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O Inferno é Hippie

Parabéns Davis! Saiba que se você chegou até aqui isso é um ótimo sinal. Suponho
que a essas alturas você já saiba o meu verdadeiro nome. Davis você devia ter conhecido
Frank Cassady no seus dias de glória. Certamente não me reconheceria.
Imagino que você tenha encontrado esse diário por conta própria. Seu pai, pelo que o
conheço, jamais permitiria tal coisa. Sua mãe não faz ideia de que um dia escrevi algo para
você. Muito menos sua avó, se ainda existe, deve estar me xingando em algum canto gélido
de Minnesota. Espero que não tenha ido atrás dela para descobrir informações sobre mim.
Com certeza ela lhe mandaria a lugares que, por hora, não convém escrever. De qualquer
forma isso não importa. Eu sei do que você precisa. Ainda que não esteja presente, serei o seu
tutor até que se torne um verdadeiro caçador solitário. ​Seja o que estiver fazendo pare nesse
instante. Concentre-se. Talvez sua vida dependa disso. O que vou lhe contar jamais foi
relatado no San Francisco Chronicle ou New York Times. Tenho certeza que irá fazer uma
bela busca depois de​ ​ler o que está aqui.
Você já deve ter ouvido falar de muitas coisas esquisitas sobre o “verão do amor” na
San Francisco de 1967. Aquele lugar fervia. Eu nunca vi tanta gente maluca e desocupada
reunida em uma cidade. Eu devia ter uns 17 anos naquela época e queria duas coisas: perder a
virgindade e consumir LSD. Estava completamente extasiado com todas aquelas pessoas se
chapando e escutando Grateful Dead . Aliás, você já escutou Grateful Dead? A primeira vez
que vi Jerry Garcia ele havia sido enxotado de um bar em Chinatown. Bêbado e estirado na
calçada, o ajudei a chegar em casa. Por alguma razão ele gostou de mim, ficamos amigos.
Depois disso comecei a frequentar o ensaios da banda. É uma pena que vocês não se divirtam
hoje em dia. Como conseguem passar o dia trancados no quarto escutando um depressivo que
canta ​“Rape me, rape me my friend, Rape me, rape me again”​.
Naqueles dias não fazia diferença se tinha sol ou lua. Nada escapava da nossa sede de
transcendência. Nos apaixonávamos e nos desapaixonávamos de acordo com a qualidade da
maconha. Foi nessas circunstâncias que conheci meu primeiro amor. Se chamava Joyce.
Davis se você a visse sentiria orgulho de mim. Ela era linda. O rosto meigo cheio de sardas, o
cabelo ruivo, as pernas longas e finas. De alguma forma tudo lhe dava um ar de fragilidade. O
engraçado é que não havia nada frágil na sua personalidade. Seus pais eram uns caipiras do
Texas que tinham vendido tudo e ido para Califórnia abrir uma padaria.
Foi em uma daquelas tardes ensolaradas, que só San Francisco pode oferecer, que
Joyce me convidou para fazer parte do seu grupo seleto de amigos -- ​Frank, meu benzinho
porque não vamos dar uma volta hoje. Vem me ver depois do expediente​-- disse enquanto
empacotava meus pães. Um sorriso apareceu na minha boca. Esperava esse convite a uns três
ou quatro meses.
O sol está se pondo quando visto minha minha jaqueta jeans, pego os cigarros e subo
a Post. O estabelecimento fica umas quatro quadras da minha casa. Enquanto fumo na frente
da padaria percebo que uma Kombi encosta. Definitivamente, não é o tipo de veículo que
você encontraria fora de San Francisco. Roxa e amarela, a Kombi tinha um grafite enorme de
Luther King com olhos vermelhos e as pupilas dilatadas em uma das suas laterais. A porta do
motorista abre e um negro alto, sem camisa, de óculos escuros para na minha frente. Me olha
dos pés a cabeça. Por alguns minutos nos encaramos, até que não nos aguentamos.
Começamos a rir sem parar. No mesmo instante, Joyce aparece. Botas marrons, vestido
florido e uma grinalda. Com as mãos na cintura, nos encara séria --​Vocês já começaram a
brincadeira sem mim rapazes?​-- entramos na Kombi.
O negro alto, sem camisa, com óculos escuros se chama Jack. Jack é muito parecido
com Jimi Hendrix, ele nos apresentou a melhor maconha de San Francisco. Descemos pela
the Haight lotada de jovens perambulando pelas calçadas e fomos para um bosque perto da
ponte Golden Gate. Já era noite quando nos juntamos ao resto do grupo. Uma roda com
bebidas, música e drogas se forma. Se alguém chegasse de repente na nossa reunião não
saberia dizer sobre o que diabos conversávamos. Mas existe algo digno de nota. Jack aleḿ de
um ótimo traficante, é um ótimo cozinheiro.
-- Meus branquelos escutem o tio Jack! Vocês gostam de pizza sim ou não?
Todos em coro dizem --“siiimmmm”-- Jack está sentado com as pernas cruzadas na
extremidade do círculo. Estou de frente pra ele.
-- Escutem! Vocês sabem melhor do que e​ u que vivemos numa sociedade capitalista
de merda que nos faz vestir coisas que não queremos e comer porcarias que não
alimentam. Pois, o tio Jack vai ensinar a vocês a pizza mais nutritiva desse país.
Embora sentado como Buda, Jack gesticula e fala como Malcolm X.
-- O que nos interessa é o recheio, vamos direto ao ponto. Precisamos de proteína
sim
ou não? Logo precisamos de dois belos gatos brancos. As vísceras dos felinos são
mais nutritivas que de um bisão. Manjericão, amendoim e limão. Todos orgânicos
obviamente.
Como um profeta, Jack aponta o dedo para mim.
--Você quer ficar forte Frank Cassady? Sim ou não?
Assinto com a cabeça. Todos estão extremamente concentrados na performance dele.
--Sangue de porco. Ele precisa estar fresco. Quando você cortar o primeiro pedaço
da pizza o sangue já deve estar coagulado ​e consistente. Nada de cozinhar ou assar.
Queremos proteína não? Então queremos carne realmente natural.
Quando Jack termina todos estão rindo. Eu estou com uma puta fome.
Se ainda havia naquela noite algo em mim que tentava manter a postura e o orgulho
próprio diante de Joyce, já não exercia força alguma. Eu estava completamente embriagado
por suas risadas, dominado por sua voz e perdido nas suas pernas. Ela me encarava e ria, de
alguma forma sabia que detinha o controle.
A medida que o grupo se dispersa, Joyce fixa seu olhar e com o indicador me chama
-- ​Vem benzinho tenho uma surpresa para você ​-- levantamos e nos afastamos do grupo. Jack
transa loucamente com um branco dentro da Kombi.
No céu a lua cheia brilha com toda intensidade. Sua luz reflete no rosto de Joyce e lhe
dá aspectos quase angelicais. Me lembro de estarmos sozinhos na entrada do bosque, um
campo aberto com alguns postes de iluminação perto de uma trilha. Sem ninguém por perto --
aqui está bom benzinho-​ - corta ela como que ansiosa para começar uma tarefa. Olhando nos
meus olhos e rindo, Joyce baixa lentamente as alças do vestido florido. Os seio brancos de
tamanho médio emergem e brilham que nem o seu rosto. Ela pega minha mão e a põem em
um dos seus seios -- ​está sentindo as batidas do meu coração?​ -- provoca.
É difícil descrever o meu estado naquele momento. Apenas seguia suas instruções
silenciosamente, como se não pudesse esconder nada diante daquele olhos. Enquanto sinto
seu peito rígido e macio na palma da minha mão, Joyce, agora, se desvencilha do resto do
vestido. Nua, apenas de bota e grinalda, ela me desafia -- ​Benzinho, você não vai tirar essa
roupa?​-- Por um momento penso que desaprendi a tirar minha jaqueta, essa dificuldade
arranca risadas hilárias de Joyce. Que só foram interrompidas por um ruído de dentro da
floresta. Nus, olhamos em direção ao bosque de onde parece sair o som -- ​Vem vamos
descobrir-​ - sussurra no meu ouvido. Até os meus cílios se arrepiam.
Joyce não caminha pela trilha, ela saltita desviando dos arbustos, das pedras e dos
troncos que aparecem no caminho. Ora olhando para trás rindo e atirando beijos ​ora
levantando os braços e gritando --​benzinho a noite é uma criança!​-- Agora não é só o rosto e
os seios que refletem o brilho da lua, mas sua nádegas, que a minha frente, dançam e me
conduzem pela floresta. Não demorou muito para o ruído, tornar-se uma música. Eu ainda
não a reconheço, mas compreendo a letra.
“​Oh, come on, come on, come on, come on!”​
Por um momento acho que perco de vista Joyce. Avançamos bastante dentro do
bosque. A vegetação está cada vez mais densa. Ameaças de cãibra me fazem parar para
respirar. Noto uma voz forte e rouca próxima de mim.
“​Take it! Take another little piece of my heart now, baby!”
​Recupero o fôlego e me dirijo para cada vez mais perto dela. Não demora muito e
avisto as costas de Joyce. Parada como estátua, ela parece contemplar algo a sua frente.
Sombras percorrem o seu corpo, ao que parece ocasionadas por um clarão. Deduzo que se
trata de uma fogueira.
“Oh, oh, break it! Break another little bit of my heart now, darling, yeah, yeah, yeah”
Agora o som está completamente claro. Uma performance acontece no meio do
bosque. Curioso, me aproximo lentamente das suas costas. Na realidade, Joyce não está
estática. Ela treme convulsivamente. Com uma das mãos dentro da boca, morde
desesperadamente os dedos num tremilique nervoso. Um gemido, que mais parece uma tosse
seca, sai abafado da sua boca.
“Babe, I cry all the time! And each time I tell myself that I, well I can't stand the
pain”
Quando toco nos ombros de Joyce, sua pele antes quente, está agora gelada. Ela não
pisca. Um calafrio sobe pela minha espinha ​-- Joyce! Joyce! O que está acontecendo?--
Nenhuma resposta. Era como se eu não tivesse ao lado dela. No momento em que olho para
frente, eu compreendo uma verdade Davis. Pode parecer engraçado, mas o inferno é hippie.
Estamos de frente para ele.
Uma nuvem de calor carregada com um cheiro putrefato, nauseante, sobe as minhas
narinas. Tripas, miolos, fígados, córneas, e sangue formam lodo com a terra que cobre o chão
do acampamento. No centro uma fogueira, em torno dela Peter Albin todo esfolado com uma
cabeça humana desfigurada nas mãos imita alguma dança indígena. O movimento dos pés
deixa moldes no piso vermelho. Ele se desloca em torno da fogueira, como se estivesse
executando algum ritual Costanoa. Ao lado dela, mais a direita, Sam Andrews gira em torno
de si com uma “espécie de cobra” envolta no pescoço, que parece alternar do branco para o
rosado. Ele rodopia como se fosse um pião do inferno. Ao fundo, entre Andrews e a
fogueira, nada menos que Janis Joplin vestida com o uniforme do exército dos Estados
Unidos da América. Na realidade cabem duas Janis Joplin naquele uniforme. Usando um
corpo mutilado como palco, um corpo sem vísceras e sem cabeça, canta como se estivesse
diante de cem mil pessoas.
“Take it! Take another little piece of my heart now, baby”
Lá estou eu, pelado, no meio de um bosque, completamente hipnotizado por aquela
cena. Sinto o meu corpo excitado. Um riso engasgado desde a minha infância ameaça
explodir a minha mente. Quero participar daquele ritual. Ali descubro minha vocação Davis.
Você sabe do que estou falando. Você também sente o que eu sinto. O desejo selvagem por
carne. Uma necessidade que você tenta suprir com todo tipo de merda, mas não consegue.
Porque o que você quer é carne, e não é de qualquer tipo. Você não quer carne de cachorro,
você não quer carne de um menino do primário, você quer a maldita carne de um soldado
americano. Você precisa dela. Ela é a sua força , sua auto estima.
“Break another little bit of my heart, now darling, yeah, yeah, yeah, yeah Oh, oh,
have Have another little piece of my heart now”
Minha hipnose é interrompida pelo grito agudo de Joyce que me empurra e sai
correndo pelo bosque. Eu só tive uma única chance de olhar para trás e ver os olhos
alucinados de Janis Joplin focados na lua, o sangue escorrendo por aquele sorriso
contagiante, e notar que estava tendo uma ereção das boas enquanto todo aquele espetáculo
ocorria. Joyce realmente tinha razão, a noite é uma criança.

O meu primeiro conselho para você, Davis, é este: por favor não peça dispensa.

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