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Adocao e sofrimento psiquico! Gina Khafif Levinzon? Resumo: Encontramos, agumas veves, estados de intenso soffimento psiquico em fi mils ligadas pela adogio. Por sua condigio inicial de desamparo, a erianga se torna mais sensivel as dificuldades ambientais as quais esta submetida. Para os pais adativos, hi 0 desafio de criar um filho que no nasceu deles e que tem uma histéria anterior da qual no participaram. Algumas caracteristicas inerentes 20 processo de adogio exigem um esforgo de adaptacio maior do que nas familias unidas pelo vinculo biol6gico: a experiéncia de separacio de crianga em relacio mae com ligacZo genética, as marcas do abandono do cuidado inicial deficient, a esterilidade dos pais adotivos assim como suas angistias ¢ expectativas em relagio & crianga. E caso clinico no qual 2 intrineada dinimica familiar se entrelagava com angistias relaciona- «temas so examinados a partir da andlise de um das 20 panorama de adogio, promovendo sofrimento psiguieo em todos os integrantes da familia. Michel, um menino de cinco anos, nio podia separar-se da mie adotiva e ter viida propria. Uma série de desenhos ilustra seu panorama psiguico e suas fantasias de ser © responsivel pelo desaparecimento da mie biolégica e pelas doengas dos pais adotives. Palavras-chave: Adocio, Angristia de separagio, Psicandlise de criangas, Simbiose com ‘a mac. Softimento psiquico. A adogio atende as necessidades essenciais da crianca de ser criada dentro de um Ambito familiar ¢ as necessidades ou desejo de pais que se dispdem a exercer a funcio parental com uma cfianca que nao péde permanecer com seus geni: tores. Como afirma Winnicott (1953), a histéria da adocio, quando transcorre bem, é de uma histéria humana comum e apresenta perturbacées ¢ contratem “Antigo baseado no trabalho apresentado no IPA, realizado em Praga em 2013. 2. Psicanalista, Membeo Efetivo da SBPSP. Doutora em Psicologia Clinica USP. © Congresso Internacional de Psicanilise da Psicanélise v. 18 n° 1, 2016 | 57 Adogo e sfrmentopguco pos que fazem parte da histéria humana comum em suas infinitas variacdes. HA, no entanto, algumas caracteristicas que so inerentes ao processo de ado- 10, que exigem um esforso de adaptacio maior do que nas familias unidas pelo vinculo biolégico (LEVINZON, 1997,1999, 2004, 2014a). A ctianga adotiva passou necessariamente por uma experiéncia de separacio, em relacio & me com ligagio genética, que na maioria das vezes se deu em um momento de vida bastante precoce. Podemos dizer que essa separacao represen: ta, para a eran , um trauma que tem maiores ou menores proporcdes confor me as condigées em que se deu tal evento. Para Garma et al. (1985), entre 0 bebé e a mie normalmente se produz uma verdadeira danga, bailada em unissono, na qual ambos vio aptendendo 0 ritmo, a sequéncia de movimentos um do outro, respondendo a expectativas miituas. A coincidéncia nos ritmos bebé-mie corresponde ao marco da identificagio. No caso de criangas adotivas, essa relacio demanda situagées precoces de exigéncia de adaptacao e 0 processo de identificago necessita de um esforco maior do aparetho psiquico para ocorrer de modo adequado. Segundo Abadi e Lema (1989), a crianca adotada deve acomodar-se, em poucos dias, a0 contato de um ritmo corporal des conhecido, & linguagem ou sinais de outro corpo, enquanto que o vineulo corporal anterior com a mic biolégica é definitivamente perdido. Essa descontinuidade ini cial é base de uma maior sensibilidade diante de situagdes de separacio, podendo dar lugar no futuro a um medo exacerbado de ser abandonada, A marca do abandono e do desamparo pode estar gravada no psiquismo da crianga como uma cicattiz indelével ou até como uma ferida narcisiea com di- mensdes dramiticas, Isso vai depender do que Freud (1916-1917) denominou de Séries Complementares, ou seja, da inter-relagio entre a constituigao genética da ctianga ¢ a adequacio do seu ambiente. A partir de seu trabalho com pais e criangas adotivas, Goldenberg (1992) res. salta que a auséncia inicial de estimul sensorial ¢ a separacio da genitora de ‘maneira abrupta ¢ repentina acarretam, em alguns casos, problemas importantes. As criangas exprimem com frequéncia suas tensdes internas por meio de do- encas somiticas, Quanto menor for a crianca no momento da adogio, maiores suas possibilidades de recuperar e resgatar os lacos afetivos ¢ de encontrar um ambiente continente as suas frustragdes € decepgdes. Nos casos de adngéestardias(tealizadas com criancas de mais de dois ou trés anos), é preciso claborar as situagSes anteriores de desamparo € sofrimento e ao mesmo tempo tealizar um esforgo de adaptacio aos novos pais € 4 nova condigio de vida. Os pais adotivos também se defrontam com uma série de desafios a serem supe- rados. Os motivos que os levam a adotar uma crianga sio diversos, mas representam 58 | Psicandlise v.18 n° 4, 2016 Gn Kat Levinzon © primeiro ponto essencial a ser considerado no processo de adogio, Frequentemen- te, encontra-se presente uma situacao de esterilidade que precisa ser claborada pelos pais. Bles se veem as voltas com o luto pela impossibilidade de gerar seus flhos, com tudo © que isso representa em termos da continuidade de si mesmos ¢ de sua imagem narcisica. Para Diniz (1993), a pessoa estéril se vé privada de uma impor- tante defesa na sua luta contra a morte, que a proctiagio de um filho simboliza. A esteriidade pode também se ligar a fantasias de culpa edipiana por parte dos pais, como se fosse um caitige por seus desejos ¢ imagin inferioridade e migoas veladas entre os conjuges pela impossibilidade de gerar 0 pré: ptio filho também podem ser encontrados nestes casos. Brinich (1980) ressalta que © fato de a mie adotiva ter ganhado um bebé, mas nio fer fide um bebé tem importantes implicagées na representacao mental de si mesma e de sua crianca adotiva. Enquan. toa mie bioldgica pensa na crianga como parte dela mesma, a mie adotiva sabe que a crianca era parte de outr pessoa, Esses sentimentos podem afetar a rclacio da mile com seu filho adotivo, impedindo 2 aceitagao mais plena deste viltimo. E comum encontrarmos, nos pais adotivos, fantasias de roubo, ou seja, 0 medo de perder sua crianca. Fim alguns casos, esse temor perdura por muito tempo depois de realizada a adocio. F. como se os pais sentissem continuamente que sua relacio corre perigo. Segundo Wieder (1978), esses medos esto associados a sentimentos incons cientes de culpa e medo de retaliagio. Sentem inconscientemente como se tivessem roubado a crianca de sua genitora, assim como ansiaram intimamente roubat os bebés de sua propria mae quando pequenos. Imaginam ainda que a crianca poder dios no futuro e abandon4-tos para procurar seus pais bioligicos. Outro ponto essencial a ser considerado refere-se A dinimica familiar que se estabelece entre pais ¢ filhos adotivos ao longo do desenvolvimento destes Ultimos. O lugar de cada um na familia, seus afetos, seus temores, € suas intersee- ges se entrelacam com as fantasias ¢ angistias relativas ao processo de adogao, Para Winnicott (1953), quando a historia inicial da erian em termos de estabilidade ambiental, os pais adotivos nio esto apenas adotando ‘uma crianga, mas serio terapeutas de uma erianga catente. Segundo esse autor, 0 «que fizerem como pais tera que ser feito mais deliberadamente, com mais conheci- mento do que esta sendo feito e mais repetidamente, 2o invés de apenas uma v “porque a terapia é mais complexa do que o bom manejo comum’” (p. 117). Esse tipo de situacio é muitas vezes desconhecido de pais que adotam ¢ resulta em sé rios problemas de adaptacio familiar, principalmente quando idealizam o processo enio estio cientes dos desafios que deverio enfrentar, F. importante ressaltar a influéncia decisiva da dinamica familiar adotiva no equilibrio emocional da crianga. Winnicott ( ces proibidos. Sentimentos de adotada nao foi boa 4), a0 analisar um easo de ado- Psicanélise v. 18 n° 1, 2016 | 59 Adogo e sfrmentopguco cio, sublinha a importincia da estabilidade do casamento dos pais adotivos na configuracio psiquica da ctianga. Poderiamos dizer que isso se dé para qualquer ctianca, seja adotada ow nao, mas supomos que, nos casos de adogio, a histéria anterior de privagio ambiental deixa-a mais suscetivel as turbuléncias familiares, O atendimento de familias adotivas na clinica psicanalitica tem sido frequente em minha experiéncia clinica e j& me referi a ele em trabalhos anteriores (E~ VINZON, 1999, 2004, 2006, 2011, 2012, 2013, 2014a, 2014b, 2014c). Muitas veres, a procuta de auxilio psicanalitico nao esta explicitamente relacionada 4 questio da adocio, como quando a crianca apresenta dificuldades escolares ou de comportamento, Nestes casos, a adogio reptesenta o pano de fundo no qual essas dificuldades ocorrem, Outras vezes, a demanda esté diretamente telaciona- da ao tema da adocio, como na procuta de otientagio de pais para lidar melhor com o seu filho adotivo, para contar-the sobre a ado¢io ou ainda pata preparar © casal diante de um processo de adogio que ainda nao se iniciou. Nesses casos, hd a possibilidade de se efetuar um trabalho psicoprofilitico, que proporciona condigdes para uma melhor adaptagio da familia, Adogio nio significa sofrimento. Pelo contrario, em condigées adequadas, proporciona, na maior parte do tempo, condicées para uma vida mais plena. Em certos casos, no entanto, deparamo-nos com situagdes de intenso softimento psiquico presente tanto no filho quanto nos pais adotivos ¢ que tém, em graus vatiados, um potencial patogénico Pretendo, neste trabalho, relatar e discutir um caso clinico no qual a intrinea- da dinamica familiar se entrelagava com angtistias relacionadas a0 panorama de adogio, promovendo sofrimento psiquico em todos os integrantes da familia. considerado, Michel Michel tinha cinco anos quando o conheci. Os pais vietam buscar ajuda por- que cle defecava nas calgas. Costumava reter as fezes até nio mais aguentar, ficava muito agitado € se escondia para defecar. Parecia ter medo de seu coed, ‘mas os pais relataram que houve situagdes em que ele os agredia através de seus excrementos. Certa ve7, por exemplo, defecou na janela do apartamento, langan- do seus cocir para baixo. Michel tinha muitos medos e, naquela época, pedia 4 mae que contasse a histéria da Chapeuzinho Vermelho sem incluir Lobo. A mie achava que esse pedido cra muito saudavel por patte dele, o que mostrava sua prépria dificuldade de lidar com a agressividade. ‘Matia, a mie de Michel, sofria de uma doenca ctdnica grave que deforma seu corpo. Jé tinha passado por varias cirurgias e em funcio do tratamento nao 60 | Psicandlise v.18 n° 4, 2016 Gn Kat Levinzon podia engravidar. O pai de Michel tinha uma deptessio muito grande que foi se agravando com o passat do tempo e que resultou na perda do emprego ‘num sentimento de alheamento cada vez maior. Jé tinha sido internado algumas veres. Quando o pai saia de casa ¢ demorava para chegar, Michel ficava muito angustiado. A mie Ihe dizia que © pai estava com 0 snd mole. Mesmo sabendo que as doengas de ambos os pais eram graves, optaram pela adogio de uma crianca. Creio que além do desejo universal de ter um filho, Mi chel entrou nessa familia com a fungio de ser 0 saltader dos problemas dos pais. Ble foi adotado quando tinha dias de vida e sempre soube disso. Foi-lhe dito ‘que sua genitora era uma pessoa honrada, mas que nao tinha condigdes de cuidar dele. Michel quis vet o hospital onde nasceu ¢ ficou triste 20 saber que nao tinha nascido da barriga de sua mae adotiva, Ao me procurarem, os pais se mostravam ambivalentes. E’stavam preocupados com o filho, com o softimento que seus sintomas Ihe causavam, especialmente no convivio social. Ao mesmo tempo, ele os exasperava com suas provocagdes, que pareciam ter significados variados, Eram comportamentos antissociais que, como Winnicott (1956) descreve bem, representam pedidos de ajuda a um ambiente «que falhou em prover necessidades bisicas. Sentiam-se culpados, pois sabiam que © ambiente familiar eta muito conturbado. O fato de haver uma descontinuidade genética entre cles e o filo parecia trazer um duplo sentido: por um lado, havia uum alivio pela ideia de que ele nao herdatia as doengas que os dois pottavam, Por outro lado, havia momentos em que pareciam pensar que se ele tivesse vindo deles no exibiria comportamentos tio disruptivos. Estas sho as chamadas fanfasias do ‘mau sangue, ou scja, a ideia de que nao é possivel apagar as marcas da ligacio com pais consanguineos, vistos como pessoas inadequadas (LEVINZON, 1997, 2004) Na época do atendimento, o relacionamento conjugal dos pais estava dete- riorado. Depois de alguns meses, separaram-se. Maria se submeteu a mais uma cirurgia. O pai sai de casa. Esses fatores ambientais potencializavam as fantasias de Michel, que actedi- tava na forca onipotente de seus sentimentos agressivos ¢ sentia-se responsavel pelos males apresentados pelos pais. As fezes pareciam ter, pata ele, a fungio de expressar sua raiva, angiistia ou desagrado com o que se passava ao seu redor. ‘Um menino e duas mdes ‘Logo no inicio da anilise, Michel desenvolveu intensa transferéncia negativa comigo. Nao ficava na sala de atendimento sem a presenca de Maria. Parecia {que eu era uma sereia perigosa que o atrairia e depois 0 exporia a situagdes de Psicanélise v. 18 n° 2, 206 | 61 Adogo e sfrmentopguco abandono € desamparo, A telacio com sua mae adotiva precisava set protegida a qualquer custo da intromissio de outra figura feminina, Michel brincava com a mie ¢ me deixava de fora, Afitmava com veeméncia que eu nao entratia nas brinca- deiras. Maria, pelo seu lado, mostrava-se ambivalente. Ao mesmo tempo em que pretendia estimular minha entrada nesta relacio, falava contiuamente com ele sem deixar espaco para que eu pudesse aproximar-me mais dele. Por outro lado, © final das sessdes era muito dificil. Michel resistia a ir embora. Muitas vezes, s6 admitia a separacio se pudesse levar com ele algum brinquedo de sua caixa. Ble se via tentado a estar comigo, mas tinha muito medo que a mie se sentisse abandonada pot ele, final, patecia que ele precisava desempenhat a funcio de ser sua companhia, sua oxira mefade, Bla o protegia, El tinha que protegé-la diante da fragilidade de sua doenga. A dupla m sentava um vinculo simbidtico intenso. le, por sua ve, também filho apre- O final das sessdes representava para ele um fantasma. Ligar-se ¢ perder a pessoa de quem se gosta é, segundo minha experiéncia com filhos adotivos, um ponto extremamente sensivel. As marcas do abandono vivido precocemente se reatualizam com frequéncia na do com mais clateza na transfe ituacdes de separacio, o que pode ser observa: ia estabelecida com o analista. As fantasias de Michel etam cotrobotadas pelos sentimentos da mie, que se colocava de modo ambivalente, zelando pela continuidade do trabalho € a0 mesmo tempo mostrando dificuldades de sair de cena. Maria também deixou claro, numa brincadeita, que ndo ia deixar mataro fib dela, Mais tarde, no proceso terapéutico, pude compreender a dimensio dramitica que significava para ela 2 modificagio deste tipo de vinculo. A crise conjugal e a decepc3o com 0 marido fancionavam como um estimulo para que Michel desempenhasse a figura de uma Ancora & qual ela se agarrava. Na transferéncia, eu era sentida pela dupla mie-filho como a mie biolégica que vinha pata retomar Michel. Viviamos uma situacio como se houvesse duas mies disputando um filho. Percebi que, naquele momento, 0 paciente que precisava ser tratado no exa sitm- plesmente um menino, mas um par ligado como itmios siameses e que precisa- ria de cuidado e paciéncia para ser separado. Bombas fedorentas ¢ testes de agressividade ‘Michel precisou ficar acompanhado pela mic e por vezes pelo pai dentro da sala de atendimento por um ano. Ficava claro que os pais desempenhavam fun- Ges do mundo interno dele € também objetos transicionais, intermediatios, na relacio comigo. Esse padrio indicava também o tipo de relagio que os pais es 62 | Psicandlise v.18 n° 4, 2016 Gn Kat Levinzon tabeleciam com ele. Afinal, como afirma Winnicott (1959), nos “casos em que a mae é usada, existe quase certamente algo nela — uma necessidade inconsciente do filho ou filha ~ em cujo padrio a crianga est se eneaixando” (p. 46). Aos poucos, fui sendo incluida nas brincadciras, que muitas vezes eram inicia das com movimentos agressivos. Ele entrava na sala me assustando, por exem- plo, fingindo que era um monstro petigoso. Muitas vezes, vitava o contetido todo de sua caixa hidica no chio e pisava nos brinquedos de modo a destrut-los. Nesses momentos, ficava assustado € no conseguia ma entrar na sala. Chegou a fazer cocé na calca algumas vezes, escondendo-se num canto. Soltava gases, que cu comparava com experiéncias de bombas fedorentas que ele queria verificar se realmente eram tio perigosas como pensava. Quando Michel vinha com o pai, mostrava-se mais agressivo ¢ angustiado. O pai ficava muito aflito, sentia-se impotente para lidar com o filho nesta situagio. Apesat disto, foi vindo com o pai que cle pade ficar comigo sozinho na sala pe: las primeiras vezes, um ano depois de iniciado o atendimento. Com o passat do tempo, Michel foi utilizando nossas sessGes para fazer testes que lhe permitiam discriminar comportamentos que expressavam forga e vitali dade de agdes perigosas ¢ destrutivas. Ele jogava bola com forca para todos os lados, por exemplo, ¢ dizia baixinho: Lé rai o monstr... Depois ficava com medo ¢ perguntava: Ese qucbrar a janela? Ese ndo tiver mais conserto?. \ mie, presente na sala, ficava muito angustiada com suas brincadeitas, Ficava claro que Michel acreditava na onipoténcia de suas fantasias agressi vas. Penso que uma sucesso de fatos contribuia para a ren monstro de que tinha tanto medo: 0 desaparecimento de sua mac biolégica, as doengas dos pais adotivos, sua separagio, a extrema dificuldade que estes tlti- ‘mos tinham em lidar com sua propria agressividade. Michel passou a utilizar as sessdes como uma espécie de tubo de ensaio no qual podia fazer experiéncias valiosas nenhuma destruigio acontecia de verdade. Eu passei a representar a mae forte, aquela que nao desapareceria e nem adoeceria diante de sua poténcia. de que ele era o podia ser 0 Lobo que ameagava a Chapeuzinho Vermelho, mas Bolas murchas ¢ bolas cheias, monstros no papel Jaa sés na sala, apés um ano de andlise, Michel inventou uma brincadeira importante. Havia duas bolas, uma murcha, que ele tinha furado no perfodo an- terior num de seus atroubos agressivos, ¢ outra bola cheia, com a qual jogévamos fatebol. A brincadeira era que ew era a bola, ¢ ele me enchia e esvaziava segundo suas instrugdes. Eu dramatizava esses estados com movimentos de meu corpo, Psicanélise v. 18 n° 1, 2016 | 63 Adogo e sfrmentopguco ‘me esvaziando e me enchende, Michel se divertia muito e repetia a cena varias vezes. Ele mostrava que jé podia simbolizar por meio do brinquedo suas angiistias de destruir o objeto e de reparar 0 estrago que imaginava fazer. A bola murcha parccia representar o objeto mic biolégica-mae adotiva que ele fantasiava que tinha danificado. A bola cheia falava de uma mie forte, encontrada por meio da transferéncia € que nio sucumbia & sua instintividade. Imaginar que era ele que controlava o esvaziar e o encher dava-Ihe satisfacio. Era mais accitavel imaginar que sua mae biolégica foi embora porque ee € que a mandou do que se sentir & mercé dos movimentos imprevisiveis que vém do outro. Outra atividade que passamos a fazer neste periodo foi passar sessdes inteiras desenhando monstros. Agora eles podiam ficar delimitados no papel e nico mais ‘© apavoravam. Michel passou a expressar seus sentimentos por meio da lingua- gem simbélica, sem mais precisar comunicar-se utilizando contetidos coneretos de seu corpo, suas fezes. As figuras 1, 2, 3, € 4 mostram alguns dos monstros desenhados. O que cha- ma a atengio é a presenca constante de um coragio. Os adotados sio descritos frequentemente como filbas do corai, e & assim que Michel se caracterizava. Além disso, nesse momento, ele ja tinha claro que, apesar de sua agressividade, havia nele sum menino que linha coracio, isto é, que podia se importar ¢ considerar 0 outro. Fig, 2 64 | Psicandlise v.18 n° 4, 2016 Gn Kat Levinson Fig Nas figuras 5, 6, 7 € 8, os monstros retratados parecem dividir-se em dois. Ao desenhé-los, Michel tinha a inten¢cao de desenhar apenas uma figura, com ‘uma bartiga que continha dois peitos e um coracio embaixo. Os desenhos, no centanto, parecem representar um personagem dentro do outro, talvez uma mie com um filho, ligados como se fossem um sé. Esta parecia ser uma referencia a ligagio simbidtica com a mie adotiva. Psicanélise v. 18 n° 1, 2016 | 65 Adogo e sfrmentopguco Fig. 7 Fig. 8 Nas figuras 9, 10 ¢ 11 se vem os monstros fazendo coci, que representavam a forma utilizada por Michel para expressar sua agressividade. Ele se imaginava cheio de cocis-braveza, desirucio. Os cocés poderiam também ser entendidos como (0s Elementos-beta descritos por Bion (1962) ao se referir is impresses sensoriais experiéneias emocionais que nao foram transformadas ou simbolizadas ~ elas sfo expulsas, evacuadas ou expressas concretamente por sensacdes corporais. Fig 9 Fig, 10 66 | Psicandlise v.18 n° 4, 2016 Gn Kat Levinson Fig, 11 ‘A figura 12 exibe um momsiro de barrigona, numa referéncia a uma mie grivida, provavelmente a mie biolégica, com a gual Michel se identificava. Na figura 13, a monsira com barriga esti fazendo cocd. Ela é imaginada reagindo como ele as frusteagdes intempéries da vida. Muitas conjecturas podem ainda ser feitas a partir desses desenhos: ele poderia sentir-se como um dos cocds da monstra, nascido a partir dela. Ela também poderia ser uma representagio da mie adotiva, eos cocés as dificuldades desta titima de lidar com suas préprias angistias. Seja ‘como for, havia claramente uma figura feminina materna retratada como alguém ‘com muita dificuldade de lidar com seu mundo afetivo. Fig 13, Psicanélise v. 18 n° 1, 2016 | 67 Adogo e sfrmentopguco As figuras seguintes mostram monstros que tém um contato maior com sim- bolos de poténcia: na figura 14, hd um monstro jogando bola; na figura 15, 0 monstto cheio de cocé esta associado a um poste muito alto (numa clata refe- réncia a.um simbolo filico); na figura 16, os monstros sio super-herdis. Penso que este eta o maior anseio de Michel: sentit que sua poténcia era algo a ser valorizado. Fig, 16 Por fim, na figura 17, Michel escreveu as letras de meu nome na bartiga do monstro, talvez indicando que neste momento eu ja podia ser assimilada como alguém que lhe proporcionava coisas que ele poderia incorporar. ‘Tinhamos pas- sado no teste de confiabilidade. GB | Psicandlise v.18 n° 4, 2016 Gn Kat Levinzon Fig, 17 A reagao de uma mie sentindo-se despedacada. Um avidozinho voan- do pelo mundo... Durante toda a anilise de Michel, eu fazia entrevistas regulares com os pais. Era muito importante podermos convetsat sobre suas angiistias € sobre 0 que se passava com o filho. Creio que este contato com eles foi essencial para que pudéssemos avancar no proceso psicanalitico. Um més depois que cle péde ficar sozinho na sala de anélise, os pais me re- lataram muma entrevista que elt inha melhorado muito. \ mae atribuiu a melhora a. um remedinko homeopatica que ela estava dando para ele. No fim da entrevista, disse-me rapidamente que teriam que interromper o trabalho analitico devido a dificuldades financeiras. Era claro que havia nese movimento um acting out ‘uma atitude movida pot um estado de turbuléncia emocional inconsciente. Pare: cia-me que estava muito enciumada e sentindo-se muito ameacada pela relagio ‘que Michel havia estabelecido comigo, na qual ela nio estava mais diretamente includa. O pai se colocava numa atitude aparentemente omissa. Nao tinha forgas para se interpor no elo simbiético entre a dupla mic-filho. Conversamos muito a respeito ¢ eles decidiram continuar a andlise, que durou mais seis meses, quando entio foi definitivamente interrompida supostamente por questées financeiras dos pais. Novamente, neste momento, a mie disse que atribuia as methoras visiveis de Michel aos florais que e/a estava ministrando. Psicanélise v. 18 n° 1, 2016 | 69 Adogo e sfrmentopguco Michel havia crescido com © decotret do trabalho psicanalitico e ja podia recorrer a brincadeiras simbélicas para expressar seus sentimentos. Maria, no entanto, no estava preparada para a separagio que implicava o crescimento de seu filho, Ela nfo tinha apenas adotado um filho, mas parecia que o havia incor porado como uma sustentacio de si mesma. Nao suportou ser excluida da sala de atendimento ¢ tudo o que isto significava. Assim como o elo entre bebés siameses nao pode ser cortado sem cuidado, Michel e Maria necessitavam de tempo ¢ fortalecimento para poderem se indivi- duar. Com a evolucio do trabalho analitico, Michel péde dat o pula do gato. Com muita alegria, ocupou © espago da sala de andlise e de um lugar proprio para viver. Infelizmente, Maria no o acompanhou nesse proceso. Suas dificuldades emocionais ainda nao the permitiam realizar uma separacio saudavel. Na trans feréncia, passei a ser sentida por ela como a mie biologica que vinha tomar o seu filho, Sentia-se ameagada e com muito citime da analista, embora nao perccbesse esses sentimentos conscientemente. Sua reagao era de interromper a anilise e de tentat voltar ao estado anterior de coisas Na sesso em que soube do fim da andlise, Michel fez a seguinte brincadeira: deitou-se no chio € colocou o encosto do soft por cima dele. Disse que era um caixéo, Ele era um fantasma que se levantava do caixio ¢ vinha me pegat. Em seguida, brincou de esconde-esconde, procurando elaborar a separacio. Penso que o fantasma que se levantava do caixio era a figura de uma mie desaparecida no inicio de sua vida, que se reeditava ao viver comigo a experiéncia de inter rupgao de nosso contato. Na brincadeira, era e/e quem controlava esse fantasma, Bra desta forma que cle se sentia seguro. seguir, falavamos de nos perder e nos reencontrar, agora nao mais como fantas- mas amedrontadotes, mas como pessoas que mantém um elo, mesmo quando Jo esconde-esconde, a brincadeira a seguida, ele jogou um avifiozinho de papel pela janela. Disse que queria ver 0 gue ia acontecer com ele... Sabiamos que cle iria andar sozinho, sem a presenca da analista, e esperivamos que todo o trabalho que haviamos feito juntos pudes- se frutificar e petmitir-Ihe langat voos maiores. Estavam também presentes os sentimentos despertados em mim por essa interrupgio brusca. Além da frustragio pelo trabalho interrompido, havia sentimento de 1m filho arrancado antes do tempo, como wm nascimento premature. situacao de separacio-adocio era vivenciada na dimensio transferéncia-contra- transferéncia, com as identificagdes projetivas feitas pelos pacientes e as contra- identificacdes contratransferenciais da analista (GRINBERG, 1974) 70 | Psicandlise v.18 n° 4, 2016 Gna katt Levine Adogao e sofrimento psiquico Encontramos, algumas vezes, estados de intenso sofrimento psiquico em fa- milias ligadas pela adocio. Por sua condigio inicial de desamparo, a crianca se torna mais sensivel 4s dificuldades ambientais as quais esta submetida. Sao os ‘Traumas Cumulatisos deseritos por Khan (1977), que resultam das fendas obser- vadas no papel da me como escudo protetor durante todo 0 curso do desenvol vimento da crianga. Essas fendas, repetidas no correr do tempo € entremeadas com os acontecimentos externos, acumulam-se de forma silenciosa ¢ invisivel. Elas adquitem valor de trauma cumulativamente e retrospectivamente. Entre os diversos pontos causadores de sofrimento psiquico, destaca-se a ne- cessidade de encontrar um espaco proprio para existiz. A imagem de um avio- zinho voando sozinko pelo espaco, trazida por Michel, exibe com maestria a esperanca de conquista de um espago auténomo. Isso é importante para todas as pessoas, de modo geral, mas no campo da adogio é essencial. 0 que eria condi- cées para que uma crianga possa lidar de forma saudvel com o estabelecimento de um sentimento de identidade propria. O quem sou eu, ho caracteristico do mundo do adotado, desemboca no tenho a liberdade de ser eu mesmo, condicio para uma existéncia harménica ¢ criativa. Adoption and psychological suffering Abstract: We find sometimes si of intense psychological suffering in families linked. by adoption. For its initial condition of helplessness, the child becomes more sensitive to environmental constraints to which he/she is subjected. For adoptive parents there is the challenge of raising a child who was not born of them and has a previous history of whi- ch they did not participate. Some characteristics inherent in the adoption process require more effort to adapt than in families united by biological link: the child’s experience of se- paration in relation to the mother with genetic link, the marks of abandonment and poor initial care, the sterility of the adoptive parents and their anguish and expectations for the child. These themes are examined from the analysis of a clinical case in which the intricate family dynamics are intertwined with troubles related to the adoption panorama, promo: ting, psychological suffering in all family members. Michel, a boy of five years old, could not separate from the foster mother and couldn’t have his own life. series of drawings shows his psychical outlook and his fant cs of being responsible for the disappearance of the birth mother and for the adoptive parent’s diseases Adoption. Psychoanalysis of childcen. Psychological suffering. Separation rmbiosis with the mother, Psicanélise v. 18 n° 2, 206 | 72 Adogo e sfrmentopguco Referéncias ABADI, D; LEMA, C. G. Adopcién, Del abandono ao encuentro. Buenos Aires: Kargieman, 1989. BION, W. O aprender com a experiéneia. In: Os elementos da psica- nilise. Rio de Jancito: Zahar, 1966. (Originalmente publicado em 1962). BRINICH, P. M, Some potential effects of adoption on self and object re- presentations. The Psychoanalytical Study of the Child, v. 35, p. 107-133, 1980. DINIZ, J. 8. Este meu filho que nao tive. Porto: Afrontamento, 1993, FREUD, S. (1916-1917). Conferéncias introdutétias sobre psicandlise, In: Obras completas. «. 15. 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