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São Paulo
2006
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2
Agradecimentos
Há muitas pessoas que participaram, direta ou indiretamente, desta dissertação,
colaborando de alguma forma para que eu conseguisse realizar o trabalho a contento. Por isso,
gostaria de agradecê-las e reforçar a importância delas em meu percurso.
Meu primeiro e maior agradecimento é para a professora Claudia Arruda Campos – ou
simplesmente Kauê, como ambas preferimos – pela orientação criteriosa, pelas leituras,
conversas e xícaras de café com as quais me acompanhou por esses anos de pesquisa.
Agradeço também às professoras Sandra Margarida Nitrini e Telê Ancona Lopez,
pelas leituras atentas e pelas importantes observações feitas em meu Exame de Qualificação;
aos professores Fernanda Peixoto, do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, e
Joaquim Aguiar, do Departamento de Literatura Brasileira da FFLCH-USP, responsáveis
pelas disciplinas que cursei durante o programa de mestrado. Com eles e com alguns colegas
de curso, tive a oportunidade de travar proveitosas discussões para a fundamentação dos
caminhos de minha pesquisa. Dedico especiais agradecimentos à professora Norma Seltzer
Goldstein, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, que, desde a
época da Iniciação Científica, acompanhou e incentivou meus projetos de pesquisa, abrindo-
me caminhos para além do que já havia desenvolvido com sua orientação.
Sou grata, ainda, a amigos e colegas que contribuíram ativamente para a realização
deste trabalho: a Mariana Cortez e Ana Paula Leibruder, pelos préstimos no Exame de
Qualificação; a Mirko Lerotic Filho e Cilza Bignotto, pelo suporte técnico e, principalmente,
emocional; a Mila Silva Costa, pelas discussões sempre frutíferas, desde os tempos do grupo
de estudos de Cecília Meireles; a Hélade Scutti Santos, pela companhia em congressos e
eventos; a Cátia Luciana Pereira, Cristiano Augusto da Silva e Laura Taddei Brandini, pela
companhia tão estimulante ao longo da graduação e da pós. Sou grata, também, aos meus
colegas professores e corretores do Colégio Bandeirantes, que me prestaram apoio durante
todo o mestrado.
Foram fundamentais para esta empreitada o incentivo, a compreensão pelas ausências
e o carinho de meu pai, Sigismundo, minha mãe, Nely, e meus irmãos, Paulo e Priscila,
sempre presentes. Ressalto, ainda, a importância da amizade enriquecedora de Daniela Auad e
da companhia de Alexandrino Neto, principalmente na etapa final do trabalho. Por fim,
agradeço a Rita Kawamata, que fez a revisão dos originais.
4
A todas as pessoas aludidas, aos meus amigos queridos e familiares, meu muito
obrigada.
5
RESUMO
Esta dissertação propõe uma leitura de Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss, como
obra de destaque dentro da produção antropológica do autor, passível de análise por meio dos
estudos da linguagem, especialmente pelos estudos literários. Trata-se do relato das
experiências vividas pelo antropólogo no Brasil entre os anos de 1935 e 1938, como professor
da recém-fundada Universidade de São Paulo e etnógrafo em início de carreira. São expostas
impressões, observações e análises a respeito dos centros urbanos visitados, das paisagens
diversas e das populações indígenas, com as quais travou contato em sua Expedição do Norte
– tudo isso intercalado a lembranças de outras viagens, a países orientais. Vislumbra-se no
texto, desde uma primeira leitura, a combinação entre uma estrutura composicional complexa
e uma linguagem provida de vários níveis de significação, polissêmica, distante, dessa forma,
das obras de caráter predominantemente informativo, referencial.
Passou-se, assim, à investigação mais detida do texto para determinar-lhe caminhos
analíticos proveitosos. Nesse processo, chegou-se à hipótese de leitura de Tristes trópicos
como obra inscrita no gênero relato de viagem, considerando-se o conceito de gêneros do
discurso de Bakhtin, dentro de seus estudos sobre enunciação e dialogismo. Com base nesse
suporte teórico, procurou-se fazer um levantamento dos elementos temáticos, estruturais e
estilísticos da obra, a fim de cotejá-los aos traços constitutivos dos enunciados lidos como
relatos de viagem, estudados à parte. O cotejo da obra com o gênero em questão mostrou
pontos de confluência significativos, suficientes para que se possa considerá-la um relato de
viagem. Por outro lado, evidenciaram-se algumas divergências consideráveis em relação a
procedimentos observados como tradicionais do gênero. Chegou-se, portanto, à constatação
de que Tristes trópicos pode ser lido, com proveito, como um relato de viagem, pois dialoga,
em vários níveis, com a família de obras desse gênero. No entanto, trata-se de um enunciado
que se configura em um movimento de aproximação e confronto com seu gênero, criando
novas possibilidades textuais e estabelecendo relações dialógicas com outros gêneros do
discurso, especialmente os literários.
ABSTRACT
analyzed by means of the language studies’ methods, especially those applied in the literary
studies. In this book the author narrates his experiences as an anthropologist in Brazil between
1935 and 1938, as well as a professor of the recently founded University of São Paulo and as
a young ethnographer. He exposes his impressions, observations and analysis of the urban
centers he visited, of the varied landscapes and of the indigenous population with whom he
established relations during his North Expedition – all this is intertwined with his memories of
other trips to Eastern countries. Since the first reading, it can be glimpsed in his text a
combination of complex compositional structure and a language that abounds in several levels
of polysemy, which is thus distant from the predominantly informative and referential works.
Therefore, a deeper investigation has been carried out in order to determine suitable
analytical paths. Through this process, we have drawn on the belief that it is possible to read
Tristes Tropiques as a travel book if we take into account Bakhtin´s concept of discourse
genre, which is inscribed in his studies on utterance and dialogism. Based on this theoretical
support, thematic, structural and stylistic elements have been gathered in order to compare
them with the constitutive characteristics of travel books, which are generally studied
separately. Through the collation of Tristes Tropiques with the aforementioned genre, we
have been able to observe that, on one hand, a significant number of elements converge,
which allows us to regard it as a travel book; whereas, on the other hand, a considerable
amount of divergence has also been noticed in relation to some traditional procedures, which
are commonly present in this genre.
Hence, it has been concluded that Tristes Tropiques can be favorably read as a travel
book once it dialogues, in several levels, with other works of this genre. However, it contains
an utterance whose main traits either approach or challenge the ones of its genre, thus
providing new textual possibilities and establishing dialogical relations with other discourse
genre, especially the literary ones.
PALAVRAS-CHAVE
Tristes trópicos; relato de viagem; gêneros do discurso; literatura; etnografia.
KEYWORDS
Tristes Tropiques, travel book; discourse genres; literature; ethonography.
7
Índice
Capítulo 1 – Tristes trópicos: início da leitura ............................................................ 9
1.1. Exposição do conflito ........................................................................................................ 9
1.2. Composição de Tristes trópicos ...................................................................................... 10
1.3. Importância e repercussão de Lévi-Strauss ..................................................................... 14
1.3.1. Trajetória ...................................................................................................................... 14
1.3.2. Pressupostos centrais .................................................................................................... 20
1.3.3. Repercussão / crítica ..................................................................................................... 22
1.3.4. Repercussão de Tristes trópicos ................................................................................... 23
1.4. Investigando o texto ........................................................................................................ 28
1.4.1. Primeira parte de Tristes trópicos: sentido da viagem ................................................. 31
Pacífico de que não me lembro, cometida com um fonógrafo, para fazer com que os indígenas
acreditassem que seus deuses voltavam à terra”1. Por fim, o desejo de enveredar-se pela ficção
sucumbiu à encomenda de um livro de viagens, e do projeto inicial apenas o título se
manteve.
À época de sua publicação na França, na década de 1950, Tristes trópicos alcançou
grande reconhecimento, inclusive popular. Lévi-Strauss já era um antropólogo respeitado e
seu livro autobiográfico sobre suas primeiras viagens etnográficas no início da carreira
despertou enorme interesse do público. Nesta ocasião, cogitou-se inscrever a obra no prêmio
literário Goncourt, o mais importante da França. Instaurou-se a polêmica: Tristes trópicos
pode ser considerado literatura e concorrer com obras literárias? Por fim, decidiu-se não
inscrevê-lo, mesmo porque se percebeu que, por seu mérito e sua repercussão, o livro teria
grandes chances de ganhar, o que seria um problema ainda maior. De qualquer forma, décadas
mais tarde, mais precisamente em 1974, o então Professor do Collège de France Claude Lévi-
Strauss foi nomeado membro da Académie Française, pelo conjunto de sua obra, na qual,
certamente, Tristes trópicos tem relevância literária especial. De fato, não se está diante de
uma obra antropológica strictu sensu; trata-se de um texto com material caro à Antropologia,
mas de tratamento diferenciado, próximo à Literatura, o que abre a ele uma série de
possibilidades de análise.
1
ERIBON, Didier; LÉVI-STRAUSS. De perto e de longe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 82.
11
coisas e dos seres, mas uma só e formidável entidade: o Novo Mundo”2. Ultrapassando a
natureza descritiva das narrativas de viagem, no entanto, o elemento novo é sempre observado
com maior atenção, ora confrontado com elementos históricos dos quais o autor dispõe3, ora
analisado a partir da comparação entre o que ele vê de fato e suas antigas suposições.
O relato também conta com um certo grau de análise dos elementos etnográficos
observados, de elaboração de pressupostos para um estudo etnológico. É o caso das amplas
observações sobre os Bororo e sobre os Nambiquara, que colaboraram para a consolidação de
uma linha de reflexão mais sistemática sobre as relações de parentesco nas sociedades
indígenas em obras posteriores do autor4. Além disso, é recorrente em Tristes trópicos
reflexões a respeito de conceitos antropológicos mais básicos, como alteridade, contato entre
culturas diversas, trabalho de campo, observação participante, descrição e registro das
ocorrências, diário de bordo/viagem. Esses conceitos aparecem principalmente nos capítulos
em que Lévi-Strauss discorre sobre o ofício do explorador / antropólogo (Capítulos 1 e 4,
Primeira Parte; Capítulos 37 e 38, Nona Parte) e à medida que o autor os pratica ou trabalha
com eles. Nessas passagens, reflete-se sobre tais métodos e conceitos, se são válidos ou não,
se devem ou não ser rediscutidos.
Não obstante, a obra expõe temas e estruturas insuspeitas à natureza descritiva das
narrativas de viagem e à natureza científica dos trabalhos etnológicos. Observam-se, por
exemplo, amplas reflexões sobre o período histórico brasileiro dos anos 1930: o povoamento
de vastas regiões no interior do país e o surgimento de várias cidades no norte do Paraná, no
interior de São Paulo e no centro-oeste, algumas hoje importantes centros urbanos; o
abandono de cidades após a exploração desordenada de seus recursos naturais; o contato com
as populações indígenas após as grandes dizimações; a cultura do homem caboclo, que,
paralelamente aos índios, também é excluído e situado nas periferias dos grandes centros.
Trata-se de uma surpresa para o leitor que espera do livro atenção primordial aos índios
2
LÉVI-STRAUSS. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 76 (as demais citações da obra
serão retiradas dessa edição brasileira e da edição francesa, ambas indicadas na bibliografia, e seguidas, no corpo
do texto, do número da página de onde foram extraídas).
3
É o caso da vasta exposição que o autor faz da missão protestante no Rio de Janeiro, no século XVI – França
Antártida –, ao tratar das impressões da cidade, no Capítulo 9, “Guanabara” (p. 77 da edição utilizada nesta
dissertação).
4
“Contribution à l´étude de l´organisation sociale des indiens Bororo” (1936) e “La vie familiale et sociale des
Indiens Nambikwara” (1948) são alguns trabalhos de Lévi-Strauss elaborados a partir de estudos das populações
indígenas em sua estada no Brasil. Parte desse material resultou no volume Les Structures élémentaires de la
parenté, de 1949, obra freqüentemente reportada pelo próprio autor como decisiva na teoria de parentesco.
12
Silva ainda indaga por que este capítulo, e somente este, foi todo impresso em itálico,
sugerindo a intenção do próprio autor – ou do editor – de ressaltar o seu caráter estético. Por
fim, chama particularmente a atenção a presença de um certo conteúdo metalingüístico na
obra de Lévi-Strauss: numa das mais importantes partes do livro, a primeira, composta de
quatro capítulos, o autor discute o gênero predominante em sua própria obra, o relato de
viagem. Num misto de constrangida adesão e enfático protesto, Lévi-Strauss perpassa os
vícios e as armadilhas do gênero ao longo de sua obra, rememora obras e viajantes
importantes para sua experiência – de novo viajante e “cronista”, ainda que à sua revelia –,
13
enfim, dialoga com o gênero em que se constrói sua obra, juntamente com outros gêneros,
num movimento constante de aproximação e contestação.
Quanto à estrutura interna, a obra está dividida em nove partes e cada uma tem vários
capítulos. No total, há quarenta capítulos, além de mapas, bibliografia e índice de temas,
pessoas e lugares. Além dessa divisão explícita, presente no índice, o livro mostra duas partes
bem distintas, às vezes intercaladas: as considerações sobre as sociedades urbanas – do Brasil
e de outros lugares, como Índia, Paquistão e Antilhas – e as considerações sobre as
populações indígenas. Estas últimas ocupam a parte central da obra e representam o que o
próprio autor diz ser seu principal interesse: “eu fiz uma escolha, a de interessar-me por coisas
longínquas, no espaço e no tempo” (LÉVI-STRAUSS apud MAGNANI, 1999, p.98). Nesta
parte, Lévi-Strauss refaz seu trajeto pelo centro-oeste do país, percorrendo populações de
índios de sociedades diversas: Cadiueu, Bororo, Nambiquara, Tupi-Cavaíba. Apesar de haver
intercalação entre o urbano e o indígena, pode-se dizer que as considerações sobre os grupos
citados ocupam o miolo do livro. A última parte, A volta, é constituída das reflexões mais
gerais sobre o trabalho do etnógrafo e as sociedades humanas: trata-se de uma espécie de
conclusão de sua própria pesquisa etnográfica e, conseqüentemente, de conclusões sobre o
papel da Etnografia no que seria sua grande ambição, o estudo da humanidade. Por esse
motivo, o livro termina com considerações sobre as grandes religiões, diferenças entre
ocidente e oriente, além de uma inusitada aproximação entre o budismo e o marxismo. Ao
longo do livro, além da intercalação entre sociedades urbanas e populações indígenas, é
possível vislumbrar outras importantes dicotomias: tempo presente da narrativa vs. tempo
passado das lembranças, relato objetivo vs. apreciações pessoais, descrição de fatos vs.
análise. Segue um quadro com o resumo dessas nove partes e seus respectivos conteúdos.
14
Partes Conteúdo
1ª parte Dados biográficos: motivações, estudos;
(capítulos 1 ao 4) Considerações sobre relatos / viajantes;
“O fim das viagens” Viagem de exílio a Nova Iorque, em 1941.
2ª parte Dados biográficos: escolha profissional;
(capítulos 5 ao 7) filiação intelectual;
“Anotações de viagem” Início da viagem de navio, em 1935 (Europa
– América): travessia do Atlântico.
3ª parte Chegada ao Novo Mundo: impressões;
(capítulos 8 ao 11) Considerações sobre Rio de Janeiro, Santos,
“O novo mundo” São Paulo: momento presente e dados
históricos.
4ª parte Observações sobre o interior de São Paulo,
(capítulos 12 ao 16) Paraná, Goiás: formas de povoamento;
“A terra e os homens” Lembranças de Índia, Egito, Arábia (1947):
comparação Brasil central e Ásia do Sul .
5ª parte Paraná: primeiro encontro com índios;
(capítulos 17 ao 20) Viagem de trem ao Pantanal: fazendas;
“Cadiueu” Visita a Nalike: índios Guaicurus / Mbaiá.
6ª parte Viagem de navio Corumbá – Cuiabá:
(capítulos 21 ao 23) história e observação presente da cidade;
“Bororo” Visita à aldeia Quejara: Bororo.
7ª parte Panorama dos grupos indígenas brasileiros:
(capítulos 24 ao 29) aproximação de índios do México e Peru;
“Nambiquara” Estada no centro-oeste: vida do sertão;
Estada em Utiariti e Juruena: Nambiquara.
8ª parte Auto-reflexão: viagem, estudo,
(capítulos 30 ao 36) Antropologia, relatos de viagem, antigos e
“Tupi-Cavaíba” novos;
Estada entre os Mondé – Tupi-Cavaíba;
Visita a vilarejos de seringueiros.
9ª parte Reflexões sobre o papel do etnógrafo,
(capítulos 37 ao 40) dilema de Rousseau, comparação como
“A volta” método; Lembranças de visita a sítio
arqueológico na Caxemira, em 1950:
considerações sobre budismo, cristianismo,
islamismo (críticas).
1.3.1. Trajetória
15
5
A sua primeira publicação antropológica – um artigo sobre os Bororo – surge em 1936. Sua produção intelectual
passa a contar com publicações mais freqüentes e significativas, porém, a partir da década de 40, com os estudos
empreendidos sobre parentesco.
6
A célebre série sobre os mitos – Mythologiques – inicialmente constava de quatro volumes: Le cru et le cuit, Du miel
aux cendres, L´Origine des manières de table, L´Homme nu. Nos anos seguintes, Lévi-Strauss revisou a série e
acrescentou a ela mais três volumes inéditos: La voie des masques, La potière jalouse, Histoires de Lynx.
7
O britânico Sir James Frazer (1854-1952) foi um dos nomes responsáveis pela consolidação da Antropologia como
disciplina, com sua monumental obra O ramo dourado, destinada a descobrir as verdades fundamentais da natureza
humana a partir das especulações a respeito de povos primitivos. O fato de nunca ter visitado os povos sobre os quais
escrevia e de considerá-los inseridos numa linha de progresso da sociedade humana, na qual representariam o estágio
inferior das sociedades modernas, foram determinantes para a superação definitiva dos seus pressupostos
evolucionistas. No entanto, sua vasta obra, considerada no contexto da época em que foi produzida, continua sendo
referência à Antropologia.
16
aparecem em suas obras não como ilustração de conceitos, mas como elemento formador da
teoria empreendida8. Portanto, mais do que um antropólogo strictu sensu, Lévi-Strauss foi
fundador de correntes do pensamento, mais especificamente do Estruturalismo, que
ultrapassam as barreiras da Antropologia, ecoando em várias áreas do conhecimento. Sua
prioridade estava voltada, dessa forma, ao estabelecimento e ao estudo das estruturas do que é
estritamente humano, e não aos determinantes de uma sociedade específica.
As raízes dessas prioridades remontam à época da vida em que se fazem as primeiras
escolhas. Tendo obtido a graduação em Direito, o jovem Lévi-Strauss licencia-se em
Filosofia, no início da década de 1930. O recém-formado professor percebe, logo nos
primeiros anos de magistério, que não teria condições de prosseguir nessa atividade, que
julgava desmotivadora ao seu espírito – ainda que não o soubesse – de pesquisador. Também
começa, no campo da Filosofia, a opor-se à escola de sociologia francesa, mais precisamente
a Durkheim, cujo pensamento dominava a cena intelectual da época. São, portanto, essas duas
recusas – do magistério e do pensamento durkheimiano – que o levam à Etnologia.
Curiosamente, nesse campo Lévi-Strauss via possibilidades de conciliar interesses pessoais
inicialmente tão díspares, como Geologia, Psicanálise e Marxismo:
8
Lévi-Strauss lança mão da música para estabelecer conceitos sobre sua teoria de parentesco e sobre seus estudos a
respeito do pensamento mítico.
9
Pode-se perceber uma recorrência do termo “etnografia” no Capítulo 6, utilizado prioritariamente às considerações
sobre suas escolhas iniciais, talvez por estarem ainda ligadas a uma possibilidade de trabalho direto com sociedades
17
A etnografia proporciona-me uma satisfação intelectual: como história que une por
suas duas extremidades a do mundo e a minha, ela desvenda ao mesmo tempo a
razão comum de ambas. Ao me propor estudar o homem, liberta-me da dúvida, pois
nele considera essas diferenças e essas mudanças que têm um sentido para todos os
homens com exclusão daqueles, próprios a uma só civilização, que desapareceriam
se optássemos por nos manter afastados. (p. 56).
primitivas. O termo “etnologia” fica reservado a menções aos estudos empreendidos posteriormente, como em “[...]
raras vezes dedico-me a enfrentar um problema de sociologia ou de etnologia sem previamente revigorar minha
reflexão com algumas páginas do 18 de brumário de Luís Napoleão” (p. 55). No entanto, os dois termos parecem ser,
para o autor, etapas diferentes de um trabalho de mesmo objeto e objetivo: a busca dos componentes humanos nas
sociedades primitivas.
18
Ernst e com o lingüista Roman Jakobson. Nesse período de grandes influências e produção
intelectual, Lévi-Strauss desenvolve seus estudos sobre a teoria de parentesco. Depois de
publicar artigos a respeito das relações sociais dos povos observados em sua experiência de
campo – mais precisamente sobre os Bororo e os Nambiquara –, o autor publica sua primeira
grande obra de Antropologia, Les structures élémentaires de la parenté, em 1949, já de volta
a Paris. Trata-se de uma obra, hoje, pouco considerada, diante das outras de sua autoria que
ganharam mais atenção dos críticos. No entanto, o próprio antropólogo considera-a uma de
suas principais obras, pois fundamenta sua reflexão acerca da relação entre linguagem e
cultura. Vislumbra-se na reflexão do autor forte influência da Lingüística – mais precisamente
das concepções de Saussure e de Jakobson. O sistema terminológico, baseado em um
vocabulário, e o sistema de atitudes, baseado nas relações sociais, presentes nos estudos de
parentesco de Lévi-Strauss, guardam uma relação de analogia com os pressupostos mais
gerais do modelo estrutural de análise lingüística de Saussure – eixos paradigmático e
sintagmático10.
É, portanto, a partir dos estudos de parentesco que o autor passa a aplicar a teoria
estrutural à Antropologia. Na década de 50, Lévi-Strauss empenha-se em consolidar sua
carreira acadêmica. É a época em que conquista postos relevantes. Em 1950, é nomeado
diretor do Laboratório de Antropologia Social na Universidade de Paris; em 1953, nomeia-se
Secretário-Geral do Conselho Internacional de Ciências Sociais; e em 1959 consegue ocupar a
prestigiada cátedra de Antropologia Social no Collège de France. Um ano antes, publica uma
de suas mais importantes obras, Antropologia Estrutural, em que reúne artigos escritos entre
1944 e 1956 sobre linguagem e parentesco, magia e religião, arte, etc., sempre com a
aplicação da teoria estrutural.
É nesse âmbito que surge Tristes trópicos. Publicado em 1955, o livro não é fruto das
preocupações centrais que norteavam a produção intelectual de Lévi-Strauss à época. O livro
não se encaixa em nenhuma das três grandes áreas que norteiam a produção do autor – teoria
de parentesco, lógica do mito e teoria de classificação primitiva11 –, mas de alguma forma
toca em questões relativas a cada uma delas. Não se trata de uma obra que aplica o método
estruturalista à análise específica de algum fenômeno humano – mas tanto o método como os
fenômenos humanos povoam o texto. É certo que a obra foi resultado de uma encomenda, em
10
Cf. SILVA, Marcio F. da. Linguagem e Parentesco. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 42, 1999.
11
Classificação feita por Edmond Leach, em estudo de 1973 (LEACH, 1973).
19
A partir de seus estudos sobre a teoria de parentesco, uma área clássica de atenção dos
antropólogos, o cientista começa a criar seu método estrutural. Esse campo de estudo envolve
duas esferas, inevitavelmente interligadas no fenômeno observado: a terminologia, o
vocabulário utilizado pelos agentes envolvidos (tio, tia, sobrinho, nora, para exemplificar com
termos familiares aos ocidentais), e as atitudes, as condutas determinadas em função das
relações sociais estabelecidas entre os agentes. Trata-se, portanto, de um campo em que o
tradicional debate sobre a relação entre linguagem e cultura permanece vivo. Ora, a proposta
de Lévi-Strauss para tentar esclarecer essa relação é justamente a de estabelecer uma
cooperação entre a Lingüística e a Antropologia. Para ele, “fenômenos da linguagem e da
cultura resultavam ‘do jogo de leis gerais’, correspondendo a realidades de ordens distintas,
mas do mesmo tipo e, portanto, interpretáveis a partir de um método comum”12.
Lévi-Strauss também se espelha na abordagem sincrônica de Saussure para negar o
valor do pensamento histórico. Para ele, o importante é o estudo das estruturas, do espaço,
para se chegar a verdades universais. Para tanto, o dado temporal pouco conta. É verdade que
Lévi-Strauss não inaugura a negação do uso da História como ferramenta na Antropologia: os
funcionalistas da escola inglesa, como Radcliffe-Brown e mesmo Malinowski, já apontavam a
importância de centrar os esforços em um estudo criterioso das sociedades concretas,
investigando como elas se mantêm, e não como se modificaram ao longo do tempo. Mas
Lévi-Strauss torna tal crítica mais elaborada, ao acrescentar que a diferença crucial entre a
Antropologia e a História é que enquanto a última “organiza seus dados em relação às
expressões conscientes, a etnologia indaga sobre as relações inconscientes da vida social”13.
Quando o autor alude a “inconscientes”, não se trata de uma adesão ao subjetivismo que tanto
condenava na ênfase ao sujeito empreendida pela Filosofia. Há mais um sentido de verdade
indizível, presente no cerne dos fenômenos sociais e, portanto, da natureza humana
(formulação próxima ao sentido que Freud dá ao termo) do que de verdade intangível, difusa,
subjetiva. Fica evidente, também nessa distinção, o projeto estruturalista de Lévi-Strauss, que
busca, com base nos princípios da Lingüística, as variantes universais e inconscientes do
elemento humano, multifacetado em diferentes realidades sociais.
12
Cf. SILVA, Marcio da S., op. cit., p. 134. O artigo em questão ajuda a elucidar as idéias de Lévi-Strauss sobre a
relação entre os preceitos lingüísticos de Saussure e os estudos de parentesco. Também sobre essa relação, cf.
Estruturas elementares de parentesco (1949) e Antropologia estrutural (1945), do autor.
13
LÉVI-STRAUSS apud SCHWARCZ, Lilia. História e Etnologia. Lévi-Strauss e os embates. Revista de
Antropologia, São Paulo, USP, v. 42, p. 207, 1999.
22
mais de que fazer um levantamento dos ataques mais freqüentes feitos e recebidos pelo
Estruturalismo de Lévi-Strauss, observar esse movimento crítico como um diálogo, em
muitos sentidos produtivo para o próprio entendimento e para a expansão das idéias do autor.
Traçar as bases desse constante diálogo seria, portanto, tarefa fecunda para iluminar melhor o
projeto antropológico e seus possíveis caminhos. Porém, para o trabalho em questão, que tem
como objeto uma obra importante da Antropologia, mas não pretende analisá-la sob esse
suporte, o diálogo mais amplo sobre as leituras da obra e das idéias de Lévi-Strauss talvez não
seja producente. Em vez dessa empresa, parece mais promissor estreitar a visão ao diálogo
que a própria obra em questão, Tristes trópicos, gerou entre o meio intelectual, o que
inevitavelmente traz algumas questões relativas ao projeto mais amplo da obra do autor.
14
Vale a ressalva de que não se considera, aqui, a publicação da autora, oito anos depois da publicação da versão
norte-americana de Tristes trópicos, tardia. Procura-se apenas ressaltar a escassez, fora da França, de
comentários significativos sobre o autor durante um certo período.
15
Clifford Geertz, antropólogo norte-americano, é considerado um dos maiores antropólogos vivos. Costuma ser
apontado como o segundo mais importante, atrás de Lévi-Strauss. Geertz é professor emérito da Universidade de
Princeton e advoga sua antropologia hermenêutica, que lida com textos culturais, em busca de sua interpretação
para as interpretações que vivificam cada cultura em particular.
25
pertinente, visto que de fato a obra não pode configurar numa linha paralela às outras obras,
por outro, colocá-la nesse papel central de “ovo cósmico”, geradora dos demais livros, é o
mesmo que observá-la eminentemente como obra antropológica, ainda que “diferente” do
padrão. Esse parece ser um dos grandes problemas da visão de Geertz, que, assim, cobra de
Tristes trópicos um rigor científico que ele evidentemente não tem e o acusa de pretensioso,
por “aventurar-se” em outros campos (literário, filosófico) que não dizem respeito ao saber
antropológico.
Depois de contextualizar Tristes trópicos, Geertz detém-se unicamente sobre sua
estrutura, que ele considera caleidoscópica. O texto “múltiplo por excelência” seria formado,
segundo o autor, por vários livros, específicos e simultâneos, que compõem o todo. O relato
seria, portanto, formado por “um livro de viagens e inclusive um guia turístico, ainda que,
como os trópicos, fora de moda. Um informe etnográfico, que intenciona fundar outra scienza
nuova. Um discurso filosófico que pretende reabilitar Rousseau, o contrato social e as virtudes
de uma vida tranqüila. Um panfleto reformista, que ataca o expansionismo europeu desde
bases estéticas. E uma obra literária que exemplifica e desenvolve uma causa literária... Todos
eles se encontram entremeados, justapostos como quadros de uma exposição” (p. 54).
Embora, ao classificar Tristes trópicos como obra caleidoscópica, Geertz mostre-se sensível
ao caráter múltiplo da obra, ele não parece atento ao fato de que as partes que ressalta só
fazem sentido se vistas, não como quadros, que têm sua unidade de sentido assegurada, ainda
que em exposição, mas sim em fusão – até porque elas existem no texto dessa maneira. No
resumo que faz dos cinco livros, Geertz atenta para os “objetivos”, as “pretensões” de cada
um, adotando justamente a postura que Lévi-Strauss condena nos antropólogos funcionalistas.
Ora, ao buscar os objetivos de cada um dos livros, é evidente que faltariam respostas
importantes. Mas a visão dos livros, mais do que em conjunto, indissociáveis, o impediria de
cobrar de Tristes trópicos a tarefa de ser um sólido tratado filosófico ou de cumprir com rigor
todas as exigências de um trabalho etnográfico. Em seu estudo sobre Lévi-Strauss, publicado
em 1967, Octavio Paz ressalta a relação do antropólogo com a Lingüística, relação que
fundamentou a passagem do Funcionalismo para o Estruturalismo: “À idéia de que ‘cada item
da linguagem – oração, palavra, morfema, fonema, etc. – existe somente para preencher uma
função, geralmente de comunicação’ se superpõe outra: ‘nenhum elemento da linguagem pode
ser valorizado se não é considerado em relação com os outros elementos’. A noção de relação
27
17
“A etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os três momentos de uma mesma abordagem. [...] A
antropologia, finalmente, consiste em um segundo nível de inteligibilidade: construir modelos que permitam
comparar as sociedades entre si” (LAPLANTINE, 1994, p. 25).
28
muitas vezes chega ao público exatamente nesse formato18. Assim, a reelaboração também
sugere um trabalho mais apurado tanto com a estrutura quanto com a linguagem do texto.
Avançando a investigação da obra de Lévi-Strauss, chega-se a um dado curioso logo nas
primeiras páginas: o autor ocupa-se em explicitar sua repulsa e sua constrangida adesão ao
relato de viagem:
Continuando a leitura do primeiro capítulo do livro, percebe-se que a preocupação inicial tem
relação com um desejo de distinguir-se do tipo de narrativa tão em voga na França de então,
segundo o autor: um relato que celebra a aventura e negligencia o resultado dela. O
distanciamento desse tipo de obra inicia-se justamente com a crítica a ele, pontuada pela
paródia:
Decerto, podem-se dedicar seis meses de viagem [...] à coleta (que levará alguns
dias, por vezes algumas horas) de um mito inédito [...], mas essa escória da memória
– ‘Às cinco e meia da manhã, entrávamos na bahia de Recife, enquanto pipiavam as
gaivotas e uma flotilha de vendedores de frutas exóticas espremia-se ao longo do
casco’ –, uma recordação tão pobre merece que eu erga a pena para fixá-la? (p.
15).20
18
Um exemplo desse tipo de obra é o livro escrito pelo antropólogo Luiz de Castro Faria (Um outro olhar; ref.
completa na bibliografia), que acompanhou Lévi-Strauss em sua incursão pelo centro-oeste brasileiro, da qual
este livro, assim como Tristes trópicos, é fruto. É evidente que o fato de manter-se a estrutura de diário de campo
não implica demérito da obra, tampouco significa que não houve o cuidado de empreender uma revisão dos
originais.
19
“Je hais les voyages et les explorateurs. Et voici que je m’apprête à raconter mes expéditions. Mais que de
temps pour y résoudre! Quinze ans ont passé depuis que j’ai quitté pour la dernière fois le Brésil et, pendant
toutes ces années, j’ai souvent projeté d’entreprendre ce livre; chaque fois, une sorte de honte et de dégoût m’en
ont empêché” (p. 9).
20
“On peut, certes, consacrer six mois de voyage [...] à la collecte (qui prendra quelques jours, parfois quelques
heures) d’un mythe inédit [...], mais cette scorie de la mémoire: ‘A 5h30 du matin, nous entrions en rade de
Recife tandis que piaillaient les mouettes et qu’une flotille de marchands de fruits exotiques se pressait le long de
la coque’, un si pauvre souvenir mérite-t-il que je lève la plume pour le fixer?” (pp. 9-10).
30
O que ouvimos nessas conferências e o que lemos nesses livros? O rol dos caixotes
levados, as estripulias do cachorrinho de bordo, e, misturados às anedotas,
fragmentos desbotados de informação, disponíveis há meio século em todos os
manuais (p. 16).21
O autor continua a tarefa de marcar sua distância dos relatos modernos com a negação
do exotismo. O elemento que costuma ser identificado como a grande atração do relato de
viagem, para o autor é uma condenável e barata artimanha para conquistar o gosto do público:
Sua formação de antropólogo e sua sensibilidade pessoal lhe fornecem dados para não cair no
fácil deslumbramento do europeu diante das paisagens dos e povos das Américas. O autor
chega a afirmar expressamente o problema do exótico: “Desconfio, pois, dos contrastes
superficiais e do aparente pitoresco; eles cumprem suas promessas por pouquíssimo tempo”
(p. 122). Desse modo, ele transcreve em seu relato a desconfiança com que prova ao longo da
viagem os produtos típicos da região visitada, geralmente exaltados sob a alcunha de
“pitorescos”, como o guaraná, o chimarrão, as frutas silvestres. Em alguns momentos, não
hesita em desenhar paisagens com um sentimento claro de desolação, como quando chega à
região da linha telegráfica feita pela Comissão Rondon no início do século, mais precisamente
no posto de Utiariti (500 km ao norte de Cuiabá). “Quem vive na linha Rondon facilmente se
imaginaria na Lua”, é a frase que inicia o capítulo sobre essa região (p. 256). Inclusive o título
de sua obra, como já foi visto, indica o distanciamento de uma visão idílica dos trópicos,
21
“Qu’entendons-nous dans ces conférences et que lisons-nous dans ces livres? Le détail des caisses emportées,
les méfaits du petit chien du bord, et, mêlées aux anecdotes, des bribes d’information délavées, traînant depuis
un démi-siècle dans tous les manuels” (p. 10).
22
“L’Amazonie, le Tibet et l’Afrique envahissent les boutiques sous forme de livres de voyage, comptes rendus
d’expédition et albums de photographies où le souci de l’effet domine trop pour que le lecteur puisse apprécier la
valeur du témoignage qu’on apporte” (p. 10).
31
também presente na sua apreciação negativa da baía de Guanabara, celebrizada nos versos de
Caetano Veloso23.
A preocupação expressa de afastar-se do típico relato de viagem moderno evidencia
um autor preocupado com a recepção de sua própria obra. Entretanto, basta avançar a leitura
por alguns capítulos para que se perceba que Tristes trópicos não comete os pecados desses
ingênuos (ou astutos?) exploradores. Por que então o autor desde o início incumbe-se de fazer
a ressalva? Talvez não seja o receio de ser confundido com o medíocre sua maior motivação,
mas sim a tentativa de criar uma reflexão sobre os limites do próprio gênero adotado, limites
que certamente a obra ultrapassa. Lidar com um texto que é um relato de viagem, mas de certa
forma contrapõe-se ao gênero, é uma questão importante a ser contemplada na análise de
Tristes trópicos.
23
“O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a baía de Guanabara / Pareceu-lhe uma boca banguela / [...] /
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara / Em que se passara passa passará um raro pesadelo” são
os versos da música “O Estrangeiro” (disco Estrangeiro, 1989) que fazem alusão à passagem de Tristes trópicos
em que se lê: “...sinto-me ainda mais embaraçado para falar do Rio de Janeiro, que me desagrada, apesar de sua
beleza celebrada tantas vezes [...]. O Pão de Açúcar, o Corcovado, todos esses pontos tão enaltecidos lembram
ao viajante que penetra na baía cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca desdentada.” (p. 75).
24
É importante notar que o autor diz “fin” e não “but’ ou “finalité”, como poderia sugerir o ambíguo “fim”, em
nossa língua mãe.
32
funciona como uma espécie de prefácio não anunciado, em que o autor, em pinceladas de
narrativas e reflexões, dá mostras do que vai ser tratado – e, de certa forma, de como o objeto
será tratado, sem chegar a mencionar a vivência com as sociedades indígenas do Brasil
central. Não se menciona, nesta parte, nem mesmo a partida rumo ao Novo Mundo, em 1935,
mas sim etapas de outra viagem, também de navio, feita em momento posterior, rumo ao
exílio em Nova York. Ao que tudo indica, trata-se de uma ausência intencional. O autor
antecipa algumas questões referentes ao contato com civilizações primitivas, ao papel do
pesquisador diante dessas civilizações, ao progresso como elemento massificador e destruidor
de culturas, enfim, questões que a sua expedição pelo Brasil suscitaram, tornando-se, elas – e
não os índios em si – o elemento central, motivador, de sua obra. Dessa forma, “A partida”,
em vez de referir-se ao início da viagem ao Novo Mundo, mostra, antes, a partida pessoal do
autor para o ofício que abraçará, sendo também, em certa medida, o ponto de partida para a
existência do livro. Ao evitar a ênfase no elemento mais “exótico”, nessa primeira parte,
substituindo-o pelas motivações gerais que o levaram ao Brasil e, posteriormente, o
convenceram a escrever sua obra, Lévi-Strauss permanece, portanto, distante daquilo que ele
postula como condenável num relato de viagem:
A maneira como as questões centrais do texto de Lévi-Strauss serão abordadas por ele
ao longo do relato também são parcialmente anunciadas nessa primeira parte. Além do
distanciamento do exotismo em voga, o autor deixa claro, inclusive no excerto acima, o valor
que dá ao trabalho de elaboração da linguagem. Seriam passíveis de elogio os relatos que,
mesmo sem grandes contribuições científicas, revelassem um apuro literário. Ele próprio
procura dar à linguagem de seu texto uma certa dimensão literária, que ultrapasse a simples
referencialidade e o recorrente tom anedótico, típico, segundo afirma, de relatos modernos.
25
“Vis-à-vis des résultats qu’on voudrait appeler rationnels de ces aventures, la société affiche une indifférence
totale. Il ne s’agit ni de découverte scientifique, ni d’enrichissement poétique et littéraire, les témoignages étant
le plus souvent d’une pauvreté choquante. C’est le fait de la tentative qui compte et non pas son objet” (p. 40).
33
Nesse sentido, é notável, logo no primeiro capítulo, o retrato que faz de seu professor de
filosofia George Dumas, à época da universidade:
[...] sobre um estrado, Dumas instalava seu corpo robusto, talhado à faca, coroado
por uma cabeça amassada que parecia uma grande raiz esbranquiçada e descascada
por uma permanência no fundo dos mares [...]. Esse curioso destroço vegetal, ainda
com as suas radículas espetadas, de repente humanizava-se graças aos olhos negros
que acentuavam a brancura da cabeça [...] (p. 17).26
Ainda sobre o mesmo professor, responsável pela ida de Lévi-Strauss ao Brasil como
integrante da missão francesa enviada à então recém-fundada Universidade de São Paulo,
segue a reprodução de um conselho aos futuros viajantes:
Junto aos demais trechos dedicados ao professor, percebe-se nessa passagem um trabalho com
a linguagem que ressalta o cuidado, em certa medida inesperado, dessa figura um tanto
anacrônica, com seus alunos prestes a tornarem-se colegas de profissão. Chama a atenção,
inicialmente, o uso de um recurso tradicionalmente literário, próprio das prosas narrativas: o
discurso direto. Em seguida, aparece o discurso indireto livre: vê-se claramente que “de um
modo muito econômico” e “do qual jamais tivera a menor queixa quando era jovem
estudante de medicina em Paris” são falas literais do professor, e não meras reproduções de
26
“... sur une estrade, Dumas installait son corps robuste, taillé à la serpe, surmonté d´une tête bosselée qui
ressamblait à une grosse racine blanchie et dépouillée par un séjour au fond des mers [...]. Cette curieuse épave
végétale, encore hérissée de ses radicelles, devenait tout à coup humaine par un regard charbonneux qui
accentuait la blancheur de la tête [...]” (p. 12 da ed. francesa). Obviamente, a análise da composição textual deve
ser feita a partir do original e não da tradução. No entanto, nesta parte da dissertação, opera-se com percepções
mais de superfície, apontando uma elaboração que parece respeitada na tradução. Por isso, optamos pela
exposição, no texto, do trecho traduzido, e na nota, do trecho original – o que será invertido em momento
posterior do trabalho, quando a investigação for mais detida.
27
“’Surtout’, nous avait dit Dumas, ‘il faudra être bien habillé’; soucieux de nous rassurer, il ajoutait avec une
candeur assez touchante que cela pouvait se faire fort économiquement, non loin des Halles, dans un
établissement appelé A la Croix de Jeannette dont il avait toujours eu à se louer quand il était jeune étudiant en
médecine à Paris” (pp. 14-5 da ed. francesa).
34
suas idéias centrais. São diferentes, portanto, dos trechos “tratando de nos tranqüilizar” e
“com uma candura comovente”, claramente “falas” do autor a respeito do trato humanizado,
que chegava a comover, vindo de um professor tão antiquado. O espaço disponibilizado –
metade do capítulo –, a exposição de seus méritos, e mesmo de suas limitações; tudo referente
ao professor Dumas é desenvolvido por Lévi-Strauss como uma homenagem, em que a
linguagem deve apresentar um tom diferente.
Outra questão importante sobre a maneira como o autor aborda seu objeto é a
exposição não-linear, na primeira parte do livro, dos eventos e das reflexões que antecedem a
grande viagem à qual o título se refere. Episódios narrados, reflexões, pitadas de crônica e de
ensaio etnográfico parecem se encaixar uns aos outros de acordo com a ordem das questões
que o autor quer discutir, e não o contrário. Não são os fatos transcorridos que ordenam a
exposição das idéias, mas sim a maneira escolhida para discuti-las que define a exposição dos
fatos que as suscitaram, numa ordem em que a cronologia não mais importa. Trata-se de um
enunciado construído pelas intercalações tanto de tipos de texto quanto de momentos
narrativos diferentes.
Essa intercalação ganha uma proporção maior no terceiro capítulo. Em “Antilhas”, o
fio condutor, já iniciado no capítulo anterior, é a narrativa da chegada de Lévi-Strauss à
Martinica, depois de uma exaustiva travessia em navio, em péssimas condições de higiene e
convivência. O que torna a narrativa significativa, a ponto de ocupar dois capítulos dessa
primeira parte, é o fato de a viagem a Nova York – com parada na Martinica e em Porto Rico
– ser na verdade uma fuga provocada pela perseguição nazista a artistas e intelectuais judeus,
que foram à época acolhidos nos Estados Unidos. Essa viagem, ocorrida em 1941, com todos
os contratempos e sobressaltos de uma situação de fuga, constitui a base narrativa do terceiro
capítulo. No entanto, ela é progressivamente interrompida por episódios de outras viagens
feitas no passado pelo autor: há episódios sobre Salvador e Santos, no Brasil, e Santa Cruz de
la Sierra, na Bolívia; ao final, a narrativa central é cortada pela volta da narrativa no tempo
presente ao relato, ou seja, 1954.
Todas as pequenas histórias encaixadas no relato principal aparecem por conta da
“mescla de maldade e asneira” (p. 27) que elas reavivavam na memória do autor,
sensibilizado pela situação igualmente cruel por que passava então como fugitivo. O que as
une, segundo ele, num movimento rememorativo constante, é a constatação de que “lenta e
35
progressivamente, elas [as situações de maldade e asneira] se punham a brotar, qual uma água
traiçoeira, de uma humanidade saturada por sua própria imensidão e pela complexidade cada
dia maior de seus problemas” (p. 27). Para o antropólogo, tais episódios vêm à mente porque
são exemplares, ainda que em menor escala, de “manifestações estúpidas, execráveis e
crédulas que os grupos sociais segregam como um pus quando começa a lhes faltar a
distância” (p. 28), tal como o nazismo que o obrigara a passar por tantas contrariedades.
Nesse sentido, intercalações de episódios de intolerância vividos em outras cidades são
suscitadas à medida que o autor desenvolve sua reflexão a respeito do assunto. Mais uma vez,
a discussão que o autor expande traz à tona trechos a serem encaixados na narrativa principal;
eles não aparecem simplesmente pelo sortimento de aventuras que possam representar,
inclusive porque não se encerram no fato narrado.
A sucessão de lembranças e sua inserção na narrativa central são processos que
parecem infinitos, visto que a reflexão que as motiva pode ser materializada em várias
histórias vivenciadas pelo autor. Atento a isso, ele decreta, no seu último parágrafo:
É preciso parar. Cada uma dessas aventuras menores faz brotar outra em minha
lembrança. Algumas, como esta que se acaba de ler, ligadas à guerra, mas outras,
que contei mais acima, anteriores. E poderia acrescentar-lhes ainda mais recentes, se
recorresse à experiência das viagens asiáticas que datam destes últimos anos (p.
33).28
28
“Il faut s’arrêter. Chacune de ces menues aventures, dans mon souvenir en fait jaillir une autre. Certaines,
comme celle qu’on vient de lire, liées à la guerre, mais d’autres que j’ai contées plus haut, antérieures. Et je
pourrais en ajouter encore de plus récentes, si j’empruntais à l’expérience de voyages asiatiques remontant à ces
toutes dernières années” (p. 34).
36
Vê-se, nesse terceiro capítulo, a elaboração do relato por fragmentos que, tal como em
um caleidoscópio, formam um sentido pleno, vistos em seu conjunto. Tanto o efeito
produzido quanto a própria produção são muito diferentes da lógica necessária ao discurso
científico ou do texto informativo do tipo jornalístico. Esse tipo de construção lingüística
costuma fazer, ou ter, vários sentidos, na esfera literária, em que a polissemia é buscada pelos
recursos disponíveis ao autor. Como foi visto, o autor permanece atento a modelos e
elaborações lingüísticas próprias ao texto literário. É o caso da oposição que ele cria entre a
marcação temporal (no pretérito) precisa do início de certo episódio e a inesperada colocação
de verbos no presente do indicativo:
A indicação temporal “ontem” é seguida de uma referência precisa – “alguns meses antes da
declaração de guerra” – que remete a idos de 1938. Entretanto, o tempo da narração anterior a
esse parágrafo é a fuga do nazismo, em 1941. Infere-se que o autor não faz menção literal a
“ontem”, mas à lembrança de um fato vivido há três anos, mas tão viva que parece ter
acontecido na véspera. Reafirmando essa presentificação dos acontecimentos passados, a
narrativa continua com o emprego inesperado dos verbos no presente do indicativo – “estou
passeando”, “estou concentradíssimo”, “aceito”. A mistura de tempos diferentes, junto aos
detalhes avivados pela memória, transmite uma certa sensação de narração cinematográfica,
de uma cena de filme, localizada no passado, mas colocada, tal como na reprodução da
narrativa pelo espectador, no presente. Ora, trata-se de um recurso expressivo, de uma
elaboração intencional, própria, aliás, de algumas prosas modernas. Lévi-Strauss, portanto,
29
“C’est hier encore, quelques mois avant la déclaration de guerre et sur la route du retour en France, à Bahia où
je me promène dans la ville haute [...]. Je suis tout occupé à photographier des détails d’architecture, poursuivi
de place en place par une bande de négrillons à demi nus qui me supplient: tira o retrato! tira o retrato! ‘Fais-
nous une photo!’ A la fin, touché par une mendicité si gracieuse – une photo qu’ils ne verraient jamais plutôt que
quelques sous – j’accepte d’exposer un clichê pour contenter les enfants” (p. 26).
37
junta aos elementos vividos, às reflexões suscitadas, a vivência literária dos caminhos de
leitura percorridos.
A questão das viagens, motivação central dessa primeira parte, é introduzida no
primeiro capítulo. “A partida” inicia com uma reflexão do autor a respeito de seu próprio
papel de viajante dentro dessa categoria, segundo ele, tão medíocre nos anos 50 na França.
Essa reflexão é entremeada por lembranças do autor de como eram recebidos e como
trabalhavam os viajantes vinte anos atrás, na época em que ele próprio iniciava sua carreira.
Convém ressaltar que o termo “viajante” é utilizado pelo autor tanto para designar aqueles
que fazem expedições pelo próprio gosto da aventura – e pelos ganhos que esse gosto lhes
proporciona – quanto para referir-se a estudantes recém-formados que, como ele, iniciavam a
carreira acadêmica em outras terras.
A contraposição entre as viagens nos anos 30 e as do tempo da escrita de Tristes
trópicos (anos 50) desenvolve-se ao longo do primeiro capítulo, retomada e aprofundada no
quarto capítulo, “A busca do poder”. Neste último também entram, como contraponto, as
viagens empreendidas séculos atrás. Desde o título, claramente divergente dos capítulos
anteriores, constituídos por referências pontuais a momentos da viagem, este último capítulo
revela-se essencial para a primeira parte e para todo o livro. “O fim das viagens”, no primeiro
capítulo como uma triste constatação do autor a respeito da mudança de perspectiva que as
viagens sofreram ao longo dos anos, é retomado e transformado aqui. Vislumbram-se
descobertas do autor, à medida que ele junta às suas reflexões iniciais outras, decorrentes das
viagens que empreendeu:
Terá sido então que, pela primeira vez, compreendi o que em outras regiões do
mundo circunstâncias tão desencorajadoras ensinaram-me para sempre? Viagens,
cofres mágicos com promessas sonhadoras, não mais revelareis vossos tesouros
intactos! Uma civilização proliferante e sobreexcitada perturba para sempre o
silêncio dos mares! Os perfumes dos trópicos e o frescor das criaturas estão viciados
por uma fermentação de bafios suspeitos, que mortifica nossos objetos e fada-nos a
colher lembranças semicorrompidas (pp. 34-5).30
30
“Est-ce alors que j’ai, pour la première fois, compris ce qu’en d’autres régions du monde , d’aussi
démoralisantes circonstances m’ont définitivement enseigné? Voyages, coffrets magiques aux promesses
rêveuses, vous ne livrerez plus vos trésors intacts. Une civilisation proliférante et surexcitée trouble à jamais le
silence des mers. Les parfums des tropiques et la fraîcheur des êtres sont viciés par une fermentation aux relents
suspects, qui mortifie nos désirs et nous voue à cueillir des souvenirs à demi corrompus” (p. 36).
38
De modo mais explícito, iniciam-se as constatações que justificam o título da obra. A tristeza
alegada vem de uma consciência profunda de que se tornou impossível conhecer a essência de
civilizações que já foram tocadas e alteradas pela ordem capitalista mundial. Parecem fazer
parte dessa ordem, segundo o autor, os viajantes modernos, que seriam responsáveis por criar,
com suas narrativas, “a ilusão daquilo que não existe mais e que ainda deveria existir” (p. 35).
Comparados aos viajantes que traziam especiarias à Europa no século XV, os atuais viajantes
seriam responsáveis por levar ao Velho Mundo “as especiarias morais de que nossa sociedade
experimenta uma necessidade mais aguda ao se sentir soçobrar no tédio" (p. 35). É evidente
que, a esse explorador dos paraísos pretensamente intactos, diante do quadro presente de
desolação, cabe recorrer a um primitivismo forjado que agrade aos ocidentais. Seus relatos
são feitos sob medida, segundo Lévi-Strauss, ao público consumidor de aventuras que, por
uma espécie de remorso da destruição que impingiu em quinhentos anos a vários povos,
sonha com a recuperação do bom selvagem.
Em outra escala, o resgate desse primitivismo ingênuo também é feito pelos
exploradores atuais, segundo o autor, por meio de uma tentativa quase ilimitada de superação
dos próprios limites que, tal como no caso de índios norte-americanos, traria poder pessoal e
um lugar de prestígio na sociedade moderna. Daí o título do capítulo “A busca do poder”, que
seria conferido àquele que mais sofresse e superasse limites sociais como prova de integridade
pessoal:
Quem não enxerga a que ponto essa ´busca do poder´ volta a ser valorizada na
sociedade francesa contemporânea na forma ingênua de relação entre o público e
´seus´ exploradores? Também desde a puberdade, nossos adolescentes são
autorizados a obedecer aos estímulos a que tudo os submete desde a mais tenra
infância, e a vencer, de um modo qualquer, a influência momentânea de sua
civilização (p. 37).31
31
“Qui ne voit à quel point cette ‘quête du pouvoir’ se trouve remise en honneur dans la société française
contemporaine sous la forme naïve du rapport entre le public et ‘ses’ explorateurs? Dès l’âge de la puberté aussi,
nos adolescents trouvent licence d’obéir aux stimulations auxquelles tout les soumet depuis la petite enfance, et
de franchir, d’une manière quelconque, l’emprise momentanée de leur civilisation” (p. 40).
39
Nesse cenário desolador, o autor se coloca como “o único a ter conservado em [suas]
mãos apenas cinzas” (p. 38). Questiona-se: “Só a minha voz testemunhará o fracasso da
evasão?” (idem). Diante dessa triste possibilidade, o autor imagina-se “no tempo das
verdadeiras viagens, quando um espetáculo ainda não estragado, contaminado e maldito se
oferecia em todo seu esplendor” (p. 39). Logo, portanto, se vê à frente de um dilema, bem
detectado por olhos de etnólogo, acostumados a questões de relativismo e alteridade:
No final das contas, sou prisioneiro de uma alternativa: ora viajante antigo,
confrontado com um prodigioso espetáculo do qual tudo ou quase tudo lhe escapava
– pior ainda, inspirava troça e desprezo –, ora viajante moderno, correndo atrás dos
vestígios de uma realidade desaparecida (p. 40).32
A saída desse dilema seria, segundo constata, uma decantação dos fatos vividos, deixando que
o tempo separasse aquilo que é poeira, impureza da própria visão, do tempo presente, daquilo
que é matéria bruta, cuja composição é passível de análise. Essa matéria é o que interessa ao
etnólogo; empreender estudos dessa essência a tanto custo recolhida e burilada é o que o autor
se propõe a fazer no final do capítulo, desta vez fazendo alusão ao material que ele próprio
recolheu nos trópicos:
De forma inesperada, entre mim e a vida o tempo alongou seu istmo; foram
necessários vinte anos de esquecimento para me levarem tête-à-tête com uma
experiência antiga cujo sentido me fora recusado, e a intimidade, roubada, por uma
perseguição tão longa quanto a Terra (p. 41).33
Esta seria, portanto, a opção do autor diante da “busca do poder” observada entre os viajantes
modernos. Em oposição a essa busca, Lévi-Strauss traça a direção, os princípios de seu relato.
Percebe-se que a opinião do autor a respeito das viagens e de seus relatos é,
visivelmente, um dos pilares do livro, a ponto de render um capítulo inteiro, antes de iniciar a
32
“En fin de comptes, je suis prisonnier d’une alternative: tantôt voyageur ancien, confronté à un prodigieux
spectacle dont tout ou presque lui échappait – pire encore inspirait raillerie et dégoût, tantôt voyageur moderne,
courant après les vestiges d’une réalité disparue” (p. 43).
33
“D’une façon inattendue, entre la vie et moi, le temps a allongé son isthme; il a fallu vingt années d’oubli pour
m’amener au tête-à-tête avec une expérience ancienne dont une poursuite aussi longue que la terre m’avait jadis
refusé le sens et ravi l’intimité” (p. 44).
40
fechada em si mesma, concluída, e esse estudo é o que definiria o caráter literário de uma
obra. Jakobson, a partir daí, trabalha com as funções da linguagem e determina a poeticidade
de um texto pelo predomínio neste da função poética da linguagem. Havia um esforço para
evitar análises impressionistas, baseadas em julgamentos subjetivos ou em elementos
extratextuais, como ideologia subjacente à obra, dados biográficos, entre outros.
A partir da consideração do fenômeno literário para além da relação entre produto e
produtor, chegando então ao receptor, os estudos de Tynianov, sucedidos por Bakhtin e seus
colegas de Círculo34 – e, posteriormente, por expoentes da teoria da recepção35 – inovam o
sistema de estabelecimento do literário. O texto literário não pode ser visto sem se levar em
conta, além do processo lingüístico empreendido, as suas condições de recepção. Ou seja, o
literário depende também das expectativas e do repertório do receptor para ser entendido
como tal. Essas questões, que demandam conhecimento de alguns conceitos bakhtinianos,
serão melhor trabalhadas posteriormente. Basta, aqui, atentar para a mudança de perspectiva
na determinação do caráter literário de uma obra. A partir dessa nova visão, as questões
relacionadas à análise do discurso (dialogismo, polifonia, intertextualidade, entre outras) têm
sido cada vez mais utilizadas no estudo de enunciados reconhecidos como literários, uma vez
que eles se definem pelas mesmas noções dos discursos em geral.
É importante ressaltar que a consideração da recepção, das expectativas do leitor;
enfim, de uma dimensão social do texto literário não dispensa o estudo de sua matéria
lingüística. Acredita-se que a elaboração da linguagem com vistas a um efeito estético
continua a ser uma dimensão fundamental no texto literário, objeto, portanto, de observação
apurada. Lançar luz sobre elementos sociais na investigação literária não exclui – ao
contrário, complementa – a análise dos recursos expressivos advindos de um uso específico
da linguagem, que a afasta da referencialidade.
34
Bakhtin produziu grande parte de suas reflexões junto aos colegas soviéticos Volochinov e Medvedev.
Costuma-se nomeá-los como “Círculo Bakhtin / Volochinov / Medvedev”. Para mais informações a esse
respeito, cf. “O Círculo Bakhtin / Volochinov / Medvedev” (SOUZA, 1999).
35
Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser são alguns dos autores que trabalham com a teoria da recepção.
42
Trata-se de uma obra identificada como relato de viagem, escrita por um antropólogo
francês acerca de suas experiências entre os indígenas brasileiros. Nesse caso, não seria lícito
chamá-la de memórias? Trata-se de um gênero aceito, reconhecido como literário. No entanto,
isso não resolveria a dúvida, visto que há muito material em Tristes trópicos que escapa à
forma memorialista e, apesar disso, encontra-se indissociável da memória. Também poderiam
ser investigados outros gêneros reconhecidos literariamente, como a autobiografia, a crônica e
mesmo a narrativa de viagens. Embora esse estudo dos gêneros seja pertinente – e seja
também um dos objetivos deste trabalho – não é ele que resolve o problema do valor literário
da obra.
Parece evidente, ainda que não se possa resolver este impasse, que o texto de Lévi-
Strauss é permeado de passagens de caráter literário inegável, nas quais se vê uma elaboração
especial da linguagem a serviço de um efeito específico. É o que se constata, por exemplo, no
seguinte trecho, referente às motivações de se escrever o relato:
En roulant mes souvenirs dans son flux, l´oubli a fait plus que les user et les
ensevelir. [...] Les arêtes s´amenuisent, des pans entiers s´effondrent; les temps et les
lieux se heurtent, se juxtaposent ou s’inversent, comme les sédiments disloqués par
les tremblements d´une écorce vieillie. Tel détail, infime et ancien, jaillit comme un
pic; tandis que des couches entières de mon passé s´affaissent sans laisser de trace.
Des événement sans rapport apparent, provenant de périodes et des régions
hétéroclites, glissent les uns sur les autres et soudain s’immobilisent en un semblant
de castel dont un architecte plus sage que mon histoire eût médité les plans (pp. 43-
4).36
Independentemente da patente de literatura, o trecho mostra uma relação entre dois campos
semânticos (memória e geologia) que cria um resultado inesperado e expressivo. No último
período transcrito, além do jogo de metáforas (castel – relato de viagem; architecte – história
pessoal / escritor) criado para reiterar o desconforto do autor, expresso no primeiro capítulo e
36
“Rolando minhas recordações em seu fluxo, o esquecimento fez mais do que gastá-las e enterrá-las [...]. As
arestas vão se arredondando, pedaços inteiros desabam; os tempos e lugares se chocam, se justapõem ou se
invertem, como os sedimentos deslocados pelos tremores de uma crosta envelhecida. Determinado pormenor,
ínfimo e antigo, prorrompe como um pico, enquanto camadas inteiras de meu passado afundam sem deixar
rastro. Episódios sem relação aparente, oriundos de períodos e de regiões heterogêneas, deslizam uns por cima
dos outros e, de repente, imobilizam-se num semblante de castelo sobre cujas plantas um arquiteto mais sensato
do que minha história teria meditado” (p. 40).
43
...em vez de a análise sociológica dos gêneros ter de se contrapor a uma teoria
imanentista do poético ou de ajustar-se a ela, pode-se beneficiar da reflexão que, em
vez de partir da linguagem em busca da identidade do literário, enfatiza a idéia de
situação na qual um certo discurso funciona, i.é., é reconhecido, como literário
(LIMA, 1983, p. 266).
Nesse sentido, mais do que discutir se Tristes trópicos é uma obra literária ou não, é possível
perceber que ela, tanto pelos seus recursos expressivos quanto pelo contexto e pelo modo
como nele é lida, funciona como literatura. Essa consideração é importante no momento de
estabelecer os caminhos investigativos para a obra; dessa forma os estudos lingüísticos que
tomam por base os textos literários também podem ser aplicados ao estudo do livro de Lévi-
Strauss e dos relatos de viagem.
38
É interessante vislumbrar, na crítica de Bakhtin a esse pensamento, os fundamentos de sua própria acepção
dialógica de linguagem: “todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é
o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do
sistema da língua que usa, mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o
seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os
pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de
outros enunciados” (BAKHTIN, 2003, p.272, grifo nosso).
46
Esse equívoco deriva da confusão estabelecida pelo uso vago e ambíguo do termo “fala” pela
Lingüística tradicional, o que gera outra confusão, entre o que é unidade de língua (fonema,
sílaba, palavra, oração) e unidade do discurso. Assim, a oração seria a unidade da língua, e
não da comunicação discursiva. Basta, para tanto, perceber que numa situação discursiva, os
falantes trocam enunciados – mesmo que eventualmente eles coincidam com uma oração – e
não simplesmente orações, insuficientes, por si só, para gerar no outro uma atitude responsiva.
O enfoque na oração como unidade lingüística estimulou, no século XIX e ao longo do
século XX, a sistematização de todo um pensamento voltado para os elementos da oração, de
uma “gramática da frase”39, em expressão de Chabrol (1977, p. 11). Os usos da língua, o
contexto dos falantes; enfim, os elementos próprios da enunciação, tão caros a Bakhtin, eram
negligenciados. Inclusive Saussure opta por não fazer desses elementos o objeto de sua
doutrina, já que, segundo ele, o produto da enunciação (“fala” para Saussure, “enunciado”
para Bakhtin) é individual e infinitamente variável: “seria ilusório reunir, sob o mesmo ponto
de vista, a língua e a fala. O conjunto global da linguagem é incognoscível, já que não é
homogêneo, ao passo que a diferenciação e a subordinação propostas [da linguagem à língua]
esclarecem tudo” (SAUSSURE, 1975, p. 28). Bakhtin, por sua vez, considera que, mesmo
sendo ilimitado, o enunciado não pode ser dissociado da língua: “a língua é inseparável desse
fluxo [da comunicação verbal] e avança justamente com ele; ela dura e perdura sob a forma
de um processo evolutivo contínuo” (BAKHTIN, 1986, pp. 107-8). Para o teórico soviético, o
enunciado deve ser o ponto de partida para os estudos lingüísticos, uma vez que o considera a
unidade da comunicação discursiva, o elemento de troca dos participantes na comunicação
verbal. A diferenciação entre língua e fala, que estrutura o pensamento de Saussure, levou
Bakhtin a classificar o trabalho do autor suíço como representante de uma das duas correntes
do pensamento lingüístico-filosófico, que seria contrário à sua teoria do enunciado. Saussure
seria representante do “objetivismo abstrato”, alvo de críticas ao longo do trabalho de Bakhtin
– em especial no seu Marxismo e filosofia da linguagem. A outra corrente do pensamento
lingüístico-filosófico seria o subjetivismo idealista, também criticado na obra em questão.
39
A respeito da distinção entre oração e frase, comumente mencionadas como sinônimos nos trabalhos sobre
linguagem ou nos comentadores de teorias lingüísticas, Bakhtin ressalta nas notas do capítulo sobre os gêneros
do discurso: “A ‘frase’ como elemento lingüístico de ordem diferente da oração foi fundamentada nos trabalhos
do lingüista russo S. O. Kartzevski, participante do Círculo Lingüístico de Praga. À diferença da oração, a frase
‘não tem estrutura gramatical própria’, mas tem a sua estrutura fônica que consiste em sua entonação [...]”
(BAKHTIN, 2003, p. 449). Feita a observação sobre a particularidade de cada uma, os termos serão utilizados de
forma indiferenciada neste trabalho, de acordo com as fontes utilizadas.
47
O objetivismo abstrato
Conhecer as críticas formuladas ao objetivismo abstrato possibilita entender melhor,
posteriormente, as bases da teoria do enunciado de Bakhtin. Segundo ele, essa corrente é
representada por Saussure, mas também abarca os formalistas russos, que relegam aos
elementos históricos e sociais um papel secundário no estudo lingüístico, regido
prioritariamente pelas estruturas lingüísticas do enunciado.
Sabe-se que, desde o advento dos formalistas, não se trabalha mais um texto apenas
como pretexto para discussão de questões sociais, como se via, por exemplo, em abordagens
mais subjetivas de obras literárias. Há que se considerar que os estudos de Saussure sobre o
mecanismo da língua lançaram nova luz sobre questões fundamentais da linguagem.
Estabeleceu-se um certo consenso em torno da consideração da língua como um sistema;
assim, o olhar sobre ela tornou-se menos impressionista, ela passou a ser vista como objeto
concreto, tangível. A partir daí pôde-se contar com os trabalhos de vários estudiosos, como os
dos russos e tchecos que se reuniram sob o Círculo Lingüístico de Praga, nos anos 20 e 30 do
século XX, desenvolvendo vários estudos, principalmente na área da poesia. Segundo
Modesto Carone, na introdução aos trabalhos do Círculo, “esta [a poesia] continuava sendo,
em larga medida, uma vaporosa questão de sensibilidade, a que não deviam ter acesso os
instrumentos da razão, para que não se destruísse sua aura nem, porventura, o preconceito de
classe que adere a uma concepção aristocrática de arte” (CARONE, 1978, p. 12). Nesse
sentido, a sistematização de um método que servisse à análise da poeticidade de um texto em
função do signo e do significado protegia-o em certa medida de usos e reduções ideológicas.
Vale destacar nesse grupo os trabalhos sobre poesia e estética de Jan Mukarovsky, sobre as
funções da linguagem de Roman Jakobson e sobre gênero de Tynianov.
No entanto, se os estudos dos formalistas foram fundamentais para a valorização do
texto como estrutura em si, “em termos históricos e metodológicos, no entanto, o corolário
desta atenção minuciosa aos mecanismos internos da linguagem poética foi um isolacionismo
estético que marcou boa parte da atividade teórica dos formalistas” (Ibid.). Bakhtin salienta
que o objetivismo dos formalistas leva-os a reduzir a obra a seus elementos lingüísticos,
desconsiderando as intenções – os aspectos semânticos, os elementos extraverbais,
sociológicos e históricos – que também a compõem. A raiz do problema do objetivismo
48
abstrato é sua tese da língua enquanto norma, que orienta toda a atividade analítica para uma
separação entre o sistema da língua e sua história, entre os atos de fala e o contexto histórico
em que são realizados. O produto desse sistema seriam enunciados neutros, nos quais somente
seria visível o reflexo da língua. Trata-se, para Bakhtin, de uma abstração, uma vez que
considera a enunciação um processo eminentemente dialógico, feito da interação e do
intercâmbio entre os falantes e entre os enunciados.
A natureza do enunciado concreto bakhtiniano ainda será mais bem demonstrada. Por
ora, cabe lembrar que toda a crítica que se fez ao objetivismo abstrato, representado pela
Lingüística tradicional e pelos formalistas, abriu espaço para um estudo da obra literária – e
de qualquer tipo de texto, uma vez que são produzidos pelo mesmo processo dialógico –
enquanto produto de uma enunciação. A poeticidade de um texto não depende mais (ou pelo
menos não somente) do predomínio nele da função poética da linguagem; por esses novos
pressupostos, não só o produto e o produtor interessam, mas também o receptor e o conjunto
de produtos anteriores que influenciam no acabamento geral do texto. Por isso, o contexto
extratextual passa a ser uma dimensão importante para o estudo de qualquer enunciado.
O subjetivismo idealista
Cabe agora proceder a crítica à outra face do pensamento lingüístico-filosófico, que
Bakhtin considera igualmente contrária ao seu pensamento concreto: o subjetivismo idealista.
Sob esta classificação encontra-se a Estilística tradicional, representada sobretudo pela escola
do alemão Karl Vossler e seus seguidores.
Vossler considera a língua uma atividade criadora constante, um processo criativo que
se elabora a partir de atos de fala individuais. Nesse aspecto, ela se aproxima, segundo essa
corrente, da própria criação artística e, por isso, a disciplina fundamental da Lingüística seria
a Estilística. Os méritos desse pensamento residem na valorização que faz do processo de
enunciação; diferentemente do pensamento abstrato, que vê a língua como sistema estável e
imutável, o pensamento idealista vê o enunciado como elemento indissociável desse sistema
normativo, responsável pela sua função criativa. Outro “acerto” desse pensamento, segundo
Bakhtin, diz respeito à indissociação do conteúdo ideológico de sua forma lingüística,
contrária ao que queriam os formalistas. Uma vez que toda utilização da língua está
relacionada a um contexto, a ideologia que subjaz a ele também está presente no enunciado.
49
40
TODOROV, 1981, p. 54.
50
também comuns da situação; e, por fim, dos mesmos valores, compartilhados pelos falantes.
Isto é, a parte extraverbal do enunciado é composta por elementos espaciais, semânticos e
axiológicos, sempre comuns aos falantes em interação. É interessante perceber que esses
elementos valem tanto para uma situação extraverbal composta por falantes reais quanto para
uma situação de falantes “virtuais”, ou seja, uma situação de diálogo interior, ou de diálogo
com outros enunciados. Essas possibilidades serão abordadas posteriormente, mas desde o
momento é importante lidar com a concepção de contexto a partir de uma ampliação das
idéias de “falante” e “diálogo”.
42
Todorov, em sua obra sobre Bakhtin, adota o termo translingüística para essa “nova disciplina” a fim de,
explica, evitar confusão com o sentido usual de metalingüística. Ele afirma que a translingüística aproxima-se à
área da lingüística que hoje é conhecida por pragmática. (1981, p. 42).
53
No caso dos enunciados escritos, o falante (autor) não deixa de estabelecer uma
comunicação verbal com outros falantes (leitores); a diferença é que o falante-ouvinte não
responde diretamente, mas sua atitude responsiva é pressuposta pelo autor e entra na
composição do enunciado.
um sentimento vivenciado, o próprio sujeito falante, o acabado em sua visão de mundo, etc.)”
(BAKHTIN, 2003, p. 326). Não se deve confundir, porém, essa ausência de ineditismo com
uma mera reprodução de algo já dado: “O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma
expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia
antes dele, absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem relação com o valor [...]”
(Ibid., p. 326).
Convém reiterar que o objeto de estudo aqui é o enunciado concreto, o produto de uma
criação verbal, na esfera do discurso. Esse enunciado, agora redimensionado, pode ser
estudado de forma também mais abrangente. Junta-se ao estudo da matéria lingüística e da
interação entre os interlocutores o estudo das relações entre os enunciados.
É a partir dessa última instância, das relações entre os enunciados, adicionada aos
aspectos contextuais do enunciado concreto, que o estudo dos gêneros foi empreendido por
Bakhtin. Esse estudo tanto mais se justifica quanto se percebe que essas formas genéricas de
enunciado são tão familiares para os falantes quanto a própria língua: “A língua materna – sua
composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir
de dicionários e gramáticas mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós
mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. Nós
assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações e justamente com essas
formas” (Ibid., pp. 282-3).
Os estudos sobre os gêneros do discurso podem ser vistos, dentro da obra de Bakhtin,
como a continuidade natural de sua teoria do enunciado. Observando o conjunto geral da obra
e as menções à questão dos gêneros anteriores aos textos do autor sobre o assunto, pode-se
inclusive sustentar a idéia de que a consciência da relevância dos gêneros na comunicação
verbal é que propulsionou os estudos do enunciado concreto. Em outras palavras, a teoria do
enunciado concreto foi um degrau, na obra de Bakhtin, para se chegar ao estudo dos gêneros
55
43
Sabe-se, a esse respeito, que Bakhtin, além de trabalhar com a idéia de gênero desde a década de 20, tinha um
grande projeto para os gêneros do discurso, do qual o capítulo de mesmo nome, publicado postumamente em
Estética da criação verbal, é apenas uma pequena parte. (Cf. TODOROV, 1981, p. 124).
56
Como foi visto, a diversidade de gêneros do discurso não contesta o caráter único do
enunciado. Seu componente contextual, combinado de forma criativa com o componente
lingüístico, garante-lhe individualidade. No entanto, por mais que sua construção decorra de
escolhas pessoais e situacionais dos interlocutores envolvidos, não se pode dizer que um
enunciado é inteiramente livre, muito menos inteiramente original. O fato de sempre ser
ligado a um gênero do discurso coloca o enunciado em diálogo não só com os falantes
envolvidos na sua elaboração mas com outros enunciados desse gênero em comum.
Dessa forma, sua constituição é sempre permeada de elementos de outros enunciados.
Sua inserção – segundo Bakhtin, inevitável – dentro de um determinado gênero o coloca
inexoravelmente em contato com outros enunciados. Não se trata de um contato por mera
semelhança; a relação entre os enunciados é muito mais intensa: “os enunciados não são
indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se
refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada
enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera de comunicação discursiva” (Ibid., pp. 296-7). Sendo os gêneros do
discurso, segundo Bakhtin, formas interiorizadas pelos falantes, fora das quais não há
comunicação verbal, os reflexos entre os enunciados sempre se dão dentro dessas formas mais
ou menos estáveis, que também definem, junto a outros elementos, o seu acabamento.
Bakhtin afirma, inclusive, que a escolha lexicográfica de um enunciado não se dá no sistema
de língua, mas nos outros enunciados do mesmo gênero, onde certas palavras, combinadas de
determinada maneira, já se consagraram como expressões típicas, plenas de sentido dentro
daquele tipo de enunciado. O diálogo dentro de determinado gênero, portanto, proporciona
uma relação orgânica entre os enunciados; mais do que semelhança, o gênero determina-lhes
o acabamento e o seu lugar dentro desse grande e contínuo diálogo entre enunciados.
A idéia de dialogismo de Bakhtin reitera uma visão de enunciado, dentro da cadeia de
comunicação, como resposta a outros enunciados. “Ela [a resposta] os rejeita, confirma,
completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta”
(Ibid., p. 297). Bakhtin, então, exemplifica algumas formas possíveis de atitude responsiva em
relação a outros enunciados:
Diante do suporte teórico investigado, verificou-se que Tristes trópicos é uma obra-
enunciado de múltiplas vozes, que estabelece relação de dialogismo na esfera de seu
enunciado (com o “ouvinte virtual”) e com demais enunciados, de mesmo e de outros
gêneros. Também foi visto, no capítulo anterior, que as duas partes – verbal e extraverbal – de
um enunciado concreto são indissociáveis. Assim, o contexto é elevado a um patamar
privilegiado no estudo da obra em questão, saindo do tradicional papel que costumeiramente
recebe, de pano de fundo, de ilustração para o material principal, o texto. Aqui, ao contrário, o
contexto determina aspectos importantes da construção do enunciado. Nesse sentido, o
presente capítulo, por uma questão de método, consagra-se ao estudo da parte extraverbal,
referente ao gênero, de Tristes trópicos, de maneira a destacar certos elementos necessários ao
entendimento do todo da obra, tarefa reservada para o capítulo final.
Na esfera dialógica tal como estabelecida por Bakhtin, perspectiva adotada neste
trabalho, tanto o receptor da obra-enunciado quanto o conjunto de obras anteriores a ela são
fontes importantes de investigação. Por isso, é necessário, além do breve comentário feito, no
primeiro capítulo, sobre a situação de produção e de recepção de Tristes trópicos, investigar
61
com mais acuidade o gênero do discurso que se considera, neste trabalho, o eixo central da
obra – o relato de viagem, o qual, certamente, como já foi dito, dialoga com outros gêneros.
O relato de viagem é um gênero tão antigo quanto fluido, difícil de delimitar. Sua
intersecção, por vezes freqüente, com outros gêneros torna mais complexa a tarefa de definir-
lhe contornos exclusivos. Até mesmo o termo para designá-lo varia, conforme o autor ou a
situação: além de “relato de viagem”, são comuns os termos “literatura de viagens”, “crônica
de viagens” e “literatura de informação”. No entanto, mais do que delimitar nome e contornos
únicos, é importante observar os traços recorrentes desse gênero, bem como sua evolução
histórica.
44
Leia-se, como Oriente, à época, as regiões da Turquia, da Índia e os vastos territórios do reino dos mongóis,
que venceram os muçulmanos no século XIII, reabrindo aos europeus o acesso à Ásia e ao Extremo Oriente,
interditado havia mil anos. Para mais detalhes sobre o período, cf. a “Introdução” de Stéphane Yerasimos ao
Livro das Maravilhas, de Marco Polo (presente na edição utilizada nesta dissertação, cf. bibliografia) e
“Problématique, limites et définitions: pourquoi l’Europe?” (CHAUNU, 1969).
45
Abreviação utilizada para O livro do milhão de coisas maravilhosas, um dos títulos que a obra de Marco Polo
recebeu – originalmente, em francês antigo: Le devisement du monde.
46
No caso da viagem imaginária de Mandeville, o “testemunho” é construído a partir de informações coletadas
em relatos já existentes sobre o Oriente e dispostas em sua obra com grande acuidade. De toda forma, nela
também há essa mistura do testemunho (ainda que não vivido por ele) e do lendário.
63
47
Para tratar da questão da verossimilhança do narrado e dos relatos de viagem em geral no contexto medieval,
será tomado por base o capítulo 2 de Viajantes do maravilhoso, de Guillermo Giucci (ref. completa na
bibliografia desta dissertação).
48
COLOMBO, 1984, p. 58.
64
seu universo medieval e com a leitura que fez do relato de Marco Polo, de onde parece retirar
a exata referência exposta49.
Outra conseqüência da exposição do “diferente” ao mundo europeu, feita pelo relato
de viagem, foi, segundo Giucci, o nascimento de uma autocrítica européia: eu me vejo pelo
espelho que é o outro. Ainda que seja precipitado interpretar essa autocrítica como um
verdadeiro exercício de alteridade, é inegável que o europeu começa a ver no Oriente uma
sociedade não-cristã, mas organizada, rica, forte; enfim, um verdadeiro império, e, com isso,
começa a questionar seus próprios moldes – e mais, seu modo de agir diante de uma
sociedade, agora, comparável à sua. Nesse contexto, o relato de viagem deixa de ser
simplesmente inventário do natural, do espaço físico, para alcançar o espaço da cultura,
embrenhando-se nas relações sociais e espirituais do novo espaço. Mais do que isso, ele
também serve aos interesses de acesso às riquezas asiáticas – nada mais natural na visão de
um comerciante, Polo, que se ocupa de informar exaustivamente sobre as riquezas e relações
humanas e de elocubrar sobre possíveis relações de troca a serem estabelecidas com o império
do Oriente.
Nos séculos seguintes, o interesse pelas trocas comerciais dá lugar à conquista e
colonização das terras recém-descobertas das Índias Ocidentais. Não se estava mais diante de
um “império”, cheio de riquezas a serem conquistadas por hábeis comerciantes, mas sim de
um Novo Mundo, povoado por selvagens, do qual bastava tomar posse para iniciar a
exploração. A ruptura com a visão de mundo vigente até então não é pequena: afinal, o
mundo, literalmente, havia crescido. É o fim da Idade Média, o Renascimento traz à
humanidade novos valores e estabelece a transição para a Idade Moderna, marcada por
radicais rupturas sociais, políticas e culturais com o pensamento medieval.
Conseqüentemente, o relato de viagem é reconfigurado, de acordo com a nova
realidade que se impõe. Nas grandes expedições marítimas às Américas, passa a integrar a
frota o narrador, ou informante, designado para fazer um relato pormenorizado de tudo o que
se observava nas novas terras. Expedições portuguesas, espanholas, francesas, holandesas,
contavam com seus informantes, que, na volta, levavam ao seu rei notícias úteis para a
implantação de um sistema colonizador nas Índias Ocidentais, certamente o modo pelo qual
49
A respeito desse modo de proceder, diz Todorov: “Colombo não tem nada de um empirista moderno: o
argumento decisivo é o argumento de autoridade, não o de experiência. Ele sabe de antemão o que vai encontrar;
a experiência concreta está aí para ilustrar uma verdade que se possui, não para ser investigada, de acordo com
regras pré-estabelecidas, em vista de uma procura da verdade” (A conquista da América, p. 18).
65
50
GANDAVO, Pero de Magalhães de, apud RONCARI, 1995, p. 51.
66
qualquer ninharia”51. É evidente que, para o missionário católico do século XVI, não poderia
haver outra forma de relação sexual que a regulada pela moral cristã (sexo dentro do
casamento, para fins de procriação). Logo, o que é uma prática de sentido cultural definido e,
portanto, vista com naturalidade pelos índios, é algo que choca duplamente o viajante.
Primeiro, porque é interpretada, segundo os códigos culturais europeus, como prostituição;
segundo, porque essa prática, não percebida em seu real sentido dentro da cultura indígena,
não causa constrangimento entre eles (os índios não se importam em prostituir suas filhas).
Anos mais tarde, Montaigne, em seu célebre capítulo sobre os canibais, tenta ver com mais
relativismo os hábitos dos “selvagens”, elevando-os a exemplares de uma forma de vida mais
simples e verdadeira, em contraponto à cobiça e ao que chama de “barbarismo” europeu.
Também sobre os costumes conjugais dos índios, diz ele que “os homens têm várias
mulheres, em tanto maior número quanto mais famosos e valentes. [...] põem elas todo o
cuidado em ter o maior número possível de companheiras, pois esse número comprova a
coragem do esposo” (1987, p. 265). No entanto, para glorificar os índios, ele não escapa dos
juízos de valor europeus, redimindo-os das acusações de bárbaros através das virtudes morais
européias, como se vê na seqüência: “Entre nós falariam de milagre. Não se trata disso e sim
da virtude matrimonial elevada ao máximo. Não nos mostra a Bíblia, Sara e as mulheres de
Jacob, Léa e Raquel, pondo suas serventes à disposição de seus maridos?” (Ibid. p. 265). Para
ele, os hábitos indígenas são validados não porque sejam a expressão de uma cultura própria,
mas sim porque eles correspondem, com mais sucesso, ao que o autor vê como ideal humano,
isto é, o ideal formulado pela ótica eurocêntrica. O contato com essa nova dimensão
ameríndia, portanto, põe em cheque algumas questões da ordem européia, mas ainda não gera
um exercício de alteridade consciente, legítimo.
Considerando-se os relatos de viagem da época, é importante lembrar que a questão da
veracidade do narrado ainda se colocava no século XVI. Como atestar fatos e realidades
pertencentes ao um mundo totalmente desconhecido dos leitores, que não tinham quaisquer
meios de averiguar o que liam? O fato de muitos narradores pertencerem a missões oficiais
era muitas vezes expresso no relato, como meio de garantir-lhes alguma autoridade. A difusão
da imprensa também exerceu um papel importante na popularização desses relatos e,
principalmente, no cotejo entre eles. Jean de Léry e André de Thévet, por exemplo, estiveram
51
THÉVET, André de apud LÉRY, 1980, p. 224 (grifo nosso).
67
no Brasil por ocasião da expedição da França Antártida, entre 1555 e 1557, e publicaram seus
relatos anos depois. É intenso o diálogo – e a troca de acusações – entre as duas obras; alguns
fatos são legitimados pela recorrência nos relatos, outros são postos em dúvida, diante de
versões diferentes observadas em ambos, embora a grande divergência entre eles seja mesmo
a questão religiosa, tão delicada em tempos de guerras entre católicos e calvinistas.
No século seguinte, assistiu-se a uma ampliação do número de viajantes e,
conseqüentemente, de relatos. Afinal, a empresa colonial fortalecia-se e precisava, então, de
notícias sobre as novas colônias para os ramos de atividade que começavam a integrar-se ao
projeto: mercadores, militares, missionários, além do reino, precisavam informar-se sobre as
particularidades das Américas. O projeto de expansão das relações com o Oriente fora
retomado, a partir de então com novo paradigma, delineado pela experiência em curso na
América. Viajantes como Tavernier, Chardin e Fernão Mendes Pinto relatam suas incursões
por terras orientais da Turquia, da Pérsia, da Índia, com vistas à expansão ultramarina e sua
cobertura religiosa, não sem uma destacável dimensão crítica já mais desenvolvida. Também
começa a desenvolver-se, nesses relatos, a dimensão exótica como chave que, posteriormente,
vai acompanhar o gênero do relato de viagem. Ela parece dar vazão ao desejo do leitor pelo
desconhecido, ligado, à época, ao desconhecido dos confins do Oriente, mas, ao longo da
história, ligado aos confins de todo o mundo. De qualquer maneira, a palavra impressa e,
mais, a sua divulgação a vários territórios emprestaram ao relato de viagem, segundo Costa
Lima52, uma dimensão de verdade nunca antes experimentada. A ordem discursiva européia
estava definitivamente transformando-se; os contornos do ficcional estavam-se desenhando,
em proximidade à escala do imaginário, enquanto o real aproximava-se de um discurso
científico embrionário. Entre os dois pólos ainda se localizava o relato de viagem, procurando
o seu lugar, apesar de tê-lo bem definido entre os leitores.
Ao longo do século XVIII, a divulgação em escala crescente das informações sobre os
recursos naturais e os habitantes – que não eram mais vistos simplesmente como “selvagens”,
ainda que persistisse o sentimento eurocêntrico em relação a eles – dessas regiões antes quase
inacessíveis traz sérias transformações culturais que são sentidas e assimiladas pelos autores e
leitores da época. Américas e Oriente minimamente desvendados, o imaginário do
52
Cf. cap. 5, “O transtorno da viagem” in: Pensando nos trópicos, 1991. A questão da mudança da ordem
discursiva européia, exposta no capítulo mencionado, será mais bem abordada nesta dissertação em fase
posterior (cf., neste capítulo, 3.2.3. “O problema da ficção”).
68
maravilhoso e o sonho de grandes riquezas vai perdendo espaço. Passa a ganhar lugar o
desejo pelo exótico. O relato de viagem, gênero em que o exótico é logo acolhido, foi
ganhando prestígio entre um público crescente e entre os filósofos, que se ocupavam das
grandes coleções, compostas, muitas vezes, de relatos os mais variados e raros, com
informações e curiosidades sobre povos diversos, bem ao gosto enciclopédico de então. A
grande obra de Prévost, L’Histoire des voyages, por exemplo, conta com surpreendentes
dezesseis volumes e serviu de fonte de conhecimento e inspiração para filósofos e escritores,
bem como à popularização do gênero ao grande público. Na mesma corrente, Rousseau
utiliza-se das informações das viagens de Chardin à Pérsia, enquanto Diderot torna célebre o
relato Voyage autour du monde ao exaltá-lo em seu Suplément au voyage de Bougainville, de
1772.
O relato de viagem passa a ser consumido pelo público leitor com tamanho interesse
que – após transformações de forma e de conteúdo – passa a ser o motivador das viagens, e
não mais uma mera conseqüência delas. Chega-se à época das viagens com fins de
aprendizagem, de ampliação dos conhecimentos, muito freqüentes entre os escritores no
século XIX53. Elas também passam a ser empreendidas em função da mera curiosidade, do
gosto pela aventura, na mesma tecla em que continua a desenvolver-se o gosto pelo exótico.
São essas as fontes de um dos escritores mais profícuos desse período: Chateaubriand. Seu
Itinéraire de Paris à Jérusalem e seu Mémoires d’outre-tombe foram intensamente lidos e
serviram de inspiração a vários outros escritores, abrindo caminho também a um dilema do
gênero: ao aproximar-se da literatura, da ficção, e servir de matéria-prima a grandes
escritores, o relato de viagem não estaria se transformando em pretexto, em mera fôrma para
outros gêneros literários, como o romance? Poderia a obra feita nesses moldes continuar a ser
chamada de “relato de viagem”? A resposta seria “não”, a considerar as obras de um Júlio
Verne, que escreveu seus célebres livros de aventuras sem ter empreendido efetivamente os
itinerários relatados. No entanto, o resultado dessas obras sobre aventuras e viagens, tendo
sido elaboradas a partir de experiências vividas ou recolhidas em outras obras, parece ser o
mesmo para o leitor, que se sente inserido na viagem junto ao narrador, fictício ou não, da
53
São comuns os relatos em que escritores célebres narram suas viagens a países europeus, principalmente à
Itália, com fins de aprendizagem. É o caso de Viagem a Itália, de Goethe (1818), e de Rome, Naples et Florence,
de Stendhal (1817).
69
obra. Tudo indica que o relato de viagem vai-se transformando em um gênero de fronteira,
influenciando e emprestando recursos de outros gêneros, principalmente literários.
Sem aprofundar, por ora, essa questão específica dos limites do gênero, deixando-a
apenas indicada, o importante é notar como a viagem, a partir do século XIX, adquire novo
sentido, e como o relato de viagem transfigura-se, aproximando-se mais e mais da literatura. É
possível observar essa aproximação em trecho do diário de viagem de Goethe:
O tempo está magnífico, os dias fazem-se mais longos a olhos vistos, os loureiros e
os buxos florescem, e as amendoeiras também. Hoje pela manhã surpreendeu-me
uma visão singular: vi de longe árvores altas, semelhantes a estacas, todas elas
revestidas da mais bela cor violeta. [...] Suas flores de cor violeta, em forma de
borboleta, nascem do próprio caule. As que vi ao longe, feito estacas, haviam sido
podadas no último inverno, e de sua casca nascia aos milhares a flor colorida e bem
desenhada. As margaridas surgem do chão feito formigas, mais raro é ver-se o
açafrão e o adônis, tanto mais graciosos e belos por isso (1999, p. 202).
54
Dentre obras do século XIX que têm essa característica, podemos destacar A volta ao mundo em oitenta dias,
de Júlio Verne. Nela, relata-se uma viagem, em que há narrativas de aventuras, e, ao mesmo tempo, percebe-se
uma intenção de ensinar, como os típicos romances de aprendizagem do século anterior.
70
55
É o caso da obra de Darwin, o qual, no século XIX, visita vários lugares para desenvolver sua pesquisa sobre a
origem das espécies biológicas. No campo da etnologia, são exemplos de relatos de viagem os trabalhos de
Morgan sobre sua estada entre os Iroquenses e de Tylor, sobre sua pesquisa no México.
71
3.2.1. Tema
Diferentemente de outros gêneros, cuja maior unidade é a estrutura composicional, o
relato de viagem, desde o nome, evidencia o seu maior elemento unificador. A viagem é o
tema por excelência deste gênero, praticamente obrigatória para sua existência, dado que é ela
que suscita o relato. Enquanto romances, poemas e ensaios definem-se como gênero por
aspectos estruturais, abarcando, em contrapartida, um horizonte muito vasto de temas, o relato
de viagem parece comportar-se de maneira exatamente oposta: a partir de uma variação
pequena em torno do tema da viagem, o gênero possibilita uma certa liberdade formal, que,
inclusive, propicia a sua aproximação de outros gêneros do discurso. Concentrando-se
portanto no tema da viagem, é importante destacar a íntima relação do relato de viagem com a
realidade, especificamente com a História e, mais recentemente, com a Antropologia. Ora, um
gênero que se pauta por questões concretas, reais, via de regra tem seu tema determinado
pelas vicissitudes destas. A necessidade de mapear, de conhecer as novas terras das Índias
Ocidentais, à época das navegações ultramarinas, determinou a paisagem e os habitantes dos
trópicos como chave temática dos relatos de viagem do século XVI. Séculos antes, em tempos
de estabelecimento de um intercâmbio comercial com o Oriente, a necessidade de
decodificação de uma ordem discursiva totalmente diferente povoou os relatos de viagem dos
séculos XIV e XV com seres maravilhosos, capazes de feitos mágicos – verdadeira tradução
da galeria de seres da mitologia greco-romana, modelo que o europeu já conhecia. Este último
caso, particularmente, remonta a uma questão importante da definição de temas do relato de
viagem. Percebe-se que, embora a realidade seja a força motriz do relato, definindo-lhe, entre
outros contornos, o tema mais específico, ela, paradoxalmente, permite e até estimula a
influência da dimensão ficcional nessa definição temática. O problema da ficção no relato de
viagem será posteriormente discutido, mas ele já aponta para a existência de uma outra ordem
na configuração dos elementos constitutivos do gênero.
73
se realiza a contento. Essa necessidade é logo sentida pelos primeiros viajantes, em contato
com territórios totalmente novos. A descrição mostra-se indispensável para se transmitir
integralmente as informações das descobertas, distanciando-se em muito da função
ornamental que muitas vezes a descrição assume nas obras de ficção. Na sua função
“jornalística”, o viajante antigo não se furta de descrever tudo o que encontra de novo, ainda
que tenha dificuldades evidentes nessa tarefa. Como descrever, por exemplo, frutas, plantas e
animais desconhecidos dos europeus? E como reportar aos distantes leitores o som dos
instrumentos, da língua nativa? Uma saída encontrada por esses viajantes, em seus relatos, foi
o uso da analogia. São comuns nos relatos mais antigos – e isso aparece em boa medida
também em relatos modernos57 – as aproximações entre o objeto observado e algum similar,
pertencente ao universo do autor do relato. Dessa maneira, a descrição, mais do que transmitir
informações inéditas, parece criar uma certa familiarização em relação ao novo – relação
desejável, aliás, aos propósitos colonialistas das nações como Espanha, Portugal e França do
século XVI.
Embora percebido como necessário, o uso da descrição não é feito, em muitos dos
relatos de viagem, sem causar desconfortos. Muitas vezes, o autor do relato sente dificuldade
de “interromper” a narração para inserir-lhe a descrição, pois esta cortaria o fio narrativo.
Essa dificuldade é que gera, segundo Le Huenen, “transições difíceis e desajeitadas do
gênero: ‘não será fora de propósito dizer algumas coisas sobre...’ ou ainda ‘para retornar à
nossa navegação...’, que sublinham ao mesmo tempo a necessidade de apelar à descrição e a
dificuldade de fazê-la” (1990, p. 19, tradução nossa). O autor atenta, inclusive, para a
tendência, entre os relatos dos séculos XVI e XVII, de se iniciar a obra com a descrição para
livrar-se logo dela e então proceder ao relato propriamente dito, sem “interrupções” (Ibid., p.
19). Trata-se de um mal-estar do autor do relato, que costumava ver a descrição dentro da
narrativa tal como parênteses – e, assim, quanto maior fosse, mais difícil seria a retomada do
fio condutor.
57
Ainda que não seja mais indispensável, vistos os recursos tecnológicos disponíveis para registrar o novo, a
analogia persiste nos relatos modernos, talvez pelo efeito inusitado que provoca. É o que se observa na seguinte
passagem de Tristes trópicos, em que se descreve a floresta de araucárias: “...grande floresta úmida de coníferas,
varando o emaranhado de cipós e de samambaias para erguer no céu formas inversas às de nossos pinheiros: não
cones afilados no cume, mas, ao contrário – vegetal regular que encantaria Baudelaire –, sobrepondo ao redor do
tronco as bandejas hexagonais de seus galhos, e alargando-as até a última que desabrocha numa gigantesca
umbela” (p. 143, ed. bras., grifo nosso).
75
Esse mal-estar só começa a ser superado quando o viajante cria uma consciência mais
sólida do papel de narrador que assume. O viajante, quando se dispõe a expor suas
experiências, não é apenas um viajante, mas, dentro do relato de viagem que elabora, é
também um narrador. Isso implica elaboração textual, adoção de determinados modelos
textuais, escolha de recursos estilísticos. Ainda que não haja um elevado grau de consciência
acerca da escrita, essas escolhas acontecem58. E, a partir delas, não se está mais diante da
realidade que se vê / viu, mas da realidade que se mostra no texto; passa-se da realidade
exterior para a realidade textual, que podem até coincidir, mas são duas instâncias diversas.
Na realidade textual, as relações lógicas são diferentes da realidade do mundo; a duração e a
passagem do tempo, as distâncias e os lugares são mesurados pela lógica interna do texto. É
impossível, ao reproduzir textualmente uma viagem, por exemplo, respeitar a duração de cada
tarefa e os intervalos existentes entre elas, vividos na experiência concreta. Os intervalos entre
uma tarefa e outra costumam ser cortados e a duração de cada uma amolda-se ao tempo da
narrativa. Esse tempo narrativo, junto ao espaço textual, às pessoas retratadas – que se
transformam em personagens –, à sucessão de eventos – que se transforma em enredo –; todos
esses aspectos configuram-se como componentes estruturais de um dado texto. No caso do
relato de viagem, percebeu-se que essas componentes são as mesmas do texto narrativo.
Quando o autor do relato passa a se dar conta de que deve obedecer a uma lógica
diferente da do mundo externo, seu conflito em relação à descrição começa a se dissipar. Ele
percebe que a descrição não vai interromper a sucessão dos acontecimentos simplesmente
porque o tempo que rege essa sucessão não é o exterior. O relato obedece a uma lógica que
permite, e até obriga, uma seqüência temporal que se faz de rupturas, pausas, adiantamentos.
A descrição se encaixa nessa seqüência sem, portanto, causar prejuízo, como se pensava. Pelo
contrário, a descrição interage simbioticamente com a narração dentro do relato, dotando-o de
informações retiradas da experiência da viagem, que, transformada em narrativa, é, em larga
medida, possível de ser vivenciada pelo leitor.
A narrativa é, assim, o cerne, a macroestrutura do relato de viagem, onde agem outras
instâncias, como foi visto com a descrição. Voltando a atenção a esta componente narrativa
do relato, observa-se que ela obedece à mesma natureza lógico-temporal de outros gêneros,
58
Ressalta-se aqui que a maioria dos autores de relatos de viagem exercia ou exerce atividades muito diversas –
tais como mercadores, missionários, soldados, funcionários, cientistas –, a princípio pouco familiarizados com a
elaboração textual. No entanto, alguns desses relatos surpreendem não só pelo objeto relatado, mas também pelo
grau de elaboração lingüística.
76
geralmente ficcionais. O problema da ficção será tratado logo na seqüência, mas cabe adiantar
alguns dos elementos próprios da narração, que também aparecem nos relatos de viagem.
A narrativa de viagem é sempre marcada por um deslocamento no tempo e no espaço.
Esse deslocamento é que determina o começo, o meio e o fim da ação, elementos
fundamentais de uma narrativa. O começo, via de regra, é definido pela partida, pelo início da
viagem, e o fim, pelo retorno ao ponto original, ou, em alguns casos, pelo fim do período de
descobertas, seguido da fixação do viajante no novo ambiente. O espaço é definido em razão
daquilo que se pretende descobrir, explorar: o itinerário é escolhido por uma necessidade
preexistente. Há também relatos em que o itinerário é traçado – ou reformulado – ao longo da
expedição, conforme as possibilidades ou adversidades que se oferecem.
Prioriza-se a ordem cronológica dos eventos; a exposição dos acontecimentos, tal
como eles de fato se sucederam, aproxima o tempo da narrativa do tempo exterior. Essa
aproximação, para o relato de viagem, é extremamente vantajosa, não simplesmente por uma
questão de ordenação lógica. Ao manter a seqüência espaço-temporal o mais próximo
possível da que teve lugar concretamente, ao longo da viagem, o relato dá ao leitor a
possibilidade de reviver a trajetória do autor-viajante, como se o estivesse acompanhando no
momento da ação. Essa sensação, própria dos gêneros ficcionais como forma de garantir a
verossimilhança necessária para a adesão do leitor, no relato de viagem funciona
especialmente como atestação da veracidade do narrado. Esta é uma preocupação que sempre
aparece nos relatos de viagem, ao longo dos séculos. Trata-se, obviamente, de uma questão
menos importante nos dias atuais, em que os meios de comprovação de determinada
experiência estendem-se ao campo científico-tecnológico. De toda maneira, um relato só
sobrevive enquanto tal se contar com o crédito do leitor, para o qual, de maneiras diferentes,
sempre se apela.
Ainda que sejam identificáveis em suas particularidades as instâncias narrativa e
descritiva, no relato de viagem elas obedecem a uma elaboração formal marcada pela
simultaneidade. Assim, não cabe propriamente separar o que é narração do que é descrição,
sob risco de destituir do texto a sua unidade e identidade como relato. As dimensões
temporais e espaciais do relato, portanto, têm o mesmo grau de contigüidade que a forma e o
conteúdo de uma dada obra. Ainda que seja possível estudá-las individualmente, elas são
indissociáveis e devem ser vistas como um único produto.
77
59
Este é o caso das Viagens, de sir John de Mandeville (1356), já mencionada nesta dissertação.
60
. O raciocínio exposto na seqüência desta citação é baseado no capítulo de onde ela foi retirada (“Pensando nos
trópicos”).
78
da literatura –, mas sim de constituir-se como história bem contada que poderia ser
verdadeira. Se é incontestável o fascínio da ficção, também é muito sedutora, no terreno da
ficção, a hipótese da verdade61. Dessa forma, a assimilação do relato de viagem pela literatura
gera, no século XIX, uma série de obras em que a viagem passa a ter um papel central.
É importante reafirmar o tipo de parentesco do relato com a ficção: se o recorte
temático do gênero fundamenta-se na realidade exterior, concreta, sua estrutura e seus
recursos estilísticos são próprios à linhagem de textos ficcionais. Todas as aproximações do
gênero com outras formas discursivas resultarão, portanto, das oscilações e interferências
sentidas nesse eixo realidade – ficção.
3.2.4. O exótico
Como já visto, a dimensão ficcional foi assimilada pelo relato de viagem em parte
como resposta à crise da veracidade do narrado: na impossibilidade de se atestar o caráter de
verdade do que relata, o autor descobre na proximidade com a ficção – que não é o mesmo
que “mentira” – um caminho para conseguir legitimar e, mais, trazer interesse para sua obra.
Há, entretanto, um outro caminho que também foi explorado como alternativa ao dilema da
veracidade do relato: o exotismo. Tanto a ficção quanto o exótico garantem ao relato de
viagem um caráter não de verdade mas sim de verossimilhança. As duas dimensões são
capazes de fazer com que o relato funcione como tal.
Matizado pelos tons próprios a cada época, o exótico relaciona-se com a atração pelo
desconhecido. A tarefa de desvendar aquilo que não se conhece pode ser cumprida pelo
exame detido de seus elementos, submetidos a análise e estudo. É o que procuram fazer as
ciências. Quem opta pelo exótico segue por outro caminho. Busca-se explicar aquilo que não
se conhece pelo recurso da imaginação, projetando-se desejos sobre o fato concreto,
idealizando-o. O outro não é necessariamente objeto a ser desvendado, entendido, mas sim
chave para expressão e, eventualmente, reflexão sobre a própria essência.
61
Pode-se atribuir a esse fascínio o sucesso de gêneros como a biografia e o próprio relato de viagem. Em outros
meios, também é notável a observação que se faz a alguns filmes – “baseado em fatos reais” – como recurso
persuasivo e, mais recentemente sob alguns aspectos, o sucesso dos “reality shows”.
81
terrestre – expressa-se geralmente por idealizações, reduções, clichês. E assim, pelo inverso, o
exotismo europeu trata também de si mesmo62.
À medida que se vai tomando consciência do olhar viciado dirigido ao outro, vão-se
também percebendo as generalizações e os preconceitos resultantes desse olhar. Questiona-se:
como ver o diferente, como diferenciar o outro de si próprio sem discriminá-lo, tipificá-lo? O
exótico de cores fortes vai dando espaço para um olhar mais relativista, a partir do século
XX63. Influenciado pela proximidade cada vez maior com a Etnografia, para a qual serve,
inclusive, como instrumento, o relato de viagem começa a assimilar questões que são próprias
do olhar do antropólogo. O autor do relato sabe, assim, que o olhar que dirige ao diferente é
um olhar contaminado pelo seu ponto de vista. Ele toma consciência de que essa
contaminação impede que se compreenda o diferente em todas as suas esferas e, mais, que se
chegue a sua essência sem alterações significativas. No entanto, ele também tem a dolorosa
consciência de que essa parcialidade de seu olhar é inevitável. Por mais que se esforce no
exercício de relativizar aquilo que vê, é impossível livrar-se totalmente de seus próprios
códigos, uma vez que estes são os únicos instrumentos de que dispõe para decodificar o
mundo. Daí o mal-estar como traço comum nos relatos de viagem mais recentes. A
simplificação do exótico foi combatida, mas para seu lugar não se encontrou uma solução
satisfatória. Afinal, de que adianta combater a tipificação do exótico com a consciência do
relativismo se o seu verdadeiro e pleno exercício é impraticável? E, para piorar, tem-se a
consciência de que, ainda que esse exercício fosse realizado a contento, depois de séculos de
exploração dos territórios distantes, pouco sobrou para se estudar e preservar das culturas em
questão.
O panorama traçado aponta as várias chaves de leitura aplicadas para lidar com a
questão do outro. Ora totalmente desconhecido, ora comparável ao “eu”, o outro ganha um
caráter mais exótico quando identificado como “diferente”. É esta a marca de exotismo mais
presente nos relatos de viagem, própria, mais especificamente, ao caráter que se atribuiu ao
outro nos séculos XVIII e XIX, mas de alguma forma perceptível em toda a história do
gênero. Partindo desta acepção – o outro como diferente – serão identificadas e trabalhadas as
características fundamentais do exotismo como elemento do relato de viagem.
62
Ao que parece, nenhum autor dessa época é melhor que Diderot para se comprovar o exame de consciência
europeu feito pela chave do outro, invariavelmente exótico, como será mostrado adiante.
63
Isso não significa que tenha havido uma substituição do exótico do século XIX pelo relativismo do século XX.
Ao contrário, o exotismo ainda é um artifício bastante comum – e valorizado – em relatos de viagem e romances.
84
64
Os termos foram retirados do capítulo sobre L’Exotisme de Nous et les autres, de Todorov (1989, pp. 297 a
386), mas não aparecem na obra da forma como estão propostos aqui. Em vez disso, Todorov analisa o assunto
em geral e na obra de alguns autores em particular. Ao final do capítulo, propõe uma classificação dos retratos de
viajantes, sistematizando questões tratadas anteriormente. Para esta dissertação, considerou-se mais producente
trabalhar com as duas formas gerais de expressão do exótico, detectadas no conjunto dos relatos de viagem, do
que com formas particulares de exotismo de determinados autores.
85
Je puis vous dire que [le Tahiti] c’est le seul coin de la terre où habitent des hommes
sans vices, sans préjugés, sans besoins, sans dissensions. Nés sous le plus beau ciel,
nourris des fruits d’une terre féconde sans culture, régis par des pères de famille
plutôt que par des rois, ils ne connaissaient d’autre dieu que l’Amour [...]. [C’est]
l’état de l’homme naturel, né essentiellement bon, exempt de tout préjugé et suivant,
sans défiance comme sans remords, les douces impulsions d’un instinct toujours sûr,
parce qu’il n’a pas encore dégénéré en raison65.
É importante perceber que, nesse contexto, não são os antigos relatos de viagem do
século XVI os melhores exemplares desse tipo de exotismo. Como a maioria desses viajantes
foi integrante de uma expedição com fins colonizadores e permaneceu algum tempo entre os
habitantes locais, houve um maior conhecimento do outro. Onde há conhecimento, não há
lugar para o deslumbramento. De fato, entre copiosas descrições, os relatos de Jean de Léry,
de Hans Staden, de Gandavo, por exemplo, estão repletos de elogios e também de críticas aos
modos dos selvagens, muito distantes de uma idealização. Quem idealiza é quem não
conhece. São, portanto, os leitores dos relatos antigos, distantes no tempo e no espaço das
novas terras, os que aderem efetivamente ao exótico. É o caso de Montaigne66, no século XVI,
leitor de Léry e Thévet, e dos filósofos iluministas do século XVIII. Entre esses, são
conhecidos os casos de Rousseau, responsável, inclusive, pela propagação da teoria do bom
selvagem – ainda que não acreditasse exatamente na acepção que ela tomou67 – e de Diderot,
que em 1772 escreveu uma obra comentando o relato de viagem de Bougainville: Supplément
au voyage de Bougainville. Este último caso é sintomático do exotismo primitivista ao qual
aqui se refere. Enquanto no relato em que se baseia Diderot os nativos são descritos em várias
65
Posso afirmar que [o Taiti] é o único lugar da Terra em que há homens sem vícios, sem preconceitos, sem
necessidades, sem desavenças. Nascidos sob o mais belo céu, alimentados por frutas de uma terra fértil sem ter
sido cultivada, comandados por pais de família no lugar de reis, eles só têm como deus o Amor [...]. [Trata-se
do] estado do homem natural, essencialmente bom, isento de qualquer preconceito e seguidor, sem desconfiança
nem remorso, dos doces impulsos de um instinto sempre puro, ainda não degenerado pela razão”. Trecho
retirado da “Introdution” de Louis Constant In: BOUGAINVILLE, 1989, p. XVII.
66
Apesar da idealização do indígena, Montaigne é conhecido e valorizado, entre os demais filósofos,
contemporâneos e posteriores a si, por conta de sua análise, na medida do possível, menos eurocêntrica do
elemento humano não-europeu. Sobre esse aspecto, vale a pena conferir a passagem em que relativiza a barbárie
atribuída ao indígena, a partir da crítica à sociedade européia, no capítulo já citado em nota anterior.
67
A esse respeito, cf. o capítulo “L´homme de la nature” In: TODOROV, 1989.
86
68
Cf. TODOROV, op. cit., pp. 330-1.
69
“Naturalmente um pouco selvagem, não era isto, a que chamamos de sociedade, que eu tinha ido procurar no
Oriente: eu me impacientava vendo os camelos, e ouvindo o grito do ‘cornac’*”. Trecho traduzido de Martyrs, p.
189, apud TODOROV, op. cit., p. 337.
[*Segundo o dicionário Petit Robert, “aquele responsável por tratar e conduzir os animais”. Preferiu-se manter o
original visto que não se encontrou, em português, termo suficientemente específico para reportar a esta
atividade.]
88
70
Para mais informações sobre a atividade do turismo e a crítica a ela, cf. capítulo 1 de PIMENTEL, 1998.
89
71
Vale relembrar que as citações de trechos de Tristes trópicos serão seguidas, no próprio texto, da indicação da
página em que o trecho se encontra, na edição brasileira consultada nesta dissertação. Em nota, seguirão o trecho
transcrito do original em francês e sua localização. Quando for necessário, o original aparecerá no corpo do
texto.
72
“... archéologue de l’espace, cherchant vainement à reconstituer l’exotisme à l’aide de parcelles et de débris”
(p. 42).
90
diferente vinte anos antes, na década de 30, em que as viagens a regiões longínquas ainda
tinham pouco prestígio, mesmo nos ambientes universitários.
Inicia-se o registro das circunstâncias em que o autor integrou a missão de professores
universitários destinados a fundar o curso de Filosofia na recém-inaugurada Universidade de
São Paulo. Pouco se adianta, no entanto, desta viagem: o comentário sobre a travessia
marítima que se deveria fazer desvia a narrativa para outra travessia, realizada posteriormente,
em 1941, com destino a Nova York, em razão das perseguições nazistas a intelectuais
europeus. Essa viagem é narrada em seus pormenores, que recriam a situação humilhante e
precária a que o autor e outros europeus foram submetidos. Trata-se de uma denúncia das
“manifestações estúpidas, execráveis e crédulas que os grupos sociais segregam como um pus
quando começa a lhes faltar a distância” (p. 28)73, arbitrariedades que deixam o autor
indignado, tanto ou mais que as apontadas nos relatos de viajantes modernos. A partir dessa
experiência relatada, o autor rememora outros casos pontuados pelo preconceito, em épocas
diversas: detenção em Salvador, dois ou três anos antes, em razão de uma foto tirada de
meninos pobres, que poderia “comprometer a imagem” do Brasil na Europa;
acompanhamento de sessão de Tribunal na Martinica, em 1941, com a condenação de um
negro em apenas cinco minutos; interdição em Porto Rico, na mesma viagem, como suspeito
de ser emissário dos alemães, entre outros episódios.
No último Capítulo desta Parte, o autor volta no tempo da narrativa aos idos de 1937,
época de seu desligamento da USP e de preparação da expedição que faria ao centro-norte do
Brasil. A narração de um episódio é a motivação para voltar ao tema das viagens e de seu
desgaste, talvez de sua impossibilidade, diante dos novos tempos: “Não há mais nada a fazer:
a civilização já não é mais essa flor frágil que se preservava, que se desenvolvia a duras penas
em certos recantos abrigados de um torrão rico em espécies rústicas” (p. 35)74. A essa
realidade, o autor evoca os antigos viajantes, mas logo se vê diante de um impasse, pois estes
talvez não tivessem a capacidade, à qual a Etnologia contribuiu largamente, de atribuir um
olhar relativizador àquilo que vissem. Assim, a Primeira Parte termina com a descoberta de
um sentido ainda presente na viagem: mesmo entre destroços, o viajante-etnólogo pode
encontrar peças que o ajudem a entender a humanidade.
73
“... manifestations stupides, haineuses et crédules que les groupements sociaux sécrètent comme un pus quand
la distance commence à leur manquer” (p. 26).
74
“Il n’y a plus rien à faire: la civilisation n’est plus cette fleur qu’on préservait, qu’on développait à grand-peine
dans quelques coins abrités d’un terroir riche en espèces rustiques” (pp. 36-7).
91
75
“... l’Eden de la Biblie, l’Age d’Or des anciens, la Fontaine de Jouvence, l’Atlantique, les Hespérides, les
pastorales eet les îles Fortunées” (p. 79).
76
“... brise de fôret alternant avec des parfums de serre, quintessence du règne végétal dont la fraîcheur
spécifique aurait été si concentrée qu’elle se traduirait par une ivresse olfactive” (pp. 83-4).
77
“... non point sauvage, mais déclassée” (p. 103).
78
“... elles vont de la fraîcheur à la décrépitude sans s’arrêter à l’ancienneté” (p. 105).
93
parte física da cidade nos anos 30, sempre marcada por um progresso desordenado e pouco
coerente com os valores aristocráticos que queria ressaltar, o autor volta sua atenção para a
elite paulistana, que, “tal como suas orquídeas prediletas, formava uma flora indolente e [...]
exótica” (p. 95)79. Na descrição dos tipos, hábitos e valores sociais dessa elite, Lévi-Strauss
ressalta a superficialidade do conhecimento propalado, a iniciativa da criação da USP como
tentativa de construção de um espírito cosmopolita, distante da figura “caipira” ainda forte no
estado, e que assombrava a burguesia nascente. Por fim, o autor reconhece os bons resultados
da iniciativa que, à revelia de seus idealizadores, ampliou o conhecimento e a possibilidade de
ascensão social a parcelas mais pobres da sociedade. Assim, Lévi-Strauss finaliza o Capítulo
com a evocação dos nomes de seus alunos brasileiros, que já haviam se tornado, à época de
Tristes trópicos, mestres e respeitados profissionais.
A Quarta Parte é dedicada às cidades do interior, alvo da “etnografia de domingo”, e
ao modo de vida rústico dos homens das áreas rurais. A princípio, trata-se das cidades do
interior dos estados de São Paulo e do Paraná. Nesta Parte, o autor inicia um procedimento
comum no livro, que é a intercalação de capítulos sobre a experiência brasileira com outros
sobre viagens posteriores, mais especificamente a cidades do Oriente. As cidades orientais
aqui aludidas pertencem à Ásia do Sul – Karachi e Calcutá, na Índia, cidades do Egito e
Arábia – e servem como contraponto às cidades do interior do Brasil.
Nas cidades do interior de São Paulo, chamam a atenção do autor os mercados e seus
produtos locais (palmeiras, pinga, amuletos), as festas rústicas, as tradições, crendices e
superstições populares. Logo atenta para a ameaça presente a esse sistema cultural tão coeso:
o crescimento de certas regiões, muitas vezes, determina o declínio de outras. E mesmo as
regiões que crescem não têm garantias de manutenção do desenvolvimento, sempre ameaçado
pelo desenvolvimento das áreas costeiras do país. O autor vê na condição precária das
estradas do interior do estado, transitadas por mulas e caminhões que comumente atolam na
lama, o símbolo dessa fragilidade. No norte do Paraná, o que primeiro chama a atenção é a
floresta de coníferas. Do deslumbramento à análise, o autor aponta a floresta extremamente
densa como o motivo para o isolamento e a preservação da região, povoada por grupos de
famílias pomerânias e ucranianas que puderam reconstruir a vida numa região climática
similar, porém mais fértil que a de origem. Essa possibilidade de “nova vida”, que parece tão
79
“[l’élite pauliste,] pareille à ses orchidées favorites, formait une flore nonchalante et plus exotique qu’elle ne
croyait” (p. 111).
94
80
“C’est dans ces régions, où la densité de population dépasse parfois mille au kilomètre carré, que j’ai
pleinement mesuré le privilège historique encore dévolu à l’Amérique tropicale [...] d’être restée absolumment
ou relativemment vide d’hommes” (p. 169).
81
“Ce grand échec de l’Inde apporte un enseignement: en devenant trop nombreuse et malgré le génie de ses
penseurs, une société ne se perpétue qu’en sécrétant la servitude” (p. 170).
95
dificuldade nas estradas de terra encharcadas, atravessadas a cavalo. As cidades que serviram
de pouso, como Porto Esperança e Corumbá, também foram retratadas em sua falta de
estrutura e de perspectiva para o morador local.
O primeiro Capítulo consagrado aos índios é o 17, “Paraná”, em que o autor relata o
primeiro contato com os índios, provavelmente oriundos do grupo Jê, que povoou o Sul do
Brasil. Era um grupo de índios que haviam passado por uma experiência de civilização,
imposta pelos brancos, mas que foram abandonados à própria sorte no projeto de
desenvolvimento da região. Diz Lévi-Strauss: “para minha grande decepção, os índios do
Tibaji não eram nem inteiramente ‘índios verdadeiros’ nem, muito menos, ‘selvagens’. Mas,
ao privarem de sua poesia a imagem ingênua que o etnógrafo principiante forma de suas
experiências futuras, davam-me uma lição de prudência e objetividade” (p. 144)82. Sob essa
perspectiva, o autor deixa de buscar os elementos eminentemente indígenas na aldeia, mas
busca ver o que é de fato sua vida. Nessa observação, percebe que o grupo realizou uma volta
inconsciente aos objetos, produtos, formas de viver antigas, anteriores às formas aprendidas
com o branco, a ponto de relutarem muito mais na negociação de seus próprios objetos do que
dos outros, ainda que estes fossem, aparentemente, mais úteis a eles.
A segunda aldeia indígena contatada localizava-se na região de Nalike, à esquerda do
rio Paraguai. Eram índios Cadiueu, parecidos com os brasileiros lavradores da região pelas
roupas e pelos vilarejos, mas bastante diferentes na organização social e no estilo de vida. O
autor retrata os elementos essenciais deste grupo, assiste a uma festa da puberdade e ocupa
todo o Capítulo 20 com a descrição pormenorizada da riquíssima arte gráfica facial dos
Mbaiá, apelando inclusive para os desenhos do pintor e explorador Guido Boggiani, que
passou duas temporadas na aldeia, entre 1892 e 1897. Acompanha a descrição a tentativa de
análise dos desenhos Mbaiá, que representariam formas importantes de organização e
hierarquização social.
A Sexta Parte do livro é dedicada aos Bororo. Porém, assim como na Parte anterior,
há um Capítulo em que o autor discorre sobre a vida sertaneja da região. “O ouro e os
diamantes” trata da vida nas cidades que serviram de pontos de partida para as aldeias Bororo
pelas quais passou Lévi-Strauss. Da viagem de navio entre Corumbá e Cuiabá, o autor destaca
82
“A ma grande déception, les Indiens du Tibagy n’étaient donc, ni complètement des ‘vrais Indiens’ ni, surtout,
des ‘sauvages’. Mais, en dépouillant de sa poésie l’image naïve que l’ethnographe débutant forme de ses
expériences futures, ils me donnaient une leçon de prudence et d’objectivité” (p. 177).
96
83
“Peu de peuples sont aussi profondément religieux que les Bororo, peu ont un système métaphysique aussi
élaboré” (p. 165).
84
“... la représentation qu’une société se fait du rapport entre les vivants et les morts se réduit à un effort pour
cacher, embellir ou justifier, sur le plan de la pensée religieuse, les relations réelles qui prévalent entre les
vivants” (p. 284).
97
feito entre os Bororo. Chama a atenção, nessa Parte, o Capítulo “Lição de escrita”, em que o
autor relata um episódio sobre a descoberta, que os Nambiquaras de seu grupo fizeram, da
existência de sentido na escrita do cientista, que imitavam no papel com o lápis que
receberam. Também começam a evidenciar-se os primeiros sinais de cansaço e desânimo
extremos, resultantes dos constantes deslocamentos, da precariedade de instalações e
alimentação, das más condições de trabalho. Lévi-Strauss chega apenas com dois homens e
alguns animais à estação de Campos Novos, onde entraria em contato com remanescentes
Tupi – os demais integrantes da expedição, incluindo sua mulher e alguns índios, foram
infectados por uma epidemia de oftalmia e foram obrigados a abandonar o projeto.
A Oitava Parte mostra o contato do etnógrafo com os últimos grupos indígenas
estudados, da família Tupi-Cavaíba. Como eram índios da etnia dos antigos Tupi, que
residiam na costa brasileira no século XVI, alguns inclusive tidos como totalmente selvagens,
o contato é esperado com apreensão. O primeiro Capítulo ainda não retrata o encontro, mas
sim a espera, em um dos postos da linha; trata-se de um momento de auto-reflexão sobre a
viagem, os estudos empreendidos, a própria Etnografia, os relatos dos antigos e de novos
viajantes. O desânimo com a expedição gera, portanto, grandes reflexões, que chegarão ao
ápice na próxima Parte. No Capítulo seguinte, é relatado o encontro com os índios Mondé, da
etnia Tupi-Cavaíba, depois de cinco dias de trajeto numa canoa pelo rio. Depois da descrição
do tipo físico, da indumentária, de aspectos da língua e da disposição da aldeia, o etnógrafo
expõe um certo descontentamento: “Ao término de um exaltante percurso, eu tinha os meus
selvagens. Infelizmente, eram-no demasiado!” (p. 315)85. A partir daí, o autor intensifica seus
questionamentos acerca do alcance dos relatos de viagem e da Etnografia, mas não deixa de
levantar todos os aspectos observados entre os Tupi-Cavaíba, evocando por vezes os viajantes
antigos – especialmente Léry e Yves d’Évreux – que estiveram na região, entre os mesmos
grupos indígenas, quatrocentos anos antes. Os dois últimos capítulos dessa Parte são
consagrados à vida nos vilarejos de seringueiros, na região amazônica, em que o autor
encontra um pouco mais de diversificação que nos anteriores. Descreve os produtos locais, os
nomes inventados das pessoas, a medicina científica e a popular – baseada em resguardos e
orações –, o trabalho e as relações sociais do seringueiro.
85
“Au terme d’un exaltant parcours, je tenais mes sauvages. Hélas, ils ne l’étaient que trop” (p. 397).
98
A Nona Parte anuncia em seu título – “A volta” – o final do relato, mas não o término
da viagem propriamente dita. O término da narrativa não é bem explicitado, dando a entender
que o ponto final da expedição foram mesmo os vilarejos de seringueiros, próximos ao rio
Machado. Embora se inicie com uma alusão à escala de Campos Novos, o Capítulo 37, “A
apoteose de Augusto” expõe, na verdade, as dificuldades do trabalho etnográfico, mais
especificamente, e um grande questionamento da Etnografia como escolha profissional, de
modo mais geral. Para abordar essas questões, o autor discorre sobre as diferenças entre
Chopin e Debussy, ressaltando o quanto pôde, depois de ouvir o último, redescobrir o
primeiro. Com a viagem seria talvez a mesma coisa: depois de percorrer regiões longínquas,
talvez ele pudesse redescobrir a sua própria região, entendê-la, estudá-la. Outra digressão é
feita para relatar a peça que dá nome ao Capítulo, escrita pelo autor em um dos momentos da
viagem. O enredo, segundo o autor, uma nova versão de Cina,86 é narrado com detalhes, ao
final do qual se chega ao ponto-chave: trata-se de uma representação do papel do antropólogo
como um ser ao mesmo tempo expurgado de seu mundo e impossibilitado de pertencer a
outro mundo que não o seu.
O Capítulo seguinte continua a discussão do papel contraditório do etnógrafo para,
deste ponto, abordar questões – e dúvidas – mais amplas: como colocar-se diante de um fato
social sem julgá-lo com os próprios parâmetros? E como respeitar o diferente quando este se
mostra cruel e desumano? O autor mostra a tendência do etnógrafo de ser demasiado crítico
com seu próprio universo e bastante permissivo, conformista, com o universo do Outro,
objeto de estudo. Para encontrar um equilíbrio, a saída seria, segundo o autor, guiar-se pela
comparação, o que o estudo das diversas sociedades pode proporcionar. Seria, portanto,
possível medir o grau de justiça ou de desigualdade de determinada sociedade, exercício que o
autor expõe na seqüência, com alguns aspectos de sociedades visitadas. Há, no Capítulo, a
reabilitação de Rousseau que, segundo o autor, expressou com precisão o dilema que é
enfrentado pelo antropólogo, podendo fornecer procedimentos para a prática da Etnologia,
não como busca, nos “selvagens”, do estado primitivo da civilização ocidental, mas como
forma de conhecer os elementos constitutivos de uma sociedade maior, a humanidade.
O autor suspende a discussão sobre a Etnologia para, em digressão, tratar da viagem
que fez ao sítio arqueológico de Táxila, na região da Caxemira, por volta de 1950. O sítio, que
86
Trata-se de uma personagem da história latina que conspirou contra o imperador Augusto. A referência é, por
certo, à tragédia, de mesmo nome, da autoria de Corneille, publicada em 1642.
99
compreendia várias “cidades” antigas, de épocas diferentes, existentes entre os séculos VI a.C
e VI d.C, apresenta uma mistura de elementos das culturas greco-romana, hindu, budista e
muito rara de encontrar, segundo o autor, depois da invasão e destruição da região pelos
muçulmanos. Este é o episódio relatado para se discutir o “apetite destruidor de todas as
tradições anteriores”, para Lévi-Strauss a marca do Islã, sob vários aspectos e em vários
momentos e lugares históricos. No Capítulo seguinte, o último do livro, a crítica prossegue,
mas como forma de comparação do Islã com uma postura igualmente intolerante do Ocidente
em relação a outros povos. Passa-se, então, à comparação entre as três grandes religiões como
tentativas de salvação da humanidade: o budismo, o cristianismo e o islamismo. Dessa
comparação, o autor considera que o budismo apresenta as melhores formas de relação do
homem com o mundo e consigo próprio e, sendo a mais antiga das três religiões, aponta-a
como exemplo da “grandeza indefinível dos começos”. O autor prossegue em sua exaltação
ao budismo, relembrando uma visita a um templo rústico, em Chittagong, quando atesta a
beleza e a grandeza da simplicidade dos devotos camponeses. Finaliza o raciocínio arriscando
uma comparação do budismo com o marxismo, como formas de libertação do homem. De
toda maneira, o homem é preso, segundo o autor, a uma forma de organização que gera
inércia e é autodestrutiva: a sociedade. Diante desse destino inevitável, a Etnologia reafirma
seu valor, para Lévi-Strauss, ao ser capaz de fazer a espécie humana “captar a essência do que
ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade” (p. 392)87. Tristes
trópicos termina, pois, da mesma maneira como começa: afirmando a inelutabilidade da
escolha etnográfica, um dos grandes temas do livro.
com a linguagem, em função de um efeito estético próprio ao texto literário. Para isso, o autor
recorre a imagens, associações inusitadas, metáforas, assonâncias. Junta-se a esse trabalho a
elaboração de uma arquitetura textual peculiar, com seqüências narrativas entremeadas por
episódios e por considerações pessoais. Enfim, há um uso intenso de recursos lingüísticos e
narrativos, como convém a um escritor. Conclui-se, de um primeiro contato, portanto, que
Tristes trópicos não é nem ensaio sociológico ou antropológico nem literatura – talvez seja,
simultaneamente, um pouco dos dois.
Dessa zona intermediária – possível, mas pouco satisfatória – em que se colocou a
obra, avistou-se outra possibilidade: o gênero do qual esse texto mais se aproxima é o relato
de viagem. Com a presença constante de marcadores temporais e espaciais, de uma descrição
vinculada à progressão narrativa; enfim, de uma dose de elementos comumente encontrados
na estruturação de textos ficcionais, além da presença dos apontamentos da pesquisa
etnográfica relacionados às reflexões e análises pessoais, ou seja, de dados da realidade,
Tristes trópicos apresenta, evidentemente à sua maneira, a mesma mistura de matéria real e
forma ficcional que outros relatos de viagem seguem. Essa hipótese ganhou fôlego depois de
empreendido o estudo dos traços específicos deste gênero, cujo resultado foi exposto no
Capítulo anterior, e do mapeamento detalhado da obra, em que os conteúdos aludidos, desde o
início do trabalho, aparecem agora em relação. Com este material, torna-se possível verificar
alguns procedimentos, próprios ao relato de viagem, em Tristes trópicos, a fim de medir o
grau de proximidade e de afastamento – o diálogo – da obra com o gênero.
questionamentos sobre o próprio ato de viajar – e de relatar a viagem – hoje e outrora. Por
fim, também aparecem, em longas seqüências, lembranças de outras viagens, posteriores à
viagem relatada, e reflexões pessoais decorrentes delas88.
São essas as cores do quadro – e não os quadros da exposição, como concebe Geertz89
– que Tristes trópicos representa. Em relação aos temas, Tristes trópicos mantém-se muito
próximo do que se observa nos relatos de viagem, principalmente no último século, em que o
gênero aproximou-se da pesquisa etnográfica. Em vários relatos de viagem contemporâneos,
essa aproximação é percebida, por um lado, na presença de um forte elemento descritivo, e
por outro, para além da observação, no uso corrente de uma perspectiva relativista na
interpretação dos fatos verificados. Ficando em apenas um exemplo bastante característico
dessa tendência, é possível citar L’Afrique fantôme, de Michel Leiris90. Contemporâneo e
colega de profissão de Lévi-Strauss, Leiris escreveu seu famoso relato após ter passado dois
anos (1931 a 1933) no continente africano como membro de uma missão etnográfica, que
percorreu territórios entre Dakar e Djibouti. A obra consagrou-se como um retrato da
diversidade, antes insuspeita, das sociedades africanas, marcadas por diferentes sistemas
culturais, religiosos, sociais. Os fatos observados, por Leiris e por outros escritores
contemporâneos de relatos, correspondem, mais e mais, ao elemento humano, e não
simplesmente à paisagem. Uma vez empreendidos por viajantes-etnógrafos, os relatos
abordam preferencialmente as questões referentes às sociedades humanas, em que a descrição
e análise da paisagem, ainda que importantes, entram como composição do quadro social da
obra, obedecendo a um panorama temático etnográfico, relativamente restrito.
Nessa mesma linha, Tristes trópicos compartilha com os relatos de viagem do último
século o mal-estar com o gênero, a ponto de este constrangimento ser expressamente
discutido na obra e transformar-se em tema. Como já foi visto, a Primeira Parte do livro expõe
a crítica do autor à voga dos relatos de viagem na França, na década de 50, em tudo diferentes
dos relatos empreendidos pelos antigos viajantes, aos quais presta homenagem. Por essa
razão, a obra inicia-se com a célebre declaração de ódio às viagens, seguida da confissão de
adesão ao mesmo gênero. Evidentemente, pelo espaço dedicado à crítica aos relatos
modernos, que ocupa o Primeiro e o Quarto Capítulos, percebe-se que o autor, apesar de
88
É o caso das reflexões sobre o budismo e o islamismo, decorrentes da viagem que o autor fez, por volta de
1950, a um sítio arqueológico na Caxemira com vestígios de várias culturas milenares.
89
A esse respeito, rever o item 1.3.4. do Capítulo 1 desta dissertação.
90
Ver referência bibliográfica completa no Anexo desta dissertação.
102
assumir que também fará um relato, tentará distanciar-se ao máximo daquilo que critica nos
exemplares mais atuais: a espetacularização da viagem, a “santificação” do viajante em
função das dificuldades e dos perigos por que ele passou, e não pelo que de fato ele conseguiu
descobrir e estudar. No entanto, ele admite ser impossível voltar aos antigos relatos, posto que
são frutos de um olhar inaugural diante de um mundo realmente “novo”, impossível, portanto,
de se ter no presente momento histórico. Detecta-se, assim, pela natureza das críticas e pela
priorização do trabalho etnográfico, que a negação do exótico, da exaltação gratuita do
diferente, será o meio escolhido pelo autor para fazer de seu relato algo diferente das obras
que critica, ainda que não alcance mais o mesmo frescor dos relatos do século XVI, tanto
mais interessantes quanto mais novidades tinham para contar.
Essa tematização do gênero, vista em Tristes trópicos, é um traço recorrente dos
relatos mais atuais, que expressam a necessidade de redefinir o papel da viagem no século
XX. Já que não há mais lugar para as “verdadeiras viagens”, como diz Lévi-Strauss, depois
da exploração de todos os continentes e do advento do turismo, os deslocamentos que geram
relatos devem orientar-se por que motivação? Torna-se inevitável discutir o gênero fundado
na viagem, sua validade e permanência. A esse respeito, Cogez (2004) diz que “os escritores
[...] todos, cada um a sua maneira, lamentam não ser mais viável viajar sem acumular as
provas da impossibilidade de empreender uma viagem digna desse nome”91, diante do que
esses viajantes-escritores admitem que “não é mais possível escrever um relato de viagem tal
como se concebia até então; todos [os escritores de relatos estudados na obra de Cogez]
afirmam seu desejo de abandonar a ingenuidade e de não ceder à pressão do gregarismo
nômade. E apesar dessa precaução, lembrada sempre que possível, todos escreveram um, às
vezes vários, relatos de viagem!”92. Ora, diante dessa constatação da permanência do gênero,
questiona-se qual seu papel nesse novo cenário. Seja qual for ele exatamente, percebe-se que
o relato atual é inevitavelmente marcado pela Etnografia, mesmo quando não é escrito por um
etnógrafo. O legado do século XX para o gênero, se é possível afirmá-lo, está na
popularização de alguns conceitos oriundos dos estudos etnográficos, tais como a importância
91
“... les écrivains [...] ont tous, à leur manière, effectivement déploré qu’il n’était plus guère envisageable de
voyager sans accumuler les preuves de l’impossibilité d’accomplir un voyage digne de ce nom” In: COGEZ,
2004, p. 20 (tradução nossa, no corpo do texto).
92
“Ils ont tous admis qu’il n’était plus imaginable d’écrire un récit de voyage tel qu’on le concevait jusqu’alors;
ils ont tous affirmé leur désir de sortir de la naïveté et de ne pas céder à la pression de la grégarité nomade. Et
cette précaution prise et rappelée aussi souvent que possible, ils ont tous écrit un, voire plusieurs récits de
voyage!” Ibid., p. 20 (tradução nossa, no corpo do texto).
103
para uma discussão mais ampla. Os indícios iniciais de mera antipatia com os relatos de
viagem modernos evoluem, na obra, para afirmações concretas sobre a necessidade de
transcender o material tradicional do relato. É nesse sentido que Lévi-Strauss afirma que
Assim, a viagem relatada não é propriamente aquela que leva ao Brasil central, ainda
que ela também apareça na obra. A viagem digna do relato é de natureza intelectual, rumo ao
conhecimento da essência humana. É por conta dessa ambição que se torna viável pensar em
Tristes trópicos como um livro sobre a raça humana, sob a forma de relato de viagem,
concebido por um autor “vindo de um tour de humanidade, que certamente não o fez sair de si
mesmo, mas que o levou de um si-mesmo por acidente, se é possível dizer, a um si-mesmo
que sabe abraçar o universal”94.
4.2.2. O exotismo
O mal-estar detectado nos relatos de viagem do século XX, expresso em função do
próprio gênero a que pertencem, tem um claro motivo: a constante presença do exótico, quase
como um elemento constitutivo, obrigatório, à narrativa de viagem. Evidentemente, persistem
os relatos de viagem de feição mais comercial, que costumam fazer uso deliberado de todos
os clichês e simplificações referentes à região relatada, apelando para o gosto fácil que o
exotismo costuma despertar no público em geral. Justamente como forma de diferenciar-se do
que se consagrou como procedimento típico do relato de viagem moderno, esta exaltação do
diferente passa a ser negada por vários autores contemporâneos, interessados em um
testemunho verdadeiro e construtivo da experiência da viagem por que passaram. Tristes
93
“L’étude des sauvages [...] nous aide à bâtir un modèle théorique de la société humaine, qui correspond à
aucune réalité observable, mais à l’aide duquel nous parviendrons à démêler ‘ce qu’il y a d’originaire et
d’artificiel dans la nature actuelle de l’homme’” (p. 469).
94
“Parvenu au bout d’un tour d’humanité, qui certes ne l’aura pas fait sortir de lui-même mais qui l’aura mené
d’un lui-même de pur accident, si l’on peut dire, à un lui-même qui sait embrasser l’universel” (LEIRIS, 1966, p.
202).
105
trópicos, como já foi visto, obedece a essa tendência, transformando a crítica ao exotismo em
tema, na sua Primeira Parte, como também fazem outros escritores95.
No entanto, muitos dos escritores-viajantes do século XX têm consciência de que, por
mais que se procure evitar a exaltação gratuita do diferente, o olhar de quem viaja é sempre
parcial, contaminado desde sua origem pela cultura a que pertence. Afinal, como dar notícia
de algo sem descrevê-lo, e como fazer uma descrição sem utilizar-se de referenciais próprios?
Assim, corre-se sempre o risco de supervalorizar ou depreciar de imediato o elemento
relatado, o que tem sido parcialmente resolvido nas obras mais recentes pelo cuidado maior
com o tom das observações feitas e com os julgamentos de valor. É o que permite a inevitável
presença, ainda que atenuada, de um certo deslumbramento com o elemento exótico em
relatos atuais, mas que impede que existam hoje apreciações preconceituosas como as
comumente tecidas por Pierre Loti ou até por Chateaubriand, por exemplo, no século XIX,
sem grandes constrangimentos96.
Em Tristes trópicos, embora seja patente, na Primeira Parte, a crítica ao exotismo de
gosto fácil e ao relato de viagem que se vale desta instância, é de outra ordem o cuidado que
se observa no tratamento dos assuntos que podem cair numa visão idílica dos trópicos. Sob
uma perspectiva etnográfica, o autor recorre ao inventário dos elementos locais, dando
atenção àqueles referentes a aspectos novos para seu padrão. No entanto, essa atenção não
mobiliza apenas o olhar, apesar de partir dele. Em outras palavras, em Tristes trópicos, o autor
não suprime impressões e sensações que tem diante do novo. O encantamento ou a decepção
são expressos sem constrangimento porque são expostos, na obra, como etapa de um processo
maior de conhecimento da nova realidade – o único caminho que naturalmente destrói o
exótico. Ora, a chave do exótico é justamente valer-se da idealização de determinado objeto –
seja uma nova paisagem ou uma nova sociedade – para dar vazão aos desejos pessoais
daquele que observa, passando longe do entendimento, da explicação efetiva do objeto
95
É o caso de Paul Nizan, em seu Aden Arabie, de 1931, e de Georges Balandier, em Afrique ambigüe, de 1957,
para citar alguns exemplos. Há também os autores que, embora critiquem o apelo ao exótico, continuam
praticando-o, como faz Victor Segalen. Seu Essai sur l’exotisme, compilação de anotações sobre o tema,
publicado postumamente em 1955, embora promulgue o exercício de um verdadeiro exotismo, livre de clichês,
não consegue fugir da exaltação do diferente, presente, aliás, em várias de suas obras.
96
É o caso destes trechos, retirados de Madame Chrysanthème, de Pierre Loti: “[les Japonais ont des] cervelles
tournées à l’envers des nôtres” (p. 229, apud TODOROV, 1989, p. 346). Tradução: “[os japoneses têm] o
cérebro disposto inversamente ao nosso”; “[...] entre nous qui étions une même chair, restait la différence
radicale de races, la divergence des notions premières de toutes choses” (Ibid., p. 178). Tradução: “[...] entre nós,
que éramos uma mesma carne, mantinha-se a diferença radical de raças, a divergência de noções primordiais
sobre todas as coisas”.
106
mobilizou o autor em sua passagem pela região, o encanto cedeu lugar à constatação da
realidade, apontando para o que o título já sugere:
Nos arredores de São Paulo, como mais tarde no estado de Nova York, no
Connecticut e inclusive nas montanhas Rochosas, aprendi a me familiarizar com
uma natureza mais bravia do que a nossa, porque menos povoada e menos cultivada,
e no entanto privada de verdadeiro frescor: não selvagem, mas desqualificada (p.
90).99
O exotismo que inicialmente é sentido por uma diferença espacial – as sociedades distantes
são exóticas –, depois da vivência e do conhecimento, passa a ser marcado por um matiz
temporal, tanto mais inusitado por reavivar um tipo de vida que se aproxima de um certo
passado europeu. Se foi possível chegar a um aspecto similar ao universo de origem, o
exotismo se reconfigurou. Assim, o trópico não é “exótico”, mas simplesmente “obsoleto”, do
ponto de vista europeu. Essa dissociação do caráter exótico da esfera espacial, e sua posterior
aproximação da esfera temporal, entretanto, não se aplica ao tratamento que o autor confere às
sociedades indígenas. Ver o outro como exótico, considerando-o distante no tempo, era
99
“Dans les environs de São Paulo, comme plus tard dans l’Etat de New York, le Connecticut et même les
montagnes Rocheuses, j’apprenais à me familiariser avec une nature plus farouche que la nôtre parce que moins
peuplée et moins cultivée, et pourtant privée de fraîcheur véritable: non point sauvage, mais déclassée” (p. 103).
100
“Les tropiques sont moins exotiques que démodés. Ce n’est pas la végétation qui les atteste, mais de menus
détails d’architecture et la suggestion d’un genre de vie qui, plutôt que d’avoir franchi d’immenses espaces,
persuade qu’on s’est imperceptiblement reculé dans le temps” (pp. 94-5).
108
entrava-se ali por uma arcada de jasmins e, nos fundos, havia um jardim velhusco
em cuja extremidade eu pedira ao proprietário que plantasse uma bananeira que me
convencesse de estar nos trópicos. Alguns anos mais tarde, a bananeira simbólica
transformara-se numa pequena floresta onde eu fazia a minha colheita (p. 105).101
A efetiva presença nos trópicos ainda não era suficiente para que o autor se sentisse nos
trópicos. Nesse caso, a sensação não foi complementada pela realidade, mas sim preservada
dela com o providencial auxílio de um elemento exótico, a bananeira.
Em outro trecho, a respeito da observação de um deserto, em viagem de avião para a
Índia, o autor não resiste a uma descrição absolutamente contemplativa daquilo que vê, dando
vazão ao prazer visual que sentiu e, para tanto, recorrendo a recursos poéticos:
101
“On y pénétrait sous une voûte de jasmin et, par-derrière, il y avait un jardin vieillot à l’extrémité duquel
j’avais demandé au propriétaire de planter un bananier que me convainquît d’être sous les tropiques. Quelques
années plus tard, le bananier symbolique était devenu une petite forêt où je faisais ma récolte” (p. 123).
109
Como são suaves as cores dessas areias! Parece um deserto de carne: pele de
pêssego, nácar, peixe cru. Em Ácaba, a água, ainda que generosa, reflete um azul
implacavelmente duro, ao passo que os invisíveis maciços rochosos se fundem em
tonalidades furta-cores. (p. 123)102
Diferentemente da maioria das descrições que faz, em que procura associações mais
inusitadas e menos explicitamente positivas para relatar o que observa, aqui o autor faz uso,
inclusive, de exclamações. Desse modo, não se distanciou muito, neste trecho, das descrições
que se prestam a meros devaneios e sensações agradáveis, segundo ele condenáveis em
relatos de viagem.
Mais do que provas de incongruência ou marcas de mediocridade do autor, esses
“momentos exóticos” de Tristes trópicos não deixam de ser uma marca da dificuldade de se
manter isenção diante do outro, experimentada por vários autores de relatos de viagem.
Assim, esse exotismo residual torna-se também mais uma evidência importante do dialogismo
de Lévi-Strauss com uma certa tradição do gênero do relato, ainda que não se trate de um
traço recorrente em sua obra. Nesse sentido, seu diálogo maior é com uma família de relatos
de viagem do século XX que faz do exotismo um tema e uma ameaça, à qual, apesar de tudo,
sucumbe eventualmente.
102
“Que ces sables ont des couleurs tendres! On dirait un désert de chair: peau de pêche, nacre, poisson cru. A
Akaba, l’eau, pourtant bienfaisante, reflète un bleu impitoyablement dur, tandis que les invivables massifs
rocheux se fondent en teintes gorge-de-pigeon” (p. 147).
110
103
Este pressuposto é trabalhado por Antonio Candido em seu “Dialética da malandragem”, quando trata do
caráter documentário do romance de Manuel Antonio de Almeida. No “Prefácio” ao estudo, o autor afirma que
“a capacidade que os textos possuem de convencer depende mais da sua organização própria do que da
referência ao mundo externo, pois este só ganha vida na obra literária se for devidamente reordenado pela fatura”
(CANDIDO, 2004, p. 10). A “vida” de Tristes trópicos decorre exatamente dessa organização textual do material
concreto, e não do eventual caráter pitoresco da experiência que relata.
111
como tal no início do capítulo: “Depois desse batismo [episódio do capítulo anterior], eu
estava pronto para as verdadeiras aventuras” (p. 150). As “verdadeiras aventuras” são,
evidentemente, o centro de qualquer relato de viagem, o seu material mais caro. Após essa
declaração de intenções, dando prosseguimento à seqüência narrativa central, o autor relata
seu plano de contato com os índios, seu itinerário e o início da viagem de trem rumo ao Mato
Grosso, com a descrição da paisagem do cerrado. Neste ponto, a seqüência geral dá espaço à
uma análise filológica dos termos “Mato Grosso”, “grande fôret [grande floresta]”, “grande
brousse [grande mato]”, “sertão” e “bled”. Essa seqüência analítica, que ocupa apenas um
parágrafo e meio, no entanto, não produz um “corte” na seqüência narrativa geral, mas, à
medida que foi suscitada por ela, complementa-a. Tampouco a lembrança da questão
filológica veio da mera curiosidade suscitada pelo nome do local percorrido, como devaneio
de uma longa viagem. A lembrança foi suscitada pela paisagem observada pelo autor em seu
deslocamento e descrita na seqüência geral; nela há, aliás, a marca da passagem da viagem
para a análise: “Muitos viajantes cometem um contra-senso ao traduzirem Mato Grosso por
‘grande fôret’” (p. 151, grifos nossos). O autor, com sua observação, deixa ver que viajantes
não só vêem mas também analisam o novo. É possível dizer que essa intercalação de
seqüências é mais simbiótica, uma complementando a outra, do que expositiva.
Pode-se observar outro exemplo de intercalação de seqüências mais adiante, na
chegada do autor a Porto Esperança. Tão logo começa-se a discorrer sobre a cidade – “o lugar
mais esquisito que se possa encontrar na face da Terra” – a seqüência secundária vem ao seu
auxílio: “[...] com exceção talvez de Fire Island no estado de Nova York” (p. 152). O autor
afirma que “os dois locais são análogos ao reunirem os dados mais contraditórios, mas cada
um num registro diferente”, ao que sucede a descrição desta segunda, ressaltando sua feição
de “flecha de areia destituída de vegetação”. Ao final, volta a aproximar as duas cidades –
“Fire Island dá a impressão de uma farsa alegre, da qual Porto Esperança fornece uma réplica
destinada a uma população mais amaldiçoada.” –, mas com vistas a retornar à seqüência geral,
sobre Porto Esperança, estada da viagem.
O Capítulo 21, que retrata a estada do autor em Cuiabá, à época região de atividade
garimpeira, é particularmente interessante como exemplo de intercalação de seqüências
informativas e de episódios, dentro da seqüência narrativa geral. Na narrativa da passagem e
da estadia nas cidades de Corumbá e de Cuiabá, inserem-se, à medida que se tornam úteis
113
Certo dia, um colono – Miguel Sutil, o bem chamado – mandou alguns índios à
procura de mel selvagem. Voltaram na mesma noite, com as mãos cheias de pepitas
de ouro colhidas na superfície. Sem mais tardar, Sutil e um companheiro chamado
Barbudo seguiram os indígenas ao local de sua coleta: lá estava o ouro, por todo
lado. Em um mês, recolheram cinco toneladas de pepita (p. 193).104
104
“Un jour, un colon – Miguel Sutil le bien nommé – envoya quelques indigènes à la recherche de miel
sauvage. Ils revinrent le soir même, les mains remplies de pépites d’or ramassées en surface. Sans plus attendre,
Sutil et un compagnon appelé Barbudo – le Barbu – suivirent les indigènes au lieu de leur collecte: l’or était là,
partout. En un mois ils ramassèrent cinq tonnes de pépites” (p. 236).
105
“Il ne faut donc pas s’étonner que la campagne entourant Cuiaba ressemble par endroits à um champ de
bataille; des tertres couverts d’herbes et de broussailles attestent la fièvre ancienne” (p. 236).
114
depende, antes, de sua lógica interna, da coerência que tem com sua própria realidade. Esta é
constituída por meio do desenvolvimento que o autor faz de seus elementos internos – enredo,
progressão, personagens –, mas também, como ressalta Candido, da combinação desses
elementos106. É necessário, portanto, um trabalho rigoroso para que o texto ficcional garanta
sua aceitação como tal. Qual o ganho, porém, do autor que empreende esse trabalho textual?
Enfim, qual é vantagem da ficção sobre a verdade dos fatos que, por ser comprovável,
irrefutável, não pode ser questionada pelo leitor?
Verificou-se que os relatos de viagem, embora contem com uma matéria real, não
deixam de elaborar-se, parcial ou integralmente, como textos de natureza ficcional. Uma vez
eliminada a necessidade de se atestar a veracidade do relato, com a consolidação do
conhecimento dos limites geográficos do mundo moderno, as viagens e descobertas poderiam
ser contadas tal qual aconteceram, sem medo da recusa do leitor. No entanto, a dimensão
ficcional incorporou-se ao gênero de modo que se tornou, inclusive, um de seus traços
constitutivos. Talvez se possa dizer que a verdade, em estado bruto, não tenha o mesmo apelo
que a invenção, que é capaz, segundo Candido, de “nos dar um conhecimento mais completo,
mais coerente que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres”107.
Estendendo a afirmação de Candido sobre os seres à realidade global, pode-se depreender que
o real nunca se oferece tão coeso, completo, lógico quanto a matéria reordenada pelo
narrador. Nesse sentido, podemos dizer que reinventar é ficcionalizar, transformar o fato
verídico, trazido pela observação e pela memória, em matéria ficcional108.
Assim como se tem observado na evolução do gênero ao longo dos séculos, no relato
de Lévi-Strauss é perceptível uma certa elaboração ficcional. Para além da composição de
planos e, dentro deles, de tramas narrativas, Tristes trópicos apresenta passagens que bem
poderiam ser pura ficção, visto que, em várias delas, mais do que retratar um fato, percebe-se
uma intenção de contar uma história – vide o trecho já transcrito sobre a fundação de Cuiabá.
106
“Cada traço [da estrutura do romance] adquire sentido em função de outro, de tal modo que a
verossimilhança, o sentimento de realidade, depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela
organização do contexto.” (CANDIDO, 2002, pp. 79-80).
107
Ibid., p. 64.
108
Joaquim Alves de Aguiar, em seu estudo sobre Pedro Nava, reproduz um trecho do escritor sobre os
memorialistas, que se aplica bem à questão aqui discutida, sobre a dimensão ficcional nos relatos de viagem:
“[...] para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança, onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis.
Os fatos da realidade são como pedra, tijolo – argamassados, virados parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo
reboco da verossimilhança – manipulados pela imaginação criadora. [...] Só há dignidade na recriação. O resto é
relatório [...]”. (AGUIAR, 1996, p. 22).
116
Partindo da concepção aristotélica de verdade, inclusive, pode-se dizer que no caso de Tristes
trópicos houve uma coincidência entre verdade histórica e verdade ficcional109. Ou, como já
foi afirmado, a obra segue a tendência do gênero de tratar um conteúdo real com uma
estrutura de texto ficcional, o que, por si só, já o aproxima de gêneros considerados literários.
Esse tratamento é particularmente visível nos episódios que pontuam, por toda a obra,
a seqüência narrativa geral. São lembranças de outras viagens ou situações peculiares que o
autor ressalta e que constituem uma unidade narrativa, com presença de enredo, personagens e
desfecho. Alguns episódios contam inclusive com elementos enunciativos do tempo presente
– verbos no presente do indicativo, dêiticos –, tal como se estivessem acontecendo no
momento da enunciação. É o caso da passagem em que o autor narra a chegada de sua tropa a
um abrigo rústico perto da aldeia de São Jerônimo, no Paraná, que serviu de pouso para a
comitiva:
Bientôt, un son se précise dans le lointain; non plus le rugissement du jaguar, que
nous avons entendu un instant au crépuscule. Cette fois, c’est un chien qui aboie, la
halte est proche. Quelques minutes plus tard, notre guide change de direction; nous
pénétrons à la suite dans une petite friche [...]; devant une hutte, faite de palmiers
disjoints surmontés d’une toiture de paille, s’agitent deux formes vêtues d’une mince
cotonnade blanche: nos hôtes, le mari souvent d’origine portugaise, la femme
indienne (p. 179).110
A seqüência narrativa até então desenvolvida – a viagem a cavalo por entre a floresta densa
do norte do Paraná – havia ressaltado as dificuldades do deslocamento, os trechos de relevo
perigoso, a necessidade de equilíbrio sobre o cavalo. Em vez de simplesmente manter a
seqüência dos fatos da expedição em linhas gerais, o autor passa a pontuar, com detalhes, a
passagem por uma escala antes de chegar ao destino. O uso dos marcadores temporais
109
“[...] E ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede
que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo,
venha o poeta a ser o autor delas” (o grifo é nosso). É notável que Aristóteles estabeleça como motivo
fundamental para o exercício do poeta o caráter verossímil dos fatos, colocando como uma casualidade sua real
existência. ( ARISTÓTELES, 1973, p.451).
110
“Logo, um som se define; não mais o rugido de uma onça, que ouvimos por um instante no crepúsculo. Desta
vez, é um cachorro que late, a escala está perto. Minutos depois, nosso guia muda de direção; penetramos atrás
dele numa pequena clareira [...]; na frente da cabana, feita de palmeiras desconjuntadas cobertas por um teto de
palha, agitam-se duas formas vestidas com uma roupa leve de algodão branco: nossos anfitriões, o marido quase
sempre de origem portuguesa, a mulher, índia.” (p. 146).
117
“bientôt”, “cette fois”, “quelques minutes plus tard” trazem o episódio narrado para o
presente. Junto às indicações de ação – “un son se précise”, “un chien qui aboie”, “notre guide
change de direction”, “s’agitent deux formes” –, o episódio, que na verdade aconteceu muitos
anos antes, aproxima-se do tempo da leitura. Ou seja, aproxima-se do leitor, que passa a
acompanhar a narrativa não mais como mera lembrança reavivada no relato, mas como se a
estivesse vivendo com o narrador. É exatamente este o sentimento suscitado por obras
ficcionais, que usam dos mesmos elementos aqui observados. O trecho relatado termina, após
a narração da noite dormida no paiol e do café da manhã preparado pela anfitriã, com a volta
gradativa ao tempo enunciativo anterior, o pretérito perfeito, e com a marcação do novo status
de lembrança do episódio, o termo “oubliée”:
[...] on rassemble les chevaux, on les selle et on part. En quelques instants, la forêt
ruisselante s’est refermée autour de la hutte oubliée (p. 179-180).111
Assim, volta-se à narração geral, focando as informações referentes à reserva São Jerônimo, o
objetivo daquela trajetória.
Se é possível afirmar que o episódio anterior foi pontuado como forma de mostrar
como eram as várias escalas feitas pela expedição, e não exatamente como era aquela escala
específica, em outras passagens observa-se uma intenção de cristalizar um momento também
curioso, peculiar, além de representativo. São episódios que retratam alguma cena específica
com o uso dos marcadores temporais do presente aliado às marcas de discurso direto ou de
discurso indireto livre. Trata-se, nesses casos, de uma cena geralmente mais literária, no
sentido de maior elaboração lingüística, como a que segue.
Il faut aussi mentionner les koro, larves pâles qui pullulent dans certains troncs
d’arbres pourrissants. Les Indiens, blessés par les railleries des blancs, n’avouent
plus leur goût pour ces bestioles et se défendent énergiquement de les manger (p.
183).112
111
“[...] reunimos os cavalos, arreamo-los, partimos. Em poucos instantes, a floresta molhada fechou-se em torno
da cabana esquecida” (p. 146).
112
“Há que se mencionar os ‘corós’, larvas brancas que pululam em certos troncos de árvores podres. Os índios,
magoados com as zombarias dos brancos, não mais confessam seu gosto por esses bichinhos e negam
categoricamente que os comem.” (p. 149).
118
Até aqui, trata-se simplesmente de uma observação dos fatos. Entretanto, a observação torna-
se episódio:
Aussi n’est-ce pas chose facile que d’assister à l’extration des koro. Nous méditons
longuement notre projet, comme des conspirateurs. Un Indien fièvreux, seul dans un
village abandonné, semble une proie facile. On lui met la hache dans la main, on le
secoue, on le pousse. Peine perdue, il semble tout ignorer de ce que nous voulons de
lui. Sera-ce un nouvel échec? Tant pis! Nous lançons notre dernier argument: nous
voulons manger des koro. On arrive à traîner la victime devant un tronc. Un coup de
hache dégage des miliers de canaux creux au plus profond du bois. Dans chacun, un
gros animal de couleur crème, assez semblable au ver à soie” (p. 183).113
A utilização do presente do indicativo, que marca a ação dos viajantes e a reação ou o estado
do índio, confere à cena um movimento dinâmico, feito de ação e pensamentos. Ao tempo
verbal que expressa a ação em curso – o presente – junta-se outra marca de ficção: o discurso
indireto livre – “Será mais um fracasso?” (“Sera-ce un nouvel échec?”), “Paciência” (“Tant
pis!”) – e o discurso direto, ainda que não indicado por aspas ou travessão – “queremos comer
corós” (“nous voulons manger des koro”). Essas intervenções do narrador na cena
personificam-no como personagem, aliás, bem composta: além de expor sua participação na
cena narrada, tais marcas expõem seu pensamento interior, sua indecisão e expectativa. Por
fim, a elaboração do episódio tal qual uma cena de obra ficcional completa-se pela descrição
quase cinematográfica da árvore cortada e dos bichos aparentes, o que faz o leitor visualizar a
cena vivida. Por fim, o desfecho da situação criada, já subentendido pelos detalhes da cena, é
inevitável:
113
“Assim, não é fácil assistir à extração dos ‘corós’. Meditamos longamente sobre nosso projeto, como
conspiradores. Um índio febril, sozinho numa aldeia abandonada, parece uma presa fácil. Metemos-lhe um
machado na mão, sacudimo-lo, empurramo-lo. Esforço inútil, ele parece ignorar por completo o que queremos.
Será mais um fracasso? Paciência! Lançamos nosso derradeiro argumento: queremos comer ‘corós’.
Conseguimos arrastar a vítima até defronte de um tronco. Uma machadada revela milhares de canais furados
bem no fundo da madeira. Em cada um deles, um bicho grande, de cor creme, bastante parecido com o bicho-da-
seda.” (p. 149).
119
114
“Agora, precisamos nos decidir. Diante do olhar impassível do índio, decapito minha caça; do corpo escapa
uma gordura esbranquiçada, que eu provo, não sem vacilar: tem a consistência e a delicadeza da manteiga, e o
sabor do leite de coco.” (p. 149).
115
Cf. “História de Emydio” e “Oração do sapo seco” no Anexo desta dissertação, na versão original e na
tradução.
120
Qu’il existât dans le Nord des gatos valentes, chats vaillants, issus du croisement de
chats domestiques et de jaguars, je n’arrivai pas à m’en persuader. Mais de cette
autre histoire que me conte um interlocuteur, il y a peut-être quelque chose à retenir,
même si ce n’est rien, en fin de compte, que le style, l’esprit du sertão (p. 311).116
A Barra dos bugres, bourgade du Mato Grosso occidental, sur le haut Paraguay,
vivait un curandeiro, rebouteux qui guérissait les morsures de serpent; il
commençait par piquer l’avant-bras du malade avec des dents de sucuri, boa [sic].
Ensuite il traçait sur le sol une croix avec de la poudre à fusil, qu’il enflammait pour
que le malade étendît le bras dans la fumée. Il prenait enfin du coton calciné d’un
artifício (briquet à pierre dont l’amadou est fait de charpie tassée dans un réceptacle
en corne), l’imbibait de cachaça que buvait le malade. C’était fini (pp. 311-2).117
O “causo” termina com a morte do curandeiro, picado por uma inesperada cascavel, o que
desmascarou o charlatão – mas, surpreendentemente, não para o homem que contou essa
história para o viajante. O informante, segundo o autor, conta que já havia sido vacinado pelo
curandeiro e que, para comprovar sua idoneidade, resolveu deixar-se morder por uma cobra.
116
“De que houvesse no Norte ‘gatos valentes’, oriundos do cruzamento de gatos domésticos e onças, não
consegui me convencer. Mas dessa outra história que um interlocutor me conta, talvez haja algo a reter, ainda
que, no final das contas, seja apenas o estilo, o espírito do ‘sertão’” (p. 252).
117
“Em Barra dos Bugres, povoado do Mato Grosso ocidental no alto Paraguai, vivia um ‘curandeiro’, que
curava mordidas de cobra; principiava picando o antebraço do doente com dentes de sucuri. Em seguida, riscava
no chão uma cruz com pólvora de espingarda, que acendia para que o doente esticasse o braço na fumaça. Por
último, pegava algodão carbonizado de um ‘artifício’ (isqueiro de pedra cujo pavio é feito de um chumaço de
algodão amassado num recipiente de chifre), embebia-o de cachaça que o doente tomava. Mais nada” (p. 252).
118
“Um dia, o chefe de uma ‘turma de poaieiros’ (grupo de colhedores de ipecacuanha, planta medicinal),
assistindo a essa cura, pede ao curandeiro que espere até o próximo domingo pela chegada de seus homens que,
certamente, quererão todos ser vacinados (a cinco mil-réis cada um, ou seja, cinco francos de 1938)” (p. 252).
121
O desfecho da história remonta ao non-sense: “Il est vrai, ajoute-t-il, que le serpent choisi
n’était pas venimeux” (p. 312)119. De fato, o autor tem “algo a reter” com essa história do
sertão que, segundo ele, “ilustra muito bem essa mistura de malícia e ingenuidade [...] que
caracteriza o pensamento popular do interior do Brasil”. Essa fórmula, ao final, aplica-se a
várias outras amostras do pensamento popular reproduzidas pelo autor, literal ou
transfiguradamente. Ou seja, a ficção que mobiliza o autor aqui, reproduzida do povo, é um
precioso dado coletado, útil no estudo etnográfico de um traço de dada sociedade. Ainda que
não tenha sido essa sociedade do sertão o interesse primordial do autor na viagem relatada,
seu olhar já treinado não deixou de registrar também esses dados.
Verifica-se, portanto, que Lévi-Strauss aproxima-se da elaboração de intenção
ficcional em Tristes trópicos. Vale lembrar, no entanto, que esse procedimento foi
incorporado ao gênero dos relatos de viagem em tempos de crise na ordem discursiva
dominante, em que a ficção representava uma saída para o dilema da atestação da verdade.
Mesmo com o dilema posteriormente resolvido, os elementos ficcionais permaneceram fortes,
tornando-se um traço constitutivo dos relatos de viagem. Assim, a presença dessa esfera
ficcional em Tristes trópicos é indicativa de sua filiação ao gênero, para além do discurso
etnográfico, ao qual a obra, em sua multiplicidade, também se aproxima.
Já foi visto que o caráter literário de dada obra obedece a parâmetros não absolutos,
mas variáveis, frutos das concepções e ideologias de cada época. Dessa maneira, um modo de
pensar o literário é o de que o conjunto de produtores e receptores dos textos, em interação,
identifica os valores pelos quais determinado texto é considerado literário ou não120. Optou-
se, neste trabalho, por entender como literário, em concepção hoje corrente, o texto no qual se
observa presença significativa de uma elaboração que escapa ao usual nos textos cuja
destinação é simplesmente comunicativa. Por isso, considerou-se que Tristes trópicos pode
ser lido como literatura, posto que apresenta elevado grau de elaboração estética da
linguagem. Nesse âmbito, torna-se importante examinar os procedimentos textuais aqui
119
“É verdade, ele acrescenta, que a cobra escolhida não era venenosa” (p. 252).
120
A respeito do caráter literário de um texto, cf. a “Introdução: o que é literatura?” in EAGLETON, 2003. O
capítulo traça um panorama das várias concepções de literário ao longo da história da literatura, explicitando
seus valores.
122
121
“... je notais seconde après seconde l’expression qui me permettrait peut-être d’immobiliser ces formes
évanescentes et toujours renouvelées” (p. 67).
122
Cf. trecho referente à descrição do pôr-do-sol, no original e na tradução, no Anexo desta dissertação.
124
... le soleil évoluait lentement; à chaque progrès de sa chute, quelqu’un de ses rayons
crevait la masse opaque [...]. Par moments, la lumière se résorbait comme un poing
qui se ferme et le manchon nébuleux ne laissait plus percer qu’un ou deux doigts
étincelants et raidis. Ou bien un poulpe incandescent s’avançait hors des grottes
vapoureuses, précédant une nouvelle rétration (p. 70).124
123
“Às 17h40, o céu, do lado oeste, dava a impressão de obstruído por um edifício complexo, perfeitamente
horizontal embaixo, à imagem do mar de onde pareceria descolado por uma incompreensível elevação acima do
horizonte, ou ainda pela interposição entre eles de uma placa de cristal espessa e invisível” (p. 62).
124
“... o sol evoluía devagar; a cada avanço de sua queda, algum de seus raios traspassava a massa opaca [...].
Por instantes, a luz reabsorvia-se como um punho que se fecha e o regalo nebuloso deixava passar apenas um ou
dois dedos cintilantes e endurecidos. Ou então um polvo incandescente apresentava-se fora das grutas vaporosas,
precedendo uma nova retração” (pp. 62-3).
125
Le ciel ne présentait plus que des couleurs rose et jaune: crevette, saumon, lin,
paille; et on sentit cette richesse discrète s’évanouir elle aussi. Le paysage céleste
renaissait dans une gamme de blancs, de bleus et de verts. Pourtant, de petits coins
de l’horizon jouissaient encore d’une vie éphémère et indépendante. Sur la gauche,
un voile inaperçu s’affirma soudain comme un caprice de verts mystérieux et
mélangés; ceux-ci passèrent progressivement à des rouges d’abord intenses, puis
sombres, puis violets, puis charbonneux, et ce ne fut plus que la trace irrégulière
d’un bâton de fusain effleurant un papier granuleux. Par-derrière, le ciel était d’un
jaune-vert alpestre, et la barre restait opaque avec un contour rigoureux. Dans le ciel
de l’ouest, de petites striures d’or horizontales scintillèrent encore un instant, mais
vers le nord il faisait presque nuit (p. 72).126
127
“Essa confusão de imóveis lembra grandes manadas de mamíferos reunidos à noite em torno de um
bebedouro, por alguns instantes indecisos e imóveis; condenados, por uma necessidade mais premente que o
medo, a misturar temporariamente suas espécies antagônicas [...]. Se eu hoje contemplasse o mesmo local, talvez
verificasse que o híbrido rebanho desapareceu: pisoteado por uma raça mais vigorosa e mais homogênea de
arranha-céus implantados nessas margens que uma auto-estrada fossilizou com asfalto” (p. 95).
128
imagem criada e mesmo um “estado de espírito” que ela parece também sugerir. De certa
forma, e de maneira inusual, a “necessidade mais premente que o medo” (“un besoin plus
pressant que la crainte”) que teria condenado os grandes animais a se misturarem, na imagem
aludida, passa a ser também condição averiguada nos imóveis então vivificados, que, aliás,
teriam razões para temer. A previsão do autor para eles é postulada nos termos da associação,
por meio de uma inusitada fusão entre os campos semânticos dos animais e das construções.
Assim, o asfalto delineia o novo habitat desta “raça mais vigorosa e mais homogênea de
arranha-céus” (“race plus vigoureuse et plus homogène de gratte-ciel”). É justamente o
desenvolvimento dessa associação, que trouxe maior relevo a um dado observado da
realidade, que singulariza o trecho; o efeito ultrapassa a comparação de fins pragmáticos,
própria a textos etnográficos e a vários relatos de viagem.
Também é comum ao longo da obra, em comentários breves ou em caracterizações, a
tentativa de abarcar com os sentidos, em especial com a visão, os dados novos, como foi visto
no Capítulo sobre o pôr-do-sol. O objeto em questão é submetido ao olhar do etnógrafo,
interessado em conhecer; para tanto, ele atenta aos detalhes: cor, volume, contornos, seja de
ambientes seja de pessoas. Da cidade de Goiás (atual Goiás Velho), o autor faz o seguinte
retrato:
Dans un site verdoyant dominé par la silhouette capricieuse des mornes empanachés
de palmes, des rues aux maisons basses dévalaient les coteaux entre les jardins et les
places où les chevaux paissaient devant les églises à fenêtres ornées, moitié granges
et moitié maisons à clocher. Des colonnades, des stucs, des frontons, toujours
fraîchement fouettés d’un enduit mousseux comme du blanc d’oeuf et teinté de
crème, d’ocre, de bleu ou de rose, évoquaient le style baroque des pastorales
ibériques. Une rivière coulait entre des quais moussus, parfois effondrés sous le
poids des lianes, des bananiers et des palmiers qui avaient envahi les résidences
abandonnées (p. 139).128
128
“Num sítio verdejante dominado pelo perfil caprichoso dos morros empenachados de palmeiras, ruas de casas
térreas desciam pelas encostas entre as hortas e as praças onde os cavalos pastavam diante das igrejas de janelas
ornamentadas, metade granjas, metade casas com campanário. Colunatas, estuques, frontões sempre recém-
pincelados com um reboco espumoso como clara de ovo e colorido de creme, ocre, azul ou rosa, lembravam o
estilo barroco das pastorais ibéricas. Um rio corria por entre margens limosas, que às vezes desmoronavam sob o
peso dos cipós, das bananeiras e das palmeiras que invadiam as residências abandonadas” (p. 117).
129
Em vários níveis – semântico, sintático –, é possível vislumbrar uma descrição que parece
transmitir a calma e a harmonia do ambiente observado. Os termos que designam aspectos da
geografia do lugar são valorativos (“site verdoyant”, “silhouette capricieuse”), assim como
valorizam a paisagem as alusões a elementos reconhecíveis como próprios a um povoado
acolhedor (“rues aux maisons basses”, “jardins”, “places”, “églises”, “rivière”). O trecho é
bastante pontuado por adjuntos adnominais que sugerem um olhar simpático ao ambiente
visitado, ainda que não se utilize de elogios diretos. Também se destaca, nesta paisagem
retratada, a equilibrada combinação de cores, às quais também se associam texturas, sugeridas
por termos como “mousseux”, “crème”, “moussus”. Os períodos, tanto no original em francês
quanto na tradução para o português, são longos, porém o são mais pela extensão dos sujeitos,
adjuntos e complementos, do que por um excesso de subordinações. O ritmo das frases é,
portanto, contínuo e tranqüilo, similar talvez ao movimento do rio, que corre entre margens
forradas de limo.
A continuidade ao trecho apenas reafirma o olhar valorativo, plenamente perceptível
na descrição, com uma sentença clara do autor a respeito do lugar:
... mais cette végétation somptueuse paraissait moins marquer celles-ci du signe de la
décrépitude qu’elle n’ajoutait une dignité sillencieuse à leurs façades dégradées (pp.
139-40).129
Na escala valorativa do autor, a deterioração das fachadas não é indicativo de decadência; ela
é insuficiente para encobrir o sentido maior do quadro pintado: a “dignidade silenciosa” da
cidade. O trabalho lingüístico empreendido pelo autor ultrapassou a mera referencialidade da
descrição etnográfica, à medida que possibilitou a visualização do lugar retratado, mas, mais
do que isso, intentou captar sua “personalidade”.
Aos procedimentos exemplificados aqui, indicativos de um certo caráter literário,
poderiam juntar-se outros. Há trechos de homenagem ou reverência a viajantes ou autores
antigos, em que se utiliza de uma construção lingüística de teor evocativo e imagens solenes,
ao gosto de poemas românticos. Além das paisagens poeticamente retratadas, encontram-se na
obra retratos de amigos, professores, índios, cavaleiros, compostos da mesma maneira pouco
129
“... mas essa vegetação suntuosa mais parecia acrescentar uma dignidade silenciosa às suas fachadas
deterioradas do que imprimir-lhe a marca da decrepitude” (p. 117).
130
convencional. É possível também detectar, como já se viu, o interesse do autor pela literatura
dos locais visitados, em especial pela tradição oral. Há a reprodução de “causos”, lendas,
simpatias, canções de povos dos vilarejos e cidades visitadas, desde a região pantaneira até a
bacia amazônica. Na região do garimpo de diamantes, no Mato Grosso, o autor revela-se
interessado pelas manifestações da “poesia do sertão”:
130
“De ma soirée avec les garimpeiros, j’ai conservé dans mes carnets de notes un fragment de complainte sur
un modèle traditionnel. Il s’agit d’un soldat mécontent de l’ordinaire, qui écrit une réclamation à son caporal;
celui-ci transmet au sergent et l’opération se répète à chaque échelon: lieutenant, capitaine, major, colonel,
général, empereur. Ce dernier n’a plus comme ressource que de s’adresser à Jésus-Christ, lequel, au lieu de faire
suivre la doléance au Père éternel, ‘met la main à la plume et envoie tout le monde en enfer’. Voici ce petit
échantillon de poésie du sertão.” (p. 245; a transcrição literal da balada, que aparece na seqüência deste trecho, é
reproduzida no Anexo desta dissertação).
131
Anexos
Antigüidade
Era Medieval
____. [1254-1324] O livro das maravilhas (A descrição do mundo). Porto Alegre: L&PM,
1996.
131
As referências completas dos autores citados nesta apresentação encontram-se a bibliografia desta dissertação.
132
CAMINHA, Pero Vaz de. “A Carta” [1500]. In: GARCIA, José Manuel. Viagens dos
descobrimentos. Lisboa: Presença, 1983, pp. 245-63.
CARTIER, Jacques. Voyage au Canada. Avec les relations des voyages en Amérique de
Gonneville, Verrazano et Roberval [1545]. Paris: Maspéro, 1981.
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil [1578]. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp,
1980.
LOPEZ DE GOMARA, Francisco. Historia general de las Indias y vida de Hernán Cortés
[1584]. Caracas, Venezuela: Biblioteca Ayacucho, 1991.
SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Nacional,
1971.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil [1557]. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1988.
Século XVII
BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no
Brasil [1647]. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
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CHARDIN, Jean. Journal de voyage du chevalier Chardin en Perse et aux Indes orientales
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DAMPIER, William. Voyages and discoveries [1698]. London: The Argonaut press, 1931.
DELLON, C. Nouvelle relation d'un voyage fait aux Indes orientales, contenant la
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1699.
D’EVREUX, Yvres. Viagem ao norte do Brasil, feita nos anos de 1613 a 1614 [1874].
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DRAKE, Francis. Le voyage [...] à l’entour du monde [...]. Paris: J. Gosselin, 1627.
DU JARRIC, Pierre. Histoire des choses plus mémorables advenues tant des Indes
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(os trechos abaixo, bem como as páginas mencionadas, foram retirados, respectivamente, da
edição francesa e da edição brasileira, utilizadas nesta dissertação)
Pour les savants, 1'aube et le crépuscule sont un seul phénomène et les Grecs
pensaient de même, puisqu’ils les désignaient d'un mot que l'on qualifiait autrement selon
qu’il agissait du soir ou du matin. Cette confusion exprime bien le prédominant souci des
spéculations théoriques et une singulière négligence de 1'aspect concret des choses.
Qu’un point quelconque de la terre se déplace par un mouvement indivisible entre la zone
d'incidence des rayons solaires et celle ou la lumière lui échappe ou lui revient, cela se
peut. Mais en réalité, rien n'est plus différent que le soir et le matin. Le lever du jour est
un prélude, son coucher, une ouverture qui se produirait à la fin au lieu du
commencement comme dans les vieux opéras. Le visage du soleil annonce les moments
qui vont suivre, sombre et livide si les premières heures de la matinée doivent être
pluvieuses; rose, léger, mousseux quand une claire lumière va briller. Mais, de la suite du
jour, 1'aurore ne préjuge pas. Elle engage l’action météorologique et dit: il va pleuvoir, il
va faire beau. Pour le coucher du soleil, c’est autre chose; il s’agit d’une représentation
complète avec un début, un milieu et une fin. Et ce spectacle offre une sorte d'image en
réduction des combats, des triomphes et des défaites qui se sont sucédé pendant douze
heures de façon palpable, mais aussi plus ralentie. L'aube n'est que le début du jour; le
crépuscule en est une répétition.
Voilà pourquoi les hommes prêtent plus d'attention au soleil couchant qu’au soleil
levant; 1'aube ne leur fournit qu’une indication supplémentaire à celles du thermomètre,
du baromètre et - pour les moins civilisés - des phases de la lune, du vol des oiseaux ou des
oscillations des marée. Tandis qu’un coucher de soleil les élève, réunit dans de
140
entre des parois restreintes, pour un nombre de jours fixé d’avance, non parce qu'il y
avait une distance à vaincre, mais plutôt pour expier le privilège d'être transportés d'un
bout à 1'autre de la terre sans que leurs membres eussent à fournir un effort; trop ramollis
par de grasses matinées et de paresseux repas qui, depuis longtemps, avaient cessé
d'apporter une jouissance sensuelle, mais devenaient une distraction escomptée (et encore
à condition de la prolonger outre mesure) pour meubler le vide des journées.
L'effort, du reste, il n’y avait rien pour 1'attester. On savait bien que, quelque part
au fond de cette grande boîte se trouvaient des machines et des hommes tout autour, qui
les faisaient fonctionner. Mais ils ne se souciaient pas de recevoir des visites, les
passagers de leur en faire, ni les officiers d’exhiber ceux-ci pour ceux-là ou inversement.
Restait à se traîner autour de la carcasse où le travail du matelot solitaire décochant
quelques touches de peinture sur une manche-à-air, les gestes économes des stewards en
treillis bleu propulsant une loque humide dans le corridor des premières, offraient seuls la
preuve du glissement régulier des milles dont on entendait vaguement le clapotis en bas
de la coque rouillée.
A 17h40, le ciei, du cotê de l’ouest, semblait encombré par un édifice complexe,
parfaitement horizontal en dessous, à 1'image de la mer dont on l'eût cru décollé par un
incompréhensible exhaussement au-dessus de l’horizon, ou encore par 1'interposition
entre eux d'une épaisse et invisible plaque de cristal. A son sommet s'accrochaient et se
suspendaient vers le zénith, sous l'effet de quelque pesanteur renversée, des
échafaudages instables, des pyramides boursouflées, des bouillonnements figés dans un
style de moulures qui eussent prétendu représenter des nuages, mais auxquelles les
nuages ressembleraient eux-mêmes pour autant qu’ils évoquent le poli et la ronde-bosse
du bois sculpté et doré. Cet amas confus qui masquait le soleil se détachait en teintes
sombres avec de rares éclats, sauf vers le haut où s'envolaient des flammèches.
Plus haut encore dans le ciel, des diaprures blondes dénouaient en sinuosités
nonchalantes qui semblaient sans matière et d'une texture purement lumineuse.
En suivant l'horizon vers le nord on voyait le motif principal s'amincir, s’enlever
dans un égrènement de nuages derrière quoi, très loin, une barre plus haute se dégageait,
effervescente au sommet; du côté le plus proche du soleil – cependant encore invisible – la
142
lumière bordait ces reliefs d'un vigoureux ourlet. Plus au nord, les modèles disparaissaient
et il n’y avait plus que la barre elle-même, terne et plate, qui s'effaçait dans la mer.
Au sud, la même barre encore surgissait, mais surmontée de grandes dalles
nuageuses reposant comme des dolmens cosmologiques sur les crêtes du support.
Quand on tournait franchement le dos au soleil et qu’on regardait vers 1'est, on
apercevait enfin deux groupes superposés de nuages, étirés dans le sens de la longueur et
détachés comme à contre-jour par l’incidence des rayons solaires sur un arrière-plan de
rempart mamelu et ventripotent, mais tout aérien et nacré de reflets roses, mauves et
argentés.
Pendant ce temps, derrière les célestes récifs obstruant l’occident, le soleil évoluait
lentement; à chaque progrès de sa chute, quelqu’un de ses rayons crevait la masse opaque
ou se frayait un passage par des voies dont le tracé, à 1'instant ou le rayon jaillissait,
découpait 1'obstacle en un empilage de secteurs circulaires, différents par la taille et
l'intensité lumineuse. Par moments, la lumière se résorbait comme un poing qui se ferme et
le manchon nébuleux ne laissait plus percer qu’un ou deux doigts étincelants et raidis. Ou
bien un poulpe incandescent s’avançait hors des grottes vaporeuses, précédant une
nouvelle rétraction.
11 y a deux phases bien distinctes dans un coucher de soleil. Au début, l’astre est
architecte. Ensuite seulement (quand ses rayons parviennent réfléchis et non plus directs)
il se transforme en peintre. Dès qu’il s’efface derrière 1'horizon, la lumière faiblit et fait
apparaître des plans à chaque instant plus complexes. La pleine lumière est 1'ennemie de la
perspective, mais, entre le jour et la nuit, il y a place pour une architecture aussi fantaisiste
que temporaire. Avec l'obscurité, tout s'aplatit de nouveau comme un jouet japonnais
merveilleusement coloré.
A 17h45 précises s'ébaucha la première phase. Le soleil était déjà bas, sans toucher
encore l'horizon. Au moment où il sortit par-dessous 1'édifice nuageux, il parut crever
comme un jaune d'oeuf et barbouiller de lumière les formes auxquelles il était encore
accroché. Cet épanchement de clarté fit vite place à une retraite; les alentours devinrent
mats et, dans ce vide maintenant à distance la limite supérieure de 1'océan et celle,
inférieure, des nuages, on put voir une cordillère de vapeurs, tout à 1'heure encore
éblouissante et indiscernable, maintenant aiguë et sombre. En même temps, de plate au
143
début, elle devenait volumineuse. Ces petits objets solides et noirs se promenaient,
migration oiseuse à travers une large plaque rougeoyante qui – inaugurant la phase des
couleurs – remontait lentement de 1'horizon vers le ciel.
Peu à peu, les profondes constructions du soir se replièrent. La masse qui, tout le
jour, avait occupé le ciel occidental parut laminée comme une feuille métallique
qu'illuminait par-derrière un feu d'abord doré, puis vermillon, puis cerise. Déjà celui-ci
faisait fondre, décapait et enlevait dans un tourbillonnement de parcelles, des nuages
contorsionnés qui progressivement s'évanouirent.
D'innombrables réseaux vaporeux surgirent dans le ciel; ils semblaient tendus dans
tous les sens: horizontal, oblique, perpendiculaire et même spirale. Les rayons du soleil, au
fur et à mesure de leur déclin (tel un archet penché ou redressé pour effleurer des cordes
différentes), en faisaient éclater successivement un, puis l’autre, dans une gamme de
couleurs qu’on eût crue la propriété exclusive et arbitraire de chacun. Au moment de sa
manifestation, chaque réseau offrait la netteté, la précision et la frêle rigidité du verre filé,
mais peu à peu il se dissolvait, comme si sa matière surchauffée par une exposition dans un
ciel tout empli de flammes, fonçant de couleur et perdant son individualité, s'étalait en
nappe de plus en plus mince jusqu’à disparaître de la scène en démasquant un nouveau
réseau fraîchement filé. A la fin, il n'y eut plus que des teintes confuses et se mêlant les
unes aux autres; ainsi, dans une coupe, des liquides de couleurs et de densités différentes
d'abord superposés, commencent lentement à se confondre malgré leur apparente stabilité.
Après cela, il devint très difficile de suivre un spectacle qui semblait se répéter avec
un décalage de minutes, et parfois de secondes, en des points éloignés du ciel. Vers l'est, dès
que le disque solaire eut entamé 1'horizon opposé, on vit se matérialiser d'un seul coup, très
haut et dans des tonalités mauve acide, des nuages jusqu’alors invisibles. L’apparition se
développa rapidement, s'enrichit de détails et de nuances, puis tout commença à s'effacer
latéralement, de la droite vers la gauche, comme sous 1'action d'un chiffon promené d'un
mouvement sûr et lent. Au bout de quelques secondes, il ne resta plus que 1'ardoise épurée
du ciel au-dessus du rempart nébuleux. Mais celui-ci passait aux blancs et aux grisailles,
tandis que le ciel rosissait.
Du côté du soleil, une nouvelle barre s’exhaussait derrière la précédente devenue
ciment uniforme et confus. C’était 1'autre, à présent qui flamboyait. Quand ses irradiations
144
rouges s'affaiblirent, les diaprures du zénith, qui n’avaient pas encore joué leur rôle,
acquirent lentement un volume. Leur face inférieure dora et éclata, leur sommet naguère
étincelant passa aux marrons, aux violets. En même temps, leur contexture sembla vue sous
le microscope: on la découvrit constituée de mille petits filaments soutenant leurs formes
dodues, comme un squelette.
Maintenant, les rayons directs du soleil avaient complètement disparu. Le ciel ne
présentait plus que des couleurs rose et jaune: crevette, saumon, lin, paille; et on sentit
cette richesse discrète s'évanouir elle aussi. Le paysage céleste renaissait dans une gamme
de blancs, de bleus et de verts. Pourtant, de petits coins de 1'horizon jouissaient encore
d'une vie éphémère et indépendante. Sur la gauche, un voile inaperçu s'affirma soudain
comme un caprice de verts mystérieux et mélangés; ceux-ci passèrent progressivement à des
rouges d'abord intenses, puis sombres, puis violets, puis charbonneux, et ce ne fut plus que
la trace irrégulière d'un bâton de fusain effleurant un papier granuleux. Par-derrière, le ciel
était d'un jaune-vert alpestre, et la barre restait opaque avec un contour rigoureux. Dans le
ciel de l’ouest, de petites striures d'or horizontales scintillèrent encore un instant, mais vers
le nord il faisait presque nuit: le rempart mamelonné n'offrait que des bombements
blanchâtres sous un ciel de chaux.
Rien n’est plus mystérieux que l’ensemble de procédés toujours identiques, mais
imprévisibles, par lesquels la nuit succède au jour. Sa marque apparaît subitement dans le
ciel, accompagnée d'incertitude et d'angoisse. Nul ne saurait pressentir la forme
qu’adoptera, cette fois unique entre toutes les autres, la surrection nocturne. Par une
alchimie impénétrable, chaque couleur parvient à se métamorphoser en sa complémentaire
alors qu’on sait bien que, sur la palette, il faudrait absolument ouvrir un autre tube afin
d’obtenir le même résultat. Mais, pour la nuit, les mélanges n'ont pas de limite car elle
inaugure un spectacle faux: le ciel passe du rose au vert, mais c'est parce que je n'ai pas
pris garde que certains nuages sont devenus rouge vif, et font ainsi, par contraste, paraître
vert un ciel qui était bien rose, mais d'une nuance si pâle qu’elle ne peut plus lutter avec la
valeur suraiguë de la nouvelle teinte que pourtant je n'avais pas remarquée, le passage du
doré au rouge s’accompagnant d'une surprise moindre que celui du rose au vert. La nuit
s'introduit donc comme par supercherie.
145
Ainsi, au spectacle des ors et des pourpres, la nuit commençait-elle à substituer son
négatif ou les tons chauds étaient remplacés par des blancs et des gris. La plaque nocturne
révéla lentement un paysage marin au-dessus de la mer, immense écran de nuage, s'effilant
devant un ciel océanique en presqu’îles parallèles, telle une côte plate et sableuse aperçue
d'un avion volant à faible hauteur et penché sur l’aile, étirant ses flèches dans la mer.
L'illusion se trouvait accrue par les dernières lueurs du jour qui, frappant très obliquement
ces pointes nuageuses, leur donnaient une apparence de relief évocatrice de solides
rochers – eux aussi, mais à d'autres heures, sculptés d'ombres et de lumière – comme si
l’astre ne pouvait plus exercer ses burins étincelants sur les porphyres et les granits, mais
seulement sur des substances débiles et vaporeuses, tout en conservant dans son déclin le
même style.
Sur ce fond de nuages qui ressemblait à un paysage côtier, au fur et à mesure que le
ciel se nettoyait on vit apparaître des plages, des lagunes, des multitudes d'îlots et de bancs
de sable envahis par 1'océan inerte du ciel, criblant de fjords et de lacs intérieurs la nappe
en cours de dissociation. Et parce que le ciel bordant ces flèches nuageuses simulait un
océan, et parce que la mer reflète d'habitude la couleur du ciel, ce tableau céleste
reconstituait un paysage lointain sur lequel le soleil se coucherait de nouveau. Il suffisait
d'ailleurs de considérer la véritable mer, bien en dessous, pour échapper au mirage: ce
n’était plus la plaque ardente de midi, ni la surface gracieuse et frisée de l’après-dîner.
Les rayons du jour, reçus presque horizontalement, n'éclairaient plus que la face des
vaguelettes tournées vers eux, tandis que l’autre était toute sombre. L'eau prenait ainsi un
relief aux ombres nettes, appuyées, creusées comme dans un metal. Toute transparence
avait disparu.
Alors, par un passage très habituel, mais comme toujours imperceptible et
instantané, le soir fit place à la nuit. Tout se trouva changé. Dans le ciel opaque à
1'horizon, puis au-dessus d'un jaune livide et passant au bleu vers le zénith, s'éparpillaient
les derniers nuages mis en oeuvre par la fin du jour. Très vite, ce ne furent plus que des
ombres efflanquées et maladives, comme les portants d'un décor dont, après le spectacle et
sur une scène privée de lumière, on perçoit soudain la pauvreté, la fragilité et le caractère
provisoire, et que la réalité dont ils sont parvenus à créer 1'illusion ne tenait pas à leur
nature, mais à quelque duperie d'éclairage ou de perspective. Autant, tout à l’heure, ils
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vivaient et se transformaient à chaque seconde, autant ils semblent à présent figés dans
une forme immuable et douloureuse, au milieu du ciel dont 1'obscurité croissante les
confondra bientôt avec lui
Eis por que os homens prestam mais atenção no sol poente do que no sol nascente; a aurora só
lhes fornece uma indicação suplementar às do termômetro, do barômetro e – para os menos civilizados
– das fases da lua, do vôo dos pássaros ou das oscilações das marés. Ao passo que um pôr-de-sol eleva-
os, reúne em misteriosas configurações as peripécias do vento, do frio, do calor ou da chuva nas quais
seu ser físico se debateu. Os caprichos da consciência podem também ser lidos nessas constelações
algodoadas. Quando o céu começa a se iluminar com os clarões do poente (assim como, em certos
teatros, são as bruscas iluminações do proscênio, e não as três pancadas tradicionais, que anunciam o
início do espetáculo), o camponês suspende sua caminhada pela trilha, o pescador retém seu barco e o
selvagem pisca o olho, sentado perto de um fogo declinante. Recordar-se é uma grande volúpia para o
homem, mas não na medida em que a memória se mostra literal, porque poucos aceitariam viver
147
Foi necessário, portanto, que lutas um tanto sinistras se travassem nas almas. Pois a
insignificância dos acontecimentos externos não justificava nenhuma orgia atmosférica. Nada
marcara esse dia. Por volta das quatro horas – exatamente naquele momento da tarde em que o sol a
meio caminho já perde sua nitidez mas não ainda seu brilho, em que tudo se confunde numa espessa luz
dourada que parece acumulada de propósito para ocultar um preparativo — o Mendoza mudara de rota.
A cada oscilação provocada pelo ligeiro marulho, começáramos a notar o calor com mais insistência,
mas a curva descrita era tão pouco sensível que se podia confundir a mudança de direção com um suave
aumento do balanço. Ninguém, aliás, prestara atenção nisso, já que nada lembrava mais um
deslocamento geométrico do que uma travessia em alto-mar. Nenhuma paisagem existe para comprovar a
lenta transição ao longo das latitudes, o avanço das isotermas e das curvas pluviométricas. Cinqüenta
quilômetros de estrada terrestre podem dar a impressão de uma mudança de planeta, mas 5 mil
quilômetros de oceano apresentam um semblante imutável, pelo menos para o olho não treinado.
Nenhuma precupação com o itinerário, a orientação, nenhum conhecimento das terras invisíveis mas
presentes atrás do horizonte arredondado, nada disso atormentava o espírito dos passageiros. Pareciam
estar fechados entre paredes estreitas, por um número de dias fixado de antemão, não porque havia
uma distância a percorrer, mas antes para expiar o privilégio de serem transportados de um extremo
a outro da terra sem que seus membros precisassem fazer um esforço; moles demais pelas manhãs
passadas na cama e pelas indolentes refeições que, desde muito, haviam deixado de propiciar um
deleite sensual e iam se tornando uma distração prevista (e, ainda assim, com a condição de
prolongá-la ao extremo) para preencher o vazio dos dias.
Aliás, nada existia para atestar o esforço. Sabia-se muito bem que em algum lugar no fundo
daquela grande caixa havia máquinas e homens ao redor, que as faziam funcionar. Mas eles não
se interessavam em receber visitas, nem os passageiros em fazer-lhes, e nem os oficiais em exibir
estes àqueles ou inversamente. Restava ficar perambulando em torno da carcaça, onde o trabalho
do marujo solitário assentando umas pinceladas de tinta numa mangueira de ventilação, e os gestos
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econômicos dos camareiros de uniforme azul propulsando um trapo úmido pelo corredor da primeira
classe eram os únicos a oferecer a prova do desfile regular das milhas cujo marulho se ouvia
vagamente na base do casco enferrujado.
Às 17h40, o céu, do lado oeste, dava a impressão de obstruído por um edifício complexo,
perfeitamente horizontal embaixo, à imagem do mar de onde pareceria descolado por uma
incompreensível elevação acima do horizonte, ou ainda pela interposição entre eles de uma placa de
cristal espessa e invisível. Em seu cume estavam presos e suspensos em direção do zênite, sob o
efeito de uma gravidade invertida qualquer, andaimes instáveis, pirâmides dilatadas, efervescências
fixas num estilo de molduras que pretendessem representar nuvens, mas com as quais as próprias
nuvens se assemelhassem porquanto evocam o polimento e o alto relevo da madeira talhada e
dourada. Esse amontoado confuso que encobria o sol destacava-se em tonalidades escuras com
raros fulgores, a não ser no alto, por onde voavam as pequenas chamas.
Ainda mais alto no céu, matizes dourados desfaziam-se em sinuosidades indolentes que
pareciam sem matéria e com uma textura puramente luminosa.
Seguindo o horizonte para o Norte, via-se o motivo principal afinar-se, elevar-se num
rosário de nuvens atrás das quais, muito longe, uma barra mais alta se destacava, efervescente em
seu cume; do lado mais perto do sol — ainda invisível, porém —, a luz contornava esses relevos
como um vigoroso arremate. Mais ao norte, os relevos desapareciam e só restava a própria barra,
desbotada e achatada, que se desfazia no mar.
Ao sul, ainda a mesma barra surgia, mas coroada por grandes lajes de nuvens que
repousavam como dolmens cosmológicos sobre as cristas do suporte.
Pondo-se totalmente de costas para o sol e olhando-se para leste, percebia-se, enfim, dois
grupos superpostos de nuvens, estiradas no sentido do comprimento e destacadas como em
contraluz pela incidência dos raios solares batendo num pano de fundo de muralha peituda e
barriguda, mas aérea e nacarada por reflexos róseos, cor de malva e prateados.
Enquanto isso, atrás dos arrecifes celestes obstruindo o Ocidente, o sol evoluía devagar;
a cada avanço de sua queda, algum de seus raios traspassava a massa opaca ou abria caminho
por vias cujo traçado, no momento em que o raio irrompia, cortava o obstáculo numa pilha de
setores circulares, diferentes pelo tamanho e pela intensidade luminosa. Por instantes, a luz
reabsorvia-se como um punho que se fecha e o regalo nebuloso deixava passar apenas um ou dois
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dedos cintilantes e endurecidos. Ou então um polvo incandescente apresentava-se fora das grutas
vaporosas, precedendo uma nova retração.
Há duas fases bem distintas num pôr-do-sol. No início, o astro é arquiteto. Só depois
(quando seus raios chegam refletidos e não mais diretos), transforma-se em pintor. Assim que se
esconde atrás do horizonte, a luz enfraquece e faz surgir planos a cada instante mais complexos.
A luz plena é inimiga da perspectiva, mas, entre o dia e a noite, há lugar para uma arquitetura tão
fantasista quanto temporária. Com a escuridão, tudo se achata de novo, como um brinquedo
japonês maravilhosamente colorido.
Às 17h45 em ponto, esboçou-se a primeira fase. O sol já estava baixo, sem tocar
ainda o horizonte. No momento em que saiu por sob o edifício nebuloso, pareceu arrebentar
como uma gema de ovo e lambuzar de luz as formas às quais ainda estava agarrado. Esse
desabrochar de claridade logo deu lugar a uma retirada; as imediações tornaram-se foscas e,
nesse vazio mantendo distanciados o limite superior do oceano e o inferior das nuvens, pôde-se
ver uma cordilheira de vapores, ainda há pouco deslumbrante e indiscernível, agora aguda e
sombria. Ao mesmo tempo, de inicialmente plana, passava a ser volumosa. Esses pequenos
objetos sólidos e pretos passeavam, migração ociosa através de uma vasta placa avermelhada que
— inaugurando a fase das cores — subia lentamente do horizonte para o céu.
Aos poucos, as construções profundas da tarde se recolheram. A massa que, o dia
inteiro, ocupara o céu ocidental pareceu laminada como uma folha metálica iluminada por trás
por um fogo de início dourado, depois vermelhão, depois cereja. Este já fundia, decapava e
levava, num turbilhão de fragmentos, as nuvens contorcidas que progressivamente se
desvaneceram.
Inúmeras redes vaporosas surgiram no céu; pareciam estendidas em todos os sentidos:
horizontal, oblíquo, perpendicular, e inclusive espiral. Os raios do sol, à medida que iam
declinando (qual um arco de violino inclinado ou reto para tocar cordas diferentes), estouravam-
nas sucessivamente, uma, depois outra, numa gama de cores que pareciam propriedade exclusiva e
arbitrária de cada uma. No instante em que se manifestava, cada rede apresentava a nitidez, a
exatidão e a frágil rigidez de um fio de vidro, mas aos poucos se dissolvia, como se sua matéria
superaquecida por uma exposição num céu repleto de chamas, adquirindo um colorido mais
escuro e perdendo sua individualidade, se espalhasse em uma camada cada vez mais fina até sair
de cena revelando uma nova rede tecida há pouco. Ao final, houve apenas tonalidades confusas e
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misturando-se umas às outras, tal como, numa taça, líquidos de cores e densidades diferentes,
de início superpostos, começam lentamente a se fundir apesar de sua aparente estabilidade.
Depois disso, foi muito difícil acompanhar um espetáculo que parecia se repetir com
uma diferença de minutos, e às vezes de segundos, em pontos afastados do céu. Para leste, tão
logo o disco solar tocou o horizonte oposto, vimos materializarem-se de repente, altíssimas e em
tonalidades malva, nuvens até então invisíveis. A aparição desenvolveu-se com rapidez, en-
riqueceu-se de pormenores e nuances, depois tudo começou a se apagar lateralmente, da direita para
a esquerda, como que sob a ação de um pano passado com um gesto seguro e lento. Ao fim de
alguns segundos, só restou a ardósia depurada do céu acima da muralha nebulosa. Mas esta ia
passando aos brancos e cinzentos, enquanto o céu ia ficando rosado.
Do lado do sol, elevava-se uma nova barra atrás da anterior, que se tornara cimento uniforme e
confuso. Agora, era a outra que flamejava. Quando suas irradiações vermelhas enfraqueceram, os
furta-cores do zênite, que ainda não haviam representado seu papel, adquiriram volume, lentamente.
Sua face inferior tornou-se dourada e rebentou, seu cume outrora cintilante passou aos marrons,
aos violetas. Simultaneamente, sua contextura pareceu vista no microscópio: descobrimos que se
constituía de mil pequenos filamentos sustentando, como um esqueleto, suas formas roliças.
Agora, os raios diretos do sol haviam desaparecido por completo. O céu só apresentava cores
rosa e amarelas: camarão, salmão, linho, palha; e sentimos essa riqueza discreta esfumar-se também. A
paisagem celeste renascia numa gama de brancos, de azuis e de verdes. Entretanto, cantinhos do
horizonte ainda gozavam de uma vida efêmera e independente. À esquerda, um véu despercebido
afirmou-se súbito como um capricho de verdes misteriosos e misturados; estes passaram
progressivamente a vermelhos de início intensos, depois escuros, depois violeta, depois negros, e restou
apenas o traço irregular de um bastão de fusain aflorando um papel granuloso. Por trás, o céu era de
um amarelo-esverdeado alpino, e a barra mantinha-se opaca, com um contorno rigoroso. No céu a
oeste, pequenas estrias douradas horizontais ainda cintilaram um instante, mas ao norte já era quase
noite: a muralha peituda só apresentava saliências esbranquiçadas sob um céu de cal.
Nada é mais misterioso do que o conjunto de processos sempre idênticos, mas imprevisíveis,
pelos quais a noite sucede ao dia. Sua marca aparece subitamente no céu, acompanhada de incerteza
e de angústia. Ninguém sabe pressentir a forma que adotará, desta vez única entre todas as outras, o
arqueamento noturno. Por uma alquimia impenetrável, cada cor consegue metamorfosear-se em
sua complementar, quando se sabe muito bem que na palheta seria absolutamente indispensável
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abrir outro tubo a fim de obter o mesmo resultado. Mas para a noite as misturas não têm limites,
pois ela inaugura um espetóculo falso: o céu passa do rosa ao verde, mas é porque não prestei
atenção em certas nuvens que se tornaram vermelho-vivas, e assim, por contraste, fazem parecer
verde um céu que era mesmo cor-de-rosa, mas de um matiz tão claro que não pode mais lutar com o
valor superagudo da nova tonalidade que, no entanto, eu não observara, pois a passagem do
dourado para o vermelho acompanha-se de uma surpresa menor que a do rosa para o verde. A
noite introduz-se, pois, como por um embuste.
Assim, ao espetáculo dos dourados e das púrpuras, a noite começava a substituir o seu
negativo, no qual os tons quentes eram trocados pelos brancos e pelos cinzentos. A chapa noturna
revelou lentamente uma paisagem marinha acima do mar, imensa tela de nuvens esgarçando-se
diante de um céu oceânico em penínsulas paralelas, qual um litoral plano e arenoso avistado de um
avião que voa a baixa altitude e inclinado sobre a asa, estirando suas flechas no mar. A ilusão
aumentava com os últimos clarões do dia que, atingindo num ângulo bem oblíquo essas pontas
nebulosas, davam-lhes uma aparência de relevo evocadora de sólidos rochedos — também eles, mas
em outras horas, esculpidos por sombras e luz —, como se o astro já não pudesse exercitar seus buris
faiscantes nos pórfiros e nos granitos, mas apenas nas substâncias frágeis e vaporosas, embora
mantendo em seu declínio o mesmo estilo.
Sobre esse fundo de nuvens que lembrava uma paisagem costeira, à medida que o céu ia
limpando vimos surgir praias, lagunas, multidões de ilhotas e de bancos de areia invadidos pelo
oceano inerte do céu, crivando de fiordes e lagos interiores a camada em vias de desagregação. E
porque o céu que contornava essas flechas nebulosas simulava um oceano, e porque o mar em geral
reflete a cor do céu, esse quadro celeste reconstituía uma paisagem distante sobre a qual o sol voltaria
a se pôr. Aliás, bastava considerar o mar verdadeiro, bem embaixo, para escapar da miragem: já não
era a placa ardente do meio-dia, nem a superfície graciosa e encrespada de depois do jantar. Os raios
do dia, recebidos quase horizontalmente, só iluminavam ainda a face das pequenas ondas voltadas
para eles, enquanto a outra estava toda escura. Assim, a água adquiria um relevo de sombras nítidas,
carregadas, perfuradas como num metal. Toda a transparência desaparecera.
Então, por uma passagem muito habitual, mas como sempre imperceptível e instantânea, a
tarde deu lugar à noite. Tudo ficou diferente. No céu opaco ao horizonte, e depois, em cima, de um
amarelo-pálido e passando ao azul no zênite, dispersavam-se as derradeiras nuvens produzidas pelo
fim do dia. Muito depressa, não houve mais do que sombras esquálidas e enfermiças, como os suportes
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Un veuf avait un seul fils, déjà adolescent. Un jour, il l’appelle, lui explique qu’il est
grand temps de se marier. « Que faut-il faire pour se marier? » demande le fils. « C’est très
simple, lui dit son père, tu n'as qu’à rendre visite aux voisins et tâcher de plaire à la fille. » «
Mais je ne sais pas comment on plaît à une fille!» « Eh bien, joue de la guitare, sois gai, ris et
chante!» Le fils s’exécute, arrive au moment où le père de la demoiselle vient de mourir; son
attitude est jugée indécente, on le chasse à coups de pierres. II retourne auprès de son père, se
plaint; le père lui explique la conduite à suivre en pareil cas. Le fils part à nouveau chez les
voisins; justement, on tue un porc. Mais fidèle à sa dernière leçon, il sanglote: «Quelle
tristesse! II était si bon; Nous l’aimions tant! Jamais on n'en trouvera un meilleur!»
Exaspérés, les voisins le chassent; il raconte à son père cette nouvelle mésaventure, et reçoit de
lui des indications sur la conduite appropriée. A sa troisième visite, les voisins sont occuppés à
écheniller le jardin. Toujours en retard d'une leçon, le jeune homme s'exclame: «Quelle
merveilleuse abondance ! Je souhaite que ces animaux se multiplient sur vos terres! Puissent-ils
ne jamais vous manquer!» On le chasse.
Après ce troisième échec, le père ordonne à son fils de contruire une cabane. Il va
dans la forêt pour abattre le bois nécessaire. Le loup-garou passe par là pendant la nuit et
juge 1'endroit à son goût pour y bâtir sa demeure, se met au travail. Le lendemain matin, le
garçon retourne au chantier et trouve 1'ouvrage bien avancé: «Dieu m’aide!» pense-t-il avec
satisfaction. Ainsi bâtissent-ils de concert, le garçon pendant le jour et le loup-garou pendant
la nuit. La cabane est finie.
Pour l'inaugurer, le garçon décide de s'offrir en repas un chevreuil, et le loup-garou
un mort. L'un apporte le chevreuil durant le jour, 1'autre le cadavre à la faveur de la nuit.
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Et quand le père vient le lendemain pour participer au festin, il voit sur la table un mort en
guise de rôti: «Décidément, mon fils, tu ne seras jamais bon à rien... ».
O imperador...
Pegô na pena, escreveu pro Jesus Cristo
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