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Deixar de ser sombra dos outros (CRP/SEE-MG | N°11 | Dezembro 2003 Elaborado a partir do texto "Atabetizacao de jovens e adultos: um pouco da historia” apresentado no programa Salto para o futuro / TV Escola (canal educativo do MEC) no dia 1® de setembro de 2003. Leéncio Soares Doutor em Educacio, professor da Faculdade de Educacéo Universidade Federal de Minas Gerais ‘Afabetzar ovens e adutos:granse desafo dos nosses tempos Um dos grandes desafios de nosso tempo continua sendo a alfabetizacao de jovens e adul- tos. Quando foi proclamada a Republica em nos- so pais, os indices de analfabetismo chegavam {casa dos 80% de brasileiros que nao sabiam ler nem escrever. Isso significava que de cada dez brasileiros sé dois conseguiam ler uma carta, ‘um documento, um jornal ou um livro. Os de- mais dependiam de alguém para decifrar 0 que estava escrito em qualquer texto ao redor. A economia naquele periodo girava em tomo da agricultura e grande parte da populagao morava no interior do pais. Logo, nao se colocava como uma das necessidades basicas da populacao (OLIVEIRA, 2001 -A Campanha Nacional de Adultos -47 a 63) a pratica da leitura e da escri- ta, Poucos sao os registros da existéncia de alguma escola para essa populacdo. ‘86 em 1947 & que o governo brasileiro lan- a, pela primeira vez, uma campanha de ambi- to nacional visando alfabetizar a populagdo. Foram criadas, inicialmente, dez mil classes de alfabetizagao em todos os municipios do pais. Como nao se tinha uma tradi¢ao, um acumulo de experiéncias ¢ de estudos sobre como alfa- betizar adultos, 0 discurso em torno da campa- ‘nha, os arguments didaticos e pedagégicos ti- nham como énfase a educagao das criangas. Em uma publicagao destinada aos protessores -Guia do alfabetizador -um dos mentores da 49 ot (CRP/SEE-MG | N?11 | Dezembro 2003 campanha, professor Lourengo Filho, assim se expressou: “E mais facil, mais simples € mais répido ensinar a adultos do que @ cri- anga: Nao 6 bem assim. Um agrupamento de adultos 6 caracterizado por uma grande heterogeneidade. S4o pessoas com expe riéncias e bagagens distintas, provindas das vivancias no campo familiar, social € no mundo do trabalho. Hé os jovens, os mais jovens - adolescentes, os adultos @ os mais adultos -a terceira idade. Essa diversidade de trajetérias requer um melhor preparo do ‘educador, logo, no 6 mais facil que en nar para criangas. Também nao mais sim- ples. Via de regra, 0 adulto ¢ visto @ se vé como alguém que perdeu tempo, que nao aprendeu no momento propicio e que se en- contra com a “cabega dura” para se envol- ver em novos processos de formacao. Es- | sas caracteristicas tornam o processo mais complexo e requerem um olhar di- ferenciado para esse publico, exigindo propostas pedagégicas adequadas e metodologias apropriadas para a educacao de adultos. Se a heterogeneidade e a di- versidade so caracteristicas das turmas de alfabetizagao, logo, exigitéo uma proposta que considere 0 tempo necessdrio a uma formagao que atenda ao objetivo de alta- betizar que, de forma alguma, se restrinja a 86 codificar @ a decodificar 0 cédigo escrito. Assim, dificilmente 0 processo seré mais rapido como preconizado no material direcionado aos alfabetizadores. Vé-se dessa maneira que a primeira Campanha Nacional de Alfabetizacdo as- sentou- se sobre alicerce de base fraca para sustentar um projeto nacional que alfabeti- zasse a populagdo. Em decorréncia das idéi- as expressas no documento aos professo- res, viu-se que, na inexisténcia de acumulo de experiéncias e estudos sobre alfabeti- zagao de adultos que dessem suporte as agdes governamentais, para uma ago “fé- sol cil, simples e répida’, usou-se qualquer ma- terial, de qualquer forma, com qualquer alfabetizador, ganhando qualquer coisa. Os movimentos de cultura e educacao popular - anos 50 e 60 Paralelamente & agao governamental, surgiram no final da década de 50 inicio da de 60, movimentos de educagao e de cul- tura popular. So exemplos: MEB -Movimen- to de Educagao de Base-MCP -Movimento de Cultura Popular CPC - Centro Popular de Cultura CEPLAR -Campanha de Educagao Popular De Pé no Chao Também se Apren- de a Ler (FAVERO, 2001). Esses movimen- tos emergiram em diversos locais do pals mas foi no nordeste que se concentraram em maior nimero @ em expressividade. Naquele periodo, 50% da populagao eram camponeses analfabetos, por conseguinte, mais da metade da populagdo brasileira era excluida da vida politica nacional, por ser analfabeta. Os movimentos surgiram da or- ganizagao da sociedade civil visando alte- rar esse quadro socioecondmico Conscientizagao, participagao e transforma- ‘go social foram conceitos elaborados a partir da pratica e das acdes desses movi- mentos. A alfabetizagdo de adultos foi uma dessas praticas que procurava vincular cul tura-educagao, realidade-transformagao so- cial. Paulo Freire organizou um processo de alfabetizagao a partir da realidade do edu- cando, no qual a leitura do mundo antece- dia a leitura da palavra. Durante o ano de 1963, encerrou-se a ‘Campanha Nacional de Alfabetizagéo que havia iniciado em 1947 e Paulo Freire assu- miu elaborar um Plano Nacional de Alfabe- tizagdo junto ao Ministério da Educagao. A interrupgao dese processo se deu com 0 golpe militar de 31 de margo de 1964 em que muitos desses movimentos foram ex- tintos e seus participantes perseguidos & exilados. Aalfabetizacao durante © regime militar - Mobral Se a pratica da alfabetizacado desenvol- vida pelos movimentos de educagao e cul- tura popular estava vinculada a um proces- s0 de conscientizagéo da populagao sobre a realidade vivida, acompanhado de uma participagao dos educandos, visando a transformacao dessa mesma realidade, com 0 golpe, a altabetizacao se restringiu a um exercicio de aprender a “desenhar o nome’ O Mobral - Movimento Brasileiro de Al- fabetizacao reeditou uma campanha em mbito nacional conelamando a populacao a fazer a sua parte: “vocé também é res- ponsével, entéo me ensine a escrever, eu tenho a minha mao domavel, eu sinto a ssede do saber’. © Mobral fl criado em 1969 e suas agées foram efetivadas a partir de 1971 com forga e muitos recursos. Recru- tou alfabetizadores sem muita exigéncia, repetindo, assim, a despreocupacdo com 0 fazer e o saber docente: qualquer um que soubesse ler e escrever poderia também en- sinar. Qualquer um, de qualquer forma e ga- nhando qualquer coisa Foi extinto em 1985 com a Nova Re- publica e o fim do regime militar e, em seu lugar, insttulu-se a Fundagéo Educar. Seus sitios anos foram marcados por dentinc as que culminaram na criagao de uma CPI - Comissao Pariamentar de Inquérito - para apurar os destinos, a aplicagdo dos recur- 508 financeiros e os falsos indices de anal- fabetismo. ‘Como na campanha anterior de 1947/ 1969, iniciativas simultaneas as do gover- ro federal foram surgindo na sociedade ci- vil. Praticas de alfabetizacao foram desen- volvidas no interior de igrejas, de associa- ges comunitarias e de sindicatos. Essas praticas, muitas vezes, mesclaram-se com as do Mobral, surgindo, assim, agdes con- traditorias como as na baixada fluminense que, com os recursos do Mobral, desenvol- veram uma experiéncia que foi além do que se esperava. A alfabetizacao na Nova Republica - Fundagao Educar ‘A Fundagao Educar foi criada em 1985 e. diferentemente do Mobral, passou a fazer parte do Ministério da Educagao. A Funda- ‘¢40, a0 contrério do Mobral que desenvolvia ‘agdes diretas de alfabetizagao, exercia a su- perviséio © o acompanhamento junto as insti- tuigées e secretarias que recebiam os recur- 508 transferidos para a execucao de seus programas. Essa politica teve curta duracdo, pois, em 1990 - Ano Internacional da Alfabe- tizagéo - em lugar de tomar a alfabetizagao ‘como prioridade, 0 governo Color extinguit a Fundagao Educar, nao criando nenhuma outra que assumisse suas fungées. Tem-se a partir de entao, a auséncia do govern fede- ral como articulador nacional e indutor de uma politica de alfabetizagao de jovens e adultos no Brasil A alfabetizacao no periodo de redemocratizacao - Mova Contraditoriamente, no Brasil, foi pro- mulgada uma nova Constituigao Federal que estendeu o direito & educacao aos que ainda néo haviam trequientado ou conclu do 0 Ensino Fundamental. Com a desobrigagéo do governo federal em aten- der esse direito (BEISIEGEL, 2000), os mu- nicipios iniciaram ou ampliaram a oferta de educagio para jovens © adultos. No inicio dos anos 90, surgiu o Mova -Movimento de Alfabetizagao - com uma nova configuragao que procurava envolver o poder piiblico e as iniciativas da sociedade civil. O Mova se muitipicou como uma marca das adminis- tragées ditas populares, tendo o idedrio da educagao popular como principio de sua atuago: 0 olhar diferenciado sobre os su- 51 (CRP/SEE-MG | N°11 | Dezembro 2003 (CRP/SEE-MG | N?11 | Dezembro 2003 jeitos da alfabetizagao; a elaboracao de uma proposta pedagégica a partir do contexto sociocultural dos sujeitos; 0s educandos ‘como co-participes do processo de forma- Ao. Portanto, so caracteristicas do Mova: ‘© vinculo estado-sociedade enquanto gestor de uma politica publica de alfabetizacao e a associagao entre educagao e cultura. © Programa Alfabetizacao Solidaria - PAS Em 1996, foi langado, em Natal, o Pro- ‘grama Alfabetizagao Solidéria num evento nacional de educagao de jovens ¢ adultos como etapa preparatéria para a V Confintea = Conteréncia Internacional de Educagao de ‘Adultos. Na ocasido, participaram como pro- ponentes 0 Ministro da Educagao, Paulo Renato de Souza e Dona Rute Cardoso, representando a Comunidade Solidaria. O langamento do PAS causou um frisson en- tre 0s participantes do Encontro Nacional de Educagao de Jovens e Adultos por reeditar praticas consideradas superadas por pesquisadores e estudiosos da alfabe- tizagdo. Com duragdo de seis meses, sen- do um més para “treinamento" dos alfabetizadores e cinco meses para desen- volver a alfabetizagdo, o PAS propunha uma ago conjunta entre governo federal, em- presas, administragées municipais e univer- sidades. Atendendo os municipios com IDH = Indice de Desenvolvimento Humano -infe- rior a 0,5, 0 PAS propunha as instituigdes de Ensino Superior das regides Sul e Su- deste que supervisionassem as acdes nas cidades localizadas nas regides Norte e Nor- deste. © formato do Programa atraiu criticas de pesquisadores (HADDAD, 2000 e DI PIERRO, 2001) por se tratar de um progra- ma aligeirado, com altabetizadores semipreparados, reforcando a idéia de que qualquer um sabe ensinar, @ com forte én- fase na relacdo de submissao entre o nor- s2l te-nordeste (subdesenvolvido) e 0 sul-su- deste (desenvolvido). Com a permanente campanha - adote um analfabeto - 0 PAS tem contribuido com a imagem que se faz de quem nao sabe ler e escrever como uma pessoa incapaz, passiva de adogao, de aju- da, de uma agao assistencialista diferente- mente de um sujeito de direito. Programa Brasil Alfabetizado O atual governo assumiu como uma de suas prioridades aboliro analfabetismo. Para isso estipulou a meta de altabetizar, em quatro anos, 20 milhoes de cidadaos que nao tiveram acesso & educagdo e criou a SEEA -Secretaria Extraordindria de Erradicagao do Analfabetismo. Nesse sen- ‘ido, {01 instituido 0 Programa Brasil Afab tizado a ser implementado em parcerias. entre o governo federal, estados, municipi- 0s, empresas privadas, organizagbes nao- governamentais, organismos internacionais @ insttuigbes civis. Segundo suas diretrizes, essas parcerias tém por objetivo qualificar, organizar e potencializar 0 esforgo nacio- nal de combate ao analfabetismo Para que o Brasil Alfabetizado nao reproduza equivocos do passado, ha que dar atengao a aspectos tals como: conce- ber a altabetizagao como direito e nao como favor, agao filantropica ou assistencialista que coloca 0 analfabeto como incapaz e ig- rnorante; considerar 0 tempo necessério a0 processo de alfabetizagao; garantir a conti nuidade dos estudos no Ensino Fundamen- tal e uma formagao qualificada dos alfabetizadores. Algumas consideragées Chegamos ao ano 2000, ao século XXI, ‘com um indice elevado de brasileiros que ainda nao tém © dominio da leitura, da es- crita e das contas. Se j4 nao fosse pouco, ‘0s quase 20 milhdes de analfabetos consi- derados absolutos, passam de 30 milhdes 098 considerados analfabetos funcionais que chegaram a freqlentar uma escola mas por falta de uso da leitura e da escrita retornaram & posicao anterior. E, pasmem, chega a casa dos 70 mihées os brasileiros acima de 15 anos que nao atingiram o nivel Minimo constitucional, ou seja, 0 Ensino Fundamental. Somam-se a esses os neo- analfabetos que, mesmo treqdentando a escola, nao estéo conseguindo atingir 0 dominio da leitura da escrita. Sao produ- tos de uma nova exclusdo que, mesmo ten- do se escolarizado, no conseguem ler e interpretar um simples bilhete ou texto. Esse ovo contingente estaré fazendo parte do Publico demandatério da educagao de jo- ens e adultos. Aumenta com isso a divida ‘social para com os mais exclufdos na pro- Porgao inversa da responsabilidade do Es- tado em atender o direito constitucional & ‘educagao, Que significado tem para as pes- Soas, nos dias de hoje, poder ler e escrever @ ponto de deixarem de ser sombras dos outros? Como atingir niveis satistatérios de desenvolvimento econdmico e social que sejam, de fato, para todos? Na passage do Brasil Império para o Brasil Repiblica tinhamos a maioria da po- Pulagao sem o dominio da leitura e da es- crita e isso significou uma heranca socioecondmica de grande desatio. O que dizer, ¢ principalmente, o que fazer, nos dias de hoje, quando herdamos um Brasil ainda repleto de analfabetos, quando desejamos a mudanga desse cenario a fim de chegar- mos & um Brasil Alfabetizado? Bibliografia BEISIEGEL, Celso de Rui. Questoes de atualidade na educagao popular: ensino funda- ‘mental de jovens ¢ adultos analfabetos ou (CRP/SEE-MG | NP11 | Dezembro 2003 Pouco escolarizados. Educagdo em Revista, Belo Horizonte: Faculdade de Educagao da UFMG, 2000, DI PIERRO, Maria Clara. Descentralizacéo, focalizagao e parceria: uma andlise das ten- déncias nas politicas publicas de educagao de jovens @ adultos. Educagao e Pesquisa. Sao Paulo, v.27, n.2, p.921-397, jul./dez., 2001. FAVERO, Osmar. Cultura popular e educagao ‘popular: meméria dos anos 60. Rio de Janeiro: Edigdes Graal, 2001, FERRARO, Alceu Ravanello, Histéria quantita- tiva da alfabetizagao no Brasil. Letramento no Brasil. S40 Paulo: Global, 2003, FREIRE, Ana Maria Aratjo, Analfabetismo no Brasil. Sao Paulo: Cortez, Brasilia, DF: INEP 1989, FREIRE, Paulo. Desafios da educagao de adultos ante a nova reestruturagao tecnolégica. Pedagogia da indignagao: cartas pedagégicas e outros escritos, S40 Paulo: Edi- tora UNESP, 2000. HADDAD, Sérgio. Aprendizagem de jovens e ‘adultos: avaliagao da década de educacao para todos. So Paulo em Perspectiva. Séo Paulo: SEADE, v. 14, n.1, p.29-40, jan./mar, 20001 OLIVEIRA, Marta Kohl. Jovens @ adultos como sujeitos de conhecimento e aprendiza- gem. Educagao de jovens e adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas: Mercado de Letras. 2001, SOARES, Ledncio. As politicas de EJA e as necessidades basicas de aprendizagem dos Jovens ¢ adultos. Educagao de jovens e adul- ‘os: novos leitores, novas lelturas, Campinas: Mercado de Letras. 2001. 53

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