CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, EDUSC,
1999. O livro, publicado pela primeira vez em 1996, na França, foi traduzido para a língua portuguesa e disponibilizado no Brasil, em 1999, através de direitos adquiridos pela Editora da Universidade do Sagrado Coração. A obra tem sido utilizada pelos cursos das áreas das humanidades por apresentar uma explanação acerca da noção de cultura, segundo uma evolução histórica, geográfica e perpassando por diferentes discursos científicos, em especial pela antropologia e pelas ciências sociais. Denys Cuche divide a abordagem sobre a temática em sete capítulos situados entre a introdução e a conclusão. O autor introduz o livro salientando a relevância da reflexão sobre a noção de cultura para as ciências sociais com a finalidade de pensar a unidade na humanidade na diversidade além dos termos biológicos. No decorrer dos capítulos ele passa a explorar o significado etnológico da palavra cultura detalhando seus diversos sentidos. O primeiro capítulo explana a gênese da palavra cultura. O autor parte da premissa de que nada é natural do homem, tudo é construído. Para analisar os sentidos adquiridos da palavra são utilizadas narrativas de pesquisadores ligados a diferentes áreas do conhecimento como ciências sociais, antropologia e outras, travando um diálogo ao longo do tempo. Sendo assim, Cuche se reporta ao período da revolução Francesa, no século XVIII, para mencionar o momento no qual o termo cultura adquiriu um sentido moderno e traça um paralelo com a Alemanha Iluminista, no qual a formação dos saberes acumulados ao longo da história passou a trazer um novo sentido, vinculando cultura à civilização. Neste contexto, “cultura é sempre empregada no singular, o que reflete o universalismo e o humanismo dos filósofos: a cultura é própria do Homem” (pág. 21). A partir do debate entre um discurso particularista francês, considerando cultura como um progresso individual, e um discurso universalista alemão, vinculando civilização a progressos coletivos, há a demarcação das duas maneiras de definir o conceito de cultura nas ciências sociais contemporâneas. O texto prossegue o percurso para o século XIX, à luz das noções de Edward Tylor, considerado o fundador da antropologia britânica, por trazer a primeira concepção científica do termo cultura como uma expressão da totalidade da vida social do homem, criando um processo sistemático e complexo. “Cultura e civilização são um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871). Na sequência, é inserido Franz Boás, através de pesquisas nos EUA, considerado o inventor da etnografia, por trazer um olhar para além da Europa, pluralizando o conceito de cultura e questionando a noção de raça. Para ele, a diferença fundamental entre os grupos humanos é de ordem cultural e não racial. A cultura passa então a ser relativizada, o que Boás, em 1987, denominaria de “relativismo cultural”. Prosseguindo, a narrativa inclui Emile Durkheim, contemporâneo a Boás, como desenvolvedor de uma sociologia com orientação antropológica. Através da teoria e do método científico, rompe com a concepção de que a cultura seria explicada a partir de traços físicos, raça... Sua reflexão sobre a cultura não forma um conjunto unificado e sua preocupação central seria a de determinar a natureza do vínculo social, trazendo o pensamento de que existe uma "consciência coletiva" (Durkein, 1893), feita das representações coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimentos comuns a todos os seus indivíduos e que precede o indivíduo. Cuche atribui o triunfo do conceito de cultura pelo fortalecimento nos EUA das concepções de etnólogos americanos, discípulos de Boás, que ressaltam a dimensão histórica dos fenômenos culturais (Kroeber, Wissler) e elaboram o conceito de modelo cultural (cultural pattern), seja pelas análises funcionalista de Malinowski – defendendo a observação direta das culturas em seu estado presente (perspectiva sincrônica), já que toda cultura constitui um todo coerente, que sofre mudança essencialmente por meio de contatos exteriores. O conceito de "federalismo cultural" (Schnapper, 1974) é apresentado como certa continuidade das culturas de origem dos imigrantes, não sem transformações, devidas ao novo ambiente, exemplificado pela identidade com hífem. O que seria a igualdade apesar da diferença. O termo “subcultura” surge por conta de pesquisas desenvolvidas em comunidades, nos anos 70, e representa uma distinção culturas segundo as classes sociais, mas também segundo os grupos étnicos, relacionadas a uma sociedade cultural mais ampla. Logo em sequência, são elucidadas outras noções como “contracultura” e “socialização”. É inserido o debate entre a abordagem estruturalista de cultura, de Levy Strauss, os elementos universais culturais de toda a sociedade humana e a abordagem interacionista atribuída a Sapir “Mais do que definir a cultura por sua suposta essência, ele desejava se fixar na análise dos processos de elaboração da cultura.” (Sapir, 1949). Ao abordar o estudo das relações entre as culturas e a renovação do conceito de cultura o autor menciona Roger Bastide por afirmar que atrasos em estudos etnológicos franceses sobre o conceito de cultura pela exploração da “superstição do primitivo" e por não existir consideração aos contatos culturais. Sequenciando o texto o autor explora a evolução conceitual do termo “aculturação”, que surge a partir dos contatos culturais explicitando que o prefixo designa um movimento de aproximação entre culturas (ad-cultura) e não um movimento de deculturação não corresponderia à negação e sim à adição. O termo estaria para além do sentido de troca de cultura, assimilação, acomodação, mudança cultural, difusão e não poderia ter uma definição simplista. Para dar conta de um aspecto essencial da personalidade do homem em situação de aculturação o “princípio do corte” (Bastide,1955), considerado essencial em sua obra, passa a ser explicado: Não é o indivíduo que é "cortado em dois", contra a sua vontade, mas é ele que introduz os cortes entre seus diferentes engajamentos. No quinto capítulo o autor relaciona a cultura a um processo histórico construído a partir de relações sociais e que estas relações acabam sendo hierarquizadas através de processos de dominação. O fato de um grupo ser dominado não significa que o mesmo seja desprovido de cultura. O debate sobre o que seria Cultura Popular apareceu na França somente no século XIX. São originárias dessa hierarquização certas noções culturais, como a cultura popular, a cultura de massa, a cultura operária, a cultura burguesa, etc. Ainda, neste capítulo, é abordado o conceito de “habitus” explorado por Bourdieu: “O habitus é o que caracteriza uma classe ou um grupo social em relação aos outros que não partilham das mesmas condições sociais” (pág. 171). Ao tratar de cultura e identidade, Couche afirma que a identidade permite que o indivíduo seja localizado socialmente e que a identidade cultural aparece como uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural. Segundo ele, "a construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reai" (pág. 182). Embora trate da terminologia “noção” para se referir à evolução das pesquisas com relação ao termo cultura como já se intitula o livro, o autor encerra a narrativa mencionando outras “noções” que ele considera resultados de certas interpretações errôneas ou de interpretação simplista das teorias de pesquisa e que se tornaram comuns no uso social como “cultura política”, “cultura de empresa”, “cultura de escolas”, “cultura de imigrantes”... Cabe aqui registrar que a elaboração de um livro narrando estudos que foram construídos por, aproximadamente três séculos, imprime audácia ao projeto, contudo, é compreensível que não se prenda a detalhamentos. O livro cumpre o que promete e se torna relevante por apresentar uma revisão bibliográfica dos estudos referentes à noção de cultura, entrelaçando diferentes olhares das áreas das ciências humanas, através do tempo e dos lugares. O autor não se preocupa em amarrar o conceito, já que deixa claro pela sua explanação que a intenção é elucidar o processo da construção científica do termo cultura. O leitor deve estar atento a este fato para que não se perca nas interpretações, tomando como atuais ou genéricas certas informações. Cabe aqui lembrar que os estudos relatados incidem até o ano de 1996, data da publicação, e que o livro serviu de apoio para as novas pesquisas que estão em processo nestes últimos 21 anos.
Dagmar Dias Cerqueira, aluna especial
DISCIPLINA: IM1207 - CULTURA, PATRIMÔNIO E IDENTIDADE