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essa historia © esta diferente dez contos para cancoes de chico buarque felloada completa chica buarque mulher woe8 vai gostar 18 levando uns amigos pra conversar ‘les vao com uma fome que nem me contem eles vao com uma sede de anteontem alla cervea estupidamente gelada prum batalhao, ‘e vamos botar agua no folao mulher Bo v4 ce afobar mulher depois de salgar ‘aga um bom refoged aprovelle a gordura d ia olha Pedro dormir. Esté acordada hé tempo. Tem dor- mal. Acorda varias vezes durante a noite. Esté assim desde nou a decisio de deixar 0 Pedro. Nao sabe como dizer que lcixi-lo. Que no pode mais, que nio aguenta, que cheg: — Pedro. —Ahn. na nao consegue ir adiante. Pedro esté sorrindo. Dor- orrindo. Até dormindo o filho da puta é Dizer 0 qué? “Pedro, acorda que eu quero te dizer uma coisa Eu vou embora. Nosso casamento acabou, viu? Nao deu certo. final. Agora pode voltar a ‘Melhor deixar para outro dia. Ou nao dizer nada, Ir ibora e pronto. Telefonar da casa ne, dizer pelo telefo- ne. Isso, Sem precisar ver a cara dele, sem ele poder mexer com. o cabelo dela e dizer “Carol, Carolzinha, o que € isso?” como sempre faz quando ela perde a paciéncia com ele, Com vor de injustigado. Isso, melhor dizer pelo telefone. Sem remorso. “Tem que ser agora. — Acorda, Ele abre um olho. = Que horas sio? Dia de acordar tarde. Dia do futebol dele. Dia de feijoada depois do futebol. Bla botara jo de molho na noite anterior, como fazia todas as sextas- Como podia ter esquecido? Era a falta de sono, —Dorme, vai. Nove horas. Os dois na cozinha, ela fazendo o café, A barriga dele esticando a camiseta, o umbigo i mostra. — Como € que vocé pode jogar com essa barriga? — Sou meia-de-ligagio. Nao precisa correr muito. Cath ‘0 jogo. Tuclo em cima pra feijoada? — Vio ser quantos? Os de sempre. O Toca, o Binho, o Alaor, talvez uma mulheres. — Nao me diz que vem a Luizinha Bundinha, —Nio. Ela e 0 Binho se separaram. les eram casados? —E eu sei? Acho que eram. —E, as vezes nao dé certo. — O nosso deu, né, negra? Agarrando-a por tris, Agora, pensa ela. $6 uma frase, para prepari-lo. Um pred bulo para o que vird, “Sera que deu certo?” Ou: “Nao ten! tanta certeza...”. Mas nao. Ela nio tem coragem. Di —Nio esfrega essa barriga nojenta em mim. jcara numa mio € pio na ot de pé, pronto para sair correndo para o seu amado futebol, ela pensa: é um pobre tipo. Onde foi que ouviu aquilo? Pobre tipo, Esta sempre bem-humorado. Simpitico até dormindo. E com _ ‘oda a simpatia no ultrapassa sua cota minima como vendedor do laborat6rio, nio progride, nao traz dinheiro para casa. Mas nao perde o bom humor. Pobre tipo. Quem € que dizia aquilo? A Jeanne Moreau. Naquele filme francés, qual era mesmo? “Pawore type.” Os cantos da boca virados para baixo. Significando desdém absoluto. Era o que ele merecia. Era um “paucre type”. Ela pensa: as vezes faz falta uma boca como a da Jeanne Moreau. — Tehau, negra. Bejo. — Ta. Tehau. Nio consegui. Nao tive coragem. cé s6 esti prolongando a agonia, Carol eu sei. Mas sei Ii. - dai agora, Pega as tuas coisas e vem pra ed, Deixa um m bilhete? Voc? acha? — Fica mais facil. — Nao pode ser s6 um — Entio esereve a carta, —Voeé acha? (© Pedro gosta de dizer que a mulher estudou. Que Ie, 7 uss, vai ver filme francés. F que ele € um grosso. Que ela ua com cle pela sua beleza fisica, $6 pode ser, jf que pelo n= xo no fi. Sim, ea vai excrever uma carta. Eserevia mule nara o pai, em Minas, quando ele ainda era vivo, ele respondia yendo *Suas carta estio cada vez. melhores”, Deixaria urna carta para o Pedro. Dizendo tudo. Dizendo 0 qué? Que no aguenta mais, que chega. Mas com = fever a cart, a Mihee que que eu vd até af ajar woot a trazer tu suas 10. Pode deixar. Perto das onze, o Pedro telefona para casa. — Carol, escuta 56, © seu Menezes estd jogando conosco. Menevet — Quem é 0 seu Menezes! . - ‘Quen 0 seu Menezes, Carol? E, s6 0 dono do labora t6rio, Ou 0 chefio deles aqui no Brasil. O Alaor falou do nosso jogo e ele veio. Puta surpresa. Ble e mais o Bstevio de vend. 65, 166 O meu chefe, Carol. Os meus dois chefes. E est joada e quer provar. — Pedro... — Em suma: poe mais égua no feijio. Vai chegar todo do com uma fome e uma sede de anteontem. C estamos de cerveja? —Nio sei, nao sei. Tem que ver. — Poe no freezer. — Mas pra quanta gente? —Um batalhio, Ca E agora? Liga para a Milene. A Milene nao ajuda. — Sai dai, Carol. Nao faz essa feijoada. — Mas vem o patro dele. Vem um batalhao, Vai ser impor= tante pra ele, no emprego. — Azar. Ou melhor assi desastre. Um vexame. Uma definitivo dle uma relagio como — Também nio é assim. — Tem que ser assim, Carol. Um corte total. Ele nfo esti acostumado a chegar em casa ¢ estar tudo pronto, feo no fogo © couve cortada? Pois deixa ele ver como vai ser sem vocé. Sem a escrava dele obedecendo ordens. —Ele Desse jeito acaba tudo com um joada negada. Nada marca o fim feijoada negada. pre foi carinhoso comigo, Milene. — Nunca te dew valor, isto sim. Foi um songamonga. Um imprestavel. Escreve a carta e sai d —Jé escrevi a carta, Dez minutos depois, o Pedro de novo. — Como € que esté indo? — Pesto, et afobar. Olha, na mesa nic vai dar pra todo = Ne re a aslo 2 da covkn ha Ou runes ingugas pra ragot. Tem guia? ee eene aaa! Cumbuca de gel, FO... Como é que née stamos de eachaga? Acho quesabrou do shad passido ee edo, voce no ests jogando nfo? O sen Menezes entrou no men Tiger. Fu pedi pra san. — ue? Sentiu alguma coisa? — Bor qu Sem ae Menenes entrar Je pei gato. Ele std om piot forma do que et. Frum que di, campo, Vou ter que desliga. Nio esquece# Tinguiga! la dizia: “Ele nfo é homem para vocé, Carolina”. ee ce te. Boa-prag. Mas.- OPA no Era mm gas era 0 que pensiva. Nao criara e educara epi o, Aliana Francesa, histéria da arte, para casar com a filha, pianos pedro. Mas ela casara COM o Pedro. Ele era um a eo antes de engordar. Bera CArinhoso, Sempre fora aaron Cando ela perdia a paciencia com ele caitpogae dizi “Carol, Carlzinba, © Ue ¢ sso, Fos —Franeamente, Peo! rolzinha... Desculpe! ae pee a vida e a0s gostos do Pedro, Picante do fugol dos sibados no sitio do Alor, que era propagandist 1 Fata sratorio © ganhava 0 dobtO do que o Pedro em e ‘ate. ‘Aprendera a fazer feijoada com a mae do Pedro. To- fara os cl : .s de trabalho que 0 Pedro trazia para casa depois trae cle que eu le cana Pensa 67 que cantava, € cujo repertério era de matar. O Toca, que era sempre o tiltimo a sair e as vezes precisava ser corrido para casa, ‘Tolerava até a Luizinha quando o Binho a trazia, Luizinha e seu shortinho apertado com metale da bunda de fora, ‘Uma noite, depois de beber um pouco, Pedro comegara a lar sério. Deitado na cama, enquanto ela se preparava para dor- mir. Ela nunca 0 ouvira falar daquele jeito. Até a chamando de Carolina em vez de Carol. — Eu atrasei a sua vida, nio é, Carolina? — Como, atrasou a minha vida? — Tuto o que voeé podia ter sido. O piano... — ©, Pedro. Que piano? Bu 56 estudei piano porque papai insistiv. — Mas vocé tocava bem. Me lembro do nosso noivado. O. {que era aquilo? Chopen? — Mozart. — Vocé tocava bem. Podia ter sido uma concertista. Podia ter tido outra vida. Ela se deitara ao seu lado. E mentira: —Minha vida - — Podia ter tido outro marido Ela 0 abragara e mentira de novo: — Estou satisfeita com este, — Desculpe, viu, Carolina, Pedro, voeé é engragado, Quando no bebe é alegre como um bébado. Quando bebe, fica sdbrio. — Eu sou um atraso na sua vida. —Nio seja bobo. E ele dormira com a cabeca no peito dela e a boca aberta. Carolina no quarto. Mala, onde tem mala? Nos filmes, sem- Pre que alguém vai sair de casa abre uma mala e comeca a jogar roupa dentro. Ela no encontra nem a mala. Esté no armario do corredor. Bl abe a porta do armatio Amal et embsizo do aspirador, de mil coisas. E vou levar o qué? Minha roupa toda rio cabe numa mala, Levo pouea coisa. Roupa de baixo e pouca ‘coisa mais, Numa sacola, Depois venho buscar 0 resto, quando icertar a situagdo com o Pedro. O Pedro nunca vai aceitar a situa- io. O Pedro vai ter um trogo. O Pedro.. ‘Toca 0 telefone. E 0 Pedro. . — Negra, me lembrei. Nao esquece 0 torresmo. Frita um montéo, — Ahn, ; — Ni esquece o arroz branco ea farofa, Ea malagueta. —Eu.. y . — Laranja-bafa ou da seleta. Cé té ouvindo? —Estou, Pedro. — Paio, carne-seca, toucinho.. — Bu sei, Pedro. —Adivinha de onde eu estou ligando? Do hospital! — 0 qué? Por ques. Oa am gino pée 8 nae deep pra tirar uma chapa, Nao foi nada. Estio enfaixando o pé dele. Eoojogo continua, — Mas ele est bem — Fst, esté. Foi se meter a jogar de centroavante, a defesa era 36 de gente do departamento que ele chefia, tudo com bron- ca del... Ja vin, né — Mas... Vocés vio voltar pro jogo? — Eu vou, O seu Estevio acho que vai pra casa — Pedro, quem sabe a gente, | — Deixa eu ir embora que quando eu sai o jogo tava cinco cinco. — Pedro... — Bota Agua nesse fi Carolina pensa: ele deve ter se apresentado para abandonar © futebol ¢ levar 0 chefe ao hospital. Tipico do Pedro, E sempre © que se apresenta, 0 que quer ajudar, Nio foi para fazer média com o chefe, disso ela tem certeza. Seria um sinal de esperteza, de ambigao. O Pedro nao tem maldade nem ambigao. Ela escrevera isso na carta: vocé nao tem ambicio, nao tem um objetivo na vida e eu nao posso continuar assim, Nao queria mas no aguentava mais. ;ne tinha raz, Era melhor sair daquele jeito. Com um iedoso. Imaginava ele chegando em casa com os ami- com 0 seu Menezes, com um batalhio, e nao encontrando m ela nem a feijoada. Ele lendo a carta, a lista das coisas que ela no aguentava mais, o adeus. Ele 0 qué? Tendo um acesso de raiva? Chutando os méveis? Chorando. Provavelmente chorando. ico do Pedro. Onde deixar a carta? Na mesa da sala de jantar, nao, Ele teria que ler na frente dos outros, seria constrangedor. No quarto, Em cima da cama. Em cima do tra- vesseiro dele, Pronto. Feito. Fim. Vou-me embora. Sem remor- 0, pensa ela, chaveando a porta da frente, levando roupa de bai- xo € pouca coisa mais numa sacola. A carta explica tudo. Depois a gente conversa. Ele vai acabar entendendo. Sem remorso. Ela ja esta quase chegando na casa da Milene quando seu ce- lular toca. — Negra? Telefonei pra casa e voc@ niio tava — Sai pra pegar mais cerveja no bar do seu Li —O dinheiro vai dar? —Nio sei. Vamos ver. Onde voed esti? —No campo. O seu Estevao veio junto. Com o pé enfaixado. — Ele nio ia pra casa? — Veio pra tirar satisfagZo do Foguinho, que foi quem deu o pisio no pé dele. O maior rebu. Quis brigar, Eu tive que defen der 0 Foguinho. — Pedro, vocé brigou com o seu chefe? E ele com 0 pé cenfainad Z = Brigue Amigo é amigo. Nessas horas niio tem chefe. — Pedrow.” ; : Fed dando tudo errado, O seu Menezes fo bater ui at ral e mexeu num ninho de marimbondo. Levou a maior ferrada. 14 0 Alaor tratando do inchago, s6 falta chupar 0 pescogo dele, mas o seu Menezes no quer conversa. Acho que também vai embora. eee pedo, quem sabe a gente suspende a fejoada? a 1ué? Que nada. Agora mesmo é que tem que sair. Al- Fro atees que dar certo hoje Voce se lenbrow de fazer um gua coisa tem que dar certo ‘bom refogado? — Fiz. Nio, ainda nio. . — Aproveita a gordura da frigideira pra temperar a couve ia ‘Sjoada tem que ser especial. E olha, se dinheito nfo der, pede pro seu Lirio pendurar. Ble é nosso irmao jogo té recomegando. Eu vou entrar no lugar do ‘Menezes. Li pelas trés a gente esté af. Na casa da Milene. As duas sentadas na cozinha, Milene: — Voct fer.a coisa certa, Carol. Nao fica com essa cara. fi que fiz? — fen ca Esse casamento nfo tinha futuro. V4 tratar da sua vida, Vocé pode ficar aqui o tempo que quiser. — Sei nfo, sei nio. De repente, Carol se levanta ¢ pergunta: — Que horas sio? —Quinze pras duas. — En vou volta —Carol, nto sej ‘ — Eles vio estar chegando Id pelas tr@s. Vou fazer a feijoada, — Ti louca, Carol. Fazer uma feijoada em meia hora? — Na panela de pressio, dé. — Carol — E uma feijoada especial. Ele vai chegar chateado. Prova velmente perdeu 0 emprego, depois de brigar com o chef, Vai querer esquecer tudo, com os amigos, com a caipirinha, coma cerveja. Ele vive para esses sibados, pro futebol e pra feijoada, — Ai, meu santo, —Me empresta um dinheiro pra comprar cerveja? — Ab, nfo, Eu nio vou financiar essa loucura. Ai fico eu com remorso. — Vocé tem linguiga em casa? Me empresta umas linguigas. —Vocé enlouguecet, m Na volta para casa, Carolina faz um inventério mental, Tor- Fesmo tem, Arroz branco, farofa e malagueta, tem. Cachaga ¢ vio, acho que tem. Paio € carne-seca, acho que nio. O tou- cinho vai ter que trabalhar dobrado pra dar 0 gosto. Esquece a couve mineira, esquece a lara \guiga. Passo no 'o © pego pra pendurar as cervejas. Depois corro pra casa. ‘Vai dar. Com sorte, vai dar. Di. Quando a curma chega a panela de pressio ainda est vibrando no fogio mas o feijio esté quase pronto, batalhdo vieram os de sempre, mais a namorada nova do Binho, ‘uma anti-Luizinha discretamente vestida de blusa solta e jeans, que nao tira os éculos escuros e nao fala com ninguém. Todos comentam 0 jogo, que terminou oito a sete, e os desastres do dia. Estio provavelmente todos dlespedidos do laboratério, com excegio, talver, do Alaor, que s6 faltou earregar o seu Menezes no colo depois do ataque dos marimbondos. A cai 0, O Binho ameaga pegar o violio no carro logo mas a cerveja nfo. O Binho Ho no cao c: como faz todos os sibados, mas sua nov: i spor favor, nao canguistando a simpatia geal. Depois que m no do grupo a sair, Pedro abraga “Por fav sai o Toca, que é sempre 0 rrolina por tras e diz: ; “ eae 6 que a mamie diria de feijoada feita em panela de io? “Que pecado!” ; eine pe pouco, Pedro. Foi o que deu pra fazer. — 0 que é isso, negra? Foi a melhor feijoada que eu jé comi. — Nio estava completa, mas... — Estava étima, i tho, is, no banheiro, antes de se deitar, se olhando no espelho, Cartes tar Jeane Mn cian “pwere Os cantos ds boca pads para bao. “Pore type” No conse Ele um pobre tipo. O que se pode dizer de alguém que defende um amigo sabendo que pode Ihe custar o emprego? Que € ape nas o Pedro senlo 0 Pedro, un que nunc va ser otra cols Que munca vi ser nada na vida. F eu vou ser ad 2 lo dee, por todos os sabados da nossa exstnci No consign — Jeanne Moreau dizendo “pawore type”. Me falta a boca da “Moreau. Eu nfo sou um monstro. ; ‘isso o Pedro bate na porta do bankeiro e pergunta: — Carol, que envelope é esse em cima do meu travesseiro: "a

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