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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss:


entre a etnografia e a literatura

Melissa de Matos França


Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Teoria Literária, do
Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Claudia Arruda Campos

São Paulo
2006
Livros Grátis
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2

Para Maria e João de Matos,


com carinho.
3

Agradecimentos
Há muitas pessoas que participaram, direta ou indiretamente, desta dissertação,
colaborando de alguma forma para que eu conseguisse realizar o trabalho a contento. Por isso,
gostaria de agradecê-las e reforçar a importância delas em meu percurso.
Meu primeiro e maior agradecimento é para a professora Claudia Arruda Campos – ou
simplesmente Kauê, como ambas preferimos – pela orientação criteriosa, pelas leituras,
conversas e xícaras de café com as quais me acompanhou por esses anos de pesquisa.
Agradeço também às professoras Sandra Margarida Nitrini e Telê Ancona Lopez,
pelas leituras atentas e pelas importantes observações feitas em meu Exame de Qualificação;
aos professores Fernanda Peixoto, do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, e
Joaquim Aguiar, do Departamento de Literatura Brasileira da FFLCH-USP, responsáveis
pelas disciplinas que cursei durante o programa de mestrado. Com eles e com alguns colegas
de curso, tive a oportunidade de travar proveitosas discussões para a fundamentação dos
caminhos de minha pesquisa. Dedico especiais agradecimentos à professora Norma Seltzer
Goldstein, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, que, desde a
época da Iniciação Científica, acompanhou e incentivou meus projetos de pesquisa, abrindo-
me caminhos para além do que já havia desenvolvido com sua orientação.
Sou grata, ainda, a amigos e colegas que contribuíram ativamente para a realização
deste trabalho: a Mariana Cortez e Ana Paula Leibruder, pelos préstimos no Exame de
Qualificação; a Mirko Lerotic Filho e Cilza Bignotto, pelo suporte técnico e, principalmente,
emocional; a Mila Silva Costa, pelas discussões sempre frutíferas, desde os tempos do grupo
de estudos de Cecília Meireles; a Hélade Scutti Santos, pela companhia em congressos e
eventos; a Cátia Luciana Pereira, Cristiano Augusto da Silva e Laura Taddei Brandini, pela
companhia tão estimulante ao longo da graduação e da pós. Sou grata, também, aos meus
colegas professores e corretores do Colégio Bandeirantes, que me prestaram apoio durante
todo o mestrado.
Foram fundamentais para esta empreitada o incentivo, a compreensão pelas ausências
e o carinho de meu pai, Sigismundo, minha mãe, Nely, e meus irmãos, Paulo e Priscila,
sempre presentes. Ressalto, ainda, a importância da amizade enriquecedora de Daniela Auad e
da companhia de Alexandrino Neto, principalmente na etapa final do trabalho. Por fim,
agradeço a Rita Kawamata, que fez a revisão dos originais.
4

A todas as pessoas aludidas, aos meus amigos queridos e familiares, meu muito
obrigada.
5

RESUMO

Esta dissertação propõe uma leitura de Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss, como
obra de destaque dentro da produção antropológica do autor, passível de análise por meio dos
estudos da linguagem, especialmente pelos estudos literários. Trata-se do relato das
experiências vividas pelo antropólogo no Brasil entre os anos de 1935 e 1938, como professor
da recém-fundada Universidade de São Paulo e etnógrafo em início de carreira. São expostas
impressões, observações e análises a respeito dos centros urbanos visitados, das paisagens
diversas e das populações indígenas, com as quais travou contato em sua Expedição do Norte
– tudo isso intercalado a lembranças de outras viagens, a países orientais. Vislumbra-se no
texto, desde uma primeira leitura, a combinação entre uma estrutura composicional complexa
e uma linguagem provida de vários níveis de significação, polissêmica, distante, dessa forma,
das obras de caráter predominantemente informativo, referencial.
Passou-se, assim, à investigação mais detida do texto para determinar-lhe caminhos
analíticos proveitosos. Nesse processo, chegou-se à hipótese de leitura de Tristes trópicos
como obra inscrita no gênero relato de viagem, considerando-se o conceito de gêneros do
discurso de Bakhtin, dentro de seus estudos sobre enunciação e dialogismo. Com base nesse
suporte teórico, procurou-se fazer um levantamento dos elementos temáticos, estruturais e
estilísticos da obra, a fim de cotejá-los aos traços constitutivos dos enunciados lidos como
relatos de viagem, estudados à parte. O cotejo da obra com o gênero em questão mostrou
pontos de confluência significativos, suficientes para que se possa considerá-la um relato de
viagem. Por outro lado, evidenciaram-se algumas divergências consideráveis em relação a
procedimentos observados como tradicionais do gênero. Chegou-se, portanto, à constatação
de que Tristes trópicos pode ser lido, com proveito, como um relato de viagem, pois dialoga,
em vários níveis, com a família de obras desse gênero. No entanto, trata-se de um enunciado
que se configura em um movimento de aproximação e confronto com seu gênero, criando
novas possibilidades textuais e estabelecendo relações dialógicas com outros gêneros do
discurso, especialmente os literários.

ABSTRACT

The present thesis proposes a reading of Tristes Tropiques by Claude Lévi-Strauss as a


prominent work among the anthropological production of the author and one which can be
6

analyzed by means of the language studies’ methods, especially those applied in the literary
studies. In this book the author narrates his experiences as an anthropologist in Brazil between
1935 and 1938, as well as a professor of the recently founded University of São Paulo and as
a young ethnographer. He exposes his impressions, observations and analysis of the urban
centers he visited, of the varied landscapes and of the indigenous population with whom he
established relations during his North Expedition – all this is intertwined with his memories of
other trips to Eastern countries. Since the first reading, it can be glimpsed in his text a
combination of complex compositional structure and a language that abounds in several levels
of polysemy, which is thus distant from the predominantly informative and referential works.
Therefore, a deeper investigation has been carried out in order to determine suitable
analytical paths. Through this process, we have drawn on the belief that it is possible to read
Tristes Tropiques as a travel book if we take into account Bakhtin´s concept of discourse
genre, which is inscribed in his studies on utterance and dialogism. Based on this theoretical
support, thematic, structural and stylistic elements have been gathered in order to compare
them with the constitutive characteristics of travel books, which are generally studied
separately. Through the collation of Tristes Tropiques with the aforementioned genre, we
have been able to observe that, on one hand, a significant number of elements converge,
which allows us to regard it as a travel book; whereas, on the other hand, a considerable
amount of divergence has also been noticed in relation to some traditional procedures, which
are commonly present in this genre.
Hence, it has been concluded that Tristes Tropiques can be favorably read as a travel
book once it dialogues, in several levels, with other works of this genre. However, it contains
an utterance whose main traits either approach or challenge the ones of its genre, thus
providing new textual possibilities and establishing dialogical relations with other discourse
genre, especially the literary ones.

PALAVRAS-CHAVE
Tristes trópicos; relato de viagem; gêneros do discurso; literatura; etnografia.

KEYWORDS
Tristes Tropiques, travel book; discourse genres; literature; ethonography.
7

Índice
Capítulo 1 – Tristes trópicos: início da leitura ............................................................ 9
1.1. Exposição do conflito ........................................................................................................ 9
1.2. Composição de Tristes trópicos ...................................................................................... 10
1.3. Importância e repercussão de Lévi-Strauss ..................................................................... 14
1.3.1. Trajetória ...................................................................................................................... 14
1.3.2. Pressupostos centrais .................................................................................................... 20
1.3.3. Repercussão / crítica ..................................................................................................... 22
1.3.4. Repercussão de Tristes trópicos ................................................................................... 23
1.4. Investigando o texto ........................................................................................................ 28
1.4.1. Primeira parte de Tristes trópicos: sentido da viagem ................................................. 31

Capítulo 2: Gênero e dialogismo em Tristes trópicos .............................................. 40


2.1. Literariedade do texto ...................................................................................................... 40
2.2. Tristes trópicos: literário ou não? ................................................................................... 41
2.3. Investigação teórica ......................................................................................................... 43
2.3.1. Linhas do pensamento lingüístico ................................................................................ 44
O objetivismo abstrato ........................................................................................................... 47
O subjetivismo idealista ......................................................................................................... 48
2.3.2. Bakhtin: conceitos fundamentais .................................................................................. 49
O homem é um animal verbal, portanto social ...................................................................... 49
2.3.2.1.O enunciado concreto ................................................................................................ 50
Enunciado concreto X enunciado monológico ...................................................................... 51
Outra dimensão do enunciado concreto ............................................................................... 53
2.3.2.2. Gêneros do discurso ................................................................................................. 54
2.3.2.2.1. Gêneros do discurso e enunciado ........................................................................ 55
2.3.2.2.2. Gêneros do discurso e dialogismo ........................................................................ 57
2.3.2.2.3. Gêneros do discurso e Tristes trópicos ................................................................. 59

Capítulo 3: Tristes trópicos e o gênero relato de viagem ........................................ 60


8

3.1. Trajetória do gênero ....................................................................................................... 61


3.2. Contornos do gênero ....................................................................................................... 71
3.2.1. Tema ............................................................................................................................. 72
3.2.2. Narração e descrição .................................................................................................... 73
3.2.3. O problema da ficção ................................................................................................... 77
3.2.4. O exótico ..................................................................................................................... 80
3.2.4.1. O exótico ao longo da História .................................................................................. 80
3.2.4.2. Aspectos do exotismo ................................................................................................ 84
Das boas intenções ................................................................................................................ 84
... o inferno está cheio! .......................................................................................................... 86

Capítulo 4: Tristes trópicos e o gênero relato de viagem: aproximações e


afastamentos ...................................................................................................................... 88
4.1. Descrição da obra ........................................................................................................... 89
4.2. Relações entre a obra e o gênero ..................................................................................... 99
4.2.1. Dos índios do Novo Mundo à humanidade ................................................................ 100
4.2.2. O exotismo ................................................................................................................. 104
4.2.3. Seqüência narrativa .................................................................................................... 109
4.2.4. O real e a ficção .......................................................................................................... 114
4.2.5. Aproximação com a Literatura ................................................................................... 121

Anexos ................................................................................................................................ 131


1. Relatos de viagem – referências ....................................................................................... 131
2. Excertos de Tristes trópicos ............................................................................................. 139

Bibliografia consultada .................................................................................................. 157


9

Capítulo 1 – Tristes trópicos: início da leitura

1.1. Exposição do conflito


É praticamente impossível não se dar conta, mesmo em uma primeira leitura, de que
Tristes trópicos é uma obra singular dentro da produção de Lévi-Strauss e da Antropologia
em geral. Trata-se de um texto pessoal, autobiográfico, em que o autor discorre sobre sua
experiência no Brasil dos anos 1930. As impressões gravitam em torno das sociedades
indígenas visitadas, mas também fazem referência aos períodos transcorridos nas cidades e
mesmo fora do país, em viagens anteriores. Os temas são, portanto, familiares aos
antropólogos e etnólogos. Mesmo a forma pessoal tampouco é inédita entre eles, visto que há
uma série de diários de viagem referenciais no campo antropológico. O que o destaca dos
demais textos é a maneira como ele se constrói, isto é, a combinação entre uma estrutura
composicional determinada e uma linguagem provida de vários níveis de significação,
polissêmica, distante, dessa forma, das obras (sejam ensaios, sejam diários ou relatos de
viagem) de caráter predominantemente informativo, referencial. É possível se pensar na
transposição de campos de estudo: de obra de análise antropológica da realidade, Tristes
trópicos pode passar a obra analisada pelos estudos da linguagem e mesmo pelos estudos
literários. Mas de que forma empreender esses estudos?
Sob esse aspecto, é válido recorrer ao contexto de produção e recepção da obra. Lévi-
Strauss relata, em algumas entrevistas, que Tristes trópicos foi escrito por encomenda, para
fazer parte da coleção “Terre Humaine”, que tem como eixo condutor as tradições das
viagens. Quinze anos depois de sua estada no Brasil e de sua Expedição do Norte, pelo
interior do país, Lévi-Strauss não estava propriamente envolvido pela tarefa de contar suas
experiências. À época, estava mais ocupado com os exames para a cadeira de Antropologia
Social no Collège de France. A encomenda de um livro que relatasse suas experiências entre
os índios brasileiros, nesse contexto, representava um projeto menor, mas também uma tarefa
bastante interessante, porque livre, de natureza rememorativa, diferente dos trabalhos
empreendidos à ocasião. Também havia um difuso interesse do antropólogo, confesso há
tempos, em aventurar-se pelo romance. O título e o estilo dessa empreitada já estavam
definidos: “Devia chamar-se Tristes trópicos. E era vagamente conradiana. A intriga
originava-se de uma história que eu tinha lido na imprensa: uma vigarice, numa ilha do
10

Pacífico de que não me lembro, cometida com um fonógrafo, para fazer com que os indígenas
acreditassem que seus deuses voltavam à terra”1. Por fim, o desejo de enveredar-se pela ficção
sucumbiu à encomenda de um livro de viagens, e do projeto inicial apenas o título se
manteve.
À época de sua publicação na França, na década de 1950, Tristes trópicos alcançou
grande reconhecimento, inclusive popular. Lévi-Strauss já era um antropólogo respeitado e
seu livro autobiográfico sobre suas primeiras viagens etnográficas no início da carreira
despertou enorme interesse do público. Nesta ocasião, cogitou-se inscrever a obra no prêmio
literário Goncourt, o mais importante da França. Instaurou-se a polêmica: Tristes trópicos
pode ser considerado literatura e concorrer com obras literárias? Por fim, decidiu-se não
inscrevê-lo, mesmo porque se percebeu que, por seu mérito e sua repercussão, o livro teria
grandes chances de ganhar, o que seria um problema ainda maior. De qualquer forma, décadas
mais tarde, mais precisamente em 1974, o então Professor do Collège de France Claude Lévi-
Strauss foi nomeado membro da Académie Française, pelo conjunto de sua obra, na qual,
certamente, Tristes trópicos tem relevância literária especial. De fato, não se está diante de
uma obra antropológica strictu sensu; trata-se de um texto com material caro à Antropologia,
mas de tratamento diferenciado, próximo à Literatura, o que abre a ele uma série de
possibilidades de análise.

1.2. Composição de Tristes trópicos


O relato de Lévi-Strauss aborda experiências reais, vividas pelo autor e rememoradas
para a publicação. Como um livro de viagens, há narrativas de episódios, descrições de
paisagens e lugares visitados, observações sobre frutas, plantas, odores, comidas e bebidas
diferentes. Nos primeiros capítulos, que relatam o início da viagem, é patente a força com que
a idéia de “Novo Mundo” atinge as impressões e expectativas do autor. Não por acaso, a
passagem exata do “Velho” para o “Novo” mundo, realizada em alto-mar, rende um longo
capítulo – “A Calmaria” –, em que se confrontam às impressões da viagem de 1935 as de
antigos viajantes que cruzaram o Atlântico nos séculos XV e XVI. Ao fim do capítulo, o autor
declara: “O que me cerca por todos os lados e me esmaga não é a diversidade inesgotável das

1
ERIBON, Didier; LÉVI-STRAUSS. De perto e de longe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 82.
11

coisas e dos seres, mas uma só e formidável entidade: o Novo Mundo”2. Ultrapassando a
natureza descritiva das narrativas de viagem, no entanto, o elemento novo é sempre observado
com maior atenção, ora confrontado com elementos históricos dos quais o autor dispõe3, ora
analisado a partir da comparação entre o que ele vê de fato e suas antigas suposições.
O relato também conta com um certo grau de análise dos elementos etnográficos
observados, de elaboração de pressupostos para um estudo etnológico. É o caso das amplas
observações sobre os Bororo e sobre os Nambiquara, que colaboraram para a consolidação de
uma linha de reflexão mais sistemática sobre as relações de parentesco nas sociedades
indígenas em obras posteriores do autor4. Além disso, é recorrente em Tristes trópicos
reflexões a respeito de conceitos antropológicos mais básicos, como alteridade, contato entre
culturas diversas, trabalho de campo, observação participante, descrição e registro das
ocorrências, diário de bordo/viagem. Esses conceitos aparecem principalmente nos capítulos
em que Lévi-Strauss discorre sobre o ofício do explorador / antropólogo (Capítulos 1 e 4,
Primeira Parte; Capítulos 37 e 38, Nona Parte) e à medida que o autor os pratica ou trabalha
com eles. Nessas passagens, reflete-se sobre tais métodos e conceitos, se são válidos ou não,
se devem ou não ser rediscutidos.
Não obstante, a obra expõe temas e estruturas insuspeitas à natureza descritiva das
narrativas de viagem e à natureza científica dos trabalhos etnológicos. Observam-se, por
exemplo, amplas reflexões sobre o período histórico brasileiro dos anos 1930: o povoamento
de vastas regiões no interior do país e o surgimento de várias cidades no norte do Paraná, no
interior de São Paulo e no centro-oeste, algumas hoje importantes centros urbanos; o
abandono de cidades após a exploração desordenada de seus recursos naturais; o contato com
as populações indígenas após as grandes dizimações; a cultura do homem caboclo, que,
paralelamente aos índios, também é excluído e situado nas periferias dos grandes centros.
Trata-se de uma surpresa para o leitor que espera do livro atenção primordial aos índios

2
LÉVI-STRAUSS. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 76 (as demais citações da obra
serão retiradas dessa edição brasileira e da edição francesa, ambas indicadas na bibliografia, e seguidas, no corpo
do texto, do número da página de onde foram extraídas).
3
É o caso da vasta exposição que o autor faz da missão protestante no Rio de Janeiro, no século XVI – França
Antártida –, ao tratar das impressões da cidade, no Capítulo 9, “Guanabara” (p. 77 da edição utilizada nesta
dissertação).
4
“Contribution à l´étude de l´organisation sociale des indiens Bororo” (1936) e “La vie familiale et sociale des
Indiens Nambikwara” (1948) são alguns trabalhos de Lévi-Strauss elaborados a partir de estudos das populações
indígenas em sua estada no Brasil. Parte desse material resultou no volume Les Structures élémentaires de la
parenté, de 1949, obra freqüentemente reportada pelo próprio autor como decisiva na teoria de parentesco.
12

brasileiros. É forte a dimensão da desolação e da precariedade, em oposição a uma cultura


sertaneja de ricos elementos, observada nas cidadelas do interior do país, de modo até mais
pungente do que o próprio autor imaginaria antes de visitá-las. Não há dúvidas de que a
tristeza dos trópicos também se deve a elas.
Em outra tonalidade, são particularmente notáveis as incursões à ficcionalidade e à
literatura dentro do relato. Há trechos narrativos, com elementos como trama, progressão e
suspense; há trechos próximos à crônica, com a presença da ironia, do humor, narrando-se
episódios singulares. Além disso, independente do caso narrado, há, por toda a obra,
parágrafos, por vezes trechos inteiros, de intensa carga poética, de trabalho deliberado com a
linguagem, em busca de um efeito estético próprio ao texto literário. Para isso, o autor recorre
a imagens, associações inusitadas, metáforas, assonâncias. Isso tudo ocorre de maneira
condensada no capítulo “O Pôr-do-sol”. Nele, descreve-se a paisagem de um pôr-do-sol, com
os matizes observados até o fim da luz existente. Ainda que não seja procedimento
plenamente válido em análises literárias, é impossível, diante de tal hibridismo, não investigar
as motivações do autor. Como observa Vagner Gonçalves da Silva,

O interesse de Lévi-Strauss pela literatura confunde-se com o desejo que acalentou,


durante muito tempo, de ser escritor. Entretanto, [...] o romance que iniciou nos anos
50 não passou das páginas iniciais. Dessa incursão pela ficção literária, como disse o
próprio Lévi-Strauss, haveria de restar dois resíduos: o título original do romance
nunca escrito, Tristes trópicos, que acabou por nomear seu livro de memórias de
viagem pelo Brasil, e uma descrição da paisagem dos trópicos que, sendo formulada
inicialmente para compor o romance, permaneceu como um capítulo, incluído
nessas memórias com o título “O pôr-do-sol”. (1999, p.79).

Silva ainda indaga por que este capítulo, e somente este, foi todo impresso em itálico,
sugerindo a intenção do próprio autor – ou do editor – de ressaltar o seu caráter estético. Por
fim, chama particularmente a atenção a presença de um certo conteúdo metalingüístico na
obra de Lévi-Strauss: numa das mais importantes partes do livro, a primeira, composta de
quatro capítulos, o autor discute o gênero predominante em sua própria obra, o relato de
viagem. Num misto de constrangida adesão e enfático protesto, Lévi-Strauss perpassa os
vícios e as armadilhas do gênero ao longo de sua obra, rememora obras e viajantes
importantes para sua experiência – de novo viajante e “cronista”, ainda que à sua revelia –,
13

enfim, dialoga com o gênero em que se constrói sua obra, juntamente com outros gêneros,
num movimento constante de aproximação e contestação.
Quanto à estrutura interna, a obra está dividida em nove partes e cada uma tem vários
capítulos. No total, há quarenta capítulos, além de mapas, bibliografia e índice de temas,
pessoas e lugares. Além dessa divisão explícita, presente no índice, o livro mostra duas partes
bem distintas, às vezes intercaladas: as considerações sobre as sociedades urbanas – do Brasil
e de outros lugares, como Índia, Paquistão e Antilhas – e as considerações sobre as
populações indígenas. Estas últimas ocupam a parte central da obra e representam o que o
próprio autor diz ser seu principal interesse: “eu fiz uma escolha, a de interessar-me por coisas
longínquas, no espaço e no tempo” (LÉVI-STRAUSS apud MAGNANI, 1999, p.98). Nesta
parte, Lévi-Strauss refaz seu trajeto pelo centro-oeste do país, percorrendo populações de
índios de sociedades diversas: Cadiueu, Bororo, Nambiquara, Tupi-Cavaíba. Apesar de haver
intercalação entre o urbano e o indígena, pode-se dizer que as considerações sobre os grupos
citados ocupam o miolo do livro. A última parte, A volta, é constituída das reflexões mais
gerais sobre o trabalho do etnógrafo e as sociedades humanas: trata-se de uma espécie de
conclusão de sua própria pesquisa etnográfica e, conseqüentemente, de conclusões sobre o
papel da Etnografia no que seria sua grande ambição, o estudo da humanidade. Por esse
motivo, o livro termina com considerações sobre as grandes religiões, diferenças entre
ocidente e oriente, além de uma inusitada aproximação entre o budismo e o marxismo. Ao
longo do livro, além da intercalação entre sociedades urbanas e populações indígenas, é
possível vislumbrar outras importantes dicotomias: tempo presente da narrativa vs. tempo
passado das lembranças, relato objetivo vs. apreciações pessoais, descrição de fatos vs.
análise. Segue um quadro com o resumo dessas nove partes e seus respectivos conteúdos.
14

Partes Conteúdo
1ª parte Dados biográficos: motivações, estudos;
(capítulos 1 ao 4) Considerações sobre relatos / viajantes;
“O fim das viagens” Viagem de exílio a Nova Iorque, em 1941.
2ª parte Dados biográficos: escolha profissional;
(capítulos 5 ao 7) filiação intelectual;
“Anotações de viagem” Início da viagem de navio, em 1935 (Europa
– América): travessia do Atlântico.
3ª parte Chegada ao Novo Mundo: impressões;
(capítulos 8 ao 11) Considerações sobre Rio de Janeiro, Santos,
“O novo mundo” São Paulo: momento presente e dados
históricos.
4ª parte Observações sobre o interior de São Paulo,
(capítulos 12 ao 16) Paraná, Goiás: formas de povoamento;
“A terra e os homens” Lembranças de Índia, Egito, Arábia (1947):
comparação Brasil central e Ásia do Sul .
5ª parte Paraná: primeiro encontro com índios;
(capítulos 17 ao 20) Viagem de trem ao Pantanal: fazendas;
“Cadiueu” Visita a Nalike: índios Guaicurus / Mbaiá.
6ª parte Viagem de navio Corumbá – Cuiabá:
(capítulos 21 ao 23) história e observação presente da cidade;
“Bororo” Visita à aldeia Quejara: Bororo.
7ª parte Panorama dos grupos indígenas brasileiros:
(capítulos 24 ao 29) aproximação de índios do México e Peru;
“Nambiquara” Estada no centro-oeste: vida do sertão;
Estada em Utiariti e Juruena: Nambiquara.
8ª parte Auto-reflexão: viagem, estudo,
(capítulos 30 ao 36) Antropologia, relatos de viagem, antigos e
“Tupi-Cavaíba” novos;
Estada entre os Mondé – Tupi-Cavaíba;
Visita a vilarejos de seringueiros.
9ª parte Reflexões sobre o papel do etnógrafo,
(capítulos 37 ao 40) dilema de Rousseau, comparação como
“A volta” método; Lembranças de visita a sítio
arqueológico na Caxemira, em 1950:
considerações sobre budismo, cristianismo,
islamismo (críticas).

1.3. Importância e repercussão de Lévi-Strauss

1.3.1. Trajetória
15

Um dos aspectos que mais chama a atenção na obra e na trajetória de Lévi-Strauss é a


sua abundância. Ao longo de boa parte do século XX5, o antropólogo francês produziu
estudos fundamentais e em grande profusão. Para dimensionar tamanha produção, basta
averiguar que os quatro volumes de sua significativa série Mitológicas6 (na primeira versão)
foram publicados entre 1964 e 1971. Mesmo contando todos esses volumes como apenas uma
obra, ainda assim podem-se elencar pelo menos cinco obras de Lévi-Strauss como
fundamentais para a Antropologia moderna. Ainda hoje, tendo avançado pelos 90 anos, o
professor honorário do Collège de France desempenha algumas funções acadêmicas e tem
publicações, datadas de 2004, de textos seus em revistas especializadas.
Não restam dúvidas de que se está diante de um intelectual intensamente produtivo, de
um antropólogo com pendor maior para a sistematização dos conceitos do que para o trabalho
de campo. Aliás, sobre essa atividade, Lévi-Strauss já recebeu críticas, principalmente dos
antropólogos norte-americanos, que o consideram negligente e pouco criterioso com relação
ao material recolhido – prática essencial, segundo os críticos, a quem se autodenomina
etnólogo. Talvez haja correspondência entre essa reserva do meio científico e o fato de que
algumas das obras fundamentais de Lévi-Strauss, produzidas nos anos 50, não foram
publicadas nos Estados Unidos até meados da década de 60. Nesse sentido, Lévi-Strauss
estaria mais próximo dos intelectuais de tradição erudita, de grandes teorias, ao estilo (não às
idéias) de Tylor e Frazer7, como compara Edmund Leach (1970, p. 10), do que dos etnólogos
que estabelecem como prioritárias as longas experiências com as comunidades estudadas,
cujo modelo inspirador é Malinowski. Não por acaso, o autor também se debruça, em vários
momentos de sua trajetória, com maior ou menor profundidade, sobre outras áreas do
conhecimento, como a Filosofia, a Psicologia, a Lingüística. O mesmo procedimento é
observado com relação às manifestações artísticas, como a pintura, a música, a literatura, que

5
A sua primeira publicação antropológica – um artigo sobre os Bororo – surge em 1936. Sua produção intelectual
passa a contar com publicações mais freqüentes e significativas, porém, a partir da década de 40, com os estudos
empreendidos sobre parentesco.
6
A célebre série sobre os mitos – Mythologiques – inicialmente constava de quatro volumes: Le cru et le cuit, Du miel
aux cendres, L´Origine des manières de table, L´Homme nu. Nos anos seguintes, Lévi-Strauss revisou a série e
acrescentou a ela mais três volumes inéditos: La voie des masques, La potière jalouse, Histoires de Lynx.
7
O britânico Sir James Frazer (1854-1952) foi um dos nomes responsáveis pela consolidação da Antropologia como
disciplina, com sua monumental obra O ramo dourado, destinada a descobrir as verdades fundamentais da natureza
humana a partir das especulações a respeito de povos primitivos. O fato de nunca ter visitado os povos sobre os quais
escrevia e de considerá-los inseridos numa linha de progresso da sociedade humana, na qual representariam o estágio
inferior das sociedades modernas, foram determinantes para a superação definitiva dos seus pressupostos
evolucionistas. No entanto, sua vasta obra, considerada no contexto da época em que foi produzida, continua sendo
referência à Antropologia.
16

aparecem em suas obras não como ilustração de conceitos, mas como elemento formador da
teoria empreendida8. Portanto, mais do que um antropólogo strictu sensu, Lévi-Strauss foi
fundador de correntes do pensamento, mais especificamente do Estruturalismo, que
ultrapassam as barreiras da Antropologia, ecoando em várias áreas do conhecimento. Sua
prioridade estava voltada, dessa forma, ao estabelecimento e ao estudo das estruturas do que é
estritamente humano, e não aos determinantes de uma sociedade específica.
As raízes dessas prioridades remontam à época da vida em que se fazem as primeiras
escolhas. Tendo obtido a graduação em Direito, o jovem Lévi-Strauss licencia-se em
Filosofia, no início da década de 1930. O recém-formado professor percebe, logo nos
primeiros anos de magistério, que não teria condições de prosseguir nessa atividade, que
julgava desmotivadora ao seu espírito – ainda que não o soubesse – de pesquisador. Também
começa, no campo da Filosofia, a opor-se à escola de sociologia francesa, mais precisamente
a Durkheim, cujo pensamento dominava a cena intelectual da época. São, portanto, essas duas
recusas – do magistério e do pensamento durkheimiano – que o levam à Etnologia.
Curiosamente, nesse campo Lévi-Strauss via possibilidades de conciliar interesses pessoais
inicialmente tão díspares, como Geologia, Psicanálise e Marxismo:

Em um nível diferente da realidade, o marxismo parecia-me proceder da mesma


maneira que a geologia e a psicanálise entendida no sentido que lhe dera seu
fundador. Os três demonstram que compreender consiste em reduzir um tipo de
realidade a outro; que a realidade verdadeira nunca é a mais patente; e que a
natureza do verdadeiro já transparece no zelo que este emprega em se ocultar. (p.
55).

Tratava-se, portanto, da recusa ao pensamento da continuidade entre o real e o sensível, da


recusa ao lugar privilegiado dado, segundo o autor, à metafísica, à subjetividade,
principalmente por correntes como o Existencialismo, e, em certa medida, a Sociologia
durkheimiana. Para sistematizar melhor a oposição a essas correntes, nada parecia melhor a
Lévi-Strauss do que enveredar pela Etnografia9:

8
Lévi-Strauss lança mão da música para estabelecer conceitos sobre sua teoria de parentesco e sobre seus estudos a
respeito do pensamento mítico.
9
Pode-se perceber uma recorrência do termo “etnografia” no Capítulo 6, utilizado prioritariamente às considerações
sobre suas escolhas iniciais, talvez por estarem ainda ligadas a uma possibilidade de trabalho direto com sociedades
17

A etnografia proporciona-me uma satisfação intelectual: como história que une por
suas duas extremidades a do mundo e a minha, ela desvenda ao mesmo tempo a
razão comum de ambas. Ao me propor estudar o homem, liberta-me da dúvida, pois
nele considera essas diferenças e essas mudanças que têm um sentido para todos os
homens com exclusão daqueles, próprios a uma só civilização, que desapareceriam
se optássemos por nos manter afastados. (p. 56).

Diante dessa definição metodológica, o convite de compor a missão francesa de


professores para lecionar na recém-fundada Universidade de São Paulo representou a Lévi-
Strauss mais uma possibilidade de iniciar seu contato com os povos do Novo Mundo e com
seus novos interesses acadêmicos do que de consolidar uma carreira de professor de
Sociologia, atividade que exerceu por três anos. O autor de Tristes trópicos relata, sobre esse
período, suas constantes investidas pelos arredores de São Paulo – as “etnografias de
domingo” – em busca de sociedades mais rústicas, livres da influência urbana. Encontrá-las,
no entanto, só se torna possível com as investidas pelo interior do país, engendradas nos
períodos de férias letivas. Em 1938, já desligado da Universidade de São Paulo, Lévi-Strauss
empreende a Expedição do Norte, rumo a regiões mais distantes do Brasil central, com
patrocínio do Governo Francês e apoio de colegas brasileiros. Nessa expedição, o etnógrafo,
ao longo de quase um ano, trava contato com sociedades indígenas brasileiras, estuda suas
formas materiais e espirituais de organização, recolhe material de pesquisa. Essa experiência
etnográfica rendeu não só Tristes trópicos, que abrange esse período específico, como
também ensaios e estudos que compuseram, posteriormente, obras fundamentais em sua
trajetória, referidas adiante.
Voltando à França, em 1939, logo o autor é obrigado a deixar o país sob a ameaça da
perseguição nazista aos judeus. Refugia-se nos Estados Unidos, onde inicia atividade
acadêmica, ao lado de cientistas consagrados – e influências confessas – como Robert Lowie
e E. Métraux. Também trava contato, nessa época em que Nova Iorque deu abrigo a vários
artistas e intelectuais perseguidos na Europa, com surrealistas como André Breton e Max

primitivas. O termo “etnologia” fica reservado a menções aos estudos empreendidos posteriormente, como em “[...]
raras vezes dedico-me a enfrentar um problema de sociologia ou de etnologia sem previamente revigorar minha
reflexão com algumas páginas do 18 de brumário de Luís Napoleão” (p. 55). No entanto, os dois termos parecem ser,
para o autor, etapas diferentes de um trabalho de mesmo objeto e objetivo: a busca dos componentes humanos nas
sociedades primitivas.
18

Ernst e com o lingüista Roman Jakobson. Nesse período de grandes influências e produção
intelectual, Lévi-Strauss desenvolve seus estudos sobre a teoria de parentesco. Depois de
publicar artigos a respeito das relações sociais dos povos observados em sua experiência de
campo – mais precisamente sobre os Bororo e os Nambiquara –, o autor publica sua primeira
grande obra de Antropologia, Les structures élémentaires de la parenté, em 1949, já de volta
a Paris. Trata-se de uma obra, hoje, pouco considerada, diante das outras de sua autoria que
ganharam mais atenção dos críticos. No entanto, o próprio antropólogo considera-a uma de
suas principais obras, pois fundamenta sua reflexão acerca da relação entre linguagem e
cultura. Vislumbra-se na reflexão do autor forte influência da Lingüística – mais precisamente
das concepções de Saussure e de Jakobson. O sistema terminológico, baseado em um
vocabulário, e o sistema de atitudes, baseado nas relações sociais, presentes nos estudos de
parentesco de Lévi-Strauss, guardam uma relação de analogia com os pressupostos mais
gerais do modelo estrutural de análise lingüística de Saussure – eixos paradigmático e
sintagmático10.
É, portanto, a partir dos estudos de parentesco que o autor passa a aplicar a teoria
estrutural à Antropologia. Na década de 50, Lévi-Strauss empenha-se em consolidar sua
carreira acadêmica. É a época em que conquista postos relevantes. Em 1950, é nomeado
diretor do Laboratório de Antropologia Social na Universidade de Paris; em 1953, nomeia-se
Secretário-Geral do Conselho Internacional de Ciências Sociais; e em 1959 consegue ocupar a
prestigiada cátedra de Antropologia Social no Collège de France. Um ano antes, publica uma
de suas mais importantes obras, Antropologia Estrutural, em que reúne artigos escritos entre
1944 e 1956 sobre linguagem e parentesco, magia e religião, arte, etc., sempre com a
aplicação da teoria estrutural.
É nesse âmbito que surge Tristes trópicos. Publicado em 1955, o livro não é fruto das
preocupações centrais que norteavam a produção intelectual de Lévi-Strauss à época. O livro
não se encaixa em nenhuma das três grandes áreas que norteiam a produção do autor – teoria
de parentesco, lógica do mito e teoria de classificação primitiva11 –, mas de alguma forma
toca em questões relativas a cada uma delas. Não se trata de uma obra que aplica o método
estruturalista à análise específica de algum fenômeno humano – mas tanto o método como os
fenômenos humanos povoam o texto. É certo que a obra foi resultado de uma encomenda, em
10
Cf. SILVA, Marcio F. da. Linguagem e Parentesco. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 42, 1999.
11
Classificação feita por Edmond Leach, em estudo de 1973 (LEACH, 1973).
19

certa medida como promessa de sucesso de vendagem. No entanto, um projeto a princípio


desvinculado das preocupações prementes do autor, com componentes circunstanciais
constrangedores, a ponto de gerarem páginas de ressalva no primeiro capítulo, conseguiu
transformar-se numa obra capital, que ilumina grande parte da produção de Lévi-Strauss e, ao
mesmo tempo, rompe as barreiras da Antropologia, das Ciências Sociais, tocando as naturezas
artísticas e literárias. É sintomático que Tristes trópicos, não sendo propriamente uma obra
antropológica clássica, tenha gerado comentários e críticas de antropólogos e intelectuais em
geral. A esse respeito, serão posteriormente analisadas as reflexões mais significativas.
Lévi-Strauss prossegue sua produção nos anos 60 com enfoque nos estudos sobre a
lógica simbólica e os mitos. Surgem mais três obras fundamentais de seu pensamento: O
totemismo hoje e O pensamento selvagem (ambas de 1962), além da série Mitológicas (1964 a
1971). As duas primeiras consagram-se à lógica das classificações primitivas, abordando
questões sobre natureza e cultura, racionalidade e subjetividade, passando pela arte como
intermediária entre a ordem da estrutura e a do acontecimento. Seus livros sobre a lógica do
mito talvez tenham sido os que mais mobilizaram intelectuais, antropólogos e estudantes.
Neles, o autor dispõe-se a mostrar como o pensamento mítico compartilha de um grau de
formulação racional similar ao pensamento científico atual, ainda que em outras bases.
Desfaz, assim, tal como Freud, em seus estudos sobre o inconsciente, pressupostos genéricos
sempre relacionados a mitos, como o de que os mitos sinalizam histórias inverídicas, ou de
que são simplesmente narrativas sagradas de povos primitivos. O levantamento de mitos teria
por função, ao cientista, chegar a princípios de formação intelectual universais, através das
estruturas essenciais que os compõem. Para dar conta de tamanha empresa, Lévi-Strauss ainda
retoma a série, cujo último volume teria sido O homem nu, de 1971, e elabora mais três livros,
mantendo a produção de seus estudos sobre as “mito-lógicas” durante as décadas de 70 e 80.
Nos anos 90, já com idade avançada, o autor permanece ativo em suas atividades
acadêmicas, mas considera sua contribuição à Antropologia concluída. Em 1993 publica o
volume Ver, escutar, ler, no qual dedica-se às considerações sobre a pintura, a música e a
literatura, paixões sempre cultivadas ao largo da Antropologia – mas muitas vezes junto a ela.
Nos anos seguintes são publicados dois livros de fotos de sua estada no Brasil (Saudades do
Brasil) e mais particularmente de São Paulo (Saudades de São Paulo), na década de 30. Nos
20

anos seguintes, Lévi-Strauss publica textos em revistas de Antropologia, de Economia, de


Ciências Sociais, como professor honorário do Collège de France.

1.3.2. Pressupostos centrais


A profusão de publicações e debates sobre as suas obras e atividades acadêmicas não
deixam dúvidas sobre o papel de destaque e de influência ocupado por Lévi-Strauss na cena
antropológica do século XX. Como o intuito aqui não é aprofundar a reflexão nos conceitos
antropológicos, mas apenas situar a produção e o diálogo do autor em sua área, cabem apenas
algumas considerações mais gerais sobre seus pressupostos, que certamente se refletem sobre
a elaboração e o material de Tristes trópicos.
O principal legado de Lévi-Strauss foi o Estruturalismo, aplicado à Antropologia. Suas
idéias inauguraram um novo modelo antropológico, que deve muito à Lingüística de Saussure
e de Jakobson, passando pelas influências de antropólogos como Robert Lowie (Primitive
Society, 1920) e pela sociologia totalizante de Marcel Mauss (Ensaio sobre o dom, 1923). Nas
primeiras décadas do século XX era forte, em várias áreas do conhecimento, a influência da
Filosofia, como doutrina de valorização do elemento humano. As significações, o
subjetivismo, ainda que amparados pelos ideais racionalistas herdados desde Descartes, eram
os elementos procurados nos fatos estudados pelas Ciências Sociais. O que interessava em um
fenômeno social observado por um sociólogo ou em uma narrativa recolhida por um
antropólogo era o que aquele objeto “queria dizer”. Nesse sentido, a partir dos modelos
observados na Lingüística estrutural, Lévi-Strauss começa a lançar luz aos “significantes”
desses objetos de estudo. Para ele, as representações valem tanto quanto – ou mais que – os
sentidos, como afirma em uma passagem de Tristes trópicos: “para além do racional existe
uma categoria mais importante e mais fértil, a do significante, que é a mais elevada forma de
ser do racional” (p. 53). É com esse pressuposto que o autor fundamenta sua crítica ao que
considerava um excesso de importância dado ao viés filosófico das correntes intelectuais da
época. Ele chega a afirmar, a respeito do Existencialismo em voga nos anos 50, que “essa
promoção das preocupações pessoais à dignidade de problemas filosóficos arrisca-se
demasiado a terminar numa espécie de metafísica para mocinhas de subúrbio”, e que, ao invés
disso, é preciso “compreender o ser com relação a si mesmo e não com relação a mim” (p.
56), aludindo ao seu modo de investigação antropológica.
21

A partir de seus estudos sobre a teoria de parentesco, uma área clássica de atenção dos
antropólogos, o cientista começa a criar seu método estrutural. Esse campo de estudo envolve
duas esferas, inevitavelmente interligadas no fenômeno observado: a terminologia, o
vocabulário utilizado pelos agentes envolvidos (tio, tia, sobrinho, nora, para exemplificar com
termos familiares aos ocidentais), e as atitudes, as condutas determinadas em função das
relações sociais estabelecidas entre os agentes. Trata-se, portanto, de um campo em que o
tradicional debate sobre a relação entre linguagem e cultura permanece vivo. Ora, a proposta
de Lévi-Strauss para tentar esclarecer essa relação é justamente a de estabelecer uma
cooperação entre a Lingüística e a Antropologia. Para ele, “fenômenos da linguagem e da
cultura resultavam ‘do jogo de leis gerais’, correspondendo a realidades de ordens distintas,
mas do mesmo tipo e, portanto, interpretáveis a partir de um método comum”12.
Lévi-Strauss também se espelha na abordagem sincrônica de Saussure para negar o
valor do pensamento histórico. Para ele, o importante é o estudo das estruturas, do espaço,
para se chegar a verdades universais. Para tanto, o dado temporal pouco conta. É verdade que
Lévi-Strauss não inaugura a negação do uso da História como ferramenta na Antropologia: os
funcionalistas da escola inglesa, como Radcliffe-Brown e mesmo Malinowski, já apontavam a
importância de centrar os esforços em um estudo criterioso das sociedades concretas,
investigando como elas se mantêm, e não como se modificaram ao longo do tempo. Mas
Lévi-Strauss torna tal crítica mais elaborada, ao acrescentar que a diferença crucial entre a
Antropologia e a História é que enquanto a última “organiza seus dados em relação às
expressões conscientes, a etnologia indaga sobre as relações inconscientes da vida social”13.
Quando o autor alude a “inconscientes”, não se trata de uma adesão ao subjetivismo que tanto
condenava na ênfase ao sujeito empreendida pela Filosofia. Há mais um sentido de verdade
indizível, presente no cerne dos fenômenos sociais e, portanto, da natureza humana
(formulação próxima ao sentido que Freud dá ao termo) do que de verdade intangível, difusa,
subjetiva. Fica evidente, também nessa distinção, o projeto estruturalista de Lévi-Strauss, que
busca, com base nos princípios da Lingüística, as variantes universais e inconscientes do
elemento humano, multifacetado em diferentes realidades sociais.

12
Cf. SILVA, Marcio da S., op. cit., p. 134. O artigo em questão ajuda a elucidar as idéias de Lévi-Strauss sobre a
relação entre os preceitos lingüísticos de Saussure e os estudos de parentesco. Também sobre essa relação, cf.
Estruturas elementares de parentesco (1949) e Antropologia estrutural (1945), do autor.
13
LÉVI-STRAUSS apud SCHWARCZ, Lilia. História e Etnologia. Lévi-Strauss e os embates. Revista de
Antropologia, São Paulo, USP, v. 42, p. 207, 1999.
22

1.3.3. Repercussão / crítica


As rupturas empreendidas por Lévi-Strauss não foram poucas nem pequenas. Dentro
da Antropologia, seu método estrutural inaugurou uma nova corrente, que já se anunciava de
alguma forma nos trabalhos de antecessores, como Radcliffe-Brown, mas que somente
ganhou sistematização coesa, própria de uma escola, com obras lançadas a partir dos anos 40
pelo antropólogo francês. O Estruturalismo de Lévi-Strauss pode ser visto como o ramo de
um projeto estruturalista que foi empreendido em várias áreas do conhecimento, como a
Lingüística, a Teoria Literária, a Filosofia, a Política, a Psiquiatria. O pensamento estrutural
imprimiu, portanto, grandes transformações e questionamentos importantes para a
constituição de novos pressupostos teóricos, adequados, muitas vezes, à nova percepção ou às
novas realidades que se punham em um mundo permanentemente em construção, a partir do
século XX. O advento do Estruturalismo, na maioria das áreas que influenciou, já foi objeto
de entusiasmo, adesão, controvérsia e rejeição. Em alguns casos, já foi proclamado como
definitivamente superado, bem ao gosto de um pensamento segundo o qual as correntes se
sucedem numa evolução constante, nunca se mesclam ou se adaptam. No caso da
Antropologia, embora se observe uma certa tendência a se considerar esse pensamento como
mais um “ismo” superado, há, ao que parece, a coexistência de várias tendências
contemporâneas, das quais o Estruturalismo continua a fazer parte. Laplantine (1994) sugere
cinco pólos teóricos para a definição das principais trilhas do pensamento antropológico
contemporâneo: Antropologia simbólica, Antropologia social, Antropologia cultural,
Antropologia estrutural e Antropologia dinâmica. O debate que se instaura, portanto, não
costuma pressupor a existência de uma única metodologia correta para o estudo de certo
fenômeno social, mas sim a possibilidade de escolha entre várias abordagens para esse estudo.
Nesse contexto, a obra de Lévi-Strauss permanece pertinente, aplicável e também,
evidentemente, objeto de crítica. É comum ouvir dizer que o Estruturalismo do antropólogo
francês é uma espécie de anti-humanismo na sua recusa ao sujeito, ainda que busque o que há
de comum a todos os homens. Também há a acusação de que ele estabelece uma recusa
radical e, nesse sentido, simplista da História, como também a crítica de que o autor é
excessivamente otimista ao propor a Antropologia como uma ciência do Humano ou como
meio capaz de fazer a Europa repensar a si mesma em relação aos ameríndios. Interessaria,
23

mais de que fazer um levantamento dos ataques mais freqüentes feitos e recebidos pelo
Estruturalismo de Lévi-Strauss, observar esse movimento crítico como um diálogo, em
muitos sentidos produtivo para o próprio entendimento e para a expansão das idéias do autor.
Traçar as bases desse constante diálogo seria, portanto, tarefa fecunda para iluminar melhor o
projeto antropológico e seus possíveis caminhos. Porém, para o trabalho em questão, que tem
como objeto uma obra importante da Antropologia, mas não pretende analisá-la sob esse
suporte, o diálogo mais amplo sobre as leituras da obra e das idéias de Lévi-Strauss talvez não
seja producente. Em vez dessa empresa, parece mais promissor estreitar a visão ao diálogo
que a própria obra em questão, Tristes trópicos, gerou entre o meio intelectual, o que
inevitavelmente traz algumas questões relativas ao projeto mais amplo da obra do autor.

1.3.4. Repercussão de Tristes trópicos


Como já foi visto, Tristes trópicos não se alinha às obras antropológicas de Lévi-
Strauss. Trata-se de um livro composto de maneira muito distante do texto tipicamente
científico, aproximando-se de gêneros mais relacionados à esfera narrativa e ficcional. No
entanto, estão presentes na obra pressupostos antropológicos que fundamentam toda a
produção do autor, anunciando, ou reiterando, em grande parte, seu método estrutural. Os
antropólogos, nesse sentido, não puderam abster-se de analisar esta obra, contextualizando-a
na produção de Lévi-Strauss. Embora, evidentemente, essa análise não trabalhe em
profundidade os aspectos composicionais e lingüísticos do livro, ela é relevante para este
estudo, pois fornece elementos relativos à recepção da obra e aos diálogos que ela gerou –
estas, sim, questões importantes para o presente trabalho.
O reconhecimento de Tristes trópicos pelo grande público, na França, foi praticamente
imediato. No meio acadêmico francês, a obra também teve penetração, mas enfrentou certa
resistência entre o público estrangeiro. Sontag (1987) lembra que sua publicação nos Estados
Unidos, em 1961, foi praticamente ignorada, seguindo a tendência a uma certa negligência
dos intelectuais do país às várias obras de Lévi-Strauss. Houve demora para que os primeiros
antropólogos começassem a lançar suas apreciações a respeito do livro. A própria Susan
Sontag apresenta suas considerações sobre Lévi-Strauss e sobre Tristes trópicos somente em
1969, em um texto extremamente elogioso em que analisa a figura do antropólogo,
contrapondo-o ao papel do antropólogo para a Antropologia norte-americana. Ao mesmo
24

tempo, a autora analisa o estilo da produção de Lévi-Strauss e o aproxima, por meio do


Estruturalismo, dos expoentes do “novo romance” (nouveau roman) francês e de certos
cineastas de mesma linha da década de 6014.
Para Edmund Leach (1973, p. 11), “podemos considerar os escritos de Lévi-Strauss
como uma estrela de três pontas irradiando em torno do livro autobiográfico, etnográfico e
itinerante Tristes tropiques”. De maneira similar pensa Clifford Geertz (1989, p.42), que
considera Tristes trópicos como uma espécie de “ovo cósmico” no qual estão presentes as
demais obras do autor, mesmo as precedentes, pelo menos de maneira embrionária. Essa
visão, que coloca Tristes trópicos numa posição estratégica dentro da obra de Lévi-Strauss,
pode ter sido motivada justamente pela sua singular composição. Seria pertinente, portanto,
debruçar-se sobre o livro de maneira igualmente singular. Constata-se, porém, uma escassez
de trabalhos expressamente relativos à obra, compensados por um maior número de
comentários esparsos de Tristes trópicos dentro de análises e críticas mais detalhadas sobre o
Estruturalismo de Lévi-Strauss. Talvez isso se explique pelo fato de antropólogos sentirem-se
pouco à vontade em analisar a fundo uma obra que não é efetivamente antropológica; os
críticos literários, por sua vez, também devem ver com ressalvas a tarefa de empreender uma
análise de um livro escrito por um antropólogo e que, ainda que sui generis, seja obra capital
da Antropologia. Diante desse parco cenário, ganha relevo o ensaio de Geertz, “O mundo em
um texto”, que se presta a discutir especificamente Tristes trópicos. Por conta dessa iniciativa
singular, mas também pela possibilidade de demarcar melhor a recepção do relato de Lévi-
Strauss a partir de uma análise tão polêmica, cabem aqui considerações mais detidas sobre o
ensaio de Geertz.
Clifford Geertz15 publicou seu ensaio sobre Tristes trópicos no volume O antropólogo
como autor, coletânea de textos anteriormente apresentados em congressos. A intenção do
volume é justamente discutir o estilo da escrita de alguns antropólogos reconhecidos. No
“Prefácio”, o autor já avisa que sua “atenção, aqui, não obstante, parece voltada para questões
de outro tipo, ‘literárias’, se quiserem, às quais as análises antropológicas parecem prestar

14
Vale a ressalva de que não se considera, aqui, a publicação da autora, oito anos depois da publicação da versão
norte-americana de Tristes trópicos, tardia. Procura-se apenas ressaltar a escassez, fora da França, de
comentários significativos sobre o autor durante um certo período.
15
Clifford Geertz, antropólogo norte-americano, é considerado um dos maiores antropólogos vivos. Costuma ser
apontado como o segundo mais importante, atrás de Lévi-Strauss. Geertz é professor emérito da Universidade de
Princeton e advoga sua antropologia hermenêutica, que lida com textos culturais, em busca de sua interpretação
para as interpretações que vivificam cada cultura em particular.
25

normalmente pouca atenção” (1989, p. 10)16. A iniciativa alegada, da menção às questões


“literárias”, no entanto, parece pretexto para outro objetivo: mais do que crítica, Geertz
mostra-se predisposto a um ataque a Lévi-Strauss e seu Tristes trópicos. Ater-se ao estilo de
Geertz não é relevante aqui; uma vez pontuados, no tratamento da obra do antropólogo
francês, a agressividade e o sarcasmo – que, de tão fortes, acabam tirando, em parte, a
validade da crítica –, passar-se-á aos pontos relevantes do capítulo.
Geertz começa seu capítulo, cujo subtítulo é “Como ler Tristes trópicos”, com a
atestação e a crítica à influência do Estruturalismo – esse “assombroso logro” – nas diferentes
áreas do conhecimento. Ele afirma que a Antropologia estruturalista, comandada pelo seu
grande precursor, Lévi-Strauss, trouxe poucos resultados concretos, apesar de seu grande
alcance, nos mais variados campos. Depois de situar Tristes trópicos como o livro central da
obra de Lévi-Strauss, Geertz aponta-o como “o clássico exemplo de livro cujo tema é em
grande parte ele mesmo, e cuja intenção é mostrar aquilo que, caso se tratasse de uma novela,
teríamos que chamar sua ficcionalidade; se tratasse de uma pintura, sua composição de
planos; de uma dança, seu trançado de figuras: a dizer, seu caráter de coisa fabricada” (p. 38).
Este caráter, bem assinalado, parece advir de um status literário evidente, que Geertz
inclusive admite, ainda que não deixe de aproximar o relato da produção antropológica do
autor. É justamente nesse ponto que a leitura de Geertz baseia sua crítica a Tristes trópicos.
Como o vê dentro do conjunto das obras do autor, Geertz o considera também uma obra
antropológica tout court. Nesse sentido, os elementos próprios ao texto literário seriam pouco
relevantes, quase uma excentricidade. Por isso, ele parece reprovar a presença maciça de tais
elementos: “Em Tristes trópicos os artifícios aparecem postos em primeiro plano, assinalados
e até floreados. Lévi-Strauss não quer que o leitor olhe através de seu texto, quer que mire
nele. E uma vez o tendo feito, será muito difícil olhar através dele, ao menos com seu anterior
descuido epistemológico” (pp. 38-9). De fato, goste ou não Geertz, Tristes trópicos não é
espelho que reflete a realidade; é uma obra que funciona como literária, tem sua própria
realidade, sua própria construção.
Geertz vê Tristes trópicos como uma obra-chave, em torno da qual gravita todo o
conjunto da produção do antropólogo francês. Assim, ele considera esse conjunto organizado
de maneira centrífuga. Se, por um lado, essa distinção feita a Tristes trópicos parece bastante
16
O trecho citado – e as demais citações da referida obra de Geertz – foi traduzido da versão consultada, em
espanhol.
26

pertinente, visto que de fato a obra não pode configurar numa linha paralela às outras obras,
por outro, colocá-la nesse papel central de “ovo cósmico”, geradora dos demais livros, é o
mesmo que observá-la eminentemente como obra antropológica, ainda que “diferente” do
padrão. Esse parece ser um dos grandes problemas da visão de Geertz, que, assim, cobra de
Tristes trópicos um rigor científico que ele evidentemente não tem e o acusa de pretensioso,
por “aventurar-se” em outros campos (literário, filosófico) que não dizem respeito ao saber
antropológico.
Depois de contextualizar Tristes trópicos, Geertz detém-se unicamente sobre sua
estrutura, que ele considera caleidoscópica. O texto “múltiplo por excelência” seria formado,
segundo o autor, por vários livros, específicos e simultâneos, que compõem o todo. O relato
seria, portanto, formado por “um livro de viagens e inclusive um guia turístico, ainda que,
como os trópicos, fora de moda. Um informe etnográfico, que intenciona fundar outra scienza
nuova. Um discurso filosófico que pretende reabilitar Rousseau, o contrato social e as virtudes
de uma vida tranqüila. Um panfleto reformista, que ataca o expansionismo europeu desde
bases estéticas. E uma obra literária que exemplifica e desenvolve uma causa literária... Todos
eles se encontram entremeados, justapostos como quadros de uma exposição” (p. 54).
Embora, ao classificar Tristes trópicos como obra caleidoscópica, Geertz mostre-se sensível
ao caráter múltiplo da obra, ele não parece atento ao fato de que as partes que ressalta só
fazem sentido se vistas, não como quadros, que têm sua unidade de sentido assegurada, ainda
que em exposição, mas sim em fusão – até porque elas existem no texto dessa maneira. No
resumo que faz dos cinco livros, Geertz atenta para os “objetivos”, as “pretensões” de cada
um, adotando justamente a postura que Lévi-Strauss condena nos antropólogos funcionalistas.
Ora, ao buscar os objetivos de cada um dos livros, é evidente que faltariam respostas
importantes. Mas a visão dos livros, mais do que em conjunto, indissociáveis, o impediria de
cobrar de Tristes trópicos a tarefa de ser um sólido tratado filosófico ou de cumprir com rigor
todas as exigências de um trabalho etnográfico. Em seu estudo sobre Lévi-Strauss, publicado
em 1967, Octavio Paz ressalta a relação do antropólogo com a Lingüística, relação que
fundamentou a passagem do Funcionalismo para o Estruturalismo: “À idéia de que ‘cada item
da linguagem – oração, palavra, morfema, fonema, etc. – existe somente para preencher uma
função, geralmente de comunicação’ se superpõe outra: ‘nenhum elemento da linguagem pode
ser valorizado se não é considerado em relação com os outros elementos’. A noção de relação
27

se converte no fundamento da teoria: a linguagem é um sistema de relações” (PAZ, 1993, p.


14). Essa concepção de linguagem aplica-se perfeitamente a Tristes trópicos: seus livros
interiores, itens da linguagem que é o todo, só fazem sentido em relação. Quando diz que as
partes de Tristes trópicos não cumprem sua função, Geertz, ainda que não seja um
funcionalista, ignora as relações entre as partes.
Dessa maneira, para Geertz, esse caleidoscópio com imagens distorcidas resulta no
mito do “antropólogo como buscador iniciático”, mas também “no mito sobre os mitos que
pudesse fazer o que as experiências diretas relatadas em Tristes trópicos finalmente não
conseguiram: reunir os múltiplos textos-tipo em uma única estrutura, uma ´mito-lógica’, em si
mesma concebida como exemplo de seu objeto, e revelar assim os fundamentos da vida
social, inclusive os fundamentos da existência humana como tal” (pp. 54-5). Mas será que
Lévi-Strauss não conseguiu ou não pretendia tamanha empresa? Se as experiências relatadas
se transformassem em uma mito-lógica, com fundamentos humanos universais, não seriam
mais o que são, obra múltipla: seriam, ao invés disso, Antropologia, no sentido estrito do
termo17. Por isso, embora Geertz reconheça em Tristes trópicos uma construção de textos
conectados, numa variedade de relações sintáticas, percebe-se que a intenção que move essa
consideração é funcionalista. É como se “obra múltipla”, antes de um atributo, fosse um
defeito: ao querer fazer um pouco de tudo, não se faz nada. Mas será que isso é um problema,
do ponto de vista de gênero, de obra de feições literárias? Quer dizer, “não se faz nada”
significa o quê? Pressupõe-se que Geertz pense assim porque não deixa de lado a concepção
de que um antropólogo deve fazer obras antropológicas e, mesmo que flerte com outras
linguagens – como ele admite e expõe –, não deve deixar de chegar a um resultado
antropologicamente satisfatório.
A partir desse breve diálogo a respeito de Tristes trópicos, espera-se estabelecer
pressupostos para uma análise fundamentada na questão dos gêneros do discurso. Algo da
teoria estruturalista parece inclusive aplicar-se nessa iniciativa, pois, a partir dela, é possível
pensar também que a relação entre as partes (ou os “elementos sintáticos”) pode se aproximar
da definição de gênero de Bakhtin: a relação entre os três eixos – tema, estrutura
composicional e estilo – é que faz sentido, e não a função de cada um, que mais se

17
“A etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os três momentos de uma mesma abordagem. [...] A
antropologia, finalmente, consiste em um segundo nível de inteligibilidade: construir modelos que permitam
comparar as sociedades entre si” (LAPLANTINE, 1994, p. 25).
28

aproximaria da concepção clássica, aristotélica, de gênero. Posteriormente, com a


investigação das ferramentas oferecidas pela Lingüística e pela Teoria Literária, voltar-se-á a
essa possibilidade: Tristes trópicos, pela própria Antropologia estrutural de Lévi-Strauss,
pode ser lido como representante de um gênero do discurso como o concebe Bakhtin: o relato
de viagem.

1.4. Investigando o texto


Procurar as bases teóricas adequadas à tarefa de análise de Tristes trópicos como relato de
viagem é o objetivo deste capítulo. Evidentemente, há várias linhas teóricas possíveis, cada
uma com sua contribuição e sua maior ou menor aplicabilidade. Para definir uma delas, já é
consenso que se deve partir da obra em questão: deve-se examiná-la em sua dinâmica para
decidir qual teoria pode trazer maiores possibilidades de estudo. Não se trata, por ora, de uma
análise acabada do material em questão, mas tão-somente de um levantamento de suas
características relevantes; assim, evita-se o risco de antecipar discussões que merecem
tratamento mais detido sob a luz da teoria indicada.
Um dos primeiros aspectos de Tristes trópicos que chama a atenção para si é justamente o
título. Observando as informações da contracapa, das orelhas do livro ou levando em conta as
informações anteriores que o leitor porventura tenha, chega-se ao teor da obra, que o título,
por si só, não informa. Assim como títulos de romances ou de outros gêneros literários,
Tristes tropiques, no original, não antecipa muita coisa, mas já seduz pela expressividade e
pelo estranhamento: por que os trópicos – metonimicamente representando as regiões cortadas
por essas linhas imaginárias, definidas como tropicais – seriam “tristes”? O senso comum não
diz o oposto? Além do vasto sentido condensado em uma formulação tão curta, o jogo sonoro
resultante das duas palavras (mais perceptível no original do que na tradução) também confere
efeito expressivo ao título. O que esperar da obra, portanto? A menos que seja apenas fruto de
um feliz e raro acaso, o título já sugere, além do conteúdo veladamente aludido, uma obra de
apuro formal, de trabalho artístico da linguagem, a despeito de ser escrita por um antropólogo
ou de não ser descrita numa História da Literatura Francesa, Brasileira ou Ocidental. A esse
respeito, vale a pena também lembrar que o leitor é logo informado de que a obra é fruto de
uma reelaboração das anotações e de outros materiais recolhidos na viagem. Ela não vai se
apresentar, portanto, como diário de campo, instrumento tão comum aos etnólogos e que
29

muitas vezes chega ao público exatamente nesse formato18. Assim, a reelaboração também
sugere um trabalho mais apurado tanto com a estrutura quanto com a linguagem do texto.
Avançando a investigação da obra de Lévi-Strauss, chega-se a um dado curioso logo nas
primeiras páginas: o autor ocupa-se em explicitar sua repulsa e sua constrangida adesão ao
relato de viagem:

Odeio as viagens e os exploradores. E eis que me preparo para contar minhas


expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde que
deixei o Brasil pela última vez, e, durante todos esses anos, muitas vezes planejei
iniciar este livro; toda vez, uma espécie de vergonha e repulsa me impediram. (p.
15).19

Continuando a leitura do primeiro capítulo do livro, percebe-se que a preocupação inicial tem
relação com um desejo de distinguir-se do tipo de narrativa tão em voga na França de então,
segundo o autor: um relato que celebra a aventura e negligencia o resultado dela. O
distanciamento desse tipo de obra inicia-se justamente com a crítica a ele, pontuada pela
paródia:

Decerto, podem-se dedicar seis meses de viagem [...] à coleta (que levará alguns
dias, por vezes algumas horas) de um mito inédito [...], mas essa escória da memória
– ‘Às cinco e meia da manhã, entrávamos na bahia de Recife, enquanto pipiavam as
gaivotas e uma flotilha de vendedores de frutas exóticas espremia-se ao longo do
casco’ –, uma recordação tão pobre merece que eu erga a pena para fixá-la? (p.
15).20

18
Um exemplo desse tipo de obra é o livro escrito pelo antropólogo Luiz de Castro Faria (Um outro olhar; ref.
completa na bibliografia), que acompanhou Lévi-Strauss em sua incursão pelo centro-oeste brasileiro, da qual
este livro, assim como Tristes trópicos, é fruto. É evidente que o fato de manter-se a estrutura de diário de campo
não implica demérito da obra, tampouco significa que não houve o cuidado de empreender uma revisão dos
originais.
19
“Je hais les voyages et les explorateurs. Et voici que je m’apprête à raconter mes expéditions. Mais que de
temps pour y résoudre! Quinze ans ont passé depuis que j’ai quitté pour la dernière fois le Brésil et, pendant
toutes ces années, j’ai souvent projeté d’entreprendre ce livre; chaque fois, une sorte de honte et de dégoût m’en
ont empêché” (p. 9).
20
“On peut, certes, consacrer six mois de voyage [...] à la collecte (qui prendra quelques jours, parfois quelques
heures) d’un mythe inédit [...], mais cette scorie de la mémoire: ‘A 5h30 du matin, nous entrions en rade de
Recife tandis que piaillaient les mouettes et qu’une flotille de marchands de fruits exotiques se pressait le long de
la coque’, un si pauvre souvenir mérite-t-il que je lève la plume pour le fixer?” (pp. 9-10).
30

Mais adiante, pontua-se a crítica com sarcasmo, como no trecho:

O que ouvimos nessas conferências e o que lemos nesses livros? O rol dos caixotes
levados, as estripulias do cachorrinho de bordo, e, misturados às anedotas,
fragmentos desbotados de informação, disponíveis há meio século em todos os
manuais (p. 16).21

O autor continua a tarefa de marcar sua distância dos relatos modernos com a negação
do exotismo. O elemento que costuma ser identificado como a grande atração do relato de
viagem, para o autor é uma condenável e barata artimanha para conquistar o gosto do público:

“A Amazônia, o Tibete e a África invadem as lojas na forma de livros de viagem,


narrações de expedição e álbuns de fotografias em que a preocupação com o impacto
é demasiado dominante para que o leitor possa apreciar o valor do testemunho que
trazem” (p. 15).22

Sua formação de antropólogo e sua sensibilidade pessoal lhe fornecem dados para não cair no
fácil deslumbramento do europeu diante das paisagens dos e povos das Américas. O autor
chega a afirmar expressamente o problema do exótico: “Desconfio, pois, dos contrastes
superficiais e do aparente pitoresco; eles cumprem suas promessas por pouquíssimo tempo”
(p. 122). Desse modo, ele transcreve em seu relato a desconfiança com que prova ao longo da
viagem os produtos típicos da região visitada, geralmente exaltados sob a alcunha de
“pitorescos”, como o guaraná, o chimarrão, as frutas silvestres. Em alguns momentos, não
hesita em desenhar paisagens com um sentimento claro de desolação, como quando chega à
região da linha telegráfica feita pela Comissão Rondon no início do século, mais precisamente
no posto de Utiariti (500 km ao norte de Cuiabá). “Quem vive na linha Rondon facilmente se
imaginaria na Lua”, é a frase que inicia o capítulo sobre essa região (p. 256). Inclusive o título
de sua obra, como já foi visto, indica o distanciamento de uma visão idílica dos trópicos,

21
“Qu’entendons-nous dans ces conférences et que lisons-nous dans ces livres? Le détail des caisses emportées,
les méfaits du petit chien du bord, et, mêlées aux anecdotes, des bribes d’information délavées, traînant depuis
un démi-siècle dans tous les manuels” (p. 10).
22
“L’Amazonie, le Tibet et l’Afrique envahissent les boutiques sous forme de livres de voyage, comptes rendus
d’expédition et albums de photographies où le souci de l’effet domine trop pour que le lecteur puisse apprécier la
valeur du témoignage qu’on apporte” (p. 10).
31

também presente na sua apreciação negativa da baía de Guanabara, celebrizada nos versos de
Caetano Veloso23.
A preocupação expressa de afastar-se do típico relato de viagem moderno evidencia
um autor preocupado com a recepção de sua própria obra. Entretanto, basta avançar a leitura
por alguns capítulos para que se perceba que Tristes trópicos não comete os pecados desses
ingênuos (ou astutos?) exploradores. Por que então o autor desde o início incumbe-se de fazer
a ressalva? Talvez não seja o receio de ser confundido com o medíocre sua maior motivação,
mas sim a tentativa de criar uma reflexão sobre os limites do próprio gênero adotado, limites
que certamente a obra ultrapassa. Lidar com um texto que é um relato de viagem, mas de certa
forma contrapõe-se ao gênero, é uma questão importante a ser contemplada na análise de
Tristes trópicos.

1.4.1. Primeira parte de Tristes trópicos: sentido da viagem


A primeira das nove partes de Tristes trópicos chama-se, curiosamente, “O fim das
viagens” (no original, La fin des voyages24). O estranhamento gerado pelo título permanece ao
se observar os nomes dos capítulos que seguem: “A partida”, “A bordo”, “Antilhas” e “A
busca do poder”. Tudo indica o início de uma viagem, conteúdo, aliás, que o leitor
minimanente informado sobre o livro ou atento à contracapa espera. Qual o sentido, então, de
iniciar um relato de viagem com “O fim das viagens”? Logo no início da leitura, percebe-se
que o título da Primeira Parte faz referência ao desencanto do autor com as expedições
modernas, com o status que a sociedade francesa de então dava ao viajante que mais
percorresse caminhos inatingíveis. Ele não faz alusão, ainda, à viagem que motivou o livro;
trata-se de uma alusão ao sentido geral da viagem, transmudado pelos hábitos e gostos atuais:
é o fim das antigas, das verdadeiras viagens, segundo o autor.
Dessa maneira, a viagem aos trópicos, matéria do livro, não se inicia ainda nessa
Primeira Parte, como espera – e estranha, à medida que a leitura avança – o leitor. Ela

23
“O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a baía de Guanabara / Pareceu-lhe uma boca banguela / [...] /
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara / Em que se passara passa passará um raro pesadelo” são
os versos da música “O Estrangeiro” (disco Estrangeiro, 1989) que fazem alusão à passagem de Tristes trópicos
em que se lê: “...sinto-me ainda mais embaraçado para falar do Rio de Janeiro, que me desagrada, apesar de sua
beleza celebrada tantas vezes [...]. O Pão de Açúcar, o Corcovado, todos esses pontos tão enaltecidos lembram
ao viajante que penetra na baía cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca desdentada.” (p. 75).
24
É importante notar que o autor diz “fin” e não “but’ ou “finalité”, como poderia sugerir o ambíguo “fim”, em
nossa língua mãe.
32

funciona como uma espécie de prefácio não anunciado, em que o autor, em pinceladas de
narrativas e reflexões, dá mostras do que vai ser tratado – e, de certa forma, de como o objeto
será tratado, sem chegar a mencionar a vivência com as sociedades indígenas do Brasil
central. Não se menciona, nesta parte, nem mesmo a partida rumo ao Novo Mundo, em 1935,
mas sim etapas de outra viagem, também de navio, feita em momento posterior, rumo ao
exílio em Nova York. Ao que tudo indica, trata-se de uma ausência intencional. O autor
antecipa algumas questões referentes ao contato com civilizações primitivas, ao papel do
pesquisador diante dessas civilizações, ao progresso como elemento massificador e destruidor
de culturas, enfim, questões que a sua expedição pelo Brasil suscitaram, tornando-se, elas – e
não os índios em si – o elemento central, motivador, de sua obra. Dessa forma, “A partida”,
em vez de referir-se ao início da viagem ao Novo Mundo, mostra, antes, a partida pessoal do
autor para o ofício que abraçará, sendo também, em certa medida, o ponto de partida para a
existência do livro. Ao evitar a ênfase no elemento mais “exótico”, nessa primeira parte,
substituindo-o pelas motivações gerais que o levaram ao Brasil e, posteriormente, o
convenceram a escrever sua obra, Lévi-Strauss permanece, portanto, distante daquilo que ele
postula como condenável num relato de viagem:

Quanto aos resultados, que gostaríamos de chamar de racionais, dessas aventuras, a


sociedade demonstra absoluta indiferença. Não se trata de descoberta científica, nem
de enriquecimento poético e literário, sendo os testemunhos, no mais das vezes, de
uma pobreza chocante. É o fato da tentativa que conta, e não seu objetivo (p. 38,
grifo nosso).25

A maneira como as questões centrais do texto de Lévi-Strauss serão abordadas por ele
ao longo do relato também são parcialmente anunciadas nessa primeira parte. Além do
distanciamento do exotismo em voga, o autor deixa claro, inclusive no excerto acima, o valor
que dá ao trabalho de elaboração da linguagem. Seriam passíveis de elogio os relatos que,
mesmo sem grandes contribuições científicas, revelassem um apuro literário. Ele próprio
procura dar à linguagem de seu texto uma certa dimensão literária, que ultrapasse a simples
referencialidade e o recorrente tom anedótico, típico, segundo afirma, de relatos modernos.
25
“Vis-à-vis des résultats qu’on voudrait appeler rationnels de ces aventures, la société affiche une indifférence
totale. Il ne s’agit ni de découverte scientifique, ni d’enrichissement poétique et littéraire, les témoignages étant
le plus souvent d’une pauvreté choquante. C’est le fait de la tentative qui compte et non pas son objet” (p. 40).
33

Nesse sentido, é notável, logo no primeiro capítulo, o retrato que faz de seu professor de
filosofia George Dumas, à época da universidade:

[...] sobre um estrado, Dumas instalava seu corpo robusto, talhado à faca, coroado
por uma cabeça amassada que parecia uma grande raiz esbranquiçada e descascada
por uma permanência no fundo dos mares [...]. Esse curioso destroço vegetal, ainda
com as suas radículas espetadas, de repente humanizava-se graças aos olhos negros
que acentuavam a brancura da cabeça [...] (p. 17).26

Ainda sobre o mesmo professor, responsável pela ida de Lévi-Strauss ao Brasil como
integrante da missão francesa enviada à então recém-fundada Universidade de São Paulo,
segue a reprodução de um conselho aos futuros viajantes:

“Sobretudo”, dissera-nos Dumas, “vocês terão de estar bem vestidos”; tratando de


nos tranqüilizar, acrescentava com uma candura comovente que isso podia ser feito
de modo muito econômico, perto dos Halles, num estabelecimento chamado A la
Croix de Jeannette, do qual jamais tivera a menor queixa quando era jovem
estudante de medicina em Paris (p. 19).27

Junto aos demais trechos dedicados ao professor, percebe-se nessa passagem um trabalho com
a linguagem que ressalta o cuidado, em certa medida inesperado, dessa figura um tanto
anacrônica, com seus alunos prestes a tornarem-se colegas de profissão. Chama a atenção,
inicialmente, o uso de um recurso tradicionalmente literário, próprio das prosas narrativas: o
discurso direto. Em seguida, aparece o discurso indireto livre: vê-se claramente que “de um
modo muito econômico” e “do qual jamais tivera a menor queixa quando era jovem
estudante de medicina em Paris” são falas literais do professor, e não meras reproduções de

26
“... sur une estrade, Dumas installait son corps robuste, taillé à la serpe, surmonté d´une tête bosselée qui
ressamblait à une grosse racine blanchie et dépouillée par un séjour au fond des mers [...]. Cette curieuse épave
végétale, encore hérissée de ses radicelles, devenait tout à coup humaine par un regard charbonneux qui
accentuait la blancheur de la tête [...]” (p. 12 da ed. francesa). Obviamente, a análise da composição textual deve
ser feita a partir do original e não da tradução. No entanto, nesta parte da dissertação, opera-se com percepções
mais de superfície, apontando uma elaboração que parece respeitada na tradução. Por isso, optamos pela
exposição, no texto, do trecho traduzido, e na nota, do trecho original – o que será invertido em momento
posterior do trabalho, quando a investigação for mais detida.
27
“’Surtout’, nous avait dit Dumas, ‘il faudra être bien habillé’; soucieux de nous rassurer, il ajoutait avec une
candeur assez touchante que cela pouvait se faire fort économiquement, non loin des Halles, dans un
établissement appelé A la Croix de Jeannette dont il avait toujours eu à se louer quand il était jeune étudiant en
médecine à Paris” (pp. 14-5 da ed. francesa).
34

suas idéias centrais. São diferentes, portanto, dos trechos “tratando de nos tranqüilizar” e
“com uma candura comovente”, claramente “falas” do autor a respeito do trato humanizado,
que chegava a comover, vindo de um professor tão antiquado. O espaço disponibilizado –
metade do capítulo –, a exposição de seus méritos, e mesmo de suas limitações; tudo referente
ao professor Dumas é desenvolvido por Lévi-Strauss como uma homenagem, em que a
linguagem deve apresentar um tom diferente.
Outra questão importante sobre a maneira como o autor aborda seu objeto é a
exposição não-linear, na primeira parte do livro, dos eventos e das reflexões que antecedem a
grande viagem à qual o título se refere. Episódios narrados, reflexões, pitadas de crônica e de
ensaio etnográfico parecem se encaixar uns aos outros de acordo com a ordem das questões
que o autor quer discutir, e não o contrário. Não são os fatos transcorridos que ordenam a
exposição das idéias, mas sim a maneira escolhida para discuti-las que define a exposição dos
fatos que as suscitaram, numa ordem em que a cronologia não mais importa. Trata-se de um
enunciado construído pelas intercalações tanto de tipos de texto quanto de momentos
narrativos diferentes.
Essa intercalação ganha uma proporção maior no terceiro capítulo. Em “Antilhas”, o
fio condutor, já iniciado no capítulo anterior, é a narrativa da chegada de Lévi-Strauss à
Martinica, depois de uma exaustiva travessia em navio, em péssimas condições de higiene e
convivência. O que torna a narrativa significativa, a ponto de ocupar dois capítulos dessa
primeira parte, é o fato de a viagem a Nova York – com parada na Martinica e em Porto Rico
– ser na verdade uma fuga provocada pela perseguição nazista a artistas e intelectuais judeus,
que foram à época acolhidos nos Estados Unidos. Essa viagem, ocorrida em 1941, com todos
os contratempos e sobressaltos de uma situação de fuga, constitui a base narrativa do terceiro
capítulo. No entanto, ela é progressivamente interrompida por episódios de outras viagens
feitas no passado pelo autor: há episódios sobre Salvador e Santos, no Brasil, e Santa Cruz de
la Sierra, na Bolívia; ao final, a narrativa central é cortada pela volta da narrativa no tempo
presente ao relato, ou seja, 1954.
Todas as pequenas histórias encaixadas no relato principal aparecem por conta da
“mescla de maldade e asneira” (p. 27) que elas reavivavam na memória do autor,
sensibilizado pela situação igualmente cruel por que passava então como fugitivo. O que as
une, segundo ele, num movimento rememorativo constante, é a constatação de que “lenta e
35

progressivamente, elas [as situações de maldade e asneira] se punham a brotar, qual uma água
traiçoeira, de uma humanidade saturada por sua própria imensidão e pela complexidade cada
dia maior de seus problemas” (p. 27). Para o antropólogo, tais episódios vêm à mente porque
são exemplares, ainda que em menor escala, de “manifestações estúpidas, execráveis e
crédulas que os grupos sociais segregam como um pus quando começa a lhes faltar a
distância” (p. 28), tal como o nazismo que o obrigara a passar por tantas contrariedades.
Nesse sentido, intercalações de episódios de intolerância vividos em outras cidades são
suscitadas à medida que o autor desenvolve sua reflexão a respeito do assunto. Mais uma vez,
a discussão que o autor expande traz à tona trechos a serem encaixados na narrativa principal;
eles não aparecem simplesmente pelo sortimento de aventuras que possam representar,
inclusive porque não se encerram no fato narrado.
A sucessão de lembranças e sua inserção na narrativa central são processos que
parecem infinitos, visto que a reflexão que as motiva pode ser materializada em várias
histórias vivenciadas pelo autor. Atento a isso, ele decreta, no seu último parágrafo:

É preciso parar. Cada uma dessas aventuras menores faz brotar outra em minha
lembrança. Algumas, como esta que se acaba de ler, ligadas à guerra, mas outras,
que contei mais acima, anteriores. E poderia acrescentar-lhes ainda mais recentes, se
recorresse à experiência das viagens asiáticas que datam destes últimos anos (p.
33).28

Percebe-se que a elaboração não-linear do capítulo relaciona-se à visão do autor acerca da


viagem. Como já esclarecera no primeiro capítulo, ele considera que a viagem não vale muita
coisa por si só, mas ela pode se tornar fonte de conhecimento científico ou de questões
importantes a serem discutidas. Nesse terceiro capítulo, portanto, o autor reafirma seus
princípios e ao mesmo tempo põe em prática, em sete páginas, o tipo de relato que constrói ao
longo do livro, de acordo com sua concepção de viagem e estabelecendo relações de
proximidade e afastamento com outros tipos de relato.

28
“Il faut s’arrêter. Chacune de ces menues aventures, dans mon souvenir en fait jaillir une autre. Certaines,
comme celle qu’on vient de lire, liées à la guerre, mais d’autres que j’ai contées plus haut, antérieures. Et je
pourrais en ajouter encore de plus récentes, si j’empruntais à l’expérience de voyages asiatiques remontant à ces
toutes dernières années” (p. 34).
36

Vê-se, nesse terceiro capítulo, a elaboração do relato por fragmentos que, tal como em
um caleidoscópio, formam um sentido pleno, vistos em seu conjunto. Tanto o efeito
produzido quanto a própria produção são muito diferentes da lógica necessária ao discurso
científico ou do texto informativo do tipo jornalístico. Esse tipo de construção lingüística
costuma fazer, ou ter, vários sentidos, na esfera literária, em que a polissemia é buscada pelos
recursos disponíveis ao autor. Como foi visto, o autor permanece atento a modelos e
elaborações lingüísticas próprias ao texto literário. É o caso da oposição que ele cria entre a
marcação temporal (no pretérito) precisa do início de certo episódio e a inesperada colocação
de verbos no presente do indicativo:

Ontem ainda, alguns meses antes da declaração de guerra e no caminho de volta à


França, estou passeando, em Salvador [...]. Estou concentradíssimo em fotografar
detalhes da arquitetura, sendo perseguido de praça em praça por um bando de
negrinhos seminus que me imploram: ´Tira o retrato! tira o retrato!’. Ao final,
comovido por mendicância tão gratuita – uma fotografia que jamais veriam, em vez
de alguns tostões –, aceito bater uma chapa para contentar as crianças (p. 28).29

A indicação temporal “ontem” é seguida de uma referência precisa – “alguns meses antes da
declaração de guerra” – que remete a idos de 1938. Entretanto, o tempo da narração anterior a
esse parágrafo é a fuga do nazismo, em 1941. Infere-se que o autor não faz menção literal a
“ontem”, mas à lembrança de um fato vivido há três anos, mas tão viva que parece ter
acontecido na véspera. Reafirmando essa presentificação dos acontecimentos passados, a
narrativa continua com o emprego inesperado dos verbos no presente do indicativo – “estou
passeando”, “estou concentradíssimo”, “aceito”. A mistura de tempos diferentes, junto aos
detalhes avivados pela memória, transmite uma certa sensação de narração cinematográfica,
de uma cena de filme, localizada no passado, mas colocada, tal como na reprodução da
narrativa pelo espectador, no presente. Ora, trata-se de um recurso expressivo, de uma
elaboração intencional, própria, aliás, de algumas prosas modernas. Lévi-Strauss, portanto,

29
“C’est hier encore, quelques mois avant la déclaration de guerre et sur la route du retour en France, à Bahia où
je me promène dans la ville haute [...]. Je suis tout occupé à photographier des détails d’architecture, poursuivi
de place en place par une bande de négrillons à demi nus qui me supplient: tira o retrato! tira o retrato! ‘Fais-
nous une photo!’ A la fin, touché par une mendicité si gracieuse – une photo qu’ils ne verraient jamais plutôt que
quelques sous – j’accepte d’exposer un clichê pour contenter les enfants” (p. 26).
37

junta aos elementos vividos, às reflexões suscitadas, a vivência literária dos caminhos de
leitura percorridos.
A questão das viagens, motivação central dessa primeira parte, é introduzida no
primeiro capítulo. “A partida” inicia com uma reflexão do autor a respeito de seu próprio
papel de viajante dentro dessa categoria, segundo ele, tão medíocre nos anos 50 na França.
Essa reflexão é entremeada por lembranças do autor de como eram recebidos e como
trabalhavam os viajantes vinte anos atrás, na época em que ele próprio iniciava sua carreira.
Convém ressaltar que o termo “viajante” é utilizado pelo autor tanto para designar aqueles
que fazem expedições pelo próprio gosto da aventura – e pelos ganhos que esse gosto lhes
proporciona – quanto para referir-se a estudantes recém-formados que, como ele, iniciavam a
carreira acadêmica em outras terras.
A contraposição entre as viagens nos anos 30 e as do tempo da escrita de Tristes
trópicos (anos 50) desenvolve-se ao longo do primeiro capítulo, retomada e aprofundada no
quarto capítulo, “A busca do poder”. Neste último também entram, como contraponto, as
viagens empreendidas séculos atrás. Desde o título, claramente divergente dos capítulos
anteriores, constituídos por referências pontuais a momentos da viagem, este último capítulo
revela-se essencial para a primeira parte e para todo o livro. “O fim das viagens”, no primeiro
capítulo como uma triste constatação do autor a respeito da mudança de perspectiva que as
viagens sofreram ao longo dos anos, é retomado e transformado aqui. Vislumbram-se
descobertas do autor, à medida que ele junta às suas reflexões iniciais outras, decorrentes das
viagens que empreendeu:

Terá sido então que, pela primeira vez, compreendi o que em outras regiões do
mundo circunstâncias tão desencorajadoras ensinaram-me para sempre? Viagens,
cofres mágicos com promessas sonhadoras, não mais revelareis vossos tesouros
intactos! Uma civilização proliferante e sobreexcitada perturba para sempre o
silêncio dos mares! Os perfumes dos trópicos e o frescor das criaturas estão viciados
por uma fermentação de bafios suspeitos, que mortifica nossos objetos e fada-nos a
colher lembranças semicorrompidas (pp. 34-5).30

30
“Est-ce alors que j’ai, pour la première fois, compris ce qu’en d’autres régions du monde , d’aussi
démoralisantes circonstances m’ont définitivement enseigné? Voyages, coffrets magiques aux promesses
rêveuses, vous ne livrerez plus vos trésors intacts. Une civilisation proliférante et surexcitée trouble à jamais le
silence des mers. Les parfums des tropiques et la fraîcheur des êtres sont viciés par une fermentation aux relents
suspects, qui mortifie nos désirs et nous voue à cueillir des souvenirs à demi corrompus” (p. 36).
38

De modo mais explícito, iniciam-se as constatações que justificam o título da obra. A tristeza
alegada vem de uma consciência profunda de que se tornou impossível conhecer a essência de
civilizações que já foram tocadas e alteradas pela ordem capitalista mundial. Parecem fazer
parte dessa ordem, segundo o autor, os viajantes modernos, que seriam responsáveis por criar,
com suas narrativas, “a ilusão daquilo que não existe mais e que ainda deveria existir” (p. 35).
Comparados aos viajantes que traziam especiarias à Europa no século XV, os atuais viajantes
seriam responsáveis por levar ao Velho Mundo “as especiarias morais de que nossa sociedade
experimenta uma necessidade mais aguda ao se sentir soçobrar no tédio" (p. 35). É evidente
que, a esse explorador dos paraísos pretensamente intactos, diante do quadro presente de
desolação, cabe recorrer a um primitivismo forjado que agrade aos ocidentais. Seus relatos
são feitos sob medida, segundo Lévi-Strauss, ao público consumidor de aventuras que, por
uma espécie de remorso da destruição que impingiu em quinhentos anos a vários povos,
sonha com a recuperação do bom selvagem.
Em outra escala, o resgate desse primitivismo ingênuo também é feito pelos
exploradores atuais, segundo o autor, por meio de uma tentativa quase ilimitada de superação
dos próprios limites que, tal como no caso de índios norte-americanos, traria poder pessoal e
um lugar de prestígio na sociedade moderna. Daí o título do capítulo “A busca do poder”, que
seria conferido àquele que mais sofresse e superasse limites sociais como prova de integridade
pessoal:

Quem não enxerga a que ponto essa ´busca do poder´ volta a ser valorizada na
sociedade francesa contemporânea na forma ingênua de relação entre o público e
´seus´ exploradores? Também desde a puberdade, nossos adolescentes são
autorizados a obedecer aos estímulos a que tudo os submete desde a mais tenra
infância, e a vencer, de um modo qualquer, a influência momentânea de sua
civilização (p. 37).31

31
“Qui ne voit à quel point cette ‘quête du pouvoir’ se trouve remise en honneur dans la société française
contemporaine sous la forme naïve du rapport entre le public et ‘ses’ explorateurs? Dès l’âge de la puberté aussi,
nos adolescents trouvent licence d’obéir aux stimulations auxquelles tout les soumet depuis la petite enfance, et
de franchir, d’une manière quelconque, l’emprise momentanée de leur civilisation” (p. 40).
39

Nesse cenário desolador, o autor se coloca como “o único a ter conservado em [suas]
mãos apenas cinzas” (p. 38). Questiona-se: “Só a minha voz testemunhará o fracasso da
evasão?” (idem). Diante dessa triste possibilidade, o autor imagina-se “no tempo das
verdadeiras viagens, quando um espetáculo ainda não estragado, contaminado e maldito se
oferecia em todo seu esplendor” (p. 39). Logo, portanto, se vê à frente de um dilema, bem
detectado por olhos de etnólogo, acostumados a questões de relativismo e alteridade:

No final das contas, sou prisioneiro de uma alternativa: ora viajante antigo,
confrontado com um prodigioso espetáculo do qual tudo ou quase tudo lhe escapava
– pior ainda, inspirava troça e desprezo –, ora viajante moderno, correndo atrás dos
vestígios de uma realidade desaparecida (p. 40).32

A saída desse dilema seria, segundo constata, uma decantação dos fatos vividos, deixando que
o tempo separasse aquilo que é poeira, impureza da própria visão, do tempo presente, daquilo
que é matéria bruta, cuja composição é passível de análise. Essa matéria é o que interessa ao
etnólogo; empreender estudos dessa essência a tanto custo recolhida e burilada é o que o autor
se propõe a fazer no final do capítulo, desta vez fazendo alusão ao material que ele próprio
recolheu nos trópicos:

De forma inesperada, entre mim e a vida o tempo alongou seu istmo; foram
necessários vinte anos de esquecimento para me levarem tête-à-tête com uma
experiência antiga cujo sentido me fora recusado, e a intimidade, roubada, por uma
perseguição tão longa quanto a Terra (p. 41).33

Esta seria, portanto, a opção do autor diante da “busca do poder” observada entre os viajantes
modernos. Em oposição a essa busca, Lévi-Strauss traça a direção, os princípios de seu relato.
Percebe-se que a opinião do autor a respeito das viagens e de seus relatos é,
visivelmente, um dos pilares do livro, a ponto de render um capítulo inteiro, antes de iniciar a

32
“En fin de comptes, je suis prisonnier d’une alternative: tantôt voyageur ancien, confronté à un prodigieux
spectacle dont tout ou presque lui échappait – pire encore inspirait raillerie et dégoût, tantôt voyageur moderne,
courant après les vestiges d’une réalité disparue” (p. 43).
33
“D’une façon inattendue, entre la vie et moi, le temps a allongé son isthme; il a fallu vingt années d’oubli pour
m’amener au tête-à-tête avec une expérience ancienne dont une poursuite aussi longue que la terre m’avait jadis
refusé le sens et ravi l’intimité” (p. 44).
40

narrativa, e de ser cristalizada na famosa frase de abertura da obra – “Odeio as viagens e os


exploradores” –, tornando-se um dos possíveis eixos de discussão suscitados. Embora este
tema não seja abordado de maneira tão condensada ao longo do relato, tal como é nessa
Primeira Parte e na última, ele está presente em toda a obra: é possível perceber que a
estrutura, o estilo, os gêneros intercalados ao relato; tudo dialoga com essa idéia pessoal sobre
as viagens. Trata-se, portanto, de um tema fundamental para o entendimento do todo da obra.

Capítulo 2: Gênero e dialogismo em Tristes trópicos

2.1. Literariedade do texto


Faz-se necessário, antes de se debruçar mais atentamente sobre a obra, abrir parênteses
para tratar da questão da literariedade de um texto.
A chancela literária há muito é objeto de discussões, posto que, via de regra, ela
costuma trazer prestígio à obra a que é atribuída. Ela já foi balizada pela noção de mimesis,
pelos conceitos subjetivos de belo, do sublime, das “matérias elevadas”. Se, por um lado, o
caráter literário era submetido a impressões, a conceitos subjetivos, o valor da obra em si
costumava relacionar-se, desde a Antigüidade Clássica, à sua maior ou menor obediência a
regras de arte poética, de estilo e de gêneros, regras que sofreram grandes mudanças ao longo
dos séculos – de modo geral, deixaram de ser “regras”. Não cabe aqui o estudo detalhado
deste panorama; ele serve tão-somente para indicar o quanto esta matéria é fruto das
concepções e ideologias de cada época. Pode-se dizer que é o conjunto de produtores e
receptores dos textos que, em interação, identificam os valores pelos quais determinado texto
é considerado literário ou não. Dessa forma, é natural que tais valores tenham sofrido várias
mudanças, desde a Antigüidade Clássica até o século XX. Neste último, vislumbram-se
sucessões de pensamentos que influenciaram, em maior ou menor grau, tanto teóricos quanto
escritores contemporâneos. Diante desse cenário, quais são os valores vigentes no presente
que indicam a literariedade de um texto?
Os vários estudos sobre linguagem desenvolvidos nas primeiras décadas do século XX
pelos formalistas suscitaram uma atenção maior ao próprio texto enquanto objeto de análise.
Nesta nova concepção, passa a ser fundamental o estudo do próprio texto, visto como obra
41

fechada em si mesma, concluída, e esse estudo é o que definiria o caráter literário de uma
obra. Jakobson, a partir daí, trabalha com as funções da linguagem e determina a poeticidade
de um texto pelo predomínio neste da função poética da linguagem. Havia um esforço para
evitar análises impressionistas, baseadas em julgamentos subjetivos ou em elementos
extratextuais, como ideologia subjacente à obra, dados biográficos, entre outros.
A partir da consideração do fenômeno literário para além da relação entre produto e
produtor, chegando então ao receptor, os estudos de Tynianov, sucedidos por Bakhtin e seus
colegas de Círculo34 – e, posteriormente, por expoentes da teoria da recepção35 – inovam o
sistema de estabelecimento do literário. O texto literário não pode ser visto sem se levar em
conta, além do processo lingüístico empreendido, as suas condições de recepção. Ou seja, o
literário depende também das expectativas e do repertório do receptor para ser entendido
como tal. Essas questões, que demandam conhecimento de alguns conceitos bakhtinianos,
serão melhor trabalhadas posteriormente. Basta, aqui, atentar para a mudança de perspectiva
na determinação do caráter literário de uma obra. A partir dessa nova visão, as questões
relacionadas à análise do discurso (dialogismo, polifonia, intertextualidade, entre outras) têm
sido cada vez mais utilizadas no estudo de enunciados reconhecidos como literários, uma vez
que eles se definem pelas mesmas noções dos discursos em geral.
É importante ressaltar que a consideração da recepção, das expectativas do leitor;
enfim, de uma dimensão social do texto literário não dispensa o estudo de sua matéria
lingüística. Acredita-se que a elaboração da linguagem com vistas a um efeito estético
continua a ser uma dimensão fundamental no texto literário, objeto, portanto, de observação
apurada. Lançar luz sobre elementos sociais na investigação literária não exclui – ao
contrário, complementa – a análise dos recursos expressivos advindos de um uso específico
da linguagem, que a afasta da referencialidade.

2.2. Tristes trópicos: literário ou não?


Isso posto, mas intencionalmente sem fechar questão a respeito do status de literário
de um texto – visto que esta é uma outra discussão –, volta-se ao caso de Tristes trópicos.

34
Bakhtin produziu grande parte de suas reflexões junto aos colegas soviéticos Volochinov e Medvedev.
Costuma-se nomeá-los como “Círculo Bakhtin / Volochinov / Medvedev”. Para mais informações a esse
respeito, cf. “O Círculo Bakhtin / Volochinov / Medvedev” (SOUZA, 1999).
35
Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser são alguns dos autores que trabalham com a teoria da recepção.
42

Trata-se de uma obra identificada como relato de viagem, escrita por um antropólogo
francês acerca de suas experiências entre os indígenas brasileiros. Nesse caso, não seria lícito
chamá-la de memórias? Trata-se de um gênero aceito, reconhecido como literário. No entanto,
isso não resolveria a dúvida, visto que há muito material em Tristes trópicos que escapa à
forma memorialista e, apesar disso, encontra-se indissociável da memória. Também poderiam
ser investigados outros gêneros reconhecidos literariamente, como a autobiografia, a crônica e
mesmo a narrativa de viagens. Embora esse estudo dos gêneros seja pertinente – e seja
também um dos objetivos deste trabalho – não é ele que resolve o problema do valor literário
da obra.
Parece evidente, ainda que não se possa resolver este impasse, que o texto de Lévi-
Strauss é permeado de passagens de caráter literário inegável, nas quais se vê uma elaboração
especial da linguagem a serviço de um efeito específico. É o que se constata, por exemplo, no
seguinte trecho, referente às motivações de se escrever o relato:

En roulant mes souvenirs dans son flux, l´oubli a fait plus que les user et les
ensevelir. [...] Les arêtes s´amenuisent, des pans entiers s´effondrent; les temps et les
lieux se heurtent, se juxtaposent ou s’inversent, comme les sédiments disloqués par
les tremblements d´une écorce vieillie. Tel détail, infime et ancien, jaillit comme un
pic; tandis que des couches entières de mon passé s´affaissent sans laisser de trace.
Des événement sans rapport apparent, provenant de périodes et des régions
hétéroclites, glissent les uns sur les autres et soudain s’immobilisent en un semblant
de castel dont un architecte plus sage que mon histoire eût médité les plans (pp. 43-
4).36

Independentemente da patente de literatura, o trecho mostra uma relação entre dois campos
semânticos (memória e geologia) que cria um resultado inesperado e expressivo. No último
período transcrito, além do jogo de metáforas (castel – relato de viagem; architecte – história
pessoal / escritor) criado para reiterar o desconforto do autor, expresso no primeiro capítulo e

36
“Rolando minhas recordações em seu fluxo, o esquecimento fez mais do que gastá-las e enterrá-las [...]. As
arestas vão se arredondando, pedaços inteiros desabam; os tempos e lugares se chocam, se justapõem ou se
invertem, como os sedimentos deslocados pelos tremores de uma crosta envelhecida. Determinado pormenor,
ínfimo e antigo, prorrompe como um pico, enquanto camadas inteiras de meu passado afundam sem deixar
rastro. Episódios sem relação aparente, oriundos de períodos e de regiões heterogêneas, deslizam uns por cima
dos outros e, de repente, imobilizam-se num semblante de castelo sobre cujas plantas um arquiteto mais sensato
do que minha história teria meditado” (p. 40).
43

causado pela tarefa de escrever um relato de viagem, percebe-se um certo ritmo


“atravancado” da frase, que, depois de alguns obstáculos transpostos, irrompe num ritmo
quase ininterrupto, que lhe confere fluidez. Mesmo na tradução para o português, o ritmo
amarrado, provocado pelas subordinações e intercalações, dá lugar, ao final do trecho, à
fluência de um período construído em ordem direta. Fica evidente, na estruturação frasal, a
mesma dinâmica das movimentações das camadas geológicas às quais o autor faz alusão.
Trata-se, sem dúvida, de um trabalho de elaboração lingüística próprio à idéia contemporânea
de texto literário.
Tal como nesse exemplo, há na obra outras passagens de igual teor literário, o que lhe
confere, no conjunto, um efeito estético independentemente de outros propósitos presentes em
sua composição. Essa verificação basta, por enquanto, aos objetivos deste trabalho. A
discussão, exposta acima, acerca da literariedade de um texto, mais do que classificá-lo,
permite esclarecer o movimento analítico que se pretende fazer. A observação de aspectos
literários em procedimento, verificados no texto como trabalho de elaboração correspondente
a uma idéia contemporânea de literário, deve algo às sugestões dos estudos originados da
estética da recepção. Sem adentrar pelas diferentes correntes teóricas que tratam da
literariedade de um texto, pode-se afirmar hoje que:

...em vez de a análise sociológica dos gêneros ter de se contrapor a uma teoria
imanentista do poético ou de ajustar-se a ela, pode-se beneficiar da reflexão que, em
vez de partir da linguagem em busca da identidade do literário, enfatiza a idéia de
situação na qual um certo discurso funciona, i.é., é reconhecido, como literário
(LIMA, 1983, p. 266).

Nesse sentido, mais do que discutir se Tristes trópicos é uma obra literária ou não, é possível
perceber que ela, tanto pelos seus recursos expressivos quanto pelo contexto e pelo modo
como nele é lida, funciona como literatura. Essa consideração é importante no momento de
estabelecer os caminhos investigativos para a obra; dessa forma os estudos lingüísticos que
tomam por base os textos literários também podem ser aplicados ao estudo do livro de Lévi-
Strauss e dos relatos de viagem.

2.3. Investigação teórica


44

O levantamento de alguns aspectos relevantes do objeto de análise mostrou a


necessidade de adotar um suporte teórico que investigue questões ligadas tanto à estrutura
interna da obra (recursos de linguagem, de composição, de estilo) quanto a elementos
contextuais (interação autor-leitor, interação obra-gênero, recepção, expectativa).
Negligenciar um dos lados, pelo que foi visto, implica a redução de dimensões importantes da
obra. Por isso, considera-se um arcabouço fecundo os estudos empreendidos por Bakhtin, pela
abrangência de temas de que ele tratou a partir do princípio do dialogismo, princípio motriz
dos fenômenos observados em funcionamento, entre outros enunciados, em Tristes trópicos.
Para criar condições de aplicação do suporte bakhtiniano, é relevante fazer um balanço do
panorama conceitual em que foi formulado, bem como aprofundar a discussão de seus
preceitos.
Grande parte da obra de Bakhtin só veio a conhecimento geral décadas depois de
produzida. Vários fatores contribuíram para essa espécie de ocaso. Destacam-se problemas
políticos por que passou no regime soviético, o problema da autoria das obras – muitas das
quais foram assinadas pelos seus parceiros de estudo Volochinov e Medvedev – e a
publicação tardia – por vezes póstuma – de trabalhos importantes, como o que escreveu sobre
Rabelais e a cultura popular medieval, que veio a público 25 anos depois de concluída. Tudo
isso corroborou para um reconhecimento tardio – em certa medida pelo esforço de estudantes
que encontraram seu livro sobre Dostoiévski em arquivos do Instituto Gorki nos anos 60 e
criaram condições para republicá-lo, junto a outras obras37.

2.3.1. Linhas do pensamento lingüístico


Bakhtin elaborou seus conceitos a partir da interlocução com linhas de pensamento
vigentes. Muitos de seus principais conceitos são formulados com base nas considerações que
faz aos formalistas e à lingüística tradicional. Suas críticas dirigem-se a Humboldt e sua visão
acessória da comunicação no processo lingüístico, à distinção entre língua e fala e aos papéis
do ouvinte e do falante nas representações da comunicação de Saussure, aos formalistas e sua
análise do texto baseada estritamente nas estruturas lingüísticas. Para entender melhor o
alcance dos conceitos de Bakhtin, faz-se necessário passar por algumas dessas correntes de
trabalho com a linguagem por ele criticadas.
37
Para mais informações sobre as atividades e publicações de Bakhtin, ver o capítulo “Biographie” de Mikhail
Bakhtine: le principe dialogique, de Tzvetan Todorov (referência completa na bibliografia).
45

Em seus escritos de 1952-1953 sobre gêneros do discurso, publicados postumamente


no volume Estética da criação verbal, Bakhtin faz um levantamento dos problemas
conceituais presentes nas teorias lingüísticas então predominantes. Esse procedimento mostra-
se fundamental para a posterior exposição de suas próprias idéias, colocadas como alternativa
às deficiências evidenciadas. O autor inicia sua crítica pela Lingüística do século XIX, que
apregoa a formação do pensamento ou a expressão do mundo individual como função
primordial da língua. Os representantes dessa Lingüística entendem a comunicação como
função acessória da linguagem; antes de tudo, ela seria expressão dos pensamentos, um
instrumento para o sujeito exprimir-se. O problema dessa acepção é que, ao negar ou
relativizar a importância da comunicação, ela deixa de valorizar, nesse processo, o intercurso
entre ouvinte e falante, concentrando as atenções somente no último. Desse modo, usa-se
como pressuposto uma situação que não corresponde à realidade do uso da língua, que é a de
falante e ouvinte interagindo e trocando seus papéis.
Por esse mesmo motivo, Bakhtin considera a teoria lingüística de Saussure deficiente.
Suas representações do processo de comunicação consideram os interlocutores em lugares
fixos, como “o ouvinte” e “o falante”. Essa atribuição de lugares sugere atitudes sempre ativas
ou sempre passivas aos seus ocupantes, o que não corresponde à realidade dinâmica da
comunicação. Nela, o ouvinte, enquanto recebe o discurso do falante, decodifica-o, concorda
ou discorda dele, incorpora-o, prepara-se para respondê-lo; enfim, assume uma atitude
responsiva diante do falante – até efetivamente trocar com ele de lugar38. Por esse motivo,
Bakhtin considera os esquemas como o de Saussure representativos de apenas um momento
da comunicação real, o que tampouco é possível de isolar, de se realizar fora do todo
comunicativo.
Os problemas levantados sobre considerações de Saussure e dos esquemas de
comunicação em geral se originam do mesmo equívoco primeiro: a idéia de comunicação
como função acessória da linguagem. Um segundo equívoco levantado por Bakhtin, visível
nessa e em outras teorias, é considerar a oração como unidade lingüística de comunicação.

38
É interessante vislumbrar, na crítica de Bakhtin a esse pensamento, os fundamentos de sua própria acepção
dialógica de linguagem: “todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é
o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do
sistema da língua que usa, mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o
seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os
pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de
outros enunciados” (BAKHTIN, 2003, p.272, grifo nosso).
46

Esse equívoco deriva da confusão estabelecida pelo uso vago e ambíguo do termo “fala” pela
Lingüística tradicional, o que gera outra confusão, entre o que é unidade de língua (fonema,
sílaba, palavra, oração) e unidade do discurso. Assim, a oração seria a unidade da língua, e
não da comunicação discursiva. Basta, para tanto, perceber que numa situação discursiva, os
falantes trocam enunciados – mesmo que eventualmente eles coincidam com uma oração – e
não simplesmente orações, insuficientes, por si só, para gerar no outro uma atitude responsiva.
O enfoque na oração como unidade lingüística estimulou, no século XIX e ao longo do
século XX, a sistematização de todo um pensamento voltado para os elementos da oração, de
uma “gramática da frase”39, em expressão de Chabrol (1977, p. 11). Os usos da língua, o
contexto dos falantes; enfim, os elementos próprios da enunciação, tão caros a Bakhtin, eram
negligenciados. Inclusive Saussure opta por não fazer desses elementos o objeto de sua
doutrina, já que, segundo ele, o produto da enunciação (“fala” para Saussure, “enunciado”
para Bakhtin) é individual e infinitamente variável: “seria ilusório reunir, sob o mesmo ponto
de vista, a língua e a fala. O conjunto global da linguagem é incognoscível, já que não é
homogêneo, ao passo que a diferenciação e a subordinação propostas [da linguagem à língua]
esclarecem tudo” (SAUSSURE, 1975, p. 28). Bakhtin, por sua vez, considera que, mesmo
sendo ilimitado, o enunciado não pode ser dissociado da língua: “a língua é inseparável desse
fluxo [da comunicação verbal] e avança justamente com ele; ela dura e perdura sob a forma
de um processo evolutivo contínuo” (BAKHTIN, 1986, pp. 107-8). Para o teórico soviético, o
enunciado deve ser o ponto de partida para os estudos lingüísticos, uma vez que o considera a
unidade da comunicação discursiva, o elemento de troca dos participantes na comunicação
verbal. A diferenciação entre língua e fala, que estrutura o pensamento de Saussure, levou
Bakhtin a classificar o trabalho do autor suíço como representante de uma das duas correntes
do pensamento lingüístico-filosófico, que seria contrário à sua teoria do enunciado. Saussure
seria representante do “objetivismo abstrato”, alvo de críticas ao longo do trabalho de Bakhtin
– em especial no seu Marxismo e filosofia da linguagem. A outra corrente do pensamento
lingüístico-filosófico seria o subjetivismo idealista, também criticado na obra em questão.

39
A respeito da distinção entre oração e frase, comumente mencionadas como sinônimos nos trabalhos sobre
linguagem ou nos comentadores de teorias lingüísticas, Bakhtin ressalta nas notas do capítulo sobre os gêneros
do discurso: “A ‘frase’ como elemento lingüístico de ordem diferente da oração foi fundamentada nos trabalhos
do lingüista russo S. O. Kartzevski, participante do Círculo Lingüístico de Praga. À diferença da oração, a frase
‘não tem estrutura gramatical própria’, mas tem a sua estrutura fônica que consiste em sua entonação [...]”
(BAKHTIN, 2003, p. 449). Feita a observação sobre a particularidade de cada uma, os termos serão utilizados de
forma indiferenciada neste trabalho, de acordo com as fontes utilizadas.
47

O objetivismo abstrato
Conhecer as críticas formuladas ao objetivismo abstrato possibilita entender melhor,
posteriormente, as bases da teoria do enunciado de Bakhtin. Segundo ele, essa corrente é
representada por Saussure, mas também abarca os formalistas russos, que relegam aos
elementos históricos e sociais um papel secundário no estudo lingüístico, regido
prioritariamente pelas estruturas lingüísticas do enunciado.
Sabe-se que, desde o advento dos formalistas, não se trabalha mais um texto apenas
como pretexto para discussão de questões sociais, como se via, por exemplo, em abordagens
mais subjetivas de obras literárias. Há que se considerar que os estudos de Saussure sobre o
mecanismo da língua lançaram nova luz sobre questões fundamentais da linguagem.
Estabeleceu-se um certo consenso em torno da consideração da língua como um sistema;
assim, o olhar sobre ela tornou-se menos impressionista, ela passou a ser vista como objeto
concreto, tangível. A partir daí pôde-se contar com os trabalhos de vários estudiosos, como os
dos russos e tchecos que se reuniram sob o Círculo Lingüístico de Praga, nos anos 20 e 30 do
século XX, desenvolvendo vários estudos, principalmente na área da poesia. Segundo
Modesto Carone, na introdução aos trabalhos do Círculo, “esta [a poesia] continuava sendo,
em larga medida, uma vaporosa questão de sensibilidade, a que não deviam ter acesso os
instrumentos da razão, para que não se destruísse sua aura nem, porventura, o preconceito de
classe que adere a uma concepção aristocrática de arte” (CARONE, 1978, p. 12). Nesse
sentido, a sistematização de um método que servisse à análise da poeticidade de um texto em
função do signo e do significado protegia-o em certa medida de usos e reduções ideológicas.
Vale destacar nesse grupo os trabalhos sobre poesia e estética de Jan Mukarovsky, sobre as
funções da linguagem de Roman Jakobson e sobre gênero de Tynianov.
No entanto, se os estudos dos formalistas foram fundamentais para a valorização do
texto como estrutura em si, “em termos históricos e metodológicos, no entanto, o corolário
desta atenção minuciosa aos mecanismos internos da linguagem poética foi um isolacionismo
estético que marcou boa parte da atividade teórica dos formalistas” (Ibid.). Bakhtin salienta
que o objetivismo dos formalistas leva-os a reduzir a obra a seus elementos lingüísticos,
desconsiderando as intenções – os aspectos semânticos, os elementos extraverbais,
sociológicos e históricos – que também a compõem. A raiz do problema do objetivismo
48

abstrato é sua tese da língua enquanto norma, que orienta toda a atividade analítica para uma
separação entre o sistema da língua e sua história, entre os atos de fala e o contexto histórico
em que são realizados. O produto desse sistema seriam enunciados neutros, nos quais somente
seria visível o reflexo da língua. Trata-se, para Bakhtin, de uma abstração, uma vez que
considera a enunciação um processo eminentemente dialógico, feito da interação e do
intercâmbio entre os falantes e entre os enunciados.
A natureza do enunciado concreto bakhtiniano ainda será mais bem demonstrada. Por
ora, cabe lembrar que toda a crítica que se fez ao objetivismo abstrato, representado pela
Lingüística tradicional e pelos formalistas, abriu espaço para um estudo da obra literária – e
de qualquer tipo de texto, uma vez que são produzidos pelo mesmo processo dialógico –
enquanto produto de uma enunciação. A poeticidade de um texto não depende mais (ou pelo
menos não somente) do predomínio nele da função poética da linguagem; por esses novos
pressupostos, não só o produto e o produtor interessam, mas também o receptor e o conjunto
de produtos anteriores que influenciam no acabamento geral do texto. Por isso, o contexto
extratextual passa a ser uma dimensão importante para o estudo de qualquer enunciado.

O subjetivismo idealista
Cabe agora proceder a crítica à outra face do pensamento lingüístico-filosófico, que
Bakhtin considera igualmente contrária ao seu pensamento concreto: o subjetivismo idealista.
Sob esta classificação encontra-se a Estilística tradicional, representada sobretudo pela escola
do alemão Karl Vossler e seus seguidores.
Vossler considera a língua uma atividade criadora constante, um processo criativo que
se elabora a partir de atos de fala individuais. Nesse aspecto, ela se aproxima, segundo essa
corrente, da própria criação artística e, por isso, a disciplina fundamental da Lingüística seria
a Estilística. Os méritos desse pensamento residem na valorização que faz do processo de
enunciação; diferentemente do pensamento abstrato, que vê a língua como sistema estável e
imutável, o pensamento idealista vê o enunciado como elemento indissociável desse sistema
normativo, responsável pela sua função criativa. Outro “acerto” desse pensamento, segundo
Bakhtin, diz respeito à indissociação do conteúdo ideológico de sua forma lingüística,
contrária ao que queriam os formalistas. Uma vez que toda utilização da língua está
relacionada a um contexto, a ideologia que subjaz a ele também está presente no enunciado.
49

No entanto, apesar de a escola vossleriana valorizar o enunciado, ela o vê como


expressão interior do locutor. Os atos de fala que tornariam a língua um espaço de criação
são, segundo o idealismo, individuais; por isso as instâncias psíquicas do sujeito falante são
valorizadas nesse pensamento. Por trás dessa abordagem individualista do enunciado está a
idéia de linguagem que Bakhtin tanto rechaça: como expressão do mundo interior do falante.
Nessa acepção, relega-se a função comunicativa da linguagem ao segundo plano; a língua
serviria para o falante poder organizar seus sentimentos e reflexões, portanto o enunciado
seria o produto desse uso individual da língua. Bakhtin rejeita esse pensamento porque ele se
apóia, tal como o formalismo, na idéia de um enunciado monológico, o que, segundo o
teórico soviético, é uma abstração sem lugar na realidade da língua.
Se na exposição das críticas bakhtinianas ao objetivismo abstrato ressaltou-se, por
oposição, a importância da enunciação no processo lingüístico, as críticas ao subjetivismo
idealista salientaram outro ponto importante do pensamento de Bakhtin: o dialogismo. Assim,
as críticas às correntes lingüísticas, mais do que invalidar o esforço de seus fundadores,
servem para saber onde os choques com o pensamento bakhtiniano seriam mais fortes e quais
seriam, dentre o universo de conceitos trabalhados, os pontos nevrálgicos de sua teoria. São
esses dois princípios que, unidos, articulam todos os conceitos importantes no pensamento de
Bakhtin: o enunciado dialógico. Desse fundamento central será iniciada a abordagem de sua
obra.

2.3.2. Bakhtin: conceitos fundamentais

O homem é um animal verbal, portanto social40


O princípio de todo o pensamento de Bakhtin acerca da linguagem resume-se, ou
deriva, da noção de dialogismo. Ele considera que “as relações dialógicas – fenômeno bem
mais amplo do que as relações entre as réplicas do diálogo expresso composicionalmente –
são um fenômeno quase universal, que penetra toda a linguagem humana e todas as relações
e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem sentido e importância”
(BAKHTIN, 1997, p. 42, grifo nosso). Vislumbra-se, na frase e por toda a obra de Bakhtin, e
preocupação com o indivíduo na sociedade, com sua interação social. Para ele, nada no

40
TODOROV, 1981, p. 54.
50

processo da linguagem se opera no nível individual. O diálogo, nessa abordagem, significa


mais do que a troca entre dois falantes; ele está presente em todas as esferas da elaboração
verbal. Esse pressuposto perpassa vários conceitos importantes, como os de polifonia,
enunciação, carnavalização e, em especial, para este trabalho, de gêneros do discurso. Para
compreender a dimensão dialógica de seu pensamento sobre gêneros do discurso – a base a
ser utilizada para o tratamento de Tristes trópicos – é preciso, antes, percorrer alguns
conceitos fundamentais.

2.3.2.1.O enunciado concreto


A concepção de linguagem de Bakhtin diferencia-se da de seus contemporâneos pela
importância que dá à interação verbal. Em suas obras, reiteram-se a função comunicativa da
linguagem e o caráter dinâmico da língua: nesse sentido, ganham relevância especial a troca
entre os falantes e o contexto dessa troca. É nesse sentido que o conceito de enunciado torna-
se uma peça-chave para tantos outros.
A idéia de enunciação de Bakhtin, por conta dessas determinantes, distancia-se do
enunciado visto pela Lingüística. Esta vê o processo enunciativo como a transmissão de uma
elaboração individual da língua, feita por determinado falante, para o ouvinte, que o assimila
passivamente, enquanto Bakhtin considera todo o processo como uma troca entre falantes que
intercambiam seu papel e elaboram juntos o enunciado. Partindo, portanto, de uma visão
dinâmica da comunicação, o teórico soviético elabora, junto a companheiros de seu Círculo,
em artigo de 192641, uma das primeiras formulações a respeito da teoria do enunciado.
Determina, nela, que o enunciado é composto de uma parte verbal, que corresponde aos
elementos lingüísticos, e uma parte extraverbal, correspondente à situação, ao contexto. Nessa
formulação, as duas partes são indissociáveis, ou seja, o contexto não é apenas uma espécie de
“pano de fundo”, lugar onde o enunciado ocorre; o contexto de enunciação é determinante do
enunciado.
Até então negligenciado, o contexto extraverbal passa a ser discutido. Bakhtin
debruça-se sobre ele e determina o que seriam seus componentes: primeiro, ele é composto de
um horizonte espacial comum aos falantes; segundo, do conhecimento e da compreensão
41
O artigo em questão, “O discurso na vida e o discurso na poesia”, foi assinado por Volochinov. No entanto,
sua autoria não é certa. Há grande discussão a respeito da autoria de grande parte da obra de Bakhtin. Especula-
se que muitas de suas obras foram assinadas pelos seus companheiros Volochinov e Medvedev. A esse respeito,
cf. “Os textos disputados” (SOUZA, 1999).
51

também comuns da situação; e, por fim, dos mesmos valores, compartilhados pelos falantes.
Isto é, a parte extraverbal do enunciado é composta por elementos espaciais, semânticos e
axiológicos, sempre comuns aos falantes em interação. É interessante perceber que esses
elementos valem tanto para uma situação extraverbal composta por falantes reais quanto para
uma situação de falantes “virtuais”, ou seja, uma situação de diálogo interior, ou de diálogo
com outros enunciados. Essas possibilidades serão abordadas posteriormente, mas desde o
momento é importante lidar com a concepção de contexto a partir de uma ampliação das
idéias de “falante” e “diálogo”.

Enunciado concreto X enunciado monológico


A forma como Bakhtin determina os elementos da parte extraverbal, sempre comuns
aos falantes, ressalta outra vez o caráter social do enunciado. Por essa razão, refere-se a ele
como “enunciado concreto”, objeto vivo de uma interação verbal, em oposição ao enunciado
monológico da Lingüística convencional, baseado em situações imaginadas, abstratas, de
comunicação. Mesmo Vossler e seus discípulos, que lidavam com o enunciado como
realidade concreta da vida da linguagem, distanciam-se do “enunciado concreto” de Bakhtin,
uma vez que viam essa realidade concreta na esfera individual e valorizavam a enunciação,
mas como expressão do indivíduo. O resultado dessas divergências aparece na distinção entre
frase e enunciado, necessária para entender o foco de estudo dos diferentes teóricos em
questão.
A Língüística tradicional tem por unidade a oração. Como foi visto, Saussure abstém-
se de estudar o texto, ou o enunciado, segundo ele, por sua variação infinita e, portanto, sua
natureza inclassificável. A oração, então, permanece como objeto de estudo de uma
Lingüística da língua, que, por sua vez, é considerada um sistema imutável. Para Bakhtin, a
oração é um enunciado monológico, sem relação com uma situação concreta de comunicação,
uma vez que falantes não trocam orações, mas sim unidades maiores de sentido, os
enunciados – definidos pela alternância de sujeitos do discurso. A oração, longe, dessa
maneira, da realidade da linguagem, seria uma abstração formulada pela Lingüística com fins
científicos, assim como os morfemas e fonemas.
Há situações em que a oração pode até coincidir com o enunciado, mas isso não os
torna similares. Segundo Bakhtin, “os limites da oração enquanto unidade da língua nunca são
52

determinados pela alternância de sujeitos do discurso. Essa alternância, [quando] emoldura a


oração de ambos os lados, converte-a em um enunciado pleno. Essa oração assume novas
qualidades e é percebida de modo inteiramente diverso de como é percebida a oração
emoldurada por outras orações no contexto de um enunciado deste ou daquele falante”
(BAKHTIN, 2003, p. 277). Nessa situação, a oração, antes componente do enunciado,
coincide com ele. Não se pode perder de vista, no entanto, sua natureza gramatical, pois
“quando esquecemos esse pormenor na análise de uma oração, deturpamos a sua natureza (e
ao mesmo tempo também a natureza do enunciado, gramaticalizando-o)” (Ibid., p. 278).
Gramaticalizar o enunciado seria desconsiderar sua parte extraverbal, vê-lo simplesmente
como combinação de elementos lingüísticos – como oração. Atentar para a distinção entre
oração e enunciado contribui, portanto, para definir o enunciado concreto como o objeto de
uma Lingüística diferente e complementar à tradicional, a qual Bakhtin chama de
metalingüística42 e à qual dedica vários estudos. Não cabe aqui nos estendermos no que
concerne à metalingüística, mas, tendo como base o enunciado concreto, essa nova
“disciplina” teria uma natureza social.
Como objeto social, dessa forma, o enunciado nunca é produto de uma manifestação
individual, mesmo quando se trata do produto de um único indivíduo. Nesse caso, os
elementos constitutivos do contexto extraverbal – o horizonte espacial, o tema e os valores
comuns aos falantes – referem-se à interação com um falante não presente fisicamente, mas
não menos determinante, posto que a ausência do outro na situação concreta de comunicação
não torna os elementos contextuais menos compartilhados, isto é, o diálogo não deixa de
acontecer. Segundo Volochinov,
os enunciados, longamente desenvolvidos e mesmo que provenientes de um
interlocutor único – por exemplo: o discurso de um orador, o curso de um professor,
o monólogo de um ator, as reflexões em voz alta de um homem solitário – são
monológicos em sua forma exterior, mas, em sua estrutura semântica e estilística,
eles são essencialmente dialógicos [...]. Assim, todo enunciado (discurso,
conferência, etc.) é concebido em função de um ouvinte, ou seja, de sua
compreensão e de sua resposta – não resposta imediata, evidentemente [...], mas
também em função de sua concordância, de sua discordância, ou, para dizer de

42
Todorov, em sua obra sobre Bakhtin, adota o termo translingüística para essa “nova disciplina” a fim de,
explica, evitar confusão com o sentido usual de metalingüística. Ele afirma que a translingüística aproxima-se à
área da lingüística que hoje é conhecida por pragmática. (1981, p. 42).
53

outra forma, da percepção avaliadora do ouvinte (VOLOCHINOV, 1930, p.


292; tradução e grifos nossos).

No caso dos enunciados escritos, o falante (autor) não deixa de estabelecer uma
comunicação verbal com outros falantes (leitores); a diferença é que o falante-ouvinte não
responde diretamente, mas sua atitude responsiva é pressuposta pelo autor e entra na
composição do enunciado.

Outra dimensão do enunciado concreto


Esse funcionamento sempre social do enunciado distancia-o de uma relação direta
com a língua e aproxima-o do discurso. As formas gramaticais (frase, oração, palavra) das
quais o enunciado se distingue seriam, portanto, suas subdivisões, incapazes – tomadas
isoladamente – de reter dele algum sentido completo. Essas formas fazem parte do sistema da
língua, por isso podem ser reproduzidas; o sentido que elas trazem é o sentido do dicionário,
não trazem nenhum significado particular, pois são tomadas isoladamente, sem contexto. Por
sua vez, o enunciado é único, particular; ele não pode ser reproduzido (pode ser citado, o que
é diferente), pois é resultado de uma significação (dada pela matéria lingüística), junto a um
contexto de enunciação único. Fora de seu contexto, ele não é o mesmo; reduz-se à
significação do seu conjunto de frases e palavras.
Se o enunciado concreto é um produto social – e, ao mesmo tempo, único,
irreproduzível –, de que maneira ele participa de uma interação mais completa, mantendo sua
unicidade? Em estudos posteriores aos artigos em que trata da teoria do enunciado,
principalmente em sua obra sobre Dostoiévski, Bakhtin amplia o sentido de diálogo presente
na idéia de enunciação: todo enunciado, além de se constituir pelo diálogo entre os falantes
envolvidos na enunciação, também dialoga com outros enunciados anteriores. É esse o cerne
do conceito de intertextualidade, ou dialogismo, talvez o grande legado de Bakhtin.
Com essa ampliação, amplia-se também o sentido do enunciado concreto. Reitera-se a
inexistência de neutralidade na enunciação. De fato, se todo enunciado se faz pelas relações
que trava com enunciados anteriores, não há possibilidade de existir enunciado totalmente
novo. Ele é único, individual, mas não é “novo”, não é inabitado por outras vozes: “alguma
coisa sempre é criada a partir de algo dado (a linguagem, o fenômeno observado da realidade,
54

um sentimento vivenciado, o próprio sujeito falante, o acabado em sua visão de mundo, etc.)”
(BAKHTIN, 2003, p. 326). Não se deve confundir, porém, essa ausência de ineditismo com
uma mera reprodução de algo já dado: “O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma
expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia
antes dele, absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem relação com o valor [...]”
(Ibid., p. 326).
Convém reiterar que o objeto de estudo aqui é o enunciado concreto, o produto de uma
criação verbal, na esfera do discurso. Esse enunciado, agora redimensionado, pode ser
estudado de forma também mais abrangente. Junta-se ao estudo da matéria lingüística e da
interação entre os interlocutores o estudo das relações entre os enunciados.
É a partir dessa última instância, das relações entre os enunciados, adicionada aos
aspectos contextuais do enunciado concreto, que o estudo dos gêneros foi empreendido por
Bakhtin. Esse estudo tanto mais se justifica quanto se percebe que essas formas genéricas de
enunciado são tão familiares para os falantes quanto a própria língua: “A língua materna – sua
composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir
de dicionários e gramáticas mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós
mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. Nós
assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações e justamente com essas
formas” (Ibid., pp. 282-3).

2.3.2.2. Gêneros do discurso

Os estudos sobre os gêneros do discurso podem ser vistos, dentro da obra de Bakhtin,
como a continuidade natural de sua teoria do enunciado. Observando o conjunto geral da obra
e as menções à questão dos gêneros anteriores aos textos do autor sobre o assunto, pode-se
inclusive sustentar a idéia de que a consciência da relevância dos gêneros na comunicação
verbal é que propulsionou os estudos do enunciado concreto. Em outras palavras, a teoria do
enunciado concreto foi um degrau, na obra de Bakhtin, para se chegar ao estudo dos gêneros
55

do discurso43. Independentemente de se saber ao certo qual foi o conceito gerador e o conceito


gerado, é importante explorar as relações existentes entre eles.
Bakhtin escreve o ensaio “Os gêneros do discurso” nos anos de 1952 e 1953,
publicado postumamente em 1979 no volume Estética da criação verbal, produto de suas
últimas reflexões sobre linguagem. Motivado, segundo Todorov, em prefácio à edição
francesa do volume em questão, por uma compreensão histórica e cultural da literatura,
Bakhtin se abstém de refletir sobre a especificidade literária – pressuposto fundamental e
curiosamente pouco investigado em concepções tradicionais de gêneros. Para ele, é mais
importante estudar o texto literário enquanto discurso que, em vista de particularidades
comuns a uma série de outros discursos, de determinada configuração histórica, social e
cultural, pertence a certo gênero. Provavelmente, este vai ser um gênero de feições literárias,
mas não são tais feições que o determinam. Antes, é necessário estudar o texto como
enunciado em suas relações dialógicas dentro – e fora – de seu gênero. Essa visão de literatura
distancia-se da visão formalista porque dá relevo maior a aspectos sociológicos, históricos e
culturais do que a uma essência ou função que determina a literariedade de um texto.

2.3.2.2.1. Gêneros do discurso e enunciado


Tanto quanto enunciado, o gênero do discurso é um conceito-chave para a
metalingüística de Bakhtin. Os dois conceitos estão intimamente ligados, de tal maneira que o
capítulo sobre gêneros do discurso, de 1953, é dedicado em grande parte às especificidades do
enunciado, à sua constituição como verdadeira unidade lingüística, às suas diferenças em
relação à oração. No entanto, longe de meras digressões, essas explicações são fundamentais
para o entendimento da noção bakhtiniana de gênero.
Como já se sabe, segundo essa teoria, os enunciados são definidos pelo seu conteúdo
temático, pelo seu estilo de uso da linguagem e pela sua construção composicional. Esses
elementos são combinados pelo falante / autor do enunciado, em determinadas condições
extraverbais, o que o torna um produto único, irreproduzível. No entanto, o enunciado está
longe de ser um produto individual, e aí entra a noção de gênero. Os gêneros do discurso,
segundo Bakhtin, são “tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais

43
Sabe-se, a esse respeito, que Bakhtin, além de trabalhar com a idéia de gênero desde a década de 20, tinha um
grande projeto para os gêneros do discurso, do qual o capítulo de mesmo nome, publicado postumamente em
Estética da criação verbal, é apenas uma pequena parte. (Cf. TODOROV, 1981, p. 124).
56

relativamente estáveis” (Ibid., p. 266). Ou seja, um conjunto de enunciados mais ou menos


semelhantes no tema, no estilo e na composição, que se inserem num mesmo campo de
utilização da língua, pertence a um mesmo gênero; esses enunciados estão intimamente
ligados entre si, ou seja, mesmo sendo únicos, não são totalmente individuais.
Com essas determinantes, é evidente que os gêneros são formas, bastante
heterogêneas, ainda que relativamente estáveis. Para lidar com essa heterogeneidade, Bakhtin
sugere sua divisão em gêneros primários (simples) e secundários (complexos) bem como o
estudo das relações existentes entre eles (de aproximação, assimilação, transformação, etc.).
Assim, ele deixa de ver os gêneros dentro do sistema literário, como se costumava fazer desde
a Antigüidade, no qual a concepção de gênero se transforma em classificação, em divisões
para obras acabadas. Ao contrário, Bakhtin os vê como tipos de enunciados, dentro da
situação discursiva, que, por isso mesmo, influem, determinam o acabamento da obra-
enunciado. Nesse sentido, os “gêneros literários” são vistos, antes, como um dos vários tipos
de gênero secundário, definidos, entre outros, pelo campo literário de utilização da língua.
A grande vantagem dessa concepção discursiva do gênero é que, estudando-o como
conjunto de enunciados, levam-se em conta suas determinantes sociais, ideológicas e
históricas. Se o enunciado se estabelece, além da combinação de material lingüístico, pelo
diálogo imaginário que trava com o interlocutor e com outros enunciados – e esse diálogo
considera os elementos contextuais relativos aos interlocutores e enunciados – o gênero é o
campo onde essas trocas acontecem. É por isso que Bakhtin permanece atento ao
funcionamento do enunciado para entender as implicações do gênero.
Uma das peculiaridades mais importantes do enunciado, segundo Bakhtin, é a sua
conclusibilidade. Sabemos quando um enunciado acaba por conta desse aspecto, de certa
forma sentido pelos falantes. Esse “fim” seria determinado pela possibilidade de resposta, isto
é, pela noção de que a alternância dos sujeitos falantes se faz necessária. Ora, se o enunciado
sempre dialoga com outros enunciados, essa característica – capacidade de suscitar uma
atitude responsiva no outro – é fundamental para o seu funcionamento na situação discursiva.
Esse aspecto, inclusive, o distancia da oração. Esta, fora do contexto da enunciação, não
suscita uma resposta, por mais que sua formulação seja a de uma ordem, por exemplo.
Para o enunciado ter essa possibilidade de resposta, ele precisa constituir-se de um
objeto e seu sentido delimitado (ou seja, de um tema não infinito, mas delimitado), de uma
57

intenção discursiva do falante e de determinado gênero. Bakhtin considera o intuito


discursivo do falante / autor do enunciado fundamental: é essa intenção que define o tema
delimitado do enunciado, seu tamanho, sua construção composicional e seu gênero. Trata-se
de uma vontade, de um intuito percebido pelos envolvidos na enunciação, desde o início do
enunciado; tal percepção certamente orienta esses participantes na compreensão e na sua
atitude responsiva diante do enunciado. Talvez o traço desse intuito discursivo que o torna
mais sensível aos interlocutores seja justamente a sua escolha do gênero a ser utilizado.
Bakhtin considera os gêneros do discurso um grande repertório de que todos dispõem
em sua comunicação verbal, tanto na atitude enunciativa ativa quanto na responsiva. Seja para
formular, seja para compreender enunciados, os falantes fazem uso desse conhecimento que
têm dos gêneros, mesmo que de maneira inconsciente. Nesse sentido Bakhtin aproxima a
apreensão dos gêneros à apreensão constante e, em grande escala, inconsciente, que todo
falante faz da língua materna: “nós aprendemos a moldar o nosso discurso em forma de
gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos um determinado volume [...],
uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a
sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala”
(Ibid., p. 283).
É esse uso mais ou menos inconsciente, mas contínuo, que todo falante faz do gênero
que o torna um conceito tão importante para Bakhtin. Mesmo diante de uma diversidade
quase infinita de gêneros, o falante tem mecanismos para identificá-los e utilizá-los no
momento da enunciação. Afinal, essa variedade é determinada pela variedade de situações
comunicativas, de contextos, de intenções, de relações pessoais e sociais, enfim pela
variedade de elementos extraverbais a que todo falante está submetido, com a qual convive
diariamente. É evidente que na situação de comunicação pode haver falta de entendimento
entre os interlocutores decorrente da pouca familiarização de um deles com determinado
gênero, seja este primário ou secundário. Mas essa dificuldade tem a ver com experiências
pessoais mais ou menos diversificadas de gêneros e não com uma impossibilidade de todo e
qualquer falante de lidar com a heterogeneidade de gêneros.

2.3.2.2.2. Gêneros do discurso e dialogismo


58

Como foi visto, a diversidade de gêneros do discurso não contesta o caráter único do
enunciado. Seu componente contextual, combinado de forma criativa com o componente
lingüístico, garante-lhe individualidade. No entanto, por mais que sua construção decorra de
escolhas pessoais e situacionais dos interlocutores envolvidos, não se pode dizer que um
enunciado é inteiramente livre, muito menos inteiramente original. O fato de sempre ser
ligado a um gênero do discurso coloca o enunciado em diálogo não só com os falantes
envolvidos na sua elaboração mas com outros enunciados desse gênero em comum.
Dessa forma, sua constituição é sempre permeada de elementos de outros enunciados.
Sua inserção – segundo Bakhtin, inevitável – dentro de um determinado gênero o coloca
inexoravelmente em contato com outros enunciados. Não se trata de um contato por mera
semelhança; a relação entre os enunciados é muito mais intensa: “os enunciados não são
indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se
refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada
enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera de comunicação discursiva” (Ibid., pp. 296-7). Sendo os gêneros do
discurso, segundo Bakhtin, formas interiorizadas pelos falantes, fora das quais não há
comunicação verbal, os reflexos entre os enunciados sempre se dão dentro dessas formas mais
ou menos estáveis, que também definem, junto a outros elementos, o seu acabamento.
Bakhtin afirma, inclusive, que a escolha lexicográfica de um enunciado não se dá no sistema
de língua, mas nos outros enunciados do mesmo gênero, onde certas palavras, combinadas de
determinada maneira, já se consagraram como expressões típicas, plenas de sentido dentro
daquele tipo de enunciado. O diálogo dentro de determinado gênero, portanto, proporciona
uma relação orgânica entre os enunciados; mais do que semelhança, o gênero determina-lhes
o acabamento e o seu lugar dentro desse grande e contínuo diálogo entre enunciados.
A idéia de dialogismo de Bakhtin reitera uma visão de enunciado, dentro da cadeia de
comunicação, como resposta a outros enunciados. “Ela [a resposta] os rejeita, confirma,
completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta”
(Ibid., p. 297). Bakhtin, então, exemplifica algumas formas possíveis de atitude responsiva em
relação a outros enunciados:

Os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do


enunciado; podem ser introduzidas somente palavras isoladas ou orações que, nesse
59

caso, figurem como representantes de enunciados plenos, e além disso enunciados


plenos e palavras isoladas podem conservar a sua expressão alheia mas não podem
ser reacentuados (em termos de ironia, de indignação, reverência, etc); os
enunciados dos outros podem ser recontados com um variado grau de reassimilação;
podemos simplesmente nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido,
podemos pressupô-los em silêncio, a atitude responsiva pode refletir-se somente na
expressão do próprio discurso – na seleção de recursos lingüísticos e entonações,
determinada não pelo objeto do próprio discurso mas pelo enunciado do outro sobre
o mesmo objeto (Ibid. p. 297).

Essas formas de diálogo entre enunciados acontecem geralmente dentro de um mesmo


gênero; no entanto, parece plausível pensar também em diálogos entre enunciados de gêneros
diferentes, principalmente em casos de gêneros muito próximos ou que mantêm entre si
alguns pontos de convergência. Aliás, a assimilação, o “empréstimo” de termos, a
reelaboração entre enunciados de gêneros diferentes é o que os transforma, adequando-os a
novas demandas comunicativas ou, no caso de gêneros de cunho artístico-literário,
possibilitando novas experimentações. Essas relações entre os gêneros vão torná-los sempre
mutáveis, adaptáveis e flexíveis – tais como a própria língua, segundo Bakhtin.

2.3.2.2.3. Gêneros do discurso e Tristes trópicos


A extrema diversidade dos gêneros do discurso exige dos falantes uma habilidade
específica: tanto melhor ele participa da enunciação quanto tiver um bom repertório e a
vivência de gêneros diversos. Assim como acontece com a língua materna, Bakhtin considera
a situação discursiva a principal fonte de assimilação dos variados gêneros do discurso,
assimilação que se dá de forma mais ou menos inconsciente. Essa idéia de repertório e
habilidade com gêneros liga-se à noção de diálogos entre enunciados de gêneros diferentes: a
elaboração de enunciados envolve, assim, tanto o conhecimento dos tipos de enunciados, ou
seja, dos gêneros, quanto a relação entre esses enunciados, sejam de mesmo gênero ou não.
Pode-se pensar, dessa forma, na viabilidade de se estudar Tristes trópicos sob essa ótica.
É possível considerar Tristes trópicos como uma obra-enunciado do gênero relato de
viagem? Ou seria ela um enunciado em que elementos do relato de viagem já foram
transformados e misturados a outros, criando um novo gênero, no qual apenas restam ecos do
relato? Sem uma investigação mais aprofundada do enunciado em questão, em suas relações
60

dialógicas e seus elementos internos, é impossível determinar-lhe claramente o gênero. Uma


primeira leitura é capaz de levantar hipóteses, suspeitas, como a que orienta este trabalho,
vinculando Tristes trópicos ao relato de viagem, em diálogo com outros gêneros do discurso,
assimilados, confrontados de maneiras variadas, combinados no todo de sentido da obra. É
necessário, no entanto, comprovar a hipótese com um olhar atento tanto para a obra de Lévi-
Strauss quanto para o gênero em questão; se o enunciado, segundo Bakhtin, é constituído pelo
material lingüístico e pela parte extraverbal, é preciso examinar as duas partes. O gênero da
obra, portanto, deve ser examinado pelo confronto dessas duas partes: pelas marcas que
determinado gênero deixa na elaboração do material verbal – nas escolhas lexicais, sintáticas,
na construção, no estilo – e pelas marcas de diálogos, entre interlocutores e entre enunciados,
percebidas no enunciado acabado. Para tanto, será investigado nos capítulos seguintes um
aspecto contextual fundamental da obra em questão – o gênero relato de viagem – e os
recursos internos dessa obra, numa análise de seus efeitos lingüísticos.

Capítulo 3: Tristes trópicos e o gênero relato de viagem

Diante do suporte teórico investigado, verificou-se que Tristes trópicos é uma obra-
enunciado de múltiplas vozes, que estabelece relação de dialogismo na esfera de seu
enunciado (com o “ouvinte virtual”) e com demais enunciados, de mesmo e de outros
gêneros. Também foi visto, no capítulo anterior, que as duas partes – verbal e extraverbal – de
um enunciado concreto são indissociáveis. Assim, o contexto é elevado a um patamar
privilegiado no estudo da obra em questão, saindo do tradicional papel que costumeiramente
recebe, de pano de fundo, de ilustração para o material principal, o texto. Aqui, ao contrário, o
contexto determina aspectos importantes da construção do enunciado. Nesse sentido, o
presente capítulo, por uma questão de método, consagra-se ao estudo da parte extraverbal,
referente ao gênero, de Tristes trópicos, de maneira a destacar certos elementos necessários ao
entendimento do todo da obra, tarefa reservada para o capítulo final.
Na esfera dialógica tal como estabelecida por Bakhtin, perspectiva adotada neste
trabalho, tanto o receptor da obra-enunciado quanto o conjunto de obras anteriores a ela são
fontes importantes de investigação. Por isso, é necessário, além do breve comentário feito, no
primeiro capítulo, sobre a situação de produção e de recepção de Tristes trópicos, investigar
61

com mais acuidade o gênero do discurso que se considera, neste trabalho, o eixo central da
obra – o relato de viagem, o qual, certamente, como já foi dito, dialoga com outros gêneros.

O relato de viagem é um gênero tão antigo quanto fluido, difícil de delimitar. Sua
intersecção, por vezes freqüente, com outros gêneros torna mais complexa a tarefa de definir-
lhe contornos exclusivos. Até mesmo o termo para designá-lo varia, conforme o autor ou a
situação: além de “relato de viagem”, são comuns os termos “literatura de viagens”, “crônica
de viagens” e “literatura de informação”. No entanto, mais do que delimitar nome e contornos
únicos, é importante observar os traços recorrentes desse gênero, bem como sua evolução
histórica.

3.1. Trajetória do gênero


O corpus quase ilimitado dos relatos de viagem constitui-se desde a Antigüidade
Clássica, com obras como Anabase, de Xenofonte, e História, de Heródoto. A partir daí, o
gênero desenvolveu-se paralelamente aos momentos históricos e às suas peculiaridades. É da
busca por novas rotas às Índias que surge o relato de Marco Polo; é das Grandes Navegações
que se originam obras como Primeira viagem ao redor do mundo por Magalhães (1519-
1522), de Antonio Pigafetta, ou Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry. Até o século
XVIII, trata-se de um gênero, portanto, ligado aos acontecimentos que se sucediam: às
descobertas, às missões, às expedições com vistas à colonização. Esses acontecimentos,
atrelados a uma viagem, sempre eram relatados pelos viajante-exploradores, essa espécie de
profissão que reunia múltiplas habilidades, desde as relacionadas diretamente à viagem em si
até as concernentes ao relato, que compreendiam a escrita, o desenho, conhecimentos de
botânica, de zoologia etc. Pode-se dizer que esses viajantes que transcreviam as informações
do lugar visitado aos seus compatriotas exerciam uma função jornalística, mais do que
científica: relatavam-se as várias características do lugar, de seu povo, suas potencialidades,
sua geografia. Via de regra, desenhava-se um panorama do ambiente relatado. Naturalmente,
assim como o trabalho do jornalista, o relato do viajante, ainda que dado a traçar um
panorama, não era isento da visão de uma época e da visão de mundo particular do seu autor.
Assim, além dessa feição jornalística generalizada, observam-se nos relatos tendências
62

bastante marcadas referentes ao momento histórico, à situação de mundo em que foram


concebidos.
Em fins da Idade Média, o mundo começa a expandir-se para além do Velho
Continente, em direção aos espaços ainda desconhecidos do Oriente44. Naturalmente, relatos
de viagem começam a surgir de maneira mais sistemática, a fim de dar conta dessa expansão.
Desse movimento, os nomes mais conhecidos são o de Marco Polo – comerciante genovês
que, durante 17 anos, em fins do século XIII, serviu como mensageiro ao reino mongol – e o
de sir John de Mandeville – cavaleiro inglês que, em meados do século XIV, relata sua
viagem imaginária aos domínios do Oriente. Tanto no Milione45 de Polo quanto nas Viagens
de Mandeville, há uma mistura de testemunho e lenda46. As informações locais são
intercaladas por descrições das maravilhas do Oriente, permeadas fortemente pelo imaginário
europeu de então, com seus seres fabulosos e criaturas míticas, desenhadas entre o animalesco
e o monstruoso. Sobre os habitantes da ilha de Angamã, que visita em sua viagem à Índia,
Polo afirma: “temos a apontar uma estranha visão desta gente. Nesta ilha, os homens têm
cabeça e dentes de cão, e sua cara parece-se com a dos mastins” (POLO, 1996, p. 202). Sobre
animais encontrados na ilha de Java, na mesma viagem, diz o autor: “Têm elefantes selvagens
e rinocerontes tão grandes como os elefantes, com pêlo e patas como os búfalos; e um chifre
no meio da testa, grosso e negro. Não é, no entanto, com este chifre que ferem, mas sim com a
língua; têm nela um aguilhão muito comprido, de forma que o dano que causam o fazem com
a língua. A cabeça é semelhante à de um porco selvagem, trazem-na sempre virada para a
terra” (Ibid., p. 199). Percebe-se mesmo um paralelo entre as criaturas que supostamente se
observavam no Oriente e a galeria, já conhecida dos leitores, de seres míticos europeus, estes
emprestando bizarrias e prodígios àquelas.

44
Leia-se, como Oriente, à época, as regiões da Turquia, da Índia e os vastos territórios do reino dos mongóis,
que venceram os muçulmanos no século XIII, reabrindo aos europeus o acesso à Ásia e ao Extremo Oriente,
interditado havia mil anos. Para mais detalhes sobre o período, cf. a “Introdução” de Stéphane Yerasimos ao
Livro das Maravilhas, de Marco Polo (presente na edição utilizada nesta dissertação, cf. bibliografia) e
“Problématique, limites et définitions: pourquoi l’Europe?” (CHAUNU, 1969).
45
Abreviação utilizada para O livro do milhão de coisas maravilhosas, um dos títulos que a obra de Marco Polo
recebeu – originalmente, em francês antigo: Le devisement du monde.
46
No caso da viagem imaginária de Mandeville, o “testemunho” é construído a partir de informações coletadas
em relatos já existentes sobre o Oriente e dispostas em sua obra com grande acuidade. De toda forma, nela
também há essa mistura do testemunho (ainda que não vivido por ele) e do lendário.
63

Esse apelo ao maravilhoso, no entanto, não comprometia a verossimilhança do


narrado47. Pelo contrário, ele ia ao encontro do interesse do leitor de então pelo extraordinário,
pelo além do ordinário de sua vida, ou do ordinário dos relatos e descrições de lugares. A
categoria moderna de verdade, que questiona o domínio do fantástico e do mitológico, não
serve para balizar o valor desses relatos para o leitor medieval. Para este, o que era passível de
comprometer o relato de viagem não era a presença do maravilhoso – porque essa categoria já
existia com o imaginário europeu bíblico-histórico – mas o maravilhoso em moldes não-
europeus. Daí a interpretação do novo por moldes já conhecidos. Além do mais, o diferente
era justificado nos relatos como prova do poder de Deus, não era visto necessariamente – ou
principalmente – como prova concreta de uma outra forma cultural, de uma outra lógica,
diversa, mas análoga à européia. A questão mais importante ao autor do relato era confirmar a
veracidade do que narrava e, para tanto, lançava mão de suas virtudes morais, ou de sua
temência a Deus. Polo, por exemplo, argumenta em favor de si mesmo: “pelas circunstâncias
de sua vida, podemos compreender que este nobre cidadão é um espírito justo e bom, já que
durante toda a sua existência foi protegido dos Senhores e Príncipes” (Ibid., p. 34). Não o
preocupavam tanto as descrições que faziam de seres e coisas absurdas – porque o “absurdo”
ainda não era uma categoria exclusiva da imaginação – nem as diferenças culturais. Embora o
“diferente” ainda passasse longe da consciência do relativismo, era aceito e apreciado dentro
do relato, o que permitia a expansão do gênero. É curioso notar que essa aceitação do
“absurdo” se estende por tempos oficialmente considerados “modernos”, mesmo que
entremeada a uma nova mentalidade, própria, por exemplo, ao cenário expansionista de fins
do século XV. Confirmam essa permanência do fabuloso as descrições de Colombo, em seu
diário da descoberta da América. Sobre um diálogo com os índios, sugere que estes lhe deram
notícia justamente desses seres maravilhosos: “Entendeu também que longe dali havia
homens de um olho só e outros com cara de cachorro48” (4/11/1492). Na verdade, Colombo,
que não compreendia a língua dos indígenas, entendeu o que queria entender, de acordo com

47
Para tratar da questão da verossimilhança do narrado e dos relatos de viagem em geral no contexto medieval,
será tomado por base o capítulo 2 de Viajantes do maravilhoso, de Guillermo Giucci (ref. completa na
bibliografia desta dissertação).
48
COLOMBO, 1984, p. 58.
64

seu universo medieval e com a leitura que fez do relato de Marco Polo, de onde parece retirar
a exata referência exposta49.
Outra conseqüência da exposição do “diferente” ao mundo europeu, feita pelo relato
de viagem, foi, segundo Giucci, o nascimento de uma autocrítica européia: eu me vejo pelo
espelho que é o outro. Ainda que seja precipitado interpretar essa autocrítica como um
verdadeiro exercício de alteridade, é inegável que o europeu começa a ver no Oriente uma
sociedade não-cristã, mas organizada, rica, forte; enfim, um verdadeiro império, e, com isso,
começa a questionar seus próprios moldes – e mais, seu modo de agir diante de uma
sociedade, agora, comparável à sua. Nesse contexto, o relato de viagem deixa de ser
simplesmente inventário do natural, do espaço físico, para alcançar o espaço da cultura,
embrenhando-se nas relações sociais e espirituais do novo espaço. Mais do que isso, ele
também serve aos interesses de acesso às riquezas asiáticas – nada mais natural na visão de
um comerciante, Polo, que se ocupa de informar exaustivamente sobre as riquezas e relações
humanas e de elocubrar sobre possíveis relações de troca a serem estabelecidas com o império
do Oriente.
Nos séculos seguintes, o interesse pelas trocas comerciais dá lugar à conquista e
colonização das terras recém-descobertas das Índias Ocidentais. Não se estava mais diante de
um “império”, cheio de riquezas a serem conquistadas por hábeis comerciantes, mas sim de
um Novo Mundo, povoado por selvagens, do qual bastava tomar posse para iniciar a
exploração. A ruptura com a visão de mundo vigente até então não é pequena: afinal, o
mundo, literalmente, havia crescido. É o fim da Idade Média, o Renascimento traz à
humanidade novos valores e estabelece a transição para a Idade Moderna, marcada por
radicais rupturas sociais, políticas e culturais com o pensamento medieval.
Conseqüentemente, o relato de viagem é reconfigurado, de acordo com a nova
realidade que se impõe. Nas grandes expedições marítimas às Américas, passa a integrar a
frota o narrador, ou informante, designado para fazer um relato pormenorizado de tudo o que
se observava nas novas terras. Expedições portuguesas, espanholas, francesas, holandesas,
contavam com seus informantes, que, na volta, levavam ao seu rei notícias úteis para a
implantação de um sistema colonizador nas Índias Ocidentais, certamente o modo pelo qual
49
A respeito desse modo de proceder, diz Todorov: “Colombo não tem nada de um empirista moderno: o
argumento decisivo é o argumento de autoridade, não o de experiência. Ele sabe de antemão o que vai encontrar;
a experiência concreta está aí para ilustrar uma verdade que se possui, não para ser investigada, de acordo com
regras pré-estabelecidas, em vista de uma procura da verdade” (A conquista da América, p. 18).
65

se consolidava o direito de posse e exploração de terras eventualmente tão ricas quanto as do


Oriente – já reconquistado pelos muçulmanos e, portanto, quase inacessível aos europeus.
Pero Vaz de Caminha, por exemplo, foi responsável por essa incumbência em sua esquadra.
Também eram responsáveis por relatos de viagem integrantes das missões religiosas, que
viajavam rumo ao Novo Mundo para converter, cristianizar selvagens – o que não era
incompatível com a empresa colonizadora. Foi o papel desempenhado por André Thévet e
Jean de Léry, por exemplo, respectivamente representantes das Igrejas Católica e Protestante,
ambas interessadas em novos fiéis para além do conturbado cenário de guerras religiosas na
França do século XVI. Enfim, não eram poucas as funções desse “jornalista” enviado às
novas terras, que devia lançar mão de várias habilidades para fazer seu inventário das terras e
gentes observadas.
Esses relatos (entre eles, tratados, relações, inventários) do início da Era Colonial são
predominantemente descritivos, pelo próprio objetivo a que prestam. Tudo, desde paisagem,
animais, plantas, habitantes, costumes, era absolutamente novo para o europeu. A tarefa de
descrever essas novidades devia ser, portanto, cumprida de maneira minuciosa. Não são raras
as recorrências de comparações com elementos conhecidos para tentar descrever, por
exemplo, a aparência de certo animal ou o gosto de certa fruta. A respeito da banana (pacó),
relata Léry que “a fruta é boa; quando chega à maturidade tira-se-lhe a casca como figo fresco
e sendo gomosa como este parece que se saboreia um figo [...]; é verdade que são mais doces
e mais saborosos do que os melhores figos de Marselha” (1980, p. 174, grifo nosso). Todos
os esforços eram empregados para a compreensão de uma realidade não conhecida,
obedecendo à intenção colonial. A descrição é, portanto, exaustiva, mas isso não impede que
estes cronistas exponham, em várias passagens, juízos de valor individuais e europeus a
respeito do que vêem. Isso acontece principalmente na descrição dos costumes dos índios,
como na antológica ilação de Gandavo a respeito da inexistência das letras “f”, “l” e “r” na
língua dos indígenas: “A língua deste gentio toda pela Costa he huma: carece de tres letras –
scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé,
nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente”50. Sobre a prática
de muitos caciques de oferecer as próprias filhas aos visitantes, diz Thévet: “O mais incrível é
que entre essa gente o pai prostitui a filha aos estrangeiros sem a menor cerimônia e por

50
GANDAVO, Pero de Magalhães de, apud RONCARI, 1995, p. 51.
66

qualquer ninharia”51. É evidente que, para o missionário católico do século XVI, não poderia
haver outra forma de relação sexual que a regulada pela moral cristã (sexo dentro do
casamento, para fins de procriação). Logo, o que é uma prática de sentido cultural definido e,
portanto, vista com naturalidade pelos índios, é algo que choca duplamente o viajante.
Primeiro, porque é interpretada, segundo os códigos culturais europeus, como prostituição;
segundo, porque essa prática, não percebida em seu real sentido dentro da cultura indígena,
não causa constrangimento entre eles (os índios não se importam em prostituir suas filhas).
Anos mais tarde, Montaigne, em seu célebre capítulo sobre os canibais, tenta ver com mais
relativismo os hábitos dos “selvagens”, elevando-os a exemplares de uma forma de vida mais
simples e verdadeira, em contraponto à cobiça e ao que chama de “barbarismo” europeu.
Também sobre os costumes conjugais dos índios, diz ele que “os homens têm várias
mulheres, em tanto maior número quanto mais famosos e valentes. [...] põem elas todo o
cuidado em ter o maior número possível de companheiras, pois esse número comprova a
coragem do esposo” (1987, p. 265). No entanto, para glorificar os índios, ele não escapa dos
juízos de valor europeus, redimindo-os das acusações de bárbaros através das virtudes morais
européias, como se vê na seqüência: “Entre nós falariam de milagre. Não se trata disso e sim
da virtude matrimonial elevada ao máximo. Não nos mostra a Bíblia, Sara e as mulheres de
Jacob, Léa e Raquel, pondo suas serventes à disposição de seus maridos?” (Ibid. p. 265). Para
ele, os hábitos indígenas são validados não porque sejam a expressão de uma cultura própria,
mas sim porque eles correspondem, com mais sucesso, ao que o autor vê como ideal humano,
isto é, o ideal formulado pela ótica eurocêntrica. O contato com essa nova dimensão
ameríndia, portanto, põe em cheque algumas questões da ordem européia, mas ainda não gera
um exercício de alteridade consciente, legítimo.
Considerando-se os relatos de viagem da época, é importante lembrar que a questão da
veracidade do narrado ainda se colocava no século XVI. Como atestar fatos e realidades
pertencentes ao um mundo totalmente desconhecido dos leitores, que não tinham quaisquer
meios de averiguar o que liam? O fato de muitos narradores pertencerem a missões oficiais
era muitas vezes expresso no relato, como meio de garantir-lhes alguma autoridade. A difusão
da imprensa também exerceu um papel importante na popularização desses relatos e,
principalmente, no cotejo entre eles. Jean de Léry e André de Thévet, por exemplo, estiveram

51
THÉVET, André de apud LÉRY, 1980, p. 224 (grifo nosso).
67

no Brasil por ocasião da expedição da França Antártida, entre 1555 e 1557, e publicaram seus
relatos anos depois. É intenso o diálogo – e a troca de acusações – entre as duas obras; alguns
fatos são legitimados pela recorrência nos relatos, outros são postos em dúvida, diante de
versões diferentes observadas em ambos, embora a grande divergência entre eles seja mesmo
a questão religiosa, tão delicada em tempos de guerras entre católicos e calvinistas.
No século seguinte, assistiu-se a uma ampliação do número de viajantes e,
conseqüentemente, de relatos. Afinal, a empresa colonial fortalecia-se e precisava, então, de
notícias sobre as novas colônias para os ramos de atividade que começavam a integrar-se ao
projeto: mercadores, militares, missionários, além do reino, precisavam informar-se sobre as
particularidades das Américas. O projeto de expansão das relações com o Oriente fora
retomado, a partir de então com novo paradigma, delineado pela experiência em curso na
América. Viajantes como Tavernier, Chardin e Fernão Mendes Pinto relatam suas incursões
por terras orientais da Turquia, da Pérsia, da Índia, com vistas à expansão ultramarina e sua
cobertura religiosa, não sem uma destacável dimensão crítica já mais desenvolvida. Também
começa a desenvolver-se, nesses relatos, a dimensão exótica como chave que, posteriormente,
vai acompanhar o gênero do relato de viagem. Ela parece dar vazão ao desejo do leitor pelo
desconhecido, ligado, à época, ao desconhecido dos confins do Oriente, mas, ao longo da
história, ligado aos confins de todo o mundo. De qualquer maneira, a palavra impressa e,
mais, a sua divulgação a vários territórios emprestaram ao relato de viagem, segundo Costa
Lima52, uma dimensão de verdade nunca antes experimentada. A ordem discursiva européia
estava definitivamente transformando-se; os contornos do ficcional estavam-se desenhando,
em proximidade à escala do imaginário, enquanto o real aproximava-se de um discurso
científico embrionário. Entre os dois pólos ainda se localizava o relato de viagem, procurando
o seu lugar, apesar de tê-lo bem definido entre os leitores.
Ao longo do século XVIII, a divulgação em escala crescente das informações sobre os
recursos naturais e os habitantes – que não eram mais vistos simplesmente como “selvagens”,
ainda que persistisse o sentimento eurocêntrico em relação a eles – dessas regiões antes quase
inacessíveis traz sérias transformações culturais que são sentidas e assimiladas pelos autores e
leitores da época. Américas e Oriente minimamente desvendados, o imaginário do

52
Cf. cap. 5, “O transtorno da viagem” in: Pensando nos trópicos, 1991. A questão da mudança da ordem
discursiva européia, exposta no capítulo mencionado, será mais bem abordada nesta dissertação em fase
posterior (cf., neste capítulo, 3.2.3. “O problema da ficção”).
68

maravilhoso e o sonho de grandes riquezas vai perdendo espaço. Passa a ganhar lugar o
desejo pelo exótico. O relato de viagem, gênero em que o exótico é logo acolhido, foi
ganhando prestígio entre um público crescente e entre os filósofos, que se ocupavam das
grandes coleções, compostas, muitas vezes, de relatos os mais variados e raros, com
informações e curiosidades sobre povos diversos, bem ao gosto enciclopédico de então. A
grande obra de Prévost, L’Histoire des voyages, por exemplo, conta com surpreendentes
dezesseis volumes e serviu de fonte de conhecimento e inspiração para filósofos e escritores,
bem como à popularização do gênero ao grande público. Na mesma corrente, Rousseau
utiliza-se das informações das viagens de Chardin à Pérsia, enquanto Diderot torna célebre o
relato Voyage autour du monde ao exaltá-lo em seu Suplément au voyage de Bougainville, de
1772.
O relato de viagem passa a ser consumido pelo público leitor com tamanho interesse
que – após transformações de forma e de conteúdo – passa a ser o motivador das viagens, e
não mais uma mera conseqüência delas. Chega-se à época das viagens com fins de
aprendizagem, de ampliação dos conhecimentos, muito freqüentes entre os escritores no
século XIX53. Elas também passam a ser empreendidas em função da mera curiosidade, do
gosto pela aventura, na mesma tecla em que continua a desenvolver-se o gosto pelo exótico.
São essas as fontes de um dos escritores mais profícuos desse período: Chateaubriand. Seu
Itinéraire de Paris à Jérusalem e seu Mémoires d’outre-tombe foram intensamente lidos e
serviram de inspiração a vários outros escritores, abrindo caminho também a um dilema do
gênero: ao aproximar-se da literatura, da ficção, e servir de matéria-prima a grandes
escritores, o relato de viagem não estaria se transformando em pretexto, em mera fôrma para
outros gêneros literários, como o romance? Poderia a obra feita nesses moldes continuar a ser
chamada de “relato de viagem”? A resposta seria “não”, a considerar as obras de um Júlio
Verne, que escreveu seus célebres livros de aventuras sem ter empreendido efetivamente os
itinerários relatados. No entanto, o resultado dessas obras sobre aventuras e viagens, tendo
sido elaboradas a partir de experiências vividas ou recolhidas em outras obras, parece ser o
mesmo para o leitor, que se sente inserido na viagem junto ao narrador, fictício ou não, da

53
São comuns os relatos em que escritores célebres narram suas viagens a países europeus, principalmente à
Itália, com fins de aprendizagem. É o caso de Viagem a Itália, de Goethe (1818), e de Rome, Naples et Florence,
de Stendhal (1817).
69

obra. Tudo indica que o relato de viagem vai-se transformando em um gênero de fronteira,
influenciando e emprestando recursos de outros gêneros, principalmente literários.
Sem aprofundar, por ora, essa questão específica dos limites do gênero, deixando-a
apenas indicada, o importante é notar como a viagem, a partir do século XIX, adquire novo
sentido, e como o relato de viagem transfigura-se, aproximando-se mais e mais da literatura. É
possível observar essa aproximação em trecho do diário de viagem de Goethe:

O tempo está magnífico, os dias fazem-se mais longos a olhos vistos, os loureiros e
os buxos florescem, e as amendoeiras também. Hoje pela manhã surpreendeu-me
uma visão singular: vi de longe árvores altas, semelhantes a estacas, todas elas
revestidas da mais bela cor violeta. [...] Suas flores de cor violeta, em forma de
borboleta, nascem do próprio caule. As que vi ao longe, feito estacas, haviam sido
podadas no último inverno, e de sua casca nascia aos milhares a flor colorida e bem
desenhada. As margaridas surgem do chão feito formigas, mais raro é ver-se o
açafrão e o adônis, tanto mais graciosos e belos por isso (1999, p. 202).

Dessa aproximação, vem o uso de recursos estruturais e estilísticos próprios à narrativa


ficcional, sem, no entanto, transformar a narrativa de viagem em puro gênero de ficção – pelo
menos em teoria. Isso porque, se por um lado as transformações impostas por um contexto de
recepção cada vez mais ávido pelas aventuras aproximam o relato de viagem da narrativa
ficcional, por outro lado, o gênero permanece estritamente ligado a um fato concreto, real: a
viagem. Por isso, o relato continua mantendo seu compromisso com a descrição, com a
observação dos fatos, mesmo que não corresponda a uma relação absolutamente fiel à
cronologia e aos fatos de uma viagem. A partir do século XIX, inclusive, esse compromisso
aproxima-se gradativamente do saber científico, que, para se desenvolver, precisa dos
serviços desse relato, que recolhe as ocorrências de uma determinada localidade. Sob essas
duas influências consolidam-se as transformações por que passou o relato de viagem, que ora
pende para o romance de aventuras, resultando em verdadeiros livros de aprendizagem54, ora

54
Dentre obras do século XIX que têm essa característica, podemos destacar A volta ao mundo em oitenta dias,
de Júlio Verne. Nela, relata-se uma viagem, em que há narrativas de aventuras, e, ao mesmo tempo, percebe-se
uma intenção de ensinar, como os típicos romances de aprendizagem do século anterior.
70

aproxima-se do discurso científico, de cunho biológico ou etnológico55, em que o elemento


descritivo é essencial.
Essa última vertente do relato de viagem é a que parece predominar no século XX.
Com o desenvolvimento da Antropologia como disciplina, aumenta a demanda pelo estudo
etnográfico das sociedades mais distantes, das quais ainda se tem pouca informação.
Antropólogos, sociólogos, mas também escritores e artistas passam a dedicar-se a esse estudo,
empreendendo longas viagens e permanências em locais distantes, na África, nas Américas e
na Oceania, povoados por esses grupos humanos, ditos primitivos. Nesse projeto, mesmo os
escritores, como André Gide e Henri Michaux, concentram seus esforços e seus relatos na
descoberta do elemento humano, diferentemente do século anterior, em que era mais comum a
viagem em função da obra, dando-lhe suporte e matéria. Outros, como Segalen, Michel Leiris
e Lévi-Strauss, expoentes de outras áreas (Medicina, no caso do primeiro, Ciências Sociais,
no caso dos dois últimos), aderem ao relato de viagem como produto secundário de seu
trabalho, relato em certa medida feito porque necessário. E, no entanto, esse relativo
“desprezo” pelo relato de viagem dá lugar a obras fundamentais dentro do gênero. L’Afrique
fantôme e Tristes tropiques, por exemplo, permanecem como obras oriundas de um trabalho
etnográfico que também chegaram a um público muito maior, apreciador de relatos de viagem
e de literatura.
É certo que continua a persistir o elemento exótico nos relatos – e no desejo dos
leitores. Com o avanço científico e o tecnológico, que permite o registro de imagens, sons e
documentos de qualquer sociedade, por mais longínqua que esteja, proliferam os relatos de
viagem repletos de informações e registros feitos em variados suportes. Por outro lado, o
mercado editorial passa a canalizar a demanda pelo exótico no desenvolvimento do filão das
viagens, em que guias, ensaios fotográficos, relatos e aventuras compõem o mesmo cardápio,
de grande consumo.
Em meio a tamanha exaltação e ao consumo rápido do diferente pelo simples fato de
ser diferente, o gênero relato de viagem alcança sucesso, mas perde o prestígio herdado dos
flertes com a Literatura e a Antropologia. O antídoto da mediocridade parece, então, ter sido
identificado: a alteridade. É preciso mostrar o diferente como parte de uma outra cultura,

55
É o caso da obra de Darwin, o qual, no século XIX, visita vários lugares para desenvolver sua pesquisa sobre a
origem das espécies biológicas. No campo da etnologia, são exemplos de relatos de viagem os trabalhos de
Morgan sobre sua estada entre os Iroquenses e de Tylor, sobre sua pesquisa no México.
71

relativizando os costumes registrados, abandonando qualquer julgamento de valor. Ainda


assim, os relatos preocupados em divulgar o exótico parecem não escapar do julgamento: se
não para condenar as leis e regras de uma sociedade primitiva, como faziam os viajantes mais
antigos, para aceitá-las todas – como se elas precisassem da aceitação dos “civilizados” e
como se houvesse sociedades eminentemente boas, em que os costumes todos obedecessem
ao sentido da justiça. A alteridade, identificada como um valor, um conceito necessário,
continua incompatível com o exotismo, fortemente presente no relato de viagem. Daí o mal-
estar de alguns escritores em classificar suas obras nesse gênero do discurso, como se observa
em autores já mencionados. Não se estender por enquanto sobre seus traços constitutivos,
talvez se possa dizer que este constrangimento causado pelo gênero também se tornou uma
característica do relato de viagem no século XX.

3.2. Contornos do gênero


O panorama esboçado do desenvolvimento do relato de viagem ao longo dos séculos
atesta a sua capacidade de transformação. Diferentemente de alguns gêneros que
desapareceram depois de um período de intensa produção – caso da tragédia, da Antigüidade
Clássica, e da novela de cavalaria, da Idade Média –, o relato de viagem perdura como um
tipo de discurso bastante popular, inserindo-se em, e sofrendo influências do contexto social
de cada época, bem como dos discursos então praticados. Observando a trajetória do relato,
pode-se afirmar, portanto, que ele abarca uma grande variante de possibilidades textuais, que
devem ser levadas em conta na tentativa de descrição das componentes desse tipo de discurso.
Como foi visto, os gêneros do discurso, segundo Bakhtin, são “tipos de enunciados
estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis” (2003, p. 266). Ou seja, são
conjuntos de enunciados com similaridades em relação ao tema, ao estilo e à composição.
Para definir as dimensões de um certo gênero, portanto, é possível deter-se sobre os
enunciados que costumam ser lidos como exemplares do gênero em questão e, num primeiro
momento, tentar levantar a) os temas mais recorrentes dentre esses enunciados, b) os traços
composicionais, relativos à forma, presentes nesse conjunto e c) os recursos expressivos
utilizados para a elaboração desses enunciados, particulares em relação à forma e ao tema.
Num segundo momento, parece importante também verificar as relações de dialogismo,
travadas tanto no interior das obras quanto entre os enunciados do gênero observado, o que
72

invariavelmente revela os elementos extraverbais do enunciado ou do conjunto de enunciados


tratado. De acordo com esse procedimento, com os aspectos levantados pelo panorama
histórico do relato de viagem, bem como pela leitura e pelo cotejo de relatos representativos
em seu contexto, foi possível traçar algumas linhas de contorno do gênero, que seguem
expostas.

3.2.1. Tema
Diferentemente de outros gêneros, cuja maior unidade é a estrutura composicional, o
relato de viagem, desde o nome, evidencia o seu maior elemento unificador. A viagem é o
tema por excelência deste gênero, praticamente obrigatória para sua existência, dado que é ela
que suscita o relato. Enquanto romances, poemas e ensaios definem-se como gênero por
aspectos estruturais, abarcando, em contrapartida, um horizonte muito vasto de temas, o relato
de viagem parece comportar-se de maneira exatamente oposta: a partir de uma variação
pequena em torno do tema da viagem, o gênero possibilita uma certa liberdade formal, que,
inclusive, propicia a sua aproximação de outros gêneros do discurso. Concentrando-se
portanto no tema da viagem, é importante destacar a íntima relação do relato de viagem com a
realidade, especificamente com a História e, mais recentemente, com a Antropologia. Ora, um
gênero que se pauta por questões concretas, reais, via de regra tem seu tema determinado
pelas vicissitudes destas. A necessidade de mapear, de conhecer as novas terras das Índias
Ocidentais, à época das navegações ultramarinas, determinou a paisagem e os habitantes dos
trópicos como chave temática dos relatos de viagem do século XVI. Séculos antes, em tempos
de estabelecimento de um intercâmbio comercial com o Oriente, a necessidade de
decodificação de uma ordem discursiva totalmente diferente povoou os relatos de viagem dos
séculos XIV e XV com seres maravilhosos, capazes de feitos mágicos – verdadeira tradução
da galeria de seres da mitologia greco-romana, modelo que o europeu já conhecia. Este último
caso, particularmente, remonta a uma questão importante da definição de temas do relato de
viagem. Percebe-se que, embora a realidade seja a força motriz do relato, definindo-lhe, entre
outros contornos, o tema mais específico, ela, paradoxalmente, permite e até estimula a
influência da dimensão ficcional nessa definição temática. O problema da ficção no relato de
viagem será posteriormente discutido, mas ele já aponta para a existência de uma outra ordem
na configuração dos elementos constitutivos do gênero.
73

Constatou-se que a proximidade da realidade empresta ao gênero um certo


pragmatismo na definição de temas. Em outras palavras, o gênero em questão tem temas
determinados pela função prática social que exerce. Também comprometido com uma
realidade social, embora flerte com a ficção, o relato de viagem não tira por completo os pés
da realidade, mantendo temas relacionados ao universo da viagem. Isso explica porque,
mesmo considerando suas mais variadas formas, o leque dos temas recorrentes nos relatos de
viagem é mais ou menos limitado: trata-se de travessias, descobertas, novas paisagens e/ou
sociedades, aventuras, aprendizagem, autoconhecimento. Mais recentemente, com a
aproximação entre o relato e as pesquisas etnográficas, aparecem como tema questões
relacionadas à interferência do olhar de quem vê, como a alteridade, o papel do viajante /
pesquisador e o papel do próprio relato de viagem. Essas questões, evidentemente, suscitam a
autocrítica do autor do relato, que produz mais um tema metalingüístico: o exotismo. O relato
usa o exotismo e trata dele, da mesma maneira como também trata do relato de viagem,
atestando, por meio da metalinguagem, suas confluências com as manifestações mais atuais
dos gêneros eminentemente ficcionais. Já pelo exame do contorno mais explícito de um
gênero – sua escolha temática –, chega-se à suposição de que o relato de viagem seja um
gênero dado a influências e empréstimos.

3.2.2. Narração e descrição


Assim como o tema, o traço estrutural mais marcante dos relatos de viagem também é
evidenciado desde a expressão que nomeia este gênero. Diante dele, o leitor, guiado pelo seu
intuito discursivo, espera encontrar um relato, uma relação dos fatos importantes de uma
viagem; enfim, uma narrativa56. No entanto, essa estrutura narrativa conta, em grande parte,
com a descrição, que se torna indispensável nos relatos de viagem, dada a sua função prática
original de relatar aquilo que ainda não é conhecido. Há, no gênero, pode-se dizer, a
combinação de relato e relatório.
Considerando a intenção de informar sobre o novo uma motivação recorrente dos
relatos de viagem, um de seus traços constitutivos é a descrição. Aquilo que não é conhecido
não pode ser apenas mencionado ao longo da narração; é preciso deter-se sobre o novo e
tentar explicá-lo, torná-lo, de alguma forma, inteligível ao leitor. Caso contrário, a leitura não
56
Vale lembrar que uma das expressões também utilizadas para nomear o gênero é narrativa de viagem. O termo
utilizado em francês para o gênero – récit – quer dizer justamente relato, narrativa.
74

se realiza a contento. Essa necessidade é logo sentida pelos primeiros viajantes, em contato
com territórios totalmente novos. A descrição mostra-se indispensável para se transmitir
integralmente as informações das descobertas, distanciando-se em muito da função
ornamental que muitas vezes a descrição assume nas obras de ficção. Na sua função
“jornalística”, o viajante antigo não se furta de descrever tudo o que encontra de novo, ainda
que tenha dificuldades evidentes nessa tarefa. Como descrever, por exemplo, frutas, plantas e
animais desconhecidos dos europeus? E como reportar aos distantes leitores o som dos
instrumentos, da língua nativa? Uma saída encontrada por esses viajantes, em seus relatos, foi
o uso da analogia. São comuns nos relatos mais antigos – e isso aparece em boa medida
também em relatos modernos57 – as aproximações entre o objeto observado e algum similar,
pertencente ao universo do autor do relato. Dessa maneira, a descrição, mais do que transmitir
informações inéditas, parece criar uma certa familiarização em relação ao novo – relação
desejável, aliás, aos propósitos colonialistas das nações como Espanha, Portugal e França do
século XVI.
Embora percebido como necessário, o uso da descrição não é feito, em muitos dos
relatos de viagem, sem causar desconfortos. Muitas vezes, o autor do relato sente dificuldade
de “interromper” a narração para inserir-lhe a descrição, pois esta cortaria o fio narrativo.
Essa dificuldade é que gera, segundo Le Huenen, “transições difíceis e desajeitadas do
gênero: ‘não será fora de propósito dizer algumas coisas sobre...’ ou ainda ‘para retornar à
nossa navegação...’, que sublinham ao mesmo tempo a necessidade de apelar à descrição e a
dificuldade de fazê-la” (1990, p. 19, tradução nossa). O autor atenta, inclusive, para a
tendência, entre os relatos dos séculos XVI e XVII, de se iniciar a obra com a descrição para
livrar-se logo dela e então proceder ao relato propriamente dito, sem “interrupções” (Ibid., p.
19). Trata-se de um mal-estar do autor do relato, que costumava ver a descrição dentro da
narrativa tal como parênteses – e, assim, quanto maior fosse, mais difícil seria a retomada do
fio condutor.

57
Ainda que não seja mais indispensável, vistos os recursos tecnológicos disponíveis para registrar o novo, a
analogia persiste nos relatos modernos, talvez pelo efeito inusitado que provoca. É o que se observa na seguinte
passagem de Tristes trópicos, em que se descreve a floresta de araucárias: “...grande floresta úmida de coníferas,
varando o emaranhado de cipós e de samambaias para erguer no céu formas inversas às de nossos pinheiros: não
cones afilados no cume, mas, ao contrário – vegetal regular que encantaria Baudelaire –, sobrepondo ao redor do
tronco as bandejas hexagonais de seus galhos, e alargando-as até a última que desabrocha numa gigantesca
umbela” (p. 143, ed. bras., grifo nosso).
75

Esse mal-estar só começa a ser superado quando o viajante cria uma consciência mais
sólida do papel de narrador que assume. O viajante, quando se dispõe a expor suas
experiências, não é apenas um viajante, mas, dentro do relato de viagem que elabora, é
também um narrador. Isso implica elaboração textual, adoção de determinados modelos
textuais, escolha de recursos estilísticos. Ainda que não haja um elevado grau de consciência
acerca da escrita, essas escolhas acontecem58. E, a partir delas, não se está mais diante da
realidade que se vê / viu, mas da realidade que se mostra no texto; passa-se da realidade
exterior para a realidade textual, que podem até coincidir, mas são duas instâncias diversas.
Na realidade textual, as relações lógicas são diferentes da realidade do mundo; a duração e a
passagem do tempo, as distâncias e os lugares são mesurados pela lógica interna do texto. É
impossível, ao reproduzir textualmente uma viagem, por exemplo, respeitar a duração de cada
tarefa e os intervalos existentes entre elas, vividos na experiência concreta. Os intervalos entre
uma tarefa e outra costumam ser cortados e a duração de cada uma amolda-se ao tempo da
narrativa. Esse tempo narrativo, junto ao espaço textual, às pessoas retratadas – que se
transformam em personagens –, à sucessão de eventos – que se transforma em enredo –; todos
esses aspectos configuram-se como componentes estruturais de um dado texto. No caso do
relato de viagem, percebeu-se que essas componentes são as mesmas do texto narrativo.
Quando o autor do relato passa a se dar conta de que deve obedecer a uma lógica
diferente da do mundo externo, seu conflito em relação à descrição começa a se dissipar. Ele
percebe que a descrição não vai interromper a sucessão dos acontecimentos simplesmente
porque o tempo que rege essa sucessão não é o exterior. O relato obedece a uma lógica que
permite, e até obriga, uma seqüência temporal que se faz de rupturas, pausas, adiantamentos.
A descrição se encaixa nessa seqüência sem, portanto, causar prejuízo, como se pensava. Pelo
contrário, a descrição interage simbioticamente com a narração dentro do relato, dotando-o de
informações retiradas da experiência da viagem, que, transformada em narrativa, é, em larga
medida, possível de ser vivenciada pelo leitor.
A narrativa é, assim, o cerne, a macroestrutura do relato de viagem, onde agem outras
instâncias, como foi visto com a descrição. Voltando a atenção a esta componente narrativa
do relato, observa-se que ela obedece à mesma natureza lógico-temporal de outros gêneros,
58
Ressalta-se aqui que a maioria dos autores de relatos de viagem exercia ou exerce atividades muito diversas –
tais como mercadores, missionários, soldados, funcionários, cientistas –, a princípio pouco familiarizados com a
elaboração textual. No entanto, alguns desses relatos surpreendem não só pelo objeto relatado, mas também pelo
grau de elaboração lingüística.
76

geralmente ficcionais. O problema da ficção será tratado logo na seqüência, mas cabe adiantar
alguns dos elementos próprios da narração, que também aparecem nos relatos de viagem.
A narrativa de viagem é sempre marcada por um deslocamento no tempo e no espaço.
Esse deslocamento é que determina o começo, o meio e o fim da ação, elementos
fundamentais de uma narrativa. O começo, via de regra, é definido pela partida, pelo início da
viagem, e o fim, pelo retorno ao ponto original, ou, em alguns casos, pelo fim do período de
descobertas, seguido da fixação do viajante no novo ambiente. O espaço é definido em razão
daquilo que se pretende descobrir, explorar: o itinerário é escolhido por uma necessidade
preexistente. Há também relatos em que o itinerário é traçado – ou reformulado – ao longo da
expedição, conforme as possibilidades ou adversidades que se oferecem.
Prioriza-se a ordem cronológica dos eventos; a exposição dos acontecimentos, tal
como eles de fato se sucederam, aproxima o tempo da narrativa do tempo exterior. Essa
aproximação, para o relato de viagem, é extremamente vantajosa, não simplesmente por uma
questão de ordenação lógica. Ao manter a seqüência espaço-temporal o mais próximo
possível da que teve lugar concretamente, ao longo da viagem, o relato dá ao leitor a
possibilidade de reviver a trajetória do autor-viajante, como se o estivesse acompanhando no
momento da ação. Essa sensação, própria dos gêneros ficcionais como forma de garantir a
verossimilhança necessária para a adesão do leitor, no relato de viagem funciona
especialmente como atestação da veracidade do narrado. Esta é uma preocupação que sempre
aparece nos relatos de viagem, ao longo dos séculos. Trata-se, obviamente, de uma questão
menos importante nos dias atuais, em que os meios de comprovação de determinada
experiência estendem-se ao campo científico-tecnológico. De toda maneira, um relato só
sobrevive enquanto tal se contar com o crédito do leitor, para o qual, de maneiras diferentes,
sempre se apela.
Ainda que sejam identificáveis em suas particularidades as instâncias narrativa e
descritiva, no relato de viagem elas obedecem a uma elaboração formal marcada pela
simultaneidade. Assim, não cabe propriamente separar o que é narração do que é descrição,
sob risco de destituir do texto a sua unidade e identidade como relato. As dimensões
temporais e espaciais do relato, portanto, têm o mesmo grau de contigüidade que a forma e o
conteúdo de uma dada obra. Ainda que seja possível estudá-las individualmente, elas são
indissociáveis e devem ser vistas como um único produto.
77

3.2.3. O problema da ficção


A partir do momento em que se identificam componentes narrativas na estrutura dos
relatos de viagem, torna-se impossível ignorar a relação deste gênero com algumas questões
concernentes a textos ficcionais. Ainda que o relato de viagem tenha como pressuposto o
deslocamento, a viagem, sua estrutura narrativa segue em paralelo à estrutura de gêneros em
que a matéria trabalhada é eminentemente fictícia, como o romance, o conto, a novela. Sabe-
se, aliás, que a coleta minuciosa de informações em guias e tratados sobre regiões longínquas
e a argúcia narrativa com que se dá vida a essas informações são capazes de criar testemunhos
absolutamente convincentes sobre uma viagem jamais realizada59. Não é por outro motivo que
se tornou comum nas obras mais antigas a já comentada preocupação imediata do autor em
atestar a veracidade de seu relato.
No entanto, estudiosos que se debruçaram sobre o gênero são categóricos em relação
ao compromisso deste com o real. Gérard Cogez, em sua introdução ao estudo dos escritores-
viajantes do século XX, fala em uma “necessária dimensão autobiográfica de todo relato de
viagem” (2004, p. 23, tradução e grifo nossos). Le Huenen também se mostra enfático sobre a
relação do relato com o mundo concreto. Ele afirma que “o relato só pode surgir na seqüência
de uma ligação com mundo, que é inelutavelmente primeira, incontornável em sua
prioridade”, acrescentando que “seja qual for o tipo de relato considerado [...], ele se dá
sempre como o resumo de uma pesquisa, o resultado de uma descoberta” (Ibid., p. 16,
tradução nossa). Aceitando esse compromisso com o real, coloca-se, então, um dilema: como
trabalhar com a idéia de que o gênero obedeça ao critério do real e do fictício ao mesmo
tempo?
Torna-se proveitoso, neste ponto, reportar às transformações sofridas e, em parte,
determinadas pelo relato de viagem na passagem da era medieval à moderna. Data desta
época a gradativa adoção de uma nova postura em relação ao pensamento e à sua expressão: o
questionamento da validade de um dado discurso, o que Costa Lima nomeia de “transtorno da
ordem discursiva européia” (1991, p. 79)60. Até então, a ordenação do mundo e,
conseqüentemente, do discurso – ainda predominantemente oral, mas iniciando a produção

59
Este é o caso das Viagens, de sir John de Mandeville (1356), já mencionada nesta dissertação.
60
. O raciocínio exposto na seqüência desta citação é baseado no capítulo de onde ela foi retirada (“Pensando nos
trópicos”).
78

escrita – tinha um caráter imanente de verdade, representando a existência e regência absoluta


de Deus. Assim, se Deus era responsável por tudo que se conhecia e se divulgava, não se
considerava a questão do sujeito que engendra o conhecimento, ou que produz o discurso que
se profere, muito menos a sua legitimidade. Bastava a presença corpórea do que reporta o
discurso para que ele fosse assegurado como verdadeiro. Essa lógica imanentista começou a
mudar à medida que o “eu” ganhava relevância no processo de conhecimento e que o saber
inscrito em letra, a imprensa, ocupava o espaço do oral. Nessa nova conjuntura, o simples fato
de o discurso apresentar-se escrito garantia-lhe imediata credibilidade. Por outro lado, a
presença maciça da imprensa colocou em pauta uma questão inédita: como garantir a
veracidade de determinado discurso se sua versão impressa não é mais traço distintivo? Em
outras palavras, a questão embrionária da veracidade de um discurso perdia precocemente seu
único critério de distinção entre o verdadeiro e o forjado: a imprensa, que atendia a ambos. E
mais: além de instaurada a desconfiança do impresso, instaurou-se também a desconfiança da
autoria. Até a Idade Média, a existência de um sujeito que contava a história sobrepunha-se à
questão do autor da história, até então praticamente irrelevante. Com o desaparecimento desse
papel do “contador”, ocupado pela imprensa, a preocupação com o autor do discurso vem à
tona. É preciso averiguar quem é o criador do discurso, sua credibilidade, seu compromisso
com a verdade dos fatos, para poder confiar nele, já que, diante de uma nova ordem, Deus não
é mais chancela de verdade de um dado escrito. Portanto, o homem do fim da Idade Média
via-se diante do desmoronamento de suas certezas e da dificuldade de instauração de novos
paradigmas.
Além da imprensa e da presença do sujeito no processo do conhecimento, a lógica
discursiva dominante contou com outro elemento para entrar definitivamente em crise: a
divulgação dos relatos de viagem do Novo Mundo. Diante de uma visão de mundo regida
pelo poder divino, em que qualquer questionamento era considerado heresia, os relatos que
traziam notícias sobre realidades e modos de organização social totalmente diferentes dos
europeus contribuíram para a ruptura do paradigma de verdade vigente. Dessa forma, também
encaminhavam a lógica discursiva para uma outra esfera que não se pautava pela polaridade
entre “verdade” e “falsidade” – afinal, como esses relatos poderiam garantir veracidade num
contexto mundial em que a comprovação do escrito era praticamente impossível? E como o
leitor poderia ter certeza de que os seres maravilhosos descritos eram falsos, se os novos
79

territórios descobertos na América – e mesmo os já mais descritos caminhos do Oriente –


permaneciam um mistério para o europeu dos séculos XV e XVI?
No espaço entre a verdade e a mentira, decididamente insuficientes como chave de
leitura dos relatos de viagem, ganha corpo a questão do ficcional. Gradativamente, o leitor
passa a assimilar uma outra postura diante de um texto que não consegue desvendar por meios
convencionais. Da mesma maneira, o autor do relato de viagem sente necessidade de outros
procedimentos, além da sua já desgastada atestação de veracidade, para garantir o interesse do
leitor. Assim, leitor e autor começam a caminhar rumo a outros recursos para o incremento do
relato de viagem.
O leitor dos relatos do Novo Mundo, cada vez mais consciente da impossibilidade de
atestar a veracidade do que lê, atém-se àquilo que o relato efetivamente expõe, a dizer, a
narrativa de um deslocamento espaço-temporal. Assim, o leitor atenta à seqüência narrativa, à
sua ordem cronológica, à descrição dos elementos descobertos. Habituando-se a esses
elementos, procura também nos relatos aspectos que passa a perceber como recorrentes: as
aventuras, os perigos ou o inesperado, que pontuam a seqüência narrativa; o exótico, que
caracteriza as descobertas do novo espaço. Enfim, ainda que a viagem narrada fosse aceita
como real, agregavam-se a ela mais e mais elementos conhecidos do leitor de romances e
poemas. O autor do relato se dá conta de que o interesse do leitor se mantém tanto quanto o
relato articula de maneira eficiente recursos próprios ao texto ficcional, o que, de certa forma,
o desobriga da difícil tarefa de comprovar a veracidade, relegada a segundo plano, da viagem
relatada. Afinal, ainda que não seja fictício, o relato de viagem funciona, textualmente
falando, como ficção.
Essa percepção não foi exclusiva dos viajantes que se dispunham a narrar suas
experiências. Autores de gêneros ficcionais também viam a sedução que o caráter ambíguo,
real e ficcional, dos relatos de viagem exercia entre o público leitor. De fato, o gênero
conheceu um prestígio crescente, do século XVI em diante, aproximando-se definitivamente
do campo literário no século XIX, por conta do interesse que os escritores alimentavam pelo
relato. Se o relato de viagem beneficiava-se dos recursos ficcionais que incorporou, parecia
evidente que o romance poderia beneficiar-se, e muito, do caráter de verdade que o tema da
viagem poderia emprestar-lhe. Afinal, o fascínio do relato de viagem não advinha
simplesmente de constituir-se como uma história bem contada – isso sempre houve no terreno
80

da literatura –, mas sim de constituir-se como história bem contada que poderia ser
verdadeira. Se é incontestável o fascínio da ficção, também é muito sedutora, no terreno da
ficção, a hipótese da verdade61. Dessa forma, a assimilação do relato de viagem pela literatura
gera, no século XIX, uma série de obras em que a viagem passa a ter um papel central.
É importante reafirmar o tipo de parentesco do relato com a ficção: se o recorte
temático do gênero fundamenta-se na realidade exterior, concreta, sua estrutura e seus
recursos estilísticos são próprios à linhagem de textos ficcionais. Todas as aproximações do
gênero com outras formas discursivas resultarão, portanto, das oscilações e interferências
sentidas nesse eixo realidade – ficção.

3.2.4. O exótico
Como já visto, a dimensão ficcional foi assimilada pelo relato de viagem em parte
como resposta à crise da veracidade do narrado: na impossibilidade de se atestar o caráter de
verdade do que relata, o autor descobre na proximidade com a ficção – que não é o mesmo
que “mentira” – um caminho para conseguir legitimar e, mais, trazer interesse para sua obra.
Há, entretanto, um outro caminho que também foi explorado como alternativa ao dilema da
veracidade do relato: o exotismo. Tanto a ficção quanto o exótico garantem ao relato de
viagem um caráter não de verdade mas sim de verossimilhança. As duas dimensões são
capazes de fazer com que o relato funcione como tal.
Matizado pelos tons próprios a cada época, o exótico relaciona-se com a atração pelo
desconhecido. A tarefa de desvendar aquilo que não se conhece pode ser cumprida pelo
exame detido de seus elementos, submetidos a análise e estudo. É o que procuram fazer as
ciências. Quem opta pelo exótico segue por outro caminho. Busca-se explicar aquilo que não
se conhece pelo recurso da imaginação, projetando-se desejos sobre o fato concreto,
idealizando-o. O outro não é necessariamente objeto a ser desvendado, entendido, mas sim
chave para expressão e, eventualmente, reflexão sobre a própria essência.

3.2.4.1. O exótico ao longo da História

61
Pode-se atribuir a esse fascínio o sucesso de gêneros como a biografia e o próprio relato de viagem. Em outros
meios, também é notável a observação que se faz a alguns filmes – “baseado em fatos reais” – como recurso
persuasivo e, mais recentemente sob alguns aspectos, o sucesso dos “reality shows”.
81

No final da Idade Média e início do Renascimento, especialmente entre os séculos


XIII e XV, o exótico expressava-se pelo signo do maravilhoso, como se viu. Os relatos
obedeciam a uma ordem discursiva em que a exposição de seres fantásticos, meio humanos,
meio animais, não era necessariamente uma transgressão ao registro do verídico, ainda que
provocasse questionamentos. Era, antes, o testemunho de um viajante que relatava aquilo que
viu em terras longínquas. Porém, esses territórios, de fato distantes e inacessíveis para o
europeu medieval, representavam também o espaço das fantasias, das aspirações, da
imaginação. Não era, portanto, de se estranhar que o viajante que trouxesse novidades do
“império do Oriente” as povoasse de feitos e criaturas maravilhosas, compatíveis ao
imaginário de seu leitor. Assim, o relato de viagem cumpria duplo papel, ao trazer do Oriente
informações para um embrionário movimento mercantil e para um imaginário afeito ao
fantástico.
O maravilhoso representava, portanto, o fascínio provocado pelo desconhecido. Esse
fascínio vinha das possibilidades que se descortinavam pelo fato de o narrado ser
absolutamente desconhecido do leitor. Afinal, o desconhecimento total fazia com que o
maravilhoso pudesse ultrapassar os limites da lógica e da razão. É o que se vê, por exemplo,
no relato de Marco Polo, segundo Giucci:

Junto à minuciosa observação, Polo inclui em seu relato a galeria tradicional de


seres portentosos. Descreve homens com rabos de cão de um palmo de
comprimento; cinocéfalos monstruosos com olhos caninos; aves enormes –
chamadas ruch – que carregam elefantes pelo ar e os soltam lá do alto para espatifá-
los no chão; uma ilha de homens sem mulheres (ilha Macho) e outra de mulheres
sem homens (ilha Fêmea) (1992, p. 91).

Essa possibilidade de se exercer o maravilhoso sem qualquer constrangimento quanto ao


verídico foi comum em descrições sobre o Oriente, que se transformou na região do
maravilhoso por excelência. Esse panorama perdura até o fim do século XV, quando as
descobertas do Novo Mundo e as constantes expedições que se iniciam a partir de então, junto
às profundas transformações da ordem medieval pelas idéias do Renascimento, alteram
gradativamente essa relação mais harmoniosa entre relato e maravilhoso. Sua atração decorria
do desconhecido, que provoca fantasias. Ora, numa ordem mundial em que justamente se
82

combate o desconhecido, em que se buscam novas descobertas, o maravilhoso passa a ser


questionado, tornando-se mais e mais um recurso ineficiente de atração do leitor do relato de
viagem.
O desconhecido dá lugar ao diferente: esta é a ótica que vai se impondo com as novas
descobertas e que segue ao longo do período de colonização, passando pelo Iluminismo e
chegando até o século XIX. A notícia dos habitantes do Novo Mundo provoca uma reação
diversa da provocada pelas notícias do Oriente. Não se trata mais de um mundo similar ao
europeu, mas localizado numa dimensão paralela, quase que imaginária, como era visto o
“Império do Oriente”; trata-se de um mundo habitado por “selvagens”, categoria para o que
não se entende propriamente como homens nem como animais. Trata-se de um mundo em que
tudo demandava decodificação, em que a lógica européia não fazia tanto sentido. Movidos
pela tentativa de desvendar esse novo mundo, os relatos de viagem contam com um forte
conteúdo descritivo, de inventário. O esforço de conhecer resulta em vários relatos que, por
sua vez, instigam novos viajantes e informam os reis e súditos das questões dos novos
territórios. Assim, como fruto desse esforço, passa a ganhar espaço a noção do exótico como
atração pelo diferente.
Uma vez que o Novo Mundo vai-se tornando gradativamente mais conhecido pelos
europeus, começa-se a pensar em como ver o diferente. Julgá-lo, entendê-lo, lidar com ele
também eram questões colocadas. A partir do século XVII, mas principalmente no século
XVIII, com a inserção dos relatos de viagem nos meios filosóficos, o exotismo aparece sob a
forma de interesse crescente pelo outro, pelo que não é europeu. E o exotismo dessa época
também é marcado pelo olhar que se dirige a esse outro, na tentativa de entendê-lo. Trata-se
de um olhar interessado em ver as diferenças, mas que é contaminado pela perspectiva do
observador. Assim, ao dirigir-se ao diferente, esse olhar descreve-o, mas também o entende e
o julga a partir de parâmetros que têm sentido apenas dentro do mundo em que foram
concebidos, em tudo diverso do mundo do qual o outro é fruto. Esse desajuste entre o olhar e
o mundo observado não é questionado. Parece mesmo haver uma inconsciência quanto à
contaminação do olhar que é dirigido ao diferente. Assim, o exótico dessa fase – que, além
dos viajantes, é exercido tanto pelos filósofos do século XVIII, interessados na figura do bom
selvagem, quanto pelos escritores do século XIX, animados pela antiga idéia do paraíso
83

terrestre – expressa-se geralmente por idealizações, reduções, clichês. E assim, pelo inverso, o
exotismo europeu trata também de si mesmo62.
À medida que se vai tomando consciência do olhar viciado dirigido ao outro, vão-se
também percebendo as generalizações e os preconceitos resultantes desse olhar. Questiona-se:
como ver o diferente, como diferenciar o outro de si próprio sem discriminá-lo, tipificá-lo? O
exótico de cores fortes vai dando espaço para um olhar mais relativista, a partir do século
XX63. Influenciado pela proximidade cada vez maior com a Etnografia, para a qual serve,
inclusive, como instrumento, o relato de viagem começa a assimilar questões que são próprias
do olhar do antropólogo. O autor do relato sabe, assim, que o olhar que dirige ao diferente é
um olhar contaminado pelo seu ponto de vista. Ele toma consciência de que essa
contaminação impede que se compreenda o diferente em todas as suas esferas e, mais, que se
chegue a sua essência sem alterações significativas. No entanto, ele também tem a dolorosa
consciência de que essa parcialidade de seu olhar é inevitável. Por mais que se esforce no
exercício de relativizar aquilo que vê, é impossível livrar-se totalmente de seus próprios
códigos, uma vez que estes são os únicos instrumentos de que dispõe para decodificar o
mundo. Daí o mal-estar como traço comum nos relatos de viagem mais recentes. A
simplificação do exótico foi combatida, mas para seu lugar não se encontrou uma solução
satisfatória. Afinal, de que adianta combater a tipificação do exótico com a consciência do
relativismo se o seu verdadeiro e pleno exercício é impraticável? E, para piorar, tem-se a
consciência de que, ainda que esse exercício fosse realizado a contento, depois de séculos de
exploração dos territórios distantes, pouco sobrou para se estudar e preservar das culturas em
questão.
O panorama traçado aponta as várias chaves de leitura aplicadas para lidar com a
questão do outro. Ora totalmente desconhecido, ora comparável ao “eu”, o outro ganha um
caráter mais exótico quando identificado como “diferente”. É esta a marca de exotismo mais
presente nos relatos de viagem, própria, mais especificamente, ao caráter que se atribuiu ao
outro nos séculos XVIII e XIX, mas de alguma forma perceptível em toda a história do
gênero. Partindo desta acepção – o outro como diferente – serão identificadas e trabalhadas as
características fundamentais do exotismo como elemento do relato de viagem.
62
Ao que parece, nenhum autor dessa época é melhor que Diderot para se comprovar o exame de consciência
europeu feito pela chave do outro, invariavelmente exótico, como será mostrado adiante.
63
Isso não significa que tenha havido uma substituição do exótico do século XIX pelo relativismo do século XX.
Ao contrário, o exotismo ainda é um artifício bastante comum – e valorizado – em relatos de viagem e romances.
84

3.2.4.2. Aspectos do exotismo


Para se entender o exotismo, é preciso sempre examinar o retrato que se faz do outro.
Via de regra, esse retrato não é dado a contemplar a fundo todos os contornos do diferente,
tais como eles são, mas sim a marcar, por um julgamento de valor, a relação deste outro com
o próprio autor da imagem alheia, ou com sua cultura. Entram nesse processo, em maior ou
menor grau, a idealização, a valorização ou a depreciação, o fascínio, o preconceito. Como
pode ser expresso de maneiras tão diferentes, optou-se por dividir o exotismo em dois grandes
grupos para melhor observá-los, aqui chamados, à falta de melhor terminologia, de exotismo
primitivista e exotismo colonialista64. Essa classificação, no entanto, não pretende mais do
que vislumbrar no exotismo certas nuanças, que muitas vezes aparecem misturadas no relato
de viagem.

Das boas intenções


O primeiro exotismo, nascido de um verdadeiro fascínio pelo diferente, baseia-se na
forte crítica à sociedade a que se pertence e na idealização da sociedade alheia. A idealização
acontece porque não se tem verdadeiro conhecimento do outro, apenas uma vaga idéia do que
ele seja. A época dos descobrimentos, do contato com o “selvagem” do Novo Mundo, no
século XVI, foi extremamente propícia para essa idealização e também para se pensar, diante
de uma terra nova, sobre os vícios que não se queria reproduzir da metrópole. As Américas,
trazidas pelos primeiros relatos dos viajantes-exploradores, constituíram-se, assim, terreno
fértil para o desenvolvimento de um exotismo que tendia a associar o diferente aos primórdios
de sua própria civilização, a associar o primitivo que se via ao caráter primitivo de sua
essência humana. Essa similaridade desperta uma certa nostalgia do passado – aliás, presente
em qualquer cultura –, rememorado como o tempo da felicidade, da simplicidade e da
integridade dos valores. Por assimilação, são essas as características que o exotismo
primitivista atribui, preferencialmente, ao outro. É o que se vê, por exemplo, em um trecho do

64
Os termos foram retirados do capítulo sobre L’Exotisme de Nous et les autres, de Todorov (1989, pp. 297 a
386), mas não aparecem na obra da forma como estão propostos aqui. Em vez disso, Todorov analisa o assunto
em geral e na obra de alguns autores em particular. Ao final do capítulo, propõe uma classificação dos retratos de
viajantes, sistematizando questões tratadas anteriormente. Para esta dissertação, considerou-se mais producente
trabalhar com as duas formas gerais de expressão do exótico, detectadas no conjunto dos relatos de viagem, do
que com formas particulares de exotismo de determinados autores.
85

diário de viagem de Commerson, um colega de Bougainville na expedição ao redor do


mundo, em 1771, a bordo da fragata “la Boudeuse”:

Je puis vous dire que [le Tahiti] c’est le seul coin de la terre où habitent des hommes
sans vices, sans préjugés, sans besoins, sans dissensions. Nés sous le plus beau ciel,
nourris des fruits d’une terre féconde sans culture, régis par des pères de famille
plutôt que par des rois, ils ne connaissaient d’autre dieu que l’Amour [...]. [C’est]
l’état de l’homme naturel, né essentiellement bon, exempt de tout préjugé et suivant,
sans défiance comme sans remords, les douces impulsions d’un instinct toujours sûr,
parce qu’il n’a pas encore dégénéré en raison65.

É importante perceber que, nesse contexto, não são os antigos relatos de viagem do
século XVI os melhores exemplares desse tipo de exotismo. Como a maioria desses viajantes
foi integrante de uma expedição com fins colonizadores e permaneceu algum tempo entre os
habitantes locais, houve um maior conhecimento do outro. Onde há conhecimento, não há
lugar para o deslumbramento. De fato, entre copiosas descrições, os relatos de Jean de Léry,
de Hans Staden, de Gandavo, por exemplo, estão repletos de elogios e também de críticas aos
modos dos selvagens, muito distantes de uma idealização. Quem idealiza é quem não
conhece. São, portanto, os leitores dos relatos antigos, distantes no tempo e no espaço das
novas terras, os que aderem efetivamente ao exótico. É o caso de Montaigne66, no século XVI,
leitor de Léry e Thévet, e dos filósofos iluministas do século XVIII. Entre esses, são
conhecidos os casos de Rousseau, responsável, inclusive, pela propagação da teoria do bom
selvagem – ainda que não acreditasse exatamente na acepção que ela tomou67 – e de Diderot,
que em 1772 escreveu uma obra comentando o relato de viagem de Bougainville: Supplément
au voyage de Bougainville. Este último caso é sintomático do exotismo primitivista ao qual
aqui se refere. Enquanto no relato em que se baseia Diderot os nativos são descritos em várias
65
Posso afirmar que [o Taiti] é o único lugar da Terra em que há homens sem vícios, sem preconceitos, sem
necessidades, sem desavenças. Nascidos sob o mais belo céu, alimentados por frutas de uma terra fértil sem ter
sido cultivada, comandados por pais de família no lugar de reis, eles só têm como deus o Amor [...]. [Trata-se
do] estado do homem natural, essencialmente bom, isento de qualquer preconceito e seguidor, sem desconfiança
nem remorso, dos doces impulsos de um instinto sempre puro, ainda não degenerado pela razão”. Trecho
retirado da “Introdution” de Louis Constant In: BOUGAINVILLE, 1989, p. XVII.
66
Apesar da idealização do indígena, Montaigne é conhecido e valorizado, entre os demais filósofos,
contemporâneos e posteriores a si, por conta de sua análise, na medida do possível, menos eurocêntrica do
elemento humano não-europeu. Sobre esse aspecto, vale a pena conferir a passagem em que relativiza a barbárie
atribuída ao indígena, a partir da crítica à sociedade européia, no capítulo já citado em nota anterior.
67
A esse respeito, cf. o capítulo “L´homme de la nature” In: TODOROV, 1989.
86

condições, inclusive na sua condição de precariedade, o Supplément exalta sua simplicidade e


sua boa condição física, um como o observado no excerto de Commerson. Mais do que pura
distorção dos fatos, a intenção que se percebe na obra desses escritores, adeptos do exótico, é
exercer sua crítica a um mundo condenado pelo seu próprio processo civilizatório.

... o inferno está cheio!


Se é possível perceber no exotismo primitivista uma certa nota ingênua, por outro
lado, não se pode acusá-lo exatamente de propagador do preconceito. Esta talvez seja uma
expressão cabível ao exotismo que se desenvolve em especial no século XIX, em obras de
escritores que empreenderam viagens com o fim exclusivo da escrita.
O interesse dos iluministas pelos “selvagens”, propulsor de uma família de obras e
tratados filosóficos sobre a oposição entre natureza e sociedade, sobre as primeiras reflexões
acerca da cultura, constituiu clara influência aos escritores do século XIX, que passaram a ver
as viagens como fonte de temas para suas obras. É dessa forma que Nerval, Sthendal, Goethe,
Gautier e, principalmente, Chateaubriand percorrem países estrangeiros pela Europa, Ásia e
América, o que rende idéias para futuros romances e relatos sobre a viagem empreendida,
sempre com atenção especial ao exótico, ao diferente – seja ele próximo ou distante.
Nessa época, o advento do Novo Mundo e das terras do Oriente já havia sido
popularizado entre os leitores de relatos de viagens. A figura do “selvagem” já fora bastante
explorada e, embora ainda não fosse dotada do mesmo grau de “humanidade” dos
“civilizados”, já se distanciara definitivamente da categoria de animal. Assim, causava outras
reações, para além do fascínio gratuito e do idílio primitivista. Não havia mais espaço para a
figura do ser imbuído de uma natureza animalesca que, ao mesmo em tempo que o
distanciava do humano, atestava-lhe uma certa “bondade” inerente à sua condição selvagem.
Assim, este ser, cujos defeitos já se tornaram visíveis como marca de uma humanidade antes
insuspeita, transformou-se no “primitivo”, em oposição ao “civilizado”. O primitivo –
claramente imbuído de uma conotação hierárquica – não causa mais exatamente a mesma
reação que o selvagem causava entre os leitores dos relatos de viagem.
A nostalgia provocada pela idéia do bom selvagem vai-se transmutando em um
exotismo ainda mais regulado pelo julgamento de valor. Se o exotismo primitivista via uma
distância quase intransponível entre si próprio e o outro, o exotismo colonialista consegue
87

aproximar as duas instâncias na sua compartilhada humanidade. No entanto, mantêm-se as


tintas fortes do exotismo na medida em que não se pretende, com a admissão da natureza
humana do outro, assimilá-lo. Ao contrário, a noção de superioridade, que se fortalece em
tempos de manutenção e expansão do poderio colonial, torna impossível o contato mais
efetivo entre civilizados e primitivos.
O escritor que se vale desse exotismo, ainda que contribua à empresa colonialista, está
particularmente interessado em projetos literários pessoais. Diferentemente dos viajantes do
século XVI, que escreviam relatos como parte de seu ofício, os escritores do século XIX
viajam como etapa de seu projeto de escrita. Tanto o relato antigo quanto a viagem moderna
têm um papel secundário para seus empreendedores. Sendo assim, é natural que esse escritor
não se valha do conhecimento efetivo que uma viagem pode proporcionar, e que permaneça
fiel aos seus preconceitos acerca do outro. Não é por outra razão que Chateaubriand utiliza,
como fonte de informação sobre os hábitos dos índios norte-americanos, protagonistas em Les
Natchez, a Histoire de la nouvelle France, do padre Charlevoix – ainda que tenha ido à
América para buscar matéria-prima para seu livro68. A viagem funciona menos como fonte
verdadeira de informação do que como impulso propulsor da imaginação do escritor, que
mescla idéias particulares sobre o outro a dados pitorescos que recolhe ao léu.
O resultado desse empreendimento é quase sempre uma obra de forte apelo exótico,
que exalta muitas vezes a cor local, as paisagens e características dos habitantes; enfim, tudo o
que for mais diferente do mundo conhecido do leitor. Junto a essa exaltação, no entanto, nota-
se comumente um substrato preconceituoso, responsável por reafirmar os valores nacionais. É
o que se vê nessa passagem de Martyrs, de Chateaubriand: “Naturellement un peu sauvage, ce
n’est pas ce qu’on appelle la société que j’étais venu chercher en Orient: il me tardait de voir
des chameaux, et d’entendre le cri du cornac”69. Ao contrário do que os clichês fazem pensar,
não se busca uma ruptura com o mundo moderno civilizado, uma adesão ao mundo
paradisíaco exposto – o sonho do exotismo primitivista. Busca-se o prazer momentâneo que a
idealização do outro pode proporcionar. Nesse sentido, no exotismo colonialista, o outro é

68
Cf. TODOROV, op. cit., pp. 330-1.
69
“Naturalmente um pouco selvagem, não era isto, a que chamamos de sociedade, que eu tinha ido procurar no
Oriente: eu me impacientava vendo os camelos, e ouvindo o grito do ‘cornac’*”. Trecho traduzido de Martyrs, p.
189, apud TODOROV, op. cit., p. 337.
[*Segundo o dicionário Petit Robert, “aquele responsável por tratar e conduzir os animais”. Preferiu-se manter o
original visto que não se encontrou, em português, termo suficientemente específico para reportar a esta
atividade.]
88

ligado ao observador por uma relação de subordinação: recorre-se a ele em busca de


sensações agradáveis, de prazeres já gastos no mundo moderno, que, não obstante, continua a
nortear a perspectiva do autor. O leitor atraído por esse exotismo também não rompe com seu
próprio mundo, em busca de novas possibilidades, nem sequer está interessado em conhecer
verdadeiramente o outro: é, muitas vezes, o turista, que viaja em busca de prazer, de diversão.
Não por acaso o movimento do turismo populariza-se no século XIX, a partir, entre outros
fatores, dos relatos e romances de viagem em que o elemento exótico é ressaltado como
possível fonte de prazer70.
O exotismo colonialista perdura ao longo do século XX, ainda que já desvinculado do
projeto colonialista, em franca decadência. O gosto pelos relatos de viagem que se valem do
exotismo aumenta e transforma-os em um filão a ser explorado por escritores e editoras.
Assim, por conta de sua intensa expansão, o apelo ao exótico é identificado como um artifício
e atrelado ao turismo – popularizado e intensamente criticado no século XX –, tornando-se
um ponto polêmico no relato de viagem. Defensores e críticos travam discussões sobre ele;
dessa forma, além de componente estilística, o exotismo também se torna um tema comum do
gênero.
É necessário ressaltar que os exotismos expostos aqui não são elementos exclusivos
dos relatos de viagem – aliás, são bastante freqüentes nas obras ficcionais de escritores que se
valeram da viagem como inspiração e tema para um romance ou um tratado filosófico, como
visto neste capítulo. No entanto, a observação do fenômeno em obras que não são
propriamente relatos de viagem não implica um desvio do foco predeterminado. Ao contrário,
a presença do exótico em outros gêneros atesta o grau de influência que o relato de viagem
exerceu sobre eles, haja vista a presença constante dos relatos na lista de leitura dos escritores
comprometidos com o exótico.

Capítulo 4 – Tristes trópicos e o gênero relato de viagem: aproximações e


afastamentos

70
Para mais informações sobre a atividade do turismo e a crítica a ela, cf. capítulo 1 de PIMENTEL, 1998.
89

Desde o início deste trabalho, definiu-se Tristes trópicos como um enunciado


concreto, segundo a teoria de Bakhtin. Assim, considera-se a obra como um todo de sentido
resultante da interação entre as partes verbal e extraverbal (ou contextual) de seu enunciado,
que obedece a um determinado gênero. Se, até o momento, com as leituras feitas, pôde-se
trabalhar com o pressuposto de que o livro de Lévi-Strauss se aproxima, em relação a gênero,
do relato de viagem, cabe agora estabelecer os graus de aproximação e afastamento. Que tipo
de relato de viagem seria este? Que características peculiares apresenta? Para encontrar essas
respostas, é necessário examinar mais detidamente as marcas pessoais deste enunciado em
questão, a parte verbal de Tristes trópicos.
Tristes trópicos, como foi apontado, é um livro de vários conteúdos entrelaçados,
expostos em uma seqüência narrativa pontuada de reflexões particulares, tudo isso organizado
em nove partes, compondo uma obra de considerável extensão. Caberia, portanto, introduzir a
análise de seu material por uma descrição do livro, mais pormenorizada do que a apresentação
feita no 1º Capítulo desta dissertação, seguindo a ordem de suas Partes71.

4.1. Descrição da obra


A Primeira Parte abre o relato com o título “O fim das viagens”. Embora ainda não
trate da viagem propriamente dita aos trópicos, esta Primeira Parte do livro aborda, como foi
visto, outra partida: diante da impossibilidade de empreender as “verdadeiras viagens”, o
autor anuncia-se como “arqueólogo do espaço, procurando em vão reconstituir o exotismo
com o auxílio de fragmentos e de destroços” (p. 39)72. Anuncia-se de antemão ao leitor, antes
mesmo de começar a narrativa, que não resta muita coisa ao viajante do século XX e que este
deve optar por resignar-se ao espetáculo contaminado que verá, relatando o que conseguir
salvar dele, ou optar pela manipulação daquilo que vê, pintando por sobre a imagem coletada
cores vivas e exóticas, ao gosto do público consumidor de aventuras. Diante dessas
alternativas pouco animadoras, Lévi-Strauss opta pela primeira e inicia o Capítulo 1 com uma
grande crítica aos que seguem pela via do exotismo. Em seguida, mostra como o cenário era

71
Vale relembrar que as citações de trechos de Tristes trópicos serão seguidas, no próprio texto, da indicação da
página em que o trecho se encontra, na edição brasileira consultada nesta dissertação. Em nota, seguirão o trecho
transcrito do original em francês e sua localização. Quando for necessário, o original aparecerá no corpo do
texto.
72
“... archéologue de l’espace, cherchant vainement à reconstituer l’exotisme à l’aide de parcelles et de débris”
(p. 42).
90

diferente vinte anos antes, na década de 30, em que as viagens a regiões longínquas ainda
tinham pouco prestígio, mesmo nos ambientes universitários.
Inicia-se o registro das circunstâncias em que o autor integrou a missão de professores
universitários destinados a fundar o curso de Filosofia na recém-inaugurada Universidade de
São Paulo. Pouco se adianta, no entanto, desta viagem: o comentário sobre a travessia
marítima que se deveria fazer desvia a narrativa para outra travessia, realizada posteriormente,
em 1941, com destino a Nova York, em razão das perseguições nazistas a intelectuais
europeus. Essa viagem é narrada em seus pormenores, que recriam a situação humilhante e
precária a que o autor e outros europeus foram submetidos. Trata-se de uma denúncia das
“manifestações estúpidas, execráveis e crédulas que os grupos sociais segregam como um pus
quando começa a lhes faltar a distância” (p. 28)73, arbitrariedades que deixam o autor
indignado, tanto ou mais que as apontadas nos relatos de viajantes modernos. A partir dessa
experiência relatada, o autor rememora outros casos pontuados pelo preconceito, em épocas
diversas: detenção em Salvador, dois ou três anos antes, em razão de uma foto tirada de
meninos pobres, que poderia “comprometer a imagem” do Brasil na Europa;
acompanhamento de sessão de Tribunal na Martinica, em 1941, com a condenação de um
negro em apenas cinco minutos; interdição em Porto Rico, na mesma viagem, como suspeito
de ser emissário dos alemães, entre outros episódios.
No último Capítulo desta Parte, o autor volta no tempo da narrativa aos idos de 1937,
época de seu desligamento da USP e de preparação da expedição que faria ao centro-norte do
Brasil. A narração de um episódio é a motivação para voltar ao tema das viagens e de seu
desgaste, talvez de sua impossibilidade, diante dos novos tempos: “Não há mais nada a fazer:
a civilização já não é mais essa flor frágil que se preservava, que se desenvolvia a duras penas
em certos recantos abrigados de um torrão rico em espécies rústicas” (p. 35)74. A essa
realidade, o autor evoca os antigos viajantes, mas logo se vê diante de um impasse, pois estes
talvez não tivessem a capacidade, à qual a Etnologia contribuiu largamente, de atribuir um
olhar relativizador àquilo que vissem. Assim, a Primeira Parte termina com a descoberta de
um sentido ainda presente na viagem: mesmo entre destroços, o viajante-etnólogo pode
encontrar peças que o ajudem a entender a humanidade.
73
“... manifestations stupides, haineuses et crédules que les groupements sociaux sécrètent comme un pus quand
la distance commence à leur manquer” (p. 26).
74
“Il n’y a plus rien à faire: la civilisation n’est plus cette fleur qu’on préservait, qu’on développait à grand-peine
dans quelques coins abrités d’un terroir riche en espèces rustiques” (pp. 36-7).
91

Depois desse verdadeiro prefácio, que é a Primeira Parte, em que se justifica e


apresenta, em pequenas doses, a estrutura narrativa da obra, o autor inicia a Segunda Parte –
“Anotações de viagem” – com a retomada da situação deixada em suspenso no início da Parte
anterior: o convite para lecionar na recém-fundada Universidade de São Paulo. Retomam-se
todas as circunstâncias: as idéias pouco claras sobre o Brasil e a América do Sul, resumidas a
clichês; a insatisfação com o curso de Filosofia e com o magistério; as influências intelectuais
da Psicanálise e da Lingüística; e, enfim, a descoberta da Etnologia anglo-americana. Todos
esses elementos, intercalados e expostos com grande minúcia biográfica, resultaram na
escolha profissional premente – professor no Brasil – e na escolha intelectual de Lévi-Strauss
– Etnologia e Estruturalismo. Por esse motivo, o Capítulo 6 – “Como se faz um etnógrafo” – é
o mais extenso dessa Segunda Parte. Ele poderia, na verdade, ser chamado de “Como me
tornei um etnógrafo”. Trata-se de um Capítulo a ser estudado à parte, especialmente por quem
pretende se debruçar sobre a obra antropológica de Lévi-Strauss. Verdadeiro memorial, nele
estão esboçados todos os conceitos e críticas importantes postulados pelo autor e defendidos
ao longo de seus trabalhos: há a crítica às correntes metafísicas em voga nas primeiras
décadas do século XX, como a Fenomenologia e o Existencialismo; há a exposição das
influências do Marxismo, da Psicanálise e da Geologia, que se aproximam, segundo o autor,
da Etnografia; há a menção à grande influência que sofreu de Robert Lowie e seu Primitive
society.
A Segunda Parte termina justamente com a partida do autor, em 1935, de Marselha,
rumo à América do Sul. Trata-se de um Capítulo de descrições, de menções ao itinerário do
navio, de expectativas e impressões iniciais. O Capítulo termina com a transcrição de
anotações feitas no navio, em “instantes febris”, diante de um pôr-do-sol visto do meio do
oceano. Este trecho, que dá nome ao capítulo, é nitidamente diferente do resto do relato. Há
uma clara intenção literária, ressaltada inclusive pelo uso de itálico neste retrato da paisagem.
“O Novo Mundo”, Terceira Parte, assinala o primeiro contato com os trópicos,
passados os preparativos, as justificativas e motivações. Seguindo, porém, o valor simbólico
que o autor dá à categoria “Novo Mundo” – mais pungente do que qualquer novidade
específica do Brasil ou de outro país americano –, a narrativa tropical começa em alto-mar,
justamente na travessia da linha do Equador. É a Calmaria, “le Pôt-au-noir” no original em
francês, região marítima de “ar imóvel”, “nuvens escuras” e “raios de um sol invisível”,
92

temida pelos antigos viajantes e igualmente impressionante para Lévi-Strauss. O autor se


mostra especialmente mobilizado, porém, pela evocação de tantos homens e aventuras de
outrora que aquela região desperta. Assim, diante da Calmaria, avivam-se Colombo e seu
Paraíso Terrestre, os mitos do “Éden da Bíblia, a Idade do Ouro dos antigos, a Fonte da
Juventude, a Atlântida, as Hespérides, as Pastorais e as Ilhas Afortunadas” (p. 70)75 e,
superando todo o imaginário europeu, a dizimação em massa da população indígena
americana, à qual o caráter humano foi negado.
Ao avistar a terra americana, o autor procura sinais do “Novo Mundo”. As primeiras
marcas são percebidas pelo olfato – “brisa de floresta alternando com perfumes de estufa,
quintessência do reino vegetal cujo frescor específico estivesse tão concentrado que se
traduziria em uma embriaguez olfativa” (p. 74)76. Logo, vem a imagem contínua da Mata
Atlântica, que o autor acompanha por dois dias, de seu navio que margeia a costa até o
sudeste do país, e a sensação de amplitude, que ele associa também a outras localidades do
continente.
Inicia-se, então, o momento dos primeiros registros. Os Capítulos seguintes mostram
as impressões do autor em relação a inúmeros aspectos dos lugares visitados – das paisagens
mais famosas aos elementos menos aludidos. Às impressões iniciais confrontam-se os
estereótipos, a serem ora desvendados, ora confirmados, e as informações históricas – origem
das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, processo de colonização e urbanização –,
geográficas e biológicas – relevo das cidades, formas de ocupação e exploração do solo,
floresta e desmatamento. Dessa maneira, o autor chega a conclusões pouco comuns, em
relatos de viagem, a respeito dos lugares descritos. Considera a paisagem descontínua da
cidade do Rio de Janeiro feia, sente como sinal do trópico a falta de contraste entre a casa e a
rua, observa a paisagem vegetal da Mata Atlântica, em oposição à paisagem “domesticada” da
Europa, para julgá-la “não selvagem, mas desqualificada” (p. 90)77. Por fim, parece condensar
suas impressões sobre as cidades do Novo Mundo no Capítulo sobre São Paulo: “elas vão do
viço à decrepitude sem parar na idade avançada” (p. 91)78. Depois de traçar um panorama da

75
“... l’Eden de la Biblie, l’Age d’Or des anciens, la Fontaine de Jouvence, l’Atlantique, les Hespérides, les
pastorales eet les îles Fortunées” (p. 79).
76
“... brise de fôret alternant avec des parfums de serre, quintessence du règne végétal dont la fraîcheur
spécifique aurait été si concentrée qu’elle se traduirait par une ivresse olfactive” (pp. 83-4).
77
“... non point sauvage, mais déclassée” (p. 103).
78
“... elles vont de la fraîcheur à la décrépitude sans s’arrêter à l’ancienneté” (p. 105).
93

parte física da cidade nos anos 30, sempre marcada por um progresso desordenado e pouco
coerente com os valores aristocráticos que queria ressaltar, o autor volta sua atenção para a
elite paulistana, que, “tal como suas orquídeas prediletas, formava uma flora indolente e [...]
exótica” (p. 95)79. Na descrição dos tipos, hábitos e valores sociais dessa elite, Lévi-Strauss
ressalta a superficialidade do conhecimento propalado, a iniciativa da criação da USP como
tentativa de construção de um espírito cosmopolita, distante da figura “caipira” ainda forte no
estado, e que assombrava a burguesia nascente. Por fim, o autor reconhece os bons resultados
da iniciativa que, à revelia de seus idealizadores, ampliou o conhecimento e a possibilidade de
ascensão social a parcelas mais pobres da sociedade. Assim, Lévi-Strauss finaliza o Capítulo
com a evocação dos nomes de seus alunos brasileiros, que já haviam se tornado, à época de
Tristes trópicos, mestres e respeitados profissionais.
A Quarta Parte é dedicada às cidades do interior, alvo da “etnografia de domingo”, e
ao modo de vida rústico dos homens das áreas rurais. A princípio, trata-se das cidades do
interior dos estados de São Paulo e do Paraná. Nesta Parte, o autor inicia um procedimento
comum no livro, que é a intercalação de capítulos sobre a experiência brasileira com outros
sobre viagens posteriores, mais especificamente a cidades do Oriente. As cidades orientais
aqui aludidas pertencem à Ásia do Sul – Karachi e Calcutá, na Índia, cidades do Egito e
Arábia – e servem como contraponto às cidades do interior do Brasil.
Nas cidades do interior de São Paulo, chamam a atenção do autor os mercados e seus
produtos locais (palmeiras, pinga, amuletos), as festas rústicas, as tradições, crendices e
superstições populares. Logo atenta para a ameaça presente a esse sistema cultural tão coeso:
o crescimento de certas regiões, muitas vezes, determina o declínio de outras. E mesmo as
regiões que crescem não têm garantias de manutenção do desenvolvimento, sempre ameaçado
pelo desenvolvimento das áreas costeiras do país. O autor vê na condição precária das
estradas do interior do estado, transitadas por mulas e caminhões que comumente atolam na
lama, o símbolo dessa fragilidade. No norte do Paraná, o que primeiro chama a atenção é a
floresta de coníferas. Do deslumbramento à análise, o autor aponta a floresta extremamente
densa como o motivo para o isolamento e a preservação da região, povoada por grupos de
famílias pomerânias e ucranianas que puderam reconstruir a vida numa região climática
similar, porém mais fértil que a de origem. Essa possibilidade de “nova vida”, que parece tão
79
“[l’élite pauliste,] pareille à ses orchidées favorites, formait une flore nonchalante et plus exotique qu’elle ne
croyait” (p. 111).
94

própria ao novo continente, é também vislumbrada na iniciativa de cidades planejadas: à


compra de uma grande área, sucede-se o seu loteamento e venda, geralmente por grandes
empresas, e a construção de infra-estrutura necessária. Assim, aponta o autor, surgiram
Curitiba, Londrina, Belo Horizonte e Goiânia.
As lembranças de Karachi, na Índia, foram suscitadas pela lembrança do hotel de luxo
(para os parâmetros da região) em que o autor se hospedou, em Goiânia. Os Capítulos 14, 15
e 16 mostram a convivência entre a miséria ostensiva, resignada, e as relações sociais que
aceitam e reforçam essa desigualdade, situações extremas observadas pelo autor nas cidades
visitadas da Índia. Há a narração de vários episódios, protagonizados por ele, em que a
servidão e os hábitos da burguesia local o surpreendem e causam mal-estar. A razão para a
lembrança de viagens tão distantes, no tempo e no espaço, em relação à viagem relatada no
livro, aparece no último capítulo: “Foi nessas regiões, onde às vezes a densidade de população
supera mil habitantes por quilômetro quadrado, que avaliei plenamente o privilégio histórico
ainda reservado à América tropical [...] de ter permanecido absoluta ou relativamente vazia
em matéria de homens.” (p. 139)80. Se a desolação, o abandono, a escassez de recursos do
homem do interior do Brasil – resultados da mal-sucedida empreitada desenvolvimentista do
centro-oeste brasileiro – chocaram o autor, ele mesmo trata de relativizar esse fracasso,
rememorando a sorte de outra área tropical: “O grande fracasso da Índia traz um ensinamento:
ao se tornar numerosa demais, e apesar do gênio de seus pensadores, uma sociedade só se
perpetua caso produza a servidão” (p. 140)81. Em suma, dos fracassos, o menor, concluiria
Lévi-Strauss.
Finalmente, na Quinta Parte (“Cadiueu”), aparecem os tão aguardados índios. Porém,
dos quatro capítulos dessa Parte, somente dois são consagrados exclusivamente a eles.
Também são retratados os modos de vida da região pantaneira, muito ligados à pecuária, e os
vários percalços vivenciados na viagem rumo às aldeias indígenas. O autor aborda, assim, o
modo de vida do “sertão”, das fazendas, com suas atividades, seus rituais – caso do
chimarrão, que reúne todos em uma roda para a degustação coletiva – e as dificuldades de
deslocamento na região – o desconforto extremo da viagem de trem a Mato Grosso, a

80
“C’est dans ces régions, où la densité de population dépasse parfois mille au kilomètre carré, que j’ai
pleinement mesuré le privilège historique encore dévolu à l’Amérique tropicale [...] d’être restée absolumment
ou relativemment vide d’hommes” (p. 169).
81
“Ce grand échec de l’Inde apporte un enseignement: en devenant trop nombreuse et malgré le génie de ses
penseurs, une société ne se perpétue qu’en sécrétant la servitude” (p. 170).
95

dificuldade nas estradas de terra encharcadas, atravessadas a cavalo. As cidades que serviram
de pouso, como Porto Esperança e Corumbá, também foram retratadas em sua falta de
estrutura e de perspectiva para o morador local.
O primeiro Capítulo consagrado aos índios é o 17, “Paraná”, em que o autor relata o
primeiro contato com os índios, provavelmente oriundos do grupo Jê, que povoou o Sul do
Brasil. Era um grupo de índios que haviam passado por uma experiência de civilização,
imposta pelos brancos, mas que foram abandonados à própria sorte no projeto de
desenvolvimento da região. Diz Lévi-Strauss: “para minha grande decepção, os índios do
Tibaji não eram nem inteiramente ‘índios verdadeiros’ nem, muito menos, ‘selvagens’. Mas,
ao privarem de sua poesia a imagem ingênua que o etnógrafo principiante forma de suas
experiências futuras, davam-me uma lição de prudência e objetividade” (p. 144)82. Sob essa
perspectiva, o autor deixa de buscar os elementos eminentemente indígenas na aldeia, mas
busca ver o que é de fato sua vida. Nessa observação, percebe que o grupo realizou uma volta
inconsciente aos objetos, produtos, formas de viver antigas, anteriores às formas aprendidas
com o branco, a ponto de relutarem muito mais na negociação de seus próprios objetos do que
dos outros, ainda que estes fossem, aparentemente, mais úteis a eles.
A segunda aldeia indígena contatada localizava-se na região de Nalike, à esquerda do
rio Paraguai. Eram índios Cadiueu, parecidos com os brasileiros lavradores da região pelas
roupas e pelos vilarejos, mas bastante diferentes na organização social e no estilo de vida. O
autor retrata os elementos essenciais deste grupo, assiste a uma festa da puberdade e ocupa
todo o Capítulo 20 com a descrição pormenorizada da riquíssima arte gráfica facial dos
Mbaiá, apelando inclusive para os desenhos do pintor e explorador Guido Boggiani, que
passou duas temporadas na aldeia, entre 1892 e 1897. Acompanha a descrição a tentativa de
análise dos desenhos Mbaiá, que representariam formas importantes de organização e
hierarquização social.
A Sexta Parte do livro é dedicada aos Bororo. Porém, assim como na Parte anterior,
há um Capítulo em que o autor discorre sobre a vida sertaneja da região. “O ouro e os
diamantes” trata da vida nas cidades que serviram de pontos de partida para as aldeias Bororo
pelas quais passou Lévi-Strauss. Da viagem de navio entre Corumbá e Cuiabá, o autor destaca

82
“A ma grande déception, les Indiens du Tibagy n’étaient donc, ni complètement des ‘vrais Indiens’ ni, surtout,
des ‘sauvages’. Mais, en dépouillant de sa poésie l’image naïve que l’ethnographe débutant forme de ses
expériences futures, ils me donnaient une leçon de prudence et d’objectivité” (p. 177).
96

a contemplação prolongada da fauna e a mudança da paisagem, do Pantanal para o errado. Em


Cuiabá, é retratado o mesmo modo de vida interiorano e sossegado já observado em Goiás
(hoje Goiás Velho), com destaque à descoberta de ouro na região, o que a transformou em
zona de garimpo. Lévi-Strauss observa os reflexos decorrentes da atividade garimpeira nas
demais áreas da vida local, como no comércio, nos transportes, no fluxo de pessoas de vários
lugares do país. A relação dos habitantes da cidade com os índios também é abordada: embora
próximos, o desconhecimento e o temor mútuos prevalecem.
Os próximos Capítulos são inteiramente dedicados ao período transcorrido entre os
Bororo, no qual o etnógrafo pôde fazer uma melhor coleta de informações, dado o estado mais
preservado em que ele encontra esses índios. Há observações, seguidas de análise e
comparações, da arquitetura da aldeia, do tipo físico e da língua dos Bororo, dos adereços, dos
cantos e instrumentos, do sistema de parentesco, representado na disposição das cabanas no
perímetro da aldeia; enfim, dos vários aspectos de sua vida. Os aspectos religiosos rendem um
capítulo à parte. Para Lévi-Strauss, “poucos povos são tão profundamente religiosos quanto os
Bororo, poucos têm um sistema metafísico tão elaborado” (p. 215)83. Uma das razões dessa
densidade religiosa, para o autor, é a relação de grande respeito dos índios com seus mortos,
exposta com detalhes no relato, ao final do qual o autor afirma: “a representação que uma
sociedade cria para a relação entre os vivos e os mortos reduz-se a um esforço para esconder,
embelezar ou justificar, no plano do pensamento religioso, as relações reais que prevalecem
entre os vivos” (p. 230)84. Não há dúvidas, portanto, sobre o nível de respeito que o etnógrafo
constatou dentro da sociedade Bororo.
Embora intitulada “Nambiquara”, a Sétima Parte de Tristes trópicos é, assim como a
antecessora, apenas parcialmente dedicada ao grupo indígena mencionado. Dos seis Capítulos
que integram a Parte, um dedica-se ao modo de vida do sertão no Brasil central, outro às
peculiaridades dos grupos indígenas do Brasil e à comparação destes com os do México e do
Peru, e parte de um terceiro Capítulo aborda a linha telegráfica Rondon, empreendimento
malogrado no coração do centro-oeste brasileiro. Os demais tratam do contato da expedição
com os Nambiquara, das observações dos vários aspectos relativos ao grupo, assim como

83
“Peu de peuples sont aussi profondément religieux que les Bororo, peu ont un système métaphysique aussi
élaboré” (p. 165).
84
“... la représentation qu’une société se fait du rapport entre les vivants et les morts se réduit à un effort pour
cacher, embellir ou justifier, sur le plan de la pensée religieuse, les relations réelles qui prévalent entre les
vivants” (p. 284).
97

feito entre os Bororo. Chama a atenção, nessa Parte, o Capítulo “Lição de escrita”, em que o
autor relata um episódio sobre a descoberta, que os Nambiquaras de seu grupo fizeram, da
existência de sentido na escrita do cientista, que imitavam no papel com o lápis que
receberam. Também começam a evidenciar-se os primeiros sinais de cansaço e desânimo
extremos, resultantes dos constantes deslocamentos, da precariedade de instalações e
alimentação, das más condições de trabalho. Lévi-Strauss chega apenas com dois homens e
alguns animais à estação de Campos Novos, onde entraria em contato com remanescentes
Tupi – os demais integrantes da expedição, incluindo sua mulher e alguns índios, foram
infectados por uma epidemia de oftalmia e foram obrigados a abandonar o projeto.
A Oitava Parte mostra o contato do etnógrafo com os últimos grupos indígenas
estudados, da família Tupi-Cavaíba. Como eram índios da etnia dos antigos Tupi, que
residiam na costa brasileira no século XVI, alguns inclusive tidos como totalmente selvagens,
o contato é esperado com apreensão. O primeiro Capítulo ainda não retrata o encontro, mas
sim a espera, em um dos postos da linha; trata-se de um momento de auto-reflexão sobre a
viagem, os estudos empreendidos, a própria Etnografia, os relatos dos antigos e de novos
viajantes. O desânimo com a expedição gera, portanto, grandes reflexões, que chegarão ao
ápice na próxima Parte. No Capítulo seguinte, é relatado o encontro com os índios Mondé, da
etnia Tupi-Cavaíba, depois de cinco dias de trajeto numa canoa pelo rio. Depois da descrição
do tipo físico, da indumentária, de aspectos da língua e da disposição da aldeia, o etnógrafo
expõe um certo descontentamento: “Ao término de um exaltante percurso, eu tinha os meus
selvagens. Infelizmente, eram-no demasiado!” (p. 315)85. A partir daí, o autor intensifica seus
questionamentos acerca do alcance dos relatos de viagem e da Etnografia, mas não deixa de
levantar todos os aspectos observados entre os Tupi-Cavaíba, evocando por vezes os viajantes
antigos – especialmente Léry e Yves d’Évreux – que estiveram na região, entre os mesmos
grupos indígenas, quatrocentos anos antes. Os dois últimos capítulos dessa Parte são
consagrados à vida nos vilarejos de seringueiros, na região amazônica, em que o autor
encontra um pouco mais de diversificação que nos anteriores. Descreve os produtos locais, os
nomes inventados das pessoas, a medicina científica e a popular – baseada em resguardos e
orações –, o trabalho e as relações sociais do seringueiro.

85
“Au terme d’un exaltant parcours, je tenais mes sauvages. Hélas, ils ne l’étaient que trop” (p. 397).
98

A Nona Parte anuncia em seu título – “A volta” – o final do relato, mas não o término
da viagem propriamente dita. O término da narrativa não é bem explicitado, dando a entender
que o ponto final da expedição foram mesmo os vilarejos de seringueiros, próximos ao rio
Machado. Embora se inicie com uma alusão à escala de Campos Novos, o Capítulo 37, “A
apoteose de Augusto” expõe, na verdade, as dificuldades do trabalho etnográfico, mais
especificamente, e um grande questionamento da Etnografia como escolha profissional, de
modo mais geral. Para abordar essas questões, o autor discorre sobre as diferenças entre
Chopin e Debussy, ressaltando o quanto pôde, depois de ouvir o último, redescobrir o
primeiro. Com a viagem seria talvez a mesma coisa: depois de percorrer regiões longínquas,
talvez ele pudesse redescobrir a sua própria região, entendê-la, estudá-la. Outra digressão é
feita para relatar a peça que dá nome ao Capítulo, escrita pelo autor em um dos momentos da
viagem. O enredo, segundo o autor, uma nova versão de Cina,86 é narrado com detalhes, ao
final do qual se chega ao ponto-chave: trata-se de uma representação do papel do antropólogo
como um ser ao mesmo tempo expurgado de seu mundo e impossibilitado de pertencer a
outro mundo que não o seu.
O Capítulo seguinte continua a discussão do papel contraditório do etnógrafo para,
deste ponto, abordar questões – e dúvidas – mais amplas: como colocar-se diante de um fato
social sem julgá-lo com os próprios parâmetros? E como respeitar o diferente quando este se
mostra cruel e desumano? O autor mostra a tendência do etnógrafo de ser demasiado crítico
com seu próprio universo e bastante permissivo, conformista, com o universo do Outro,
objeto de estudo. Para encontrar um equilíbrio, a saída seria, segundo o autor, guiar-se pela
comparação, o que o estudo das diversas sociedades pode proporcionar. Seria, portanto,
possível medir o grau de justiça ou de desigualdade de determinada sociedade, exercício que o
autor expõe na seqüência, com alguns aspectos de sociedades visitadas. Há, no Capítulo, a
reabilitação de Rousseau que, segundo o autor, expressou com precisão o dilema que é
enfrentado pelo antropólogo, podendo fornecer procedimentos para a prática da Etnologia,
não como busca, nos “selvagens”, do estado primitivo da civilização ocidental, mas como
forma de conhecer os elementos constitutivos de uma sociedade maior, a humanidade.
O autor suspende a discussão sobre a Etnologia para, em digressão, tratar da viagem
que fez ao sítio arqueológico de Táxila, na região da Caxemira, por volta de 1950. O sítio, que
86
Trata-se de uma personagem da história latina que conspirou contra o imperador Augusto. A referência é, por
certo, à tragédia, de mesmo nome, da autoria de Corneille, publicada em 1642.
99

compreendia várias “cidades” antigas, de épocas diferentes, existentes entre os séculos VI a.C
e VI d.C, apresenta uma mistura de elementos das culturas greco-romana, hindu, budista e
muito rara de encontrar, segundo o autor, depois da invasão e destruição da região pelos
muçulmanos. Este é o episódio relatado para se discutir o “apetite destruidor de todas as
tradições anteriores”, para Lévi-Strauss a marca do Islã, sob vários aspectos e em vários
momentos e lugares históricos. No Capítulo seguinte, o último do livro, a crítica prossegue,
mas como forma de comparação do Islã com uma postura igualmente intolerante do Ocidente
em relação a outros povos. Passa-se, então, à comparação entre as três grandes religiões como
tentativas de salvação da humanidade: o budismo, o cristianismo e o islamismo. Dessa
comparação, o autor considera que o budismo apresenta as melhores formas de relação do
homem com o mundo e consigo próprio e, sendo a mais antiga das três religiões, aponta-a
como exemplo da “grandeza indefinível dos começos”. O autor prossegue em sua exaltação
ao budismo, relembrando uma visita a um templo rústico, em Chittagong, quando atesta a
beleza e a grandeza da simplicidade dos devotos camponeses. Finaliza o raciocínio arriscando
uma comparação do budismo com o marxismo, como formas de libertação do homem. De
toda maneira, o homem é preso, segundo o autor, a uma forma de organização que gera
inércia e é autodestrutiva: a sociedade. Diante desse destino inevitável, a Etnologia reafirma
seu valor, para Lévi-Strauss, ao ser capaz de fazer a espécie humana “captar a essência do que
ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade” (p. 392)87. Tristes
trópicos termina, pois, da mesma maneira como começa: afirmando a inelutabilidade da
escolha etnográfica, um dos grandes temas do livro.

4.2. Relações entre a obra e o gênero


Desde as primeiras leituras, foi possível definir alguns pontos centrais de Tristes
trópicos: seu texto reporta à viagem etnográfica do autor por entre sociedades urbanas e
indígenas do Brasil na década de 30 do século XX. Lévi-Strauss trata das questões
concernentes às sociedades estudadas por meio da observação e análise etnográfica dos
elementos pesquisados, mas utiliza, também, levantamentos históricos e geográficos a
respeito do objeto e comparação a resultados de pesquisas anteriores, como convém a um
etnógrafo. Também é perceptível, desde uma primeira leitura da obra, o trabalho deliberado
87
“... saisir l’essence de ce qu’elle [l’espèce humaine] fut et continue d’être, en deçà de la pensée et au delà de la
société” (p. 497).
100

com a linguagem, em função de um efeito estético próprio ao texto literário. Para isso, o autor
recorre a imagens, associações inusitadas, metáforas, assonâncias. Junta-se a esse trabalho a
elaboração de uma arquitetura textual peculiar, com seqüências narrativas entremeadas por
episódios e por considerações pessoais. Enfim, há um uso intenso de recursos lingüísticos e
narrativos, como convém a um escritor. Conclui-se, de um primeiro contato, portanto, que
Tristes trópicos não é nem ensaio sociológico ou antropológico nem literatura – talvez seja,
simultaneamente, um pouco dos dois.
Dessa zona intermediária – possível, mas pouco satisfatória – em que se colocou a
obra, avistou-se outra possibilidade: o gênero do qual esse texto mais se aproxima é o relato
de viagem. Com a presença constante de marcadores temporais e espaciais, de uma descrição
vinculada à progressão narrativa; enfim, de uma dose de elementos comumente encontrados
na estruturação de textos ficcionais, além da presença dos apontamentos da pesquisa
etnográfica relacionados às reflexões e análises pessoais, ou seja, de dados da realidade,
Tristes trópicos apresenta, evidentemente à sua maneira, a mesma mistura de matéria real e
forma ficcional que outros relatos de viagem seguem. Essa hipótese ganhou fôlego depois de
empreendido o estudo dos traços específicos deste gênero, cujo resultado foi exposto no
Capítulo anterior, e do mapeamento detalhado da obra, em que os conteúdos aludidos, desde o
início do trabalho, aparecem agora em relação. Com este material, torna-se possível verificar
alguns procedimentos, próprios ao relato de viagem, em Tristes trópicos, a fim de medir o
grau de proximidade e de afastamento – o diálogo – da obra com o gênero.

4.2.1. Dos índios do Novo Mundo à humanidade


Certamente, Tristes trópicos é um livro sobre a vida nos “trópicos” e mais
especificamente sobre os índios brasileiros, como o título, a capa – pelo menos, nas edições
francesa e brasileira consultadas – e as sinopses indicam. Sabendo-se que se trata de uma obra
singular dentro da produção eminentemente antropológica do autor, é natural também
identificar em Tristes trópicos tanto o exercício etnográfico que a expedição rumo às
sociedades indígenas proporcionou quanto reflexões mais amplas, de cunho etnológico. Junta-
se a esses assuntos uma detalhada abordagem das cidades no interior do país, levando em
conta o sistema cultural sertanejo, ainda coeso e diversificado, dentro de um quadro de
acelerada modernização dos modos de produção nas regiões costeiras do país, além dos
101

questionamentos sobre o próprio ato de viajar – e de relatar a viagem – hoje e outrora. Por
fim, também aparecem, em longas seqüências, lembranças de outras viagens, posteriores à
viagem relatada, e reflexões pessoais decorrentes delas88.
São essas as cores do quadro – e não os quadros da exposição, como concebe Geertz89
– que Tristes trópicos representa. Em relação aos temas, Tristes trópicos mantém-se muito
próximo do que se observa nos relatos de viagem, principalmente no último século, em que o
gênero aproximou-se da pesquisa etnográfica. Em vários relatos de viagem contemporâneos,
essa aproximação é percebida, por um lado, na presença de um forte elemento descritivo, e
por outro, para além da observação, no uso corrente de uma perspectiva relativista na
interpretação dos fatos verificados. Ficando em apenas um exemplo bastante característico
dessa tendência, é possível citar L’Afrique fantôme, de Michel Leiris90. Contemporâneo e
colega de profissão de Lévi-Strauss, Leiris escreveu seu famoso relato após ter passado dois
anos (1931 a 1933) no continente africano como membro de uma missão etnográfica, que
percorreu territórios entre Dakar e Djibouti. A obra consagrou-se como um retrato da
diversidade, antes insuspeita, das sociedades africanas, marcadas por diferentes sistemas
culturais, religiosos, sociais. Os fatos observados, por Leiris e por outros escritores
contemporâneos de relatos, correspondem, mais e mais, ao elemento humano, e não
simplesmente à paisagem. Uma vez empreendidos por viajantes-etnógrafos, os relatos
abordam preferencialmente as questões referentes às sociedades humanas, em que a descrição
e análise da paisagem, ainda que importantes, entram como composição do quadro social da
obra, obedecendo a um panorama temático etnográfico, relativamente restrito.
Nessa mesma linha, Tristes trópicos compartilha com os relatos de viagem do último
século o mal-estar com o gênero, a ponto de este constrangimento ser expressamente
discutido na obra e transformar-se em tema. Como já foi visto, a Primeira Parte do livro expõe
a crítica do autor à voga dos relatos de viagem na França, na década de 50, em tudo diferentes
dos relatos empreendidos pelos antigos viajantes, aos quais presta homenagem. Por essa
razão, a obra inicia-se com a célebre declaração de ódio às viagens, seguida da confissão de
adesão ao mesmo gênero. Evidentemente, pelo espaço dedicado à crítica aos relatos
modernos, que ocupa o Primeiro e o Quarto Capítulos, percebe-se que o autor, apesar de
88
É o caso das reflexões sobre o budismo e o islamismo, decorrentes da viagem que o autor fez, por volta de
1950, a um sítio arqueológico na Caxemira com vestígios de várias culturas milenares.
89
A esse respeito, rever o item 1.3.4. do Capítulo 1 desta dissertação.
90
Ver referência bibliográfica completa no Anexo desta dissertação.
102

assumir que também fará um relato, tentará distanciar-se ao máximo daquilo que critica nos
exemplares mais atuais: a espetacularização da viagem, a “santificação” do viajante em
função das dificuldades e dos perigos por que ele passou, e não pelo que de fato ele conseguiu
descobrir e estudar. No entanto, ele admite ser impossível voltar aos antigos relatos, posto que
são frutos de um olhar inaugural diante de um mundo realmente “novo”, impossível, portanto,
de se ter no presente momento histórico. Detecta-se, assim, pela natureza das críticas e pela
priorização do trabalho etnográfico, que a negação do exótico, da exaltação gratuita do
diferente, será o meio escolhido pelo autor para fazer de seu relato algo diferente das obras
que critica, ainda que não alcance mais o mesmo frescor dos relatos do século XVI, tanto
mais interessantes quanto mais novidades tinham para contar.
Essa tematização do gênero, vista em Tristes trópicos, é um traço recorrente dos
relatos mais atuais, que expressam a necessidade de redefinir o papel da viagem no século
XX. Já que não há mais lugar para as “verdadeiras viagens”, como diz Lévi-Strauss, depois
da exploração de todos os continentes e do advento do turismo, os deslocamentos que geram
relatos devem orientar-se por que motivação? Torna-se inevitável discutir o gênero fundado
na viagem, sua validade e permanência. A esse respeito, Cogez (2004) diz que “os escritores
[...] todos, cada um a sua maneira, lamentam não ser mais viável viajar sem acumular as
provas da impossibilidade de empreender uma viagem digna desse nome”91, diante do que
esses viajantes-escritores admitem que “não é mais possível escrever um relato de viagem tal
como se concebia até então; todos [os escritores de relatos estudados na obra de Cogez]
afirmam seu desejo de abandonar a ingenuidade e de não ceder à pressão do gregarismo
nômade. E apesar dessa precaução, lembrada sempre que possível, todos escreveram um, às
vezes vários, relatos de viagem!”92. Ora, diante dessa constatação da permanência do gênero,
questiona-se qual seu papel nesse novo cenário. Seja qual for ele exatamente, percebe-se que
o relato atual é inevitavelmente marcado pela Etnografia, mesmo quando não é escrito por um
etnógrafo. O legado do século XX para o gênero, se é possível afirmá-lo, está na
popularização de alguns conceitos oriundos dos estudos etnográficos, tais como a importância

91
“... les écrivains [...] ont tous, à leur manière, effectivement déploré qu’il n’était plus guère envisageable de
voyager sans accumuler les preuves de l’impossibilité d’accomplir un voyage digne de ce nom” In: COGEZ,
2004, p. 20 (tradução nossa, no corpo do texto).
92
“Ils ont tous admis qu’il n’était plus imaginable d’écrire un récit de voyage tel qu’on le concevait jusqu’alors;
ils ont tous affirmé leur désir de sortir de la naïveté et de ne pas céder à la pression de la grégarité nomade. Et
cette précaution prise et rappelée aussi souvent que possible, ils ont tous écrit un, voire plusieurs récits de
voyage!” Ibid., p. 20 (tradução nossa, no corpo do texto).
103

do olhar sobre as sociedades humanas, a relativização do ponto de vista do qual se observa, a


alteridade. É sob esse prisma que os relatos – e as viagens – continuam presentes no atual
momento, focalizando não propriamente lugares inéditos, mas sim modos de vida diversos,
que, em conjunto, colaboram para o estudo – ou para a mera apreciação – da natureza
humana.
Esse novo sentido dos relatos de viagem, no entanto, não os descaracteriza como um
“relato” sobre uma determinada “viagem”, do qual se pressupõe a narração de um
deslocamento e a descrição do que ele dá a conhecer. Assim, os lugares e sociedades
visitados, bem como suas peculiaridades, continuam centrais no gênero, inclusive mantendo-
se como motivo do perigo maior constatado – e efetivamente vivido – por alguns dos relatos
atuais, que é o de cair no deslumbramento provocado pelo diferente. Embora Tristes trópicos
apresente os mesmos temas vistos até então, ele difere dos relatos modernos na proporção e
na ordem em que esses temas aparecem. Na obra de Lévi-Strauss, ao contrário do que se
imagina, as sociedades e os lugares visitados – no caso, aldeias indígenas brasileiras – não são
o elemento central. Isso se comprova, inicialmente, pelo lugar que esse tema ocupa na
arquitetura do relato: a viagem aos trópicos propriamente dita não se inicia na Primeira Parte
nem termina na Nona Parte; dentro dessa viagem aos trópicos, a viagem específica às aldeias
indígenas só começa na Quinta Parte. O elemento humano indígena, mais diverso, e mais
esperado pelo leitor de relatos, ocupa, pode-se dizer, o “miolo do miolo” da obra, reduzido a
quatro das suas nove Partes. Em proporção, o caráter secundário da observação dos índios é
ainda mais evidente: mesmo presente em quatro Partes, o tema não ocupa todos os vinte
Capítulos delas, mas apenas treze. O tema das sociedades rurais, menos divulgado, mas tão
presente quanto o dos índios, aparece em cinco das nove Partes do livro, em nove Capítulos
ao todo; as nascentes sociedades urbanas ocupam os quatro Capítulos da Terceira Parte; as
lembranças das sociedades orientais, visitadas em outras viagens, ocupam cinco Capítulos ao
todo. São, portanto, dezoito Capítulos consagrados a sociedades não-indígenas contra treze
dedicados às aldeias indígenas do Brasil – fora os Capítulos ocupados pelos outros temas já
descritos.
Tanto essa proporção quanto a própria maneira pela qual o tema dos índios é
relacionado aos demais apontam para uma nova perspectiva, adotada em Tristes trópicos, do
relato de viagem: o elemento motivador da viagem, narrado no relato, é, na verdade, pretexto
104

para uma discussão mais ampla. Os indícios iniciais de mera antipatia com os relatos de
viagem modernos evoluem, na obra, para afirmações concretas sobre a necessidade de
transcender o material tradicional do relato. É nesse sentido que Lévi-Strauss afirma que

o estudo dos selvagens [...] ajuda-nos a construir um modelo teórico da sociedade


humana, que não corresponde a nenhuma realidade observável, mas graças ao qual
conseguiremos deslindar “o que há de originário e de artificial na natureza atual do
homem”(p. 370)93.

Assim, a viagem relatada não é propriamente aquela que leva ao Brasil central, ainda
que ela também apareça na obra. A viagem digna do relato é de natureza intelectual, rumo ao
conhecimento da essência humana. É por conta dessa ambição que se torna viável pensar em
Tristes trópicos como um livro sobre a raça humana, sob a forma de relato de viagem,
concebido por um autor “vindo de um tour de humanidade, que certamente não o fez sair de si
mesmo, mas que o levou de um si-mesmo por acidente, se é possível dizer, a um si-mesmo
que sabe abraçar o universal”94.

4.2.2. O exotismo
O mal-estar detectado nos relatos de viagem do século XX, expresso em função do
próprio gênero a que pertencem, tem um claro motivo: a constante presença do exótico, quase
como um elemento constitutivo, obrigatório, à narrativa de viagem. Evidentemente, persistem
os relatos de viagem de feição mais comercial, que costumam fazer uso deliberado de todos
os clichês e simplificações referentes à região relatada, apelando para o gosto fácil que o
exotismo costuma despertar no público em geral. Justamente como forma de diferenciar-se do
que se consagrou como procedimento típico do relato de viagem moderno, esta exaltação do
diferente passa a ser negada por vários autores contemporâneos, interessados em um
testemunho verdadeiro e construtivo da experiência da viagem por que passaram. Tristes

93
“L’étude des sauvages [...] nous aide à bâtir un modèle théorique de la société humaine, qui correspond à
aucune réalité observable, mais à l’aide duquel nous parviendrons à démêler ‘ce qu’il y a d’originaire et
d’artificiel dans la nature actuelle de l’homme’” (p. 469).
94
“Parvenu au bout d’un tour d’humanité, qui certes ne l’aura pas fait sortir de lui-même mais qui l’aura mené
d’un lui-même de pur accident, si l’on peut dire, à un lui-même qui sait embrasser l’universel” (LEIRIS, 1966, p.
202).
105

trópicos, como já foi visto, obedece a essa tendência, transformando a crítica ao exotismo em
tema, na sua Primeira Parte, como também fazem outros escritores95.
No entanto, muitos dos escritores-viajantes do século XX têm consciência de que, por
mais que se procure evitar a exaltação gratuita do diferente, o olhar de quem viaja é sempre
parcial, contaminado desde sua origem pela cultura a que pertence. Afinal, como dar notícia
de algo sem descrevê-lo, e como fazer uma descrição sem utilizar-se de referenciais próprios?
Assim, corre-se sempre o risco de supervalorizar ou depreciar de imediato o elemento
relatado, o que tem sido parcialmente resolvido nas obras mais recentes pelo cuidado maior
com o tom das observações feitas e com os julgamentos de valor. É o que permite a inevitável
presença, ainda que atenuada, de um certo deslumbramento com o elemento exótico em
relatos atuais, mas que impede que existam hoje apreciações preconceituosas como as
comumente tecidas por Pierre Loti ou até por Chateaubriand, por exemplo, no século XIX,
sem grandes constrangimentos96.
Em Tristes trópicos, embora seja patente, na Primeira Parte, a crítica ao exotismo de
gosto fácil e ao relato de viagem que se vale desta instância, é de outra ordem o cuidado que
se observa no tratamento dos assuntos que podem cair numa visão idílica dos trópicos. Sob
uma perspectiva etnográfica, o autor recorre ao inventário dos elementos locais, dando
atenção àqueles referentes a aspectos novos para seu padrão. No entanto, essa atenção não
mobiliza apenas o olhar, apesar de partir dele. Em outras palavras, em Tristes trópicos, o autor
não suprime impressões e sensações que tem diante do novo. O encantamento ou a decepção
são expressos sem constrangimento porque são expostos, na obra, como etapa de um processo
maior de conhecimento da nova realidade – o único caminho que naturalmente destrói o
exótico. Ora, a chave do exótico é justamente valer-se da idealização de determinado objeto –
seja uma nova paisagem ou uma nova sociedade – para dar vazão aos desejos pessoais
daquele que observa, passando longe do entendimento, da explicação efetiva do objeto
95
É o caso de Paul Nizan, em seu Aden Arabie, de 1931, e de Georges Balandier, em Afrique ambigüe, de 1957,
para citar alguns exemplos. Há também os autores que, embora critiquem o apelo ao exótico, continuam
praticando-o, como faz Victor Segalen. Seu Essai sur l’exotisme, compilação de anotações sobre o tema,
publicado postumamente em 1955, embora promulgue o exercício de um verdadeiro exotismo, livre de clichês,
não consegue fugir da exaltação do diferente, presente, aliás, em várias de suas obras.
96
É o caso destes trechos, retirados de Madame Chrysanthème, de Pierre Loti: “[les Japonais ont des] cervelles
tournées à l’envers des nôtres” (p. 229, apud TODOROV, 1989, p. 346). Tradução: “[os japoneses têm] o
cérebro disposto inversamente ao nosso”; “[...] entre nous qui étions une même chair, restait la différence
radicale de races, la divergence des notions premières de toutes choses” (Ibid., p. 178). Tradução: “[...] entre nós,
que éramos uma mesma carne, mantinha-se a diferença radical de raças, a divergência de noções primordiais
sobre todas as coisas”.
106

observado. No procedimento adotado em Tristes trópicos, em relação aos elementos


observados na viagem, não se esquiva da sensação que o novo desperta, mas isso não quer
dizer que tenha havido adesão ao olhar exótico. Essa sensação inicial serve como primeiro
passo do processo de compreensão do elemento observado a partir de pressupostos
etnográficos. O que, em uma leitura apressada, pode ser visto como mera exposição gratuita
de simpatia ou antipatia do autor a algum aspecto – logo, uma marca de exotismo – é, na
verdade, a isca pela qual o autor foi chamado à análise etnográfica de determinado fenômeno.
Pode-se representar o movimento observado na obra pela seguinte seqüência: Exposição do
“exótico” (impressões, sensações) – Análise (dados históricos e geográficos, comparações,
deduções) – Conhecimento etnográfico.
Dessa maneira, se é possível encontrar passagens da obra que lembram os comentários
dos viajantes mais ingênuos – caso do encanto expresso diante da paisagem de Santos, que,
vista de cima, entre a neblina, parecia ao autor “a própria Terra emergindo no princípio da
criação” (p. 87) – é visível também que as expressões mais entusiasmadas não são gratuitas
porque precedem ou aparecem intercaladas a uma minuciosa exposição de informações
históricas e de dados geográficos observados. É o caso das considerações sobre a importância
comercial do porto de Santos à época da exploração do café, ou sobre a erosão sofrida pela
mata, provocada pela “agricultura de rapina”, que, por sua vez, é responsável pelo surgimento
da “floresta secundária, [que] renasce como um bosque contínuo de árvores miúdas” (p. 89)97.
Chega-se, ao final deste movimento de análise do elemento inicialmente encantador, a
considerações mais específicas. As observações sobre Santos, que suscitaram a comparação
da paisagem do trópico à paisagem européia – mais ordenada que a observada em Santos
porque, ao contrário do que parece, “ostensivamente subjugada ao homem” –, serviram para
conduzir o autor à reflexão sobre sua própria paisagem, antes entendida como selvagem
simplesmente por ser natureza: “É preciso ter viajado à América para saber que essa harmonia
sublime, longe de ser uma expressão espontânea da natureza, provém de acordos longamente
buscados durante uma colaboração entre o local e o homem” (p. 89)98. Em algumas
passagens, o processo de conhecimento de determinado aspecto é sucedido, ainda, da quebra
do apelo “exótico” inicialmente exposto. No caso da paisagem da Mata Atlântica, que tanto
97
“... forêt sécondaire, renaît comme un fourré continu d’arbres grêles” (p. 102).
98
“... il faut avoir voyagé en Amérique pour savoir que cette harmonie sublime, loin d’être une expression
spontanée de la nature, provient d’accords longuement cherchés au cours d’une collaboration entre le site et
l’homme” (p. 103).
107

mobilizou o autor em sua passagem pela região, o encanto cedeu lugar à constatação da
realidade, apontando para o que o título já sugere:

Nos arredores de São Paulo, como mais tarde no estado de Nova York, no
Connecticut e inclusive nas montanhas Rochosas, aprendi a me familiarizar com
uma natureza mais bravia do que a nossa, porque menos povoada e menos cultivada,
e no entanto privada de verdadeiro frescor: não selvagem, mas desqualificada (p.
90).99

Há outras várias passagens em que do exótico chega-se ao conhecimento. Há esse


movimento quando o autor trata de sua expectativa acerca do ineditismo ao chegar ao Novo
Mundo. Depois de constatar mais semelhanças com o seu universo do que esperava, e depois
de inteirar-se da paisagem urbana do Rio de Janeiro, comparando-a com a de outras grandes
cidades da América, o autor conclui que

os trópicos são menos exóticos do que obsoletos. Não é a vegetação que os


caracteriza, mas pequenos detalhes da arquitetura e a sugestão de um tipo de vida
que, mais do que ter transposto imensos espaços, convence que imperceptivelmente
recuamos no tempo (pp. 82-3).100

O exotismo que inicialmente é sentido por uma diferença espacial – as sociedades distantes
são exóticas –, depois da vivência e do conhecimento, passa a ser marcado por um matiz
temporal, tanto mais inusitado por reavivar um tipo de vida que se aproxima de um certo
passado europeu. Se foi possível chegar a um aspecto similar ao universo de origem, o
exotismo se reconfigurou. Assim, o trópico não é “exótico”, mas simplesmente “obsoleto”, do
ponto de vista europeu. Essa dissociação do caráter exótico da esfera espacial, e sua posterior
aproximação da esfera temporal, entretanto, não se aplica ao tratamento que o autor confere às
sociedades indígenas. Ver o outro como exótico, considerando-o distante no tempo, era

99
“Dans les environs de São Paulo, comme plus tard dans l’Etat de New York, le Connecticut et même les
montagnes Rocheuses, j’apprenais à me familiariser avec une nature plus farouche que la nôtre parce que moins
peuplée et moins cultivée, et pourtant privée de fraîcheur véritable: non point sauvage, mais déclassée” (p. 103).
100
“Les tropiques sont moins exotiques que démodés. Ce n’est pas la végétation qui les atteste, mais de menus
détails d’architecture et la suggestion d’un genre de vie qui, plutôt que d’avoir franchi d’immenses espaces,
persuade qu’on s’est imperceptiblement reculé dans le temps” (pp. 94-5).
108

próprio ao pensamento primitivista, segundo o qual os selvagens representavam a infância do


homem europeu, numa escala evolutiva de progresso. Aliás, é sintomático que em Tristes
trópicos a presença desse primeiro estágio do processo de conhecimento, baseado em
impressões e sensações subjetivas, concentra-se nos Capítulos destinados às sociedades
urbanas, dos grandes centros e do interior do país, e pouco aparece nas Partes consagradas às
sociedades indígenas visitadas. Nessas Partes, o autor recorre preferencialmente à observação
e análise, reservando as impressões pessoais ao próprio processo de trabalho, às etapas da
viagem.
Apesar desse procedimento, Tristes trópicos não foge a certos momentos de pura e
simples exaltação da cor local. Logo no primeiro Capítulo, o autor condena os relatos que
registram recordações banais do cotidiano da viagem, que nada acrescentam à narrativa além
do sabor de uma paisagem idílica. Entretanto, há trechos na obra em que essa mesma espécie
de registro é feita, sem que ela alcance um significado maior, como demonstrado, de
elaboração do conhecimento e, eventualmente, de desconstrução do exótico. É o caso do
rápido comentário ao autor, em meio a considerações sobre a arquitetura de sua casa em São
Paulo, sobre a vontade de “sentir-se” nos trópicos:

entrava-se ali por uma arcada de jasmins e, nos fundos, havia um jardim velhusco
em cuja extremidade eu pedira ao proprietário que plantasse uma bananeira que me
convencesse de estar nos trópicos. Alguns anos mais tarde, a bananeira simbólica
transformara-se numa pequena floresta onde eu fazia a minha colheita (p. 105).101

A efetiva presença nos trópicos ainda não era suficiente para que o autor se sentisse nos
trópicos. Nesse caso, a sensação não foi complementada pela realidade, mas sim preservada
dela com o providencial auxílio de um elemento exótico, a bananeira.
Em outro trecho, a respeito da observação de um deserto, em viagem de avião para a
Índia, o autor não resiste a uma descrição absolutamente contemplativa daquilo que vê, dando
vazão ao prazer visual que sentiu e, para tanto, recorrendo a recursos poéticos:

101
“On y pénétrait sous une voûte de jasmin et, par-derrière, il y avait un jardin vieillot à l’extrémité duquel
j’avais demandé au propriétaire de planter un bananier que me convainquît d’être sous les tropiques. Quelques
années plus tard, le bananier symbolique était devenu une petite forêt où je faisais ma récolte” (p. 123).
109

Como são suaves as cores dessas areias! Parece um deserto de carne: pele de
pêssego, nácar, peixe cru. Em Ácaba, a água, ainda que generosa, reflete um azul
implacavelmente duro, ao passo que os invisíveis maciços rochosos se fundem em
tonalidades furta-cores. (p. 123)102

Diferentemente da maioria das descrições que faz, em que procura associações mais
inusitadas e menos explicitamente positivas para relatar o que observa, aqui o autor faz uso,
inclusive, de exclamações. Desse modo, não se distanciou muito, neste trecho, das descrições
que se prestam a meros devaneios e sensações agradáveis, segundo ele condenáveis em
relatos de viagem.
Mais do que provas de incongruência ou marcas de mediocridade do autor, esses
“momentos exóticos” de Tristes trópicos não deixam de ser uma marca da dificuldade de se
manter isenção diante do outro, experimentada por vários autores de relatos de viagem.
Assim, esse exotismo residual torna-se também mais uma evidência importante do dialogismo
de Lévi-Strauss com uma certa tradição do gênero do relato, ainda que não se trate de um
traço recorrente em sua obra. Nesse sentido, seu diálogo maior é com uma família de relatos
de viagem do século XX que faz do exotismo um tema e uma ameaça, à qual, apesar de tudo,
sucumbe eventualmente.

4.2.3. Seqüência narrativa


A exposição dos temas, a construção de um processo cognitivo, os deslocamentos no
espaço; tudo isso ligado a uma sucessão temporal é articulado na seqüência narrativa do
relato. Uma vez consciente da impossibilidade de valer-se apenas do testemunho para elaborar
um relato de viagem estruturado e reconhecido como tal, o viajante passa a submeter sua
experiência real aos procedimentos textuais: enfim, aceita sua condição de narrador. Esse
novo status, se, por um lado, o desobriga de reproduzir fielmente todas as situações
vivenciadas, na ordem cronológica e seguindo a proporção temporal em que se sucederam,
por outro impõe a ele o manejo de elementos narrativos, cujo êxito só se verifica na escala
textual a que ele, irremediavelmente, deve aderir. Em outras palavras, o viajante, para

102
“Que ces sables ont des couleurs tendres! On dirait un désert de chair: peau de pêche, nacre, poisson cru. A
Akaba, l’eau, pourtant bienfaisante, reflète un bleu impitoyablement dur, tandis que les invivables massifs
rocheux se fondent en teintes gorge-de-pigeon” (p. 147).
110

transformar sua experiência em um relato de viagem, autônomo, deve assumir o papel de


escritor, deve encerrar sua viagem nos limites do texto, diferentes dos limites da vida real.
Lévi-Strauss parece consciente – e, mais do que isso, confortavelmente apossado – de
seu papel de narrador em Tristes trópicos. Mais importante do que tal atestação, porém, é
verificar que, em seu relato, as informações coletadas são submetidas à lógica discursiva,
compondo um texto coerente, de sentido próprio. Afinal, a veracidade do testemunho, ainda
que importante, deve ceder lugar à sensação de veracidade, como na literatura, em que os
dados, as informações concretas, nada mais são, no texto, que elementos de composição103.
Assim, detecta-se um trabalho narrativo complexo, capaz de garantir o intento informativo de
um relato de viagem, e, para além dele, uma arquitetura textual que também aproxima a obra
de outros gêneros do discurso. Antes dessa aproximação, interessa ver os procedimentos
estruturais aplicados na obra que a encaminham para o relato de viagem.
Assim como grande parte dos relatos de viagem, Tristes trópicos tem um
deslocamento espaço-temporal bem definido como matéria relatada: a viagem do autor para o
Brasil e, já no país, de São Paulo para o centro-oeste brasileiro, em busca das sociedades
indígenas. A narrativa segue a ordem cronológica desse percurso, que se estende da Segunda
à Oitava Parte. Mantém-se, assim, de acordo com uma estratégia típica do relato de viagem, a
exposição linear dos fatos, com a qual se garante a adesão do leitor. Seguindo o itinerário
ordenadamente exposto, o leitor tem a oportunidade de vivenciar a experiência rememorada
pelo autor do relato, mais do que simplesmente conhecê-la. No entanto, apesar de os fatos
serem expostos de maneira linear em Tristes trópicos, não se pode depreender, então, que a
obra é um grande testemunho da viagem de seu autor, simplesmente porque há várias outras
seqüências narrativas, além da factual, fundidas na estrutura textual da obra.
A análise desse entrelaçado narrativo possibilita a identificação das principais linhas.
Há, como já visto, uma seqüência maior, dos fatos relativos à viagem completa aos trópicos,
que perpassa quase toda a obra. Esta linha é composta basicamente da mescla de narração e
descrição dos fatos observados, além da exposição das impressões pessoais decorrentes dessa

103
Este pressuposto é trabalhado por Antonio Candido em seu “Dialética da malandragem”, quando trata do
caráter documentário do romance de Manuel Antonio de Almeida. No “Prefácio” ao estudo, o autor afirma que
“a capacidade que os textos possuem de convencer depende mais da sua organização própria do que da
referência ao mundo externo, pois este só ganha vida na obra literária se for devidamente reordenado pela fatura”
(CANDIDO, 2004, p. 10). A “vida” de Tristes trópicos decorre exatamente dessa organização textual do material
concreto, e não do eventual caráter pitoresco da experiência que relata.
111

observação. Identificam-se também seqüências de mesma composição que esta, mas


secundárias, porque vivificam outras viagens do autor, a países orientais, posteriores à viagem
aos trópicos e rememoradas em função desta. Em outra escala, há a narrativa de episódios,
seqüências relativamente curtas que destacam, de dentro da seqüência maior, ou das
seqüências secundárias, algum evento pontual. Esses episódios, em proporção aos outros fios
da narrativa, são verdadeiros “fiapos” do tecido. No entanto, têm importância para o conjunto,
pois, como será visto, eles são responsáveis pela aproximação da obra a uma dimensão
ficcional. Outra linha relevante em Tristes trópicos é a seqüência formada pelas informações
histórico-geográficas sobre determinada região ou sociedade visitada. Também aparecem na
obra em pequenas unidades, suscitadas a cada nova etapa da viagem, assim como uma linha
muito parecida a esta, a seqüência analítica. Embora de proporções semelhantes e em relação
de simbiose, as seqüências de análise são mais significativas que as informativas, na obra, por
serem elas as responsáveis pela consolidação do conhecimento etnográfico, objetivo final da
empreitada.
Não é a exatamente a identificação de várias seqüências dentro de Tristes trópicos que
o identifica ou não ao relato. Pode-se dizer que sua aproximação ao gênero decorre de alguns
procedimentos verificáveis em relatos, como a linearidade factual, e que o confronto do
gênero é pontuado por algumas rupturas a ele. No caso da estrutura dos relatos de viagem,
seria equivocado interpretar essa multiplicidade de seqüências, visível também em outros
gêneros, como marca de singularidade de Tristes trópicos em relação ao gênero. Mas, a partir
dessa primeira identificação das seqüências, é possível verificar a maneira pela qual essas
seqüências são entremeadas. Uma amostra dessa composição já foi dada no Capítulo 1 desta
dissertação, em que se analisou mais especificamente a Primeira Parte da obra de Lévi-
Strauss, por onde se pôde depreender que há, mais do que uma justaposição, uma intercalação
mais profunda do que possa parecer.
Há várias passagens passíveis de análise para a averiguação do movimento narrativo
em Tristes trópicos. Tome-se como exemplo a narração da passagem do autor pelo pantanal
mato-grossense, antes de sua chegada uma aldeia Cadiueu, no Capítulo 18. A seqüência geral
desta passagem mostra o deslocamento do autor e de sua comitiva de São Paulo a Bauru, de
Bauru até a parte oeste do Mato Grosso, quase até o fim da linha de trem, em Porto
Esperança, de onde partiriam para as aldeias indígenas. Essa seqüência geral é anunciada
112

como tal no início do capítulo: “Depois desse batismo [episódio do capítulo anterior], eu
estava pronto para as verdadeiras aventuras” (p. 150). As “verdadeiras aventuras” são,
evidentemente, o centro de qualquer relato de viagem, o seu material mais caro. Após essa
declaração de intenções, dando prosseguimento à seqüência narrativa central, o autor relata
seu plano de contato com os índios, seu itinerário e o início da viagem de trem rumo ao Mato
Grosso, com a descrição da paisagem do cerrado. Neste ponto, a seqüência geral dá espaço à
uma análise filológica dos termos “Mato Grosso”, “grande fôret [grande floresta]”, “grande
brousse [grande mato]”, “sertão” e “bled”. Essa seqüência analítica, que ocupa apenas um
parágrafo e meio, no entanto, não produz um “corte” na seqüência narrativa geral, mas, à
medida que foi suscitada por ela, complementa-a. Tampouco a lembrança da questão
filológica veio da mera curiosidade suscitada pelo nome do local percorrido, como devaneio
de uma longa viagem. A lembrança foi suscitada pela paisagem observada pelo autor em seu
deslocamento e descrita na seqüência geral; nela há, aliás, a marca da passagem da viagem
para a análise: “Muitos viajantes cometem um contra-senso ao traduzirem Mato Grosso por
‘grande fôret’” (p. 151, grifos nossos). O autor, com sua observação, deixa ver que viajantes
não só vêem mas também analisam o novo. É possível dizer que essa intercalação de
seqüências é mais simbiótica, uma complementando a outra, do que expositiva.
Pode-se observar outro exemplo de intercalação de seqüências mais adiante, na
chegada do autor a Porto Esperança. Tão logo começa-se a discorrer sobre a cidade – “o lugar
mais esquisito que se possa encontrar na face da Terra” – a seqüência secundária vem ao seu
auxílio: “[...] com exceção talvez de Fire Island no estado de Nova York” (p. 152). O autor
afirma que “os dois locais são análogos ao reunirem os dados mais contraditórios, mas cada
um num registro diferente”, ao que sucede a descrição desta segunda, ressaltando sua feição
de “flecha de areia destituída de vegetação”. Ao final, volta a aproximar as duas cidades –
“Fire Island dá a impressão de uma farsa alegre, da qual Porto Esperança fornece uma réplica
destinada a uma população mais amaldiçoada.” –, mas com vistas a retornar à seqüência geral,
sobre Porto Esperança, estada da viagem.
O Capítulo 21, que retrata a estada do autor em Cuiabá, à época região de atividade
garimpeira, é particularmente interessante como exemplo de intercalação de seqüências
informativas e de episódios, dentro da seqüência narrativa geral. Na narrativa da passagem e
da estadia nas cidades de Corumbá e de Cuiabá, inserem-se, à medida que se tornam úteis
113

para o entendimento, informações históricas e observações sobre o relevo ou sobre a


vegetação local. Após expor suas primeiras impressões da cidade, o autor trata da fundação de
Cuiabá, em meados do século XVIII, por bandeirantes paulistas, que se instalaram com a
ajuda dos índios Cuxipó. Prossegue narrando, como episódio – não-anunciado como tal –, o
que teria sido o momento exato da descoberta de ouro na região, em tom que lembra o relato
dos mitos fundadores:

Certo dia, um colono – Miguel Sutil, o bem chamado – mandou alguns índios à
procura de mel selvagem. Voltaram na mesma noite, com as mãos cheias de pepitas
de ouro colhidas na superfície. Sem mais tardar, Sutil e um companheiro chamado
Barbudo seguiram os indígenas ao local de sua coleta: lá estava o ouro, por todo
lado. Em um mês, recolheram cinco toneladas de pepita (p. 193).104

A menção à história da descoberta de ouro na região é logo justificada, na retomada da


seqüência geral de observações: “Portanto, não admira que as terras ao redor de Cuiabá
lembrem, em certos locais, um campo de batalha; morros cobertos de capim e capoeira
comprovam a febre antiga”105. No entanto, isso não explica a recorrência ao episódio, que
obedece à forma narrativa ficcional, com marcação temporal, personagens, enredo. Para
justificar a paisagem atual marcada pelo garimpo, bastava a atestação, em uma seqüência
referencial, da intensa atividade aurífera iniciada no século XVIII. A escolha pelo episódio,
neste trecho e por toda a seqüência narrativa da viagem, pode ser entendida como a adesão da
obra aos artifícios ficcionais, claramente vantajosos. Este procedimento será mais bem
abordado posteriormente; é importante, por enquanto, retomar o movimento narrativo
observado no capítulo referente a Cuiabá, reiterando sua feição de entrelaçado.
Depois de comentar rapidamente a parte “oficial” da viagem, que o obrigava a um
cerimonial, entre prefeitos e autoridades locais, a cada nova estada, o autor afirma: “Uma vez
desincumbidos dessas formalidades, podemos passar ao que interessa” (p. 194). O elemento
de interesse, para ele, está nas lojas de comerciantes libaneses, na padaria, no açougue; nas

104
“Un jour, un colon – Miguel Sutil le bien nommé – envoya quelques indigènes à la recherche de miel
sauvage. Ils revinrent le soir même, les mains remplies de pépites d’or ramassées en surface. Sans plus attendre,
Sutil et un compagnon appelé Barbudo – le Barbu – suivirent les indigènes au lieu de leur collecte: l’or était là,
partout. En un mois ils ramassèrent cinq tonnes de pépites” (p. 236).
105
“Il ne faut donc pas s’étonner que la campagne entourant Cuiaba ressemble par endroits à um champ de
bataille; des tertres couverts d’herbes et de broussailles attestent la fièvre ancienne” (p. 236).
114

profissões surgidas das dificuldades de transporte e abastecimento da região, como a dos


“motoristas-virtuoses” de caminhão; no garimpo de diamante, dominado por “aventureiros e
foragidos” e regulado pela “lei do bando”; nas rodas noturnas de conversas e cantigas do
sertão. Só ao final do capítulo, no penúltimo parágrafo, narra-se a chegada a um ajuntamento
Bororo, o motivo primeiro da empreitada. Nessa seqüência sobre o elemento humano,
observado com tanto interesse entre os sertanejos como entre os indígenas, constata-se a
gradual redução da presença dos outros fios condutores. Neste ponto, em que se inicia a
observação indígena mais compacta, o autor faz cada vez menos uso do entrelaçado narrativo.
Talvez se possa supor que a escolha por uma exposição dos fatos mais “limpa”, direta, nesta
parte, corresponda à necessidade de guiar a leitura por uma seqüência mais etnográfica, em
que o autor precise de um leitor focado no elemento indígena, para acompanhar os
desdobramentos desse estudo. Se assim for, pode-se dizer que, em Tristes trópicos, o maior
grau de intercalação narrativa é indicativo de sua aproximação do relato de viagem e que o
maior grau de unicidade narrativa é marca de sua aproximação com o estudo etnográfico.
Ainda assim, há que se considerar que, mesmo sendo marca de filiação ao relato, essa
multiplicidade de seqüências é apresentada de maneira harmoniosa em Tristes trópicos, o que
talvez singularize a obra dentro da família de relatos de viagem.

4.2.4. O real e a ficção


O problema da ficção já foi largamente discutido por correntes e teóricos literários,
justamente pela sua relação íntima com o processo artístico e pelas dificuldades que suscitou
diante da tentativa de classificar o ficcional dentro do eixo verdade – mentira. Sem refazer os
passos desse percurso teórico, é importante ressaltar, primeiramente, para este estudo, que as
questões relativas à ficção não pressupõem necessariamente que se esteja diante de um texto
literário. Apenas se usa o suporte de investigadores literários porque eles costumam tratar dos
mecanismos ficcionais em funcionamento na prosa literária. Em segundo lugar, ressalta-se
que se parte da consideração do ficcional como resultado de um trabalho textual que se vale
não da realidade dos fatos propriamente dita, mas da impressão de verdade que o relatado
transmite. Essa impressão não quer dizer semelhança do escrito com o mundo real do leitor
ou, de modo geral, com a realidade lógica – se assim fosse, Alice no país das maravilhas, ou
Tristam Shandy, não fariam sentido para o leitor. A verossimilhança de um texto ficcional
115

depende, antes, de sua lógica interna, da coerência que tem com sua própria realidade. Esta é
constituída por meio do desenvolvimento que o autor faz de seus elementos internos – enredo,
progressão, personagens –, mas também, como ressalta Candido, da combinação desses
elementos106. É necessário, portanto, um trabalho rigoroso para que o texto ficcional garanta
sua aceitação como tal. Qual o ganho, porém, do autor que empreende esse trabalho textual?
Enfim, qual é vantagem da ficção sobre a verdade dos fatos que, por ser comprovável,
irrefutável, não pode ser questionada pelo leitor?
Verificou-se que os relatos de viagem, embora contem com uma matéria real, não
deixam de elaborar-se, parcial ou integralmente, como textos de natureza ficcional. Uma vez
eliminada a necessidade de se atestar a veracidade do relato, com a consolidação do
conhecimento dos limites geográficos do mundo moderno, as viagens e descobertas poderiam
ser contadas tal qual aconteceram, sem medo da recusa do leitor. No entanto, a dimensão
ficcional incorporou-se ao gênero de modo que se tornou, inclusive, um de seus traços
constitutivos. Talvez se possa dizer que a verdade, em estado bruto, não tenha o mesmo apelo
que a invenção, que é capaz, segundo Candido, de “nos dar um conhecimento mais completo,
mais coerente que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres”107.
Estendendo a afirmação de Candido sobre os seres à realidade global, pode-se depreender que
o real nunca se oferece tão coeso, completo, lógico quanto a matéria reordenada pelo
narrador. Nesse sentido, podemos dizer que reinventar é ficcionalizar, transformar o fato
verídico, trazido pela observação e pela memória, em matéria ficcional108.
Assim como se tem observado na evolução do gênero ao longo dos séculos, no relato
de Lévi-Strauss é perceptível uma certa elaboração ficcional. Para além da composição de
planos e, dentro deles, de tramas narrativas, Tristes trópicos apresenta passagens que bem
poderiam ser pura ficção, visto que, em várias delas, mais do que retratar um fato, percebe-se
uma intenção de contar uma história – vide o trecho já transcrito sobre a fundação de Cuiabá.

106
“Cada traço [da estrutura do romance] adquire sentido em função de outro, de tal modo que a
verossimilhança, o sentimento de realidade, depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela
organização do contexto.” (CANDIDO, 2002, pp. 79-80).
107
Ibid., p. 64.
108
Joaquim Alves de Aguiar, em seu estudo sobre Pedro Nava, reproduz um trecho do escritor sobre os
memorialistas, que se aplica bem à questão aqui discutida, sobre a dimensão ficcional nos relatos de viagem:
“[...] para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança, onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis.
Os fatos da realidade são como pedra, tijolo – argamassados, virados parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo
reboco da verossimilhança – manipulados pela imaginação criadora. [...] Só há dignidade na recriação. O resto é
relatório [...]”. (AGUIAR, 1996, p. 22).
116

Partindo da concepção aristotélica de verdade, inclusive, pode-se dizer que no caso de Tristes
trópicos houve uma coincidência entre verdade histórica e verdade ficcional109. Ou, como já
foi afirmado, a obra segue a tendência do gênero de tratar um conteúdo real com uma
estrutura de texto ficcional, o que, por si só, já o aproxima de gêneros considerados literários.
Esse tratamento é particularmente visível nos episódios que pontuam, por toda a obra,
a seqüência narrativa geral. São lembranças de outras viagens ou situações peculiares que o
autor ressalta e que constituem uma unidade narrativa, com presença de enredo, personagens e
desfecho. Alguns episódios contam inclusive com elementos enunciativos do tempo presente
– verbos no presente do indicativo, dêiticos –, tal como se estivessem acontecendo no
momento da enunciação. É o caso da passagem em que o autor narra a chegada de sua tropa a
um abrigo rústico perto da aldeia de São Jerônimo, no Paraná, que serviu de pouso para a
comitiva:

Bientôt, un son se précise dans le lointain; non plus le rugissement du jaguar, que
nous avons entendu un instant au crépuscule. Cette fois, c’est un chien qui aboie, la
halte est proche. Quelques minutes plus tard, notre guide change de direction; nous
pénétrons à la suite dans une petite friche [...]; devant une hutte, faite de palmiers
disjoints surmontés d’une toiture de paille, s’agitent deux formes vêtues d’une mince
cotonnade blanche: nos hôtes, le mari souvent d’origine portugaise, la femme
indienne (p. 179).110

A seqüência narrativa até então desenvolvida – a viagem a cavalo por entre a floresta densa
do norte do Paraná – havia ressaltado as dificuldades do deslocamento, os trechos de relevo
perigoso, a necessidade de equilíbrio sobre o cavalo. Em vez de simplesmente manter a
seqüência dos fatos da expedição em linhas gerais, o autor passa a pontuar, com detalhes, a
passagem por uma escala antes de chegar ao destino. O uso dos marcadores temporais

109
“[...] E ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede
que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo,
venha o poeta a ser o autor delas” (o grifo é nosso). É notável que Aristóteles estabeleça como motivo
fundamental para o exercício do poeta o caráter verossímil dos fatos, colocando como uma casualidade sua real
existência. ( ARISTÓTELES, 1973, p.451).
110
“Logo, um som se define; não mais o rugido de uma onça, que ouvimos por um instante no crepúsculo. Desta
vez, é um cachorro que late, a escala está perto. Minutos depois, nosso guia muda de direção; penetramos atrás
dele numa pequena clareira [...]; na frente da cabana, feita de palmeiras desconjuntadas cobertas por um teto de
palha, agitam-se duas formas vestidas com uma roupa leve de algodão branco: nossos anfitriões, o marido quase
sempre de origem portuguesa, a mulher, índia.” (p. 146).
117

“bientôt”, “cette fois”, “quelques minutes plus tard” trazem o episódio narrado para o
presente. Junto às indicações de ação – “un son se précise”, “un chien qui aboie”, “notre guide
change de direction”, “s’agitent deux formes” –, o episódio, que na verdade aconteceu muitos
anos antes, aproxima-se do tempo da leitura. Ou seja, aproxima-se do leitor, que passa a
acompanhar a narrativa não mais como mera lembrança reavivada no relato, mas como se a
estivesse vivendo com o narrador. É exatamente este o sentimento suscitado por obras
ficcionais, que usam dos mesmos elementos aqui observados. O trecho relatado termina, após
a narração da noite dormida no paiol e do café da manhã preparado pela anfitriã, com a volta
gradativa ao tempo enunciativo anterior, o pretérito perfeito, e com a marcação do novo status
de lembrança do episódio, o termo “oubliée”:

[...] on rassemble les chevaux, on les selle et on part. En quelques instants, la forêt
ruisselante s’est refermée autour de la hutte oubliée (p. 179-180).111

Assim, volta-se à narração geral, focando as informações referentes à reserva São Jerônimo, o
objetivo daquela trajetória.
Se é possível afirmar que o episódio anterior foi pontuado como forma de mostrar
como eram as várias escalas feitas pela expedição, e não exatamente como era aquela escala
específica, em outras passagens observa-se uma intenção de cristalizar um momento também
curioso, peculiar, além de representativo. São episódios que retratam alguma cena específica
com o uso dos marcadores temporais do presente aliado às marcas de discurso direto ou de
discurso indireto livre. Trata-se, nesses casos, de uma cena geralmente mais literária, no
sentido de maior elaboração lingüística, como a que segue.

Il faut aussi mentionner les koro, larves pâles qui pullulent dans certains troncs
d’arbres pourrissants. Les Indiens, blessés par les railleries des blancs, n’avouent
plus leur goût pour ces bestioles et se défendent énergiquement de les manger (p.
183).112

111
“[...] reunimos os cavalos, arreamo-los, partimos. Em poucos instantes, a floresta molhada fechou-se em torno
da cabana esquecida” (p. 146).
112
“Há que se mencionar os ‘corós’, larvas brancas que pululam em certos troncos de árvores podres. Os índios,
magoados com as zombarias dos brancos, não mais confessam seu gosto por esses bichinhos e negam
categoricamente que os comem.” (p. 149).
118

Até aqui, trata-se simplesmente de uma observação dos fatos. Entretanto, a observação torna-
se episódio:

Aussi n’est-ce pas chose facile que d’assister à l’extration des koro. Nous méditons
longuement notre projet, comme des conspirateurs. Un Indien fièvreux, seul dans un
village abandonné, semble une proie facile. On lui met la hache dans la main, on le
secoue, on le pousse. Peine perdue, il semble tout ignorer de ce que nous voulons de
lui. Sera-ce un nouvel échec? Tant pis! Nous lançons notre dernier argument: nous
voulons manger des koro. On arrive à traîner la victime devant un tronc. Un coup de
hache dégage des miliers de canaux creux au plus profond du bois. Dans chacun, un
gros animal de couleur crème, assez semblable au ver à soie” (p. 183).113

A utilização do presente do indicativo, que marca a ação dos viajantes e a reação ou o estado
do índio, confere à cena um movimento dinâmico, feito de ação e pensamentos. Ao tempo
verbal que expressa a ação em curso – o presente – junta-se outra marca de ficção: o discurso
indireto livre – “Será mais um fracasso?” (“Sera-ce un nouvel échec?”), “Paciência” (“Tant
pis!”) – e o discurso direto, ainda que não indicado por aspas ou travessão – “queremos comer
corós” (“nous voulons manger des koro”). Essas intervenções do narrador na cena
personificam-no como personagem, aliás, bem composta: além de expor sua participação na
cena narrada, tais marcas expõem seu pensamento interior, sua indecisão e expectativa. Por
fim, a elaboração do episódio tal qual uma cena de obra ficcional completa-se pela descrição
quase cinematográfica da árvore cortada e dos bichos aparentes, o que faz o leitor visualizar a
cena vivida. Por fim, o desfecho da situação criada, já subentendido pelos detalhes da cena, é
inevitável:

Maintenant il faut s’exécuter. Sous le regard impassible de l’Indien, je décapite mon


gibier; du corps s’échappe une graisse blanchâtre, que je goûte non sans hésitation:

113
“Assim, não é fácil assistir à extração dos ‘corós’. Meditamos longamente sobre nosso projeto, como
conspiradores. Um índio febril, sozinho numa aldeia abandonada, parece uma presa fácil. Metemos-lhe um
machado na mão, sacudimo-lo, empurramo-lo. Esforço inútil, ele parece ignorar por completo o que queremos.
Será mais um fracasso? Paciência! Lançamos nosso derradeiro argumento: queremos comer ‘corós’.
Conseguimos arrastar a vítima até defronte de um tronco. Uma machadada revela milhares de canais furados
bem no fundo da madeira. Em cada um deles, um bicho grande, de cor creme, bastante parecido com o bicho-da-
seda.” (p. 149).
119

elle a la consistance et la finesse du beurre, et la saveur du lait de noix du cocotier


(p. 183).114

Além das marcas temporais e enunciativas já mencionadas, contribui para a sensação de


ficção, e mais, de literatura, o desfecho inusitado. Por meio de elementos que “traduzem” o
sabor e a consistência da “iguaria” em termos aceitáveis, e até agradáveis ao paladar –
“manteiga” (“beurre”), “leite de coco” (“lait du noix du cocotier”), além do positivo
“delicadeza” (“finesse”) –, indica-se ao leitor a aprovação daquele sabor pelo narrador-
personagem, inesperada diante de uma situação que já havia gerado expectativa e repugnância
– haja vista os termos “larvas” (“larves”) e “podres” (“pourrissants”), que não mais se
repetiram. Ao mesmo tempo, o episódio não deixa de representar um dos fundamentos
básicos da etnografia – o abandono temporário dos valores próprios para se tentar
compreender o outro –, em contraposição à exaltação gratuita do diferente, que dispensa a
experiência.
Além da recriação da aventura vivida com o auxílio dos elementos ficcionais, Tristes
trópicos evidencia um interesse do autor em recriar ou transcrever as narrativas ficcionais dos
ambientes visitados. Esse interesse é notável nas passagens que retratam as cidades do interior
do Brasil, principalmente as do centro-norte, de estilo mais rústico, expostas na Sétima e na
Oitava Parte. Trata-se de “causos” dos homens do sertão, piadas, orações, simpatias; enfim,
narrativas de formas e temáticas antigas, muitas vezes da tradição oral. É o caso da “História
de Emydio” (p. 306), transcrita das anotações originais do autor em viagem e exposta no
relato em itálico. A história, narrada com o uso do discurso direto, na qual aparecem, dentre
os personagens, um lobisomem, é uma piada que ressalta a inabilidade do protagonista em
lidar com situações novas. Em outro trecho, o autor transcreve, dessa vez, uma simpatia
retirada de um livro comum na região amazônica, o “Livro de São Cipriano” – provavelmente
um tipo de almanaque. É a “Oração do sapo seco”,115 que ajuda o “oficiante” em casos de
amor, desespero ou luto. Em outra passagem, no Capítulo 25 (“No Sertão”), o autor reproduz
alguns “causos” ouvidos dos garimpeiros e antigos seringueiros:

114
“Agora, precisamos nos decidir. Diante do olhar impassível do índio, decapito minha caça; do corpo escapa
uma gordura esbranquiçada, que eu provo, não sem vacilar: tem a consistência e a delicadeza da manteiga, e o
sabor do leite de coco.” (p. 149).
115
Cf. “História de Emydio” e “Oração do sapo seco” no Anexo desta dissertação, na versão original e na
tradução.
120

Qu’il existât dans le Nord des gatos valentes, chats vaillants, issus du croisement de
chats domestiques et de jaguars, je n’arrivai pas à m’en persuader. Mais de cette
autre histoire que me conte um interlocuteur, il y a peut-être quelque chose à retenir,
même si ce n’est rien, en fin de compte, que le style, l’esprit du sertão (p. 311).116

Ao que inicia a narração da referida história, tal como um contador:

A Barra dos bugres, bourgade du Mato Grosso occidental, sur le haut Paraguay,
vivait un curandeiro, rebouteux qui guérissait les morsures de serpent; il
commençait par piquer l’avant-bras du malade avec des dents de sucuri, boa [sic].
Ensuite il traçait sur le sol une croix avec de la poudre à fusil, qu’il enflammait pour
que le malade étendît le bras dans la fumée. Il prenait enfin du coton calciné d’un
artifício (briquet à pierre dont l’amadou est fait de charpie tassée dans un réceptacle
en corne), l’imbibait de cachaça que buvait le malade. C’était fini (pp. 311-2).117

O autor prossegue no mesmo tom:

Un jour, le chef d’une turma de poiaeiros (troupe de cueilleurs d’ipecacuanha,


plante médicinale), assistant à cette cure, demande au rebouteux d’attendre jusqu’au
dimanche suivant l’arrivée de ses hommes qui, certainement, voudront tous se faire
vaciner (à cinq milreis chacun, soit cinq francs de 1938) (p. 312).118

O “causo” termina com a morte do curandeiro, picado por uma inesperada cascavel, o que
desmascarou o charlatão – mas, surpreendentemente, não para o homem que contou essa
história para o viajante. O informante, segundo o autor, conta que já havia sido vacinado pelo
curandeiro e que, para comprovar sua idoneidade, resolveu deixar-se morder por uma cobra.
116
“De que houvesse no Norte ‘gatos valentes’, oriundos do cruzamento de gatos domésticos e onças, não
consegui me convencer. Mas dessa outra história que um interlocutor me conta, talvez haja algo a reter, ainda
que, no final das contas, seja apenas o estilo, o espírito do ‘sertão’” (p. 252).
117
“Em Barra dos Bugres, povoado do Mato Grosso ocidental no alto Paraguai, vivia um ‘curandeiro’, que
curava mordidas de cobra; principiava picando o antebraço do doente com dentes de sucuri. Em seguida, riscava
no chão uma cruz com pólvora de espingarda, que acendia para que o doente esticasse o braço na fumaça. Por
último, pegava algodão carbonizado de um ‘artifício’ (isqueiro de pedra cujo pavio é feito de um chumaço de
algodão amassado num recipiente de chifre), embebia-o de cachaça que o doente tomava. Mais nada” (p. 252).
118
“Um dia, o chefe de uma ‘turma de poaieiros’ (grupo de colhedores de ipecacuanha, planta medicinal),
assistindo a essa cura, pede ao curandeiro que espere até o próximo domingo pela chegada de seus homens que,
certamente, quererão todos ser vacinados (a cinco mil-réis cada um, ou seja, cinco francos de 1938)” (p. 252).
121

O desfecho da história remonta ao non-sense: “Il est vrai, ajoute-t-il, que le serpent choisi
n’était pas venimeux” (p. 312)119. De fato, o autor tem “algo a reter” com essa história do
sertão que, segundo ele, “ilustra muito bem essa mistura de malícia e ingenuidade [...] que
caracteriza o pensamento popular do interior do Brasil”. Essa fórmula, ao final, aplica-se a
várias outras amostras do pensamento popular reproduzidas pelo autor, literal ou
transfiguradamente. Ou seja, a ficção que mobiliza o autor aqui, reproduzida do povo, é um
precioso dado coletado, útil no estudo etnográfico de um traço de dada sociedade. Ainda que
não tenha sido essa sociedade do sertão o interesse primordial do autor na viagem relatada,
seu olhar já treinado não deixou de registrar também esses dados.
Verifica-se, portanto, que Lévi-Strauss aproxima-se da elaboração de intenção
ficcional em Tristes trópicos. Vale lembrar, no entanto, que esse procedimento foi
incorporado ao gênero dos relatos de viagem em tempos de crise na ordem discursiva
dominante, em que a ficção representava uma saída para o dilema da atestação da verdade.
Mesmo com o dilema posteriormente resolvido, os elementos ficcionais permaneceram fortes,
tornando-se um traço constitutivo dos relatos de viagem. Assim, a presença dessa esfera
ficcional em Tristes trópicos é indicativa de sua filiação ao gênero, para além do discurso
etnográfico, ao qual a obra, em sua multiplicidade, também se aproxima.

4.2.5. Aproximação com a literatura

Já foi visto que o caráter literário de dada obra obedece a parâmetros não absolutos,
mas variáveis, frutos das concepções e ideologias de cada época. Dessa maneira, um modo de
pensar o literário é o de que o conjunto de produtores e receptores dos textos, em interação,
identifica os valores pelos quais determinado texto é considerado literário ou não120. Optou-
se, neste trabalho, por entender como literário, em concepção hoje corrente, o texto no qual se
observa presença significativa de uma elaboração que escapa ao usual nos textos cuja
destinação é simplesmente comunicativa. Por isso, considerou-se que Tristes trópicos pode
ser lido como literatura, posto que apresenta elevado grau de elaboração estética da
linguagem. Nesse âmbito, torna-se importante examinar os procedimentos textuais aqui
119
“É verdade, ele acrescenta, que a cobra escolhida não era venenosa” (p. 252).
120
A respeito do caráter literário de um texto, cf. a “Introdução: o que é literatura?” in EAGLETON, 2003. O
capítulo traça um panorama das várias concepções de literário ao longo da história da literatura, explicitando
seus valores.
122

entendidos como próprios ao literário verificados na obra, enfim, as aproximações de Tristes


trópicos com a literatura.
Primeiramente, há que se lembrar, mais uma vez, que a aproximação ao literário não é
incomum entre os relatos de viagem, mas sim observável, de maneira sistemática, a partir do
século XIX. No entanto, diferentemente do que se observa no relato de Lévi-Strauss ou nos
relatos de alguns de seus contemporâneos, os escritores do século XIX empreendiam a
viagem como etapa de seu projeto de escrita; juntavam-se a uma estrutura narrativa já
concebida, ou pelo menos imaginada, dados recolhidos ao longo da viagem. O caráter literário
nessas obras já era, portanto, esperado. Nos relatos do século XX, passa-se a observar a
aproximação do relato à Etnografia, o que traz maior acuidade na observação e exposição das
informações obtidas na viagem. Nesses relatos, a natureza textual torna-se, portanto, menos
sugestiva, mais objetiva – ainda que, como visto, se detecte também uma dimensão narrativa
ficcional nessas obras. Assim, o exame das marcas de aproximação do relato à elaboração
literária é importante, visto que não se trata mais de traço constitutivo do gênero, mas de uma
elaboração intencional do autor.
A impressão suscitada ao ler Tristes trópicos é a de que se trata de um texto de grande
carga literária, ainda que não seja vinculado a um gênero literário tradicional. Aliás, a
primeira evidência dessa proximidade com o literário é a inserção de alguns textos
“literários”, escritos pelo autor durante sua viagem, na seqüência narrativa do relato. São
transcrições de textos, de anotações ou fragmentos, todas intencionalmente destacadas do
relato seja pela utilização de uma fonte menor, seja pelo itálico. É o caso da descrição de um
pôr-do-sol assistido do navio durante a travessia do Atlântico (Capítulo 7), da descrição dos
Nambiquara, retratados em sua pobreza e dignidade (Capítulo 27), dos pequenos poemas
feitos durante o percurso na floresta (Capítulo 32). Há ainda a inserção de uma peça de teatro
intitulada de A apoteose de Augusto (Capítulo 37, de mesmo nome), o único caso em que não
há transcrição da obra feita durante a viagem, mas sim exposição do enredo, entremeada de
comentários. Uma verificação mais apurada de um desses textos, atentando para recursos
observados em passagens como a dos ‘corós’, ou a das araucárias do Paraná, pode auxiliar a
investigação da dimensão literária da obra. O primeiro deles, o retrato do pôr-do-sol, parece
ser o mais proveitoso para empreender uma rápida análise.
123

O Capítulo em que a descrição do pôr-do-sol se insere recebe o mesmo nome. Depois


da digressão em que o autor expõe suas filiações teóricas – Capítulo 6 –, inicia-se a narrativa
da viagem rumo à América, pela travessia do oceano. A paisagem do alto-mar, imensa e
contínua, inspira o autor a reflexões sobre o olhar, instrumento de trabalho e de prazer para o
etnógrafo. Esse olhar é particularmente mobilizado, antes de submeter-se ao trabalho de
campo que o espera no continente, pelo pôr-do-sol que se vê do navio, diferente a cada dia,
apesar de dias inteiros de mesma paisagem. O autor anuncia, então, a transcrição de suas
anotações de viagem sobre o fenômeno natural observado, explicando o procedimento que
utilizara: “eu anotava segundo após segundo a expressão que talvez me permitisse imobilizar
essas formas evanescentes e sempre renovadas” (p. 60)121. Trata-se de um processo que se
ocupa de atribuir signos e, conseqüentemente, sentido, a determinadas formas visuais. Além
dos sentidos, esse procedimento também considera a importância do prazer estético, porque
essas formas visuais só são satisfatoriamente captadas se o autor se vale de um olhar regulado
pelo prazer – não por acaso, ele evoca o “estado de graça” e os “instantes febris” em que
escreveu o trecho do navio. A importância que dá a essa captação do que vê – “jogo” que,
afirma o autor, vez ou outra volta a fazer – é logo compreendida: a tentativa de “fixar essas
aparências a um só tempo imutáveis e rebeldes a qualquer esforço de descrição” é identificada
como similar à habilidade necessária a um etnógrafo. Assim, a descrição do pôr-do-sol122 não
deixa de ser um exercício ao mesmo tempo etnográfico e poético.
O trecho começa com a tese de que a aurora e o crepúsculo, embora cientificamente
iguais, são fenômenos visualmente muito diferentes. Em seguida, o autor chega a outra tese, a
de que os homens sempre prestaram muito mais atenção no pôr-do-sol do que no nascer por
conta de seu valor de representação do dia vivido. Fixando-se, a partir dessa perspectiva, no
pôr-do-sol que se inicia, o autor passa a descrever suas etapas, dentro de uma seqüência
narrativa com marcadores espaço-temporais bastante delineados – “Vers 16 heures”, “a
17h40”, “côté de l’ouest”, “vers le nord”, “au sud”, “vers l’est”, “la mer”, “l’horizon”, “a
17h45 précises”. Seu método de criar expressões capazes de imobilizar as “formas
evanescentes” contempladas é posto em prática:

121
“... je notais seconde après seconde l’expression qui me permettrait peut-être d’immobiliser ces formes
évanescentes et toujours renouvelées” (p. 67).
122
Cf. trecho referente à descrição do pôr-do-sol, no original e na tradução, no Anexo desta dissertação.
124

A 17h40, le ciel, du côté de l’ouest, semblait encombré par un édifice complexe,


parfaitement horizontal en dessous, à l’image de la mer dont on l’êut cru décollé par
un incompréhensible exhaussement au-dessus de l’horizon, ou encore par
l’interposition entre eux d’une épaisse et invisible plaque de cristal (p. 69).123

Os objetos aludidos – “édifice complexe [...], horizontal”, “épaisse et invisible plaque de


cristal” – emprestaram massa, volume e dimensões à cena observada. A aproximação de
campos semânticos tão diferentes intenciona, em primeira instância, fazer uma descrição o
mais fiel possível do que se vê, recorrendo-se, portanto, aos referentes que se tem. Em outra
etapa, acompanha-se um movimento da cena:

... le soleil évoluait lentement; à chaque progrès de sa chute, quelqu’un de ses rayons
crevait la masse opaque [...]. Par moments, la lumière se résorbait comme un poing
qui se ferme et le manchon nébuleux ne laissait plus percer qu’un ou deux doigts
étincelants et raidis. Ou bien un poulpe incandescent s’avançait hors des grottes
vapoureuses, précédant une nouvelle rétration (p. 70).124

O resultado, sempre mutável, da movimentação constante da luz solar e das nuvens, é


apreendido por meio de uma comparação. A oscilação da luz entre as nuvens é vista tal qual
seria dentro de um “punho”, que se fecha e se entreabre. Com esse movimento, a luz ora se
enconde ora surge como “um ou dois dedos cintilantes” (“un ou deux doigts étincelants”) ou
como “polvo incandescente” (“poulpe incandescent”). Aqui, mais do que aproximar campos
semânticos diferentes para caracterizar uma paisagem, houve uma associação ainda mais
inusitada – nuage-poing (“nuvem-punho”); lumière-doigts-poulpe (“luz-dedos-polvo”) – em
interação, a fim de reproduzir um movimento. Em várias outras passagens, em que a narração
de cenas sucede a descrição, recorre-se a esse tipo de associação:

123
“Às 17h40, o céu, do lado oeste, dava a impressão de obstruído por um edifício complexo, perfeitamente
horizontal embaixo, à imagem do mar de onde pareceria descolado por uma incompreensível elevação acima do
horizonte, ou ainda pela interposição entre eles de uma placa de cristal espessa e invisível” (p. 62).
124
“... o sol evoluía devagar; a cada avanço de sua queda, algum de seus raios traspassava a massa opaca [...].
Por instantes, a luz reabsorvia-se como um punho que se fecha e o regalo nebuloso deixava passar apenas um ou
dois dedos cintilantes e endurecidos. Ou então um polvo incandescente apresentava-se fora das grutas vaporosas,
precedendo uma nova retração” (pp. 62-3).
125

Au moment où il [le soleil] sortit par-dessous l’édifice nuageux, il parut crever


comme un jaune d’oeuf et barbouiller de lumière les formes auxquelles il était
encore accroché. Cet épanchement de clarté fit vite place à une retraite.
[...]
Vers l’est, dès que le disque solaire eut entamé l’horizon opposé, on vit se
matérialiser d’un seul coup, très haut et dans des tonalités mauve acide, des nuages
jusqu’alors invisibles. L’apparition se développa rapidement, s’enrichit de détails et
de nuances, puis tout commença à s’effacer latéralement, de la droite vers la gauche,
comme sous l’action d’un chiffon promené d’un mouvement sûr et lent. Au bout de
quelques secondes, il ne resta plus que l’ardoise épurée du ciel au-dessus du rempart
nébuleux (pp. 71-2).125

Há, nos fragmentos transcritos e em todo o trecho, a comparação explícita,


materializada pela expressão “comme”. O autor evidencia, com isso, a adesão ao recurso
lingüístico da comparação, mas não à metáfora. Para criá-la, bastaria retirar o elemento de
comparação “comme”, uma vez que as associações inusitadas feitas já garantem o efeito
estético desejável para uma boa metáfora. Por que motivos o autor, que em outras
circunstâncias já se declarou amante confesso da literatura, a ponto de haver desejado fazer
um romance, não incorporou esse recurso literário a este trecho de sua obra? Um exame mais
detido do contexto deste trecho transcrito pode trazer possíveis respostas.
O trecho completo do pôr-do-sol é inserido numa declaração de intenções do autor de
descrever intensamente o que vê. Como se viu, trata-se de um procedimento que ele procura
exercitar na viagem pelo prazer estético que proporciona, mas também por configurar-se
como um exercício da atividade etnográfica, em que terá de aplicar aos objetos que
encontrarem o mesmo olhar. Talvez, nesse contexto, a opção pela metáfora desvirtuasse o
exercício intensamente descritivo. O método exposto exige um certo despojamento, um estado
de alerta às impressões captadas mas sem intencionalidades que possam direcioná-lo a
associações (ou interpretações, do ponto de vista etnográfico) já existentes. Em outras
palavras, a intenção de fazer literatura poderia prejudicar o autor no livre exercício do olhar, a
125
“No momento em que [o sol] saiu por sob o edifício nebuloso, pareceu arrebentar como uma gema de ovo e
lambuzar de luz as formas às quais ainda estava agarrado. Esse desabrochar de claridade logo deu lugar a uma
retirada.” [...] “Para leste, tão logo o disco solar tocou o horizonte oposto, vimos materializarem-se de repente,
altíssimas e em tonalidades malva, nuvens até então invisíveis. A aparição desenvolveu-se com rapidez,
enriqueceu-se de pormenores e nuances, depois tudo começou a se apagar lateralmente, da direita para a
esquerda, como que sob a ação de um pano passado com um gesto seguro e lento. Ao fim de alguns segundos, só
restou a ardósia depurada do céu acima da muralha nebulosa” (pp. 63-4).
126

que se propôs na travessia. Ademais, a metáfora ou quaisquer outros recursos de linguagem


mais densos apenas tornariam mais “literária” uma elaboração lingüística que já tem inegável
valor estético. Levando-se em conta que o trecho do pôr-do-sol foi, segundo o autor, escrito
em navio e apenas transcrito no relato de viagem, pode-se supor que essa opção pela
comparação em detrimento da metáfora, bem como suas razões, tenha ocorrido
espontaneamente ao autor, como espécie de recurso do ofício, e não elaborada
conscientemente.
Outro procedimento que confere valor estético ao trecho, além das associações
observadas nos fragmentos narrativos, são as caracterizações, que seguem uma tendência
expressiva. Após distinguir as duas fases do pôr-do-sol – o sol “arquiteto” e o sol “pintor” – e
fazer o retrato dessa primeira fase, o autor passa à fixação do caráter de pintura do pôr-do-sol,
quando os raios solares diretos já desapareceram. Nessa fase, em lugar das formas e dos
contornos em movimento, traçados pelo sol “arquiteto”, as cores do cenário são intensamente
captadas:

Le ciel ne présentait plus que des couleurs rose et jaune: crevette, saumon, lin,
paille; et on sentit cette richesse discrète s’évanouir elle aussi. Le paysage céleste
renaissait dans une gamme de blancs, de bleus et de verts. Pourtant, de petits coins
de l’horizon jouissaient encore d’une vie éphémère et indépendante. Sur la gauche,
un voile inaperçu s’affirma soudain comme un caprice de verts mystérieux et
mélangés; ceux-ci passèrent progressivement à des rouges d’abord intenses, puis
sombres, puis violets, puis charbonneux, et ce ne fut plus que la trace irrégulière
d’un bâton de fusain effleurant un papier granuleux. Par-derrière, le ciel était d’un
jaune-vert alpestre, et la barre restait opaque avec un contour rigoureux. Dans le ciel
de l’ouest, de petites striures d’or horizontales scintillèrent encore un instant, mais
vers le nord il faisait presque nuit (p. 72).126

Além da descrição rigorosa da sucessão de cores efetivamente observadas, percebe-se um


apuro em abordá-las do ponto de vista da pintura. Às cores frias, como o verde, juntam-se
126
“O céu só apresentava cores rosa e amarelas [sic]: camarão, salmão, linho, palha; e sentimos essa riqueza
discreta esfumar-se também. A paisagem celeste renascia numa gama de brancos, de azuis e de verdes [...]. À
esquerda, um véu despercebido afirmou-se de súbito como um capricho de verdes misteriosos e misturados;
estes passaram progressivamente a vermelhos de início intensos, depois escuros, depois violeta, depois negros, e
restou apenas o traço irregular de um bastão de fusain aflorando um papel granuloso. Por trás, o céu era de um
amarelo-esverdeado alpino, e a barra mantinha-se opaca, com um contorno rigoroso. No céu a oeste, pequenas
estrias douradas horizontais ainda cintilaram um instante, mas ao norte já era quase noite” (p. 64).
127

expressões que denotam o estranhamento da percepção dessa cor no pôr-do-sol: “soudain”,


“caprice”, “mystérieux”. Segue-se uma gradação cromática, do vermelho ao negro, e, por fim,
alude-se à intensidade das cores finais: a opacidade ao fundo de “pequenas estrias douradas”
(“petites striures d’or”) que “ainda cintilavam um instante” (“scintillèrent encore un
instant”), anunciando a “quase noite” (“presque nuit”). Percebe-se que a etapa final do pôr-
do-sol, diferentemente da primeira fase, não se estrutura com base em marcadores espaço-
temporais, numa narrativa de ações distintas. Tanto o predomínio do pretérito imperfeito
quanto o de verbos que designam estado (“présentait”, “fut”, “était”, “restait”) explicitam que
a passagem temporal em questão foi marcada pela descrição dos estados do céu, para a qual a
caracterização detalhada da cena fez-se necessária.

Este trecho sobre o pôr-do-sol, em que se observam procedimentos estéticos capazes


de conferir uma certa dimensão literária à passagem, pode ser considerado como uma espécie
de “prova” para o que o autor aplica, posteriormente, ao longo da obra. A mesma prática de
construir uma associação com um efeito de estranheza em seqüências narrativas é verificada
em diversas passagens de Tristes trópicos, muitas delas relacionadas à captação da nova
paisagem. Sobre os grandes monumentos do centro de São Paulo, destacados sobre uma
paisagem ainda aberta na região do vale do Anhangabaú, o autor considera que:

Ces immeubles en bataille évoquent de grands troupeaux de mammifères réunis le


soir autour d’un point d’eau, pour quelques instants hésitants et immobiles;
condamnés, par un besoin plus pressant que la crainte, à mêler temporariement leurs
espèces antagonistes [...]. Si je contemplais aujourd’hui le même site, je constaterais
peut-être que l’hybride troupeau a disparu: piétiné par une race plus vigoureuse et
plus homogène de gratte-ciel implantés sur ces rives qu’une autostrade a fossilisées
d’asphalte (pp. 110-1).127

Além da surpresa causada pela associação estabelecida (“immeubles en bataille – grands


troupeaux de mammifères”), o leitor apreende no fragmento lido o aspecto exterior da

127
“Essa confusão de imóveis lembra grandes manadas de mamíferos reunidos à noite em torno de um
bebedouro, por alguns instantes indecisos e imóveis; condenados, por uma necessidade mais premente que o
medo, a misturar temporariamente suas espécies antagônicas [...]. Se eu hoje contemplasse o mesmo local, talvez
verificasse que o híbrido rebanho desapareceu: pisoteado por uma raça mais vigorosa e mais homogênea de
arranha-céus implantados nessas margens que uma auto-estrada fossilizou com asfalto” (p. 95).
128

imagem criada e mesmo um “estado de espírito” que ela parece também sugerir. De certa
forma, e de maneira inusual, a “necessidade mais premente que o medo” (“un besoin plus
pressant que la crainte”) que teria condenado os grandes animais a se misturarem, na imagem
aludida, passa a ser também condição averiguada nos imóveis então vivificados, que, aliás,
teriam razões para temer. A previsão do autor para eles é postulada nos termos da associação,
por meio de uma inusitada fusão entre os campos semânticos dos animais e das construções.
Assim, o asfalto delineia o novo habitat desta “raça mais vigorosa e mais homogênea de
arranha-céus” (“race plus vigoureuse et plus homogène de gratte-ciel”). É justamente o
desenvolvimento dessa associação, que trouxe maior relevo a um dado observado da
realidade, que singulariza o trecho; o efeito ultrapassa a comparação de fins pragmáticos,
própria a textos etnográficos e a vários relatos de viagem.
Também é comum ao longo da obra, em comentários breves ou em caracterizações, a
tentativa de abarcar com os sentidos, em especial com a visão, os dados novos, como foi visto
no Capítulo sobre o pôr-do-sol. O objeto em questão é submetido ao olhar do etnógrafo,
interessado em conhecer; para tanto, ele atenta aos detalhes: cor, volume, contornos, seja de
ambientes seja de pessoas. Da cidade de Goiás (atual Goiás Velho), o autor faz o seguinte
retrato:

Dans un site verdoyant dominé par la silhouette capricieuse des mornes empanachés
de palmes, des rues aux maisons basses dévalaient les coteaux entre les jardins et les
places où les chevaux paissaient devant les églises à fenêtres ornées, moitié granges
et moitié maisons à clocher. Des colonnades, des stucs, des frontons, toujours
fraîchement fouettés d’un enduit mousseux comme du blanc d’oeuf et teinté de
crème, d’ocre, de bleu ou de rose, évoquaient le style baroque des pastorales
ibériques. Une rivière coulait entre des quais moussus, parfois effondrés sous le
poids des lianes, des bananiers et des palmiers qui avaient envahi les résidences
abandonnées (p. 139).128

128
“Num sítio verdejante dominado pelo perfil caprichoso dos morros empenachados de palmeiras, ruas de casas
térreas desciam pelas encostas entre as hortas e as praças onde os cavalos pastavam diante das igrejas de janelas
ornamentadas, metade granjas, metade casas com campanário. Colunatas, estuques, frontões sempre recém-
pincelados com um reboco espumoso como clara de ovo e colorido de creme, ocre, azul ou rosa, lembravam o
estilo barroco das pastorais ibéricas. Um rio corria por entre margens limosas, que às vezes desmoronavam sob o
peso dos cipós, das bananeiras e das palmeiras que invadiam as residências abandonadas” (p. 117).
129

Em vários níveis – semântico, sintático –, é possível vislumbrar uma descrição que parece
transmitir a calma e a harmonia do ambiente observado. Os termos que designam aspectos da
geografia do lugar são valorativos (“site verdoyant”, “silhouette capricieuse”), assim como
valorizam a paisagem as alusões a elementos reconhecíveis como próprios a um povoado
acolhedor (“rues aux maisons basses”, “jardins”, “places”, “églises”, “rivière”). O trecho é
bastante pontuado por adjuntos adnominais que sugerem um olhar simpático ao ambiente
visitado, ainda que não se utilize de elogios diretos. Também se destaca, nesta paisagem
retratada, a equilibrada combinação de cores, às quais também se associam texturas, sugeridas
por termos como “mousseux”, “crème”, “moussus”. Os períodos, tanto no original em francês
quanto na tradução para o português, são longos, porém o são mais pela extensão dos sujeitos,
adjuntos e complementos, do que por um excesso de subordinações. O ritmo das frases é,
portanto, contínuo e tranqüilo, similar talvez ao movimento do rio, que corre entre margens
forradas de limo.
A continuidade ao trecho apenas reafirma o olhar valorativo, plenamente perceptível
na descrição, com uma sentença clara do autor a respeito do lugar:

... mais cette végétation somptueuse paraissait moins marquer celles-ci du signe de la
décrépitude qu’elle n’ajoutait une dignité sillencieuse à leurs façades dégradées (pp.

139-40).129

Na escala valorativa do autor, a deterioração das fachadas não é indicativo de decadência; ela
é insuficiente para encobrir o sentido maior do quadro pintado: a “dignidade silenciosa” da
cidade. O trabalho lingüístico empreendido pelo autor ultrapassou a mera referencialidade da
descrição etnográfica, à medida que possibilitou a visualização do lugar retratado, mas, mais
do que isso, intentou captar sua “personalidade”.
Aos procedimentos exemplificados aqui, indicativos de um certo caráter literário,
poderiam juntar-se outros. Há trechos de homenagem ou reverência a viajantes ou autores
antigos, em que se utiliza de uma construção lingüística de teor evocativo e imagens solenes,
ao gosto de poemas românticos. Além das paisagens poeticamente retratadas, encontram-se na
obra retratos de amigos, professores, índios, cavaleiros, compostos da mesma maneira pouco

129
“... mas essa vegetação suntuosa mais parecia acrescentar uma dignidade silenciosa às suas fachadas
deterioradas do que imprimir-lhe a marca da decrepitude” (p. 117).
130

convencional. É possível também detectar, como já se viu, o interesse do autor pela literatura
dos locais visitados, em especial pela tradição oral. Há a reprodução de “causos”, lendas,
simpatias, canções de povos dos vilarejos e cidades visitadas, desde a região pantaneira até a
bacia amazônica. Na região do garimpo de diamantes, no Mato Grosso, o autor revela-se
interessado pelas manifestações da “poesia do sertão”:

De minha noite com os garimpeiros conservei em meus blocos de notas um


fragmento de uma balada de modelo tradicional. Trata-se de um soldado descontente
com o cotidiano, que escreve uma reclamação a seu cabo; este transmite ao sargento
e a operação se repete a cada patente: major, coronel, general, imperador. O único
jeito que este último encontra é apelar para Jesus Cristo, que, em vez de encaminhar
a queixa ao Pai Eterno, “pegô na pena e mandô tudo pros inferno’. Eis a pequena
amostra da poesia do “sertão” (p. 199).130

Para Lévi-Strauss, as produções da literatura oral – os causos, as cantigas e poesias – são


fonte de estudos importantes, pois são capazes de condensar várias estruturas do pensamento
de determinada sociedade. Por outro lado, o autor parece interessar-se também pelo aspecto
estético desenvolvido por essas sociedades. Por isso, as transcrições de alguns textos no
relato, anotados durante a viagem. Outros são reproduzidos e comentados, como o caso da
descoberta de ouro em Cuiabá, já mencionado. Na maioria dessas reproduções, se, por um
lado, o autor cumpre suas funções de etnógrafo, por outro a elaboração de linguagem é marca
de um estilo individual, mais facilmente propiciado pelo exercício de textos literários. Enfim,
o literário em Tristes trópicos não se faz de recorrências pontuais, mas de um conjunto de
recursos em interação, capaz de criar uma linguagem constantemente construída com vistas a
ampliar os sentidos da matéria retratada – e, por que não, ampliar os sentidos de quem vê.

130
“De ma soirée avec les garimpeiros, j’ai conservé dans mes carnets de notes un fragment de complainte sur
un modèle traditionnel. Il s’agit d’un soldat mécontent de l’ordinaire, qui écrit une réclamation à son caporal;
celui-ci transmet au sergent et l’opération se répète à chaque échelon: lieutenant, capitaine, major, colonel,
général, empereur. Ce dernier n’a plus comme ressource que de s’adresser à Jésus-Christ, lequel, au lieu de faire
suivre la doléance au Père éternel, ‘met la main à la plume et envoie tout le monde en enfer’. Voici ce petit
échantillon de poésie du sertão.” (p. 245; a transcrição literal da balada, que aparece na seqüência deste trecho, é
reproduzida no Anexo desta dissertação).
131

Anexos

1. Relatos de viagem – referências

Neste anexo, serão expostas as referências bibliográficas de alguns relatos de viagem


representativos, separados conforme o século em que foram produzidos. Trata-se de uma lista
sumária de indicações, cujo intuito não é o de fazer um inventário das obras do gênero, mas
de apontar algumas leituras importantes. Foi útil, para essa relação, o inventário de relatos de
viagem elaborado por Michèle Duchet, sobre a produção dos séculos XVI a XVIII, a
bibliografia de documentos históricos de Pierre Chaunu, relativa ao período das grandes
descobertas, e a lista de relatos, documentos e guias históricos produzidos no Brasil-colônia,
elaborada por Ana Maria Belluzzo131, além das referências coletadas ao longo da pesquisa.
Optou-se por também expor, nesta seção, algumas obras representativas para o gênero,
ainda que não sejam propriamente relatos de viagem. Desta maneira, há referências a
romances, tratados filosóficos e a compilações de viagem. Buscou-se apresentar edições mais
recentes, apontando, entre colchetes, o ano de primeira publicação da obra referida; em casos
de ausência dessa informação, consta da indicação o ano de nascimento e o de morte do autor,
ou ao menos o ano de publicação da edição aludida.

Antigüidade

HERÓDOTO [484-425 a.C.]. Histoire. Brasília: Universidade de Brasília, 1988.

XENOFONTE [430?-354? a.C.]. Anabase. Paris: Les Belles Lettres, 1970.

Era Medieval

POLO, Marco. [1254-1324] La description du monde. Paris: Librairie C. Klincksieck,


1955 (versão completa).

____. [1254-1324] O livro das maravilhas (A descrição do mundo). Porto Alegre: L&PM,
1996.

MANDEVILLE, Sir John of. Viagens (1356).

131
As referências completas dos autores citados nesta apresentação encontram-se a bibliografia desta dissertação.
132

Século XVI – Era dos descobrimentos

CAMINHA, Pero Vaz de. “A Carta” [1500]. In: GARCIA, José Manuel. Viagens dos
descobrimentos. Lisboa: Presença, 1983, pp. 245-63.

CARTIER, Jacques. Voyage au Canada. Avec les relations des voyages en Amérique de
Gonneville, Verrazano et Roberval [1545]. Paris: Maspéro, 1981.

CORTÉS, Hernán [1485-1547]. Cartas de relación. Madrid: Editorial Castalia, 1993.

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t. IV. Les martyrs
t. V. Itinéraire de Paris à Jérusalem [1811].
t. VI. Voyages en Amérique, en Italie, au Mont Blanc. Mélanges littéraires.
t. VII. Mélanges politiques. Polémique.
t. VIII. Polémique (fin). Opinions et discours. Fragments divers.
t. IX. Études historiques.
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2. Excertos de Tristes tropiques / Tristes trópicos

(os trechos abaixo, bem como as páginas mencionadas, foram retirados, respectivamente, da
edição francesa e da edição brasileira, utilizadas nesta dissertação)

2.1. Le coucher du soleil (pp. 67-74)


Écrit en bateau.

Pour les savants, 1'aube et le crépuscule sont un seul phénomène et les Grecs
pensaient de même, puisqu’ils les désignaient d'un mot que l'on qualifiait autrement selon
qu’il agissait du soir ou du matin. Cette confusion exprime bien le prédominant souci des
spéculations théoriques et une singulière négligence de 1'aspect concret des choses.
Qu’un point quelconque de la terre se déplace par un mouvement indivisible entre la zone
d'incidence des rayons solaires et celle ou la lumière lui échappe ou lui revient, cela se
peut. Mais en réalité, rien n'est plus différent que le soir et le matin. Le lever du jour est
un prélude, son coucher, une ouverture qui se produirait à la fin au lieu du
commencement comme dans les vieux opéras. Le visage du soleil annonce les moments
qui vont suivre, sombre et livide si les premières heures de la matinée doivent être
pluvieuses; rose, léger, mousseux quand une claire lumière va briller. Mais, de la suite du
jour, 1'aurore ne préjuge pas. Elle engage l’action météorologique et dit: il va pleuvoir, il
va faire beau. Pour le coucher du soleil, c’est autre chose; il s’agit d’une représentation
complète avec un début, un milieu et une fin. Et ce spectacle offre une sorte d'image en
réduction des combats, des triomphes et des défaites qui se sont sucédé pendant douze
heures de façon palpable, mais aussi plus ralentie. L'aube n'est que le début du jour; le
crépuscule en est une répétition.
Voilà pourquoi les hommes prêtent plus d'attention au soleil couchant qu’au soleil
levant; 1'aube ne leur fournit qu’une indication supplémentaire à celles du thermomètre,
du baromètre et - pour les moins civilisés - des phases de la lune, du vol des oiseaux ou des
oscillations des marée. Tandis qu’un coucher de soleil les élève, réunit dans de
140

mystérieuses configurations les pérípéties du vent, du froid et de la chaleur ou de la pluie


dans lesquels leur être physique a été ballotté. Les jeux de la conscience peuvent aussi se
lire dans ces constellations cotonneuses. Lorsque le ciel commence à s’éclairer des lueurs
du couchant (ainsi que, dans certains théâtres, ce sont de brusques illuminations de la
rampe, et non pas les trois coups traditionnels, qui annoncent le début du spectacle) le
paysan suspend sa marche au long du sentier, le pêcheur retient sa barque et le sauvage
cligne de l'oeil, assis près d'un feu pâlissant. Se souvenir est une grande volupté pour
1'homme, mais non dans la mesure où la mémoire se montre littérale, car peu accepteraient
de vivre à nouveau les fatigues et les souffrances qu’ils aiment pourtant à se remémorer. Le
souvenir est la vie même, mais d'une autre qualité. Aussi est-ce quand le soleil s’abaisse
vers la surface polie d'une eau calme, telle l’obole d'un céleste avare, ou quand son disque
découpe la crête des montagnes comme une feuille dure et dentelée, que 1'homme trouve
par excellence, dans une courte fantasmagorie, la révélation des forces opaques, des
vapeurs et des fulgurations dont, au fond de lui-même et tout le long du jour, il a
vaguement perçu les obscurs conflits.
II avait donc fallu que de bien sinistres luttes se livrent dans les âmes. Car
l'insignifiance des événements extérieurs ne justifiait aucune débauche atmosphérique. Rien
n'avait marqué cette journée. Vers 16 heures - précisément à ce moment du jour où le soleil
à mi-course perd déjà sa netteté, mais pas encore son éclat, où tout se brouille dans une
épaisse lumière dorée qui semble accumulée à dessein pour masquer un préparatif – le
Mendoza avait changé de route. A chacune des oscillations provoquées par une houle
légère, on avait commencé à percevoir la chaleur avec plus d'insistance, mais la courbe
décrite était si peu sensible qu'on pouvait prendre le changement de direction pour un faible
accroissement du roulis. Nul, d'ailleurs, n'y avait prêté attention, rien ne ressemblant plus
à un transfert géométrique qu’une traversée en haute mer. Aucun paysage n’est là pour
attester la lente transition au long des latitudes, le franchissement des isothermes et des
courbes pluviométriques. Cinquante kilomètres de route terrestre peuvent donner
l’impression d'un changement de planète, mais 5 000 kilomètres d'océan présentent un
visage immuable, au moins à l’oeil non exercé. Nulle préoccupation d'itinéraire,
d'orientation, nulle connaissance des terres invisibles mais présentes derrière l’horizon
rebondi, rien de cela ne tourmentait l’esprit des passagers. Il leur semblait être enfermés
141

entre des parois restreintes, pour un nombre de jours fixé d’avance, non parce qu'il y
avait une distance à vaincre, mais plutôt pour expier le privilège d'être transportés d'un
bout à 1'autre de la terre sans que leurs membres eussent à fournir un effort; trop ramollis
par de grasses matinées et de paresseux repas qui, depuis longtemps, avaient cessé
d'apporter une jouissance sensuelle, mais devenaient une distraction escomptée (et encore
à condition de la prolonger outre mesure) pour meubler le vide des journées.
L'effort, du reste, il n’y avait rien pour 1'attester. On savait bien que, quelque part
au fond de cette grande boîte se trouvaient des machines et des hommes tout autour, qui
les faisaient fonctionner. Mais ils ne se souciaient pas de recevoir des visites, les
passagers de leur en faire, ni les officiers d’exhiber ceux-ci pour ceux-là ou inversement.
Restait à se traîner autour de la carcasse où le travail du matelot solitaire décochant
quelques touches de peinture sur une manche-à-air, les gestes économes des stewards en
treillis bleu propulsant une loque humide dans le corridor des premières, offraient seuls la
preuve du glissement régulier des milles dont on entendait vaguement le clapotis en bas
de la coque rouillée.
A 17h40, le ciei, du cotê de l’ouest, semblait encombré par un édifice complexe,
parfaitement horizontal en dessous, à 1'image de la mer dont on l'eût cru décollé par un
incompréhensible exhaussement au-dessus de l’horizon, ou encore par 1'interposition
entre eux d'une épaisse et invisible plaque de cristal. A son sommet s'accrochaient et se
suspendaient vers le zénith, sous l'effet de quelque pesanteur renversée, des
échafaudages instables, des pyramides boursouflées, des bouillonnements figés dans un
style de moulures qui eussent prétendu représenter des nuages, mais auxquelles les
nuages ressembleraient eux-mêmes pour autant qu’ils évoquent le poli et la ronde-bosse
du bois sculpté et doré. Cet amas confus qui masquait le soleil se détachait en teintes
sombres avec de rares éclats, sauf vers le haut où s'envolaient des flammèches.
Plus haut encore dans le ciel, des diaprures blondes dénouaient en sinuosités
nonchalantes qui semblaient sans matière et d'une texture purement lumineuse.
En suivant l'horizon vers le nord on voyait le motif principal s'amincir, s’enlever
dans un égrènement de nuages derrière quoi, très loin, une barre plus haute se dégageait,
effervescente au sommet; du côté le plus proche du soleil – cependant encore invisible – la
142

lumière bordait ces reliefs d'un vigoureux ourlet. Plus au nord, les modèles disparaissaient
et il n’y avait plus que la barre elle-même, terne et plate, qui s'effaçait dans la mer.
Au sud, la même barre encore surgissait, mais surmontée de grandes dalles
nuageuses reposant comme des dolmens cosmologiques sur les crêtes du support.
Quand on tournait franchement le dos au soleil et qu’on regardait vers 1'est, on
apercevait enfin deux groupes superposés de nuages, étirés dans le sens de la longueur et
détachés comme à contre-jour par l’incidence des rayons solaires sur un arrière-plan de
rempart mamelu et ventripotent, mais tout aérien et nacré de reflets roses, mauves et
argentés.
Pendant ce temps, derrière les célestes récifs obstruant l’occident, le soleil évoluait
lentement; à chaque progrès de sa chute, quelqu’un de ses rayons crevait la masse opaque
ou se frayait un passage par des voies dont le tracé, à 1'instant ou le rayon jaillissait,
découpait 1'obstacle en un empilage de secteurs circulaires, différents par la taille et
l'intensité lumineuse. Par moments, la lumière se résorbait comme un poing qui se ferme et
le manchon nébuleux ne laissait plus percer qu’un ou deux doigts étincelants et raidis. Ou
bien un poulpe incandescent s’avançait hors des grottes vaporeuses, précédant une
nouvelle rétraction.
11 y a deux phases bien distinctes dans un coucher de soleil. Au début, l’astre est
architecte. Ensuite seulement (quand ses rayons parviennent réfléchis et non plus directs)
il se transforme en peintre. Dès qu’il s’efface derrière 1'horizon, la lumière faiblit et fait
apparaître des plans à chaque instant plus complexes. La pleine lumière est 1'ennemie de la
perspective, mais, entre le jour et la nuit, il y a place pour une architecture aussi fantaisiste
que temporaire. Avec l'obscurité, tout s'aplatit de nouveau comme un jouet japonnais
merveilleusement coloré.
A 17h45 précises s'ébaucha la première phase. Le soleil était déjà bas, sans toucher
encore l'horizon. Au moment où il sortit par-dessous 1'édifice nuageux, il parut crever
comme un jaune d'oeuf et barbouiller de lumière les formes auxquelles il était encore
accroché. Cet épanchement de clarté fit vite place à une retraite; les alentours devinrent
mats et, dans ce vide maintenant à distance la limite supérieure de 1'océan et celle,
inférieure, des nuages, on put voir une cordillère de vapeurs, tout à 1'heure encore
éblouissante et indiscernable, maintenant aiguë et sombre. En même temps, de plate au
143

début, elle devenait volumineuse. Ces petits objets solides et noirs se promenaient,
migration oiseuse à travers une large plaque rougeoyante qui – inaugurant la phase des
couleurs – remontait lentement de 1'horizon vers le ciel.
Peu à peu, les profondes constructions du soir se replièrent. La masse qui, tout le
jour, avait occupé le ciel occidental parut laminée comme une feuille métallique
qu'illuminait par-derrière un feu d'abord doré, puis vermillon, puis cerise. Déjà celui-ci
faisait fondre, décapait et enlevait dans un tourbillonnement de parcelles, des nuages
contorsionnés qui progressivement s'évanouirent.
D'innombrables réseaux vaporeux surgirent dans le ciel; ils semblaient tendus dans
tous les sens: horizontal, oblique, perpendiculaire et même spirale. Les rayons du soleil, au
fur et à mesure de leur déclin (tel un archet penché ou redressé pour effleurer des cordes
différentes), en faisaient éclater successivement un, puis l’autre, dans une gamme de
couleurs qu’on eût crue la propriété exclusive et arbitraire de chacun. Au moment de sa
manifestation, chaque réseau offrait la netteté, la précision et la frêle rigidité du verre filé,
mais peu à peu il se dissolvait, comme si sa matière surchauffée par une exposition dans un
ciel tout empli de flammes, fonçant de couleur et perdant son individualité, s'étalait en
nappe de plus en plus mince jusqu’à disparaître de la scène en démasquant un nouveau
réseau fraîchement filé. A la fin, il n'y eut plus que des teintes confuses et se mêlant les
unes aux autres; ainsi, dans une coupe, des liquides de couleurs et de densités différentes
d'abord superposés, commencent lentement à se confondre malgré leur apparente stabilité.
Après cela, il devint très difficile de suivre un spectacle qui semblait se répéter avec
un décalage de minutes, et parfois de secondes, en des points éloignés du ciel. Vers l'est, dès
que le disque solaire eut entamé 1'horizon opposé, on vit se matérialiser d'un seul coup, très
haut et dans des tonalités mauve acide, des nuages jusqu’alors invisibles. L’apparition se
développa rapidement, s'enrichit de détails et de nuances, puis tout commença à s'effacer
latéralement, de la droite vers la gauche, comme sous 1'action d'un chiffon promené d'un
mouvement sûr et lent. Au bout de quelques secondes, il ne resta plus que 1'ardoise épurée
du ciel au-dessus du rempart nébuleux. Mais celui-ci passait aux blancs et aux grisailles,
tandis que le ciel rosissait.
Du côté du soleil, une nouvelle barre s’exhaussait derrière la précédente devenue
ciment uniforme et confus. C’était 1'autre, à présent qui flamboyait. Quand ses irradiations
144

rouges s'affaiblirent, les diaprures du zénith, qui n’avaient pas encore joué leur rôle,
acquirent lentement un volume. Leur face inférieure dora et éclata, leur sommet naguère
étincelant passa aux marrons, aux violets. En même temps, leur contexture sembla vue sous
le microscope: on la découvrit constituée de mille petits filaments soutenant leurs formes
dodues, comme un squelette.
Maintenant, les rayons directs du soleil avaient complètement disparu. Le ciel ne
présentait plus que des couleurs rose et jaune: crevette, saumon, lin, paille; et on sentit
cette richesse discrète s'évanouir elle aussi. Le paysage céleste renaissait dans une gamme
de blancs, de bleus et de verts. Pourtant, de petits coins de 1'horizon jouissaient encore
d'une vie éphémère et indépendante. Sur la gauche, un voile inaperçu s'affirma soudain
comme un caprice de verts mystérieux et mélangés; ceux-ci passèrent progressivement à des
rouges d'abord intenses, puis sombres, puis violets, puis charbonneux, et ce ne fut plus que
la trace irrégulière d'un bâton de fusain effleurant un papier granuleux. Par-derrière, le ciel
était d'un jaune-vert alpestre, et la barre restait opaque avec un contour rigoureux. Dans le
ciel de l’ouest, de petites striures d'or horizontales scintillèrent encore un instant, mais vers
le nord il faisait presque nuit: le rempart mamelonné n'offrait que des bombements
blanchâtres sous un ciel de chaux.
Rien n’est plus mystérieux que l’ensemble de procédés toujours identiques, mais
imprévisibles, par lesquels la nuit succède au jour. Sa marque apparaît subitement dans le
ciel, accompagnée d'incertitude et d'angoisse. Nul ne saurait pressentir la forme
qu’adoptera, cette fois unique entre toutes les autres, la surrection nocturne. Par une
alchimie impénétrable, chaque couleur parvient à se métamorphoser en sa complémentaire
alors qu’on sait bien que, sur la palette, il faudrait absolument ouvrir un autre tube afin
d’obtenir le même résultat. Mais, pour la nuit, les mélanges n'ont pas de limite car elle
inaugure un spectacle faux: le ciel passe du rose au vert, mais c'est parce que je n'ai pas
pris garde que certains nuages sont devenus rouge vif, et font ainsi, par contraste, paraître
vert un ciel qui était bien rose, mais d'une nuance si pâle qu’elle ne peut plus lutter avec la
valeur suraiguë de la nouvelle teinte que pourtant je n'avais pas remarquée, le passage du
doré au rouge s’accompagnant d'une surprise moindre que celui du rose au vert. La nuit
s'introduit donc comme par supercherie.
145

Ainsi, au spectacle des ors et des pourpres, la nuit commençait-elle à substituer son
négatif ou les tons chauds étaient remplacés par des blancs et des gris. La plaque nocturne
révéla lentement un paysage marin au-dessus de la mer, immense écran de nuage, s'effilant
devant un ciel océanique en presqu’îles parallèles, telle une côte plate et sableuse aperçue
d'un avion volant à faible hauteur et penché sur l’aile, étirant ses flèches dans la mer.
L'illusion se trouvait accrue par les dernières lueurs du jour qui, frappant très obliquement
ces pointes nuageuses, leur donnaient une apparence de relief évocatrice de solides
rochers – eux aussi, mais à d'autres heures, sculptés d'ombres et de lumière – comme si
l’astre ne pouvait plus exercer ses burins étincelants sur les porphyres et les granits, mais
seulement sur des substances débiles et vaporeuses, tout en conservant dans son déclin le
même style.
Sur ce fond de nuages qui ressemblait à un paysage côtier, au fur et à mesure que le
ciel se nettoyait on vit apparaître des plages, des lagunes, des multitudes d'îlots et de bancs
de sable envahis par 1'océan inerte du ciel, criblant de fjords et de lacs intérieurs la nappe
en cours de dissociation. Et parce que le ciel bordant ces flèches nuageuses simulait un
océan, et parce que la mer reflète d'habitude la couleur du ciel, ce tableau céleste
reconstituait un paysage lointain sur lequel le soleil se coucherait de nouveau. Il suffisait
d'ailleurs de considérer la véritable mer, bien en dessous, pour échapper au mirage: ce
n’était plus la plaque ardente de midi, ni la surface gracieuse et frisée de l’après-dîner.
Les rayons du jour, reçus presque horizontalement, n'éclairaient plus que la face des
vaguelettes tournées vers eux, tandis que l’autre était toute sombre. L'eau prenait ainsi un
relief aux ombres nettes, appuyées, creusées comme dans un metal. Toute transparence
avait disparu.
Alors, par un passage très habituel, mais comme toujours imperceptible et
instantané, le soir fit place à la nuit. Tout se trouva changé. Dans le ciel opaque à
1'horizon, puis au-dessus d'un jaune livide et passant au bleu vers le zénith, s'éparpillaient
les derniers nuages mis en oeuvre par la fin du jour. Très vite, ce ne furent plus que des
ombres efflanquées et maladives, comme les portants d'un décor dont, après le spectacle et
sur une scène privée de lumière, on perçoit soudain la pauvreté, la fragilité et le caractère
provisoire, et que la réalité dont ils sont parvenus à créer 1'illusion ne tenait pas à leur
nature, mais à quelque duperie d'éclairage ou de perspective. Autant, tout à l’heure, ils
146

vivaient et se transformaient à chaque seconde, autant ils semblent à présent figés dans
une forme immuable et douloureuse, au milieu du ciel dont 1'obscurité croissante les
confondra bientôt avec lui

2.1. O pôr-do-sol (pp. 59-65)


Escrito no navio
Para os cientistas, a aurora e o crepúsculo são um só fenômeno e os gregos pensavam o
mesmo, já que os designavam com uma palavra diversamente qualificada caso se tratasse da tarde
ou da manhã. Essa confusão exprime bem a preocupação predominante com as especulações
teóricas e uma singular negligência no aspecto concreto das coisas. Que um ponto qualquer da terra
se desloque por um movimento indivisível entre a zona de incidência dos raios solares e aquela
onde a luz lhe foge ou lhe retorna, é possível. Porém, na realidade nada é mais diferente do que a
tarde e a manhã. O nascer do dia é um prelúdio, seu poente, uma ouverture que se apresentaria no
final, e não no começo, como nas velhas óperas. O semblante do sol anuncia os momentos que vão
se seguir, sombrio e lívido se as primeiras horas da manhã devem ser chuvosas; róseo, leve,
espumoso quando uma luz clara vai brilhar. Mas, quanto ao resto do dia, a aurora não o prejulga.
Inicia a ação meteorológica e diz: vai chover, vai ser um belo dia. Quanto ao pôr-do-sol, é outra coisa;
trata-se de uma representação completa, com um início, um meio e um fim. E esse espetáculo oferece
uma espécie de imagem reduzida dos combates, das vitórias e das derrotas que se sucederam durante
doze horas de modo palpável, mas também mais lento. A aurora é apenas o início do dia; o crepúsculo
é sua repetição.

Eis por que os homens prestam mais atenção no sol poente do que no sol nascente; a aurora só
lhes fornece uma indicação suplementar às do termômetro, do barômetro e – para os menos civilizados
– das fases da lua, do vôo dos pássaros ou das oscilações das marés. Ao passo que um pôr-de-sol eleva-
os, reúne em misteriosas configurações as peripécias do vento, do frio, do calor ou da chuva nas quais
seu ser físico se debateu. Os caprichos da consciência podem também ser lidos nessas constelações
algodoadas. Quando o céu começa a se iluminar com os clarões do poente (assim como, em certos
teatros, são as bruscas iluminações do proscênio, e não as três pancadas tradicionais, que anunciam o
início do espetáculo), o camponês suspende sua caminhada pela trilha, o pescador retém seu barco e o
selvagem pisca o olho, sentado perto de um fogo declinante. Recordar-se é uma grande volúpia para o
homem, mas não na medida em que a memória se mostra literal, porque poucos aceitariam viver
147

novamente as labutas e os sofrimentos que, no entanto, gostam de rememorar. A recordação é a


propria vida, mas com outra qualidade. Assim, é quando o sol se abaixa sobre a superfície polida da
água calma, tal como o óbolo de um celestial avarento, ou quando seu disco recorta a crista das
montanhas como uma folha dura e denteada, que o homem encontra por excelência, numa curta
fantasmagoria, a revelação das forças opacas, dos vapores e das fulgurações cujos obscuros conflitos, no
fundo de si mesmo, e ao longo de todo o dia, ele vagamente percebeu.

Foi necessário, portanto, que lutas um tanto sinistras se travassem nas almas. Pois a
insignificância dos acontecimentos externos não justificava nenhuma orgia atmosférica. Nada
marcara esse dia. Por volta das quatro horas – exatamente naquele momento da tarde em que o sol a
meio caminho já perde sua nitidez mas não ainda seu brilho, em que tudo se confunde numa espessa luz
dourada que parece acumulada de propósito para ocultar um preparativo — o Mendoza mudara de rota.
A cada oscilação provocada pelo ligeiro marulho, começáramos a notar o calor com mais insistência,
mas a curva descrita era tão pouco sensível que se podia confundir a mudança de direção com um suave
aumento do balanço. Ninguém, aliás, prestara atenção nisso, já que nada lembrava mais um
deslocamento geométrico do que uma travessia em alto-mar. Nenhuma paisagem existe para comprovar a
lenta transição ao longo das latitudes, o avanço das isotermas e das curvas pluviométricas. Cinqüenta
quilômetros de estrada terrestre podem dar a impressão de uma mudança de planeta, mas 5 mil
quilômetros de oceano apresentam um semblante imutável, pelo menos para o olho não treinado.
Nenhuma precupação com o itinerário, a orientação, nenhum conhecimento das terras invisíveis mas
presentes atrás do horizonte arredondado, nada disso atormentava o espírito dos passageiros. Pareciam
estar fechados entre paredes estreitas, por um número de dias fixado de antemão, não porque havia
uma distância a percorrer, mas antes para expiar o privilégio de serem transportados de um extremo
a outro da terra sem que seus membros precisassem fazer um esforço; moles demais pelas manhãs
passadas na cama e pelas indolentes refeições que, desde muito, haviam deixado de propiciar um
deleite sensual e iam se tornando uma distração prevista (e, ainda assim, com a condição de
prolongá-la ao extremo) para preencher o vazio dos dias.

Aliás, nada existia para atestar o esforço. Sabia-se muito bem que em algum lugar no fundo
daquela grande caixa havia máquinas e homens ao redor, que as faziam funcionar. Mas eles não
se interessavam em receber visitas, nem os passageiros em fazer-lhes, e nem os oficiais em exibir
estes àqueles ou inversamente. Restava ficar perambulando em torno da carcaça, onde o trabalho
do marujo solitário assentando umas pinceladas de tinta numa mangueira de ventilação, e os gestos
148

econômicos dos camareiros de uniforme azul propulsando um trapo úmido pelo corredor da primeira
classe eram os únicos a oferecer a prova do desfile regular das milhas cujo marulho se ouvia
vagamente na base do casco enferrujado.

Às 17h40, o céu, do lado oeste, dava a impressão de obstruído por um edifício complexo,
perfeitamente horizontal embaixo, à imagem do mar de onde pareceria descolado por uma
incompreensível elevação acima do horizonte, ou ainda pela interposição entre eles de uma placa de
cristal espessa e invisível. Em seu cume estavam presos e suspensos em direção do zênite, sob o
efeito de uma gravidade invertida qualquer, andaimes instáveis, pirâmides dilatadas, efervescências
fixas num estilo de molduras que pretendessem representar nuvens, mas com as quais as próprias
nuvens se assemelhassem porquanto evocam o polimento e o alto relevo da madeira talhada e
dourada. Esse amontoado confuso que encobria o sol destacava-se em tonalidades escuras com
raros fulgores, a não ser no alto, por onde voavam as pequenas chamas.

Ainda mais alto no céu, matizes dourados desfaziam-se em sinuosidades indolentes que
pareciam sem matéria e com uma textura puramente luminosa.

Seguindo o horizonte para o Norte, via-se o motivo principal afinar-se, elevar-se num
rosário de nuvens atrás das quais, muito longe, uma barra mais alta se destacava, efervescente em
seu cume; do lado mais perto do sol — ainda invisível, porém —, a luz contornava esses relevos
como um vigoroso arremate. Mais ao norte, os relevos desapareciam e só restava a própria barra,
desbotada e achatada, que se desfazia no mar.

Ao sul, ainda a mesma barra surgia, mas coroada por grandes lajes de nuvens que
repousavam como dolmens cosmológicos sobre as cristas do suporte.

Pondo-se totalmente de costas para o sol e olhando-se para leste, percebia-se, enfim, dois
grupos superpostos de nuvens, estiradas no sentido do comprimento e destacadas como em
contraluz pela incidência dos raios solares batendo num pano de fundo de muralha peituda e
barriguda, mas aérea e nacarada por reflexos róseos, cor de malva e prateados.

Enquanto isso, atrás dos arrecifes celestes obstruindo o Ocidente, o sol evoluía devagar;
a cada avanço de sua queda, algum de seus raios traspassava a massa opaca ou abria caminho
por vias cujo traçado, no momento em que o raio irrompia, cortava o obstáculo numa pilha de
setores circulares, diferentes pelo tamanho e pela intensidade luminosa. Por instantes, a luz
reabsorvia-se como um punho que se fecha e o regalo nebuloso deixava passar apenas um ou dois
149

dedos cintilantes e endurecidos. Ou então um polvo incandescente apresentava-se fora das grutas
vaporosas, precedendo uma nova retração.

Há duas fases bem distintas num pôr-do-sol. No início, o astro é arquiteto. Só depois
(quando seus raios chegam refletidos e não mais diretos), transforma-se em pintor. Assim que se
esconde atrás do horizonte, a luz enfraquece e faz surgir planos a cada instante mais complexos.
A luz plena é inimiga da perspectiva, mas, entre o dia e a noite, há lugar para uma arquitetura tão
fantasista quanto temporária. Com a escuridão, tudo se achata de novo, como um brinquedo
japonês maravilhosamente colorido.
Às 17h45 em ponto, esboçou-se a primeira fase. O sol já estava baixo, sem tocar
ainda o horizonte. No momento em que saiu por sob o edifício nebuloso, pareceu arrebentar
como uma gema de ovo e lambuzar de luz as formas às quais ainda estava agarrado. Esse
desabrochar de claridade logo deu lugar a uma retirada; as imediações tornaram-se foscas e,
nesse vazio mantendo distanciados o limite superior do oceano e o inferior das nuvens, pôde-se
ver uma cordilheira de vapores, ainda há pouco deslumbrante e indiscernível, agora aguda e
sombria. Ao mesmo tempo, de inicialmente plana, passava a ser volumosa. Esses pequenos
objetos sólidos e pretos passeavam, migração ociosa através de uma vasta placa avermelhada que
— inaugurando a fase das cores — subia lentamente do horizonte para o céu.
Aos poucos, as construções profundas da tarde se recolheram. A massa que, o dia
inteiro, ocupara o céu ocidental pareceu laminada como uma folha metálica iluminada por trás
por um fogo de início dourado, depois vermelhão, depois cereja. Este já fundia, decapava e
levava, num turbilhão de fragmentos, as nuvens contorcidas que progressivamente se
desvaneceram.
Inúmeras redes vaporosas surgiram no céu; pareciam estendidas em todos os sentidos:
horizontal, oblíquo, perpendicular, e inclusive espiral. Os raios do sol, à medida que iam
declinando (qual um arco de violino inclinado ou reto para tocar cordas diferentes), estouravam-
nas sucessivamente, uma, depois outra, numa gama de cores que pareciam propriedade exclusiva e
arbitrária de cada uma. No instante em que se manifestava, cada rede apresentava a nitidez, a
exatidão e a frágil rigidez de um fio de vidro, mas aos poucos se dissolvia, como se sua matéria
superaquecida por uma exposição num céu repleto de chamas, adquirindo um colorido mais
escuro e perdendo sua individualidade, se espalhasse em uma camada cada vez mais fina até sair
de cena revelando uma nova rede tecida há pouco. Ao final, houve apenas tonalidades confusas e
150

misturando-se umas às outras, tal como, numa taça, líquidos de cores e densidades diferentes,
de início superpostos, começam lentamente a se fundir apesar de sua aparente estabilidade.
Depois disso, foi muito difícil acompanhar um espetáculo que parecia se repetir com
uma diferença de minutos, e às vezes de segundos, em pontos afastados do céu. Para leste, tão
logo o disco solar tocou o horizonte oposto, vimos materializarem-se de repente, altíssimas e em
tonalidades malva, nuvens até então invisíveis. A aparição desenvolveu-se com rapidez, en-
riqueceu-se de pormenores e nuances, depois tudo começou a se apagar lateralmente, da direita para
a esquerda, como que sob a ação de um pano passado com um gesto seguro e lento. Ao fim de
alguns segundos, só restou a ardósia depurada do céu acima da muralha nebulosa. Mas esta ia
passando aos brancos e cinzentos, enquanto o céu ia ficando rosado.
Do lado do sol, elevava-se uma nova barra atrás da anterior, que se tornara cimento uniforme e
confuso. Agora, era a outra que flamejava. Quando suas irradiações vermelhas enfraqueceram, os
furta-cores do zênite, que ainda não haviam representado seu papel, adquiriram volume, lentamente.
Sua face inferior tornou-se dourada e rebentou, seu cume outrora cintilante passou aos marrons,
aos violetas. Simultaneamente, sua contextura pareceu vista no microscópio: descobrimos que se
constituía de mil pequenos filamentos sustentando, como um esqueleto, suas formas roliças.
Agora, os raios diretos do sol haviam desaparecido por completo. O céu só apresentava cores
rosa e amarelas: camarão, salmão, linho, palha; e sentimos essa riqueza discreta esfumar-se também. A
paisagem celeste renascia numa gama de brancos, de azuis e de verdes. Entretanto, cantinhos do
horizonte ainda gozavam de uma vida efêmera e independente. À esquerda, um véu despercebido
afirmou-se súbito como um capricho de verdes misteriosos e misturados; estes passaram
progressivamente a vermelhos de início intensos, depois escuros, depois violeta, depois negros, e restou
apenas o traço irregular de um bastão de fusain aflorando um papel granuloso. Por trás, o céu era de
um amarelo-esverdeado alpino, e a barra mantinha-se opaca, com um contorno rigoroso. No céu a
oeste, pequenas estrias douradas horizontais ainda cintilaram um instante, mas ao norte já era quase
noite: a muralha peituda só apresentava saliências esbranquiçadas sob um céu de cal.
Nada é mais misterioso do que o conjunto de processos sempre idênticos, mas imprevisíveis,
pelos quais a noite sucede ao dia. Sua marca aparece subitamente no céu, acompanhada de incerteza
e de angústia. Ninguém sabe pressentir a forma que adotará, desta vez única entre todas as outras, o
arqueamento noturno. Por uma alquimia impenetrável, cada cor consegue metamorfosear-se em
sua complementar, quando se sabe muito bem que na palheta seria absolutamente indispensável
151

abrir outro tubo a fim de obter o mesmo resultado. Mas para a noite as misturas não têm limites,
pois ela inaugura um espetóculo falso: o céu passa do rosa ao verde, mas é porque não prestei
atenção em certas nuvens que se tornaram vermelho-vivas, e assim, por contraste, fazem parecer
verde um céu que era mesmo cor-de-rosa, mas de um matiz tão claro que não pode mais lutar com o
valor superagudo da nova tonalidade que, no entanto, eu não observara, pois a passagem do
dourado para o vermelho acompanha-se de uma surpresa menor que a do rosa para o verde. A
noite introduz-se, pois, como por um embuste.
Assim, ao espetáculo dos dourados e das púrpuras, a noite começava a substituir o seu
negativo, no qual os tons quentes eram trocados pelos brancos e pelos cinzentos. A chapa noturna
revelou lentamente uma paisagem marinha acima do mar, imensa tela de nuvens esgarçando-se
diante de um céu oceânico em penínsulas paralelas, qual um litoral plano e arenoso avistado de um
avião que voa a baixa altitude e inclinado sobre a asa, estirando suas flechas no mar. A ilusão
aumentava com os últimos clarões do dia que, atingindo num ângulo bem oblíquo essas pontas
nebulosas, davam-lhes uma aparência de relevo evocadora de sólidos rochedos — também eles, mas
em outras horas, esculpidos por sombras e luz —, como se o astro já não pudesse exercitar seus buris
faiscantes nos pórfiros e nos granitos, mas apenas nas substâncias frágeis e vaporosas, embora
mantendo em seu declínio o mesmo estilo.
Sobre esse fundo de nuvens que lembrava uma paisagem costeira, à medida que o céu ia
limpando vimos surgir praias, lagunas, multidões de ilhotas e de bancos de areia invadidos pelo
oceano inerte do céu, crivando de fiordes e lagos interiores a camada em vias de desagregação. E
porque o céu que contornava essas flechas nebulosas simulava um oceano, e porque o mar em geral
reflete a cor do céu, esse quadro celeste reconstituía uma paisagem distante sobre a qual o sol voltaria
a se pôr. Aliás, bastava considerar o mar verdadeiro, bem embaixo, para escapar da miragem: já não
era a placa ardente do meio-dia, nem a superfície graciosa e encrespada de depois do jantar. Os raios
do dia, recebidos quase horizontalmente, só iluminavam ainda a face das pequenas ondas voltadas
para eles, enquanto a outra estava toda escura. Assim, a água adquiria um relevo de sombras nítidas,
carregadas, perfuradas como num metal. Toda a transparência desaparecera.
Então, por uma passagem muito habitual, mas como sempre imperceptível e instantânea, a
tarde deu lugar à noite. Tudo ficou diferente. No céu opaco ao horizonte, e depois, em cima, de um
amarelo-pálido e passando ao azul no zênite, dispersavam-se as derradeiras nuvens produzidas pelo
fim do dia. Muito depressa, não houve mais do que sombras esquálidas e enfermiças, como os suportes
152

de um cenário cuja pobreza, fragilidade e caráter provisório percebemos de repente, após o


espetáculo e num palco privado de luz, e cuja ilusão de realidade que conseguiu criar não decorria
de sua natureza, mas de algum truque de iluminação ou de perspectiva. Da mesma maneira como
havia pouco elas viviam e se transformavam a cada segundo, agora parecem imobilizadas numa
forma imutável e dolorosa, no meio do céu cuja escuridão crescente em breve as confundirá com
ele mesmo.

2.2. Histoire d´Emydio (pp. 385-6)

Un veuf avait un seul fils, déjà adolescent. Un jour, il l’appelle, lui explique qu’il est
grand temps de se marier. « Que faut-il faire pour se marier? » demande le fils. « C’est très
simple, lui dit son père, tu n'as qu’à rendre visite aux voisins et tâcher de plaire à la fille. » «
Mais je ne sais pas comment on plaît à une fille!» « Eh bien, joue de la guitare, sois gai, ris et
chante!» Le fils s’exécute, arrive au moment où le père de la demoiselle vient de mourir; son
attitude est jugée indécente, on le chasse à coups de pierres. II retourne auprès de son père, se
plaint; le père lui explique la conduite à suivre en pareil cas. Le fils part à nouveau chez les
voisins; justement, on tue un porc. Mais fidèle à sa dernière leçon, il sanglote: «Quelle
tristesse! II était si bon; Nous l’aimions tant! Jamais on n'en trouvera un meilleur!»
Exaspérés, les voisins le chassent; il raconte à son père cette nouvelle mésaventure, et reçoit de
lui des indications sur la conduite appropriée. A sa troisième visite, les voisins sont occuppés à
écheniller le jardin. Toujours en retard d'une leçon, le jeune homme s'exclame: «Quelle
merveilleuse abondance ! Je souhaite que ces animaux se multiplient sur vos terres! Puissent-ils
ne jamais vous manquer!» On le chasse.

Après ce troisième échec, le père ordonne à son fils de contruire une cabane. Il va
dans la forêt pour abattre le bois nécessaire. Le loup-garou passe par là pendant la nuit et
juge 1'endroit à son goût pour y bâtir sa demeure, se met au travail. Le lendemain matin, le
garçon retourne au chantier et trouve 1'ouvrage bien avancé: «Dieu m’aide!» pense-t-il avec
satisfaction. Ainsi bâtissent-ils de concert, le garçon pendant le jour et le loup-garou pendant
la nuit. La cabane est finie.
Pour l'inaugurer, le garçon décide de s'offrir en repas un chevreuil, et le loup-garou
un mort. L'un apporte le chevreuil durant le jour, 1'autre le cadavre à la faveur de la nuit.
153

Et quand le père vient le lendemain pour participer au festin, il voit sur la table un mort en
guise de rôti: «Décidément, mon fils, tu ne seras jamais bon à rien... ».

2.2. História de Emydio (p. 306)


Um viúvo tinha um só filho, já adolescente. Um dia, chama-o, explica-lhe que já é mais que
tempo de casar. "Que é preciso fazer para casar?", pergunta o filho. "É muito simples", diz-lhe o pai,
"basta ir visitar os vizinhos e tratar de agradar a filha!" "Mas não sei como se agrada a uma moça!"
"Ora bolas, toque violão, seja alegre, ria e cante!" O filho assim faz, chega no momento em que o pai da
senhorita acaba de morrer; sua atitude é julgada indecente, expulsam-no a pedradas. Volta para junto do
pai e se queixa; o pai lhe explica o comportamento a seguir em caso semelhante. O filho vai de novo à
casa dos vizinhos; justamente, estão matando um porco. Mas, fiel à sua última lição, soluça: "Que
tristeza! Ele era tão bom; gostávamos tanto dele! Nunca se encontrará um melhor!". Furiosos, os
vizinhos o expulsam; conta ao pai essa nova desventura, e recebe indicações sobre o com portamento
adequado. Em sua terceira visita, os vizinhos estão tratando de catar as lagartas do jardim. Sempre
atrasado de uma lição, o jovem exclama: "Que maravilhosa abundância! Desejo que esses bichos se
multipliquem em suas terras! Tomara que jamais lhes faltem!". Expulsam-no.
Depois desse terceiro fracasso, o pai manda que o filho construa uma cabana. Ele vai à floresta
derrubar a madeira necessária. O lobisomem passa por ali à noite, considera o local de seu agrado
para construir sua casa, põe-se ao trabalho. Na manhã seguinte, o rapaz volta ao lugar da construção
e encontra a obra bem adiantada: "Deus me ajuda!", pensa com satisfação. Assim constroem os dois
em colaboração, o rapaz durante o dia e o lobisomem durante a noite. A cabana fica pronta.
Para inaugurá-la, o rapaz resolve se dar de presente um veado para comer, e o lobisomem, um morto.
Um traz o veado de dia, o outro, o cadáver, aproveitando-se da noite. E quando no dia seguinte chega o
pai para participar do festim, vê na mesa um morto à guisa de assado: "Decididamente, meu filho,
você nunca vai prestar para nada...".

2.3. Oração do sapo seco (p. 435)

Je t'ensevelis à un pied de terre, là-dessous.


Je te prends sous mes pieds autant que c’est possible,
Tu dois me délivrer de tout ce qui est danger;
154

Je te libérerai seulement quand j’aurai achevé ma mission.


Sous 1'invocation de saint Amaro se trouvera mon protecteur
Les ondes de la mer seront ma délivrance,
Dans la poussière de la terre sera mon repos.
Anges qui me gardez, accompagnez-moi toujours
Et Satan n’aura pas la force de me saisir
Quand l'heure arrivera d'exactement midi
Cette oraison sera entendue,
Saint Amaro, toi et les suprêmes seigneurs des animaux cruels
Sera mon protecteur Mariterra (?)
Amen.

2.3. Oração do sapo seco (p. 343)


Eis agora, nos confins da magia negra, a 'Oração do sapo seco', que se encontra num livro
vendido de porta em porta, o 'Livro de são Cipriano'. Consegue-se um gordo 'cururu' ou 'sapo-
leiteiro', enterra-se o bicho até o pescoço, numa sexta-feira, dando-lhe brasas, que ele engole,
todas. Oito dias depois, pode-se ir à sua procura, ele sumiu. Mas no mesmo lugar nasce um "pé de
árvore de três ramos", de três cores. O ramo branco é para o amor, o vermelho, para o desespero,
o preto, para o luto. O nome da oração vem do fato de que o sapo se resseca, pois nem o urubu o
come. Apanha-se o ramo que corresponde à intenção do oficiante, mantendo-o escondido de
todos os olhares: 'é coisa muito oculta'. Pronuncia-se a oração no momento do enterro do sapo:

Eu te enterro a um palmo de chão lá dentro


Eu te prendo debaixo de meus pés até quando for possível
Tens que me livrar de tudo quanto é perigo
Só soltarei você quando terminar minha missão
Abaixo de santo Amaro estará o meu protetor
As ondas do mar serão meu livramento
Na poeira do solo estará meu descanso
Anjos da minha guarda sempre me acompanham
E o Satanás não terá força de me prender
155

Na hora chegada na pinga do meio-dia


Esta oração será ouvida
Santo Amaro, você e os supremos senhores dos animais cruéis
Será o meu protetor Mariterra (?)
Amém.

2.4. Balada popular ouvida no sertão (pp. 199-200)


(sem tradução, na edição francesa)
“O soldado...
O oferece...

O sargento que era um homem pertinente


Pegô na pena, escreveu pro seu tenente

O tenente que era um homem muito bão


Pegô na pena , escreveu pro capitão

O capitão que era um homem dos melhor


Pegô na pena, escreveu pro major

O major que era homem como é


Pegô na pena, escreveu pro coroné

O coroné que era homem sem igual


Pegô na pena, escreveu pro general

O general que era homem superior


Pegô na pena, escreveu pro imperador

O imperador...
Pegô na pena, escreveu pro Jesus Cristo
156

Jesus Cristo que é filho do Padre Eterno


Pegô na pena e mandô tudo pros inferno.”
157

Bibliografia consultada

AGUIAR, Joaquim Alves de. “Introdução” In: Espaços da memória – Um estudo sobre
Pedro Nava. Tese apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura
Comparada da FFLCH – USP, sob orientação do Prof. Dr. Davi Arrigucci Jr.
São Paulo, 1996.

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