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A entrevista psicológica

Seu emprego no diagnóstico e na investigação

Publicado pelo Departamento de Psicologia da


Faculdade de Filosofia e Letras. Universidade
de Buenos Aires, 1964.

A entrevista é um instrumento fundamental do mé-


todo clínico e é, portanto, uma técnica de investigação
científica em psicologia. Como técnica tem seus pró-
prios procedimentos ou regras empíricas com os quais
não só se amplia e se verifica como também, ao mesmo
tempo, se aplica o conhecimento científico. Como ve-
remos, essa dupla face da técnica tem especial gravita-
ção no caso da entrevista porque, entre outras razões,
identifica ou faz coexistir no psicólogo as funções de
investigador e de profissional, já que a técnica é o pon-
to de interação entre a ciência e as necessidades práti-
cas; é assim que a entrevista alcança a aplicação de co-
nhecimentos científicos e, ao mesmo tempo, obtém ou
possibilita levar a vida diária do ser humano ao nível do
conhecimento e da elaboração científica. E tudo isso
em um processo ininterrupto de interação.
A entrevista é um instrumento muito difundido e
devemos delimitar o seu alcance, tanto como o enqua-
2 Temasdepsicologia A entrevistapsicológica 3

dramento da presente exposição. A entrevista pode ter A entrevista pode ser de dois tipos fundamentais:
em seus múltiplos usos uma grande variedade de obje- aberta e fechada. Na segunda as perguntas já estão pre-
tivos, como no caso do jornalista, chefe de empresa, di- vistas, assim como a ordem e a maneira de formulá-Ias,
retor de escola, professor, juiz etc. Aqui nos interessa a e o entrevistador não pode alterar nenhuma destas dis-
entrevista psicológica, entendida como aquela na qual posições. Na entrevista aberta, pelo contrário, o entre-
se buscam objetivos psicológicos (investigação, diagnós- vistador tem ampla liberdade para as perguntas ou para
tico, terapia, etc.). Dessa maneira, nosso objetivo fica suas intervenções, permitindo-se toda a flexibilidade
limitado ao estudo da entrevista psicológica, não so- necessária em cada caso particular. A entrevista fecha-
mente para assinalar algumas das regras práticas que da é, na realidade, um questionário que passa a ter uma
possibilitam seu emprego eficaz e correto, como tam- relação estreita com a entrevista, na medida em que uma
bém para desenvolver em certa medida o estudo psico- manipulação de certos princípios e regras facilita e pos-
sibilita a aplicação do questionário.
lógico da entrevista psicológica. Nesse sentido, boa par-
Contudo, a entrevista aberta não se caracteriza es-
te do que se desenvolverá aqui pode ser utilizado ou
sencialmente pela liberdade de colocar perguntas, por-
aplicado em todo tipo de entrevista, porque em todas
que, como veremos mais adiante, o fundamento da en-
elas intervêm inevitavelmente fatores ou dinamismos
trevista psicológica não consiste em perguntar, nem no
psicológicos. A entrevista psicológica, dessa maneira,
propósito de recolher dados da história do entrevistado.
deriva sua denominação exclusivamente de seus objeti-
Embora os fundamentos sejam apresentados um pouco
vos ou finalidades, tal como já assinalei. mais adiante, devemos desde já sublinhar que a liberda-
Na consideração da entrevista psicológica como téc- de do entrevistador, no caso da entrevista aberta, reside
nica, incluímos dois aspectos: um é o das regras ou in- numa flexibilidade suficiente para permitir, na medida
dicações práticas de sua execução, e o outro é a psico- do possível, que o entrevistado configure o campo da
logia da entrevista psicológica, que fundamenta as pri- entrevista segundo sua estrutura psicológica particular,
meiras. Em outros termos, incluímos a técnica e a teo- ou - dito de outra maneira - que o campo da entrevista
ria da técnica da entrevista psicológica. se configure, o máximo possível, pelas variáveis que
Circunscrita dessa maneira, a entrevista psicológi- dependem da personalidade do entrevistado.
ca é o instrumento fundamental de trabalho não somen- Considerada dessa maneira, a entrevista aberta
te para o psicólogo, como também para outros profis- possibilita uma investigação mais ampla e profunda da
sionais (psiquiatra, assistente social, sociólogo, etc.). personalidade do entrevistado, embora a entrevista fe-
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chada permita uma melhor comparação sistemática de


dados, além de outras vantagens próprias de todo méto-
do padronizado.
De outro ponto de vista, considerando o número de Tanto o método clínico como a técnica da entrevis-
participantes, distingue-se a entrevista em individual e ta procedem do campo da medicina, porém a prática mé-
grupal, segundo sejam um ou mais os entrevistadores dica inclui procedimentos semelhantes que sem dúvida
e/ou os entrevistados. A realidade é que, em todos os não devem ser confundidos com a entrevista psicológi-
casos, a entrevista é sempre um fenômeno grupal,já que ca, nem superpostos a ela.
mesmo com a participação de um só entrevistado sua A consulta consiste na solicitação da assistência téc-
relação com o entrevistador deve ser considerada em nica ou profissional, que pode ser prestada ou satisfeita
função da psicologia e da dinâmica de grupo. de formas diversas, uma das quais pode ser a entrevis-
Pode-se diferenciar também as entrevistas segundo ta. Consulta não é sinônimo de entrevista; esta última é
o beneficiário do resultado; assim, podemos distinguir: a) apenas um dos procedimentos de que o técnico ou pro-
a entrevista que se realiza em beneficio do entrevistado - fissional, psicólogo ou médico, dispõe para atender a
que é o caso da consulta psicológica ou psiquiátrica; b) a uma consulta.
entrevista cujo objetivo é a pesquisa, na qual importam Em segundo lugar, a entrevista não é uma anamne-
os resultados científicos; c) a entrevista que se realiza se. Esta implica uma compilação de dados preestabele-
para um terceiro (uma instituição). Cada uma delas im- cidos, de tal amplitude e detalhe, que permita obter uma
síntese tanto da situação presente como da história de
plica variáveis distintas a serem levadas em conta, já que
um indivíduo, de sua doença e de sua saúde. Embora
modificam ou atuam sobre a atitude do entrevistador as-
. ' uma boa anamnese se faça com base na utilização cor-
SIm como do entrevistado, e sobre o campo total da en-
reta dos princípios que regem a entrevista, esta última
trevista. Uma diferença fundamental é que, excetuando
é, sem dúvida, algo muito diferente. Na anamnese a preo-
o primeiro tipo de entrevista, os dois outros requerem
cupação e a finalidade residem na compilação de da-
que o entrevistador desperte interesse e participação,
dos, e o paciente fica reduzido a um mediador entre sua
que "motive" o entrevistado.
enfermidade, sua vida e seus dados por um lado, e o
médico por outro. Se o paciente não fornece informa-
ções, elas devem ser "extraídas" dele. Mas além dos da-
dos que o médico previu como necessários, toda contri-
buição do paciente é considerada como uma perturba-
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ção da anamnese, freqüentemente tolerada por corte- gica é então uma relação entre duas ou mais pessoas em
sia, porém considerada como supérflua ou desnecessá- que estas intervêm como tais. Para sublinhar o aspecto
ria. Não são poucas as ocasiões em que a anamnese é fundamental da entrevista poder-se-ia dizer, de outra
feita por razões estatísticas ou para cumprir obrigações maneira, que ela consiste em uma relação humana na
regulamentares de uma instituição; nesses casos fica qual um dos integrantes deve procurar saber o que está
em mãos de pessoal auxiliar. acontecendo e deve atuar segundo esse conhecimento. A
Diferentemente da consulta e da anamnese, a entre- realização dos objetivos possíveis da entrevista (inves-
vista psicológica objetiva o estudo e a utilização do com- tigação, diagnóstico, orientação, etc.) depende desse sa-
portamento total do indivíduo em todo o curso da rela- ber e da atuação de acordo com esse saber.
ção estabelecida com o técnico, durante o tempo em que Dessa teoria da entrevista originam-se algumas orien-
essa relação durar. tações para sua realização. A regra básica já não consiste
Na prática médica é extremamente útil levar em con- em obter dados completos da vida total de uma pessoa,
ta e utilizar os conhecimentos da técnica da entrevista e mas em obter dados completos de seu comportamento
tudo o que se refere à relação interpessoal. Uma parte do total no decorrer da entrevista. Esse comportamento to-
tempo de uma consulta deve ser empregada como entre- tal inclui o que recolheremos aplicando nossa função de
vista e a outra para completar a indagação ou os dados escutar, porém também nossa função de vivenciar e obser-
necessários para a anarnnese, porém não existem razões var, de tal maneira que ficam incluídas as três áreas do
para que ela se transforme em um "interrogatório". comportamento do entrevistado.
A entrevista psicológica é uma relação, com carac- A teoria da entrevista foi enormemente influencia-
terísticas particulares, que se estabelece entre duas ou da por conhecimentos provenientes da psicanálise, da
mais pessoas. O específico ou particular dessa relação Gestalt, da topologia e do behaviorismo. Ainda que não
reside em que um dos integrantes é um técnico da psi- possamos selecionar especificamente a contribuição de
cologia, que deve atuar nesse papel, e o outro - ou os cada um deles, convém assinalar sumariamente que a
outros - necessita de sua intervenção técnica. Porém - psicanálise influenciou com o conhecimento da dimen-
e isso é um ponto fundamental-, o técnico não só utili- são inconsciente do comportamento, da transferência e
za a entrevista para aplicar seus conhecimentos psico- contratransferência, da resistência e repressão, da pro-
lógicos no entrevistado, como também essa aplicação jeção e introjeção, etc. A Gestalt reforçou a compreen-
se produz precisamente através de seu próprio compor- são da entrevista como um todo no qual o entrevistador
tamento no decorrer da entrevista. A entrevista psicoló- é um de seus integrantes, considerando o comportamen-
to deste como um dos elementos da totalidade. A topo-
logia levou a delinear e reconhecer o campo psicológico
e suas leis, assim como o enfoque situaciona1. O beha- O empenho em diferenciar a entrevista da anamne-
viorismo influenciou com a importância da observação se provém do interesse em constituir um campo com ca-
do comportamento. Tudo isso conduziu à possibilidade racterísticas definidas, ideais para a investigação da per-
de realizar a entrevista em condições metodológicas mais sonalidade. Como na anamnese, temos, na entrevista, um
restritas, convertendo-a em instrumento científico no qual campo configurado, e com isso queremos dizer que entre
a "arte da entrevista" foi reduzida em função de uma sis- os participantes se estrutura uma relação da qual depende
tematização das variáveis, e é esta sistematização que tudo que nela acontece. A diferença básica, neste sentido,
possibilita um maior rigor em sua aplicação e em seus entre entrevista e qualquer outro tipo de relação interpes-
resultados. Pode-se ensinar e aprender a realizar entre- soal (como a anamnese) é que a regra fundamental da en-
vistas sem que se tenha de depender de um dom ou virtu- trevista sob este aspecto é procurar fazer com que o cam-
de imponderáve1. O estudo científico da entrevista (a pes- po seja configurado especialmente (e em seu maior grau)
quisa do instrumento) tem reduzido sua proporção de arte pelas variáveis que dependem do entrevistado.
e incrementado sua operacionalidade e utilização como Apesar de todo emergente ser sempre situacional
técnica científica. ou, dito em outras palavras, provir de um campo, dize-
A investigação científica do instrumento tem feito mos que na entrevista tal campo está determinado, pre-
com que a entrevista incorpore algumas das exigências dominantemente, pelas modalidades da personalidade
do método experimental; mas também faz com que a do entrevistado. De outra forma, poder-se-ia dizer que
entrevista psicológica, em geral, constitua um procedi- o entrevistador controla a entrevista, porém quem a
dirige é o entrevistado. A relação entre ambos delimita
mento de observação em condições controladas ou, pe-
e determina o campo da entrevista e tudo o que nela
lo menos, em condições conhecidas. Dessa maneira , a
acontece, porém, o entrevistador deve permitir que o
entrevista pode ser considerada, em certa medida, da
campo da relação interpessoal seja predominantemente
mesma forma que o tubo de ensaio para o químico, se-
estabelecido e configurado pelo entrevistado.
gundo uma comparação feliz de Young.
Todo ser humano tem sua personalidade sistemati-
Dessa teoria da técnica da entrevista (que continua-
zada em uma série de pautas ou em um conjunto ou re-
remos desenvolvendo) dependem as regras práticas ou
pertório de possibilidades, e são estas que esperamos
empíricas; esta é a única forma racional de compreen-
que atuem ou se exteriorizem durante a entrevista. As-
dê-Ias, aprendê-Ias, aplicá-Ias e enriquecê-Ias.
sim, pois, a entrevista funciona como uma situação em dificação deve ser considerada como uma variável su-
que se observa parte da vida do paciente, que se desen- jeita a observação, tanto como o é o entrevistado. Cada
volve em relação a nós e diante de nós. entrevista tem um contexto definido (conjunto de cons-
Nenhuma situação pode conseguir a emergência da tantes e variáveis) em função do qual ocorrem os emer-
totalidade do repertório de condutas de uma pessoa e, gentes, que só têm sentido em função de tal contexto!.
portanto, nenhuma entrevista pode esgotar a personali- O campo da entrevista também não é fixo e sim dinâ-
dade do paciente, mas somente um segmento dela. A en- mico, o que significa que ele está sujeito a uma perma-
trevista não pode substituir nem excluir outros procedi- nente mudança e que a observação se deve estender do
mentos de investigação da personalidade, porém eles campo específico existente em cada momento à continui-
também não podem prescindir da entrevista. De modo es- dade e sentido destas mudanças. Na realidade poder-se-ia
pecífico, a entrevista não pode suprir o conhecimento e a dizer que a observação da continuidade e da contigüidade
investigação de caráter muito mais extenso e profundo das mudanças é o que permite completar a observação e
que se obtém, por exemplo, em um tratamento psicanalíti- inferir a estrutura e o sentido de cada campo; responden-
co, o qual, no decorrer de um tempo prolongado, permite do a esta modalidade do processo real, deve-se dizer que
a emergência e a manifestação dos núcleos e segmentos
o campo da entrevista cobre a sua totalidade, embora "ca-
mais diferentes da personalidade.
da" campo não seja senão um momento desse campo to-
Para obter o campo particular de entrevista que des-
tal e da sua dinâmica (Gestaltung)2.
crevi, devemos contar com um enquadramento rígido, que
Uma sistematização que permite o estudo detalhado
consiste em transformar um conjunto de variáveis em
da entrevista como campo consiste em centrar o estudo
constantes. Dentro deste enquadramento, incluem-se não
sobre: a) o entrevistador, incluindo sua atitude, sua dis-
apenas a atitude técnica e o papel do entrevistador tal
sociação instrumental, contratransferência, identificação
como assinalei, como também os objetivos, o lugar e o
etc.; b) o entrevistado, incluindo-se aqui transferência,
tempo da entrevista. O enquadramento funciona como
estruturas de comportamento, traços de caráter, ansie-
uma espécie de padronização da situação estímulo que
dades, defesas etc.; c) a relação interpessoal, na qual se
oferecemos ao entrevistador; com isso não pretendemos
que esta situação deixe de atuar como estímulo para ele,
mas que deixe de oscilar como variável para o entrevista- 1. Contexto ou enquadramento foram estudados em J. Eleger, "Psi-
coaná1isis dei enquadre psicoanalítico", em Simbiosis e ambigüedad, Pai-
dor. Se o enquadramento se modifica (por exemplo, por- dós, Buenos Aires, 1967.
que a entrevista se realiza em um local diferente), esta mo- 2. Gestaltung: processo de formação de Gestalten.
inclui a interação entre os participantes, o processo de vida atual que manterão, entre si, relação de complemen-
comunicação (projeção, introjeção, identificação etc.), tação ou de contradição.
o problema da ansiedade, etc. Embora não pretenda As lacunas, dissociações e contradições que indi-
aprofundar aqui cada um dos fenômenos assinalados, quei levam alguns pesquisadores a considerar a entre-
porque isso abarcaria, em grande parte, quase toda a vista como instrumento não muito confiável. Sem dúvi-
psicologia e psicopatologia, estes aspectos estão incluí- da, nesses casos, o instrumento não faz mais que refletir
dos nas considerações que se seguem. o que corresponde a características do objeto de estudo.
As dissociações e contradições que observamos corres-
pondem a dissociações e contradições da própria perso-
nalidade e, ao refleti-Ias, a entrevista permite-nos tra-
balhar com elas; se elas serão trabalhadas ou não, irá de-
Uma diferença fundamental entre entrevista e anam- pender da intensidade da angústia que se pode provocar
e da tolerância do entrevistado a essa angústia. Igual-
nese, no que diz respeito à teoria da personalidade e à
mente, os conflitos trazidos pelo entrevistado podem não
teoria da técnica, reside em que, na anamnese, trabalha-
ser os conflitos fundamentais, assim como as motiva-
se com a suposição de que o paciente conhece sua vida
ções que alega são, geralmente, racionalizações.
e está capacitado, portanto, para fornecer dados sobre
A simulação perde o valor que tem na anamnese co-
ela, enquanto a hipótese da entrevista é que cada ser hu-
mo fator de perturbação, já que na entrevista a simula-
mano tem organizada uma história de sua vida e um es-
ção deve ser considerada como uma parte dissociada da
quema de seu presente, e desta história e deste esquema
personalidade que o entrevistado não reconhece total-
temos de deduzir o que ele não sabe. Em segundo lu-
mente como sua. Pode acontecer que o mesmo entre-
gar, aquilo que não nos pode dar como conhecimento
vistador ou diferentes entrevistadores recolham, em mo-
explícito, nos é oferecido ou emerge através do seu com-
mentos diferentes, partes distintas e ainda contraditórias
portamento não-verbal; e este último pode informar so-
da mesma personalidade. Os dados não devem ser ava-
bre sua história ou seu presente em graus muito variá-
liados em função de certo ou errado, mas como graus
veis de coincidência ou contradição com o que expressa
ou fenômenos de dissociação da personalidade. Uma si-
de modo verbal e consciente. Por outro lado , além disso ,
tuação típica, e em certa medida inversa à que comento,
em diferentes entrevistas, o entrevistado pode oferecer-
é a do entrevistado que tem rigidamente organizada sua
nos diferentes histórias ou diferentes esquemas de sua história e seu esquema de vida presente, como meio de
defesa contra a penetração do entrevistador e ao seu pró- do de que o observador registra o que ocorre, os fenô-
prio contato com áreas de conflito de sua situação real menos que são externos e independentes dele, com abs-
e de sua personalidade; esse tipo de entrevistado repete tração ou exclusão total de suas impressões, sensações,
a mesma história estereotipada em diferentes entrevistas, sentimentos e de todo estado subjetivo; um registro de
seja com o mesmo ou com diferentes entrevistadores. tal tipo é o que permite a verificação do observado por
Quando vários integrantes de um grupo ou instituição terceiros que podem reconstruir as condições da obser-
(em família, escola, fábrica, etc.) são entrevistados, essas vação. Não interessa, agora, discutir a validade deste
divergências e contradições são muito mais freqüentes e esquema que já se mostrou estreito e ingênuo também
notórias e constituem dados muito importantes sobre co- para as mesmas ciências naturais. Interessa-me, em com-
mo cada um de seus membros organiza, numa mesma rea- pensação, observar que na entrevista o entrevistador é
lidade, um campo psicológico que lhe é específico. A to- parte do campo, quer dizer, em certa medida condiciona
talidade nos dá um índice fiel do caráter do grupo ou da os fenômenos que ele mesmo vai registrar. Coloca-se,
instituição, de suas tensões ou conflitos, tanto como de então, a questão da validade dos dados assim obtidos.
sua organização particular e dinâmica psicológica. Tal summum de objetividade na investigação não se
De tudo o que foi exposto, deduz-se facilmente que a cumpre em nenhum outro campo científico, e menos ain-
técnica e sua teoria estão estreitamente entrelaçadas com a da em psicologia, na qual o objeto de estudo é o homem.
teoria da personalidade com a qual se trabalha; o grau de Em compensação, a máxima objetividade só pode ser
interação que um entrevistador é capaz de conseguir entre alcançada quando se incorpora o sujeito observador co-
elas dá o modelo de sua operacionalidade como investiga- mo uma das variáveis do campo.
dor. A entrevista não consiste em "aplicar" instruções, mas
Se o observador está condicionando o fenômeno que
em investigar a personalidade do entrevistado, ao mesmo
observa, pode-se objetar que, neste caso, não estamos
tempo que nossas teorias e instrumentos de trabalho.
estudando o fenômeno tal como ele é, mas sim em rela-
ção com a nossa presença, e, assim, já não se faz uma
observação em condições naturais.
A isso se pode responder, de modo global, dizendo
que esse tipo de objeção não é válido, porque se baseia
N as ciências da natureza, segundo o ponto de vista em uma quantidade de pressuposições incorretas. Veja-
tradicional, a observação científica é objetiva, no senti- mos algumas dessas pressuposições.
o que se quer dizer com a expressão "observação em da objeto tem qualidades que dependem de sua natureza
condições naturais"? Certamente, refere-se a uma observa- interna própria e que determinadas relações modificam
ção realizada nas mesmas condições em que se dá real- ou subvertem essa pureza ontológica ou essas qualida-
mente o fenômeno. As considerações ontológicas super- des naturais. O certo é que as qualidades de todo objeto
põem-se às de tipo gnosiológico; nas primeiras admite-se a são sempre relacionais; derivam das condições e rela-
existência de um mundo objetivo, que existe por si, inde- ções nas quais se acha cada objeto em cada momento.
pendentemente de que o conheçamos ou não. Já nas se- Cada situação humana é sempre original e única,
gundas somos nós que conhecemos, e por isso temos de portanto a entrevista também o é, porém isso não rege
nos incluir necessariamente no processo do conhecimento, somente os fenômenos humanos como também os fe-
tal como ocorre na realidade. Esta segunda afirmação não nômenos da natureza: coisa que Heráclito já sabia. Essa
invalida de nenhuma maneira a primeira, porque ambas se originalidade de cada acontecimento não impede o es-
referem a coisas diferentes: uma, à existência dos fenôme- tabelecimento de constantes gerais, quer dizer, das con-
nos, e outra, ao conhecimento que deles se obtém. dições que se repetem com mais freqüência. O indivi-
Mas, além disso, as condições naturais da conduta dual não exclui o geral, nem a possibilidade de introdu-
humana são as condições humanas ... Toda conduta se zir a abstração e categorias de análise.
dá sempre num contexto de vínculos e relações huma- . I~s? se opõ~ a um .narcisismo subjacente ao campo
nas, e a entrevista não é uma distorção das pretendidas c~ent1fIco da pSIcologIa: cada ser humano considera a
condições naturais e sim o contrário: a entrevista é a SI mesmo como um ser distinto e único, resultado de
situação "natural" em que se dá o fenômeno que, preci- uma diferença particular (de Deus, do destino ou da na-
samente, nos interessa estudar: o fenômeno psicológi- tureza). O ser humano descobre paulatinamente, e com
co. Desta maneira o enfoque ontológico e gnosiológico assombro, que tem as mesmas vísceras que seus seme-
coincidem e são a mesma coisa. lhantes, assim como descobre (ou resiste a descobrir)
Poder-se-á insistir, ainda, em que a entrevista não que sua vida pessoal se tece sobre um fundo comum a
tem validade de instrumento científico porque as mani- todos os seres humanos. No caso da entrevista isso não
. '
festações do objeto que estudamos dependem, nesse VIgora apenas para o narcisismo do entrevistado como
caso, da relação que se estabeleça com o entrevistador, também para o do entrevistador, que também deve as-
e portanto todos os fenômenos que aparecem estão con- sumir a sua condição humana e não se sentir acima do
dicionados por essa relação. Esse tipo de objeção deriva entrevistado ou em situação privilegiada diante dele. E
de uma concepção metafisica do mundo: o supor que ca- isso, que é fácil dizer, não é nada fácil realizar.
ção, depois a hipótese e posteriormente a verificação.
O certo, contudo, é que a observação se realiza sempre
Uma certa concepção aristocrática ou monopolista em função de certos pressupostos e que, quando estes
da ciência tem feito supor que a investigação é tarefa de são conscientes e utilizados como tais, a observação se
eleitos que estão acima ou além dos fatos cotidianos e enriquece. Assim, a forma de observar bem é ir formu-
comuns. Assim, a entrevista é, nesta concepção, um lando hipóteses enquanto se observa, e durante a entre-
instrumento ou uma técnica da "prática" com a qual se vista verificar e retificar as hipóteses no momento mesmo
pretende diagnosticar, isto é, aplicar conhecimentos cien- em que ocorrem em função das observações subseqüen-
tíficos que, em si mesmos, são provenientes de outras tes, que por sua vez se enriquecem com as hipóteses
fontes: a investigação científica. prévias. Observar, pensar e imaginar coincidem total-
O certo é que não há possibilidade de uma entrevis- mente e formam parte de um só e único processo dialé-
ta correta e frutífera se não se incluir a investigação. Em tico. Quem não utiliza a sua fantasia poderá ser um bom
outros termos, a entrevista é um campo de trabalho no verificador de dados, porém nunca um investigador.
qual se investiga a conduta e a personalidade de seres Em todas as ações humanas, deve-se pensar sobre o
humanos. Que isto se realize ou não, é coisa que já não que se está fazendo e, quando isso acontece sistematica-
depende do instrumento, do mesmo modo como não in- mente em um campo de trabalho definido, submetendo-
validamos ou duvidamos do método experimental pelo se à verificação o que se pensou, está sendo realizada
fato de que um investigador possa utilizar o laboratório uma investigação. O trabalho profissional do psicólogo,
sem se ater às exigências do método experimental. Uma do psiquiatra e do médico somente adquire sua real en-
utilização correta da entrevista integra na mesma pes- vergadura e transcendência quando nele coincide a inves-
soa e no mesmo ato o profissional e o pesquisador. tigação e a tarefa profissional, porque estas são as uni-
A chave fundamental da entrevista está na investiga- dades de uma práxis que resguarda da desumanização a
ção que se realiza durante o seu transcurso. As obser- tarefa mais humana: compreender e ajudar outros seres
vações são sempre registradas em função de hipóteses humanos. Indagação e atuação, teoria e prática, devem
que o observador vai emitindo. Esclareçamos melhor o ser manejadas como momentos inseparáveis, forman-
que se quer dizer com isso. Afirma-se, geralmente de do parte de um só processo.
maneira muito formal, que a investigação consta de eta- Com freqüência, alega-se falta de tempo para realizar
pas nítidas e sucessivas que se escalonam, uma após a entrevistas exaustivas (ou corretas). Aconselho reali-
outra, na seguinte ordem: primeiro intervém a observa- zar bem pelo menos uma entrevista, periódica e regular-
_2_0 Temas de psicologia

vista, o entrevistador observa como e através do que o


mente: descobrir-se-á, rapidamente, como é útil não ter
entrevistado condiciona, sem o saber, efeitos dos quais
tempo e como é fácil racionalizar e negar as dificuldades.
ele mesmo se queixa ou é vítima. Interessam particular-
mente os momentos de mudança na comunicação e as
situações e temas ante os quais ocorrem, assim como
as inibições, interceptações e bloqueios.
Ruesch estabeleceu uma classificação da persona-
Entrevistador e entrevistado formam um grupo, ou lidade baseada nos sistemas predominantes que cada
seja, um conjunto ou uma totalidade, na qual os integran- indivíduo põe emjogo na comunicação.
tes estão inter-relacionados e em que a conduta de ambos Porém, o tipo de comunicação não é importante ape-
é interdependente. Diferencia-se de outros grupos pelo nas por oferecer dados de observação direta que, inclu-
fato de que um de seus integrantes assume um papel es- sive, podem ser registrados, mas porque é o fenômeno-
pecífico e tende a cumprir determinados objetivos. chave de toda a relação interpessoal, que, por sua vez,
A interdependência e a inter-relação, o condicio- pode ser manipulado pelo entrevistador e, assim, gra-
namento recíproco de suas respectivas condutas, reali- duar ou orientar a entrevista.
zam-se através do processo da comunicação, entenden-
do-se por isso o fato de que a conduta de um (conscien-
te ou não) atua (de forma intencional ou não) como
estímulo para a conduta do outro, que por sua vez rea-
tua como estímulo para as manifestações do primeiro.
Na relação que se estabelece na entrevista, deve-se
Nesse processo, a palavra tem um papel de enorme gra-
contar com dois fenômenos altamente significativos: a
vitação, no entanto também a comunicação pré-verbal
transferência e a contratransferência. A primeira refere-se
intervém ativamente: atitudes, timbre e tonalidade afe-
à atualização, na entrevista, de sentimentos, atitudes e con-
tiva da voz etc.
dutas inconscientes, por parte do entrevistado, que corres-
O tipo de comunicação que se estabelece é alta-
pondem a modelos que este estabeleceu no curso do de-
mente significativo da personalidade do entrevistado,
senvolvimento, especialmente na relação interpessoal com
especialmente do caráter de suas relações interpessoais,
seu meio familiar. Distingue-se a transferência negativa da
ou seja, da modalidade do seu relacionamento com seus
positiva, porém ambas coexistem sempre, embora com
semelhantes. Nesse processo que se produz na entre-
um predomínio relativo, estável ou alternante, de uma so- Na contratransferência incluem-se todos os fenô-
bre a outra. Integram a parte irracional ou inconsciente da menos que aparecem no entrevistador como emergen-
conduta e constituem aspectos não controlados pelo pa- tes do campo psicológico que se configura na entrevis-
ciente. Uma outra noção similar acentua, na transferên- ta: são as respostas do entrevistador às manifestações
cia, as atitudes afetivas que o entrevistado vivencia ou do entrevistado, o efeito que têm sobre eles. Dependem
atualiza em relação ao entrevistador. A observação des- em alto grau da história pessoal do entrevistador, porém,
ses fenômenos coloca-nos em contato com aspectos da se elas aparecem ou se atualizam em um dado momento
conduta e da personalidade do entrevistado que não se da entrevista é porque nesse momento existem fatores
incluem entre os elementos que ele pode referir ou trazer que agem para que isso aconteça. Durante muito tempo
voluntária ou conscientemente, mas que acrescentam uma foram considerados como elementos perturbadores da
dimensão importante ao conhecimento da estrutura de sua entrevista, porém progressivamente reconheceu-se que
personalidade e ao caráter de seus conflitos. são indefectíveis e iniludíveis em seu aparecimento, e o
N a transferência o entrevistado atribui papéis ao en- entrevistador deve também registrá-Ios como emergen-
trevistador e comporta-se em função deles. Em outros tes da situação presente e das reações que o entrevista-
termos, transfere situações e modelos para uma realida- do provoca. Portanto, à observação na entrevista acres-
de presente e desconhecida, e tende a configurá-Ia co- centa-se também a auto-observação.
mo situação já conhecida, repetitiva. A contratransferência não constitui uma percepção,
Com a transferência o entrevistado fornece aspec- em sentido rigoroso ou limitado do termo, mas sim um
tos irracionais ou imaturos de sua personalidade, seu indício de grande significação e valor para orientar o
grau de dependência, sua onipotência e seu pensamen- entrevistador no estudo que realiza. No entanto, não é
to mágico. É neles que o entrevistador poderá descobrir de fácil manejo e requer uma boa preparação, experiên-
aquilo que o entrevistado espera dele, sua fantasia da cia e um alto grau de equilíbrio mental, para que possa
entrevista, sua fantasia de ajuda, ou seja, o que acredita ser utilizada com alguma validade e eficiência.
que é ser ajudado e estar são, incluídas as fantasias pa- Transferência e contratransferência são fenômenos
tológicas de cura, que são, com muita freqüência, aspi- que aparecem em toda relação interpessoal e, por isso
rações neuróticas. Poder-se-á igualmente despistar outro mesmo, também ocorrem na entrevista. A diferença é
fator importante, que é o da resistência à entrevista ou que na entrevista devem ser utilizados como instrumen-
o de ser ajudado ou curado, e a intenção de satisfazer tos técnicos de observação e compreensão. A interação
desejos frustrados de dependência ou de proteção. transferência-contratransferência pode também ser estu-
A entrevista psicológica 25
~

dada como uma atribuição de papéis por parte do entre- defrontarem com uma situação desconhecida ante a qual
vistado e uma percepção deles por parte do entrevista- ainda não estabilizaram linhas reacionais adequadas, e
dor. Se, por exemplo, a atitude do entrevistado irrita e essa situação não organizada implicar certa desorgani-
provoca rejeição no entrevistador, ele deve procurar es- zação da personalidade de cada um dos participantes, tal
tudar e observar sua reação como efeito do comporta-
desorganização é a ansiedade.
mento do entrevistado, para ajudá-Io a corrigir aquela
O entrevistado solicita ajuda técnica ou profissio-
conduta , de cujos resultados ele mesmo pode queixar- . nal quando sente ansiedade ou se vê perturbado por me-
se (por exemplo, de que não tem amigos e de que mn-
canismos defensivos diante dela. Durante a entrevista
guém gosta dele). Se o entrevistador não for capaz de
tanto sua ansiedade como seus mecanismos de defesa
objetivar e estudar sua reação, ou reagir com irritação e
podem aumentar, porque o desconhecido que enfrenta
rejeição (assumindo o papel projetado), indicará que a
não é somente a situação externa nova, mas também o
manipulação que faz da contratransferência está pertur-
perigo daquilo que desconhece em sua própria perso-
bada e que, portanto, está se saindo mal na entrevista.
nalidade. Se esses fatores não se apresentam, faz parte
da função do entrevistador motivar o entrevistado, con-
seguir que apareçam em uma certa medida na entrevis-
ta. Em alguns casos, a ansiedade acha-se delegada ou
projetada em outra pessoa, que é quem solicita a entre-
A ansiedade constitui um indicador do desenvolvi- vista e manifesta interesse em que ela se realize.
mento de uma entrevista e deve ser atentamente acompa- A ansiedade do entrevistador é um dos fatores mais
nhada pelo entrevistador, tanto a que se produz nele co- dificeis de manipular, porque é o motor do interesse na
mo a que aparece no entrevistado. Deve-se estar atento investigação e do interesse em penetrar no desconheci-
não somente ao seu aparecimento como também ao seu do. Toda investigação implica a presença de ansiedade
grau ou intensidade, porque, embora dentro de determi- diante do desconhecido, e o investigador deve ter capa-
nados limites a ansiedade seja um agente motor da re- cidade para tolerá-Ia e poder instrumentalizá-Ia, sem o
lação interpessoal, pode perturbá-Ia totalmente e fugir que se fecha a possibilidade de uma investigação eficaz;
completamente ao controle se ultrapassar certo nível. Por isso ocorre também quando o investigador se vê opri-
isso , o limite de tolerância à ansiedade deve ser perma- mido pela ansiedade ou recorre a mecanismos de defe-
nentemente detectado. Se entrevistado e entrevistador sa ante ela (racionalização, formalismo, etc.).
Diante da ansiedade do entrevistado, não se deve re- que o objeto que deve estudar é outro ser humano , de tal
correr a nenhum procedimento que a dissimule ou repri- maneira que, ao examinar a vida dos demais, se acha di-
ma, como o apoio direto ou o conselho. A ansiedade so- retamente implicada a revisão e o exame de sua própria
mente deve ser trabalhada quando se compreende os fa- vida, de sua personalidade, conflitos e frustrações.
tores pelos quais ela aparece e quando se atua segundo A vida e a vocação de psicólogo, de médico e de psi-
essa compreensão. Se o que predomina são os mecanis- quiatra merecem um estudo detalhado que não empreen-
mos de defesa diante dela, a tarefa do entrevistador é derei agora; quero, porém, lembrar que são os técnicos
"desarmar" em certa medida estas defesas para que apa- encarregados profissionalmente de estar todos os dias
reça certo grau de ansiedade, o que será um indicador da em contato estreito e direto com o submundo da doença,
possibilidade de atualização dos conflitos. Toda essa ma- dos conflitos, da destruição e da morte. Foi necessário
nipulação técnica da ansiedade deve ser feita tendo-se recorrer à simulação e à dissociação para o desenvolvi-
sempre em conta a personalidade do entrevistado e, so- mento e exercício da psicologia e da medicina: ocupar-
bretudo, o beneficio que para ele pode significar a mobi- se de seres humanos como se não o fossem. O treina-
lização da ansiedade, de tal forma que, mesmo diante de mento do médico, inconsciente e defensivamente , tende
situações muito claras, não se deve ser ativo se isso sig- a isto, ao iniciar toda aprendizagem pelo contato com o
nificar oprimir o entrevistado com conflitos que não po- cadáver. Quando queremos nos ocupar da doença em
derá tolerar. Isso corresponde a um aspecto muito dificil: seres humanos considerados como tal, nossas ansieda-
o do denominado timing da entrevista, que é o tempo des aumentam, mas, ao mesmo tempo, precisamos pôr
próprio ou pessoal do entrevistado - que depende do de lado o bloqueio e as defesas. Por tudo isto a psicolo-
grau e tipo de organização de sua personalidade - para gia demorou tanto para se desenvolver e infiltrar-se na
enfrentar seus conflitos e para resolvê-Ios. medicina e na psiquiatria. Isso seria paradoxal se não
considerássemos os processos defensivos; porém, o
médico, cuja profissão é tratar doentes, é quem, propor-
cionalmente, mais escotomiza ou nega suas próprias
doenças ou as de seus familiares. Em psiquiatria, em
medicina psicossomática e em psicologia, tudo isto já
O instrumento de trabalho do entrevistador é ele não é possível; o contato direto com seres humanos , co-
mesmo, sua própria personalidade, que participa inevi- mo tais, coloca o técnico diante da sua própria vida, sua
tavelmente da relação interpessoal, com a agravante de própria saúde ou doença, seus próprios conflitos e frus-
trações. Caso ele não consiga graduar este impacto, sua doentes. Por outro lado, a defesa obsessiva manifesta-se
tarefa torna-se impossível: ou tem muita ansiedade e, em entrevistas estereotipadas nas quais tudo é regrado
então, não pode atuar, ou bloqueia a ansiedade e sua e previsto, na elaboração rotineira de histórias clínicas,
tarefa é estéril. ou seja, o instrumento de trabalho, a entrevista, transfor-
Na sua atuação, o entrevistador deve estar dissocia- ma-se num ritual. Por trás disso está o bloqueio, que faz
do: em parte, atuar com uma identificação projetiva com com que sempre aplique e diga a mesma coisa, sempre ve-
o entrevistado e, em parte, permanecer fora desta iden- ja a mesma coisa, aplique o que sabe e sinta-se seguro.
tificação, observando e controlando o que ocorre, de ma- A pressa em fazer diagnósticos e a compulsão a empre-
neira a graduar o impacto emocional e a desorganização gar drogas são outros dos elementos desta fuga e deste
ansiosa. Nesse sentido, seria necessário desenvolver es- ritual do médico diante do doente. Nisso se desenvolve
tudos tanto sobre a psicologia e a psicopatologia do psi- a alienação do psicólogo e do psiquiatra e a alienação
quiatra e do psicólogo, como sobre o problema de sua do paciente, e toda a estrutura hospitalar e de sanatório
formação profissional e de seu equilíbrio mental. passa a ter o efeito de um fator alienante a mais. Outro
Essa dissociação com que o entrevistador trabalha é, perigo é o da projeção dos próprios conflitos do tera-
por sua vez, funcional ou dinâmica, no sentido de que pro- peuta sobre o entrevistado e uma certa compulsão a cen-
jeção e introjeção devem atuar permanentemente, e deve trar seu interesse, sua investigação ou a encontrar per-
ser suficientemente plástica ou "porosa" para que possa turbações justamente na esfera na qual nega que tenha
permanecer nos limites de uma atitude profissionaL Em perturbações. A rigidez e a projeção levam a encontrar
sua tarefa, o psicólogo pode oscilar facilmente entre a an- somente o que se busca e se necessita, e a condicionar o
siedade e o bloqueio, sem que isto a perturbe, desde que que se encontra tanto como o que não se encontra. Um
possa resolver ambos na medida em que surjam. exemplo muito ilustrativo de tudo isto, mas bastante co-
Na entrevista, a passagem do normal ao patológico mum, é o caso de um jovem médico que iniciava seu
acontece de modo imperceptível. Uma má dissociação, treinamento em psiquiatria e que, presenciando uma en-
com ansiedade intensa e permanente, leva o psicólogo a trevista e o diagnóstico de um caso de fobia, disse que não
desenvolver condutas fóbicas ou obsessivas ante os en- era isso, que o paciente não tinha nem fobia nem doença,
trevistados, evitando as entrevistas ou interpondo instru- porque ele também a tinha.
mentos e testes para evitar o contato pessoal e a ansieda- Se num dado momento a projeção com que o técni-
de conseqüente. A clássica aflição do médico, que tanto co atua é muito intensa, pode aparecer uma reação fó-
se emprega na sátira, é uma permanente fuga fóbica aos bica no próprio campo de trabalho. Pelo contrário, se
for excessivamente, bloqueada, haverá uma alienação e o psiquiatra inseguro ou pouco experiente não sa-
não se entenderá o que ocorre. berá o que fazer com todos estes dados, e para não ficar
Diferentes tipos de pessoas podem provocar reações vexado recorrerá, com freqüência, à receita, interpondo
contratransferenciais típicas no entrevistador, e este de- entre ele e seu paciente os medicamentos; nestas condi-
ve, continuamente, poder observá-Ias e resolvê-Ias para ções a farmacologia torna-se um fator alienante porque
poder utilizá-Ias como informação e instrumento duran- fomenta a magia no paciente e no médico e os dissocia
te a entrevista. novamente de seus respectivos conflitos. Algo muito se-
Pode-se, de outra maneira, descrever esta dissociação melhante é o que o psicólogo faz freqüentemente com os
dizendo que o entrevistador tem de desempenhar os pa- testes. Para combater isto é importante - e mesmo im-
péis que lhe são fomentados pelo entrevistado, mas sem prescindível- que o psiquiatra e psicólogo não trabalhem
assumi-Ios totalmente. Se, por exemplo, sentir rejeição, as- isolados, que formem, pelo menos, grupos de estudo e
sumir o papel seria mostrar e atuar a rejeição, rejeitando de discussão nos quais o trabalho que se realiza seja re-
efetivamente o entrevistado, seja verbalmente ou com a visto; para cair na estereotipia não há clima melhor do
atitude ou de qualquer outra maneira; desempenhar o pa- que o do isolamento profissional, porque o isolamento
pel significa perceber a rejeição, compreendê-Ia, encon- acaba encobrindo as dificuldades com a onipotência.
trar os elementos que a motivam, as motivações do en-
trevistado para que isso aconteça e utilizar toda esta infor-
mação, que agora possui, para esclarecer o problema ou
provocar sua modificação no entrevistado. Quanto mais
psicopata for o entrevistado, maior a possibilidade de que
o entrevistador assuma e represente os papéis. Assumir o Examinar as contingências de uma entrevista signi-
papel implicará a ruptura do enquadramento da entrevis- ficaria simplesmente passar em revista toda a psicolo-
ta. Fastio, cansaço, sono, irritação, bloqueio, compaixão, gia, psiquiatria e psicopatologia, por isso só me referirei
carinho, rejeição, sedução etc. são indícios contratrans- aqui a algumas situações típicas no campo da psicologia
ferenciais que o entrevistador deve perceber como tais clínica e, em especial, àquelas que habitualmente não
à medida que se produzem, e terá de resolvê-Ios anali- são consideradas e, no entanto, são muito importantes.
sando-os consigo mesmo em função da personalidade De modo geral, para que uma pessoa procure uma
do entrevistado, da sua própria, do contexto e do momen- entrevista, é necessário que tenha chegado a uma certa
to em que aparecem na comunicação. preocupação ou insight de que algo não está bem, de que
algo mudou ou se modificou, ou então perceba suas pró- orgânicas das funcionais ou psicogenéticas. Aplicam-se
prias ansiedades ou temores. Esses últimos podem ser a todos os tipos de entrevistados que procuram um es-
tão intensos ou intoleráveis que poderá recorrer, na en- pecialista e tendem mais a uma orientação sobre a per-
trevista, a uma negação e resistência sistemática, de mo- sonalidade do sujeito, pela forma com que procura re-
do que se assegurre logicamente de que não está acon- duzir suas tensões, aliviar ou resolver seus conflitos.
tecendo nada, conseguindo fazer com que o técnico não Podemos reconhecer e distinguir entre o entrevista-
perceba nada anormal nela. Em algum lugar já se defi- do que vem consultar e o que é trazido ou aquele a quem
niu o doente como toda pessoa que solicita uma consul- "mandaram". Nessas atitudes já temos um índice de im-
ta; fazendo-se abstração de que tal definição carece de portância, embora esteja longe de ser sistemático ou pa-
valor real, é sem dúvida certo que o entrevistador deve tognomônico. Aquele que vem tem um certo insight ou
aceitar esse critério, ainda que somente como incentivo percepção da sua doença e corresponde ao paciente neu-
para questionar detalhadamente o que está por trás das re- rótico, enquanto o psicótico é trazido. Aquele que não
pressões e negações ou escotomizações do entrevistado. tem motivos para vir, mas vem porque o mandaram, cor-
Schilder classificou em cinco grupos os indivíduos responde à psicopatia: é o que faz o outro atuar e delega
que procuram o médico, ou porque estão sofrendo ou fa- aos outros suas preocupações e mal-estares.
zendo os outros sofrer; são eles: a) os que acorrem por Temos, entre outros, o caso daquele que vem con-
problemas corporais; b) por problemas mentais; c) por fal- sultar por um familiar. Nesse caso, realizamos a entre-
ta de êxito; d) por dificuldades na vida diária; e) por quei- vista com o que vem, indagando sobre sua personalida-
xas de outras pessoas. de e conduta. Com isso, já passamos do entrevistado ao
Seguindo, por outro lado, a divisão de E. Pichon- grupo familiar. Caso o entrevistado sej a precedido por
Riviere das áreas da conduta, podemos considerar três um informante, deve-se comunicar a este que o que ele
grupos, conforme o predomínio de inibições, sintomas, disser sobre o paciente ser-Ihe-á comunicado, dizendo
queixas ou protestos recaia mais sobre a área da mente, isso antes que ele dê qualquer informação. Isto tenderá
do corpo ou do mundo exterior. O paciente pode apre- a "limpar o campo" e a romper com divisões muito difí-
sentar queixas, lamentações ou acusações; no primeiro ceis de trabalhar posteriormente.
caso predomina a ansiedade depressiva, enquanto no se- Aquele que vem à consulta é sempre um emergente
gundo, a ansiedade paranóide. dos conflitos grupais da família; diferenciamos, além
Esses agrupamentos não tendem a diferenciar os disso, entre o que vem só e o que vem acompanhado,
doentes orgânicos dos doentes mentais, nem as doenças que representam grupos familiares diferentes.
A entrevista psicológica ~~~~~~~~~~~~~- 35

o que vem sozinho é o representante de um grupo Nos grupos que vêm à consulta, o psicólogo não
familiar esquizóide, em que a comunicação entre seus tem por que aceitar o critério da família sobre quem é o
membros é muito precária: vivem dispersos ou separa- doente, mas deve atuar considerando todos os seus mem-
dos, com um grau acentuado de bloqueio afetivo. Com bros como implicados e o grupo como doente. Nesse
freqüência, diante destes, o técnico tende a perguntar- caso, o estudo do interjogo de papéis e da dinâmica do
se com quem pode falar, ou a quem informar. Outro gru- grupo são os elementos que servirão de orientação para
po familiar, de caráter oposto a este, é aquele no qual fazer com que todo o grupo obtenha um insight da si-
comparecem vários membros à consulta, e o técnico tem tuação. O equilíbrio da doença em um grupo familiar é
necessidade de perguntar quem é o entrevistado ou por de grande importância. Por exemplo, em um casal em
quem eles vêm; é o grupo epileptóide, viscoso ou agluti- que um é fóbico e o outro seu acompanhante, quando o
nado, no qual há uma falta ou déficit na personificação primeiro apresenta melhora ou se cura, aparece a fobia
de seus membros, com um alto grau de simbiose ou in- no segundo. O acompanhante do fóbico é então, também,
terdependência. Assim como no caso anterior o doente um fóbico, contudo distribuem os papéis entre o casal.
está isolado e abandonado, neste caso ele está excessiva- Em outras ocasiões, a família só aparece quando o
mente rodeado por um cuidado exagerado ou asfixiante. tratamento de um paciente já está adiantado e ele me-
Esses dois tipos polares podem ser encontrados em lhorou ou está em vias de fazê-Io; a normalização do
suas formas extremas, ou em formas menos caracteri- paciente faz com que a tensão do grupo familiar já não
zadas, ou mistas. Outro tipo é o que vem acompanhado se "descarregue" mais através dele, e aparece então o
por uma pessoa, familiar ou amigo; é o caso do fóbico desequilíbrio ou a doença no grupo familiar.
que necessita do acompanhante. O caso dos casais cujos Tudo isso explica em grande parte um fenômeno com
integrantes se culpam mutuamente de neurose, infide- o qual se deve contar na família de um doente: a culpa,
lidade, etc. é outra situação na qual, como em todas as elemento que deve ser devidamente levado em conta para
anteriores, a entrevista se realiza com todos os que vie- valorizá-Io e trabalhá-Io adequadamente. É muito mais
ram, procedendo-se como com um grupo diagnóstico clara no caso da doença mental em crianças ou em defi-
que - como veremos - é sempre, em parte, terapêutico; cientes intelectuais. Isso se relaciona também com o fenô-
nesse, o técnico atua como observador participante, in- meno que foi chamado "a criança errada", em que os pais
tervindo em momentos de tensão, ou quando a comuni- trazem à consulta o filho mais sadio e, depois de se asse-
cação é interrompida, ou para assinalar entrecruzamen- gurarem de que o técnico não os culpa nem acusa, podem
tos projetivos. falar ou consultar sobre o filho mais doente.
_3_6 Temas de psicologia A entrevista psicológica 37
_

Aqui, e em relação a todos estes fenômenos, a psico- ções comerciais ou de amizade, nem pretender outro be-
logia grupal - seu conhecimento e sua utilização - tem neficio da entrevista que não sejam os seus honorários
uma importância fundamental, não somente para as entre- e o seu interesse científico ou profissional. Tampouco
vistas diagnósticas e terapêuticas, mas também para ava- a entrevista deve ser utilizada como uma gratificação nar-
liar as curas ou decidir sobre a alta de uma intemação, etc. cisista na qual se representa o mágico com uma de-
monstração de onipotência. A curiosidade deve limitar-
se ao necessário para o beneficio do entrevistado. Tudo
o que sinta ou viva como reação contratransferencial de-
ve ser considerado como um dado da entrevista, não se
devendo responder nem atuar diante da rejeição, da ri-
Insisti em que o campo da entrevista deve ser con-
validade ou da inveja do entrevistado. A petulância ou
figurado fundamentalmente pelas variáveis da perso- a atitude arrogante ou agressiva do entrevistado não de-
nalidade do entrevistado. Isso implica que aquilo que o vem ser "domadas" nem subjugadas; não se trata nem
entrevistador oferece deve ser suficientemente ambí- de triunfar nem de impor-se ao entrevistado. O que nos
guo para permitir o maior engajamento da personalidade compete é averiguar a que se devem, como funcionam
do entrevistado. e quais os efeitos que acarretam para o entrevistado.
Embora tudo isso seja certo, existe entretanto uma Esse último tem direito, embora tomemos nota disso, a
área delimitada em que a ambigüidade não deve existir, fazer uso, por exemplo, de sua repressão ou sua descon-
ou, ao contrário, cujos limites devem ser mantidos e, às fiança. Com muitíssima freqüência, o grau de repres-
vezes, defendidos pelo entrevistador; ela abrange todos são do entrevistado depende muito do grau de repressão
os fatores que intervêm no enquadramento da entrevis- do entrevistador em relação a determinados temas (se-
ta: tempo, lugar e papel técnico do profissional. O tem- xualidade, inveja etc.). Quando fazemos uma interven-
po refere-se a um horário e um limite na extensão da en- ção com perguntas, elas devem ser diretas e sem subter-
trevista; o espaço abarca o quadro ou o terreno ambiental fúgios, sem segundas intenções, adequadas à situação e
no qual se realiza a entrevista. O papel técnico implica ao grau de tolerância do ego do entrevistado.
que, em nenhum caso, o entrevistador deve permitir que A abertura da entrevista também não deve ser am-
seja apresentado como um amigo num encontro fortuito. bígua, recorrendo-se a frases gerais ou de duplo sentido.
O entrevistador também não deve entrar com suas rea- A entrevista deve começar por onde começar o entrevis-
ções nem com o relato de sua vida, nem entrar em rei a- tado. Deve-se ter em conta o quanto pode ter sido custo-
38 Temasdepsicologia A entrevistapsicológica 39

so para ele decidir-se a vir à entrevista e o que pode sig- rentes tipos de silêncio (silêncio paranóide, depressivo,
nificar como humilhação e menosprezo. O entrevistado fóbico, confusional etc.) e trabalhar em função deste co-
deve ser recebido cordialmente, porém não efusivamen- nhecimento.
te; quando temos informações sobre o entrevistado for- Se o silêncio total não é o melhor na entrevista (do
necidas por outra pessoa, devemos informá-Io, assim co- ponto de vista do entrevistador), tampouco o é a catarse
mo, conforme já dissemos, antecipar ao informante, no intensa (do ponto de vista do entrevistado). Com freqüên-
começo da entrevista, que esses dados que se referem a cia aquele que fala muito, na realidade, deixa de dizer o
terceiros não serão mantidos em reserva. Isso tenderá a mais importante, porque a linguagem não é somente
manter o enquadramento e a evitar as divisões esquizói- um meio de transmitir informação mas também um po-
des e a atuação psicopática, assim como a eliminar tudo deroso meio para evitá-Ia. Todos esses são, certamente,
o que possa travar a espontaneidade do técnico, que não dados valiosos, que devem ser considerados e valoriza-
deve ter compromissos contraídos que pesem negativa- dos. A "descarga" emocional intensa também não é o
mente sobre a entrevista. A discrição do entrevistador melhor de uma entrevista; com isso geralmente o entre-
para com as informações que o entrevistado fornece está vistado consegue depositar maciçamente sobre o entrevis-
implícita na entrevista, e se for fornecido um relato so- tador e logo se distancia e entra numa relação persecutó-
bre ela a uma instituição, o entrevistado também deve ria como esta: o confessor transforma-se facilmente em
ter conhecimento disso. A reserva e o segredo profis- perseguidor.
sional vigoram também entre os pacientes psicóticos e Como todo o enquadramento, o fim da entrevista de-
no material de entrevistas com adolescentes ou crian- ve ser respeitado. A reação à separação é um dado mui-
ças; nesse último caso, não nos devemos sentir autori- to importante, assim como a avaliação sobre o estado do
zados a relatar aos pais, por exemplo, detalhes da entre- entrevistado ao partir e da nossa contratransferência em
vista com seus filhos. relação a ele.
O silêncio do entrevistado é o fantasma do entre- Entrevistas bem realizadas consomem um tempo
vistador principiante, para quem esse silêncio pode sig- muito grande, do qual, com freqüência, não se dispõe,
nificar um fracasso ou uma demonstração de imperícia. especialmente em instituições (escolas, hospitais, indús-
Com um mínimo de experiência, no entanto, não há en- trias etc.). Nesses casos o mais conveniente é reservar,
trevistas fracassadas; se se observar bem, toda entrevis- do tempo disponível, um período para realizar pelo me-
ta fornece informações importantes sobre a personali- nos uma entrevista diária em condições ótimas. Isso im-
dade do entrevistado. É necessário reconhecer os dife- pedirá as estereotipias no trabalho e as racionalizações
_4_0 Temas de psicologia A entrevista psicológica 4_1

da evitação fóbica. Além disso, é importante reservar-se O primeiro fator terapêutico é sempre a compreensão
o tempo necessário para estudar as entrevistas realiza- do entrevistador, que deve comunicar alguns elementos
das, e melhor ainda se isso for feito em grupos de traba- dessa compreensão que possam ser úteis ao entrevistado.
lho. O psicólogo e o psiquiatra não devem trabalhar iso- Na entrevista diagnóstica, segundo nossa opinião, deve-
lados, porque isto favorece sua alienação no trabalho. se interpretar, sobretudo, cada vez que a comunicação
tenda a interromper-se ou distorcer-se. Outro caso mui-
to freqüente em que temos de intervir é para relacionar
aquilo que o próprio entrevistado esteve comunicando.
Para interpretar, devemos guiar-nos pelo volume de an-
siedade que estamos resolvendo e pelo volume de ansie-
Uma questão freqüente e importante é a de saber se se dade que criamos, tendo-se em conta, também, se serão
deve interpretar nas entrevistas realizadas com fins diag- dadas outras oportunidades para que o entrevistado pos-
nósticos. Nesse sentido existem posições muito variadas. sa resolver ansiedades que vamos mobilizar. Em todos os
Entre elas se encontra, por exemplo, a de Rogers, que não casos, devemos interpretar somente com base nos emer-
somente não interpreta, como tampouco pergunta, estimu- gentes, no que realmente está acontecendo no aqui e ago-
lando o entrevistado a prosseguir por meio de diferentes ra da entrevista.
técnicas, como, por exemplo, repetir de forma interrogati- Uma indicação fundamental para guiar a interpre-
va a última palavra do entrevistado ou estimulá-Io, com um tação é sempre o beneficio do entrevistado e não a "des-
olhar, um gesto ou uma atitude, a prosseguir. carga" de uma ansiedade do entrevistador. Além disso,
A entrevista é sempre uma experiência vital muito sempre que se interpreta, deve-se saber que a interpre-
importante para o entrevistado; significa, com muita fre- tação é uma hipótese que deve ser verificada ou retifi-
qüência, a única possibilidade que tem de falar o mais cada no campo de trabalho pela resposta que mobiliza-
sinceramente possível de si mesmo com alguém que não mos ou condicionamos ao pôr em jogo tal hipótese. Con-
o julgue, mas que o compreenda. Dessa maneira, a en- tudo, convém que o entrevistador principiante se limite
trevista atua sempre como um fator normativo ou de primeiro, e durante algum tempo, a compreender o en-
aprendizagem, embora não se recorra a nenhuma medi- trevistado, até que adquira experiência e conhecimento
da especial para conseguir isso. Em outros termos, a en- suficientes para utilizar a interpretação. O alcance ótimo
trevista diagnóstica é sempre, e ao mesmo tempo, em de uma entrevista é o da entrevista operativa na qual se
parte, terapêutica. procura compreender e esclarecer um problema ou uma
_4_2 Temas de psicologia

situação que o entrevistado traz como sendo o centro quizofrênico (diagnóstico psiquiátrico), em uma pessoa
ou motivo da entrevista. Nesse sentido, freqüentemente com insuficiência cardíaca (diagnóstico médico) e per-
uma entrevista tem êxito quando consegue esclarecer sonalidade obsessiva (diagnóstico psicológico), enten-
qual é o verdadeiro problema que está por trás daquilo dendo-se que esse exemplo só serve como tal para dife-
que é trazido de modo manifesto. renciar os três tipos de informes, que nem sempre ne-
Aconselho a leitura do artigo de Reik, "O abuso da cessariamente ocorrem juntos.
interpretação", e a ter presentes pelo menos duas coisas:
toda interpretação fora de contexto e de timing é uma A ordem em que se redige um informe não tem nada
agressão, e parte da formªção do psicólogo consiste, tam- a ver com a ordem em que foram recolhidos os dados ou
bém, em aprender a calar. E, como "regra de ouro" (se é com a ordem em que foram sendo feitas as deduções.
que elas existem), é tanto mais necessário calar-se quan-
to maior for a compulsão para interpretar. 1) Dados pessoais: nome, idade, sexo, estado civil,
nacionalidade, domicílio, profissão ou oficio.
2) Procedimentos utilizados: entrevistas (número
e freqüência, técnica utilizada, "clima", lugar em
que se realizaram). Testes (especificar os utili-
zados), jogo de desempenho de papéis, registros
O informe psicológico tem como finalidade conden- objetivos (especificar) etc. Questionários (espe-
sar ou resumir conclusões referentes ao objeto de estudo. cificar). Outros procedimentos.
Incluímos aqui somente o informe que se refere ao estu- 3) Motivos do estudo: por quem foi solicitado e
do da personalidade, que pode ser empregado em diferen- objetivos. Atitude do entrevistado e referência
tes campos da atividade psicológica, e em cada um deles a suas motivações conscientes.
se deverá ter em conta e responder especificamente ao 4) Descrição sintética do grupo familiar e de ou-
objetivo com que tal estudo se efetuou. Trata-se, por outro tros que tiveram ou têm importância na vida do
lado, apenas de um guia e não de formulários a preencher. entrevistado. Relações do grupo familiar com a
No campo da medicina, por exemplo, um estudo comunidade: status socioeconômico, outras re-
completo abrange um tríplice diagnóstico ou um trípli- lações. Constituição, dinâmica e papéis, comu-
ce informe: o diagnóstico médico, o psiquiátrico e o psi- nicação e trocas significativas do grupo fami-
cológico. Pode ser o caso, por exemplo, de um surto es- liar. Saúde, acidentes e doenças do grupo e de
seus membros. Mortes, idade e ano em que ti- guagem (léxica e sintáxica etc.), nível de concei-
veram lugar, causas. Atitude da família ante as tuação, emissão de juízos, antecipação e planeja-
mudanças, a doença e o doente. Possibilidade mento de situações, canal preferido na comuni-
de incluir o grupo em alguma das classificações cação, nível ou grau de coordenação, diferenças
reconhecidas. entre comportamento verbal e motor, capacidade
5) Problemática vital: relato sucinto de sua vida e de observação, análise e síntese, grau de atenção
conflitos atuais, de seu desenvolvimento, aquisi- e concentração. Relações entre o desempenho
ções, perdas, mudanças, temores, aspirações, ini- intelectual, social, profissional e emocional e ou-
tros itens significativos em cada caso particular.
bições e do modo como os enfrenta ou suporta.
Considerar as particularidades e alterações do de-
Diferenciar aquilo que é afirmado pelo entrevis-
senvolvimento psicossexual, mudanças na perso-
tado e por outras pessoas de seu meio daquilo
nalidade e na conduta.
que é inferido pelo psicólogo. Diferenciar o que
8) No caso de um informe muito detalhado ou mui-
se afirma daquilo que se postula como provável.
to rigoroso (por exemplo, um informe pericial),
Quando houver algum dado de valor muito espe-
incluir os resultados de cada teste e de cada exa-
cial, especificar a técnica através da qual se infe-
me complementar realizado.
riu ou detectou esse dado. Incluir uma resenha das 9) Conclusão: diagnóstico e caracterização psico-
situações vitais mais significativas (presentes e lógica do indivíduo e do seu grupo. Responder
passadas), especialmente aquelas que assumem especificamente aos objetivos do estudo (por
o caráter de situações conflitivas e/ou repetitivas. exemplo, no caso da seleção de pessoal, orien-
6) Descrição de padrões de conduta, diferencian- tação vocacional, informe escolar etc.).
do os predominantes dos acessórios. Mudanças 10) Incluir uma possibilidade prognóstica do ponto
observadas. de vista psicológico, fundamentando os elemen-
7) Descrição de traços de caráter e de personali- tos sobre os quais se baseia.
dade, incluindo a dinâmica psicológica (ansieda- 11) Orientação possível: indicar se são necessários
de, defesas), citando a organização patográfica novos exames e de que tipo. Indicar a forma pos-
(se houver). Incluir uma avaliação do grau de ma- sível de remediar, aliviar ou orientar o entrevis-
turidade da personalidade. Constituição (citar a tado, de acordo com o motivo do estudo ou se-
tipologia empregada). Características emocio- gundo as necessidades da instituição que soli-
nais e intelectuais, incluindo: manipulação da lin- citou o informe.
A entrevista psicológica ~ ~~ ~~ 4_7

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