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FOLHA ae A ADOLESCENCIA CONTARDO CALLIGARIS PUBLIFOLHA © 2000 Publifolha — Divisio de Publicagses de Empresa Folha da Manhd S.A. © 2000 Contarde Calligaris Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta publicacdo pode ser reproduzida, arquivada ou transmitide de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissdo expressa € por escrito da Publifolha ~ Divisao de Publicagoes da Empresa Folha de Manha S.A. Editor Arthur Nestrovski Capa Publifotha Imagem de capo © Mouritius/LatinStock Projeto grdfico da colegao Silvia Ribeiro Assistente de projeto griifico Marilisa von Schmaedel Revisao Mario Vilela e Paulo Nascimento Verano Editoracao eletrénica Picture Dedos internacionais de Catalogacée na Publicacéo (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP Brasil) Calligaris, Conterdo: A adolescéncia / Contardo Colligaris. - Sée Paulo Publitolha, 2014. ~ (Folha Explico) 72 raimps. da 2 ed. de 2008. Bibliograt. ISBN 976-85-7402.215-4 1. Adolescéncia 2, Adolescentes ~Conduta de vida 3. Pricologia do adolescents |. Titulo. II, Sere. 10.09649, cop-155.5 as para cotélogo sistem: 1. Adolescncie : Psicologia 155.5, 2. Psicologia do adolescente 155.5 Este listo segue as recras de Acordo Ortogratico de Lingus Portuguesa (1990), em vigor desde 1* de janeiro de 2009 PUBLIFOLHA Divisio de Publicagées do Grupo Folha Al. Bardo de Limeira, 401, 6? andar CEP 01202-900, Sao Poule, SP Tel.: (11) 3224-2186/2187/2197 www.publifolha.com.br SUMARIO INTRODUGAO... 1. ELEMENTOS DE DEFINICAO 2. “O QUE ELES ESPERAM DE MIM?”... “COMO CONSEGUIR QUE ME RECONH E ADMITAM COMO ADULTO?”.. ane 4. A ADOLESCENCIA COMO IDEAL CULTURAL. PEQUENA BIBLIOGRAFIA COMENTADA ... m adolescente um pouco sem rumo, es- tranhando seu proprio comportamento, paradoxalmente desafiador e arrependido, para vocé na rua e fala:“Estou s6 passando or uma fase agora. Todo o mundo passa por fases, nao 62”. Alguém talvez reconhega sua voz. E Holden, o herdi do romance O apanhador no campo de centeio, de J.D. Salinger. Aproveitando-se da situagao, atras e ao lado dele se aglomeram pais e mies de adolescentes. Eles tam- bém perguntam:“Entao, é assim? Vai passar? E sé uma fase?”. Resposta de bolso, caso Holden e os pais o parem na rua: “Nao. Nao é apenas uma fase. Por isso, nada garante que passe”. Nossos adolescentes amam, estudam, brigam, trabalham. Batalham com seus corpos, que se esticam ese transformam. Lidam com as dificuldades de crescer no quadro complicado da familia moderna. Como se Introdugiio 9 diz hoje, eles se procuram e eventualmente se acham. Mas, além disso, eles precisam lutar coma adolescéncia, que é uma criatura um pouco monstruosa, sustentada pela imaginagao de todos, adolescentes e pais. Um mito, inventado no comeco do século XX, que vingou sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial.! A adolescéncia é 0 prisma pelo qual os adultos olham os adolescentes e pelo qual os préprios ado- lescentes se contemplam. Ela € uma das formac6es culturais mais poderosas de nossa época. Objeto de inveja e de medo, ela di forma aos sonhos de liberdade ou de evasio dos adultos ¢,ao mes- mo tempo, a seus pesadelos de violéncia e desordem. Objeto de adimiracao e ojeriza, ela € um poderoso argumento de marketing ¢, ao mesmo tempo, uma fonte de desconfianga e repressdo preventiva. A Holden e aos pais pode-se responder, assim, que os jovens de hoje chegaram A adolescéncia numa €poca que alimenta uma espécie de culto desse tempo da vida. E caberia, entao, tentar explicar como isso nos afeta a todos. * CE. Bibliografia, I. 1. ELEMENTOS DE DEFINICAO A ADOLESCENCIA COMO MORATORIA magine que, por algum acidente, vocé seja transportado, de uma hora para outta, a uma sociedade totalmente diferente. Digamos que 0 aviao no qual vocé estava sobre- voando um canto recéndito da Amaz6nia teve uma dificuldade técnica. O piloto conseguiu aterrissar, mas o aparelho esta destruido. Nao hi como esperar socorro, nem como sair do fundo selvagem da floresta. Por sorte, uma tribo de indios que nunca encontraram homens modemos, mas que sao relativamente bem-humorados, adota vocé e seus amigos. Serd necessario, imaginemos, doze anos para que vocés se entrosem Com Os usos € costumes de sua nova tribo — desde a linguagem até o entendimento dos valores da sociedade em que aparen- temente vocés viverdo o resto de seus dias. Os doze anos passaram. Vocé agora fala corren— temente a lingua, conhece as leis e regras de sua nova tribo, na verdade se sente um deles. Entre as coisas que vocé aprendeu, est4 o fato evidente de que, nessa Elementos de definicao 13 sociedade, é importante sobressair e adquirir destaque. E, para se destacar, h4 principalmente dois campos, seja vocé homem ou mulher: a pesca com 0 arpao e as serenatas de berimbau. Em outras palavras, nessa so— ciedade é bom e necessfrio ser um excelente pescador com 0 arpao e tocar magistralmente o berimbau de boca. Quem melhor pesca ¢ toca — todos percebem — é claramente muito mais feliz do que os outros. Vocé est4 muito satisfeito com isso. Pois, durante os doze anos, vocé olhou, imitou e aprendeu.Vocé na verdade se acha e talvez seja mesmo étimo na pesca com 0 arpio — pelos anos na selva, seu corpo esta trei- nado, forte ¢ rapido —e est prestes a desafiar qualquer uml numa serenata de berimbau. Nessa altura, os ancides da tribo Ihe comuni- cam 0 seguinte: talvez vocé tenha tamanho e pericia suficientes para encarar tanto um surubim de dois metros quanto um berimbau dos mais sofisticados, mas € melhor esperar mais dez anos antes de vir fazer propriamente parte da tribo e, portanto, competir de igual para igual com os outros membros. Naturalmente, Os ancides acrescentarao que esse “pequeno” atraso é inteiramente para seu bem. Eles amam vocé e Por isso querem que ainda por um tempo vocé seja protegido dos perigosissimos surubins que andam por ai. Isso sem falar dos berimbaus... Portanto, vocé vai poder se preparar melhor ainda para o dia em que serd enfim reconhecido como membro da tribo. Que tudo isso, acrescentario também 0s ancides, no constitua frustragdo nenhuma, pois na verdade a tribo inteira considera que vocé tirou a sorte grande e que os ditos dez anos serio os mais felizes de sua existéncia. Vocé — acrescentam eles — no tera as pesadas responsabilidades dos membros da tribo. Ao mesmo tempo, poder pescar e tocar berimbau 4 14 A adolescéncia vontade — sera apenas como treino, de brincadeira, mas justamente por isso serdo atividades despreocupadas. Agora, seriamente, como vocé acha que encararia © anaincio e a perspectiva desses dez anos de limbo? Logo agora que vocé achava que seu berimbau ia se- duzir qualquer ouvido e sua destreza transfixar peixes de olhos quase fechados... E bem provavel que vocé passasse por um leque variado de sentimentos: raiva, ojeriza, desprezo e enfim rebeldia. Se houvesse uma tribo inimiga, seria o momento de considerar uma traigio. No minimo, vocé voltaria a se agrupar com os companheiros do avido, que talvez vocé tivesse perdido de vista € que agora estariam lidando com a imposicdo da mesma moratoria. Juntos, vocés acabariam constituindo uma espécie de tribo na tribo, outorgando-se mutuamente © reconhecimento que a sociedade parece tempo- rariamente negar a vocés todos. Vocés se afastariam de suas familias (adotivas, no caso) e viveriam no e pelo grupo, onde se sentem tratados como homens e mulheres de verdade. Circulando em grupo, impondo sua presenca rebelde pelas ruas da aldeia — se possivel nas horas menos adequadas —, vocés seriam fonte de preocupacio ¢ medo, objeto de repressdo ¢, quem sabe, de inveja. Pois bem: 0 que acontece com nossos adolescen- tes € parecido com o destino dos aeronaufragos dessa pequena historia. Ao longo de mais ou menos doze anos, as criancas, por assim dizer, se integram em nossa cultura e, entre outras coisas, elas aprendem que ha dois campos nos quais importa se destacar para chegar 4 felicidade ¢ ao reconhecimento pela comunidade: as relagSes amorosas/sexuais ¢ o poder (ou melhor, a poténcia) no campo produtivo, financeiro e social. Em outras palavras, elas aprendem que ha duas qualidades Elementos de definigao 15 subjetivas que sao cruciais para se fazer valer em nossa tubo: é necessdrio ser desejavel e invejavel. ee ere pune esta solidamente oo : a ornaram desejantes -Javeis, poderiam Ihes permitir amar, copular e assim como sé reproduzir. Suas forcas poderiam qualquer tarefa de trabalho e comecar a lev4- direcao de invejaveis sucessos sociais. Ora, logo instante, Ihes € comunicado que nao est4 bem ainda. Em primeira aproximagio, eis entio como car a definir um adolescente.2 Inicialmente. em: ; l.que teve o tempo de assimilar os valores mais banais e mais bem compartilhados na comunidade {por exemplo, no nosso caso: destaque pelo sucesso financeiro/social ¢ amoroso/ sexual); 2.cujo corpo chegou 4 matura¢do necessaria para que ele possa efetiva e eficazmente se consa var A tarefas que lhes so apontadas por esses lore, Sa petindo de igual para igual com todo mundo: a 3-para quem, nesse exato momento, a éSmunis dade impde uma moratéria. Em outras palavras, hd um sujeito capaz, instruido e treinado por mil caminhos — pela escola pelos ais pela midia — para adotar os ideais da comunidad! Ele se torna um adolescente quando, apesar de seu Corpo € seu espirito estarem prontos para a competi- ¢ao, nao é reconhecido como adulto. Aprende que, por volta de mais dez anos, ficara sob a tutela dos adios 2 Em todo é “ © texto, quando falamos do “adolescente” sem mais especificar, entendemos a palavra ci in peaeesvono Substantivo neutro. Salvo indicagio explicita do contririo images valem, portanto, para ambos os sexos fs 16 A adolescéncia preparando-se para 0 sexo, 0 amor ¢ 0 trabalho, sem produzir, ganhar ou amar; ou entio produzindo, ga- nhando ¢ amando, s6 que marginalmente. / Uma vez transmitidos os valores sociais mais basicos, ha um tempo de suspensdo entre a chegada a maturagio dos corpos € a autorizacao de realizar os ditos valores. Essa autorizacdo € postergada. E o tempo de suspensio é a adolescéncia. , Esse fendmeno é novo, quase especificamente contemporaneo. Ecoma moderidade tardia (com o século que mal acabou) que essa moratoria se instaura, se prolonga ¢ se tora enfim mais uma idade da vida. A ADOLESCENCIA COMO REAGAO E REBELDIA A imposicdo dessa moratoria ja seria razao suficiente para que a adolescéncia assim criada e mantida fosse uma época da vida no minimo inquieta. Afinal, nao seria estranho que mogas e rapazes nos reservassem alguma surpresa desagradavel, uma vez impedidos de se realizar como seus corpos permiti- riam, njo reconhecidos como pares ¢ adultos pela comunidade, logo quando passam a se julgar enfim competitivos. 2 7 Pensem de novo em como voces reagiriam na hipotética tribo: mesmo supondo que evitassem deci- ses drasticas (cair fora, entrar em guerra aberta com os anciées, trair a tribo etc.), é presumivel que passariam por um petiodo de contestagio aguda. Comegariam a pescar com dinamite e a tocar teclado eletronico em vez de berimbau. Inventariam e tentariam impor (cventualmente 4 forga) meios de obter reconheci- Elementos de definigao 17 mento totalmente inéditos para a tribo. Essas sio apenas sugestdes benignas Ora, 0 caso dos jovens modernos é bem pior do que 0 destino dos aerondufragos na hospitaleira tribo da selva amaz6nica. Pois, além de instruir os jovens nos valores essenciais que eles deveriam perseguir para agradar a comunidade, a modernidade também promove ativamente um ideal que ela situa acima de qualquer outro valor: o ideal de independéncia. Insti- gar 0s Jovens a se tornarem individuos independentes é uma peca-chave da educacio moderna. Em nossa cultura, um sujeito sera reconhecido como adulto © responsavel na medida em que viver e se afirmar como independente, aut6nomo — como 03 adultos dizem que sao. Isso torna ainda mais penoso o hiato que a adolescéncia instaura entre aparente maturagio dos corpos € ingresso na vida adulta. Apesar da maturacio dos corpos, a autonomia reverenciada, idealizada por todos como valor supremo, é reprimida, deixada para mais tarde. Desde j4 vale mencionar que a desculpa nor- malmente produzida para justificar a moratéria da adolescéncia é problematica. Pretende-se que, apesar da maturacgio do corpo, ao dito adolescente faltaria maturidade. Essa ideia é circular, pois a espera que lhe € imposta é justamente o que o mantém ou torna inadaptado e imaturo. Nao é dificil verificar que, em épocas nas quais essa moratoria nao era imposta, jovens de 15 anos ja levavam exércitos 4 batalha, comandavam navios ou simplesmente tocavam negécios com competéncia. O adolescente nio pode evitar perceber a con- tradi¢do entre o ideal de autonomia e a continuagado de sua dependéncia, imposta pela moratéria. 18 A adolescéncia A ADOLESCENCIA IDEALIZADA Tal contradicdo torna-se ainda mais enigmatica para o adolescente na medida em que essa cultura parece idealizar a adolescéncia como se fosse um tempo particularmente feliz. Como é possivel? Se o adolescente é privado de autonomia, se é afastado da realizagdo plena dos valores cruciais de nossa cultura, como pode essa mesma cultura imaginar que ele seja feliz? O adolescente poderia facilmente concluir que essa idealizagdo da época da vida que ele esta atravessando é uma zombaria que agrava sua insatis- facao. Ele certamente tem direito de se irritar com isso: é dificil entender por que os adultos (que em principio deveriam conhecer a adolescéncia, por terem passado por ai em algum momento) achariam graca nessa €poca da vida ou a lembrariam com nostalgia. Tentaremos explicar essa idealizacdo, sobretudo no Capitulo 4. Mas, seja como for, o adolescente vive um paradoxo: ele é frustrado pela moratéria imposta, ¢, ao mesmo tempo, a idealiza- cdo social da adolescéncia lhe ordena que seja feliz. Se a adolescéncia é um ideal para todos, ele s6 pode ter a delicadeza de ser feliz ou, no minimo, fazer barulhentamente de conta. Em nossa cultura, a passagem para a vida adulta é um verdadeiro enigma. A adolescéncia nao é sé uma moratéria mal justificada, contradizendo va- lores cruciais como o ideal de autonomia. Para o adolescente, ela nao é s6 uma sofrida privacdo de reconhecimento e independéncia, misteriosamente idealizada pelos adultos. E também um tempo de transicdo, cuja duragao € misteriosa. Elemento de definigio 19 DURAGAO DA ADOLESCENCIA O comeco da adolescéncia é facilmente observavel, por se tratar da mudanga fisiolégica produzida pela puberdade. Trata-se, em outras palavras, de uma transformacao substancial do corpo do jovem, que adquire as fungées e os atributos do corpo adulto. Querendo circunscrever a adolescéncia no tempo, como idade da vida, chega-se facilmente a um consenso no que concerne ao seu come- co. Ele é decidido pela puberdade, ou seja, pelo amadurecimento dos érgaos sexuais. Alguns dirio que a adolescéncia propriamente dita comeca um ou dois anos depois da puberdade, pois esse seria o tempo necessirio para que, de alguma forma, 0 estorvo fisiolégico se transformasse numa espécie de identidade adolescente consolidada. Outros dirdo, ao contrario, que a adolescéncia comeca antes da puberdade, pois esta é antecipada pela adogado precoce de comportamentos e estilos de adolescentes mais velhos. Seja como for, a puber- dade — ano a mais, ano a menos — é a marca que permite calcular 0 comec¢o da adolescéncia. Quando a adolescéncia comegou a ser instituida por nossa cultura e, logicamente, apareceram as com- plicag6es sociais e subjetivas produzidas pela invencio dessa moratéria, pensou-se primeiro que a causa de toda dificuldade da adolescéncia fosse a transformacio fisioldgica da puberdade. A adolescéncia, em suma, seria uma manifestaca0o de mudancas hormonais, um processo natural.* * Cf. Bibliografia, [, em particular os comentarios & obra de Stanley G. Hall. 20 A adolescéncia De fato, a transformacio trazida pela puberdade é consideravel. Tanto do ponto de vista fisiologico quanto da imagem de si que deve se adaptar a essa mudan¢a. Basta lembrar a chegada dos desejos sexuais (que ja existiam, mas que s4o agora reconhecidos como tais pelos prdprios sujeitos) e,aos poucos, a descoberta de uma competicio possivel com os adultos, tanto na sedugao quanto no enfrentamento. Mas essas mudaneas s6 acabam constituindo um problema chamado adolescéncia na medida em que o olhar dos adultos nao reconhece nelas os sinais da passagem para a idade adulta. O problema entio nio é: “Quando comeg¢a a adolescéncia?”, mas:““Como se sai da adolescéncia?”. O equivalente da adolescéncia, em outras cultu- ras, é um rito de iniciacao, eventualmente acompanha- do de algumas provas. Por mais duras que possam ser, elas serdo sempre mais suportaveis do que a indefinida moratéria moderna. Alids, em nossa hipotética tribo amazOnica, na verdade, os anci6es nunca imporiam uma espera indefinida de dez anos ou mais. Eles po- deriam exigir que vocés lutassem corpo a corpo com o rei dos surubins gigantes, por exemplo. Ou entao que levassem quinze berimbauzadas na cabe¢a. Mas, para que fosse possivel uma iniciacdo a vida adulta, com uma prova designada, seria necessario que se soubesse o que define um homem ou uma mulher adultos. Essa definigao, na cultura moderna ocidental, fica em aberto. Adulto, por exemplo, ¢ quem consegue ser desejavel e invejavel. Como saber entio quanto desejo e quanta inveja é preciso [evantar para ser admitido no Olimpo dos “grandes”? Portanto, fica também em aberto a questo de quais provas seriam necessarias para que um adolescente merecesse se tornar um adulto. Elementos de definigéo 21 De certa forma, a moratéria da adolescéncia é to dessa indefinigio. Numa sociedade em que adultos fossem definidos por alguma competéncia = ica, ndo haveria adolescentes, s6 candidatos e ia iniciagao pela qual seria facil decidir: sabe ou nio Be, € ou nao é adulto. Como ninguém sabe direito 0 que é um homem suma mulher, ninguém sabe também o que é preciso @ que um adolescente se torne adulto. O critério ples da maturacao fisica é descartado. Falta uma lista belecida de provas rituais. $6 sobram entio a espera, ocrastinacdo ¢ o enigma, que confrontam o adoles- te — este condenado a uma moratoria forcada de sua — com uma inseguranga radical em que se agitam eestOes que correspondem aos préximos capitulos: D que eles esperam de mim?”, “Como conseguir que reconhecam e admitam como adulto?”, “Por que © idealizam?”’ Voltando a pequena lista de elementos definitérios posta anteriormente, no final da segdo “A adoles- a como moratoria”, acrescentemos, concluindo, o adolescente € também alguém: 4. cujos sentimentos e comportamentos so ob- amente reativos, de rebeldia a uma moratoria injusta; 5.que tem o inexplicdvel dever de ser feliz, pois = uma €poca da vida idealizada por todos; 6.que nao sabe quando e como vai poder sair de a adolescéncia. 2. “O QUE ELES ESPERAM DE MIM?” INSEGURANCA adolescente se olha no espelho e se acha diferente. Constata facilmente que perdeu aquela graca infantil que, em nossa cultu- ra, parece garantir 0 amor incondicional dos adultos, sua prote¢ao ¢ solicitude imediatas. Essa seguranga perdida deveria ser compensada por um novo olhar dos mesmos adultos que reconhecesse a imagem ptibere como sendo a figura de outro adulto, seu par iminente. Ora, esse olhar falha: o adolescente perde (ou, para crescer, renuncia) a seguranga do amor que era garantido a crianga,sem ganhar em troca outra forma de reconhecimento que Ihe pareceria, nessa altura, devido. _— Ao contrario, a maturac4o, que, para ele, € evi- dente, invasiva e destrutiva do que fazia sua graga de crianga, € recusada, suspensa, negada. ‘Talvez haja maturacio, Ihe dizem, mas ainda nao € maturidade. Por consequéncia, ele nao ¢ mais nada, nem crianga amada, nem adulto reconhecido. “O que eles esperam de mim?” 25 O que vemos no espelho nao é bem nossa ima- gem. E uma imagem que sempre deve muito ao olhar dos outros. Ou seja, me vejo bonito ou desejavel se tenho razées de acreditar que os outros gostam de mim ou me desejam.Vejo, em suma, o que imagino que os _ outros vejam. Por isso 0 espelho é ao mesmo tempo to tentador e tio perigoso para o adolescente: porque gostaria muito de descobrir o que os outros veem nele. Entre a crianga que se foi e o adulto que ainda nao chega, 0 espelho do adolescente é frequentemente vazio. Podemos entender entio como essa época da vida possa ser campea em fragilidade de autoestima, depressio e tentativas de suicidio. Parado na frente do espelho, cagando as espinhas, medindo as novas formas de seu corpo, desejando e ojerizando seus novos pelos ou seios, o adolescente vive a falta do olhar apaixonado que ele merecia quando crianga e a falta de palavras que o admitam como par na sociedade dos adultos. A inseguranga se torna assim 0 traco préprio da adolescéncia. Grande parte das dificuldades relacionais dos adolescentes, tanto com os adultos quanto com seus coetaneos, deriva dessa inseguranca. Tanto uma timidez apagada quanto o estardalhaco manfaco manifestam as mesmias questdes, constantemente 4 flor da pele, de quem se sente ndo mais adorado e ainda nao reconhe- cido: sera que sou amavel, desejavel, bonito, agradavel, visivel, invisivel, oportuno, inadequado etc.? INTERPRETAR OS ADULTOS O adolescente, portanto, se lanca numa interrogacao que durara o tempo (indefinido) de sua adolescéncia 26 A adolescéncia e que consiste em se perguntar 0 que sera que os adultos querem e esperam dele. Ou seja, qual = ° requisito para conquistat uma nova dose do amor dos adultos que ele estima ter perdido junto coma — Qual seria o gesto necess4rio para redirecionar 0 oll ar adulto, que parece ter-se desviado. Qual o atributo que garantiria, enfim, que ele fosse reconhecido entre “os grandes”. : : Infelizmente (pois sem isto tudo seria mais facil), nessa tentativa o adolescente nao pode se confinar a uma simples adesio ao que os adultos parecem ee tamente esperar dele e desejar para ele. Pois os adu tos se contradizem. Parecem negar a Obyia maturagio de seu corpo e lhe pedir que continue crianga; e tentam manté-lo numa subordinagdo que contrasta com os valores que eles mesmos lhe ensinaram. Querem que ele seja autonomo e€ lhe recusam essa autonomia. Querem que persiga 0 sucesso social e amoroso ¢ Ihe pedem que postergue esses esforcos para “se preparar” melhor. E legitimo que o adolescente se pergunte: “Mas o que eles querem de mim, entio? Que- rem (segundo eles dizem) que eu aceite essa moraionis ou preferem, na verdade, que eu desobedeca & a firme minha independéncia, realizando assim seus ideais?”’. Ser4 que os proprios adultos sabem? Aparente- mente nio: a adolescéncia assume assim a tarefa de interpretar 0 desejo inconsciente (ou simplesmente escondido, esquecido) dos adultos. og O pensamento € mais ou menos © seguinte: “Os adultos querem coisas contraditérias. Eles pedem uma moratOria de minha autonomia, mas 0 resultado de mi- nha aceitacdo é que eles nao me amam mals como uma crian Ca, nem reconhecem como um par esta ‘coisa na qual cu me transformei. Talvez, para ganhar seu amor e seu reconhecimento, eu nao deva entao seguir a risca “o que eles esperam de mimz” 27 suas indicacdes e seus pedidos, mas descobrir qual é de fato o desejo deles, atris do que dizem que querem. Em suma: de fato (e nio sé em suas recomendagées pedagogicas), qual é 0 ideal dos adultos, para que eu possa presented-los com isso e portanto ser por eles enfim amado e reconhecido como adulto?”. Em geral, o adolescente € 6timo intérprete do desejo dos adultos. Mas o proprio sucesso de suas in- terpretacoes produz fatalmente 0 desencontro entre adultos e adolescentes. Pois se estabelece um fantis- tico quiproqué: o adolescente acaba eventualmente atuando, realizando um ideal que é mesmo algum desejo reprimido do adulto. Mas acontece que esse desejo nao era reprimido pelo adulto por acaso. Se reprimiu, foi porque queria esquecé-lo. Por conse- quéncia, o adulto sé pode negar a paternidade desse desejo e se aproveitar da situagao para reprimi-lo ainda mais no adolescente. Unmn caso simples € crucial: a idealizacao do que esta fora da lei é propria 4 cultura moderna. O indi- vidualismo de nossa cultura preza acima de tudo a autonomia ¢ a independéncia de cada sujeito. Por outro lado, a convivéncia social pede que se traguem doses cavalares de conformismo. Para compensar essa exigén- cia, a idealizacao do fora da lei, do bandido, tornou-se parte integrante da cultura popular. Gangsteres, cowboys, malandros literarios, televisivos ou cinematograficos seguem entretendo nossos sonhos. Eventualmente (mas nao necessariamente), essa idealizacdo é acompanhada por algum tipo de justificativa moral. Por exemplo, Robin Hood esté 4 margem da lei, mas isso porque o xerife de Nottingham é um usurpador ilegitimo. Ou seja, Robin Hood se situa contra e acima da lei em nome de uma justi¢a superior a ela. Mas essa artimanha parece cada vez menos necessdria: nas Ultimas décadas 28 A adolescéncia (justamente quando apareceu € vingou a aduleecinei a marginalidade e a delinquéncia sao cada vez mas elorificadas pela cultura popular. Prova de um so adulto bem presente e bem reprimido. / Nio é dificil, portanto, ao adolescente ae © conformismo ou mesmo o “legalismo” dos adul tos como sintomas de um desejo que sonha mesmo on transgressdes € infragdes ¢ que (supde o ado! cenit preferiria portanto um filho malandro a um “m: te a a essa conclusio, o adolescente nao precisa de muito esforgo, pois a cultura popular tam- bém idealiza a propria adolescéncia rebelde. _— Esse € um sonho ou uma nostalgia explicita * mesmos adultos que pedem obediencia e conformidade aos adolescentes e sempre lembram o que ee com Chapeuzinho Vermelho por ter desobe! sc ° ; mae, mas que na verdade se extasiam Secdertn nate série de apologias da revolta dos jovens, desde Juven i é Kids.* ae — o adolescente ¢ levado inevitavelmente a descobrir a nostalgia adulta de transgressio, ou ie resisténcia As exigéncias antilibertarias do mundo. : ouve, atras dos pedidos dos adultos, um “Fa¢a 0 que ee desejo e nao o que eu pego”.E atta em aa Essa interpretagao do desejo dos adultos Pe adolescente nao ¢ sé facilitada ou induzida pela cu! = popular, que oferece a leitura de todos uima a 7 de repertorio social dos sonhos e dos. ee a sem essa facilitagao, as propriedades basicas do c ‘J moderno levariam o adolescente 4s mesmas conclusoes de fundo. Pelo seguinte caminho: * Cf. Bibliografia, IL “O que eles esperam de mim?” 29 1.Uma cultura em que a autonomia ea indepen- a sd0 os valores centrais e mais exaltados s6 pode ansmitir por um duplo vinculo, ou seja, por uma signacio paradoxal e contraditéria. A virtude essen- al que deve ser ensinada é, com efeito, a capacidade desobedecer. Portanto, obedecer é desobedecer. Mas ‘complicacio — quem desobedece est4 obedecendo. il tanto obedecer quanto seu contrario. 2.Na sociedade pré-moderna, a divisio social era dativamente pacifica, estabelecida. Hoje, a divisio sal € mével ¢ a posicio de cada um depende, em ancipio, do reconhecimento dos outros que se conse- © ou no. E normal que ninguém esteja satisfeito com Ba situacdo ¢ que cada um tente melhor4-la. O adulto moderno transmite ao adolescente nio um estado onde poderia se instalar como se herdasse uma moradia, mas uma aspiracio. Mais do que isso: ele transmite a rebento a ambi¢ao de nfo repetir a vida e 0 status os adultos que o engendraram. Ou seja, de desrespeitar suas origens, de ndo se conformar, de se destacar. 3. Apesar disso tudo, os adultos devem também transmitir ao adolescente as regras da conformidade social, necessaria para que ele nao seja simplesmente inadaptado. Ora, essa transmissio inevitavel de prin- cipios morais e valores prezados pelo consenso social aparece ao adolescente como prova da covardia, do Oportunismo ¢ do fracasso dos adultos. Se eles prezam a excegao, porque se dobram a rogar a conformidade? A autoridade do adulto é assim minada, pois todos os valores positivos parecem emanar da resigna¢ao ao fracasso, de um desejo frustrado de rebeldia ou de “tnicidade. Quanto mais 0 adulto tenta se constituir ‘como autoridade moral, tanto mais se qualifica como Aipécrita, porque a cultura (e ele junto a cla) promove como ideal aquele que faz excecdo A norma. 30 A adolescéncta 4.Quanto mais o adulto se manifesta rigoroso e quer impor sua autoridade recorrendo a uma tradicio, tanto mais ele a enfraquece e¢ se enfraquece com ela. Esse recurso, portanto, passa a produzir cada vez mais revolta por aparecer sempre, em nossa cultura, como 3.”COMO CONSEGUIR hipdcrita. Ou seja, como repressio exercida contra 0 inconfessavel de nossos sonhos. QUE ME 5.O adolescente é levado a concluir que 0 adulto ; RECONH ECAM quer dele revolta. E a repressio s6 confirma nele essa crea apenas —o a constatagio de que o E ADMITAM adulto repressor e ipocrita. COMO ADU Lito?" finalidade da adolescéncia é clara: 0 ado- lescente quer se tornar adulto. Podemos manter essa hipdtese jnicial, embora, como veremos (conclusio do Capitulo 4), nessa empreitada o adolescente encontre uma surpresa. Mas, por ora, constatemos que 0 adolescente quer ser reconhecido como sujeito adulto, um par dos adultos. Ele quer permissio para fazer parte da comunidade. O problema, como observamos antes, ¢ que para ser reconhecido ele parece ter que transgredir. Para ser amado, para preencher as expectativas do desejo dos adultos, é necessario, paradoxalmente, nao se confor- mar ao que os mesmos adultos explicitamente pedem. Transgredir também nfo é nada facil. Nao € suficiente atender As expectativas implicitas e faltar com as expli- citas. Como j4 observamos, 0 adolescente se encontra entregue a problemas légicos complicados. - Se imperativo cultural dominante € Desobe- dece!”, “Prova tua autonomia!”, entao desobedecer “Como conseguir que me reconhecam ¢ admitam como adult?” 33 pode ser uma maneira de obedecer. E obedecer, quem sabe, talvez seja 0 jeito certo de nio se conformar. Essa complicacio insolitvel introduz um leque de transgressGes que vai desde um conformismo ines- perado (0 cimulo da transgressio nesse caso consiste em voltar a uma cultura que nao faria a apologia da transgressao) até uma espécie de arremata¢io infinita, em que ndo se sabe mais qual lance encontrar que constitua uma transgressao suficiente. Nao ha como tentar uma lista mesmo sucinta dos comportamentos e estilos pelos quais os ado- lescentes pedem sua admissio 4 sociedade adulta. Na mesma época em que parece vingar 0 pesadelo do predador urbano, também aparecem jovens que coletivamente abjuram as sedugdes do mundo, se engajam a chegar virgens ao casamento e se vestem como missiondrios. A variedade de escolhas morais nao € menor: desde 0 cinismo criminoso até a pie- dade mais solidaria. O fato é que a adolescéncia é uma interpretagio de sonhos adultos, produzida por uma moratoria que forca o adolescente a tentar descobrir 0 que os adultos querem dele. O adolescente pode encontrar € construir respostas muito diferentes a essa investi- gacdo. As condutas adolescentes, em suma, sio tio variadas quanto os sonhos ¢ 0s desejos reprimidos dos adultos. Por isso elas parecem (e talvez sejam) todas transgressoras. No minimo, transgridem a vontade explicita dos adultos. O adolescente, na procura de reconhecimento, é culturalmente seduzido a se engajar por caminhos tor- tuosos onde, paradoxalmente, ele se marginaliza logo no momento em que viria se integrar. Pois o que lhe € proposto é tentar, ou melhor, forcar, sua integracio justamente se opondo as regras da comunidade. 34. A adolescéncia As mil e uma condutas que um adolescente pode escolher para tentar obter o reconhecimento dos adultos tém, portanto, uma coisa em comum, além do cariter dificil, senao desesperado, do empreendi- mento. Trata-se do sentimento dos adultos de que a adolescéncia é uma espécie de patologia social ou, no melhor dos casos, um lugar onde as patologias psiquicas e sociais seriam endémicas e epidémicas. O comportamento adolescente € considerado no minimo anormal, por parecer (e de fato ser) transgres- sivo, quando comparado ao padrio adulto (0 padrao confesso dos adultos). Os adolescentes so facilmente considerados uma ameaca 4 ordem estabelecida e 4 paz familiar. Os adultos receiam as irrup¢Ges transgressivas que os adolescentes podem escolher como maneiras de se afirmar. Mas, sobretudo, os adultos sabem confusamen- te que o que ha de mais transgressor nos adolescentes é a realizacio de um desejo dos adultos, que estes pretendiam reprimir e esquecer. Se a adolescéncia é uma patologia, ela ¢ entéo uma patologia dos desejos de rebeldia reprimidos pelos adultos. A vida teal dos adolescentes (da grande maioria deles) pode ter pouco a ver com as figuras dessa pato- logia. Mas elas sao cruciais, por duas raz6es. Primeiro, descrever € tentar explicar os com- portamentos extremos dos adolescentes € a melhor maneira de situar 0s monstros que enfrenta também o adolescente aparentemente “normal” — embora ele os enfrente de mancira mais bem-sucedida. Pais e adolescentes conseguem a cada dia negociar acordos vidveis. Mas, por isso mesmo, © drama da adolescéncia, com o qual conseguem lidar, apare- ce mais claramente quando sua violéncia atropela seus atores. ‘Como conseguir que me reconhecam e.admitam como adulto?” 35 ___ Segundo, a adolescéncia nao é s6 0 conjunto das vidas dos adolescentes. E também uma imagem ou uma série de imagens que muito pesa sobre a wid dos adolescentes. Eles transgridem para ser reconhecidos e os adultos, para reconhecé-los, constroem visdes da adolescéncia. Elas podem estar entre o sonho (afinal 0 adolescente € a atuacdo de desejos dos adultos) o pesadelo (sio0 desejos que estariam mais bem esque- cidos) e © espantalho (si desejos que talvez voltem para se vingar de quem os reprimiu), Essas visGes — embora sempre extremas — s40 também as linhas segundo as quais de fato se organiza © comportamento dos adolescentes em sua procura de reconhecimento. Sio ao mesmo tempo concrecées da rebeldia extrema dos adolescentes e sonhos, pesadelos ou espantalhos dos adultos. Por isso, sio chaves de acesso a adolescéncia. Destaco cinco: 0 adolescente gregario, o delinquente, o toxicdmano, o adolescente que se enfeia e o adolescente barulhento. O ADOLESCENTE GREGARIO Oo adolescente, descobrindo que a nova imagem pro- jetada por seu corpo nao lhe vale “naturalmente” o estatuto de adulto, é acuado a agir, A primeira agdo — em resposta A falta do reco- nhecimento que ele esperava dos adultos — consiste em procurar novas condi¢des sociais, em que sua admissao como cidadao de pleno direito nado dependa mais dos adultos e, portanto, nao seja mais sujeita a moratoria, O adolescente transforma assim sua faixa etaria num grupo social, ou entio num conglomerado de grupos sociais dos quais 0s adultos sio excluidos 36 A adolescéncia e em que os adolescentes podem mutuamente se re- conhecer como pares. Contrariamente as criancas, os adolescentes em geral considerarao que sua verdadeira comunidade nao éa familia. Isso no ¢ propriamente um efeito da frequente desagrega¢io dos nticleos familiares (esva- ziamento das casas onde todos trabalham ou separagao dos pais). E o inverso:a crise da familia revela de fato que os proprios adultos estio tomados por pruridos adolescentes, com Ansia de rebeldias e liberdades (entre elas, a liberdade das responsabilidades de uma familia). Essas inquietagdes juvenis nao os aproximam dos adolescentes, os quais esperam deles algo que nao encontram em seus coetancos. E possivel que surjam novos modelos de familia e estes permitam que adultos e adolescentes convivam — € nao 6 se abriguem sob 0 mesmo teto. Até 14, a verdadeira comunidade do ado- lescente € composta por seus coetaneos e, entre estes, pelo grupo restrito de pares com os quais compartilha as escolhas de estilo mais importantes. Recusado como par pela comunidade dos adul- tos, indignado pela moratéria que Ihe é imposta e acuado pela indefinigao dos requisitos para termina-la (a famosa e enigmatica maturidade), o adolescente se afasta dos adultos e cria, inventa e integra microssocie- dades que vio desde o grupo de amigos até o grupo de estilo, até a gangue. Nesses grupos, ele procura a auséncia de mora- toria ou, no minimo, uma integracdo mais rapida e critérios de admissio claros, explicitos € praticaveis (a diferenca do que acontece com a famosa “maturidade” exigida pelos adultos). Os grupos adolescentes, sempre respondendo a esses pré-requisitos, so, por assim dizer, de densida- des diferentes. Alguns sio informais ¢ abertos, como “Com ir que s 10 conseguir que me reconhecam eadmitam como adulto?” 37 as comunidades de estilo (dark, punk, rave, clubber 2 acesso aqui exige apenas a composicao de os ese look que todos reconhegam como Outros grupos pedem que a senha que dé = a comunidade seja uma marca duradoura — tatuagem, cicatriz — i cif Beet cet ou um tipo especifico de mo- Outros, ainda, pedem uma espécie de pacto de sangue, como a participagao numa responsabilidade coletiva indissolavel, sem retorno. Aqui o ato de roubs estuprar ou matar coletivamente produz uma culpa comum, um segredo comum. - O grupo adolescente — seja um estilo compar- tilhado ou propriamente uma gangue — ptr d qualquer jeito como uma patologia aos olhos rns adultos. Os gostos gregarios dos jovens sio conside- tados anormais e perigosos. O grupo adolescente é vivido como o que sanciona a desagregacao da familia e quebra a relacio hierarquica entre geracdes, vist que o adolescente encontra em seus coetineos ° - conhecimento que se esperava que pedisse aos adultos, © adulto, sem se perguntar muito por que og adolescentes so gregirios, demoniza 0 grupo ado. lescente temido como uma espécie de tribo ha ial De fato,a propria constituicio do grupo adoles- cente é, do ponto de vista dos adultos, uma transeressi Os adolescentes se tornam gregirios por tie thes & negado o reconhecimento dos adultos — que o que cles mais querem. Por isso, inventam grupos em que pom encontrar e trocar 0 que os adultos Tecusaram ou. pediram que fosse deixado para mais tarde. Ora, os adultos consideram suspeito esse afas- tamento dos adolescentes. Com razio, pois o gruj adolescente surge justamente porque 6s escolhe, 38 A adolescéncia ram nio mais esperar pelo reconhecimento poster- gado dos adultos. O que ja € uma transgressio, talvez a mais grave. Portanto, o gregarismo aparece como uma pato- logia adolescente por ser uma forma de insubordina¢ao aos adultos. Os jovens gregarios transgridem por se bastarem, ou seja, por se reconhecerem entre pares, dispensando os adultos. Mas, além disso, no grupo assim constituido, eles perseguem e praticam os sonhos proibidos (dos adultos). O grupo adolescente € transgressor em sua funcio (oferecer reconhecimento sem precisar dos adultos). Mas € também facilmente transgressor €m suas atuacées. Para seus membros, vale a ideia de que a esperanga de reconhecimento vem da transgressao. Sobretudo, vale a constatagao de que a transgressa0 coletiva solidifica o grupo e garante reconhecimento reciproco no seu seio. O grupo adolescente se torna por isso mesmo um espantalho. Nio é por acaso que, em certas jurisdigdes dos Estados Unidos, por exemplo, a legislacio local permite que os jovens pilotem um carro desde os 16 anos, mas proibe que dirijam com outros ado- lescentes no veiculo antes dos 18 anos de idade. A experiéncia mostra ao legislador que a reuniao de adolescentes multiplica substancialmente a tentacio de infringir regras. Ou seja, desde que 0 grupo ado- lescente esteja reunido, cada um (a comecar pelo piloto) tera a tarefa de conseguir aquele reconheci- mento pelos outros que os adultos negam. Quanto mais o comportamento for transgressor, tanto mais facil sera o reconhecimento: a transgressao demonstra afastamento dos adultos, adesao € fideli- dade ao grupo. Como conseguir que me reconhecam e admitan como adulto?” 39 E : » quanto mais © comportamento infrator en- Ontrar reconhecimento imediato pelos outros, tanto vai se estender,se torn: 2 y ar complexo e se di a ip! se distanciar Por e a ici “ razao, qualquer policial de ronda sabe parur a trés, os adolescentes se tornam poten- . mais perigosos, visto que se constituem num. up i u . e reconhecimento mituo, em que a infracao erande ou pequena) vale como senha. ) ADOLESCENTE DELINQUENTE temos a motivacdo primeira do adolescente: trata- be de conseguir um reconhecimento para 3 ual aguém sabe lhe dizer quais sio as provas wth | iniciatorio necessario. E, por mona ca de ocar fim a uma moratoria que lhe é imposta loge do se sente maduro, forte e potencialmente adulto O adolescente € rejeitado pela sociedade dos tos, que respondem ao seu pedido de admis- © com uma bola preta na urna. Ora, quando tite dido nao encontra uma palavra que no. minimo onheca sua relevancia, normalmente seu autor ; anta a voz. Numa progressio linear, grita, qu a vidros € pratos, coloca fogo na casa e otic an matar para ser levado a sério. Ou seja, ele t 7 apor pela forga, ou mesmo pela violéncia oom parentemente nado é ouvido. eum iE lngar-comum notar que haveria uma impor- ncia quantitativa da criminalidade adolescente — 0 ie nao € totalmente surpresa, visto que a rebeldia arece ser um caminho que o préprio adulto apont. a 0 adolescente. Mesmo nos tiltimos anos, ated 4o Aadolescéncia a criminalidade diminuiu drasticamente nas grandes cidades americanas, por exemplo, o tmico niimero que resistiu foi o de adolescentes infratores € criminosos. Em alguns momentos ¢ lugares, eles até cresceram. Alimenta-se assim o espantalho do adolescente dito “predador” (como se fosse uma espécie diferente iden- tificada por seu comportamento sanguindrio). Ora, custou certo tempo para que alguem se desse conta do que est por tras dos niimeros (vai custar mais ainda para que esta verdade seja assimilada pelo ptblico). A verdade é que o naimero de crimes cometidos por adolescentes provavelmente evolut segundo uma curva bem parecida com a curva dos crimes dos adultos. Provavelmente — porque a grande maioria das pesquisas ndo conta os crimes, mas OS criminosos indiciados e condenados. A consequéncia dessa abordagem é que a tribo mais gregaria sempre parece mais criminosa. Nio é dificil entender por qué: os adolescentes cometem seus crimes em grupo (para se reconhecerem mutuamente como membros do grupo). E claro, por conseguinte, que a cada crime varios adolescentes criminosos podem ser inculpados e condenados. Isso nao é 0 caso dos adultos. A ideia de que os adolescentes seriam o grupo mais perigosamente criminoso nio parece ter suporte quantitativo. Os ntmeros s6 nos dizem algo que de fato ndo é surpreendente, 4 luz de nossas considerag6es: ou seja, um adulto ou no maximo dois se engajam juntos no empreendimento de roubar um carro. O mesmo crime poder ser cometido por um bando de adolescentes que, uma vez 9 crime perpetrado, mal caberao todos no carro. Resumindo, o adolescente tem possiveis ¢ compativels para obter algun reconheci- mento: fazer grupo € dois caminhos fazer estardalhaco, ou “besteiras”. “Como conseguit il 0 conseguir gute me recorhecam e admvsamn como adulto?” 41 or ainda: fazer grupo e com o grupo fazer bes - Enfim, se associar para transgredir. ~ Nessas condig6es, a delinquéncia poderia s 2 vocacao da adolescéncia. a Delinquéncia” nado é uma palavra excessiva abora de fato pouquissimos adolescentes se tomem : epriamente delinquentes. Mas existe uma hance adolescéncia e delinquéncia, porque o ailchiacares nao ser reconhecido dentro do pacto social, tenta % reconhecido “fora” ou contra ele — ou o| di @ mesma, no pacto alternativo do grupo. =. Ele constituira um novo pacto entre adolescents claras regras de reconhecimento miutuo. Essas, as sempre estardo deliberadamente em 7 ural ou menos declarada, com 0 pacto social. “ Dentro ou fora da pratica gregaria, os jovens na desistirdo de tentar suscitar a atengdo ea seienhen’- a = dos adultos. O grupo que eles vierem a consti - = a de acdo que devera transgredir I ; J@ que continua viva a esperanca de Tecel, Por essa transgressdo, a atengao dos adultos transgressdo tenta encenar 0 que os adolescentes editam, ser um desejo recalcado dos adultos. HA o ojeto de entregar como presente para os adultos ur omportamento, um gesto, do qual eles teriam Sido strados e, assim, de merecer uma medalha a mais a interpretacao do desejo dos adultos for certei : mais esse projeto fracassar4. Nesse caso, a trans resiio dolescente presenteia os adultos com uma fcege que justamente eles querem reprimir. © erro dos ee escentes (erro em relagao a sua prépria estratégia) é ensar que para os adultos possa ser agradavel enconty ‘ama encenacio de seu préprio recalque. _ Paradoxo e dificuldade da relacao entre geraces: adolescentes transgridem — até aveiticnte ais 42 Aadolescéncia para burlar a lei, ndo ma esperanca de escapar das consequéncias de seus atos, mas, ao contrario, para excité-la, para que a repressio corra atras deles e as- sim os reconheca como pares dos adultos, ou melhor, como as partes escuras e esquecidas dos adultos. Eles imaginam que, como delinquentes, serio amados por serem portadores de sonhos recalcados. Nessa condigao, torna-se impossivel para os adultos escolher uma estra- tégia correta entre tolerancia e repressio. Por exemplo, é um perigo deixar a porta aberta (como esta acon- tecendo cada vez em mais paises) para que o tribunal decida se jovens culpados de crimes graves devem ser perseguidos como menores ou como adultos. A vista disso, como © jovem resistiria 4 tentagao de fazer algo que seja grave a ponto de forgar o tribunal a julgd-lo como adulto — que é 0 que ele pede desde sempre? Se for julgado e condenado como adulto, isso sera a demonstracio do fato de que os adultos s6 ouvem a linguagem do crime mais detestavel e de que essa linguagem funciona. Tolerar ndo é uma op¢io, visto que o jovem atua justamente para levantar a repressio. A tolerancia s6 0 forcard a atuar com mais violéncia. Os adolescentes, ent3o, transgridem e os adul- tos reprimem. Por um lado, se os adultos reprimem preventivamente, impondo regras ao coniportamento adolescente, eles afirmam a nao maturidade dos ado- lescentes. Em resposta, os adolescentes serio levados a procurar maneiras violentas de impor seu reconhe- cimento. Por outro lado, a repressio punitiva so manifesta ao adolescente que seu gesto nao foi entendido como deveria, ou seja, como um pacote de presente cheio de ideais e desejos reprimidos dos adultos. O que também Jevard o adolescente a aumentar a dose de rebeldia. Como conseguir que me reconhecam e admitam como adulto?” B Nao é dificil enumerar os comportamentos mais entes da delinquéncia adolescente. Sua banali- ade s6 demonstra a banalidade dos desejos que os plescentes Conseguem descobrir atras do siléncio s adultos. o furto — desde os pequenos roubos de mer- doria nas lojas até 0 assalto e a colaboracio em apreendimentos criminosos (extorsdo, traficos sitos etc.) — é a conduta mais ébvia. Afinal, o ideal 1 do sucesso financeiro € triunfante em nossa edade, € o jovem é mantido afastado dele pela pratéria da adolescéncia. Ele escolhe perseguir esse €sso por um caminho que dispensa a retérica Eplicita sobre o valor do esforco, do suor na testa do trabalho (todos pretextos da moratoria). Trata ses valores morais como se fossem apenas orna- mm nitos corretivos, que permitem ao adulto tolerar propria avidez. O pensamento do jovem, por Onsciente que seja, soara assim: “Vocés me dizem ue € pata ficar rico, mas querem que eu fique aqui ma espera suando para me preparar. Eu acho que essa paracdo suada que vocés promovem e¢ elogiam = apenas um jeito de vocés se consolarem de seus FacassOs € nao encararem suas covardias. Eu vou rompetir pelos meios diretos que na verdade vocés tariam de usar. Vou roubar, por exemplo”. - Outro exemplo € a valorizacao seja da forca Hisica, seja da provocacao, da disponibilidade ao enirentamento (a capacidade de lutar e arriscar). O adolescente atua, encena o gosto de se afirmar so- ee contra 9s outros arriscando a pele, pardédia do Mestre antigo, 4 qual o adulto renunciou faz tempo preferindo negociacdes © outros compromissos ocials Menos perigosos. De novo o adolescente. brando pelo seu comportamento quea violéncia 44 A adolescéncia pode ser fonte de autoridade, nao seduz o adulto.Ao contrario, ele o constrange ¢ o ameaga, apontando sua covardia. Na relagio com os adultos (ndo s6 sua familia), 0 adolescente, ndo conseguindo produzir respeito, prefere ¢ consegue produzir medo. O medo € 0 equivalente fisico, real, do que o respeito seria simbolicamente. Entende-se como a delinquéncia propriamente dita, organizada, pode vir a ser uma resposta a mo- ratéria. Ela frequentemente implica uma associagao de delinquentes que comporta todos os requisitos do grupo de adolescentes. Satisfaz 0 ideal social de sucesso e riqueza pela apropriacao imediata e real. E impée o medo, que é 0 equivalente real do respeito. “Me disseram que era crucial enriquecer, ter sucesso e poder. Nao me deixaram competir — pediram para esperar. Entio eles vio ver.” Do mesmo jeito, a promiscuidade mais arris— cada pode ser uma resposta 4 moratoria sexual, que transgride a retérica explicita do pudor, do respeito, da vergonha. “Me dizem que é para ser desejante € desejavel e gozar com isso, mas me pedem para esperar, para nao me queimar cedo demais. Eles nio querem encarar suas covardias frente a seus proprios desejos. Querem, falam, falam e nunca fazem 0 que querem. Eu vou lhes mostrar como se goza.” Nao conseguindo que seu corpo seja reconhecido como adulto (portanto desejavel), o adolescente pode escolher se impor pela seducio mais brutal. O desejo do adulto seduzido, tentado, é — como 0 medo — outro equivalente fisico, real, de um reconhecimento que tarda. A prostituicio adolescente com clientes adultos é um bom exemplo de uma mancira de forcar o re- conhecimento, quase irdnica:““Se este corpo nio é de- sejavel, por que pagam para té-lo por um. momiento?”’. Como conseguir que me reconhegarn adrntam como adulto?” 45 O ADOLESCENTE TOXICOMANO visio da adolescéncia que parece ser mais preocu- ite para os adultos é a visio do adolescente toxicd- (0. Os adolescentes seriam mais sensiveis do que adultos ao charme das drogas ilegais. Na verdade, nio seria dificil argumentar que o eresse dos adolescentes de hoje para as drogas é a cao de um interesse para as drogas da geragdo pre- lente. Os adolescentes de hoje so os descendentes uma gera¢do que explicitamente ligou o uso das gas a todos os souhos de liberagio ¢ revolucio (pes- , sexual, social etc.) que ela agitou e€ subsequente- nte abandonou e recalcou. Desse ponto de vista, a relagio adolescente com drogas seria hoje um capitulo da rebeldia herdada los adolescentes, depois de largada por seus pais. Ela ‘a a interpretacao e atuacdo da grande esperanca € os adultos de hoje recalcaram, quando desistiram sua revolta e abragaram valores mais estabelecidos. Mas a droga tem também outras razGes de seduzir adolescente. Sensivel 4 “injustica” da moratéria, 0 ado- cente descobre que, em matéria de drogas ditas egais (alcool e tabaco), hé em principio uma separa- io de pesos e medidas entre adultos e adolescentes f interdicao seletiva dessas drogas aos adolescentes re vivida como parte do processo de sua infantili- Zacao, uma vez que cigarro e Alcool sao liberados ara os adultos. O argumento que insiste sobre 0 perigo de Alcool ¢ tabaco para a satide pode produzir 0 efeito inverso ao esperado, pois nada prova que o adolescente queira ser © objeto de uma protecao ou de um cuidado especial 46 A adolescéncia que, de novo, o infantilizaria. No entanto, esse argu- mento deve ser levantado e defendido vigorosamente pelos pais. Sem isso, o adolescente poderia se senlit entregue a algo bem pior do que a infantilizagao: 0 descaso de seus pais com sua vida. Ele também pode ser seduzido justamente pelo risco de vida que cigarro e bebida acarretam. Repre- sentante quase oficial das fantasias inconfessaveis dos adultos, 0 adolescente ndo vai poder ficar atras, logo num campo onde alguns adultos parecem ——— a correr riscos para gozar um pouco.A tentagao sera © desafiar os riscos fumando e bebendo até nao poder ne ks drogas que sao proibidas para todos tém mais ainda. / ouriem de serem proibidas (um charme em si), podem representar uma maneira de enriquecer pelo trafico, desmentindo a moratoria. coum: Elas proporcionam também uma boa on gregaria de reconhecimento reciproco entre droga- dos, ou seja, si0 a ocasiao da constituicao de grupos i ESOS. / ee ome an aspecto que faz © sucesso da toxi- comania adolescente, ou no minimo de seu espectro, que perturba o sonho dos adultos. - “ol . O que os adultos recetam, na visio doa a lescente drogado, da maconha 4 heroina € ao crack? Fora os riscos para a satide e o perigo de encarar ES penais, ha uma espécie de temor de que, no baseado ou na pedra, o adolescente encontre um objeto ave satisfaca seu desejo, mate sua procura, acabe con insatisfacio. O medo, em suma, de que com a droga o adolescente, de repente, seja feliz. Por que isso an- gustia os adultos? Seria mesmo wn problema para os adolescentes? “Como conseguir que me reconhecam e admitam como adulto?” 47 O que é préprio ao desejo moderno é que, atrs cada objeto desejado, sempre hd um desejo de algo mais, de uma qualidade diferente: uma vontade de econhecimento social — a qual nunca se esgota no Bjeto. Em outras palavras, o que é desejado é sempre mstrumental para afirmar ¢ constituir nosso lugar jal. Por mais que eu possa obter 0 objeto que eu To, nem por isso ele me satisfara.A riqueza de nosso ido depende disto: de uma procura que deve se ter inesgotavel — nenhum objeto satisfazendo a sede de reconhecimento social que permanece atras nossa vontade de possuir ou de consumir. Ora — na fantasia dos adultos e talvez de fato _ droga seria 0 objeto que promete ¢ entrega uma satisfacdo acabada, mesmo que apenas momentinea. ssa fantasia transforma a droga em senha de acesso a mm universo alternativo regrado por um pacto dife- ente. Nesse outro mundo, o que importa para todos 0 objeto, a droga, sua presenga, nao o status social e cla instaura. Por isso a toxicomania talvez seja a sgressio mais preocupante, porque parece minar pressuposto fundamental do pacto social vigente: permanéncia da insatisfacio. Por ser ou parecer um objeto que satisfaz de vez, bem em si,a droga é uma ameaga muito especial. a quebra a regra moderna de funcionamento do esejo. O drogado para de deslizar de um objeto a putro, da roupa ao carro, ao parceiro bonito — todos metiforas no caminho de um status social que nema totalidade dos objetos poderia produzir. A droga — diferenca dos outros objetos — apagaria o desejo. A Preocupacao de que o rapaz ou a moga que usam maconha parem de competir na escola, se deprimam, mao saiam da cama etc. 6 mais que justificada: ela expressa o medo legitimo de que, pela droga, cles 48 A adolescéncia transgridam de vez as regras essenciais do funciona- mento do desejo moderno. Mais do que nas outras formas da delinquéncia, os adultos veem na droga uma perigosa porta de saida por onde os adolescentes escapariam 4 moratoria para entrar de vez em outro mundo. Os adolescentes concordam com essa preocu- pacao e so podem encontrar nela mais uma razao para se satisfazer na droga. Afinal, os adultos nao param de mentir, para os outros € para eles mesmos, sobre 0 valor, o charme € 0 interesse dos objetos. Consomem como se acreditassem mesmo que o desfile dos objetos de consumo possa responder, satisfazer, a seus anselos e desejos. Precisamos acreditar que os objetos podem nos fazer felizes. Deslizamos sem parar de um a outro, sempre na espera de mais um que sera decisivo, final. De fato, isso é um faz de conta. Nao podemos re- nunciar A insatisfagao que nos faz correr € que vitaliza nosso mundo. Nenhum objeto pode nos satisfazer, pois o que queremos no sio coisas € posses, mas — atr4s delas — reconhecimento ou status. E nada pode extinguir nossa sede desses dois. Ora, a droga é, na série dos objetos, uma espé- cie de subversio. Drogando-se, o adolescente pode pensar estar atuando a seguinte verdade recalcada pelos adultos:“Ha um objeto que nos satisfaria, mas é necessirio esquecé-lo, pois a satisfacao seria fatal para nosso sistema social”. A droga € um objeto mortal. Nao s6 porque pode matar 0 usuario, mas porque — tho grave quanto isso — cla pode matar seu desejo. De fato, nao é o caso de dramatizar essa visio do adolescente toxicOmano. A grande maioria dos adolescentes apenas flerta com a droga. ‘Como conseguir gue me reconhecam e admitam como adulto?” 49 Na verdade, é frequente que adolescentes passem la droga um tempo e parem de usar. E também fre- ente que isso aconteca na cara dos adultos, os jovens dindo ajuda para voltar dessa viagem. Hé adolescen- que se drogam para entao precisar de algum tipo reabilitac3o e pedir ajuda. E uma estratégia parecida ma dos que naufragam de propésito na rota de um satlantico, para — uma vez recolhidos — viajar de ca na primeira classe. Ou seja, é uma estratégia que ca oO reconhecimento do adulto. P A reabilitacao, trazer alguém de volta da delin- wencia, da droga ou da prostitui¢io, é o contrario da antiliza¢ao: ela implica o reconhecimento de que em se perdeu esteve em perigo de verdade. E isso que almejam todas as condutas extremas la adolescéncia transgressora: convencer 0 outro de que a vida do adolescente nao é nenhum limbo Preparatorio; ela esta acontecendo de verdade, como a vida adulta. O ADOLESCENTE QUE SE ENFEIA Os adolescentes parecem contradizer, ou melhor, de- safiar, os canones estéticos dos adultos. Segundo estes eles se enfeiam sistematicamente. : Os grupos adolescentes inventam quase sempre um padrao estético interno, pelo qual os membros se diferenciam e se reconhecem entre si. Nio é raro que esse estilo constitua alguma espécie de agressio deliberada ao cdnone dominante: afinal, o etupo (mesmo 0 grupo de estilo) outorga seu proprio reco- nhecimento interno. Desafiar a aprovacao dos adultos € sua propria fincao.

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