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SOBRE A BUROCRACIA WEBERIANA

GURGEL, Claudio. O papel da ideologia nas teorias organizacionais. In: PADILHA,


Valquíria(Org.). Antimanual de gestão: desconstruindo os discursos do management. São
Paulo: Ideias e Letras, 2015. 415p.p.

CAPÍTULO 1

O PAPEL DA IDEOLOGIA NAS TEORIAS ORGANIZACIONAIS*


Claudio Gurgel
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Trecho da p. 44 a 47

Weber e a ideologia da igualdade burocrática.

A teoria burocrática weberiana traz consigo um componente ideológico sutil.

Segundo as palavras de Weber “a dominação burocrática significa, em geral […] a

dominação da impessoalidade […] sem considerações pessoais, de modo formalmente

igual para cada qual, isto é, cada qual dos interessados que efetivamente se encontram

em situação igual” (WEBER, 2000, p. 147).

O conceito de burocracia traz sem dúvida a ideia de impessoalidade e igualdade,

nas palavras repetidas de Weber em seus textos sobre dominação.

Como é sabido, ele está em busca da fonte de legitimidade da dominação, melhor

dizendo, do que, diante dos dominados, legitima a dominação: “é conveniente distinguir

as classes de dominação segundo suas pretensões à legitimidade” (Idem, p. 139). Fará

isto em relação ao que denomina de “três tipos puros de dominação legitima”,

explicando que “a vigência de sua legitimidade pode ser, primordialmente: 1. de caráter

*
O autor agradece as contribuições críticas da professora Agatha Justen.
racional [...] 2. de caráter tradicional […] ou de caráter carismático” (WEBER, 2000, p.

141). É a dominação racional aquela “baseada na crença na legitimidade das ordens

estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados

para exercer a dominação (dominação legal)” (Idem).

No caso da burocracia, ele se refere “a dominação legal com quadro

administrativo burocrático” (WEBER, 2000, p. 142). Em várias passagens, enfatiza este

caráter legal, dizendo sob variadas formas que

A burocracia em seu desenvolvimento pleno encontra-se também, num


sentido específico, sob o princípio sine ira ac studio [...] Em vez do
senhor das ordens mais antigas, movido por simpatia pessoal, favor,
graça e gratidão[...] o especialista não envolvido pessoalmente [...] a
estrutura burocrática oferece uma combinação favorável. Sobretudo é
só ela que costuma criar para a jurisdição o fundamento para a realização
de um direito conceitualmente sistematizado e racional, na base de leis
(WEBER, ibid, p. 213).

A burocracia não gratuitamente é chamada de sistema racional-legal. Ela se

pretende colocar acima do personalismo, do patrimonialismo, das vontades pessoais. Um


“império da lei”, racional, sem ira e sem paixões.

Sim, é a lei para todos. Mas o conjunto de regras técnicas e normas que constituem

o sistema legal em que se apoia o conceito weberiano de burocracia não é inquirido sobre

a sua própria legitimidade – ele, este conjunto, é apresentado como legitimador, sem que

o autor indague em que condições aquelas regras e aquelas normas foram produzidas.

Como foram formuladas e formalizadas, que jogo de forças e pressões, que recursos de

poder político e econômico, que dominação política precede a dominação burocrática –

isto não se coloca ao autor.

Uma ideologia da igualdade é construída a partir da teoria da burocracia. A

impessoalidade do funcionário, baseada nas normas ou, mais amplamente, no sistema de


direito, abstrai a realidade desigual em que estas normas ou este sistema de direito é

construído. Ele procura fazer crer, ademais, que “a administração burocrática significa:

dominação em virtude de conhecimento”, dizendo ser “este o seu caráter fundamental”

(WEBER, 2000, p. 147). Antes já dissera que “o grande instrumento de superioridade da

administração burocrática é o conhecimento profissional” (Idem, p. 146). Para

acrescentar mais adiante: “posição de formidável poder devido ao conhecimento

profissional” (Idem). Trata-se de dupla inversão, em que no primeiro caso a dominação

é atribuída ao conhecimento, quando na verdade a dominação é realizada pelo conjunto

de leis sobredeterminadas essencialmente pelo poder econômico onde de fato reside o

poder. No segundo caso, na subjetivação do poder, Weber aponta para o

profissional/funcionário, que na verdade é um agente do poder, ele mesmo dominado. Os

que detêm o poder - os que controlam os meios de produção da riqueza e a própria

riqueza – são eclipsados nesta presunção da dominação do conhecimento e do

funcionário.

A construção desta ideologia, uma falsificação do real, trouxe consigo uma

variada gama de outras falácias, como o “recrutamento universal a partir dos

profissionalmente mais qualificados” (WEBER, 2000, p. 147). Aqui estamos lembrando

o conceito de meritocracia, cujo papel seletivo e discriminatório nas sociedades moderna

e contemporânea é conhecido. O conceito de qualificado é construído absorvendo toda

a massa de condicionantes da vida burguesa, que se expressa nas provas de concurso e


nas entrevistas para admissão ao trabalho, cujas questões fortalecem e induzem ideias e

comportamentos; nas universidades corporativas, verdadeiras lavagens cerebrais


embutidas em discursos pretensamente acadêmicos; nos códigos de ética e outros

recursos que moldam o mérito muito além (ou aquém?) do conhecimento técnico e
científico dos candidatos.

Falácia também é o protagonismo atribuído aos burocratas, hoje mais atacados e

culpados dos males da burguesia do que os próprios burgueses que ali os colocam para

executarem as políticas que lhes interessam. Weber também alimentou esta fantasia

quando apontou para “a tendência dos funcionários a uma execução materialmente

utilitarista de suas tarefas administrativas” (Idem), o que acabou extrapolando para um

senso comum (ideologia) de que a burocracia se imporia como um poder à parte, tema a

que o pensador alemão dedicou várias páginas, especialmente em seu pouco conhecido

Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída (1980).

Há também uma versão de que a burocracia rivaliza com a representação dos

interesses legítimos da sociedade, impondo-lhe (“tendência a exigir os correspondentes

regulamentos”) exigências infindáveis e assim efetivando uma dominação insuportável.

Isto acabou por dar às mesquinharias e questões secundárias – problemas que não estão

na base da exploração, ainda que de fato incomodem – uma dimensão tão agigantada

que as causas reais da desigualdade, do sofrimento no trabalho e na vida social, são

subsumidas.
Cabe ainda chamar a atenção para o conceito de racionalidade presente no

discurso weberiano sobre a burocracia. A racionalidade burocrática seria um ponto

avançado do desenvolvimento da sociedade, o movimento destinado a superar o

patrimonialismo, como modelo de dominação. Weber se refere ao patrimonialismo que

exerce, por exemplo, o monarca, ao não distinguir os bens públicos dos bens privados,

considerando a tudo seu patrimônio. Entretanto, ao observador mais atento não escapa o

fato de que em grande medida o que se está intitulando de racional, palavra-açúcar da


modernidade, em contraponto ao patrimonialismo, consiste da legitimação pela lei do

patrimonialismo burguês. Aquele que se exerce de modo amplo, envolvendo o mercado,

o Estado e por consequência a sociedade como um todo. De onde vem a dominação

racional que o patronato exerce senão da prevalência do capital sobre tudo mais? É este

capital, líquido e físico, que por seu turno permite ao capitalista tratar a todas e todos

como seu patrimônio. É ele, este patrimônio – dinheiro, máquinas e instalações – a

metonímia do patrimônio de que se apossa o detentor do capital. É a parte que representa

o todo. Não é outra a razão pela qual o Estado, patrimonialisticamente gerido sob as

regras burocráticas, se põe de joelhos diante do capital e o serve de acordo com a

necessidade, a cada crise e a cada bonança. Lembrando que o patrimonialismo é muito

associado aos sistemas monárquicos, cabe perfeitamente citar aqui o comentário de Marx

sobre o poder do capital, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel: “quem detém a

propriedade privada é rei” (MARX, 2005, p. 156).

A racionalidade e o sistema de direito que constituem o sistema racional-legal, a


burocracia moderna, em contraste com o patrimonialismo é, portanto, em grande parte,

um ilusionismo - ao estilo de todas as ideologias do dominante.

Referências bibliográficas

(Essas referências bibliográficas correspondem ao capítulo 1, de onde o trecho foi

extraído. Nela o leitor pode encontrar as citações contidas no trecho)

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