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revista do ' AAAS r Tift cet | a a ee +4 Al = | ao VAST ACASA DE MORADA DE FAMILIA — aspectos susstantivos' Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra RESUMO: O texto que sepueinsreseno ambito das consequéncas do dvdr, explorando a temctica da utliapio da cara de morade de familia, consoanteo titulo ard de que emerge, ¢ ss respectvassolugesofereidas plo nosso ondenamentojuridic. Palavras-chave: Casa de morada de fami; divérco; partilba;arrendamento; bem proprio; bem comm; transmissio; concentrasio, expropriagio;consttucionalidade; contrato de comodato: arbuigio proviséria. A atribuigio da casa de morada de familia € um dos mais significativos efeitos do divércie?, concretizando o desmembramento do locus familiar e a afectagii do seu uso a umm dos (ex) cénjuges’. No presente texto, procurare- mos analisar os aspectos substanciais da atribuigio do uso da casa, trilhando "ate texto correspond nos interengio ns Aco de Formagio Continua Tipo C, do Cento de ExudosJudcios, que teve ga em 22-02-2019 Procurimos seq, com gies elms me Canon Lies de Dire de Fee Sacetes, Col, Mein, 190, it. 305, qu acas de morada de fama para uma grande pare das familias porcagueta, onico bem ‘so oc (anes de rio, seprsio de pesos c bons, spade at, mom, tn, Asologio da unig defacto). 170 Sandra Passinba as diversas soluges legais de acordo com a sua titulatidade, distinguindo as situagdes em que o titulo de uso da casa é 0 atrendamento daquelas em que a casa é prépria de um dos cénjuges ou bem comum do casal. Faremos ainda uma breve referéncia a0 uso da casa concedido através de contrato de comodato, 1. Casa arrendada O titulo que permite o uso da casa de morada de familia pode ser o co: ttato de arrendamento, Comecemos por destacar que, nos termos do 1068.° do Cédigo Civil (doravante CC), o diteito do arrendatério comuni S€ ao seu cOnjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vi ‘gente. A partir das regras gerais da afectagio de bens no ambito matrimoni cabe aferit, em primeiro lugar, a natureza préptia ou comum do arrends ‘mento, Determinada a sua titularidade, 0 artigo 1105.° do CC permite a sua concentragiio na titularidade de um dos cBnjuges, quando o arrendamento seja comum, ou a transmissio do arrendamento proprio de um dos ednjuges para 0 outro, Esta alteragio na titularidade do arrendamento pode verificar-se, de acordo com as varias modalidades de divércio, por acordo das partes, no caso de dlivércio por mituo consentimento administrativo', ou por decisio judicial (ainda que de homologagiio), nos casos de divércio judicial, por miituo cot sentimento’ ou sem consentimento do outro cénjuge*. Sendo a concentragio * 0 divéeeio por minuo consentimento pode ser requerde elas Givi quando, am do acordo fundamental quinto&disslugio do Sobre a prestagio de alimentos ao cénjuge que delescarega, quant fami © dos animals de companhia, bem como ao exerteio flhos menores e caso aio tenba havido previemente rep * ceridio da sentenga judicial (cf. etigo 1773-,n° 1). go 1778. do CC determina que o requermento de divércio € apresentado Bejugss nfo 0 acompanharem de algum dos acoes previstos no m1 do artigo 1775. Reebido o ‘equetimento, oui apreci os acordos que os eBnjugestiverem apresentado,convidando-cea at se esses cords nfo acsutlarem os interesies de alguns eles ou ds hor, O ir pode determina para o ei spitca de actos a produgio de prove cventulmente necesria, Pode igualmeate fd lo pay fixago das conrequtacios do fo #6 promover mas tambén ba Consent do Regito eid, pois neste caso baste «conta 0 acordo dos eBajuses. Como re expen no argo 934 do CRC: «1 ~ 0 requerinento para a sepeasio judicial de pessoas e bens om para ¢divcnao por etn Nono oe Sazrin Ci, A protec de cua de morada de oma mo Direto Poreugus, ci, pi, % Taga pe MacaLnits Coutaco, “A Reforma de 1977 do Cédigo Civil de 1966. Um car vnte © cinco anos depois, én Faculdade de Diseto da Universidade de Coimbra, Comemorages dos 35 anos rig ei Camo er + Consig Aguma nord, Ess om Homenagem a Profesor Dour Pl de Pita ¢ Can, vl IL, ogaiado por Jct Misvon ey ‘Aled, Coimbra pigs S143. ° * Come salen Gones Cano, Contin dirgentee inal d leider, it pt. sa tea el em pane meds, un acidade nal audi deg de den i {dice maz da consti ~€qaiicaio deiner ples pink. A casa de morada de familia aspectos substantvos 181 gal, na comunhio de afectos entre os cénjuges, cna liberdade individual de fazer constatar a ruptura da relacio, de extinguir um laco que se fragilizou definitivamente. Liberto da censura da culpa (sem declaracio de cénjuge culpado nem sujeigio a sangdes acessérias ligadas & culpa) e das esteias do institucionalismo conjugal (como resulta desde logo da cessagio da afini- dade, e a consequente quebra dos lagos familiares do ex-cdnjuge com os parentes do outro), o individuo torna-se responsavel pelo condugio da sua vida, responsavel por seguir 0 caminho no sentido de construgio da sua felicidade. Esta nova concepgio influird, e muito, na delimitago ¢ no modo como devemos encarar a relacao juridica entre os ex-cOnjuges, O legislador explicitou esta directriz, por exemplo, no regime dos ali- mentos, ao determinar que cada um dos cénjuges tem o dever de prover a sua auto-subsisténcia’. Embora a doutrina considere que a Reforma de 2008 nio visa extinguir com a solidariedade pés-conjugal®, a verdade é que 4 considerarmos que esta subsiste, temos de a considerar a um nivel muito ténue. Para além de o cénjuge credor nio ter direito & man dro de vida de que beneficiou na constincia do matrimé deve dar prevaléncia a qualquer obrigago de alimentos relativamente a um filho do cénjuge devedor sobre a obrigagio emergente do divércio a favor do ex-cénjuge. Do mesmo modo, a liberdade de fazer constatar a ruptura da relagio ¢ de extinguir o laco do casamento tem agora reflexos ne afini- dade, ou seja, a relacio (familiar) do cénjuge com os parentes do outro, que também cessa com o div6rcio™. Se até 2008, apés a dissolugao do casamento por divércio, o cénjuge passava a ex-cénjuge, mas permaneciam as relacdes familiares de cada um deles com os parentes do outro, depois da Reforma de 2008 extinguem-se ambas as relagdes, a conjugal ¢ a de afinidade. Sao, pois, argumentos que nos conduzem & opinio de que os ex-cOnjuges nfo mantém ‘uma relagio entre si que possa ser qualificada como familiar, para efeitos de proteceio do artigo 67.° da CRP. ‘éxconngal, Sobre x neces como fundamenta exclusive da cbrigagio de alimentos ace 20 tgine cua, Manis Jouo Vaz Tow, “Algumas reflexses sobre obrgacio de eompensagio ea obieagio de slimentos entre ex-dnjuges", em Luts Couro Gonauis Br aL, Estados em Bomenager ao Profesor Doutor Heinrich Ewald Horster, Almedine, Coimbra, 202, pig. 454 Ch argo 1585. CC. 182 Sandra Pessinhas Assim sendo, a atribuigio da casa de morada de familia a ex-cénjuge, quando nio haja filhos, ou quando os filhos no fiquem a residir na casa, ainda que alternadamente com o outro progenitor (o proprietério), € uma resttigfo ao direito de propriedade que no nos parece constitucionalmente justificada por outros «direitos ou interesses legalmente protegidos». ‘A questio foi recentemente analisada pelo Tribunal Constitucional®, mas quanto a nés 0 Tribunal no retirou as consequéncias devidas das alteragSes atris enunciadas. O Acérdio TC n.° 127/2013, comega por apontar que: «De acordo com o regime legal em que o segmento normativo agora questio nado se insere ¢ da qual no pode ser isolado para compreensio da questi que neste recurso é colocada, esta especifica vinculacio da propriedade s existe por causa da famtlia e poder deixar de subsistir quando circunstin: cias supervenientes o justificare»». O Tribunal segue pois, sem questionar, a doutrina e a jutisprudéncia dominantes na matéria, a0 considerar que a restti¢o do artigo 1793.° do CC aos poderes do proprietitio ¢ justificada pela familia, enquanto valor constitucional «trata-se de norma conforma- dora do estatuto juridico de um bem (aquele em que a familia estabeleceu © centro da vida familiar) por ter sido afectado pelos cdnjuges a uma deter minada finalidade que se entende exigir proteccio especial, no contexto da relagio familiar e por causa dela, mesmo depois da dissolugio do vinculo. Nio se trata de um sacrificio imposto ao titular em nome de uma genérica hipoteca social da propriedade, mas de mantet ago emergente dos efeitos do casamento e que vai para além dele, Alids, os direitos de cada um dos cGnjuges sobre o bem em que o casal estabelece o centro da vida familiar sofrem compressio noutros aspectos, designadamente, na alienacZo ou one~ ragGo (artigo 1682.°-A do CCv), na disposigio do direito ao arrendament (1682.°-B) do Cv)». O Tribunal, ao chamar & decisdo e a equiparar as compresses resultan- tes dos artigos 1682." do Ci ilegitimidades conjugais, na constin- cia do casamento, com o artigo 1773.°, que trata da atribuicio da casa de ue Si © Acérdio TC n° 127/13 [Reator: Viron Gout], de 27 de Fevereiro: Na verdade,& da esnci do incula conju ~s6 dese modo de conssiuigo da fain aqui euidamos ~afects ptrninial dos cEojuges, gerando dteits edeveres que podem perdurar par além da sus dsslus ‘esignadament em matéria de alimentos, que € 0 efit mais proximo daguce que agora snalisao. tigdo de féemulasecotrentes, PAULO Mota Pav, “Reflex so da Repblica Portuguesa", Themis edo especial 30 Anos 15 A casa de morada de familia ~aspectos subs morada em arrendamento ao cénjuge no proprietétio, eguuiparou 0 que no é equipardvel: o estatuto patrimonial dos bens na constincia do casamento eo seu estatuto apds a sua dissolugdo por divarcio. E no mesmo equivoco incor- re quando conclui que: «£ uma norma de vinculagao da propriedade, mas enquanto incidente sobre um bem em especial e de um tipo de proprietario e beneficidrio: a casa de morada de familia e o ex-cOnjuge relativamente a0 outro. Cabe, atendendo & imposigio constitucional de proteccio da familia, nos poderes de determinacio legislativa do contetido da propriedade nos ‘termos da Constituigio». Considerar a constituigéo de um arrendamento forgado a favor do ex- -cdnjuge como uma resposta & imposicgéo constitucional de proteccio da familia é nao relevar a forma como o legislador, em 2008, conformou a comunhio conjugal e a sua dissolucao por divércio. E certo que a actividade tiva de normas constitucionais exige uma dimensio te6rico-descritiva e pratico-normativa, pelo que a metédica constitucional toma os textos como ponto de partida da construgio de normas jurdicas, i aco dos textos cons- (o-atribuicio de sentido". Nao é possivel, por ine- xistentes, estruturar operadores de concretizacio que nos conduzam a uma densificagZo do artigo 67.° da CRP como abrangendo o ex-cdnjuge no con- ceito normativo de familia, Somos, pois, da opinido que o artigo 1793,° consubstancia uma restrigao. nif justificada ao direito do ex-cénjuge proprietério. Nao havendo filhos, ¢ portanto nfo subsistindo uma relagio familiar fundada na parentalidade, ou outros familiares, que residissem ¢ continuem a residir na casa, parece-nos que & norma que permite ao tribunal atribuir a casa de morada de familia a0 ex-cOnjuge requer um aggiornamento e, na falta de revogacio expressa, deve ser desaplicada pelos tribunais. E neste sentido que vio, alids, os nossos paises vizinhos: Franca’, Itélia” e Espanha”. © Gouss Cavorao, Divito contitucionel e teorie de constinigio, 7+ edigfo, Almedina, Coimbra, ‘fel dard bai pot le renowwele se major plas jee des nf 2 eb ne peut re conch pour une durd excldant neuf années, mais peu 184 Sandra Passinbas Contudo, mesmo para quem entenda que o artigo 1793." se trata de uma restric justificada e que ainda existe um resquicio de familia, enquadzével no mbito normativo do artigo 67.° da CRP, sempre se diré que a medida legislativa nio seria proporcional. Vejamos. & Prinefpio da proporcionalidade A ideia de proporcionalidade lato sensu representa, hoje, uma importante limitagao ao exercicio do poder piblico, servindo a garantia dos direitos ¢ liberdades individuais. ile don I pend fin de plein drt em ca de emarige de celudquita e conc y x mes fin sietluie vit en cat de cncabinage moter. Dans ous cade juge pes rs le bal des choonstance "1 do Code, fo stead pa Lei 87-570, de 22-07-1987 «desde 24 ite formulagio: «Si ee ropre on personmellement an des pons, le jug peut econ 1 Lorsque Canortéparentale est exerde par celui tur an om plusieurs en comm de Vator parental Sobre aplicasio do artigo 1793." os undo defacto, vide o nosso Propiedad e Personalidad, ce, pie 331 ese Acasa de morada lia aspectos substantivos 87 aplicagio®. Na medida em que consubstanciam uma ordem objectiva ou sistema de valores que resultam e uma decisio constitucional, as normas de direitos fundamentais tém uma forga conformadora, potencialmente ex- pansiva a toda a ordem juridica tragiio, ao legislador e ao poder ¢ devem conhecer. Os preceitos relativos aos di erdades e garantias, so directamente aplicdveis ~ tém um carécter juridico-positive, no mera- mente programético” ~ e constituem medidas de decisio dos casos concre- tos. Cabe aos tribunais encontrarem, em cada caso conereto, uma solucio”” que dé operatividade pritica & fungio de protecgio (objectiva) dos direi- to, liberdades e garantias®. Como refere VreIRa DE ANDRAD! além de deverem respeitar a Constituiglo, t8m uma especial responsabili- dade que Ihes advém da sua fungio prépria de controlo ou fiscalizagéo da it idade das normas ¢ demais actos do Estado, Quando se fala de aplicabilidade imediata dos preceitos relativos aos direitos, liberdades ¢ » Cl Temes Faso Sui, “Una aproximacin al método deinterpretaciénconstitucional”,Cuader. Sobre a ‘partials eapacité de ‘réitance™ dos ‘Rflexions sur les garanties des droits constiaion ig. 1080, Sobre « Consttsigio como um quadro de Growasnt BocstTT, "Relavione, in Amuaio 2002, ASSOCIAZIONE aL DE CosmruzIONALST, CEDAM, 200, pig. 6. % Jonor Ress Now, As resizes aos diets fundantenas nd expresiacenteantoizades pola Const 188 Sandra Passinbas Barantias, tem-se, por isso, em conta sobretudo o poder-dever dos juizes de, or um lado, positivamente, aplicarem os preceitos constitucionais respect ‘vos ¢ interpretarem em conformidade com eles o direito ordinario, e de, por ‘outro lado, negativamente, nao aplicarem ou interpretarem correctivamente as norm: icas que julguem inconstitucionais ou nao totalmente con- formes com a Const ou entio de invalidarem os actos que ofendam aqueles preceitos ~ isto é, tem-se em conta sobretudo a sua justiciabilidade, Ao aplicar o artigo 1793.° num caso concreto, em que esteja em causa a atribuigdo da casa de morada de familia a um ex-cOnjuge, o juiz deve fazer uma interpretagio conforme a Constituicio, ¢ aplicé-la apenas quando exis- ta uma justificago constitucional para a restrigio do direito de propriedade quando filhos ou outros parentes do titular fiquem cdo do direito privado itos fundamentais pela via da interpretagio conforme a constituigéo®. As normas de dircito civil ue prevejam a situagio sub judice niio podem ser lidas isoladamente, como tum complexo normativo separado e auto-suficiente, devendo antes ser pen- sadas em conjunto com as normas constitucionalizadoras dos direitos afec- tados pelo caso em aprego*. A interpretagio conforme a Constituigao tem a viver na casa. Os juizes devem fazer uma aj © Cust Quemoa,Interpretagio constiuconal «poder juice, Coiba Elitore, Coimbra, 155: af no poder judicial na petica dos ebunas, que odio desenvolve *« az social. Na passagem do Estado dedieito 0 Estado socal de dtc, jie este # ums exegese Puramente formal dos textos jurcicos, antes deve jasifia (fundamen) 9 ido da notmajridicaepé-a em harmonia com a nova sesidade socal.) 8 interpreta da constituido ea intepnetagio confor 3 fo das normas que tem a sus expresso na presungio de icjonaldade das norms, ver Cusrnvs Quemo7, *O principio da interpreugio conforme a Cons, tiuigo. Questbes eperspectv “ Joxquot oe Sousa Risswo, *Consitucionlizgio do direc ci” cit, pigs. 737-739. Manisrta Auta, “A inteprctagio em conformidace com o dzeitoprinsio", em Pueto Mawraro, Jons Neuve, bce Swwuzt, Dros fndamentasedieto prvede: ums perspectiva de dito compared, Almedina, Com, bea, 2007, simterpretagioconforme & Constiuigio€uilizada quando a aplcagio des et Ho dena em abert una m de alterntivasintexpretativasinconstitcionas, quando pata estes se pronuncam, segundo os etn teadiionas, melhores res do que para us altermaivas conformes b Constitugao. East estes tog ‘A casa de morada de familia aspector substantivos 189 uma primazia interpretativa perante os outros critérios de interpretagio®, no sentido da razio protegida, utilizado por Josten Raz": como as raxdes simples compreende uma ordem e actuagio normativa, mas ao contrério delas, sia razées de exclusio, ou seja, bloqueiam adicionalmente motivos concorren- tes para actuagées divergentes. Trata-se, pois, de uma concretizacio de bens juridicos constitucionalmente protegidos através de normas de decisio judi- ciais (captadas ou «extrinsecadas» por interpretaciio-integracio pelo direito i riando o juiz.a norma do caso, a luz e por refraccio dos valores constitucionalmente consagrados, presta obedigncia ao critério de integra- fo de lacunas fixado no artigo 10,°, n.°3, do CC, preceito que lhe manda resolver a situacio, em éltimo termo, «segundo a norma que o proprio intér- prete criaria, se houvesse de legislar dentro do espirito do sistemas, Vejamos, agora, a solucao legal para os casos em que a casa é comum, 3. Casa comum A casa de morada de familia pode constituis, de acordo com as regras pertinenciais do regime de bens do casal, um bem comum. Aos bens co- muns aplicam-se, por forga do artigo 1404.° do CC, as regras da compro- priedade. Para o tema ora em anélise especialmente pertinente o artigo 1406.° que estabelece o regime da utilizacao promiscua do bem: «Na falta de acordo sobre © uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietérios € licito servir-se dela, contanto que a no empregue para fim diferente da- quele a que a coisa se destina e nao prive os outros consortes do uso a que igualmente tém direito». Apés uma situagio de ruptura da convivéncia fa- niliar, o que vai cfectivamente suceder & que 0 uso da coisa, que é um uso comum pelos cSnjuges, vai converter-se no uso exelusivo por parte de algum de interpzetagio no hi, em prinepio,primznia. Estes hio-de cet combinados uns com of oteos ein regs fgidas de priovidadee ponderados uas com os outos em aso de coi, © CE Mamerts Aur, “A interpretagiocm conformidade com o devo pe Jonc Neu, Inco Sanz, Diets ‘Almedina, Coimbra, 2007, ps. 46 € n Pro Moxa, ents divcito prvado: uma perspective de dine comparado, 1291. Relembremoe com 1 palais de Jose ve Mezo AtsxaNeNO, “Como let a Consiusbo Algums coordendss" le. 316, que, segundo o pi turtioneller Richie) ieterprete deve mmanterse dentro do quadro dis fangSes © das competéaciasconsivaionalmente exabclecides, no \devendo pelo modo ou pelo 190 Sandra Passinbas deles®, A semelhanga das hipéteses anteriores, por acordo das partes ou pot decisio judicial, ainda que homologatéria, a faculdade de uso da coisa, deri- vada do diteito de (com)propriedade, que competia a ambos os cénjuges, vai concentrar-se exclusivamente num deles, Quando a decisio caiba a0 julga: dor, os critérios fundamentadores oferecidos pelo legislador so os mesmos gue indicémos a propésito da atribuigo da casa de morada quando ela é propria de um dos cénjuges: as necessidades de cada um dos cénjuges ¢ os interesses dos filhos do casal. Também neste caso o regime fixado, quer por homologacio do acordo dos cénjuges, quer por decisio do tribunal, pode set alterado nos termos gerais da jurisdigio voluntétia”, Uma nota particular quanto ao acordo ou decisio de uso exclusivo pr -se Com 0 seu carécter gratuito ou oneroso ¢ que, manda uma praxis jente, deve ser devidamente indicado, quer no acordo, quer na decisio " que decida sobre a destinagio da casa de morada. A atribuigdo de uso exclusivo pode ser gratuita, isto é, sem qualquer contrapartida econémica, € neste caso nao haveri lugar a qualquer compensagio a0 outro cdnjuge, que se vé privado do uso da casa, nem no momento presente, nem num momento futuro, eventualmente na partilha dos bens do casal. No caso de a atribuigéo de uso exclusivo ser onerosa, 0 acordo ou a decisio deverso men: juc © Sendo a cass bem comum é pois, de uso exclusive eno de artendamento gue se trata ao coneiio do «que poderi fazer cer uma compreensio mais literal do artigo 17932, n° 1. Em equivoco, por exemplo, (Proceso "33/08 9TMBRGGLS1) visa da cata de morada de fal, vide Aeérdio do ST), de 13-10-2016 [135/12 7TBPBL-C.C1, [No acérdo relatado pelo Senhor Con provi ecouteler de ari fe moradade fas pode ou das cniger tents as exig Fixagio de uma campensagio pecunitra ao cone prvado do uo dagule be 4 titulo onerse, quando decetada, urea eplicgéoanaliica do retime que efnatioa de osse de morada de fala”. Deciiw ainda © Tribunal que: “IL Dexte modo, dependendo constituivamente esse drtoa na compensacio pelo uso excasoo da case de morada pelo outro cnage de wna ponder plano pagamento de qualquer qua «admisivel uma modifcagio subsancal dos respective termes, ao pretender transformanse a usage {ncondicionada, efectioaente prevsts no acordo, nurse wilaeiocondisionads ao pagantento de quanta pecuniia, que nia enconts 0 mini rst ou taza nar léuslas quo itegrvaren, Acasa de morade de familia axpector subst 19h cionar expressamente o valor da contrapartida a pagar. Na pritica, contudo, pode resultar alguma ambiguidade. Pensemos, por exemplo, num acordo de uso exclusive de uma casa de morada, em que as partes fixam que “o cOnjuge residente na casa pagard as prestacGes mensais devidas em virtude de um contrato de crédito 4 habitacdo”. Este pagamento corresponderé, eventualmente, a0 valor atribuido ao uso exclusivo da casa de morada ¢ no ter qualquer correspondéncia com a participagio na propriedade da casa. Mas nio excluiremos que a mesma cléusula ~ «o cénjuge residente na casa pagard as prestagdes mensais devidas em virtude de um contrato de crédito ‘habitagdo» — seja inserida num acordo, ou até mesmo numa sentenga judi- cial, pretendendo apenas determinar encarregado do pagamento pontual da prestacio € no, como se poderia supor, uma contrapartida pelo uso ex- clusivo da casa. Nesta situacao, pelo conteitio, a atribuigio do uso da coisa é uma atribuigio gratuita e o (ex)cnjuge que paga a prestagio esta a cumprir sozinho uma obrigacio que é comum, pagamento do miituo bancétio que financiou a aquisicéo da habitagao. Assim, no que respeita a propriedade da habitagio, um dos (ex)cSnjuges esta a pagar sozinho uma divida que é comum, pelo que tem direito a uma compensagio, nos termos gerais do artigo 1697.°. O artigo 1697.” determina que a compensagio se fard no mo- mento da partilha mas, como refere Cristina Aratijo Dias”, em rigor, integra a fase de liquidagio da comunhio, como operagio prévia & parte, O pa- gamento da prestacio mensal que é feita a entidade financeira que concedeu ‘© matuo para a compra da habitagio corresponde, pois, nesta situacio, a0 assumir de um encargo comum apenas por um dos cGnjuges, encargo esse que caberia aos dois, que diz directamente respeito & propriedade (rect, 20 pagamento do financiamento da propriedade) e que portanto etia a favor do cénjuge que paga a prestacio o dircito a uma compensacio, cujo acerto serd feito no momento da partilha”’ ™ Copenazies Devdas pelo Pegamento de Dividas do Goal, Cobra Editors, 2003, p13. s cass de morada de fama evi etribuidae evidas em vrtude de um contato de crédito fala de outeosexelarecient vilizagio jada casa de morade (imagine e que a cata tem um valor leave mensal de 800,00 Euros, ead dado na metade, por les parecer um valor adequado e pela conven 0 de prgamento da prestaglo mens apenas a um dele). Nese caso, aquando da parilhs, nio wor de Ana qualquer crédito sobre Bernardo: valor das mensliades que pagou 3 en no he atribuiodirito qualquer compensacio facut, mas antes correspondem 2 pectiv singel peo uso exclsivo da cas. Imagine se, pelo contri, que da interpretago do contrato 192 Sandra Passinbas 4. Outras formas de utilizago: 0 comodato Nio é desconhecida na doutrina a hipétese de 0 uso da casa de morada de familia ter um titulo diferente do arrendamento ou da propriedade. Para Nuxo bs SauzeR C1D", o artigo 1793.° abrange, ao lado das hipsteses dea casa ser bem préprio de um dos cOnjuges ou bem comum do casal (ou @ de serem ambos tinicos comproprietarios desta), as de ser apenas um, ou serem ambos, titulares de um direito no uso do qual se processava a utile zacio da casa para morada de familia, ecujo regime permita a constituigio de um arrendamento, nomeadamente o direito de usufruto e de superficie, Do mesmo modo, no choca ao autor a ideia de que ambos os cénjuges ou ex-cénjuges sio titulares do direito & habitagio, ou sio ambos comodatirios, possa integrar a lacuna, atribuindo a um sé o di- reito que era de ambos, desde que a tal nio se oponha o titulo constitu: tivo do direito de habitagZo ou © contrato de comodato, PEREIRA COELHO ¢ GuILHERME DE OLVERA” mostram algumas diividas quanto a esta élima solugio, pois o empréstimo da casa, embora feito aos dois, pode té-lo sido, ainda que o contrato no seja explicito a este respeito, em atengio a pessoa do cénjuge ou do ex-cénjuge nao requerente. A propésito desta questo, cabe convocar 0 recente Acérdio do STJ, de 5 de Junho de 2018%. Estava em causa este processo um comodato da casa de morada de familia feito pelos pais de um dos enjuges a casal, Dos factos dados como provados, destacamos os seguintes: 5. OA. foi casado com a R, de quem se divorciou, por decisio transitada em julgado em 21 de janeiro de 2009, proferida no processo de divércio por ‘ito consentimento, que correu termos na Conservatéria do Registo Civil de ..., sob o n.°265/2009, 6, Hé alguns anos, a A. ¢ 0 seu marido permitiram que o seu filbo e aR. uilizassem, gratuita e temporariamente, para sua babitagao, o 1.° andar do prédio referido. resulta que 0 que os cdajuges efectvarnente guiseram fo uma suibuigi gratuita do uso exchsivo de «ss mantante que a Ana pagoia ao Banco sera o cumpri de uma cbrigaiofnanceia que 0 cuz hs, Ana tem ndente a metade do valor que pagou ao Banco, isto & a % Processo n°281/13.STBTMREL SI A casa de morada de familia — aspectos su Hivos 193 7. Atendendo & previsibilidade daquela utlizagio ser curta e temporéria € porque se tratava do filbo e nora, a A. e marido no estipularam qualquer prazo a tal utilizagéo, 8.04. eaR utilizaram o referido 1.° andar enquanto casados entre si conforme fora pressuposto pela A, e marido 9. Apés 0 divircio, foi varias vezes reclamada a R. a restituigio do 1." andar referido. 10. Através da notificagéo judicial avulsa n.° 918/10.2TBTMR, entrada em 15 de julbo de 2010, fot aR. notificada, em 13 de setembro de 2010, para Proceder d restituigéo do 1.° andar que ocupa, até 30 de setembro de 2010, sob pena de lbe vir a ser reclamado, a titulo de indemnizagio, 0 valor de € 450,00, por cada més de utilizagao até @ efetiva resttuigio. 11. Nao obstante a notificagio, aR recusou-se a proceder @ resttuigao. Nassua decisio, o Tribunal centrou a questo no regime geral do contrato de comodato, em especial na sua duragio. Sabemos que se 0 comodato iver prazo certo a sua restitui¢ao deve ser realizada até ao termo do prazo previsto, nos termos do artigo 1137.°, n.° 1, do CC; caso assim nao acon- teca, a restituiglo terd lugar quando findar 0 uso do prédio’. Considerou o tribunal que: «Tratando-se, no caso, de contrato sem prazo e para uso de babitagao familiar, ndo hé obrigagio de restituir 0 1.° andar do prédio iden- tificado, enquanto continuar a ter esse uso, atento 0 disposto no art. 1137. 1, do CC. Na verdade, aquele andar constituiu a casa de morada da farnlia do casal formado pelo Recorrente e Recorrida, tendo depois sido atribuida, por acordo, na sequéncia do respetivo divércio, a Recorrida, que ai manteve a sua residéncia, com os filbos (facto n.° 15). A Recorrente e a Recorrida, de resto, tinbam toda a legitimidade para celebrar 0 acordo sobre a atribuigéo da casa de morada de familia, como também o podiam fazer se o prédio fosse arren- dado, como esté expressamente previsto na lei (arts. 1105.° do CC e 4. da Lei n° 7/2001, de 11 de maio)». Na sua decisio, 0 Tribunal decidiu ainda, con- rocando a posicdo doutrinaria de Nuno Salter Cid, que a protecgio da fa em particular, dos filhos, justifica igualmente a transmisso da cedéncia do prédio, sem necessidade do consentimento do comodante, como sucede no caso em que a casa morada de familia é arrendada. Assim: «No seguimen- to deste entendimento, continuando o 1.° andar do prédio identificado a ser utilizado, como habitagio da Recorrida e dos seus filbos, mantén-se em vigor © contrato de comodato celebrado e, por isso, aguela continua com direito a 7 Puas pe Lana e Antunes VanELA, Cédigo Civil Anotado I, 2" eg, 1 595 exs 194 Sandra Passinbas servirse do referido prédio, nomeadamente nos termos do art. 1129.° do CC. Dispondo a Recorrida do direito de continuar a servirse do prédio, por efeito do contrato de comodato, que se mantém em vigor, a Recorrida possui, assim, titulo legitimo para a ocupagio do prédio. Nesta conformidade, no obstante 0 reconbecimento do direito de propriedade, é licito recusar a restituigio do pré- dio, por efeito da existéncia do contrato de comodato, que favorece a ocupante, nomeadamente nos termos do n.° 2 do art, 1311.° do CC». ‘Nao questionamos 0 acerto da decisio, mas jé nos parece manifesto o de- sacerto do pedido na acciio: em rigor, o que estava em causa neste processo eta aextingfo de um beneficio, © comodato do prédio, que foi atribuido aos (dois) cdnjuges na consideraciio do estado de casados. Nesta situagao, tinha manifesta aplicagio 0 artigo 1791. que permitia ao autor da liberalidade fazer extinguir 0 beneficio a favor dos cBnjuges ¢ até, nos termos do n.° 2 do mesmo preceito, determinar que o beneficio revertesse para os filhos do ccasamento. |

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