podiam ser escritas com maior rapidez, sem que a pena fosse levantada; havia também o
emprego de inúmeras contrações e abreviações, sobretudo nas sílabas iniciais e finais. E
foi exatamente por causa das contrações que começaram a surgir os espaços entre as pa-
lavras e, com eles, a pontuação mais sistemática do texto. Por ser minúscula, essa escrita
demandava bem menos tempo e material, o que fazia com que os manuscritos tivessem um
custo menor e pudessem ser adquiridos por um maior número de pessoas; não obstante,
eram de difícil leitura.
94 Essa mudança tem sido atribuída a humanistas interessados num reavivamento cultural em Constantino-
pia, durante o segundo período do Iconoclasmo (814-842) (Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 25). Alguns
eruditos, porém, sugerem que a mudança tenha ocorrido já no sétimo século ou, no mais tardar, início do oitavo.
O argumento é que 0 Códice 461, manuscrito em minúscula datado do ano 835, apresenta 0 que parece ser uma
escrita madura demais do ponto de vista paleográfico e muito bem desenvolvida para estar no início do período
minúsculo (Barbara Aland e Klaus Wachtel, “The Greek Minuscule Manuscripts of the New Testament,” trad. Bart
D. Ehrman, em The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart
D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46 [Grand Rapids: Eerdmans, 1995], 43-44). De qualquer modo, 0 Códice
461 é 0 mais antigo manuscrito em minúscula conhecido e nenhuma evidência documental anterior que confirme
a hipótese tem sido encontrada.
95 Os termos “cursivo” e “minúsculo” são muitas vezes empregados de maneira intercambiável, mas é melhor
manter certa distinção entre ambos; isto é, empregar 0 primeiro para a escrita informal de notas pessoais e docu-
mentos não literários e o segundo para a escrita literária desenvolvida a partir da maiúscula, embora semelhante à
cursiva em alguns aspectos. Uma comparação entre notas cursivas que sobreviveram e manuscritos em minúscula
do NT mostra com clareza as diferenças entre as duas escritas.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 25
A mudança, porém, foi gradual, vindo a se consolidar por volta do século onze, a partir
de quando somente as minúsculas foram usadas. Há também um bom número de ma-
nuscritos desse período intermediário que foram produzidos numa forma combinada de
maiúsculas e minúsculas.96 Cerca de 12% dos manuscritos do NT são em escrita maiúscula
e os restantes 88% em minúscula.97 Manuscritos em maiúscula são encontrados em papiro
e pergaminho; manuscritos em minúscula, em pergaminho e papel.
Pontuação
96 Na verdade, as maiúsculas nunca deixaram de ser usadas, especialmente nos títulos e início de parágrafos.
Com o tempo, na evolução da escrita minúscula, várias maiúsculas também acabaram sendo reabsorvidas (e.g., Γ,
Λ, 6, Η, θ, λ, N, Π e C), substituindo as formas minúsculas correspondentes.
98 No antigo alfabeto ático, a aspiração de uma vogal era geralmente indicada pela letra H, de cujas metades,
num primeiro momento, derivaram tanto o espírito forte (h) quanto 0 espírito fraco ()·־, mais tarde apenasL e J,
respectivamente. As formas arredondadas usadas atualmente ( e ) foram introduzidas no século onze. Nos ma-
nuscritos bíblicos, sinais de aspiração e acentuação são raros e esporádicos até mais ou menos 0 sétimo século. Por
volta do nono século já são bastante frequentes, mas só se tornam de uso praticamente universal após 0 século onze.
99 Veja BDF, §16. Além dos pontos básicos de Aristófanes, os escribas cristãos dos primeiros séculos também se
utilizavam às vezes de um espaço em branco para indicar o início de uma frase ou parágrafo.
26 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
Abreviações
100 Um exemplo de pontuação já no quarto século vem do Códice Vaticano, que costuma trazer ο στιγμή τελεία
para pausas maiores e ο ,υποστιγμή para pausas menores. Um detalhe acerca desse manuscrito é que, com o pas-
sar do tempo, a tinta original acabou ficando com a aparência de um marrom desbotado e, por isso, um escriba
reescreveu a maior parte do texto com tinta nova. Como a maioria dos sinais de pontuação tem aparência recente,
acredita-se que eles tenham sido introduzidos pelo mesmo copista que renovou 0 texto e que isso teria ocorrido por
volta do século dez ou onze (Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 74). Ocorre, porém, que em alguns lugares a
tinta da pontuação aparenta ser a mesma do texto original e, portanto, pode remontar à época em que 0 manuscrito
foi copiado. Isso ocorre, e.g., em Lc 23.43, que traz um ponto na linha logo depois, e não antes, da palavra σήμερον
(“hoje”), fazendo com que a promessa de Cristo ao ladrão arrependido na cruz tenha sido: “Em verdade te digo
hoje, estarás comigo no paraíso.”
101 As formas dadas estão no nominativo. As formas contratas nos demais casos são análogas: lip ã (πατρός),
ÕyNON (ουρανόν), γ Ε (υιέ) e assim por diante.
102 Outros nomes que eventualmente aparecem indicados nos manuscritos como nomina sacra (com o traço
horizontal sobreposto) são Μιχαήλ, Νώε, Σάρρα, Αβραάμ, ’Ιακώβ, Αόάμ e a palavra δύναμις. No manuscrito 2437,
um manuscrito dos Evangelhos do século doze — 0 único manuscrito grego do NT em toda a América Latina (ele
se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro) — os nomes dos apóstolos também costumam ser marcados
com o traço horizontal característico dos nomina sacra.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 27
104 Isso fez com que a pronúncia original do nome se perdesse. Quando o texto consonantal foi vocalizado, no
período massorético (5001000)־, as vogais de Adonai foram igualmente acrescentadas ao Tetragrama. A forma “Jeo-
vá” se popularizou a partir de 1518, quando Petrus Galatinus, confessor do Papa Leão X, transliterou erroneamente
para 0 latim o nome YHWH acrescido das vogais de Adonai (Henry O. Thompson, “Yahweh,” ABD, 6 vols. [Nova
York: Doubleday, 1992], 6:1011-1012).
105 No período talmúdico (10-425), os escribas judeus eram expressamente proibidos de escrever 0 Tetragrama
com pena recém-molhada no tinteiro (para evitar borrões), de interromper a escrita para atender a alguém, mesmo
que fosse um rei, e de utilizar letras douradas para 0 nome divino, o que sugere que isso acontecia ocasionalmente
(Frederic G. Kenyon, Our Bible and The Ancient Manuscripts, 2a. ed. rev. por A. W. Adams [Nova York: Harper &
Bro., 1958], 78-79).
106 para ma;s detalhes, veja Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 33-35, e esp. Emanuel Tov, Scribal Practices
and Approaches Reflected in the Texts Found in the Judean Desert, STDJ 54 (Leiden: Brill, 2004), 218-219, 239.
107 Thompson sugere que a prática se originou quando escribas judeus helenistas decidiram substituir o nome
YHWH pela forma sem vogal do grego ΘΕΟΣ (ΘΣ), bem como Adonai pela forma contrata de ΚΥΡΙΟΣ (ΚΣ),
ambas sobrepostas por um traço horizontal para chamar a atenção do leitor. A seguir, a prática teria sido adotada
por escribas cristãos e estendida a outras palavras sagradas da tradição bíblica (An Introduction to Greek and Latin
Palaeography, 80). George Howard, por sua vez, propõe que os nomina sacra de ΘΕΟΣ e ΚΥΡΙΟΣ foram criados
por escribas cristãos não judeus que, ao copiar 0 texto da LXX, não julgaram relevante preservar a forma tradicional
do Tetragrama, ao mesmo tempo em que quiseram manter a forma sem vogal do nome divino (“The Tetragram and
the New Testament,” JBL 96 [1977]: 63-68).
28 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
Segundo J. Harold Greenlee, duas evidências parecem apoiar a hipótese de uma ori-
gem judaica dos nomina sacra. A primeira é que abreviações por contração estão limitadas
de maneira praticamente exclusiva aos manuscritos bíblicos e outros documentos cristãos,
sendo virtualmente desconhecidas na literatura secular. Em segundo lugar, os manuscri-
tos bíblicos mostram claramente que essas mesmas palavras não são contraídas quando
usadas em qualquer outro sentido específico. Por exemplo, πατήρ é comumente contraído
apenas quando se refere a Deus, e άνθρωπος apenas em referências tais como “o Filho
do homem,” um título de Jesus.108 Uma terceira evidência é o destaque dado aos nomina
sacra em alguns manuscritos. No Códice Purpúreo, por exemplo, um belo manuscrito do
sexto século escrito com letras prateadas em velino púrpuro, as contrações aparecem na
cor dourada. Deve-se admitir, porém, que há exceções, 0 que faz com que nenhuma dessas
evidências seja absolutamente conclusiva.109 De qualquer modo, o uso cristológico dos no-
mina sacra de θεός e κύριος nos mais antigos manuscritos do NT é muito significativo da
perspectiva do desenvolvimento do dogma, pois evidencia, pelo menos em parte, o caráter
binitário da fé cristã prevalecente já no segundo século.1101
109 Para outras hipóteses quanto à origem e o desenvolvimento dos nomina sacra, veja Metzger, Manuscripts of
the Greek Bible, 36-37. Para uma discussão mais recente e completa, inclusive com a estimulante tese, embora um
pouco especulativa, de que a origem dos nomina sacra se deve à influência de algumas técnicas exegéticas judaicas
entre os cristãos primitivos, veja Hurtado, The Earliest Christian Artifacts, 95-134.
110Ibid., 106.
111 M. Avi-Yonah, “Abbreviations in Greek Inscriptions,” em Abbreviations in Greek Inscriptions: Papyri, Manus-
cripts, and Early Printed Books, comp. Alkibiades N. Oidonomides (Chicago: Ares, 1974), 21.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 29
Sím bolos. Símbolos são sinais taquigráficos utilizados para representar sílabas ou
palavras completas. Há poucos exemplos de abreviações simbolizadas nos manuscritos
em maiúscula; mesmo assim, elas estão presentes apenas em manuscritos bem tardios e
quase sempre têm que ver com a parte final das palavras. Nos manuscritos em minúscula,
é relativamente comum o uso de tais abreviações, que agora dizem respeito também ao
começo e meio das palavras. Várias delas são graficamente destacadas, estando em geral
acima do nível das demais palavras da linha. Mais para o final da tradição manuscrita,
porém, à medida que a escrita fica cada vez mais cursiva, os símbolos começam a se ligar
mais às letras, tornando a leitura bastante complexa e difícil. Alguns dos exemplos mais
comuns são os seguintes: ) , 5, è (καί), κ(׳-αρα), t (πρός), / (δε), tf (οτι),/ί(έστίν), /'(είσίν),
r (-ειν),-° (-οις).4יי
Ornamentação
2 ו וMetzger separa as abreviações por suspensão (supressão de letras) das abreviações por superposição (elevação
da letra) (Manuscripts of the Greek Bible, 2930)־. Em vários manuais de paleografia grega e latina, porém, elas apare-
cem combinadas sob a rubrica “suspensão” (e.g., Thompson, An Introduction to Greek and Latin Palaeography, 81-83).
3 ו וEm alguns manuais de paleografia, a partilha de traços por uma ou mais letras é denominada nexo, ao passo
que ligadura é reservado apenas para as ligações espontâneas de duas ou mais letras entre si.
4 ר יExtensa lista de símbolos e outras abreviações pode ser encontrada em T. W. Allen, “Abbreviations in Greek
Manuscripts,” em Abbreviations in Greek Inscriptions: Papyri, Manuscripts and Early Printed Books, comp. Alkibia-
des N. Oikonomides (Chicago: Ares, 1974), 127-130. Veja também Thompson, An Introduction to Greek and Latin
Palaeography, 84-87.
Prólogos
7יי Para muitos estudiosos, Marcião não conhecia as Epístolas Pastorais porque, segundo acreditam, em sua
época elas ainda não haviam sido escritas. Tertuliano, porém, afirma que Marcião conhecia essas Epístolas, mas que
as rejeitava (Marc. 5.21). Com relação a Hebreus, ao contrário do que aconteceu na igreja oriental, onde parece que
a Epístola sempre foi tida como canônica e de autoria paulina, na igreja ocidental esse reconhecimento não ocorreu
senão em meados do quarto século. Daí a razão de permanecer excluída das controvérsias marcionitas.
118 Um sumário das discussões concernentes aos prólogos marcionitas pode ser encontrado em Bruce M. Metzger,
The Canon of the New Testament: Its Origin, Development, and Significance (Oxford: Clarendon, 1987), 94-97.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 3ו
Colofões
Ao contrário dos prólogos, que são notas introdutórias, os colofões são notas acres-
centadas no final dos manuscritos. A palavra grega κολοφών significa “topo,” “término”
e está relacionada com o verbo κολοφωνεω, que significa “coroar.” Muitos colofões, espe-
cialmente nos primeiros tempos da tradição manuscrita, trazem apenas o título da obra,
ao passo que outros incluem várias informações sobre a obra e indicações do copista, lugar
e data em que a cópia foi feita, bem como outros detalhes referentes ao trabalho em si.
Não são raros os colofões com preces e advertências contra qualquer alteração do texto
(cf. Ap 22.18-19).119
Parágrafos
119 De acordo com Eusébio (Hist. eccl. 5.20.2), ao final de um tratado antignóstico de Irineu, que não existe
mais, havia a seguinte nota: “Conjuro a você que vai copiar este livro, pelo Senhor Jesus Cristo e por seu glorioso
advento quando haverá de julgar os vivos e os mortos, a que compare sua cópia e a corrija cuidadosamente com
base neste texto e que, ao final dela, transcreva também esta advertência.” Para outros exemplos, veja Metzger e
Ehrman, 29-33.
120 O primeiro sistema de divisão de parágrafos empregado nos textos gregos clássicos consistia apenas na
inserção de um pequeno traço horizontal chamado παράγραφος; ele era inserido entre os parágrafos, no início das
linhas (Thompson, An Introduction to Greek and Latin Palaeography, 61).
121 Como relembra Metzger, as opções de pontuação, incluindo-se a divisão em parágrafos, encontradas nos
manuscritos, e mesmo nas modernas edições do NT grego, são importantes mas apenas como testemunhas da his-
tória da interpretação do texto, não necessariamente da configuração do texto original e, por isso, não deveríam ser
encaradas como normativas por nenhum tradutor ou exegeta (Manuscripts of the Greek Bible, 32).
32 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
Estícometria
Tabelas de Eusébio
Inspirado por Amônio de Alexandria, que cerca do ano 220 escreveu à margem do
texto de Mateus as seções paralelas dos outros Evangelhos, Eusébio de Cesareia dividiu os
Evangelhos em pequenas e grandes seções, totalizando 355 em Mateus, 233 em Marcos,
342 em Lucas e 232 em João, dando-lhes uma numeração sequenciada, escrita à margem
do texto. Esses números foram ordenados em dez tabelas (κανόνες): a primeira contendo
referências às passagens comuns aos quatro Evangelhos; a segunda, passagens comuns a
Mateus, Marcos e Lucas; a terceira, passagens comuns a Mateus, Lucas e João; e assim por
diante, explorando quase todas as combinações possíveis.123 A última tabela contém refe-
rências ao assunto peculiar de cada Evangelho isoladamente. O número da tabela corres-
pondente era acrescentado em vermelho aos números marginais em preto, de modo que,
sem muito esforço, era possível verificar se cada seção de um Evangelho se achava tam-
bém em outro e qual era seu número correlato. Numa carta ao amigo Carpiano, Eusébio
explicou em detalhes seu sistema de referência. A carta e as tabelas se acham transcritas
no começo dos Evangelhos em muitos manuscritos bíblicos, tanto gregos quanto latinos, e
continuaram a ser utilizadas em diversas Bíblias impressas na Europa a partir de meados
do século quinze.124
23 יFaltaram as tabelas referentes às seções paralelas em Marcos, Lucas e João e em Marcos e João.
124 Elas também aparecem na edição crítica do NT grego conhecida como NA27 (Nestle-Aland, Novum Testa-
mentum Graece, 27a. e d j, 84*-89*. Note-se que essa edição também traz, mediante um binômio numérico à mar-
gem do texto, as referências originais às tabelas de Eusébio. Uma tradução em inglês da carta pode ser encontrada
em Η. H. Oliver, “The Epistle of Eusebius to Carpianus: Textual Tradition and Translation,” NovT 3 (1959): 138-145.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 33
Colometria
Capítulos
Muitos manuscritos gregos dos Evangelhos apresentam uma espécie de divisão em ca-
pítulos (κεφάλαια), com títulos (τίτλοι) que buscam descrever resumidamente 0 conteúdo
de cada seção.126 Mateus é dividido em 68 capítulos, Marcos em 48, Lucas em 83 e João em
dezoito. Embora essa divisão apareça pela primeira vez num manuscrito do quinto século,
0 chamado Códice Alexandrino; já o Códice Vaticano, do quarto século, trazia uma divisão
semelhante, porém com seções maiores e sem títulos. Pelo menos outras duas divisões
também foram preservadas, diretamente no texto ou inseridas à margem pelo próprio
escriba, depois de pronto 0 manuscrito, ou por algum corretor (διορθωτής) posterior. A di-
visão em capítulos que, com poucas modificações, é usada nas edições modernas da Bíblia
foi preparada entre os anos de 1204 e 1206 por Estêvão Langton, professor na Universida-
de de Paris e, mais tarde, arcebispo da Cantuária (Inglaterra).127 A divisão em versículos
foi obra do editor parisiense Roberto Estéfano: 0 NT, em 1551, e o AT, em 1555.128
125 A identidade de Eutálio é um grande mistério. Acredita-se que ele tenha vivido no quarto século, mas nada
mais se sabe a seu respeito além do fato de que é descrito em alguns manuscritos como “diácono.” Por causa de sua
obra, os Aland se referem a ele como “um gramático cristão” (Aland e Aland, 178).
126 À semelhança de κεφαλίς (veja acima, 19 n. 75), o substantivo κεφάλαιον também deriva de κεφαλή (“ca-
beça”) e, portanto, por extensão de sentido, também significa algo que pertence a uma cabeça, dai a ideia de seção
ou capítulo. Em latim, “cabeça” é caput, de cujo diminutivo (capitulum) vem a palavra “capítulo.”
127 A divisão em capítulos, porém, só se fixou na tradição manuscrita quando o cardeal francês Hugo de St.
Caro adaptou o sistema de Langton para sua concordância latina das Escrituras, a primeira do gênero, e 0 aplicou,
com a ajuda de centenas de monges dominicanos do Mosteiro de S. Tiago, em Paris, aos manuscritos da Vulgata
Latina. Após a invenção da imprensa, no século quinze, a divisão foi pouco a pouco sendo inserida nas edições ver-
náculas, bem como nos textos originais do AT e NT, apesar das falhas que apresenta. São vários os exemplos em que
ela interrompe o sentido do texto, como Hb 12.1-3, que claramente consiste no clímax do cap. 11.
34 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
Títulos
Nos manuscritos mais antigos, os títulos dos vários livros do NT costumam ser breves
e simples, como Κατά Μαθθαΐον (“Segundo Mateus”) e Αποκάλυψις Ίωάννου (“Apoca-
lipse de João”). Com o tempo, eles tendem a se tornar mais longos e complexos, como xò
κατά Ματθαίον άγιον εύαγγελιον (“Ο santo Evangelho segundo Mateus”) e άποκάλυψις
Ίωάννου του θεολόγου icai εύαγγελιστοΰ (“Apocalipse de João 0 teólogo e evangelis-
ta”).128129 Tem sido sugerido, e talvez a sugestão esteja correta, que os títulos dos Evangelhos
são parte integrante do texto original, em vez de haverem sido adicionados posteriormen-
te. Eles não apenas estão presentes, e sem qualquer variação significativa, já nas cópias
mais antigas existentes, como também 0 próprio uso litúrgico dos Evangelhos tornava
necessária a atribuição autoral.130
Fórmulas Lecionárias
128 Uma Bíblia Latina impressa por Johannes Herbort em Veneza, em 1484, foi a primeira a trazer os capítulos
divididos em seções menores, identificadas na margem pelas letras A, B, C, D e assim por diante. Em 1523, um
sistema de numeração do AT proposto em 1448 pelo rabino e filósofo judeu Isaac Nathan, nascido em Arles (Fran-
ça), foi pela primeira vez utilizado numa concordância também impressa em Veneza, a primeira concordância das
Escrituras hebraicas. Cinco anos mais tarde, 0 mesmo sistema foi inserido por Santes Pagninus, erudito católico
italiano, numa Bíblia Latina, com uma numeração diferente para 0 NT. O sistema que prevaleceu nos meios tanto
cristãos quanto judeus, porém, foi mesmo 0 de Estéfano.
129 Num recente manuscrito em minúscula (ms. 1775), copiado no ano de 1847 num dos mosteiros do Mon-
te Athos (Grécia), 0 Livro do Apocalipse recebe 0 seguinte título: ή άποκάλυψις τοΰ πανενδόξου εύαγγελιστοΰ,
επιστήθιου φίλου, παρθένου, ήγαπημένου τω Χριστώ, Ίωάννου τοΰ θεολόγου, υίοΰ Σαλώμης καί Ζεβεδαίου,
θετοΰ δέ υίοΰ της Θεοτόκου Μαρίας, καί υίοΰ βροντής (“Apocalipse do todo-glorioso evangelista, amigo do peito
[de Jesus], virgem, amado de Cristo, João 0 teólogo, filho de Salomé e Zebedeu, mas filho adotivo de Maria a Mãe
de Deus, e filho do trovão”) .
130 veja esp. Martin Hengel, Studies in the Gospel of Mark, trad. John Bowden (Filadélfia: Fortress, 1985),
64-84; idem, The Four Gospels and the One Gospel of Jesus Christ: An Investigation of the Collection and Origin of the
Canonical Gospels, trad. John Bowden (Londres: SCM, 2000), 48-56.
131 Há também diversos lecionários que trazem seleções de textos dos Profetas (principalmente Isaías) extraí-
dos da LXX. Chamados Προφητολόγιον, esses lecionários podem ainda conter trechos de Salmos, Provérbios e
outros livros do AT.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 35
Escólios
O uso das margens de um manuscrito para escólios (σχολία), que são notas ou co-
mentários de qualquer natureza, remonta aos tempos clássicos. Nos manuscritos do NT,
algumas notas visam a explicar 0 significado dos nomes semíticos de pessoas e lugares
bíblicos, enquanto outras buscam elucidar 0 sentido de passagens difíceis. Por vezes, as
margens também são usadas para comentários mais elaborados132 ou simplesmente para
correções de possíveis erros de transcrição. Nos manuscritos em papiro, as margens são
132 São conhecidos doze manuscritos do NT em maiúscula e 542 em minúscula que contêm, geralmente ao re-
dor do texto, séries de comentários extraídos dos pais da igreja. Às vezes, seções do texto e dos comentários podem
vir de forma intercalada. Em ambos os casos, é comum o escriba fornecer 0 nome do autor de quem 0 comentário
foi extraído.
36 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
mais estreitas e as anotações, bem mais restritas. A partir do quarto século, porém, com
a adoção do pergaminho e a maior abundância de espaço, as margens também ficaram
maiores e passaram a ser usadas com muito mais frequência para anotações e comentários
diversos relativos ao texto.133
Correções
Sinais Críticos
Muitas correções são acompanhadas de sinais colocados nas margens dos manuscritos
ou entre as linhas do texto para mostrar o local exato da correção ou simplesmente para
chamar a atenção do leitor para o fato. Os sinais mais comuns são o asterisco (x) e 0 óbelo
(-r- ou —), os quais também podem ser usados sozinhos para indicar que uma passagem
133 “Antes da revolução codicológica do quarto e quinto séculos... os livros, com raras exceções, não eram pia-
nejados para receber nenhum tipo de anotação. ... A grande mudança no formato dos livros na antiguidade tardia
possibilitou, pela primeira vez, a produção de grandes manuscritos com margens bem maiores destinadas, como
nunca antes, a ser preenchidas com notas marginais” (Kathleen McNamee, Annotations in Greek and Latin Texts from
Egypt, ASP 45 [Oxford: Oxbow, 2007], 92).
134 Veja E. G. Turner, Greek Manuscripts of the Ancient World (Princeton: Princeton University Press, 1971), 16.
135 Para um estudo recente de tais correções e outras características escribais do Códice Sinaítico, veja Dirk
Jongkind, Scribal Habits of Codex Sinaiticus, TS (Piscataway: Gorgias, 2007).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 37
é duvidosa ou espúria, ou então, em alguns casos, para indicar seu uso na liturgia da
igreja.136 Outro sinal crítico utilizado à margem esquerda do texto são dois pontos seme-
lhantes ao trema (..). Recentemente identificado, esse sinal, conhecido como distigma
(δίστιγμα),137 aparentemente serve para indicar o local em que uma variante textual era
conhecida. Exemplos de passagens assim assinaladas incluem Jo 7.52 e 1C0 14.33. O as-
sunto, porém, ainda envolve alguma controvérsia.138
Dois tópicos completam 0 presente capítulo: noções sobre a datação de textos antigos
e os critérios utilizados para a catalogação ou classificação dos manuscritos neotestamen-
tários.
Datação
A grande maioria dos manuscritos não é datada. Foi somente a partir do século onze
que eles começaram a trazer alguma referência à época em que foram escritos;139 mesmo
assim, não é fácil determinar com precisão a data daqueles que foram escritos antes do
século quatorze, quando se tornou mais comum o uso do calendário cristão dionisiano.
Antes disso, muitos copistas usaram o sistema cronológico bizantino, que fixava a criação
do mundo em Γ. de setembro de 5509 a.C. Mais complicado ainda é quando 0 manuscrito
é datado de acordo com o ano da indicção, que era um período de quinze anos contados
a partir do reinado de Constantino, ou quando são incluídas referências ao ciclo solar (28
anos) ou lunar (dezenove anos), acrescidas de informações do calendário religioso, como
por exemplo a Páscoa.
No caso dos manuscritos mais antigos que não dispõem de nenhuma informação cro-
nológica e daqueles cujas informações são insuficientes ou imprecisas, a data deve ser de-
terminada mediante a paleografia comparativa. Esta se baseia no tipo e forma do material
136 Veja T. van Lopik, “Once Again: Floating Words, Their Significance for Textual Criticism," NTS 41 (1995):
290.
137 Veja Parker, An Introduction to the New Testament Manuscripts and Their Texts, 73.
138 Por enquanto, os estudos sobre o distigma estão restritos ao Códice Vaticano, onde ele ocorre certa de
oitocentas vezes. O primeiro a chamar a atenção para 0 assunto foi Philip B. Payne, “Fuldensis, Sigla for Variants
in Vaticanus and 1C0 14.34-35,” NTS 41 (1995): 251-262. Bibliografia adicional inclui: Curt Niccum, “The voice of
the MSS on the Silence of the Women: The External Evidence for 1C0 14.34-35,” NTS 43 (1997): 242-255; Philip
B. Payne e Paul Canart, “The Originality of Text-Critical Symbols in Codex Vaticanus,” NovT 42 (2000): 105113 ;־J.
Edward Miller, “Some Observations on the Text-Critical Function of the Umlauts in Vaticanus, with Special Attention
to 1 Corinthians 14:34-35,” JSNT 26 (2003): 217-236; Philip B. Payne e Paul Canart, “The Text-Critical Function of
the Umlauts in Vaticanus, with Special Attention to 1 Corinthians 14:34-35: A Response to J. Edward Miller," JSNT
27 (2004): 105-112.
38 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
e principalmente nas características da escrita, como tamanho e forma das letras, acentos,
espíritos, abreviações, pontuação, ilustrações, correções, quantidade de colunas, largura
e tipo das linhas, enfim, uma longa lista de detalhes. A técnica consiste em se tomar um
manuscrito e compará-lo com documentos representativos dos vários períodos,139140 pois em-
bora cada pessoa tenha seu próprio estilo de escrita, 0 estilo de escrita de um determinado
período, especialmente antes da invenção da imprensa, tende a ter muitas características
em comum. Mesmo assim, é impossível determinar com absoluta precisão a data de um
manuscrito pelas seguintes razões: (1) as mudanças na escrita não são repentinas, mas
graduais e quase sempre imperceptíveis; (2) 0 estilo de escrita de uma pessoa tende a per-
manecer praticamente 0 mesmo ao longo de sua vida; e (3) as características paleográficas
de um manuscrito podem haver sido influenciadas por outro usado como modelo. É por
isso que os paleógrafos geralmente trabalham com margens um pouco elásticas, de cerca
de cinquenta anos.141
A datação por radiocarbono (C14), especialmente com o desenvolvimento do Espectro-
metro de Massa Acelerada (AMS, em inglês), também tem produzido bons resultados. O
AMS, cuja sensibilidade é cerca de mil vezes maior que outras técnicas, tem possibilitado
uma avaliação muito mais precisa da idade de materiais orgânicos. Deve ser lembrado,
porém, que o método permite datar apenas 0 material no qual 0 documento foi escrito e
não a escrita propriamente dita. Sempre existe a possibilidade de 0 documento haver sido
escrito num papiro ou pergaminho mais antigo.142
Catalogação
Como já visto, os manuscritos gregos do NT podem ser divididos em três grupos distin-
tos quanto ao material (papiro, pergaminho, papel), dois grupos quanto ao formato (rolo,
códice) e dois quanto ao tipo de escrita (maiúscula, minúscula). Também existem aqueles
que são de uso particular e os que são de uso litúrgico. Além disso, existe um grande nú-
mero de manuscritos, também importantes para a crítica textual, em outras línguas cristãs
da antiguidade, como latim, siríaco, copta e várias outras. Na maioria dos casos, esses
139 O mais antigo manuscrito datado é o códice 461. Um cotofão indica que foi concluído pelo monge Nicolau
em 7 de maio de 6343, que corresponde ao ano 835. Esse é também 0 mais antigo manuscrito em minúscula conhe-
cido; encontra-se na biblioteca pública de São Petersburgo.
40 יDocumentos representativos de um período são aqueles cuja data é mais ou menos certa, seja por causa das
características paleográficas em si, seja pela ajuda externa da arqueologia. Veja acima, 2 n. 5.
ו4 וVeja Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 50. Veja também a longa discussão sobre os desafios e riscos
relativos à datação de manuscritos neotestamentários por Philip W. Comfort, Encountering the Manuscripts: An
Introduction to New Testament Paleography and Textual Criticism (Nashville: Broadman & Holman, 2005), 103-198.
142 Para mais informação, veja Sheridan Bowman, Interpreting the Past: Radiocarbon Dating (Berkeley: Univer-
sity of California Press, 1990).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 39
manuscritos pertencem a museus, bibliotecas ou mosteiros, onde eles recebem uma de-
signação particular de acordo com os critérios de cada instituição. Mas, o grande número
de manuscritos, associado às diferentes localidades em que se encontram e às diferentes
designações que recebem, torna necessário um sistema de classificação padronizado e de
aceitação universal.
Quando os manuscritos conhecidos e utilizados ainda eram poucos, era possível
designá-los por seu local de origem ou conservação (e.g., os Códices Alexandrino e Vatica-
no), por seu antigo possuidor (Códice Beza) ou por alguma característica especial (Códice
Efraimita Reescrito143), mas o aumento no número tornou a prática inviável. Foi assim que
J. J. Wettstein, em sua edição crítica do NT grego publicada em Amsterdam nos anos de
1751 e 1752, começou a designar os manuscritos em maiúsculas pelas letras maiúsculas do
alfabeto latino — logo se continuou com os alfabetos grego e hebraico — e os manuscritos
em minúscula por algarismos arábicos. Os papiros ainda eram desconhecidos.
Conquanto adotada por vários estudiosos, essa classificação apresentava sérias difi-
culdades. Além de a designação dos manuscritos com base apenas no tipo da escrita ser
puramente externa, não demorou para que as letras dos alfabetos latino, grego e hebraico
se esgotassem. Mais grave ainda era 0 fato de que, ao agrupar os manuscritos em blocos
principais (correspondendo aos Evangelhos, Atos, Epístolas Paulinas, Epístolas Católicas e
Apocalipse), Wettstein fez com que a nomenclatura corresse de forma independente, onde
a mesma letra ou número podia indicar diferentes manuscritos em diferentes livros do NT.
Diante disso, Caspar René Gregory, em consulta com os principais críticos textuais de
sua época, desenvolveu o método que, desde sua publicação em 1908,144 tem sido usado de
maneira quase que exclusiva. Construindo sobre 0 sistema de Wettstein, a nova classifica-
ção consiste em designar os manuscritos em maiúsculas por números arábicos precedidos
de zero (01, 02, etc.), se bem que para os primeiros 45 manuscritos fica livre o uso da no-
menclatura já estabelecida por letras maiúsculas;145 os manuscritos em minúsculas têm os
números 1, 2, etc.; e os papiros são designados por um pê gótico seguido de um algarismo
arábico exponencial pp1, ÇV, etc.).146
Em 1914, Hermann F. von Soden, professor na Universidade de Berlim, propôs um
sistema de nomenclatura completamente novo, abandonando a distinção dos manuscri-
tos pelo tipo de escrita e classificando-os, por meio de uma letra grega, em três grupos
de acordo com o conteúdo. Assim, um δ (de διαθήκη) anteposto indica que o manuscrito
143 Um palimpsesto do quinto século e um dos mais importantes manuscritos em maiuscula do NT.
144 Caspar René Gregory, Die griechischen Handschriften des Neuen Testaments (Leipzig: Hinrichs, 1908).
145 É por isso que ainda hoje existem, e.g., dois manuscritos identificados pela letra D, um para os Evangelhos e
Atos (Códice Beza) e outro para as Epístolas Paulinas (Códice Claromontano). De acordo com a nova classificação,
esses manuscritos são designados pelos números 05 e 06, respectivamente.
146 Recentemente, a Editio Critica Maior, que ainda está na fase inicial, abandonou o uso das letras para os ma-
nuscritos maiúsculos e os papiros são representados por um pê simples em vez do pê gótico (veja abaixo, 155-157).
O sistema tradicional, porém, ainda é utilizado nas principais edições manuais do NT grego.
40 A PRODUÇÃO DOS LIVROS ANTIGOS
contém todo o NT, incluindo ou não o Apocalipse; um 8 (de εύαγγέλιον), os quatro Evan-
gelhos; e um a (de άπόστολος), 0 restante dos livros, também incluindo ou não o Apoca-
lipse. Cada grupo possui seu próprio número de ordem (ól, δ2, etc.), que foi escolhido de
maneira progressiva de acordo com a idade do manuscrito: os manuscritos δ escritos até
0 nono século são numerados de 1 a 49; os do décimo século, de 50 a 90; os demais, com
números de três dígitos, sendo que o primeiro dígito indica o século (e.g., 0 ms. Ô142 seria
do século onze e o 6342, do século treze, ambos contendo todo 0 NT). Com relação ao
Apocalipse, sua presença nos manuscritos δ é indicada pelos números de 1 a 49 em cada
centena e sua ausência, de 50 a 99 (e.g., δ409 seria um ms. do século quatorze que contém
todo 0 NT e ο δ259, do século doze também com todo 0 NT exceto o Apocalipse). Quanto
aos manuscritos 8 e a, devido ao grande número de cópias, 0 sistema envolve ainda outros
numerais e dígitos.147
Esse sistema, porém, embora engenhoso, revelou-se totalmente impraticável, de ma-
neira que a classificação de Gregory acabou se tornando padrão, tendo sido diversas vezes
ampliada por Ernst von Dobschutz e Kurt Aland, sucessivamente. Em 1959, Aland fundou
o Instituto de Pesquisa Textual do NT (INTF, em alemão148), ligado à Universidade de
Munster, Alemanha, o qual passou a deter a prerrogativa de atribuir números oficiais aos
novos manuscritos gregos do NT.149 Além disso, o INTF contém cópias microfilmadas de
quase todos os manuscritos conhecidos, uma coleção cuidadosamente reunida ao longo
desses mais de cinquenta anos. Em 1983, Kurt Aland foi sucedido por sua esposa, Barbara
Aland, na direção do INTF, que permaneceu no cargo até 2004. O atual diretor é Holger
Strutwolf.
149 Veja Kurt Aland, Kurzgefasste Liste der Griechischen Handschriften des Neuen Testaments, 2a. ed. rev., ANTF 1
(Berlin: De Gruyter, 1994). Além da lista de manuscritos, Aland provê também uma concordância da classificação
de Gregory e de duas outras importantes classificações anteriormente utilizadas (C. von Tischendorf e H. F. von
Soden), bem como um índice das bibliotecas que abrigam os manuscritos e os números de catalogação dos manus-
critos em suas respectivas bibliotecas. A lista completa dos manuscritos neotestamentários, incluindo-se aqueles
catalogados a partir de 1994, pode ser encontrada no website do INTF (http://intf.uni-muenster.de/vmr/NTVMR/
ListeHandschriften.php).
CAPITULO 2
M anuscritos Gregos
Os mais valiosos documentos que compõem 0 acervo textual do NT, por representar a
descendência mais direta do texto original, são os manuscritos gregos dos diferentes tipos
e formas, embora algumas das antigas versões estejam mais próximas dos autógrafos cro-
nologicamente falando que a maioria dos manuscritos hoje conhecidos. Conforme já men-
cionado, tais manuscritos são em número aproximado de 5.700, os quais contêm 0 NT no
todo ou em parte e são classificados como papiros, maiúsculos e minúsculos, dependendo
do material utilizado e 0 próprio estilo da escrita. Também são classificados como manus-
critos gregos os lecionários, os óstracos e os talismãs, mas desses apenas os lecionários são
2 Para a história do manuscrito, como ele foi parar em Veneza e veio a ser considerado o original de Marcos,
veja Thomas H. Horne, An Introduction to the Critical Study and Knowledge of the Holy Scriptures, 2 vols. (Nova York:
Carter & Bros., 1882), 2:305.
42 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
de fato importantes para a crítica textual. Os óstracos e os talismãs não possuem outro
valor senão apenas como curiosidades.3
Papiros
5O45 (Papiro Chester Beatty I). Os Papiros Chester Beatty foram a primeira grande des-
coberta de papiros do NT.6 Adquiridos no Egito por volta de 1930 por A. Chester Beatty
e editados por Frederic G. Kenyon entre 1933 e 1941,7*eles representam fragmentos de
doze manuscritos, os quais compreendem sete do AT, três do NT (5p45, íp46, ip47) e dois de
outros documentos cristãos. Encontram-se preservados na Biblioteca Chester Beatty, em
3 Os óstracos são fragmentos de cerâmica ou louça quebrada usados pelas classes mais baixas como material de
escrita. Existem 25 desses fragmentos com passagens ou frases do NT catalogados, os quais são às vezes designados
pela letra ® seguida de um algarismo exponencial. Os talismãs, ou amuletos, são pequenos pedaços de madeira,
cerâmica, papiro ou pergaminho também contendo passagens ou frases das Escrituras usadas para trazer sorte ou
como proteção contra o mal. São conhecidos nove talismãs do NT, dos quais quatro contêm o Pai-Nosso. Eles são às
vezes designados pela letra <Ltambém seguida de um número exponencial.
4 Embora esporadicamente, o papiro continuou a ser usado no preparo de manuscritos bíblicos até 0 oitavo
século. São conhecidos até 0 momento 43 papiros do NT posteriores ao quarto século.
5 Os quais representam 125 diferentes manuscritos, visto que (p33+5s e sp64+67 são partes do mesmo códice;
é possível que 0 mesmo ocorra com p 14+( ״veja Aland, Kurzgefasste Liste der Griechischen Handschriften des Neuen
Testaments, 3-16). A lista completa dos manuscritos gregos do NT pode agora ser encontrada on-line: http ://
intf.uni-muenster.de/vmr/NTVMR/ ListeHandschriften.php.
6 “Como grupo, os papiros bíblicos Chester Beatty continuam sendo a mais importante descoberta de antigos
manuscritos cristãos até 0 momento e, individualmente, eles têm porporcionado ao mundo acadêmico... um contato
direto com os anos formativos do cristianismo” (Charles Horton, “The Chester Beatty Biblical Papyri: A Find of the
Greatest Importance,” em The Earliest Gospel: The Origins and Transmission of the Earliest Christian Gospels — The
Contribution of the Chester Beatty Codex ip45, ed. Charles Horton, JSNTSup 258 [Londres: T&T Clark, 2004], 149).
7 Informações bibliográficas sobre as publicações originais (e outros importantes estudos) desse e os demais
manuscritos abaixo citados podem ser encontradas em J. K. Elliott, A Bibliography of Greek New Testament Manu-
scripts, 2a. ed., SNTSMS 109 (Cambridge: Cambridge University Press, 2000).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 43
Dublim.8 Descrito como “a jóia na coroa” dos manuscritos Chester Beatty,9 o <p45consiste
em trinta folhas e alguns pequenos fragmentos de um códice que, a princípio, continha os
quatro Evangelhos e Atos num total calculado, segundo Parker, em 218 folhas,10 sendo que
cada uma media aproximadamente 25,4 x 20,3 cm. Os cadernos são formados por apenas
duas folhas cada, sugerindo uma data anterior à dos códices com cadernos de até doze
folhas. As letras são pequenas, mas bem escritas e o texto aparece em columa única. O uso
de abreviações para os nomina sacra é frequente, já os espíritos e sinais de pontuação são
raramente utilizados. As folhas consistem em duas de Mateus, seis de Marcos, sete de Lu-
cas, duas de João e treze de Atos, e datam da primeira metade do terceiro século. Quanto à
qualidade do texto, apesar de incompleto, o 45 לץestá relativamente próximo daquela que se
supõe ser a mais antiga forma discernível do NT, especialmente em Atos, onde é marcante
a ausência das principais variantes presentes em textos posteriores.11
<p*6 (Papiro Chester Beatty II). Contém 86 folhas quase perfeitas de um códice das
Epístolas de Paulo que tinha, num único caderno, cerca de 104, das quais as últimas cinco
eram provavelmente em branco. O manuscrito mede 28 x 16,2 cm e 0 texto tem apenas
uma coluna. A sequência das Epístolas, que em geral seguem a ordem decrescente de
tamanho, é a seguinte: Romanos, Hebreus, 1 e 2 Coríntios, Efésios, Gálatas, Filipenses,
Colossenses e 1 Tessalonicenses. O manuscrito talvez contivesse ainda 2 Tessalonicenses
e Filemom, mas não as Pastorais, embora essa posição tenha sido questionada recente-
mente.12 A importância do ip46, que é datado aproximadamente do ano 200, é seu teste-
munho acerca das Epístolas Paulinas, incluindo-se Hebreus, pelo menos um século antes
dos grandes unciais.13 A escrita é bela, mas descuidada, repleta de erros e idiossincrasias.
Abreviações para os nomina sacra são frequentes, mas espíritos e sinais de pontuação não
ocorrem senão apenas ocasionalmente. Uma de suas características textuais mais notáveis
é a presença da controvertida doxologia de Romanos (16.25-27) após 15.33, diferindo,
9 Larry W. Hurtado, “p 45 and the Textual History of the Gospel of Mark,” em The Earliest Gospel: The Origins and
Transmission of the Earliest Christian Gospels — The Contribution of the Chester Beatty Codex p 45, ed. Charles Horton,
JSNTSup 258 (Londres: T&T Clark, 2004), 132.
10 Parker, An Introduction to the New Testament Manuscripts and Their Texts, 288.
11 Em Marcos, 0 texto é um pouco inferior; nos demais Evangelhos, é melhor que em Marcos, mas não tão bom
quanto em Atos (Kenyon, The Text of the Greek Bible, 70). Os Aland caracterizam 0 p 45 como contendo um texto
“livre” (Aland e Aland, 98-99).
12 Jeremy Duff, “p 46and the Pastorals: A Misleading Consensus?” NTS 44 (1998): 578-590. Parauma avaliação
dos argumentos de Duff, veja Parker, An Introduction to the New Testament Manuscripts and Their Texts, 253-254.
13 Para uma breve história da posição das Epístolas de Paulo nos manuscritos antigos, veja David Trobisch,
Paul’s Letter Collection: Tracing the Origins (Bolivar: QWÍ) 2001), 1-27. Com relação a Hebreus somente — que, do
ponto de vista da transmissão do texto, sempre foi considerada paulina, pelo menos na igreja oriental — discussão
mais abalizada pode ser encontrada em W Η. E Hatch, “The Position of Hebrews in the Canon of the New Testa-
ment,” HTR 29 (1936), 133-151.
44 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
assim, tanto dos manuscritos que a colocam em seu lugar tradicional quanto daqueles que
trazem a passagem no final do capítulo 14. No geral, porém, o texto subjacente é de exce-
lente qualidade, quase tão puro quanto possível.14
p*7 (Papiro Chester Beatty III). Dez folhas quase completas de um códice do Apocalipse
(9.10—17.2), de um total original calculado em 32, medindo 24,1 x 14 cm. Foi escrito numa
única coluna de forma grosseira na segunda metade do terceiro século, embora contenha
poucos erros. O texto não traz nenhum espírito ou sinal de pontuação, mas é comum 0 uso
de abreviações para os nomina sacra. O íp47 consiste no mais antigo, porém não o melhor,
manuscrito do Apocalipse. Seu texto é bem próximo ao dos Códices Sinaítico e Efraimita.
P 2 (Papiro Rylands 457). Pequeno fragmento adquirido no Egito em 1920 por B. P. Gren-
fell, para a Biblioteca John Rylands, de Manchester. Mede cerca de 8,9 x 6 cm, sendo que o
tamanho original da página é estimado em 21,5 x 20 cm. Por ser muito pequeno, permane-
ceu despercebido em meio a outros fragmentos papíricos até 1934, quando foi identificado e
publicado por C. H. Roberts.15 Contém parte de Jo 18.31-33 de um lado e dos vs. 37-38 de ou-
tro,16 numa forma de escrita que, na opinião de Roberts, pode ser atribuída à primeira metade
do segundo século. A maioria dos especialistas defende uma data não posterior ao ano 125,0
que faz dele o mais antigo manuscrito do NT oficialmente reconhecido.17 Por ser muito peque-
no, porém, sua importância está mais relacionada com a data que propriamente com 0 texto
do Evangelho: o fragmento refuta vigorosamente a ideia corrente no século dezenove e início
do século vinte de que João não fora escrito senão na segunda metade do segundo século.18
14 G. Zuntz explica: “Como acontece com frequência, temos que tomar 0 devido cuidado para distinguir entre
o negligente trabalho do escriba e 0 texto básico do manuscrito que ele reproduziu de maneira tão descuidada. O
p 46 está repleto de erros escribais estúpidos, omissões e também adições. Em alguns casos, 0 escriba antecipou erros
de copistas posteriores; em outros, ele compartilha um erro antigo; mas a grande maioria são seus próprios erros.
Tão logo esses erros sejam descartados, o que sobra é um texto de extraordinária (embora não absoluta) pureza”
(The Text of the Epistles: Λ Disquisition upon the Corpus Paulinum [Londres: The British Academy, 1953], 212-213).
15 C. H. Roberts, An Unpublished Fragment of the Fourth Gospel in the John Rylands Library (Manchester: Manches-
ter University Press, 1935); reimpresso com correções em idem, ‘An Unpublished Fragment of the Fourth Gospel in the
John Rylands Library," BJRL 20 (1936): 44-55; e com notas críticas e bibliografia em idem, Catalogue of the Greek and
Latin Papyri in the John Rylands Library Manchester, 4 vols. (Manchester: Manchester University Press, 1938), 3:1-3.
16 Cuidadosa reconstrução das linhas, porém, indica a presença de uma variante textual no verso do manuscri-
to. O texto como 0 conhecemos requerería que a linha dois tivesse 38 letras, 0 que é demais considerando-se que as
demais linhas não tinham mais que 29 ou trinta letras (na frente, as linhas tinham originalmente de 31 a 35 letras).
E praticamente certo, portanto, que a segunda ocorrência das palavras εις τούτο (“para isso”) no v. 37 não fazia
parte do texto original do p 52. Isso reduziría a linha para trinta letras, trazendo-a em harmonia com as demais. Sem
εις τούτο, a resposta de Jesus a Pilatos ficaria assim: “Para isso nasci e vim ao mundo...” Para mais detalhes sobre
0 p 52, veja Finegan, Encountering New Testament Manuscripts, 85-90.
17 Sobre a possibilidade de existirem manuscritos do primeiro século, veja Wilson Paroschi, “7Q5: Um Frag-
mento dos Evangelhos em Qumrã?” FCB 1 (2006): 71-80; David C. Parker, “Was Matthew Written before 50 CE?
The Magdalen Papyrus of Matthew,” ET 107 (1995-1996): 40-43. Veja também abaixo, 272 η. 157.
18 Nem todos, porém, concordam com a data tradicionalmente atribuída ao manuscrito. Para exemplos recen-
tes, veja A. Schmidt, “Zwei Anmerkungen zu P Ryl. III 457,” APF 35 (1989): 11-12; Brent Nongbri, “The Use and
Abuse of p 52: Papyrological Pitfalls in the Dating of the Fourth Gospel,” HTR 98 (2005): 23-48.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 45
P 6(Papiro Bodmer II). Os Papiros Bodmer são outro grupo de preciosos manuscritos para a
crítica textual. Eles foram adquiridos no Egito em 1955 por M. Martin Bodmer e se encontram
atualmente na Biblioteca Bodmeriana de Literatura Mundial, em Genebra, à exceção do íp75,
que em 2006 foi vendido para a Biblioteca Vaticana.19 Publicado em 1956 por Victor Martin, 0
ip66compreendia a princípio 108 folhas com os primeiros quatorze capítulos de João (1.1—6.11;
6.35b—14.26). Posteriormente, fragmentos de outras 46 folhas do mesmo códice (caps. 15-21)
também foram adquiridas por Bodmer e publicadas por Martin em 1958 como um suplemento.
Medindo 16,2 x 14,2 cm, o manuscrito foi escrito em coluna única no final do segundo ou início
do terceiro século,2021o que faz dele 0 mais antigo dos Papiros Bodmer. Apesar da bela caligrafia,
muitos foram os erros cometidos pelo escriba, mas seu esforço em corrigi-los revela sua inten-
ção em produzir uma boa cópia.21 São mais de 460 correções feitas pelo escriba original entre
as linhas, nas margens ou no próprio texto, sendo essa uma das mais interessantes caracterís-
ticas do manuscrito. Seu texto, embora mesclado, é de grande importância tanto pela antigui-
dade quanto pela forma relativamente completa.22 Uma curiosa variante, que pode muito bem
representar a forma original, é a presença do artigo definido antes de προφήτης em Jo 7.52
(“Examine [as Escrituras] e verá que 0 profeta não vem da Galileia”).23
P 2 (Papiros Bodmer VII e VIII). Escrito provavelmente entre o terceiro e o quarto séculos, o
Çi72contém o mais antigo texto preservado de 1 e 2 Pedro e Judas, além dos seguintes docu-
mentos: a natividade de Maria, a correspondência apócrifa de Paulo aos coríntios, a 11a. Ode
de Salomão, a homilia de Melito sobre a Páscoa, o fragmento de um hino, a apologia de Fíleas
e os Salmos 33 e 34. Seu tamanho relativamente pequeno (15,5 x 14,2 cm) sugere haver sido
preparado para uso particular e não litúrgico. Os textos de Pedro e Judas ocupam respecti-
vamente 36 e sete páginas numeradas de um total original avaliado em 180; diferenças na
caligrafia indicam que quatro ou cinco escribas tomaram parte na sua produção, embora os
três textos canônicos tenham sido escritos pelo mesmo escriba, geralmente identificado como
Escriba B.24 A caligrafia (do Escriba B) é ruim, com forte tendência para a escrita cursiva e 0
20 Essa é a data oficialmente aceita, embora renomados estudiosos, como Herbert Hunger, fundador do Insti-
tuto de Papirologia de Viena (“Zur Datierung des Papyrus Bodmer il [ p 56],” AÕAW4 [I960]: 1233)־, e Guglielmo
Cavallo, professor de paleografia grega em Roma (Richerche sulla maiuscola bíblica [Florença: Le Monnier, 1967],
23-24), recomendem uma data anterior, não posterior a meados do segundo século. Para um detalhamento da
posição de Hunger e suas bases paleográficas, veja Comfort, 143-149.
21 Haines-Eitzen, 109.
22 Segundo Metzger, a qualidade textual do p 66varia de uma parte do manuscrito para outra. Nos caps. 1-5,
e.g., a qualidade é bem superior à dos demais, que combinam leituras de diferentes tipos textuais (Manuscripts of
the Greek Bible, 66).
23 Para discussão do assunto, veja Rudolf Schnackenburg, The Gospel according to St. John, 3 vols., trad. Kevin
Smyth et al. (Nova York: Herder & Herder, 1968-1982), 2:161.
24 Kenyon, The Text of the Greek Bible, 75. Veja também Tommy Wasserman, The Epistle of Jude: Its Text and
Transmission, CBNTS 43 (Estocolmo: Almqvist & Wiksell, 2006), 30-50.
46 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
P 5 (Papiros Bodmer XIV e XV). Compreendendo 102 folhas de umas 144 estimadas, o
manuscrito contém a maior parte de Lucas (caps. 3-18; 22-24) e vários capítulos de João
(caps. 1-15), ambos com algumas lacunas. Interessante é que João começa na mesma pági-
na em que Lucas termina, 0 que pressupõe uma coleção dos quatro Evangelhos.26 Foi publi-
cado em 1961 por Victor Martin e Rodolphe Kasser e talvez seja o mais importante dos três
papiros Bodmer. Medindo 26 x 13 cm, foi escrito com muito cuidado e capricho em coluna
única no início do terceiro século, embora uma data mais antiga, ao redor do final do se-
gundo século, não pareça de todo impossível.27 O escriba faz uso frequente do espírito forte
e sinais de pontuação, além das abreviações para os nomina sacra. O manuscrito consiste na
mais antiga cópia de Lucas disponível e uma das mais antigas de João, onde exibe muitas
afinidades com o texto do 5p 65 e os famosos maiúsculos do quarto século, especialmente o
Códice Vaticano.28 Na verdade, o íp75 e 0 Códice Vaticano estão mais intimamente relacio-
nados que quaisquer outros manuscritos antigos do NT. A concordância entre eles excede
a 90%, e há várias leituras que são testemunhadas apenas por esses dois manuscritos.29
P '5 (Papiro Oxyrhynco 4499). Originário do Egito e publicado em 1999 por N. Gonis,30
o ip115 consiste em 26 fragmentos de diferentes tamanhos de nove diferentes páginas, a
maioria consecutivas, do Livro do Apocalipse, com porções dos caps. 2-15; é impossível sa-
ber se originalmente 0 manuscrito continha ou não outros livros do NT. Cálculos paleográ-
ficos sugerem que 0 tamanho original das páginas era de aproximadamente 23,5 x 15,5 cm.
Datado do final do terceiro ou início do quarto século, 0 manuscrito consiste numa das mais
antigas testemunhas do Apocalipse e evidencia um texto de excelente qualidade, anterior
em pelo menos um século às melhores cópias do Apocalipse até então disponíveis (os Códi-
ces Alexandrino e Efraimita).31 Uma de suas leituras mais interessantes está em Ap 13.18,
onde 0 número do Anticristo é 616, como ocorre também no Códice Efraimita, e não o
tradicional 666 . Quando representados por caracteres gregos, a diferença entre os dois
25 Algumas de suas variantes mostram um claro interesse teológico, ao enfatizar a divindade de Jesus. Para
exemplos, veja Parker, An Introduction to the New Testament Manuscripts and Their Texts, 302.
26 Veja T. C. Skeat, “The Origin of the Christian Codex,” ZPE 102 (1994): 263-268.
27 Veja discussão por James R. Royse, Scribal Habits in Early Greek New Testament Papyri, NTTS 36 (Leiden:
Brill, 2008), 615 n. Is
28 Em seu exaustivo estudo das semelhanças e diferenças entre ο <ρ66 e ο Códice Vaticano, Carlo M. Martini con-
clui que ambos os manuscritos descendem de um arquétipo cuja data remonta ao segundo século (II problema delia
recensionalità del codice B alia luce del papiro Bodmer XIV, AnBib 26 [Roma: Pontifício Instituto Bíblico, 1966], 184).
30 N. Gonis et al., eds., The Oxyrhynchus Papyri, vol. 66 (Londres: Egypt Exploration Society, 1999), 11-35.
31 Veja David C. Parker, “A New Oxyrhynchus Papyrus of Revelation: P115 (P Oxy. 4499),” NTS 46 (2000):
159-174.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 47
números não passa de uma letra apenas (666 = χξς; 616 = χις), 0 que talvez aponte para
um simples erro de transcrição. A mudança, porém, pode ter sido intencional: ela pode ter
surgido do esforço por se identificar o Anticristo com algum personagem da história que es-
tivesse associado a perseguição e opressão religiosa como, por exemplo, 0 Imperador Nero
(37-68 A.D.), cujo nome latino (Nero Ccesar) escrito em caracteres hebraicos (1Π] )רסקé
equivalente a 616.32 Os fragmentos se encontram no Museu Ashmoleano, em Oxford.
Maiúsculos
Os manuscritos classificados como maiúsculos são aqueles que passaram a ser confec-
cionados em pergaminho quando 0 papiro caiu em desuso, no início do quarto século.34
A escrita, porém, continuou a ser a mesma utilizada nos papiros, a maiúscula, se bem que
nos pergaminhos as letras se tornaram um pouco maiores e mais regulares. O número de
maiúsculos atualmente catalogados é de 322,35*os quais se estendem até praticamente 0
32 Já no final do segundo século, Irineu declara conhecer a leitura 616, por ele descrita como “errônea e espú-
ria,” pois o número 666 não só constava “em todas as melhores e mais antigas cópias” do Apocalipse, como também
era confirmado por “aqueles que haviam visto João face a face” (Haer: 5.30.1).
33 Veja D. Leith et al., eds., The Oxyrhynchus Papyri, vol. 74 (Londres: Egypt Exploration Society, 2009), 1-45.
34 O pergaminho começou a ser utilizado no preparo de manuscritos bíblicos já no segundo século, mas muito
raramente. Somente seis fragmentos de pergaminho anteriores ao quarto século sobreviveram, dos quais os mais
importantes são os seguintes: 0189, uma folha com 0 texto de At 5.3-21, escrita no final do segundo ou início do
terceiro século, e 0212, que é na verdade um fragmento grego do Diatessarão de Taciano, contendo os textos pa-
ralelos de Mt 27.56-57, Mc 15.40,42, Lc 23.49-51,54 e Jo 19.38, e datado do terceiro século. Os outros quatro são
0220, 0162, 0171 e 0312.
35 Os quais representam 277 diferentes manuscritos, pois vários deles na verdade pertencem ao mesmo códi-
ce: 029+0113+0125+0139; 059+0215; 063+0117; 064+074+090; 070+0110+0124+0178+0179+0180+01
90+0191+0193+0194(=0124)+0202; 073+084; 081+0285; 083+0112+0235; 087+092b; 089+092a+0293;
095+0123; 0102+0138(?); 0106+0119; 0121b+0243; 0136+0137; 0149+0187; 0186+0224. Há também
alguns manuscritos que foram erroneamente classificados como maiúsculos e, por isso, devem ser omitidos da
lista: 0152 e 0153 são respectivamente um talismã e um óstraco, enquanto 0192, 0100 (=0195), 0114, 0129
(=0203+0205), 0234, 0250, 0276, 0303 e 0306 são lecionários (veja Aland, Kurzgefasste Liste der Griechischen
Handschriften des Neuen Testaments, 19-44).
48 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
século onze, a partir de quando somente a escrita minúscula foi utilizada. Os maiúsculos,
portanto, cobrem um período de cerca de sete séculos, aos quais pertencem os mais valio-
sos manuscritos do NT. Os mais importantes são os seguintes:
36 Outras localidades, como Roma e Cesareia, têm sido sugeridas. De acordo com Eberhard Nestle (Introduction
to the Textual Criticism of the Greek New Testament, 2a. ed., trad. William Edie [Londres: Williams &Norgate, 1901],
54-55), o próprio Tischendorf acreditava que o Códice Sinaítico era uma das cinquenta cópias encomendadas a
Eusébio de Cesareia pelo Imperador Constantino (Eusébio, Vit. Const. 4.36-37). Apesar da maioria dos estudiosos
preferirem 0 Egito como o local de procedência do manuscrito (veja Kenyon, The Text of the Greek Bible, 82), a hi-
pótese de que teria sido Cesareia ainda conta com ilustres defensores (e.g, T. C. Skeat, “The Codex Sinaiticus, The
Codex Vaticanus, and Constantine,” JTS 50 [1999]: 583-625).
37 Fala-se em nove diferentes corretores, os quais costumam ser citados nas modernas edições críticas do NT
grego em três grupos apenas: \ אque envolve as correções anteriores ao sexto século, incluindo-se aquelas feitas
assim que o manuscrito ficou pronto, antes mesmo que deixasse 0 scriptorium; 2א, que designa os corretores que,
no sétimo século e provavelmente em Cesareia, revisaram todo o texto, alterando-o de acordo com 0 chamado texto
bizantino; e Kc, importantes correções efetuadas no século doze (Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 77). Uma
sinopse com as siglas utilizadas para corretores de vários manuscritos maiúsculos em algumas das principais edições
do NT grego desde 0 século dezenove pode ser encontrada em Aland e Aland, 108.
38 Até a descoberta do Códice Sinaítico, a Epístola de Barnabé era conhecida apenas mediante uma tradução
latina muito malfeita e o Pastor de Hermas, apenas pelo título.
39 Segundo Metzger, nos Evangelhos e Atos, 0 Códice Sinaítico frequentemente concorda com 0 Códice Vatica-
no contra a grande massa de manuscritos posteriores (medievais). No Apocalipse, porém, seu texto é inferior ao do
Códice Alexandrino, escrito no quinto século (Manuscripts of the Greek Bible, 78).
40 Constantin von Tischendorf, Codex Sinaiticus: The Ancient Biblical Manuscript Now in the British Museum, 8a.
ed. (Londres: Luttherworth, 1934), 15-32.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 49
Monte Sinai no sexto século, por ordem do Imperador Justiniano. Na biblioteca do mostei-
ro, Tischendorf se deparou com um cesto de lixo repleto de folhas de pergaminho da LXX
muito antigas (129 ao todo) que estavam para ser queimadas e ainda ouviu dos monges que
várias outras já haviam sido destruídas. Reconhecendo de imediato 0 valor delas, seu entu-
siasmo levantou suspeitas da parte dos monges, que lhe permitiram ficar com apenas 43 fo-
lhas. De volta à Europa, entregou-as à Universidade de Leipzig, onde permanecem até hoje.
Na esperança de encontrar outras partes do mesmo manuscrito, Tischendorf retornou ao
mosteiro em 1853, mas não obteve êxito na busca. Em 1859, agora sob a proteção de Alexan-
dre II, tsar da Rússia e patrono da Igreja Ortodoxa, retornou mais uma vez ao local e, depois
de vários dias, quando já estava para partir, um dos monges o levou até sua cela e, para
surpresa de Tischendorf, ali estava o restante (347 folhas) do volumoso manuscrito envolto
num pano vermelho. Esforçando-se para ocultar sua empolgação, conseguiu autorização para
examiná-lo durante a noite em seu próprio quarto. Na manhã seguinte, solicitou permissão
para levar o manuscrito à cidade do Cairo a fim de copiá-lo, mas esta lhe foi negada. Uma
vez no Cairo, procurou 0 abade do mosteiro, que aguardava embarque para Constantinopla,
e não apenas teve sua solicitação atendida, como também o próprio abade providenciou para
que o manuscrito lhe fosse trazido do mosteiro. Depois de dois meses de intenso trabalho e
com a ajuda de dois assistentes, Tischendorf conseguiu transcrever as cerca de 110 mil linhas
do texto. Em seguida, com muita diplomacia e persistência, ainda persuadiu os monges a
enviar o manuscrito como doação ao tsar e, após sua publicação em Leipzig em 1862,41 o
manuscrito foi encaminhado à Rússia, onde permaneceu por cerca de setenta anos. Depois
da revolução bolchevique, o já então governo soviético, completamente desinteressado na
história ou tradição cristã, concordou em vender o manuscrito por cem mil libras esterlinas
para 0 Museu Britânico, de Londres, para onde foi levado no ano de 1933.42
Em 1975, ocorreu 0 que Skeat chama de “último capítulo” da memorável história do
Códice Sinaítico: a descoberta inesperada de um recesso numa das paredes do Mosteiro
de Santa Catarina contendo obras de arte e mais de mil manuscritos, entre os quais doze
folhas completas e alguns fragmentos do Códice Sinaítico.43 O estudo e a divulgação desse
material está sob a responsabilidade de Panayotis Nikolopoulos, curador de manuscritos
da Biblioteca Nacional de Atenas.
41 Embora todos os trabalhos editoriais e gráficos tenham sido feitos em Leipzig, 0 local de publicação aparece
como sendo São Petersburgo, visto que 0 manuscrito foi publicado sob o patrocínio do Tsar Alexandre II e no ano
em que se celebrava 0 milésimo aniversário da Rússia. Nessa edição, foram usados tipos especiais que buscavam,
tanto quanto possível, reproduzir a forma original das letras. Uma completa edição fotográfica do manuscrito seria
feita por Kirsopp Lake, entre os anos de 1911 e 1922. Atualmente, 0 manuscrito está disponível on-line, em imagens
digitalizadas de alta resolução e com inúmeros recursos de busca e pesquisa (veja acima, 2 n. 4).
42 Atualmente, as 347 folhas do Códice Sinaítico se encontram na Biblioteca Britânica, que em 1973 foi sepa-
rada do Museu Britânico. O restante do manuscrito está espalhado em três outras localidades: a biblioteca da Uni-
versidade de Leipzig (43 folhas); a Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo (fragmentos de três folhas);
e 0 Mosteiro de Santa Caratina, no Sinai (as folhas recentemente descobertas).
43 T. C. Skeat, “The Last Chapter in the History of the Codex Sinaiticus,” NovT 42 (2000): 313-315.
50 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
A/02 (Códice Alexandrino). Escrito em duas colunas por página, em velino de excelente
qualidade, 0 Códice Alexandrino consiste em 773 folhas, das quais 630 contêm pratica-
mente todo 0 AT e as 143 restantes, a maior parte do NT (estão faltando Mt 1.1—25.6 [26
folhas]; Jo 6.50—8.52 [duas folhas]; 2C0 4.13—12.6 [três folhas]),44 mais as duas epísto-
las de Clemente de Roma. Datado do início do quinto século, 0 manuscrito, que mede 32
x 26,3 cm, deve ter sido escrito no Egito, pois os títulos de alguns livros contêm formas
coptas do alfa e o ni. Ao que parece, três escribas trabalharam seu texto e várias correções
são perceptíveis, algumas já da parte dos próprios escribas que o copiaram e outras bem
posteriores. A escrita é graciosa e sem adornos, mas as iniciais são maiores. O texto nos
Evangelhos é inferior; no restante do NT, porém, é comparável ao dos Códices Vaticano e
Sinaítico. E o melhor manuscrito completo do Apocalipse atualmente disponível.45
A história do Códice Alexandrino é obscura até o início do século quatorze, quando,
segundo uma nota na primeira página de Gênesis assinada por Atanásio II, patriarca de
Constantinopla falecido em 1316, o manuscrito fora doado à Biblioteca Patriarcal do Cairo,
que era onde residiam os patriarcas de Alexandria. Uma nota em latim do século dezessete
acrescenta que a doação fora feita em 1098, mas a fonte dessa informação é desconhecida e
provavelmente não mereça crédito. Em 1624, Cirilo Lucaris,46 patriarca de Constantinopla
(antes, de Alexandria, de onde trouxera 0 manuscrito), ofereceu-o a Thomas Roe, embai-
xador inglês na Turquia, para ser presenteado ao Rei Tiago I. Como Tiago I viesse a falecer
logo depois da oferta, ao chegar 0 presente à Inglaterra, em 1627, foi entregue ao então
reinante Carlos I. O manuscrito permaneceu por mais de um século em poder da Biblioteca
Real, até que, em 1757, Jorge II o incorporou ao acervo do Museu Britânico, em Londres.
Desde 1973, ele se encontra, juntamente com 0 Sinaítico, no Departamento de Manuscritos
da Biblioteca Britânica.47 Outra nota, escrita em árabe no século treze ou quatorze, informa
que o manuscrito fora produzido por uma certa mártir chamada Tecla. O próprio Cirilo
repetia essa nota, informando que Tecla havia sido uma nobre senhora egípcia que copiara
0 manuscrito logo depois do Concilio de Niceia, em 325, e que 0 nome dela constava ori-
ginariamente no fim do códice. A informação, porém, pode não ser fidedigna, pois além
de sua origem obscura, a parte final do códice já se havia perdido muito antes de Cirilo.48
Conquanto o estilo da escrita possa de fato ser do início do quarto século, a presença no
45 A primeira edição tipográfica do manuscrito foi preparada em 1860 por B. H. Cowper, mas ela logo foi supe-
rada por uma completa edição fotográfica organizada pelo Museu Britânico (1879-1883).
48 Kenyon, Our Bible and the Ancient Manuscripts, 198-199. Para uma recente avaliação da história e procedên-
cia do Códice Alexandrino, inclusive com a hipótese de que ele terra sido produzido na Ásia Menor e não no Egito,
veja Scot McKendrick, “The Codex Alexandrinus or the Dangers of Being a Named Manuscript,” em The Bible as
Book: The Transmission of the Greek Text, ed. Scot McKendrick e Orlaith A. O’Sullivan (Londres: Biblioteca Britânica,
2003), 1-16.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 5ו
49 Veja esp. Skeat, “The Codex Sínaiticus, The Codex Vaticanus, and Constantine,” 583-625.
50 Com base em evidências puramente circunstanciais, T. C. Skeat sugere que 0 manuscrito fora trazido de
Constantinopla pelos delegados ortodoxos presentes ao Concilio Ecumênico de Ferrara e Florença, ocorrido entre
os anos de 1438 e 1439 (“The Codex Vaticanus in the Fifteenth Century,” JTS 35 [1984]: 454465)־.
51 Com o falecimento de Vercellone em 1869, logo após a publicação do segundo volume, 0 empreendimento
passou a contar também com os trabalhos de Cajetan Sergio e C. H. Fabiani. Foi essa a edição que foi extensivamen-
te usada por B. F. Westcott e F. J. A. Hort em sua edição crítica do NT grego (The New Testament in the Original
Greek, 2 vols. [Cambridge: Macmillan, 1881]).
52 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
52 Em 1965, 0 NT foi novamente reproduzido fotograficamente (em cores) por ordem do Papa Paulo VI e cópias
foram distribuídas aos participantes do Concilio Vaticano II. Em 1999, uma bela edição digitalizada, reproduzindo
com perfeição as características atuais do pergaminho e do texto, foi lançada pela Biblioteca Apostólica do Vaticano
(Bibliorum Sacrorum Graecorum Codex Vaticanus B [Roma: 1st. Poligrafico e Zecca dello Stato, 1999]), acompa-
nhada de um volume separado que discute questões relacionadas com a paleografia e a crítica textual tanto do AT
quanto do NT.
54 Zimmermann, 51.
55 Para informação adicional, veja J. Neville Birdsall, “The Codex Vaticanus: Its History and Significance,” em
The Bible as Book: The Transmission of the Greek Text, ed. Scot McKendrick e Orlaith A. O’Sullivan (Londres: Biblio-
teca Britânica, 2003), 33-41.
56 Uma lista de correções da edição de Tischendorf, a partir de um novo exame do manuscrito com equipa-
mento mais moderno, foi publicada por Robert W. Lyon, “A Re-examination of Codex Ephraemi Rescriptus,” NTS 5
(1958-1959): 260-272.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 53
D/05 (Códice Beza). Também conhecido como Códice Cantabrigiense, 0 Códice Beza
consiste no mais antigo manuscrito bilíngue do NT. Escrito colometricamente no final do
quinto ou início do sexto século, compreende 406 folhas e contém, em páginas paralelas
de uma coluna cada, o texto grego e uma tradução latina dos Evangelhos, quase em sua
totalidade, e da maior parte de Atos. Os Evangelhos estão na chamada ordem ocidental,
que coloca primeiro os dois apóstolos, seguidos então dos demais (Mateus, João, Lucas,
Marcos). Medindo 26 x 21 cm, deveria a princípio conter cerca de 510 folhas, as quais in-
cluíam ainda as Epístolas Católicas, pois preserva também um pequeno fragmento do final
de 3 João. Produzido provavelmente no Egito5758 por um escriba cuja língua materna era 0
latim, o manuscrito estava em Lyon no ano de 1562, quando foi saqueado do Mosteiro de
Santo Irineu pelos huguenotes e entregue a Teodoro Beza, discípulo e sucessor de João
Calvino em Genebra. Em 1581, Beza o doou à Universidade de Cambridge, em cuja biblio-
teca se encontra desde então. Foi publicado pela primeira vez em 1793, por T. Kipling, mas
a primeira edição crítica não veio senão em 1864, por F. H. A. Scrivener. Em 1899, uma
bela reprodução fotográfica do manuscrito foi publicada pela Universidade de Cambridge
e, recentemente, um completo estudo codicológico do manuscrito foi preparado por David
C. Parker, de Birmingham.59 Sua importância está no tipo de texto que representa,60 bem
como nas muitas variações que exibe em relação aos grandes maiúsculos anteriores. E ca-
racterizado pela livre adição e umas poucas omissões de palavras, frases e até incidentes
do relato evangélico. Um bom exemplo está em Lc 6, onde o v. 5 aparece depois do v. 10
e entre os vs. 4 e 6 apresenta o seguinte relato: “No mesmo dia, vendo alguém trabalhar
no sábado, disse-lhe: Se você sabe o que está fazendo, você é bem-aventurado, mas se não
sabe, é maldito e transgressor da lei.”61 As maiores divergências, porém, estão no Livro de
Atos, onde é cerca de 8,5% mais longo que 0 texto tradicional. Em 12.10, por exemplo, ao
descrever a libertação de Pedro da prisão pelo anjo, o texto acrescenta que eles “desceram
sete degraus” até à rua. Em 19.9, 0 leitor é informado que, enquanto em Efeso, Paulo pre-
gou diariamente na escola de Tirano “das onze às quatro horas,” ou seja, o período do dia
em que normalmente 0 próprio Tirano não estaria ensinando.
57 O manuscrito “parece combinar todos os principais tipos de textos, concordando com frequência com tes-
temunhas alexandrinas [e.g., Códices Vaticano e Sinaítico], mas também com aquelas do tardio texto koinê ou
bizantino, que a maioria dos estudiosos considera de menor valor” (Metzger e Ehrman, 70).
58 Outras localidades têm sido sugeridas: norte da África, Gália (Lyon), sul da Itália, Sicilia e Líbano (Beirute).
Para uma sugestiva defesa do Egito como 0 local de origem do manuscrito, veja Allen D. Callahan, “Again: The
Origin of the Codex Bezae,” em Codex Bezae: Studies from the Lunel Colloquium, June 1994, ed. D. C. Parker e C.-B.
Amphoux, NTTS 22 (Leiden: Brill, 1996), 5 6 6 4 ־.
59 David C. Parker, Codex Bezae: An Early Christian Manuscript and Its Text (Cambridge: Cambridge University
Press, 1992).
60 Uns poucos manuscritos mais antigos Pp29?, T>38, T>48 e 0171) parecem ser precursores do tipo de texto
encontrado no Códice Beza, que é considerado a principal testemunha do chamado texto ocidental (Comfort, 81).
61 Harold K. Moulton destaca que essa interpolação “soa como uma genuína declaração de Cristo, embora
não haja mais nenhum registro dela” (Papyrus, Parchment and Print, WCB 57 [Londres: Lutherworth, 1967], 22).
54 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
E2/08 (Códice Laudiano). Outro manuscrito bilíngue, mas diferente dos anteriores pelo
fato de os textos latino e grego, nessa ordem, virem na mesma página, em colunas paralelas.
As linhas são bastante curtas, com uma ou, no máximo, quatro palavras por linha, embora
também seja escrito colometricamente. Mede 27 x 22 cm e contém todo o Livro de Atos (e
por isso também é conhecido como Ea) em 227 folhas. Uma inscrição do próprio manuscrito
mostra de ele foi escrito na Sardenha, provavelmente no final do sexto século. Na virada do
sétimo para 0 oitavo século, foi levado para o Mosteiro de Jarrow, no norte da Inglaterra,
pois foi usado por Beda, 0 Venerável, em seu comentário de Atos, escrito entre 709 e 716.
Pouco tempo depois, foi doado ao missionário Bonifácio, que por sua vez o entregou a Bur-
chard, quando Bonifácio (“0 apóstolo aos germanos”) o consagrou Bispo de Würzburg, na
Bavária. O manuscrito permaneceu na Alemanha até 1631, quando 0 mosteiro de Würzburg
foi capturado e saqueado pelos suecos. Em 1636, foi doado pelo Arcebispo Guilherme Laud
à Biblioteca Blodeiana de Oxford, onde se encontra desde então. É 0 mais antigo manuscrito
que registra a confissão de fé do etíope (At 8.37), embora a passagem já fosse conhecida por
Irineu, no final do segundo século. Também foi publicado por Tischendorf em 1870.65
F2/010 (Códice Augiense). Datado do nono século, 0 Códice Augiense contém as Epísto-
las de Paulo em grego e latim em duas colunas paralelas por página. Suas 136 folhas de
62 Faltara, porém, alguns versículos de Romanos, tanto em grego quanto em latim, e alguns de 1 Coríntios, em
latim.
63 O texto tem sido descrito como ocidental, até por causa de sua procedência geográfica. Convém observar,
no entanto, que “as leituras ocidentais nas Epístolas não são tão marcantes quanto aquelas nos Evangelhos e Atos
presentes no Códice Beza” (Metzger e Ehrman, 74).
65 “O texto [do manuscrito] é misto, às vezes concordando com 0 Códice Beza, mas bizantino na maior parte
do tempo” (Comfort, 82).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 55
H /015 (Códice Coisliniano). Escrito colometricamente no sexto século numa única co-
luna por página, o manuscrito compreende 41 folhas (30 x 25 cm) das Epístolas de Paulo
escritas em pergaminho com letras quadradas e grandes (mais de 1,5 cm), o que resultou
em bem poucas palavras por linha. O texto é de excelente qualidade,67 afim ao do Códice
Vaticano, embora esteja bastante fragmentado. No período em que pertenceu ao Mosteiro
da Grande Laura, no Monte Atos, na Grécia, suas folhas foram utilizadas na produção de
diversos outros volumes. As poucas que restaram, e que estão divididas entre várias biblio-
tecas em Paris, São Petersburgo, Moscou, Kiev e Torino, além do Monte Atos, contêm ape-
nas pequenas porções de nove Epístolas; Romanos, Filipenses, Efésios, 2 Tessalonicenses
e Filemom se perderam por completo. Uma nota ao final de Tito declara que o manuscrito
foi corrigido a partir de uma cópia existente na biblioteca de Cesareia e produzida pelo
próprio Panfílio, fundador da biblioteca. Foi publicado por Kirsopp Lake, em 1905.
L/019 (Códice Régio). Mantido na Biblioteca Nacional de Paris e publicado por Tischen-
dorf em 1846, o Códice Régio contém 0 texto completo dos Evangelhos, exceto por algu-
mas lacunas (Mt 4.22—5.14; 28.17-20; Mc 10.16-30; 15.2:20; Jo 21.15-25). Foi copiado
no oitavo século, provavelmente no Egito, a partir de um manuscrito bastante antigo, pois
apresenta um texto de excelente qualidade, muito parecido com o do Códice Vaticano.68
Há, porém, vários erros de transcrição, bem como algumas omissões e harmonizações, o
que sugere um copista não muito competente. Importante característica do manuscrito é
0 fato de apresentar duas versões alternativas para a conclusão de Marcos (cap. 16, após
o v. 8), os tradicionais vs. 9-20, que na verdade aparecem como a segunda opção, e uma
conclusão bem mais curta, que diz: “Mas, relataram resumidamente a Pedro e aos que
com ele estavam tudo quanto lhes tinha sido dito. E, depois disso, o próprio Jesus enviou
por meio deles, do oriente ao ocidente, a sagrada e imperecível proclamação da salvação
eterna.”69
66 Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2a. ed. (Stuttgart: Sociedade Bíblica
Alemã, 1994), 499-500.
67 Nestle, Introduction to the Textual Criticism of the Greek New Testament, 78.
68 Comfort, 83.
70 A data do Códice Washingtoniano é controversa. A mais recente avaliação recomenda cuidado com respeito à
data tradicional e sugere, ainda que de forma tentativa, uma data mais tardia, em meados do sexto século (veja Ulrich
Schmid, “Reassessing the Palaeography and Codicology of the Freer Gospel Manuscript,” em The Freer Biblical Manu-
scripts: Fresh Studies of an American Treasure Trove, ed. Larry W. Hurtado, TCS 6 [Atlanta: SBL, 2006], 227-249).
71 Para uma análise completa do texto de Marcos, veja Larry W. Hurtado, Text-Critical Methodology and the
Pre-Caesarean Text: Codex W in the Gospel of Mark (Grand Rapids: Eerdmans, 1981).
73 Henry A. Sanders, The New Testament Manuscripts in the Freer Collection (Nova York: Macmillan, 1918), 139.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 57
outras coisas terríveis se aproximam. Pelos que pecaram eu fui entregue à morte, para que
retornem à verdade e não pequem mais, a fim de que possam herdar a glória espiritual e
incorruptível da justiça que está no Céu.
Embora a primeira parte da inserção já fosse conhecida por Jerônimo, que dizia tê-la
encontrado “em certas cópias e especialmente nos códices gregos,”74 ela tem naturalmente
um sabor apócrifo.
Θ/038 (Códice Korideti). Trata-se de um manuscrito dos Evangelhos do século dez que
mede 28 x 23 cm e contém 249 folhas de texto distribuído em duas colunas por página. Foi
escrito provavelmente no Mosteiro Ortodoxo de Santa Catarina, no Sinai, por um escriba
que conhecia muito pouco de grego, pois as letras são pesadas e rudes. Sua descoberta
inicial foi em 1853 num mosteiro em Korideti, nos montes caucasianos, de onde foi levado
para São Petersburgo. Cerca de duas décadas depois retornou para o Cáucaso, mas teve
sua localização ignorada por cerca de trinta anos. Em 1901, foi redescoberto pelo Bispo
Kirion numa das dependências da Catedral de Santo André, em Kutaisi, na Geórgia, de
onde foi levado para Tbilisi, capital do país, em cujo museu permanece desde então. Em
Mateus, Lucas e João reflete um texto posterior, mas 0 texto de Marcos é relativamente
antigo, muito semelhante, assim como o do Códice Washingtoniano, ao que foi usado em
Cesareia por Orígenes e Eusébio, no terceiro e quarto séculos.75 Uma de suas caracterís-
ticas mais interessantes é a inclusão, em Mt 27.16-17, daquele que seria o nome próprio
de Barrabás: “Jesus.” Nesse caso, Pilatos teria perguntado à multidão se deveria soltar a
“Jesus Barrabás” ou a “Jesus chamado Cristo.”76 O texto de Marcos foi publicado primeiro,
em 1907, mas uma completa transcrição do manuscrito foi publicada seis anos mais tarde
por Gustav Beermann e Caspar René Gregory.77
Ξ/040 (Códice Zakyntio). Escrito por dois escribas no oitavo século,78 o Códice Zakyn-
tio é um palimpsesto fragmentário que preserva vários capítulos de Lucas (1.1—11.33),
embora com algumas lacunas.79 É o mais antigo manuscrito do NT a trazer um comentário
77 A importância do Códice Korideti já foi maior. Quando o chamado texto cesareense ainda era considerado
um texto distinto e importante para a história textual do NT, o Códice Korideti era tido por muitos como o principal
representante desse texto (Aland e Aland, 118). Agora, porém, conquanto possa conter algumas leituras antigas,
dignas de serem ouvidas, ele não deve ser descrito senão como um manuscrito misto, que representa um texto mais
periférico em relação às principais tradições textuais existentes no segundo e terceiro séculos.
78 David C. Parker sugere uma data não posterior à virada do sétimo século (“The Date of Codex Zacynthius
[Ξ]: A New Proposal,” JTS 55 [2004]: 117-122, 130-131).
79 O texto original do pergaminho foi apagado no século doze para que, em seu lugar, fosse copiado 0 texto de
um lecionário dos Evangelhos.
AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
Minúsculos
81 Há treze minúsculos que datam do nono século e 132 do século dez, ou da virada do nono século para 0
século dez. Os séculos de maior produção foram do onze ao quatorze. Cópias manuscritas do NT grego continua-
ram a ser produzidas mesmo após o aparecimento dos primeiros textos impressos. Há cerca de setenta manuscritos
minúsculos que datam dos séculos dezessete ao dezenove.
82 Diversos manuscritos, porém, são partes do mesmo códice que foram catalogadas separadamente e pelo
menos 32 manuscritos não existem mais: acabaram se perdendo ou foram destruídos acidentalmente (e.g., em
algum incêndio).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 59
Em virtude da suposição de que, por sua data recente, os manuscritos minúsculos pou-
co ou nada acrescentariam aos trabalhos crítico-textuais, eles foram largamente ignorados
até 0 início do século vinte. Não há dúvida de que a grande maioria deles possui pouco ou
nenhum valor crítico; eles não são relevantes senão apenas como testemunhas da histó-
ria medieval do texto neotestamentário.83 Mas, há inúmeras exceções, como aqueles que
foram copiados de manuscritos bem antigos e cujo texto reflete os primeiros estágios da
tradição manuscrita. Por causa das muitas similaridades entre si, alguns desses manüscri-
tos foram agrupados em duas famílias textuais. São elas:
/ ( ׳Família 1). Em 1902, Kirsopp Lake descobriu a íntima correspondência textual en-
tre os manuscritos 1, 118, 131 e 209, todos copiados entre os séculos doze e quatorze. No
Evangelho de Marcos, bem como em algumas intrigantes passagens de Mateus (em parti-
cular Mt 27.16-17), o texto desses manuscritos se assemelha ao dos Códices Washingtonia-
no e Korideti, e tem afinidades com 0 texto utilizado por Orígenes e Eusébio no terceiro e
quarto séculos. A essa família também pertencem os manuscritos 1582 e 2193; também
relacionados, embora um pouco mais distantes, estão os manuscritos 22, 872, 884, 1192,
1210, 1282, 2542 e, possivelmente, 205.84
/ 13 (Família 13). Bem antes de Lake, em 1868, William H. Ferrar já havia identificado
uma família de manuscritos formada pelos minúsculos 13, 69, 124 e 346 (posteriormente
foram adicionados os manuscritos 174, 230, 543, 788, 826, 828, 983,1689 e 1709), todos
copiados entre os séculos onze e quinze, provavelmente na Calábria ou Sicilia, sul da Itália.
Importantes características dessa família são: a omissão de Mt 16.2-3; a transposição do
episódio da mulher adúltera do Evangelho de João (7.53—8.11) para Lucas (após 21.38); e
a transposição do relato do suor de sangue do Evangelho de Lucas (22.43-44) para Mateus
(após 26.39). Assim como a Família 1, a Família 13 também apresenta um texto misto, com
alguma semelhança com o que fora utilizado em Cesareia por Orígenes e Eusébio.85
33. Escrito no nono século em uma coluna por página, contém parte do AT (os Profetas)
e todo o NT, exceto por algumas lacunas nos Evangelhos (Mc 9.31—11.11; 13.11—14.60;
Lc 21.38—23.26) e pelo Apocalipse. Embora esteja bastante danificado, especialmente
em Atos, e apresente inúmeras correções posteriores, 0 manuscrito preserva um excelente
83 O texto da grande massa dos manuscritos minúsculos, diz Kenyon, é de “caráter secundário” e, por isso, “tem
pouco que ver com a restauração do texto primitivo, que é 0 objetivo primário da crítica textual” {The Text of the
Greek Bible, 192).
84 Veja Paul R. McReynolds, “Two New Members of Family One of the New Testament Text: 884 and 2542,” em
Texte und Textkritik: Eine Aufsatzsammlung, ed. Jurgen Dummer, TU (Berlin: Altademie, 1987), 397-403.
85 Veja Robert Devresse, Les Manuscrits grees de Vltalie méridionale: historie, classement, paléographie, ST 183
(Cidade do Vaticano: Biblioteca Apostólica, 1955).
60 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
81. Datado de 20 de abril de 1044, esse manuscrito compreende 0 Livro de Atos, embora
com algumas lacunas (4.8—7.17; 17.28—23.9), e as Epístolas Paulinas e Católicas. Escrito
de maneira um tanto descuidada por um escriba chamado João, ele consiste num dos mais
importantes minúsculos do NT,87 especialmente em Atos, cujo texto é comparável ao dos
melhores papiros e unciais do terceiro e quarto séculos. Contém 282 folhas, das quais 57
se encontram na Biblioteca Britânica e o restante na Biblioteca Patriarcal de Alexandria.
565. Escrito no nono século com letras douradas em velino purpúreo, o códice 565 é
um dos mais belos dentre todos os manuscritos gregos do NT. Trata-se de uma cópia de
luxo dos Evangelhos escrita provavelmente no Mosteiro Ortodoxo de São João, nos arredo-
res de Ponto, na Ásia Menor, para a Imperatriz Teodora. Em Marcos, contém um texto rela-
tivamente antigo, semelhante ao do Códice Korideti. Um colofão afirma que o manuscrito
fora copiado e corrigido a partir “de antigos manuscritos procedentes de Jerusalém.”88
Encontra-se na Biblioteca Nacional de São Petersburgo.
892. Adquirido pelo Museu Britânico em 1887, o manuscrito contém os quatro Evange-
lhos e foi escrito no nono século em uma coluna por página.89 Embora as folhas sejam relati-
vamente pequenas (17,2 x 11,5 cm), o texto preserva a divisão em páginas e linhas do ances-
trai maiusculo do qual foi copiado, 0 que faz com que as margens especialmente à esquerda
e em baixo sejam maiores que 0 normal. O texto é de excelente qualidade, muito próximo
do que é preservado nos manuscritos אe B. Encontra-se atualmente na Biblioteca Britânica.
86 A expressão “die Kónigin unter den kursiv geschrieben, ” atribuída a J. G. Eichhorn por Heinrich J. Vogeis
(Handbuch der Textkritik des Neuen Testaments, 2a. ed. [Bonn: Hanstein, 1955], 66), é de difícil tradução para o
português por causa da dissonância de gênero. Em alemão, “manuscrito” (Handschrift) é uma palavra feminina,
daí o título “rainha”, utilizado tanto em alemão (Kõnigin) quanto em inglês (queen). Em português, porém, não
somente “manuscrito” mas também “cursivo” ou “minúsculo” são palavras masculinas, o que torna 0 uso do femi-
nino “rainha” bastante estranho. “O rei dos cursivos” ou, melhor ainda, “o rei dos minúsculos,” como eu mesmo já
me referi ao manuscrito (Wilson Paroschi, Crítica Textual do Novo Testamento, 2a. ed. [São Paulo: Vida Nova, 1999],
33, 225) resolvería 0 problema do gênero, embora consista numa adaptação da expressão original. De qualquer
modo, o códice 33 talvez já não possa mais ser considerado 0 melhor minúsculo do NT, pelo menos se os grupos de
livros neotestamentários forem tomados individualmente. Nos Evangelhos, ele talvez seja superado pelo ms. 892;
em Atos, pelo ms. 81; nas Epístolas, pelo ms. 1739.
88 Esse mesmo colofão aparece também em outros doze manuscritos: Λ/039, 20,157,164, 215, 262, 300, 376,
428, 686, 718 e 1071.
tólicas) que continha originariamente todo o NT. Escrito no século dez em uma coluna por
página, foi descoberto em 1879 por E. von der Goltz no Mosteiro Ortodoxo da Grande Laura,
no Monte Atos, na Grécia, onde permanece até hoje. Sua importância, além qualidade textu-
al, está no fato de trazer à margem notas tomadas dos escritos de Irineu, Clemente, Orígenes
e Basílio. Visto que Basílio (329-379) é o mais recente de todos, o ancestral desse manus-
crito pode ter sido copiado já no final do quarto século. Numa nota prefaciada às Epístolas
Paulinas, as quais incluem Hebreus, o escriba, chamado Efraim, indica que seguiu o texto
usado por Orígenes; no caso de Romanos, 0 texto foi tomado diretamente de seu comentário.
Não há, porém, nenhuma diferença substancial na qualidade do texto entre Romanos e as
demais Epístolas, incluindo-se as Católicas: ele certamente remonta aos primeiros anos de
Orígenes, refletindo, assim, o mesmo tipo de texto que circulava em Alexandria no final do
segundo século.90 Manuscritos cujo texto está de alguma forma relacionado com 1739 são
os seguintes: 0121, 6, 323, 424, 945, 1241, 1243, 1735, 1908, 2298, 2492 e, possivelmente,
0243, 630,1881 e 2200.91 Em Atos, o texto é um pouco inferior, mas ainda de boa qualidade.
Lecionários
90 Para as muitas afinidades entre 0 minúsculo 1739 e os manuscritos 1p45e B, veja Zuntz, 68-84.
91 Léon Vaganay, An Introduction to New Testament Textual Criticism, ed. C.-B. Amphoux, trad. Jenny Heimer-
dinger (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 24.
92 Josef Schmid, Studien zur Geschichte des griechischen Apokalypse-Textes, 2 vols. (Munique: Zink, 1955-1956), 2:24.
62 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
Prática herdada das sinagogas judaicas, onde trechos da Lei e dos Profetas eram lidos
cada sábado (cf. Lc 4.16-20), a leitura litúrgica das Escrituras certamente retrocede aos
primórdios da igreja. Gregory declara que a presença de leituras para o sábado aponta
para uma época em que o sétimo dia da semana ainda era “uma observância original
judaico-cristã” e que as leituras para o domingo foram acrescentadas mais tarde .93 A
principal dúvida que permanece diz respeito a quando as leituras assumiram a forma em
que aparecem nos lecionários e que ainda hoje é utilizada na Igreja Ortodoxa. Metzger
sugere 0 quarto século,94 mas os Aland argumentam que não pode ter sido senão após
o sétimo ou oitavo século, época em que surgiu 0 calendário bizantino, visto que ne-
nhum dos lecionários de séculos anteriores coincide com 0 sistema bizantino .95 Isso tem
implicações profundas e definitivas para o tipo de texto encontrado nesses manuscri-
tos. Uma data tardia para 0 sistema de leituras sugere um texto igualmente tardio, e o
próprio Metzger reconhece que, basicamente, os lecionários gregos são testemunhas do
texto que predominou no Império Bizantino durante a Idade Média.96 Por muito tempo
negligenciados,97 os lecionários nunca foram adequadamente representados em qual-
quer edição crítica do NT. As coisas começaram a mudar em 1966, quando teve início
a publicação do GNT (The Greek New Testament) pelas Sociedades Bíblicas Unidas, em
cujo aparato a evidência de vários lecionários foi, pela primeira vez, citada de forma
sistemática .98 Quanto ao NA27, apenas nove lecionários são incluídos após as centenas
de manuscritos listados no Apêndice 1. Todavia, ainda há muito que se aprender acerca
desses manuscritos e novas pesquisas podem muito bem trazer à luz textos antigos e
independentes da tradição bizantina, como já tem acontecido .99 De qualquer modo, os
lecionários podem ser de grande valia para a reconstrução da história medieval do texto.
94 Bruce M. Metzger, “Greek Lectionaries and a Critical Edition of the Greek New Testament,” em Die alten
Ubersetzungen des Neuen Testaments, die Kirchenvdterzitate und Lektionare, ed. Kurt Aland, ANTF 5 (Berlim: De
Gruyter, 1972), 495-496.
96 Metzger, “Greek Lectionaries and a Critical Edition of the Greek New Testament,” 495. Para mais informação
sobre o assunto, veja Carroll D. Osburn, “The Greek Lectionaries of the New Testament,” em The Text of the New
Testament in Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD
46 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 61-74.
97 Sempre se acreditou que, por serem recentes, os lecionários não apresentavam senão uma forma tardia do
texto neotestamentário. Kenyon, e.g., declarou que os lecionários são “comparativamente tardios quanto à data e
padecem da suspeita de que seus escribas podem ter se sentido menos apegados à precisão textual que no caso das
cópias do NT propriamente dito” (Handbook to the Textual Criticism of the New Testament, 141).
98 A pesquisa sistemática dos lecionários começou somente em 1933 com a publicação, pela Universidade de
Chicago, do primeiro volume, de um total de sete, da série Studies in the Lectionary Text of the Greek New Testa-
ment. A inclusão de evidência lecionária na primeira edição do GNT (1966) teve como base um estudo preparado
em 1963 pela mesma universidade (Allen P. Wikgren, “Chicago Studies in the Greek Lectionary of the New Testa-
ment,” em Biblical and Patristic in Memory of Robert Pierce Casey, ed. J. H. Birsdall e R. W. Thomson [Nova York:
Herder, 1963], 96-121).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 63
A ntigas V ersões
Depois dos manuscritos gregos, a mais importante fonte para os trabalhos de restau-
ração textual do NT são as antigas versões, que surgiram em decorrência da expansão do
cristianismo em regiões onde vários grupos étnicos não dominavam a língua grega uni-
versai. Tais versões começaram a surgir já em meados do segundo século e continuaram
aumentando em número e variedade à medida que a fé cristã se difundia mais e mais. As
versões mais antigas e importantes são a siríaca, a latina e a copta, as quais remontam a
protótipos gregos anteriores à grande maioria dos manuscritos gregos hoje conhecidos.
Assim, apesar de os mais antigos manuscritos sobreviventes dessas versões não recuarem
além do início do quarto ou, quando muito, 0 final do terceiro século, o texto que elas
evidenciam representa um estágio de desenvolvimento não posterior ao final do segundo
século. O valor das versões para a crítica textual, portanto, não está nelas mesmas, mas
nas indicações que dão do texto grego do qual foram traduzidas.
Por causa de suas limitações, porém, as versões devem ser usadas com muita cautela.
Além do despreparo de alguns tradutores,99100 a sintaxe e o vocabulário gregos nem sempre
encontram correspondentes exatos em outras línguas. O latim, por exemplo, não tem ar-
tigo definido; 0 síriaco não pode distinguir entre o aoristo e o perfeito gregos; e o copta
não sabe 0 que é voz passiva. Muitas vezes, uma variante versional não passa de mera
interpretação de um texto difícil. Além disso, ao serem copiadas e recopiadas, as versões
também ficaram expostas aos mesmos erros e vícios encontrados nos manuscritos gregos.
De qualquer modo, as primeiras versões nos permitem retroceder a uma forma do NT que,
do ponto de vista cronológico, aproxima-se quase como nenhuma outra do texto original
e possibilitam conclusões bastante seguras a respeito do texto grego que se achava em uso
nos lugares onde foram feitas.
Siríaca
Nos primeiros séculos da Era Cristã, 0 antigo aramaico estava dividido em dois prin-
cipais grupos dialetais: o aramaico oriental, que incluía particularmente o dialeto siríaco
e era falado na Síria e partes da Mesopotâmia, e o aramaico ocidental, que era a língua
falada pelos judeus nos dias de Jesus e os cristãos de origem palestina.101 De acordo com
0 relato de Atos, as primeiras conversões mais significativas fora dos círculos judaicos
99 Veja Aland e Aland, 169 e esp. Klaus Wachtel, “Early Variants in the Byzantine Text of the Gospels,” em
Transmission and Reception: New Testament Text-critical and Exegetical Studies, ed. J. W. Childers and D. C. Parker,
TS 4 (Piscataway: Gorgias, 2006), 28-47.
100 Referindo-se às primeiras traduções latinas, Agostinho declarou: “Os que traduziram as Sagradas Escrituras
do hebraico para 0 grego podem ser contados, mas os tradutores latinos são incontáveis, pois cada um em cujas
mãos caía um códice grego, nos primeiros tempos da fé, imaginando possuir certo conhecimento de ambas as lín-
guas, atrevia-se a traduzir” (Docti: chr. 2.11).
64 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
ocorreram em Antioquia da Síria (11.19-24) e foi ali que os seguidores de Jesus foram pela
primeira vez chamados cristãos (v. 26). Na verdade, Antioquia acabou desempenhando
entre os não judeus 0 mesmo papel na disseminação do evangelho que Jerusalém desem-
penhou entre os judeus. Uma das maiores cidades do Império Romano, Antioquia era um
importante centro da cultura e língua gregas.101102 Nos arredores da cidade, porém, bem
como em outras vilas e províncias sírias, falava-se quase que exclusivamente o siríaco, e
a rápida expansão da nova fé, especialmente para os lados de Edessa e Arbela, na região
mesopotâmica, logo fez surgir a necessidade de uma tradução das Escrituras na língua do
povo.103 Acredita-se em geral que as primeiras traduções do NT para o siríaco foram feitas
por volta do ano 150 ou pouco depois. Cinco são as versões siríacas que se distinguem:
a antigo-siríaca (que compreende a sinaítica e a curetoniana), a peshita, a palestina, a
filoxeniana e a heracleana. Elas são designadas pela abreviatura sir seguida de uma letra
exponencial distintiva104 e sobrevivem em cerca de quatrocentos manuscritos posteriores
ao quarto século. Também uma versão siríaca, o Diatessarão, de Taciano, merece um tra-
tamento à parte por causa de suas características distintas; sua antiguidade faz dele uma
importante testemunha do texto do NT.
101 Às vezes se fala ainda num terceiro grupo, 0 babilônico, que era falado, com algumas diferenças dialetais,
tanto pelos judeus de Babilônia, e preservado basicamente pelo Talmude Babilônico, quanto pelos mandeus, uma
seita gnóstica não cristã existente até os dias de hoje (veja Stephen A. Kaufman, “Languages [Aramaic],” ABD, 6
vols. [Nova York: Doubleday, 1992], 4:175).
102 No início do quinto século, Isaque de Antioquia ainda se referiu à cidade como aquela “agradável cidade
dos gregos” (Carm. 15).
103 Há poucas informações históricas sobre a origem e o desenvolvimento da igreja síria. Para uma breve
reconstrução, veja Bruce M. Metzger, The Early Versions of the New Testament: Their Origin, Transmission and Limi-
tations (Oxford: Clarendon, 1977), 4-10.
104 Existe pequena variação na forma como as versões são designadas. As designações aqui adotadas seguem
0 padrão de O Novo Testamento Grego, da Sociedade Bíblica do Brasil (JVTG), 0 qual não consiste senão no aportu-
guesamento das formas adotadas internacionalmente pelas Sociedades Bíblicas Unidas.
106 Esta é a posição da maioria dos estudiosos modernos. Para uma defesa equilibrada da hipótese, veja esp.
William L. Petersen, “New Evidence for the Question of the Original Language of the Diatessaron,” em Studien zum
Text und zur Ethik des Neuen Testaments: Festschrift zum 80. Geburtstag von Heinrich Greeven, ed. Wolfgang Schrage,
BZNW 47 (Berlim: De Gruyter, 1986), 325343־.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 65
107 Kenyon, Handbook to the Textual Criticism of the New Testament, 150. Para uma breve história dos estudos
diatessarônicos até 0 presente, veja William L. Petersen, “The Diatessaron of Tatian,” em The Text of the New Testa-
ment in Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46
(Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 77-96.
108 Metzger e Ehrman, 96. Para argumentos em favor do quarto século, veja Aland e Aland, 194.
109 O antigo texto siríaco de Atos e das Epístolas Paulinas não sobreviveu senão em citações feitas por antigos
escritores sírios, principalmente Efraim, cujas numerosas obras sobreviveram não apenas em siríaco, mas também
em traduções armênias, gregas e latinas.
110 O texto do manuscrito acrescenta a conjunção “que,” inexistente no original grego, depois do advérbio “hoje,”
0 que necessariamente 0 vincula ao verbo anterior (“dizer”): “Na verdade te digo hoje que comigo tu estarás...”
66 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
sirp (Siríaca Peshita). Também conhecida como Vulgata Siríaca, a Peshita foi preparada
no início do quinto século e consiste provavelmente numa revisão da versão antigo-siríaca.
Segundo a tradição, a revisão foi obra de Rábula, bispo de Edessa (411-435). É conhecida
mediante mais de 350 manuscritos, muitos dos quais tão antigos quanto 0 próprio quinto
ou sexto século. Dentre as versões siríacas, a Peshita é a mais amplamente atestada e
consistentemente transmitida, ao ponto de ainda hoje ser preservada e reverenciada pela
igreja síria. Contém todo o NT, exceto 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse, que na
época ainda não eram localmente reconhecidos como canônicos. Embora acrescentadas
em manuscritos posteriores, as seguintes passagens também estão ausentes: Mt 27.35;
Lc 22.1718 ;־Jo 7.53—8.11; At 8.37; 15.34; 28.29; 1J0 5.7-8. Graças à Massorah, um siste-
ma de escrita e fonética ensinado nas escolas sírias para garantir a correta transcrição e
pronúncia do texto bíblico, 0 texto da Peshita foi preservado de forma bastante fiel, com
pouquíssimas variantes.1״
sif-pai (siríaca Palestina). A versão conhecida como Siríaca Palestina foi feita possível-
mente a partir de fontes gregas para os cristãos do norte da Palestina que falavam 0 ara-
maico. Sua data é muito disputada, mas se acredita em geral que seja do quinto século.
Seus documentos mais importantes são três lecionários dos Evangelhos dos séculos onze
e doze, mas há também fragmentos em texto contínuo da maioria dos livros do NT. Estão
ausentes 2 Tessalonicenses, Filemom, as Espístolas Católicas exceto Tiago e 2 Pedro, e 0
Apocalipse.1 2יי
sirph (Siríaca Filoxeniana). Preparada no início do sexto século pelo prelado auxiliar
Policarpo, a pedido de Filoxeno, bispo de Mabug (485-523), na Síria oriental, a versão
siríaco-filoxeniana inclui os livros que haviam sido omitidos na Peshita (2 Pedro, 2 e 3
João, Judas e Apocalipse), mais umas poucas passagens, como a Perícope da Adúltera
(Jo 7.53—8.11). Infelizmente, isso é quase tudo que sabe acerca da versão. De acordo com
Metzger, poucos manuscritos têm sido positivamente identificados como filoxenianos, sen-
do que o mais antigo é do nono séculoJ13
sirh (Siríaca Heracleana). A versão siríaco-heracleana é assim chamada por haver sido
preparada no ano 616 por Tomás de Heracleia, num mosteiro antoniano em Enaton, nas
proximidades de Alexandria, após perder seu episcopado e ser expulso de Mabug por
Domiciano de Melitene, sobrinho do Imperador Maurício. Além de vários lecionários,
2 ו וA ideia de que essa versão pode remontar aos primeiros judeus cristãos que fugiram de Jerusalém para
Pella, no lado oriental do Jordão, por ocasião do cerco de Vespasiano no ano 69 (James A. Montgomery, “Hebrew
Hesed and Greek Charis,” HTR 32 [1939]: 100), é, na melhor das hipóteses, especulativa, embora não pareça de
todo impossível.
Latina
Embora o latim fosse a língua oficial do Império Romano, o grego era a língua comum
e continuou a sê-lo até por volta do terceiro século. Os primeiros documentos cristãos re-
lacionados com Roma eram todos em grego, como o demonstram a Epístola de Paulo aos
Romanos (c.57), a carta que Clemente, bispo de Roma, escreveu à igreja de Corinto (c.96),
a carta enviada por Inácio aos crentes romanos (c.107) e outras obras como as de Hermas
(c.150), Justino Mártir (c.160) e Hipólito (c.210). Segundo Jerônimo, 0 Papa Victor (c.190)
foi 0 primeiro autor a escrever trabalhos teológicos em latim.116 Não obstante a influência
do grego, é natural que nem todos 0 falassem, e logo surgiu a necessidade de uma tradu-
ção das Escrituras na língua vernácula do império.
Duas são as versões latinas do NT: a Antiga Latina, que engloba todas as traduções
feitas até 0 quarto século, e a Vulgata Latina, preparada por Jerônimo entre 383 e 405.
Evidências sugerem que as primeiras traduções latinas começaram a surgir no norte da
África, provavelmente em Cartago, no último quartel do segundo século.117 Pouco depois,
talvez já no início do terceiro século, outras traduções apareceram na Europa, em lugares
como Itália, Gália e Espanha, onde o grego, que predominara até então, começava a ser
suplantado pelo latim. A versão antigo-latina, portanto, está dividida em duas famílias
115 Tratamento detalhado das versões siríacas pode ser encontrado em Metzger, The Early Versions of the New
Testament, 3-98. Para uma discussão mais sucinta, veja Tjitze Baarda, “The Syriac Versions of the New Testament,”
em The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e
Michael W. Holmes, StD 46 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 97-112.
ite/50 (Códice Palatino). Datado do quinto século, o Códice Palatino contém partes dos
quatro Evangelhos na chamada ordem ocidental (Mateus, João, Lucas, Marcos) e foi es-
crito com letras prateadas em pergaminho purpúreo. Apesar de essencialmente africano,
foi modificado ao estilo europeu e é similar ao texto usado por Agostinho. Encontra-se
atualmente no Museu Nacional de Trento.120
ith/5s (Códice Floriacense). Também conhecido como Palimpsesto Fleury, por haver per-
tencido à Abadia de Fleury (hoje St. Benoit), às margens do Loire, ao sudoeste de Paris,
trata-se de um manuscrito do quinto ou sexto século. Possui uma quarta parte de Atos,
juntamente com porções das Epístolas Católicas e o Apocalipse. A tradução é bastante
livre e há muitos erros escribais. Atualmente faz parte do acervo da Biblioteca Nacional
de Paris.
itk/' (Códice Bobiense). Escrito no final do quarto ou início do quinto século, esteve
por muito tempo no mosteiro irlandês de Bobbio, no norte da Itália, até ser transferido
para a Biblioteca Nacional Universitária de Torino, onde se encontra no momento. Sinais
paleográficos indicam que foi copiado de um manuscrito do segundo século. Compreen-
de 96 folhas com partes de Mateus e Marcos, e consiste na mais importante testemunha
117 Veja Metzger, The Early Versions of the New Testament, 285290־. Normalmente citadas entre as evidências de
uma origem anterior da versão antigo-latina (cf. A. T. Robertson, An Introduction to the Textual Criticism of the New
Testament, 2a. ed. [Garden City: Doubleday, 1928], 122), as citações do NT feitas por Tertuliano, escritor latino do
final do segundo século, não são conclusivas. Tertuliano conhecia o grego e suas citações parecem ser traduzidas
diretamente dessa língua (Kenyon, The Text of the Greek Bible, 146).
8 ו יO mais recente manuscrito antigo-latino, do século treze, é também um dos mais interessantes, pelo menos
quanto ao tamanho. Trata-se do Códice Gigante (itg1g), assim chamado por medir nada menos que 89,5 x 49 cm.
Ele preserva 0 antigo texto latino em Atos e Apocalipse; nos demais livros, segue a Vulgata.
19 יO uso do termo “ítala” para designar a Antiga Latina, embora tradicional, é indevido, pois a citação de
Agostinho da qual deriva (Doctr. chr. 2.15) é obscura e talvez não se refira senão apenas a uma forma europeia
da versão antigo-latina. Veja discussão sobre o assunto em Metzger, The Early Versions of the Nestament, 290-293.
2° וUma página (Mt 13.12-23) se acha em Dublim e outra (Mt 14.11-22), em Londres, na Biblioteca Britânica.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 69
ita/3 (Códice Vercelense). Escrito no quarto século com tinta dourada e prateada em ve-
lino purpúreo, é provavelmente o mais antigo manuscrito europeu antigo-latino. Segundo
uma tradição do oitavo século, foi produzido por Eusébio, bispo de Vercelli, martirizado
em 370 ou 371. Contém os Evangelhos também na ordem ocidental e, depois do Códice
Bobiense, é o mais importante manuscrito antigo-latino. Encontra-se na biblioteca da ca-
tedral de Vercelli, no norte da Itália.
itb/4 (Códice Veronense). Datado do quinto século e também escrito com letras douradas
e prateadas em velino purpúreo, contém dos quatro Evangelhos quase em sua totalidade.
Seu texto é bastante similar ao que foi usado por Jerônimo para a Vulgata. Pertence à bi-
blioteca da catedral de Verona, também no norte da Itália.
itd/5 (Códice Beza). O nome é 0 mesmo do maiúsculo D/05, também conhecido como
Códice Cantabrigiense, por representar 0 texto latino desse que é o mais antigo manuscri-
to bilíngue do NT, embora o latim não seja tradução do grego ao lado. Contém os Evange-
lhos, o Livro de Atos e a Epístola de 3 João, mas com várias lacunas, e foi escrito na virada
do quinto para o sexto século. A forma de texto, porém, é bastante antiga, não sendo
posterior ao início do terceiro século. Está na biblioteca da Universidade de Cambridge.122
122 Para uma descrição detalhada de outros importantes manuscritos antigo-latinos, veja Metzger, The Early
Versions of the New Testament, 295-319. Veja também Philip Burton, The Old Latin Gospels: A Study of Their Texts and
Language (Oxford: Oxford University Press, 2000), 14-28.
125 Werner G. Kümmel, Introduction to the New Testament, ed. rev., trad. Howard C. Kee (Nashville: Abingdon,
1975), 534.
70 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
126 Há alguma evidência de que a revisão dos livros restantes do NT possa não ter sido feita por Jerônimo (veja
Kenyon, The Text of the Greek Bible, 158), mesmo tendo ele afirmado expressamente que 0 fizera (Vir. ill. 135). Julio
T. Barrera sugere que o responsável pelo trabalho talvez tenha sido Rufino, discípulo de Jerônimo, que teria agido
de acordo com as instruções e princípios estabelecidos por seu mestre (The Jewish Bible and the Christian Bible: An
Introduction fo the History of the Bible [Grand Rapids: Eerdmans, 1998], 355). De qualquer modo, não há dúvida de
que em nenhuma outra seção a revisão foi tão profunda e meticulosa como nos Evangelhos.
128 Como disse 0 humanista Erasmo de Roterdam (1469-1536), numa carta a Christopher Fisher, ‘Jerônimo
corrigiu, mas 0 que ele corrigiu já está corrompido de novo” (John A. Faulkner, Erasmus: The Scholar [Nova York:
Eaton & Mains, 1907], 73).
129 Para uma lista das várias revisões, veja Barrera, 356. Com a oficialização da Vulgata, em 1546, houve um
novo esforço no sentido de se publicar uma edição com seu texto revisado. A edição publicada em 1590 sob 0 co-
mando e coordenação do Papa Sisto Y e por isso chamada Vulgata Sistina, foi substituída já em 1592 pela Vulgata
Clementina, preparada por ordem do novo pontífice, Clemente VIII. Os erros dessa edição foram parcialmente
corrigidos por uma segunda (1593) e finalmente pela terceira (1598). No final do século dezenove e a primeira
metade do século vinte, John Wordsworth e Henry J. White prepararam uma edição crítica do NT da Vulgata em
três volumes, os quais foram publicados em Oxford (1889-1954).
130 No aparato crítico do NTG, são usadas apenas as abreviaturas vg, quando as edições Clementina e de
Wordsworth-White concordam; vgcl, quando a edição Clementina difere da de Wordsworth-White; e vgww, quando
a edição de Wordsworth-White difere da Clementina.
131 Veja Metzger, The Early Versions of the New Testament, 335.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 71
Copta
copbo (Copta Boaírica). Falado na região de Alexandria, no Delta do Nilo, o boaírico tem
sido o dialeto da liturgia copta desde o sexto século. A tradução do NT nesse dialeto re-
monta ao quarto século e é testemunhada por cerca de uma centena de manuscritos, todos
incompletos, sendo dois do próprio quarto século132133 e 0 restante de origem bem posterior.
Assim como a versão Saídica, a Boaírica também preserva um texto bastante antigo, com
muitas afinidades com os Códices Vaticano e Sinaítico.
132 Para mais informação sobre as versões latinas, veja ibid., 285-374. Veja também Jacobus H. Petzer, “The
Latin Version of the New Testament,” em The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays on the
Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 113-130.
133 Os dois manuscritos compreendem uma cópia do Evangelho de João e um fragmento de Filipenses. Como
0 texto desses manuscritos difere do que é encontrado em cópias boaíricas posteriores, eles são algumas vezes cias-
sificados como protoboaíricos (coppbo) .
72 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
copacm (Copta Acmímica). A mais fragmentária das versões coptas. Um de seus manus-
critos é um códice bilíngue de papiro contendo o Evangelho de João (caps. 10-13), Tiago e
1 Clemente. Data do quarto século e se encontra em Estrasburgo, França.
Outras Versões
Há ainda um bom número de outras antigas versões do NT, como a gótica, a armênia,
a etíope, a georgiana, a nubiana, a arábica e a eslava, mas que são de menor importância
para a crítica textual, por não haverem sido traduzidas diretamente do texto grego. A345
34 יOs Códices Alexandrino e Efraimita, ambos do quinto século, são incompletos em Mateus, 0 mesmo acon-
tecendo com todos os papiros de Mateus anteriores ao sexto século.
35 יInformação adicional sobre as versões coptas pode ser encontrada em Metzger, The Early Versions of the New
Testament, 99-152; Frederik Wisse, “The Coptic Versions of the New Testament,” em The Text of the New Testament in
Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46 (Grand
Rapids: Eerdmans, 1995), 131-141.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 73
Citações Patrísticas
136 Para um estudo completo dessas e outras versões, veja Metzger, The Early Versions of the New Testament,
153-282, 375-460.
137 Veja os três primeiros volumes de J. Allenbach et al., Biblia Patristica: Index des citations et allusions bibli-
ques dans la littérature patristique, 7 vols. (Paris: CNRS, 1986-2000). As cifras referentes ao NT são estimadas e
foram obtidas com base no número total de citações e alusões às Escrituras mencionadas em cada volume (séc.
II, 27 mil; séc. III exceto Orígenes, 22 mil; Orígenes, 57 mil) e a quantidade de páginas destinadas às referências
neotestamentárias.
74 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
em que o escritor (1) usa frases tais como “meu códice aqui diz...,” (2) afirma que alguns
códices dizem isso e aquilo, mas outros dizem algo diferente, e (3) cita um texto mais de
uma vez e o faz de forma consistente.■138
A importância das citações para os trabalhos crítico-textuais está, em primeiro
lugar, na possibilidade de representarem um texto bastante antigo, do qual pouco ou
nenhum testemunho de manuscrito existe. Além disso, elas também podem evidenciar
as primeiras tendências que influenciaram o desenvolvimento histórico do texto. E,
por fim, pelo fato de quase sempre poderem ser datadas e localizadas geograficamen-
te, elas permitem ainda que se determine com relativa precisão a data e a procedência
geográfica dos tipos de texto encontrados nos manuscritos gregos e versões.139 Por
exemplo, visto que as citações de Cipriano, bispo de Cartago por volta do ano 250,
geralmente coincidem com a forma de texto preservada no manuscrito antigo-latino
k (Códice Bobiense), é bem provável que esse manuscrito, que é do final do quarto ou
início do quinto século, descenda de uma cópia em uso no norte da África em meados
do terceiro século.
Enfim, as citações patrísticas representam um auxílio valioso para a reconstituição
da história primitiva do texto do NT e, por conseguinte, de sua mais antiga forma textual
acessível.140 A maior parte delas é encontrada em documentos gregos e latinos; muitas
estão em siríaco e umas poucas em outras línguas.141 Alguns dos escritores eclesiásticos
mais importantes para a crítica textual do NT são os seguintes:142
138 Parker, An Introduction to New Testament Manuscripts and Their Texts, 111. Veja também Carroll D. Osburn,
“Methodology in Identifying Patristic Citations in NT Textual Criticism,” NovT 47 (2005): 313-343.
139 “Esse tipo de precisão,” diz Bart D. Ehrman, “é um sine qua non para nossa busca dos elusivos propósitos da
disciplina” (Studies in the Textual Criticism of the New Testament, NTTS 33 [Leiden: Brill, 2006], 247).
140 Para discussões recentes sobre 0 significado das citações patrísticas para a crítica textual neotestamentária,
veja Gordon D. Fee, “The Use of Greek Fathers for New Testament Textual Criticism,” J. Lionel North, “The Use
of the Latin Fathers for New Testament Textual Criticism,” Sebastian R Brock, “The Use of the Syriac Fathers for
New Testament Textual Criticism,” em The Text of the New Testament in Contemporary Research: Essays of the Status
Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), resp. 191207־,
208-223, 224-236.
ו4 וHá vários estudos sobre o texto dos escritores eclesiásticos. A série “The New Testament in the Greek Fa-
thers,” e.g., patrocinada pela Sociedade de Literatura Bíblica (SBL, em inglês), já conta com vários volumes: Bart
D. Ehrman, Didymus the Blind and the Text of the Gospels, SBLNTGF 1 (Atlanta: Scholars, 1986); James A. Brooks,
The New Testament Text ofGregoy ofNyssa, SBLNTGF 2 (Atlanta: Scholars, 1991); Bart D. Ehrman, Gordon D. Fee
e Michael W. Holmes, The Text of the Fourth Gospel in the Writings ofOrigen, SBLNTGF 3 (Atlanta: Scholars, 1992);
Darrell D. Hannah, The Text o f l Corinthians in the Writings ofOrigen, SBLNTGF 4 (Atlanta: Scholars, 1997); Jean-
-François Racine, The Text of Matthew in the Writings of Basil of Caesarea, SBLNTGF 5 (Atlanta: SBL, 2004); Carroll
D. Osburn, The Text of the Apostolos in Epiphanius of Salamis, SBLNTGF 6 (Leiden: Brill, 2004); Roderic L. Mullen,
The New Testament Text of Cyril of Jerusalem, SBLNTGF 7 (Atlanta: Scholars, 1997); Carl R Cosaert, The Text of the
Gospels in Clement of Alexandria, SBLNTGF 9 (Atlanta: SBL, 2008).
142 As informações a seguir foram baseadas principalmente em F. L. Cross e E. A. Livingstone, eds., The Oxford
Dictionary of the Christian Church, 3a. ed. (Oxford: Oxford University Press, 1997); Johannes Quasten, Patrology, 4
vols. (Utrecht: Sprectrum, 1950-1986); J. D. Douglas, ed., The New International Dictionary of the Christian Church
(Grand Rapids: Zondervan, 1978).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 75
Agostinho (354-430), bispo de Hipona. Aquele com quem “a igreja antiga atingiu seu
ponto religioso mais elevado desde os tempos apostólicos,”143 Agostinho escreveu, segun-
do seu próprio balanço literário,144 nada menos de 93 obras filosóficas, dogmáticas, exe-
géticas e outras, sem contar os numerosos sermões e as não menos numerosas cartas, por
vezes bem extensas. Seu trabalho mais importante foi A Cidade de Deus, dividida em 22
livros, onde inseriu sua filosofia da história e uma defesa do cristianismo contra a acusa-
ção pagã de que, no abandono dos antigos deuses, sob cuja proteção Roma alcançara seu
apogeu, estava a causa de sua ruína. Nenhum teólogo influenciou tanto a teologia medie-
vai católica como Agostinho.
Ambrósio (c. 339-397), bispo de Milão, ficou conhecido desde a Idade Média como um
dos quatro “doutores da igreja” latina, juntamente com Gregorio I, Jerônimo e Agostinho,
por cuja conversão fora um dos responsáveis. Embora limitasse suas exposições bíblicas ao
método alegórico, Ambrósio foi pregador e teólogo de grande talento e autor de várias ho-
milias, tratados exegéticos e escritos morais e dogmáticos. Seus tratados exegéticos se ba-
seiam principalmente no AT, mas também incluem uma exposição do Evangelho de Lucas.
Atanásio (c.296-373), bispo de Alexandria, mas cinco vezes deposto pelos arianos e
seus simpatizantes. O campeão da ortodoxia contra 0 arianismo, apesar de seus métodos
muitas vezes nada recomendáveis, Atanásio escreveu obras de vasto alcance: tratados apo-
logéticos e doutrinários, ensaios contra os arianos, comentários de muitos livros bíblicos
e um bom volume de cartas, das quais a mais importante talvez seja a Carta Pascoal de
367, na qual inseriu aquela que consiste na primeira lista dos 27 livros que hoje compõem
o cânon do NT.145
Basílio (c. 330-379), bispo de Cesareia, na Capadócia, e um dos três “pais capadócios,”
juntamente com Gregório de Nissa, seu irmão, e Gregário de Nazianzo. Educado em Cesa-
reia, Constantinopla e Atenas e grandemente versado em Orígenes, Basílio fez muito para
defender a fé ortodoxa contra os arianos, bem como para popularizar o tipo comunal de
organização monástica. Escreveu várias obras dogmáticas, ascéticas e muitas cartas, onde
se revela um pastor muito afetuoso, bastante interessado no bem-estar físico e espiritual
de seu povo.
143 Williston Walker, A History of the Christian Church, 3a. ed. rev. Robert T. Handy (Nova York: Scribner’s Sons,
1970), 160.
Igreja Católica, foi o primeiro a fazer uma formulação teológica da sucessão apostólica e
a primazia do bispo de Roma na igreja. Escreveu também inúmeros pequenos tratados e
cartas, todos muito apreciados desde 0 início.
Cirilo (c. 315-387), bispo de Jerusalém. Como escritor, ficou conhecido principalmente
por suas instruções catequéticas destinadas aos candidatos ao batismo, as quais compreen-
dem inúmeras citações e referências bíblicas. Embora seu episcopado tenha sido interrom-
pido em três ocasiões por motivos teológicos, sua ortodoxia foi confirmada pelo Concilio
de Constantinopla, em 381.
Cirilo (7444), patriarca de Alexandria. Conhecido como o último dos antigos apoio-
gistas cristãos, Cirilo esteve envolvido em muitas controvérsias cristológicas. Escreveu
diversas obras apologéticas e exegéticas, que incluem comentários de diversos livros tanto
do AT quanto do NT. Também são conhecidos cerca de trinta de seus sermões e muitas
cartas de interesse dogmático.
Crisóstomo (c.347-407), patriarca de Constantinopla. Seu nome era João, mas por causa
de sua grande eloquência foi chamado “crisóstomo” (“boca-de-ouro”) e assim ficou conhe-
cido. Tendo sido um verdadeiro gigante em estatura moral e espiritual, não demorou para
que fizesse muitos inimigos em seus esforços para reformar a igreja, 0 clero e até mesmo
a corte imperial, o que acabou acarretando sua deposição e morte. É 0 escritor da igreja
oriental de quem mais escritos chegaram até nós, os quais compreendem comentários bíbli-
cos e cerca de 640 homílias, a maioria delas sobre as Epístolas de Paulo. Sua habilidade de
combinar 0 significado espiritual (literal e não alegórico) do texto com sua aplicação práti-
ca mais que justificam a reputação de o maior dentre os expositores cristãos de seu tempo.
Dídimo (c. 313-398), de Alexandria. Apesar de cego desde a infância, era dotado de
grande conhecimento, sendo versado em dialética e até mesmo geometria, além de teolo-
gia. Foi nomeado por Atanásio como diretor da escola catequética local, função que exer-
ceu por quase meio século. Jerônimo e Rufino figuram entre seus mais ilustres alunos. Sua
vasta produção literária inclui comentários de vários livros bíblicos e inúmeros tratados
teológicos, a maioria dos quais se perdeu.
Epifânio (c. 315-403). Natural da Palestina (Judeia), onde fundou e dirigiu um mostei-
ro por mais de trinta anos antes de se tornar bispo de Constância, mais tarde chamada
Salamina, em Chipre. Escreveu várias obras em defesa da fé ortodoxa, das quais a mais
importante é Panarion, também conhecida como Refutação de Todas as Heresias. Como
escritor, porém, não foi dos melhores, além de ter se envolvido em muitas controvérsias
doutrinárias.
Hipálito (C.170-C.236). Presbítero da igreja de Roma, destacado por seu notável co-
nhecimento, foi o último teólogo ocidental de peso a utilizar o grego, e não o latim, para
escrever suas obras, 0 que, porém, contribuiu para que elas logo fossem esquecidas. Es-
creveu inúmeras obras, incluindo-se comentários, crônicas e apologias, várias delas já
desaparecidas ou conhecidas apenas por meio de fragmentos.
Irineu (c.140-c.202), bispo de Lyon, foi o mais importante teólogo do segundo século e
0 primeiro a alcançar distinção na incipiente igreja católica. Pouco se sabe sobre sua vida,
mas parece que era natural de Esmirna, na Ásia Menor, pois relata que, quando criança,
conhecera e ouvira Policarpo, que dizia haver estado com 0 apóstolo João.146 Escreveu
vários tratados e cartas, sendo que quase tudo se perdeu ou é conhecido apenas median-
te fragmentos citados por outros autores. Sua obra mais importante, Contra as Heresias,
chegou até nós numa tradução bastante fiel em latim, feita assim que os originais ficaram
prontos.
Lúcifer (fc.370), bispo de Cagliari. Ardoroso defensor da fé ortodoxa, foi banido para a
Palestina e mais tarde para o Egito por causa de seu apoio a Atanásio durante o reinado do
Imperador Constâncio, que era ariano. Escreveu várias obras dogmáticas e apologéticas,
nas quais fez extenso uso de citações bíblicas, sendo uma fonte muito útil para o estudo
da versão antigo-latina.
Marcião (fc.160). Natural do Ponto, na Ásia Menor, mudou-se para Roma por volta de
138 e se uniu à congregação local, sendo excomungado como herege cerca de seis anos de-
pois. Em seu livro Antítese, opôs 0 Evangelho à Lei e 0 Deus de misericórdia do NT ao Deus
de justiça do AT, a quem considerava um deus inferior. Segundo ele, Jesus veio inaugurar
uma economia da salvação completamente nova, de maneira que o AT deve ser repudiado.
Mesmo entre os escritos apostólicos, só aceitava o Evangelho de Lucas e dez das Epístolas
Paulinas (rejeitava 1 e 2 Timóteo e Tito), dos quais retirou ainda todas as citações do AT e
as referências à ascendência judaica de Jesus.
Rufino (c. 345-411), monge, historiador e tradutor natural de Aquileia, norte da Itália.
Tendo estudado em Roma e Alexandria, foi grandemente influenciado pelo pensamento
de Orígenes. Apesar de ter sido um escritor original, tendo produzido comentários bíblicos
150Ibid.
152 Nenhuma página completa da Hexapla, que aparentemente nunca foi copiada em sua totalidade, sobrevi-
veu. Ela é conhecida apenas mediante as muitas referências e citações feitas por vários pais da igreja, especialmente
Jerônimo, bem como mediante escólios em inúmeros manuscritos bíblicos. Em 1896 e 1900, porém, uns poucos
fragmentos dos Salmos foram descobertos, dando-nos uma boa ideia da configuração da página. As colunas eram
de fato muito estreitas, não havendo espaço senão para uma ou duas palavras hebraicas em cada linha da primeira
coluna; as colunas seguintes mantinham praticamente a mesma disposição textual. O resultado foi um trabalho
deveras volumoso. Henry Barclay Swete calcula em 3.250 folhas, ou 6.500 páginas (An Introduction to the Old
Testament in Greek, ed. rev. [Cambridge: Cambridge University Press, 1914], 74). Para mais informação sobre a
Hexapla, veja Natalio Fernández Marcos, The Septuagint in Context: Introduction to the Greek Versions of the Bible,
trad. Wilfred G. E. Watson (Leiden: Brill, 2001), 204-222.
80 AS TESTEMUNHAS DO TEXTO NEOTESTAMENTÁRIO
e eclesiásticos, Rufino é mais conhecido como tradutor de diversas obras teológicas gregas
para o latim, principalmente de Orígenes, numa época em que o conhecimento do grego
na Europa ocidental já estava em franco declínio.
Teodoro (c. 350-428), bispo de Mopsuéstia, na Cilicia. Chamado de “o príncipe dos exe-
getas antigos,”153 não aceitava o sistema alegórico de interpretação e insistia no estudo da
gramática do texto e seu contexto histórico para que este fosse devidamente compreendí-
do. Escreveu comentários de livros bíblicos e obras de caráter dogmático.
153 Earle E. Cairns, Christianity through the Centuries: A History of the Christian Church, 3a. ed. (Grand Rapids:
Zondervan, 1996), 135.
154 Para uma relação descritiva de todos os pais da igreja citados no aparato crítico do NA (e de forma mais
livre no NTG), veja Aland e Aland, 174-184.
CAPÍTULO 3
1 Para uma breve análise da importância metodológica da história textual, veja Michael W. Holmes, “Reasoned
Eclecticism in New Testament Textual Criticism,” em The Text of the New Testament in Contemporary Research: Es-
says on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995),
349-353.
3 Esse é o risco de toda pesquisa histórica e não apenas da crítica textual. Tudo 0 que podemos fazer é descrever
aquilo que parece mais provável de ter acontecido.
82 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
manuscritos de outros grupos.4 O terceiro foi o período que testemunhou uma espécie de
padronização textual (quarto século em diante), ou seja, 0 abandono da diversidade e sua
substituição por uma nova tendência, a de se preservar um tipo específico de texto.5 Foi
essa a tendência que predominou até o final da Idade Média.
Cópias Livres
O judaísmo era a religião do livro, e com 0 cristianismo não foi diferente. Desde os
primórdios da fé cristã, 0 preparo e a disseminação de cartas (Epístolas), Evangelhos e
outros escritos ocuparam lugar de destaque nas atividades da igreja. Logo um corpo de
livros sagrados semelhante ao do AT começou a se formar. Não parece ter havido, porém,
um projeto literário específico ou interesse da parte de um editor profissional ou líder ecle-
siástico em organizar uma espécie de cânon cristão. A produção dos vários documentos
foi, por assim dizer, independente e determinada tanto pelo crescimento da igreja quanto
pelas necessidades individuais das várias congregações para as quais eles foram origina-
riamente enviados. E isso aconteceu não apenas com as Epístolas de Paulo, mas, em certo
sentido, também com os demais livros, incluindo-se os Evangelhos.
Também não há indícios de que houve uma pauta editorial definida, nem mesmo da
parte dos autores individuais. Paulo, por exemplo, podería escrever duas Epístolas com
muito material em comum, como Efésios e Colossenses, repetindo inúmeros conceitos,
palavras e até frases inteiras, embora tendo propósitos diferentes com cada uma delas.6 O
próprio interesse pela originalidade pode ter estado ausente em algumas ocasiões. Mesmo
tendo ao seu dispor uma rica tradição oral e escrita sobre a vida e os ensinos de Jesus
4 A teoria dos tipos textuais envolve uma série de dificuldades. Uma delas tem que ver com a antiguidade dos
diferentes textos. Os Aland sustentam que os tipos textuais não se desenvolveram senão após 0 quarto século (Aland
e Aland, 56-67). Epp admite: “Há uma discordância contínua e genuína... quanto a se os tipos textuais existiram ou
não nos primeiros séculos" (Perpectives on New Testament Textual Criticism, 269). A questão toda gira em torno dos
papiros, nossos mais antigos manuscritos, e a possibilidade de eles fornecerem ou não suficiente evidência para a
reconstrução dos tipos textuais. Para detalhada análise da discussão, veja ibid, 657-666. Epp, que prefere 0 termo
“constelação” ou “agrupamento” textual, conclui sua análise dizendo que seria correto afirmar que a maioria dos
críticos textuais modernos, incluindo-se ele mesmo, aceita a hipótese de que os tipos textuais, ou pelo menos dois
deles, já estavam em operação no segundo século (664).
5 Nenhum limite muito rígido deve ser buscado nas datas acima, até porque as mudanças no desenvolvimento
do texto não foram absolutas, muito menos instantâneas. E natural, portanto, que haja alguma sobreposição entre
os períodos. Além disso, a mesma liberdade textual demonstrada no primeiro período pode também ser encontrada,
ainda que com menor frequência, nos períodos subsequentes. Da mesma forma, desde 0 início da tradição há exem-
pios de manuscritos produzidos com bastante rigor e preocupação com a exatidão textual, e não é senão a partir
do nono século que realmente se pode falar em padronização do texto, conquanto o tipo de texto que suplantou os
demais remonte ao quarto século.
6 Para uma tabela com as semelhanças e diferenças entre Efésios e Colossenses, veja Andrew T. Lincoln, Ephe-
sians, WBC 42 (Dallas: Word, 1990), xlix. A relação entre essas duas Epístolas tem gerado muita controvérsia e não
são poucos os intérpretes que rejeitam a autoria paulina de pelo menos uma delas, geralmente Efésios. Para uma
breve história da discussão, veja Ernest Best, “Who Used Whom? The Relationship of Ephesians and Colossians,”
NTS 43 (1997): 72-96.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 83
(Lc 1.1-2; Jo 21.25), Mateus e Lucas parece que não se importaram em reproduzir extensas
porções de Marcos e, na opinião de muitos, de pelo menos mais uma fonte, conhecida nos
meios acadêmicos como documento Q.7Ao mesmo tempo, eles deixaram inúmeras lacunas
em seus relatos, como, por exemplo, o ministério de Jesus anterior ao aprisionamento de
João Batista (Lc 3.18-20,23; cf. Jo 3.24).
Além disso, os escritores eram muito diferentes entre si no que diz respeito ao preparo
e habilidades literárias. A Epístola aos Hebreus e os escritos de Lucas (Evangelho e Atos),
que era um médico de origem não judaica (Cl 4.10-15), refletem um perfeito domínio da
língua grega no que diz respeito tanto ao vocabulário quanto à sintaxe. Apenas no Evange-
lho é que Lucas permite a presença de alguns semitismos, talvez por influência das fontes
aramaicas que utilizara (Lc 1.1-4). Nos demais Evangelhos, que preservam reminiscências
mais diretas do ministério de Jesus, a influência semítica na linguagem é bem mais forte,
com o agravante de que o estilo literário de Marcos e João está entre os mais pobres do NT.
O estilo de Pedro não fica muito atrás, especialmente em sua segunda Epístola. As com-
posições originais de Paulo, Tiago e Judas são livres de semitismos, mas em suas cartas
Paulo em geral emprega um estilo que pode ser descrito como intermediário, um pouco
mais informal, embora ele mesmo aparente ter tido boa formação acadêmica. Possíveis
dificuldades de entendê-lo se devem mais à abstração de suas idéias que propriamente
à erudição de sua linguagem. No geral, 0 grego de Tiago e Judas é superior ao de Paulo.
O pior de todos os gregos e o mais suspeito de ser tradução do aramaico é o de João no
Apocalipse, escrito provavelmente durante o exílio em Patmos (Ap 1.9), onde dificilmente
teria tido a ajuda editorial que teve em Éfeso com 0 Evangelho (Jo 21.24) — assumindo-se,
é claro, que ambos foram obra do mesmo autor.8
A tudo isso devem se somar ainda limitações de ordem física ou econômica a que
os autores estavam sujeitos. Há indícios de que Paulo, por exemplo, padecia de séria
7 Lucas diz que usou fontes escritas para compor seu Evangelho (Lc 1 .14)־. Mateus parece que fez 0 mesmo,
ainda que não o diga. E o próprio Marcos, supostamente o primeiro Evangelho a ser escrito, pode ter sido uma das
fontes usadas tanto por Mateus quanto por Lucas. Marcos contém 661 vss.; Mateus, 1.068; e Lucas, 1.149. Dos 661
versos de Marcos, Mateus reproduz nada menos que 606. Às vezes, ele faz pequenas alterações nas palavras, mas
ao todo reproduz 51% das palavras exatas de Marcos. Dos 661 versos de Marcos, Lucas reproduz 320, e 53% das
palavras exatas de Marcos. Dos 55 versos de Marcos que Mateus não reproduz, 31 são encontrados em Lucas, 0 que
significa que apenas 24 versos de Marcos não aparecem em Mateus ou Lucas. Além disso, existem ainda aproxima-
damente 250 versos comuns a Mateus e Lucas que não aparecem em Marcos. A maior parte desse material consiste
em declarações de Jesus. Devido à elevada correspondência verbal entre Mateus e Lucas ao citarem esse material,
muitos acreditam que ele provenha de uma segunda fonte escrita em grego que também teria sido utilizada por
ambos. Essa fonte tem sido chamada de documento Q, do alemão Quelle, que significa exatamente “fonte.” Junto
com a hipótese da primazia de Marcos, o documento Q compreende 0 que se conhece como “a hipótese das duas
fontes” para explicar 0 chamado “problema sinótico,” ou seja, a complexa relação literária entre Mateus, Marcos e
Lucas. A existência de Q, porém, permanece inteiramente conjectural e nem sempre é necessária para que se com-
preenda a origem dos Evangelhos Sinóticos. Estudos introdutórios ao problema sinótico podem ser encontrados na
maioria das introduções ao NT e dicionários bíblicos. Estudos mais detalhados incluem: Robert H. Stein, Studying
the Synoptic Gospels: Origin and Interpretation, 2a. ed. (Grand Rapids: Baker, 2001); e Bo Reicke, The Roots of the
Synoptic Gospels (Filadélfia: Fortress, 1986). Para um diagrama em cores dos relacionamentos literários entre Ma-
teus, Marcos e Lucas, veja Allan Barr, A Diagram of Synoptic Relationships, 2a. ed. (Edimburgo: T&T Clark, 1995).
8 Para um estudo detalhado da linguagem dos vários autores e livros do NT, veja Bruce M. Metzger, “The Lan-
guage of the New Testament,” IB, 12 vols. (Nova York: Abingdon, 1952-1957), 7:43-59.
84 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
deficiência visual (At 9.8; 2C0 12.7-10; G1 4.12-15; 6.11), e certamente prisões e algemas
se lhe representavam dificuldades adicionais na hora de escrever suas cartas (Ef 6.20;
Fp 1.7,13; Cl 4.18; 2Tm 2.9; Fm 10,13).9 Talvez seja por isso que em diversas ocasiões ele
recorreu à ajuda de secretários ou amanuenses (Rm 16.22; 1C0 16.21; Cl 4.18; 2Ts 3.17;
cf. lPe 5.12), embora excepcionalmente ele mesmo possa haver redigido sua correspon-
dência (Gl 6.11). De qualquer modo, tem-se como certo que nenhum desses secretários
era um escriba ou redator profissional, mas apenas alguém dentre os auxiliares imediatos
do apóstolo.10 A situação econômica da igreja em geral (veja 1C0 1.26-28; 2C0 8.1-2),
ou mesmo de Paulo (veja Fp 4.11), que com frequência tinha de trabalhar pelo sustento
próprio (At 18.1-4; 20.34; 1C0 4.12; 2C0 11.7; lTs 2.9), por certo limitava-lhe o acesso a
profissionais da escrita, cujos serviços não costumavam ser baratos.11
Seja como for, os livros do NT não foram produzidos de acordo com uma pauta edi-
torial previamente elaborada, por escritores sempre competentes e habilidosos ou em
circunstâncias totalmente favoráveis. A situação das primeiras cópias em geral não foi
muito diferente. Elas começaram a surgir de forma mais ou menos aleatória, sem coor-
denação ou controle e, na maioria das vezes, não tiveram a oportunidade de receber um
tratamento profissional, uma edição oficial que respeitasse as formas precisas do texto.
Em virtude da rápida expansão do cristianismo e a curta vida útil dos originais, as várias
comunidades cristãs se viram diante da premente necessidade de reproduzir os escritos
apostólicos. E por causa dos limitados recursos financeiros, elas muitas vezes tiveram de
9 Enquanto aguardavam 0 julgamento, os prisioneiros podiam ter os pés amarrados a um tronco (At 16.24) ou
então ser acorrentados pelos braços a dois soldados para diminuir as possibilidades de fuga (At 12.6; 21.33). Sêneca
conhecia esse tipo de confinamento (£p. 5.7), bem como Josefo (Ant. 18.5.7). Ambas as palavras usadas por Paulo
para se referir as suas cadeias ou algemas (ίχλυσι,ς: At 28.20; Ef 6.20; 2Tm 1.16; δεσμός: Fp 1.7,13,14,17; Cl 4.18;
2Tm 2.9; Fm 10,13) podem sugerir essa prática, embora isso nem sempre 0 impedisse de escrever pelo menos umas
poucas palavras (veja Cl 4.18). De acordo com a tradição, 0 apóstolo escreveu 2 Timóteo da Prisão Mamertina, em
Roma, pouco antes de sua execução (cf. 2Tm 4.6-8). A prisão consistia num buraco circular e estreito cavado na
rocha e com um teto abaixo da superfície externa do solo. Era por uma abertura no teto que 0 prisioneiro era baixa-
do até sua cela, que seria escura e úmida (veja Jack Finegan, Archaeology of the New Testament: The Mediterranean
World of the Early Christian Apostles [Boulder: Westview, 1981], 224). E praticamente impossível que se pudesse
escrever uma carta dali. Nesse caso, 0 secretário de Paulo deve ter ficado do lado de fora, um nível acima do teto e
a vários metros de distância do apóstolo.
10 O uso de secretários talvez explique os diferentes estilos encontrados em algumas das Epístolas Paulinas. O
grego de Hebreus, e.g., é superior ao das Pastorais, que por sua vez é superior ao das demais Epístolas. O mesmo
acontece com 0 grego de 1 Pedro, que foi redigida por Silvano (5.12) e cujo estilo é bem superior ao da segunda
Epístola. O estilo de 2 Pedro é mais ou menos aquele que se esperaria de uma pessoa iletrada e inculta, como o
apóstolo foi descrito pelas autoridades de Jerusalém (At 4.13). C. F. D. Moule, porém, esclarece que a descrição é
exagerada e deve ser entendida mais como um desdém pelo fato de Pedro (e João) não haver frequentado as escolas
rabínicas (The Birth of the New Testament, 3a. ed. [São Francisco: Harper & Row, 1981], 208). Para um estudo de
como teriam atuado os secretários de Paulo e como seus estilos individuais podem ter influenciado o texto final de
uma Epístola, veja E. Randolph Richards, Paul and First-Century Letter Writing: Secretaries, Composition and Collec-
tion (Downers Grove: InerVarsity, 2004), 81-108.
11 No caso de Lucas, tem-se sugerido que Teófilo, a quem ele dedica tanto 0 Evangelho quanto Atos (Lc 1.3;
At 1.1), era seu patronus libri, ou seja, alguém que teria contribuído financeiramente para a produção e circulação
dos livros (Luke Timothy Johnson, The Writings of the New Testament: An Interpretation, ed. rev. [Mineápolis: For-
tress, 1999], 214). Não há, porém, como confirmar essa hipótese. Para um parecer contrário, veja Joel B. Green,
The Gospel of Luke, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 44 n. 57.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 85
empregar copistas amadores ou quem sabe até mesmo irmãos bem-intencionados mas de
pouca habilidade ortográfica. O número de pessoas realmente alfabetizadas no mundo
greco-romano em geral não excedia a 10%,12 o que reduzia ainda mais as chances de
haver entre os membros de uma congregação local pessoas devidamente preparadas para
a tarefa.
As evidências sugerem que os autógrafos neotestamentários começaram a ser reprodu-
zidos ainda no período apostólico. Em Cl 4.16, Paulo se aproveita da proximidade geográ-
fica entre Colossos e Laodiceia, que distavam uma da outra cerca de 18 km (três a quatro
horas de viagem a pé), para recomendar que, após lidas as respectivas Epístolas, providên-
cias fossem tomadas para que a Epístola enviada a uma congregação pudesse também ser
lida perante os membros da outra.13 E isso era feito pela simples troca de manuscritos ou,
o que é mais provável, mediante a elaboração e o envio de cópias. Em 2Pe 3.15-16, somos
informados que, em meados dos anos 60, se é que 2 Pedro foi mesmo escrita nessa época,
várias comunidades da Ásia Menor já estavam familiarizadas com pelo menos algumas
das Epístolas de Paulo. Não temos como saber, porém, quais Epístolas eram essas, nem
quem teria sido o responsável por coligi-las. A hipótese de que isso teria sido feito por Ti-
móteo14 ou Lucas15 é certamente bem menos problemática que as tentativas de se vincular
a primeira coleção das Epístolas Paulinas a Marcião16 ou mesmo a Onésimo,17 0 escravo
fugitivo de Filemom e que mais tarde teria se tornado bispo de Efeso.18 Timóteo foi ativo
colaborador de Paulo no preparo e envio de sua correspondência (2C0 1.1; Fp 1.1; Cl 1.1;
lTs 1.1; 2Ts 1.1; Fm 1; cf. 1C0 4.17; 16.10-11; Rm 16.21), embora não tenhamos como
13 A Epístola de Paulo aos Laodicenses, mencionada em Cl 4.16, por alguma razão logo se perdeu. Em meados
do segundo século, Marcião já imaginava que Efésios era essa Epístola e assim queria designá-la (Tertuliano, Marc.
5.17). Essa hipótese, que não é de todo implausível, tem recebido o endosso de vários autores modernos (e.g., J.
Rutherford, “St. Paul’s Epistle to the Laodiceans,” ET 19 [ 1 9 0 7 3 1 1 - 3 1 4 :[1908 ;־F. F. Bruce, The Epistles to the Colos-
sians, to Philemon, and to the Ephesians, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1984], 184; N. T. Wright, The Epistles of
Paul to the Colossians and to Philemon, TNTC [Grand Rapids: Eerdmans, 1986], 160-161). A epístola pseudepigrafa
Aos Laodicenses, que aparece em muitos manuscritos latinos medievais e que nada mais é senão uma série de frases
e declarações paulinas extraídas especialmente Filipenses e Gálatas, foi rejeitada pela Igreja Católica no Concilio
de Trento (1545-1563) e nunca chegou a ser considerada como canônica pelos protestantes, talvez por influência
de Erasmo de Rotterdam, que negava veementemente sua autenticidade (veja Charles E Anderson, “Epistle to
the Laodiceans,” ABD, 6 vols. [Nova York: Doubleday, 1992], 4:231). O texto dessa epístola pode ser encontrado
em Wilhelm Schneemelcher, “The Epistle to the Laodiceans,” em New Testament Apocrypha, 2 vols., ed. Wilhelm
Schneemelcher, 2a. ed., trad. R. McL. Wilson (Louisville: WJK, 1992), 2:42-46.
14 Donald Guthrie, New Testament Introduction, 4a. ed. rev. (Downers Grove: InterVarsity, 1990), 998-1000.
15 Moule, 264-265.
16 E.g., Hans von Campenhausen, The Formation of the Christian Bible, trad. J. A. Baker (Filadélfia: Fortress,
1972), 153. Para uma reavaliação do quase sempre exagerado impacto de Marcião sobre a formação do cânon do
NT, veja John Barton, Holy Writings, Sacred Texts: The Canon in Early Christianity (Louisville: WJK, 1997), 35-62.
17 John Knox, Philemon among the Letters of Paul (Chicago: University of Chicago Press, 1935), 46-57; Edgar J.
Goodspeed, An Introduction to the New Testament (Chicago: Chicago University Press, 1937), 210-239. Para objeções,
veja Ernest Best, A Critical and Exegetical Commentary on Ephesians, ICC (Edimburgo: T&T Clark, 1998), 65-66.
86 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
avaliar suas habilidades literárias. No caso de Lucas, tais habilidades são mais conhecidas,
além de sabermos que ele permaneceu com Paulo até os momentos finais de seu ministé-
rio (Cl 4.14; Fm 24; 2Tm 4.11), mas não há nenhuma evidência concreta de que ele tenha
ajudado 0 apóstolo a produzir cartas ou sido o responsável por sua publicação.
E. Randolph Richards argumenta que, por haver usado secretários, Paulo preparava
cópias de sua correspondência particular e que foram essas cópias que deram origem à cole-
ção de suas Epístolas, as quais teriam sido reunidas e publicadas possivelmente por Lucas.1819
Se foi mesmo Lucas, é impossível saber, como também 0 é se as Epístolas foram reunidas a
partir dos autógrafos ou das supostas cópias que o apóstolo mantinha em seu poder para
uso próprio. Cl 4.16 parece apontar para a primeira alternativa, e a distribuição geográfica
das Epístolas e seus destinatários não era tão grande ao ponto de inviabilizar o processo;
pelo contrário, ela não excedia um raio de cerca de 250 km ao redor do Mar Egeu.20 E se
levarmos em consideração as várias possibilidades de locomoção da época, como as viagens
do próprio Paulo claramente o demonstram, nada impede que, em pouco tempo, alguém
teria conseguido obter cópias de suas Epístolas, reunindo-as num único códice. De qualquer
modo, independentemente de quem o tenha feito, o resultado não é aquele que gostaria-
mos que fosse, pelo menos do ponto de vista editorial. Por um lado, nem todas as Epístolas
puderam ser reunidas (veja 1C0 5.9; 2C0 2.4; Cl 4.16), por não terem sido ou encontradas
ou consideradas relevantes para as demais comunidades. Por outro, há suspeitas de que
Epístolas distintas, ou 0 que sobrou delas, teriam sido combinadas num único documento.
Um exemplo seria 2 Coríntios,21 embora não haja consenso a respeito, uma vez que bons
argumentos podem ser apresentados em favor de sua integridade literária.22
Com relação aos Evangelhos, o agrupamento deles num único códice não se tornou
possível senão no início do segundo século, após a publicação do Evangelho de João. Para
que isso acontecesse, porém, Lucas e Atos, que originariamente devem ter circulado jun-
tos, como volumes conexos de uma mesma obra sobre os primórdios do cristianismo, tive-
ram que ser separados um do outro. Mesmo quando 0 cânon neotestamentário começou
a adquirir a forma atual, eles permaneceram separados por causa da posição designada
18 A identificação (aceita por Knox e Goodspeed) do Onésimo do NT com 0 Onésimo que, segundo Inácio (Eph
1:3; 6:2), foi bispo de Efeso no início do segundo século, não passa de conjectura (Peter Lampe, “Onesimus,” ABD,
6 vols. [Nova York: Doubleday, 1992], 5:21-22). Para as evidências (esp. ^p46 e Clemente de Roma) de que 0 cânon
das Epístolas de Paulo já estava substancialmente completo antes mesmo da virada do primeiro século, veja Stanley
E. Porter, “Paul and the Process of Canonization,” em Exploring the Origins of the Bible: Canon Formation in Histori-
cal, Literary, and Theological Perspective, ed. Craig A. Evans e Emanuel Tov (Grand Rapids: Baker, 2008), 192-194.
20 Porter, 194.
21 Veja Georg Strecker, History of New Testament Literature, trad. Calvin Katter (Harrisburg: Trinity, 1997),
42-43.
22 Para uma análise completa dos problemas literários de 2 Coríntios, bem como uma defesa de sua unidade,
veja Murray J. Harris, The Second Epistle to the Corinthians, NIGTC (Grand Rapids: Eerdmans, 2005), 8-51.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 87
23 Uns poucos e inexpressivos manuscritos, versões e obras patrísticas trazem Lucas como 0 quarto Evangelho,
imediatamente seguido do Livro de Atos. O quanto isso “pode ter sido influenciado pelo desejo de trazer os dois
livros de Lucas juntos,” declara Metzger, “não temos como dizer” (The Canon of the New Testament, 297).
24 Desde a descoberta do j}52, a data de João tem sido praticamente consensual entre os estudiosos do NT
como sendo ao redor de 90-100 (veja, e.g., D. Moody Smith, ‘Johannine Studies”, em The New Testament and Its
Modern Interpreters, ed. Eldon J. Epp e George W. MacRae [Atlanta: Scholars, 1989], 272-273). Já a data de Marcos
continua sendo bastante debatida. Vários eruditos insistem numa data posterior ao ano 70, visto acreditarem que o
discurso do cap. 13 não pode ter sido escrito senão após a destruição de Jerusalém (e.g., Francis J. Moloney, Mark:
Storyteller, Interpreter, Evangelist [Peabody: Hendrickson, 2004], 9-13). Há também quem advogue uma data tão
primitiva quanto a década de 40 (John Wenham, Redating Matthew, Mark, and Luke: A Fresh Assult on the Synoptic
Problem [Downers Grove: Inter Varsity, 1992], 177). Para uma cuidadosa análise das evidências, veja E. Earle Ellis,
The Making of the New Testament Documents (Leiden: Brill, 2002), 356-376.
25 Nesse caso, os vs. 9-20 consistiriam numa adição posterior destinada a suprir o texto de uma conclusão mais
satisfatória. Sobre Mc 16.9-20, veja abaixo, 208-215.
26 Exemplo extraído de Rui Barbosa (Réplica [Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904; reimp. em 2 vols., Rio
de Janeiro: Conselho Seccional da OAB, 1980], 2:196), que por sua vez 0 atribui ao Pe. Antônio Vieira.
88 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
judeus (cf. Dt 12.32).2728 Eles achavam, como disse Jerônimo, que “a essência das Escrituras
não é a letra, mas 0 significado,”29 e que muito mais importante que preservar as formas
ou as construções exatas era tornar claro 0 sentido.30 Talvez seja por isso que os pais da
igreja citam 0 NT muitas vezes de uma maneira que nos parece descuidada, frequente-
mente se valendo da memória e se contentando apenas com alusões. Assim chegamos às
variantes intencionais, que são as mais importantes variantes neotestamentárias e que
resultam da liberdade que copistas e corretores tomavam em alterar 0 texto com base pu-
ramente em sua preferência ou interpretação pessoal, em alguma tradição alternativa ou
no relato paralelo de outro livro bíblico.
Tais alterações, porém, não devem ser atribuídas ao tratamento supostamente menos
piedoso dos livros, pelo fato de 0 NT ainda não ser aceito como “Escritura,” como chegou
a ser sugerido algum tempo atrás.31 Há indícios de que já no primeiro século a literatura
apostólica começava a ser equiparada, quanto à autoridade, aos livros do AT. Comentando
2Pe 3.16, Peter H. Davids declara que, ao mencionar “as demais Escrituras,” Pedro está
definitivamente atribuindo valor escriturístico a pelo menos algumas das Epístolas de
Paulo. “De fato não há,” diz ele, “outra forma de interpretar 0 termo ‘demais’ [λοιπός]” na
passagem.32 E Paulo, em lTm 5.18, combina uma citação do AT (Dt 25.4) com uma tradi-
ção evangélica (Lc 10.7), referindo-se a ambas como “Escritura.”33 Ele faz praticamente
o mesmo em 1C0 9.14. Nessa passagem, embora não use 0 termo “Escritura,” o apóstolo
coloca 0 ensino de Jesus sobre os “que pregam 0 evangelho” no mesmo nível de autoridade
do ensino de Moisés sobre 0 “boi” (v. 9) e daqueles “que prestam serviços sagrados” (v. 13).
A expressão introdutória ούτως καί (“assim também”) e o próprio conteúdo da declaração
de Jesus confirmam essa autoridade.34
27 Os autores do NT citam 0 AT cerca de 250 vezes. Se incluirmos as alusões, o número sobe para aproximada-
mente 2.500. Considerando-se que muitas passagens são citadas mais de uma vez, ao passo que algumas citações
combinam duas ou mais passagens, o número específico de citações é 160, sendo a maioria delas do Pentateuco
(51), Isaías (38) e Salmos (40) (E. Earle Ellis, The Old Testament in Early Christianity: Canon and Interpretation in
the Light of Modern Research, WUNT 54 [Tübingen: Mohr, 1991], 53). Uma lista completa das citações e alusões que
o NT faz do/ao AT pode ser encontrada na parte final do NTG4, 745-748 (citações organizadas na ordem tanto do
AT quanto do NT), 749-760 (alusões e paralelos verbais).
28 O excessivo cuidado e a reverência com que os escribas judeus costumavam tratar suas Escrituras ao longo
dos séculos, e não apenas no chamado período massorético (c.500-1000), fizeram com que 0 texto hebraico do AT
fosse preservado de forma muito mais precisa e isenta de erros que 0 texto grego do NT. Para uma rápida introdução
ao assunto, veja Paul D. Wegner, A Student’s Guide to Textual Criticism of the Bible: Its History, Methods, and Results
(Downers Grove: InterVarsity, 2006), 58-86.
31 Veja Ernest C. Colwell, What Is the Best New Testament? (Chicago: University of Chicago Press, 1952), 53.
32 Peter H. Davids, The Letters of 2 Peter and Jude, PNTC (Grand Rapids: Eerdmans, 2006), 307.
33 “Em lTm 5.18,” declara Roger Beckwith, “0 título [Escritura] é ampliado de modo a incluir também as Escri-
turas cristãs” (The Old Testament Canon of the New Testament Church [Grand Rapids: Eerdmans, 1985], 108 n. 13).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 89
É verdade, porém, que Justino Mártir, ao redor do ano 150, aparece como 0 primei-
ro escritor eclesiástico a enquadrar formalmente as “memórias dos apóstolos” na mesma
categoria dos livros sagrados do AT (os Profetas),3435 mas isso não significa que 0 conceito
já não existisse, pelo menos de maneira informal. Antes de Justino, Clemente de Roma,36
Inácio37 e Policarpo38 já demonstram a grande reverência com que os livros do NT eram
tidos na igreja primitiva, apesar de 0 cânon ainda não estar definido. Por sinal, 0 próprio
estabelecimento do cânon neotestamentário, processo que se estendeu mais ou menos até
meados do quarto século, evidencia o alto apreço com que eram tidos os livros apostólicos,
ao ponto de serem formalmente considerados como a “Palavra de Deus” (cf. lTs 2.13).
F. F. Bruce é enfático ao afirmar que não foi a inclusão formal dos livros do NT numa
lista canônica que fez com que eles passassem a ser considerados como autoritativos para
a igreja. “Pelo contrário,” diz ele, “a igreja os incluiu no cânon porque já os havia por divi-
namente inspirados, reconhecendo-lhes o valor inerente e a autoridade apostólica, direta
ou indireta.”39 Os primeiros concílios eclesiásticos a classificar os livros canônicos (Hipona
Régia, em 393, e Cartago, em 397), continua Bruce, não impuseram nada de novo às várias
comunidades cristãs, mas apenas codificaram “o que já era prática geral nessas comunida-
des.”40 Quando alguma decisão esteve envolvida nos concílios, esclarece Lee M. McDonald,
essa teve que ver tão somente com os livros que estavam no limiar, por assim dizer, entre ser
aceitos como canônicos e não o ser por umas poucas comunidades. Nesse caso, as decisões
conciliares consistiram mais na reflexão sobre situações específicas em determinadas áreas
geográficas que na imposição unilateral de um novo procedimento à igreja como um todo.41
É bastante razoável, portanto, supor que as alterações intencionais no texto bíblico
surgiram não pelo descaso dos copistas e corretores para com a literatura apostólica, mas
justamente pelo fato de 0 NT ser o “tesouro religioso da igreja,”42 amado e venerado pelos
34 George W. Knight III, The Pastoral Epistles, NIGTC (Grand Rapids: Eerdmans, 1992), 234.
35 Justino, 1 Apol. 67. Na verdade, Justino se refere às “memórias dos apóstolos” diversas vezes em seus escritos
(Dial. 100.4; 101.3; 103.6; 104.1; 105.6; 106.3; 106.4; 107.1; cf. 1 Apol. 66; Dial. 49.5). Na maioria delas ele usa
a fórmula escriturística “está escrito” para introduzir a citação.
36 1 Ciem. 13:1-4.
39 F. F. Bruce, The New Testament Documents: Are They Reliable?, 6 a. ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1981), 27.
Da mesma forma, Metzger: “A igreja não criou o cânon, mas veio a reconhecer, aceitar, afirmar e confirmar a quali-
dade autolegitimadora de certos documentos que se impuseram a si mesmos como tais sobre a igreja. Se ignoramos
esse fato, entramos em sério conflito não com 0 dogma mas com a história” (The Canon of the New Testament, 287).
41 Lee Martin McDonald, The Biblical Canon: Its Origin, Transmission, and Authority (Peabody: Hendrickson,
2007), 209.
cristãos primitivos. Por estranho que possa parecer, muitas das variantes não passam da
tentativa de zelosos escribas que, agindo de boa fé, tentavam melhorar o texto, fazendo
correções ortográficas, gramaticais, estilísticas ou mesmo exegéticas.43 Em meio ao calor
das heresias que fervilhavam nos primeiros séculos do cristianismo, certas palavras ou
expressões que pudessem dar ensejo a más interpretações eram muitas vezes delibera-
damente evitadas para salvaguardar a ortodoxia. Mas, ao assim fazer, os escribas na ver-
dade acabavam por tirar do texto sua originalidade, quando não chegavam até mesmo a
modificar-lhe completamente o sentido. Numa de suas cartas, 0 mesmo Jerônimo que dizia
que a letra não era nada sem 0 significado por ela comunicado se queixa daqueles copistas
que “escrevem não 0 que leem, mas o que imaginam significar e, ao pretender corrigir os
erros de outros, meramente exibem os seus.”44
O problema, porém, é bem anterior a Jerônimo. Por volta do ano 178, o filósofo pagão
Celso produziu aquele que é 0 mais antigo ataque literário ao cristianismo cujos detalhes
sobreviveram. As informações foram preservadas por Orígenes em sua obra Contra Celso,
escrita em meados do terceiro século. Celso teria declarado que “alguns dos crentes... alte-
raram o texto original dos Evangelhos três ou quatro vezes, ou até mais, com a intenção de
assim poder destruir os argumentos de seus críticos.”45 Orígenes não nega a existência de
alterações, mas tenta diminuir-lhes a importância, atribuindo-as a pessoas como Marcião,
Valentino e Lucano, discípulo de Marcião.46 Em outra passagem em que também discute 0
problema das divergências textuais, Orígenes se mostra menos apressado em imputá-las a
hereges unicamente, dizendo que elas resultaram tanto da negligência de alguns copistas
quanto da audácia perversa de outros, inclusive de corretores que costumavam estender
ou encurtar 0 texto como melhor lhes parecia.47 E são justamente as variantes que surgi-
ram mais ou menos até o quarto século que requerem especial consideração da parte da
crítica textual, por consistirem na grande maioria de todas as variantes hoje conhecidas.
A questão é que, de acordo com as evidências documentais, as cópias mais antigas dos
livros que hoje compõem o NT apresentam muito mais variações entre si que as cópias
mais recentes, preparadas em circunstâncias muito mais favoráveis e com um controle
muito maior.
43 “A ironia é que a atribuição de autoridade a um documento... não era em si mesma garantia de que seu texto
não seria alterado” (Gamble, Books and Readers in the Early Church, 126-127). A descrição de Porfirio do método
por ele mesmo utilizado no preparo de sua antologia de oráculos sagrados talvez ajude a entender a mentalidade
da época. Ele declara: “Eu não acrescentei nada, nem subtraí qualquer coisa do significado dos oráculos (a não
ser quando corrigí alguma frase errônea, fiz alguma mudança para tomar 0 texto mais claro, completei a métrica
quando defeituosa ou deletei aquilo que era irrelevante), de modo que deixei intacto o significado daquilo que foi
falado, tomando 0 devido cuidado de evitar a impiedade de tais mudanças” (Eusébio, Praep. ev. 4.7).
46 Ibid.
48 E.g., Vogeis, 152-162; José Maria Bover e José O’Callaghan, Nuevo Testamento Trilingüe, 3a. ed. (Madri: BAC,
1977), xxxviii-xli; Vaganay, A n Introduction to New Testament Textual Criticism, 91-106.
49 Michael W. Holmes, “The Case for Reasoned Eclecticism,” em Rethinking New Testament Textual Criticism, ed.
David Alan Black (Grand Rapids: Baker, 2002), 94.
50 Ibid., 94-95. Veja também Michael W Holmes, “Codex Bezae as a Recension of the Gospels,” em Codex Bezae:
Studies from the Lunel Colloquium, June 1994, ed. D. C. Parker e C.-B. Amphoux, NTTS 22 (Leiden: Brill, 1996),
142-150.
51 Zuntz, um dos responsáveis por essa mudança de paradigma, é ainda mais categórico. Em sua clássica dis-
cussão do texto das Epístolas de Paulo (particularmente em 5p46, B, 1739 e outras importantes testemunhas), ele
declara que as recensões, que eram como que estrelas-guia no esforço para se entender a extensão das divergências
textuais nos primeiros séculos, “desapareceram em trevas primevas” (11).
92 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
Tipos Textuais
52 Veja esp. Larry W. Hurtado, “The New Testament in the Second Century: Text, Collections and Canon,” em
Transmission and Reception: New Testament Text-critical and Exegetical Studies, ed. J. W. Childers and D. C. Parker,
TS 4 (Piscataway: Gorgias, 2006), 3-27.
55 Veja Michael B. Thompson, “The Holy Internet: Communication between Churches in the First Christian Gen-
eration,” em The Gospels for All Christians: Rethinking the Gospel Audiences, ed. Richard Bauckham (Grand Rapids:
Eerdmans, 1998), 49-70.
56 Calcula-se que as estradas romanas se estendiam por cerca de 85 mil quilômetros, desde a Escócia até 0
Eufrates (Everett Fergusson, Background of Early Christianity, 2a. ed. [Grand Rapids: Eerdmans, 1993], 80-81). Essa
é a origem da conhecida expressão: “Todas as estradas levam a Roma.”
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 93
textual.57 Por outro lado, cópias do mesmo exemplar ou algum descendente direto podem
ter sido levadas a outros lugares, dando origem a tradições textuais bastante próximas
umas das outras, ainda que separadas geograficamente.
Tudo isso criava amplas oportunidades para que os manuscritos se influenciassem mu-
tuamente, e tão cedo quanto meados do segundo século já deve ter havido manuscritos
em número suficiente para que um copista pudesse comparar as formas divergentes de
um texto e decidir qual delas copiar. O resultado seria uma configuração textual um tanto
confusa, visto que as tradições estariam misturadas ou sobrepostas. Na verdade, pratica-
mente todos os antigos manuscritos foram, em maior ou menor grau, contanimados por
outros tipos textuais. É como se a mesma fonte tivesse dado origem a duas ou mais verten-
tes diferentes, mas não separadas o bastante para impedir que as águas mais à margem
de uma vertente acabassem se tocando ou mesmo se misturando com as águas de outras
vertentes. Quanto mais ao centro, mais pura seria a corrente, ao passo que, quanto mais
à margem, mais susceptível ela seria de sofrer algum tipo de contaminação da tradição
ao lado ou mesmo de preservar características incomuns. E, de acordo com a evidência
disponível, foram dois os tipos textuais que se desenvolveram especialmente no segundo e
terceiro séculos, um no Egito e outro nas regiões mais ao ocidente, entre as comunidades
de língua latina. Dos contatos periféricos de ambos os textos, manuscritos mistos podem
ter se originado, inclusive com leituras potencialmente mais antigas que aquelas encon-
tradas nas principais testemunhas tanto de um quanto de outro. Um terceiro tipo de texto,
que finalmente acabou suplantando os demais, desenvolveu-se nos territórios bizantinos
a partir do quarto século.58
57 Nesse caso, eles formariam uma “família” de manuscritos, como acontece, e.g., com f \ / 13 e Π. Ou seja,
família é 0 termo geralmente utilizado para os manuscritos que formam um subgrupo, i.e., quando eles apresentam
afinidades não compartilhadas por outros manuscritos do mesmo grupo ou tipo textual (veja Ernest C. Colwell,
Studies in Methodology in Textual Criticism of the New Testament, NTTS 9 [Leiden: Brill, 1969], 11-15).
58 A identificação geográfica dos diferentes tipos de texto é bastante controversa. A hipótese que predominou
em boa parte do século vinte foi a de Burnett H. Streeter, que combinava a visão clássica dos tipos textuais, cujas
origens remontam ao século dezoito, com 0 que ele chamou de “textos locais” (The Four Gospels: A Study of Origins
[Londres: Macmillan, 1924], parte I). Em essência, a tese de Streeter assumia que os manuscritos do NT espalhados
pelo mundo cristão atingiram o grau máximo de divergência já ao redor do ano 200 e que os diferentes tipos de
texto (cinco ao todo) resultaram de assimilações pelas comunidades menores dos textos utilizados nas diferentes
sedes eclesiásticas, como Alexandria, Roma, Cartago, Cesareia e Antioquia. Com a descoberta dos papiros, porém, a
ideia de textos locais da forma como defendida por Streeter se tomou insustentável, visto que 0 mesmo tipo de texto
é atestado em mais de um lugar e diferentes tipos de texto são atestados no mesmo lugar. Além disso, 0 suposto
texto de Cartago, que nunca chegou a convencer, não representava senão apenas um subgrupo africano do texto
ocidental, e 0 de Cesareia que, apesar de bem recebido por alguns, revelou-se não passar de um texto misto, sem a
distinção e a personalidade necessárias para ser considerado um tipo textual propriamente dito e, por isso, acabou
sendo virtualmente excluído de todas as reconstituições da história do texto (veja abaixo, 105, n. 98). Atualmente, a
noção de “texto local" (pré-Constantinopla) já foi praticamente abandonada, exceto talvez em relação a Alexandria.
Um bom número de estudiosos, porém, continua falando em termos geográficos, embora com contornos bem mais
fluidos. Os exemplos incluem: Vaganay, An Introduction to New Testament Textual Criticism, 98-111; Gordon D. Fee,
“Textual Criticism of the New Testament,” em Studies in the Theory and Method of New Testament Textual Criticism,
ed. Eldon J. Epp e Gordon D. Fee, StD 45 (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 6-8; Metzger, A Textual Commentary
on the Greek New Testament, 1-16; David A. Black, New Testament Textual Criticism: A Concise Guide (Grand Rap-
ids: Baker, 1994), 43-56, 63-65; Metzger e Ehrman, 276-280; P Stephen Pisano, Introduzione alia critica testuale
dellAntico e del Nuovo Testamento, 5a. ed. (Roma: PIB, 2008), 59-67.
94 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
Quanto à definição, um tipo textual pode ser entendido como um texto com caracterís-
ticas próprias que 0 diferenciam de outro grupo textual.59 E embora as semelhanças entre
os grupos superem os 80%,60 o que determina a classificação textual de um manuscrito é
na verdade o grau relativo de concordância no erro. Também, para ser completa, a cias-
sificação não pode estar baseada apenas em impressões gerais ou passagens escolhidas
aleatoriamente, mas numa análise quantitativa de todo o manuscrito que revele em de-
talhes seu perfil textual. O critério considerado padrão é expresso por Colwell: para que
um manuscrito seja identificado com determinado tipo de texto ele tem que concordar em
pelo menos 70% das leituras típicas desse texto, além de estar separado dos outros grupos
textuais por uma distância em torno dos 10%.61 Os textos são os seguintes:
Texto Alexandrino. Fundada por Alexandre, 0 Grande, após sua invasão do Egito
em 332 a.C., Alexandria logo se tornou a maior cidade do mundo mediterrâneo e, por
vários séculos mais tarde, ficaria atrás apenas de Roma. No período helenístico, ela se
converteu no mais importante centro da cultura grega. Sua famosa biblioteca, cuja cole-
ção é estimada em setecentos mil rolos de papiro,62 foi estabelecida provavelmente por
Ptolomeu II Filadelfo (285-246 a.C.), depois que seu pai, Ptolomeu I Soter (323-285 a.C.),
construíra a primeira parte do complexo, o templo das Musas, ou Mouseion (μουσείον),
que era um local dedicado ao ensino de filosofia, ciências e artes.63 Ele incluía, entre ou-
tras coisas, auditórios, laboratórios e até mesmo um jardim zoológico.
Na biblioteca foram realizados os primeiros estudos crítico-textuais de que se tem notícia.
Em 274 a.C, seu primeiro diretor, o gramático e crítico literário Zenódoto de Éfeso, compa-
rou diversos manuscritos dos poemas épicos homéricos e preparou aquela que é tida como
a primeira edição crítica da Ilíada e da Odisséia. Diretores posteriores, como Aristófanes de
Bizâncio (c.257-c.l80 a.C.), um dos maiores filólogos da antiguidade grega,64 e seu grande
discípulo Aristarco de Samotrácia (c.220-c.!44 a.C.) também prepararam edições críticas de
59 Colwell define um tipo de texto como “0 maior grupo de fontes que pode ser objetivamente identificado.”
Ele acrescenta: “Essa definição é a definição de um tipo textual como um grupo de manuscritos, não... uma lista de
leituras” (Studies in Methodology in Textual Criticism of the New Testament, 9).
61 Colwell, Studies in Methodology in Textual Criticism of the New Testament, 59. O critério se torna problemático
no caso dos manuscritos que apresentam alto índice de contaminação, como 0 próprio Colwell observa (ibid., 33).
62 James S. Jeffers, The Greco-Roman World of the New Testament Era: Exploring the Background of Early Chris-
tianity (Downers Grove: InterVarsity, 1999), 274.
63 Em vez de apenas um “museu” no sentido que 0 termo adquiriu após 0 Renascimento, 0 Mouseion era um
verdadeiro centro de estudos avançados. Ele abrigava alguns dos maiores mestres e eruditos do mundo helenista,
que ali se reuniam sob a proteção das Musas, um grupo de nove deusas ou espíritos da mitologia grega que perso-
nificavam e inspiravam criações artísticas, como poesia, música e dança. Veja esp. Luciano Canfora, The Vanished
Library: A Wonder of the Ancient World, trad. Martin Ryle (Berkeley: University of California Press, 1989); Lionel
Casson, Libraries in the Ancient World (New Haven: Yale University Press, 2002), 31-47.
Homero, bem como de vários outros autores clássicos. Foi também nessa biblioteca, ou pelo
menos em conexão com ela, que, de acordo com a tradição judaica, surgiu a primeira e mais
influente tradução grega do AT, a LXX. Segundo a Carta deAristeias, que descreve a execução
do projeto, a ideia da tradução foi do também diretor Demétrio de Falerum (c.350-c.280 a.C.),
que desejava incluir no acervo da biblioteca uma cópia dos livros sagrados do povo judeu.65
Não se sabe ao certo quando nem como 0 cristianismo alcançou Alexandria,66mas isso deve
ter ocorrido ainda na década de 40,67 visto que Apoio, um dos auxiliares de Paulo (1C0 1.12;
3.5-6; 16.12), já era cristão quando se mudou dali para Éfeso (At 18.24-28).68 Em meados do
segundo século, Alexandria já ocupava lugar de destaque no cenário cristão, sediando, entre
outras coisas, uma famosa escola catequética, que era uma espécie de academia ou centro de
estudos teológicos avançados.69 Sob a influência da forte tradição literário-helenista local,
essa escola parece ter desempenhado importante papel na produção de manuscritos do NT
e no desenvolvimento da teologia cristã, especialmente sob a liderança de Clemente e Orí-
genes, na virada do segundo para o terceiro século.70 Atanásio, um dos mais ilustres bispos
e teólogos alexandrinos, foi figura de relevo nas discussões trinitarianas do quarto século,
bem como no processo de formação do cânon neotestamentário.71
Mesmo em face das limitações da época, as cópias manuscritas supostamente produzi-
das em Alexandria dificilmente poderíam ter sido melhores. De todos os tipos de texto, o
66 Há uma tradição, preservada principalmente por Eusébio, segundo a qual a igreja de Alexandria foi fundada
por João Marcos (Hist. ecd. 2.16, 24; Theoph. 4.6; cf. Jerônimo, Vir. ill. 8 ), mas essa tradição parece não ser muito
confiável. Seja com for, não há dúvida de que 0 cristianismo ali chegou atraído pela grande comunidade judaica
local. Calcula-se em 150 mil o número de judeus residentes em Alexandria no primeiro século, o que fazia dela
a maior cidade judaica do império fora da Palestina. De acordo com Filo, duas das cinco subdivisões políticas de
Alexandria tinham uma população predominantemente judaica (Flacc. 55). Por causa disso, 0 trânsito de judeus
entre Alexandria e a Palestina era muito intenso, tanto que At 6.9 menciona que entre os membros de uma sinagoga
helenista em Jerusalém havia vários judeus alexandrinos.
67 Gerd Lüdemann, Early Christianity according to the Traditions in Acts: A Commentaiy, trad. John Bowden
(Mineápolis: Fortress, 1989), 209.
68 Embora 0 texto de Atos não afirme explicitamente que Apoio já professasse a fé cristã quando partiu de
Alexandria, a nota do Códice Beza, segundo a qual ele havia sido “instruído em seu próprio país [èv t j j πατρίδι] no
caminho do Senhor” (At 18.24), talvez não passe de mero esforço para tornar claro aquilo que já estava implícito
no contexto (veja v. 26).
69 O desconhecido escriba do Códice Barociano 142 (foi. 216), do século quatorze, citando 0 historiador eclesi-
ástico do quinto século Filipe de Side, declara que a escola catequética de Alexandria fora fundada por Atenágoras.
Correta ou não, essa informação contradiz Eusébio, que parece atribuir a fundação da escola a Panteno, ex-filósofo
estoico famoso por seu conhecimento e entusiasmo pelas Escrituras (Hist. ecd. 5.10). Para mais informação, veja
Annewies van den Hoek, “The ‘Catechetical’ School of Early Christian Alexandria and Its Philonic Heritage,” HTR
90 (1997): 59-87.
70 O vínculo dessa escola ou de qualquer pessoa em particular com 0 texto alexandrino, porém, permanece
inteiramente conjectural, como conjectural é a hipótese da existência ali de um scriptorium ou centro de produção
de manuscritos.
71 Sua Carta Pascoal do ano 367 (Ep. fest. 39), Atanásio relacionou, pela primeira vez, os 27 livros que hoje
compõem 0 cânon do NT.
96 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
alexandrino é, sem dúvida alguma, o mais confiável e 0 que mais se aproxima do original.
Embora ele possa conter algumas leituras mais sofisticadas, suas principais características
são a brevidade e a austeridade. Ou seja, é geralmente mais curto que os outros tipos de
texto e não exibe 0 mesmo grau de polimento linguístico que caracteriza, por exemplo, 0
texto utilizado em Constantinopla, sendo esta uma das razões de sua superioridade. Além
disso, esse texto apresenta uma admirável consistência através de todos os livros do NT,
com pouco ou nenhum esforço para harmonizar as características peculiares dos vários
autores com os padrões mais usuais da língua grega. Tudo isso aponta para um cuidadoso
processo de transmissão que soube preservar as formas mais originais do texto.72
Com o tempo, porém, mesmo o texto alexandrino acabou sofrendo alterações, espe-
cialmente refinamentos gramaticais e estilísticos. Por essa razão, suas testemunhas cos-
tumam ser classificadas como primárias e secundárias, dependendo do grau de pureza
textual. A forma mais pura do texto, que deve remontar à primeira metade do segundo
século, é encontrada sobretudo nos papiros ^75 נe ip66 nos Evangelhos, íp46 em Paulo, íp72
em Pedro e Judas, no Códice B e nas citações de Orígenes. Também são classificados como
alexandrinos primários os Códices א, C, L, W, 33, as versões coptas saídica e boaírica e
alguns pais alexandrinos posteriores, como Dídimo, Atanásio e Cirilo.73
Exemplos de omissões alexandrinas:
Mt 6.13 (“pois teu é 0 reino, 0 poder e a glória para sempre. Amém!”)
Mt 12.47 (versículo; cf. Lc 8.20)
Mt 15.6 (“sua mãe”)
Mt 16.2-3 (“chegada a tarde” até “sinais dos tempos?” cf. Lc 12.54-56)
Mt 17.21 (versículo; cf. Mc 9.29)
Mt 18.11 (versículo; cf. Lc 19.10)
Mc 9.44,46 (versículos; cf. v. 48)
Mc 10.7 (“e se unirá a sua mulher;” Mt 19.5; Gn 2.24)
Mc 11.26 (versículo; cf. Mt 6.15)
Mc 15.28 (versículo; cf. Lc 22.37)
Mcl6.9-20 (a conclusão de Marcos)
Lc 8.45 (“e os que com ele estavam” e “e dizes: Quem me tocou?” cf. Mc 5.31)
Lc 11.4 (“mas livra-nos do mal;” cf. Mt 6.13)
Lc 11.44 (“escribas e fariseus hipócritas;” cf. Mt 23.27)
Lc 17.36 (versículo; cf. Mt 24.40)
Lc 22.43-44 (versículos; cf. Mt 26.39; Mc 14.36)
Lc 23.34 (“Jesus, porém, dizia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem 0 que fazem”)
Jo 3.13 (“que está no céu”)
72 Referindo-se texto alexandrino, Fee declara que ele consiste numa “boa, mas não perfeita, preservação dos
próprios textos originais” (“The Use of Greek Patristic Citations in New Testament Textual Criticism,” 358).
73 Para uma lista mais completa de testemunhas alexandrinas, veja Black, New Testament Textual Criticism, 64.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 97
Texto Ocidental. Um segundo tipo de texto tão antigo quanto 0 alexandrino se po-
pularizou em Roma e outras regiões dominadas pela cultura latina, como a Gália e o norte
da África.74 Sua origem, porém, é incerta, visto que circulou também já no segundo século
em algumas regiões do cristianismo oriental, incluindo-se a Síria.75 Comumente chamado
de ocidental, esse texto sofreu alterações bastante radicais nos Evangelhos e sobretudo em
Atos, onde é 8,5% mais longo que o texto alexandrino,76 e não são poucos os que defendem
a hipótese de duas edições desse livro por Lucas.77 Esse foi o texto usado por Marcião, Ta-
ciano, Irineu, Tertuliano e Cipriano. Num estágio posterior, esteve em uso também no Egito,
como demonstram os papiros íp38 e ip48, ambos do final do terceiro século. Suas testemunhas
gregas mais importantes são os Códices D e D2, escritos mais ou menos no final do quinto
ou início do sexto século. O texto ocidental também está presente em diversos manuscritos
antigo-latinos e siríacos.78
74 À semelhança de Alexandria, também não há evidência conclusiva quanto a quem teria introduzido o cris-
tianismo em Roma. A antiga tese de Adolf Harnack de que isso teria sido obra de Áquila e Priscila (“Probabilia über
die Adresse und den Verfasse des Hebrãerbriefs,” ZNW 1 [1900]: 16-41), embora conjectural, é certamente menos
problemática que a antiga tradição segundo a qual a igreja de Roma teria sido fundada por Pedro, no segundo ano
de Cláudio, i.e., 42 (Eusébio, Chron. 153; cf. idem, Hist. eccl. 2.14). Tal informação é improvável em muitos aspectos
e aparentemente inconsistente com os fatos apresentados no NT. Quanto a Áquila e Priscila, não há dúvida de que,
por ocasião de sua expulsão de Roma por Cláudio no ano 49 (At 18.1-3), já havia uma comunidade cristã na cidade.
Só não se sabe se eles se converteram ali, como sugere Jerome Murphy-O’Connor (“Prisca and Áquila: Travelling
Tentmakers and Church Builders,” BRev 8, no. 6 [1992]: 45-47), ou se já eram cristãos quando ali chegaram. Como
entre os conversos no dia de Pentecoste havia visitantes de Roma, “tanto judeus quanto prosélitos” (2.10-11), não
é de todo impossível que Áquila e Priscila estivessem entre eles.
75 Isso torna a designação “ocidental" um pouco inadequada. Por isso, como explica Metzger, ela deve ser en-
tendida mais como um nome próprio que como uma qualificação geográfica (Metzger e Ehrman, 307)
76 De acordo com Frederic G. Kenyon (The Western Text in the Gospels and Acts [Londres: Milford, 1939], 26),
o texto alexandrino de Atos contém 18.401 palavras (edição de Westcott e Hort [veja abaixo, 141-144], contra as
19.983 palavras do texto ocidental (edição de Albert C. Clark, The Acts of the Apostles: A Critical Edition [Oxdord:
Clarendon, 1933]).
77 Levantada pela primeira vez por Jean Leclerc, na segunda metade do século dezessete, essa hipótese tem tido
vários defensores desde então; um dos mais recentes é M.-É. Boismard, “The Text of Acts: A Problem of Literary Criti-
cism?” em New Testament Textual Criticism: Its Significance for Exegesis. Essays in Honour of Bruce M. Metzger, ed. E. J.
Epp e G. D. Fee (Oxford: Clarendon, 1981), 147-157. Para um resumo das várias outras hipóteses quanto ao texto de
Atos e os principais estágios da discussão, veja W. A. Strange, The Problem of the Text of Acts, SNTSMS 71 (Cambridge:
Cambridge University Press, 1992), 1-34; Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 222-236.
78 Para uma lista mais completa das testemunhas ocidentais, veja Black, New Testament Textual Criticism, 65.
98 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
Suas principais características são as longas paráfrases e adições, além do gosto pela
harmonização de textos paralelos. Palavras, frases e até mesmo passagens inteiras foram
livremente modificadas, omitidas ou acrescentadas a fim de se obter, principalmente no
caso dos Evangelhos, relatos mais padronizados. Às vezes, o texto também é enriquecido
mediante a inclusão de alguma tradição não canônica sobre a vida e os ensinos de Jesus e
dos apóstolos. Há ocasiões, porém, em que as modificações são inteiramente triviais, sem
que nenhuma razão específica se lhes possa atribuir.
Uma das características mais intrigantes do texto ocidental, que no geral é mais longo
que os demais, é que nos Evangelhos, especialmente nos capítulos finais de Lucas, há cer-
tas omissões de palavras e frases que estão presentes nos outros tipos de textos, inclusive
o alexandrino. Até meados do século vinte, muitos estudiosos se mostravam dispostos
a aceitar essas formas mais breves como autênticas, mas, desde a descoberta do (p75, a
tendência tem sido a de considerá-las como corruptas. Enfim, de todos os tipos textuais,
0 texto ocidental é o mais livre e incoerente consigo mesmo, não sendo, portanto, de tão
boa qualidade quanto 0 alexandrino, embora possa eventualmente ter conservado leituras
originais que estão ausentes até mesmo daquele texto. Isso significa que nenhuma varian-
te deve ser descartada pelo simples fato de ser ocidental. Cada caso deve ser analisado
individualmente.79 A evidente antiguidade do texto, sua ampla distribuição geográfica
e a natureza intrigante de algumas de suas variantes parecem conferir-lhe certo grau de
credibilidade.80
Exemplos de acréscimos ocidentais (em Atos):81
·At 5.39 (“... não poderão destruí-la, nem vocês, nem reis, nem dominadores;
afastem-se, portanto, desses homens...” cf. Sab. Salomão 12.13-14)
·At 8.24 (“Simão, porém, respondeu e lhes disse: Eu lhes suplico, roguem por
mim a Deus, para que nenhum desses males que vocês me disseram
sobrevenha a mim, e se pôs a chorar abundantemente”)־
79 Westcott e Hort chegaram a se referir a essas omissões como “não interpolações ocidentais” (2:175-177);
designação mais simples seria “interpolações alexandrinas,” mas nesse caso não havería necessariamente como
relacioná-las com 0 texto ocidental.
80 Veja, porém, a observação de Colwell em Studies in Methodology in Textual Criticism of the New Testament, 156.
79 “O texto ocidental não é homogêneo e, portanto, 0 julgamento de suas várias leituras não deveria ser mono-
lítico. Entretanto, as leituras mais longas e espetaculares [do Livro de Atos] dificilmente representam a forma mais
primitiva” (Joêl Delobel, “The Nature of ‘Western’ Readings in Acts: Test-cases,” em Recent Developments in Textual
Criticism: New Testament, Other Early Christian and Jewish Literature, ed. Wim Weren e Dietrich-Alex Koch, STAR 8
[Assen: Royal Van Gorcum, 2003], 93).
80 Para argumentos contra e a favor da originalidade do texto ocidental, veja Jacobus H. Petzer, “The History
of the New Testament Text: Its Reconstruction, Significance, and Use in New Testament Textual Criticism,” em New
Testament Textual Criticism, Exegesis, and Church History: A Discussion of Methods, ed. Barbara Aland e Joel Delobel,
CBET 7 (Kampen: Pharos, 1994), 18-25. Para argumentos contrários, veja Delobel, “The Nature o f‘Western’ Read-
sings in Acts,” 69-94.
81 Os acréscimos estão em itálico. Para 0 texto grego, veja o aparato crítico do NTGA e Kenyon, The Text of the
Greek Bible, 92-93.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 99
quarto século a.C. por Seleuco I Nicator, um dos generais de Alexandre, o Grande, Antio-
quia logo se tornou a capital da Síria e, no período romano, ficaria atrás apenas de Roma
e Alexandria como a terceira maior cidade do império, com uma população estimada em
quinhentos mil habitantes. Durante a perseguição que se levantou após a morte de Estê-
vão, foi ali que muitos crentes se refugiaram (11.19-23) e foi dali que Paulo partiu em suas
três viagens missionárias (13.1-3; 15.35-36; 18.22-23). Embora com o tempo perdesse
muito de seu esplendor e importância política, Antioquia se tornou, na virada do terceiro
para o quarto século, uma das quatro sedes patriarcais da igreja, juntamente com Jerusa-
lém, Alexandria e Roma. Por essa época, sua população já havia sido reduzida a apenas
um quinto do que fora dois séculos antes.
O texto bizantino é, de longe, o tipo textual com o maior número de testemunhas, com-
preendendo mais de 85% de todos os manuscritos gregos do NT. Como tipo textual, ele não
aparece na história senão apenas em meados do quarto século, num grupo de escritores
patrísticos relacionados com Antioquia: os Capadócios (Gregório de Nazianzo, e os irmãos
Basílio, o Grande, e Gregório de Nissa), João Crisóstomo e Teodoreto de Ciro. De acordo
com Gordon D. Fee, esses pais usavam um NT cerca de 90% semelhante ao texto bizantino
propriamente dito.818283 O mais antigo manuscrito com características distintamente bizanti-
nas, nos Evangelhos apenas, é o Códice Alexandrino, do quinto século, ao passo que as mais
antigas testemunhas desse tipo de texto em sua totalidade (também nos Evangelhos) são os
Códices Basilense (El/07) e Atos Dionisiano (Ω/045), ambos do oitavo século.84 Na verdade,
existem apenas seis manuscritos bizantinos anteriores ao nono século. Foi somente a partir
dessa época, devido ao grande impulso gerado na produção de manuscritos pela escrita mi-
núscula, que ele realmente se fixou como o texto dominante em todas as regiões do mundo
cristão onde ainda se falava o grego. A exceção de uns poucos manuscritos que preservam
outras formas de texto, praticamente todos os minúsculos conhecidos são bizantinos.
Quanto a sua origem, a opinião tradicional é que 0 texto bizantino seria recensional, ou
seja, ele teria se originado de uma revisão de antigos textos feita por Luciano, presbítero
de Antioquia, pouco antes de 312, ano de seu martírio.85 Ocorre, porém, que não existem
81 Outras omissões que Westcott e Hort também estavam inclinados a considerar como "não interpolações oci-
dentais” envolvem as seguintes passagens: Mt 6.15,25; 9.34; 13.33; 21.44; 23.26; Mc 2.22; 10.2; 14.39; Lc 5.39;
10.41-42; 12.19,21,39; 22.62; 24.9; Jo 3.31-32; 4.9.
82 O uso do termo “bizantino” se deve ao fato de que, mais tarde, esse seria 0 texto predominante em todo 0
Império Bizantino, que é como costuma ser chamado 0 segmento oriental do Império Romano, que durou até 0 final
da Idade Média. Outros nomes do texto bizantino são texto siríaco, texto koinê, texto constantinopolitano, texto
antioqueano, texto imperial e Texto Majoritário, assim chamado por representar 0 texto da maioria dos manuscri-
tos, que são bizantinos. (Apesar de se sobreporem uma à outra, as duas expressões não são sinônimas. Ao passo
que “texto bizantino” tem uma conotação mais qualitativa [tipo de texto], “Texto Majoritário” tem mais que ver
com quantidade de manuscritos.) Nas edições críticas do NT grego, 0 Texto Majoritário costuma ser representado
por um eme gótico (Zlt).
84 Ibid. O INTF, de Münster, porém, data 0 Códice Atos Dionisiano (Ω/045) do nono século, e não do oitavo,
como mencionado por Fee.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו סו
85 De fato, há uma declaração de Jerônimo segundo a qual as igrejas de Antioquia e Constantinopla preferiam 0
texto luciânico (Praef. Chron.; cf. Vir. ill. 77; Praef. Ev.) e 0 Menológio, catálogo litúrgico que inclui pequenos relatos
de santos e mártires da igreja grega, confirma que Luciano legou a seus discípulos uma cópia das Escrituras do AT
e NT que ele mesmo escrevera em três colunas paralelas (Streeter, 113). Além disso, os primeiros pais da igreja a
usar o texto bizantino foram todos treinados na tradição de Luciano. Em 1881, F. J. A. Hort declarara: “Dos nomes
conhecidos, 0 dele [Luciano] tem mais probabilidade de estar associado com a revisão siríaca [־־bizantina] que
qualquer outro” (Westcott e Hort, 2:138). Para uma defesa clássica da recensão luciânica, veja Bruce M. Metzger,
Chapters in the History of New Testament Textual Criticism, NTTS 4 (Leiden: Brill, 1963), 1-41.
86 VejaZuntz, 49-55.
87 Colwell, Studies in Methodology in Textual Criticism of the New Testament, 53; Klaus Wachtel, Der byzanti-
nische Text der katholischen Briefe: Eine Untersuchung zur Entstehung der Koine des Neuen Testaments, ANTF (Berlim:
De Gruyter, 1995).
88 Ibid., 52.
90 Um bom exemplo é Mc 9.49, onde o texto bizantino combina as leituras alternativas dos textos alexandrino
(“Porque cada um será salgado com fogo”) e ocidental (“Porque cada sacrifício será salgado com sal”) : “Porque cada
um será salgado com fogo, e cada sacrifício será salgado com sal.”
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו03
Padronização Textual
A conversão de Constantino, no ano 312, inaugurou uma nova fase na história textual
do NT, especialmente após a promulgação do Edito de Milão, no início do ano seguinte. O
edito, assinado em conjunto por Constantino, que governava a parte ocidental do império,
e Licínio, que governava a parte oriental, garantia ao cristianismo liberdade de culto e 0
direito de reaver todas as propriedades eclesiásticas confiscadas na recente perseguição
imposta por Diocleciano. De imediato, houve considerável aumento na circulação das Es-
crituras, cujos manuscritos não mais corriam 0 risco de ser apreendidos e queimados em
praça pública, o que, segundo Eusébio, era comum havia até bem pouco tempo.91 Muitos
donativos também foram entregues ao clero e 0 texto bíblico passou a ser copiado mais
cuidadosamente e com todos os recursos de produção literária disponíveis na época. Os
scriptoria se multiplicaram. Escribas profissionais passaram a ser empregados. O papiro se
tornou ultrapassado. E a maior abundância de material levou também ao relativo aumento
no tamanho das letras e embelezamento de suas formas, e belos e luxuosos manuscritos
passaram então a ser produzidos.
Por essa época, um dos mais importantes centros de produção manuscrita estava 10-
calizado em Cesareia, na parte central da costa palestina. Em 231, ao ser enviado para
0 exílio, Orígenes buscou refúgio na diocese de Cesareia, que começava a ganhar impor-
tância no cenário do cristianismo oriental. Ali, ele fundou uma escola teológica que ficou
muito famosa e permaneceu em atividade por vários séculos. Panfílio, discípulo e sucessor
de Orígenes, estabeleceu no local uma imponente biblioteca, cujo acervo seria inferior
apenas ao da biblioteca real de Alexandria e cujo grande tesouro era o manuscrito original
93 E.g., no final do livro de Esdras, no Códice Sinaftico, existe a seguinte informação: “Este volume foi compa-
rado com uma cópia muito antiga, corrigida pela mão do santo mártir Panfílio. Perto do fim do mesmo livro antigo,
há uma nota afixada pelo mesmo mártir que diz: ‘Transcrito e corrigido de acordo com a Hexapla de Orígenes, por
ele mesmo corrigida’” (Swete, An Introduction to the Old Testament in Greek, 75).
99 Eusébio, Vit. Const. 4.36-37. No quinto século, Jerônimo também viria a utilizar os recursos da biblioteca e
deixaria registrada sua admiração pelo trabalho de Panfílio. Ele declara que Panfílio “ardia de amor pela literatura
sagrada, ao ponto de transcrever a maior parte das obras de Orígenes com sua própria mão.” Jerônimo continua
dizendo que tais cópias ainda estavam preservadas na biblioteca em Cesareia e que ele mesmo tinha em seu poder
“vinte e cinco volumes de comentários de Orígenes” copiados pelo próprio Panfílio, os quais ele considerava um
verdadeiro tesouro (Vir. ill. 75). A biblioteca existiu até o sétimo século, quando foi destruída durante a invasão
árabe da Palestina. Sobre a biblioteca de Cesareia, veja Gamble, Books and Readers in the Early Church, 155-161, e
esp. Anthony Grafton e Megan Williams, Christianity and the Transformation of the Book: Origen, Eusebius, and the
Library of Caesarea (Cambridge: Harvard University Press, 2006).
95 A conhecida citação do historiador eclesiástico do quinto século Sócrates de Constantinopla (Hist. eccl. 1.16)
segundo a qual Constantino teria, mediante decreto oficial, chamado a cidade de “Nova Roma” (ΝέάΡώμη) é pro-
blemática. Evidências sugerem que 0 texto mais provável da citação seja “Segunda Roma” (ΔευτέράΡώμη), em vez
de “Nova Roma” (veja Gudrun Bühl, Constantinopolis und Roma: Stadtpersonifikationen der Spütantike [Zurique:
Akanthus, 1995], 35-40). Sendo assim, a designação Nova Roma seria posterior e atestada primeiramente em
contextos retóricos, como um dos poemas do escritor romano Otaciano Porfírio. A expressão, porém, parece ter se
popularizado no contexto religioso, principalmente depois que 0 Primeiro Concilio de Constantinopla elevou a cida-
de à categoria de sede patriarcal, a segunda em importância, atrás apenas de Roma. Numa de suas decisões (Cânon
3), 0 concilio determinou que “0 Bispo de Constantinopla deveria ter prerrogativas de honra depois do Bispo de
Roma, porque Constantinopla era a Nova Roma.” Por outro lado, 0 nome Constantinopla foi usado em inscrições
oficiais já a partir do ano da fundação da cidade; ele aparece em moedas e medalhões comemorativos cunhados
por Constantino e seus filhos entre 330 e 341 exatamente para marcar a fundação da nova capital (Albrecht Berger,
“Konstantinopel,” RAC, 21 vols. [Stuttgart: Hiersemann, 1950- ], 21 :col. 442).
96 Após a queda de Roma, em 476, Constantinopla permanecería durante quase toda a Idade Média como a
maior e mais rica cidade do mundo, sendo conhecida como a Rainha das Cidades (Βασιλευοιισο Πόλις).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו05
97 Skeat continua a defender a antiga tese introduzida por Tischendorf de que os Códices Sinaítico e Vaticano
seriam parte das cinquenta as cópias preparadas sob a supervisão de Eusébio (“The Codex Sinaiticus, The Codex
Vaticanus, and Constantine,” 583-625).
98 Por muito tempo conhecido como cesareense, o texto testemunhado por Orígenes e Eusébio, bem como pelos
manuscritos Θ, 565, 700 e as antigas versões armênia e georgiana, não deve ser visto senão como um texto misto
ou quem sabe apenas como um subgrupo oriental do texto ocidental (e.g., Hurtado, Text-critical Methodology and
the Pre-Caesarean Text, 88; Alexander Globe, “Serapion of Thmuis as a Witness to the Gospel Text Used by Origen
in Caesarea,” NovT 26 [1984]: 126-127). As objeções se estendem também ao seu antecessor, 0 chamado texto
pre-cesareense, supostamente presente nos manuscritos <p45, W (em Mc 5.31—16.20), f \ f 3 e 28, entre outros.
C.-B. Amphoux, e.g., argumenta que a forma textual dessas testemunhas está associada com Antioquia e não com
Cesareia (“Le texte évangélique de Césarée et le type de texte ‘Césaréen’ des Évangiles,” FilNeo 12 [1999]: 3-16).
Hurtado, por sua vez, embora reconheça a íntima relação entre W e <p45, mantém que / 13 não está relacionada
com esses manuscritos senão apenas secundariamente e que essas três testemunhas não estão de forma alguma
relacionadas com 0 texto cesareense representado por Θ, 565 e 700,0 que equivale a dizer que “as testemunhas pré-
-cesareenses não são cesareenses de jeito nenhum” (Text-critical Methodology and the Pre-Caesarean Text, 88-89). O
debate não é novo, e várias décadas atrás Metzger já dizia que o texto cesareense estava se desintegrando (Chapters
in the History of New Testament Textual Criticism, 67). Talvez a melhor forma de se referir a ele seja mesmo como
mero “processo textual” (ibid., 59), visto que lhe faltam a independência e a personalidade próprias dos demais
textos. Ou seja, 0 suposto texto de Cesareia consistiría tão somente em mais um estágio no desenvolvimento em di-
reção ao texto bizantino. Não obstante, por representar um texto mais periférico em relação às principais tradições
textuais do segundo e terceiro séculos, suas testemunhas mais representativas podem eventualmente ter preservado
leituras antigas, dignas de consideração.
assim, uma coisa é certa: a correção de manuscritos com base no texto bizantino se tornou
um procedimento bastante comum, o que resultou na extinção quase que definitiva dos
demais grupos textuais. O texto alexandrino, por exemplo, que a partir do final do quarto
século já começara a sofrer forte influência bizantina,י0 וveio a cair em desuso de modo
praticamente definitivo cerca de dois séculos mais tarde. Dois fatores externos muito con-
tribuíram para isso: a interrupção do patriarcado de Alexandria e a invasão árabe do
Egito, ambas no sétimo século.
Com relação ao texto ocidental, 0 processo foi um pouco diferente. Em decorrência do
virtual desaparecimento da língua grega nas regiões subordinadas à igreja romana, pra-
ticamente nenhum manuscrito grego foi mais produzido nessas regiões a partir do quinto
século. A discrepante versão antigo-latina continuava a reinar, mas seu reinado ia pouco a
pouco sendo interrompido pela crescente influência da Vulgata, de Jerônimo, a qual alcan-
çou prioridade absoluta no uso popular a partir do oitavo e nono séculos.101102 Ao ser copiada
e levada de uma parte para a outra da Europa ocidental, porém, a Vulgata acabou reincor-
porando muitas leituras antigo-latinas e desenvolvendo seus próprios grupos textuais, e
os muitos esforços medievais para lhe restaurar 0 texto original apenas contribuíram para
que ele se corrompesse ainda mais. Os milhares de manuscritos sobreviventes comprovam
o elevado grau de contaminação entre seus diferentes grupos textuais.103
Assim, com a supremacia do latim no ocidente e a expansão árabe no Oriente Médio,
0 que resultou numa profunda islamização da Mesopotâmia, Síria, Palestina e Egito, a
circulação de manuscritos gregos esteve basicamente confinada às fronteiras do Impé-
rio Bizantino. A partir do século onze, com a consolidação da escrita minúscula, a pro-
dução de manuscritos recebeu grande impulso, de modo que 85% de todos os manus-
critos gregos do NT hoje conhecidos são dessa época em diante. E como não houve mais
nenhum fator que provocasse qualquer mudança significativa na tradição textual até a
invenção da imprensa, bem poucos são os manuscritos que diferem consideravelmente
do texto bizantino. Durante toda a Idade Média, quando boa parte do império estava
ocupada por populações eslavas, árabes e turcas, e a cultura grega atingia o nível mais
baixo de toda sua história, a igreja grega se submeteu inteiramente ao domínio desse
texto. Conquanto os manuscritos não deixassem de apresentar divergências, visto que
101 Somente 0 Códice Sinaítico apresenta em tomo de 14.800 correções, as quais parecem ter sido feitas por
nove diferentes escribas. As mais importantes são do sétimo século, quando um grupo de corretores revisou todo 0
manuscrito, trazendo-o em relativa conformidade com 0 texto bizantino (Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 77).
102 Conquanto ainda haja alguma controvérsia com relação ao modelo grego usado por Jerônimo para a sua
tradução, 0 consenso atual favorece a ideia de que ele tenha empregado manuscritos contemporâneos de origem
bizantina (Aland e Aland, 192).
103 Veja esp. Raphael Loewe, “The Medieval History of the Latin Vulgate,” em The Cambridge History of the
Bible: The Westfi'om the Fathers to the Reformation, ed. G. W. H. Lampe (Cambridge: Cambridge University Press,
1969), 102-154.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו07
continuaram a ser copiados à mão, o texto, depois do século onze, permaneceu basica-
mente 0 mesmo.
A influência do texto bizantino, porém, muito extrapolou os limites geográficos e mes-
mo cronológicos do Império Bizantino. Já na segunda metade do quarto século, ele serviu
de base para a primeira tradução das Escrituras para uma língua teutônica, o gótico, feita
pelo Bispo Wulfila, a quem se atribui também a invenção do alfabeto gótico. Conhecido
como “apóstolo aos godos,” Wulfila foi ordenado bispo provavelmente em Antioquia da
Síria no ano 341 e em 360 esteve presente no Sínodo de Constantinopla, o que ajuda a
explicar sua familiaridade com o texto bizantino. Embora, com 0 tempo, a gótica acabasse
incorporando algumas leituras ocidentais,104 ela consiste na mais antiga representante
versional do texto bizantino de que se tem conhecimento.105
Outra versão que também foi influenciada pelo texto bizantino é a antigo-eslava, fei-
ta no nono século pelos missionários Cirilo e Metódio. A Cirilo igualmente é atribuída
a criação do primeiro alfabeto eslavo, conhecido como alfabeto glagolítico. Irmãos bio-
lógicos naturais de Tessalônica, a segunda mais importante cidade do império, os dois
missionários tinham também uma íntima relação com Constantinopla. E absolutamente
natural, portanto, que sua tradução tivesse mais afinidades com 0 texto bizantino que com
qualquer outro tipo textual. De 2.500 variantes antigo-eslavas analisadas, mais ou menos
a metade é bizantina, enquanto apenas um quinto é ocidental; a proporção das leituras
alexandrinas é ainda menor.106 E como a maioria das traduções nas várias línguas eslavas
do passado e do presente tiveram como base a antiga tradução de Cirilo e Metódio, boa
parte do texto bizantino continua ainda hoje sendo usado por milhões de cristãos eslavos.
A própria Europa ocidental também viría, já no final da Idade Média, a sentir os efeitos
do texto bizantino. Apesar da supremacia da Vulgata Latina, a invenção da imprensa e um
renovado interesse pela literatura clássica fizeram com que, no século dezesseis, muitos
editores europeus se lançassem à publicação do NT em sua língua original, o grego. A au-
sência de conhecimento mais acurado dos problemas de transmissão textual, porém, fez
com que a maioria das edições fosse baseada nos poucos manuscritos gregos encontrados
em bibliotecas e mosteiros locais. E como quase todos esses manuscritos fossem de data
posterior e contivessem o texto bizantino,107 foi esse o texto que, em essência, acabou
sendo publicado e continuou a sê-lo, sem maiores modificações, até o final do século de-
zenove. Visto que a maioria das traduções protestantes nas diversas línguas da Europa,
104 Devido o completo desaparecimento da língua gótica já em meados do sexto século, apenas oito manus-
critos góticos do NT, todos do sexto século e a maioria em estado bastante fragmentário, sobreviveram. Para uma
descrição desses manuscritos, bem como uma introdução à versão gótica e seu caráter textual, veja Metzger, The
Early Versions of the New Testament, 375-393.
106 Para uma introdução à versão antigo-eslava, incluindo a relação e descrição dos manuscritos, veja ibid.,
394-442.
Ásia, África e América do Sul tiveram como base essas primeiras edições impressas do
texto grego, não é difícil perceber quão ampla e duradoura foi a influência exercida pelo
texto bizantino.
Tipos de Variantes
Alterações Acidentais
Erros involuntários compreendem cerca de 95% das variantes do NT.110 Essas variantes
estão relacionadas com a falibilidade dos copistas, o que significa que eles simplesmente
cometeram erros ao copiar de um manuscrito para outro. Tais erros são encontrados em
todos os períodos da tradição manuscrita, sobretudo quando ainda se usava a scriptio con-
tinua. A ausência de espaço entre as palavras e sentenças, sinais de pontuação ou divisões
no texto dava ensejo a muitos e diferentes erros de transcrição, ainda mais em face da
rudimentariedade dos materiais de escrita, a insalubridade de alguns locais de trabalho
e as limitações dos próprios copistas. Muitos erros involuntários foram cometidos “por
escribas bem-intencionados, mas por vezes estúpidos e sonolentos.”111 Como regra, esses
erros não são os mais difíceis de ser identificados e podem ter causas de várias espécies,
como as seguintes:
Equívocos visuais. Alguns erros foram cometidos ao confundir 0 copista algumas letras
com outras de grafia semelhante, como as maiúsculas A, Δ e Λ, E e Σ, O e Θ, H e N, Π,
109 Estudos sobre as práticas escribais incluem: Elliott e Moir, 37-76; James R. Royse, “Scribal Tendencies in
the Transmission of the Text of the New Testament,” em The New Testament in Contemporary Research: Essays on the
Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W Holmes, StD 46 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 239-252.
110 Arthur G. Patzia, The Making of the New Testament: Origin, Collection, Text, and Canon (Downers Grove:
InterVarsity, 1995), 138.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 109
112 Não pode ser esquecido que equívocos visuais certamente foram potencializados por alguma deficiência
visual da parte dos copistas (os óculos não foram inventados senão no final da Idade Média). Ambientes mal-
-iluminados também muito contribuíram para uma maior incidência de erros. Ainda hoje, em vários dos milenares
mosteiros ortodoxos do Monte Atos (Grécia), e.g., a luz elétrica é um luxo reservado a alguns setores apenas.
113 Parablepse (παραβλέψις) é um neologismo técnico que literalmente significa “um olhar ao lado.”
114 E comum nos círculos crítico-textuais o uso dos termos homoioarchton (όμοεοάρχτον) e homoioteleuton
(όμοιοτελευτον) para se referir respectivamente a “começo semelhante” e “término semelhante” de palavras, frases
ou até mesmo parágrafos inteiros, 0 que podia fazer com que o olhar do copista pulasse da primeira ocorrência para
a segunda, omitindo assim as palavras interpostas.
115 Ernest Best, The First and the Second Epistles to the Thessalonians, BNTC (Peabody: Hendrickson, 1972), 101.
Equívocos auditivos. Certas vogais e ditongos gregos vieram a ser pronunciados de ma-
neira praticamente idêntica, fenômeno conhecido como iotacismo, bem presente no grego
moderno. Por exemplo, ai e ε, ο, ω e ω, ou ainda 1, ׳u, η, η, ει, 01 e m acabaram tendo uma
pronúncia bastante semelhante e, como muitas cópias foram feitas mediante ditado, inú-
meras confusões eram passíveis de ocorrer. Um conhecido exemplo é Rm 5.1, onde ambas
as formas έχομεν (“temos”) e εχωμεν (“tenhamos”) encontram apoio nos manuscritos.
Outro exemplo, e bastante curioso, vem do Códice Beza, em Mc 14.31, onde o copista es-
creveu μή em vez de με, de modo que Pedro teria respondido a Jesus que nunca 0 negaria
“se não fosse necessário morrer.”117
Um dos erros auditivos mais comuns nos manuscritos envolve as diversas formas plu-
rais do pronome pessoal de primeira e segunda pessoas (ήμεις/ύμεΐς; ήμών/ΰμών; etc.).
O que foi que João escreveu em 1J0 1.4: “para que a nossa [ημών] alegria seja completa”
ou “para que a vossa [υμών] alegria seja completa”? E Paulo se incluiu a si mesmo (ημείς)
na referência que fez aos leitores em G1 4.28 ou se dirigiu a eles na segunda pessoa
(ύμεΐς)? Nos cinco capítulos de 1 Pedro, há pelo menos sete exemplos de variações en-
volvendo pronomes pessoais (1.3,12; 2.21[2x]; 3.18,21; 5.10). Tão comum é esse erro que
ele já está presente até mesmo nos mais antigos e melhores manuscritos, o que muitas
vezes faz com que a solução seja buscada quase que unicamente a partir de considerações
contextuais.118
Equívocos de memória. Quando a mente do escriba o traía, ele chegava a cometer erros
que poderíam variar desde a substituição de sinônimos (ευθύς por ευθέως; ότι por διότι;
περί por υπέρ; etc.), a inversão na sequência das palavras (como ιοαλους ποιεί por ποιεί
117 Erros provocados por confusão auditiva possuem pouco ou nenhum valor para a história do texto, tanto
que a maioria deles costuma ser omitida das edições críticas do NT grego. São poucos os casos que envolvem varia-
ções mais significativas, como Rm 5.1 (veja Royse, (“Scribal Tendencies in the Transmission of the Text of the New
Testament,” 239240)־.
Alterações Intencionais
119 Veja Markus Barth e Helmut Blanke, Colossians, AB (Nova York: Doubleday, 1994), 192 n. 93.
120 Greenlee, Introduction to the New Testament Textual Criticism, 65. Sobre Jo 5.3-4, veja abaixo, 218-222.
121 Uma lista com mais de seiscentos exemplos do mesmo gênero pode ser encontrada em Reuben J. Swanson,
“Unique and even Bizarre Readings in Manuscripts of 1 Corinthians,” em New Testament Greek Manuscripts: 1 Co-
rinthians (Wheaton: Tyndale, 2003), 459-487.
112 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
mais perigosos que aqueles que meramente desejavam ser fiéis ao modelo que tinham
diante de si.”122 Embora pouca ou nenhuma evidência exista de que variantes heréticas
ou destrutivas tenham sido deliberadamente produzidas, muitos copistas, indignados com
os erros ortográficos, gramaticais, estilísticos ou de fatos históricos reais ou imaginários
supostamente cometidos pelos copistas anteriores, não hesitavam em alterar seus textos
pelas formas que julgavam mais adequadas.123 Às vezes, copistas posteriores podiam in-
elusive reintroduzir erros já previamente corrigidos. Um curioso exemplo se encontra no
Códice Vaticano. Depois de tornar a substituir erroneamente φέρων (“sustentando”) por
φανερών (“manifestando”) em Hb 1.3, julgando ser essa a leitura original, um corretor
do século treze escreveu à margem esquerda da passagem: “Imbecil! Safado! Não mude
a leitura antiga. Deixe-a em paz!”124 Os tipos de alterações intencionais são os seguintes:
123 Veja, e.g., C. S. C. Williams, Alterations to the Text of the Synoptic Gospels and Acts (Oxford: Oxford Univer-
sity Press, 1951) ; Leon E. Wright, Alterations of the Words of Jesus as Quoted in the Literature of the Second Century
(Cambridge: Harvard University Press, 1952).
124 Uma imagem do manuscrito com a correção e a nota marginal pode ser vista em Metzger, Manuscripts of
the Greek Bible, 75.
125 Veja Gordon D. Fee, “Modern Textual Criticism and the Synoptic Problem: On the Problem of Harmoniza-
tion in the Gospels,” em Studies in the Theory and Method of New Testament Textual Criticism, ed. Eldon J. Epp e
Gordon D. Fee, StD 45 (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 174-182.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 113
Adaptações litúrgicas. Alterações com fins litúrgicos eram muito comuns nos lecioná-
rios, mas também podiam ocorrer nos manuscritos de texto contínuo. Passagens poten-
cialmente litúrgicas, sobretudo nos Evangelhos, podiam sofrer pequenas adaptações, às
vezes a partir de expressões ou imagens extraídas da própria Escritura, para que pudes-
sem ser utilizadas nos serviços de culto ou mesmo na devoção pessoal, e algumas dessas
alterações exerceram grande influência na transmissão do texto. Talvez o exemplo mais
notório seja 0 do Pai-Nosso (Mt 6.9-13), cuja parte final (“pois teu é 0 reino, 0 poder e a
glória para sempre. Amém!”) consiste num acréscimo de natureza doxológica. Inspirado
em passagens como lCr 29.11-13, esse acréscimo está presente num grande número de
manuscritos, sobretudo medievais, mas seu uso continua ainda hoje em praticamente to-
das as liturgias protestantes.127
126 Sobre essa passagem, veja Morna D. Hooker, The Gospel according to Saint Mark, BNTC (Peabody: Hen-
drickson, 1991), 34-36.
manuscritos por καταλείπω. O mesmo podia acontecer com palavras consideradas vulga-
res, as quais eram substituídas por sinônimos mais elegantes. Um exemplo é κοινός (“im-
puro”), em Mc 7.5, que em diversos manuscritos dá lugar a ανιπτος (“por lavar”). Muitos
escribas, mediante 0 emprego de simples conjunções ou advérbios, também tentavam me-
lhorar o sentido de algumas expressões, tornando-as mais fluentes ou lógicas. Esse é 0 caso,
por exemplo, de γάρ (“pois”) em Mc 4.24, ou a substituição de καί (“e”) por ή (“ou”) em
1C0 5.10. As vezes, era a omissão de uma partícula que resultava num melhoramento do
estilo, como no caso de έτι (“ainda”) em 1C0 3.2, que está ausente da maioria dos manus-
critos alexandrinos, e καί em 2Tm 3.16, que não aparece em várias versões e pais da igreja.
129 Sobre a gramática do Apocalipse, veja G. K. Beale, The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text,
NIGTC (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), 100-107.
o presente (έστίν), a fim de que a frase tivesse pelo menos algum sentido remoto (“O que
foi feito nele é vida”).131
Quanto às correções doutrinárias, os manuscritos evidenciam serem elas de dois tipos:
as que envolvem a eliminação ou alteração de algo considerado doutrinariamente ina-
ceitável ou inconveniente e as que procuram reforçar doutrinas ou práticas favoritas. Em
Mt 24.36 e Mc 13.32, por exemplo, alguns manuscritos omitem a expressão “nem o Filho”
certamente porque ela parece comprometer a divina onisciência de Jesus em relação aos
eventos finais. Da mesma forma, a inconsistência entre a declaração de Jesus em Jo 7.8 de
que não subiría (εγώ ούκ άναβαίνω) à festa em Jerusalém e o relato apenas dois versí-
culos depois dizendo que ele o fez, ainda que secretamente (v. 10), foi facilmente resolvido
mediante a substituição de ούκ por οΰπω (“eu não subo ainda”). No Evangelho de Lucas,
certas expressões usadas no relato da infância de Jesus, como “0 pai e a mãe do menino”
(2.33) e “seus pais” (v. 41), foram respectivamente substituídas por “José e sua mãe” e
“José e Maria,” com o nítido propósito de salvaguardar a doutrina do nascimento virginal
de Jesus. Outro exemplo vem das versões antigo-latina e gótica. Ao transcrever o prólogo
de Lucas, os tradutores acharam que o evangelista deveria ter se referido à aprovação divi-
na a sua decisão de compor o Evangelho e, por isso, acrescentaram à expressão “a mim me
pareceu bem” (1.3) o complemento “e ao Espírito Santo,” talvez por influência de At 15.28.
Os manuscritos também revelam a existência de algumas alterações heterodoxas e de
caráter antissemita. As variações em 1C0 15.51, por exemplo, podem ser decorrentes tanto
de noções conflitantes sobre a ressurreição quanto da dificuldade em se compreender a de-
claração de Paulo de que “nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados.” As-
sim, enquanto alguns manuscritos omitem 0 advérbio (“todos dormiremos e todos seremos
transformados”), outros mudam 0 advérbio de lugar (“todos dormiremos, mas nem todos
seremos transformados”), ou então acrescentam um segundo advérbio (“nem todos dor-
miremos, e nem todos seremos transformados”), ao passo que outros substituem o verbo
“dormir” pelo verbo “ressuscitar” (“nem todos ressuscitaremos, e nem todos seremos trans-
formados”). Um claro exemplo de corrupção doutrinária vem do Diatessarão, de Taciano,
que contém muitas alterações que apoiam uma visão excessivamente ascética e encratista
da religião. Na verdade, a crescente importância atribuída ao ascetismo na igreja primitiva
e 0 desejo de retratar a abstinência de alimento como um dever de todo o crente levaram
muitos copistas a introduzir nos manuscritos diversas referências ao jejum, particularmen-
te associado à oração. Isso aconteceu, por exemplo, em Mc 9.29; At 10.30 e 1C0 7.5. Em
Rm 14.17, onde o reino de Deus é descrito como não sendo nem comida nem bebida, “mas
justiça, paz e alegria no Espírito Santo,” um copista inseriu depois de “justiça” as palavras
“e ascetismo” (καί ασκησις). Interpolações semelhantes são muito comuns em 1C0 7.132
Alterações antissemitas retrocedem aos primórdios da transmissão textual. No texto
de Mt 1.21, por exemplo, a expressão “seu povo” foi substituída em alguns manuscritos
ו3 וPara uma discussão completa de ô γέγονεν em Jo 1.3-4, veja Wilson Paroschi, Incarnation and Covenant in
the Prologue to the Fourth Gospel (John 1.1-18), EUS (Frankfurt: Peter Lang, 2006), 30-38.
116 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
132 Recentes estudos sobre alterações doutrinárias incluem: Alexander Globe, “Some Doctrinal Variants in
Matthew 1 and Luke 2 and the Authority of the Neutral Text,” CBQ 42 (1980): 52-72; Peter M. Head, “Christology
and Textual Transmission: Reverential Alterations in the Synoptic Gospels,” NovT 35 (1993): 105-129; Bart D.
Ehrman, The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New
Testament (Oxford: Oxford University Press, 1993); idem, Studies in the Textual Criticism of the New Testament,
100-119; 142-155.
33 יVeja Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 154; Ehrman, Studies in the Textual
Criticism of the New Testament, 106-108. Para uma completa discussão sobre a passagem, veja Nathan Eubank, “A
Disconcerting Prayer: On the Originality of Luke 23.34a,” JBL 129 (2010): 521-536.
134 Veja Stephen G. Wilson, “Marcion and the Jews,” em Anti-Judaism in Early Christianity, 2 vols., ed. Peter
Richardson (Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1986), 2:45-58.
135 Ehrman se refere à Comma Joanina como “o mais óbvio exemplo de uma corrupção teologicamente moti-
vada de toda a tradição manuscrita do NT” (The Orthodox Corruption of Scripture, 45 η. 116).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 117
137 Do grego άγραφα (sing., αγραφον), que significa “não escritas” e diz respeito às declarações de Jesus não
encontradas nos Evangelhos canônicos.
138 Para as datas de Marcos e João, veja acima, 87 n. 24. Para as datas dos demais Evangelhos e das Epístolas
de Paulo, veja D. A. Carson, Douglas J. Moo e Leon Morris, An Introduction to the New Testament (Grand Rapids:
Zondervan, 1992).
118 A HISTÓRIA DO TEXTO ESCRITO
(παραλαμβάνω). Fee explica que a linguagem de Paulo nessas passagens reflete sua he-
rança judaica, visto que os verbos “receber” e “entregar” eram termos técnicos usados
pelos rabinos para a transmissão de tradições ou instruções religiosas.139
Mesmo nos pais apostólicos, que é como são chamados os primeiros escritores cristãos
não canônicos (final do primeiro e início do segundo século), talvez ainda seja possível de-
tectar a presença de ágrafos autênticos, como aqueles mencionados por Inácio140 e Clemen-
te.141 E nada impede que ágrafos ou outras tradições igualmente autênticas tenham mais
tarde sido incorporados nos próprios manuscritos bíblicos. Um exemplo talvez seja aquele
do Códice Beza já citado no capítulo anterior.142 Depois de Lc 6.4, o manuscrito inclui o
seguinte relato: “No mesmo dia, vendo alguém trabalhar no sábado, disse-lhe: Se você sabe
o que está fazendo, você é bem-aventurado, mas se não sabe, é maldito e transgressor da
lei.”143 O mesmo manuscrito inclui, no Livro de Atos, algumas expansões perfeitamente
verossímeis, como por exemplo a referência em 12.10 de que, ao deixar a prisão, Pedro e o
anjo “desceram sete degraus” até a rua.144 Seja como for, 0 ponto é que não é nada impos-
sível que tradições autênticas a princípio não registradas por nenhum evangelista tenham
posteriormente sido introduzidas em algum manuscrito por escribas que as conheciam e as
reputavam como dignas de confiança.145 Muitos estão convencidos de que foi dessa maneira
que episódios como o da mulher adúltera (Jo 7.53—8.11) e 0 suor que se tornou em sangue
(Lc 22.43-44) acabaram sendo perpetuados na memória da igreja.146
139 Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), 548. Fee relaciona
alguns exemplos da literatura judaica e bibliografia adicional. Para uma sugestiva reconstrução dos diferentes estágios
de formação e desenvolvimento dos escritos neotestamentários, veja Witherington, The New Testament Story, 14-47.
143 É universalmente aceito que essa declaração não é de modo algum parte do texto de Lucas, mas apenas
uma tradição isolada que foi inserida aqui. Sua autenticidade como uma genuína declaração de Jesus, porém, é
defendida por vários autores, entre os quais Joachim Jeremias (Unknown Sayings of Jesus, trad. Reginald H. Fuller
[Londres: SPCK, 1957], 49-54). Dentre as centenas de outros candidatos, Jeremias identificou mais dezessete ágra-
fos cuja autenticidade ele acredita admitir séria consideração. Menos otimista, Otfried Hofius reduziu a lista para
nove apenas, entre as quais está 0 texto acima (“Unknown Sayings of Jesus,” em The Gospel and the Gospels, ed.
Peter Stuhlmacher [Grand Rapids: Eerdmans, 1991], 336-360).
144 C. K. Barrett declara: “Essa variante talvez indique (mas não prova) conhecimento local [de Jerusalém] da
parte do editor ocidental; é difícil imaginar que ponto teológico ou outro qualquer podería ser beneficiado com a
adição.” (Acts of the Apostles, 2 vols., ICC [Edimburgo: T&T Clark, 1994-1998], 581)
145 Estudos recentes das declarações atribuídas a Jesus fora dos quatro Evangelhos incluem William D. Stroker,
Extra-canonical Sayings of Jesus, RBS (Atlanta: Scholars, 1990); William Morrice, Hidden Sayings of Jesus: Words
Attributed to Jesus Outside the Four Gospels (Peabody: Hendrickson, 1997); Robert E. van Voorst, Jesus Outside the
New Testament: An Introduction to the Ancient Evidence (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), 179-217.
146 T. M. Tuckett, porém, mostra-se inclinado a aceitar a autenticidade lucana de Lc 22.43-44 (“Luke 22:43-44: The
Agony" in the Garden and Luke’s Gospel,” em New Testament Textual Criticism and Exegesis: Festschrift J. Delobel, ed. A.
Denaux, BEThL 161 (Leuven: Leuven University Press, 2002), 131-144. Sobre Jo 7.53—8.11, veja abaixo, 223-231.
CAPÍTULO 4
O Texto Impresso
Nos séculos quinze e dezesseis, dois fatores contribuíram para que tivesse início uma
nova era na história textual do NT, a era do texto impresso. O primeiro, é claro, foi a in-
venção da imprensa com tipos móveis pelo artífice alemão Johannes Gutenberg, feito que
tornou os trabalhos de reprodução textual muito mais rápidos e baratos, além de acabar
de uma vez com a multiplicação dos erros de transcrição. Ou seja, pela primeira vez na
história, as cópias do mesmo livro — e da mesma edição, visto que a composição dos tipos
continuou a ser um processo manual — puderam passar a ser produzidas sem qualquer
variação entre si,12salvo raras exceções, a maioria das quais de acidentes tipográficos de
menor importância.
O segundo fator foi o Renascimento. Originado em Florença, Itália, e impulsionado
pela presença de um grande número de eruditos gregos provenientes de Constantinopla,
especialmente após a queda do Império Bizantino, em 1453,3 o Renascimento foi um mo-
vimento cultural que fez despertar em toda a Europa renovado interesse pela cultura e os
ideais clássicos, tanto gregos quanto latinos. Muitos humanistas europeus se dedicaram
ao aprendizado do grego e empreenderam inúmeras viagens a Constantinopla a fim de
adquirir manuscritos antigos, inclusive do NT, e assim revisar a Vulgata por meio deles.
Isso, somado ao advento da imprensa, abriu caminho para 0 gradual desenvolvimento da
moderna crítica textual.
Período Pré-Crítico
1 É muito conhecida a história narrada por Charles C. Coffin envolvendo Carlos VII, rei da França, e 0 arcebispo
de Paris, os dois primeiros compradores da primeira Bíblia impressa por Gutenberg. Eles teriam ficado tão perple-
xos com 0 fato de os dois exemplares serem absolutamente idênticos que chegaram ao ponto de atribuir a obra ao
próprio diabo e a recomendar que ninguém a lesse (The Story of Liberty [Nova York: Harper & Bro., 1878], 75-77).
2 Sobre a influência de humanistas gregos na Itália renascentista, veja Deno J. Geanakoplos, Constantinople and
the West: Essays on the Late Byzantine (Palaeologan) and Italian Renaissances and the Byzantine and Roman Churches
(Madison: University of Wisconsin Press, 1989), 3-67.
3 Embora alguns autores mencionem 1456, James E. Thorpe afirma categoricamente que 0 término da impres-
são se deu antes da separação dos sócios Johannes Gutenberg, Johan Fust e Peter Schõffer, que ocorreu em 6 de
novembro de 1455 (The Gutenberg Bible: Landmark in Learning [San Marino: Huntington Library Press, 1997], 2).
120 0 TEXTO IMPRESSO
uma edição completa do AT em hebraico foi publicada em Soncino, Itália. Antes do ano de
1500, a Bíblia já havia sido publicada em várias das principais línguas europeias, como
boêmio (tcheco), francês, alemão, italiano, holandês e catalão.4 O NT grego, porém, exce-
to em pequenas porções,5 ainda teve que esperar cerca de duas décadas para ser publica-
do, embora o editor veneziano Aldo Manuzzio, ainda no século quinze, tivesse planejado
fazê-lo, como revela sua correspondência particular.
A demora se deveu a dois fatores. O primeiro foi a dificuldade e o custo em se produzi-
rem tipos gregos aceitáveis. Ao tentar reproduzir a letra grega minúscula, os impressores, a
princípio, incorreram no erro de tentar duplicar os muitos tipos diferentes de letras e suas
combinações que se achavam nos manuscritos, totalizando mais de duzentos caracteres
distintos, em vez dos 24 necessários. Por fim, a variação foi abandonada, excetuando-se o
sigma, que até hoje permanece com duas formas (σ/ς). O segundo e principal fator foi o
grande prestígio da Vulgata, que mantinha a supremacia mesmo em face das traduções
vernáculas. O interesse maior dos estudiosos humanistas era mesmo a literatura clássica
profana, de modo que quando 0 primeiro NT grego completo saiu do prelo, em 1514,
todos os principais textos gregos conhecidos já haviam sido disponibilizados aos leitores
europeus.
4 Em 1495, Valentin Fernandes (ou Valentin Ferdinand), impressor de origem alemã e a figura mais destacada
da prototipografia portuguesa, publicou em Lisboa uma harmonia dos Evangelhos em quatro partes intitulada Vita
Christi. Considerado 0 terceiro incunábulo português e 0 primeiro livro ilustrado impresso em Portugal, a obra foi
encomendada e teve os custos financiados por D. Leonor, esposa de D. João II. Dois anos mais tarde, em 1497, o
editor Rodrigo Álvares publicou na cidade do Porto os Evangelhos e Epístolas com suas Exposições em Romance, que
ele mesmo traduzira do espanhol. Essa obra foi novamente publicada em Lisboa entre 1510 e 1511 por Fernandes
com 0 título Evangelhos e Epístolas que se Contam no Decurso do Ano. Nenhuma cópia completa dessa edição sobre-
viveu e não se sabe ao certo se a tradução era a mesma de Álvares ou se consistia numa tradução independente
do latim. Em 1505, os Atos e as Epístolas Católicas foram publicados em Lisboa também por ordem da Rainha D.
Eleonor. O texto era 0 de uma tradução anteriormente feita por Bernardo de Brivega, da qual existe hoje somente
0 manuscrito. O NT completo em português foi publicado pela primeira vez apenas em 1681, em Amsterdam, já na
versão de João Ferreira de Almeida, que na época era um missionário calvinista em Batávia, atual Jacarta, Indoné-
sia. A tradução do AT também foi obra de Almeida, mas apenas até Ez 48.21. Sua morte, em 1691, aos 63 anos de
idade, deixou 0 trabalho incompleto; este seria concluído em 1694 pelo missionário holandês Jacob op den Akker,
mas não seria publicado senão cinquenta anos mais tarde em dois volumes: o primeiro, em 1748, e 0 segundo, em
1753, ambos em Batávia. A Bíblia toda em português num único volume só seria publicada em 1819, em Londres,
nas oficinas gráficas de R. & A. Taylor. Sobre a história da Bíblia em português, veja G. L. Santos Ferreira, A Bíblia
em Portugal: Apontamentos para uma Bibliografia, 1495-1850 (Lisboa: Livraria Evangélica, 1906); Edgard F. Hallock
e Jan Lodewig Swellengrebel, A Maior Dádiva (Rio de Janeiro: JUERI) 2000); e esp. Herculano Alves, A Bíblia de
João Ferreira Annes d’Almeida (Coimbra: SBU/Difusora Bíblia, 2006).
5 Em 1481, 0 texto grego dos cânticos de Maria e Zacarias (Lc 1.46-55,6879 )־foi publicado em Milão por João
Crastonus, no apêndice de uma edição greco-latina dos Salmos. As mesmas passagens foram publicadas uma se-
gunda vez, em 1486, em Veneza, e de novo cerca de dez ou onze anos mais tarde num livro publicado pela famosa
Editora Aldine, de propriedade de Aldo Manuzzio, também em Veneza. Em 1495, ainda em Veneza, a leitura de
abertura do domingo da Páscoa (Jo 1.1-14) foi publicada num volume contendo a gramática grega de Constantino
Lascaris. Em 1504, Manuzzio publicou os seis primeiros capítulos do Evangelho de João em grego num livro que
continha os poemas de Gregório de Nazianzo em grego e latim. Posteriormente, em 1514, Jo 1.1-14 foi reimpresso
em Tubingen, Alemanha.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 121
parte da chamada Bíblia Poliglota Complutense. Trata-se de uma obra em seis volumes,
contendo o AT, em três colunas paralelas, em hebraico, latim da Vulgata e grego da LXX,6
com uma tradução latina interlinear; na parte inferior da página, o texto aramaico do
Targum de Onkelos,7 acompanhado de uma tradução latina, e 0 NT em grego e latim,
também em colunas paralelas, sendo que a da esquerda, com o texto grego, é mais larga
que a da direita, que traz o texto vulgático. A obra foi impressa na Universidade de Alcalá
(de Henares), que em latim se chamava Complutum, de onde o título “Poliglota Complu-
tense.”
Os trabalhos foram iniciados em 1502, com a nomeação de um grupo de estudiosos,
entre os quais se destacava Diego Lopez Zúniga (de Stunica). O primeiro volume a ficar
pronto foi justamente o quinto, contendo o NT, cuja impressão foi concluída em 10 de ja-
neiro de 1514. No ano seguinte, foi impresso o sexto volume, que consiste num apêndice
contendo uma gramática elementar e um léxico hebraicos. Finalmente, em 10 de julho de
1517, os trabalhos de impressão dos quatro volumes do AT foram completados.8 Todavia,
a autorização do Papa Leão X para a divulgação da obra não foi obtida senão em 22 de
março de 1520, depois de haverem sido devolvidos à Biblioteca Vaticana os manuscritos
que de lá se haviam tomado emprestados. Mesmo assim, não se sabe ao certo o porquê,
levou ainda dois anos para que ela começasse a ser comercializada.
Com respeito aos manuscritos utilizados, na dedicatória ao Papa Leão X, depois de
mencionar as dificuldades enfrentadas para obter manuscritos latinos, hebraicos e gregos,
Ximénez declara: “Pelas cópias gregas, somos gratos a sua santidade, que muito bondo-
samente nos enviou da Biblioteca Apostólica códices muito antigos, tanto do AT quanto
do NT, que muito nos ajudaram nesta empreitada.” E, no prefácio do NT, declara também
que se tratavam das “cópias mais antigas e exatas, de fato tão antigas e exatas, que, se
não forem inteiramente confiáveis, nenhuma outra merece sê-lo.” Essa declaração, porém,
deve ser vista com bastante reserva, pois, embora nenhum dos manuscritos utilizados em
Alcalá haja sido identificado com precisão, não há dúvida de que eram recentes e sem qual-
quer afinidade com o Códice Vaticano.9 Mesmo assim, 0 texto complutense era um pouco
6 Detalhe curioso sobre 0 AT é a declaração prefaciai dos editores segundo a qual 0 texto latino, ladeado pelos
textos hebraico e grego, assemelhava-se a ‘!Jesus entre os dois ladrões," uma óbvia referência à religião judaica e
ao cristianismo grego-ortodoxo. Em menos de trinta anos, como parte do movimento da Contra-Reforma, a Vulgata
Latina de Jerônimo viría a se transformar na versão oficial do catolicismo romano. A decisão foi tomada no Concilio
de Trento, em 8 de abril de 1546.
7 Os targuns eram traduções ou paráfrases aramaicas de textos bíblicos (do AT). Depois do cativeiro babilônico,
0 aramaico acabou substituindo 0 hebraico como língua vernácula do povo judeu, de modo que surgiu a necessida-
de de traduzir as Escrituras para que 0 povo comum pudesse compreendê-las (cf. Ne 8.8). Dentre os vários targuns
do Pentateuco, 0 de Onkelos, que segundo a tradição era um prosélito do primeiro século, é bem fiel aos originais
e, talvez por isso, acabou sendo aceito como a tradução oficial e autorizada da Torah, de leitura obrigatória nas
sinagogas. Para mais informação sobre os Targuns, veja Philip Alexander, “Targum, Targumim,” ABD, 6 vols. (Nova
York: Doubleday, 1992), 5:58-60.
8 Ao todo, foram impressas seiscentas coleções (a maioria em pergaminho), das quais são hoje conhecidas e
localizadas 97, sendo que uma delas (em papel) se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
122 0 TEXTO IMPRESSO
superior ao de outras edições que se seguiram, embora 0 formato incômodo, o alto preço e
a demora na obtenção do imprimatur acabaram limitando-lhe a influência.
Desidério Erasmo (1469-1536), mais conhecido como Erasmo de Roterdam, famoso es-
critor e humanista holandês, beneficiado com 0 atraso na divulgação da obra de Ximénez,
acabou produzindo, em 1516, 0 primeiro NT grego impresso a vir a público. Não é possível
determinar exatamente quando Erasmo decidiu preparar uma edição do texto grego do
NT, mas esse foi apenas mais um entre seus muitos empreendimentos textuais iniciados
após uma visita à Inglaterra, em 1499.9101De qualquer modo, foi numa visita à cidade suíça
de Basiléia, em 1514, que ele recebeu uma proposta definida do editor Johann Froben
para que preparasse tal edição. Froben fora informado do empreendimento de Ximénez e
desejava se antecipar a ele. As negociações não foram concluídas senão em meados do ano
seguinte e, já em março de 1516, a primeira edição estava pronta." Dedicada ao Papa Leão
X e chamada pelo próprio Erasmo de Novum Instrumentum, essa edição, de cerca de mil
páginas, cada uma com duas colunas paralelas, trazia, na coluna da esquerda, o texto gre-
go e, na da direita, a Vulgata de Jerônimo extensamente revisada de acordo com o texto
grego. Na verdade, o principal alvo de Erasmo não era o texto grego, mas, sim, o texto la-
tino da Vulgata, que ele pretendia corrigir com base no que supunha ser o original grego.12
Em Basiléia, porém, Erasmo não encontrou manuscritos gregos suficientemente bons
e nenhum que contivesse o NT completo. Para a maior parte do texto, ele se baseou em
apenas dois manuscritos minúsculos da biblioteca de um mosteiro dominicano local, sen-
do um dos Evangelhos (2e) e outro de Atos e das Epístolas (2ap), ambos mais ou menos do
século doze. Outros três manuscritos igualmente recentes, sendo o mais antigo também
do século doze ( leap, 4ape 7*0, foram utilizados para eventuais correções do texto. Para 0
9 Veja Jerry H. Bentley, “New Light on the Editing of the Complutensian New Testament,” BHR 42 (1980):
145-156.
10 Além do NT grego, Erasmo preparou também edições de diversos autores clássicos (Terêncio, Cúrcio, Suetô-
nio, Plínio, Lívio, Cícero, Xenofontes, Plutarco, Galeno, Luciano, Eurípedes, Aristóteles e Demóstenes) e pais da igreja
(Jerônimo, Cipriano, Hilário, Ambrósio, Irineu, Crisóstomo e Orígenes), para não falar ainda em seus muitos trata-
dos e livros de interesse geral, quase todos de cunho religioso. O NT grego, porém, foi sem dúvida “sua maior obra
humanística” (Rudolf Pfeiffer, History of Classical Scholarship from 1300 to 1850 [Oxford: Clarendon, 1976], 77).
11 Parvis declara que todas as evidências apontam para o fato de que Froben havia obtido direitos exclusivos
para a publicação do NT grego por um período de quatro anos, 0 que explicaria a demora de Leão X em autorizar a
circulação da Poliglota Complutense (4:600).
12 Que Erasmo estava mais preocupado com 0 texto latino é evidenciado pelo próprio título da obra, cuja forma
completa dizia Novum Instrumentum omne, diligenter ab Erasmo Roterodamo recognitum et emendatum. Como bem
observa Henk Jan de Jonge, em 1516 ainda não havia nenhuma edição grega que pudesse ser “revisada e corrigí-
da,” 0 que significa que 0 título se referia tão somente ao texto latino, não ao grego (“The Character of Erasmus’
Translation of the New Testament as Reflected in His Translation of Hebrews 9,” JMRS 14 [1984]: 81 n. 3). Na
dedicatória a Leão X, Erasmo também declarou: “Eu percebo que aquele ensino que é a nossa salvação estaria numa
forma muito mais pura e vivida se fosse buscado e extraído diretamente das fontes originais e não em represas ou
riachos. Assim, eu revisei todo o NT (como eles 0 chamam) à luz do original grego.... Acrescentei anotações por
minha própria conta para, em primeiro lugar, mostrar ao leitor as mudanças que fiz e as razões pelas quais as fiz e,
em segundo lugar, para desemaranhar e explicar qualquer coisa que possa ser complicada, ambígua ou obscura.”
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 123
Apocalipse, Erasmo possuía apenas um manuscrito do século doze (Γ), que tomara em-
prestado do amigo e também humanista Johann Reuchlin. A esse manuscrito, porém,
faltava a última folha com os seis últimos versículos da Bíblia (Ap 22.16-21). Para suprir a
falta, bem como de outros versículos ilegíveis do manuscrito, Erasmo retraduziu-os da Vul-
gata Latina, apesar de seu grego imperfeito.13 Apenas como exemplo, num único versículo
(v. 19), ele omite o artigo seis vezes, todas indevidamente, e usa uma palavra inexistente
(άφαιρήσει, quando o correto seria άφελεΐ).14
Como se podería esperar, o texto produzido por Erasmo era mesclado, além de ser
baseado em meia dúzia de manuscritos recentes e inferiores. À exceção do códice l eap,
primeiro membro da f e um dos menos utilizados, todos os demais representam o tipo
bizantino de texto. Além disso, conquanto sua intenção fosse corrigir a Vulgata por meio
do texto grego, Erasmo, de alguma forma, acabou permitindo que seu texto grego fosse
influenciado pelo texto vulgático, ao introduzir naquele diversas leituras latinas jamais
encontradas em qualquer manuscrito grego.15 Finalmente, por haver sido descuidada e
apressada, a edição estava repleta de erros tipográficos. O próprio Erasmo, numa carta
enviada ao papa, reconheceu logo depois que a obra fora “mais precipitada que editada,”16
embora estive convicto de haver empregado as cópias “mais antigas e exatas.” Nas quatro
edições seguintes (1519, 1522, 1527 e 1535), a maioria dos erros de impressão puderam
ser corrigidos, mas 0 texto permaneceu substancialmente o mesmo e esse era “0 mais gra-
ve defeito” das edições de Erasmo.17 Infelizmente, foi assim que o NT grego foi oferecido
ao mundo.
Logo de início, a obra de Erasmo despertou inúmeras críticas. Muitos ficaram escan-
dalizados com a ideia de que o texto vulgático estivesse corrompido e precisasse ser corri-
gido. A demanda, porém, chegou a surpreender, tanto que, embora protegida por direitos
autorais por quatro anos, o volume foi reimpresso em Veneza pela Editora Aldine já em
fevereiro de 1518. Em 1519, Erasmo lançou a segunda edição, agora com o título Novum
Testamentum. No total, a tiragem das duas edições alcançou 3.300 exemplares. Três mo-
tivos fizeram com que a segunda edição fosse mais importante que a primeira: (1) ela
13 Em sua quarta edição, de 1527, Erasmo restaurou 0 grego desses versículos a partir da Poliglota Complu-
tense.
14 Há também leituras que não são apoiadas por nenhum manuscrito conhecido, tais como ορθρινός (v. 16),
έλθέ (2x) e έλθέτω (v. 17), συμμαρτυρουμαι γάρ... έπιτιθή προς ταΰτα (ν. 18), άφαιρή βίβλου... άφαιρήσει e a
segunda ocorrência de βίβλου (ν. 19) e υμών (ν. 21). Para outros exemplos, inclusive em outras partes do NT, veja
Nestle, 4 η. 1.
5 רUm exemplo é At 9.6, cuja primeira parte contendo a pergunta de Paulo no momento de sua conversão na
estrada de Damasco (Έ ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que faça?”) consiste, sem dúvida, numa
interpolação a partir da Vulgata.
16 Com relação aos erros tipográficos, E H. A. Scrivener chegou a declarar que a edição de Erasmo era “o livro
mais faltoso” que ele conhecia (A Plain Introduction to the Criticism of the New Testament, 4a. ed. rev. Edward Miller,
2 vols. [Londres: Bell, 1894], 2:185).
17 Aland e Aland, 4.
ו24 0 TEXTO IMPRESSO
continha bem mais material introdutório, (2) as anotações foram ampliadas, e (3) incluía
também um tratado metodológico. Por causa disso, ela tinha quase o dobro de páginas.
Mais importante, porém, foi 0 fato de Erasmo ter substituído a Vulgata por uma nova e
elegante tradução latina que ele mesmo fizera, a primeira de todo 0 NT desde Jerônimo.
O texto da segunda edição também serviu de base, embora não fosse a única fonte, para
a tradução alemã de Martinho Lutero, publicada inicialmente em 1522 e que viria a se
tornar num dos mais importantes legados do reformador.18
Com a segunda edição, as críticas se intensificaram, apesar da carta de aprovação
papal nela estampada. Segundo Metzger, três foram as razões para isso: (1) as várias di-
ferenças que havia entre a nova tradução latina de Erasmo e a consagrada Vulgata; (2) as
muitas anotações nas quais ele procurava justificar sua tradução; e (3) a inclusão, entre
as notas filológicas, de diversos comentários cáusticos sobre a vida desregrada e corrupta
de muitos sacerdotes.19 Os ataques vieram de todos os lados: Inglaterra, Espanha, França,
Bélgica, Holanda e Alemanha. Até mesmo Lutero protestou contra Erasmo. Em Cambridge
e Oxford, as obras de Erasmo foram inclusive proibidas de circular. Um dos maiores pro-
blemas, levantados já desde a primeira edição, chegava a envolver questões doutrinárias:
por não incluir a chamada Comma Joanina no texto de 1J0 5.78־, Erasmo foi acusado de
promover o arianismo.20 Seus principais oponentes nessa questão foram Edward Lee, alto
dignitário da igreja na Inglaterra, e Zúniga, um dos editores da Poliglota Complutense.
A difundida história, de que, em resposta às acusações, Erasmo teria prometido incluir
a passagem nas próximas edições se um único manuscrito que a contivesse lhe fosse mos-
trado, parece que nunca aconteceu. De acordo com Henk Jan de Jonge, especialista em
estudos erasmianos, não há qualquer evidência de sua autenticidade. O que Erasmo fez,
na verdade, foi apenas explicar porque não havia incluído a passagem, em vez de prometer
que podería incluí-la em edições futuras.21 E ao ser acusado de negligência, por não haver
consultados outros manuscritos, ele apenas reagiu dizendo que não podia ser responsabi-
lizado pelos manuscritos que estavam além do seu alcance.22 De qualquer forma, um ma-
nuscrito grego com a Comma Joanina foi-lhe mostrado e Erasmo incluiu-a no texto de sua
18 Pfeiffer, 77. Após a publicação do NT, Lutero traduziu também o AT, que foi publicado em partes a partir de
1523. A Bíblia toda na tradução de Lutero foi publicada pela primeira vez 1534, em Vitenbergue.
20 Veja discussão completa do assunto por Joseph M. Levine, “Erasmus and the Problem of the Johannine
Comma,” JH I58 (1997): 573-596.
21 “Se eu tivesse visto um único manuscrito que contivesse a passagem,” declarou Erasmo em suas anotações,
“certamente eu 0 teria utilizado para preencher 0 que estava faltando nos outros” (veja Henk Jan de Jonge, “Eras-
mus and the Comma Johanneum,” ETL 56 [1980]: 381-386).
22 “Que tipo de negligência é essa se eu não consultei os manuscritos aos quais não tive acesso?” perguntou
Erasmo. “Pelo menos eu reuni o máximo de manuscritos que pude,” disse ele. Então acrescentou: “Que 0 Lee mostre
um manuscrito grego que contenha essas palavras que estão faltando nos meus e que ele prove que esse manuscrito
estava ao meu alcance, para somente então me acusar de negligência” (ibid., 386-389).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 125
terceira edição, de 1522,23 mas em suas anotações revelou a suspeita de que o manuscrito
houvesse sido contaminado pela Vulgata Latina;24 ele nunca deixou de considerar a pas-
sagem como espúria.25 J. Rendei Harris mostrou de forma convincente que o manuscrito
mostrado a Erasmo fora preparado provavelmente em Oxford, ao redor de 1520, por um
frade franciscano chamado William Froy (ou Roy).26
Em 1527, Erasmo preparou a quarta e definitiva edição, que continha, à semelhança
da terceira, o NT em três colunas paralelas: 0 texto grego, sua própria tradução latina e a
Vulgata de Jerônimo. Nessa edição, ele se valeu da Poliglota Complutense, que conhecera
recentemente, para fazer pouco mais de uma centena de alterações no texto grego, quase
todas no Apocalipse (cerca de noventa). Em 1533, dois anos antes da aparição da quinta
edição, Juan Ginés de Sepúlveda, amigo do já falecido Zúniga, disse a Erasmo que os ma-
nuscritos gregos por ele utilizados estavam todos corrompidos e fez uma lista de 365 pas-
sagens nas quais um antigo manuscrito grego da Biblioteca Vaticana (0 Códice Vaticano)
concordava com a Vulgata contra 0 texto de Erasmo.27 Erasmo ignorou a lista, temendo
que o manuscrito também houvesse sido adaptado ao texto latino.28 O resultado foi que o
texto grego da quinta edição permaneceu praticamente inalterado; a principal diferença
dessa edição para a anterior foi a não inclusão da Vulgata.29
Do ponto de vista crítico, o texto de Erasmo era inferior ao de Ximénez, mas, por haver
sido divulgado primeiro, custar menos e estar disponível num formato mais conveniente,
obteve maior circulação e exerceu muito mais influência. Além disso, afora suas cinco
edições regulares, mais de trinta reedições não autorizadas foram publicadas em lugares
como Veneza, Estrasburgo, Basiléia e Paris. Outros editores do século dezesseis ainda
23 Por haver se baseado na segunda edição de Erasmo, Lutero não incluiu a Comma Joanina em sua tradução,
mas virtualmente todos os demais tradutores protestantes 0 fizeram, incluindo-se Almeida. Em 1897, num docu-
mento endossado pelo Papa Leão XIII, a então Sagrada Congregação da Inquisição Universal ainda insistia que a
passagem era autêntica. Levaria ainda quarenta anos para que a decisão fosse finalmente revogada (veja Roland H.
Bainton, “The Bible in the Reformation,” em The Cambridge History of the Bible: The West from the Reformation to
the Present Day, ed. S. L. Greenlade [Cambridge: Cambridge University Press, 1963], 10-11).
25 Outras passagens cuja autenticidade Erasmo também negava eram a doxologia do Pai-Nosso (Mt 6.13), os
versículos finais de Marcos (16.9-20) e 0 relato da mulher pega em adultério (Jo 7.53—8.11). Ele as manteve no
texto, porém, porque “o consenso da igreja” determinou que elas eram “dignas do evangelho” (veja Jerry H. Bentley,
“Erasmus’Annotationes in Novum Testamentum and the Textual Criticism of the Gospels,” ARC 67 [1976]: 49-50).
26 Trata-se do ms. 61 (Códice Montfort), que se encontra atualmente na biblioteca do Trinity College, em Du-
blin (J. Rendel Harris, The Origin of the Leicester Codex of the New Testament [Londres: Clay & Sons, 1887], 46-53).
27 F. J. Crehan, “ The Bible in the Roman Catholic Church from Trent to the Present Day,” em The Cambridge
History of the Bible: The West from the Reformation to the Present Day, ed. S. L. Greenlade (Cambridge: Cambridge
University Press, 1963), 203-204.
28 Bentley, “Erasmus’Annotationes in Novum Testamentum and the Textual Criticism of the Gospels,” 47-48.
29 Na seção de obras raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro também existem dois exemplares do NT
grego de Erasmo, um da primeira e outro da quarta edição.
126 0 TEXTO IMPRESSO
32 Em nenhum momento, porém, Estéfano se refere a Erasmo. No prefácio das duas primeiras edições, ete
apenas declara vagamente que suas fontes haviam sido alguns manuscritos que encontrara na biblioteca real, em
Paris, e o texto complutense. Na terceira edição, ele menciona outros manuscritos a que tivera acesso, inclusive de
bibliotecas particulares, mas também silencia completamente quanto às edições de Erasmo, apesar de se aproximar
ainda mais delas.
33 “Eu sinto com frequência que 0 cavalo algumas vezes fez sua pena saltar para 0 lugar errado" (Robertson, An
Introduction to the Textual Criticism of the New Testament, 100).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו27
razoável supor que o trabalho foi executado durante 0 repouso nas hospedarias ao longo
da estrada.34A divisão em versículos do AT também foi obra de Estéfano, que a introduziu,
em 1555, numa edição latina da Bíblia. Seu objetivo ao dividir os capítulos em passagens
menores era o de poder usar uma concordância que ele mesmo estava preparando e que
foi publicada por Henrique em 1594. Antes da enumeração dos versículos, os capítulos
costumavam ser divididos em parágrafos.
35 A influência das edições de Beza entre ingleses e americanos foi enorme. Sua tradução latina, e.g., foi usada
como referência pelos editores da famosa Bíblia de Genebra, de 1560 (2a. ed., 1576), que foi a versão mais popular
na Inglaterra até anos após o advento da King James; ela continuou a ser reimpressa até meados do século dezes-
sete (1644). Como muitas cópias fossem levadas por imigrantes para a América, calcula-se que ela tenha passado
por cerca de 160 reimpressões (Marvin R. Vincent, A History of the Textual Criticism of the New Testament [Londres:
Macmillan, 1899], 59).
36 Embora às vezes apresentados como irmãos, Boaventura e Abraão eram, na verdade, filho e neto de Louis
Elzevir (1540-1617), 0 patriarca da família em Leiden. Ou seja, Boaventura era tio de Abraão, o qual, por sua vez,
era o primeiro filho de Matthieu, irmão mais velho de Boaventura. Outro detalhe que também precisa ser esclare-
rido é que a primeira edição acima mencionada (1624) foi, de fato, impressa por Isaac Elzevir (1596-1651), irmão
mais velho de Abraão e um dos primeiros membros da família a adquirir equipamento tipográfico. Em 1626, Isaac
vendeu 0 equipamento a Boaventura e Abraão (veja esp. Alphonse Willems, Les Elzevier, Histoire etAnnales Typogra-
phiques [Bruxelas: van Trigt, 1880; 2a. reimp., Nieuwkoop: de Graaf, 1974]).
ו28 O TEXTO IMPRESSO
sendo três em Leiden (1624, 1633 e 1641) e as demais em Amsterdam (1656, 1662, 1670
e 1678), as quais se destacaram especialmente pela ótima impressão tipográfica, bela
apresentação e pequeno formato, de fácil manuseio. Especializados em autores clássicos,
o propósito deles ao publicarem o NT grego era mais comercial que literário, apesar de
introduzirem 287 alterações no texto que tomaram como base, a primeira edição de Beza
(1565). Algumas das mudanças foram inspiradas na Editio Regia de Estéfano, mas nem
todas, de maneira que havia passagens em que o texto dos Elzevir divergia tanto do texto
de Beza quanto do texto de Estéfano.
A segunda edição, publicada em 1633, merece destaque na história textual do NT. No
prefácio em latim, anunciava-se que 0 leitor tinha em mãos “0 texto que é agora recebido
por todos, no qual nada damos de modificado e corrompido.”37 E foi desse elogio exage-
rado à própria obra que nasceu a conhecida expressão “texto recebido” (textus receptus),
o qual, na verdade, não era outro senão o próprio texto bizantino, um texto posterior e
inferior, que rolara durante centenas de anos em cópias manuscritas e acumulara uma
sobrecarga de acréscimos e erros equivalente a 8% do NT. Não se deve, porém, pensar no
Texto Recebido como sendo idêntico ao texto bizantino, ou Texto Majoritário, como costu-
ma ser chamado quando se utiliza um critério mais quantitativo. Ou seja, ele nem sempre
representa o texto encontrado na maioria dos manuscritos bizantinos. Daniel B. Wallace
contabilizou 1.838 diferenças entre o Texto Recebido e o Texto Majoritário.38 Algumas
vezes, o Texto Recebido é melhor que o Texto Majoritário, mas, quase sempre, é decidida-
mente inferior, com leituras que apresentam pouco ou nenhum apoio documental.39
Não obstante, 0 Texto Recebido se tornou o texto básico do mundo protestante, tanto
nos meios acadêmicos quanto eclesiásticos. Por mais de duzentos anos, ele foi praticamen-
te 0 único a ser impresso, e isso centenas de vezes e nos mais diferentes lugares. Em 1710,
foi aceito pela Sociedade Bíblica de Canstein, organizada nesse mesmo ano na cidade
alemã de Halle, e, em 1810, pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, fundada seis
anos antes em Londres, vindo a servir de base para praticamente todas as traduções pro-
testantes até o final do século dezenove, inclusive a de João Ferreira de Almeida.40 Os dias
37 Em latim, “textum ergo habes, nunc ab omnibus receptum: in quo nihil immutatum aut corruptum damus.”
Embora 0 texto não contenha nenhuma atribuição autoral ou editorial, H. J. de Jonge demonstrou que 0 prefácio
à segunda edição dos Elzevir foi escrito por Daniel Heinsius, ao passo que 0 editor do texto propriamente dito foi
Jeremias Hoelzlin, ambos professores em Leiden (‘Jeremias Hoelzlin: Editor of the ‘Textus Receptus’ Printed by
the Elzevirs Leiden 1633,” em Miscellanea Neotestamentica, 2 vols., ed. T. Baarda, A. F. J. Klijn e W. C. van Unnik,
NovTSup 47/48 [Leiden: Brill, 1978], 1:105-128).
38 Daniel B. Wallace, “The Majority Text Theory: History, Methods, and Critique,” em The Text of the New Testa-
ment in Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46
(Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 302 n. 28.
39 E.g., επί, em Mt 18.6; λαμά, em Mt 27.46; επί χοΐς, em Me 10.24; επέστρεψαν, em Lc 2.20; δώση, em
Jo 17.2; teal άπήγαγον, em Jo 19.16; ευθύς έξήλθεν, em Jo 19.34; τού ονόματος αύτοΰ, em At 5.41; άπείθοΰντες,
em At 17.5. A situação é ainda mais grave no Apocalipse, que talvez concentre o maior número de leituras sem
qualquer apoio documental. E.g., δώση, em 13.16; άλλος άγγελος, em 14.8; των αγίων, em 15.3; κύριε, em 16.5;
πορφύρα ε κόκκινη), em 17.4; καίπερ εστιν, em 17.8; διαδιόώσουσιν, em 17.13; τελεσθή τα ρήματα, em 17.17;
λέγοντος, em 19.1; εκπορευόμενη, em 19.21; άνέζησαν εως, em 20.5; έγώ ’Ιωάννης εΐδον, em 21.2.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 129
do século quinze, quando o texto da Vulgata Latina era aceito como suficiente, já eram
passados.4041 Muitos teólogos dos séculos dezessete e dezoito adotaram-no verdadeiramente
como um texto revelado e sua autoridade era tida como canônica. Ao manter a crença na
inspiração verbal, isto é, na literal e inerrante inspiração do texto, a antiga ortodoxia pro-
testante não podia admitir que as palavras bíblicas houvessem sido alteradas no decurso
de sua transmissão, e o Texto Recebido, com todos os seus problemas e defeitos, incluindo-
-se aquelas alterações para as quais não existe qualquer base manuscrita, era tido como
intocável.
Brian Walton (1600-1661), erudito e clérigo anglicano, foi 0 primeiro a apresentar uma
relação de variantes mais cientificamente elaboradas, como parte de sua monumental edi-
ção multilíngue da Bíblia, conhecida como Poliglota de Londres, publicada em seis volumes
entre 1655 e 1657.42 O quinto volume, publicado em 1657, continha 0 NT em seis diferentes
40 O texto grego utilizado por Almeida em sua tradução do NT é uma verdadeira incógnita. Mesmo sem ofere-
cer nenhuma evidência, B. E Bittencourt introduziu a tese de que foi a segunda edição dos Elzevir, de 1633 (O Novo
Testamento: Cânon, Língua, Texto, 2a. ed. [Rio de Janeiro: JUERR 1984], 210), tese essa que eu ajudei a difundir
(Paroschi, Crítica Textual do Novo Testamento, 114). Em sua monumental obra sobre a Bíblia de Almeida, Alves
evita fazer qualquer afirmação a respeito (veja discussão às pp. 456-469, e esp. 471). Considerando, porém, que
no prefácio de Diferença da Cristandade, que traduzira do espanhol em 1650, Almeida explicitamente declara haver
utilizado 0 texto de Beza em sua primeira tradução do NT para 0 português, ainda a partir do latim, quando tinha
apenas dezessete anos de idade (veja Alves, 258-259), e que todas as edições de Beza eram bilíngues (em grego
e latim), não parece de todo improvável que 0 texto grego usado por Almeida em sua tradução definitiva do NT
(1681) tenha sido exatamente 0 de Beza. E em que pese as diversas revisões que a tradução de Almeida já sofreu,
bem poucas foram de natureza textual. Isso significa que 0 Texto Recebido conseguiu sobreviver em português
quase que na íntegra; na verdade, ele continua bem presente na popular Edição Revista e Corrigida, assim chama-
da desde 1898 e a remanescente mais direta da obra de Almeida, bem como na Edição Contemporânea, lançada
em 1990, e na Edição Corrigida e Fiel, introduzida em 1994. Na prática, o que essas edições fizeram foi apenas
incorporar atualizações linguísticas e ortográficas. O texto, porém, continua essencialmente 0 mesmo desde 1681.
41 À exceção da Igreja Católica, cuja teologia mantinha uma posição bem diferente, especialmente após o Con-
cílio de Trento, de 1546. Veja acima, 121 n. 6.
ו30 0 TEXTO IMPRESSO
línguas: grego, latim, siríaco, etíope, árabe e, nos Evangelhos, persa.4243 O texto grego era o
da terceira edição de Estéfano, modificado em apenas três passagens, e estava acompanha-
do, assim como cada uma das versões orientais, de uma tradução literal para 0 latim. Ao pé
da página, estavam as variantes encontradas no Códice Alexandrino, que fora recentemen-
te doado ao governo britânico por Cirilo Lucaris, patriarca de Constantinopla. Nessas notas
críticas, o Códice Alexandrino foi designado pela letra A, sendo esta a origem da prática
moderna de usar letras romanas para designar os manuscritos maiúsculos do NT.
Nos prolegômenos do primeiro volume, Walton reservara algumas páginas para a ques-
tão das variantes textuais nas Escrituras. No sexto, uma espécie de apêndice, ele chegou
inclusive a incluir um aparato crítico que continha as variantes já publicadas por Estéfano,
juntamente com um grupo de várias outras recentemente coligidas de quinze manuscritos
pelo arcebispo irlandês James Ussher. Tudo isso lhe custou inúmeras críticas, entre elas a
de que o material que compilara indicando a necessidade de correções no Texto Recebido
tendia a promover o ateísmo.44
42 Entre o final do século dezesseis e início do dezessete, houve ainda duas outras edições multilíngues da
Bíblia. A primeira foi a chamada Poliglota de Antuérpia, publicada em oito volumes entre 1569 e 1572 por Christo-
pher Plantin, impressor francês residente em Antuérpia, Bélgica. O texto grego do NT, que segue a Editio Regia de
Estéfano, foi publicado duas vezes: no quinto volume, juntamente com os textos em siríaco e latim (da Vulgata), e
no sexto volume, com uma tradução latina interlinear de Arias Montano, um dos colaboradores do projeto. A outra
edição, conhecida como Poliglota de Paris, foi publicada em dez volumes entre 1628 e 1645 por Guy Michel Le Jay,
advogado do parlamento parisiense. O NT ocupa dois volumes: o quinto, contendo os Evangelhos, e 0 sexto, com
os demais livros, todos nas mesmas línguas e na mesma disposição da Poliglota de Antuérpia. A única diferença
estava na parte inferior da página (dupla) que trazia, à esquerda, 0 texto em árabe, e à direita, a tradução deste
para 0 latim pelo próprio Le Jay. Os avanços promovidos por essas duas edições, porém, foram mais filológicos que
propriamente textuais. Para uma descrição detalhada, veja Adrian Schenker, “The Polyglot Bibles of Antwerp, Paris
and London: 1568-1658,” em The Hebrew Bible/Old Testament: The History of Its Interpretation, ed. Magne Satbo, 2
vols. (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2008), 2:774-784.
43 Os primeiros volumes, referentes aos AT, traziam o texto hebraico com uma tradução latina interlinear, o
latim da Vulgata, 0 grego da LXX, 0 aramaico dos targuns, 0 siríaco, 0 árabe e ainda 0 Pentateuco e 0 Targum Sarna-
ritanos, sendo que os seis últimos vinham acompanhados cada um de uma tradução latina literal.
44 Walton não foi criticado apenas dentro dos círculos anglicanos. Em 1667, ele obteve a honra (póstuma) de
ter sua obra incluída no Index Librorum Prohibitorum, da Igreja Católica, cuja primeira versão aparecera em 1559,
sob 0 Papa Paulo no contexto da Contra-Reforma, e continuou a ser publicada até sua abolição pelo Papa Paulo
VI, em 1966. Mesmo com a proibição, porém, uma coleção completa da Poliglota de Londres chegou ao Brasil e
também se encontra na Biblioteca Nacional do Rio.
nismo. Curceleu tinha planos de publicar uma edição do NT em grego e latim bem mais
completa, com diversas leituras variantes, mas sua morte o impediu de fazê-lo. Ele chegou
ao ponto de propor muitas leituras conjecturais, convicto de que estavam corretas.
John Fell (1625-1686), deão da Igreja de Cristo e depois bispo de Oxford, usou mais de
cem manuscritos e todas as versões da Poliglota de Londres, além da edição de Curceleu
e das versões copto-boaírica e gótica, para publicar anonimamente, em 1675, uma edição
de bolso do NT grego (16,5 x 9,5 cm), a primeira preparada em Oxford. Embora 0 texto
fosse o da segunda edição dos Elzevir, ela trazia um aparato crítico com grande núme-
ro de variantes extraídas das edições de Estéfano e de Walton, bem como das versões e
dos manuscritos por ele consultados.46 Infelizmente, cerca de vinte dessas testemunhas
não são citadas individualmente, mas apenas quanto ao número total de manuscritos que
concordam em determinada leitura. Não obstante, essa edição representou significativo
avanço em relação às anteriores, apesar de que as críticas ao Texto Recebido não alcança-
ram qualquer êxito em produzir-lhe mudanças. Pelo contrário, apenas contribuíram para
firmá-lo ainda mais.
Richard Simon (1638-1712), teólogo francês de confissão católica, apesar de não haver
preparado nenhuma edição do NT grego ou sequer colecionado variantes, marcou época
na história da crítica textual neotestamentária ao publicar, a partir de 1689, uma série de
quatro livros sobre 0 assunto. Por sua aguda compreensão dos problemas envolvidos na
transmissão do texto, seus trabalhos enunciaram verdades que só viríam a ser acolhidas
pelos críticos cerca de dois séculos depois. Infelizmente, por tentar defender 0 catolicismo
romano contra os ensinos dos reformadores, Simon acabou misturando questões de pura
crítica textual com problemas relacionados à canonicidade e autoria dos livros do NT.47
Seja como for, as opiniões que emitiu sobre 0 valor da Vulgata, o caráter das variantes
em livros heréticos e a importância da análise interna no exame das leituras divergentes
foram muito sugestivas.48
John Mill (1645-1707), professor em Oxford, publicou em Paris no ano de 1707 uma
notável edição do NT grego, depois de haver gasto perto de trinta anos em pesquisas.
46 No apêndice, Fell incluiu ainda uma lista de variantes preparada em 1625 por João Caryophilus, de Creta,
com vistas a uma edição crítica do NT. A lista, editada em 1673 por Pedro Poussin, foi encontrada em 1875 por An-
drew Birch na Biblioteca Barberini, em Roma, juntamente com a solicitação de empréstimo de Caryophilus ao Papa
Paulo V de seis manuscritos pertencentes à Biblioteca Vaticana. Entre os manuscritos citados está 0 Códice Vaticano.
As variantes de Caryophilus, porém, geralmente favorecem 0 texto vulgático.
47 Por essa razão, Theodor Zahn se refere a ele como “o fundador da disciplina da introdução ao NT” (“Ein-
leitung in das Neue Testament,” RE, 24 vols. [Leipzig: Hinrichs, 1854-1913], 5:263).
48 Sobre Simon e a importância de suas obras para 0 estudo textual do NT, veja Justin A. I. Champion, “Pere
Richard Simon and English Biblical Criticism, 1680-1700,” em Everything Connects: In Conference with Richard H.
Popkin - Essays in His Honor, ed. James E. Force e David S. Katz (Leiden: Brill, 1999), 3 9 6 1 ־.
ו32 0 TEXTO IMPRESSO
Embora tenha reproduzido 0 texto da Editio Regia de Estéfano, as notas críticas traziam
cerca de trinta mil variantes compiladas de edições anteriores, das colações que ele mesmo
fizera de 78 manuscritos, das antigas versões (especialmente a Antiga Latina e a Vulgata)
e citações patrísticas. O aparato crítico chega a ocupar até dois terços da página. Ao todo,
Mill não apenas citou mais variantes que qualquer de seus antecessores, como também se
atreveu a opinar sobre o valor de muitas delas em relação ao Texto Recebido, apesar de
tê-lo corrigido em apenas 31 lugares. Mesmo assim, teve de enfrentar severas críticas. Não
faltou inclusive quem dissesse que sua motivação não era outra senão a de propositalmen-
te causar danos ao texto bíblico. Ele mesmo, porém, pouco ou nada sofreu por causa das
acusações, pois veio a falecer apenas duas semanas após a publicação da obra, identificada
por Vaganay como um verdadeiro “monumento da erudição.”49 Mill figura como 0 primei-
ro a reconhecer o real valor e importância das antigas versões e os pais da igreja para 0
estudo textual do NT. Vincent o descreve como o fundador da disciplina da crítica textual
propriamente dita.50
50 Vincent, 67.
Bentley teve que amargar pesadas críticas, mas ele não se deixou intimidar. Em vez disso,
passou a coletar ainda mais material junto aos manuscritos gregos e literatura patrística
para sua edição, projeto esse que infelizmente teve de ser interrompido com sua morte.
Não obstante, suas propostas exerceram grande influência.52
52 Para uma extensa e positiva apresentação dos princípios textuais de Bentley, veja Vincent, 70-75. Vincent
declara: “Houvesse a edição de Bentley aparecido, ela teria representado um valioso conjunto de material crítico.
Teria sido uma importante contribuição para o estabelecimento do texto e um duro golpe no tradicional Texto
Recebido” (74).
53 Um resumo dos princípios textuais de Bengel pode ser encontrado no prefácio de seu comentário do NT,
disponível também em inglês (Johann A. Bengel, G n o m o n o f t h e N e w T e s ta m e n t, 2 vols., trad. Charlton T. Lewis e
Marvin R. Vincent [Filadélfia: 1860-1861], 1:§viii).
134 OTEXTO IMPRESSO
54 Como declara Vincent, Wettstein “foi superior a Bengel no quesito das colações e mais amplo foi seu conhe-
cimento das autoridades, mas sua capacidade analítica não se comparava à de Bengel. Ele foi mais perceptivo que
Bengel ao observar os fenômenos que correto ao explicá-los” (92).
55 Metzger, Chapters in the History of the New Testament Textual Criticism, 160.
56 Mais de um século depois, defensores do Texto Recebido ainda se referiam à obra de Bowyer, em particular
suas emendas conjecturais, como “a tentativa mais infrutífera de clarificar a Escritura pelo criativo exercício da
imaginação” (Scrivener, 2:245 η. 1).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 135
59 As datas das edições de Griesbach aqui adotadas seguem Metzger e Ehrman, 167.
61 Conquanto reconheçam o valor de Griesbach, Aland e Aland fazem questão de salientar que o grande expo-
ente da crítica textual do século dezoito foi, de fato, Bengel, que foi quem propôs 0 maior número de mudanças no
Texto Recebido e formulou o maior número de princípios textuais cuja validade tem sido reconhecida até aos dias
de hoje (9-11).
62 Infelizmente, a reputação de Matthaei no âmbito da crítica textual ficou maculada por dois aspectos muito
negativos relacionados à conduta pessoal: a forma agressiva com que tratou alguns de seus predecessores, como
Semler e Griesbach, e as sérias acusações de haver subtraído diversos manuscritos clássicos e patrísticos de algumas
bibliotecas russas (veja Gregory, Canon and Text of the New Testament, 450-451).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 137
63 No Prefácio a Crônicas, Jerônimo afirma que o texto da LXX preparado por Hesíquio era 0 preferido em
Alexandria, enquanto 0 de Luciano 0 era em Antioquia e Constantinopla, e, no Prefácio aos Evangelhos, condena 0
trabalho de ambos, declarando que eles não deveríam ter se atrevido a corrigir a LXX e que era igualmente inútil
tentar corrigir o NT por meio das versões cujos textos já haviam, eles mesmos, sido indevidamente alterados. E é
com base nessas vagas referências que, ainda hoje, há autores que vinculam o texto alexandrino a Hesíquio (e.g.,
Vaganay, An Introduction to New Testament Textual Criticism, 106-108). Nada mais, porém, se sabe acerca dele, além
do fato de que era bispo no Egito e que foi martirizado em Alexandria, cerca do ano 311, sob as ordens de Maximino
(Eusébio, Hist. Ecles. 8.13). Além disso, descobertas como a do íp66 e 75 נ ןlançaram definitivamente por terra a tese
de que 0 texto alexandrino seria recensional ou que se teria originado no quarto século (veja Gordon Fee, “<p66,
íp75, and Origen: The Myth of Early Textual Recension in Alexandria,” em Studies in the Theory and Method of New
Testament Textual Criticism, ed. Eldon J. Epp e Gordon D. Fee, StD 45 [Grand Rapids: Eerdmans, 1993], 247-273).
64 Apoio quase que irrestrito à reconstrução tripartite de Hug ainda pode ser visto, e.g, em José O’Callaghan,
Introducción a la crítica textual del Nuevo Testamento, IEB 3 (Estella: Verbo Divino, 1999), 56. Vaganay, também
católico, reconhece que a recensão atribuída a Orígenes foi um erro e que a distribuição de Hug das testemunhas
nas várias famílias textuais foi bastante imprecisa. “Não obstante,” diz ele, “sua ideia... foi muito perspicaz” (An
Introduction to New Testament Textual Criticism, 142).
138 0 TEXTO IMPRESSO
os únicos a sobreviver. Assim, embora publicasse um texto crítico, sua edição representou
um verdadeiro retrocesso em direção ao Texto Recebido, somente em virtude de sua in-
coerência na aplicação das teorias textuais. Parvis chega a declarar que “Scholz foi talvez
o estudioso mais equivocado que já editou 0 NT,”65 ainda que suas pesquisas certamente
contribuíssem para o desenvolvimento da crítica textual.66
Com Scholz, chega ao fim o segundo período na história da crítica textual, período esse
em que não houve qualquer progresso real em relação ao texto do NT propriamente dito.
As muitas evidências que se acumulavam deixavam cada vez mais claro que 0 texto em
uso precisava ser corrigido, mas ninguém se aventurava a tanto. Ainda não havia ambiente
para isso. Um texto crítico, declara Vaganay, podería não ter encontrado nenhum editor ou
leitor,67 podendo inclusive gerar muito infortúnio a quem o publicasse. A predominância
do Texto Recebido, porém, estava com os dias contados. As muitas leituras que se torna-
ram conhecidas mediante 0 sucessivo exame dos manuscritos, o início da classificação
dos manuscritos em famílias ou grupos textuais e o desenvolvimento de teorias críticas
exigiam mudanças, 0 que finalmente veio a ocorrer no período seguinte, mas não sem que
antes houvesse uma escalada das críticas e tensões.
Edições M odernas
No século dezenove, 0 reinado do Texto Recebido chegou ao fim. Os esforços dos pes-
quisadores nos dois séculos anteriores fizeram com que a crítica textual se estruturas-
se e desenvolvesse personalidade própria. A distribuição dos manuscritos nos diferentes
grupos permitiu que os muitos documentos começassem a ser organizados e, mais que
isso, que a história da tradição manuscrita começasse a ser reconstituída. Isso levou ao
desenvolvimento sistemático de princípios metodológicos e ao tratamento cada vez mais
científico das inúmeras leituras variantes. Apesar de ainda haver divergência quanto a
algumas das teorias textuais, todos buscavam a mesma coisa: um texto que estivesse o
mais próximo possível do original. E, nesse novo período, sob os mais violentos protestos,
o Texto Recebido foi finalmente deposto. Assim surgiu 0 texto crítico e, com ele, o período
moderno da crítica textual do NT.
65 Parvis, 4:602.
66 Anos mais tarde (1845), Scholz se retratou de sua preferência pelo texto bizantino e declarou que, se lanças-
se uma nova edição do NT grego, havería de incluir no texto a maioria das leituras alexandrinas que anteriormente
relegara à margem (veja Metzger e Ehrman, 170).
67Vaganay, A n I n t r o d u c t io n t o N e w T e s t a m e n t T e x t u a l C r i t i c i s m , 145.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 139
68 De acordo com Gregory, Lachmann cometeu grave erro estratégico ao publicar seu NT grego: a edição não
tinha nenhum prefácio explicativo; em vez disso, num apêndice bastante sucinto, ele apenas remetia o leitor para
seu artigo do ano anterior. Ele também se limitou a dizer que seguira a prática dos pais gregos, complementando
a informação, quando necessário, a partir de textos latinos, e que, portanto, não usara 0 Texto Recebido. Ao assim
fazer, Lachmann, que não era teólogo, “teria subestimado as inclinações conservadoras dos teólogos e a influência
que eles poderíam exercer em evitar uma recepção preconceituosa de seu trabalho” (Canon and Text of the New
7istament, 452).
69 Segundo Scrivener, “0 texto de Lachmann raramente se baseia em mais de quatro códices gregos, frequente-
mente em três, e não raras vezes em dois; em Mt 6.20—8.5 e em 165 dos 405 versículos do Apocalipse, 0 texto não
se baseia senão em um manuscrito apenas” (2:233).
73 Veja Caspar René Gregory, “Tischendorf,” BS 33 (1876): 153-193, onde a lista das publicações de Tischendorf
ocupa onze páginas inteiras. Veja também Matthew Black e Robert Davidson, Constantin von Tischendorf and the
Greek New Testament (Glasgow: University of Glasgow Press, 1981).
74 Infelizmente, a morte súbita de Tischendorf em dezembro de 1874, aos sessenta anos de idade, impediu-0 de
completar os prolegômenos de sua monumental edição. A tarefa de suprir a omissão coube a Caspar René Gregory,
de Leipzig, e Ezra Abbot, de Harvard, que também faleceu antes da conclusão dos trabalhos. Os prolegômenos
foram finalmente publicados (em latim) em três partes entre 1884 e 1894. A obra de Gregory Textkritik des Neuen
Testamentes (3 vols. [Leipzig: Zentralantiquariat, 1900-1909]) é basicamente uma tradução alemã dos prolegôme-
nos, com poucas alterações.
de intelectual, seu interesse pelo texto do NT começou muito cedo, quando ainda tinha
apenas 25 anos de idade. Instigado pela insistência de Scholz em rejeitar a evidência das
testemunhas mais antigas (texto alexandrino), começou, em 1838, a planejar uma edição
do NT grego com base exatamente em tais testemunhas, sem fazer qualquer concessão às
reivindicações do Texto Recebido. Depois de vários anos de intenso trabalho, publicou sua
edição crítica bilíngue (em grego e latim vulgático) em Londres em seis partes, entre 1857
e 1872.76 Tendo empreendido inúmeras viagens pela Europa, conseguiu colacionar dezes-
sete importantes manuscritos de maneira tão precisa que lhe permitiu inclusive corrigir
algumas citações errôneas de críticos anteriores; também examinou as muitas citações do
NT feitas pelos pais da igreja até Eusébio e várias antigas versões (siríaca, latina, copta,
etíope e armênia). Isso lhe permitiu preparar um texto de excelente qualidade, muito
semelhante ao de Tischendorf, a não ser pelos Evangelhos, cuja edição apareceu antes
da publicação do Códice Sinaítico. Não fosse isso, as semelhanças entre os dois textos
certamente seriam bem maiores. O aparato crítico também não era tão elaborado quanto
o de Tischendorf, embora todos os manuscritos maiúsculos, antigas versões e citações
patrísticas estivessem cuidadosamente representados. Dentre os minúsculos, os únicos
citados eram 1, 33, 61 e 69, os quais, segundo pensava, preservavam um texto bastante
antigo. Tregelles é lembrado por seu meticuloso e dedicado trabalho em favor do texto do
NT. Apesar das muitas dificuldades financeiras, a saúde precária e as pesadas críticas que
enfrentou, restaurar 0 texto original do NT era para ele um verdadeiro ato de devoção, de
“serviço a Deus e à igreja,” como declarou na introdução de sua obra.
76 Por causa de um derrame cerebral em 1870, para a última parte de seu NT grego Tregelles teve que contar
com a ajuda de B. W. Newton. Um volume dos prolegômenos compilado a partir de outros trabalhos seus e contendo
inúmeras páginas de addenda et corrigenda foi também editado por A. W Streane, sob a supervisão de F. J. A. Hort,
e publicado postumamente em 1879.
77 Uma segunda edição do volume dois contendo notas adicionais por F. C. Burkitt foi lançada em 1896. Em
1988, a Hendrickson, editora norte-americana, preparou uma reimpressão do volume dois, mas infelizmente a
edição escolhida foi a primeira e não a segunda, com as notas de Burkitt.
142 0 TEXTO IMPRESSO
Westcott e Hort operaram com base no chamado método genealógico, que pode ser
definido simplesmente como o esforço para determinar a relação (sanguínea) entre os
manuscritos. A inferência é a de que “comunhão nas leituras implica em comunhão na
origem.”78 E 0 que se busca com o agrupamento de manuscritos de acordo com suas afini-
dades textuais não é outra coisa senão facilitar tanto a reconstituição da história do texto
quanto a avaliação da confiabilidade de cada manuscrito, especialmente daqueles que
apresentam linhagens mistas, ou que combinam diferentes tipos de textos.
O ponto de partida de Westcott e Hort foi a evidência interna, que eles denominaram
de “a mais rudimentar forma de crítica.” Ela envolve dois aspectos: aquele que tem como
referência 0 autor e que procura saber 0 que é mais provável que ele tenha escrito (proba-
bilidade intrínseca), e aquele que tem como referência 0 copista e que busca determinar 0
que pode ter feito com que ele escrevesse o que escreveu (probabilidade transcricional).79
Em seguida, deve-se checar a evidência documental para saber qual é 0 manuscrito que
preserva o melhor texto e que, portanto, deve ser usado como base para uma edição críti-
ca. O princípio operante é o de que se for epcontrado um manuscrito que frequentemente
apoie as leituras variantes que se recomendam por meio da evidência interna, então se
supõe que o manuscrito também seja confiável nos demais casos em que a análise interna
não conduz a uma decisão definitiva.80 Foi assim que eles acabaram priorizando o Códice
Vaticano.
O próximo passo é o exame da relação genealógica dos manuscritos entre si: aqueles
que têm uma descendência comum, ou seja, que apresentam as mesmas características
textuais, são colocados no mesmo grupo, e é o grupo então, não a quantidade de manus-
critos, que acaba sendo determinante na hora de se tomar uma decisão textual. Se, por
exemplo, entre dez manuscritos, nove concordam em determinada leitura, mas todos eles
descendem do mesmo ancestral, então a vantagem numérica perde completamente o va-
lor. Por fim, o método busca também determinar a evidência interna dos grupos. Assim
como é importante avaliar as características gerais de um manuscrito a partir da frequên-
cia com ele apoia ou não leituras anteriormente estabelecidas com base na probabilidade
interna, também as características gerais de um grupo de manuscritos devem ser avalia-
das em relação a outros grupos.81
78 Westcott e Hort, 2:60. Uma definição mais completa é provida por Hort: “O método genealógico própria-
mente consiste... na recuperação mais ou menos completa dos textos de sucessivos ancestrais por meio da análise e
comparação dos variados textos de seus respectivos descendentes, sendo que cada texto ancestral assim recuperado
é então utilizado, juntamente com outros textos similares, para recuperar 0 texto de um ancestral comum ainda
mais antigo” (ibid., 2:57}. Para informações adicionais, veja abaixo, 181.
79Ibid., 2:19-20.
80 O princípio, como enunciado por Hort, é 0 de que “o conhecimento dos documentos deve preceder o julga-
mento final das leituras variantes” (ibid., 2:31).
81 Para um resumo dos princípios e procedimentos textuais adotados por Westcott e Hort, veja Kenyon, Hand-
book to the Textual Criticism of the New Testament, 295-306. Descrição ainda mais sucinta é provida por Metzger e
Ehrman, 177-181.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו43
82 Westcott e Hort, 1:557. As poucas vezes em que, na opinião deles, 0 texto neutro não representava 0 texto
original eram algumas passagens que eles chamaram de “não interpolações ocidentais” (Mt 27.49; Lc 22.19-20;
24.3,6,12,36,40,51,52), ou seja, omissões autênticas preservadas pelo texto ocidental. Eles achavam que, nessas
passagens, era o texto ocidental, que normalmente é mais longo e flexível, que havia preservado a forma original,
ao passo que 0 texto neutro é que sofrerá acréscimos e interpolações (ibid., 2:175-179).
83 Apenas para dar uma ideia do teor das críticas, no prefácio de sua última edição do texto de Estéfano,
Scrivener se referiu ao NT grego de Westcott e Hort como “um erro esplêndido, não uma possessão para sempre”
(F. H. A. Scrivener, Η ΚΑΙΝΗ ΔΙΑΘΗΚΗ [Londres: Bell, 1887], 9). Burgon, por sua vez, procurou assegurar a
seus leitores “sem uma partícula sequer de hesitação, que א, B e D são três das cópias sobreviventes mais escanda-
losamente corruptas; exibem os textos mais vergonhosamente mutilados, não encontrados em nenhum outro lugar;
tornaram-se, por um processo qualquer (pois sua história é totalmente desconhecida), os depositários da maior
quantidade de leituras fabricadas, tolices antigas, e perversões intencionais da verdade, que podem ser encontrados
em qualquer cópia conhecida da Palavra de Deus” (John W. Burgon, The Revision Revised [Londres: Murray, 1883],
16 [itálicos originais]). Para um breve resumo dos principais argumentos usados na época contra Westcott e Hort,
veja Greenlee, Introduction to New Testament Textual Criticism, 75-77.
84 Para esforços recentes no sentido de reabrir a polêmica em torno do Texto Recebido, veja abaixo, 189-193.
Hort superestimaram a qualidade do texto neutro, supondo que ele representasse o texto
original do NT, daí 0 título de sua obra.86 Em linhas gerais, porém, pode-se dizer que a
reconstituição que propuseram da história textual do NT e os procedimentos críticos que
adotaram são ainda hoje reconhecidos como válidos pela grande maioria dos estudiosos
modernos. Como declara Alexander Souter, as idéias de Westcott e Hort têm sido “modi-
ficadas, mas não refutadas.”87
86 Tão grande era sua confiança de haver conseguido recuperar a forma original do texto neotestamentário
que eles chegaram a afirmar que apenas a milésima parte do texto ainda não estava criticamente assegurada. “Se
trivialidades comparativas, tais como mudanças de ordem, inserção ou omissão do artigo antes de nomes próprios e
coisas afins, forem deixadas de lado, as palavras em nossa opinião ainda passíveis de dúvida dificilmente excedem
à milésima parte de todo 0 NT” (Westcott e Hort, 1:561).
87 Souter, 94.
88 Na primeira e segunda edições (1898, 1899), a edição de Weiss foi pouco usada e apenas a partir do Livro
de Atos. A terceira edição utilizada por Nestle nessas duas edições foi a de Richard F. Weymouth (Nova York, 1892),
ela própria derivada da comparação de várias edições anteriores, incluindo-se as de Estéfano, Lachmann, Tregel-
les, Tischendorf, Westcott e Hort e Weiss, daí seu título The Resultant Greek Testament. A partir da terceira edição
(1901), Nestle abandonou Weymouth e passou a usar apenas Weiss.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 145
Beza. Pequena no tamanho, a edição fora preparada para fins práticos e apenas sintetizava
os resultados das pesquisas textuais do século dezenove. Ela deixava de lado os extremos
de Tischendorf, com sua preferência pelo Códice Sinaítico, e de Westcott e Hort, que ha-
viam priorizado o Códice Vaticano, especialmente quando o texto de Weiss era adotado.
Com o tempo, novas edições apareceram (foram nove até 1912), e em cada uma delas Nes-
tie acrescentava mais informações na margem inferior, aumentando assim as referências
aos manuscritos, versões e escritores patrísticos.
Publicada sob os auspícios da Sociedade Bíblica de Vurtembergue, em Stuttgart, a
edição de Nestle assinalou a aceitação definitiva do texto crítico também nos meios ecle-
siásticos. Sua quarta edição (1903) foi aceita, em 1904, pela Sociedade Bíblica Britânica e
Estrangeira,89 a maior e mais influente sociedade bíblica da época. Assim, a destituição do
Texto Recebido, cujo reinado se estendera por quase quatrocentos anos, estava finalmente
completa. A partir desse momento, apenas poucas vozes isoladas e ocasionais ainda insis-
tiriam em sua superioridade.
89 Editada em Londres nesse ano com 0 título Η ΚΑΙΝΗ ΔΙΑΘΗΚΗ, ela trazia um aparato completamente
diferente, mostrando apenas as variantes da edição anterior publicada pela mesma sociedade bíblica. Em conexão
com 0 sesquicentenário da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, uma nova edição do texto de 1904, alterado
em apenas vinte lugares, foi lançada (Londres, 1958), desta vez com um novo aparato crítico, preparado por G. D.
Kilpatrick juntamente com vários outros especialistas.
90 No texto K, von Soden incluiu a grande massa de manuscritos minúsculos, subdividindo-os ainda em diver-
sas famílias, representando os vários estágios de desenvolvimento; no texto H, ele classificou os antigos unciais,
alguns minúsculos (33, 892, 579 e 1241), a versão copta e as citações de Atanásio, Dídimo, Cirilo de Alexandria
e outros; e no texto 1, os códices D, Θ, 565, f e as versões antigo-latina e siríaca, os quais também subdividiu em
numerosas famílias.
ו46 0 TEXTO IMPRESSO
ele, 0 texto original foi corrompido no segundo século: os Evangelhos e Atos por Taciano
e as Epístolas Paulinas por Marcião.
Tal reconstituição histórica, porém, incluindo-se a classificação das testemunhas nos
diferentes grupos textuais, suscitou inúmeras críticas entre os estudiosos da época. O
texto também foi muito criticado. Por estar baseado numa metodologia bastante questio-
nável, aliada ao trabalho medíocre da maioria de seus assistentes, o texto de von Soden
se revelou muito inferior ao de Westcott e Hort. O próprio aparato crítico, conquanto rico
em informações, era deveras complicado e confuso. O resultado foi que, apesar de suas
prolongadas investigações e do estudo inédito de grande número de manuscritos, o em-
preendimento costuma ser comumente descrito como “um magnífico fracasso.”91 Até nas
vendas ele decepcionou: levou mais de cinquenta anos para que a edição se esgotasse.
Não obstante, os trabalhos de von Soden não devem ser totalmente postos de lado. Seus
estudos pioneiros quanto aos níveis de desenvolvimento do texto koinê (o mesmo texto
bizantino) foram de real importância e proveram inúmeras evidências para a classificação
de uma imensa quantidade de manuscritos minúsculos nos diferentes grupos textuais.
Burnett H. Streeter (1874-1937), renomado clérigo e teólogo britânico, embora não pre-
parasse nenhuma edição do NT grego, fez importantes contribuições no âmbito da crítica
textual. Em sua obra The Fourth Gospels: A Study of Origins, publicada em Londres em
1924,93 ele avançou ainda mais a teoria de Westcott e Hort, principalmente à luz de novos
manuscritos descobertos deste então. Valendo-se também dos estudos de Hug, Streeter
enfatizou a necessidade de se isolarem as formas de textos correntes nas principais locali
dades do cristianismo antigo e, mediante as versões e citações dos pais da igreja, procurou
traçar 0 perfil histórico dos vários tipos de textos, os quais denominou de “textos locais,”
que se desenvolveram nos vários centros cristãos até por volta do ano 200, quando 0 NT
teria alcançado 0 máximo de divergência, conforme refletido nas versões latinas, siríacas
e coptas.94
Além dos já conhecidos textos que circularam em Alexandria, Roma e Constantinopla,
Streeter propôs também a existência de alguns outros, entre os quais 0 texto cesareense,
que teria sido utilizado por Orígenes em Cesareia, na Palestina, de onde supostamente se
espalhara para outras regiões, algumas tão distantes quanto o Cáucaso (as versões armê-
nia e georgiana), na fronteira entre a Europa e a Ásia.95 Além disso, seus trabalhos con-
duziram a modificações adicionais na teoria textual de Westcott e Hort: o termo “neutro,”
para se referir à família textual representada pelos Códices Vaticano e Sinaítico, e sem
uma localização geográfica específica, deixa de ser usado, uma vez que esses manuscritos,
conquanto de fato bastante antigos, não possuem um texto tão impecável como se pen-
sava, mas apenas o texto de Alexandria em sua forma mais pura; por outro lado, por não
haver clara distinção entre as famílias neutra e alexandrina, elas são combinadas numa
só. Também a família siríaca, pela confusão que pode gerar com a versão homônima, é
designada como bizantina, conforme já o fizera Griesbach. E o texto ocidental, que pode
recuar a um período bem primitivo, é considerado digno de ser ouvido.96
No período que se seguiu a Streeter, porém, a teoria dos textos locais continuaria
a se desenvolver e sofrer modificações, até ser virtualmente abandonada pela grande
maioria dos estudiosos. Uma das mais importantes constatações, viabilizada principal-
mente pelas descobertas de novos papiros, foi a de que a distribuição geográfica dos
textos nunca foi tão rígida quanto se pensava.97 Outra importante modificação foi 0
reconhecimento de que os diferentes grupos textuais, inclusive o bizantino, não foram
recensionais, isto é, não podem ser atribuídos a uma única pessoa, localidade ou data,
mas foram, sim, o resultado de “um processo, gradual em alcançar um elevado grau
de distinção e uniformidade.”98 Por fim, 0 hipotético texto cesareense que, apesar da
94 Streeter, 27.
95 Ibid., 78. Com a publicação dos Códices Washingtoniano e Korideti, respectivamente em 1912 e 1913, F. C.
Burkitt chamou a atenção, em 1916, para 0 fato de que eles ofereciam um texto estranho, diferente das formas
textuais até então conhecidas (“W and Θ: Studies in the Western Text of St. Mark,” JTS 17 [1916]: 1-21,139-152).
Kirsopp Lake e Robert E Blake, em 1923, indicaram que esse texto se achava também em outras testemunhas: / ',
/ 13 e os minúsculos 28, 565 e 700 (“The Text of the Gospels and the Koridethi Codex,” HTR 16 [1923]: 267-286).
Finalmente, em 1924, Streeter defendeu sua utilização por Orígenes, em Cesareia, denominou-o de texto cesare-
ense e elevou-o a uma posição de destaque na tradição textual neotestamentária, praticamente comparável, em
antiguidade e importância, aos textos alexandrino e ocidental.
desconfiança de alguns, foi bastante popular durante quase todo o século vinte, não é
hoje visto senão apenas como um texto misto, sem personalidade própria, como no caso
dos demais tipos textuais. A maioria dos estudiosos modernos já abandonou a defesa
desse texto, por não considerá-lo “essencial à história básica documental do texto do NT
geralmente pressuposta.”99
Erwin Nestle (1883-1972) deu continuidade aos trabalhos de seu pai (Eberhard), lan-
çando, em 1914, a décima edição do “Nestle,” que incorporava várias adições ao aparato
crítico. Com o lançamento da 13a. edição, em 1927, teve início um novo período na história
desse NT grego. O aparato, agora unificado, combinava as variantes das edições nas quais
o texto fora originariamente baseado (adicionadas de outras que constavam na edição de
von Soden) com um número ainda maior de evidências extraídas dos manuscritos, versões
e citações patrísticas, permitindo assim um julgamento independente sobre o texto. E foi
assim que 0 Nestle começou a se desprender de seu primitivo formato de 1898 para se
tornar um manual técnico sem concorrentes. Sua circulação aumentou consideravelmen-
te, sobretudo nas edições bilíngues — com 0 texto latino da Vulgata Clementina ou 0 da
tradução alemã de Lutero revisada em 1912 — e sua influência se fez sentir inclusive no
Brasil, onde serviu de base para uma das mais importantes revisões de Almeida do século
vinte, a Edição Revista e Atualizada.100
Augustin Merk (1869-1945), outro pesquisador católico, publicou seu Novum Testa-
mentum Graece et Latine em 1933, pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. O texto,
apesar de bem superior ao de Vogeis, ainda revelava grande influência de von Soden e
da Vulgata Latina. O aparato crítico, por outro lado, incluía as evidências de um vasto
número de testemunhas, especialmente de manuscritos minúsculos e de Taciano, as
quais estavam organizadas de forma a exibir o relacionamento textual que havia entre
si. Infelizmente, Merk não foi muito preciso ao arrolar essas evidências, 0 que lhes li-
mitou bastante a utilidade, especialmente se elas não estivessem disponíveis para con-
ferência em outras publicações. Sucessivas edições pelo próprio Merk e outros especia-
listas católicos muito melhorariam a qualidade do material,101 mas seu uso, mesmo nos
círculos católicos, conquanto bastante difundido a princípio, seria finalmente suplanta-
do por edições interconfessionais melhores e mais confiáveis que surgiríam na segunda
metade do século vinte. Os tradutores da Bíblia de Jerusalém fizeram intenso uso das
edições de Merk.102
too preparada a partir da 16a. edição de Nestle, de 1936 (Bittencourt, 237), a Edição Revista e Atualizada, da
Sociedade Bíblica do Brasil, teve seus trabalhos iniciados em 1943, ainda sob os cuidados da Sociedade Bíblica
Britânica e Estrangeira e da Sociedade Bíblica Americana, que atuavam no Brasil naquele tempo (a SBB seria fun-
dada somente em junho de 1948, a partir de quando assumiría a responsabilidade pelo projeto). A revisão do NT
ficou pronta em 1951, sendo publicada pela primeira vez no ano seguinte. A Bíblia toda apareceu em 1959 (2a.
ed., 1993).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 149
י° יMerk preparou seis edições de seu NT greco-latino, sendo que a última delas, editada por Stanislas Lyonnet,
apareceu em 1948, três anos após o falecimento de Merk. Lyonnet também foi 0 responsável pela sétima edição,
de 1951. A oitava edição (1958) foi editada por J. R Smith; a nona e a décima (1964, 1984), por Cario M. Martini.
102 Traduzida inicialmente para o francês (1973) pela Escola Bíblica de Jerusalém, dos padres dominicanos, a
Bíblia de Jerusalém foi, pela primeira vez, publicada no Brasil em 1981. A segunda edição, lançada em 2002, foi
influenciada pela revisão da edição francesa (1988) e incluiu nova tradução de várias passagens e uma completa
revisão das notas críticas.
103 O texto de Merk foi reimpresso em Roma, em 1955, por Gianfranco Nolli, também com 0 título Novum Tes-
tamentum Graece etLatine. Em 1981, Nolli lançou uma nova edição, incluindo também 0 texto da Nova Vulgata, que
consiste numa nova e oficial versão latina da Bíblia iniciada em 1965, a pedido do Papa Paulo VI, e concluída em
1979 (2a. ed., 1986). Como essa versão fosse elaborada com base em recentes edições críticas hebraicas e gregas,
a edição de Nolli apresentava várias anomalias, uma vez que trazia um texto grego diferente. Seu aparato crítico
também deixava muito a desejar (veja Aland e Aland, 223).
104 Veja Metzger, Chapters in the History of the New Testament Textual Criticism, 137.
150 0 TEXTO IMPRESSO
publicada em 1963, foi usada como base para mais uma revisão de Almeida, a Versão Revi-
sada.105 Essa também foi a edição que encerrou, por assim dizer, o segundo ciclo na história
desse NT grego.106 A partir da 26a. edição, lançada em 1979, o tradicional texto de Nestle
foi inteiramente substituído pelo texto da terceira edição do The Greek New Testament, das
Sociedades Bíblicas Unidas, que será descrito em seguida, e muitas mudanças também
foram incorporadas no aparato crítico. A responsabilidade editorial também deixou de ser
de uma pessoa apenas para ser de um grupo de especialistas internacionais; até sua morte,
em 1994, Aland fez parte desse grupo. Ou seja, ο NA26 tinha muito pouco em comum com
as edições anteriores de Eberhard e Erwin Nestle.107 Em 1993, ο ΝΑ apareceu em sua 27a.
edição. O texto é exatamente o mesmo da edição anterior, mas diversas alterações foram
introduzidas no aparato crítico, tornando-o “mais confiável, expressivo e fácil de usar.”108
Desde seu lançamento, ο NA27 já passou por nove atualizações do aparato crítico a fim de
incluir o testemunho de novos manuscritos, especialmente papiros. A última foi em 2006.
105 Na primeira reunião da Imprensa Bíblica Brasileira, em julho de 1940, uma das primeiras decisões tomadas
foi a de iniciar uma profunda revisão no texto de Almeida. Em 1949, uma edição experimental do NT apareceu,
mas a edição definitiva daquela que ficaria conhecida como Versão Revisada (“Versão Revisada de acordo com os
Melhores Textos em Hebraico e Grego”) só saiu em 1967, sendo preparada com base no NA26 (1963). De acordo
com Bittencourt, a edição preliminar de 1949 fora feita a partir dos textos de “Nestle e Westcott e Hort” (216-217).
Veja também Edgard F. Hallock, “A Tradução Revisada da Imprensa Bíblica Brasileira," em A Bíblia e Como Chegou
Até Nós, John Mein, 8a. ed. (Rio de Janeiro: JUERR 1990), 61-64.
106 As principais contribuições de Erwin Nestle para 0 NT grego iniciado por seu pai foram mesmo com respeito
ao aparato crítico. O texto da 17a. edição (1941), e.g., não diferia do texto da terceira edição (1901) senão apenas
em doze lugares e praticamente mais nenhuma mudança significativa foi incorporada até a 25a. edição.
107 Para uma análise comparativa do NA25 e ο NA26, veja David Holly, Comparative Studies in Recent Greek New
Testament Texts: Nestle-Aland's 25th and 26th Editions (Rome: Biblical Institute Press, 1983).
parasse tal edição. Além dos muitos assessores e consultores que participaram do proje-
to, a comissão editorial foi formada por Kurt Aland, de Münster, Matthew Black, de St.
Andrews, Escócia, Bruce M. Metzger, de Princeton, e Allen P. Wikgren, de Chicago,1 09110 os
quais procederam da seguinte forma: (1) tomando como base a edição de Westcott e Hort,
compararam 0 texto e o aparato crítico de várias outras edições, incluindo-se as de Nestle,
Vogeis, Merk, Bover, e, até certo ponto, as de Tischendorf e von Soden, com o propósito de
determinar quais variantes mereciam estudo mais aprofundado; (2) em torno dos milha-
res de variantes, compilaram dados não apenas de tais edições, mas também de comen-
tários e estudos técnicos, bem como de papiros, manuscritos maiúsculos e minúsculos e
lecionários não usados até então; (3) escolheram e compararam entre 0 texto grego e as
principais versões em inglês, alemão e francês cerca de seiscentas variações de pontuação;
finalmente, (4) estabeleceram 0 texto grego, avaliaram o grau de certeza da leitura adota-
da no texto e decidiram quais variantes deveríam ser incluídas no aparato.
A partir da segunda edição, lançada em 1968 com poucas alterações textuais, Cario
M. Martini, então reitor do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, foi integrado à comissão
editorial, 0 que confirmou o caráter internacional e interconfessional do projeto, conforme
pretendido por Nida. Em 1975, depois de profunda revisão do texto, ficou pronta a terceira
edição, diferente da anterior em mais de quinhentos lugares. Foi essa a edição que serviu
de base para a Bíblia na Linguagem de Hoje e a Nova Versão Internacional,111 as primeiras
traduções protestantes inteiramente novas em português elaboradas a partir do texto crí-
tico, se bem que ambas tinham antecedentes em língua inglesa: respectivamente, a Good
News Bible (1966) e a New International Version (1973,1978).
As principais alterações no texto do GNT2 foram sugeridas por Aland, que já por mais
de vinte anos estivera trabalhando com vistas a uma completa revisão do NA. Como resul-
tado, a comissão editorial pôde estabelecer um só texto para o GNT3 e ο NA26,112 o que
certamente representou um grande avanço no estabelecimento do texto grego do NT.113
Os objetivos de ambas as edições, porém, permaneceram distintos: o NA continuou sendo
109 Compilado por Metzger, o volume tem como título A Textual Commentary on the Greek New Testament (veja
acima, 55 n. 66). Recentemente, Roger L. Omanson elaborou extensa revisão da obra de Metzger destinada, em
particular, aos tradutores e estudantes sem muita afinidade com a disciplina da crítica textual (A Textual Guide to the
Greek New Testament [Stuttgart: Sociedade Bíblica Alemã, 2006]). Uma versão em português da obra de Omanson
foi lançada em 2010 pela Sociedade Bíblica do Brasil (,Variantes Textuais do Novo Testamento: Análise e Avaliação do
Aparato Crítico de “O Novo Testamento Grego”, tradução e adaptação por Vilson Scholz).
110 Arthur Võõbus, também de Chicago, fez parte da comissão editorial durante os primeiros quatro anos de
trabalho apenas.
יי יLançada em 1988 pela Sociedade Bíblica do Brasil, a Bíblia na Linguagem de Hoje passou, já na década
seguinte, por uma profunda revisão, sendo publicada em 2000 com 0 título Nova Tradução na Linguagem de Hoje.
O NT da Nova Versão Internacional, de responsabilidade da Sociedade Bíblica Internacional, apareceu numa edição
preliminar em 1994; a edição definitiva e completa da Bíblia veio em 2001.
112 Aland e Aland informam que “a unificação se tornou completa quando a Sociedade Bíblica de Vurtembergue
abandonou os planos para uma edição independente, decidindo que 0 GNT e 0 NA poderíam não apenas oferecer
um texto comum, mas também ser de responsabilidade da mesma comissão editorial” (33).
ו52 0 TEXTO IMPRESSO
uma edição científica de pequeno porte, ao passo que o GNT continuou citando mais evi-
dências em apoio de um número mais seleto de variantes. O arranjo e o formato de ambas
as edições também continuaram distintos, mas os textos e os editores passaram a ser os
mesmos. A partir do GNT4, lançado em 1993, Barbara Aland, de Münster, e Johannes Ka-
ravidopoulos, de Salonica, foram integrados à comissão editorial, em substituição a Black
e Wikgren, que se aposentaram, o mesmo acontecendo com Nida, que foi substituído por
Jan de Waard como representante das Sociedades Bíblicas Unidas. As mudanças para a
quarta edição incluíram o acréscimo de 284 novos grupos de variantes no aparato crítico,
a eliminação de diversas leituras variantes de pouca importância exegética, alterações
na classificação do grau de certeza de diversas leituras adotadas no texto e mudanças na
estrutura do aparato de pontuação, que não mais indica as diferenças entre as principais
traduções modernas, mas apenas as pausas maiores e menores que podem afetar a inter-
pretação do texto.11314 O texto do GNT4, porém, permanece o mesmo da edição anterior,
o qual, por sua vez, é idêntico ao do NA27.115 Foi esse 0 texto que serviu de base para a
Almeida Século 21.116
113 Até 1983, embora os textos das duas edições fossem os mesmos, ainda havia várias diferenças quanto à
ortografia, pontuação e divisão dos parágrafos. Nesse ano, porém, com 0 lançamento da terceira edição corrigida
do GNT, tais diferenças foram total e definitivamente eliminadas.
114 As mudanças no aparato de pontuação, agora chamado de aparato de segmentação (veja NTG4, xxxv-xxxvii)
foram elaboradas por Roger L. Omanson, consultor para publicações acadêmicas das Sociedades Bíblicas Unidas.
5 י יA edição revisada do GNT4, impressa em 1994, apenas corrigiu pequenos erros de impressão. Foi essa a edi-
ção que, em 2008, foi lançada pela SBB com introdução e notas críticas em português (aqui referida como NTG4).
116 Organizada pela Imprensa Bíblica Brasileira/JUERP em parceria com as editoras Vida Nova, Hagnos e Atos,
a Almeida Século 21 consiste numa profunda revisão da Versão Revisada, de 1967. O NT foi lançado em 2005 e a
Bíblia completa em 2008.
117 O texto, editado por Richard J. Goodrich e Albert L. Lukaszewski (A Reader’s Greek New Testament [Grand
Rapids: Zondervan, 2003]), é essencialmente o do NA27, alterado em 231 lugares, nos quais se acredita que os
editores da NIV adotaram leituras alternativas.
118 Maurice A. Robinson e William G. Pierpont, eds., The New Testament in the Original Greek: Byzantine Text-
form (Southborough: Chilton, 2005).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו53
119 Em relação às diferenças, Holmes informa no prefácio (xii) que sua edição difere de Westcott e Hort 879
vezes; de Tregelles, 1.227 vezes; do texto da Niy 616; e de Robinson e Pierpont, 5.959 vezes.
120 As edições acima listadas são apenas as mais importantes na história da crítica textual, mas elas não repre-
sentam senão uma pequena fração de todas as que já apareceram desde 0 século dezesseis. Eduard Reuss enumerou
853 edições impressas do NT grego entre 1514 e 1869 (Bibliotheca Novi Testamenti graeci [Brunswick: Schwetschke,
1872]). Segundo Metzger e Ehrman, a marca das mil edições há muito já foi ultrapassada (194).
121 James H. Ropes, “The Acts of the Apostles,” em The Beginnings of Christianity, 5 vols., ed. F. J. Foakes Jack-
son e Kirsopp Lake (Londres: Macmillan, 1920-1933), 3:cclxxvi.
ו54 0 TEXTO IMPRESSO
Além do esforço contínuo das Sociedades Bíblicas Unidas e da Sociedade Bíblica Alemã
para preparar novas edições do GNT e do NA, dois grandes projetos crítico-textuais estão
em execução neste momento: 0 International Greek New Testament Project (IGNTP), lide-
rado por especialistas norte-americanos e britânicos, e a Editio Critica Maior, inicialmente
de responsabilidade do INTF, de Münster.
122 S. C. E. Legg, ed., Novum Testamentum Graece: Evangelium secundum Marcum (Oxford: Clarendon, 1935);
idem, Novum Testamentum Graece: Evangelium secundum Matthaeum (Oxford: Clarendon, 1940).
123 Para mais informação, veja Epp, Perspectives on New Testament Textual Criticism, 437-444.
124 Comitês Americano e Britânico do IGNTR ed., The New Testament in Greek: The Gospel according to St. Luke,
2 vols. (Oxford: Clarendon, 1984-1987) (J. K. Elliott consta como “editor executivo”).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו55
Editio Critica Maior. Os planos do INTF para uma edição crítica do NT grego que abran-
gesse o maior número possível de manuscritos foram anunciados em 1967.130 Para que isso
pudesse acontecer, porém, era necessário encontrar um método que permitisse a avalia-
ção dos milhares de manuscritos minúsculos, diante da possibilidade de haver entre eles
manuscritos importantes (ainda desconhecidos) para a história do texto e o fato de que
colações individuais nos moldes tradicionais representam uma tarefa praticamente impos-
sível. Foi pensando nisso que Kurt e Barbara Aland desenvolveram o método conhecido
como Teststellen, ou “passagens-teste.” O método consiste na seleção de várias passagens
com leituras bizantinas dentro de um livro ou seção do NT131 e, em seguida, a análise dos
126 W. J. Elliott e D. G. Parker, eds., The Papyri, vol. 1, The New Testament in Greek IV: The Gospel according to St.
John, 2 vols., NTTS 20 (Leiden: Brill, 1995); U. B. Schmid, ed., The Majuscules, vol. 2, The New Testament in Greek
IV: The Gospel according to St. John, 2 vols., NTTS 37 (Leiden: Brill, 2007).
127 O volume referente aos papiros não contém as transcrições de íp66e ip75, por serem mais extensos e de fácil
acesso em suas publicações originais. Quanto aos maiúsculos, apenas 32 manuscritos fragmentários são transcritos,
sendo um deles apenas parcialmente, embora todos sejam citados no aparato crítico. Importante detalhe sobre o vo-
lume referente aos maiúsculos é que ele veio acompanhado de uma versão eletrônica, que está disponível em http://
www.iohannes. com. Essa versão traz as transcrições completas de todos os 64 manuscritos. A propósito, esse se-
gundo volume de João marca também a transição definitiva para uma edição crítica eletrônica do texto, alterando
completamente os critérios de colação e transcrição de manuscritos em uso até então.
128 De novo, à exceção de 5p 66, íp75 e os maiúsculos mais extensos, que são a maioria; no segundo volume são
providas fotografias de apenas 19 maiúsculos, sendo que um deles apenas parcialmente.
129 Em 1998, Epp fez um balanço não muito positivo das realizações do IGNTP em seus (na época) quase
cinquenta anos de história (sem contar 0 período anterior, de 1926 a 1949) e, mesmo com as recentes publicações
sobre 0 Evangelho de João, suas palavras permanecem válidas. Ele declarou: “O IGNTP — nome que é usado desde
1951 — vai em breve celebrar seu quinquagésimo aniversário, e esse meio século tem sido um tempo de boas inten-
ções e boa vontade, mas também de bom trabalho dificultado por apoio financeiro incerto, oportunidades para coo-
peração internacional desperdiçadas e atrasos frequentes” (Perspectives on New Testament Textual Criticism, 437).
130 Veja Kurt Aland, “Novi Testamenti Graeci Editio Maior Critica. Der gegenwártige Stand der Arbeit an einer
neuen groften kritischen Ausgabe des Neuen Testaments,” NTS 16 (1969-1970): 163-170.
156 0 TEXTO IMPRESSO
manuscritos a partir dessas passagens somente, o que permitiría dizer, pelo menos em
tese, quais deles são bizantinos e quais preservam outro tipo de texto e, portanto, mere-
cem estudo mais aprofundado visando a uma possível inclusão no aparato da ECM.32 יA
estimativa dos Aland é que esse seria 0 caso de 10% a 20% dos manuscritos, 0 que seria
um montante bem mais razoável com 0 qual se trabalhar.131233
E foi assim que, em 1987, o INTF iniciou uma série de publicações com os resultados
de suas colações a partir do método Teststellen. Até o momento, os livros contemplados são
as Epístolas Católicas, as Epístolas Paulinas, o Livro de Atos, os Evangelhos Sinóticos e a
primeira parte do Evangelho de João.134 Para cada um desses livros, ou grupo de livros, os
volumes da série provêm as seguintes informações: (1) descrição de todos os manuscritos
gregos minúsculos conhecidos; (2) colação dos manuscritos mediante as passagens-teste;
e (3) tabelas para indicar quantas vezes cada manuscrito apoia um tipo de texto que não
seja o Bizantino.
Na esteira dessas publicações, veio o primeiro volume da ECM, referente às Epístolas
Católicas (Novum Testamentum Graecum: Editio Critica Maior IV). Ela tem sido publicada
em fascículos, sendo que cada grupo de dois fascículos, identificados como fascículos 1 e 2,
compreende uma parte (installment), a qual, por sua vez, corresponde a um livro ou grupo
de livros do NT.135 O primeiro de cada um dos dois fascículos contém basicamente o texto
grego e o aparato crítico. O texto, que ocupa apenas uma ou, quando muito, duas linhas
da página, foi estabelecido com base em todas as testemunhas citadas, e o aparato crítico
está dividido em duas partes: a primeira, logo abaixo do texto, consiste num breve sumário
das leituras variantes e a segunda, em duas colunas, no registro de todas as variantes e seu
apoio documental.136 O segundo fascículo, uma espécie de apêndice, contém uma descri
131 Foram selecionadas 98 passagens-teste nas Epístolas Católicas, a primeira seção do NT a ser estudada, e, a
seguir, 251 nas Epístolas Paulinas, 104 em Atos dos Apóstolos, 314 nos Evangelhos Sinóticos (sendo 196 em Marcos,
64 em Mateus e 54 em Lucas) e 153 no Evangelho de João. Nada ainda foi publicado quanto ao Apocalipse.
132 De acordo com os parâmetros inicialmente estabelecidos, seriam considerados bizantinos todos os manus-
critos que concordassem com 0 texto majoritário em pelo menos 60% ou 70% das passagens-teste; tais manuscritos
poderíam seguramente ser descartados e referidos no aparato crítico apenas sob a rubrica Biz (que, no GNT, sig-
nifica a maioria dos manuscritos bizantinos). Por outro lado, os manuscritos que mereceríam ser individualmente
citados no aparato seriam aqueles que concordassem em, no máximo, 60% das passagens-teste, ou talvez 50%
(Aland e Aland, 323-325).
134 Kurt Aland, ed., Text und Textwert der griechischen Handschriften des Neuen Testaments I: Die Katholischen Brie-
fe, 3 vols., ANTF 9-11 (Berlim; De Gruyter, 1987); idem, Text und Textwert der griechischen Handschriften des Neuen
Testaments II: Die Paulinischen Briefe, 4 vols., ANTF 16-19 (Berlim: De Gruyter, 1991); idem, Text und Textwert der
griechischen Handschriften des Neuen Testaments III: Die Apostelgeschichte, 2 vols., ANTF 20-21 (Berlim: De Gruyter,
1993); Kurt Aland, Barbara Aland e Klaus Wachtel, eds., Textwert der griechischen Handschriften des Neuen Testaments
IV: Die Synoptischen Evangelien, 3 vols., ANTF 26-31 (Berlim: De Gruyter, 1998-1999); idem, Textwert der griechischen
Handschriften des Neuen Testaments V: Das Johannesevangelium, 2 vols., ANTF 35- (Berlim: De Gruyter, 2005- ).
135 Barbara Aland, Kurt Aland, Gerd Mink e Klaus Wachtel, eds., Novum Testamentum Graecum. Editio Critica
Maior IV: Catholic Letters, 4 pts., 8 fascs. (Stuttgart: Sociedade Bíblica Alemã, 1997-2005). As partes (installments)
são as seguintes: pt. 1, Tiago (1997); pt. 2,1 e 2 Pedro (2000); pt. 3,1 João (2003); pt. 4,2 e 3 João e Judas (2005).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 157
136 Alguns detalhes quanto ao aparato crítico: todos os manuscritos gregos são citados apenas pelo número,
0 que significa que o uso das letras para os maiusculos mais conhecidos é abandonado; a referência aos papiros,
talvez por conveniência tipográfica, é simplificada (PI, P2, etc.), 0 mesmo acontecendo com os lecionários (Ll,
L2, etc.); e as versões são identificadas apenas por sua primeira letra maiúscula (L=latina; K=copta; S=siríaca;
etc). Para uma completa introdução e avaliação da edição, incluindo-se explicações detalhadas da configuração da
página e os métodos utilizados, veja Peter M. Head, “Edito Critica Maior: An Introduction and Assessment,” TynBul
61 (2010): 132-152.
137 O planejamento editorial envolve as seguintes atribuições e datas: pelo INTF, Atos (2013), Marcos (2018),
Mateus (2024) e Lucas (2030); pelo IGNTÇ João (2013), as Epístolas Paulinas (2026) e 0 Apocalipse (2030).
138 Ao contrário da ideia original (veja acima, 156 n. 132), todos os manuscritos que diferem do texto bizantino
em mais que 10% das passagens-teste acabaram sendo incluídos no aparato crítico.
139 O texto de Tiago, e.g., difere daquele encontrado no NA27/GATT4 em apenas três lugares, e o de 1 Pedro,
em sete. No total, são 25 diferenças, cuja relação pode ser encontrada em Head, “Editio Critica Maior," 149-152.
140 J. K. Elliott, New Testament Textual Criticism: The Application of Thoroughgoing Principles. Essays on Manus-
cripts and Textual Variation, NovTSup 137 (Brill: Leiden, 2010), 486.
CAPÍTULO 5
Colação de M anuscritos
1 A seção abaixo consiste apenas num guia introdutório ao uso do aparato crítico do NA27 e 0 NTG4. Para dis-
cussões técnicas quanto à natureza de um aparato crítico ou que variantes devam ser mencionadas, veja, e.g., Epp,
Perspectives on New Testament Textual Criticism, 101123 ;־Gordon D. Fee, “On the Types, Classification, and Presen-
tation of Textual Variation,” em Studies in the Theory and Method of New Testament Textual Criticism, ed. Eldon J. Epp
e Gordon D. Fee, StD 45 (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 62-79; Tjitze Baarda, “What Kind of Critical Apparatus
for the New Testament Do We Need? The Case of Luke 23:48,” em New Testament Textual Criticism, Exegesis, and
Church History: A Discussion of Methods, ed. Barbara Aland e Joel Delobel, CBET 7 (Kampen: Pharos, 1994), 37-97.
2 Em estudos clássicos ou bíblicos, editio princeps (pl, editiones príncipes) se refere à primeira edição impressa
(transcrita ou fotografada) de uma obra que até então existia apenas em forma manuscrita. Ela geralmente inclui a
história da descoberta, descrição paleográfica do manuscrito, data estimada, reprodução do texto e, por fim, análise
das características textuais. Sobre como descrever um manuscrito, veja Parker, An Introduction to the New Testament
Manuscripts and Their Texts, 90-94.
3 Frederic G. Kenyon, The Chester Beatty Biblical Papyri: Descriptions and Texts of Twelve Manuscripts on Papyrus
of the Greek Bible, 8 vols. (Londres: Walker, 1933-1941).
160 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
Em tese, 0 texto de um manuscrito pode ser colacionado contra qualquer outro texto,
especialmente com os modernos recursos da informática. Na prática, porém, o que se
costuma fazer é utilizar alguma edição do Texto Recebido; a mais utilizada é a edição de
Oxford de 1873.5Visto que o Texto Recebido apenas raras vezes difere do texto bizantino,
o resultado da colação revelará as leituras não bizantinas do manuscrito e a soma das
diferenças vai indicar se o manuscrito é essencialmente bizantino ou não bizantino. A par-
tir das leituras não bizantinas será também possível determinar com quais testemunhas
0 manuscrito concorda com mais frequência e, por fim, a que tipo textual ele pertence.
Também pode ser útil analisar as variantes de maior relevância que estão ausentes do
manuscrito, o que permite estabelecer de forma ainda mais precisa o seu perfil textual.
Quanto ao método propriamente dito de escriturar uma colação, este sempre deveria
incluir o nome e a edição do texto contra o qual o manuscrito foi colacionado, seguidos
da passagem bíblica em questão. Capítulo e versículo devem ser indicados a cada novo re-
gistro. A primeira leitura sempre deve ser a do texto impresso, vindo a seguir um colchete
invertido ( ] ) e então o texto encontrado no manuscrito, seja ele qual for.6 Nenhuma pala-
vra desnecessária deve ser incluída na colação. Por exemplo, se no texto impresso aparece
|v οΪΜψ e no manuscrito, έν τφ οικω, a colação deveria registrar simplesmente εν] ad. τφ,
ou εν] εν τφ. No caso de omissão, o processo é o mesmo; a única diferença é o emprego
da abreviação om. (“omite”) em vez de ad. (“adiciona”).7 No caso de uma palavra ou ex
4 Baseado esp. em Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 52-53; Parker, An Introduction to the New Testament
Manuscripts and Their Texts, 951 0 0 ;־Greenlee, Introduction to New Testament Textual Criticism, 132-139.
5 Ao explicar as razões pelas quais o IGNTP optou por colacionar os manuscritos contra 0 Texto Recebido e não
contra o texto de alguma edição crítica moderna, David C. Parker declara que 0 texto-base de uma colação tem que
ter pelo menos quatro atributos: (1) todos devem saber precisamente qual texto está sendo usado, até à última letra
e sinal de pontuação; (2) deve ser universalmente disponível; (3) deve continuar a ser universalmente disponível;
e (4) deve ser completo. Além disso, diz Parker, esse texto “não deveria corresponder tão de perto às preferências
de uma geração em particular de modo a se tornar completamente obsoleto na próxima.” Então, ele conclui: “Só
o Texto Recebido satisfaz a todos esses critérios,” conquanto seja um texto ruim (“The International Greek New
Testament Project: The Gospel of John,” NTS 36 [1990]: 159).
6 Independentemente de quais leituras sejam de fato importantes para a crítica textual, “quando um manuscrito
é comparado com outro para estabelecer suas afinidades,” declara Colwell, “é importante conhecer o número total
de variações existentes no texto” (Studies in Methodology in Textual Criticism of the New Testament, 97). As únicas
exceções talvez sejam 0 ni eufônico e o advérbio οΰτω/οΰιως, a não ser que a colação envolva propósitos bem
específicos.
7 Alguma variação na forma de escriturar colações é perfeitamente admissível. Metzger, e.g., sugere 0 uso dos
sinais matemáticos + e - em vez das abreviações “ad.” e “om.” (Manuscripts of the Greek Bible, 52).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 161
pressão que ocorra mais de uma vez no mesmo versículo, um pequeno numeral na forma
de expoente seguindo a palavra ou expressão indica qual delas é a que está sendo citada;
por exemplo, και2] om. Se duas ou mais palavras diferem do texto-base, a colação deve
registrá-las como sendo uma única variante, desde que elas estejam gramaticalmente ou
logicamente relacionadas (e.g., εν αυτω] εις αυτόν). Quando a variação envolver a sequên-
cia de duas ou mais palavras, elas devem ser indicadas por completo, como no seguinte
exemplo: ειπεν ο Ιησούς] ο Ιησούς ειπεν.
Abreviações e símbolos no manuscrito devem ser lidos como se o escriba os tivesse
escrito por extenso e, portanto, não deveríam ser incluídos na colação a menos que haja
alguma diferença ortográfica com relação ao texto-base. Uma exceção é o nomen sacrum
λλΧ, que pode representar qualquer uma das três formas gregas do nome “Davi” comu-
mente encontradas nos manuscritos (Δαυίδ/Δαβίδ/Δαυείδ). Nesse caso, registra-se apenas
a contração a fim de mostrar que seu testemunho não poderá ser aceito em favor de ne-
nhuma forma em particular. Também pode ser útil indicar se os numerais são escritos por
extenso ou mediante as letras do alfabeto.8
Se no manuscrito colacionado houver palavras ausentes ou ilegíveis, as falhas deverão
ser indicadas mediante o uso de colchetes e pontos correspondentes às omissões, como
ερχ[. .]ai. Se porventura não houver nenhuma dúvida quanto à identificação das letras au-
sentes, elas poderão ser incluídas nos colchetes (ερχεται). Eventualmente poderá ocorrer
de as letras estarem apenas parcialmente ilegíveis, 0 que dispensaria o uso dos colchetes,
mas um ponto deveria ser colocado embaixo de cada letra duvidosa (ερχεται). Quando 0
estado de preservação do manuscrito torna impossível uma completa verificação da leitu-
ra, a colação deveria registrar vid (do latim videtur, “parece”) para indicar possível apoio.
No caso de o manuscrito apresentar alguma correção entre as linhas ou à margem, ambas
as leituras devem ser incluídas, como a seguir:
υποτασσεσθαι] υποτασσεσθαι, corrigido sobre a linha para υποτασσεσθε
κύριος] omitido pelo copista original9 e adicionado à margem, ou apenas
κύριος] om., ad. à margem.
E possível trabalhar com vários manuscritos na mesma colação; na verdade, vários
editores assim 0 fazem. Os registros devem incluir apenas os manuscritos que trazem as
leituras que diferem do texto-base. Por exemplo, uma eventual colação dos minúsculos
1175, 1739, 1912 e 2464 contra o Texto Recebido em Cl 2.7 seria assim:
τη πιστει] εν πιστει 1912 2464, εν τη πιστει 1175 1739
εν αυτή] om. 1175 1739 1912 2464.
Nas colações de lecionários, os registros devem indicar o dia da semana ou do ca-
lendário anual para o qual a leitura se destina. A fórmula introdutória (incipit) costuma
8 Para breves exemplos de colações, veja Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 116; Greenlee, Introduction to
New Testament Textual Criticism, 134-135; Paroschi, Crítica Textual do Novo Testamento, 144146־.
9 Em inglês, é comum o uso da expressão “first hand” (“primeira mão”) para se referir ao escriba original de
um manuscrito.
162 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
ser omitida; em seu lugar, usa-se apenas a abreviação “Inc” e o algarismo romano
correspondente,10 seguido então da leitura variante. Por exemplo, o Texto Recebido de
Mt 11.2 lê ό δέ Ιωάννης άκοΰσας έν τφ δεσμωτηρίφ τα έργα τοΰ Χρίστου, enquanto
alguns lecionários começam a lição para o segundo dia da quarta semana da Páscoa
da seguinte forma: τφ καιρφ έκείνφ άκοΰσας ό ’Ιωάννης έν τφ δεσμωτηρίφ τα έργα
τοΰ Χρίστου. A colação do início dessa lição, portanto, deveria ser representada como
segue: β' της δ' έβδ. Mt 11.2 Inc I ακουσας ο Ιωάννης εν (seguida da identificação do
lecionário).11
Com o advento da informática, importantes recursos tecnológicos relacionados com
o exercício da crítica textual têm sido desenvolvidos. Alguns deles têm que ver especi-
ficamente com a colação de manuscritos, bem como com a apresentação e a análise dos
dados. O primeiro bem-sucedido esforço no sentido de se utilizar tecnologia computa-
dorizada na colação de manuscritos foi 0 Collate, projetado por Peter Robinson ainda
na década de 1980 para 0 estudo da tradição manuscrita dos Contos de Cantuária, do
escritor inglês Geoffrey Chaucer, do século quinze. Em sua versão atual, 0 programa
permite colacionar até duzentos manuscritos e mostrar os resultados em diferentes for-
matos. O processo de colação é interativo e confere ao pesquisador a opção de interferir
no resultado a qualquer momento. Ele dispõe do recurso de regularizar palavras e fra-
ses, um texto diferente pode ser selecionado a qualquer momento e o pesquisador pode
escolher como lidar com as adições, omissões ou mesmo correções no texto. Após ser
adaptado para os manuscritos do NT, no final da década de noventa, o programa passou
a ser amplamente utilizado nos trabalhos editoriais tanto do IGNTP quanto da ECM, de
Münster.12
Classificação de Manuscritos
0 וPara as fórmulas introdutórias mais comumente usadas nos lecionários, veja acima, 34-35.
11 Sobre a colação de lecionários, veja Ernest C. Colwell e Donald W Riddle, eds., Prolegomena Co the Study of
the Lectionary Text of the Gospels, SLTGNT 1 (Chicago: University of Chicago Press, 1933), 84-156.
12 Veja esp. David C. Parker, “The Text of the New Testament and Computers: The International Greek New
Testament Project,” LLC 15 (2000): 27-41; Klaus Wachtel, “Editing the Greek New Testament on the Threshold of
the Twenty-first Century,” LLC 15 (2000): 43-50; Parker, An Introduction to the New Testament Manuscripts and Their
Texts, 100-106.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו63
13 Para outros importantes desenvolvimentos, veja David C. Parker, “The Development of Textual Criticism
since B. H. Streeter," NTS 24 (1977): 149-162.
15 Segundo Colwell, uma família textual é “0 menor grupo identificável.” Ela pode ser definida como “um grupo
de fontes cuja genealogia pode ser claramente estabelecida de modo que seu texto pode ser reconstruído unicamen-
te a partir da evidência externa dos documentos” (ibid., 11).
164 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
com um tipo particular de texto não pode ser determinado unicamente a partir das afini-
dades do manuscrito com outros. No exemplo acima, o manuscrito é apoiado por testemu-
nhas alexandrinas com a mesma frequência com que 0 é por testemunhas ocidentais. Isso
pode ocorrer porque, como já dito, nenhum manuscrito preserva de forma integral e pura
o texto do grupo que representa. O tipo textual de um manuscrito, portanto, só poderá ser
determinado com segurança a partir da concordância do manuscrito com o consenso das
demais testemunhas do mesmo grupo textual.
Em segundo lugar, para que se consiga uma visão mais exata das afinidades textuais
de um manuscrito, é importante estudar também as variantes presentes no manuscrito
que não pertencem ao seu tipo de texto e então determinar a procedência delas. Isso pro-
porciona um contraste que confirma a identificação textual do manuscrito.16 No caso do
hipotético manuscrito acima, que pertence ao texto ocidental, as variantes não ocidentais
nele encontradas são essencialmente do tipo alexandrino. A análise quantitativa pode ser
bastante útil porque se for constatado, por exemplo, que certo manuscrito é alexandrino
ao mesmo tempo em que contém um número considerável de leituras não alexandrinas,
então não se poderá dizer que ele é um bom representante do texto alexandrino, senão
que o representa apenas parcialmente.17
Além da análise quantitativa, cujos benefícios já puderam ser constatados em diversas
áreas do estudo crítico-textual,18 vários outros métodos de classificação de manuscritos
têm sido desenvolvidos. Cada um deles tem um propósito diferente, mas todos compar-
tilham a mesma preocupação, que é a utilização da evidência da grande massa de ma-
nuscritos minúsculos. Embora se saiba que 0 texto que esses manuscritos representam
seja predominantemente bizantino, também se sabe que existem importantes exceções. O
problema é como identificar, em meio aos milhares de manuscritos, aqueles que de algu-
ma forma podem contribuir para os trabalhos de restauração textual do NT. Uma colação
completa desses manuscritos é virtualmente impossível19 e foi essa impossibilidade que
16 Os valores normalmente utilizados para se determinar 0 tipo textual de um manuscrito são os seguintes: con-
cordância de no mínimo 70% com os demais manuscritos do mesmo grupo textual e separação dos demais grupos
por uma diferença de aproximadamente 10% (ibid., 59).
17 Greenlee, Introduction to New Testament Textual Criticism, 137-138. Greenlee acrescenta ainda que 0 estudo
dessas variantes contrárias pode ser de grande valia no caso dos pais da igreja. Visto que a grande maioria das cita-
ções patrísticas do NT são fragmentárias, não se pode apenas assumir (1) que o escritor foi consistente em seguir 0
tipo de texto representado por suas variantes, nem (2) que seu texto é bizantino cada vez que ele deixa de apoiar
outro tipo de texto. Em muitas passagens, nenhum tipo de texto estará disponível. Portanto, Greenlee conclui, ao
passo que as citações de um pai da igreja revelam 0 tipo de texto por ele usado, a análise das leituras contrárias é
necessária para determinar se ele sempre seguiu aquele tipo de texto ou se há consideráveis elementos desse tipo
de texto que ele não seguiu (138-139).
19 A ansiedade dos estudiosos diante da enorme quantidade de manuscritos minúsculos é muito bem expressa
no seguinte comentário de Colwell: “Nós precisamos de uma bússola, um batedor, que nos guie pela floresta até 0
grupo de árvores com 0 qual nossos manuscritos estão intimamente relacionados. Sem esse guia,” ele acrescentou,
“nossos esforços com frequência vão resultar em erro ou nada mais além de cansaço e frustração” (Colwell, Studies
in Methodology in Textual Criticism of the New Testament, 26).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו65
20 A expressão é difícil de ser traduzida para 0 português. Uma tradução literal, mas estranha, seria “método
do perfil, de Claremont.” As razões para a criação do método são dadas por Epp, Perspectives on New Testament
Textual Criticism, 41-56.
21 Para uma descrição detalhada do método, veja Frederick Wisse, The Profile Method for Classifying and Evalu-
ating Manuscript Evidence, StD 44 (Grand Rapids: Eerdmans, 1982).
23 Ao passo que no CPM os manuscritos são colacionados contra o Texto Recebido, no Teststellen eles 0 são
contra 0 texto do NA, que Kurt Aland considerava como já representando substancialmente o texto original do NT.
24 Veja a lista de manuscritos já distribuídos em suas várias categorias em Aland e Aland, 83-160.
166 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
por outro lado, declara que o CPM não tem a mesma objetividade e rigor científico que
o Teststellen.2
526 Como já mencionado, porém, os dois métodos têm propósitos distintos e,
por isso, talvez fosse melhor vê-los como complementares e não como concorrentes: ao
passo que o CPM visa a indicar os subgrupos dentro da tradição bizantina, 0 Teststellen
busca distinguir as testemunhas minúsculas que eventualmente preservam importantes
formas textuais. Cada um dos métodos, portanto, deve ser analisado à luz de seus próprios
méritos. De qualquer forma, nenhum deles se destina a prover uma classificação precisa
e definitiva dos manuscritos com base em todas as suas afinidades textuais. Ou seja, cola-
ções completas ainda são necessárias, em que pese as opiniões contrárias27 e os enormes
desafios que isso representa.28
O Aparato Crítico
25 W. Larry Richards, “Test Passages or Profiles: A Comparison of Two Text-critical Methods,” JBL 115 (1996):
251-269. Com base em colações completas de 112 manuscritos de 1 João, Richards argumenta que 0 índice de
precisão do Teststellen na classificação de manuscritos é da ordem de 83% (idem, “An Analysis of Aland’s Teststellen
in 1 John,” NTS 44 [1998]: 26-44).
26 David C. Parker, “A Comparison between the Text und Textwert and the Claremont Profile Method Analyses
of Manuscripts in the Gospel of Luke,” NTS 49 (2003): 108-138.
27 Veja Klaus Wachtel, “Colwell Revisited: Grouping New Testament Manuscripts,” em The New Testament Text
in Early Christianity: Proceedings of the Lille Colloquium, July 2000,” ed. C.-B. Amphoux e J. K. Elliott, HTB 6 (Lau-
sanne: Zèbre, 2003), 31-43.
28 Nisso, tanto Richards (“Test Passages or Profiles: A Comparison of Two Text-critical Methods,” 268) quanto
Parker estão de pleno acordo. Parker acrescenta que “a única maneira” de se avaliar com segurança a evidência de
um manuscrito é por meio de “um exame completo do manuscrito, sua história conhecida, comparações codicoló-
gicas e paleográficas e completa análise textual” (“A Comparison between the Text und Textwert and the Claremont
Profile Method Analyses of Manuscripts in the Gospel of Luke,” 138). Veja também Thomas C. Geer, Jr., “Analyzing
and Categorizing New Testament Greek Manuscripts: Colwell Revisited,” em The Text of the New Testament in
Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46 (Grand
Rapids: Eerdmans, 1995), 253-267. Num artigo não muito animador, W. J. Elliott chama a atenção para a impre-
cisão com que alguns manuscritos minúsculos são citados em aparatos tais como os de Tischendorf, von Soden e
Merk, o que, obviamente, conspira contra os níveis de exatidão exigidos pela crítica textual. Ele conclui: “Tudo terá
que ser colacionado de novo” (“The Need for an Accurate and Comprehensive Collation of All Known Greek New
Testament Manuscripts with Their Individual Variants Noted in pleno,” em Studies in New Testament Language and
Text: Essays in Honour of George D. Kilpatrick on the Occasion of His Sixty-fifth Birthday, ed. J. K. Elliott, NovTSup
44 [Leiden: Brill, 1976], 143).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 167
Nestle-Aland
O sistema de sinais críticos empregados no NA27, muitos dos quais em uso já por várias
décadas, é bem mais complexo que 0 do NTG4, e isso em virtude da concentração de um
volume bem maior de informação num espaço consideravelmente menor. O arranjo tipo-
gráfico, porém, é muito bem feito, o que facilita a identificação dos elementos correspon-
dentes no texto e no aparato. Os primeiros sinais que precisam ser conhecidos são aqueles
que indicam o local e tipo exatos da variante:
0 A palavra seguinte é omitida pelas testemunhas citadas.
םx As palavras, cláusulas ou frases contidas entre esses sinais são omitidas pelas
testemunhas citadas.
Γ A palavra seguinte é substituída por outra ou mais diferentes palavras pelas
testemunhas citadas.
r יAs palavras no texto contidas entre esses sinais são substituídas por outras pe-
las testemunhas citadas. Quando as mesmas palavras aparecem numa ordem
diferente em algumas testemunhas, a ordem é indicada mediante numerais
itálicos correspondentes a sua posição no texto impresso (e.g.,r 5 6 1-4).
T Nesse ponto, há uma inserção, na maioria das vezes de uma palavra apenas,
em parte da tradição.
J 1 As palavras contidas entre esses sinais são preservadas numa ordem diferente
em parte da tradição. Quando necessário, a sequência das palavras é indica-
da por meio de numerais itálicos correspondentes à posição delas no texto
impresso (e.g. , s 2 3 1 4).29
* A palavra, cláusula ou frase precedida por esse sinal é deslocada em parte da
tradição para o lugar indicado no aparato (e.g., Lc 6.5).
Múltipla ocorrência de um sinal crítico no mesmo versículo é raro. Quando isso acontece,
ou seja, quando há mais de uma omissão, substituição, inserção ou deslocamento de uma
ou mais palavras dentro da mesma unidade de variação do aparato, pontos ou numerais
29 Ocasionalmente, os sinais 1 ... 1 / ' ... ' / ' ... םassinalam passagens mais longas, que compreendem vá-
rios versículos. Quando isso ocorre, os versículos são sempre indicados de modo a evitar qualquer confusão (cf.,
Lc 3.23-31,38; 4.5-12). Mesmo assim, quando o primeiro sinal ocorre, sempre se deve buscar pelo segundo, que
fecha a referência.
168 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
sobrescritos são usados para distinguir as ocorrências umas das outras (e.g., 01 02/ °2 ם/ יF יQ
/ ί η α / τ - η τ 2/ π ν ) _ Α razão pela qual a primeira ocorrência de alguns dos sinais é indicada
com um ponto (7 7 T) e de outros com um número (° י/ ים/ ^ ) é puramente técnica: com 7
םo ponto poderia facilmente passar despercebido, além do fato de que s foi reservada para
outra finalidade.
Apesar da aparente complexidade, principalmente em relação ao NTG4, esses sinais,
que nem são tantos assim, foram idealizados de modo a permitir com que a forma deles já
sugira sua respectiva função: 0 / םpara omissões,r / זpara substituições, T para inserções
e x para transposições ou deslocamentos, e também sua presença no texto é muito fácil
de ser notada, fazendo com que 0 leitor seja imediatamente informado tanto da presença
quanto da natureza de qualquer variação. Em Mt 21.33-35, por exemplo, não há nenhum
sinal crítico, o que significa que esses versículos foram transmitidos sem qualquer variação
mais significativa. Nos versículos imediatamente anteriores (vs. 28-32), porém, os sinais já
são mais ou menos numerosos, ao passo que nos seguintes (vs. 36-44), são relativamente
poucos. Para mostrar exatamente como os sinais acima são empregados, tomemos como
exemplo Mt 21.28-32, que se referem à parábola dos dois filhos.30
O sinal 0 aparece na primeira linha do parágrafo (v. 28) e mais uma vez na quarta linha
(v. 29):
v. 28 0 καί προσελθών τψ πρώτφ εΐπεν
ν. 29 ύστερον ° δε μεταμεληθεις άπηλθεν
No ν. 28, καί é omitido em parte da tradição e uma olhada no aparato crítico mostra
que a omissão ocorre nas seguintes testemunhas: os maiúsculos ( * אo asterisco indica que,
na referida passagem, o Códice Sinaítico foi corrigido e o texto original é que está sendo
citado), L e Z; os antigo-latinos e e ff; as duas versões antigo-siríacas (com diferenças
textuais insignificantes, por isso 0 uso dos parênteses); e a tradição copta. Nesses manus-
critos, 0 texto é προσελθών τφ πρώτο) εΐπεν. No ν. 29, a omissão se refere à conjunção δε
e é testemunhada pelos maiúsculos ( *אnovamente 0 texto original do Códice Sinaítico) e
B (com pequenas diferenças textuais); uns poucos manuscritos, geralmente minúsculos (0
que é indicado pela abreviação pc, do latimpauci); a versão antigo-latina; e alguns manus-
critos saídicos. Nesses documentos, a leitura é ύστερον μεταμεληθεις άπηλθεν.
O sinalΓé encontrado na quinta e penúltima linhas do parágrafo (vs. 30 e 32):
v. 30 τφ Γέτερο) εΐπεν ώσαύτως
ν. 32 ύμεΐς δέ ίδόντες Γούδέ μετεμελήθητε
Seu uso indica que a palavra seguinte foi substituída por outra em alguns manuscri-
tos e o aparato crítico mostra que em lugar de έτέρω, no v. 30, aparece o termo δευτέρω
nos maiúsculos 2( אa segunda correção do Sinaítico), B, C2 (também a segunda correção
do Efraimita), L e Z; nos minúsculos f \ 33, 700, 892, 1424 e diversos outros (o que é
indicado pela abreviação pm, do latim permulti); nas tradições coptas médio-egípcia e
31 Os pais da igreja são pouco citados no aparato do NA27 e, quando o são, os nomes são abreviados. A lista
das abreviações pode ser encontrada às páginas 74*76*־.
32 A abreviação exponencial junto ao nome de Eusébio (Eussir) significa que 0 texto está ausente apenas dos
manuscritos siríacos do escritor.
170 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
por algum importante papiro, o que não é o caso. Os colchetes acima mencionados apenas
buscam refletir a relativa ambiguidade da evidência manuscrita. Ou seja, quando utiliza-
dos no texto, eles indicam a presença de alguma dúvida quanto à autenticidade da leitura,
mas não o bastante para descartá-la por completo.
Os sinais' \ que delimitam duas ou mais palavras substituídas por outras em parte dos
manuscritos, aparecem no v. 28, na terceira linha, bem como no v. 31, na sétima linha do
parágrafo:
v. 28 f έν τψ άμπελώνι1
v. 3 1 r ό πρώτος י
No aparato, o sinalf é repetido (o segundo sinal,י, é totalmente desnecessário), seguido
então da leitura divergente, que no v. 28 é εις τον αμπελώνα, e suas respectivas testemu-
nhas: os manuscritos D e 1424. Quanto ao v. 31, o aparato registra o seguinte: Η ό ύστερος
(έσχατος Θ, / 700 3י, pc) Β Θ / 700 3 יal (lat) samss bo; Hiermss. Duas, portanto, são as leituras
mencionadas: ό ύστερος, que aparece em B e vários outros manuscritos gregos, bem como
em alguns manuscritos saídicos, a tradição boaírica e vários manuscritos de Jerônimo,33 e
ό έσχατος, que aparece em Θ, / 13, 700 e mais uns poucos manuscritos. A segunda leitura
é mencionada entre parênteses porque representa apenas uma subvariante (sinônimo) de
ό ύστερος e é por isso que as testemunhas Θ, f 3 e 700 são repetidas em apoio à variante
principal. O uso de al (“outros”) junto à primeira leitura, em contraste com 0 pc (“poucos”)
da segunda, explica essa formulação, ao indicar que há bem mais manuscritos minúsculos
em apoio ao texto de B e seus associados que ao de Θ.
Os sinais que assinalam transposições no texto, aparecem no mesmo v. 28 e também
no v. 32, respectivamente na primeira e na décima linha do parágrafo:
V. 28 3 τέκνα δύο 1
V. 32 3 ’Ιωάννης προς ύμ&ς 1
No aparato do v. 28, também apenas o primeiro sinal é repetido, seguido das teste-
munhas: 3 B 1424 pc lat, nos quais a leitura é δύο τέκνα. O procedimento é semelhante
no caso do v. 32, em relação ao qual o aparato também registra somente as testemunhas,
sem mencionar como as palavras são ali transpostas, o que é totalmente desnecessário já
que nesse caso a transposição não podería ser outra senão προς ύμάς’Ιωάννης. Quando
a transposição envolve mais de uma ordem possível, a sequência das palavras é indicada
por números, como no v. 39 do mesmo capítulo, onde 0 texto registra 3 αύτόν έξέβαλον
έξω τού άμπελώνος και άπέκτειναν \ Como são sete palavras, o aparato trabalha apenas
com os números correspondentes em itálico, da seguinte forma: •3 9 3 1 7 6 2-5 D it; Lcf |
7 1 6 2-5 Θ; Ir3™. Isso significa que o Códice Beza, a versão antigo-latina e 0 pai da igreja
Lúcifer trazem αύτόν άπέκτειναν καί έξέβαλον έξω τού άμπελώνος, enquanto ο Códice
Korideti e manuscritos armênios de Irineu registram άπέκτειναν αύτόν καί έξέβαλον εξοτ
τού άμπελώνος.
33 A abreviação Hier corresponde à forma latina do nome Jerônimo (Hieronymus). O testemunho dos pais da
igreja vem sempre separado por um ponto e vírgula.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 171
a história do texto. Nesse caso, eles são discriminados. Testemunhas minúsculas menos
importantes sempre são citadas em conjunto e de acordo com sua quantidade mediante
as seguintes abreviações: pc (do latim pauci), para “poucos;” al (aíii), para “outros;” pm
(permulti) para “muitos;” e rell {reliqui), para “0 resto.” O ponto de referência para tais
citações sempre é o Texto Majoritário. Assim, pc e al se referem respectivamente a uns
“poucos” ou a vários “outros” manuscritos, além daqueles citados individualmente, que
apoiam leituras diferentes das que são atestadas pelo Texto Majoritário; pm, a um grande
número de manuscritos, quando o Texto Majoritário está dividido; e rell, o restante da tra-
dição manuscrita, incluindo-se ΖΠ, que apoia txt. Em Lc 5.39, por exemplo, sp475vid, א2 זB,
579, 700, 892 e 1241 atestam a omissão de καί, ao passo que todos os demais manuscritos
atestam sua permanência no texto (txt rell).
Esses são os mais importantes sinais, abreviações e critérios empregados no NA27.
Mas, há vários outros que ocasionalmente podem ser usados para modificar ou expandir o
sistema de referência. Eles são secundários por natureza e, por isso, devem ser aprendidos
somente depois de os sinais acima se tornarem bem conhecidos. No caso dos maiúsculos,
por exemplo, e raramente em relação a outros manuscritos, alguns sinais são usados para
indicar o escriba de um manuscrito: * para 0 escriba original (em inglês, fist hand, ou “pri-
meira mão”), e os numerais elevados V 2/ 3respectivamente para 0 primeiro, segundo e
terceiro corretores (3יא, א2, ) א, desde que tais distinções sejam possíveis. Caso contrário,
usa-se apenas c para indicar que a alteração é resultado de uma correção (0)א.
Também relativamente comum é um manuscrito apresentar alguma leitura marginal,
ou seja, uma leitura adicionada ao lado da coluna de texto. Se entendida como leitura
alternativa, ela recebe a designação v.l, de varia lectio (“leitura variante”); se a intenção
for duvidosa, a leitura é simplesmente descrita mediante um mg (in margine). Correções
ou anotações separadas por séculos são facilmente reconhecidas. O mesmo, porém, não
acontece com aquelas mais próximas do original (do manuscrito) e algumas podem até ser
contemporâneas à produção do manuscrito.34 Eventualmente, um manuscrito podia perder
folhas ou mesmo cadernos inteiros, os quais seriam mais tarde substituídos. Quando for
esse 0 caso e a substituição der origem a uma leitura variante, 0 manuscrito será assinalado
por u m s (supplementum), indicando assim que a variante em apreço é posterior e não deve,
de forma alguma, ser associada à autoridade original do manuscrito propriamente dito.35
Palavras independentes são frequentemente abreviadas no aparato para economizar
espaço, mas uma rápida olhada no texto acima já permite identificar a palavra em questão.
Em Mt 1.10, por exemplo, 0 aparato registra Μ-σσην e Μ-σση, indicando que os manuscri-
tos citados trazem respectivamente as formas Μανασσήν e Mavaoofj. Já em Mt 2.23, no
aparato se lê apenas -ρεθ, obviamente significando que a forma Ναζαρέτ no texto é escrita
34 Um manuscrito preparado em um scriptorium, e.g., costumava ser examinado logo em seguida para a veri-
ficação de sua exatidão textual.
35 Tais substituições, para as testemunhas mais frequentemente citadas, estão identificadas na lista de manus-
critos no Apêndice I (“Codices graeci et latini in hac editione adhibiti”), 684-714. Veja, e.g., os maiúsculos D, D2 e W.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 173
de maneira diferente em C, K e assim por diante. Variantes maiores podem ter diversas pa-
lavras representadas apenas por suas iniciais, sem qualquer prejuízo para a compreensão.
Quando uma variante no aparato tiver reticências (...) entre as palavras, isso significa que
a porção intermediária não mostra nenhuma variação em relação à forma adotada no texto.
No caso de a variante apresentar diversas subvariantes, isto é, diferenças menores
dentro da mesma unidade de variação, isso é indicado mediante 0 uso de parênteses e os
sinais +, para inserções, e - , para omissões, como no exemplo que se segue. Em Mt 5.44,
a aparato registra:
44 זp) ευλογείτε τους καταρωμενους υμάς (υμιν D* pc; - ε. τ. κ. υ. 1230. 1242* pc lat;
Euspt), καλώς ποιείτε τοις μισουσιν υμάς (- κ. π. τ. μ. υ. 1071 pc; Cl Euspt) και (- W; Eus)
προσεύχεστε υπέρ των επηρεαζοντων υμάς ( - D pc; Eus) και D L W Θ / 2 33 3יΠ lat sy<p)׳h
mae; (Athen, Cl) Eus ] txt אB f pc k sy5‘ sa bopt; Theoph Irlatvíd Or Cyp.
Em primeiro lugar, não há dúvida de que o texto και προσεύχεσθε υπέρ των, atestado
pelos manuscritos א, B e várias outras testemunhas, incluindo-se os pais da igreja Orígenes
e Cipriano, é superior à variante encontrada nos códices D, L, W e também em Eusébio. O
p), logo no início, indica que a variante seguinte deriva de uma tradição paralela, ou seja,
dos esforços por enriquecer o texto de Mateus e fazê-lo concordar com uma passagem aná-
Ioga em outro Evangelho, que no caso é Lc 6.28. Essa conclusão é bastante segura à luz da
brevidade de Mt 5.44. A variante, porém, apresenta algumas diferenças secundárias, con-
forme indicado pelo uso dos parênteses: ΰμ&ς é substituído por ύμΐν em D* e outros poucos
manuscritos; os minúsculos 1230, 1242* e alguns outros, além da maioria dos manuscri-
tos latinos e Eusébio (em parte),36 omitem (note-se o sinal — ) ε. τ. κ. υ. As abreviações
correspondem às palavras imediatamente anteriores: ευλογείτε τούς καταρωμενους υμάς,
assim como - κ. π. τ. μ. υ. nos parênteses seguintes indicam a omissão das palavras prece-
dentes καλώς ποιείτε τοΐς μισουσιν υμάς pelo minúsculo 1071 e as demais testemunhas,
incluindo-se Eusébio (em parte). Depois do καί vem ( - W; Eus), o que significa que o Có-
dice Washingtoniano e Eusébio omitem a conjunção, do mesmo modo como os manuscritos
D e alguns outros omitem υμάς. Esse arranjo das evidências pode parecer difícil à primeira
vista, mas a dificuldade aqui é mínima em comparação, por exemplo, com a complexidade
do trabalho envolvendo diversos tipos de diferentes leituras caso elas tivessem que ser mos-
tradas individualmente e por extenso, o que também requerería bem mais espaço.
O aparato procura evitar qualquer nota explicativa adicional, mas isso nem sempre
é possível. Quando tais notas são necessárias, o latim é empregado como solução neu-
tra, mas as abreviações escolhidas podem ser facilmente compreendidas em português.
Caso haja alguma dúvida, esta poderá ser eliminada mediante consulta ao Apêndice V
36 A abreviação pt (partim) indica que 0 escritor patrístico citou a passagem em questão mais de uma vez e em
mais de uma forma. Sempre que possível, a abreviação aparecerá em pares, ou seja, sempre que pt for usado em
relação a determinada leitura (e.g., Euspt), ela será usada outra vez em relação a outra leitura (Euspt), compreen-
dendo assim as duas formas do texto atestadas pelo escritor. Quando apenas uma referência for mostrada, isso
significa que a evidência em favor da leitura do texto não é incluída no aparato ou então que 0 pai da igreja apoia
ainda outra forma também não citada no aparato.
174 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
37 Quanto ao emprego das abreviações, convém consultar a introdução ao aparato crítico do NA27, 50*-83*.
38 O aparato de Mt 5.5, e.g., mostra que Julius Wellhausen propõe a omissão de todo o versículo.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 175
Conquanto o NTG4 e ο NA27 compartilhem o mesmo texto grego, eles diferem total-
mente um do outro na estrutura do aparato crítico. A diferença tem que ver acima de tudo
40 Note que todos os apêndices são devidamente explicados na introdução do NA27, 80*-83*.
176 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
com os propósitos de cada edição: ao passo que o NTG procura satisfazer às necessidades
dos tradutores ao redor do mundo, o NA é para professores, exegetas e outros especialis-
tas em NT.41 A preocupação do NTG com os tradutores fica evidente já a partir da própria
disposição do texto, que aparece dividido em tópicos, cada qual com seu respectivo título
(em português); nos Evangelhos, os títulos ainda vêm seguidos das referências paralelas.
O texto grego do NA27 é contínuo e as referências paralelas são sempre indicadas na
margem externa num tipo de tamanho pouco menor que o do texto; as referências do AT
e outros livros do NT são ainda menores. O sistema do aparato do JVTG4 também tende a
facilitar 0 trabalho do tradutor: as palavras ou frases no texto que apresentam leituras di-
vergentes são assinaladas com um número elevado, 0 qual é repetido no aparato na forma
de uma nota de rodapé, vindo a seguir as referências críticas.
Diferentemente do NA27, cujo aparato começa com a(s) leitura(s) divergente(s), no
JVTG4 ele sempre começa com a forma adotada no texto. Logo após a indicação do ver-
sículo onde ocorre a variação textual, aparece o grau relativo de certeza, na opinião dos
editores, da leitura escolhida para compor o texto. A avaliação é feita mediante as letras
maiúsculas A, B, C ou D colocadas entre chaves { }, respeitando-se o seguinte critério:
A indica que 0 texto é certo; B, que 0 texto é quase certo; C, que 0 texto é difícil de ser
estabelecido; e D (raramente utilizado), que 0 comitê editorial teve grande dificuldade
para chegar a uma decisão.42 Em seguida à avaliação, a leitura adotada no texto é re-
petida por completo, a menos que envolva versículos ou passagens inteiras. Nesse caso,
apenas a passagem é citada. Por fim, é a vez das testemunhas que apoiam a referida lei-
tura, as quais sempre aparecem na seguinte ordem: manuscritos gregos (papiros, maiús-
culos, minúsculos e lecionários), versões (começando-se pela latinas e vindo a seguir as
siríacas, as coptas e as demais) e por último os pais da igreja. Duas barras inclinadas
41 Essa diferença, porém, não deve ser encarada como crucial ou definitiva. O NTG pode perfeitamente ser
usado por estudiosos que se contentam em trabalhar com um texto crítico sem tomar interesse nos detalhes de sua
transmissão e história textual como acontece no NA. Uma coisa, porém, é certa: o NTG é uma edição bem mais inte-
ressante para aqueles que acham 0 sistema do NA um tanto complicado. Uma vez que o texto de ambas as edições
é exatamente 0 mesmo, a decisão quanto ao uso depende inteiramente dos interesses de cada leitor.
42 Tem havido alguma discussão em torno da validade desse sistema de avaliação. Talvez a crítica mais con-
tundente seja a de Kent D. Clarke, que protesta contra 0 que considera uma forte tendência dos editores do NTG4
de avaliar favoravelmente leituras duvidosas, ainda mais em comparação com as outras edições do mesmo volu-
me, insinuando assim “que 0 texto do NTG4 é muito mais incontestável, muito mais confiável e muito mais certo
que 0 texto presente nas edições anteriores” (Textual Optimism: A Critique of the United Bible Societies’ Greek New
Testament, JSNTSup 138 [Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997], 107). Que houve considerável aumento das
leituras A (514 contra 136) e diminuição das leituras C e D (27% contra 58%) em relação às edições anteriores, é
fato, mas aqui dois pontos precisam ser considerados: (1) o NTG4 inclui 284 novas variantes e exclui 273 variantes
encontradas nas edições anteriores, o que certamente afeta a interpretação dos dados estatísticos, embora o número
total de variantes permaneça praticamente inalterado (cerca de 1400); (2) Clarke parece não considerar a possi-
bilidade de que as mudanças tenham ocorrido exatamente para evitar aquilo de que ele acusa os editores, ou seja,
de “erros metodológicos e falácias lógicas” (180). Seja como for, seus clamores para que os critérios de avaliação
sejam definidos com mais clareza são certamente bem-vindos, como 0 é a sugestão para que, nos casos em que há
mais de duas leituras numa mesma unidade de variação, os editores indiquem a ordem de preferência das demais
leituras, ou pelo menos a segunda leitura mais provável (180-182). O NTG5, a ser lançado em breve, deverá manter
o sistema de avaliação, mas há a possibilidade de que, no futuro, tal sistema seja removido do aparato crítico e
mantido apenas no comentário textual.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 177
são então utilizadas para introduzir a primeira leitura divergente e suas respectivas evi-
dências documentais, o mesmo acontecendo com as demais, se houver. A propósito, 0
número de variantes citadas é sensivelmente menor que no NA27, pois atenção é dada
preferencialmente àquelas que podem, de alguma forma, afetar a tradução.
O princípio dominante do NTG4 é o da clareza, e isso tanto na organização do aparato
quanto na própria citação das testemunhas. O nome dos pais da igreja, por exemplo, nunca é
abreviado, como acontece no NA27, e as testemunhas ou tradições individuais de cada versão
nunca são citadas diretamente, também como no NA27, mas sempre com 0 prefixo da versão
principal, mediante letras elevadas. Em Mc 8.15, por exemplo, as testemunhas antigo-latinas
que atestam a forma Ήρώδου são íta׳aur׳b׳c-d׳f-ff2-'־יי יn e as que atestam Ήρψδιανων são it'׳
k. Ο NA27 resume a situação ao citar somente i k em apoio a των Ήρψδιανων, deixando
subententido que todo o restante da tradição antigo-latina apoia a leitura Ήρώδου .43 Além
disso, a evidência documental no aparato crítico é escrita de modo mais detalhado que no
NA27. A versão siríaco-sinaítica, por exemplo, é representada pela abreviação sirs em vez de
apenas sy5, a curetoniana, por sib em vez de s^ e assim por diante, enquanto as coptas o são
por copsa, copbo, copmeg, etc. Ο NA27 usa apenas sa, bo, mae e outras.44
Menção deve ser feita à citação dos lecionários. Embora 0 número dos lecionários cita-
dos a partir de colações originais seja bem menor que o daqueles citados a partir de edições
impressas, o NTG4 leva grande vantagem sobre ο NA27 quanto ao número total de lecioná-
rios mencionados: ao passo que ο NA27 não cita senão nove lecionários, sendo que apenas
quatro são citados com relativa regularidade (/ 249, l 844, l 846, l 2211), o NTG4 cita nada
menos que setenta, sendo trinta para os Evangelhos e quarenta para Atos e as Epístolas. As
seguintes referências são as mais usadas: Lee, a leitura da maioria dos lecionários selecio-
nados, bem como do texto da Igreja Ortodoxa (i.e., 0 texto da edição publicada em Atenas
pela Apostoliki Diakonia); l 59, l 68, etc., a leitura de um lecionário específico quando ele
difere de Lee; Lecpt, quando pelo menos dez lecionários juntos diferem de Lee; ÍAD, quando
a edição da Apostoliki Diakonia difere de Lee; LecptA°, quando pelo menos dez lecionários
juntos diferem de Lee, mas concordam com 0 texto da Apostoliki Diakonia; e l 86612׳, quan-
do uma passagem ocorre mais de uma vez e em mais de uma forma no mesmo manuscrito.
Também é importante mencionar as principais diferenças entre as abreviações usadas
nas duas edições. Ο NA27 usa não somente vid (videtur), como faz o NTG4, mas também v
(vide). O uso de lv· (leitura variante) no NTG4 e vj· (varia lectio) no NA27 reflete apenas o
43 Até 0 GJVT3, 0 princípio da clareza e especificidade levou ao extremo de se diferenciar até mesmo cada uma
das tradições do Diatessarão: a, para a tradição arábica; p, para a persa; f (de “Fulda”), para a latina; 5 (de “Stutt-
gart”), para a velho-alemã;l, para a toscana; v, para a v en ezian a ;p a ra a italiana (quando 1 e ״concordam); 1(de
“Liege”), para a velho-holandesa; e e arm e e Slr, respectivamente, para as citações armênias e siríacas do Diatessarão
nos comentários de Efraim. Felizmente, tal nível de detalhamento, sem qualquer valor para os tradutores, foi aban-
donado no NTG4, que manteve somente ar״n e Slr, quando as citações armênias e siríacas nos comentários de Efraim
diferem uma da outra.
44 Pode haver alguma diferença entre 0 NTG4 e ο NA27 nas citações da evidência da versão Gótica. Aland e
Aland explicam que isso se deve ao fato de que o NTG4 é baseado nas edições de George W. Horner, enquanto o
NA27 0 é na análise dos manuscritos propriamente ditos (228).
178 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
uso do português e do latim respectivamente como língua editorial e não requer maiores
explicações. Da mesma forma, sup, no NTGA, e 5 ou suppl, no NA27, são facilmente reco-
nhecidos como abreviações de suplemento/supplementum e indicam uma adição posterior
a um manuscrito — talvez em substituição a alguma parte perdida — cuja autoridade
não pode ser comparada à do texto original. Ambas as edições fazem uso idêntico das
abreviaçõestxt e com(m>junto ao nome dos pais da igreja: ao citar comentários patrísticos,
pode haver considerável diferença entre uma leitura encontrada no texto que precede o
comentário (no qual as passagens de conexão poderíam facilmente ter sido subsituídas por
um escriba posterior a partir de um manuscrito mais recente) e a leitura do comentário
propriamente dito, ao citar frases do texto (onde as alterações são menos prováveis, o
que nos dá mais segurança de que 0 texto encontrado consiste no original do escritor em
questão). E importante observar, porém, que essas abreviações têm esse significado so-
mente quando usadas no aparato crítico em conexão com a evidência patrística (e.g., Ortxt,
Qjcomm) n 0 aparato do NA27, txt é regularmente utilizado para introduzir as testemunhas
que apoiam 0 texto impresso acima e comm para se referir a comentaristas modernos. O
ponto de interrogação também é usado com significados diferentes: no NTG4, ele indica
incerteza quanto a se determinado manuscrito ou versão apoia ou não a leitura para a qual
é citado, enquanto no NA27 significa simplesmente que o texto versional subjacente não
pode ser determinado com absoluta precisão.
Além do aparato textual, o NTGA traz também um segundo aparato, chamado aparato
de segmentação,45 em que aparecem as diferenças mais significativas, nas principais edições
gregas e traduções modernas, de pontuação e divisão das unidades maiores do texto, como
parágrafos e seções. Cada sucessivo problema de segmentação é assinalado no texto por
uma letra itálica sobrescrita, a qual é repetida no aparato, logo após 0 aparato textual, segui-
da do versículo a que se refere.46 Ao pé da página, há ainda uma terceira seção: um sistema
de referência cruzada envolvendo as principais palavras gregas que aparecem no texto. As
referências incluem as seguintes categorias: ( 1) citações de livros bíblicos e não bíblicos; (2)
alusões concretas, quando se assume que o escritor tinha em mente uma passagem específi-
ca da Escritura; e (3) paralelos literários e de outros tipos.47 Na parte final do volume, dois
índices completam o sistema de referências: um das citações do AT, as quais aparecem tanto
na ordem do AT quanto do NT, e outro com as alusões e paralelos verbais; ο NA27, onde as
referências servem a uma finalidade diferente, combina os dois índices num só.
Por fim, tanto ο NA27 quanto 0 NTGA concordam quanto ao uso no texto dos colche-
tes: enquanto os colchetes simples [ ] assinalam as palavras cuja autenticidade é bastante
45 Esse aparato substitui 0 aparato de pontuação presente nas edições anteriores, em que apareciam as varian-
tes de pontuação de aproximadamente seiscentas passagens, conforme encontradas em várias edições do NT grego,
bem como nas principais versões modernas em língua inglesa, alemã e francesa.
46 As abreviações utilizadas no aparato são bastante simples e podem ser encontradas na introdução do NTG4,
xxxvi-xxxvii.
duvidosa, os colchetes duplos I ]1 assinalam aquelas que decididamente não fazem parte
do texto original, mas que são de destacada importância e antiguidade e, por isso, foram
deixadas no texto. Um exemplo é a conclusão de Marcos (Mc 16.9-20), cuja redação parece
remontar aos primórdios da tradição manuscrita, ou então o episódio da mulher adúltera
(Jo 7.53—8.11), que pode ser um episódio autêntico da vida de Jesus incorporado ao texto
bíblico apenas em cópias posteriores.
Os Cânones Críticos
Dentre as muitas atividades das quais se ocupa a crítica textual, a mais importante é a
avaliação das leituras variantes — reveladas mediante a minuciosa colação dos manuscri-
tos — e a escolha daquela que mais provavelmente represente a forma original do texto. O
processo envolve a aplicação de dois diferentes critérios, a evidência externa e a evidência
interna, cada qual contendo uma série de cinco princípios textuais, também chamados de
cânones críticos.48
Evidência Externa
48 Detalhes concernentes à formulação, disposição numérica, ordem de aplicação ou importância dos princípios
costumam variar de autor para autor, mas, no geral, os princípios são praticamente os mesmos, 0 que significa,
como salienta Vaganay, que talvez seja perfeitamente correto falar “do método da crítica textual do NT” (An Intro-
duction to New Testament Textual Criticism, 52).
180 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
por exemplo, embora sendo do nono século e revele alguma influência bizantina sobretu-
do em Atos e nas Epístolas, consiste num “excelente representante” do tipo alexandrino de
texto.49 O mesmo acontece com os manuscritos 892 e 1739, entre outros. Estudos recentes
também têm chamado a atenção para a real possibilidade de que mesmo manuscritos
essencialmente bizantinos contenham leituras remanescentes de manuscritos ainda mais
antigos que aqueles hoje conhecidos.50 Conclusões paleográficas ou codicológicas quanto à
data de um manuscrito, portanto, por mais importantes que sejam, precisam ser consubs-
tanciadas por informações relativas à antiguidade do texto em si presente no manuscrito.
E tais informações só poderão ser obtidas mediante cuidadoso estudo dos atributos e as
inter-relações textuais do manuscrito em questão.
51 Zane C. Hodges e Arthur L. Farstad, eds., The Greek New Testament according to the Majority Text, 2a. ed.
(Nashville: Nelson, 1985 [Ia. ed., 1982]), xi. O mesmo princípio numérico é afirmado de maneira negativa para
desqualificar a forma textual presente nos manuscritos mais antigos, especialmente os papiros: “Uma leitura atesta-
da por uma testemunha como essa, e encontrada apenas num pequeno número de outros manuscritos, não é nem
um pouco provável que seja descendente dos autógrafos” (ibid., xii).
52 Wallace, “The Majority Text Theory: History, Methods, and Critique,” 311.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 181
ser individualmente avaliados para que o peso de sua evidência possa ser devidamente
estabelecido.
Deve-se considerar 0 parentesco dos manuscritos entre si. Foi Lachmann, na primeira
metade do século dezenove, quem introduziu o chamado método genealógico, segundo o
qual o melhor e mais antigo texto de qualquer obra pode ser reconstruído traçando-se sua
árvore genealógica, ou estema, a partir dos manuscritos conhecidos. Conquanto possa ser
aplicado à literatura clássica, que dispõe de um número bastante reduzido de manuscritos,
0 método é impraticável em relação ao NT, dada a complexidade de sua tradição textual.53
Todavia, como argumenta Colwell, embora a validade do “estudo genealógico dos ma-
nuscritos” deva ser rejeitada, 0 “estudo genealógico dos grupos de manuscritos” pode ser
muito útil à pesquisa crítico-textual neotestamentária para se estabelecer tanto pequenos
grupos ou famílias de manuscritos, quanto os grandes grupos ou tipos textuais.54 Dife-
rentemente do que acontece com as famílias, porém, cujos membros não estão muito se-
parados uns dos outros por grande número de gerações perdidas, talvez não seja possível
reconstruir 0 arquétipo de um tipo específico de texto, mas isso não significa que suas tes-
temunhas não possam ou não devam ser identificadas.55 A classificação dos manuscritos
nos diferentes grupos textuais não só permite simplificar a complicada tradição textual do
NT, como também facilita, e muito, o processo de avaliação das leituras variantes. Leituras
alexandrinas, por exemplo, são muito mais qualificadas para representar 0 texto original
que as leituras dos demais tipos de texto, especialmente o bizantino .56 Há, porém, diversas
exceções, como também não há um único manuscrito que não tenha sido contaminado por
leituras de outros grupos textuais. A implicação é óbvia: nenhum tipo de texto pode ser
aceito ou rejeitado por atacado, 0 que equivale a dizer que nenhuma variante, não importa
0 texto que representa, pode ser prejulgada. “Decisões em crítica textual devem ser toma-
das uma após a outra, passagem por passagem .”57
53 Apesar do entusiasmo de muitos com 0 método, especialmente no final do século dezenove e primeira
metade do século vinte, já em 1904 Kirsopp Lake se referiu a ele como um “fracasso, embora esplêndido” (The
Influence of Textual Criticism on the Exegesis of the New Testament [Oxford: Parker & Son, 1904], 3). Para as razões
de sua impraticabilidade com relação ao texto neotestamentário, veja Parker, An Introduction to the New Testament
Manuscripts and Their Texts, 167.
55 Ibid., 82.
56 Com relação às leituras atestadas por um tipo de texto apenas, Metzger oferece os seguintes critérios básicos:
0 texto alexandrino preserva o texto original “com bastante frequência;” 0 texto ocidental, “com alguma frequên-
cia;” e 0 texto bizantino, apenas “em situações extremamente raras.” No caso de uma leitura atestada pelos textos
alexandrino e ocidental juntos, tal leitura é “superior a qualquer outra” (Metzger e Ehrman, 314-315). Metzger
também se refere ao chamado texto cesareense, que “apenas muito raramente” preserva 0 texto original. Esse
texto, porém, tem hoje sua validade rejeitada de maneira praticamente universal, por não dispor das característi-
cas necessárias para fazer dele um tipo textual no mesmo nível dos demais, não sendo senão um texto misto que
combina principalmente leituras alexandrinas e ocidentais. Não é de todo impossível, porém, que as testemunhas
anteriormente classificadas como cesareenses (Θ, f , 565, 700, arm, geo, Orígenes, Eusébio) possam de fato pre-
servar algumas formas originais.
182 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
Deve-se observar a tradição indireta quanto ao texto. Apesar de não testemunharem di-
reta e exatamente o texto grego neotestamentário, as antigas versões e citações patrísticas
são de reconhecida importância para os trabalhos de restauração textual do NT porque
refletem como o texto era compreendido, interpretado e traduzido no período primitivo
da igreja. Algumas versões são mais antigas que muitos manuscritos gregos e as citações
dos antigos escritores são as únicas testemunhas que podem ser datadas e localizadas
geograficamente com relativa precisão,5758 o que é fundamental tanto para a reconstituição
da história do texto quanto para um correto julgamento das variantes. Embora peso maior
deva ser dado à tradição manuscrita grega, essas testemunhas, que têm mais “uma função
suplementar e corroborativa,”59 podem representar a melhor solução para vários textos
problemáticos. Tal pode ser o caso, por exemplo, da versão siríaco-sinaítica em Lc 23.43. A
vinculação do advérbio “hoje” ao verbo “dizer,” obtida pela introdução da conjunção “que”
após o advérbio, parece indicar como o texto grego, ambíguo pela ausência de pontuação,
deve realmente ser lido e compreendido (“na verdade te digo hoje que comigo tu esta-
rás...”). Quanto às citações patrísticas, um conhecido exemplo é a leitura “Jesus Barrabás”
em Mt 27.16-17, a qual aparece em alguns manuscritos gregos (Θ, f , 700) e versionais. A
mais antiga testemunha disponível dessa leitura é Orígenes (início do terceiro século), que
declara havê-la encontrado em “muitas cópias antigas” das Escrituras e há boas razões
para se acreditar que essa seja a forma original do texto .60
Devem-se ter em conta as influências externas sofridas pelo texto. A presença de no-
vos elementos no texto pode em parte ser atribuída à influência de pelo menos quatro
fontes externas: textos paralelos, tanto do AT quanto do próprio NT, principalmente nos
Evangelhos; a liturgia da igreja; a teologia do copista, tradutor ou intérprete; e a tradição
evangélica extrabíblica. Considerando-se a forma livre e até descuidada com que os escri-
tores do NT muitas vezes citam o AT, nada estranho que um copista posterior procurasse
corrigir as diferenças entre a citação e sua fonte original, geralmente a LXX.61 Em Jo 2.17,
por exemplo, o futuro καταφάγεται foi alterado em vários manuscritos para 0 aoristo
κατέφαγε, para que 0 texto ficasse igual ao de SI 69.9. Já em Lc 3.22, 0 crítico textual tem
de decidir se a leitura “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” também consiste num exemplo
de adaptação do texto ao da LXX (SI 2.7), como defendido por alguns,62 ou se é a leitura
58 Como disseram Kirsopp Lake, Robert E Blake e Silva New, “a evidência das citações nos pais da igreja... é
sempre a estrela-guia do crítico textual em seu esforço para localizar e datar um texto” (“The Caesarean Text of the
Gospel of Mark,” HTR 21 [1928]: 258).
61 Veja Roger Nicole, “The New Testament Use of the Old Testament,” em Doctrine from the Wrong Text? Essays
on the Use of the Old Testament in the New, ed. G. K. Beale (Grand Rapids: Baker, 1994), 13-28.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו83
“Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo” que foi adaptada ao texto de Mc 1.11 para
evitar o constrangimento doutrinário (adocionismo) da leitura anterior, como acreditam
outros, especialmente por causa do forte apoio patrístico já a partir de meados do segundo
século.6
63 A adaptação de textos à liturgia e práticas da igreja também era um procedí-
2
mento muito comum entre os escribas cristãos e há igualmente claros exemplos de relatos
que parecem ter sido incluídos no texto, sobretudo nos Evangelhos e em Atos, a partir de
alguma tradição evangélica autêntica preservada de forma oral ou escrita. Seja como for,
a prática da crítica textual exige que 0 pesquisador esteja bem inteirado não apenas dos
hábitos escribais, mas também da literatura e história da igreja, principalmente suas crises
e tendências teológicas.
Evidência Interna
Deve-se preferir a variante mais difícil.65 A análise dos manuscritos demonstra que a
tendência dos copistas era sempre a de simplificar ou esclarecer o texto, nunca a de torná-
-10 mais difícil. Entre duas ou mais variantes de uma passagem, portanto, a escolha deve
recair sobre aquela que, da ótica do copista e não do crítico, podería representar algum
problema exegético, linguístico ou doutrinário, devendo ser consideradas como suspeitas
aquelas que exibem marcas de simplificação ou aperfeiçoamento estilístico, ainda mais se
considerado o limitado domínio da língua grega e a pouca habilidade literária de boa parte
dos escritores neotestamentários. É evidente, porém, que a regra não é absoluta, pois são
muitos os exemplos em que dificuldades textuais acabaram resultando de erros involuntá-
rios no processo de cópia. Nesse caso, como declara Kenyon, “o princípio não é válido, mas
63 E.g., Bart D. Ehrman, “The Use of the Church Fathers in New Testament Textual Criticism,” em The Bible as
Book: The Transmission of the Greek Text, ed. Scot McKendrick e Orlaith A. O’Sullivan (Londres: Biblioteca Britânica,
2003), 161-162.
64 Westcott e Hort se referiram a ele como “a mais rudimentar forma de crítica” (2:19-20).
65 Estabelecido já no século dezoito por Bengel, inspirado numa formulação parecida de Mill, esse princípio
também é conhecido pela expressão latina difficilior lectio potior, ou simplesmente lectio dijficilior.
184 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
Deve-se escolher a variante mais curta.69 E muito mais natural admitir que um tex-
to originariamente curto tenha sido ampliado em cópias posteriores que o contrário, ou
seja, que um texto longo em sua origem tenha sido encurtado. No esforço por tornar uma
passagem mais compreensível ou correta, os copistas com frequência acrescentavam no-
vos elementos em vez de omitir qualquer coisa do texto, a não ser quando imaginavam
se tratar de material supérfluo, contrário à fé, ao uso litúrgico ou a alguma prática da
igreja. Convém lembrar, porém, que há muitas omissões resultantes de casos óbvios de
parablepse ou haplografia, de modo que uma “cega consistência” na aplicação da regra
pode ser tão danosa para o texto quanto sua total negligência.70 Seria completamente ir-
responsável, por exemplo, insistir na originalidade da leitura ούκ ερωτώ ϊνα αρης αυτούς
έκ τού πονηρού (“não peço que os tires do mal”) em Jo 17.15 só porque é mais curta que
ούκ ερωτώ ϊνα αρης αυτούς έκ τού κόσμου, άλλ’ ϊνα τηρήσης αυτούς έκ τού πονηρού
(“não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal”) ou porque é atestada pelo
Códice Vaticano. Não há nenhuma dúvida de que a primeira variante é decorrente de um
66 Kenyon, Handbook to the Textual Criticism of the New Testament, 13. Kenyon acrescenta: “Um escriba ou
comentarista falha em compreender a passagem e acrescenta alguma palavra que, segundo ele, haverá de torná-la
mais fácil; uma palavra estranha é substituída por outra mais conhecida; uma paráfrase marginal confunde a frase
que se destina a explicar; uma expressão que pode ser encarada como ofensiva é omitida ou enfraquecida. Em
todos esses casos, a leitura mais difícil é mais provável de ser a verdadeira.” Então ele conclui: “Uma leitura difícil
nunca será deliberadamente introduzida no lugar de uma fácil, mas 0 contrário pode acontecer, e com frequência
acontece” (ibid.).
67 Ibid.
68 L. West, Textual Criticism and Editorial Technique Applicable to Greek and Latin Texts (Stuttgart: Teubner,
1973), 51.
erro haplográfico, no qual os olhos do copista saltaram do primeiro etc του para o segundo,
com a omissão das palavras intermediárias. Tem-se argumentado também que algumas
concessões devam ser feitas em relação ao texto ocidental do Livro de Atos, onde várias
supostas adições (12.10; 19.9; 20.4, 15; 21.16; 28.16) talvez representem a forma original
ou pelo menos alguma tradição autêntica.71 Estudos recentes também têm demonstrado
que, na fase inicial da transmissão manuscrita, representada pelos papiros, a regra nem
sempre pode ser seguida à risca.72 Em termos gerais, porém, o princípio da variante mais
curta permanece válido, sobretudo em relação às cópias feitas a partir do quarto século e,
por isso, ele não deve ser totalmente abandonado.73
Deve-se optar pela variante em desacordo. Esse princípio diz respeito aos textos paralelos,
principalmente nos Evangelhos, em relação aos quais a tendência dos escribas via de regra
era a de harmonizá-los, caso divergissem um do outro. Ele também se aplica às citações do
AT presentes no NT. Uma vez que muitas delas parecem ter sido feitas de memória e com
pouca ou nenhuma preocupação com a forma exata do texto, elas eram com frequência
ajustadas ao texto grego da LXX. Aqui, porém, muito cuidado é necessário. Seria certamen-
te precipitado afirmar, à parte de outras considerações, que só porque um texto concorda
com outro é sinal de que houve algum tipo de harmonização. As passagens comuns aos
Evangelhos Sinóticos também representam um problema adicional, pelo fato de Mateus e
Lucas aparentemente terem feito amplo uso de Marcos. Bem mais complexa é a relação en-
tre Mateus e Lucas quando eles concordam um com 0 outro em materiais não marcanos. Na
opinião de muitos, a explicação estaria no uso de uma segunda fonte comum, 0 hipotético
documento Q, embora a possibilidade de uma relação direta entre ambos não possa ser de
todo descartada.74 Deve-se estar atento, portanto, para todas as possíveis direções tomadas
no processo de harmonização, o que só poderá ser feito se todas as variantes paralelas fo-
rem analisadas em conjunto. A análise das variantes divergentes de apenas um Evangelho
pode distorcer os fatos e provocar decisões equivocadas. Em Mc 2.16, por exemplo, tanto a
72 O primeiro a criticar a validade do princípio em relação aos papiros mais antigos foi Colwell, na segunda
metade do século vinte, numa análise dos hábitos escribais nos papiros Çs45, jl66 e ψ 75 (.Studies in Methodology in
Textual Criticism of the New Testament, 106-124). Desde então, diversos estudos na mesma linha se seguiram. Um
dos principais expoentes do debate é James Royse, que insiste que “a tendência geral durante 0 primeiro período
da transmissão textual era omitir,” e, portanto, “outras coisas sendo iguais, é a leitura mais longa que deveria ser
preferida” (“Scribal Tendencies in the Transmission of the Text of the New Testament,” 246; cf. idem, Scribal Habits
in Early Greek New Testament Papyri, 704-736). Para mais informação sobre 0 assunto, incluindo-se referências
bibliográficas, veja Epp, Perspectives on New Testament Textual Criticism, 650-653.
73 Ibid., 652. Royse admite que, após 0 quarto século, a situação foi diferente e que uma série de fatores histó-
ricos e religiosos podem ter feito com que os escribas passassem a alongar 0 texto com a mesma naturalidade com
que antes 0 encurtavam (Scribal Habits in Early New Testament Papyri, 732). Veja também Moisés Silva, “Response,”
em Rethinking New Testament Textual Criticism, ed. David A. Black (Grand Rapids: Baker, 2002),145-146.
74 Refiro-me em particular à chamada “hipótese Farrer” (em referência a A. M. Farrer), segundo a qual Mateus
teria utilizado Marcos ao passo que Lucas teria utilizado ambos.
186 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
forma breve “come” quando a mais longa “come e bebe” pode corresponder à forma origi-
nal. No caso da forma breve, a forma longa teria sido influenciada pelo texto paralelo em
Lucas (5.30); Mateus teria reproduzido Marcos e acrescentado “o vosso mestre” (9.11), ex-
pressão essa que alguns copistas teriam depois eliminado, harmonizando-a com Marcos.75
No caso da forma longa, Lucas é que teria reproduzido Marcos, cujo texto, por sua vez, teria
sido encurtado em cópias posteriores por influência de Mateus.76 Seja como for, uma coisa é
certa: Mateus se tornou o Evangelho dominante na tradição cristã primitiva, sendo o mais
usado como referência nos processos de harmonização.
Deve-se decidir pela variante que melhor se harmonize com 0 livro em questão. Como re-
gra, uma leitura não pode ser considerada original se ela entra em choque com o capítulo
ou versículo correspondentes ou com o caráter geral do livro, quer na simples quebra da
fluidez do pensamento,77 quer no emprego de vocábulos ou estilos distintos aos do autor
original. Outras vezes a própria teologia do autor pode ser contrariada. Questões envoi-
vendo estilo e teologia, porém, podem ser bastante subjetivas e, por issso, devem ser con-
sideradas com muita cautela. Além de alguns escritores neotestamentários terem utilizado
fontes, como Lucas (1.1-4) e supostamente Mateus, ou contado com a ajuda de secretários
ou amanuenses, como Pedro (1 Pe 5.12), Paulo (Rm 16.22; 1 C0 16.21; Cl 4.18; 2Ts 3.17) e
possivelmente João (veja a primeira pessoa plural de Jo 21.24), nenhum autor é obrigado
a usar as mesmas palavras ou expressões diversas vezes ao longo do livro, tampouco usá-
-las com o mesmo significado. O NT contém nada menos que 1928 hapax legomena, ou
palavras que ocorrem uma única vez,78 e, dentre aquelas de múltipla ocorrência, há várias
que são utilizadas com significados variados, inclusive pelo mesmo autor. Nada impede,
portanto, que uma forma rara ou divergente possa eventualmente ser original, ao passo
que outra mais comum represente apenas o esforço do copista em reproduzir o estilo do
autor. Como salienta Greenlee, é mais seguro aplicar esse princípio para as variantes um
pouco maiores ou mais extensas, ou seja, variantes que propiciem mais elementos de com-
paração .79 Uma conhecida expansão de Mc 16.14 encontrada no Códice Washingtoniano,
por exemplo, equivalente a três ou quatro versículos, contém cinco palavras ou expressões
75 Essa é a explicação dada por Metzger (A Textual Commentary on the Greek New Testament, 67) para justificar
a forma adotada pelo NTG4.
76 Esse e outros exemplos podem ser encontrados em J. K. Elliott, “The Relevance of Textual Criticism to the
Synoptic Problem,” em The Interrelations of the Gospels, ed. David L. Dungan, BEThL 95 (Leuven: Leuven University
Press, 1990), 349-350.
77 Um dos exemplos mais gritantes de intrusão no texto é 0 da Comma Joanina (1J0 5.7-8). Ela interrompe
com tanta violência 0 pensamento do apóstolo e introduz um elemento tão estranho ao contexto que por si só
essa evidência (probabilidade intrínseca) já seria suficiente para desacreditá-la. Como declara I. Howard Marshall,
podemos afirmar sem “qualquer sombra de dúvida" de que João não escreveu essas palavras (The Epistles of John,
N1CNT [Grand Rapids: Eerdmans, 1978], 236). Para um estudo completo da passagem, veja Raymond E. Brown,
The Epistles of John, AB 30 (Nova York: Doubleday, 1982), 775-787.
78 Plural de hapax legomenon (ίχπαξ λεγόμενον), que literalmente significa “[algo] dito [apenas] uma vez.’
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 187
nunca usadas por Marcos e três que não aparecem em qualquer outra parte do NT. Tam-
bém é importante que, no exame das variantes, os hábitos dos copistas e corretores sejam,
tanto quanto possível, individualmente observados; sua escolha de sinônimos ou verbos
pode revelar seu próprio estilo ou tendência.79
80
Deve-se eleger a variante que melhor explique a origem das outras. Descrito como a
“contraprova” para a escolha de uma variante ,81 esse princípio se fundamenta no fato de
que os vários tipos de alterações involuntárias ou intencionais geralmente apontam para
uma forma antecedente da qual elas podem ter se originado. Assim, para se mostrar vá-
lido, o texto escolhido deve, na medida do possível, poder explicar a origem das formas
divergentes consideradas como secundárias. Trata-se do mesmo método genealógico, por-
tanto, só que aplicado diretamente às variantes e não aos manuscritos em si. Se o estema
de cada uma das unidades de variação puder ser estabelecido, então é bem provável que
a leitura ancestral represente a forma original do texto .82 Em Lc 24.53, por exemplo, a
tradição manuscrita está divida entre três variantes: (1) εύλογοΰντες, (2) αίνοΰντες e (3)
αίνοΰντες καί εύλογοΰντες. Considerando-se ο princípio estematológico, a variante um
pode ter dado origem à variante dois, visto que, no NT, o verbo αίνεω (“louvar”) é utili-
zado apenas com relação a Deus, ao passo que εύλογέω quase sempre se refere a homens
(com o sentido de “abençoar”). Nos escritos de Lucas, a situação é praticamente a mesma:
αίνεω é usado apenas com relação a Deus, enquanto que εύλογέω é mais frequente e quase
sempre se refere a homens, embora também seja usada para se referir a Deus (cf. Lc 1.64;
2.28). É mais fácil, portanto, que a variante um tenha sido alterada para a dois que vice-
-versa. Se a variante dois fosse a original, ela dificilmente podería explicar o surgimento
da variante um e muito menos da três. A variante três, por sua vez, pode ter dado origem à
variante dois por homoioteleuton, mas não à variante um, embora seja bem mais provável
que ela tenha resultado da combinação das variantes um e dois em algum período poste-
rior da tradição; esses dois verbos, por serem quase sinônimos, nunca são usados juntos
em qualquer passagem, quer de Lucas, quer do NT como um todo. A parte de qualquer
outra consideração, portanto, a variante um deve ser a preferida, visto que é a que melhor
explica a origem das outras.83
80 Dois outros critérios mencionados por Epp não são senão desdobramentos desse princípio geral: deve-se
preferir a variante que contenha formas semíticas de expressão, bem como a variante que reflita o grego koinê (em
vez do grego ático), o que se explica à luz da tendência aticista de pelo menos alguns copistas, ou seja, a tendência
de acomodarem expressões bíblicas ao idioma grego ático (Textual Criticism: New Testament,” 6:431).
8 רZimmermann, 49.
83 Outro interessante exemplo para a aplicação do princípio estematológico é Cl 2.2, que contém nada menos
que quinze leituras divergentes. Para análise da passagem, veja Metzger e Ehrman, 334-335.
188 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
É importante destacar, no entanto, que mesmo esse último princípio nem sempre será
determinante, pois poderá ser o caso de que duas variantes se expliquem mutuamente,
podendo qualquer uma ter se originado da outra. O ponto, já mencionado diversas vezes
e muito enfatizado pelos Aland em seu tratado de crítica textual,84 é que não há um único
princípio que não apresente exceções, o que equivale a dizer que nenhum princípio isolado
oferece base suficientemente segura para decisões textuais. Também nem todos os princí-
pios serão aplicáveis a todos os casos; tudo vai depender da natureza do erro em questão.
A crítica textual não é uma ciência exata, muito menos uma atividade que possa ser
exercida mecanicamente. Como bem observa A. E Housman, “ela não lida com questões rí-
gidas e constantes, como linhas e números, mas fluidas e variáveis; a saber, as deficiências
e aberrações da mente humana, bem como seus servos mais insubordinados, as mãos.” Ela
não está, portanto, “suceptível a regras absolutas. Seria muito mais fácil se estivesse.... É
claro que, se quisermos, poderemos ter regras absolutas, mas 0 resultado,” continua Hous-
man, “é que elas se mostrarão falsas e acabarão induzindo ao erro, porque sua simplorieda-
de irá torná-las inaplicáveis aos problemas, os quais, longe de ser simples, são na verdade
muito complexos pela ação da personalidade humana.” Os problemas textuais do NT, ele
conclui, “são únicos e requerem um tratamento individualizado. Cada problema que se
apresenta ao crítico textual deve ser considerado tão único quanto possível.”85 É por isso
que as regras não podem ser absolutas ou rígidas. Cada problema é diferente do outro, o
que torna a crítica textual muito mais semelhante a uma arte que a uma ciência no sentido
técnico do termo. O que vale para um problema pode não valer para 0 outro. Todo 0 pes-
quisador, portanto, deve ter sempre diante de si as regras em seu conjunto e saber aplicá-las
com imparcialidade, bom senso e, sobretudo, muita sensibilidade. E isso não é algo que se
aprende; desenvolve-se. Como declara Metzger, “ensinar alguém a se tornar crítico textual
é semelhante a ensiná-lo a ser poeta .”86 Por fim, é oportuno relembrar as palavras de Lake,
que recomenda cautela na hora de se reputar um texto como corrupto, embora isso tenha
que ser feito, pois em cada unidade de variação, apenas uma variante pode ser a original.
“O crítico,” diz ele, “deve estar sempre pronto a revisar seu julgamento. Deve sempre sus-
peitar das variantes, mas deve suspeitar ainda mais de suas próprias conclusões.”87
A rigor, existem apenas duas formas de se editar 0 texto grego do NT. A primeira é em-
pregar 0 chamado método documental, ou histórico-documental, em que se utiliza algum
85 A. E. Housman, “The Application of Thought to Textual Criticism,” em Selected Prose, ed. John Carter (Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1961), 132-133.
tipo de controle externo, como o Texto Recebido, o texto de um grupo de manuscritos (e.g.,
os papiros) ou mesmo da maioria dos manuscritos (o Texto Majoritário). A segunda, é ado-
tar um texto eclético, ou seja, baseado na escolha entre duas ou mais variantes. A presente
seção analisa essas duas alternativas metodológicas e suas subvariações.
Método Documental
Num sentido mais amplo, 0 método documental pode ser definido como 0 esforço para
se editar 0 texto grego do NT a partir tão somente dos manuscritos sobreviventes, sem a
utilização do critério da evidência interna .8 88 Ele pode ou não envolver tanto o exame e
7
a seleção de variantes quanto a alegação de que 0 texto assim produzido corresponde ao
texto original. Tudo depende das pressuposições e os objetivos de cada editor. Ou seja, a
reprodução do texto de um manuscrito ou grupo específico de manuscritos, mesmo que
não haja necessariamente nenhuma pretensão quanto ao texto original, também é parte
do método documental; talvez a única que possa ser descrita como legítima.89
O problema é quando o método é utilizado com a pretensão explícita de se resgatar o
texto autógrafo do NT. Esse é o caso, por exemplo, dos recentes esforços por se ressuscitar
o Texto Majoritário. Algumas defesas da prioridade do texto ocidental (particularmente o
Códice Beza) no Livro de Atos também chegam bem próximo disso.90 De qualquer forma, 0
uso consistente da evidência documental, à exclusão total ou parcial da evidência interna,
apresenta duas limitações fundamentais. A primeira é que nenhum manuscrito, tradição ou
tipo textual é livre de erros ou alterações escribais. Isso significa que nenhuma linha ou agru-
pamento da evidência documental pode ser seguido de maneira uniforme ou ininterrupta.
87 Kirsopp Lake, The Text of the New Testament, 6a. ed. rev. Silva New (Londres: Rivingtons, 1933), 5.
88 Para uma definição mais específica, veja Epp, Perspectives on New Testament Textual Criticism, 261.
89 Edições assim são relativamente raras. Exemplos recentes incluem: Philip W. Comfort e David R Barrett,
The Text of the Earliest New Testament Greek Manuscripts (Wheaton: Tyndale, 2001), que busca reproduzir o texto
encontrado nos manuscritos mais antigos (anteriores ao quarto século), principalmente os papiros, e consiste numa
edição revisada e corrigida do The Complete Text of the Earliest New Testament Manuscripts (Grand Rapids: Baker,
1999), dos mesmos editores, cuja circulação foi interrompida por causa dos muitos erros tanto no texto quanto nas
transcrições; e Roderic L. Mullen, The Gospel according to John in the Byzantine Tradition (Peabody: Hendrickson,
2008), que reproduz o texto do minúsculo 35, do século onze, acrescido das evidências de diversas testemunhas
representativas do texto bizantino (maiúsculas, minúsculas, lecionárias e patrísticas) e representa 0 texto inicial
preparado pelas Sociedades Bíblicas Unidas (mediante solicitação de líderes eclesiásticos ortodoxos) com 0 intuito
de facilitar estudos crítico-textuais da tradição bizantina.
90 E.g., Vaganay, An Introduction to New Testament Textual Criticism, 91-109. Veja também a recente defesa de
Jenny Read-Heimerdinger da superioridade do Códice Beza em Atos. Conquanto recomende 0 uso de análise do
discurso no processo de avaliação das variantes, ela aparentemente critica 0 método eclético ao se queixar de que
0 texto das edições atuais do Livro de Atos é um texto hipotético que foi reconstruído a partir de diferentes ma-
nuscritos. “Não há qualquer evidência,” diz ela, “de que o texto atual tenha em algum momento existido na forma
como foi editado” (The Bezan Text of Acts: A Contribution of Discourse Analysis to Textual Criticism, JSNTSup 236
[Sheffield: Sheffield Academic Press, 2002], 51, 64 n. 7).
190 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
92 Ibid., 85.
94 Ibid., V. O mesmo argumento é utilizado por Hodges e Farstad: “Em qualquer tradição cuja história transmis-
sional não apresente nenhuma interrupção significativa, a leitura individual que tiver a origem mais antiga é a mais
provável de sobreviver na maioria dos documentos. E a leitura mais antiga de todas é a original” (xi-xii).
96 E.g., Jakob van Bruggen, The Ancient Text of the New Testament (Winnipeg: Premier, 1976); Wilbur N. Pick-
ering, The Identity of the New Testament Text (Nashville: Nelson, 1977; 3a. ed., Eugene: Wipf & Stock, 2003); Harry
A. Sturz, The Byzantine Text-type and New Testament Textual Criticism (Nashville: Nelson, 1984); Theodore E Letis,
ed., The Majority Text: Essays and Reviews in the Continuing Debate (Fort Wayne: IRBS, 1987). Desses, a mais con-
tundente defesa do Texto Majoritário é a de Pickering, embora boa parte do livro pareça fora de época: dois capí-
tulos inteiros (caps. 3 e 4) são dedicados a Westcott e Hort, como se nenhum avanço tivesse havido desde então, e
0 cap. 7 (“Determining the Identity of the Text”) apenas recicla boa parte dos mesmos argumentos utilizados por
Burgon no final do século dezenove. Em sua análise do livro, Gordon D. Fee declara que, “do começo ao fim, ele
sofre de distorções da pesquisa acadêmica, 0 uso da retórica em lugar do argumento e a aparente falta de família-
ridade direta com muitos dos dados primários” (“The Majority Text and the Original Text of the New Testament,”
em Studies in the Theory and Method of New Testament Textual Criticism, ed. Eldon J. Epp e Gordon D. Fee, StD 45
[Grand Rapids: Eerdmans, 1993], 189). Filho de missionários norteamericanos, Pickering nasceu em São Paulo e
é missionário no Brasil desde 1961. Uma tradução de seu livro para o português está disponível on-line: http://
www.luz.eti.br/resources/wilbumt.pdf.
98 Aqui, porém, é necessário algum cuidado. Após examinar as 150 leituras distintivamente bizantinas que
Sturz alega haver encontrado nos papiros (145-159), Wallace declarou que apenas oito delas parecem ser genetica-
mente significativas, ao passo que seis não são leituras bizantinas distintivas (Lc 10.21; 14.3,34; 15.21; Jo 10.38;
19.11). A principal evidência de Sturz é Fp 4.13, cuja omissão de του θεοί é adotada pelo NA27/NTG4. “Quando
esses fatores são levados em consideração,” declara Wallace, “as leituras bizantinas presentes nos papiros se tornam
uma base insuficiente a partir da qual tanto Sturz quanto os advogados do Texto Majoritário tiram suas conclusões”
(“The Majority Text Theory: History, Methods, and Critique,” 303 n.31).
99 Fee, “The Majority Text and the Original Text of the New Testament," 187.
ו92 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS TEXTUAIS
aceitável, “mas usar esse argumento numa escala maior equivale a forçar a credibilidade da
teoria muito além do ponto de ruptura .”*10
102 E quanto às versões e pais da igreja? Se o Texto
Majoritário descende diretamente dos originais, como explicar 0 fato de que ele não deixou
um único traço concreto sequer de sua existência nem mesmo na literatura patrística dos
primeiros três séculos? O princípio da quantidade, portanto, à exclusão de outros critérios
textuais como data e procedência das testemunhas, carece tanto da plausibilidade quanto
da razoabilidade necessárias para validá-lo.
Quanto à evidência interna, a prática comum entre os adeptos do Texto Majoritário é
a rejeição sumária de seus princípios sob o pretexto de serem irremediavelmente subjeti-
vos.103 Mas, não é porque a crítica textual não pertence ao ramo das ciências exatas, diz
Zuntz, que seus princípios textuais não sejam confiáveis ou produzam apenas decisões
“arbitrárias e incapazes de verificação objetiva.” Conquanto haja situações difícieis que
impeçam uma conclusão definitiva, na grande maioria dos casos a convergência de argu-
mentos extraídos da distribuição da evidência, a dependência de uma leitura da outra, o
conhecimento dos hábitos e erros típicos dos escribas, as tendências características dos
corretores, o desenvolvimento da língua, as peculiaridades estilísticas do escritor, o con-
texto da passagem em questão, tudo isso, e ainda outros fatores combinados, pode levar a
uma decisão com elevado grau de certeza.104 Além disso, não são raros os casos de leituras
divergentes em que o princípio da maioria nem sempre pode ser evocado com clareza.
Um exemplo é R m 5.1, onde a tradição bizantina está dividida entre εχομεν (“temos”) e
εχω μεν (“tenhamos”) e ambas as leituras são muito significativas do ponto de vista exegé-
tico.105 Assim, embora a evidência documental possa “ter um considerável peso na balança
10 ° a declaração de Robinson e Pierpont é típica: “O predomínio [do texto bizantino] existiu pelo menos do
quarto século até a invenção da imprensa no século dezesseis. Sob a presente teoria, presume-se que nos séculos
anteriores ao quarto século esse texto tenha dominado a região primária de fala grega do Império Romano (sul
da Itália, Grécia e Ásia Menor) — uma vasta e multiforme região que carece de evidência manuscrita, versional e
patrística durante o período anterior ao quarto século” (v).
101 Veja Pickering, 86-87. O argumento remonta a Burgon, no final do século dezenove, que também afirmou
que os Códices א, A, B, C e D (os papiros ainda eram desconhecidos) são cópias refugadas por causa de seus erros e
que, exatamente por não haverem sido muito utilizadas, acabaram sobrevivendo (John W. Burgon, T h e T r a d i ti o n a l
T e x t o f t h e H o l y G o s p e ls V i n d ic a t e d a n d E s t a b li s h e d , ed. Edward Miller [Londres: Bell, 1896], 12, 33, 36-37, 47).
10 2 Wallace, “The Majority Text Theory: History, Methods, and Critique,” 312.
103 E.g., Robinson e Pierpont, iv. Os adjetivos, por vezes, vão bem além disso. Um exemplo é Pickering, que
descreve os princípios como “fraudulentos,” os resultados de sua aplicação como não tendo “nenhuma validade,”
e qualquer alegação em contrário como “pífia” (101). Robinson e Pierpont até que defendem a utilização dos
princípios da evidência interna, mas desde que o princípio da superioridade numérica dos manuscritos não seja
violado. Ou seja, segundo eles, os critérios internos e externos devem funcionar “de forma equilibrada e consistente
com uma metodologia confiável,” conquanto que 0 texto resultante apresente “continuidade ou existência difusa
demonstrável entre a base dos manuscritos sobreviventes.” Eles concluem: “A prática eclética moderna não consiste
numa alternativa legítima à aceitação do texto preservado pelo consenso dos manuscritos” (vii-viii).
105 Só em 2C0 1.6-7a, e.g., no espaço de dois versículos apenas, Kurt Aland encontrou 52 variantes dentro do
Texto Majoritário (“The Text of the Church,” T J 8 [1987]: 136-137).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO ו93
das probabilidades,” por si mesma ela “não será suficiente para determinar a escolha entre
leituras divergentes.”106
Há pouco ou nada, portanto, que se recomende no esforço para se reconstruir 0 texto
original do NT tão somente com base na evidência documental, ainda mais se a mera con-
tagem de manuscritos for parte integrante do método. O exame de manuscritos apenas,
mesmo que envolva considerações pormenorizadas quanto à data, procedência e relações
textuais de cada documento, não será 0 bastante para conduzir à forma autografa, embora
possa ter alguma utilidade em situações específicas. Por outro lado, talvez não haja nada
mais equivocado que decisões textuais baseadas no princípio da superioridade numérica
dos manuscritos. Probabilidade estatística, quando baseada em falsas suposições ou decor-
rente de uma visão seletiva da evidência, é inútil, além de produzir resultados desastrosos,
como é 0 caso do Texto Recebido ou mesmo 0 Texto Majoritário, seu parente mais próxi-
mo. No final, a impressão que fica é que um texto baseado na tradição bizantina não passa
de um esforço inútil para se justificar metodologicamente pressuposições de natureza te-
ológica.107 E é assim que 0 Texto Recebido continua a ter defensores, sobretudo em círcu-
los retrógrados do fundamentalismo evangélico. Do ponto de vista da história da crítica
textual, porém, ele é um caso completamente encerrado. Reabri-lo está fora de questão.
Método Eclético
107 Ou, como diz Holmes, considerando-se a extensão do papel exercido pelas pressuposições, 0 que sobra é
apenas “um texto em busca de justificativa metodológica” (“The Case for Reasoned Eclectism,” 88).
109 J. K. Elliott, “Thoroughgoing Eclecticism in New Testament Textual Criticism,” em The Text of the New Testa-
meat in Contemporary Research: Essays on the Status Quaestionis, ed. Bart D. Ehrman e Michael W. Holmes, StD 46
(Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 321.
111 J. K. Elliott, “The Case for Thoroughgoing Eclecticism,” em Rethinking New Testament Textual Criticism, ed.
David A. Black (Grand Rapids: Baker, 2002), 104.
113 Gordon D. Fee, “Rigorous or Reasoned Eclecticism — Which?” em Studies in the Theory and Method of New
Testament Textual Criticism, ed. Eldon J. Epp e Gordon D. Fee, StD 45 (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 125.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 195
evidência externa como tal é de pouca relevância.”" 5 Todas as variantes recebem 0 mesmo
tratamento, independentemente da data e procedência, e 0 texto original pode estar em
qualquer manuscrito, mesmo que seja posterior. É como se o texto original tivesse sido
fragmentado no segundo século como as peças de um quebra-cabeça, as quais foram então
espalhadas e preservadas por diferentes manuscritos, podendo reaparecer em cópias tão
tardias quanto aquelas produzidos no final da Idade Média. O resultado de tal teoria é que
leituras que satisfaçam às exigência internas podem ser escolhidas independentemente de
quão insignificante seja seu apoio documental." 6 Todavia, embora muitas variantes pos-
sam de fato ter surgido antes do ano 200, não há meio seguro de identificá-las senão por
meio de uma análise que leve em conta aspectos geográficos e cronológicos relacionados
com a produção de manuscritos. Além disso, 0 registro textual de forma alguma permite
a conclusão de que leituras deliberadas não tenham continuado a surgir nos séculos pos-
teriores. Também não há porque negar que manuscritos posteriores tenham preservado
formas extraídas de antigos manuscritos já desaparecidos, mas transformar essa possibili-
dade numa regra sem o controle da evidência documental (manuscrita, versional e patrís-
tica) é causar danos irreparáveis a uma teoria que de outra forma até que podería ser útil.
Por fim, as limitações dos princípios da evidência interna são uma constante adver-
tência contra qualquer tentativa de usá-los de maneira indiscriminada ou independente
para 0 estabelecimento definitivo do texto. Qualquer autor pode ter utilizado fontes ou
secretários. Além disso, ninguém é obrigado a manter o mesmo estilo ao longo de sua
obra, como também certas leituras variantes podem não representar nada mais que 0
esforço de um copista por preservar 0 estilo próprio do autor. Como já diziam Westcott e
Hort, “é necessário lembrar que os autores nem sempre escrevem de modo correto, claro,
consistente ou apropriado. Não raras vezes um leitor comum acharia fácil substituir uma
palavra ou frase inexpressiva ou mal-elaborada por outra melhor. Assim,” eles concluem,
“a melhor maneira de expressar o significado pretendido por um autor nem sempre será
aquela por ele utilizado.”" 7 Em sua exaustiva análise do método eclético consistente, Fee
declara que crítica textual não é uma ciência, mas se for para ser considerada pelo menos
como uma disciplina, ela deve evitar tanto a arbitrariedade quanto os caprichos individu-
ais do crítico." 8 Para isso, em que pese o valor dos princípios da evidência interna, eles
não devem ser a única base para decisões de natureza textual, especialmente em oposição
à evidência documental.*16
4 י יGeorge D. Kilpatrick, “The Greek New Testament Text of Today and the Textus Receptus,” em The New Testa-
merit in Historical and Contemporary Perspective: Essays in Memory ofG. H. C. MacGregor, ed. H. Anderson e W. Bar-
clay (Oxford: Blackwell, 1965), 190; Elliott, “Thoroughgoing Eclecticism in New Testament Textual Criticism,” 331.
" 5 Ibid.
problemas envolvidos. Mesmo os melhores textos ou grupos de textos contêm erros e vícios
escribais. Como diz Zuntz, em crítica textual “não existe nenhuma regra rígida, nenhuma
varinha mágica que poupe 0 crítico do esforço do trabalho e do pensamento .”*125
126 Em sua edição do NT grego, Westcott e Hort assinalaram com t 66 passagens que eles suspeitam envolver
algum tipo de erro primitivo, anterior às cópias existentes. As passagens são as seguintes: Mt 15.30; 21.28-31;
28.7; Mc 4.28; Lc 11.35-36; Jo 4.1; 6.4; 8.9; At 4.25; 7.46; 12.25; 13.33,42; 16.12; 19.40; 20.28; 25.13; 26.28;
Rm 1.32; 4.12; 5.6; 8.2; 13.3; 15.32; 1C0 12.2; 2C0 3.3,17; 7.8; 12.7; G1 5.1; Cl 2.2,18,23; 2Ts 1.10; lTm 4.3; 6.7;
2Tm 1.13; Fm 1.9; Hb 4.2; 10.1; 11.4,35,37; 12.11; 13.21; lPe 1.7; 3.21; 2Pe 3.10,12; 1J0 5.10; Jd 1.1,5,22-23;
Ap 1.20; 2.12,13; 3.1,7,14; 9.10; 11.3; 13.10,15,16; 18.12; 19.13. A lista fornecida por Metzger e Ehrman (229 n.
54) contém erros.
127 Veja David A. Black, “Conjectural Emendations in the Gospel of Matthew,” NovT 31 (1989): 14.
130 George D. Kilpatrick, “Conjectural Emendation in the New Testament,” em New Testament Textual Criti-
cism: Its Significance for Exegesis. Essays in Honour of Bruce M. Metzger, ed. Eldon J. Epp e Gordon D. Fee (Oxford:
Clarendon, 1981), 360.
131 O aparato crítico do NA27 registra 129 emendas conjecturais, quase todas com 0 nome dos respectivos
proponentes (Metzger e Ehrman, 230). Nem todos, porém, concordam que 0 aparato deveria servir a esse propósito
(e.g., Comfort, 381-382).
CAPÍTULO 6
De todos os textos bíblicos que apresentam problemas textuais, talvez o mais conhe-
cido, por causa de sua utilização na liturgia eclesiástica, seja Mt 6.13, que contém a parte
final do Pai-Nosso. Na tradição protestante (Texto Recebido), a oração termina com uma
solene doxologia (“pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém!”), a qual está
ausente da tradição católica. As variantes e suas respectivas testemunhas são as seguintes:
V 13
(1) πονηροί) {A}
אB D Z 0170 f 205 l 547 ita׳aur׳b׳c׳ffl׳h l vg copmeg׳bopt Diatessarãosir Orígenes
Cirilo-Jerusalémduv Gregório-Nissa Cirilo; Tertuliano Cipriano Ambrosiastro
Ambrósio Cromácio Jerônimo576Agostinho
יEm cada unidade de variação, as leituras foram separadas e enumeradas para facilitar a compreensão. Even-
tualmente, a ordem em que elas aparecem no aparato também foi alterada, embora a primeira da lista continue
sendo a forma adotada no texto, a qual é seguida (e não precedida, como no aparato) do respectivo grau de certeza.
O nome dos pais da igreja e outros termos utilizados como referência (geralmente em inglês) também foram todos
traduzidos para 0 português. Em alguns casos, informações adicionais foram extraídas de outros aparatos críticos,
como 0 do NA27, os volumes do IGNTP ou alguma obra (livro ou artigo) especializada.
200 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
Evidência externa. A evidência externa é conclusiva 0 bastante para uma decisão con-
trária a originalidade da doxologia. Os melhores representantes dos textos alexandrino
( אe B) e ocidental (D e a maioria dos antigo-latinos), além da importante f , omitem-na
em qualquer de suas formas, o mesmo acontecendo com os mais antigos comentários pa-
trísticos do Pai-Nosso, como os de Tertuliano, Orígenes e Cipriano. O primeiro manuscrito
grego a registrá-la é 0 Códice Washingtoniano, do final do quarto ou início do quinto
século. Sua ocorrência se torna comum apenas em manuscritos medievais, principalmente
bizantinos. A expansão trinitariana, que aparece em vários manuscritos, bem como na
liturgia atribuída a João Crisóstomo, é ainda mais recente e, portanto, menos provável de
representar 0 fechamento original da oração.
Tem-se argumentado que a omissão da doxologia na tradição ocidental (Antiga Latina
e Vulgata) teria sido influenciada por Marcião. O argumento é bastante complexo. Marcião
teria encurtado a versão lucana do Pai-Nosso (Lc 11.2-4), eliminando supostos elementos ju-
daicos, incluindo-se a doxologia, e isso teria afetado involuntariamente a transmissão do tex-*35
2 Além dos manuscritos de texto contínuo, 0 Pai-Nosso também aparece em diversos manuscritos menores,
possivelmente usados como amuletos ou talismãs, os quais não são incorporados na lista oficial de manuscritos do
NT (para as razões de sua omissão, veja Aland e Aland, 85). O mais antigo desses manuscritos é um fragmento de
papiro do terceiro século, contendo Mt 6.10-12 (P.Ant. II 54). O mais antigo a conter a doxologia, ou parte dela, é
do quarto século: são dois pequenos fragmentos de uma folha de papiro que originalmente deveria medir cerca de
35 x 30 cm (PSchpyen I 16). Para uma descrição desses manuscritos, veja Thomas J. Kraus, “Manuscripts with the
Lord’s Prayer: They Are More Than Simply Witnesses to That Text Itself,” em New Testament Manuscripts: Their Texts
and Their World, ed. Thomas J. Kraus e Tobias Nicklas (Leiden: Brill, 2006), 227-266.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 20 ו
to de Mateus, que também teria sido encurtado para se harmonizar com o texto mutilado de
Lucas.3 O argumento, porém, é demasiadamente especulativo e, por isso, improvável, se não
impossível. Não há qualquer evidência de que Marcião tenha, de fato, abreviado o Pai-Nosso
de Lucas; o testemunho de ip75, אe B em favor da versão mais curta é muito forte e não pode
ser ignorado. Além disso, a única evidência concreta disponível é que foi o texto de Lucas do
Pai-Nosso que sofreu influência da versão mais longa de Mateus, e não o contrário.4 Se fosse a
omissão da doxologia em Mateus que tivesse sido influenciada pelo suposto texto marcionita
de Lucas, como explicar 0 fato de que o restante do Pai-Nosso em Mateus também não o foi?5
Evidência interna. Do ponto de vista da evidência interna, é muito mais fácil explicar
a inclusão da doxologia que sua omissão: ela podería ter sido acrescentada, por exemplo,
por razões litúrgicas, talvez por causa do término aparentemente abrupto da oração (“mas
livra-nos do mal”). Tentativas de responsabilizar Marcião pela omissão da doxologia e o
encurtamento da versão lucana do Pai-Nosso são desprovidas de qualquer evidência e,
por isso, devem ser rejeitadas. Mas, mesmo que Marcião 0 tivesse feito, teria ele exercido
tamanha influência ao ponto de afetar tão drasticamente tanto a tradição manuscrita
quanto a liturgia ocidental? E se a não utilização da doxologia na liturgia ocidental tivesse
provocado sua omissão dos manuscritos latinos, como explicar o fato de que uma doxo-
logia tão apropriada para concluir 0 Pai-Nosso não foi incluída na liturgia se era original
em Mateus?6 Igualmente, o fato de que em algumas liturgias gregas a doxologia não era
repetida pela comunidade, mas apenas pelo sacerdote, não é suficiente para explicar sua
omissão de diversos manuscritos, sob a alegação de que a prática litúrgica teria feito com
que a doxologia fosse vista como não pertencendo ao texto original.7 Enfim, é necessário
muito mais esforço — e criatividade — para explicar a omissão da doxologia do texto de
Mateus, caso fosse original, que sua inclusão.
Outro argumento interno em favor da omissão da doxologia vem do texto paralelo de
Lc 11.2-4. Nesse contexto, é importante observar os muitos esforços de copistas e correto-
res no sentido de harmonizar a versão lucana do Pai-Nosso com o texto de Mateus, confor-
me evidenciado pelo aparato crítico. Não há, porém, qualquer registro de assimilação da
doxologia em Lucas.8 O fato é muito significativo e parece indicar não só a preponderância
3 Christian-Bernard Amphoux, “La revision Marcionite du ‘Notre Père’ de Luc (11,2-4) et sa place dans l’histoire
du texte,” em Recherches sur I’histoire de la Bible Latine, ed. R. Gryson e E-M. Bogaert, CRTL 19 (Louvain-la-Neuve:
Faculté de Théologie, 1987), 105-121; van Bruggen, “The Majority Text: Why Not Consider Its Exile?”, 148.
5 Joel Delobel, “The Lord’s Prayer in the Textual Tradition: A Critique of Recent Theories and Their View on
Marcion’s Role,” em The New Testament in Early Christianity, ed. Jean-Marie Sevrin, BEThL 86 (Leuven: Leuven
University Press, 1989), 301-307.
6 Ibid., 308.
7 Assim, Jakob van Bruggen , “The Lord’s Prayer and Textual Criticism,” CTJ 17 (1987): 84.
202 ANÁLISE DETEXTOS SELECIONADOS
Excurso. Duas perguntas são apropriadas e talvez valha a pena tentar respondê-las: (1)
como exatamente se originou a doxologia? e (2) como fica seu uso hoje em dia? A origem
da doxologia é incerta, mas é provável que remonte ao início do segundo século, se não
antes. A evidência do Didaquê, uma espécie de manual da igreja do final do primeiro ou
início do segundo século e talvez o mais antigo documento cristão extracanônico conhe-
cido, não é definitiva. Embora cite 0 Pai-Nosso com a doxologia (Did. 8.2), seu manuscrito
mais antigo é apenas do século onze e há sérias suspeitas de que toda a seção oito consista
num acréscimo posterior.11 De qualquer modo, não há como negar que a doxologia tenha
uma base judaica tanto na forma quanto no conteúdo e linguagem. A afirmação de que o
reino pertence somente a Deus, a exaltação de seu poder e sua glória e a esperança futura
eram temas comuns no judaísmo (cf. lCr 16.27; 29.10-13; SI 29.1; 96.7; 104.31; 145.11) e
é natural que eles acabassem de alguma forma influenciando a liturgia cristã, cujas raízes
estavam na sinagoga judaica. Na verdade, não só a doxologia mas também outras partes
8 O aparato crítico do Evangelho de Lucas preparado pelo IGNTP não registra qualquer manuscrito que adicio-
ne a doxologia a Lc 11.4.
9 Delobel, “The Lord’s Prayer in the Textual Tradition,” 293. A única dúvida que permanece é se Jesus ensinou
aos discípulos a mesma oração, em duas ocasiões e formatos diferentes, ou se uma delas corresponde mais de perto
à versão ensinada por Jesus (geralmente a de Lucas), ao passo que a outra (Mateus) seria apenas uma expansão
litúrgica (veja Matthew Black, “The Doxology to the Pater Noster with a Note on Matthew 6:13b,” em A Tribute to
Geza Vermes: Essays on Jewish and Christian Literature and History, ed. Philip R. Davies e Richard T. White, JSOTSup
100 [Sheffield: Sheffield Academic Press, 1990], 328329)־.
10 “E minha forte convicção,” declara Delobel, “de que sua [de Marcião] influência tem sido grandemente exa-
gerada e mesmo distorcida” (“The Lord’s Prayer in the Textual Tradition,” 309). Para uma completa análise textual
de Mt 6.13, veja Andrew J. Bandstra, “The Original Form of the Lord Prayer,” CTJ 16 (1981): 15-37.
11 Veja Jonathan A. Draper, “The Jesus Tradition in the Didache,” em The Didache in Modern Research, ed.
Jonathan A. Draper, AGJU 37 (Leiden: Brill, 1996), 85-86.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 203
12 Para as semelhanças entre 0 Pai-Nosso e essas orações judaicas, veja Simon J. Kistemacher, “The Lord’s Prayer
in the First Century,” JETS 21 (1978): 323-328. A maioria dos estudiosos acredita que, especialmente na primeira
estrofe do Pai-Nosso, Jesus teria adaptado uma primitiva forma do Qaddish, que veio a se tornar a principal oração
da sinagoga (Craig S. Keener, A Commentary on the Gospel of Matthew [Grand Rapids: Eerdmans, 1999], 215-216).
13 Gordon J. Bahr, “The Use of the Lord’s Prayer in the Primitive Church,” JBL 84 (1965): 158.
14 Ernest F. Scott, The Lord’s Prayer: Its Character, Purpose, and Interpretation (Nova York: Scribner, 1951), 25.
15 Bahr, 154. Veja também John Nolland, The Gospel of Matthew: A Commentary on the Greek Text, NIGTC
(Grand Rapids: Eerdmans, 2005), 285-286.
16 Joachim Gnilka, Das Matthdusevangelium, 2 vols., HTKNT (Freiburg: Herder, 1986-1988), 1:227.
204 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
grupo de manuscritos de Mateus, porém, que torna o relato ainda mais dramático, ao tra-
zer aquele que seria seu nome completo: “Jesus Barrabás.” Na verdade, o que temos aqui
é certamente um dos mais intrigantes casos de alteração escribal de todo o NT. De acordo
com o aparato crítico, cada versículo possui as seguintes variantes:
V. 16
(1) Ίησσΰν Βαραββ&ν {C}
Θ f 700* sirs׳palmss arm geo2
(2) Βαραββ&ν
אA B D L W Δ 0250 /13 33 157 180 205 565 579 597 700c 892 1006 1010
1071 1241 1243 1292 1342 1424 1505 Biz [E F G Η Σ] Lee Íta׳aur׳b,c,d,f,ff1,ff2,g1,h,
lq׳rl vg sirp'h׳palms copsa׳meg'bo eti geo1 esl (Diatessarãoarm) Orígeneslat; Jerônimo
Agostinho
V. 17
(1) Ίηοοΰν τον Βαραββ&ν {C}
(Θ 700* omitem τόν) / יsirs׳palmss arm geo2 Origeneslat mssseg0׳rigengr
(2) τόν Βαραββ&ν
B 1010 Origenes msseg 0rigeneslat
(3) Βαραββ&ν
אA D L W Δ .f 3 33 157 180 205 565 579 597 700c 892 1006 1071 1241 1243
1292 1342 1424 1505 Biz [E F G Η Σ] Lee copsa׳meg■b0 Diatessarão3™
(4) Βαραββ&ν ou τόν Βαραββ&ν
j^-a.aur, b,c, d, f, ffl, ff2, g l, h, I, q, rl y g gjj-p, h. palms gG O 1 6 s l
Evidência externa.'7 A leitura “Jesus Barrabás,” apesar de não constar nos grandes
maiúsculos do quarto e quinto séculos, parece remontar a uma data bastante antiga. Ela
já era conhecida, por exemplo, no terceiro século, o que é evidenciado por sua presença
em testemunhas como Θ, 700 e as versões armênia e georgiana. Orígenes também a co-
nhecia, embora preferisse a forma curta. Ele declara o seguinte: “Em muitas cópias não se
diz que Barrabás também era chamado Jesus’ e talvez a omissão esteja certa .”18 A seguir,
17 A análise a seguir é baseada principalmente em Léon Vaganay, An Introduction to the Textual Criticism of the
New Testament, trad. B. V Miller (Londres: Sands & Co., 1937), 193-197.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 205
Orígenes explica o motivo para desaprovar a forma “Jesus Barrabás”: não pode estar certa,
argumenta ele, porque “na gama inteira da Escritura não se acha nenhum pecador com o
19 De Orígenes também pode ser o seguinte comentário:
nome Jesus.”18
Em muitas cópias antigas que conheço, encontrei o próprio Barrabás também cha-
mado “Jesus.” Assim, a pergunta de Pilatos teria sido como segue: Τίνα θέλετε άπό
των δύο άπολΰσω ύμΐν, Ίησοΰν τον Βαραββαν η Ίησοΰν τον λεγόμενον Χριστόν;
pois aparentemente ο nome paterno do assaltante era “Barrabás,” que pode ser en-
tendido como “filho do mestre .”20
E possível, porém, que a leitura seja ainda mais antiga, devendo ter existido já no se-
gundo século, pois Orígenes declara que a conhecia de “muitas cópias antigas.” Além dis-
so, ela aparece num importante grupo de manuscritos, a Família 1, bem como na Síriaca
Sinaítica, talvez a mais antiga versão do NT.
O texto “Barrabás,” por sua vez, também remonta ao segundo século. Além de se en-
contrar nos melhores maiusculos ( אe B) e de Orígenes declarar que o conhecia de “muitas
cópias,” também é o texto das antigas versões latinas e coptas. Por isso, a evidência exter-
na não conduz a uma conclusão definitiva. E sempre importante ter em mente que, em crí-
tica textual, o número de manuscritos em favor de uma variante não é o mais importante.
Evidência interna. Se a forma correta for a breve (“Barrabás”), a forma longa (“Jesus
Barrabás”) pode ser explicada como uma alteração tanto acidental quanto intencional. No
caso de uma alteração acidental, “Jesus Barrabás” podería ter surgido de uma ditografia.
No v. 17, a palavra precedente é ύμΐν, que na antiga escrita uncial era grafada γΜ1Ν. Em
algum momento, ainda nos primórdios da transmissão manuscrita, um copista podería ter
repetido inadvertidamente 0 final da palavra, fazendo y m in in . Mais tarde, as duas letras
finais teriam recebido um traço em cima, formando in , justamente a forma contrata de
Ίησοΰν. O erro teria sido facilitado em virtude de Βαραββ&ς consistir numa espécie de
sobrenome.21
Tal explanação, embora engenhosa, não é inteiramente satisfatória. O texto longo,
“Jesus Barrabás,” também aparece no v. 16, onde não há nenhum IN antes de Βαραββάν.
Diante disso, poderia-se argumentar que um copista posterior interpolou Ίησοΰν no v. 16
para harmonizá-lo com 0 v. 17. Não é fácil, porém, explicar por que o mesmo não foi feito
19 Ibid.
20 Essa citação, que aparece à margem do maiúsculo S/028, do século dez, e de cerca de vinte manuscritos
minúsculos, é atribuída às vezes a Anastácio, bispo de Antioquia (talvez na parte final do sexto século), e às vezes
a João Crisóstomo. Ela também é atribuída (em um manuscrito) a Orígenes, que talvez seja sua fonte original
(Metzger, A T e x tu a l C o m m e n t a r y o n t h e G r e e k N e w T e s ta m e n t, 56).
21 Roderic Dunkerley parece aceitar essa explicação (“Was Barabbas Also Called Jesus?”, ET 74 [1963]:
126-127).
206 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
também nos vs. 20 e 26, onde Barrabás e Jesus são novamente mencionados em oposição.
Também é muito difícil conceber a ideia de que um texto tão intrigante tenha nascido de
um erro tão simples.
Em se tratando de uma alteração intencional, o nome “Jesus” em associação com “Bar-
rabás” podería ter derivado da tradição apócrifa.22 Ele podería já ter sido incluído direta-
mente no texto de Mateus por um escriba que conhecia a tradição ou, quem sabe, ter sido
anotado à margem de algum manuscrito, sendo então incorporado ao texto em alguma
cópia posterior. Esse era um típico erro escribal. Diversas variantes se originaram dessa
forma. O problema é que não se conhece um único livro apócrifo que possa dar sustenta-
ção a essa hipótese.23
Para os que preferem o texto mais longo (“Jesus Barrabás”), a forma “Barrabás” tam-
bém é explicada como uma alteração tanto acidental quanto intencional. Streeter, por
exemplo, acredita que a alteração tenha sido acidental: uma haplografia. O copista, lendo
YM1N1N no v. 17, por descuido teria escrito ymin, fazendo com que o nome “Jesus” desapa-
recesse do texto .24 Essa explicação, no entanto, também é difícil de ser aceita, porque 0
copista dificilmente deixaria de ver o traço sobre o in final. Além disso, ela não explica 0
v. 16, onde a omissão de “Jesus” não pode ser haplográfica.
Se, porém, uma alteração intencional ocorreu, a supressão de “Jesus” antes de “Bar-
rabás” podería ser explicada de duas formas: (1) o desejo de harmonizar Mateus com os
demais Evangelhos,25 o que sempre era uma grande tentação para qualquer copista, ou,
mais provavelmente, (2) uma demonstração de reverência para com o nome “Jesus.” A
postura do próprio Orígenes é significativa e indica como vários escribas e corretores
podem ter reagido diante do problema. Ao sugerir que o “Jesus” do texto longo consistia
numa adição feita por hereges, já que tal nome não poderia pertencer a uma pessoa
iníqua, ele não fez outra coisa senão apenas expressar um sentimento de profunda
devoção e respeito. A mesma atitude parece estar por detrás da mudança em algumas
tradições siríacas (Efraim e sirp) do nome do mágico em At 13.6 de “Bar-Jesus” para
“Bar-Shema” (“Filho do Nome”). “Jesus” (heb., Yeshua), porém, era um nome bastante
comum na Palestina do primeiro século e certamente não havia nenhuma distinção
moral associada a ele .26 O mesmo Orígenes, no entanto, não se mostra muito satisfei-
22 Assim, M.-J. Lagrange, Évangile selon Saint Matthieu, EtB (Paris: Gablada, 1923), 520-521. Veja também 0
comentário de Mt 27.16 emABíblia de Jerusalém.
23 John E Meier também acredita que a forma longa seja um alteração intencional, mas a explicação é ainda
menos convincente: ela teria resultado, diz ele, do desejo de algum copista de acentuar 0 paralelo entre Jesus e
Barrabás (Matthew [Collegeville: Liturgical, 1990], 341).
24 Streeter, 136.
25 Veja W. D. Davies e Dale C. Allison, Jr., A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to Saint
Matthew, 3 vols., ICC (Edimburgo: T&T Clark, 1988-1997), 3:584 n. 20.
26 O NT menciona apenas mais um ‘Jesus,” que foi companheiro de Paulo em Roma (Cl 4.11), mas o índice de
Josefo lista nada menos que 21, metade deles do primeiro século.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 207
to com sua tese e prefere encontrar no texto longo o que chamou de “mistério .”27 De
qualquer modo, a sensibilidade que o nome “Jesus” despertava na igreja primitiva torna
absolutamente improvável que ele teria sido acrescentado ao texto caso já não estivesse
originariamente lá.
Tem-se argumentado que “Jesus Barrabás” nos vs. 16-17 não pode ser original, do
contrário ele também estaria presente nos vs. 20 e 26, que mencionam apenas “Barra-
bás .”28 Os dois casos, porém, são diferentes. Nos vs. 20 e 26, o texto de Mateus segue o
de Marcos bem de perto (cf. Mc 15.11,15), enquanto nos vs. 16-17 e seguintes deixa-o,
especialmente no v. 19, ao introduzir 0 relato único acerca da mulher de Pilatos.29 Não
há nada de extraordinário, portanto, que em tal contexto Mateus acrescentasse alguma
nova informação sobre Barrabás, e também não seria esta a primeira vez em que ele esta-
ria sendo mais preciso na menção de um nome próprio (veja Mt 9.9; 26.3,57). Além disso,
é importante salientar que a forma τον Βαραββ&ν nos manuscritos B e 1010 parece pres-
supor a presença de Ίησοΰν em algum manuscrito anterior e que a própria pergunta de Pi-
latos sugere que os dois personagens tinham o mesmo nome: 0 adendo “chamado Cristo,”
também utilizado no v. 22 , não teria muito sentido se os dois nomes fossem diferentes.30
Por fim, deve ser lembrado que se a tradição evangélica preserva o nome de Barrabás, en-
quanto perde de vista 0 nome dos outros dois ladrões, talvez seja porque originariamente
ele oferecia um paralelo explícito ao nome de Jesus.31
28 S. G. F. Brandon, The Fall of Jerusalem and the Christian Church: A Study of the Effects of the Jewish Overthrow
ofAD. 70 on Christianity (Londres: SPCK, 1957), 246.
29 Veja Donald A. Hagner, Matthew, 2 vols., WBC 33 (Dallas: Word, 1993-1995), 2:821.
30 “Jesus chamado Cristo’ (vs. 17,22) sugere um Jesus não chamado Cristo” (Davies e Allison, 3:584 η. 20).
31 Os nomes “Dimas” e “Gestas” são atribuídos aos outros dois ladrões crucificados com Jesus unicamente na
tradição apócrifa, no chamado Evangelho de Nicodemos (1:10).
32 Segundo Metzger, isso explica os colchetes utilizados no texto (A Textual Commentary on the Greek New
Testament, 56).
33 Veja Raymond E. Brown, The Death of the Messiah: A Commentary on the Passion Narratives in the Four Gos-
pels, 2 vols., ABEL (Nova York: Doubleday, 1994), 1:798-799.
208 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
V. 8
(1) Omitem os vs. 9-20 {A}
אB 304 sir5 copsams armmss geo1׳AEusébio mss5eg·Eusébi° Epifânio1/2 Hesíquio
mss5eg Sever0; Jerônimo mssse9׳Jerônirn0
(2) Acrescentam os vs. 9-20 com notas ou sinais críticos
f 22 138 205 1110 1210 1221 1582 e outros
(3) Acrescentam os vs. 9-20
A C D (W com uma longa adição [depois do v. 14]) Δ Θ f 3 28 33 157 180 565
597 700 892 1006 1010 1071 1241 1243 1292 1342 1424 1505 2427 Biz [E G
(G defeituoso) Σ] Lee itaur-d-dsup, ff2,1,n, °,q Vg sjjí.p.h.pal COpbo,fai armmss etjpp geQBegJ
(eslms acrescenta apenas 16.9-11) Irineulat mss5e9 Euséb'°Astériovid Constituições
Apostólicas Dídimoduv Epifânio172 Marcos-Eremita Severiano Nestório mssseg■
Sever0; Rebatismo Ambrósio msssegJerônim0 Agostinho
(4) Acrescenta a pequena conclusão
itk
(5) Acrescenta a pequena conclusão e os vs. 9-20
L Ψ 083 099 0112, 274mg 579 11602 sirhm» Copsamss׳bomss etimss׳TH
O término de Marcos como 0 conhecemos (vs. 9-20) é o que aparece na grande maioria
dos manuscritos (carca de 95% deles). Alguns manuscritos trazem-no com sinais ou comen-
tários críticos, que eram recursos utilizados sempre que havia suspeitas quanto à credibilida-
de do texto. O Códice Washingtoniano é o único a trazer o seguinte relato logo após 0 v. 14:
E eles se desculparam dizendo: Esta era de impiedade e incredulidade está sob 0 do-
mínio de Satanás, que não permite que a verdade e 0 poder de Deus prevaleçam sobre as
imundícias dos espíritos [ou “não permite que o que jaz sob os espíritos imundos entenda
a verdade e 0 poder de Deus”]. Por isso, revela agora a tua justiça — assim disseram a
Cristo. E Cristo lhes replicou: O limite de tempo do poder de Satanás está cumprido, mas
outras coisas terríveis se aproximam. Pelos que pecaram eu fui entregue à morte, para que
retornem à verdade e não pequem mais, a fim de que possam herdar a glória espiritual e
incorruptível da justiça que está no Céu.34
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 209
35 Observe que o NTG4 insere a pequena conclusão (entre colchetes duplos) antes da longa conclusão, também
entre colchetes duplos.
36 Há indicações de que o Códice Bobiense, o mais importante manuscrito latino do texto ocidental, foi copiado
de um papiro do segundo século (Metzger e Ehrman, 102).
210 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
Taciano (Diatessarão).37 Ou seja, os pais da igreja mais antigos que não conheciam a passa-
gem são muito mais representativos que aqueles que a conheciam.
No início do quarto século, Eusébio de Cesareia declara que “quase todas” e as mais
“exatas” cópias de Marcos omitiam os vs. 9-20.38 Por isso, na forma original de suas fa-
mosas tabelas ou cânones, não fez nenhuma provisão de seções numeradas do texto de
Marcos após 16.8. Jerônimo, à semelhança de Eusébio, também declara que a maioria dos
manuscritos de Marcos omitiam os vs. 9-20 e que, dentre os poucos que os continham,
nenhum era grego.39 Isso talvez explique o fato de ele nunca ter citado qualquer um desses
versículos em seus escritos, embora tenha sido o responsável por sua fixação na tradição
textual católica, ao inseri-los na Vulgata.40 De fato, não se conhece um único manuscrito
grego anterior à época de Jerônimo que contenha o referido texto. O mais antigo manus-
crito a trazê-lo, o Códice Alexandrino, é do quinto século e seu tipo de texto nos Evange-
lhos não é outro senão o bizantino, que a rigor é o mesmo que se perpetuou na tradição
protestante por meio do Texto Recebido. E foi justamente a partir do quinto século que o
uso desses versículos começou a se tornar mais frequente, como o demonstram os escritos
de Afraates, Ambrósio, Crisóstomo, Epifânio, Dídimo e Marcos, o Eremita.
Por fim, como declara Metzger, 0 testemunho em favor da chamada pequena conclu-
são consiste em evidência adicional em favor da omissão dos vs. 9-20, pois ninguém que,
precisando concluir o Evangelho, tivesse à disposição uma passagem tão rica em material
histórico, tê-la-ia deliberadamente substituído por três ou quatro linhas de um sumário
generalizado e descolorido.41 A evidência documental em apoio à pequena conclusão, por-
tanto, deve ser acrescentada à evidência em favor do término em 16.8.
Evidência interna. A pequena e a longa conclusões de Marcos também devem ser con-
sideradas como secundárias com base no critério da evidência interna. A pequena con-
clusão, conquanto se vincule muito melhor ao v. 8, contém elevado índice de palavras
37 Não se pode afirmar se Justino Mártir conhecia os vs. 9-20. Em I Apol. 1.45, aparecem apenas cinco palavras
que ocorrem no v. 20 numa sequência diferente (τού λόγον τού ισχυρού ôv από ’Ιερουσαλήμ οί απόστολοι αυτού
έξελθόντες πανταχοΰ έκήρυξαν). Talvez seja importante salientar que Justino nunca se refere a Marcos nessa seção
de sua obra.
40 Embora nunca cite os vs. 9-20, Jerônimo demonstra conhecer, pelo menos em parte, a longa adição que
aparece no Códice Washingtoniano após 0 v. 14 [Pelag. 2.15). Na verdade, até a descoberta desse manuscrito, em
1906, Jerônimo era a única evidência para a existência dessa adição, que também pode seguramente ser descartada
como um acréscimo posterior ao texto. Além da pobreza documental, ela contém várias palavras e expressões estra-
nhas a Marcos (incluindo-se ό αιών ουτος (“esta era”), αμαρτάνω (“pecar”), άνομία (“impiedade”), αποκαλύπτω
(“revelar”), άπολογέω (“desculpar-se”) e υποστρέφω (“retornar”), e outras que não ocorrem nenhuma outra vez
no NT, como δεινός (“terrível”), όρος (“limite”) e προσλέγω (“replicar”). A adição toda, que pode ter sido inspirada
em At 26.18, tem “um inequívoco e intenso sabor apócrifo” (Metzger e Ehrman, 323) e provavelmente foi obra de
algum escriba do segundo ou terceiro século interessado em suavizar a severa condenação aos discípulos no v. 14.
42 “Quanto à origem desse término,” declara Henry B. Swete, “não há nenhuma dúvida de que ele foi escrito
por alguém cuja cópia do Evangelho terminava em έφοβοΰντο γάρ, e que desejava amenizar a rispidez de uma
conclusão tão abrupta e, ao mesmo tempo, remover a impressão de fracasso da parte de Maria Madalena e suas
amigas em entregar a mensagem da qual haviam sido incumbidas. Amedrontadas como estavam, elas se recupe-
raram 0 suficiente para relatar a Pedro a substância das palavras do anjo. Depois disso, 0 Senhor mesmo apareceu
aos apóstolos e ordenou-lhes que levassem 0 evangelho de leste a oeste, 0 que, com Sua ajuda, eles 0 fizeram” (The
Gospel according to St. Mark [Londres: Macmillan, 1898], ci).
44 Para informação adicional, veja Elliott, New Testament Textual Criticism, 253-274.
45 Em Lc 10.19, Jesus fala em pisar em serpentes (e escorpiões), não pegar em serpentes. De qualquer for-
ma, a promessa em Lucas é simbólica e tem que ver com a autoridade dos discípulos sobre os poderes satânicos
(cf. Lc 19.18-20), e não com serpentes literais (Sydney Η. T. Page, Powers of Evil: A Biblical Study of Satan and
Demons [Grand Rapids: Baker, 1995], 111).
212 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
0 beber veneno (v. 18), com a diferença de que essa promessa é completamente estranha ao
ensino ou a prática neotestamentária como um todo.46
Além disso, é importante averiguar a probabilidade transcricional da passagem. Ou
seja, determinar 0 que é mais provável que os escribas fariam, omitir os vs. 9-20, caso
fossem originais, ou acrescentá-los ao texto, caso este terminasse em 16.8. Até o momento,
os esforços por justificar a omissão intencional desses versículos têm falhado em apre-
sentar um único argumento sequer que seja, de fato, aceitável. William R. Farmer, que
elaborou aquela que talvez seja a mais completa defesa dos vs. 9-20 já publicada, sugere
que a omissão teria sido devida a dois fatores: a aparente discrepância entre 0 v. 9 e as in-
formações encontradas nos demais Evangelhos quanto ao tempo da ressurreição de Jesus
e a insatisfação de alguns cristãos com o pegar em serpentes e o beber veneno do v. 18.47
Mas, não há nada discrepante no v. 9. Tanto Lucas (24.1) quanto João (20.1) confirmam
que Jesus ressuscitou dentre os mortos na madrugada do primeiro dia da semana. O único
que parece dizer algo diferente é Mateus (28.1), mas a diferença logo desaparece se ό־ψέ
é tratada como uma preposição (“depois de”) e έπιφώσκω como o momento em que o dia
começa a clarear (“Depois do sábado, ao amanhecer o primeiro dia da semana...”).48 O
segundo argumento também não faz muito sentido. Mesmo que alguém ficasse incomoda-
do com os vs. 17-18, ou quem sabe com toda a segunda metade da passagem (vs. 15-20),
como explicar a omissão conjunta dos vs. 9-14? O natural seria que apenas os versículos
supostamente ofensivos fossem deletados, ao passo que os demais fossem mantidos no
texto, ainda mais diante do evidente desconforto criado pelo término em 16.8. A fragili-
dade do argumento, porém, fica ainda mais patente diante da evidência patrística. Como
o próprio Farmer observa, os pais da igreja aludem à segunda metade da passagem muito
mais frequentemente que à primeira. São pelo menos dez citações ou alusões aos vs. 15-20
entre 0 segundo e quinto séculos contra nenhuma sequer aos vs. 9-14 no período anterior
ao quarto século.49
Não parece haver, portanto, nenhuma boa razão pela qual escribas primitivos teriam
omitido Mc 16.9-20 de suas cópias do Evangelho. Isso reforça a conclusão de que a passa-
gem dificilmente teria saído da pena de Marcos, sendo bem mais provável que tenha sido
acrescentada posteriormente por alguém que achou o término em 16.8 abrupto demais ou
então incompleto. E verdade que algumas das anomalias acima citadas, principalmente
estilísticas e léxicas, também existem em outras partes do Evangelho, mas elas não são
tão diversificadas, não estão concentradas numa única passagem e nem são tão intensas
como nos vs. 9-20. Ou seja, não há em todo 0 livro de Marcos nenhuma passagem que se
46 O primeiro relato dessa natureza na literatura cristã é 0 de Papias acerca de Justo Barsabás (Eusébio, Hist,
eccl 3.39.9), o candidato a apóstolo que foi preterido quando da escolha de Matias (At 1.23).
47 William R. Farmer, The Last Twelve Verses of Mark (Londres: Cambridge University Press, 1974), 21-22, 65-72.
49 Fanner, 31-36.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 213
50 Daniel B. Wallace, “Mark 16:8 as the Conclusion to the Second Gospel,” em Perspectives on the Ending of
Mark: Four Views, ed. David A. Black (Nashville: B&H Academic, 2008), 30-31.
51 Veja esp. Matthijs J. de Jong, “Mark 16:8 as a Satisfying Ending to the Gospel,” em Jesus, Paul, and Early
Christianity: Studies in Honour ofHenk Jan de Jonge, ed. R. Buitenwerf, H. W. Hollander e J. Tromp, NovTSup 130
(Leiden: Brill, 2008), 123-149.
52 Talvez haja também uma evidência externa. O Códice Vaticano termina Mc 16.8 na segunda coluna da pági-
na (31a. linha) e, depois de um espaço em branco, vem a subscrição Κατά Μάρκον. Mas, ao contrário do que faz ao
final de outros livros, 0 manuscrito não começa Lucas na terceira coluna; esta permanece em branco e Lucas começa
apenas na página seguinte. O espaço em branco, que é grande demais para a pequena conclusão e pequeno demais
para a longa conclusão, talvez indique consciência do escriba de que alguma coisa estava faltando (veja Joseph Hug,
La finale VÉvangile de Marc (Mc 16.9-20), EtB [Paris: Gabalda, 1978], 190).
53 A tese de que em toda a literatura grega não existiría um único livro sequer que termine com γάρ (Metzger
e Ehrman, 326) já foi satisfatoriamente respondida por E W. van der Horst, “Can a Book End with γάρ? A Note on
Mark 16:8,” JTS 23 (1972): 121-124. Veja também Kelly R. Iverson, “A Further Word on Final γάρ (Mark 16:8),”
CBQ 68 (2006): 79-94.
54 Para as diversas hipóteses e seus respectivos proponentes, veja John C. Thomas, “A Reconsideration of the
Ending of Mark,” JETS 26 (1983): 412-418.
214 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
Evangelho a ser escrito, o que teria despertado grande interesse por ele, fazendo com que
fosse lido e manuseado ao ponto de sofrer sério desgaste, o que teria se refletido nas cópias
posteriores. Também tem sido sugerido que, ao serem publicados os Evangelhos de Mateus
e Lucas, com mais detalhes e um estilo superior ao de Marcos, este podería ter sofrido um
eclipse de popularidade por algum tempo, até que os três Evangelhos fossem reunidos
num único códice. Nas cópias que se seguiram, alguns escribas teriam se contentado em
reproduzir apenas 0 material preservado, enquanto outros teriam optado por acrescentar
uma conclusão mais definida, com informações baseadas quase que inteiramente nos de-
mais Evangelhos e o Livro de Atos,5556 e essa foi a conclusão que acabou fazendo parte da
maioria das cópias futuras.
Tendo ou não sido realmente assim, não há dúvida de que os vs. 9-20 foram acrescen-
tados a Marcos já na primeira metade do segundo século, provavelmente na Ásia Menor,
sendo a seguir levados para Roma e Síria, onde foram incorporados respectivamente em
manuscritos latinos e siríacos. Há um lecionário armênio datado do ano 989, mas aparen-
tando ser cópia de um manuscrito muito antigo, que, entre Mc 16.8 e os vs. 9-20, tem um
espaço equivalente a duas linhas, nas quais aparece em tinta vermelha a inscrição: Ariston
eritsou (“do presbítero Ariston”), que alguns têm pensado se tratar de Aristion, contem-
porâneo de Papias e do apóstolo João, no início do segundo século.57 Bem poucos, porém,
consideram essa nota historicamente confiável.58 De qualquer forma, essa foi a conclusão
que predominou em praticamente toda a Idade Média, vindo a fazer parte do Texto Rece-
bido e, por conseguinte, da tradição protestante.
55 Para N. Clayton Cray, não foi apenas a conclusão original de Marcos que se perdeu, mas também sua intro-
dução (The Mutilation of Mark’s Gospel [Nashville: Abingdon, 2003]).
56 Darrell L. Bock sugere as seguintes conexões: vs. 9-11, 0 papel de Maria Madalena: Mt 28.9 e Jo 20;
vs. 12-13: Lc 24.13-35; v. 14, 0 papel dos onze: em todos os Evangelhos, mas esp. em Lc 24.36-37; v. 15, pregar
e batizar na mesma ordem que em Mt 28.19; v. 17, sinais: At 2,10,19 e Hb 2.3-4; v. 18, sobreviver a picadas de
serpentes: At 28.1-6; v. 19, ascensão: Lc 24.49-53 e At 1.9-11; v. 20, sinais: igual ao v. 17 (“The Ending of Mark:
A Response to the Essays,” em Perspectives on the Ending of Mark: Four Views, ed. David A. Black [Nashville: B&H
Academic, 2008], 133-134).
58 Veja Kurt Aland, “Bemerkungen zum Schluss des Markusevangeliums,” em Neotestamentica et semitica:
Studies in Honour of Matthew Black, ed. E. Earle Ellis e Max Wilcox (Edimburgo: T&T Clark, 1969), 172.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 215
textual do Evangelho, decidiram manter ambas no texto, embora entre colchetes duplos,
indicando assim seu caráter secundário.
A diferença na segunda parte de Lc 2.14 entre as versões ARC (“paz na terra, boa von-
tade para com os homens”) e ARA (“paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem”)
não é apenas de natureza exegética, mas sobretudo crítico-textual. O problema diz respei-
to a uma única letra, embora capaz de alterar completamente a sintaxe e 0 significado do
texto: ao passo que alguns manuscritos trazem o nominativo ευδοκία, de onde a leitura
tradicional da ARC (Texto Recebido), outros trazem o genitivo ευδοκίας, que se reflete na
ARA e em várias outras traduções modernas. Qual é a forma correta? As variantes e suas
respectivas testemunhas são as seguintes:
V. 14
(1) εν άνθρώποις ευδοκίας {A}
* אA B* D W itd vgww5׳t copsa Orígenes912131׳5 ׳Cirilo-Jerusalém; Gaudêncio;
Jeronimo415 ׳Agostinho241׳
(2) άνθρώποις ευδοκίας [hominibus bonae voluntatis]
372 ita׳aur-b׳b-c·e׳f( ׳ff2>'־ ׳n׳rl vg*11 Irineulat Orígenes131Atanásio131; Hilário Ambrosiastro
Ambrósio Cromácio Jerônimo1115 ׳Agostinho3941׳
(3) έν άνθρώποις ευδοκία
2 אΒ2 L Δ Θ Ξ Ψ 0233״id f / 1006 892 700 597 579 565 205 180 157 28 3י
1010 1071 1241 1243 1292 1342 1424 1505 Biz [E G H P] Lee sih>almss (sir931™5
ευδοκία σου) copb0 arm eti geo esl Orígenes25 ׳Ps-Gregório-Taumaturgo
Eusébio Ps-Atanásio Constituições Apostólicas Dídimo Filo-Carpasia Epifânio
Severiano Crisóstomo Marcos-Eremita Paulo-Edessa Cirilo Proclo
Teódoto-Ancira Hesíquio Teodoreto
(4) και έν άνθρώποις ευδοκία
Sjr(s),(p),h orígenes15׳
Embora o aparato crítico do NTG4 registre quatro variantes, elas na verdade se resumem
a apenas duas principais: a que traz 0 genitivo ευδοκίας e a que consigna o nominativo
ευδοκία; as demais diferenças são secundárias e não alteram em praticamente nada a tradu-
ção.59
60 A leitura que se popularizou mediante o Texto Recebido (“paz na terra, boa vontade
59 Também é importante que se diga, como salienta Bock, que boa parte daquilo que é ensinado nos vs. 9-20 é
ensinado em outras partes do NT. “Esta observação é importante,” Bock acrescenta, “porque significa que a presença
ou ausência deste texto não altera de forma alguma a essência do ensino cristão” (125).
60 A var. 2 acima reproduz os textos grego e latino, como aparecem respectivamente no GNTS e 0 NTG4.
216 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
para com os homens”) conta com um grande número de testemunhas, tanto em manuscritos
gregos quanto em versões e pais da igreja. Já a leitura alternativa (“paz na terra entre os
homens, a quem ele quer bem”) conta principalmente com 0 apoio dos Códices Sinaítico e
Vaticano, em sua leitura original, conforme indicado pelos asteriscos. Algumas testemunhas
versionais e patrísticas trazem ainda outra leitura — “paz na Terra e boa esperança para os
homens” — mas, são poucas e tardias,61 não tendo a mínima chance de representar a forma
original.
Evidência externa. Como pode ser visto, os melhores manuscritos gregos dos textos
alexandrino ( אe B) e ocidental (D e W) são acompanhados por importantes versões (a
copto-saídica e vários códices antigo-latinos) e evidências patrísticas tanto gregas (como
Orígenes e Cirilo de Jerusalém) e quanto latinas (Jerônimo, Agostinho e vários outros)
no apoio a εύδοκίας. Isso demonstra que a leitura era amplamente difundida tanto no
ocidente quanto no Alto Egito e Palestina desde a primeira metade do segundo século. Por
outro lado, a forma nominativa também era amplamente conhecida na Síria (as versões
siríacas), nos arredores do Delta do Nilo, no Egito (a versão copto-boaírica), e em Cesareia
(Θ, Orígenes e Eusébio), igualmente datando de uma época tão primitiva quanto a metade
do segundo século.
Apesar de ambas as leituras serem bastante antigas, a evidência externa, pela com-
binação dos manuscritos א, B, W, D e da antiga tradição latina, favorece sensivelmente
o caso genitivo. As correções posteriores nos Códices Sinaítico e Vaticano (2 אe B2) jun-
tamente sugerem que o desenvolvimento do texto só poderia ter sido de ευδοκίας para
ευδοκία e não o contrário.
62 Veja Ross S. Kilpatrick, “The Greek Syntax of Luke 2:14,” NTS 34 (1988): 472-475.
63 Por volta do quarto século, Lc 2.14 se tomou uma espécie de introdução ou prelúdio de um hino de louvor
bem mais extenso utilizado nos serviços tanto gregos quanto latinos, 0 Gloria in exceisis Deo, como ficou conhecido
na tradição ocidental (veja Birger Olsson, “The Canticle of the Heavenly Host [Luke 2:14] in History and Culture,”
NTS 50 [2004]: 158).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 217
lunar, a antiga forma do sigma maiusculo, não sendo nada difícil ele passar despercebido
(EY/\OKIAc).64 E, como não impedisse a compreensão do texto, embora lhe mudasse o
sentido, o erro pode ter continuado nas cópias seguintes.
Também é importante observar que, no NT, o substantivo εύδοκία quase nunca é as-
sociado a uma qualidade moral, quer divina, quer humana, embora esse talvez seja seu
significado em Rm 10.1 e Fp 1.15.65 Seu uso regular é para designar a “boa vontade” ou o
“propósito” salvífico de Deus, isto é, sua livre e graciosa determinação de salvar pecado-
res (veja Mt 11.26; Lc 10.21; Ef 1.5,9; Fp 2.13; 2Ts 1.11). A presença de ειρήνη em Lc 2.14
sugere que 0 mesmo acontece ali. Os anjos louvam a Deus em virtude do nascimento de
Jesus, cujo efeito para os homens na terra não é outro senão paz, que, de acordo com o AT,
consiste num resumo de todas as bênçãos associadas à vinda do Messias (Is 9.5-6; 52.7;
Mq 5.4; cf. At 10.36). Além disso, a construção άνθρώποις ευδοκία levanta também um
sério problema teológico, por causa da sugestão implícita de mérito humano, como se a
paz de Deus estivesse disponível somente aos homens de boa vontade.66
No coro angélico, portanto, tudo indica que existem apenas dois versos ligados pela
conjunção καί: Δόξα έν ύψίστοις θεφ καί επί γης ειρήνη έν άνθρώποις ευδοκίας, sendo
que os três primeiros elementos em cada verso estão em paralelo (δόξα com ειρήνη; έν
ύψίστοις com επί γης; θεφ com έν άνθρώποις), enquanto ευδοκίας explicaria ο porquê
da afirmação contida no segundo verso. A linguagem é muito difícil visto que não há
qualquer artigo definido ou verbo para controlar a sintaxe,67 mas o sentido parece ser que,
com o nascimento do Salvador, a paz de Deus estava sendo oferecida a todos aqueles sobre
os quais repousa o seu favor. A expressão “homens da boa vontade [de Deus],” embora
estranha, é na verdade um idiomatismo hebraico com equivalentes em diversos hinos en-
contrados nos manuscritos do Mar Morto, como por exemplo: “os filhos da sua [de Deus]
boa vontade” (1QH4.32-33; 11.9), “os eleitos da sua [de Deus] boa vontade” (1QH8.6, 10;
9.23)68 e, mais próximo ainda da construção de Lucas, “os homens da [sua/de Deus] boa
vontade” (4Q416.81).69 Em Qumran, a expressão contém um sufixo pronominal que deixa
claro que a “boa vontade” em questão é de Deus e não do homem, o que já não acontece
com o grego de Lucas. Fitzmyer, porém, chama a atenção para o fato de que foi assim que
64 O mesmo podería ocorrer com outras letras, sempre que 0 escriba quisesse manter a margem direita tão
uniforme quanto possível. Para exemplos, veja Metzger, Manuscripts of the Greek Bible, 75, 79, 81.
66 I. Howard Marshall, The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text, NIGTC (Grand Rapids: Eerdmans,
1978j, 112.
67 Veja John Nolland, Luke, 3 vols. WBC 35 (Nashville: Nelson, 1989-1993), 1:102-103, 108.
68 Ernest Vogt, “Peace among Men of God’s Good Pleasure,” em The Scrolls and the New Testament, ed. Krister
Stendahl (Londres: SCM, 1957), 114-117; Joseph A. Fitzmyer, ‘“Peace upon Earth among Men of His Good Will’ (Lk
2:14),” em Essays on the Semitic Background of the New Testament (Londres: Chapman, 1971), 101-104.
69 Al Wolters, “ANTHROPOIEUDOKIAS (Luke 2:14) and ’N SYRS WN (4Q416),” JBL 113 (1994): 291-292.
218 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
Lucas foi interpretado e traduzido pela versão copto-saídica: “paz na terra entre homens
da sua [de Deus] boa vontade.”70
Conclusão. O nominativo ευδοκία, portanto, deve ser reputado como secundário. Tanto
a evidência documental quanto as considerações transcricionais, linguísticas e teológicas
da evidência interna favorecem o genitivo ευδοκίας, que deve ser interpretado como se
referindo à boa vontade (salvífica) de Deus e não dos homens. A expressão consiste num
idiomatismo hebraico traduzido mais ou menos literalmente para 0 grego, 0 que explica
sua sintaxe confusa, difícil de se compreender para alguém não familiarizado com a lín-
gua hebraica.
Vs. 3b-4
(1) Omitem os vs. 3b-4 {A}
לץ66 ׳75 אB C* T 0125 0141 157 itq (sih) copsa׳pb0׳bopt'acm2 Cirilo-Jerusalém
(Anfilóquio) Ps-Anfilóquio
(2) Incluem o v. 3b apenas
Ac D W s ״p 33 itd׳f■1vgww׳st arm geo
(3) Incluem 0 v. 4 apenas
A* L copbopt Dídimoduv; Tertuliano Hilário Ambrósio
70 Fitzmyer, ‘“Peace upon Earth among Men of His Good Will’ (Lk 2:14),” 102.
71 O nome do tanque também é problemático, pois ele aparece de diversas formas nos manuscritos: Βηθζαθά,
Βηζαθά, Βελζεθά, Βηθσαι?δά, Βηδσαι?δά, Βηδσαί?δάν, Βησσαί?δά e Βηθεσδά (veja ο aparato crítico de Jo 5.2).
Βηθζαθά é a leitura preferida pelos editores do NTG4, que consideram a tradicional Βηθεσδά, principalmente em
virtude de sua atestação tardia, uma alteração escribal originalmente introduzida por causa do simbolismo do
nome, que em aramaico significa “Casa da Misericórdia” (veja Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Tes-
tament, 178-179). O Rolo de Cobre (3Q15), descoberto em Qumran em 1952, é às vezes citado em apoio ao nome
“Betesda” (e.g., D. A. Carson, The Gospel according to John, PNTC [Grand Rapids: Eerdmans, 1991], 241). A evi-
dência, porém, tem sido reavaliada e se argumenta agora que 0 rolo estaria apenas fazendo referência a algum tipo
de instalação com dois reservatórios, mas sem qualquer identificação ou nome próprio (veja Reinhart Ceulemans,
“The Name of the Pool in Jo 5.2: A Text-Critical Note Concerning 3Q15,” ZNW 99 [2008]: 112-115). Na presente
análise, optou-se por chamar 0 tanque de “Betesda” apenas em função da familiaridade com o nome, sem que isso
implique numa decisão de caráter crítico-textual.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 219
72 Gordon D. Fee sugere que os dois textos (v. 3b e v. 4) surgiram independentemente um do outro e assim
existiram por algum tempo até serem juntados, formando uma única passagem (“On the Inauthenticity of John
5:3b-4,” E Q 54 [1982]: 208).
73 Observe que a ARA juntou a parte final do v. 3 ao v. 4 e incluiu toda a expansão entre colchetes.
220 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
καιρόν (“de vez em quando”), έμβαίνω (com o sentido de “entrar” na água ou no tanque),
κατέχω (“ter”), ταραχή (“agitação”), κίνησις (“movimento”), δήποτε (“qualquer”) e νόσημα
(“doença”), sendo que os quatro últimos ocorrem somente aqui em todo 0 NT.74 Mas, há
também dificuldades teológicas com relação aos fatos mencionados nesses versículos e, por
conseguinte, sua inclusão no texto original do Evangelho. O v. 4 sugere que as “curas” em
Betesda era demasiadamente seletivas, além de descontínuas, o que parece não correspon-
der com a maneira como Deus e suas ações são retratados nas Escrituras. Se aceitarmos a
autenticidade do relato, então teremos de admitir que quanto mais egoísta, determinado e
forte fosse um homem, mais provável era que chegasse primeiro à água, atropelando assim
os mais fracos e impedindo justamente os mais necessitados de alcançar a cura.
Além disso, é importante destacar que é impossível que esse material tenha sido acres-
centado ou omitido por acidente. Como declara Fee, “ele foi intencionalmente deletado ou
intencionalmente inserido.”75 Nesse caso, por que motivo teria ele sido deletado? Argumenta-
-se às vezes que a omissão teria sido uma reação dos escribas alexandrinos ao que podia ser
considerado como um “vestígio de paganismo,”76 por causa do estranho sistema de curas de
Betesda. A explicação, porém, é falha porque, em primeiro lugar, ela faria sentido apenas
em relação ao v. 4, mas não ao v. 3b, cuja informação “esperando o movimento da água”
seria muito útil para a compreensão do v. 7. Além disso, se os vs. 3b-4 fossem originais, por
que alguém deletaria apenas o v. 3b (var. 3)? A verdade é que é bem mais simples entender
a inclusão total ou parcial dessa passagem (vars. 2-5) a partir da variante 1 que sua omissão
total ou parcial a partir da variante 4. A inclusão podería ter decorrido, por exemplo, de
alguma nota marginal destinada a explicar o v. 7, atribuindo a agitação das águas à visita
periódica de um anjo.77 Assim, a ideia de que o primeiro que descesse, depois de agitadas as
águas, ficava curado não representa necessariamente a convicção de João, muito menos o
ensino do Evangelho, mas apenas a opinião implícita do paralítico, o que podia muito bem
retratar alguma crença popular. Em segundo lugar, 0 argumento da omissão intencional por
causa de eventuais desconfortos gerados pelo relato carece de fundamentação histórica. Não
há qualquer evidência de que em Alexandria ou em qualquer outro lugar do cristianismo
primitivo houvesse alguma aversão à atividade angélica como a que está relatada no v. 4.78
Conclusão. Não deve haver dúvida, portanto, de que o texto em questão consiste num
acréscimo posterior, 0 qual, ao que tudo indica, teria sido introduzido primeiramente no
texto ocidental (Antiga Latina, Diatessarão), vindo a se fixar de modo definitivo na tradi
74 Para uma análise completa da probabilidade intrínseca, veja Fee, “On the Inauthenticity of John 5:3b-4,”
210-213.
75 Ibid., 208.
76 E.g., Zane C. Hodges, “The Angel at Bethesda: John 5:4,” BS 136 (1979): 35. Da mesma forma, os editores
de A Bíblia de Jerusalém sugerem que os vs. 3b-4 foram suprimidos por causa do caráter pouco ortodoxo desse
“santuário de curas.”
ção bizantina. A informação sobre 0 “anjo,” portanto, não deve ser atribuída ao evangelis-
ta. É provável que ela represente apenas uma crença popular associada a algum fenônemo
natural que ocasionalmente provocava certa agitação na água. Também não se deve des-
cartar a hipótese de que a água do tanque tivesse propriedades terapêuticas78
79 e que curas
de enfermidades reais ou imaginárias (psicossomáticas) tenham de fato sido ali obtidas.
78 Quando os escritores cristãos do segundo século, inclusive escritores alexandrinos, referem-se aos anjos, eles
sempre 0 fazem de forma bastante positiva. Para referências, veja Fee, “On the Inauthenticity of John 5:3b-4,” 209.
79 Herman Ridderbos, The Gospel according to John: A Theological Commentary, trad. John Vriend (Grand Ra-
pids: Eerdmans, 1997), 185-186.
80 Em seu comentário de João, Orígenes oferece a mesma descrição, dizendo que eram “quatro [pórticos] ao
redor [do tanque] e um no centro” (Comm. Jo. 5.2).
81 Para uma recente avaliação das escavações em Betesda, veja Urban C. von Wahlde, “The Pool(s) of Bethesda
and the Healing in John 5: A Reappraisal of Research and of the Johannine Text,” RB 116 (2009): 111-136.
82 E.g., David J. Wieand, ‘John 5:2 and the Pool of Bethesda,” NTS 12 (1966): 399; Raymond E. Brown, The
Gospel according to John: Introduction, 2 vols., AB 29/29a (Garden City: Doubleday, 1966-1970), 1:207.
tivesse propriedades terapêuticas, a julgar por antigas referências que a descrevem como
sendo de coloração avermelhada. Eusébio, que diz que os tanques recolhiam água da chuva,
fala da cor “notavelmente vermelha” da água.84 De igual modo, 0 anônimo peregrino de Bor-
deaux, que visitou Jerusalém no ano 333, declara: “A água desses tanques é turva e sua cor,
escarlate,”85 0 que talvez estivesse relacionado com 0 tipo de rocha encontrado no local.86
Com a omissão do v. 4, portanto, não há razão nenhuma para que o movimento das
águas seja atribuído a alguma causa sobrenatural. Além disso, como já salientado, a infor-
mação do v. 7 de que 0 primeiro a descer, depois que as águas fossem agitadas, era curado
deve ser vista apenas como a crença do paralítico, que sem dúvida era compartilhada pelos
demais enfermos ali presentes, e não necessariamente como fato histórico. Dessa mesma
crença, que deve ser é anterior à era apostólica, pode ter surgido a tradição sobre 0 anjo,
que mais tarde teria sido anotada à margem de algum manuscrito e daí incorporada ao
texto em cópias posteriores. Tertuliano conhecia essa tradição e parecia acreditar que
fosse autêntica. Ele comentou: “Um anjo, com sua intervenção, agitava o tanque de Betsai-
da [sicj. Os que padeciam de alguma enfermidade esperavam-no, porque 0 primeiro que
descesse às águas, depois de se lavar, seria curado.”87
Assim, o relato pode ter tido uma base verdadeira, mas apenas no que concerne a al-
gum fenômeno natural que de vez em quanto provocava certa agitação no tanque, cujas
águas possivelmente tivessem efeitos medicinais. Eventuais curas ali obtidas podem ter
gerado entre o povo simples a lenda da intervenção sobrenatural, como se fora a atividade
de um anjo, e a crença de que a cura se limitava apenas ao primeiro que se banhasse nas
águas agitadas pode muito bem decorrer tanto da necessidade de se explicar a desconti-
nuidade das curas quanto da dificuldade óbvia de, na confusão, saber quem havia sido 0
primeiro a descer. Por fim, convém lembrar que o milagre relatado por João não é atribuí-
do a nenhuma virtude medicinal do tanque, nem ao ministério angélico, mas ao próprio
Jesus, que curou o paralítico pelo poder de sua palavra (v. 8), talvez para demonstrar sua
reprovação àquela crença deplorável.88
84 Eusébio acrescenta que muitos chegavam a associar o vermelho da água ao sangue dos animais sacrificados
(Orzom. 5).
85 It. Burd. 589. Também conhecido como “Itinerário de Bordeaux a Jerusalém,” o Itinercuium Burdigalense é o
mais antigo itinerário cristão conhecido. Para mais informação, veja John Wilkinson, Egeria’s Travels, 3a. ed. (War-
minister: Aris & Phillips, 1999), 22-34.
87 Tertuliano, Bapt. 5.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 223
dades têm que ver, em parte, com o tamanho da passagem — trata-se de uma seção inteira
e não apenas um versículo ou parte de um versículo, como costuma acontecer89 — e, em
parte, com 0 fato de que, qualquer que seja a decisão a respeito de sua originalidade ou
mesmo canonicidade, esta parece não afetar sua confiabilidade histórica. As evidências
textuais a favor e contra a perícope são as seguintes:
Jo 7.53— 8.11
(1) Omitem 7.53—8.11 {A}
l N T W Δ Θ Ψ 0141 33 157 565 1241 1333* 1424* Lee it3׳f־1
(£66,75 אA vid B C vid י«־
h (mas, acrescentados em alguns manuscritos tardios da sir9'h)
s jjc , s, p,
88 Pesquisas recentes sugerem que Betesda, mais precisamente 0 tanque-sul, era um miqveh, isto é, um tanque
usado para imersão ritual. O estranho relato de João 5, portanto, não tem nada que ver com práticas ou crenças
pagãs, mas apenas “um segundo nível de importância anexado a um local judaico. Sem dúvida, isso não era san-
cionado oficialmente, mas ao mesmo tempo não envolvia nada que atrapalhasse 0 uso do tanque como um miqveh,
exceto talvez a presença maior que a esperada de enfermos e coxos” (von Wahlde, 136).
89 São ao todo doze versículos, como em Mc 16.9-20, mas com a diferença de que Jo 7.53—8.11 consiste numa
única história, que não está presente em nenhum outro Evangelho. A passagem seguinte que mais se aproxima em
tamanho e cuja presença no texto também é duvidosa envolve apenas dois versículos (Lc 22.43-44).
90 Veja Chris Keith, “The Initial Location of the P e r ic o p e A d u lte r a e in Fourfold Tradition,” N o v T 51 (2009): 213.
224 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
textualmente duvidoso, pela presença de asteriscos ou óbelos (var. 3).91 Por fim, também
pode ser útil examinar o aparato crítico de cada versículo que compõe a perícope e verifi-
car as muitas formas em que ela foi transmitida.
Evidência externa. A evidência documental não deixa nenhuma dúvida de que a passa-
gem não é parte original do Evangelho de João. Quanto aos manuscritos gregos, verifica-
-se que ela está ausente de todos os manuscritos de João anteriores ao quinto século (ip66,
'p75, אe B) e, mesmo assim, sua presença na tradição textual é progressiva. O primeiro ma-
nuscrito a registrá-la é o Códice Beza, escrito no final do quinto ou início do sexto século.92
Os Códices Alexandrino e Efraimita são defeituosos nesse ponto do Evangelho, mas é bem
provável que nenhum deles contivesse o relato, pois cuidadosa medição paleográfica mos-
tra que não havería espaço suficiente para incluí-lo, nas folhas perdidas, juntamente com 0
restante do texto. No sexto e sétimo séculos, a passagem está ausente de qualquer manus-
crito, voltando a reaparecer no oitavo século num único manuscrito, o Códice Basiliense
(E). E somente a partir do nono século que sua presença nos manuscritos gregos começa a
ficar mais frequente. Não obstante, (1) a perícope não consta senão em apenas pouco mais
de 1400 manuscritos,93 (2) não há unanimidade quanto ao seu lugar do NT, o que sugere
um tipo de tradição flutuante, e (3) não há uniformidade no texto preservado.94 Por fim,
dois pontos adicionais precisam ser observados, a saber, a presença de asteriscos e óbelos
em diversos manuscritos que contêm a passagem, o que indica suspeitas escribais quanto
a sua presença no texto, e o caráter diverso das testemunhas que a omitem, com represen-
tantes de todas as famílias textuais, incluindo-se a bizantina.
Quanto às versões, a situação é semelhante à dos manuscrigos gregos. No oriente, a
passagem está ausente da versão antigo-siríaca (sinaítica e curetoniana) e dos melho-
res manuscritos peshitos, bem como das coptas saídica, acmíminca e dos mais antigos
manuscritos boaíricos. Ela também não consta nos mais antigos manuscritos armênios
e geórgicos. No ocidente, a perícope está ausente da gótica e de diversos manuscritos
antigo-latinos; sua primeira aparição é no quinto século, no bilíngue D e nos antigo-latinos
d, e e fP.
91 Segundo Kurt Aland, são ao todo 195 manuscritos (do nono século ao século dezoito) que indicam dúvidas
quanto a validade textual da passagem (“Glosse, Interpolation, Redaktion und !Composition in der Sicht der neu-
testamentlichen Textkritik,” em Studien zur Überlieferung des Neuen Testaments und seines Textes, ANTF 2 [Berlim:
De Gruyter, 1967], 44 η. 1).
92 O aparecimento da passagem nos manuscritos gregos, porém, pode ser anterior ao quinto século. O Códice
Vaticano, e.g., que omite 0 relato, contém um distigma (dois pontos horizontais semelhantes ao trema) ao lado de
Jo 7.52. Ao que tudo indica, 0 sinal era utilizado para indicar conhecimento da parte do escriba da presença de uma
variante textual no local, possivelmente a perícope da adúltera (veja acima, 36-37).
93 Veja Keith, “The Initial Location of the Perícope Adulterae in Forfold Tradition,” 214.
94 Gregory declara: “Se não estou enganado, não há em todo 0 NT outros doze versículos que exibem tal multi-
plicidade de leituras variantes. Essa é uma seção única no que diz respeito a sua história e caráter textuais” (Canon
and Text of the New Testament, 514).
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 225
Com relação aos pais da igreja, começando pelos gregos, dentre os vários que comen-
taram o Evangelho de João e cujas obras sobreviveram, a passagem só é citada pelo mais
recente deles, Eutímio, que viveu na primeira metade do século doze. Mesmo assim, ele de-
clara categoricamente que as cópias mais exatas do Evangelho não a continham.95 O escritor
Dídimo, da segunda metade do quarto século, parece conhecer a história: ele a cita em seu
comentário de Eclesiastes, mas numa forma que diverge consideravelmente daquela que é
encontrada em João.96 Entre os pais latinos, as mais antigas referências são também do quar-
to século: Paciano de Barcelona, Ambrósio de Milão e Jerônimo, que a incluiu na Vulgata.97
Enfim, como já salientado, a evidência textual é bastante conclusiva e permite afirmar
que a perícope não foi originalmente incluída por João em seu Evangelho. Há pouca ou
nenhuma dúvida de que ela foi interpolada nos manuscritos apenas séculos mais tarde,
durante o processo de transmissão textual. Leon Morris, que relega o episódio ao apêndice
de seu comentário, não hesita em dizer que “a evidência textual torna impossível manter
que essa seção seja parte autêntica do Evangelho.”989
95 “Nos manuscritos mais exatos, [a passagem] ou não está presente ou aparece assinalada com óbelos”
0Comm. Jo. 129).
96 Dídimo declara haver encontrado a passagem “em alguns Evangelhos” (Comm. Eccl. 223.6b-13a). Não está
claro, porém, se ele está se referindo a alguns manuscritos de João ou de algum Evangelho não canônico. Bart D.
Ehrman tenta demonstrar que entre os Evangelhos mencionados pelo escritor certamente estavam algumas cópias
de João (Studies in the Textual Criticism of the New Testament, 197-203), mas os argumentos são deveras forçados.
Como a mais antiga referência à história da adúltera seja associada por Eusébio de Cesareia ao Evangelho dos
Hebreus (veja abaixo, 229) e Dídimo conhecia esse Evangelho, como o próprio Ehrman o demonstra (204-207), é
bem provável que ele esteja se referindo a esse documento, pois Dídimo nunca cita a história como joanina ou pelo
menos canônica (204).
97 Sobre a evidência textual da passagem na tradição versional e patrística latina, veja Thomas O’Loughlin, “A
Woman’s Plight and the Western Fathers,” em Ciphers in the Sand: Interpretations of the Woman Taken in Adultery
(John 7:53—8:11) , ed. Larry J. Kreitzer e Deborah W. Rooke (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000), 83-104.
98 Leon Morris, The Gospel according to John, 2a. ed., NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 778.
99 Sakae Kubo, A Reader’s Greek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids: Zondervan, 1975), 98.
226 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
Quanto ao estilo, não é difícil perceber que a perícope toda tem muito mais afinidades
narratológicas e linguísticas com os Sinóticos que com João. O relato parece corresponder
bem mais de perto à descrição que Mateus, Marcos e Lucas fazem de Jesus ensinando
diariamente no templo na semana que precedeu sua morte. Um claro exemplo disso é
a conexão que existe entre Jo 7.53—8.2 e Lc 21.37-38 (“Jesus ensinava todos os dias no
templo, mas à noite, saindo, ia pousar no monte chamado das Oliveiras. E todo 0 povo
madrugava para ir ter com ele no templo, a fim de ouvi-lo”). O grupo de manuscritos
conhecido como f 3 tornou essa conexão explícita, colocando a perícope inteira depois de
Lc 21.38. A conexão com 0 Evangelho de Lucas fica ainda mais evidente diante das seguin-
tes afinidades linguísticas: όρθρου (“de madrugada,” 8.2), como em Lc 24.1 (em At 5.21
aparece δρθρον), quando o costume de João é usar πρωί (18.28; 20.1); λαός (“povo,”
8.2) é usado diversas vezes em Lucas (e Mateus), ao passo que é muito raro em João, que
prefere όχλος; άπό του v׳Dv (“desde agora,” 8.11) não é encontrado em João, mas é fre-
quente em Lucas (1.48; 5.10; 12.52; 22.18; 22.69). Outra afinidade existe entre ΐνα εχωσιν
κατηγορεΐν αύτοΰ (“para terem de que o acusar,” Jo 8.6) e ΐνα εΰρωσιν κατηγορεΐν αύτοΰ
(“para acharem de que o acusar,” Lc 6.7) e é interessante notar que, tanto em João quanto
em Lucas, 0 sujeito da ação é 0 mesmo: “os escribas e os fariseus” (Jo 8.3; Lc 6.7). Além
disso, existem ainda em Jo 7.53—8.11 construções que simplesmente parecem estranhas à
dicção joanina, como o uso frequente de δε (“mas”), em vez do otiv de João, e πορεύομαι
είς (“ir para,” 7.53), sendo que o apóstolo prefere πρός .100 Na verdade, todo 0 relato parece
estranho ao texto de João, sendo muito pouco apropriado o lugar que ocupa, entre 7.52 e
8.12 , pela forma como quebra 0 fluxo do texto, interrompendo a sequência dos discursos
durante a Festa dos Tarbernáculos.101102
Tem-se argumentado, às vezes, que outras perícopes em João (e.g., 5.1-11; 6.1-15), cuja
autenticidade não é questionada, também apresentam elevado percentual de hapax legome-
na e que o fenômeno, portanto, não seria exclusivo de 7.53—8.11.02 וDe fato, em Jo 5.1-11
e 6.1-15 existem respectivamente seis e onze palavras que não ocorrem em mais nenhum
outro lugar do Evangelho. Os casos, porém, são diferentes. Em 5.1-11, duas das seis pala-
vras são termos geográficos e, portanto, necessariamente únicos ao relato, e em 6 .1 -11 , que
narra o milagre da multiplicação dos pães, seis das onze palavras únicas a João são empre-
gadas nos relatos paralelos dos Evangelhos Sinóticos, o que sugere acesso comum à mesma
tradição oral ou escrita. Além disso, quando as hapax legomena das três perícopes são con-
sideradas em proporção ao tamanho do texto, 7.53—8.11 revela ter respectivamente 65%
100 Para as várias sugestões quanto ao local original da perícope, veja Chris Keith, “Recent and Previous Rese-
arch on the Pericope Adulterae (John 7:53—8:11),” CBR 6 (2008): 384-386.
101 Brown, The Gospel according to John, 1:336. Para uma análise mais detalhada das dificuldades contextuais
da perícope, veja Gary M. Burge, “A Specific Problem in the New Testament Text and Canon: The Woman Caught in
Adultery (John 7:53—8:11),” JETS 27 (1984): 141-148.
102 E.g., John P Heil, “The Story of Jesus and the Adulteress (John 7:53—8:11) Reconsidered,” Bib 72 (1991):
182-191.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 227
e 83% a mais de palavras únicas a João que 5.1-11 e 6.1-15.103 Mas, é importante lembrar
que a questão não envolve apenas hapax legomena, senão todo um conjunto de evidências
contextuais, estilísticas e léxicas, além, é claro, da evidência documental.
Se a perícope fosse original, é importante perguntar por que motivo teria ela sido pos-
teriormente suprimida? Supressão acidental de uma passagem desse tamanho é bastante
improvável. Ela teria que ter sido deliberadamente suprimida. Frequentemente citada é a hi-
pótese de que isso teria ocorrido porque a história podería ser entendida como uma espécie
de indulgência para com o adultério.104 E há, de fato, uma declaração de Agostinho segundo
a qual alguns indivíduos haviam eliminado a história de seus códices por temor de que as
mulheres a usassem como desculpa para a infidelidade.105 Não obstante, em que pese a aus-
teridade que existiu na igreja entre o segundo e o quarto séculos, a hipótese é enfraquecida
pela completa ausência de qualquer excisão escribal de uma passagem tão extensa unica-
mente para salvaguardar a moralidade cristã. Além disso, teria sido virtualmente impossível
que a supressão da passagem fosse tão coordenada ao ponto de ser eliminada de todos os
manuscritos gregos (pelo menos dentre aqueles que sobreviveram) anteriores ao quinto sé-
culo. O argumento também vale no caso de uma omissão acidental. Por fim, a hipótese de
uma supressão intencional também não consegue explicar, por exemplo, porque os três ver-
sículos preliminares (7.53—8.2), tão importantes para situar no tempo e espaço os discursos
de Jo 8, teriam sido suprimidos juntamente com os demais. Parece mais razoável, portanto,
supor que a seção tenha sido acrescentada ao texto de João em algum período posterior, que
omitida do Evangelho, independentemente do motivo, caso fosse original.
Conclusão. Com base nas considerações tanto externas quanto internas, portanto, não
deve haver dúvida de que a perícope da adúltera não é joanina ou pelo menos não foi ori-
ginalmente incluída por João em seu Evangelho. Metzger descreve a evidência como “es-
magadora,”106 mas por causa de sua “evidente antiguidade,” os editores do NTG4 optaram
por mantê-la em seu lugar tradicional no texto, embora entre colchetes duplos.107
103 veja Daniel B. Wallace, “Reconsidering ‘the Story of Jesus and the Adulteress Reconsidered,’" NTS 39
(1993): 291-293.
104 E.g, Harald, Riesenfeld, “The Perícope de Adultera in the Early Christian Tradition,” em The Gospel Tradition:
Essays by Harald Riesenfeld, trad. E. Margaret Rowley e Robert A. Kraft (Oxford: Blackwell, 1970), 95-110; Allison A.
Trites, “The Woman Taken in Adultery,” BS 131 (1974): 137-146; Zane C. Hodges, “The Woman Taken in Adultery
(John 7:53—8:11): The Text,” BS 136 (1979): 318-332. Josep Rius-Camps, que argumenta que a perícope é origi-
nal de Marcos (depois de 12.12), também credita sua omissão ao rigor moral que predominou na igreja logo após
0 período apostólico (“The Perícope of the Adulteress Reconsidered: The Nomadic Misfortunes of a Bold Pericope,”
NovT 53 [2007]: 379-405).
107 Ibid., 189. O mesmo recurso tem sido adotado pela maioria das versões modernas, inclusive em língua por-
tuguesa, como a ARA, NTLH e A21. Na NVI, o texto aparece sem colchetes, mas uma nota de rodapé informa que
“muitos manuscritos não trazem João 7.53—8.11; outros manuscritos deslocam 0 texto.”
228 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
Excurso. As questões envolvendo Jo 7.53—8.11, porém, não terminam por aqui, pois
embora não sendo parte original de João, a história é absolutamente leal ao caráter de
Jesus,108 além de haver claros indícios de sua autenticidade. É bem provável que o relato
consista num fragmento de material evangélico autêntico preservado mediante alguma
tradição paralela (não canônica) e que mais tarde acabou sendo anotado à margem do
Evangelho de João, talvez para ilustrar a declaração de Jesus em 8.15 (“eu a ninguém jul-
go”). A seguir, em alguma cópia posterior, 0 relato teria passado para o texto do Evangelho
propriamente dito, vindo então a se fixar em boa parte da tradição manuscrita, embora
essa tradição tenha sido bastante fluida.109 A maioria dos copistas evidentemente pensou
que a história interrompería menos o contexto se fosse inserida após Jo 7.52, ao passo que
outros inseriram-na em diversos outros lugares de João ou mesmo de Lucas, talvez em
função do estilo, que obviamente é muito mais lucano que joanino. Algumas das inserções,
porém, podem ter sido ditadas pelo uso litúrgico do manuscrito e não necessariamente
pela liberdade do copista em escolher um contexto mais apropriado.110
Que a história é bastante antiga, não há a menor dúvida, mesmo tendo demorado para
aparecer na tradição manuscrita grega. Na Didascalia (7.2), obra de origem síria do início do
terceiro século (mais tarde utilizada na composição das chamadas Constituições Apostólicas),
aparece uma referência específica ao episódio da adúltera como um exemplo bem conhecido
da bondade de Jesus. Como parte de um conjunto de regulamentos eclesiásticos para uso de
uma comunidade étnico-cristã, essa referência certamente significa que a história era bem
popular na Síria já pelo menos na segunda metade do segundo século. De acordo com Eusé-
bio, Papias também parece havê-la conhecido e explicado. Ele declara o seguinte: “O mesmo
escritor [Papias] explicou outro relato acerca de uma mulher acusada perante o Senhor de
muitos pecados, o que está contido no Evangelho dos Hebreus.”111 Se essa for realmente,
como parece, uma referência à mulher adúltera, então a história pode remontar à era apos-
tólica, visto que, segundo Irineu, Papias fora discípulo do apóstolo João.112
Outra evidência indireta da antiguidade da história da adúltera vem do chamado Pro-
toevangelho de Tiago,'™ um romance cristão datado aproximadamente do ano 150. Apesar
de sua origem apócrifa, essa obra revela claramente que vários dos principais elementos
109 Além das diferenças quanto a sua posição no texto, a perícope da adúltera foi preservada em diferentes
formas textuais. Hermann E von Soden identificou nada menos que sete diferentes grupos textuais (denominados
μ1 a μ7, sendo que 0 suposto arquétipo por ele reconstruído foi denominado μ°), cada grupo com uma infinidade
de variações menores entre seus representantes (Die Schriften des Neuen Testaments in ihrer ültesten erreichbaren
Textgestalt: hergestelt aufGrund ihrer Textgeschichte, 3 vols. [Berlim: Glaue/Duncker, 1902-1910], 1:486524)־. Para
Maurice A. Robinson, 0 arquétipo (que ele chama de autógrafo, por acreditar que a perícope é parte original do
texto de João), estaria entre os grupos μ5e μ6, estando mais próximo do primeiro que do segundo (“Preliminary Ob-
servations Regarding the Perícope Adulterae Based upon Fresh Collations of Nearly All Continous-Text Manuscripts
and All Lectionary Manuscripts Containing the Passage,” FilNeo 13 [2000]: 35-59).
110 Keith, “The Initial Location of the Perícope Adulterae in Fourfold Tradition,” 225-231.
112 Ireneu, Haer. 5.33. Na verdade, o próprio Papias sugere que a história remontava à época apostólica. Em
Hist, eccl 3.39, Eusébio relata algumas tradições mencionadas por Papias em sua obra Exposições dos Oráculos do
Senhor (da qual restam apenas fragmentos), tradições estas recebidas diretamente dos “anciãos,” que é como Papias
se refere àqueles que haviam estado com os apóstolos. Segundo Eusébio, Papias dizia que valorizava muito mais
a “viva voz” da tradição oral que os “livros” que contavam acerca de Jesus. E nesse contexto que, ainda segundo
Eusébio, Papias se referiu à história da “mulher acusada perante 0 Senhor de muitos pecados.”
113 Também conhecido como Evangelho da Infância Segundo Tiago, ou apenas Evangelho de Tiago.
114 Em grego, a única diferença significativa entre Protev. Iac 16:3 e Jo 8.11 é 0 pronome pessoal: ύμ&ς, no
primeiro, e σε, no segundo.
115 William L. Petersen, “Ουδέ εγω σε [κατα] κρίνω: John 8:11, the Protoevangelium Iacobi, and the History of
the Pericope Adulterae," em Sayings of Jesus: Canonical and Non-Canonical. Essays in Honour of Tjitze Baarda, ed.
William L. Petersen et al., NovTSup 89 (Leiden; Brill, 1997), 191-221.
116 Sobre o critério da dupla dissimilaridade, veja E. R Sanders, Jesus and Judaism (Londres: SCM, 1985), 3-22.
230 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
eu a condeno. Vá e não peque mais” (v. 11). O tratamento que Jesus deu à mulher contraria
tanto a prática judaica da época, conforme demonstrado pela própria perícope (veja Jo 8.3-5),
quanto a rígida disciplina eclesiástica relativa ao adultério que vigorou nos primeiros séculos
da igreja pós-apostólica. Conquanto desnecessário para alguns no que diz respeito aos mate-
riais biográficos de Jesus encontrados no NT, 0 critério da dupla dissimilaridade pode ser útil
em se tratando de materiais extrabíblicos, como é o caso da perícope da adúltera.117
Ou seja, as evidências de que dispomos quanto à não originalidade de Jo 7.53—8.11
são bastante conclusivas. Tais evidências, porém, contrariam apenas 0 registro evangélico
da perícope, não necessariamente sua origem evangélica. A história, que já foi chamada de
“pérola perdida da antiga tradição” evangélica,118 contém todos os indícios de ser histori-
camente autêntica e é assim considerada por grande número de intérpretes.119 Nesse caso,
ela seria apenas mais uma dentre as muitas coisas que Jesus fez e falou e que não foram
originalmente incluídas nos Evangelhos (veja Jo 20.30-31; 21.25), mas que, de alguma for-
ma, pemaneceram vivas na memória da igreja. No início do segundo século, Papias não só
se refere à existência de tradições orais de procedência confiável que ainda circulavam nos
meios cristãos, como também parece incluir entre elas a história da adúltera. E foi assim que,
preservada por fontes não canônicas, essa história, com o tempo, acabou migrando para o
texto bíblico, consolidando-se na tradição cristã como um dos mais belos exemplos da bon-
dade e sabedoria de Jesus.120
A eventual autenticidade histórica da perícope, porém, não é suficiente para garantir-
-lhe condição canônica. Questões de historicidade não devem ser confundidas com ques-
tões relacionadas ao cânon das Escrituras. Mesmo que a presença no cânon de um episódio
em particular pressuponha sua confiabilidade histórica, o contrário não é verdade. Isto é,
nem tudo que é histórico é canônico,121 independentemente de sua presença em manuscri-
tos bíblicos posteriores. Questões de canonicidade também devem ser mantidas à parte das
questões crítico-textuais, em que pese os muitos pontos em comum entre as duas áreas. Não
117 Como muitos já têm demonstrado, 0 critério da dupla dissimilaridade não funciona muito bem negativa-
mente, ou seja, para dizer que uma declaração ou ação de Jesus não é autêntica. Quando usado dessa maneira,
0 resultado poder ser um Jesus não judeu e não cristão. Quanto usado de forma positiva, porém, como apoio à
historicidade das informações biográficas de Jesus, em especial aquelas de origem extrabíblica, o critério pode ser
útil. Para mais informação, veja Carson, Douglas e Moo, 8 2 8 5 ־.
119 Para referências, veja Keith, “Recent and Previous Research on the Pericope Adulterae," 394.
120 Ehrman argumenta que a perícope da adúltera na verdade consiste na fusão de duas histórias distintas que
circulavam na igreja primitiva e que nem todos os elementos da pericope seriam igualmente históricos (Studies in
the Textual Criticism of the New Testament, esp. 207-212). Não há dúvida de que Papias, a Didascalia e Dídimo citam
a história de forma diferente, mas as diferenças não fogem muito ao padrão encontrado nos próprios Evangelhos
(e.g., Mt 26.6-13; Mc 14.3-9; Lc 7.37-50; Jo 12.1-8), nem à maneira como os escritores patrísticos muitas vezes
aludem ao texto bíblico, sem que haja, portanto, a necessidade de se conceber a existência de duas histórias dis-
tintas com diferentes níveis de autenticidade. Para uma crítica mais detalhada da posição de Ehrman, veja J. Ian
H. McDonald, “The So-Called Pericope de A d u lte r a NTS 41 (1995): 415-427, e esp. Keith, “Recent and Previous
Research on the Pericope Adulterae,” 387.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 231
é porque um livro do NT seja canônico, que qualquer leitura, autêntica ou não, nele intro-
duzida no processo de cópia e recópia também 0 seja.121122 Em se tratando das leituras supos-
tamente autênticas presentes na tradição manuscrita, porém, como no caso da perícope da
adúltera, a presença delas no texto (impresso) talvez até possa ser admitida, desde que haja
suficientes indicações de que não fazem parte do texto original. Nesse caso, 0 recurso dos
colchetes, comum nas edições críticas do NT grego e em algumas versões modernas da Bí-
blia para indicar adições posteriores ao texto, talvez continue sendo uma boa alternativa.123
O texto de At 12.25 chegou até nós em duas formas principais. Uma delas diz que
“Barnabé e Saulo, tendo cumprido sua missão, retornaram de Jerusalém.” A outra, que eles
“retornaram para Jerusalém.” O contexto exige “de,” visto que o propósito do versículo é
ligar as passagens de 11.27-30 e 13.1-3, separadas uma da outra por um capítulo inteiro,
e trazer Barnabé e Paulo de volta a Antioquia após terem eles levado ajuda aos crentes de
Jerusalém. Essa é a forma do Texto Recebido e da maioria das versões modernas da Bíblia.
A questão seria muito simples, não fossem as dificuldades impostas pela evidência textual,
a sintaxe e a cronologia dos eventos envolvidos. O aparato crítico contém as seguintes
informações:124
V 25
(1) εις ,Ιερουσαλήμ {C}
אB H [L P] 81 1409 Biz Lecpt sirhmg esl Crisóstomo"1“
(2) από ’Ιερουσαλήμ
D Ψ 18 36 94 101 181 205 209 226 307 431 436 441 453 610 614 1175 1678
1827 1873 Lecpt itar׳c׳d׳de״n ׳9׳g׳p1'uo Vg COpbo,meg Crisóstomoms
121 Nem canônico, nem uma “expansão benigna” ao cânon, como defende Carl B. Bridges em relação à história
da adúltera (“The Canonical Status of the Pericope Adulterae [John 7:53—8:11],” SCJ 11 [2008]: 220-221). Talvez
não seja correto também chamar a história de apócrifa, pelo menos não da forma como a expressão costuma ser
utilizada. Em termos gerais, o Jesus apresentado pela maioria dos livros apócrifos do NT é muito diferente do Jesus
bíblico, como diferente é a visão da fé cristã neles encontrada, ao passo que a história da adúltera pode ter se ori-
ginado em meio às muitas tradições que ajudaram a moldar os Evangelhos Sinóticos. Sobre 0 Jesus dos evangelhos
apócrifos, veja C. Marvin Pate, “Current Challenges to the Christian Canon,” CTR 3 (2005): 3-10, e esp. John E
Meier, A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus, ABRL (Nova York: Doubleday, 1991), 112-166.
122 Como diz Raymond E. Brown, “ao passo que os livros do NT são canônicos, nenhum texto grego em parti-
cular deveria ser canonizado; 0 máximo que alguém pode reivindicar para um NT grego preparado criticamente é
aceitação intelectual” (An Introduction to the New Testament [Nova York: Doubleday, 1997], 52).
123 Contra Andreas J. Kõstenberger, e.g., que defende a ideia de que a perícope não deveria ser incluída no
texto de jeito nenhum (John, BECNT [Grand Rapids: Baker, 2004], 248-249).
124 As testemunhas adicionais foram extraídas de John C. Hurd, The Origin of 1 Corinthians (Londres: SPCK,
1965), 34.
232 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
(3) έξ Ίερουςαλήμ
74 צץA 33 330 547 1319 2344 copsamss eti Crisóstomo1“״
(4) εις Αντιόχειαν
97mg 110 328 424mg 425
(5) εξ Ίερουςαλήμ εις Αντιόχειαν
42 51 104 234 322 323 429 536 605 913 945 1739 1831 1891 2298 ZADite׳P־w
sir*3copsamss
(6) άπό Ίερουςαλήμ εις Αντιόχειαν
Ε 103 242 464 1175 1898 11178
At 12.25 contém pelo menos seis leituras variantes, sendo que as três primeiras são as
mais importantes, por causa da data das testemunhas e a natureza distintamente secundá-
ria das demais. A dúvida gira em torno das preposições εις, εξ e από. No caso de έξ e άπό,
porém, o sentido do texto não se altera, visto que, nesse contexto, ambas as preposições
significam praticamente a mesma coisa, tanto que em português elas seriam igualmente
traduzidas por “de,” indicando que Barnabé e Paulo retornaram de Jerusalém. A outra alter-
nativa é a preposição εις, que daria a ideia de que os apóstolos retornaram para Jerusalém.
Evidência externa. A análise documental é bastante simples e não deixa nenhuma dú-
vida quanto à superioridade da leitura εις Ιερουσαλήμ (var. 1).25 יEla é a que conta com
o apoio dos melhores e mais antigos manuscritos, particularmente os Códices Sinaítico e
Vaticano, podendo remontar ao início do segundo século. As leituras άπό Ιερουσαλήμ e έξ
Ιερουσαλήμ (vars. 2 e 3) viríam logo em seguida na preferência textual, mas elas não são
atestadas por nenhuma testemunha grega, versional ou patrística anterior ao quinto século,
à exceção de uns poucos manuscritos coptas cujo texto pode recuar ao terceiro século. As
demais leituras (vars. 4-6) são igualmente tardias e suas chances de representar a forma
mais primitiva do texto ficam ainda menores quando suas probabilidades transcricionais
são levadas em conta.
125 Para uma completa análise da passagem, que conclui que εις 'Ιερουσαλήμ representa a leitura original, veja
Jacques Dupont, “La mission de Paul ‘à Jerusalem’ (Act 12:25),” NovT 1 (1956): 275-303.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 233
podendo ser uma tentativa de correção de um erro óbvio, como também não é capaz de
ter produzido nenhuma das demais variantes.
As variantes 2 e 3, por sua vez, também podem ter sido escritas por Lucas, bem como
ter produzido as variantes 5 e 6, mas não as variantes 1 e 4. Pelo contrário, elas também
claramente pressupõem a variante 1, parecendo não ser nada mais que tentativas de cor-
reção daquilo que pode ser interpretado como um erro evidente (εις ,Ιερ ο υ σ α λή μ ).126127 Isso
significa que a variante 1 é a única que pode explicar todas as demais, devendo suposta-
mente anteceder a elas. Ela é a mais difícil de todas (lectio difficiliof) e a que conta com 0
melhor apoio documental. Mas, nem por isso ela parece representar o texto original, pela
forma grotesca com que conflita com At 11.27-30 e 13.1-3. É muitíssimo improvável que
Lucas fosse cometer um erro como esse.
Na busca por uma solução, dois são os caminhos normalmente trilhados: (1) tentar
fazer sentido do texto, assim como ele parece ter sido escrito, por meio de argumentos
redacionais, léxicos e gramaticais, ou (2) supor que o texto tenha sido afetado por algum
erro primitivo, anterior aos manuscritos hoje conhecidos, e corrigi-lo por meio de alguma
conjectura. Um dos argumentos utilizados em defesa da originalidade de εις ’Ιερ ο υ σ α λή μ
é dizer que 12.25 (juntamente com 11.27-30) está fora de lugar e que deveria ser lido em
conexão com 24.17, que descreve o retorno de Paulo a Jerusalém após sua terceira viagem
missionária. Lucas teria incluído o relato em seu presente local apenas por razões apoio-
géticas: a igreja de Antioquia socorre Jerusalém antes de se voltar para o oeste (as viagens
missionárias de Paulo).128 Existem, porém, pelo menos quatro objeções ao argumento,
mesmo diante da observação de que Lucas não segue estrita ordem cronológica em seus
escritos: (1) Antioquia volta a se relacionar com Jerusalém na sequência de Atos (cap. 15);
(2) o episódio de 24.17 é mais bem explicado à luz de G1 2.10 e os esforços de Paulo junto
às igrejas da Macedonia e Acaia (Rm 15.23-32; 1C0 16.1-4; 2C0 8.1—9.15);129 (3) a admis-
são do deslocamento implicaria em que Lucas teria feito um péssimo trabalho editorial,
pelo menos nesse ponto, fazendo Barnabé e Paulo retornarem para Jerusalém quando, no
versículo seguinte (13.1), eles aparecem em Antioquia; e (4) se lida após a terceira viagem,
a referência a João Marcos não faz muito sentido à luz de 15.37-40.
Outra sugestão é tomar o particípio aoristo π λη ρώ σ α ντες não em seu sentido nor-
mal (“tendo cumprido”), mas como um exemplo do chamado aoristo futurístico, também
126 Em seu esforço para explicar a origem da variante εις ’Ιερουσαλήμ, Matthew Black acaba sugerindo έξ
’Ιερουσαλήμ εις Αντιόχειαν como sendo o texto original (“Notes on the Longer and the Shorter Text of Acts,” em On
Language, Culture, and Religion: In Honor of Eugene A. Nida, ed. Matthew Black [Haia: Moulton, 1974], 123-124).
127 Metzger também informa que, em Atos, 0 verbo υποστρέφω nunca é usado com indicações do lugar a partir
do qual se retoma; a única exceção dentre as doze ocorrências é 1.12 (A Textual Commentary on the Greek New
Testament, 351). Mesmo ali, porém, 0 destino (εις Ιερουσαλήμ) vem antes do ponto de origem (από όρους του
καλούμενου Έλαιώνος).
128 Robert W. Funk, “The Enigma of the Famine Visit,” JBL 75 (1956): 130136־.
129 Veja F. F. Bruce, The Book of Acts, 2a. ed., NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), 445.
234 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
conhecido como aoristo de ação subsequente, que expressaria propósito (“a fim de cum-
prir”) e seria reconhecidamente bastante raro na literatura grega.130 A ideia, porém, con-
quanto atrativa, envolve pelo menos duas dificuldades: (1) a referência a João Marcos
que, nesse caso, faria pouco ou nenhum sentido, visto que ele presumivelmente estava
em Jerusalém e precisava ser levado para Antioquia,131 e (2) a própria validade do aoristo
de ação subsequente, cuja existência é questionada pela maioria dos gramáticos.132 Uma
terceira sugestão, um pouco mais simples, é colocar uma vírgula depois de ύπέστρεψαν
e ligar a frase preposicional εις ’Ιερουσαλήμ ao particípio πληρώσαντες, tomando-se εις
como equivalente de έν (“tendo cumprido sua missão em Jerusalém, Barnabé e Saulo re-
tornaram ...”).133 De fato, o uso de εις em lugar de έν é um fenômeno relativamente comum
tanto no grego helenístico quanto na dicção de Lucas (Lc 4.23; 14.8,10; At 2.5; 8.40),134
mas a pausa depois de ύπέστρεψαν não é normal, conquanto possa ser tolerada.135 Não
obstante, o argumento não é suficiente para resolver o problema de At 12.25, cujo contex-
to exige outra interpretação.
A outra linha de argumentação é supor que a passagem encerra algum primitivo erro
escribal. Westcott e Hort, por exemplo, diziam que a forma “εις ,Ιερουσαλήμ, que tem o
melhor apoio textual e não parece ter sido introduzida [no texto], não pode estar correta
se tomada com ΰπέστρεψαν [‘retornaram ’].”136 A solução por eles proposta é alterar a
sequência das palavras para υπέστρεψαν την εις ’Ιερουσαλήμ πληρώσαντες διακονίαν e
interpretar a preposição εις como equivalente a έν. A sintaxe ficaria menos agressiva que
na sugestão anterior, admitindo a mesma tradução (“tendo cumprido sua missão em Jeru-
salém, Barnabé e Saulo retornaram...”) de modo bem mais natural.
Henry Alford sugere que 0 problema teria resultado de uma confusão de notas mar-
ginais. Lucas teria escrito έξ ’Ιερουσαλήμ, mas alguém teria anotado à margem a nota
explicativa εις Αντιόχειαν, que mais tarde acabou sendo introduzida no texto em lugar
de έξ ’Ιερουσαλήμ. Mais tarde ainda, Αντιόχειαν pode ter sido corrigida de volta para
’Ιερουσαλήμ, mas sem que ο εις fosse alterado .137 Menos complicada é a sugestão de Wal-
ter Schmithals, segundo a qual Lucas teria escrito έξ ou άπό e copistas teriam mudado
130 E.g., C. D. Chambers, “On a Use of the Aorist Participle in Some Hellenistic Writers,” JTS 94 (1922):
183-187; W. E Howard, “On the Futuristic Use of the Aorist Participle in Hellenistic,” JTS 96 (1923): 403-406.
131 Veja C. S. C. Williams, A Commentary on the Acts of the Apostles, BNTC (Londres: Adam & Charles, 1957),
152.
132 Veja James H. Moulton, A Grammar of New Testament Greek, vol. 1, 3a. ed. (Edimburgo: T&T Clark, 1908),
132-134, e esp. A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research, 5a. ed.
(Nova York: Hodder& Stoughton, 1931), 861-863.
para εις a fim de postergar a chegada de Barnabé e Paulo em Jerusalém para depois dos
eventos descritos em 12.1-23, pois é pouco provável que eles estivessem lá durante todo
esse tempo.137138 Outra sugestão, ainda mais simples, é a de Vernon Bartlet de que original-
mente a passagem não tinha nenhuma frase preposicional e que todas as leituras variantes
representam adições ao verbo ΰπέστρεψαν.139
Nenhuma dessas soluções é tão radical como a de G. A. Simcox, que propõe a elimina-
ção de todo 0 versículo como uma interpolação escribal,140 e não é de todo impossível que
ele esteja certo. Há pelo menos cinco considerações internas que parecem corroborar a
ideia: (1) 0 versículo não faz falta no contexto, ou seja, 13.1 pode ser lido em continuidade
a 12.24 sem que haja qualquer problema ou interrupção na sequência do pensamento;
(2) a presença do versículo parece tornar a menção a Barnabé e Paulo em 13.1 desne-
cessária; Lucas fala deles como se ambos fossem bem conhecidos (apenas os demais são
apresentados) e estivessem agora sendo reintroduzidos no relato após algum intervalo;
(3) a identificação de “João, chamado Marcos” é redundante nesse contexto, visto que ele
acabara de ser identificado poucos versículos atrás (12.12);141 (4) a palavra διακονία em
12.25 contraria não apenas seu uso em 11.29 (cf. 6.1) como também o uso que Lucas nor-
malmente faz dela (veja At 1.17,25; 6.4; 20.24; 21.19);142 e (5) é praticamente impossível
que a viagem de 11.30 (e 12.25) tenha ocorrido antes da primeira viagem missionária do
apóstolo, descrita nos caps. 13-14. As razões são apresentadas a seguir.
Kirsopp Lake e Henry J. Cadbury declaram que a referência a Cláudio (v. 28), que reinou
de 41 a 54, indica (1) que a profecia foi feita antes dele assumir 0 poder e (2) que Lucas redi-
giu 0 livro após o término de seu reinado.143 A observação está correta e pressupõe três níveis
cronológicos na passagem: o da profecia, que foi anterior a Cláudio; o da fome, que ocorreu
no tempo de Cláudio; e 0 da redação, que certamente foi posterior a Cláudio. Há, porém, ain-
da um quarto nível, que é o da ajuda propriamente dita e que, como observa Jeremias, deve
ter ocorrido também no tempo de Cláudio, ou seja, no tempo da fome, e não no tempo da
profecia.144 Seria ingênuo, se não ilógico, pensar que os irmãos de Antioquia enviaram ajuda
aos crentes da Judeia imediatamente após ouvirem as palavras de Ágabo, até porque não pa-
rece ter havido na profecia em si nenhuma indicação quanto ao tempo de seu cumprimento e
a informação do v. 28 (“a qual sobreveio nos dias de Cláudio”), como já dito, é redacional.145
137 Henry Alford, The Greek Testament, 4 vols., ed. rev. (Londres: Longmans, 1899), 2:137.
38 וWalter Schmithals, Die Apostelgeschichte des Lukas, ZBK (Zurique: Theologischer Verlag, 1982), 119.
141 Ibid.
143 Kirsopp Lake e Henry J. Cadbury, “Acts of the Apostles,” em The Beginnings of Christianity, ed. F. J. Foakes
Jackson e Kirsopp Lake, 5 vols. (Londres: Macmillan, 1920-1933), 4:131.
236 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
Os irmãos de Antioquia, portanto, talvez não tivessem como saber quando a profecia se cum-
priria e, mesmo se tivessem, 0 evento predito não estava senão vários anos à frente.
Fontes antigas informam que o reinado de Cláudio foi marcado por vários períodos de
fome em diferentes partes do império .14 146 Na Judeia, há registros de uma fome bastante
15
intensa aproximadamente entre os anos 46 e 49,147 com 0 agravante de que o ano 48/49
foi um ano sabático,148 o que teria contribuído para que a escassez de alimentos fosse ain-
da maior. Considerando que a morte de Herodes (Agripa I) mencionada em 12.20-23 não
ocorreu senão no ano 44, antes que 0 período de escassez sequer começasse, a viagem de
11.30 não pode ter ocorrido naquele ponto do relato, isto é, antes que Agripa morresse.149
Na verdade, ela dificilmente pode ter ocorrido antes do término da primeira viagem mis-
sionária de Paulo, visto que a viagem, de acordo com as melhores estimativas, teria ocor-
rido entre os anos 45/46 e 47/48,150 mais ou menos no mesmo período da fome, portanto.
Isso equivale a dizer que Barnabé e Paulo não estariam disponíveis para ir a Jerusalém
senão após o retorno de sua viagem pela Ásia Menor. Nesse caso, como observa Jeremias,
não havería nenhum obstáculo insuperável para que a viagem de 11.30 não seja a mesma
do cap. 15 (o concilio apostólico), a qual deve ter ocorrido após 0 término da primeira
viagem missionária. E se a viagem dos caps. 11 e 15 também for a mesma de G1 2, 0 que
passa a ser uma real possibilidade,151 então o pedido dos crentes judeus a Paulo e Barnabé
144 Joachim Jeremias, “Sabbathjahr und neutestamentliche Chronologie,” em Abba: Studien zur neutestament-
lichen Theologie und Zeitgeschichte (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966), 237.
145 Parece estranho, portanto, que Joseph A. Fitzmyer declare que “as palavras de Ágabo levou-os imediata-
mente à ação e eles reuniram 0 que puderam para os cristãos da Judeia” (The Acts of the Apostles, AB 31 [Nova York:
Doubleday, 1998], 482). Como salienta Barrett, “não é dito que eles enviaram ajuda imediatamente,” mesmo que
não seja possível presumir que entre os vs. 29 e 30 haja um intervalo de vários anos (1:565).
146 Para referências, veja Kenneth S. Gapp, “The Universal Famine under Claudius,” HTR 28 (1935): 258265־,
e esp. Rainer Riesner, Paul's Early Period: Chronology, Mission Strategy; Theology, trad. Doug Stott (Grand Rapids:
Eerdmans, 1998), 127-132.
148 Jeremias fala em 47/48 (Jeremias, “Sabbathjahr und neutestamentliche Chronologie,” 234-235), mas a
data foi corrigida para 48/49 (veja B. Z. Wacholder, “The Calendar of Sabbatical Cycles during the Second Temple
and the Early Rabbinic Period,” HUCA 44 [1973]: 191).
149 Barrett admite que uma leitura natural e consecutiva do texto de Lucas sugere que a viagem de 11.30 e a
morte de Herodes ocorreram mais ou menos na mesma época, mas como a fome ocorreu alguns anos depois da
morte de Herodes, a viagem com a ajuda, diz ele, certamente ocorreu ainda mais tarde (1:594).
150 Jeremias, “Sabbathjahr und neutestamentliche Chronologie,” 236; Bastian van Elderen, “Some Archaeolo-
gical Observations on Paul’s First Missionary Journey," em Apostolic History and the Gospel: Biblical and Historical
Essays Presented to F.F. Bruce, ed. W. Ward Gasque e Ralph P Martin (Exeter: Paternoster, 1970), 150-161; e esp. L.
C. A. Alexander, “Chronology of Paul,” DPL (Downers Grove: InterVarsity, 1993), 115-123.
151 Robert Jewett hesita em aceitar essa hipótese porque Paulo não faz nenhuma menção em G1 2 a um even-
tual duplo propósito de sua viagem a Jerusalém (A Chronology of Paul’s Life [Filadélfia: Fortress, 1979], 34). Ο
argumento, porém, não parece forte 0 bastante, como todo argumento baseado no silêncio, além do fato de que a
recomendação quanto aos pobres no v. 10 pode ser interpretada como uma referência quase que explícita à fome
de At 11.27-30 (veja Barrett, 1:560 e esp. 2:709713)־.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 237
para que não se esquecessem dos pobres (G1 2.10) parece fazer perfeito sentido, uma vez
que “o concilio apostólico ocorreu... dentro do período da grande fome.”152
Em resumo, os eventos descritos em At 11.27-30 não ocorreram todos naquele ponto
do relato, mas foram juntados aparentemente por razões contextuais,153 ou seja, para não
quebrar a sequência da história. Não há muitos dados nos caps. 11-12 que permitam esta-
belecer uma cronologia precisa de todos os fatos ali registrados, mas as referências tanto
à fome, em conexão com o reinado de Cláudio, quanto à morte de Agripa I parecem sufi-
cientes para se sugerir que a viagem de 11.30 pode não ter ocorrido senão após a primeira
viagem missionária de Paulo e Barnabé. Assim, a passagem de 12.25 não faz qualquer
sentido onde está, independentemente da leitura adotada, sendo grandes as chances de
que se trate de uma primitiva interpolação destinada a explicar a presença de Barnabé e
Paulo em Antioquia em 13.1, visto que na última vez que haviam sido mencionados eles
aparentemente estavam a caminho de Jerusalém (11.30). Tem sido argumentado que Lu-
cas separou 12.25 de 11.27-30 porque ele sabia “muito bem” que a fome e a viagem com a
ajuda ocorreram depois da morte de Herodes.154 Mas, se a fome foi mais ou menos simultâ-
nea à primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé, a viagem com a ajuda não podería
ter ocorrido senão após o término da viagem, e não em seguida à morte de Herodes. É
importante salientar que 12.25 se destina a ser lido exatamente onde está, ou seja, antes
de 13.1-3, e chega a ser inconcebível que Lucas fosse cometer um erro assim.
Conclusão. E bem provável, portanto, que At 12.25 seja uma daquelas pouquíssimas
passagens neotestamentárias cujo problema textual só pode ser resolvido mediante o re-
curso da conjectura.155 As evidências documentais favorecem a variante εις Ιερουσαλήμ,
que também representa a variante mais difícil. Nenhum desses fatores, porém, é determi-
nante se 0 texto resultante carecer de probabilidade intrínseca, como é o caso de 12.25
em qualquer de suas formas. Barnabé e Paulo não podem ter voltado “para” Jerusalém,
porque em 11.30 eles vão a Jerusalém e em 13.1 eles estão de volta em Antioquia. Mas,
eles também não podem ter voltado “de” Jerusalém, pelo menos não naquele ponto do
relato, porque é provável que a viagem de 11.30 não tenha ocorrido senão depois da morte
de Herodes (12.20-23) ou, mais precisamente, depois da primeira viagem missionária de
Paulo (caps. 13-14), cujo período coincidiu, pelo menos em parte, com a fome anunciada
em 11.28. Em vista disso, não parece haver lugar para 12.25 no texto de Atos. Ao que tudo
153 Jeremias atribui 0 duplo relato da mesma viagem (11.30 e 15.2) às diferentes fontes utilizadas por Lucas
(ibid., 237).
154 Ben Witherington, The Acts of the Apostles: A Socio-Rhetorical Commentary (Grand Rapids: Eerdmans,
1998), 375.
155 Ao que parece, 0 único caso de emenda conjectural presente no NTG4 (=NA27) é At 16.12, cujo texto ofe-
rece uma leitura não encontrada em nenhum manuscrito grego. A decisão, porém, não foi unânime, como indica a
nota parentética de Metzger em A Textual Commentary on the Greek New Testament, 395.
238 ANÁLISE DE TEXTOS SELECIONADOS
indica, 0 versículo foi obra de algum copista que entendeu que 0 envio da ajuda aos pobres
da Judeia (11.30) teria ocorrido logo em seguida à profecia e que era, portanto, necessário
trazer Barnabé e Paulo (e João Marcos) de volta a Antioquia para justificar a presença
deles ali em 13.1. Talvez a passagem de 15.34, um texto cuja omissão não é contestada,
ofereça um bom exemplo do que tenha ocorrido com 12.25.56י
Assim, introduzida a princípio como uma nota marginal, a interpolação pode ter tra-
zido já em sua forma original alguma dificuldade envolvendo a preposição (είς/άπό/έξ)
ou a cidade (Ίηρουσαλήμ/Χντιόχεια), a qual acabou dando origem às diversas leituras
hoje conhecidas. Outra possibilidade é a de que a dificuldade tenha se originado da su-
perposição de notas marginais, como sugerido por Alford, ou quem sabe no momento em
que a nota passou da margem para o texto. Nesse caso, a conjectura de Westcott e Hort
(ύπέστρε׳ψαν την εις ’Ιερουσαλήμ πληρώσαντες διακονίαν) pode muito bem representar
não o texto original da passagem, como eles pensavam, mas a forma primitiva da nota
que, ao ser interpolada no texto de forma incorreta, com o artigo antes de διακονίαν, exa-
tamente a forma mais antiga documentada do texto, acabou levando copistas posteriores
a propor diversos tipos de correções.
156 Metzger declara: “Sem dúvida, a inserção... foi feita por copistas para explicar a presença de Silas em An-
tioquia no v. 40” (ibid., 388).
CAPÍTULO 7
Recentes Desenvolvimentos
A crítica textual do NT sempre esteve comprometida com a busca do texto original, e
nunca deixou de haver otimismo com relação à viabilidade do projeto, tanto que Westcott
e Hort já pensavam havê-lo concluído, ou quase concluído. Ao darem a sua obra 0 título de
The New Testament in the Original Greek, eles estavam convencidos de que as dificuldades
ainda restantes não correspondiam senão a uma fração insignificante do texto.1 Com as
descobertas da primeira metade do século vinte, sobretudo dos papiros, e as novas possi-
bilidades de pesquisa criadas pela cooperação de entidades e especialistas internacionais,
ο NA26 foi lançado em 1979 sob os clamores de que, finalmente, o texto original havia
sido alcançado.2
Desde então, muita coisa mudou. Em meio ao renovado debate hermenêutico e meto-
dológico dos últimos anos, muito daquilo que anteriormente era tido como certo tem sido
posto em dúvida. Um exemplo é a própria noção de texto original, o qual é hoje visto por
alguns como algo inalcançável ou mesmo inexistente, e os manuscritos, como tardios e
demasiadamente corrompidos, inclusive do ponto de vista doutrinário. Alega-se até que
algumas das doutrinas mais tradicionais da fé cristã devem sua origem não aos apóstolos
e evangelistas, mas aos copistas e corretores. Mais grave ainda, porém, é a utilização da
mídia popular para a divulgação de tais idéias, disseminando dúvidas entre aqueles que
sempre tiveram o NT em alta estima e procuraram se submeter a sua autoridade. Este
último capítulo se dedica ao exame de tais questões.
1 “Se trivialidades comparativas, tais como mudanças de ordem, inserção ou omissão do artigo antes de nomes
próprios e coisas afins, forem deixadas de lado, as palavras em nossa opinião ainda passíveis de dúvida dificilmente
excedem à milésima parte de todo 0 NT” (Westcott e Hort, 1:5611■
2 Kurt Aland declarou: “O novo ‘texto-padrão’ [NA26 = GNT3] passou no teste dos antigos papiros e maiúscu-
los. Ele corresponde, de fato, ao texto primitivo. ... Cem anos depois de Westcott e Hort, a meta de uma edição do
NT ‘no original grego’ parece haver sido alcançada” (“Der neue ‘Standard-Text’ in seinem Verhãltnis zu den frühen
Papyri und Majuskeln,” em New Testament Textual Criticism: Its Significance for Exegesis. Essays in Honour of Bruce
M. Metzger, ed. Eldon J. Epp e Gordon D. Fee [Oxford: Clarendon, 1981], 274).
3 O subtítulo foi inspirado em Epp, Perspectives on New Testament Textual Criticism, 551-593, do qual algumas
das informações abaixo foram extraídas.
240 RECENTES DESENVOLVIMENTOS
desde o início em mais de uma forma; (2) o conceito de que, à luz do registro textual, um
texto fixo, autoritativo e final não pode ser mantido e, por isso, deve ser abandonado; e
(3) a insistência de que o texto crítico não representa senão a forma de texto que antecede
as demais formas hoje conhecidas, podendo não corresponder necessariamente ao texto
original.
Múltiplos Originais
4 Johann L. Hug, Introduction to the New Testament, trad. David Fosdick Jr. com notas de Moses Stuart (Ando-
ver: Gould & Newman, 1836), 70-71.
5 Helmut Koester, “The Text of the Synoptic Gospels in the Second Century,” em Gospel Traditions in the Second
Century: Origins, Recensions, Text, and Transmission, ed. William L. Petersen, CJA 3 (Notre Dame: University of Notre
Dame Press, 1989), 19(-37).
6 Ibid.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 24ו
Tomando como exemplo 0 Evangelho de Marcos, Koester argumenta ter havido pelo
menos quatro edições sucessivas do livro e que todas elas coexistiram e foram utilizadas
de diversas formas por um bom tempo nos primórdios da igreja. Ao analisar as afinidades
textuais entre Mateus e Lucas, quando usam Marcos, ele tenta demonstrar que o Marcos
utilizado pelos outros dois evangelistas não foi aquele que conhecemos (canônico), mas
uma versão mais antiga, supostamente original. A evidência, segundo Koester, seriam os
vários casos em que Mateus e Lucas citam Marcos de uma forma diferente daquela que
está preservada nos manuscritos, fenômeno conhecido como “concordâncias menores.” Um
exemplo seria Mc 4.11. Ao citar a passagem, tanto Mateus (13.11) quanto Lucas (8.10) não
apenas substituem 0 singular μυστήριον (“mistério”) pelo plural μυστήρια, como também
acrescentam γνώναι (“conhecer”) depois de δέδοται (“é dado”). Visto que Mateus e Lucas
“reproduzem tudo ao redor desse discurso de Jesus com os discípulos (a parábola do semea-
dor e sua interpretação alegórica)” e o singular “mistério” como referência à pregação de
Jesus como um todo, ou ao evangelho como um todo, “ocorre somente na literatura cristã
posterior,” a diferença, na opinião de Koester, só pode significar que o Marcos utilizado por
Mateus e Lucas não representa senão uma forma anterior àquela que conhecemos.*8
Ainda segundo Koester, outra edição de Marcos também anterior àquela que foi cano-
nizada é testemunhada pelo chamado Evangelho Secreto de Marcos, do qual nosso Marcos
não representa senão uma versão abreviada. Ele chega a essa conclusão mediante compa-
rações de vários detalhes do pouco que se conhece sobre esse documento e o nosso Mar-
cos. Um desses detalhes seria 0 relato do jovem (νεανίσκος) que, “envolto em um lençol
sobre seu corpo desnudo” (περιβεβλημένος σινδόνα επί γυμνοΰ), vem a Jesus para ser
iniciado no mistério do reino de Deus. Em Me 14.50-51, durante o aprisionamento de Jesus
no Jardim do Getsêmani, um jovem (νεανίσκος) “envolto em um lençol sobre seu corpo
desnudo” (περιβεβλημένος σινδόνα επί γυμνοΰ), que estava por perto, deixa o lençol nas
mãos daqueles que tentam prendê-lo e foge nu. Como não há nenhum paralelo dessa his-
tória em Mateus e Lucas e nenhuma explicação satisfatória para sua presença em Marcos
pode ser oferecida, Koester argumenta que ela “foi adicionada pelo redator do Evangelho
Secreto de Marcos.” Portanto, se a redação do Evangelho Secreto daquele que talvez tenha
sido 0 texto original de Marcos deixou vestígios nos manuscritos sobreviventes do Evange-
lho, “a conclusão inevitável,” segundo Koester, “é que o texto canônico não consiste senão
numa redação posterior do Evangelho Secreto de Marcos.”9
As três primeiras edições de Marcos, portanto, teriam sido, nesta ordem: o Marcos ori-
ginal, o Evangelho Secreto e o Marcos canônico, sendo esse último o único que sobreviveu
7 Ibid., 20.
8 Ibid., 21-22 (η. 9); cf. Helmut Koester, Ancient Christian Gospels: Their History and Development (Londres:
SCM, 1990), 275-286. A ideia de uma edição anterior de Marcos para resolver 0 problema das afinidades entre os
Evangelhos Sinóticos não é nova. Para mais informação, veja Kümmel, 60-63.
8 Koester, “The Text of the Synoptic Gospels in the Second Century,” 34-36.
242 RECENTES DESENVOLVIMENTOS
10 Veja também Helmut Koester, “History and Development of Mark’s Gospel: From Mark to Secret Mark and
‘Canonical Mark,’” em Colloquy on New Testament Studies: A Time for Reappraisal and Fresh Approaches, ed. Bruce
C. Corley (Macon: Mercer University Press, 1983), 35-58. Assim também, Ron Cameron, The Other Gospels: Non-
Canonical Gospel Texts (Filadélfia: Westminster, 1982), 67-71.
12 Koester, “The Text of the Synoptic Gospels in the Second Century,” 30-33, 37.
13 Ibid. Cf. Koester, Ancient Christian Gospels, 360-402. Para a aplicação dos argumentos de Koester (de uma
profunda instabilidade do texto nos primórdios da tradição) às Epístolas Paulinas, veja William O. Walker, Jr., Inter-
polations in the Pauline Letters, JSNTSup 213 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2001), esp. 44-56.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 243
tava presente no texto original dos Evangelhos, mas é resultado da atividade escribal, pois
não são poucas as testemunhas que trazem o singular “mistério” em Mt 13.11 (it, vgm!s,
sir13, Clemente, Irineulat) e Lc 8.10 (it, vg, sirh, copsams), ou então ambos o verbo “conhecer”
e o plural “mistérios” em Mc 4.11 (G, f , 205, 983, 1424, 1506, al, sirh, copsamss).1415 Outra
explicação ainda mais simples é atribuir a diferença à tradição oral: embora conhecessem
o texto de Marcos, Mateus e Lucas também conheciam uma versão mais antiga e original
da declaração de Jesus e preferiram usá-la por acharem-na mais apropriada.16
Seja como for, é importante que se diga que as conclusões de Koester não passam de
inferências obtidas a partir das suposições com as quais ele opera: que a hipótese das duas
fontes é a mais apropriada para explicar o chamado “problema sinótico” e que Mateus e
Lucas em concordância contra Marcos reproduzem a forma mais antiga de seu texto. Ne-
nhuma dessas suposições pode de fato ser comprovada, e se qualquer outra das principais
soluções propostas para as afinidades entre Mateus, Marcos e Lucas for adotada, então
toda argumentação de Koester não passa de mero exercício de criatividade acadêmica.
Também convém observar que a defesa de Koester de uma hipotética versão de Marcos
mais antiga que a que conhecemos é, em boa medida, dependente do chamado Evangelho
Secreto de Marcos, que ocupa posição central em sua reconstrução. Ocorre que esse supos-
to evangelho é conhecido unicamente mediante dois pequenos fragmentos que, juntos,
não ocupam senão umas dez linhas de texto.17 Mas, isso não é tudo. Os fragmentos são
citados no que pretende ser uma carta de Clemente de Alexandria ao amigo Teodoro. A
carta (incompleta) teria sido descoberta em 1958 no Mosteiro Mar Saba, no deserto da
Judeia, por Morton Smith, professor de história antiga na Universidade Columbia, em
Nova York, sendo publicada somente em 1973. O documento nunca mais foi visto e sua
14 Koester, “The Text of the Synoptic Gospels in the Second Century,” 21. De acordo com Joel Marcus (The
Mystery of the Kingdom of God, SBLDS 90 [Atlanta: Scholars, 1986], 85 n. 37), Koester mesmo defendera essa inter-
pretação num ensaio (não publicado) apresentado em 1971 numa das reuniões da Sociedade de Literatura Bíblica
(em inglês, Society of Biblical Literature, ou apenas SBL). Em Ancient Christian Gospels, Koester admite que “um
grande número de concordâncias menores é devido às correções gramaticais e estilísticas comuns do texto algumas
vezes desajeitado de Marcos” (275). Sobre Mc 4.11 e sua relação com Mt 13.11 e Lc 8.10, Streeter já declarara: “A
frase ‘a vós vos é dado 0 mistério’ é obscura; 0 verbo γνώναί (conhecer) é a adição mais natural que dois intérpretes
independentes poderíam fazer” (313).
15 Em Mc 4.11, há ainda diversas testemunhas que trazem “conhecer” seguido do singular “mistério” (A, C2, D,
W, Θ, / 13, 33, 1006, Biz, it, vgcl-ww, sirp) (Kurt Aland, ed., Synopsis Quattuor Evangeliorum, 15a. ed. cor. [Stuttgart:
Sociedade Bíblica Alemã, 1996], 176).
16 Para uma ampla discussão de Mc 4.11/Mt 13.11/Lc 8.10 e outras concordâncias menores entre Mateus e
Lucas contra Marcos, veja Frans Neirynck, “The Minor Agreements and the Two-Source Theory,” em Minor Agree-
ments: Symposium Gottingen 1991, ed. Georg Strecker, GTA 50 (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1993), 25-62.
17 Construindo sobre a teoria de Koester, Hans-Martin Schenke sugere uma ordem diferente. Para ele, 0 pri-
meiro Marcos era 0 dos carpocratianos, o qual teria sido purificado e encurtado para formar o Evangelho Secreto
de Marcos e então, num estágio seguinte, 0 nosso Marcos (“The Mystery of the Gospel of Mark,” SecCent 4 [1984]:
65-82). Para ainda uma terceira reconstrução, sugerindo inclusive que a mesma fonte teria sido utilizada tanto pelo
Evangelho Secreto de Marcos quanto pelo Evangelho de João (para 0 episódio da ressurreição de Lázaro), veja John
D. Crossan, Four Other Gospels: Shadows on the Contours of Canon (Mineápolis: Winston, 1985), 119-120. Meier faz
0 seguinte comentário: “A grande variedade dessas teorias extravagantes apenas demonstra como hipóteses podem
crescer de várias formas para preencher o vácuo deixado pela escassez de dados” (A Marginal Jew, 122).
244 RECENTES DESENVOLVIMENTOS
18 Veja Stephen C. Carlson, The Gospel Hoax: Morton Smith’s Invention of Secret Mark (Waco: Baylor University
Press, 2005).
19 Craig A. Evans, Fabricating Jesus: How Modern Scholars Distort the Gospels (Downers Grove: InterVarsity,
2006), 97.
20 E.g., Scott Brown, “The Question of Motive in the Case against Morton Smith,” JBL 125 (2006): 351-383.
22 Gerd Theissen e Annette Merz, The Historical Jesus: A Compreensive Guide, trad. John Bowden (Mineápolis:
Fortress, 1998), 47. Assim também, F. F. Bruce, Jesus and the Christian Origins outside the New Testament (Grand
Rapids: Eerdmans, 1974), 165-166. Para 0 texto do Evangelho Secreto de Marcos, veja Koester, Ancient Christian
Gospels, 296-297.
23 Ibid., 295.
24 E.g., Brown, The Gospel according to John, 1:xxxiv-xxxix. Para outras teorias, veja Stephen S. Smalley, John:
Evangelist and Interpreter, 2a. ed., NTP (Downers Grove: InterVarsity, 1998), 94-120.
25 Carson, 45. Veja também John A. T. Robinson, Redating the New Testament (Londres: SCM, 1978), 310.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 245
rever sua opinião quanto à integridade textual do livro como um todo.26 Não que João não
possa ter tido mais de uma edição ou passado por diferentes estágios de composição, mas a
questão é se realmente existem meios seguros para identificá-los.27 As discrepâncias entre
as várias teorias são uma constante advertência a respeito.
É claro que sempre há o risco de se adotar uma abordagem reducionista em relação a
isso, mas o risco de uma visão arbitrária da evidência ou, pior ainda, de se produzir evi-
dência inexistente, é certamente maior. No afã por detectar formas anteriores do Evange-
lho de João, por exemplo, Koester apela inclusive para 0 Papiro Egerton 2, um fragmento
(cinco páginas incompletas) de material evangélico de origem desconhecida atualmente
datado de cerca do ano 200. Uma das características desse papiro é sua incomum combi-
nação de materiais sinóticos e joaninos ou, para ser mais preciso, a presença de materiais
sinóticos em contextos joaninos e de materiais joaninos em contextos sinóticos. De acordo
com Koester, tal combinação “pode muito bem atestar um estágio anterior do desenvol-
vimento no qual características pré-joaninas e pré-sinóticas de linguagem ainda existiam
lado a lado.”28 A pergunta inevitável é por quê? Em que se baseia tal conclusão? O argu-
mento de Koester parece violar a própria lógica, a qual, na falta de evidência factual, re-
presenta nossa única corte de apelação. Dadas as diferenças entre as linguagens joanina e
sinótica, é muito mais natural supor que uma combinação semelhante à que é encontrada
no documento não reflita senão um estágio posterior do desenvolvimento do texto, em
que possíveis tentativas de harmonização estivessem em operação ou pelo menos 0 livre
manuseio de reminiscências bíblicas.29
Seja como for, é importante destacar que a aceitação da presente forma do Quarto
Evangelho como sendo essencialmente a forma autografa não é em si mesma sinal de
ingenuidade ou ausência de sensibilidade crítica. E a razão é muito simples: se um redator
ou editor foi capaz de deixar o texto como está, 0 evangelista também teria sido, o que
equivale a dizer que “nós não precisamos pressupor um redator.”30 O ponto é que não há
26 Veja, e.g., a completa mudança de perspectiva ocorrida com Fernando F. Segovia, segundo seu próprio tes-
temunho em “The Tradition History of the Fourth Gospel,” em Exploring the Gospel of John: In Honor ofD. Moody
Smith, ed. R. Alan Culpepper e C. Clifton Black (Louisville: WJK, 1996), 179189( ־esp. 188 n. 12).
27 “Se 0 Evangelho evoluiu numa forma comparável à que é sugerida por Brown..., a produção de uma prova,
ainda que tentativa, de que foi isso mesmo o que aconteceu é algo que está totalmente além da capacidade do intér-
prete ou historiador joanino” (Robert Kysar, The Fourth Evangelist and His Gospel: An Examination of Contemporary
Scholarship [Mineápolis: Augsburg, 1975], 53).
29 “A justaposição de materiais joaninos e sinóticos e 0 fato de que 0 material joanino aparece incrustado em
frases sinóticas e o sinótico em expressões joaninas permite a conjectura de que 0 autor conhecia todos e cada um
dos Evangelhos canônicos” (Joachim Jeremias, “Papyrus Egerton 2,” em New Testament Aprocrypha, 2 vols., ed.
Wilhelm Schneemelcher, 2a. ed., trad. R. McL. Wilson [Louisville: WJK, 1991-1992], 1:96).
30 Leon Morris, “The Composition of the Fourth Gospel,” em Scripture, Tradition, and Interpretation: Essays
Presented to Everett F. Harrison by His Students and Colleagues in Honor of His Seventy-fifth Birthday, ed. W. Ward
Gasque e William S. LaSor (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), 172.
246 RECENTES DESENVOLVIMENTOS
qualquer evidência de que João tenha existido em mais de uma forma na tradição cristã.
Embora vários de seus manuscritos sejam fragmentários, não há absolutamente nada que
demonstre que, em algum momento ou lugar, ele tenha circulado numa forma diferente
daquela que conhecemos. Não há nenhum manuscrito, por exemplo, que comece o Evan-
gelho em 1.19 ou que o conclua em 20.31, deixando de fora o Prólogo ou cap. 21.31
O mesmo, porém, já não ocorre com 0 Livro de Atos e a Epístola aos Romanos, os
quais chegaram até nós em duas (ou mais) formas substancialmente distintas. O problema
com Atos é o texto cerca de 8,5% maior nos manuscritos ocidentais que nos manuscritos
alexandrinos; com Romanos, é a doxologia (16.25-27), que está ausente em alguns ma-
nuscritos ou então deslocada para depois de 14.23 ou 15.33 em vários outros. Nenhum
dos dois casos é de fácil solução, mas a ideia de edições distintas pelos próprios autores ou
seus associados parece a menos provável, apesar de várias vezes proposta.32 Em que pese a
possibilidade de que algumas das expansões ocidentais em Atos possam refletir tradições
autênticas, Peter Head demonstra que existe uma tendência teológica subjacente ao texto
ocidental (envolvendo questões de cristologia, 0 Espírito Santo, a condição dos apóstolos e
o decreto apostólico), o que sugere ser ele secundário e de origem não lucana.33 Quanto à
doxologia de Romanos, não é impossível que ela tenha sido acrescentada posteriormente,
talvez já no início do segundo século, embora sua origem paulina não possa ser de todo
descartada, sobretudo por causa de seu impressionante apoio documental Op6', א, B, C, D,
81, 1739, itar׳b'd*׳f׳°, vg, sirp, copsa,b0).34
Ou seja, conquanto não se deva negar a possibilidade de que um ou mais livros do NT
possam ter tido revisões ou edições distintas, nada de concreto pode ser comprovado. Não
há dúvida de que cada livro tem sua própria história textual, mas é impossível reconstruir
essa história em detalhes. Complexas teorias de composição envolvendo diferentes fontes
ou estágios redacionais estão, com frequência, muito mais associadas a pressuposições in-
dividuais que à força das evidências, quase sempre escassas e ambíguas. O próprio Koester
não raras vezes recorre a uma datação demasiadamente tardia dos Evangelhos e outros
livros neotestamentários e estranhamente precoce de documentos ou textos considerados
31 Em relação ao cap. 21, Ridderbos declara: “Os fatos primários são que em nenhum lugar 0 capítulo está au-
sente na tradição textual e que, se ele foi acrescentado posteriormente, o que existiu antes foi apenas a composição
original do evangelista ainda não publicada” (655).
32 Sobre Atos, veja acima, 97-99. Sobre Romanos, veja, e.g., Harry Y. Gamble, The Textual History of the Letter
to the Romans: A Study in Textual and Literary Criticism, StD 42 (Grand Rapids: Eerdmans, 1977), 96-126.
33 Peter M. Head, “Acts and the Problem of Its Text,” em The Book of Acts in Its Ancient Literary Setting, vol. 1,
The Book of Acts in Its First Century Setting, 4 vols., ed. Bruce W. Winter (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 415-428.
Quanto aos supostos lucanismos, i.e., vocábulos e expressões tipicamente lucanas, nas expansões ocidentais em
Atos, veja Delobel, “The Nature of ‘Western’ Readings in Acts,” 69-94.
34 Veja Larry W Hurtado, “The Doxology at the End of Romans," em New Testament Textual Criticism: Its Sig-
nificancefor Exegesis. Essays in Honour of Bruce M. Metzger, ed. Eldon J. Epp e Gordon D. Fee (Oxford: Clarendon,
1981), 185-199; Raymond F. Collins, “The Case of a Wandering Doxology: Rm 16.25-27,” em New Testament Textual
Criticism and Exegesis: Festschrift J. Delobel, ed. A. Denaux, BEThL 161 (Leuven: Leuven University Press, 2002),
293-303.
ORIGEM E TRANSMISSÃO DO TEXTO NO NOVO TESTAMENTO 247
apócrifos ou de origem bem posterior pela maioria dos estudiosos. Para ele, Mateus e
Lucas, por exemplo, não foram compostos senão ao redor do ano 10035 e a Epístola aos
Efésios aparentemente não passa de um documento pseudepígrafo e pós-paulino. Somente
assim ele pode fazer valer o argumento de que o singular “mistério” de Mc 4.11, como re-
ferência ao evangelho como um todo, “ocorre somente na literatura cristã posterior,” visto
que o termo é explicitamente utilizado com esse sentido em Ef 6.19 (cf. 3.1-7).
Outro exemplo seria Justino Mártir. Apesar da complexidade da evidência, não há
como negar que o escritor fez uso de uma espécie de harmonia dos Evangelhos Sinóticos.
O difícil é saber se se tratava de material escrito ou uma antologia de declarações de Jesus
transmitida de forma oral,36 embora talvez haja suficiente evidência que sugira 0 primei-
ro.37 Também nada se sabe quanto ao conteúdo ou formato desse material à parte das
poucas citações que parecem reproduzi-lo. Além disso, tem sido demonstrado de maneira
convincente que Justino conhecia individualmente cada um dos Evangelhos canônicos,
incluindo-se João,38 e as referências diretas ou indiretas que faz a eles revelam a alta
consideração que tinha pelas “memórias dos apóstolos.” Isso parece indicar que a tal har-
monia talvez não fosse senão “blocos de declarações de Jesus extraídas dos Evangelhos
escritos, primariamente Mateus e Lucas, e então harmonizadas por assunto” para uso na
instrução de catecúmenos ou, mais provavelmente, em polêmicas contra os oponentes
da fé cristã.39 Nada, porém, que visasse a substituir os Evangelhos canônicos ou que de-
monstre uma eventual instabilidade sistêmica do texto nos primórdios da tradição,40 como
pretendido por Koester.
Quanto ao cenário imaginado por Hug, em que 0 próprio autor ou algum auxiliar
imediato teria preparado várias cópias do mesmo livro, cada qual podendo ser descrita
como original e autoritativa, isso é mais ou menos o que Richards sugere com relação às
Epístolas de Paulo. Para ele, o apóstolo mantinha consigo cópias de sua correspondência
35 “Imediatamente antes ou logo depois do ano 100” (Koester, Ancient Christian Gospels, 275).
36 Assim, Eric Francis Os