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DENTRO
de Newton Moreno

DENTRO

Um HOMEM de meia-idade coloca uma luva comprida em uma das mãos, esticando-a até
o antebraço. Luz até seu quadril. Cheira um poppers ( estimulante químico ). Desce a
mão com a luva abaixo do quadril. Parece que vai enfiá-la em alguém. Pode-se ouvir
os gemidos de um rapaz, que num primeiro instante não vemos. São adeptos de fist-
fucking, preparando-se para transa. Durante o texto, a mão vai desaparecendo mais e
mais. Luz alterna-se entre homem e rapaz, nunca focalizando-os juntos.

HOMEM
Agente quer por a mão em tudo. Na Lua, em Marte, em Deus. Até no que não nos pertence.
No que o tempo nos tirou. No que está longe. Quanto mais distante, mais vontade de tocar.
Todo mundo tem saudades de um toque. De uma carne. Eu sinto falta de Binho. Às vezes,
quando minha mão tem câibra, ela está doendo de saudades de Binho.

O rapaz geme. O Homem desce a mão um pouco mais.

HOMEM
Nunca mais a mesma temperatura, a mesma suavidade, nem o mesmo espaço. Binho sabia
me receber.
Era meu vizinho. Um belo galego que tinha tara por dinheiro. Loirinho, quase albino, olhos
verdes, voz rouca. Olhar para ele já era correr um risco. No jeito que ele olhava, já sugeria
um crime.
Quando criança brincava de por o dedo no seu cu.
Na verdade, eu pagava. Pagava por uma rápida sensação de suas entranhas mornas e
tépidas. Uns poucos minutos que me abasteciam por dias. Binho foi meu único amor. Eu
nunca havia tocado outro homem. Me apaixonei por ele nos primeiros centímetros do
indicador, enquanto ele desabrochava (seu ânus) em tom sur tom de rosas e violetas,
sempre um jardim de surpresas. Alguns dias mais rosa, outros mais violeta. Florescia nossa
curiosidade juvenil em manhãs decoradas de suas flores. Atrás de cercas, em cima de
árvores, embaixo da camas. Toda flor tem perfume próprio. Nunca esqueci o perfume de
Binho, coroando meu amor com os vapores de seus botões em flor.
Mas com os meninos, eram só negócios. Conosco juntava os tostões para comprar beijos
pueris de suas namoradinhas, com sorvetes e doces. Angélicas, Martas, Anas, várias. Às
vezes, batia à nossa porta, disponibilizando-se pela manhã e, à tarde, já estava a passear de
mãos dadas e algodão doce com suas meninas. Só uma certeza me fortalecia : Elas nunca

veriam pelo mesmo ângulo que eu via. Isto elas jamais teriam. E eu tive. Eu e quase todo o
bairro.
Tem gente que só tira fezes do rabo; Binho tirou uma bicicleta, patins, comprou até boneca
para sua preferida, Neide. Ele a adorava. Acho que pensava nela enquanto se prostituía.
Deu-lhe uma boneca embrulhada em papel de presente no aniversário. Com laço e tudo.
Nem o pai dela tinha dinheiro para tanto. Se eles soubessem de onde vinha o dinheiro.

O rapaz geme de novo. O Homem desce mais um pouco.

Enquanto procurava Binho, achei verdadeiras cartolas de mágico, operando milagres de


elasticidade.
Uma coisa eu descobri : Os homens têm carne demais, demais !
Me acostumei com a idéia de um homem nu na minha frente, oferecendo as vísceras. Cresci
com essa vontade. Em decúbito, agachado, separando cuidadosamente as polpas de suas
nádegas, amaciado, amanteigado, entorpecido, pronto para uma viagem íntima.
Pelo menos sempre foi sexo seguro. E sem luvas, nem pensar. Acho que a Bíblia nem fala
nada sobre isto. Ou será que fala ? ( pausa )
Não, definitivamente não fala.
Mas se mataram tanta gente por colocar o “sacrossanto órgão reprodutor” no “vaso
traseiro”, teriam misericórdia se puséssemos a mão ? O punho ? Duvido. Eles nunca
tiveram compaixão alguma com o prazer. De nenhum tipo.
O coitado do cu já sofreu muita perseguição. Ele é só mais uma porta.
Me transportou para Binho.
Mas até onde ir ?
Seria tão bom encontrar alguém e perguntar-lhe, antes que fosse tarde : Até onde ir ?

Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, visivelmente
entorpecido de poppers e prazer..

RAPAZ
Ele agarrou seu amante com firmeza. Rasgava-lhe os olhos, destemperado de gula no
peito. Destroçava a construção de seu rosto, queria entender sua carne, decompô-la em
lâminas ao sol para desfilar sua língua com força. Queria estudar o coração enquanto
sugava-lhe o suco e garimpava suas veias com os dentes.
Ele escavaria toda aquela matéria até resgatar a si mesmo.

Luz volta ao movimento inicial.

HOMEM
Como se descobre a fronteira ? Quando se machuca ? ( Pausa ) Será que eu o machuquei ?

Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está
iluminado.

RAPAZ
Pode começar por onde quiser : todo o meu corpo é orifício. Várias portas. Cada poro deve
ser penetrado pelo suor do outro com a mesma sensação de um membro, de uma língua, de
dedos, mãos. Cada poro existe para me dar prazer.
Sabe quantas pessoas existem no mundo ? Eu e os meus amantes. Os que já estiveram em
mim e as minhas promessas.
Moro na cama de cada um deles. Moro no corpo de cada um deles. Moro no músculo de
cada um deles e hospedo todos entre minhas pernas.

Luz volta ao movimento inicial.

HOMEM
De que adianta ter alguém ao lado se não posso perfurar-lhe o
núcleo ! Evoluí meu apetite por Binho.
Primeiro, sonhei que me vestia de Binho como se fosse uma pele. Encaixava-me entre
ossos e feixes, abotoando-o em mim. Habitava-o. Como parasita/hospedeiro. Vivendo dele,
nele, pra ele.
Depois, sonhei que comia seus pedaços, alimentando-me de sua proteína albina. Casando
nossas células, banhando-nos em nossas placas sangúineas.
Seria ele tão lindo do avesso ?
Experimentei uma vontade de comê-lo. Sabê-lo inteiro : sabor, textura, tempero. Eu queria
me imprimir em Binho, mostrar-lhe minha fome.
Bati à sua porta, à noite. Subimos num galho bem alto. Paguei mais uma vez e mergulhei
com fôlego. Ancorei longe, como nunca tivera feito antes.
Arranhei na parede de dentro meu nome e o dele. Na carne mais íntima. No canto sujo.
Sangrei nossos nomes. Eternas cicatrizes. Desenhei meu segredo. Binho não gritou, aceitou
minha assinatura.
Ele se foi depois do que fiz sem nada dizer.
Fugiu. Levando meu nome. E eu fui com ele.

Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está
iluminado.

RAPAZ
Costuraram-se pelos lábios, sangue e saliva num beijo. Dois amantes ensinando: o único
alimento é o sentimento.

Luz volta ao movimento inicial.

HOMEM
Procurei anos por Binho. Muitos. Especializei-me na procura. Tem gente que se acomoda
em procurar. Vicia na espera. Mas o pior é que eu o achei.

Aos 35 anos, ainda se escondia nas esquinas, calças baixas, tentando garimpar o resto de
fascínio de seu reto.
Binho envelheceu na profissão. Paguei-lhe de novo. Não me reconheceu. Zonzo de crack,
deu as costas, separou-me os montes. Olhei meu antigo ninho e tremi de nostalgia daquelas
tardes. De púrpura brilhante e viçoso, apodreceu. Murchou. Adquiriu um aspecto de lodo
esverdeado. Gasto. Usado.
E chorei. Chorei tanto que metade de mim se foi naquelas águas. Desidratei naquela
tristeza. Binho vestiu-se, pegou o dinheiro e perguntou : “Gostou ?”. Nem sentiu que nada
acontecera.
Caminhou trôpego para dentro da noite.

Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está
iluminado.

RAPAZ
Tempo é o frio que faz entre o calor de um corpo e o próximo.

Luz volta ao movimento inicial.

HOMEM
Sumiu. Dele só tenho a vontade. Ele me plantou a sede
Recito minha história como uma prece sempre que outros me vem. Estou preso a ela como
um mantra, um cântico, uma marca de nascença. ( Pausa )
Coloco minha mão à luz do sol, olhando a palma, as linhas, mas o que me impressiona é
sua firmeza. Sólida. Solto-a ao mar como uma rede de pesca. Curiosa. Ávida.
E eu a perdê-la de vista. Minha mão dentro do outro. Até o pulso. Ou além.

Homem começa movimento de retirar a mão.


Luz no rapaz que transa com o Homem. Só seu rosto, voltado para o público, está
iluminado.

RAPAZ
Toda vez que eu beijo, quero descobrir a sensação exata do primeiro beijo. Não do meu, o
primeiro beijo de todos os tempos. O primeiro encontro de salivas, o despertar do desejo
dos homens, as primeiras línguas que se amaciaram e se comprometeram.
O universo inteiro deve ter gozado em uníssono. Desesperada e organicamente. Todas as
forças da natureza gozando através daquelas bocas.
Eu busco exatamente o prazer que eles tiveram.
O resto é eco. Distante. Que vai se amarelando em mofo e fingimento.
Eu quero um homem que me traga a ereção de Deus quando criou o mundo,
o prazer de Deus quando criou o homem e o prazer do homem quando criou o prazer.
( Para alguns homens da platéia ) Dê-me um grito de prazer nunca antes dado. Dê-me um
beijo mais espesso e mais molhado. Dê-me algo deste impulso dos teus músculos. Dê-me

um pouco do tesão que movimenta o teu sangue. Dê-me teu corpo sem saber o que eu
devolvo. Dê-me algo que eu possa chamar de vida, que eu possa injetar em meu tecido, que
eu possa diluir em meus líquidos.
Sinto passos dentro de mim, mas quem alcança o meu coração ? Quem alcança o meu
coração ? Quem alcança o meu coração ?

Luz apaga no rapaz. Volta para o homem com a mão fora do rapaz, só que segurando um
coração na mão.
Luz morre aos poucos.

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