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HENRI WALLON

AS ORIGENS
DO PENSAMENTO
NA
CRIANÇA

EDITORA MANOLE
1989
D ados de C a ta lo g a ç ão na P u blicação (CIP) Internacional
(C âm ara B rasileira do Livro, S P , B rasil)

Wallon, Henri, 1879-1962.


As origens do pensamento na criança / Henri Wal­
lon ; [tradução Doris Sanches Pinheiro, Fernanda Al
ves Braga]. — Sao Paulo : Manóle, 1989.

1. Crianças - Desenvolvimento 2. Pensamento 3. Ra


ciocínio em crianças I. Titulo.

CDD-155.413
-153.42
89-1384 -155.4

indices para catálogo sistemático:


1. Crianças : Desenvolvimento : Psicologia infantil
155.4
2. Pensamento : Psicologia 153.42
3. Pensamento infantil : Psicologia da criança
155.413
4. Raciocinio : Desenvolvimento : Psicologia infan­
til 155.413

Traduzido do original francês:


LES ORIGINES DE LA PENSÉE CHEZ L’ENFANT

Copyright © Presses Universitaires de France

Tradução:
DORES SANCHES PINHEIROS
FERNANDA ALVES BRAGA

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer pro­
cesso, sem permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução
por xerox.

Direitos adquiridos para a lingua portuguesa pela


EDITORA MANOLE LTDA.
Rua Conselheiro Ramalho 516,
01325, Bela Vista, S. Paulo, SP, Brasil
(011) 287-0746 / 251-5427

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
INTRODUÇÃO

Nesta obra está reunida a essência de Duas Explicações da Inteligência


cursos ministrados no Collège de France e
dos que eu teria feito, se meu curso não O estudo da inteligência prática desenvol­
tivesse sido suspenso, por decisão do Gover­ veu-se muitonessesúltimos anose de maneira
no, durante a ocupação alemã. Ela é consa­ autônoma. Antigamente, era à inteligência
grada aos primórdios da inteligência verbal discursiva que era reduzido qualquer suposto
ou discursiva na criança. Refere-se ao perío­ ato de inteligência. Parecia que ele deveria
do que vai dos 6 aos 8 ou 9 anos, ou seja, aos ser decomposto nas operações de compa­
primeiros anos da idade escolar. ração ou de julgamento, cujo tema é dado
Antes desse período, grandes conquistas pela lógica e pela introspecção. Com a psi­
foram realizadas pela criança em suas rela­ cologia de comportamento, o ponto de vista
ções com as coisas e com as pessoas. Das mudou. Foram consideradas as condutas do
reações que traduziam seus impulsos, suas animal ou do sujeito face a sitações quer
necessidades fisiológicas ou afetivas, ela fez naturais, quer experimentais. Contudo, sur­
com que emergissem, gradualmente, os ges­ giu o problema de saber se toda conduta
tos e as condutas impostos pelos objetos animal era inteligente e qual poderia ser o cri­
tomados por si mesmos, ao mesmo tempo tério de uma conduta inteligente. É evidente
que o reconhecimento perceptivo, depois que, em todo o ser vivo, a manutenção da vi­
nominativo, dos mesmos. Essa etapa inicia-se da supõe uma subordinação suficientemente
desde o final do primeiro ano e se prolonga exata de suas reações às condições da cau­
durante o segundo e o terceiro. Perto dos três salidade. É mesmo óbvio que todo organis­
anos, manifesta-se a crise de personalidade, mo, todo órgão sejam aparelhos ajustados, de
na qual a criança insurge-se contra as partici­ forma mais ou menos perfeita, a certa ordem
pações afetivas que a mantinham mais ou de causalidade.
menos confundida com o meio e na qual Filósofos imaginaram no animal, ou
tende a libertar seu próprio eu, ao afirmar-lhe mesmo no órgão, uma compreensão, prova­
a precedência, ao querer ganhar, sistematica­ velmente obscura, mas profundamente efi­
mente, vantagens para ele. O quarto e o ciente, da causalidade. O órgão seria cons­
quinto ano são ocupados, principalmente, truído para a função porque é construído por
por uma evolução sentimental, onde podem ela. Ele exprimiria assim, uma espécie de
estabelecer-se complexos diversos, se o meio predestinação funcional. Nas origens de sua
rejeitar as veleidades da criança e obrigá-la a organização, a vida confundir-se-ia com in­
recalques e algumas vezes também quando tenções capazes de selecionar, no meio, os
ele tende a aumentar desmesuradamente suas modos de se realizar. Essa íntima compreen­
exigências. Entretannto, os progressos da são, que cada ser teria de suas próprias ne­
inteligência prática prosseguem, não apenas cessidades específicas, com a complexidade
sob suas formas utilitárias mas também na crescente de sua estrutura e de sua existên­
exuberância de suas manifestações lúdicas. cia, apenas diversificar-se-ia, estender-se-ia a
VI AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

circunstâncias mais numerosas, mais faculta­ níveis do real; e a passagem entre formas e
tivas, e através disso, ele se diferenciaria de condições diversas de existência ou de fun­
forma mais individual. Assim, das reações ção corre o risco de ser ignorada. Seria muito
mais elementares da vida às combinações mais produtivo constatar essas passagens e,
mais hipotéticas da espécie ou do indivíduo, conseqüentemente, marcar as diferenças. Eis
procederia uma corrente ininterrupta de in­ aí, sem dúvida, o melhor modo de evitar a
termediários. O antigo adágio, retomado por intervenção sub-reptícia de princípios que
Leibniz, natura non fa c itsa ltu ssempre tem nada podem explicar, visto que, com eles, já
seus adeptos, apesar de todos os desmentidos estão supostos todos os efeitos a serem
causados pelo conhecimento mais aprofun­ explicados.
dado da natureza ou do homem. Parece, para
muitos, que o fato de ter suposto a mesma instinto e Inteligência
coisa onde quer que seja é ter explicado. Mas
subsiste o problema de saber como se opera Entre a inteligência prática e a inteligência
a passagem entre essa inteligência que seria especulativa, ou pensamento, os contrastes
finalidade latente nas coisas e as construções são evidentes, assim como entre a inteligên­
variáveis da inteligência explícita. Somente cia prática e o instinto, ou, ainda, entre o pen­
ela importa, somente ela tem um sentido. samento e os sistemas de conhecimentos
Outros, pelo contrário, dedicando-se às próprios a cada época. Talvez eles tenham
reações mais simples, procuraram decompor fatores comuns. Mas o meio de descobri-los
em seus fatores físicos as que permitem ao não é escamoteando as diferenças, seria
animal manter sua existência no meio, em­ melhor aprofundá-los e leva-los a suas últimas
prestar dele o necessário, evitar-lhe o noci­ condições.
vo, estender sobre ele seu poder. Sem dúvi­ O que há de surpreendente no instinto
da, é necessário supor, ao mesmo tempo em são atos que têm seu fim ou seu resultado em
que esses fatores, um foco persistente de limites de tempo e de espaço que extrapolam
energia, que tende a manter sua unidade. É por demais os da vida individual, por nunca
isso que é atribuível ao ser organizado que terem podido pertencer à experiência do
todo ser vivo é. Além disso, a organização próprio sujeito. Aliás, é com a continuidade
não é somente anatômica, é também fun­ da espécie que eles estão, então, relaciona­
cional. Ela não consiste em estruturas pu­ dos, algumas vezes mesmo em detrimento
ramente materiais, mas também em estrutu­ do indivíduo. Para explicá-los, seria preciso,
ras que resultam das circunstâncias e que são portanto, procurar seus motivos para além do
simples condutas cuja lembrança o animal indivíduo, na continuidade da espécie. Mu­
conserva. Ela se toma, assim, o suporte das dança de plano que se impõe com uma evi­
associações que se constituíram entre cer­ dência incontestável, desde que seja preciso
tas impressões e certos movimentos, en­ considerar, não mais a simples sobrevivência
riquece-se com os complexos já realizados dos indivíduos, mas a espécie em sua renova­
por suas respostas face às situações cor­ ção ou em suas origens. Todo problema de
respondentes. A repetição delas, mas em origens implica outras condições, além das
ocasiões sempre um pouco diferentes, dar- realmente observáveis. O conjunto presente
lhes-ia, não somente mais força, mas algo de seria o resultado de diferenciações entre as
mais analítico, de mais discriminative. E a quais as intermediárias puderam dissipar-
aparência de escolha, que disso resultaria, se. Então, subsistiriam apenas os cidos de
receberia em certo nível de variabilidade, o excitações-reações, pelos quais o ato parece
nome de inteligência. Aqui, ainda, entra em realizar-se como que cegamente, através de
jogo a superstição do mesmo em todos os fragmentos mais ou menos estereotipados.
INTRODUÇÃO vn

Em todo caso, habitualmente, são im­ não distingue as posições e o movimento,


putadas ao instinto as reações de adaptação mas, entretanto, já é capaz de fornecer figu­
que parecem pertencer mais ao equipamento ras ou estruturas transformáveis, face a uma
funcional da espécie do que às aptidões situação que continua, objetivamente, a mes­
individuais. No primeiro caso, tratar-se-á, ma.
necessariamente, de situações habituais, no Essa imagem da inteligência prática está
outro, a situação pode ser inédita ou tornar-se em oposição com as que lhe foram impostas
inédita pelo comportamento novo do animal. pela psicologia chamada atomística. De fato,
O instinto aparecerá, assim, como que em supunha-se que as condutas resultavam de
toda parte difundido na espécie, fixo em sua combinações entre elementos primitivamente
forma, mecânico em sua execução; a in­ distintos. A gênese do ato parecia explicável
teligência, como iniciativa esporádica, variá­ com a ajuda de noções que, na realidade só
vel em sua concepção e sua realização. Mas são diferenciadas mais tardíamente. A inversão
essa delimitação nada tem de estrita. Pôde- do ponto de vista tornou-se possível pela
se mostrar que o instinto precisa de cir­ psicologia do comportamento, que tomou
cunstâncias favoráveis para se manifestar, precisamente como objeto direto o estudo
que pode variar com as situações e que é, das condutas. Em vez de serem consideradas
com freqüência, o resultado de tentativas e a priori como uma combinação de meios
de uma aprendizagem. Suas manifestações, existentes cada um por si, elas são encaradas
consideradas como tais, não seriam, portanto, em função das situações que as suscitam e
essencialmente diferentes do que é chamado das circunstâncias ou do material que nelas se
inteligência no animal. organizam. Como tais, sua unidade tem algo
Entretanto, a inteligência opera num de indissociável. O que as toma inteligentes,
outro plano. Ela não tende à simples animação é o grau de justa adaptação e de novidade que
ou reanimação de condutas atávicas ou elas apresentam. A inteligência foi, portanto,
gregárias, ela é, pelo contrário, uma modi­ definida como a aptidão para reagir, de forma
ficação nas maneiras de operar, que se oportuna, face a situações novas. Assim, seu
explicaria, segundo alguns, por uma simples aspecto pragmático ultrapassou seu aspecto
pressão exterior, fonte de tentativas ao longo teórico que, até então, fazia repercutir seus
das quais os sucessos eliminariam os fracassas, esquemas discursivos até na explicação das
e, segundo outros, pela aptidão para reco­ condutas cujas condições são exclusivamente
nhecer, no campo perceptivo-motor, o con­ concretas.
junto das circunstâncias propícias e dos ges­
tos necessários que podem levar o sujeito a Inteligência Prática e Pensamento
seu objetivo. No simples automatismo ou na
rotina, o ajustamento do ato ao resultado é Através de um exagero levado para o
imediato. A inteligência começa com a ne­ lado oposto, então, foram as condições for­
cessidade do subterfugio e sua descoberta. É mais do pensamento que pareceram perder
preciso, então, que às relações comumente sua importância. As diferenças das duas in­
perceptíveis, sobreponham-se ou substituam- teligências foram ignoradas. Entretanto, elas
se outras relações, nas quais a atividade do se opõem em muitos aspectos. Em vez de se
sujeito encontre-se implicada. Elas só são fundir com o real para realizar estruturas que
figuráveis em função dessa atividade. Elas se organizam seus elementos segundo fins úteis,
fundem com ela em um todo dinâmico, que o pensamento lhe dá uma réplica no plano da
liga a situação inicial e o resultado previsto. A representação. Em vez de ordenar entre si os
intuição de espaço, subjacente à execução do elementos concretos de uma situação, o
subterfúgio, não é analítica nem estática, ainda pensamento opera sobre símbolos ou com a
УШ AS ORIGENS ЕЮ PENSAMENTO NA CRIANÇA

ajuda destes. Ele impõe, às coisas, a frag­ como das significações entre si. Trabalho
mentação das imagens e dos sinais que são imenso que é exatamente o da razão dis-
necessários para sua análise. Ele se utiliza das cemente.
palavras e do discurso. Toma-se um tipo de Enfim, uma outra oposição é a da razão
conversa quer explícita, quer implícita. Sem e dos conhecimentos. Sob um ponto de vista
dúvida, o ato intuitivo, que deve, em certos estático, estes seriam o que os princípios da
momentos, ultrapassar esses elementos razão fazem com que a inteligência possa
discretos da intelecção para deles fazer uma assimilar do real. Dentro dos limites da razão,
compreensão ou uma evidência novas, não acumulando-se as experiências, o saber hu­
perde suas prerrogativas. Mas é sempre em mano aumentaria sua massa de geração em
linguagem vulgar ou científica, falada ou geração. O saber de uma época seria a simples
escrita que o mesmo deve ser atestado e de­ herança das épocas anteriores, acrescido de
monstrado, melhor dizendo, ele deve chegar algumas aquisições novas. Hipótese difícil
a termos sucessivos e agrupados. de conciliar com a história das ciências e com
O poder de combinar esses elementos, a do pensamento. Mesmo depois do advento
que suas diferenças de significação ini­ do pensamento racional e das aquisições
cialmente individualizam, a fim de que, apro­ científicas, o progresso dos conhecimentos,
ximados voluntariamente, eles possam en­ possibilitado pelos princípios racionais, que
trar nas significações desejadas, é essencial os conhecimentos das gerações anteriores
ao exercício do pensamento. Mas o próprio haviam, aliás, ajudado a formular, acabou
poder de dar-lhes uma significação é uma sempre por entrar em conflito com eles. Um
etapa que estabelece um limiar decisivo en­ duplo movimento alternante reproduz-se
tre a inteligência puramente prática e a incessantemente. Por um lado, o que se fixou
inteligência teórica; entre todas as outras sob forma de hipóteses, teorias, princípios,
espécies animais, aparece o homem. Esse como aquilo que parece necessário para tor­
poder de operar com puras significações, nar a experiência compreensível, tende a
simplesmente representadas por signos, que desenvolver suas conseqüências lógicas e a
não são necessariamente imitativos, é o que estabelecer as ciências dedutivas que ocorrem
foi chamado de função simbólica. Através antes da experiência. Por outro lado, a
desta, toma-se possível escapar à ordem das experiência assim possibilitada acaba por
coisas efetiva, ou imediatamente realizável, e ultrapassar os limites, fornecendo resultados
imaginá-la diferente quer no passado, quer cada vez menos conciliáveis com suas pre­
para o futuro, quer apenas no mundo dos missas teóricas, e as mudanças de hipóteses
possíveis. As condutas materiais foram subs­ ou de teorias, que se impõem, podem chegar
tituídas pelas condutas verbais, cuja imensa até a abalar o que parecia princípio definiti­
importância foi mostrada por Janet: condu­ vo, necessário ou, a priori, da razão. Desse
tas imperativas ou votivas, que formulam o modo, os conhecimentos secretam a razão,
desejo face a um elemento, condutas de fic­ dela procedem e a destroem alternadamen­
ção ou de mentira, que manipulam o real pa­ te sob o impulso da experiência, onde in­
ra substituir os temas dele pelos temas do fluências tecnológicas e sociais são, em ca­
imaginário, freqüentemente a serviço de in­ da época, solidárias com o esforço especu­
teresses dissimulados, condutas assertóricas, lativo.
enfim, as mais complexas e delicadas de to­
das, que consisten? em atestar o fato e as coi­ As Teorias do Conhecimento
sas na realidade verídica dos mesmos, o que
exige um ajustamento rigoroso das signifi­ É impossível, estudando o pensamento
cações com os dados da experiência, assim da criança com relação ao do adulto, ou seja,
INTRODUÇÃO IX

os limites respectivos dos mesmos, não O que conhecemos das coisas não pode
considerar a natureza e a razão dos limites consistir nas sensações variáveis que elas nos
próprios a cada um. A solução pode não ser dão. É uma estrutura que resulta de uma
semelhante na criança e no adulto. Num caso construção intelectual. Por que não admitir
é uma questão de desenvolvimento individual. ' que essa estrutura é o que há de mais real
No outro é o problema do conhecimento. nelas? Assim concluiu a tese idealista ou ra­
Este ocasionou teorias diversas. Para pensar cionalista, diretamente oposta átese empirista
as coisas e o mundo, o espírito deve fazê-los ou materialista. Mas ela oferece, por sua vez,
entrar em classes, no que é chamado, desde uma dificuldade que é ora de demonstrar a
Aristóteles, de categorias. Sem estas, seria existência do mundo fora do pensamento,
preciso supor uma impregnação direta do ora de justificar a conciliação do conhecimento
espírito pelas coisas ou, pelo contrário, uma com a realidade das coisas. Para Platão, o
invenção das coisas pelo espírito. Estas três mundo material já era apenas uma ilusão, um
concepções negam-se reciprocamente, mas, reflexo.
se cada uma é considerada isoladamente, Entre essas duas atitudes, surgiu uma
nenhuma é satisfatória. Elas opõem entre si terceira, que é uma tentativa de conciliação
aspectos da vida intelectual que são igual­ entre a experiência prática e o conhecimen­
mente indispensáveis. As categorias não to, entre o espírito e as coisas. As coisas são
poderiam ser distinguidas da ação exercida conhecíveis apenas com a condição de en­
pelo real sobre o espírito sem se transfor­ trarem em certas classes, que são as do co­
marem em princípios a priori, que tomariam nhecimento: as categorias. Mas, a seu pro­
impossível o conhecimento do real em si. pósito, o debate recomeça. Qual é a origem,
Elas não poderiam ser opostas ao espírito qual é o sentido delas? As categorias de Aris­
criador sem se confundirem com simples tóteles foram discutidas durante toda a Idade
compartimentos de preenchimento passivo, Média. Discussão sobre os universais. Pos­
o que deixaria sem explicação as ciências suem elas mais ou menos realidade do que os
teóricas e suas antecipações. objetos particulares cujo conhecimento elas
A impregnação do espírito pelas coisas asseguram? Nominalistas vêem nelas apenas
é a crença vulgar que nossa percepção e etiquetas; realistas vêem um tipo de realidade
nossas representações mentais limitam-se a intelectual que seria geradora das realidades
repetir as coisas tais como são. Elas seriam a particulares. Assim, reaparecem o empirismo,
impressão sensível e intelectual delas ou deum lado, e um racionalismo mais ou menos
mesmo, segundo Epicuro, consistiriam em idealista.
“espécies” ou imagens materiais que ema­ Kant retomou a noção de categorias.
nariam das coisas. A dificuldade desta tese, Tentou fundi-las intimamente com a expe­
mesmo reduzida à simples ação sobre os sen­ riência, tanto concreta ou sensível, como
tidos do meio físico, é de explicar a redução mental, com toda a experiência real, com
das impressões relativas a cada objeto para toda a experiência possível. Desse modo, ele
chegar a sua representação e para levar sua as levou a seu grau extremo de necessidade e
classificação em coleções cada vez mais de formalismo. Embora distingua entre as
extensas, onde o que restaria dele tenderia formas da sensibilidade e as categorias do
a algo sempre mais vago e abstrato. É entendimento, ele cessa de opor sensibilidade
difícil imaginar como poderia disso resul­ e entendimento como mais ou menos reais. É
tar o conhecimento das leis precisas que impossível experimentar qualquer coisa, a
se manifestam no universo. não ser em certos planos que são as condições
Estastêmumcaráter necessárioelógico, indispensáveis de toda percepção: o espaço
que inspirou teorias diretamente contrárias. e o tempo. É impossível pensar qualquer
X AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

coisa, a não ser como matéria de certos poderia existir, em cada sociedade, uma
julgamentos, que dão aos objetos sua subs­ relação mais diferenciada entre seu tipo de
tância, ou seja, sua existência esu a unidade, estrutura e as categorias de que ela se serve
que os reata à sua causa, que afirmam a para representar o real. Hubert e Mauss
ligação deles com tudo o que existe. Não po­ mostraram que as categorias utilizadas pa­
dendo, de forma alguma, ultrapassar esses ra explicar a natureza inicialmente foram
planos, condição indispensável e a priori de calcadas sobre os planos da organização
toda experiência e de todo conhecimento, social. A ordem imaginada entre as coisas
disso resulta que nos é proibido apreciar se a reproduzia a dos clãs. A causalidade física era
realidade lhes é conforme. Eles impõem sua assimilada às filiações segundo as quais essas
forma ao que podemos dela apreender. Vista sociedades representavam suas próprias ori­
somente através deles, a realidade em si das gens. Era a representação totêmica do mun­
coisas escapa-nos necessariamente. do.
Contudo, se é verdade que não há A idéia de evolução e de transformismo
experiência sensível, nem intelectual possível foi, portanto, introduzida no estudo crítico
fora das categorias definidas por Kant, são das categorias. Justamente por causa disso,
elas que seriam preciso encontrar assim que elas se tomaram algo que pode ajustar-se,
tocamos no que pode ser identificado como cada vez mais intimamente, às coisas tais
percepção ou pensamento na criança. Nes­ como elas realmente são. Entretanto, foi
sas categorias, percepções ou pensamen­ grande a tentação de se perguntar se, na
tos poderiam muito bem ser menos de­ criança, elas não evoluiriam da mesma forma
senvolvidos nela do que no adulto, mas sua que na espécie, se sua mentalidade não se
linha geral e sua estrutura essencial deve­ pareceria, inicialmente, com a dos primiti­
riam coincidir exatamente com a maneira vos. Falou-se de pensamento mágico a seu
que o adulto tem de perceber e de raciocinar. respeito. Hipóteses bem inverossímeis. En­
O estudo de sua evolução psíquica mostra cerrada, pela linguagem que aprende a falar,
que não é assim. Aliás, a concepção das nas formas de pensar próprias ao seu meio
categorias não manteve o rigor que possuía a criança pode apenas adotar as mesmas
com Kant. Assim como após Aristóteles, as classificações de coisas e de causas. Mas não
discussões foram retomadas. O estudo com­ é capaz disso de imediato, e passa por um
parado das civilizações e das sociedades período pré-categorial. Aliás, esse período é
humanas fez com que fosse constatado que o repleto de ensinamentos para fazer com que
conformismo, de algum modo universal, da seja reconhecido o que há de verdadeiramente
razão, segundo Kant, era uma hipótese em essencial na noção de categoria, para mostrar
oposição com os dados da história. Foi pre­ a significação funcional desta. Inicialmente,
ciso dar às categorias um caráter mais pro­ a criança sabe apenas agrupar os objetos se­
visório, uma signifcação mais relativa. Um gundo as relações deles com sua atividade ou
sociólogo como Lévy-Bruhl satisfez-se em seus desejos do momento. Ela não os classifica
opor as formas de pensamento, que se segundo a natureza deles, ela os constela
observam nas sociedades que ele chama de segundo suas intenções mais pessoais. É uma
primitivas, às nossas próprias formas de etapa que pertence mais à inteligência das
pensar, às que ele também considera, aliás, situações do que à da representação. Mas vin­
como as condições indefectíveis de todo do a representação das coisas a interessá-la
conhecimento racional e científico. No con­ por si própria, ainda decorre um longo pe­
junto, ele as distingue do que denomina, no ríodo, sem que a criança saiba fazer outra
primitivo, de “categoria afetiva do sobre­ coisa a não ser constatar-lhes a existência ou
natural”. Outros sociólogos pensaram que as qualidades.
INTRODUÇÃO XI

É então que se torna evidente a que plicação e interrogação são solidárias. Com­
distancia a criança ainda está do pensamento preender ou dar uma explicação é ser capaz
catégorial. Não é apenas o local ou o momento de fazer ou compreender a pergunta cor­
que estão ligados, individualmente, a cada respondente. Ora, a criança não tem a pos­
objeto, sem permitir situá-lo no espaço ou no sibilidade de manipular a seu modo a for­
tempo, mas toda qualidade é-lhe tão particular ma interrogativa. Ela sabe muito bem fazer
que ocasiona apenas qüiproquós, se se tomam perguntas quando o objeto assim o solicita.
o motivo de sua aproximação com outros Não sabe pedir explicações quando pressiona­
objetos. Quanto às relações entre efeito e da. Numa experiência que fiz com frases sim­
causa, estas são tão indistintas que há, sem ples que se relacionavam a incidentes que a
cessar, inversão de uma na outra. O poder criança poderia ter experimentado quase dia­
que lhe falta para classificar ou para explicar riamente, ela deveria fazer uma pergunta, à sua
as coisas, é o de distribuir cada uma em tantas vontade, relacionada com o conteúdo da frase.
categorias quantos forem os traços dela que O resultado desejado foi obtido apenas excep­
permitam classificá-la entre outras. As ca­ cionalmente, mesmo com crianças de 8 a 9
tegorias não constituem um número deter­ anos. Os exemplos nada significavam; a réplica,
minado de classes definidas para sempre. São em vez de ser interrogativa, era uma frase afir­
o resultado de um pensamento que sabe pôr mativa.
ordem entre todas as coisas existentes ou A menos que seja levada por uma curi­
apenas possíves. Mas isso exige a diferen­ osidade pessoal, a criança não é capaz de
ciação do pensamento, inicialmente sin­ assumir a posição de perguntador. O motivo
crético, em diversos planos, onde possam se que ela tem no espírito ocasiona a afirmação
sobrepor as operações do espírito relativas a que parece convir. Ela não sabe adotar uma
cada realidade dada. A idade é o fator essencial atitude de certa forma hipotética, impessoal,
disso. Os limites da criança são de origem teórica. Ignora o problema como tal. Não
fisiológica, enquanto que, em cada época, os pode se pôr à vontade em atitude expectante.
do adulto dependem das condições históricas No plano da percepção, ela desenvolveu seu
e sociais. poder de expectativa entre um e dois anos.
No plano intelectual, ela ainda só pode
O Interrogatório e a Criança entregar-se ao desenrolar das idéias, assim
como, quando mais nova, era levada pelo de
O único modo de pôr à prova as suas impressões. Assim, ela reagirá às per­
capacidades de pensamento da criança é de guntas ouvidas à medida que estas lhe propo­
questioná-la, de forma a obter explicações rão um motivo ao qual possa ligar uma afir­
dela. Contudo, não deve correr o risco de mação. A criança não saberá suspender a
colocá-la numa atitude artificial, onde os resposta própria a cada uma das perguntas
resultados seriam pouco probatórios. A ex­ para se perguntar se estas são bem coerentes
plicação não é algo simples. Ela responde a entre si e com o objeto completo da interro­
aptidões cujo desenvolvimento estende-se gação. É apenas sob essa ressalva que elas
por vários anos. Apresenta grandes mudanças, podem ser consideradas como válidas.
segundo o objeto. Precoce se se trata, por Uma outra objeção pode referir-se ao
exemplo, de condutas que interessam pes­ conteúdo das perguntas. Se elas não respon­
soalmente a criança, muito mais tardia para dem às reflexões ou aos interesses espontâ­
realidades que lhe são exteriores ou estra­ neos da criança, não correm o risco de suge­
nhas. rir-lhe idéias que ela não teria tido por si
Mas ela opõe também dificuldades que mesma? Mas não se trata, aqui, de pesquisar
poderíamos chamar de segundo grau. Ex­ quais sãõ as crenças da criança sobre as
XII AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

coisas. Provavelmente, por uma escolha en­ tipo revelou-se impraticável. A criança é in­
tre suas respostas, por interpretações conci­ capaz de seguir a conversa. De maneira al­
liadoras, sempre é possível chegar a tipos de ternada, ela repete pura e simplesmente os
opiniões ou de explicações que pareceriam termos da pergunta, ou, então, fala, repen­
suficientemente estáveis e ligadas para serem tinamente, de qualquer outra coisa. Acima de
dadas como sua representação intelectual nove anos, a bagagem de conhecimentos es­
das coisas. O problema é que a mesma crian­ colares é uma outra rotina que dispensa a
ça, ná mesma conversa, passa continuamen­ criança, com muita freqüência, do esforço so­
te de um tipo a outro, contudo, longe de licitado.
serem enganosas, essas contradições, essas Esta pesquisa foi feita numa escola de
incoerências tomam-se indices preciosos, Boulogne-Billancourt, onde se encontravam
quando o objetivo é ver como a criança opera representados todos os elementos com­
face a uma dificuldade, quais são suas pos­ ponentes da população dessa cidade. Po-
sibilidades, quais são suas insuficiências, de I pulação semi-operária e semiburguesa: Ope­
qual mecanismo mental ela dispõe. Desse rários da mecânica e da mineração, pequena
modo, o objeto das perguntas não foi extra­ burguesia de empregados e funcionários pú­
ído daquilo que a criança pode conhecer blicos. População que compreende, também,
como experiência do dia-a-dia. Ela tem, de uma certa proporção de estrangeiros e, par­
fato, uma grande aptidão para registrar o ticularmente, de italianos. É extremamente
detalhe das coisas que entram a n sua atividade provável que, numa escola rural, por exemplo,
familiar e suas explicações poderiam ser o conteúdo de certas respostas teria sido di­
apenas fiéis reminiscências. Foi preciso es­ ferente, como as relativas às plantas e à cultura.
colher realidades de sua ambiência habitual Mas, ainda tuna vez, o problema, aqui, não é
que não fossem, contudo, totalmente aces­ de estabelecer um inventário de conheci­
síveis a seu manejo. mentos ou de crenças, mas de apreender o
Quanto às crianças interrogadas, as duas funcionamento do pensamento em seus pri-
idades extremas são 5 anos e meio e 9 anos. mórdios na criança.
Abaixo dessa idade, todo interrogatório deste
PRIMEIRO LIVRO

OS MEIOS INTELECTUAIS

PRIMEIRA PARTE

A IDEAÇÃO ELEMENTAR
CAPÍTULO I

OS OBSTÁCULOS

Ie ) Mau Contato entre as Crianças que um exibicionismo da atividade, onde se


e seu Interlocutor exterioriza a afetividade de que aquela é
sempre acompanhada.
As conversas com a criança sobre os Não que ela não seja capaz de colaborar
objetos que não lhe interessam imediatamen­ efetivamente com outras, mas colabora como
te tornam-se possíveis apenas por volta dos um inseto, ligando a execução do que faz
cinco anos e meio ou seis anos. Antes dessa com os resultados obtidos perto dela, com
idade, a atividade pode ser suscitada, mas um simples detalhe do que está sendo reali­
não dirigida. Ela pode ser descrita, mas não zado. Nesse caso, ela parece menos guiada
considerada como uma fonte de testemu­ pela imagem do efeito a ser obtido do que
nhos que obedece a um plano ou a uma pelo encadeamento imediato de seus pró­
direção ideológica. Ela não se deixa desviar prios gestos a gestos próximos. Se este enca­
das situações afetivas ou práticas, ao contato deamento vier a se romper, freqüentemente
das quais ela se desenvolve. Ela é, a todo o a criança poderá apenas opor-se e destruir.
instante, complementar dos objetos manipu­ Assim, ela oscila, perpetuamente, entre a
lados ou desejados, das pessoas dq quem a manipulação, as efusões afetivas, a colabora­
criança espera ou exige algo. É a atividade ção gestual, a oposição. Parece difícil, então,
que se manifesta em seus jogos, em suas que ela seja capaz de distinguir entre os
tentativas de imitação. objetos segundo semelhanças estáveis e sis­
A atividade da criança muito nova é temáticas. Desse modo, a idade na qual ela
marcada por alternâncias contínuas de obje­ parece furtar-se a uma investigação metódica
tividade e de manifestações afetivas. Ela é ora sobre suas formas de pensar também é, pro­
absorvida pela utilização ou pela estrutura de vavelmente, aquela em que esta não teria
um objeto, a ponto de tornar-se como que objeto.
estranha a qualquer outra coisa, e ora sabe Mais tarde, no plano da conversa, sua
apenas se desgastar em explosões de admira­ colaboração com o interlocutor pode apre­
ção e de contentamento, a não ser que ainda sentar as mesmas alternativas. A maneira pela
fique absorta numa contemplação como que qual o contato se estabelece tem, sobre suas
estúpida. Assim, vêmo-la interromper, brus­ respostas, a maior influência. Seu comporta­
camente, a tarefa iniciada para se aplaudir ou mento intelectual pode ser modificado de
para dar pulos de alegria diante dos resulta­ forma sensível. Os casos-limites são aqueles
dos que surgem. Freqüentemente, é ela pró­ em que ela responde às perguntas e às solici­
pria que se torna o objeto de seu próprio tações através de um silêncio obstinado.
contentamento e de sua admiração. Ela pede Freqüentemente, insistir leva apenas a refor­
para ser observada no que faz. Há nela como çar essa atitude de oposição.
4 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

REAÇÕES DE OPOSIÇÃO tiva, e também um torpor como que reflexo,


do qual pode ser impossível tirá-la, pois ela
Por vezes, trata-se da oposição bruta. Ela não oferece mais nenhuma oportunidade às
reflete, como no espelho, a vontade que o solicitações. Na verdade, estas apenas fariam
adulto tem de obter safistação. Em contrapar­ aumentar sua inibição. Apenas uma diver­
tida, a criança desenvolve uma vontade igual são1feliz e sem relação aparente, pelo menos,
de recusar-lhe aquela. Antagonismo elemen­ com o esforço do interlocutor, poderia ser
tar e como que reflexo de duas pessoas frente eficaz arrancando bruscamente a criança de
a frente. Ele é como o equivalente psíquico sua hipnose, um automatismo ocasionado
do negativismo motor, onde toda tentativa de por uma ordem usual, uma primeira reação
mobilizar o doente leva à contração dos gru­ fácil de surpreender poderá desbloquear a
pos musculares que podem impedir que o atividade.
gesto seja executado. Através de uma inver­ Mas a oposição pode desenvolver-se
são das relações normais, são os antagonistas também sobre uma base de comoção muito
que a incitação ao movimento desperta, em mais total, em conseqüência da confusão em
vez de levar a ação deles se fundir na dos que a presença de pessoas, que se ocupam da
agonistas. A intensidade dessa resistência criança, pode jogar um ser que ainda con­
cresce, então, como a da excitação, por um trola mal suas atitutes. Pois para cada um,
efeito que lembra o aumento automático do uma pronta acomodação às eventualidades
esforço num músculo submetido a uma carga diversas e freqüentemente graves, ocasi­
que aumenta, ou a da resistência oposta pe­ onadas por sua entrada na zona onde a ação
los moluscos bivalve e de concha, à medida do outro poderia se exercer sobre esse ser é
que se acentua a tração para abrí-los ou uma perpétua necessidade. Resultam disso
arrancá-los da rocha â qual eles se agarram. as reações ditas de superioridade, que tradu­
No plano psíquico, também pode-se zem o sentimento de suas relações com o
tratar de noções muito elementares e que estranho. Estas também são de origem preco­
não exigem, na criança que se opõe, uma ce. É fácil reconhê-las no animal, que respon­
consciência, por menos desenvolvida que de de forma muito diferenciada à aproxima­
seja, de sua pessoa, comparada a do outro. ção de outros animais. Elas podem até mes­
Entretanto, de uniforme e variável em alguns, mo assumir uma forma lúdica, como esses
a oposição pode tomar-se mais diferenciada cachorros que se abaixam à vista de um
em outros, ou seja, pode modificar-se com a outro, com as patas da frente e a cabeça
pessoa do interlocutor ou segundo os mo­ contra o solo, como que para se esconderem
mentos e as circunstâncias. A brusquidão das e se manterem prontos para pular. Elas são,
reviravoltas, que podem fazer a criança pas­ habitualmente, mais ou menos controladas
sar da docilidade à oposição, ou vice-versa, ou dissimuladas no adulto, por cálculo, res­
é mesmo um traço marcante nela. peito humano ou decência. A criança tem
Outras vezes, a oposição resulta muito muito menos controle sobre si mesma e há
mais do problema que a criança experimenta variedades de deficientes, de idiotas ou ape­
face a uma situação insólita. Ela fica perturba­ nas de pequenos selvagens nos quais elas se
da, não possuindo nada em seus hábitos ou manifestam sem moderação, seja por sinais
sua rotina que lhe permita uma resposta fácil de pavor, seja por atitudes de súplica. Sob
e espontânea. As frágeis capacidades, que ela uma forma atenuada, esse é um estado mais
poderia ter, de procurar ou de tentar uma ou menos secreto de tumulto afetivo e de
resposta inédita, são abolidas pelo próprio incerteza.
problema no qual ela foi colocada. Há, então,
uma renúncia, com freqüência total e defini­ (1) N.T.- No sentido etm ológico de mudança d e direção.
OS OBSTÁCULOS 5

O aspecto da criança varia segundo cada na, com muita freqüência, uma atitude siste­
um destes casos: ora fixo e teimoso, ora matizada de fracasso, seja por despeito, seja
sonolento e ora inquieto, oprimido, mais ou por simples tendência a continuá-la ou a
menos suplicante ou como em busca de um repetí-la, seja por exclusão determinada de
eventual auxílio. A conduta a ser mantida em toda impressão ou reação dependente do
cada um é, evidentemenete, diferente. Não mesmo compartimento psíquico. A dissocia­
serviría para nada tranqüilizar a criança em ção das atividades, na criança, é tão fácil de
atitude de oposição verdadeira ou mesmo de ser desencadeada quanto no histérico, que é
renúncia sistemática. Então, só têm alguma capaz de realizar anestesias, paralisias ou
chance de êxito diversões como que fortuitas amnésias parciais, sem ter verdadeira anes­
e que parecem estranhas à pessoa do inter­ tesia, paralisia ou amnésia.
locutor, independentes da situação com a
qual a criança esbarra. Tudo o que pode ATITUDES SISTEMÁTICAS DE
ajudá-la a compor uma atitude de confiança IGNORÂNCIA OU DE NEGAÇÃO
com relação a quem a interroga deve, pelo
contrário, ter seu máximo de eficácia quando As manifestações de ignorância podem
ela está em plena confusão afetiva. também se tomar lúdicas. É freqüentemente
Essas reações de oposição, de inibição um jogo para a criança fingir que ela não sabe
ou de vertigem emotiva podem ser, aliás, o que, no fundo, ela sabe que sabe. Esconde-
favorecidas ou modificadas pelas circunstân­ esconde, mistificação do adulto na qual pode
cias. Más disposições fisiológicas da criança, entrar, em graus diversos, má vontade e brin­
fadiga momentânea, impressão de desconten­ cadeira, zombaria ou cumplicidade diverti­
tamento devida a algum incidente anterior, da. Enfim, a ignorância simulada pode ser
composição, de algum modo desarmónica, uma oposição ou um jogo que estão ligados
para ela, de seu ambiente presente, desgosto a certos objetos ou a certas perguntas.
ou expectativa de um acontecimento previs­ Eis um exemplo de ignorância de certa
to ou desejado, como recreação, lanche, hora forma fabulatória, que sobreveio bruscamente
da saída, inquietação sobre o que fazem, durante um interrogatório ao qual a criança
naquele momento, seus companheiros, seus havia começado a responder de maneira
irmãos e irmãs. Nada é tão frágil como o fio de muito dócil. Nada, em sua atitude, nem na
sua atividade. A menor influência contrária ambiência, parecia justificar uma mudança
pode rompê-lo. de disposições:
A oposição pode ser também menos
maciça, embora traduzindo-se por respostas Р...И 91; “Como é que fica de noite ? - Não
negativas, quer simples gestos, quer fórmulas sei. - O que é a noite ? - Não sei. - Você não
de má vontade ou afirmações mais ou menos sabe o que quer dizer “fica de noite” ? - Não,
sistemáticas de incapacidade, ignorância. Suas não sei. - E dia ? - Não, não sei. - E a lua, você
causas e seus motivos podem seq então, mais nunca ouviu falar d d a ? - Não. - Do sol
diferenciados. A respeito das relações pes­ também não ? - Não. - Você não ouviu falar do
soais, que mantêm toda sua importância, vai sol ? - Não. - Você não ouviu falar do céu ? -
entrar em jogo a natureza das exigências de Não. - Você não falou do céu agora há pouco?
que a criança é o objeto, por exemplo, as - Falei, eu disse tudo o que tem nele (exato).
dificuldades da pergunta feita ou apenas sua - Para que serve o sol ? - Não sei. - O que a
inapropriação momentânea com as disposi­
ções da criança, as associações suscitadas (1) Segundo a convenção habitual, o núm ero seguido
fortuitamente pela pergunta, impedimentos d e ponto e vírgula Q indica o núm ero d e anos, o que
que são barrocas. Um fracasso inicial ocasio­ vem em seguida é o núm ero d e m eses.
6 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

gente vê lá longe (fumaça lá fora) ? - Não sei. nunca se acende o fogo, que ela não viu nem
- O que é que faz fumaça ? - Não sei. ” carvão nem madeira, que se come comida fria
De uma outra criança, 6; que mora em o tempo inteiro, que já lhe aconteceu de
Boulogne-s.-Seine, esta ignorância inve­ tomar sopa, mas que ela nunca viu sua mãe
rossímil: “ Você já viu o Sena ? - Não; eu não cozinhar.
sei nada dele, nem onde fica, o que é o Sena? Da mesma maneira que não quis no­
- Você já foi a Saint-Cloud ? -J á .- Lá não tem mear o ar soprado em seus cabelos, ela se
rio ? - Não. (Explicamo-lhe como se atravessa recusa a nomear a água. Ela viu um lago em
um rio sobre uma ponte.) Não, não tem rio Saint-Cloud: “ O que é que tem nesse lago ? -
para atravessar não. - Então, você nunca foi N ada.-"Devez em quando chovei-N ão. ” Ela
a Saint-Cloud ? - Fui, eu ía lá todos os dias. - concorda, entretanto, que sua mãe abre o
Você não atravessou uma ponte ? - Não me guarda-chuva por vezes, porque está cho­
lembro mais. ” vendo; mas diz não saber o que é a chuva e
tampouco com o que toma banho. “ Algumas
vezes você bebeu? ...Você nunca bebeu
A resposta nem sempre é inteiramente água? - Bebi. ” Mas, logo em seguida, ela volta
negativa. Ela pode ser muito mais restritiva, atrás para dizer que bebe vinho. Finge ignorar
deixando assim, reconhecer a origem princi­ a diferença de cor e de gosto entre o vinho e
palmente afetiva da negação: a água. “Com o que você toma banho?... Você
toma banho com vinho? - Não. - Então, com
A...re 6; “O que é o sol ? - Eu não vi o que você toma banho ? - Não sei?
m uitas vezes, quando a gente via quase não
via. ” A inverossimilhança, o absurdo eviden­
te das negações atestam, aqui, a recusa opos­
“ Não muitas vezes ” e “ quase não ”, ta pela criança ao que ela considera, prova­
freqüência e visibilidade, a limitação é dupla. velmente, como uma invasão de sua pessoa.
É uma forma de esquivar-se. A recusa de Outras vezes, é por acidente que, sendo a
responder procura um motivo para si. Há pessoa da criança inoportunamente coloca­
compromisso entre a atitude negativa e a da em questão, disso resulta uma atitude de
evidência contrária. negações sistemáticas.

Frequentemente, a ignorância inveros­ Assim, o jovem A...aud 6; que falou


símil, absurda, incoerente, é devida apenas a espontaneamente do “Padre”, entrega-se, em
problemas do caráter, como nesta criança seguida, a uma série de denegações, em
I...ga 7; que é de um orgulho extraordinário e oposição flagrante com o que ele próprio
que ficou, um dia, indignada quando sua deixou aparecer de suas experiências passa­
professora quis verificar se ela sabia a lição, das. E isso ocorre após uma pergunta que
pedindo-lhe que a recitasse. parece tê-lo confundido, dando-lhe a impres­
são de uma incompatibilidade essencial. Sua
Ela finge não saber o que é sonhar, nem atitude de negação generalizada é a tradução
o que é o vento. " (Sopramos nos seus cabe­ disso. Perguntamo-lhe: “Você não gostaria de
los.) O que é isso ? - Nada. - (Sopramos de ser padre ? - Não. - Por quê ?- Eu não poderia.
novo.) Você m exeu em m im . - Como ? - Com - Por quê? - Porque eu não tenho roupas
as mãos. (Novas tentativas, ela reconhece como ele. - Ele sempre teve roupas assim? -
que não a tocantes, mas finge não saber Não sei. - O padre sempre foi padre ? - Não sei
nomear o que lhe desloca os cabelos.) " nada disso. - Será que ele foi sempre um
Ela assegura, ainda, que, em sua casa, adulto ? - Eu nunca o v i.- Você nunca foi à
OS OBSTÁCULOS 7

igreja? - Não. - Na rua, você nunca viu um quem você dormia ? - Na casa da mamãe. - E
padre ? - Não. - Como você sabe que ele não o seu pai ?- Ele estava lá também. - O que tem
tem roupas como todo mundo ?... Como são de bonito em Nièvre? - Ah, nada. - Lá tem
as roupas dele ? - Não sei. - O que quer dizer bosques ? - N ósficam os ao lado dos bosques.
padre ? - Não sei. - O que o padre faz ? - Não - O que tem de bonito nos bosques ? - Nada.
sei. - O que nós fazemos na igreja ? - Não
lembro mais. - Você já entrou na igreja ? -Já É manifesto, aqui, o contraste entre a
entrei nela. - O que fazemos na igreja ? - Não atitude negativa que inicialmente é expressa
falam os e não fazem os barulho. - Por quê ? a propósito de tudo e a emergência espontâ­
- Porque o homem te m andaria para fora. - nea e como que autônoma das lembranças.
Que homem ? - O homem quefica na igreja. ” É o conflito, tão freqüente na criança, entre
seus imperativos afetivos do momento e seu
É, provavelmente, a aproximação entre realismo intelectual. Ele pode, no campo
sua pessoa e a do padre, de certa forma muito simples da memória, traduzir-se por
inconcebível para ela que, repentinamente, a uma simples alternância de “não” e “sim”, por
faz rejeitar, não essa assimilação nominal­ uma simples intermitência de eclipses, que
mente, mas tudo o que pode relacionar-se a deixa aparecer a base mental. Mas, no mo­
ela, ou seja, o próprio conhecimento das mento em que opõe espécies menos concre­
coisas das quais ela estava falando e que ela tas, no momento em que, em vez de lembran­
não pode, finalmente, deixar de convir que ças relativas a acontecimentos ou circunstân­
conhece. A negação tem, aqui, um caráter cias pessoais, trata-se de noções mais abstra­
mais voluntarista que objetivo. Ela estende o tas, de raciocínios sobre realidades às quais a
sentimento de uma impossibilidade ao uni­ criança não teve a ocasião de dispensar um
verso dos fatos e das lembranças. De origem interesse direto e espontâneo, a obscuração
muito mais afetiva, ela tem algo de global. A pode ser muito mais total e persistente. Eis aí
atitude de surpresa e de recusa, na qual a algo que pode influir consideravelmente sobre
pergunta feita jogou a criança, contamina o a maneira pela qual a criança responderá, se
conjunto de suas respostas. Sua pessoa, brus­ a interrogação referir-se a objetos pertencen­
camente colocada em questão, impõe-lhes tes apenas a sua experiência longínqua.
um caráter puramente subjetivo. Nessa ida­
de, é muito freqüente que o real esteja oblite­ RESPOSTAS DE CONTORNO
rado por reações puramente íntimas.
A negação também pode ser devida a As respostas de contorno são freqüentes
uma penúria de imaginação, quer primitiva, na criança: ora acidentais, ora sistemáticas.
quer secundária ao mau humor. Eis uma Seu mecanismo não é completamente idênti­
criança cujas respostas parecem ditadas por co nos dois casos. Sistemáticas, podem tam­
suas disposições morosas. bém não ser de origem única. Elas lembram,
freqüentemente, uma síndrome patológica
N...et 7; “O que você fez durante as que pode esclarecer certos aspectos seus.
férias ? - Aprendi tabuada. - Você não brin­ Habitualmente designada pelo nome daquele
cou ? - Brinquei sozinho. - Não com seus que a descreveu, Ganser, ela tem, como traço
amigos ? - Com um ou dois. - Do que vocês mais aparente, um tipo de afetação a só
brincaram ? - De pega-pega. - Você já foi responder às perguntas feitas através de
alguma vez ao campo ? - Não. - Você ficou absurdos. Ás vezes, é possível perceber, en­
sempre em Boulogne ? - Ah, não-, eu fu i ao tre as duas, uma relação formal seja de as-
campo em Nièvre. - Na casa de quem você sonância, seja de trocadilho. A intenção pa­
ficou ? - Na casa de ninguém . - Na casa de rece ser sempre de facécia ou de zombaria.
g AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Por vezes, há até mesmo algo de dificultoso bem se suas respostas não são pertinentes. É
ou de estranho no achado. Assim, temos a acolhida do outro que a faz aplicar nelas um
facilmente a impressão do artificial e, freqüen­ julgamento. Freqüentemente, elas parecem
temente, da simulação com tanto mais pro­ ter precedido sua escolha, sua crítica. São a
babilidade aparente quanto se tratar, com realização das reações mais imediatas a se
mais freqüência, de sujeitos que possam ter produzir, seja em razão de disposições aci­
interesse em se fazerem passar por alienados, dentais, seja por causa de associações costu­
por exemplo, prisioneiros por muito tempo meiras. Enfim, pode ser a simples conclusão
reclusos na solidão de suas celas. de um pensamento, suscitado por acaso em
O que parece haver de voluntário ou de seu espírito, pelas conversas escutadas e que
semi-voluntário nessas manifestações as fez se enuncia como que irresistivelmente, em
aproximarem-se, para alguns, da histeria. vez de ser logo reduzido com vistas a uma
Outros assinalaram os problemas da conduta resposta mais bem ajustada ao objeto ou à
que as acompanham, vendo nisso muitos intenção da pergunta. Eis aí o grau mais leve
fatos de dissociação psíquica, de automa­ e também mais freqüente da resposta de
tismo rebuscado, de afetação que se asse­ contorno na criança.
melhariam muito mais à esquizofrenia. Como
é freqüente nessa afecção mental, com efeito, H...et 6; 1/2 “Você já viu o mar ? - Ele não
o conjunto dessas manifestações imporia, estava longe de Novilette. - Você gosta do
sobretudo para fantasias, caprichos, subter­ mar ? - Fui tom ar banbo lá. - Você gosta de
fúgios, paródia, uma obstinação hostil, extra­ tomar banho de mar ? - Ele m e lava e m e deixa
vagância. Mas o detalhe delas deixa, muitas limpo. - Você já bebeu água do mar ? - Não. -
vezes, reconhecer reações sem dúvida absur­ Por quê ? - Têm navios quepassam em cima.
das, porque não têm relação inteligível com a - Mas isso não deixa beber ? - Tem gosto de
pergunta ou a situação, e que têm, contudo, sujeira, de tinta, de cachorros mortos.”
cada uma, sua coesão, por menor que seja,
como um curto-circuito entre os elementos Nenhuma das respostas, exceto, talvez a
sensoriais ou motores da fala, entre palavras, última, relaciona-se exatamente à pergunta
lembranças, imagens, limitando-se seu víncu­ feita. Elas inicialmente exprimem circuns­
lo mútuo às circunstâncias do automatismo tâncias que são a identificação subjetiva, pela
ou do acaso. criança, do objeto proposto à sua imaginação:
É esse duplo caráter que se encontra nas localidade onde morava, banhos que tomou,
respostas de contorno da criança, em graus, utilidade dos banhos. A imagem do mar traz,
evidentemente, muito diversos. Ela parece, em seguida, a dos navios, e é unicamente no
freqüentemente, fazer um jogo de furtar-se às fim que há concordância visível entre os de­
perguntas do adulto através de respostas tritos carregados pelo mar e o fato de não
manifestamente engraçadas. Ora é simples beber sua água. A seqüência das perguntas e
divertimento, ora também malícia ou má das respostas oferecia uma simples unidade
vontade com relação à pessoa que a interroga de tema. Mas o tema sugerido pelas perguntas
ou por enfado do constrangimento suportado. desenvolvia-se por si mesmo, sem considerar
O embaraço em que ela se sente para res­ a significação precisa delas.
ponder convenientemente está entre os Assim, freqüentemente, o pensamento
motivos que podem incitá-la a afetar não da criança parece fragmentar-se em gotas
querer fazê-lo sejiamente. Ela dá um aspecto cuja tensão superficial impediria de serem
de fingimento ao que é incapacidade, cpsse fundidas entre si pela seqüência do interro­
é um começo de simulação. gatório. Elas ficam como que prisioneiras de
Mas nem sempre a própria criança sabe suas relações mais imediatas.
OS OBSTÁCULOS 9

В...re 6; “О que que é uma mesa ? - Ma­ “Pegar” provocou “mão”, eclipsando,
deira. - De que cor ?- í/ш? tábua... Preta. - De assim, o próprio objeto da pergunta. À mão
onde vem a madeira da mesa ? - Não sei. - Do acrescentou-se, em seguida “a pinça” e assim
que é feito um lápis ? - Ele escreve- Do que é se operou a substituição da substância de que
feito ? - De madeira. - De onde vem essa ma­ as sementes seriam feitas pelo instrumento. À
deira ? - Não sei, é o homem que compra. - pinça liga-se, em seguida, a imagem dos
Onde a gente compra ?-A gente compra os lá­ pregos que ela serve para arrancar, tomando-
pis. - O lápis e a mesa são da mesma madeira ? se completa a discordância entre o tema do
- Não, não é a mesma madeira. - Por que não questionário e as representações que a criança
é a mesma madeira ? - Para escrever. " forma.
Assim, as associações ou as estruturas
A distância entre cada resposta e a per­ mais elementares de seu pensamento são,
gunta que precede deve-se, visivelmente, ao frequentemente, um obstáculo para suas
fato de que o espírito da criança está retido no relações com o do outro. Quanto maior for a
próprio objeto pelos traços que lhe são mais dificuldade da pergunta mais freqüentemen­
familiarmente unidos: mesa - madeira - tábua te elas virão suplantar sua compreensão e sua
e, por outro lado, madeira - lápis - escrever. resposta exata. Contudo, o próprio esforço
Essas associações próximas podem dar ao de compreensão ou de resposta sofre a
pensamento uma descontinuidade que chega influência, mais ou menos profunda, de sua
quase à incoerência. aceitação espontânea ou forçada. Intuição de
sua possibilidade e vontade de dá-la têm,
K...vé 6; “De onde vem essa água (a entre si, uma ação recíproca, sobretudo na
chuva) ? - De cima, do céu. - Como tem água criança em que os campos da afetividade e da
no céu ? - Para beber. - Você bebe a água do inteligência ainda não estão suficientemente
céu ?- Éa água que cai. - Como é que a gente delimitados. É assim que, por vezes, ela tem
faz para pegá-la ? - Ela cai no Sena e depois no um comportamento que pode, gradualmente,
mar. - Como tem água no céu? - Porque ela parecer com as manifestações ambíguas que
cresce no céu.” se observam na síndrome de Ganser, onde o
diagnóstico fica, às vezes, incerto entre o
A água que cai, a água que bebemos, a jogo, a mistificação, a simulação, a dissociação
água que vai do Sena até o mar, tantos traços psíquica.
sucessivamente combinados à água e que a
fazem retrair-se sobre si mesma, tornando-a,
assim, estranha à pergunta feita. Numa outra
criança, todavia mais velha, essas associações 2° ) Inércia intelectual da criança
curtas substituem o próprio sentido da per­
gunta. ATRASO, DESCONTINUIDADE,
PERSISTÊNCIA
J...ly 9; (Disse que as sementes são
fabricadas.) “O que a gente pega para fazer as Em suas primeiras manifestações, o
sementes? - A gente tem a mão. - Com o que pensamento da criança apresenta uma inércia
a gente faz as sementes ? - Com pinças. - O que a impede de seguir a cadência do adulto
que a gente pega com pinças ? - Com pinças, e que é uma causa de contínua discordância
a gente tira pregos do nosso sapato. - Mas em suas conversas. Entre os efeitos dessa
nãoé com pregos que a gente faz as semen­ inércia, podemos citar o atraso de suas
tes, não é ? - Ah, não. - Então, é com o quê ? respostas, que lhes dá, freqüentemente, a
- Não s e i” aparência de qüiproquó ou de contra-senso,
10 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

porque elas se relacionam não à questão que parece, suscitar imperativamente. Aqui, ainda,
precede imediatamente, mas à penúltima ou o fracasso da criança dá facilmente a impressão
à antepenúltima. Há, ainda, no pensamento de uma recusa ou de uma oposição, e toma­
da criança, um aparente contraste que se se isso, aliás, frêqüentemente, pela trans­
deve à mesma causa. formação tão habitual, na criança, do não-
Por um lado, descontinuidade: ela não poder em não-querer.
pode manter sua atenção, no mesmo objeto,
por muito tempo, pois seu espírito esquiva­ L...ard 5;l/2 “Você sabe o que que é o
se a todo instante. A causa disso é dupla: quer vento ? - Não sei. - Quando tem vento, o que
incapacidade para conservar, por muito é que ele faz ? - Não sei. - Quando as árvores
tempo, uma certa acomodação mental, e se mexem, o que as faz mexer ? - O vento."
rápido esgotamento de seus atos psíquicos;
quer prontidão e incontinência dos reflexos A lembrança de um espetáculo familiar
de atenção relacionados com os incidentes leva-a, enfim, a completá-lo, como que auto­
exteriores, diversões inesperadas, sucessão maticamente, por um termo cuja evocação
inteiramente fortuita de suas impressões não pudera transpor o limiar de suas repre­
periféricas ou íntimas. Essa instabilidade é sentações expressas, ainda que das mais
também uma manifestação de inércia; pois familiares.
ela denota uma certa incapacidade para não
sofrer, como que passivamente, as pulsões Da mesma criança que mora em
diversas que podem resultar de atividades Boulogne-s.-Seine: “Você já viu o Sena ? -
automáticas ou reflexas, e dos temas que Não. - Você nunca passou pela ponte de
tendem a ocupar ou que acabaram de ocupar Saint-Cloud ? - Não sei não. - Você nunca
seu espírito. Sob a perpétua transformação passou por uma ponte ?- Não sei. - Onde você
aparentemente dos motivos, na verdade, vai aos domingos ? - Na festa de Saint-Cloud.
são os mesmos que retornam, em número - Você não passa por cima da água ? - Eu
muito pequeno, lembrados, cada um, su­ nunca estive na água não. - E de barco, você
cessivamente, pela rápida fragilidade do tema já foi ? - Não... tem gente. - Mas você já viu
do momento. barcos na água ? - Às vezes, têm uns de papel.
A descontinuidade tem, portanto, como - Você nunca os viu no Sena ? - Não... - Você
contrapartida, a persistência. A palavra pro­ nunca viu barcos de verdade ? - Não. - Como
nunciada, a imagem ou a idéia mentalmente os barcos andam ? - Não sei de nada não. -
realizadas tendem a se reproduzir, a durar Mas os barcos andam ? - Têm uns... os de
com eclipses e revivescências. A criança é papel."
persistente no plano mental, pelo menos tanto
quanto é borboleteante no das reações exte­ Quer seja, aqui, uma inércia de má
riores. Tendência tanto mais surpreendente vontade ou de incapacidade - as duas estão
quanto o tema persistente sobrevêm, com freqüentemente associadas -, o mecanismo
freqüência, como um puro efeito do acaso. disso é visível. É a extrema limitação das
Esses dois efeitos, aparentemente con­ realizações mentais, que parecem se estender
trários, da inércia mental, podem fazer com no mesmo lugar. Ao lhe falarmos de passar
que a criança seja acusada de má vontade, de por cima da água, apenas essa última palavra
inatenção culpável, embora tenham sua parece constituir uma imagem em seu espírito
origem numa inaptidão fundamental, da qual e ela responde pela locução “na água”, mais
um outro efeito, igualmente freqüente, é a fácil de enunciar do que seria evocar a idéia
não-evocação das imagens que as circuns­ de “por cima da água”. À palavra “barco”, ela
tâncias ou os termos da conversa deveriam, reage pela imagem mais econômica, a &
OS OBSTÁCULOS и

brinquedinhos fáceis de manejar, mais do S...itch 6;l/2 “Como é feito o sol ? -


que pela imagem de barcos reais que passam Q uando é de dia. - O sol é grande ?- Redondo.”
sobre o rio. Quanto ao próprio rio, que ela
deve atravessar para ir de Boulogne até Saint- A segunda resposta está manifestamen­
Cloud, ela não sabe integrar-lhe a imagem na te relacionada com a primeira pergunta.
lembrança de seu trajeto. Assim, apesar de Quanto à primeira resposta, ela é o retomo
uma lembrança insistente das circunstân­ literal de uma fórmula que havia sido
cias, o esforço de realizar mentalmente enunciada anteriormente. Pois, com muita
representações, todavia habituais, fracassa freqüência, as imagens, frases ou gestos que
ou lhe faz falta. Em vez de se ampliarem, acabam de se produzir tendem a persistir por
como pareceria natural, elas permanecem uma espécie de ativação latente, que os faz
contraídas e compartimentadas. reaparecer, de preferência, na réplica reque­
A inércia pode suspender uma simples rida pela situação, mas que uma fragilidade
associação, cujos termos, contudo, são dados. grande demais do poder evocador não pode
levar a se manifestar.
De uma outra criança: “Se chovesse e se
você não tivesse guarda-chuva, como você L...ard 5;l/2 “O que é a chuva ? - Quer
ficaria, ao voltar para casa ? - Eu ficaria dizer que está chovendo. - E quando chove ?
molhadinho. - Então, o que é que molha ? - É - F az vento (persistência de um tema
a água. - Então, a chuva, o que que é ? -... - imediatamente anterior). - O que que é o
A chuva molha ?-Ê,ela molha.- Então é como vento ? - Não sei. - De onde vem a chuva ? -
a água ? - ...- O que é a chuva ? - Não sei.” Vem do barco (essa resposta absurda é
desencadeada pela fórmula “de onde”, que,
A água e a chuva permanecem, assim, anteriormente, ocasionara a palavra “barco”). ”
duas imagens distintas, cuja fusão não pode
ser realizada, ainda que estejam explícita­ A persistência pode transformar-se em
mente unidas por seu efeito comum de mo­ embolia verbal. O fato é tanto mais fácil
lhar. quanto as palavras substituídas entre si podem
responder a significações ainda mal diferen­
Há compartimentagem semelhante nas ciadas. As oposições de sentido ainda não são
representações da criança B...re 6; que viu o suficientemente sentidas, para fazer triunfar
mar e disse que é salgado: “Você viu o sal ? - o termo apropriado daquele que tende a se
Não vi, não. - Você já viu sal na sua casa ? - Д repetir.
eu vi.”
V...el: “Você tem irmãos ? - Tenho. -
Entre o sal degustado e o sal visto, a Maiores que você ? - É - Qual o nome do
ligação não pôde ser feita espontaneamente. maior ? - René. - E o outro ? - René também. -
Um outro efeito da inércia intelectual é o Você tem irmãs ? - Três. - Como se chama a
atraso das respostas. Freqüentemente, a maior ?- Irm ã maior. - E a outra ?- Ela também
mesma pergunta deve ser repetida antes que se cham a irm ã maior. - E a menor ? - Irm ã
a criança perceba sua significação. É até m aior também. - Elas não têm outro nome ?
mesmo freqüente que ela responda, não à - Não. - Quando a sua mãe as chama, como
pergunta que acaba de ser feita, mas àquela ela as chama ? - Irm ãs maiores. - Você tem
que a precedia. Algumas vezes, basta notar filhos ? - Tenho. - Meninos ou meninas ? -
esse acavalamento para constatar que a Meninos. - Quantos ? - Três (como acima). -
criança não dá uma resposta de contorno, Como se chama o maior ? - René. - E o
mas em atraso: segundo ? - René também. - Você tem filhas ?
12 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

- Tenho. - Quantas ? - Três, quatro. - Como - Com o que ela pode crescer ?~Éo vento que
elas se chamam ? (ela cora e não responde).” corre atrás dela. - Onde ela está quando o
vento corre atrás dela ? - Lá em cim a no céu.”
Entre crianças, meninas e meninos de
um lado, irmãos e irmãs de outro, a diferença “Crescer e correr atrás2”, simplesmente
de sentido não está ainda muito clara e a repetido a propósito das nuvens no sentido
diversidade dessas relações perde-se na de crescimento, toma-se, bruscamente, a caça
identidade do próprio ser. E ainda mais, as que lhes dá o vento.
distinções de pessoas podem também estar
ainda tão misturadas que a denominação de B...re 6; acaba de responder que lhe
uma será aplicada, em série, às seguintes: cortam os cabelos quando eles estão grandes
“irmã maior” e “René”. demais. "Por que eles ficam grandes demais ?
No indivíduo concreto, os termos que - Eles crescem. - Como eles crescem ?O que os
designam suas relações variáveis com ou­ faz crescer ? - O vento, é o vento”(ela acabou
trem confundem-se, mesmo se elas já são de falar do vento que faz as folhas das árvores
sentidas: e as folhas de papel voarem).

“M eu irm ãozinho se cham a Claude. Eu Ao contrário do caso precedente, a


tenho um outro irmão Claude. Ele está na mudança de sentido opera-se, aqui, em opo­
escola grande. Mas esse a í não é nosso.” sição com a palavra à qual “crescer” serve de
atributo, sob a influência de uma imagem an­
Irmão e Claude ainda não estão dissocia­ terior que se segue: o crescimento dos cabelos
dos. Sua transferência, de um indivíduo a toma-se a ação do vento sobre eles.
outro, faz-se em bloco, não obstante a distin­
ção reconhecida das pessoas. A palavra é, Assim, o tema verbal ou mental que
então menos um meio de diferenciação e de persiste pode tomar-se como que um conden­
evocação que ela liga às coisas como um sador, que mistura ou combina realidades, ou
atributo, algumas vezes comum a várias. Essa significações diversas, em conjuntos quer in­
fase, ainda essencialmente concreta do pen­ coerentes, quer pertinentes. A persistência
samento, está ligada diretamente com a espé­ pode ser absurda, adaptada ou mesmo fe­
cie de inércia, que a persistência atesta, que é cunda. Não há processo elementar que não
aderência às fórmulas ou às representações, possa ser utilizado pelo pensamento, com a
por incapacidade para reduzi-las, quando condição de não dominá-lo. Eis um exemplo
elas já se produziram e, para modificá-las de persistência adaptada:
segundo as necessidades da expressão inte­
lectual. A..dre 6; acabou de falar do vento que
É assim que a persistência da mesma faz frio. “Como é que faz calor com o sol ? -
palavra pode provocar verdadeiros trocadi­ Porque não fa z vento.”
lhos, se esta tem alguma ambivalência de Um outro efeito da inércia intelectual,
sentido. O qüiproquó pode também provocar que pode parecer o inverso da persistência,
aproximadamente a situação contrária e dar a mas que lhe está freqüentemente ligado ou
ilusão de uma significação autêntica. pode mesmo dela resultar, é a descontinuida-
de do pensamento.
K...vé, 6 anos, disse, anteriormente, que
(2) N.T.- No original, em francês, a criança utiliza-se do
as plantas, as árvdres crescem. “Como é que
m esmo verbo “pousser”, o qual pode significar tanto
tem água no céu ? - Porque ela cresce no céu. “crescer” quanto “correr atrás”. Em português, foi-nos
- Como a água pode crescer no céu ?- Não sei. im possível manter essa ambigüidade.
OS OBSTÁCULOS 13

H . .. art 5; disse que são as portas abertas cada um, ao espírito, sem que já lhe seja
que provocam o vento. “Quando a gente está permitido reduzi-los à sua significação
na rua, têm portas abertas ? - Tem portas que verdadeira e recíproca.
são verdes, amarelas e cinzas.” Eis ainda um exemplo de justaposição,
em que os detalhes acrescentam-se um a
A persistência de “verdes3” transforma o outro, gradualmente, para chegar apenas a
tema do vento naquele da ma matizada. um absurdo de conjunto:

Algumas vezes, o tema não progride ao F...gli5; 1/2 disse que o sol deita e dorme.
mesmo tempo que os termos nos quais se “O sol é como a gente ? - Não, é redondo. - O
condensa o pensamento. Então, eles parecem sol se mexe ? - Não. - Ele fica sempre no
dissociar-se de maneira estranha ou absurda: mesmo lugar ? - Não. - Como é que ele pode
mudar de lugar ? - Ele anda. - Como ele faz
C...tin: “Os barcos vão ao fundo da água? para andar ? - É o hom em que está dentro dele
- Não, porque têm um a bóia vermelha. que fa z ele andar. - O sol é grande ? - Não. -
Q uando ela não é vermelha, ela afunda, Grande como o quê ? - Como um rolo. -
porque tem água dem ais no mar.” Mostre-me de que tamanho ele é - Assim (ela
desenha, com a mão, um arco de círculo de
As significações próprias a cada um dos apenas 35cm de diâmetro). - Não é grande.
termos sucessivos, em vez de se ordenarem De que tamanho é o homem que está dentro
entre si, ficam como que retraídas, cada uma dele ? - Ele está sentado num a cadeira. - Mas
sobre seu ponto de emergência. “Não ir ao isso ocupa lugar. Como uma cadeira e um
fundo da água”, ou seja, flutuar, condensou- homem podem entrar dentro? - Não sei. -
se na imagem, de certa forma automática de Você não poderia entrar dentro ? - É... um
“bóia vermelha”. A relação entre vermelha e bebezinhopoderia entrar dentro dele. - O sol
flutuar, em vez de ser considerada como é oco ? - Não. - Como a gente pode entrar
acessória, impõe-se à criança, provavelmente dentro ? - Não sei. Tem um a lu z dentro dele.
devido a seu caráter paradoxal. Antes de ter Uma lu z assim (ela mostra a grande lâmpada
podido reprimi-la, ela a confirma, mas a fosca de um refletor).”
exprime negativamente, sinal de uma objeção
latente. “Não vermelha” provoca “elaafunda”, As incoerências e as contradições são
como o ' contrário de “flutuar”, mas que abundantes nessas respostas. A criança não
também lhe está ligado pela assonância4. fica, aliás, sem percebê-las ao passar por elas,
Assim, tendo se difundido sobre os dois mas seu modo de remediá-las leva apenas a
termos, a negação tomou-se afirmação. novas inverossimilhanças, pois as imagens
Finalmente, acrescenta-se uma razão de uma sucedem-se em seu espírito sem que ela saiba
ordem completamente diferente, porém, mais evocá-las e ordená-las em vista de uma
lógica: a quantidade necessária para um representação completa, com detalhes e
naufrágio. Desse modo, encontram-se unidos condições bem integradas entre si. O sol não
uma série de termos, ao mesmo tempo se mexe, mas ele se desloca, portanto, anda.
combinados e discordantes, que se impõem, Ele é redondo, portanto, é um homem que
deve andar por ele, mas encerrado dentro
dele. Em vez da dimensão dele, a criança
G ) N.T.- Em francês, há assonância das palavras “abertas”
(“ouvertes") e “verdes” (“vertes”).
começa indicando uma forma, depois a
(4) N.T.- Em francês, há assonância entre as expres­ dimensão aparente dele. Para fazer nele entrar
sões “não verm elha” (“pas rouge") e “ela afunda” (“ça o homem que anda, ela deve, primeiro, supô-
coule”). lo sentado, depois, reduzi-lo às proporções
14 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

de um bebezinho. Momentaneamente, o sol A chuva cai, a neve derrete ou se des­


cessa de ser oco, depois, toma-se o rece­ cola: essas imagens familiares aprisionam,
ptáculo de uma grande lâmpada e seu sucessivamente, seu espírito e constituem
movimento parece esquecido. Assim, as um obstáculo àquela do trajeto ascensional
exigências da descrição e da concepção do vapor, de modo que ela renuncia, enfim,
suscitam, cada uma por sua vez, apenas a explicar o retomo da água às nuvens, de
imagens esporádicas, entre as quais o pen­ que ela se resigna a fazer um tipo de substância
samento fragmenta-se. eterna e distinta.
Algumas vezes também, a propósito do
mesmo objeto, procedente de temas dife­ Uma conseqüência freqüente desse
rentes, as imagens podem apenas se aglomerar pensamento descontínuo são as digressões.
de forma mais ou menos contraditória.
K...vé 6; disse, anteriormente, que a chuva
C...tin disse que o gelo se forma no Pólo faz o trevo crescer, o sol faz o trigo crescer.
Norte: “A água do Sena às vezes vira gelo? - “Se não tivesse chuva, não teria trevo ? - Não.
Vira. - É o gelo que vem do Pólo Norte ?- Não. - Se tivesse sol, não teria trevo ? - Não. - O que
Mas é ogelo que vem do Pólo Norte; e como já teria se tivesse sol ? - Teria gente. - Quando
tem m uito gelo no Sena, isso dá um montão não tem sol, onde estão as pessoas ? - Em
de gelo; então, ás vezes, isso se desgruda e casa.”
vem para a França.”
O tema cultura foi bruscamente subs­
Aqui, os temas, unindo-se, parecem tituído pelo tema passeio, também relacio­
encobrir-se alternadamente. Eles mostram a nado ao sol.
que ponto o pensamento da criança pode ser
apenas um cintilar descontínuo de imagens. D...ne 6;l/2 é questionada sobre o vento
Tendo, inicialmente, se recusado a assimilar e seus efeitos. “A gente não escuta o vento ? -
o gelo do Pólo Norte e do Sena, ela retorna, de Д a gente o escuta às vezes soprar, no m ar
imediato, ao Pólo, como que à origem de também, tem caranguejos no mar. - Você já
todo o gelo, depois, ao que já existiria no foi ao mar ?- Fui. - Onde você ficou ? - A água
Sena e tendo-os unido, ela os faz, enfim, é salgada, quanto a gente vai na colônia, eles
virem juntos do Pólo Norte para a França. fa zem agente beber água salgada no copo. -
Mesmo entre imagens cuja conexidade Você bebeu ? - Não, eu estava no campo
natural parece-nos evidente, acontece-lhe de quando beberam.”As lembranças despontam
não saber mostrar a passagem: sucessivamente, levando o espírito da criança
como que à deriva.
H...art 5; “O que é a chuva ?- Éágua. - De
onde ela vem ?-Do céu. - Como tem chuva no A. ..dre 6; “Por que a gente só vê a lua de
céu ? - São as nuvens que fa zem ela cair. - noite ? - Porque é de noite. Meu irm ãozinho
Como tem água nas nuvens ? - É a neve que sempre tem medo, m inha irm ã o derruba.
derrete. - Como a neve derrete ? - Éporque a Q uando ele anda, ele quer brincar, ele quer
neve sente calor. - Como a neve derretida fica ir bem depressa, se a m inha irm ãzinha
nas nuvens ? - Éporque a água cai. - A água percebe que a gente está olhando para ela,
sempre esteve nas nuvens? - Não. - Onde ela não quer se divertir. M eupai, de noite, fa z
estava antes ? - No chão. - Como no chão ? - m eu irm ãozinho andar.”
Porque ela caiu - Comfò ela caiu ? - Éporque
a neve se descolou. - Como ela estava nas A digressão é evidente; ela se desenvolve
nuvens ? - Ela sempre ficou." sob influências bem vagas e combinadas, das
OS OBSTÁCULOS 15

quais uma parece responder a um tema de numa certa desordem e sem vínculos mútos,
medo, ocasionado pela palavra noite, e outra, cada uma existindo como que por si própria,
ao tema família, por intermédio do irmãozinho O tema inicial, lua-noite, eclipsou-se comple-
que tem medo. Apesar dessa espécie de am- tamente.
biência comum, as imagens produzem-se
Capítulo II

AS INSUFICIENCIAS

Ia ) Caráter elíptico do pensamento entre si ainda estão mal elucidadas, ao fato de


na criança que o espírito da criança ainda não sabe
manipular as distinções que lhe permitiriam
Um outro efeito de inércia mental e de detalhar as ações e os objetivos, reduzir a
sincretismo; que pode também ter influência realidade a seus componentes ou a suas
não apenas sobre o ritmo do pensamento condições. Essa incapacidade é necessaria­
infantil, mas também sobre suas possibilida­ mente duplicada pela ausência do material
des e sobre seu conteúdo, é o seu caráter verbal que seria necessário para exprimir
elíptico. essas relações ou essas distinções.
Já há muito tempo, diferentes autores No adulto, esse material, apenas pelo
notaram esse traço na linguagem da criança. fato de existir, pode, por si só, suprir as
Sobretudo afetiva e pragmática, a elipse é-lhe fraquezas momentâneas do pensamento. Sob
natural. A exclamação, que pontua reações o nome de “saber verbal”, os neurologistas
emotivas ou sentimentais, é apenas um efei­ Gelb e Goldstein mostraram, através do
to, dentre muitos outros, de suas manifesta­ exemplo de certos afásicos, o papel que ele
ções. A circunstância que ela destaca não é desempenha. Quando se perde o poder de
expressa por ela em sua realidade, mas, evocar, a propósito de um objeto ou de uma
quando muito, por sua repercussão subjeti­ questão, a palavra ou a noção que tinham a
va. Do mesmo modo, os excitantes ou ritmos necessária relação de significação com aque­
vocais, os encorajamentos ou os castigos, as les, é possível que fórmulas, reminiscências
observações, pelos quais a ação é acompa­ nasçam, como que por si próprias, nos lábios
nhada, têm algo de imcompleto e de descon­ do doente e que ele possa reconhecer nelas a
tínuo, que supõe a ilustração dos gestos, a resposta que convinha, mas depois, freqüen­
sanção do esforço realizado, do efeito obtido. temente, mesmo, com muito atraso ou por­
que ê instado a fazê-lo. Tendo-a, enfim, des­
ELIPSES DE LINGUAGEM coberto, muitas vezes ele ignora sua prove-
niência. A própria atividade normal do espí­
Mas há mais, a linguagem permanece, rito apresenta, aliás, numerosos casos em que
por muito tempo, elíptica, mesmo quando a fórmula precede a intelecção, em que ela se
tende a substituir, como descrição, o real impõe antes de ter sido procurada, em con­
ausente, ou quando procura enunciar os formidade com as significações para as quais
objetos ou os termos de uma ação eventual, tende o espírito, em que, portanto, é necessá­
ou quando tenta a análise dos acontecimen­ rio apenas identificar-lhe e aprofundar-lhe o
tos e das coisas. Isso se deve ao fato de que as sentido. Gelb e Goldstein indicam que é,
relações das coisas ou dos acontecimentos muitas vezes, útil começar a falar para pôr o
AS INSUFICIÊNCIAS 17

pensamento em movimento e que é somente R...eau: “Mostre-me seu cabelo (ela o


após termos discutido certas fórmulas que mostra). - O que é o cabelo ? - Não sei. - O que
conseguimos fixar bem a significação de um eu estou fazendo ? (puxo-lhe uma mecha de
problema. cabelo). - Puxando. - A gente pode arrancar
Esse saber verbal, que preenche as os cabelos ? - Não. - Se a gente os arrancasse,
lacunas da ideaçâo intencional e que, em eles nasceriam de novo ? - Não. - Eles nunca
muitos casos, é indispensável para iniciá-la, nascem de novo ? - Não.”
naturalmente faz falta à criança, visto que é o
resultado de atividades anteriores e, mesmo Talvez seja por estar aqui, sob a influên­
no adulto, logo se degrada, a partir do momen­ cia de uma atitude negativista relacionada
to em que não é mais solicitado diretamente comumaimpressãodesagradável, queacrian-
pelos esforços de significação aos quais pode ça limita-se a enunciar em uma palavra o ato
prestar-se. Provavelmente, constatam os que ela sofreu, sem nem mesmo dar um
mesmos autores, esses automatismos podem sujeito ao verbo.
ser, em certos casos, o resultado de um puro
“adestramento” e é através de um semelhante L...our 6; 1/2 “A gente pode andar direito
“adestramento” que certos afásicos tentam sempre em frente na praia ? - Não. - Por quê ?
remediar sua incapacidade para atribuir, - É água.”
diretamente à palavra, sua significação. Eles a
aprendem, a propósito dos objetos aos quais A causa do impedimento é simplesmen­
eles vêem que o meio a faz corresponder, te enunciada, deixando para ser adivinhado
como se se tratasse de uma simples etiqueta. porquê e como é um impedimento.
Contudo, entre o nome e a coisa, o sentido
não é realmente identificado; a relação
permanece factícia e frágil. Eis o que informa ELIPSES DE CIRCUNSTÂNCIAS
sobre as verdadeiras rdações entre linguagem
e realidade. O nome é um simples código
convencional. Participa da própria realidade Mas a elipse pode não ser simplesmente
das coisas, embora já seja dela distinguido verbal. Ela pode suprimir circunstâncias
como um sistema de puros símbolos. importantes ao longo de uma explicação ou
Também na criança, tal “adestramento” de um relato.
pode, eventualmente, produzir-se, embora
raro e artificial. Contudo, no exercício habi­ W...ter 7; “O que que são barcos ? - Na
tual de seu pensamento falta o apoio consti­ água, eles nadam na água. - Como eles
tuído pelo saber verbal. Tendo que tomar nadam ? - Na água, porque a gente pega os
explícito o que está incluso em suas intuições remos e a gente rema. Se o remo cai dentro da
de objetos ou de acontecimentos, a criança água, sófica um . Os barcos dos marinheiros
por muito tempo encerrada em conjuntos seperdem, vão para ofu n d o do mar. -Como
reduzidos de expressões, como que de repre­ eles vão para o fundo do mar ? - Por que eles
sentações e de julgamentos. Aliás, eles podem não querem, eles arrum am os remos e eles
ter sua eloqüência; despojando a impressão caem assim (gesto de mergulhar), e depois
ou a intenção de todo entrave, eles podem eles olham de um a janela, não aberta, pelo
ganhar uma grande força sugestiva, como barco, como o barco nada"
acontece também a certos desenhos de crian­
ças, que lembram, à sua maneira, esboços de Para dissipar a confusão dessas frases, é
grandes artistas. Mas eles se destacam, sobre­ necessário restabelecer-lhes todos os interme­
tudo, por sua obscuridade e confusão. diários que a criança ignorou. Inicialmente,
18 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

ela é como que assaltada por um complexo em chuva por intermédio do gelo, pois ela
de circunstâncias que exprime desordenada­ dissera, anteriormente, que a chuva são “gotas
mente, em estilo telegráfico: remos, perda de água”; contudo a água é escamoteada, em
eventual de remos, naufrágio; depois, ela suas explicações, precisamente porque é
parece passar das vítimas aos espectadores indispensável, sendo como que indivisa entre
do naufrágio, sem indicar a mudança de todos os termos evocados. Outras vezes, é
personagens, com essa extrema condensa­ um simples pronome que introduz e repre­
ção implicando, aliás, no fato de que a cena senta o objeto, cuja presença no espírito é tão
oferece-se, à sua descrição, com todos os necessária, para dar sentido ao pensamen­
pontos de vista confundidos. Esta lembra to, que a criança parece julgar supérfluo no-
uma fase de sua evolução psicológica há meá-lo.
muito tempo ultrapassada, como se a criança C...ni 6; 1/2 (O Sena, disse ela, provém de
retrocedesse vários anos. Na verdade, as um riachinho.) “De onde vem esse riachi-
etapas da expressão discursiva ocorrem nho ? - As pessoas a colocam. - Onde estão as
depois das da intuição, como mostrou Piaget. pessoas ? - Na casa delas. - Como elas fazem ?
Por vezes, é o essencial que fica suben­ - Éporque ela é salgada. - Mas a água das >
tendido: casas, de onde vem ? - De um a fonte. - E a
água da fonte ?-Do Sena. - Mas, então, a água
P...et: “Como você sabe que tem vento ? do Sena também é salgada ? - Não, porque ela
- Porque têm folhas. - Então, quando tem passa nos caninhos.”
vento, o que as folhas fazem ? - Elas se
mexem .” G...ain 6; “O que faz com que o sol fique
vermelho ? - Porque o solpassa em cim a e ele
P...in 6; 1/2 “Quando o tempo está feio, o fic a vermelho. - Ele passa por onde? Em cima
que que a gente leva quando sai ? - Chove." do quê ? - Pelas nuvens. - O que que é o sol ?
- Não sei. - É ele que faz o calor ? - É. - Como
Na primeira resposta, a ação mais ele pode fazer o calor ? - Porque as nuvens
importante é como que assimilada pelo objeto vermelhas são quentes. - São as nuvens
que a põe em evidência. Na segunda, pelo vermelhas ou o sol que faz calor ? - É o sol.”
contrário, é o objeto, guarda-chuva ou capa,
que deveria ser expresso e que desaparece No primeiro exemplo, a palavra essencial,
diantè do enunciado de seu motivo “chove”. a palavra-chave foi expressa apenas pelo
Essa omissão do termo explicativo é freqüente, interlocutor da criança, no segundo, devido a
como se ele devesse à sua própria importância seu interrogatório deliberado.
o fato de poder permanecer subentendido,
de permanecer em estado latente.
ELIPSES DE IMAGENS
P...CO 9; “Como a chuva cai? - Ê o calor
que se gela. - O que é calor ? - É o sol que nos Mas a elipse não se refere apenas de
esquenta. - Como esse calor pode fazer a imediato à imagem central do pensamento,
chuva quando ele gela? - Ele vira gelo e, ela pode produzir-se secundariamente por
quando começa a fa z e r calor, ela cai. - Você condensação, suprimindo o que exprime sua
acha que o calor pode virar gelo ? - Q uando significação para alguém que não sabe do
fa z fr io ” ч que se trata.

Apesar da aparência, a criança não A...dre 6; “O que é o vento ? - O vento é


acredita na transformação do próprio-calor _ asprvores, é a terra q u efa z isso”Ao longo da
AS INSUFICIÊNCIAS 19

conversa, por volta de 20 a 25 minutos antes, H...vin 6; 1/2 “O capim cresce? - Sozinho.
acontecera este diálogo: “O que é o vento ? - - A alface cresce ? - Não. - Ela não cresce ?-A
São árvores. - Como árvores ?- Com madeira. gente sem eia”
- O que que faz o vento ? - F az secar roupas. A criança parece, assim, opor o fato de
- Como a gente sabe que tem vento ? - Pelas crescer e o de ser semeado. Ora, ela havia
amores. - Então o que é que a gente vê ? - As respondido anteriormente: “Como as flores
folhas. - Que fazem as folhas ? - Elas fa zem crescem? - Na terra. - O que a gente faz para
vento. - Se não tivessem árvores, não teria elas crescerem ? - A gente semeia. - O que ? -
vento ? - Não, m uitas vezes, têm amores que Sementes"
são cortadas, porque elas sobem depressa. - Longe de se excluírem, crescer e semear
Como elas sobem depressa ? - Pela terra” pareciam-lhe intimamente associados: “De
onde vem as sementes de trigo ? - Depois de
A expressão dessas imagens que se um p é de trigo. - Se a gente pusesse a semente
comprimem já é muito elíptica mas, quando, de trigo na terra, o que aconteceria ? - Ela
mais tarde, seu objeto é novamente discutido, cresceria.”
elas se reduzem a dois termos-referências, Mas perguntamos em seguida: “Como as
simplesmente justapostos e incompreensíveis árvores crescem ? - Sozinhas. - Como elas
por si mesmos. podem crescer sozinhas ? Elas precisam de
sementes ?- Não. - O que mais precisa crescer
Os processos do pensamento estão, de com sementes? - Nada. - O capim cresce ? -
fato, submetidos a alternativas contrárias. É Sozinho, completa a criança. - A alface cres­
preciso, incessantemente que ele se disten­ ce ? - Não (não sozinha, ela quer dizer).”
tía no tempo para se exprimir, o que é a
função da linguagem. Mas épreciso, também, É assim que é formulada, aparentemen­
que ele se contraia. Ele so progride alivian­ te, uma incompatibilidade entre crescer e ser
do-se de sua substância concreta. Diminui­ semeado. Provavelmente, o subentendido é
ções necessárias, qua são, para o adulto, as puramente verbal. Contudo, entre a fórmula
fórmulas e as noções nas quais se condensa e o pensamento, a influência é recíproca. Se
o essencial das significações para as quais este inspira a primeira, ele recebe dela, por
tende o curso presente de suas represen­ sua vez, sua delimitação. Tendo “crescer” se
tações ou de seu raciocínio. Mas a criança, tornado sinônimo de “crescer sozinho”, o
em vez de uma redução, sabe operar ape­ corte que a linguagem opera provoca uma
nas uma seleção entre os traços anterior­ oposição viciosa, contra a qual não há cer­
mente expressos. Ela permanece na fase teza de que a criança saiba reagir plenamente.
do refrão. Entre as estrofes de uma canção Teriam a elipse e a ambigüidade que a ela se
ou os episódios de um relato, a ligação é o seguiu podido produzir-se, se, por outro lado,
refrão, lembrança concreta de certas par­ as noções correspondentes tivessem estado
ticularidades significativas, modo ainda perfeitamente nítidas em seu espírito? A
primitivo de reminiscência. Mas na canção existência de um confusionismo inicial é
ou no relato, o refrão tornou-se um produto ainda mais incontestável quando a elipse é
que se aperfeiçoou por si mesmo. Os re- sintática.
frões da criança têm algo de fortuito, de
informe e de provisório. P...ot 7; “Por que os barcos não afundam
O resultado da elipse não é apenas o de no Sena ? - Porque eles não iriam para o
obscurecer o sentido do pensamento, ele fu n d o "
pode também alterá-lo ou dar-lhe uma apa­ A seqüência mostra que, para essa crian­
rência contraditória. ça, os barcos não podem afundar porque
20 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

ficariam sobre as pedras que estão no fundo em sucessão correta, as fases em potencial de
do rio. um processo, interessa a uma operação
mental, a elipse de elementos é freqüente.
Como explicar essa resposta, que parece
opor ir para o fundo a afundar, como se os 2S) O Pensamento em Ilhotas da Criança
barcos que devem ir para o fundo não pudes­
sem afundar ? Na verdade, a criança parece O pensamento elíptico da criança,
ter condensado, na mesma proposição, a ne­ mesmo quando transpõe um certo intervalo
gação e o condicional que estavam em seu de circunstâncias ou de noções, atesta uma
espírito, o que os faz ficar sem fundamento. O capacidade ainda limitada de agrupamento.
texto explícito poderia ser assim restabeleci­ Essa frágil capacidade leva-о, necessa­
do: “Se eles afundassem, eles iriam para o riamente, a se fragmentar. Mas, já bem antes
fundo, ora eles não vão para o fundo.” A de ser uma questão de condutas verbais, a
elipse seria, aqui, muito mais síncope. Ir pa­ atividade prática da criança pequena mostrava
ra o fundo não se opõe, na verdade, a afun­ uma semelhante tendência a se fragmentar.
dar; é o simples sinônimo dele, no qual Ora é sua instabilidade que é a causa disso e
coincidem o fato negativo e o hipotético ora a dificuldade de integrar, num mesmo
condicional. conjunto, efeitos que se realizam espon­
Eis um exemplo bem semelhante ao taneamente e por si próprios.
anterior, mas no qual a contradição é me­
nor e o sentido muito mais fácil para CONDUTAS DISTINTAS
restabelecer. E ATIVIDADE DISSOCIADA

I...as 6;l/2 “Os barcos vão ao fundo da Os progressos da inteligência prática


água ? - Só os submarinos. - Por que eles não dependem da unidade dinâmica que ela é
vão para o fundo ? - Porque eles afundariam . capaz de realizar entre o ato oportuno e a
- Por que eles não afundam ? - Porque eles não situação presente. As soluções que ela en­
vão para b a ixo” contra dependem do poder que tem de cons­
telar, no campo perceptivo, as condições que
Aqui, o fato e a hipótese são claramente devem unir o animal a seu objetivo. Ela faz
opostos. Não há mais interpretação da disso uma estrutura que se impõe a seus ges­
negação e do condicional. tos, como um conjunto no qual todos os de­
O pensamento é intenção ou atitude, talhes se supõem entre si simultaneamente.
antes de ser discurso. Duas atitudes rela­ Mas a estrutura não está inteira nessa impro­
cionadas à mesma situação podem interferir visação como que instantânea. Ela é precedida
ou se sobrepor, em vez de se articular no por impressões que terminam por se inte­
tempo, segundo suas relações de sucessão grarem nela e continua através de atos nos
ou de subordinação lógicas. Esse fato é bem quais ela se realiza, modificando-se muito ou
freqüente na criança, que deve aprender a pouco. Nessa sucessão de momentos e de
regular a elocução de suas idéias, assim como, gestos, há os que não são próprios à real si­
anteriormente, deve ter aprendido a regular a tuação, mas que se confundem com automa­
dos fonemas na palavra ou de seus gestos tismos ou rotinas, cuja redução mútua é in­
num ato complexo. De fato, no início, dispensável para uma adaptação coerente às
acontece-lhes de se bloquearem ou de se dificuldades que se deve reduzir.
alterarem mutuamente, ocorrendo um antes Da ação em andamento podem mesmo
do outro. Quando, em vez de um au­ surgir reações mais ou menos em conflito
tomatismo, essa incapacidade para dispor, com os fins que ela persegue. Pode se
AS INSUFICIENCIAS 21

introduzir, aí, como que um elo estranho que, irredutíveis e entre as quais a escolha não
se não for reduzido, será causa de descon- chega a ser feita.
tinuidade e de desordem na conduta. Essa É fácil observar fatos semelhantes nas
sucessão de elos descontínuos pode assumir crianças pequenas. Muitas de suas cóleras
duas formas: seja a de um conflito entre os não têm outro motivo. Elas ficam entre as
objetivos respectivos deles, seja a de meios duas condutas, duas atitudes que se con­
inicialmente díspares, e que devem chegar a trariam e que apenas conseguem fazer com
se fundir, por eliminação dos termos incom­ que aumente a temperatura afetiva, melhor
patíveis, com a adaptação e a integração mú­ dizendo, esse hipertônus feito de desejos e de
tuas deles. gestos não liberados, cuja excitação colérica
O primeiro caso ocasiona efeitos com é a única saída disponível em determinado
freqüência surpreendentes. Eis um exemplo: momento. Da mesma forma, podem ser ex­
um cachorro vivo e brincalhão precipita-se plicadas as alternativas entre um brusco
no jardim assim que lhe abrem a porta. Ela é impedimento de atividade e a impulsividade
imediatamente fechada. Vendo-se sozinho, caprichosa, que se observam em certas crian­
ele entra por uma outra porta como um raio ças e que lembram os estados de dissociação
e vai encontrar seu dono. Abrem novamente psíquica, cujo modelo é a esquizofrenia ou
a porta; ele se precipita para fora, para retor­ demência precoce. Unidades descontínuas e
nar logo, como na primeira vez. A mesma falta de atividade redutora, tal é a razão dessas
manobra repete-se seis ou sete vezes e pára condutas, em que o conflito é ocasionado pe­
somente no momento em que a excitação do lo encontro das circunstâncias, das quais elas
animal atinge uma espécie de paroxismo. A são a conseqüência ou a fonte, quer natural,
visão da porta aberta não cessara de ativar, quer habitual.
nele, o impulso de sair, ainda que, de prova Então, mesmo que não houvesse di­
em prova, ele manifestasse um tipo de vergência entre os objetivos da conduta sus­
hesitação trêmula. Mas, incapaz de pará-lo, citada pela situação e os desejos do sujeito,
criava apenas um conflito, que levava gra­ uma certa incoerência pode resultar de objetos
dualmente a exasperação a seu paroxismo. particulares, que correm o risco de fazer a
Muito nitidamente, afrontavam-se duas atividade total se desviar, de provocar como
condutas: uma, que era a de correr no jardim, que digressões, ziguezagues, passos em falso,
e outra, de brincar com seu dono. Tendo as com necessidade de retomadas posteriores.
duas situações ficado disjuntas, em vez de Aqui, ainda, a redução dos desvios está longe
coincidirem, ele não conseguira nem reduzi- de ser automática, como o queria a lei das
las entre si, nem suprimir uma em proveito da tentativas e dos erros. Ela é acompanhada por
outra. uma certa elevação do humor e do esforço.
Esse conflito pode existir mesmo quando Exige uma operação especial de reorga­
atos não prosseguem e permanecem na nização no campo das condutas. Supõe um
simples fase das atitudes. Uma cadelinha que controle, uma coerção e uma adaptação de
não queria deixar sua casa e à qual apre­ um nível superior.
sentamos, a distância, uma guloseima, põe- Esse reajustamento das condutas entre si
se a latir, a mostrar os dentes, depois, de só é possível se o início de realização delas
repente, lança-se como que para morder e é não ultrapassa seu mínimo. No plano motor,
apenas quando se aproxima de seu dono que é preciso a substituição do movimento efetivo
uma terceira conduta substitui as duas pelas simples atitudes. Um nível mais alto, é
primeiras: ela rola a seus pés para ser aca­ a substituição das atitudes pela expressão
riciada. Aqui, ainda, há excitação causada verbal. Janet insistiu muito sobre a economia
por duas condutas momentaneamente que a conduta na linguagem representa em
22 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

relação com as que se afrontam material­ seja como conseqüência da obtusão inte­
mente com a realidade exterior. Contar a ação lectual.
é um início de deliberação, onde as oposi- Duas significações podem excluir-se,
ções podem desenhar-se sem provocar os com a primeira evocada impedindo a outra
mesmos dispêndios afetivos e nem motores, de ser reconhecida:
principalmente. Essa economia pode, aliás,
utilizar a mentira; dizer o que não é, é o iní­ P...ly 6; “As maçãs crescem nas árvores?
cio da hipótese, do pensamento condicio­ - Crescem. - As árvores crescem ? - Eu nunca
nal. Na conduta da linguagem pode intro­ vi crescer. - Mas elas crescem ? - Não. - O que
duzir-se a mesma fragmentação que nas é que cresce ? - Maçãs, frutas, verdura. - O
outras, a mesma descontinuidade de elos que você quer dizer quando você diz que as
correspondentes a situações ou a auto­ maçãs, a verdura crescem ?... O que mais
matismos intelectuais diversos, as mesmas cresce com a verdura ? ... As criancinhas
ilhotas entre as quais será preciso construir crescem ?- Não. -Eos cabelos ? - Não; crescem,
pontes. sim. - Crescem ou não ? - Crescem. - O que
quer dizer que os cabelos crescem ? - Não sei.
DISSOCIAÇÕES DE ORIGEM VERBAL - Como a gente vê que os cabelos crescem ? -
Não sei.”
A desunião do pensamento pode resultar
de uma única e mesma palavra, na qual Basta, aqui, que mude o objeto para que
coabitam significações diversas que se ig­ o ato ou a propriedade que lhe são, entretanto,
noram entre si, que se excluem ou que se comuns com o precedente, mas sob aspectos
assimilam incompletamente. e em condições diferentes, não sejam mais
A substituição mútua entre duas sig­ reconhecidos. São as dessemelhanças que
nificações diferentes de uma mesma pala­ prevalecem. O primeiro caso imaginado en­
vra provoca dm trocadilho que pode ser cobre o outro, porque a criança não sabe
inconsciente. Desse fato, Goldstein dá o afastar-se do detalhe concreto para considerar
exemplo da palavra alemã Anhãnger que o processo em si mesmo. Assim, seu pen­
significa, ao mesmo tempo, corrente com samento é feito de fragmentos que têm difi­
medalhão, vagão de um trem, partidário de culdade para se reunir e que constituem
um chefe. Normalmente, apenas o sentido obstáculo um ao outro. O exemplo que se
requerido pela situação vem ao espírito. Ele segue mostra também a preponderância de
suprime, habitualmente, até a noção da palvra cada objeto e de suas particularidades concre­
e, conseqüentemente, toda concorrência ou tas sobre o fato evocado pela palavra, mas
contaminação possível entre suas diversas sem criar incompatibilidade. As imagens, em
significações. Mas, se alguma circunstância vez de se encobrirem, altemam-se entre si.
põe em evidência o vocábulo, ela corre o
risco de pôr em conflito os sentidos ou de R...er 7; “Tem alguma outra coisa que
fazê-los alterar-se mutuamente; é o caso das cresce além das árvores, das flores, dos
palavras pouco familiares a quem as encontra: cabelos ? O que quer dizer crescer ? - Capim.
assim, a criança pode enunciar contra-sensos - O que quer dizer crescer ? - Que a gente
que nos parecem extravagantes. É também o colocou na terra. - O que quer dizer crescer?
resultado do desequilíbrio que pode dar, à - Que a gente coloca sem ente na terra. - Mas
estrutura verbal da palavra, a preponderância os cabelos crescem ? - Crescem. - O que quer
sobre a idéia correspondente, seja pelo fato dizer isso ? - Isso cresce também. - O que que
de um eretismo sensorimotor que é, mais isso quer dizer também ? - Q uer dizer os
freqüentem ente, de origem tóxica ou emotiva, cabelos. - Quando a gente diz “os cabelos
AS INSUFICIÊNCIAS 23

crescem”, o quer dizer isso ? - Quer dizer que como a palavra conveniente ao aparecimento,
crescem a í- Quando os cabelos já cresceram, ao desenvolvimento de todas as coisas. Mas
o que eles viram ? - Eles fica m grandes. - O ela se adapta bem mal à imagem da chuva.
que quer dizer crescer ? - Quer dizer cabelos Sob essa influência nova, ela se completa
grandes. - Para as árvores, o que quer dizer p d a do vento, que lhe faz assumir uma outra
crescer ? - Q uer dizer raízes." significação. A dualidade de sentido é, aqui,
radicalmente substitutiva. Ela foi precedida
Aproximadamente todas as respostas por uma elongação do primeiro sentido, que
recaem sobre um substantivo ou, pelo me­ provocou uma ruptura consecutiva. Nisso,
nos, sobre uma circunstância concreta que é esse caso difere daqueles em que o sentido da
particular a cada objeto e tenderia a tomar palavra não parecia suscetível de nenhuma
seu caso diferente dos outros. Não há ne­ extensão. Entretanto, ele supõe a mesma
nhuma tendência a unificá-los sob o vocábulo fragmentação no curso do pensamento. A
que se estende, entretanto, a todos. O pen­ ruptura que se segue à elongação mostra a
samento permanece fragmentado, sem traço que ponto é difícil, à palavra, atingir o alcance
de assimilação mútua. - Mas a alternância necessário para sustentar um sentido, por
pode ser a da própria significação, em vez de menos extensivo que seja, e quão tênue era a
referir-se somente a suas aplicações. significação que parecia unir, ao crescimento
das árvores, o das nuvens.
F...ge 7; “O que é a terra ? - Épreto. - O
que é ? - É com húm us. - Faz tempo que é DISSOCIAÇÕES DEVIDAS AO OBJETO
assim ? - Faz, sim, senhor. - Como a terra foi
feita ? - Porque tem o céu. - Foi o céu que fez A dualidade pode estar também não na
a terra ? - Porque tem o vento. - O vento fez o palavra, mas no próprio objeto, cujos em­
céu e a terra ? -A terra é feita com o húm us.” pregos, embora conhecidos, a criança não
chega a reunir, porque as imagens de um
Sucessivamente, é a significação de subs­ encobrem as do outro.
tância cultivável e de planeta que é dada à
palavra terra, sem que a criança pareça G...el 7; “São homens que fazem o pão ?
suspeitar da substituição. - A passagem de um - São, com farinha. - E a farinha, nós a acha­
sentido ao outro pode tomar-se um verdadeiro mos assim ?-A gentefaz. - Com o quê, como?
trocadilho, do qual a criança não parece ter ... Você sabe o que é o trigo ? - Sei. - O que é
consciência. ? - É para dar para as galinhas comerem."

K...vé 6; acabou de falar das árvores que Ignora essa criança que a farinha é ex­
crescem; passamos à chuva: “Como é que traída do trigo ? Eis uma outra na qual, sem
tem água no céu ? - Porque ela cresce no céu. essa ignorância, o mesmo efeito se produz.
- Como a água pode crescer no céu ?- Não sei.
- Com o que d a pode crescer ?-Éo vento que G...ry 6; 1/2 “O que é trigo ? - É capim
corre atrás dela. - Onde ela está quando o grande. - Para que serve o trigo ? - Para dar
vento corre atrás dela 1-Lá em cim a no céu.” aos bichos. - O que mais a gente faz com o
trigo ? - Não sei. - O pão, o que que é ? - É
Parece que “crescer e correr atrás5” algum a coisa que é doce. - Doce como o quê ?
mudam conforme o sentido. Inicialmente, -Como mossa.-Doce como o quê?... Porque
parece ser estendida, de árvores à chuva, é doce ? - Porque não é d u m .... De onde vem
a farinha ? - Dos moleiros. - Como os moleiros
(5) N.T. - Vide N.T. (2) página 12 têm farinha? - No m oinho. - O que é um
24 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

moinho? - Ê u m a m áquina grande. - Para que - Tem fa rin h a dentro delas. - Como a gente
serve essa máquina grande? - Épara am assar arruma as sementes de trigo ? - Tem que com ­
o trigo. - E o que acontece quando a gente prar. - Como o vendedor tem sementes de
esmaga o trigo? - F azfarinha. - Então, com o trigo ?-No celeiro. - Mas as sementes do celei­
que se faz a farinha? - Com trigo" (a criança ro, como elas chegam lá ?... Como é que têm
sorri e cora). sementes lá ? - Porque elas gelam. - As se­
mentes sempre ficaram no celeiro ? - Não. -
Provavelmente, a primeira definição dada Antes, onde elas estavam ? - Na venda. - Co­
do trigo como se fosse capim, associando-o à mo o vendedor as tinha ? - Ele fo i buscar na
imagem dos animais, constituiu, momenta­ fábrica. - Com o que a gente faz a farinha ? -
neamente, um obstáculo à sua evocação no A gente esmaga sementes de trigo. - E as se­
sistema pão-massa-farinha, e ele só pôde ser mentes de trigo, de onde vêm ? - Depois do p é
a ele levado pelo subterfúgio do moleiro e do do trigo. - Se a gente pusesse as sementes de
moinho. Assim, as representações da criança trigo na terra, o que aconteceria ?- Elas cresce­
constituem, entre si, circuitos fechados dos riam . - Como o vendedor pode ter sementes ?
quais é possível que um fragmento, ante­ - Ele tem que ir buscar na fábrica. - Se eu qui­
riormente subtraído de um por um grupo sesse fazer crescer trigo, o que eu precisaria
corrente, possa aí ser reconduzido graças à fazer ? - Fazer sulcos. - E depois ? - Semear. -
implicação recíproca de suas imagens. A O quê ? - Sementes. - Como eu arranjaria
criança ainda não é capaz de evocar, à sua sementes ? - As sem entinhas que ela deixaria
vontade, seus conhecimentos latentes, pois cair na terra. - De onde viriam essas sementes?
eles ainda são prisioneiros de conjuntos - Da venda. - Se eu pegasse sementes da espi­
perceptivos ou intelectuais que podem igno­ ga, eu não poderia fazê-las crescer ?- Poderia
rar-se ou opor-se entre si. É apenas através
deles que é possível atingir seu saber, e a Parece evidente que a criança conhece a
própria criança só pode conhecê-lo através identidade do grão de trigo de onde se extrai
do inventário progressivo deles. Sua aderência a farinha e do grão de trigo de onde sai a
a um conjunto pode tomá-la provisoriamente espiga. A propósito do segundo, ela declara,
insensível aos outros. Suas ilhotas de conhe­ espontaneamente, que há farinha dentro e,
cimento, com muita freqüênciá, constituem por duas vezes, ela reconhece que o grão
um obstáculo uma à outra. colhido da espiga daria uma espiga, se fose
semeado. Contudo, ela formou dois circui­
H...vin 6; 1/2 “Como as flores crescem ? tos: as sementes das flores (e, por analogia, as
- Na terra. - O que a gente faz para elas do trigo), o vendedor, a fábrica, de um lado,
crescerem ? - A gente semeia. - O quê ? - o trigo e a farinha, do outro; com o primeiro
Sementes. - Onde a gente arruma sementes ? circuito constituído impedindo o segundo de
- A gente compra. - Onde ? - Na venda. - Onde se completar pela eliminação do termo
o vendedor as arruma ? - Ele vai buscar em heterogêneo a fábrica que foi, inicialmente,
algum lugar. - Onde ? - Na fábrica. - Como ligado à palavra semente. Parece, assim, que
têm sementes na fábrica ? - Eles fabricam . - a semente de trigo cinde-se em semente e em
Você sabe como ? - Não. - E quando as flores substância alimentar. Essa distinção existe,
estão murchas, o que elas viram ? - Sementes. evidentemente, também para o adulto; mas
- Elas viram sementes ?-A gente asjoga. - E o ela nada tem de absoluto; e as duas funções
trigo, o que é ? - ■£fa rin h a . - Como a gente não implicam duas origens, das quais haja
arruma trigo ? - Q uando a gente semeia. - O virtualmente dois objetos diferentes. A criança,
que a gente semeia para ter trigo ? - Sementes. pelo contrário, sabe pensá-las apenas indivi­
- E as sementes de trigo, como a gente arruma ? dualmente e cada uma como um ser global.
AS INSUFICIÊNCIAS 25

Dois aspectos de uma mesma coisa, em vez início, encontra-se realmente diante de frag­
de se integrarem numa imagem ou num con­ mentos de experiência que não é capaz nem
ceito da coisa que convém a ambos, tendem de reunir, nem de conciliar, nem de distinguir
a se realizar em dois seres mais ou menos entre si.
dissociados um do outro. A realidade sofre,
mais ou menos profundamente, a mesma O...bal 7; “Para que servem as galinhas ?
fragmentação que o pensamento da criança. - Para fa ze r pintinhos. - Como a gente arranja
Também pode acontecer que a dis­ pintinhos ? - Nos ovos. - E o s ovos ? - São as
sociação introduza-se, de modo secundário, galinhas que chocam. - De onde vêm os
num circuito inicialmente correto. ovos? - Q uando comem vermes. - Quem
come os vermes ? - Grãos. - Quem come os
M...on 7; “De onde vêm os passarinhos ? grãos ?- As galinhas. - E o ovo, de onde vem ?
- Das mães. - E os franguinhos ? - Das mães. ... Você não sabe que as galinhas põem ovo?
- Como a gente pode fazer um franguinho - As galinhas os fa zem . - É preciso ter ovos
nascer ? - Não sei. - Você come ovos ? - Como, parater galinhas?... Como nascem as galinhas?
m am ãe encontrou, um dia, um franguinho. ... De onde vêm as galinhas ? - Dos lugares
Ele estava cozido. - De onde vêm os pinti- quentes. - Como você faria para tê-las aqui 1...
nhos ?- Dos ovos. - E os ovos ? - Das galinhas. O que é a galinha quando ela é pequena ?...
- É preciso ter ovos para ter galinhas ? - É. - É O que é um pintinho ? - Galinhas. - De onde
preciso ter galinhas para ter ovos ? - Ê. - O que vêm os pintinhos ?- De dentro do ovo. - Então,
vem primeiro, galinhas ou ovos ? - Ovos. - De de onde vêm as galinhas? - Dos lugares. - Não,
onde vêm esses ovos ? - Da venda. - Como o o que são pintinhos ? - Galinhas. - Então, de
vendedor os arruma ? - Não s e i” onde vêm as galinhas 1-No ovo. - É preciso ter
ovos para ter galinhas ? - É. - E os ovos, de
Graças, talvez, à lembrança do pinti- onde vêm ? - As galinhas gordas fa z e m ”
nho cozido no ovo, a relação dos filhotes à
sua mãe inserira-se perfeitamente no ciclo Assim, a criança conhecia bem a filiação
ovo-pintinho-galinha-ovo. E é apenas diante galinha-pintinho por intermédio do ovo. Mas,
desta questão insolúvel: “quem é anterior, a no que se refere à origem das próprias
galinha ou o ovo?”, que a criança rompeu o galinhas, ela se evade do plano fisiológico
circuito para nele introduzir, não como fa­ para o plano geográfico, embora saiba levar
riam alguns, a providência, mas a relação a galinha ao pintinho e o pintinho ao ovo.
ovo-vendedor, que pertence também à sua Entretanto, a passagem direta do ovo à galinha
experiência quotidiana. Assim, ela muda o permanece, inicialmente, impermeável e,
plano da natureza pelo dos costumes e quando a criança é obrigada, pela fusão das
confunde duas origens heterogêneas. É a fórmulas várias vezes repetidas muito mais
mesma incapacidade para confrontar, entre si, do que por uma representação imediata, a
suas imagens das coisas, que as faz quer reconhecer a filiação ovo-galinha, ela logo
ignorar-se e repelir-se entre si, quer alternar, lhe acrescenta o corretivo “galinhas gordas”,
como se fossem de mesmo tipo. como sendo aquelas cujos ovos dão galinhas.
É uma espécie de desproporção entre o
EXPERIÊNCIAS FRAGMENTÁRIAS E volume da galinha adulta e do ovo que se
PENSAMENTO DISSOCIADO opunha à reunião explícita dos mesmos, ain­
da que todos os intermediários fossem co­
O que era, no exemplo precedente, o nhecidos, e que fazia procurar sua origem
resultado de uma verdadeira dificuldade pode não mais no ciclo da geração, mas num lugar.
ser muito mais espontâneo. A criança, de Assim, o sistema das coisas não forma para a
26 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

criança, como para nós, um rigoroso enca- é o xixi ? - É vinho e água que são trans­
deamento. Então, mesmo que ela saiba indicar form ados. - Como é que a água e o vinho se
a sucessão dos termos que o compõem, no transformam? - Eles se transformam com algu­
momento em que dele se apercebe, ela o ma coisa que a gente tem na barriga.”
fragmenta segundo uma delineação que res­ Sob a pressão das perguntas às quais ela
ponde seja às rotinas de sua experiência, seja precisa responder, a criança acaba por fechar
às exigências de suas instuições concretas. o ciclo da bebida à urina. Mas, no início, ela
Ao sabor de suas intuições concretas, do permanecia em dois fragmentos de experiên­
conteúdo limitado das coisas, da impermea- cia que ainda não tivera, espontaneamente, a
bilidade mútua delas, sua representação das idéia de reunir. Para alojar o que ela bebia,
mesmas constrói-se por peças simplesmente imaginava reservatórios de uma capacidade
justapostas e oferece lacunas. suficiente, qualquer que fosse o volume inge­
rido, pois não ousava totalizar os efeitos de
L...ard 7; 1/2 disse que a água cessa de um ato indefinidamente renovado. A repeti­
estar viva quando é bebida: “O que a água ção era para ela, apenas um fato habitual,
que está na nossa barriga vira ?... Ela fica aí cujas conseqüências objetivas e cujo resulta­
sempre ? - Ela entra no estômago e depois na do final ela se dispensava de representar.
nossa barriga. - E depois ? - Ela fic a aí. - Ela Inicialmente incapaz de ultrapassar sua im­
fica sempre aí ? - Fica, sim, senhor. - Então a pressão puramente subjetiva das situações
água que você bebeu ficou sempre na sua ou dos processos e limitando-se a registrá-los
barriga ? - Ficou. - Você bebe água todos os vivendo-os, ela considera, como estranhos
dias ? - Água e vinho. - Toda a água que você entre si, blocos de realidade cuja unidade
bebeu ficou na sua barriga ? - Ficou. - Como parece-nos um dado de certa forma imediato.
é que a sua barriga não está maior ? - Ela não Assim, temos dificuldade para representar os
estã na m inha barriga, depois ela sobe de caminhos por onde seu pensamento deverá,
novo no estômago, tem que nem um a bolsinha um dia, descobrir, seja em conseqüência de
onde elafic a . - E se a bolsa for pequena ? - Ela livres meditações, seja devido à sugestão de
é grande, senhor. - E se for pequena e você outrem, seu agrupamento num único e mes­
beber sempre ? - Tem um a no m eu estômago mo conjunto. São numerosos os objetos de
e um a na m inha barriga. - Se você beber sua experiência que ela deve, assim, recons­
sempre, as duas bolsas não vão ficar cheias truir, após ter conhecido apenas os elementos
no fim ? - Não sei. - E se elas ficassem cheias díspares dos mesmos.
um dia ? - A gente tirava e depois vinham
outras. - Você já fez xixi alguma vez ? - Fiz. - F...er 8; “De onde vem a água do Sena ?
De onde ele vem ? - Não sei. - Você não sabe ... Sempre teve água no Sena ? - Não. - Antes
o que é ? - Não. - Parece com o quê ? - Com um de ter água no Sena, como ele era ? ... Faz
rabo de coelho (ela ri). - O que é o xixi ? Com muito tempo que tem água no Sena ? - Faz. -
o que parece ? - Com rum. - O licor é de água ? O que tinha primeiro, o Sena ou a cidade de
- Não. - De onde ela pode vir? - Ela desce das Boulogne ?... De onde veio a água do Sena ?
bolsas. - Que bolsas ? - As bolsas que a gente - Veio do parque da prefeitura. - Toda a água
tem. - Mas que bolsas a gente tem ? - Duas do Sena veio de lá ? De onde vem a água do
bolsas para a com ida e duas para a bebida. Sena ?- Nos riachos, nas fontes. - O que é uma
- De que bolsa vem o xixi ? - Vem da bolsa da fonte ? Como é ? - É um buraco grande. -
bebida. - Na bolsa da bebida, o que é que Todos os buracos grandes são fontes ? - Não.
tem?- Tem vinho e água; quando a gente está - Como são os buracos grandes das fontes ? -
doente, a gente tira; quando a gente não estã É quadrado. - Todos os buracos grandes
doente ese elas estão cheias, ela desce.-O que quadrados são fontes ? - Eles são ovais. - As
AS INSUFICIENCIAS 27

fontes são buracos que têm todas as formas? F...gli5;l/2“O so lé como a gente ? - Não,
- São. - Tem água nesses buracos ? - Tem. - De ele é redondo. - O sol se mexe ? - Não. - Ele fica
onde ela vem ?- N ã o sei.- De onde ela poderia sempre no mesmo lugar ?- Não. - Como é que
vir ?... O que é a chuva ? -É á g u a . - Água. como ele pode mudar de lugar ? - Ele anda. - Como
no Sena ? - É. - Como é a água da chuva ? - ele faz para andar ? - É o homem que está
B ra n ca . - De onde vem a água da chuva ? - D o dentro dele que fa z ele andar. - O sol é
céu . - Sempre teve água no céu ? - É. - E se grande? - Não. - Grande como o quê ? - Como
chovesse tão forte que toda a água do céu um mio. - Mostre-me de que tamanho ele é (a
caísse ? - N ã o ch overia m ais. - Nunca mais ? - criança descreve um círculo de uns 35cm de
N ão. - E isso vai acontecer ? - N ão. - Toda vez diâmetro). - Não é grande. De que tamanho é
que você abre a torneira, a água corre ? - o homem que está dentro dele ? - Ele estã
Corre. - Se você deixasse a torneira aberta dia sentado num a cadeira. - Mas isso ocupa
e noite, não teria mais água ? - Teria, sim , lugar. Como uma cadeira e um homem podem
senhor. - De onde vem essa água ? - Nos entrar dentro ? - Д um bebezinho poderia
ca n o s. - A água dos canos, de onde vem ?... entrar nele. - O sol é oco ? - Não. - Como a
Pense um pouco. - D a fo n te . - E a água da gente pode entrar dentro ? - Não sei. Tem um a
fonte, de onde vem ? - Q u a n d o ch ove.” lu z dentro dele. Uma lu z assim (ela mostra
uma grande lâmpada fosca de um projetor
A criança não soube evocar espontanea­ que tem 20cm de diâmetro).”
mente nenhum dos fragmentos que formam
o ciclo da água entre o Sena e a chuva. E, a Não só essa criança responde, através de
propósito de cada um, é inicialmente a suas forma, a uma pergunta sobre a dimensão,
ligações mais concretas que ela se prendeu, a mas também uma descontinuidade radical
ponto que a aproximação de Boulogne e do entre os momentos sucessivos de sua repre­
Sena fê-la indicar, inicialmente, o parque da sentação dá-lhe, a todo instante, a aparência
prefeitura como a origem da água que corre de se contradizer. Cada uma de suas réplicas
no Sena. Foi preciso a impressão reiterada é independente das precedentes e está em
das águas que não secam antes que ela sou­ relação exclusiva com o caráter da coisa que
besse dar-lhes enfim, com o origem comum, a a pergunta mais recente acaba de evocar
chuva, a qual ela já havia reconhecido que nela. Ela ainda não é capaz da menor raciona­
está sempre prestes a recomeçar. lização entre os diferentes aspectos do objeto
sobre os quais a conversa leva-a a se explicar.
INAPTIDÃO INTEGRATIVA E Há, da mesma maneira, no exemplo que
CONTRADIÇÕES se segue, simples justaposição de temas, não
tentando a criança estabelecer ligação entre
Esses fragmentos de conhecimento e de eles.
experiência, inicialmente desunidos para a
criança, embora pareçam ao adulto, estar em B...ert 6; “Os barcos vão ao fundo da
íntima continuidade e solidariedade dentro água ? - Vão, épreciso amarrá-los. - Por que
da realidade, são, entretanto, formações já a gente amarra os barcos ?- Para que eles não
relativamente avançadas. Antes desses em­ entrem na água. - A gente os desamarra às
briões que tendem a se unir e a se fundir, a vezes ? - Desamarra, para subir neles. - Por
dispersão das idéias e das representações é que eles não vão para o fundo da água com
ainda muito maior. Assim, nesta criança de pessoas dentro, já que foram desamarrados ?
5;l/2, a fragmentação chega apenas à contra­ - Porque eles estão em equilíbrio. - Como eles
dições, ficando bem longe de tender a uma estão em equilíbrio com pessoas neles ? -
integração progressiva. Porque as pessoas estão cada um a num a
28 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

ponta, assim (gesto). - Se os barcos não esti­ As representações dessa criança unem
vessem amarrados ou em equilíbrio, eles iriam bem certas imagens entre si, sem, por outro
ao fundo da água ?- Iriam . - Como eles fariam ? lado, traduzir-lhes muito rigorosamente as
- Eles virariam assim(gesío). Eles tom bariam ! relações: o céu, as nuvens, a água que cai, por
um lado, depois a neve, que derrete pelo
Sobre o mesmo assunto, uma criança calor, e que se descola por causa do frio.
mais nova dá respostas nitidamente incoe­ Parece que a neve foi introduzida para expli­
rentes, nas quais a justaposição faz-se entre car a existência das nuvens. Entretanto, trata-
termos sem relação recíproca; há simples se apenas da neve que se descola e da chuva
vínculo de semelhança, quase formal, por ser que cai, como se a ligação do ato ao objeto
esta tão longínqua, de maneira que parece fosse indecomponível, e as duas substâncias
um verdadeiro discurso sem nexo. simplesmente justapostas. Assim fragmen­
tado, o pensamento da criança tem algo de
C...tin: “Os barcos não vão ao fundo da estático. A água cai, ela está, portanto, no
água ? - Não, porque têm um a bóia vermelha. chão, mas sempre esteve nas nuvens. Entre
Q uando ela não é vermelha, ela afunda, esses blocos, entre esses aspectos de sua
porque têm vezes que tem água dem ais no representação, a criança não sabe imaginar
mar.” transição, nem, em conseqüência, considerá-
los como a simples transformação ou trans­
“Flutuar” parece ter se separado do figuração de algo que lhes seria comum, que
“barco” para não evocar mais do que bóia, permaneceria constante, que, fornecendo um
com sua associação descritiva “vermelha”, apoio à ação, liberá-la-ia dos objetos parti­
que concentra, repentinamente, sobre ela, culares e, tendo-a assim liberado, permitiria
toda a atenção. “Ela afunda” acarreta, em conceber-lhe o ciclo inteiro. Os estados su­
seguida, a idéia de “água demais”. cessivos de um mesmo objeto entram em sua
Essa fragmentação do pensamento pesa representação sem que ela saiba neles colocar
sobre as realizações mentais da criança. Ela ordem.
não consegue pôr em ordem os aspectos ou
os momentos diferentes de suas experiências Ela acabou de falar das flores e dos
relativas a um mesmo objeto. repolhos; “E as árvores ? - Elas crescem. -
Como elas são ? - Grandes como o céu. - Mas
H.. .art 5; “O que é a chuva ?- Éãgua. - De antes de serem grandes, como elas são ? -
onde ela vem ? - São as nuvens que fa zem ela Pequenininhas. - Como ? - Assim (ela mostra
cair. - Como tem água nas nuvens ? - É a neve a falangeta de seu índex). - As árvores bem
que derrete. - Como a neve derrete ?- Êporque pequenininhas, como aparecem ? - Elas eram
a neve sente calor. - Como a neve derretida grandes antes. - Têm árvores grandes que
fica nas nuvens ? - Éporque a água cai. - A ficam pequenininhas ? - Têm. - Como elas
água sem pre esteve nas nuvens ? - Não. - fazem ? - Elas crescem. - Sim, mas como as
O nde ela estava antes ?-No chão. - Como no árvores grandes ficam pequenininhas ? - Na
chão ? - Porque ela caiu. - Como ela caiu ?-É terra. - Onde estão as árvores grandes ? - Na
porque a neve se descolou. - Como ela foi até venda. - Você viu árvores grandes na venda?
as nuvens ? - Ela sem preficou. - De onde vem - Não. - Onde você viu árvores grandes ? - Na
a neve ? - Ela vem de lá de cima. - Ela vem de terra. - Inteirinhas na terra ? - Não. - O que é
lá de cima como a chuva ? - É. - O nde está a que tem na terra ? - As raízes. - O que são as
neve lá em cima ?- Êpbrqueela está descolada. raízes ? - Árvores. - O que mais tem nas
- Como ela está descolada ? - Éporque lã em árvores? - A resina. - O que mais ? Se tivesse
cima fa z frio dem ais.” só as raízes, a gente veria as árvores ? - Não. -
AS INSUFICIENCIAS 29

Então, o que a gente vê olhando uma árvore ? que prisioneira de representações, de certa
- Folhas. - E o que mais ? - Cerejas. - E o que forma estanques, que são formuladas quer
mais ? - Maçãs. - As árvores sempre têm como uma alternativa - tornar-se grande, tor­
folhas, cerejas ou maçãs ? - Não. - Quando nar-se pequeno -, quer como um objeto cujas
elas não têm mais isso, o que a gente vê ? - partes são, alternadamente, dadas pelo todo
Elas fica m murchas. - Quando elas ficam e o todo pelas partes. A sucessão entre os dois
murchas, o que sobra ? - As árvores. - O que faz-se num sentido qualquer. Essa desordem
a gente vê quando a gente não vê mais tudo evidente tem, como condição primordial, a
isso ? - Galhos.” incapacidade em que se encontra a criança
É visível nesse exemplo, que as respos­ para nada imaginar, a não ser esporadica­
tas da criança ajustam-se, com freqüência, mente, ou seja, por fragmentos consecutivos,
bem mal às perguntas, e, algumas vezes, e sem que se opere, entre eles, as reduções e
parecem-lhes contrárias, porque ela está como as integrações indispensáveis.
Capítulo Ш

AS ESTRUTURAS
ELEMENTARES
“Os P ares”

O pensamento da criança, mesmo em próprios? Ou permanecem eles, para o adulto,


seus primórdios, está longe de ser totalmente procedimentos utilizáveis, mas habitualmen­
inorganizado. Não se trata apenas do conteú­ te imersos em estruturas mais complexas,
do devido às formações de origem empírica mais móveis, mais bem adaptadas aos obje­
ou subjetiva que o contato e o hábito dos tos e aos objetivos efetivos de seu pensamen­
objetos ou dos acontecimentos puderam to, mais próximas de seus instrumentos inte­
justapor entre elas. Deixadas a si próprias, lectuais mais recentes e, conseqüentemente,
elas sempre seriam apenas uma seqüência melhor conhecidas por sua consciência, como
amorfa de momentos psíquicos, substituin­ sendo de elaboração mais refletida e voltadas
do-se uns aos outros ou aglutinando-se, sem para problemas que o adulto deve levantar
um verdadeiro princípio de unidade. Na rea­ sob formas mais ou menos novas? De fato, a
lidade, o pensamento existe apenas pelas tomada de consciência, segundo Claparède,
estruturas que introduz nas coisas. Inicial­ é muito mais tardia quando se trata de fatos
mente, há estruturas muito elementares. O tomados mais habituais, mais automáticos e
que é possível constatar, desde o início, é a partindo de fatos mais elementares. O conhe­
existência de elementos que estão sempre cimento dos mesmos não pode mais ser
aos pares. O elemento de pensamento éessa espontâneo. Para identificá-los, toma-se
estrutura binária, não os elementos que a necessário objetivá-los.
constituem. A dualidade precedeu a unidade. Embora a existência dos pares nos seja
O par é anterior ao elemento isolado. Todo aparente apenas no pensamento da criança,
termo identificável pelo pensamento, pensá- eles ainda podem ser utilizados como tais
vel, exige um termo complementar, com rela­ pelo do adulto, por razões de maior facilida­
ção ao qual ele seja diferenciado e ao qual de, de economia, quer de esforço, quer de
possa ser oposto. O que é verdadeiro sobre a tempo, enquanto forem, pelo menos, de uma
distinção entre as cores, por exemplo, que precisão suficiente e estiverem sob o controle
são inicialmente reconhecidas, segundo dos objetivas, das exigências mais evoluídas
Koffka, apenas por contraste, o é também da inteligência. Assim, a aparente simplicida­
sobre as noções intelectuais. Sem essa rela­ de de nossos procedimentos mentais atuais
ção inicial, que é o par, todo o edificio poste­ seria apenas a integração, mais ou menos
rior das relações seria impossível. rigorosa, de estruturas diversas, cujo uso res
Os grupos binários, ou pares, que pre­ ponderia, a cada vez, às exigências particula­
enchem o pensamento da criança, são-lhe res de nossas intenções mais próximas e que,
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 31

algumas vezes, poderiam ser de um tipo que termos sucedem-se, mas, no conjunto em
remonta aos momentos mais primitivos do que se encontram, não há, freqüentemente,
pensamento. unidade, nem de direção, nem de objeto,
A estrutura binária do pensamento pode nem mesmo de intenção. A atenção que a
ser definida negativamente, como uma forma criança dá às coisas e, com freqüência tam­
simplesmente degradada do pensamento bém, a seus próprios desejos, tem algo de
adulto. Mas, na hipótese de ela não ser um lábil. Suas reações dispersam-se à mercê dos
decalque sumário e truncado daquilo que motivos, quer externos, quer internos, que
nos parece ser o tipo de pensamento con­ podem provocar uma diversão ao interesse
ceituai, é necessário estudá-la através de seus do momento.
lados positivos, considerar suas condições e A descrição de Heilbronner tem, entre­
suas conseqüências. tanto, algo de esquemático demais. Quase
não convém ao maníaco. Menos ainda à crian­
A “FUGA DAS IDÉIAS” ça. É raro que o curso de seus atos não
apresente uma certa continuidade de interes­
Negativamente, o pensamento por pares se durante períodos freqüentemente pro­
poderia ser definido, como o foi por Heil- longados. Se eclipses produzem-se com fre­
bronner, como o que chamamos “fuga das qüência, estes não são incompatíveis com
idéias”. Observada, em particular, nos manía­ reviviscências por vezes tenazes. Essa persis­
cos, cuja excitação intelectual, mas também o tência dos mesmos interesses não exclui,
relaxamento na organização das operações contudo, uma espécie de abolição progressi­
mentais, ela traduz, ele a reduziu ao simples va dos momentos que precedem por aquele
estudo de seu conteúdo e das ligações que que sobrevêm. De maneira que a criança
podem explicar-lhe a seqüência. Seja uma pode dirigir-se, seguidamente, para objetivos
sucessão de elementos ou de momentos А В relacionados com suas necessidades ou suas
CD..., cada um está apenas ligado com aquele disposições, mas as reações que disso resul­
que o precede e com o seguinte, de tal forma tam não têm, necessariamente, ligação mú­
que a aproximação de A com C, D, etc. po­ tua de longo alcance. A criança está um pouco
deria parecer incoerente, assim como a de В no estado em que certos estados hipnagó-
com D, etc. Melhor dizendo, cada termo gicos atingem, em que temos exatamente o
pertenceria a dois pares; mas sem unir, entre sentimento de desenvolver um pensamento
estes, seu segundo termo. Cada termo seria, e mesmo com uma aplicação ampla, mas no
assim, para o pensamento, o ponto de partida qual, de etapa em etapa, é-nos impossível
de uma direção diferente, relacionado apenas evocar a origem, mesmo próxima, de nossas
com ele e que não influenciaria sua ligação reflexões, observações ou achados presen­
com o termo anterior. Cada termo teria como tes. Esse esquecimento progressivo parece
que várias saídas e as saídas utilizadas não se ser exatamente o que se observa na criança.
corresponderiam, ou isso ocorreria apenas Assim, ela é privada de referências que lhe
por acaso. É o que se explicava, na época, permitiriam estabelecer relações além da­
pela teoria, atualmente bem ultrapassada, da quelas de dois momentos imediatamente
Obervorstellung, ou representação dominan­ consecutivos. A seqüência lógica, senão afe­
te, da Leitvorstellung, ou representação dire­ tiva, pode fazer falta.
triz, que a excitação maníaca tornaria inope­ Uma outra conseqüência desse renovar
rante. perpétuo entre os atoe mentais ou as repre­
Em certa medida, o pensamento da crian­ sentações da criança, é sua incapacidade para
ça também se desenvolve fragmentariamen­ realizar como que uma equivalência entre os
te. Pode ser fácil reconhecer porque dois termos da sucessão. Pode muito bem haver aí
32 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

unidade de interesse, filiação de um termo a onde se combinam suas surpresas e suas


outro; mas aquele que é acrescentado é, a rotinas sob forma ainda sincrética, ou seja, na
cada vez, um acontecimento sem medida confusão de todas as relações, e que, por
comum com o conjunto, visto que parece isso mesmo, não podem ser unidos entre si,
aboli-lo, em vez de nele tomar seu lugar para senão quando têm, em comum, algo de sua
constituir uma única e mesma realidade vida sensível, mas também seu primeiro
contínua. Donde metaformismo, ou seja, esforço para pensá-los coloca-a face a
transformação integral de um termo a outro, moléculas intelectuais, onde o adulto pode
sem redução possível de todos a uma espécie ser tentado a ver apenas extravagância ou
de massa comum. Poder-se-ia comparar a incoerência.
transformação dos objete» no espírito da crian­ Não há pensamento pontiforme, mas,
ça à desses desenhos animados, nos quais as desde a origem, dualismo ou desdobramento.
formas transmudam-se entre si de maneira A passagem pode dar-se entre dois termos
extravagante, e também a certos filmes cien­ que, preliminarmente, não foi necessário
tíficos, nos quais as modificações morfológi­ distinguir; é o simples dualismo: dois termos
cas efetuam-se em ritmo acelerado. Entretan­ encontram-se reunidos, um chama o outro. O
to, há a diferença fundamental que, nas me­ motivo que os une pode ser de tipo variável.
tamorfoses mais surpreendentes do desenho, O essencial é que eles estejam unidos e que
nas escamoteações mais rápidas das fases sejam dois. O par é o grau derradeiro, aquém
intermediárias, a passagem é contudo, regu­ do qual não há pensamento formidável. O
lar, é sentida ao mesmo tempo em que é que parece combinar é o que está mais espon­
ocultada, dando a impressão de poder ser taneamente unido num campo qualquer da
reencontrada e seguida: donde, precisamen­ atividade mental: automatismo de sentido, de
te, o prazer sentido. Enquanto que, na crian­ expressão verbal ou de experiência. Trata-se,
ça, os traços não engepdram, ao se deformar, aí, de uma fase anterior ao pensamento lógico
uma outra forma. Há simples substituição de e analítico. É o primeiro movimento do pen­
uma carruagem por uma abóbora. samento ainda irrefletido, mas já em busca de
ligações a serem estabelecidas.
O PENSAMENTO MOLECULAR O desdobramento responde à mesma
necessidade essencial do ato mental. Mas ele
Essa sucessão pura é, entretanto, apenas parece, então, ter que extrair dois termos de
o aspecto negativo da atividade psíquica na um único. A forma mais elementar dessa
criança. Ela só é vista como tal pelo adulto, e bipartição será atautologia. Face a um objeto,
relacionada aos conjuntos lógicos, onde ele identificá-lo consigo mesmo ê o primeiro
acredita ser tão necessário inserir o real, que esforço para o acordo do pensamento consigo
aqueles lhe parecem um dado bruto e mesmo. A tautología é desdobramento porque
primitivo de sua sensibilidade ou de sua ultrapassa, necessariamente, o objeto, para
inteligência. Mas ela não comporta menos relacioná-lo ao objeto-substância ou ao ob­
certas estruturas elem entares, que se jeto-categoría. É uma operação, implici­
distinguem daquelas nas quais acreditamos tamente, de dois tempos: dissociação em
ver a imagem fiel das coisas, simplesmente vista da união, o um não sendo aceito de
porque elas estão ainda no estado de forma bruta, mas reconstruído. A tautología
partículas, e porque nosso pensamento já pode, aliás, ampliar-se em círculos mais vastos,
transpôs, sucessivamente, planos superiores onde se amalgamam elementos de origem
de organização e de integração. Não apenas objetiva. O retomo ao mesmo pode, então,
a criança encontra-se, inicialmente, diante de ter efeitos diferentes: em vez de ser uma
fragmentos descontínuos de experiência, simples identificação de objeto, a relação
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 33

pode ser de simultaneidade local ou temporal, céu), o que é aquilo? - Fumaça. - Aquilo é
de origem, de causalidade. Contudo, a iden­ chama? - É céu. - É chama? - Não. - Então a
tificação chegará, freqüentemente então, a chama e a fumaça não são iguais? - São."
confundir, no mesmo objeto, a origem e o
resultado, o agente e o paciente. Assim, a ne­ A fórmula de identidade, que traduz o
cessidade de unidade no diverso, aplicando- ato de ligação pelo qual o espírito apropria-se
se aos objetos, pode ter como primeiro efeito das coisas, parece realizar, aqui, a íntima
o de supor-lhes relações contraditórias. O assimilação dos termos presentes. E, contu­
equilibrio formal do pensamento consigo do, o mesmo objeto, a fumaça, é sucessiva­
mesmo é uma busca, com freqüência paga, mente assimilado a dois termos diferentes, a
inicialmente, através de uma oposição com a chama e o céu, sem cessar de ser idêntico a
ordem real das coisas. cada um dos dois. Na fase pré-categorial, não
A relação no par pode ser de dife­ há outra alternativa, senão a identificação ou
rentes tipos: analogia, ligação fortuita que a exclusão recíproca. No caso presente, é a
persiste, termos complementares, combi­ identificação que prevalece, mas disso resul­
nação circular etc. ta uma contradição no próprio objeto, que é
Sob a forma identidade exprime-se, fre­ identificado com dois outros objetos que não
qüentemente, o sentimento de uma não-se- têm nenhuma relação mútua. No caso ante­
melhança. O par impõe-se ao espírito da rior, era a afirmação simultânea de identida­
criança, apesar do sentimento de uma dife­ de e de disparidade entre os dois termos
rença que, aliás, pode ser expressa: reunidos que era contraditória.
O par pode, também, consistir em ima­
L. ..cot 6; “O que que é a chuva? - A ch ugens
va cuja combinação tem sua origem na
é vento. - Então a chuva e o vento são iguais? experiência comum ou na experiência pes­
- N ão. - O que é a chuva? - A c h u va é q u a n d o soal da criança.
tem trovão. - O que é o vento? - É ch u va. -
Então é a mesma coisa? - Não, n ã o é igu al. - B...ère 6; “Tem vento no mar? - Não têm
O que é que não é igual? - É o vento. - O que folhas no m ar quando tem vento. - O que o
é o vento? - É c é u ” vento faz no mar? - Elefa z as folhas caírem.
- No mar? - É. - De onde vêm essas folhas? -
A constância com a qual a criança em­ Das árvores. - Têm árvores no mar? - Têm."
prega a simples fórmula de identificação para
unir dois termos que têm, entre si, uma certa Tendo o nome do vento evocado, ime­
relação, contrasta, de maneira surpreenden­ diatamente, a imagem das folhas, que são,
te, com o sentimento de diferença que subsis­ para numerosas crianças, a causa do vento,
te em seu espírito. Uma única vez ela -itiliza a esse par familiar choca-se, inicialmente, com
cópula de simples coincidência “quando”. a imagem do mar e é um sentimento de
Assim, o par indica bem seu duplo caráter de incompatibilidade que é traduzido pela frase,
unidade elementar e de diferenciação. Por na qual folhas e vento parecem excluírem-se
vezes, aliás, a diferenciação pode ser mais ou no mar. Mas, a essa atitude puramente nega­
menos mascarada e como que reduzida pela tiva, o pensamento da criança faz suceder sua
fórmula .L ligação: necessidade de unidade. E é a unidade do par
folha-vento que prevalece, reduzindo a con­
M. ..rés: “O que é a chama? - É a ch a m a . tradição inicialmente reconhecida entre as
- O que que é a chama? - É a fu m a ç a . - É a árvores e o mar. O par familiar “vento-folhas”
mesma coisa, a chama e a fumaça? - É. - Veja acaba, então, por impor o par “folhas-mar”,
(do lado de fora, uma fumaça que sobe ao contrário à experiência e, possivelmente,
34 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

efêmero, fazendo unirem-se dois termos ini­ M...ti 6; “Tém coisas no Sena? - Barcos. -
cialmente opostos. Os barcos andam? - Andam . - O que os faz
Por vezes, a apropriação entre os dois andar? - A água. - E o que faz a água andar? -
termos é gradual, sem par antecedente. Os barcos. - O que é mais forte, a água ou os
barcos? - É a água. - A água se mexe? - Não.
P...et: “O q u e que é a chuva? - É á gu a. - - Então como ela pode fazer os barcos
Como na torneira? - N ão. - Água como? - N ão andarem? - Ela anda. - Ela faz os barcos
sei. - Você já viu chuva? - Vi. - O que acontece andarem? - Faz. - Onde d a vai? - Com os
quando está chovendo? - Tem trovão. - E o barcos."
trovão, o que é? - N ão sei. - Como você sabe
que tem trovão? - P o rqu e ele c a i d a ch u va. - Provavelmente, é o term o indiferenciado
Tem trovão agora? - Não. - Por que? - P orqu e “com” que responde melhor ao pensam ento
n ã o está chovendo." da criança. A simples concom itância não
exige, com o a causalidade, um a escolha, que,
Trata-se de uma associação constante ou sozinhas, poderiam justificar relações exte­
intermitente, contingente ou necessária? Eis riores ao próprio par. Aliás, é esse isolamento
aí um a distinção que ainda não está clara para do par que tom a possível um a escolha para­
a criança. Mas é visível que um a coincidência, doxal como a seguinte:
inicialmente mais ou m enos fortuita, pode
consolidar-se por adequação m útua dos dois L...ard 5; 1/2 “De onde vem essa madeira
termos, até constituir um elem ento de pensa­ (Mostramos um a mesa)? - N ão sei. - A gente
m ento em que os dois termos desem penham , faz uma árvore com madeira ou madeira com
a partir de então, o papel de equivalentes, uma árvore? - N ão sei. - A gente pode fazer
em bora sejam, na verdade, dissociáveis, uma árvore com essa mesa? - P ode. - Como
segundo as circunstâncias. Assim, a criança você faria? - A g e n te a qu ebra. - E depois
pode inverter, alternadam ente, a ordem dos disso? - Eu n ã o lem bro m ais. - A gente pode
dois termos: fazer mesas com árvores? - N ão. - Você tem
certeza que a gente não pode? - Não."
L.. .anc: “Como você sabe que tem vento?
- São a s árvores. - São as árvores que fazem o Assim, obrigada a indicar uma prioridade
vento ou o vento que faz as árvores mexerem? entre os dois termos, a criança inverte a ordem
- É o . ven to q u e f a z a s árvo res m exerem . - natural deles e extrai, da mesa, a madeira das
Como aparece o vento? - N ão sei. - O que que árvores, provavelmente porque esta é, para
é o vento? - São a s árvores. - Se não tivessem ela, algo de mais ¡mediatamente familiar. Em
árvores, não teria vento? - N ão f a r ia vento, sua capacidade para se liberar dos pares, a
sã o a s árvo res q u e f a z e m o vento'' criança limita-se, freqüentem ente, a encadeá-
los sob a forma de pensamento:
A criança parece contradizer-se. Na
realidade, eia ainda está aquém da con­ V...el afirma “ter” filhos-, “Você tem
tradição. Sendo próprio do par constituir um meninos e meninas? - Tenho. - O nde você
elem ento isolado, seus dois termos são arrumou meninos e meninas? - Eu a c h e i n a
orientados unicam ente um para o outro e, se rua. Eles esta va m p e rd id o s. - O nde eles
a criança é obrigada a dar um ponto de estavam antes de estarem perdidos? - Eles
partida à relação, ela pode tanto colocá-lo esta va m n a c a sa deles. - E antes de estarem na
num pólo com o no outro. Assim, ela parece, casa deles, onde eles estavam? - No p á tio . - E
freqüentem ente, acreditar em uma ação antes do pátio? - A h! B om , eles esta v a m n a
recíproca de um termo sobre o outro. ca sa deles."
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 35

Essa seqüência de respostas não tem, na verdade, a seqüência dos pares nos quais
evidentemente, grande sentido e assemelha- o sol pode entrar: sol-dia, sol-dia bonito, sol-
se à da fabulação puramente verbal. Mas pre­ calor, depois calor-frio e, enfim, retorno ao
cisamente, as palavras encadeiam-se, aqui, par inicial sol-dia.
por pares de termos contrastados: ter-achar,
achado-perdido, perdidos-na casa deles, na PRIMEIROS PROCEDIMENTOS PARA
casa deles no pátio. Não há outro motivo ULTRAPASSAR O PAR
para essa sucessão a não ser a demanda de
um termo complementar ou oposto para Será preciso que o pensam ento da criança
cada último termo. Acontece o mesmo no possa escapar dessa estrutura binária, que o
exemplo seguinte: encerra, a cada vez, entre dois termos
simétricos, para que consiga seguir com mais
L...anc: “O sol é grande? - É. - Ele poderia exatidão a linha do discurso ou o contorno
entrar aqui? - Não. - Por quê? - P orqu e está das coisas. Mas ele não consegue libertar-se,
tu d o fe c h a d o . - Se a janela não estivesse de imediato, dessas fórmulas primárias e nem
fechada, ele poderia entrar?- P o d eria .- Como dissociar os pares, essas moléculas iniciais,
é o sol? - B ran co. - E que mais? - Preto. - para saber dispor de seus termos em estado
Quando ele é preto? - Q u a n d o f a z sol.” livre e para agrupá-los em seqüência de
elementos que desenham e desenvolvem
Aqui ainda, visivelmente, são pares exatamente seus temas. O anúncio dessa
verbais, mais do que uma imagem das coisas, Pbertação é, às vezes, a ênfase colocada sobre
que ditam as respostas. Preto é ocasionado um dos termos, que lhe faz extrapolar o par,
por branco e fechado por entrar, como seus prepara sua polivalência e o m om ento em
contrários. Em vez do contraste, o vínculo do que será term o comum e intermediário.
par é também, com muita freqüência, a
semelhança, alternadamente, de um termo a N.. .ret 6; 1/2 “O Sena se mexe? - É o ven to
outro, e, sucessivamente, de um par a outro. q u e o f a z m exer. - Sempre do mesmo lado? -
N ão (gestos em diferentes direções). - O que
S...itch 6; 1/2 “O que é o sol? - É q u a n d o é o vento? - É q u a n d o f a z fr io . - O que faz o
é d e d ia . - É o dia que faz o sol ou o sol que vento mexer? - É a á g u a q u e está f r i a ”
faz o dia? - É q u a n d o é d e d ia . - Por que tem
sol quando é de dia? - Q u a n d o o d ia está Do par, encontrado com muita fre­
bon ito. - Por que tem sol quando o dia está qüência, vento-frio, separa-se frio, que, tendo
bonito? - P o rq u e f a z calor. - Por que tem sol se tornado comum ao vento e à água, rea­
quando faz calor? - P o r q u e n ã o f a z fr io . - parece por esse intermédio, com o a causa do
Q uando faz frio, nunca tem sol? - N ão. - Você vento.
já viu o sol? - Já. - Como ele é? - Q u a n d o ê d e
d ia ” B...et 8; “Uma prancha afunda ou não
afunda na água? - Ela n a d a . - Por que ela
A simples concomitância, em vez da nada? - P o rq u e ela é d e m a d e ira . - Por que a
causalidade, ainda é evidente aqui. Convidada madeira nada? - P o rq u e ela ê co m o os barcos.
a dar a prioridade seja ao dia, seja ao sol, a - Por que os barcos nadam? - P o rqu e eles são
criança limita-se, inicialmente, a retomar o d e m ad eira , q u a n d o eles sã o d e ferro , eles
“quando” de simultaneidade, depois suce­ ta m b ém n a d a m . - Por que os barcos nadam?
dem-se fórmulas que parecem, em vez de - P o rqu e a m a d e ira n ã o a fu n d a . - Por que os
responder às perguntas, opor-lhes uma barcos de ferro não afundam? - O ferro é com o
perpétua mudança de aspecto, mas elas são, a m a d eira . - Se você joga ferro na água, ele
36 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

não afunda? - Ele nada. - Você já jogou feno ela fica nos canos? - São canos que estão em
na água? - Não.” cim a da água. - Antes de estar nos canos,
onde ela estava? - No rio. - Antes de estar nos
Essa criança encontra, em sua experiên­ canos? - No rio. - E antes de estar no rio? -
cia ou em suas lembranças, diversas analogi­ Ela estava em outros canos, ela vinha de
as nas quais ela procura basear o acordo de outros rios”
seu pensamento e das coisas. O tema é “na­
dar”, de onde se formam os pares nadar-pran- Aqui, ainda, há origem recíproca, bem
cha, nadar-madeira, nadar-barco, mas, ao relacionada com a estrutura formal do par, e
mesmo tempo, o par madeira-barco, com a a- ligação com as exigências da realidade
juda da cópula “com”, de modo que, finalmen­ concreta pela intervenção de “o outro”. A
te, com o barco ocasionando feno, o par ma- criança ultrapassa até mesmo o objetivo,
deira-ferro apresenta, em vez de um contras­ reunindo simetricamente aquela palavra a
te, uma assimilação. Paralelamente a “nadar”, cada um dos dois termos, mostrando, assim,
“madeira" extravasou de um par a outro. Ela o quanto a forma do par ainda prevalece
se tomou um termo comum de ligação, mas sobre o sentido do real. Tamanha pode ser
não sob forma conceituai, donde a transfe­ sua força que a sugestão de “o outro” ou de
rência abusiva de suas propriedades ao ferro. “outros lugares” não consegue abrir o círculo
Um segundo meio de escapar dos limites em que o par encerra o espírito da criança:
do par é de supor, não mais que um de seus
termos pertence igualmente a outros, mas D...pe 5; “De onde vem a água do Sena?
que há outros exemplares dele próprio. - Dos esgotos. - E a água dos esgotos? - Do
Sena. - Você tem certeza? - Tenho. - Vem água
L...cot 6; “De onde vem o pano? - A gente de outro lugar para o Sena? - Vem. - De onde?
fa z . - Como? - Com agulhas. - E com o que - Pelos canos. - E a água dos canos? - No Sena.
mais?- C om pedacinbosdepano.-Eessespe- - Onde vai a água do Sena? - Vos esgotos.”
dacinhos de pano, de onde vêm? - A gente co­
meça rasgando ospedaços de pano, e depois Portanto, a palavra “outro lugar” pôde
a gente cola, e isso vira o pano. - Por que a apenas suscitar o intermediário dos canos,
gente o rasga, se é para colá-lo de novo? - É sem modificar o circuito Sena-esgoto.
para colâ-lo de novo. - Certo, mas então por A divisão dos pares entre si pode tam­
que rasgá-lo? - São outros pedaços de pano.” bém levar a uma conseqüência de aspecto
contrário, a junção final entre duas séries
O par que se formou, no espírito da heterogêneas.
criança, entre o tecido e seus fragmentos
fornece, projetado no plano do real, uma N...et 8; 1/2 “Você nunca ouviu falar do
origem recíproca do tecido e de seus frag­ vento? - Não. - Você nunca saiu quando tinha
mentos, que se traduz por uma operação vento? -Já, sim, senhor. - O que que é o vento?
evidentemente, vã e absurda; e o único meio - É um a nuvem . - O que é uma nuvem? - É
que a criança encontra para romper o círculo fum aça. - De onde vem a fumaça? - De um a
é o de desdobrar um de seus termos com a cham iné. - E o vento, de onde vem? - De um a
ajuda da palavra “outro”. Este exemplo está nuvem . - E antes, de onde ele vem? - Do céu.
longe de ser o único. - As nuvens e o vento vêm do céu? - Vêm. -
Mas as nuvens-fumaça, de onde vêm? - Do
H...art 5; “De onde vem a água do rio? - carvão. - Então, as nuvens de onde vêm? -
Pelas avenidas. - E antes de estar nas avenidas, Elas vêm do carvão. - Você tinha me dito que
onde ela estava? - Ela está nos canos. - Como vinham do céu. Vêm de um a cham iné,
-
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 37

sobem para o céu e depois descem de novo. - A relação de cada um com aquela não acarre­
Ah! Bom, e o vento? - Do céu. - O vento e as ta relações entre eles: é o encadeamento
nuvens não são a mesma coisa? - Não. - Então, limitado a dois termos contígüos, sem ligação
o que que é o vento? - Nuvens. - De onde ele por intermediário, nem unidade de conjunto.
vem? - De um a cham iné” Assim, o mesmo objeto é, alternada ou simul­
taneamente, dois outros objetos, estranhos
É a incapacidade da criança para um ao outro. A identificação, tem, portanto,
reconhecer, entre os term os de seu muito menos rigor para a criança do que para
pensamento, outras relações além das dos o adulto. Ela não implica a fusão, a redução
pares, mesmo heteróclitas, nas quais eles se mútua dos objetos identificados. Cada um é
encontram combinados, que a leva, por como que o lugar de assimilações desseme­
necessidade de coerência e de lógica, a reunir- lhantes umas das outras. Dir-se-ia muito mais
lhes termos evidentemente disparates. uma participação de uns com os outros, que
Manifestamente, ela percebe contradições, faz com que sejam confundidos entre si, desde
visto que diz, consecutivamente, que o ven­ que um traço qualquer os una, ele mesmo
to e as nuvens não são a mesma coisa, mas incompletamente reconhecido e definido. É
que o vento são nuvens. Entretanto, por a incapacidade de discernir, na coisa concre­
intermédio da fumaça que pertence, simul­ ta, suas relações, quer intrínsecas, quer ex­
taneamente, ao par fumaça-nuvem e fumaça- trínsecas, que é a causa disso. Sua imagem
chaminé, ela deve resolver-se, afinal, a fazer indivisa espalha-se em tantos exemplares
o vento sair de uma chaminé. Essa conclu­ heteróclitos que é preciso distingui-los por
são, pela qual sua repugnância era visível, seus caracteres ou por suas relações. Como
mostra bem a que ponto seu pensamento eles ainda não são uma rúbrica abstrata, sob
permanece sujeito às uniões que os pares a qual possam ser organizados os objetos
realizam. Se elas têm, assim, algo de exa­ onde eles se encontram, a ligação pode se
tamente equivalente e absoluto, isso ocorre fazer apenas de objeto a objeto e o par é a
porque são uma forma de relações intelectuais fórmula natural disso. Assim, a chama é fu­
que precede qualquer outra e que é a forma maça, porque é acompanhada por ela, ou
primitiva destas. céu, porque nele se dispersa e nele se funde.
Segundo o aspecto a ser exprimido, os pares
PARES POR IDENTIFICAÇÃO OU propagam-se em tom o dela.
PSEUDO-IDENTIFICAÇÃO
Perceptivas O...bal 6; acabou de falar do sol: “Como
é que fica de noite ? - É a lua. - O que é a lua?
M...res: “O que é a chama? - É a chama. - Uma cabeça. - Uma cabeça como ?- Redonda.
- O que que é a chama? -É a fum aça. - É a mes­ - É uma cabeça de verdade ? - Não. - Então, o
ma coisa, a chama e a fumaça? - É. - Veja lá que que é ? - A noite."
longe, o que que é (fumaça no céu)? - Fumaça.
- Aquilo é chama? - É céu. - É chama? - Não. - Sucessivamente, a lua é dada como a
Então, a chama e a fumaça não são iguais. - noite, e a noite como a lua. A passagem dá-se,
São." alternadamente, de um a outro, conforme o
termo a ser definido. A simples concomi­
Essa criança utiliza a mesma fórmula de tância eventual deles é expressa como iden­
identidade absoluta para dizer, sobre a cha­ tidade, por falta, para a criança, de saber su­
ma que ela é a chama, a fumaça, o céu. En­ bordinar o encontro deles a relações de tem­
tretanto, a fumaça e o céu, embora ambos po e de lugar. O par tem, por conseqüência,
idênticos à chama, são distintos um do outro. algo de imediato e de irredutível.
38 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

G...dy 6; “A gente vê o vento? - Vê. - K. ..vé6;ttO que é a lua ?-Ê escuro. -Você
Como você o vê? como você sente que tem já a viu ? -J á .- Então, o que é ? -N ão sei. - Como
vento? - Ê sol. - O vento e o sol são iguais? - a gente vê a lua ? - Q uando está escuro. - Mas
São.” ela também é escura ?- É... não.”

A concomitância perceptiva do vento e Foram necessárias várias perguntas para


do sol pode parecer-nos muito acidental, e, levar a criança a dissociar o par lua-escuro, a
entretanto, ela é suficiente para que a criança nele introduzir uma partícula de tempo e
defina um pelo outro e sustente que são depois a separar a própria lua do segundo
semelhantes. termo: esse ambiente de noite e de escuro
que a tinha como que recoberto. A criança
L...cot 6; “O vento é o céu. - E o céu, oque pode, também, afirmar a identidade sem
que é ? - É o vento .-Então, o vento e o céu são admitir a semelhança, mostrando, assim, seu
a mesma coisa ? - São. - Olhe a cor do céu. - embaraço diante das diferenças percebidas e
Branco. - Olhe lá à direita. - Parece um a indivisível combinação, cuja ligação ela não
pouquinho azul. - E o vento ? - Branco. - Ele sabe como analisar.
não parece um pouquinho azul também? -
Parece. - O céu se mexe? - Não. -E o vento? - L. ..cot 6; “Tem chuva que cai no chão. -
Mexe, porque ele sopra. - Como o vento O que é a chuva ? -A chuva é vento. - Então,
sopra? - Pelo mar. - É o mar que faz o vento a chuva e o vento são iguais ? - Não. - O que
soprar? - Pelos barcos. - Como fazem os barcos? que é a chuva ? - A chuva, é quando tem
-É o vento que empurra os barcos... - Mas e o trovão. - E o vento, o que é ?- É chuva. - Então,
vento? - Ele está no céu. As vezes ele sai de lá. é a mesma coisa ? - Não, não é igual. - O que
Às vezes ele fic a escondido no céu. - Mas a que tem que não é igual 1 - É o vento. - Então,
gente o vê? - Não, ele ê branco; a gente não o que que é o vento ? - É o céu.”
pode ver; ele é fin o demais.”
Os dois pares chuva e vento, vento e céu
O parvento-céu é, idicialmente, expres­ são dados sob forma de identidade, o par
so sob forma de identidade e, ao primeiro chuva-trovão, sob a de sincronismo. Para os
termo, são aplicados os aspectos do segun­ dois primeiros, a criança passa de um termo
do; contudo não ocorrendo o inverso e o ao outro, como se fossem estritamente
movimento do vento não parecendo poder sinônimos e, contudo, ela declara que não
ser transferido ao céu, a diferenciação faz-se são iguais. Esse conflito assinala um gênero
segundo relações de espaço e de tempo: o de relação, por assim dizer, anterior a toda
céu é um receptáculo de onde o vento pode forma de relação definida. A impressão do
sair às vezes. Um outro par aparece também, mesmo e do diferente se justapõe, cada um
o do vento-mar, mas sob a forma instrumental. afirmando-se alternadamente, sem chegar a
Aliás, as relações entre os dois se invertem. se delimitar, e o mesmo pode apenas ser
Após ter sido dado como recebendo seu expresso da maneira mais simples e mais
movimento do mar, por intermédio dos absoluta, por intermédio do verbo “ser”.
barcos, é, em seguida, o vento que os empurra.
Essa alternância de papel mostra que a P...ly 6; “O q u e é o s o l? - Uma lua.-T em
existência do par precede, no espírito da vários sóis ? - Não. - Várias luas ? - Não. - O sol
criança, a idéia de relações definidas. Ela e a lua são a mesma coisa ? - Não. - O que que
pode, suprimindo-as, ocasionar afirmações é o sol ? - Uma lua. - Você disse que não são
contrárias aos testem unhos mais evidentes a mesma coisa, então, o sol não é uma lua ? -
da percepção. Não. - O que que é a lua ?... Você já viu a lua?
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 39

- J á . - Explique-me o que que é a lua... e o relâm pago. - É a mesma coisa, o vento e o


Quando a gente vê a lua ?- D e n oite. - Por que raio ? - Não, o raio fa z m ais barulho que o
não de dia ? - P o rq u e é de dia.” vento. - O que é o vento ? - Não sei. - Você
nunca disse “Está fazendo vento” ? - Já. - O
O par sol-lua é tão forte que não se deixa que você queria dizer ? - Eu queria dizer que
reduzir nem mesmo pela declaração de que fa z ia frio. - O vento e o frio são a mesma
seus termos são diferentes um do outro. Sen­ coisa? - Não. - Qual a diferença ?- Ofrio ê mais
do o vínculo deles de uma espécie não de­ forte que o vento. - O vento e o frio fazem a
terminada e, conseqüentemente, escapando mesma coisa l-É .-O que eles fazem ? -Fazem
de todo o controle, eles persistem em serem asfolhas caírem. - O frio também faz as folhas
dados um pelo outro, inicialmente como se a caírem ? - Ele fa z elasgelarem ... elefa z o Sena
lua fosse a categoria da qual o sol faz parte, gelar.”
simples ilusão de linguagem; pois, em seguida, A associação dos termos dois a dois é
eles são ambos dados como únicos. E é ainda, aqui, muito visível: vento-raio, raio-
precisamente porque a criança não sabe trovâo, vento-frio. Mas a criança não se limita
ultrapassar o objeto concreto que ela não mais a identificá-los, declarando-os, ao mesmo
pode nem individualizá-lo plenamente, nem tempo, dessemelhantes. Ela parece querer
classificá-lo entre outros e que essa união a distingui-los segundo a intensidade de qua­
um outro, qualquer que seja o motivo, tem lidades que permanecem, aliás, contingen­
algo de irredutível. tes ou vagas: o barulho ou a força. Ela é até
mesmo capaz de reduzir a semelhança de
O...bal 7; “O que que é o vento ?... Como dois objetos à semelhança dos efeitos deles:
ele é ? - É o fr io . - O vento e o frio são a mesma o vento e o frio fazem as folhas caírem. A
coisa? - Não. - Então, o que é o vento 1-No céu. fórmula par pode, portanto, persistir até
- O que que não é igual entre o vento e o uma etapa onde a inteligência da criança
frio?... O que que o vento faz ? - F azfrio. - E está apta a realizar relações já sutis e di­
o frio, o que que faz ? - Calor... fa z vento. - ferenciadas.
Você disse que é o vento que faz o frio; e Da mesma criança: “O que é a noite ?-É
agora você diz que é o frio que faz o vento, a lua. - Quando não tem lua, não tem noite ?
qual dos dois ?...” - A lua vem prim eiro e depois o sol. - Quando
não tem lua, não tem noite ? - Tem. - É a
Noparvento-frio, cujos termos são dados, mesma coisa, a lua e a noite ? - Não, a lua é
ao mesmo tempo, como idênticos e dife­ m ais clara. - O que que é a lua ? - É para
rentes, e depois, alternadamente, como a clarear a gente. - O que é ? - Não sei.”
causa um do outro, vem intercalar-se, brus­
camente, o par frio-calor, cuja intervenção Ainda dois pares: noite-lua e lua-sol. O
mostra tanto melhor a incontinência e a força primeiro apresenta-se, inicialmente, sob a
das formações em pares quanto ela é, aqui, forma de identidade. Porém, guiada pelas
absurda, pois o par-contraste desempenha, perguntas, a criança sabe, em seguida, re­
inicialmente, o papel de par-identidade ou conhecer, entre os dois termos, uma diferença
causalidade. temporal: a não constância do sincronismo e
O par resiste, então, mesmo que a criança do contraste de cor deles. Quanto ao segun­
pareça capaz de estabelecer distinções de do, ele é de imediato, formulado como uma
grau. sucessão.

N...aire 7; 1/2 “Você sabe o que que é o Algumas vezes, o par-identidade parece
vento ? - É raio. - E o raio, o que é ? - É o trovão a forma indiferenciada ou elíptica que a criança
40 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

dá à relação entre dois termos que lhe foi diferenciação explícita. Mas ela responde,
sugerida por uma pergunta precisa. manifestamente, à necessidade de agrupar o
que é, de certo modo, semelhante. Não dis­
I...as 6; 1/2 “ Como pode cair água das pondo de categorias como o adulto, a criança
nuvens ? - Não sei. - Onde estão as nuvens ? - não pode fazer de outra forma, senão unir
No céu. - O que é o céu ? - São as nuvens” termo a termo, e o que marca bem sua inten­
ção, aqui, é o par sol-estrelas, que dá mais
A relação de espaço transformou-se em extensão ao par sol-lua, mas ainda sem sair
simples afirmação de identidade. dos encadeamentos puramente concretos de
objeto a objeto.
L...anc: “Como você sabe que tem vento? A razão de um par pode ser uma ligação
- São as árvores. - São as árvores que fazem o de natureza muito variável e, freqüentemente,
vento ou o vento que faz as árvores mexerem? sem conexão com a relação pela qual a criança
- É o vento que fa z as árvores mexerem. - pode tentar justificá-lo em seguida:
Como o vento aparece ?- Não sei. - O que que
é o vento ? - São as árvores. - Se não tivessem V...el: “Olhe essa luz na parede (um
árvores, não teria vento ? - Não teria vento. reflexo de sol), o que é ? - Éporque a gente
São as árvores que fa zem o vento? aperta um botão. - (Mostramo-lhe o lustre).
Tem luz aí?- Não. - Então, o que é ? - É que a
A pergunta à qual corresponde, ini­ gente acende a eletricidade. - Tem ele­
cialmente, “são as árvores” não implica que a tricidade? - Não. - Olhe, eu estou nessa luz. -
criança indique uma identidade entre o vento É o sol que fa z isso. - O que que é o sol ? - Ah,
e as árvores. Na segunda vez, ao contrário, a bom, ele vem do céu. - Como ele vem do céu?
identificação não é duvidosa. Entretanto, no - Porque tem a lua. -A lua e o sol são a mesma
intervalo, a criança reconheceq uma relação coisa ? - São. - São a mesma coisa ? - Ah, não!
de causalidade entre os dois. Podemos, - O que que é o sol ? - Ele é branco-vermelho.
portanto, acreditar numa redução elíptica - O que que é o sol ? - Ele vem da lua. - Como?
dessa relação. Contudo, tal redução responde - Porque o sol está dentro da lua. - Sempre ?
a uma espécie de implicação mútua e de - Ah, não é sempre, ele sai. - Quando ? - De
confusão entre os dois termos, que são, dia. - É de noite ? - Ele não sai.- Onde ele fica?
alternadamente, dados como a causa um do - Elefic a na lua, de noite. - O sol é grande ?
outro. O par corresponde a uma certa fase do - Não. - Ele é grande como o quê ? - Grande
pensamento. Ele não é apenas a ausência da como o céu. - O céu é grande ? - É. - Você disse
lógica adulta, ele é, em uma certa medida, que o sol não era grande. - Д ele ê grande
seu substituto. Ele pode, assim, unir termos como o céu. - O céu é grande como o quê? -
cujas qualidades diferentes tinham, inicial­ Ele é grande. - Como o quê ? - Ele é grande
mente, feito com que fossem distinguidos como tudo, grande como a terra?
entre si.
Essas respostas contraditórias não podem
B...ert 6; acabou de falar do sol e disse
ser explicadas de outro modo a não ser através
que ele queima: “E o que é a lua ? - Êamarela.
de pares, que surgem antes mesmo que a
criança possa controlarse a relação dos termos
- Como ela é ? - Ela não queim a. - Como é que
ela não queima ? - Porque não é tão quente deles é exatamente a que convém ao objeto
de seu pensamento. Ela lhe encontra, em
quanto o sol. - O que é a lua ? - É sol; tem até
estrelas; as estrelas são azuis.” seguida, um motivo; mas os motivos são tão
numerosos quanto os pares e podem, assim,
Assim, a identificação surge após um á“ fragmentar o mesmo objeto entre afirmações
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 41

inconciliáveis. Assim, opõem-se o par sol- tenha induzido por semelhança visual; e,
lua, que a criança justifica por uma inclusão provavelmente, ela também tem alguma
do sol na lua, e o par sol-céu, que exprimiria relação com os efeitos deflagradores, que são
a igual imensidão deles. É também um par, a comuns ao raio e à pólvora. O par seria,
evocação imediata da iluminação elétrica pela portanto, sobredeterminado, o que éum caso
palavra luz, que inicialmente provoca como freqüente nas combinações mentais da
дае um erro perceptivo da criança, que toma criança. Chuva e trovão, trovão e vento são
um raio de sol na parede pela iluminação de outros pares cujo vínculo é a concomitância
uma lâmpada. O que ela exprime de suas habitual entre seus termos, são unidades
impressões ou de seus pensamento, portanto, perceptivas ou sincréticas.
corre o risco, sem cessar, de ser influenciado A assonância encontra-se ainda, em pares
ou falseado por pares, que, aliás, são de tais como:
origens muito diversas.
C...ard 6; 1/2: “Diga-me, o que é duro? - O
PARES POR ASSONÂNCIA muro.”

Um grande papel é atribuído, nos pares G...ry 6;l/2: “Como é que fica escuro? -
das crianças novas, à assonância, ou seja, a Porque é de noite?”
um modo de associação elementar, que resulta
das qualidades sensorimotoras da palavra e Aqui, há concordância entre o sentido e
que, no adulto, é encontrado, principalmente, a assonância, como acontece, aliás, em nume­
quando se deteriora o potencial significativo rosas locuções e nos ditados populares.
dos nomes ou das coisas, como nos casos de
desagregação intelectual tais como os pro­ P...ot 7; “Como as pedras não deixam os
duzidos pelos estados maníacos ou pela barcos afundarem ? - Porque as pedras n ã o
excitação alcoólica. miam?"

Jt...ault 8; “Como é que tem água no céu ? A assonância afundar-rolar concorda com
-Éno trovão. - Eo raio, o que é ?-É como neve, a explicação das pedras que sustentam os
é branquinho. - Não é neve ? - Não. - O que barcos por baixo; ela talvez lhe seja a origem.
é que ele vira ?. ..Ele fica sempre assim ? - Fica. Ela pode, também, sugerir aproximações
- O que que o raio faz ? - Ele cai em cim a das barrocas.
casas e depois as esmaga .-O q u eé que cai em
cima das casas ? - O raio. - É o que é branco B...at 7;l/2 “Sempre teve a terra. - É. -
que cai em cima das casas ? - Não, o raio é Antes da terra, o que tinha?- Vermes9. - O que
como pólvora.6 - Você me disse que o raio é que são vermes ? - Bichinhos. - Tinha vermes
como a neve, e agora é pólvora ? Qual dos antes da terra ? - Tinha. - Onde estavam esses
dois ? - Pólvora. - O que é o vento ? - O vento vermes ? - Na terra.”
ê o trovão. - O vento é pólvora ? - Não.”
A assonância verme-terra reforçada pela
A atração de pólvora por raio é evidente.
Antes mesmo de ser expressa, essa associação
é anunciada pela de neve que ela, talvez, (7) N.T.- Em francês, há assonância entre “escuro"
(“noir”) e “noite” ("soir”).
(8) N.T.- Em francês, há assonância entre “afundar"
(“couler") e “rolar" (“rouler”).
(6) N.T.- Em francês, há assonância entre “raio" (9) N.T.- Em francês, há assonância entre “terra" (“terre")
("foudre") e "pólvora" (“poudre"). e “verme" (“ver”).
42 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

locução usual “minhoca1012” leva à réplica de entre idéias, locuções, imagens, sensações e
que, antes da terra, havia vermes, о que dá gestos. Em vez de encadeá-lo conforme suas
uma resposta de significação mais vazia, sem necessidades, o pensamento é ocasionado
dúvida, do que faria supor sua aparência um por ele, nele perde sua direção, fragmenta­
pouco misteriosa. se. Os pares correspondem a esse estágio da
atividade intelectual, onde a fórmula tende a
H...art 5; acabou de explicar que o que prevalecer sobre o sentido.
faz o vento são as portas abertas: “Quando a Pode acontecer, também, que um dos
gente está na rua, têm portas abertas ? - Têm termos da assonância tenha sido eliminado,
portas que sã o verdes11, amarelas e cinzas.” como sendo sem relação com o objeto do
pensamento, mas que, por uma espécie de
Verdes, que inicia uma enumeração de sobrevivência, devida talvez, em surdina, ao
cores, é a última sílaba repetida, como que termo que com ele se parece, ele exerça sua
em eco, da palavra abertas que a própria influência sobre as associações.
criança acabara de empregar, espontane­
amente, com sua plena significação. Uma M...nez 6; “O que é uma árvore ? (A
rima, portanto, pode fazer com que o pen­ criança entende: “O que é um asno?” Re­
samento seja. bruscamente desviado. Por tificamos). O que é uma árvore? - São folhas.
vezes, disso resulta um verdadeiro trocadilho: - E quando não têm folhas ? - Éporque é no
inverno. - Como é que têm árvores ? - Épara
W...ter 7; “O Sena se mexe? - Mexe, levar т и р а com carros. - Como ? - São
porque têm peixes. Têm homens que vão abrigos. - Como ? As árvores podem levar
pescare eles levam os cachorros para tom ar roupa com carros ? - Porque puxam . - As
banho. Depois, a gente tem torta de m açã de árvores ? - São plantadas com terra e depois
sobremesa. Depois, a gente compra sal, crescem árvores."
pim enta, maçãs.”
É a assonância de árvore com asno e com
Ao lado do par tomar banho-torta de abrigo13 que ocasiona os qüiproquós dessas
maçã1?, observam-se dois outros, de caráter respostas. Em vez de ser definitivamente
usual, torta-maçã e pimenta-sal. No resto da suplantada pela palavra árvore, a má audição
conversa, essa criança mostra uma tendência asno permanece como que paralela a ela,
marcada às digressões. Seu pensamento disputando-lhe a influência na seqüência do
permanece fortemente sujeito às circuns­ discurso.
tâncias concretas, às reminiscências, às for­
mas verbais ou motoras que lhe permitem Um pensamento mais senhor de si
expressar-se e exteriorizar-se, lembrando, mesmo poderia manter melhor o equilíbrio
assim, o tipo mental de epiléptico. A freqüên­ entre o sentido e a assonância. Eles podem
cia de pares está relacionada, aí, com sua permanecer em concorrência mesmo para os
subordinação persistente aos hábitos, roti­ adultos. A poesia mostra todos os graus de
nas ou automatismos que constituem seu influência respectiva e recíproca deles: ora é
material inteiramente feito de associações o sentido que parece comandar a morfología
do verso e ora são os efeitos de forma que
precedem o pensamento. Quanto mais forte
(10) N.T.- Em francês, “ver de terre”. é a pressão da assonância na criança, maior
(11) N.T.- Em francês, há assonância entre “aberta”
(“ouverte”) e “verde” (“vërte”).
(12) N.T.- Em francês, há assonância entre “tomar (13) N.T.- Em francês, há assonância entre “árvore”
banho” ( “baigner”) e “torta de maçã” ( “beignet”). (“arbre”); "asno” (“anê”) e “abrigo” (“abri”).
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 43

risco corre sua resposta de escapar de seu re em pares é, evidentemente, em razão da


controle intelectual. Assim, podem ser tendência às estruturas emparelhadas que
explicadas algumas de suas respostas, à estudamos aqui. Daí sua força. Contudo, ela
primeira vista, surpreendentes. responde a necessidades tão elementares que
corre, rapidamente, o risco de parecer enfa­
H...vin 6;l/2 “Onde o sol rola 1 - No céu. donha, sobretudo nas épocas em que o gosto
- Como é o céu ? - É fogo. - Como ele pode é mais refinado, mais sutil, desde que ela não
rolar no fogo ? - Inferno... O so lé defogo.u ” atinja muito exatamente seu efeito. Donde
muitas tentativas para modificar sua unifor­
“De fogo” vem corrigir “inferno”, que midade, p o r exemplo, a alternância de rimas
parecia um lapso desprovido de sentido. A femininas e masculinas: novo par, o dos dois
influência conjugada de vários pares é, aqui, gêneros, que intervém para diversificar os
manifesta. A assonância infem ode-fogo pares por assonância. A própria monotonia
parece, de fato, ter sido ativada pelos pares dessa alternância pode ser aliviada pela mis­
céu-infemo, infemo-fogo e, talvez, ferro-fogo, tura dos pares vizinhos de rimas. A disposi­
que resultam de associações tradicionais e ção das rimas pode tomar-se ainda mais
familiares. Há sobredetermínação, como é, engenhosa, como no soneto. Enfim, a versifi-
aliás, o caso habitual nos pares por assonân­ cação livre, sem renunciar aos efeitos fonéti­
cia. Pois, das duas, uma: ou a assonância cos, dispensa rimas de retom o exatam ente
apresenta-se sozinha e disso resulta um periódico.
simples discurso sem nexo, um absurdo e, às A persistência e a freqüência das estrutu­
vezes, o início de uma diversão, ou então ela ras binárias nas manifestações verbais e
permanece de acordo com o sentido. Ela mentais do adulto, acentuando a influência
supõe, portanto, duas influências conver­ delas no pensam ento da criança, mostram
gentes. O resultado e, freqüentemente, o quais as necessidades elementares e duráveis
objetivo delas podem ser um reforço na que elas traduzem. Inversamente, seria muito
expressão do pensamento, um meio de fazê- útil estudar, na criança, o equivalente dessas
lo penetrar melhor na consciência do sujeito, atividades chamadas poesia no adulto, onde
dê fixá-lo melhor disso em sua memória. Se a se determinam m utuam ente as significações
coincidência falta oportunamente, disso pode próprias à lingaugem e as necessidades sen-
resultar, em compensação, algo de ridículo, sorimotoras de ritmo e de sonoridade que
que pode, aliás, também ser buscado numa respondem à formulação, ao início e ao de­
intenção cômica. senvolvimento de nossas atividades. Não é
Esses pares por assonância foram de um excepcional ver crianças acom panharem seus
grande uso na palavra dirigida diretamente gestos com palavras para as quais elas tentam
ao ouvido, nos relatos orais. As rimas da dar ritmo e assonância mas, muito freqüente­
poesia não são outra coisa. Para ser rica, uma mente, elas não tardam a se degradar em
rima deve ser sobredeterm inada. As palavras simples repetições de sílabas desprovidas de
que apóiam a rima não devem ser quaisquer sentido, particularmente sob a influência de
uma e nem insignificantes. Ela busca um emoções devidas quer ao enlevo do próprio
efeito, quer de sentido, quer de pitoresco. É jogo, quer a situações de origem externa.
um fator de expressão que não deve ficar sem Aliás, podem os nos perguntar se as primeiras
fundamento. Mas, há também, na rima, um palavras da criança, que são a duplicação da
aparelho algumas vezes pesado. Se ela ocor- mesma sílaba, que se isola sobre a base de
fonemas monótonos ou variados, dos quais
(14) N.T.- Em francês, há assonância entre “inferno” seus jogos sensorimotores eram a seqüência
(“enfer”) e "de fogo” (“en feu"). como que indefinida, já não são o protótipo
44 A S ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

dos pares onde se unirão, mais tarde, pala­ Outros pares procedem, não das expe­
vras. Esse caso mostraria, com evidência, que riências plenas de interesse que a criança
о par não é o resultado de uma associação não cessa de realizar praticamente mas de
entre elementos primitivamente distintos, mas sua atenção e de sua credulidade ávidas das
de uma diferenciação. Ele teria, aqui, que se conversas dos adultos, de onde ela espera,
destacar simultaneamente de uma base de freqüentemente, conseqüências mais pres­
significações, onde se trata de precisar a que tigiosas do que as de suas próprias expe­
convém melhor do que suas concorrentes, e riências.
de uma base de atos sensorimotores de onde
é preciso dissociar elementos expressivos. R...er 7; “A gente fica bem quando está
morto ?- Não. - A gente fica mal ?-É.- Por quê?
- Porque a gente não tom a m ais sopa. - Por
AUTOMATISMOS DE SIGNIFICAÇÃO que a gente não toma mais sopa ? - Porque a
gente não tem m ais sopa. - E se alguém lhe
Outras ligações, além das afinidades desse sopa? - A gente cresceria. - Mas por que
sensorimotoras, podem agrupar duas pala­ não lhe dão mais sopa ? - Porque a gente não
vras como que automaticamente. Uma certa fa z m ais sopa. - Se eu estivesse morto, não
solidariedade de sentido pode fazer com que teria ningúem que pudesse me dar sopa ? -
elas se apresentem juntas, pois é a relação Teria. - Então ? - Você cresceria.”
que especifica, delimita, controla ou comple­
ta o alcance de cada uma. Não há significação O ditado popular “tomar sopa para
absoluta, mas apenas situações ou noções crescer” inserindo-se na representação da
que implicam ou ocasionam as relações cor­ morte pode ir, após certa insistência, até in­
respondentes. verter as consqüências bem conhecidas: em
H...et 6; 1/2 “O raio caiporque alguém o vez da dissolução, o crescimento corporal.
empurrou. - Quem o empurrou ? - Um ho­
mem.” A...aud 6; “Você já tomou banho ? -J á . -
Vpcê já bebeu água do mar ? - Bebi. - É boa ?
“Empurrar-fazer cair” são dois efeitos - Д como açúcar”
complementares para a criança.
“Açúcar” completa “boa”, embora bem
L. ..anc: “O solé grande ?- É. - Ele poderia oposto ao gosto salgado do mar. Certamente
entrar aqui ? - Não. - Por quê? - Porque está essa resposta pode ter o aspecto de uma
tudo fechado. - Se a janela não estivesse gozação. Mas, precisamente por isso, ela
fechada, ele poderia entrar ? - P oderia” indica a origem de certas brincadeiras bem
fáceis e quase automáticas, que consistem
“Fechar-irtipedir de entrar” são dois em substituir a resposta esperada por seu
outros efeitos intimamente ligados, na oposto. Esse é então, um par do contraste.
experiência da criança, pelas peripécias mais Ele sobredeterminaria, aqui, a associação di­
habituais de sua existência. “Não o empurre, reta. O contraste está perpetuamente pre­
ele vai cair” deve ser um aviso freqüentemen­ sente no espírito. Ele é fornecido à criança
te ouvido. Quanto às portas fechadas, elas não apenas pelas oposições da linguagem
são o grande obstáculo para suas necessida­ corrente, mas, também, pelo folclore de que
des de circulação, para suas curiosidades, ela se utiliza.
que nascem com sfeus primeiros passos» e
que traduzem seus primeiros desejos de C...in: “Como o vento pode fazer um
conquistar o espaço e as coisas. barco afundar ? - É que tem m uito vento. O
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 45

Papai Noelfa z vento, eo "Papai Fouettard’15 acontece ? - Issofa z elas morrerem. - O que é
também. Os aviadores também fa zem vento que elas viram quando morrem ? - Não sei. -
no céu com as asas de seus aviões.” Os homens podem morrer ? - Podem. - Todos
os homens morrem ? - Todos. - Como é que a
O nome do Papai Noel atrai, ime­ gente morre ?- A gente é velho demais. - O que
diatamente, o de seu antagonista, “Papai quer dizer “ser velho” ? - Não sei. - Você é
Fouettard”. Par cuja intervenção aqui, pode velho ? - Não.”
parecer episódica ou maquinai. Ela chega, às
vezes, a uma contradição formal. Tamanha é a ligação da velhice à morte
que a criança parece, inicialmente, inverter a
L..,anc: “Como é o sol ? - Branco. - E o ordem dos termos, dando a primeira como
que mais - Preto. - Quando ele é preto ? - conseqüência da segunda. Esse é um par
Q uando tem sol.” cujos termos têm uma espécie de equivalência
anterior a toda relação definida. Esse é, aliás,
A associapão branco-preto parece ser o caso geral. Um par não é feito, inicialmente,
produzida de maneira incoercível, eclipsan­ de termos disjuntos, externos um ao outro,
do a imagem do objeto a ser descrito. Os que se aglomerariam entre si. Tampouco é
contrastes de imagens ou de linguagem são o uma espécie de unidade primitiva que se
efeito de uma ligação tão natural e tão es­ cindiria; é um conjunto, uma estrutura, que
pontânea que, algumas vezes, correm o risco implica uma pluralidade, porém, ainda
de prevalecer sobre a intuição ou sobre o indivisa. Nele se exprime a intuição de uma
sentido do real. Eles pertencem ao material afinidade que se destaca sobre uma base,
constantemente à disposição do pensamento quer de impressões sensorimotoras, quer de
que tende a ser formulado, e são suscetíveis experiências diretas, quer de (eit-motivs),
de prevalecer sobre ele. Eles dependem des­ fornecidos pela ambiência, que as diversas
se “saber verbal”, cuja inteligência refletida, manifestações do meio da criança criam em
freqüentemente, faz apenas reconhecer os tom o dela.
resultados já formulados, e cujas operações
sobrevivem, com freqüência, às suas, em FRÁGIL INDIVIDUAL!ZAÇÃO E
certos estados de enfraquecimento, de con­ AMBIVALÊNCIA DOS TERMOS
fusão ou de distração psíquicos. Ele com­ EMPARES
preende, ainda, muitos outros pares que
desempenham, constantemente, o papel de Nem simples, nem feita de partes
ponto de apoio, de ponto de partida, de distintas, a união de seus termos formula-se
temas usuais no desenvolvimento de nossas inicialmente, como que do mesmo e do
idéias, e dos quais seria difícil dizer, por semelhante. É apenas uma pseudo-iden-
vezes, se se trata de puras estruturas mentais tidade. Entretanto, ela tem a conseqüência
ou de associações correntes, cuja origem freqüente de disseminar, entre vários pares
primeira estaria na tradição ou na experiência. díspares, um mesmo termo e de fazer com
que ele perca, assim, sua própria identidade.
A...von 7;3 “O que acontece quando as A criança ver-se-á, portanto, constrangida a
árvores morrem ? - Elas são velhas demais. - distingui-lo, a isolá-lo e a tomá-lo indepen­
Quando elas são velhas demais, o que dente, especificando sua relação, em cada
par, com o segundo termo. A escolha das
(15) N.T.- Em Francês, “Papai Fouettard” ("Père ligações a serem introduzidas oferece diver­
Fouettard") é um personagem com o qual se ameaça as sidade. Ela pode ser apropriada à natureza
crianças. das coisas ou formal, implicar relaçõe?, ou
46 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

puramente elementares, ou de sistematizado P o rq u e é de noitinba. - Por que é de noitinha?


variável. - Porque fic a de noite. - A noite e a noitinha
são a mesma coisa ?- Não. - O que não é igual?
A propósito do par soi-lua, que é - A noite é escura.-E a noitinha? - Não sei.”
encontrado tão freqüentemente, L...ges 8;
explica: UÉ fogo, u m a g r a n d e bola. Então, A criança percorre, sucessivamente, os
isso se separa. - Como ? - D e u m lado, tem a pares noite-escuro, escuro-noite, noitinha-
lu a, d o outro, o sol. - Eles ficam longe um do noite, inserindo, entre os termos de alguns, as
outro? - N ão. -O so le alu a são a mesma coisa? cópulas “quando” ou “porque” , como se elas
- N ã o . -A luaé fogo? -É.~Então, é como o sol? se explicassem de um ao outro e repre­
- Ah, n ã o .” sentassem uma cadeia de equivalentes, mas
sem poder, finalmente, definir as diferenças
Aqui, a separação dos dois termos que ela se sente obrigada a reconhecer. Apesar
opera-se com o que materialmente, por das locuções conjuntivas que utiliza, as
intermédio de um mecanismo cósmico. É relações permanecem-lhe obscuras. Essa
um a separação no espaço, que permite, à pobreza, essa incerteza das relações são
criança, sustentar sim ultaneam ente a iden­ habituais na criança:
tidade de substância e a dualidade de exis­
tência. A..,aud 6; “Tem vento na praia? - Tem,
O par escuro-noite, tam bém muito porque vai chover. - O que é o vento ? - Não
freqüente, pode apresentar-se, segundo os sei. - Você sabe quando tem vento ? - Sei. -
casos, com o um a simples sinonimia ou com Como ? - Porque o dia não está bonito. -
uma partícula de ligação. Quando o dia não está bonito, o que é que
tem ? - Não está bonito.”
P...y 6; “Por que a noite vem ?-A noite.” Ainda aqui, fórmulas de tempo e de
B...otte 7; “O que é a noite ?... O que quer causa levam, no final, apenas a uma pura
dizer é de noite ? - Que é d k noite. - Quando tautología; na verdade, elas respondiam
é de noite, o que que tem ?- Fica m ais escuro. apenas a um sentimento confuso de seme­
- E como é que fica mais escuro ? - N a noite. lhança ou de equivalência.
- Mas por que fica escuro na noite ? -A gente As fórmulas de causalidade são as que a
dorme.” criança utiliza mais freqüentemente quando
quer justificar a associação que dois termos
A cópula “quando”, introduzida pelo que formam um par oferecem a seu espírito.
interlocutor, induz a criança a nuançar com Provavelmente, isso não é uma simples coin­
um “mais" a palavra escuro, q u e é c a u sa d a cidência ou um hábito puramente verbal. A
p o r noite, ou seja, induz a fazer disso algo do causalidade condensa as tendências utilitá­
distinto, como uma qualidade que poderia rias e o sentimento subjetivo de eficiência,
existir, em um certo grau fora da noite. cujo despertar é muito vivo na criança, que
Diferenciação ainda frágil, visto que a criança entra precisamente, por volta dos seis ou se­
a inclui, em seguida, “na”noite. Enfim, aparece te anos, em seu período de atividade e cu­
um outro par: noite-dormir. Assim, as relações riosidade objetivas. Contudo, a maneira ainda
intrínsecas do par inicialmente são muito mal incerta e contraditória com a qual ela marca,
definidas, e a criança apenas sabe, na verdade, por esse intermédio, as relações entre os ter­
passar de par a par. mos do par, mostra a que ponto a união deles
precede-a em seu espírito.
G...ry 6; 1/2 “O que é a noite ?-É quando
fic a escuro. - Como é que fica escuro? - M...tin 7;4 Você sabe o que é o frio ? -Sei.
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 47

- Diga-me como é que faz frio ? - P o rqu e tem ela não mexe ? - Não. - Ela mexe sempre do
gelo. - Então, é o gelo que faz o frio ? - Pode mesmo lado ?- Não. - É o vento que faz o Sena
fa zerfrio e n ã o te r gelo. - Então, de onde vem mexer, como é que o vento se mexe ? - Ê o
o frio ?... De onde vem o calor ? - D o sol.” nevoeiro. - O que é que é o nevoeiro ? ...É a
mesma coisa, o vento e o nevoeiro ? - Não. -
Essa criança é capaz de criticar suas Então, o que é o nevoeiro ?... É o vento que faz
próprias respostas. Mas, é no gelo que ela o nevoeiro ou o nevoeiro que faz o vento ? -
colocara, inicialmente, a causa do frio, antes É o nevoeiro. - O nevoeiro que faz o vento ? -
de observar, espontaneamente, que a con­ É. - Como é o nevoeiro ? - São gotinhas de
comitância é inconstante entre o frio e o gelo. á g u a q u e caem.”

C. ..ni 6; 1/2 “O que é o vento ? - Porque Manifestamente, não há nada nessa


chove. - O que que faz o vento aparecer ? - É descrição do nevoeiro que possa explicar o
a chuva. - Quando não chove, não pode ter vento. Se a criança faz dele sua causa, isso
vento ? - Às vezes tem.” ocorre unicamente porque, com as imagens
deles oferecendo-se a ela combinadas, ela
Aqui, é o interlocutor que faz a criança deve encontrar, num dos dois, a origem do
reconhecer a simultaneidade variável de outro.
chuva e do vento, do qual aquela seria a
causa. R...er 7; “O vento está vivo? - Está. Por
quê? -Porque têm árvores. - O que está vivo,
D. as árvores ou o vento ? - O vento. - O que que
..net 6; “O vento é forte 7-É .-0 que faz
com que o vento seja forte ?... Diga, como ele é o vento ? - Porque ele voa, porque fa z vento.
pode ser forte ? - Porque elefa z m u ito frio. - - O que que é o vento ? - Porque são árvores.
Como o frio pode fazer com que o vento seja - Quando não têm árvores, não tem vento ?...
forte ? - Porque o vento está no oeste. - É Tem vento no céu ? - Não. - Por quê? - Porque
quando o vento está no oeste que faz muito não têm árvores. - Tem um vento ou vários
frio ? - É. - É o frio que faz o frio ou o frio que ventos ? - Vários ventos. - Quando não tem
faz o vento ? -É o vento... Não, è m ais o vento mais vento, o que acontece com o vento ? -
que fa z of r i o ” Porque as árvores são c o r ta d a s ”

Entre o s d o is term os, o se n tid o da Parece que essa criança liga intimamente
causalidade muda: após ter feito do frio a a existência do vento à presença das árvores,
origem do vento, a criança opta, finalmente, assim como à sua causa. Mas a relação é mais
pelo inverso. A ação, que a criança supõe de confusa do que parece inicialmente. Apesar
um agente sobre um outro, consiste em da resposta à pergunta: “O que é o vento ? -
justapô-los, tais como ela os encontra asso­ São árvores”, que poderia ser simplesmente
ciados em sua experiência, e depois em fazer elíptica, é ao vento que ela atribui a vida, ou
com que um ou outro a inicie. É por isso que seja, algo que parece ultrapassar a simples
ela inverte tão facilmente o papel deles e, ação mecânica e acidental das árvores.
com freqüência, até mesmo retoma, da Seguramente, ela não parece ter consciência
causalidade, às simples fórmulas de identi­ dessa conseqüência. De fato, ela apenas
ficação. justapõe, sem reduzi-las entre si, duas ima­
gens diferentes do vento: a que faz parte do
D...aud 8; “O que é o Sena ? - É l â onde par usual árvore-vento, e a que pode lhe
tem á g u a . - Aquela água mexe ? - M exe. - sugerir a palavra “vivo”. Esse é precisamente,
Como ? - Pelo vento. - Quando não tem vento, o gênero de aproximação que se observa,
48 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

com freqüência, no pensamento em pares e pensamento, e linguagem, se há delimitação


que tem, como conseqüência, a dissociação entre o objeto imaginado, ou proclamado, e
do termo comum aos dois pares. o resto. A delimitação mais simples, mais sur­
Um traço freqüente dessa fragmentação preendente, é a oposição. É por seu contrário
em pares, e que permite reconhecer a estrutura que uma idéia define-se inicialmente e com
binária de um conjunto no qual ele poderia mais facilidade. A ligação toma-se como que
parecer ser de um desenvolvimento contínuo, automática entre sim-não, branco-preto, pai-
são as inversões. Mecanicamente, o fato é mãe, de tal maneira que eles parecem, por
compreendido por si próprio. Se os dois vezes, vir, ao mesmo tempo, aos lábios e que
termos têm vínculos apenas um com o outro é preciso como que fazer uma escolha e
e são, respectivamente, independentes do reprimir o termo que não convém.
que precede e do que segue, nada pode Mas o sentimento do contrário tem muitas
assinalar qual é o primeiro e qual é o segun­ aplicações possíves. Não há nada de sur­
do. Apenas poderia fazê-lo o sentimento de preendente se um mesmo termo tiver vários
sucessão cronológica deles, quando a per­ contrários, pois ele tem, necessariamente,
cepção deles foi efetivamente consecutiva. vários tipos de relações com o que não é ele.
Porém, a própria freqüência das inversões Simplesmente acontece à criança, que não
mostra que a diferenciação qualitativa do sabe discernir entre eles, de confundir tudo.
antes e do depois, se existe em estado bruto, É do que se queixa André Gide em suas
é facilmente suprimida pelo par, que é a tentativas de pedagogo: “Eu gostaria de
estrutura mais elementar capaz de substituir a ensinar-lhe a diferenciar masculino e femi­
sucessão amorfa pelo agrupamento. Expe­ nino, mas ele mistura isso com a noção dos
riências realizadas em conjunto com a sra. “contrários” e, após três horas e meia de
Chmielnitzki, sobre a memorização de séries esforço (meia hora cada manhã), ele me diz
diversas - palavras, cores, figuras geométri­ que o contrário de branco é branca, ou que o
cas, imagens, etc., - mostraram-nos que a fre­ feminino de grande é pequeno... Do mesmo
qüência dos pares, confirmada pela das in­ modo, quando Em... lê uma história para ele,
versões, é tanto mais elevada quanto a in­ ele ri a torto e a direito e interrompe para
teligência é menos evoluída. Portanto, é pre­ perguntar se é o balde que está na lua ou a lua
ciso ver, aí, uma realização mental de tipo que está no balde ou a raposa. Tudo é
primitivo. descontínuo nele. ”(Journal, ed. de La Pléiade,
p. 425.) Essas constatações concordam exa­
FREQÜÊNCIA DOS tamente com os efeitos do pensamento na
PARES - CONTRASTES OU fase do par: descontinuidade entre os pares
OPOSIÇÕES e incompreensão consecutiva do conjunto,
inversão entre os termos do par, papel do
A tendência do par é, evidentemente, contraste, qualquer que este seja, na edifi­
muito mais marcada entre dois termos que cação dos primeiros pares, mais sólidos,
têm uma relação de sentido. O caso mais mais automáticos, mais irredutíveis. Certas
freqüente é o de uma oposição, de um disposições psíquicas podem, aliás, dar, co­
contraste. Em regra geral, toda expressão, mo que sistematicamente, a preponderân­
toda noção está intimamente unida a seu cia ao termo que não convém. Isso é no pla­
contrário, de tal maneira que não pode ser no mental, uma espécie de negativismo
pensada sem ele. É dele que ela extrai sua reflexo, que parece responder exatamente
razão de ser, ou seja, Sua significação primei­ ao negativismo muscular, no qual são os an­
ra, sua especificação mais elementar, mais tagonistas que se contraem, em vez dos
grosseira, porém mais essencial, pois só há agonistas.
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 49

Com muita freqüência, a criança, com com as mães delas. - E têm homens? - Sim. -
fórmulas ao mesmo tempo simplistas e su­ Como são esses homens? - Eles são grandes.
tis, pensa e se exprime por contraste e opo­ - Eles estão vivos? - Não... - O que quer dizer
sição: vivo? - Quer dizer que está morto. - Morto e
vivo são a mesma coisa? - São. "
P...ez7;l/2 “O que quer dizer estar mor­
to? - Porque eles tinham , eles tinham nascido A tendência dos pares-contrastes ma-
fa z tempo. - A gente é forçado a morrer ? - nifesta-se, inicialmente, na definição dos ho­
Não. - Têm pessoas que não morrem ? - Têm. mens como "grandes", por oposição às "crian­
- Todo mundo morre ? - Morre. - Por que todo cinhas"; em seguida, pela oposição "morto-
mundo morre ? - Porquefa z m uito tempo que vivo". Contudo, em vez de ser diferenciador,
elas nasceram. - O que é estar morto? - o segundo par é uma assimilação dos dois
Porque a gente não respirou bem.” termos, apesar da significação contrária deles.
Erro de compreensão, ignorância? Talvez,
O par oposição morte-nascimento é o mas isso não impede que o par exista e que a
primeiro quese apresenta para definir a morte. palavra "vivo" ocasione, entre todas as outras
É somente após várias respostas, em que ele possíveis a palavra que possui a significação
tende a se esclarecer, que a morte é levada a oposta.
uma causa fisiológica, a insuficiência res­ A assimilação mútua dos termos con­
piratória. O embaraço e a ambigüidade das trários pode ser mais ou menos camuflada e
primeiras explicações mostram a que ponto o sem dúvida favorecida, pela interferência de
par é anterior à noção de relações definidas. dois pares-contrastes que misturam termos
Sem dúvida, a noção de duração apresentou- deles e podem gerar uma certa confusão no
se exatamente ao mesmo tempo que o par e espírito da criança.
foi nele inserida, “eles nasceram faz tempo”,
mas permaneceu um pouco desunida: a pri­ B...otte 7; “O que é a neve ? - Bolas
meira negação da criança, que parece atribuir brancas. - De onde vêm essas bolas brancas
a alguns o poder de não morrer, deve signi­ ? - Do céu. - Quando elas caem, o que elas
ficar, muito mais, que nem todo mundo nas­ viram ? - Branco. - Sempre fica branco? - Não.
ceu há muito tempo. Aliás, a criança só che­ - O que é que fica ? - Seco. - Como essas bolas
ga a exprimir claramente essa relação de brancas ficam secas ? - Cinzas. - Quando fica
tempo numa segunda fórmula. “Porque faz seco, não tem mais bolas brancas ? - Não. - O
muito tempo que eles nasceram”. Disso re­ que é que elas viraram ? - Molhadas. - Como
sulta, então que ela parece identificar morte as bolas brancas ficam molhadas ? - Chove. -
e velhice. As bolas brancas, o que viram ? - C inzas.”
O contraste, embora seja a origem de
muitos pares, nem sempre é reconhecido. Os A oposição é, evidentemente, por um
termos, em vez de serem opostos, são lado entre branco e cinza, por outro, entre
identificados, como se se assimilassem entre seco e molhado. Mas, nas respostas da criança,
si. Há conflito entre o conteúdo, que é o os dois pares se contaminam; seco desloca
próprio motivo do par, e sua forma, que é cinza, que se intercala entre seco e molhado
unidade para a consciência, pois o único é, e que serve de intermediário para assimila­
inicialmente, tomado pelo mesmo. ção deles, de tal forma que as mesmas bolas
brancas tomam-se ao mesmo tempo, cinzas,
G...dy 6; 'Tem muita gente na festa de secas e molhadas.
Saint-Cloud? - Tem, tem criancinhas. - Só há
criancinhas? - É. - Elas vão sozinhas? - Não,
50 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

NÃO-DIFERENCIAÇÃO DOS Da mesma criança: “A gente ainda en­


TERMOS COMPLEMENTARES xerga quando está morto ? - Não. - Por que a
RECIPROCIDADE gente não enxerga mais ? - Porque fic a tudo
escuro. - Por que fica tudo escuro ? - Porque
A assimilação nem é sempre total. Mas, puseram tábuas. - Antes de colocarem tá­
entre os dois termos opostos, operam-se buas, a gente ainda enxerga ?... Por que colo­
confusões ou trocas. cam tábuas, se a gente ainda enxerga ? -
Porque agente está morto. - O que quer dizer
R...er7; “O sol está vivo ?- Está. - Por quê? que a gente está morto? - Porque a gente está
- No céu , - Por que ele está vivo ? - P o rq u e ele debaixo da terra. - A gente já está na terra
vê. - O que ele vê? - O céu . - E depois, o que quando colocam as tábuas ? - Não. - A gente
mais ? - Ele vê a terra. - A lua está viva ? - Está. ainda não está morto quando colocam as
- Por quê ? - P o rq u e ela v ê . - Como você sabe tábuas ? - Já. - Quando a gente está morto a
que ela vê? - P o rq u e ela tem lu z. - E a lâmpada gente ainda escuta ? - Não. - A gente ainda
pode vê? - Vê. - Porque? - P o rq u e ela está enxerga ? - M o. - A gente ainda tem fome ? -
acesa. - E você vê? - Vejo. - Você está aceso? Não. - Como é que a gente não tem mais
Como pode vê? - P o rqu e e u tenh o olhos. - E fome, não escuta mais, não enxerga mais ? -
o sol tem olhos ? - N ão. - Como ele pode ver Porque não dizem nais nada. - Quem não
então? - P o rq u e ele tem lu z.” diz mais nada ? - Os hom ens e as mulheres. -
Por que eles não dizem mais nada ? - Porque
Entre os dois termos complementares o tem um morto. - Se os homens e as mulheres
olho e a luz, que são necessários à visão, dissessem alguma coisa, o morto escutaria ? -
opera-se uma espécie de assimilação funcio­ Não. - Por quê ? - Porque ele está no caixão.
nal, cada um deles parecendo ser sua condi­ - Quando ainda não o puseram no caixão, ele
ção suficiente. Na verdade, ainda não se escuta ? - Não. - Por que ele não escuta ? -
realizou a distinção entre as exigências subje­ Porque ele não fa la mais.”
tivas e objetivas, orgânicas e físicas do ato. Ele
permanece indiviso entre o agente e a situa­ Por uma inversão dos termos, que salta
ção. Assim, prossegue, no par, a confusão, aos olhos, as conseqüências da morte, a colo­
inicialmente tão íntima na criança, entre o cação no caixão, a colocação na terra, são
que sua percepção ou sua atividade revelam- dadas, aqui, como seu indício ou sua causa. O
lhe simultaneamente de si própria e do mundo fato é ainda mais surpreendente porque a
exterior. Elas são, constantemente, bipolares, criança não ignora a sucessão cronológica
ou melhor, a criança deve aprender a distin­ dos acontecimentos. Mas, se do narrativo ela
guir aí dois pólos: ela própria e quer seu deve remontar até a motivação, o par nova-
parceiro, quer as circunstâncias nas quais sua mente toma posse de seu pensamento e, no
ação a mistura16. Esse é um problema cuja par, passa para o primeiro plano a circunstân­
importância revela-se no comportamento da cia concreta. De conseqüência, ela se torna
criança, ao longo de seu terceiro ano, se se determinante; é a esta que é reduzido, como
trata de suas relações sensorimotoras com o ao que deve significá-lo e explicá-lo, o segun­
meio, e que, mais tarde, deve ser resolvido do termo do par, o fato da própria morte. Uma
novamente no plano das imagens e das idéi­ outra inversão de termo é a que se opera entre
as. A confusão delas, tão freqüente na crian­ “escutar” e “falar”, que são dados um pelo
ça, corresponde à mesma ambivalência entre outro, como o foram clarear e enxergar. A
os dois termos do par. criança justifica, inicialmente, a assimiliação
(16) V.H.W., Les O rigines du caractère ch ez l'enfant, entre não escutar e não falar através de uma
Paris, Boivin, 1934. circunstância concreta, objetiva, o silêncio
AS ESTRUTURAS ELEMENTARES 51

das pessoas em presença do morto. Porém, N.. .ret 6; 1/2 “O Sena se mexe?-É o vento
substituindo, assim, “não pode escutar” pelo que f a z ele mexer. - Sempre do mesmo lado?
simples fato de “não escutar”, essa resposta - Não (gestos em diferentes direções). - O que
não deixa subsistir nada do que seria o efei­ é o vento? - É quando fa z frio. - O que faz o
to ou o sinal da morte. Desse modo, o par vento mexer?-É a água que está m u ito fria ”
retorna imediatamente à ambivalência de
seus termos “falar-escutar”, que é seu ca­ O par vento-frio é também invertido,
ráter essencial e a forma primeira de sua com cada um de seus termos sendo dado,
unidade. alternadamente, com o a causa do outro. Da
Um vínculo mais frouxo que o contraste mesma maneira, a criança pode atribuir a
ou que as diferentes variedades de termos origem e o efeito ora ao órgão, ora à função.
complementares, um simples sincronismo,
mesmo intermitente, pode provocar a A.A...dre 6; “Sempre quando a gente vai
formação de um par e a ambivalência de seus n a c a sa d a m esm a tia, m e u irm ão tem u m
elementos. den te. - Como é que nasce um dente no seu
irmão quando ele vai na casa da mesma tia? -
p...et: “O que é a chuva? - É água. - Como Não sei. Mas ele não mastiga tanto assim. -
na torneira? - Não. - Água como? - Não sei. - Mastigar faz os dentes crescerem? - Faz. Na
Você já viu chuva? - Vi. - O que acontece id a d e dele, e u n ã o mastigava tanto assim . -
quando está chovendo? - Tem trovão. - E o Se o seu irmão fosse todos os dias na casa da
trovão, o que é? - Não sei. - Como você sabe sua tia, ele teria um novo dente? - Todos os
que tem trovão? - Porque ele cai da chuva. - dias. - Logo ele teria mais dentes que você? -
Tem trovão agora? - Não. - Por quê? - Porque Isso nunca. - Você tem muitos dentes? -
não está chovendo." Agora, eles estão caindo.”

Assim, o trovão é dado como o acom­ No par ter dentes-mastigar, essa criança
panhamento da chuva e a chuva como o in­ parece dar a prioridade causal a mastigar.
dício do trovão. Essa é uma assimilação por Mas a relação permanece confusa. Ela está
concomitância. Freqüentemente, ela assume, subordinada ao sincronismo do crescimento
também, a forma da ação recíproca. dentário com visita à tia e à comparação da
própria criança com seu irmão. Essa mistura
M...ti 6; “Têm coisas no Sena? - Barcos. - de sincretismo e de subjetivismo mostra sobre
Os barcos andam? - Andam . - O que os faz que base ainda inorganizada destacam-se os
andar? - A água. - E o que faz a água andar? pares. Ela explica o estado ainda primitivo e
- Os barcos.” confuso das relações internas deles, que
R. Gruel 7; “O que é o Sena? - É á g u a . - Ele nenhuma relação intrínseca poderia orientar?
se mexe? - Mexe. - Como ele se mexe? - Porque Entretanto, nem todos os pares são
os barcosse mexem. - Como você acha que os reversíveis. Mas a ordem irredutível de seus
barcos andam? - É com a água?” termos pode indicar, também, a que ponto
eles formam unidades fechadas sobre si
Unidos num mesmo par por seu mo­ mesmas e fragmentos de pensamento des­
vimento, a água e os barcos são dados, al­ contínuos.
ternadamente, como o que se move e o que
é movido. O papel respectivo deles é uma A...aud 6; “O que são bezerros? - Eles
noção ainda muito obscura no espírito da correm n os cam pos. - O que são? - V aquinhas.
criança, a quem é essencialmente a unidade - De onde vêm os bezerrinhos? - É a vaca que
do par que se impõe. fa z . - E a vaca, de onde vem? - Não sei. - O que
52 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

os bezerrinhos se tornam? - Elesficam gran­ Mas eu pensei que os pintinhos viessem dos
des. Eles viram vacas. - Quando eles viram ovos. - Os pintinhos vêm das galinhas"
vacas, eles podem fazer bezerrinhos? - Não
sei. - Não são todas as vacas que podem fa­ Aqui, também, a ligação não se realiza. A
zer bezerrinhos? - Às vezes. - Então, às ve­ criança não consegue imaginar o ovo como
zes, todas elas podem fazer bezerrinhos?... anterior à galinha, provavelmente porque é
De onde vêm as vacas que fazem bezer­ esta que o põe, embora ela faça o pintinho
rinhos?... ” sair dela e saiba passar do pintinho à galinha.
Mas a galinha permanece cindida entre o par
A vaca e o bezerro combinam-se, na em que ela procede do pintinho e o par, que
verdade, em dois pares distintos, cada um permaneceu latente, da galinha poedeira.
deles irreversível: o par vaca-bezerro, que Mais do que pode imaginar a inversão que fa­
indica uma filiação, e o par bezerro-vaca, que ria do ovo a origem da galinha, ela acaba por
indica um crescimento. Mas não é feita a li­ suprimi-lo como intermediária entre a galinha
gação entre os bezerros que se tomam vacas e o pintinho. Assim, os pares têm algo de ir­
e as vacas de onde saem os bezerros. Cada redutível entre si. As ligações intrínsecas deles
uma delas fica presa a seu termo comple­ podem prevalecer até sobre a identidade dos
mentar por associações diferentes. O vínculo objetos que eles incorporam. Eles se opõem,
do par não se deixa reduzir pela identidade assim, às ligações que tanto o conhecimento
dos objetos, afim de que se tom e possível o das coisas como a lógica elementar que vai do
encadeamento contínuo dos mesmos por in­ mesmo ao mesmo exigiriam.
versão alternativa do papel deles. Esses dois Entretanto, a irreversibilidade, por ve­
pares, que têm em comum os mesmos dois zes observável entre os termos de um par,
elementos, são unidades refratárias entre si, parece estar ligada à existência de um outro
que se opõe às ligações do pensamento atra­ par que lhe constitui um obstáculo. Embora
vés dos objetos delas. unidades fechadas, os pares não ficam sem
exercer ações uns sobre os outros. O pensa­
M...in 7; 1/2 “De onde vêm as galinhas? - mento em pares não é apenas um pensamento
(A criança repete a frase e suspira.) - E os descontínuo e fragmentário. Ele próprio tem
pintinhos? - De um ovo. - O que que os suas leis de combinação, que são diferentes
pintinhos viram? - Viram galinhas. - Então, as das que a lógica usual tornou familiares para
galinhas vêm dos ovos? - Ah, não (ela ri). - nós.
C a p ítu lo IV

INTERAÇÃO DOS PARES

Um par é uma estrutura elementar. Não Mas, como unidade, ele pode ser ele
é a associação de dois termos vizinhos, mas próprio apenas se não permanecer único,
inicialmente distintos e como que exteriores isolado. O par tem necessariamente em
um ao outro, entre os quais seria lançada uma potencial outros pares concorrentes ou
ponte. Eles têm, como condição comum, complementares. A atividade de onde ele
uma estrutura, sem a qual não poderiam ser resulta não pode limitar-se a ele. Ele se toma
objeto de pensamento. Quaisquer que sejam, a ocasião ou o início de novos contrastes ou
para cada par, as relações particulares que de novas semelhanças. Em tom o dele, de­
unem seus termos, ele próprio responde a vem, solidariamente, constituir-se, pouco a
uma necessidade do espírito, para quem pouco, outros pares, enquanto o pensamen­
perceber ou compreender é um ato. E não há to permanecer incapaz de ultrapassar esses
ação que não seja transitiva, que não supo­ agrupamentos binários. Em muitos dos ca­
nha algo de múltiplo. A unidade não é um sos, ê possível reconhecer, na criança, como
dado primordial; ela é necessariamente des­ eles se condicionam entre si ou agem uns
tacada de um todo que a ultrapassa e é unida­ sobre os outros, embora reações mútuas deles
de apenas quando ligada a esse todo. O estejam, longe de serem explícitas. Pois cada
simples deve sobressair do diverso; ele é par, considerado em si próprio, permanece
qualitátivamente discemível apenas por uma estrutura fechada ou, pelo menos, de
oposição. O par é a forma mais elementar de tipo essencialmente binário, o que toma
semelhante oposição. Se ele próprio pode ser impossíveis verdeiras fusões e encadeamen-
dado como unidade elementar do pensa­ tos contínuos. Entretanto, eles podem dar
mento, isso ocorre porque o ato, pelo qual ele lugar a tipos de raciocínios, porém, bem
parece unir dois termos, é como que anterior diferentes dos nossos, que se fundam no
ao desdobramento deles. Contudo, dando- emprego das categorias e dos conceitos.
lhes uma estrutura comum, seria preciso que Dispersos demais em agrupamentos pura­
ele operasse sobre uma matéria onde pudes­ mente concretos, freqüentemente eles não
se encontrar dois termos para unir. Aliás, é podem traduzir, com flexibilidade suficiente,
unindo-os que ele os especifica, os determi­ as relações do real.
na, os identifica. Todos os dados da sensibi­
lidade e da ação que o precedem na experi­ ÊXCLUSÃO MÚTUA
ência psíquica são o mundo em direção ao
qual o levam suas operações. Ele organiza o As primeiras relações entre pares podem
confuso. Elementos distintos podem aí ser ser uma ação negativa de exclusão mútua.
discernidos apenas por seu ato unitário. Eles podem provocar dificuldades de acordo
54 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

ou de integração recíproca. A descontinuida- minada, através de uma dupla relação de


de da qual o pensamento da criança sofre, e objetivo e de tempo “para quando", o par
que sua estrutura binária traduz, não é, em nuvem-vermelho opõe-se, em seguida, à
parte alguma, mais aparente do que com assimilação das nuvens com a água do céu,
pares que se referem ao mesmo objeto. Entre apesar do traço de união que a chuva deveria
estes, a fusão pode ser impedida, comprome­ formar entre os dois. A exclusão pode, tam­
tendo sua identidade. Entretanto, é preciso bém, referir-se a certos efeitos de um objeto,
evitar o fato de atribuir sempre à criança em conseqüência da entrada deste num par
inconseqüências, porque ela não realizou com o qual aqueles nada têm em comum.
uma identidade que, para nós, é evidente,
mas que ela ainda não percebeu. A...on 7; 3 “Como a gente sabe que tem
vento? - F az fr io . - Quando a gente está dentro
D.. .vai 7; 1/2 “O céu é grande? -É .- Como de casa, a gente pode saber se tem vento? - A
o quê? - Como toda a França. - Tem um céu gente acende ofogo. - Como a gente sabe se
nos outros países? - Tem, sim, senhor. - É o tem vento quando a gente está dentro de ca­
mesmo céu? - Д sim, senhor. - Como o céu sa? -A gente não sente, temfogo. - Se você está
pode clarear? - Porque ele tem luzes. - A gente na sua casa, você não pode saber se tem ven­
vê essas luzes? - Não, senhor. - O sol, o que é? to? - Não. - E se você estiver fora? - F azfrio. -
- Fogo que está no ar. - Não é a mesma coisa Não faz outra coisa? - Não. - Como o vento
que o céu, o sol? - Não, senhor. - Para que pode fazer ondas? - Ele empurra a água. -
serve o sol? - Para que a gente sinta calor.” Como ele pode empurrar a água? - Elefa z
A fusão não se realiza entre sol-calor e mexer. - Ele pode fazer mexer outra coisa? - As
sol-luz. Isso ocorre porque formou-se um par nuvens. - E o que mais? - As árvores."
céu-luz que exclui o sol ou porque, efetiva­
mente, a criança ainda não conhece o sol O par vento-frio, que é encontrado tão
como origem do dia, mas somente através do freqüentemente, opõe-se a que sejam espon­
calor dos seus raios. As duas hipóteses são taneamente evocados os efeitos do vento-
possíveis. Na primeira, “luz”, reunida a “céu” sopro e amputa o vento de todos os efeitos
para explicar a claridade do dia, acompa- que não são compatíveis com o par no qual
nhar-se-ia de imagens antropormóficas in­ ele se encontra inicialmente combinado. O
compatíveis com o aspecto do céu, e é por pensamento em pares, de fato, corresponde
isso que a criança declara-os invisíveis. Exa­ à fase na qual as propriedades do objeto são-
tamente por causa disso, elas seriam refratá- lhe particulares e permanecem confundidas
rias a toda assimilação com o sol e amputa- com seu ser global, de tal forma que cada uma
riam-no de sua luminosidade. O caso seguin­ delas provoca-o inteiramente, obliterando,
te é muito mais nítido. momentaneamente, todas as outras. Assim
como não podem ser distinguidas entre si,
N...et 6; 1/2 “O que são as nuvens? - É elas não são, isoladamente, suscetíveis de
para quando chove. - Como são feitas as servir para classificá-lo na categoria de todos
nuvens? - Sãofeitas com vermelho. - A chuva, os objetos que têm, com ele, essa proprieda­
com o que é feita? ... Com o que é feita a de comum. Mesmo motivada por apenas um
chuva? - É feita com a água que tem no céu. de seus aspectos, a assimilação de um objeto
- E as nuvens, com o que são feitas? - Com... a outro é sempre total e exclusiva.
com vermelho.” A equivalência que disso resulta nem
sempre tem como efeito, aliás, amputar um
Embora a criança inicialmente atribua a termo de suas propriedades, ela pode, pelo
chuva às nuvens, de forma, aliás, sobredeter- contrário, acrescentar-lhe propriedades.
INTERAÇÃO DOS PARES 55

C...ni 6;l/2 “A água do Sena se mexe? - É gente pode fazer mesas com árvores? - Não. -
ofrío que a fa z mexer. - E se fizesse calor, ela Você tem certeza que a gente não pode? -
não se mexeria? - Não. - O que é que faz as Não.”
ondas do Sena? - A água, porque ela se mexe.
- O que a faz mexer? - O vento. - Quando o Em combinação com a árvore, por um
Sena fica quente? - Q uando tem sol. - Quando lado, com a mesa, por outro, a madeira não é,
ele vai mais depressa, quando está quente ou inicialmente, reconhecida como a matéria
frio? - Q uando ele está frio. - A água da comum delas. Sob o mesmo nome, parece
panela, quando está no fogo, se mexe? - que são duas realidades diferentes; depois,
Mexe, quando elaferve. - Então, o que mexe quando a junção se operou, esta faz a árvore
mais: a água fria ou a água quente? - A água provir da mesa, mas não o inverso. Contrária
fr ia r à ordem real das coisas, essa relação segue,
talvez, aquela que os atos da criança imprimem
O par vento-frio faz com que sejam atri­ à sua noção das coisas. O que está mais ao seu
buídos ao frio efeitos que pertencem apenas alcance são os objetos fabricados; demolindo-
ao vento, como se eles fossem uma única e os, ela remonta aos elementos deles e, nos
mesma coisa, sob dois nomes diferentes. Em elementos, ela reconhece a substância deles
compensação, opondo-se ao par calor-sol, que, sendo, para ela, uma noção secundária,
eles fazem com que seja negado o movimento é projetada no real como um produto, não
à água quente, mesmo após o exemplo da como uma matéria-prima. Mas, se foi isso
água que ferve. justamente o que determinou sua escolha, a
alternativa que se apresentava a ela não era
FRAGMENTAÇÃO DO TERMO COMUM menos a conseqüência de uma disjunção na
madeira, conforme ela seja móvel ou árvore.
A assimilação total tem, por contrapartida Mas sensível à sua identidade substancial, é
necessária, a dissociação. Pertencendo a dois provável que a criança já teria tido a opor­
pares diferentes, o mesmo termo não é mais tunidade de reconhecer e de compreender a
reconhecido como o mesmo e, se a ligação verdadeira sucessão dos estados pelos quais
acaba se fazendo, ela é tão factícia que, por passa a madeira.
vezes, a criança extrai disso conseqüências Em vez de referir-se à identidade do
exatamente inversas às que ela deveria en­ objeto que pertence a dois pares simultanea­
contrar em sua bagagem usual de experiências mente, o conflito pode confundir a noção de
ou de noções correntes. suas condições.

L...ard 5; 1/2 “Você nunca viu árvores? - C...in 7; “O que é a lua? - Tem lu z na lua.
Já, elas estão lá. - Como é feita uma árvore? - - A gente vê a lua agora? (é de dia). - CApós ter
Com madeira. - De onde vêm as árvores? - olhado para o céu) : Não. - Por quê? - Porque
Não sei. - E a madeira? - Não sei. - Mostre-me cai água. - Como a água pode impedir de ver
madeira Cela mostra um a árvore). E aqui, a lua? - Porque a lua é para deixar bonito. -
nesta sala, não tem madeira? - Não. - O que é Se não caísse água agora, a gente poderia ver
isso? - Uma mesa. - De que é feita? - De a lua? - Poderia."
madeira. - De onde vem essa madeira? - Não
sei. - A gente faz uma árvore com madeira ou O par lua-noite, embora bem familiar à
madeira com árvores? - Não sei. - A gente criança, encontra-se suplantado por um outro
poderia fazer uma árvore com essa mesa? - que, provavelmente, seu movimento reflexo
Pode. - Como você faria? - A gente a quebra. de olhar para o céu lhe impôs. Ao constatar a
- E depois disso? - Eu não lembro mais. - A chuva neste, é pela incompatibilidade do
56 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

tempo encoberto com a lua que ela explica mas, na verdade, ela não os abala. O par
sua não-visibilidade de dia. vento-trovão reaparece, no momento em que
o par trovão-água parecia, substituindo-o, ter
INTERFERÊNCIA DE UM TERCEIRO PAR eliminado a assimilação do vento e do trovão.
Ao mesmo tempo, o par vento-frio introduz a
A ação entre pares pode ser mais assimilação do vento ao gelo, que parece
complexa, e a incompatibilidade entre dois opor-se a do vento e do trovão. Finalmente,
termos que a participação deles deveria, subsistem os dois pares nos quais o vento é
logicamente, unir a dois pares comple­ assimilado, alternadamente, ao trovão e ao
mentares, deve ser, às vezes, atribuída à gelo, que são, entretanto, dados como
intervenção de um terceiro par. excluindo-se mutuamente, de modo que a
própria identidade do vento fica como que
D...and 6; 1/2 ligou nuvens à chuva, cindida em dois. Mas essa é uma conseqüência
chuva à água, mas nega que nuvens sejam que a criança não percebe, pois cada um dos
água, porque assimilou, anteriormente, as dois pares parece apenas destinado a fazer-
nuvens à fumaça e que há, entre a água e a lhe evitar uma contradição momentânea: por
fumaça, uma incompatibilidade que se toma exemplo, a ausência de trovão, no momento
a das nuvens e da água. que ela pode constatar a ação do vento sobre
as árvores; quanto ao gelo, que substitui,
A incom patibilidade pode, ainda, então, o trovão, a criança deve supor-lhe uma
resultar, não de uma oposição brutal, mas de existência invisível no céu. Através disso já
mudanças sucessivas nas assimilações em parece anunciar-se a explicação que
pares. De uma à outra, operam-se cortes ou ultrapassaria os simples conjuntos per­
reajustamentos que são os únicos que podem ceptivos. Contudo, os próprios pares são ainda
explicar o curso do pensamento. Eles mostram de um estágio no qual as imagens e as noções
quanto falta flxidez às significações de que formam, duas a duas, como que estruturas
nossos raciocínios de adultos dependeriam exclusivas, cuja redução não pode ser feita
por equação lógica. O objeto ainda não está com ajuda de um terceiro termo, pois ele não
definido por um conceito ou por sistemas de poderia ser comum a várias delas simul­
conceitos. Assim, ele pode ser levado, em taneamente, a menos que realizasse a equi­
seus agrupamentos sucessivos, a perder algo valência delas num plano onde o concreto e
dos conteúdos implicados pelas assimilações o particular dariam lugar a pontos de vista
precedentes. classificadores.

R...ault 8; “O que é o vento? - É o trovão. A LÓGICA DOS PARES: A ELISÃO


- O que fazem essas árvores? - Elas mexem. -
Por quê? - Porque tem vento,fa z frio. - Isso faz Constituir pares totalmente estranhos
trovão?- Équando chove m uito.-Como é que entre si não responderia às exigências es­
tem vento e não tem trovão? - Porque o trovão senciais do pensamento. O difícil é que, com
é a água. - E o vento, o que é? - É o trovão. - simples representações que se deve unificar,
Então, tem trovão já que tem vento? - Não, o a criança deve proceder como num jogo de
vento é gelo. - Tem gelo ali? - Não, ele está lá loto, no qual a imagem a ser colocada sobre
nocéu, a gente não vê.-Tem gelo aqui? - Não. uma outra assemelhar-se-ia a ela pela forma
- Tem vento? - Tem. - O que é o vento? - Gelo ” e dela se diferenciaria pela cor. A p>rop>ósito
do mesmo objeto ou da mesma noção, é-lhe
A substituição sucessiva dos pares entre preciso proceder a amostragens que podem
si parece uma retificação de um pelo outro, ser satisfatórias enquanto d a s o unem apenas
INTERAÇÃO DOS PARES 57

a um outro objeto, mas que se tomam positivos de organização e de combinação,


disparatadas e contraditórias se o reúnem a podendo assumir, então, o aspecto de racio­
dois objetos que diferem entre si, embora cínios que é importante comparar a nossos
cada um a ele se assemelha de algum modo. tipos usuais de raciocínio, tanto mais que lhes
Pois o que é ainda impossível, nessa fase, é o acontece, provavelmente, de se combinarem
fato de distinguir entre os motivos de seme­ ou mesmo de se substituírem condicional­
lhança, com todos os aspectos de cada objeto mente.
aderindo a ele, e que não podendo estar
dissociados uns dos outros, de modo que N...ret 6; 1/2 “O que é a fumaça? - A
toda assimilação entre objetos é global. fum aça é paraíso. - Você está dizendo toli­
Como ela vai, nessas condições, poder ces. O que é o paraíso? - É céu.”
progredir, de objeto a objeto, para ligar e
tornar coerente sua imagem das coisas? Ela O par fumaça-céu é encontrado com
dispõe de dois procedimentos opostos, um muita freqüência na criança. O de fumaça-
de eliminação, outro de fusão, que ora leva­ paraíso resulta, evidentemente, da contra­
rão a resultados satisfatórios e, conseqüen­ ção, em apenas um, de dois pares:
temente, poderão parecer não se distinguir
de nossos meios racionais; e ora encontrar- r fumaça
se-ão em conflito com as relações constata­ l (céu)
das ou com as relações lógicas. Nesse último Г (céu)
caso, eles darão a impressão de incon- I paraíso
seqüências. E é o que nos revelará o me­
canismo deles. Com uma preciosidade, um maneiris-
mo, que não é excepcional em sua idade,
essa criança procedeu como fazem certos
A eliminação é bem aparente no poetas, substituindo a palavra espontânea
exemplo, já citado, da criança que, por um pela palavra rara. Artifício literário que, se­
lado, identificando o vento ao trovão, depois gundo esse exemplo, pode proceder do tipo
o trovão à chuva ou à água, exclui o vento binário, como a própria rima, mas em sentido
dessa última associação e, por outro lado, inverso, com subtração de termos e não-
identificando o vento com o frio, depois com reduplicação sonora. (Veja, mais acima, os
o gelo, exclui, por sua vez, o trovão. A suces­ pares por assonâncias.)
são dos pares mostra que a evocaçãç de uma Em vez de criar simplesmente algo estra­
circunstância nova, de uma outra semelhan­ nho, a contração de dois pares, por elimina­
ça, permanece estranha ao par precedente, ção do termo comum dos mesmos, pode
que ela nele não se integra, com o risco de produzir um verdadeiro contra-senso.
transformá-lo, que ela se limita a constituir
um outro par, que se oporá, eventualmente, B...te 7; “De onde vem a noite? - Ela nos
ao primeiro, em vez de completá-lo. Assim, o acorda"
mesmo termo é deslocado de par em par,
porque, em vez de ser enfocado, sucessiva­ Anteriormente, a criança dissera “de noite
mente, sob diferentes pontos de vista, ele a gente dorme”, a fusão de dois pares:
entra, cada vez, inteiramente em ligações
particulares. r noite
Mas a ação dos pares entre si não é 1 (dormir)
sempre de oposição e de exclusão mútua. (dormir)
Freqüentemente, ela tem resultados mais acordar
58 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

originou o par noite-acordar. Sem dúvida, onde se descobrem, gradualmente, as rela­


poderemos atribuí-la a uma distração da crian­ ções reais.
ça. Mas é a prova de que é necessário um
controle para impedir que se manifestem J .J o t 8; “O que é o vento? - É calor. -
essas operações, que não é suficiente chamar Como você sabe que o vento é calor? - Porque
de “lapso” para suprimir-lhes a existência nas a g e n te sente frio . - A gente sente frio quando
origens subjacentes de nossas realizações tem vento? - Sente. - Como que é calor? - Por­
intelectuais. que ele vem dos lugaresfrios. - Por que você
disse que é calor, se ele vem dos lugares frios?
C...vin 7; “Como é que fica de noite?... O - É calorfrio. - O que é o calor? - Éfogo. - Pode
que quer dizer é de noite? - Porque é de noite. ter fogo que seja frio? - Às vezes ele se apaga.
- Como é que a gente sabe que é de noite? - - Então não tem mais fogo? - Não. - Não tem
Porque a lua está preta. - A gente vê a lua mais calor? - Não. - Mas, como é que pode ter
quando ela está preta? - Não. - Como ela pode o calor frio? - Ele vem pelo cano da chaminé."
ficar preta? - Para fa z e r a noite. - Como ela
pode ficar preta para fazer a noite? - A lua vai A junção primitiva de vento e de calor
fic a r branca depois de am anhã de m anhã. - ainda pode explicar-se aqui, como a dos
Com o ela pode ficar preta? - Porque ela apaga termos dessemelhantes, num par de pares
a luz. - Quem apaga a luz? - Deus.” que têm um termo idêntico:

Dizer, sobre a lua, que ela está preta, é, r vento


manifestamente, contraditório. Mais do que
um contraste imediato, cuja expressão, sob
essa forma de identidade, seria muito mais
surpreendente, trata-se, provavelmente, como
há pouco, de uma contração entre dois pares
{ 1 (frio)
r (frio)
l calor

Aliás, esse mecanismo não exclui a interven­


que fazem parte do mesmo complexo repre­ ção de influências concomitantes, que ele
sentativo; o termo comum é simplesmente serviria, então, para exprimir. Calor poderia
eliminado: ser considerado como um termo genérico,
assim como faz a linguagem científica do
lua adulto, quando se trata de fenômenos térmi­
(noite) cos. Essa redução nominal tem seus motivos
(noite) psicológicos. Não será devido à atração es­
preta pontânea dos contrários que todos os graus
de uma série objetivamente determinada aca­
As outras explicações dadas pela crian­ bem por se organizar, apesar da diversidade
ça, a lua toma-se preta “para fazer a noite”, a das sensações correspondentes, sob o nome
lua que “vai ficar branca depois de amanhã de correntemente dado a um deles?
manhã”, a lua que se toma preta “porque ela O contraste é, de fato, uma das estruturas
apaga a luz”, são apenas comentários tardios, mais surpreendentes através da qual se opera
destinados a esconder a singularidade da a diferenciação, ou seja, a identificação per­
afirmação principal. ceptiva. “Calor frio” é uma reunião de pala­
Inicialmente compacto, condensado, de vras cujo motivo não é apenas, como pareceria
expressão elíptica, no momento em que seu aqui, uma exigência ocasional da explicação.
objeto oferece-se ab espírito, o pensamento, Ela pertence a aqueles pares cuja natureza é
mesmo correto distende-se, detalha-se ape­ tão elementar e tão primitiva que a aproxima­
nas na seqüência, em termos detalhados, ção dos termos deles transforma, freqüente-
INTERAÇÃO DOS PARES 59

mente, o contraste em afirmação de identida­ PARES ALÓTROPOS


de, assim como o mostrarm numerosos exem-
pios, e, às vezes, até mesmo em verdadeira Assim, os pares, estruturas elementares
identidade nominal. Em várias línguas, pare­ das quais dispõe, inicialmente, o pensamento
ce, certas palavras têm, conforme o caso, os da criança, qualquer que seja, aliás, a origem
dois sentidos opostos. A supressão de “frio” de cada um , não são menos capazes de exercer
entre vento e calor resultaria, então, menos uma influência uns sobre os outros, mesmo
do próprio contraste entre quente e frio, do sendo conjuntos fechados. Essa influência
que de uma ambivalência larvada na signifi­ chega até a romper a integridade deles e
cação atribuída à palavra calor. provocar-lhes a fusão. Mas, leva também a
Aliás, esses são apenas dois aspectos de combinações que podem ser como que formas
um mesmo processo. Contraste e ambivalên­ de raciocínios, alguns mais ou menos de
cia correspondem à estrutura do par, onde acordo com a experiência, e, conseqüente­
dois e um são complementares: o contraste mente, confundidos, com freqüência, com a
perceptivo cinza-branco, claro-escuro é uma atividade do adulto, outros, absurdos e atri­
relação ou uma estrutura simples, inicialmente buídos, sem mais, às distrações ou à incompre­
indissociável e reconhecida, em todo lugar, ensão da criança. Um caso simples e freqüen­
como tal, qualquer que seja a intensidade te é o dos pares que poderíamos chamar de
absoluta de seus termos. Essa unidade funda­ alótropos. O gramático fala de palavras aló-
mental estender-se-á pela série inteira, quando tropas quando, de uma mesma etimologia,
contrastes, cada vez mais sutis e nuançados, originaram-se dois vocábulos cuja forma e
poderão ser constituídos em série contínua significação diferem: por exemplo, delicado-
com graus estáveis. Do m esm o m odo, con­ delgado, mancha-mágoa, escutar-auscultar.
traste e ambivalência, reunidos, permitirão Os pares alótropos têm, assim, uma raiz co­
estender, à série inteira, uma única e mesma mum, que é uma palavra, de sentido bifurcado,
denominação. Assim, o jogo combinado da que dá origem a dois sistemas diferentes de
elisão e de uma conjunção entre termos con­ associações.
trários não é, na criança, simples capricho
verbal. Ele depende de mecanismos psíqui­ A... dre 6; “A gente vê o sol de dia, quan­
cos com efeitos extremamente extensos. do não fa z frio. - Por que a gente não pode
A elisão do termo comum, através da vê-lo quando faz frio? - Porque tem m uito
qual se opera, entre dois pares, a reunião dos vento.”
segundos termos dos mesmos, pode ter
também resultados inesperados, pondo em O sol é a origem, ao mesmo tempo, do
evidência, como que em estado puro, a dia e do calor. Ao par sol-calor unem-se os
integração mútua dos pares. pares calor-frio e frio-vento, de tal modo que
a criança, não distinguindo entre os pares
D...in: “Como os pássaros voam? - Com alótropos que se originam do sol, vê, entre o
osos. - O que são os pássaros? - Pêlos.” frio ou o vento e o dia, uma incompatibilidade.
Palavras como “vivo”, cujo contrário é ora
Essa estranha assimilação pode explicar­ “inanimado”, ora “morto”, freqüentemente
se apenas pela fusão dos pares: geram confusão nas explicações e nas idéias
da criança:
f pássaros
l (asas) T...ni 7; 9 “Como um carro anda? - A
r Casas) gente senta, fa z o volante fu n cio n a r episa no
I pêlos pedal. - O que isso faz? - F az o m otor andar.
60 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

- Como? - É a batería. - Para tudo que anda é eles. Assim, sua compreensão não é estável
preciso um motor? - É, as motos, os carros. - de imediato. Ela sofre o fluxo e o refluxo da
Mas, e as pessoas? - Elas são de cam e e osso. intuição direta e da realização verbal ou
- Como elas podem andar e mexer? - Elas mental, que não ficam sem reagir uma sobre
estão vivas, elas ainda não estão mortas. - O a outra.
que quer dizer estar vivo? - Elaspodem andar
de carro, moto, avião.” TRANSFERÊNCIA DE RELAÇÃO
ENTRE PARES
É à oposição vivo-inanimado que
responde a de ser de carne e osso ou de ser A influência dos pares entre si pode ter,
mecânico. Mas a criança acrescenta ime­ como outra conseqüência, não mais uma
diatamente à essa oposição a da vida e da assimilação ou uma confusão de sentido, mas
morte. Nessa idade, as diferentes significações uma transferência de relações e a formação
da mesma palavra ainda aderem entre si. de um segundo par à imagem do primeiro.
Entre noções contíguas, quer seja pelo sentido
ou no tempo, a inteligência da criança não I...as 6; 1/2 “O que quer dizer: é de dia?
sabe manter distinção, nem impedir sua ... Quando a gente diz que é de noite? - É
coalescência. É assim que, tendo que definir preto. - Quando a gente diz que é de dia? - É
a vida, ela volta imediatamente ao funcio­ branco. - Como é que fica preto e depois fica
namento dos carros, de que se acabou de branco? - Porque é a noite e o dia.”
falar. Essa falta de poder diferenciador, aliás,
não implica que ela permaneça insensível às Essas respostas não parecem ser outra
nuanças, mas, assim que deve manejá-las por coisa senão uma seqüência de pares que se
si mesma, estas se confundem, assim como sucedem na seguinte ordem: noite-preto
ocorria, quando mais nova, com as palavras, evoca preto-branco, que ocasiona a formação
cujas diferenças de estrutura ela discernia de dia-branco, exata contrapartida de noite-
através da audição, mas que articulava da preto, de modo que, por um tipo de equi­
mesma maneira, chegando, então, a con­ valência algébrica, preto-branco dá, enfim,
fundir-lhes o sentido. noite-dia.

O...ai 7; “O que é vivo fica sempre vivo? noite-preto = dia-branco


- Não. - Por que não fica sempre vivo? ... u Л
Quando não é vivo, o que é? - É morto. - As preto-branco - noite-dia
pedras estão mortas? - Não. - O que quer dizer
morto? - Que a gente morreu. - O que quer Eis aí mecanismos que podem explicar o
dizer que a gente morreu? - Que a gente não pensamento bem formal da criança: o espírito
está m ais vivo.” dela, fazendo assim, a corrente de par em par,
os pares sucedendo-se ora devido a um ter­
Aqui, a criança resiste, nitidamente à mo comum, ora em razão de um contraste, de
sugestão de confundir vivo e inanimado. uma simetria ou de uma transferência. Pois
Contudo, isso ocorre em relação a objetos seu pensamento, freqüentemente, muito
que lhe dão imediatamente uma imagem menos fiel a seu objeto do que sujeito a
concreta deles próprios, e não a propósito de reproduzir, termo a termo, ligações muito
uma operação mental na qual lhe incumbiria simples de identidade, de dependência, de
o esforço de não lhes ãplicar, indistintamente, contraste, que unem as representações pou­
as diferentes significações da palavra, que lhe co a pouco, ou a calcar suas fórmulas umas
é preciso empregar igualmente para todos sobre as outras, a substituí-las entre si, segundo
INTERAÇÃO DOS PARES 61

as vagas aparências de uma álgebra, que pares, contrariamente aos dados da expe­
perderia mais ou menos de vista o conteúdo riência corrente, mas substituindo-os pela
concreto da idéia. Assim faz, aliás freqüen­ imagem sincrética de um incêndio, onde a
temente, o próprio adulto, utilizando muitos água jogada para apagá-loé,aomesmotempo,
clichês ou automatismos verbais e ideológicos, colocada entre o que queima. A influência
mas sem afastar-se do controle correntemente dos pares um sobre o outro tem, aqui, como
exercido pelo objeto sobre os resultados. Na conseqüência, o fato de fazer a fórmula da
criança, pelo contrário, contrastes e equi- representação retroceder para a fase onde
valências, ocorrendo por si próprios, podem seus elementos ainda são indiferenciados ou
chegar a absurdos. intercambiáveis: é assim, que se dá inversão
pela qual conclui a criança “apaga quando a
G...in7; fez uma enumeração heteróclita água acende.”
de objetos que, supostamente, afundam na O jogo dos pares pode, também, mudar
água. “Os barcos que vão por cima da água o efeito constatado para seu contrário.
afundam na água? - Não, senhor. - De que eles
são? - De madeira. - A madeira não afunda N...ier 9; “Quando a gente joga uma
na água? - Não, senhor. - Você não me disse pedra na água, ela fica em cima ou ela cai até
que sim, agora mesmo? - Ela não afunda. - o fundo? - Ela cai até o fu n d o . - Por quê? -
Por quê? - Porque ê com m adeira que a gente Porque ela épesada. - Têm coisas que ficam
acende o fogo. em cima da água quando a gente as joga nela?
- Têm. - O quê? - Pedacinhos de madeira,
A razão dada é apenas a oposição água- porque são pequenos. - E uma árvore grande?
fogo transferida para a madeira.- não pode ser - Ela afunda"
destruído pela água o que o é pelo fogo. Mas
a conversa continua: O par grande-pequeno, introduzido pela
própria criança a propósito dos pedaços de
“A gente pega um fósforo e acende com madeira, toma-se como que o equivalente do
ele. - A gente pode acender tudo com um par pesado-leve. Eles parecem fundir-se sob
fósforo? - Pode, sim, senhor. - A gente pode a influência do contraste expresso por cada
acender o cimento? - Não, senhor. - Por que a um deles, como se este pudesse dar lugar
gente pode acender a madeira e não o apenas a uma única e mesma alternativa,
cimento? - Porque o cim ento é m ais dum que qualquer que fosse a diversidade das qua­
a madeira. - O que não é duro, a gente pode lidades enfocadas. Em cada uma, a criança
acender? - Pode, sim, senhor. - A água é dura? ainda só sabe apreender uma oposição, de
- Não, senhor. - A gente pode acender a água? certo modo, bipolar, não uma escala cujos
- Não, senhor. - Como é que é isso? - A gente graus permitiriam classificar, entre si, os
pode acender a água. - Como? - Q uando objetos. Ela não saberia, portanto, pôr em um
tinha fogo na casa, jogaram água. - Por quê? nível diferente o mesmo objeto, conforme ela
- Porque tinha fogo no chão. - Então, a água o enfoque sob um ou outro aspecto. A par­
não se acende? - Não, apaga assim que a tir do momento em que o imagina simul­
gente acende a água.” taneamente sob vários aspectos, ela pode
apenas homologar, exatamente entre estes,
Sendo admitida a equivalência entre os os contrastes simples aos quais se reduzem,
dois pares duro-mole, inflamável-nâo-infla- para ela, as qualidades de toda espécie. Como
mável, o exemplo da água, ela própria qua­ imaginaria ela uma proporcionalidade ou uma
lificada como mole, desconcerta a criança. correlação, se não sabe imaginar os des­
Após uma hesitação, ela cede à lógica dos locamentos do objeto ao longo de escalas
62 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

qualitativas? Ela fica, portanto, como que entre Fica. - Se não tem sol à noite, como é que o
dois absolutos freqüentemente contraditó­ tempo fica bonito? - Ê de noite. - O dia fica
rios: os dados brutos da experiência e as bonito mesmo sem sol? - Fica.”
alternativas que a estrutura binária de seus
pensamentos lhe impõe. Em caso de desa­ O par usual dia bonito-sol, ao se atribuir
cordo, ela deve escolher. Ela pode, assim, o papel de par-sinônimo, inicialmente exclui
falsear a experiência para salvaguardar a ló­ a possibilidade do par dia bonito-noite e
gica dos pares. Uma árvore vai ao fundo da induz, ao contrário, como constante ou ne­
água, porque, entre seu peso e tamanho, é cessário, o par noite-tempo feio. Contudo,
impossível imaginar uma proporcionalida­ surge inesperadamente o par chuva-tempo
de: ela é, ao mesmo tempo, grande e pesa­ feio; ele dissocia o tempo feio da noite, que a
da de uma forma absoluta, por oposição ao criança sabe que nem sempre é acompanha­
que é, simultaneamente, pequeno e leve. da de chuva, podendo aquela ser novamen­
A mais comum das experiências opõe-se a te associada ao tempo bonito. Provavelmen­
que pequeno e pesado, grande e leve sejam te, a influência dos pares, uns sobre os outros,
habitualmente associados. É a essa rotina é, aqui, controlada pela experiência. É por­
prática, sustentada pela lógica rudimentar que a criança viu noites sem chuva que a
dos pares, que são devidas conclusões, en­ associação, como que específica, da chuva e
tretanto, em contradição flagrante com a ex­ do tempo feio rompe a da noite e do tempo
periência. feio, que era como que a contrapartida da
associação dia bonito-sol, está também fato
de experiência. Assim, o mesmo objeto, a
MODOS E ERROS DE AJUSTAMENTO noite, de que a criança tem, entretanto, o
ENTRE OS PARES E OS FATOS conhecimento direto, entra na fórmula de
DE EXPERIÊNCIA suas opiniões apenas em função de outras
fórmulas. Ele é disputado entre dois pares,
Apesar dè sua falta de plasticidade com não contrários, mas complementares, e é
relação ao real, os raciocínios em pares têm somente por meio deles que seu conheci­
uma grande atividade na criança. Freqüente­ mento é, sucessivamente, contaminado e
mente, eles correm o risco de afastá-la do depois depurado. Tanto é verdade que as
bom caminho, mas são também suscetíveis lições da experiência, mesmo quando se trata
de se diferenciar o suficiente para responder apenas de uma simples constatação percep­
a eventualidades diversas. tiva, não são um simples decalque do objeto
delas sobre a inteligência, mas devem receber
J.P...in 6; 1/2 “O dia está bonito? - Está. desta uma estrutura, com os pares constituin­
Por que você está dizendo que o dia está do, parece, as estruturas intelectuais mais
bonito? - Tem sol. - Para que o dia esteja elementares. Aliás, eles são apenas o ponto
bonito é preciso sol? - É. - E à noite, não fica de partida ou a condição de outras estruturas,
bonita? - Não. - Quando o dia está feio, o que que podem ser de uma complexidade bem
que acontece? - Não tem sol. - E mais alguma diversa, segundo a idade ou o nível de evolu­
coisa? - Não. - Simplesmente não tem sol? - É. ção mental, e de um conteúdo que varia tanto
- Então, quando o dia está feio, é como com as próprias experiências do sujeito quan­
quando é de noite? - É. - Quando o dia está to com o material recebido do meio por
feio, o que a gente leva com a gente? - Chove. intermédio da linguagem, dos costumes e das
- Sempre chove à noite? - Não. - Então à noite, idéias correntes.
o tempo não está sempre feio? - Não. - O A depuração da representação, por sua
tempo fica bonito à noite, algumas vezes? - passagem obrigatória através de diferentes
INTERAÇÃO DOS PARES 63

pares, pode operar-se por etapas sucessivas reunidos simultaneamente como se fossem
que a tomam bem aparente. um efeito da tempestade. Essa dupla idéia de
mobilidade e de uma superfície sólida parece
N.,.ret 8; 1/2 “Como é que têm ondas? - persistir na comparação sucessiva do gelo a
Porque é a tem pestade. - O que é tempestade? um lago e a uma praia, com preponderância,
- A tempestade é quando fa z frio; então, a entretanto, das conseqüências devidas ao frio
água gela; isso fa z ondas. - Q uando a água sobre as devidas ao vento. Desenvolvidas
gela, o que que isso faz? - Vêm primeiro essas imagens, surge a incompatibilidade
pedacinhos de gelo, depois vem um grande delas com a presença simultânea das ondas.
lago. - Q uando têm pedacinhos de gelo na Entre o gelo e as ondas há, contudo, um
água, o que isso faz? - Uma praia grande. - E termo comum: a água. Mas por que ora um,
quando a gente m exe nisso? - Isso quebra e ora as outras? Intervém, então, para diferenciá-
afunda. - O que se quebra assim? - O gelo. - los, o par frio-calor, com cada um de seus dois
Para ser quebrado, é preciso que ele seja 'termos devendo responder, respectivamente,
como? - Fino. - Se ele não fosse fino, ele a uma ou a outra alternativa. Frio e gelo
poderia não se quebrar? - Não. - O que acon­ combinam muito bem; mas entre calor e
teceria se a gente mexesse nele? - Nada. - E ondas não há correspondência. Muito pelo
então? - A gente cairia e poderia quebrar a contrário, visto que a criança ainda não sabe
perna. - Por que a gente cairia? - Porque a dissociar o vento do frio. Donde seu embara­
gente escorrega.- O que é escorregadio assim? ço: de início forçada a acrescentar ao gelo as
- O gelo. - A gente pode andar em cima dele? ondas, como conseqüência do frio, ela não
- Pode. - A gente não pode andar em cima da tem, para diferenciá-los, outro recurso a não
água? - Não. - Por que a gente pode andar em ser o de passar a uma outra espécie de causa:
cima do gelo e não da água? - Porque o gelo é o movimento, impresso à água, não pelo
dum . - Quando tem gelo, pode ter ondas? - vento, mas pelos barcos ou pela corrente.
Não. - O que é que faz com que tenha ondas? Assim, seu pensamento progride, de par em
- A água. - O que é que faz com que tenha par, como que por graus sucessivos, sobre os
gelo? -É a água. - Por que a água, às vezes, faz quais ela nem sempre saberia com exatidão e
gelo e, às vezes, ondas? - Porque, ãs vezes, ela antecipadamente onde eles a levariam.
gela e, às vezes, não gela. - Por quê? - Porqúe, Contudo, freqüentemente também , o
quando não gela, fa z calor e, quando gela, pensamento salta elos, e a elipse que disso
fa z frio. - Por que isso faz ondas? É... o calor resulta só pode ser explicada ou tornada inte­
que faz as ondas? - Não, m as a água também ligível se o elo intermediário é restituido.
fazgelo, elafa z ondas. - Como isso acontece?
- Porque, quando ela fazgelo, isso quer dizer L...anc: “Tem sol o tempo todo? - Não. -
q u e estáfa zen d o frio, às vezes, elafa z ondas. Quando é que não tem sol? - Q uando chove.
- Então, por que a água faz ondas? - Porque - Esta noite, às 8 horas, ainda terá sol? - Não.
fa z frio. Q uando ela gela, temgelo. - Quando - Por quê? - Porque será de noite. - Por que fica
é que têm ondas? - Isso quer dizer que os de noite? - Porque a gente vai dormir. - Se a
barcos vêm vin d o , que eles estão chegando. - gente não dormisse, não ficaria de noite? -
Por que têm ondas quando os barcos estão Não, ficaria de manhã."
chegando? - Porque tem corrente.”
A sucessão dos pares é, de início,
Três pares inicialmente suscitam-se entre perfeitamente explícita e clara: sol-chuva,
si: onda-tempestade, tempestade-frio, frio- sol-noite, noite-dormir, sincronismo ou cos­
gelar. Conseqüentemente, as ondas e o gelo, tume sob uma aparência causai. Mas a última
embora não podendo coexistir, são, de início, resposta “ficaria de manhã” é desconcertante
64 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

e ilógica, embora a associação de que resulta Ao formar par, ao mesmo tempo, com o
possa ser entendida a grosso modo. Para vento e com a fumaça, como se lhes fosse
compreender-lhe bem o mecanismo, basta idêntica, a nuvem não consegue fazer com
colocar face a face os dois pares dos quais ela que eles sejam considerados como idênticos.
operou a contração num único: Fragmentada entre os dois, ela parece, no
início, a ponto de dissociar-se ela mesma em
dormir nuvem-vento e em nuvem-fumaça, uma,
. (de noite) originária do céu, outra, de uma chaminé.
(levantar) Contudo, no final, é realizada a ligação entre
de manhã o vento e a chaminé, um saindo do outro e
alienando, conseqüentemente, sua verdadeira
O primeiro já foi expresso, o segundo está identidade. Assim, a assimilação, por seme­
calcado sobre ele, mas responde à situação lhança, da nuvem com a fumaça eclipsa sua
inversa. A criança retém, de cada um, um assimilação local com o vento. A criança,
termo. Ela assinala a incompatibilidade deles ainda não conseguindo distinguir a natureza
pelo emprego de uma negação e de uma das relações que unem as coisas, é incapaz de
forma condicional que, aliás, reproduzem imaginar a coexistência delas, pois cada uma
exatamente a forma da questão à qual delas tem algo de indefinido, de ilimitado, de
responde. O resultado vem a serum absurdo, absoluto e provoca, em vez de uma relação
que não poderia estar no espírito da criança, determinada, a confusão e a identificação dos
embora esta seja menos sensível que o adulto objetos entre si. O resultado pode, aliás, ser
à inversão da causa e da conseqüência, do tanto uma disjunção quanto uma reunião
ativo e do passivo. O mecanismo que o pro­ viciosa.
duziu parece incontestável e mostra bem o
formalismo ao qual está sujeito, no início, o D...and 6; 1/2 “O que são as nuvens? -
pensamento na criança. As fórmulas que ele Fumaça. - De onde elas vêm? - Das chaminés.
deve utilizar, embora ainda não saiba fazê-lo - Sem chaminés não teria nuvens? - Não. - O
livremente, podem alterar a imagem que ele que que é a chuva? - Água. - De onde ela vem?
dá e se dá de seu objeto. Por vezes, ele até - Do céu. - Como tem água no céu? - Não sei.
mesmo lhe compromete a identidade. - Como a gente sabe quando vai chover? -
Porque têm nuvens. - Por que, quando têm
N...ret 8; 1/2 “Você nunca ouviu falar do nuvens, vai chover? - Porque elas são pretas.
vento? - Não. - Você nunca saiu quando tinha - O que é preto? - A fum aça. - Por que,
vento? -Já, sim, senhor. - O que que é o vento? quando elas são pretas, vai chover? - Não sei.
- É um a nuvem . - O que é uma nuvem? - É - As nuvens não são água? - Não.”
fum aça. - De onde vem a fumaça? - De um a
cham iné. - E o vento de onde vem? - De um a Dois pares estão frente a frente: nuvem-
nuvem . - E antes disso? - Do céu. - As nuvens fumaça e nuvem-chuva. Aqui, ainda, é a
e o vento vêm do cêu? - Vêm. - E as nuvens- assimilação por simples semelhança que
fumaça? - Do carvão. - Então, de onde vêm as prevalece sobre a outra. Contudo, é a uma
nuvens? - Vêm do carvão. - Você tinha me dito afirmação de exclusão recíproca, entre a
que vinham do céu. - Vêm de um a chaminé, nuvem e a água, que ela leva, apesar dos
sobem para o céu e depois descem de novo. - pares intermediários chuva-água e chuva-
Ah! Bom, e o vento? - Do céu. - O vento e as nuvens, de onde deveria ter resultado a
nuvens não são a mesma coisa? - Não. - Então, identificação das nuvens e da água. Entre a
o que que é o vento? - Nuvens. - De onde ele água e a fumaça havia, de fato, incom­
vem? - De um a cham iné.” patibilidade. Assim, os pares, embora re-
INTERAÇÃO DOS PARES 65

sultando de uma relação que acarreta a união calor? - Sempre tem corrente. - Como isso
dos dois termos deles, constituem um obs­ acontece? - É o vento que entra na água. - E
táculo ao pensamento de relação. Resultantes o vento, de onde vem? - São os carros que
de uma ligação ainda indiferenciada e global, andam depressa. - No mar não têm carros.
eles obrigam a escolher entre a assimilação Então, o que faz o vento? - É a corrente. - É o
ou a eliminação. Eles suscitam o dilema da vento que faz a corrente ou a corrente que faz
lógica e de experiência. o vento? - Ê o vento que f a z a corrente. - É a
mesma coisa, o vento e a corrente?- É. - Então,
B...ère 6; atribui o vento ao movimento de onde ele vem? - Dos carros. - Mas, e no
das folhas: “Tem vento no mar? - Não têm mar? - Ele vem das árvores. - Ele vem das
folhas no m ar quando tem vento. - O que o árvores? - Não. - No mar também não têm
vento faz no mar? - Elefa z as folhas caírem. carros? - São carros que passam em cim a da
- No mar? - É. - De onde vêm essas folhas? - ponte. - De onde vem o vento das árvores. -
Das árvores. - Têm árvores no mar? - Têm.” Vem do m ar.”

A primeira e a última afirmação estão em Um par domina essas explicações, o do


contradição manifesta. O par vento-folhas, vento-corrente. Como de hábito com os pares,
com estas produzindo aquele, de início choca- a ordem dos seus termos inverte-se facilmente,
se com a imagem familiar do mar, e a criança quando estes não são pura e simplesmente
constata, espontaneamente, que “não têm identificados um com outro. Ora é a corrente
folhas no mar.” Porém, forte demais para ser que é vista como a causa do vento e ora o
eliminada, a ligação do vento com as folhas e contrário. Esse par articula-se, segundo as
com as árvores impõe-lhe, imediatamente necessidades, com outros, em particular com
após, que volte ao seu primeiro testemunho o par barco-corrente. Aqui também há
e admita a existência das árvores no mar. A inversão: alternadamente, a máquina dos
lógica prevaleceu, à custa da experiência. barcos põe em movimento o Sena e a corrente
Os pares entre os quais deve efetuar-se a faz os barcos andarem, penetrando nas
escolha podem, também, multiplicar-se, mos­ máquinas deles. Ainda são os pares vento-
trando a série de retoques, de aproximações carros e vento-árvores, dos quais a criança
e, freqüentemente também, de contradições não pode se libertar, mesmo se se trata do
através dos quais o pensamento procura dar mar. Também entre o vento e as árvores a
conta de seu objeto. ação inverte-se alternadamente. Enfim, é o
par vento-frio que aparece, primeiramente
T...ni 6; 1/2 “Têm ondas no mar? - Têm. sob as espécies do frio, mas o frio deixa-se
- O que faz as ondas aparecerem? - O mar. - substituir pelo vento, que ele havia, mo­
O Sena se mexe? - Mexe. - Como? - Quando mentaneamente, substituído, fazendo com
têm barcos, é a m áquina dos barcos. - E que a criança perceba que o frio não pode ser
quando você joga alguma coisa no Sena? - a causa da corrente, visto que o calor não a
A funda. - Madeira? - Ê. - E palha? - Ela não impede de existir. Esse último exemplo mostra
afunda. - Como a palha vai embora? - É a bem como o par é o que o pensamento que
corrente. - E os barcos? - É a corrente que vai quer se exprimir encontra em primeiro lugar,
em todos os lugares nas m áquinas. - Você como ele pode nele se perder, mas também
não disse, agora mesmo, que os barcos faziam diferenciar-lhe os termos, sob o choque de
o Sena andar? - Não, ê a corrente. - Se não uma situação ou de um objeto aos quais eles
tivessem barcos, teria corrente? - Teria assim não convêm. O par, ao sofrer as retificações
mesmo. - De onde vem a corrente? - Do Sena. da experiência, toma-se, então, como uma
- Como? - Q uando fa z frio . - E quando faz hipótese, um revelador ou um instrumento
66 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

do conhecimento. Ele dá ao espírito, uma diferencial entre termos cuja significação é,


primeira oportunidade para retificar parcial­ assim, fixada quer por contraste, quer pelo
mente as coisas. hábito de encontrá-los simultânea ou conse­
Mas esses primeiros contatos podem cutivamente, quer por qualquer outro me­
permanecer a tal ponto prisioneiros dos pares canismo que tom e sua ligação familiar ou
que a criança vai de um ao outro contra- espontânea.
ditoriamente. Ocorre, então, uma espécie de A expressão do pensamento que toma as
conflito perpétuo entre os instrumentos coisas como objeto deve, em seus primórdios
indispensáveis do pensamento e a realidade na criança, por volta dos 5 ou 6 anos, contar
do objeto a ser formulado. com os pares como seus instrumentos ne­
cessários, onde ele pode, aliás, permanecer
B...otte 7; “ O que é o sol? - É a lua. - É a prisioneiro, e, também, como obstáculos pró­
mesma coisa, o sol e a lua? - Não. - O que é a prios para não lhe deixar alcançar seu objetivo
lua? - A lua que clareia de m a n h ã .-E o que e, por desvios sucessivos, por associações
é o sol? - Que clareia de m anhã. - O que é a graduais, por encadeamento entre detalhes
lua? - Q uefica escuro. - Quando não tem lua, ou circunstâncias sem relações com o objeto
não fica escuro? - Não. - Então, como é que ou com a realidade, capazes de fazê-lo divagar
fica escuro? - Porque é de noite.” quer de forma incoerente, quer de forma
Nenhuma dessas respostas é exata, fabulatória.
embora cada um ligue-se, por um inter­
mediário, com a questão, sendo esse inter­ L...anc: “Como vem a chuva? - Cai água.
mediário um par. No início, há o par sol-lua, - Como ela cai? - Por toda parte. - Antes de
sob sua forma mais elementar e mais absoluta, cair, onde a chuva está? - Na água. - Onde
a identidade. Depois, há a associação, bem está a água? - Na terra. - Se ela está na terra,
paradoxal, de lua e manhã, provavelmente, como ela pode cair? Antes de cair, onde ela
sob a influência do par noite-manhã e por está? - Na água. - E a água, onde está? - Na
substituição entre seus termos, como ocorre terra. - E a água que está na terra, de onde
freqüentemente. De fato, “que clareia de ma­ vem? -D e cim a. - Tem água lá em cima? - Tem.
nhã” tem logo sua contrapartida: “que fica - Onde lá em cima? - Na terra. - Quando ela
escuro... porque é de noite”. Se a ordem da está lá em cima, de onde ela vem? - Ela cai na
alternativa inverteu-se inicialmente, parece terra."
que isso ocorreu devido à concorrência que
persistia entre os dois termos sol-lua do par A criança alterna entre dois pares de
precedente, tendo a resposta própria ao sol respostas “por toda parte-na terra” e “na água-
aparecido, por antecipação, para a lua. A lá em cima” que são, manifestamente, pares
seqüência mostra que isso era um simples por assonância17. Essa alternância entre o
lapso e que a criança sabe muito bem a grupo na terra e o grupo na água é, ela
relação da luz lunar e da noite. A primeira própria, controlada pelo par contraste terra-
fórmula que ela lhe dá é, aliás, contraditória: água. Assim, as respostas da criança parecem
é a lua que faz escuro. Mas, ainda aqui, é o par como que um retomo mecânico de um ao
que se exprime sob sua forma mais breve, outro, que origina, freqüentemente, contra-
mais espontânea, a identidade: lua-noite ou - sensos, pois ele pode produzir-se sem relação
escuro. É visível, portanto, que a associação com às perguntas feitas. Os pares estão em
dos termos que convêm um ao outro faz-se
através de fórmulâs preexistentes, que tais (17) N.T.- Em francês, há assonância entre "por toda
fórmulas, em sua estrutura mais simples, são parte” ("partout”) e "na terra’ ("par terre”); entre "na
pares, resultando esses pares de uma relação água” (“dans l’eau”) e “lá em cima” (d’en haut”).
INTERAÇÃO DOS PARES 67

relação de significação global com o tema da v e ze s q u e tem ven to. - Se tem sol, não tem
conversa; mas eles se detalham para si vento? - Não, f a z calor."
próprios, em vez de ajustarem seus termos às
alternativas do pensam ento. A progressão das respostas segue a
ação dos pares uns sobre os outros. Inicial­
L...dec 7; “O que é o vento? - É u m fole. mente, há fusão dos dois pares em que o
- De onde vem o vento? - D o norte. - O que o vento entra, com sua identidade paralela com
vento faz? - E lesopra. - Como ele pode soprar? o frio em primeiro lugar, depois com o ar,
- Q u a n d o f a z frio. - Como é que ele sopra acabando por transformar-se numa subor­
quando faz frio? - É p o rq u e é o in vern o. - Ele dinação instrumental do ar ao frio: embara­
nunca sopra quando não é o inverno? - Não. çada para dizer se o vento procede do frio ou
- O que é o inverno? - É u m a n o q u e tem m u ito do ar, a criança se sai da dificuldade expli­
vento." cando isso pela presença do ar, que o frio
produz o vento “porque tem ar”. Em seguida,
Aqui, as respostas estão mais ou menos há projeção de uma oposição própria a um
relacionadas às perguntas. Entretanto, o par sobre os dois termos de um outro par: a
caráter estranho de algumas revela que elas incompatibilidade entre frio-calor toma-se
estão ligadas a pares. “O vento é um fole” a de vento-sol. Assim, edifica-se uma explica­
pode ser explicada pela fusão de dois pares ção das coisas que se deve muito menos a
cujo term o com um se elidiu uma crença imediata, a uma análise direta das
condições delas, a uma concomitância cons­
Г Vento tante de impressões, do que ao jogo com­

{ I (soprar)
f (soprar)

*- Fole
binado das fórmulas sem as quais o real não
poderia ser pensado, mas que, na criança,
ainda são fragmentárias, limitando-se, tanto
nos pares como entre os pares, a relações
binárias.
Os outros pares são a locução corrente
“vento do norte”, a associação tão usual na INDETERMINAÇÃO DAS RELAÇÕES
criança, vento-frio, a quase-sinonímia, frio- DE REALIDADE ENTRE OS TERMOS
inverno. É a seqüência dessas equivalencias DOS PARES
que pode fazer a criança dizer, contrariamente
à sua experiência que só há vento no inverno. Nas idéias que a criança exprime, é ne­
Assim, seu pensam ento parece levado por cessário considerar as estruturas onde sua
esse material, que não é estritamente verbal, análise intelectual das coisas está, inicialmen­
e que tira suas origens da assonância, de te, aprisionada e cujas dissociações ou liga­
expressões familiares, de ligações sinonímicas ções conservam algo de aproximativo ou de
ou sincréticas. mecânico.

В...ert 6; “Como você sabe que tem vento? S...itch 6; 1/2 “Como pode ter água no
- Frio. - Como o vento faz o frio? - P o r q u e fa z céu ? - É q u a n d o o tem po está fe io ... - E o sol?
vento. - Como o vento faz vento? - Ele m a n ­ - É q u a n d o é d e d ia . - Por que tem sol quando
d a ar. - O que é o vento? - É a r . - A gente não é de dia ?- Q u a n d o o d ia está bon ito. - Por que
sente o vento toda hora? - N ão. - Por quê? - tem sol quando o dia está bonito ? - P a ra q u e
P o rq u e a g e n te a b re a s ja n e la s. - É o ar que f a ç a calor. - Como o sol faz calor ? - P a ra q u e
faz o vento ou o frio que faz o vento?... Como n ã o f a ç a fr io . - Quando está frio, nunca tem
o frio faz o vento? - P o rq u e tem ar. -N ão tem sol? - N ão. - Você já viu o sol ? -Já. - Como ele
vento todo dia? - Têm vezes q u e tem sol, têm
68 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

é ?- Q uando é de dia. - Como a gente pode ver “dormir”. A ligação dos termos é “quando" ou
a lua ? - £ quando é de noite.” “porque”, cujo sentido permanece bem vago
A relação, que está, aqui, explicitada ou indeciso, pois eles parecem sermuitomais
entre os termos de cada par é, quase sem ocasionados pela forma das perguntas do
exceção, a mais fracamente definida, a mais que pelo sentido. De fato, a relação de causa­
polivalente possível. “Quando”, indicando lidade é invertida entre “noite” e “dormir":
uma coincidência no tempo, pode significar fica de noite porque “é hora de dormir”. Mais
também uma relação de causa a efeito, sem, adiante, “o céu fica escuro porque fica tudo
aliás, especificar em que sentido ela se exer­ escuro”; trata-se, portanto, de uma simples
ce, como convém ao pensamento indiferen­ tautología. É a forma interrogativa “como”
ciado e ambivalente da criança. Assim, ela que introduz a locução de lugar “no céu”,
une chuva e tempo feio, sol e dia, sol e dia depois sua fusão com o tema noite-escuro:
bonito, lua e noite. Sua falta de apropriação “fica de noite porque o céu está escuro”:.
aparece, contudo, quando se compara a res­ Simples tautología ainda ou tentativa de
posta à pergunta feita. Ela responde a “como” explicação? Na verdade, há uma fusão qual­
ou “por que”. Seu papel limita-se a introduzir quer entre dois temas de pensamento simul­
o termo que completará o par iniciado pela tâneos e que têm certos aspectos comuns. O
interrogação. Ocorre o mesmo com a segun­ termo que opera a junção não parece ter
da conjunção utilizada “p ara quê'-, ela significação causal: o “porque” da resposta
introduz “calor” após “sol”, “frio” após “ca­ forma apenas com o “por que" da pergunta
lor”, m enos para exprimir uma finalidade do um par complementar.
que uma relação qualquer de dependência. A
sucessão de perguntas a respostas é muito ENCADEAMENTO FABULATÓRIO
menos controlada pelo sentido do que pela DOS PARES
tendência dos pares a se completar. Ela tam­
bém é das mais aproximativas. Quanto à ação A respeito dos pares que se recobrem
dos pares entre si, há a confusão entre os mais ou menos, o efeito inverso pode se
pares alótropos sol-dia e sol-dia bonito, há a produzir. A mesma razão que faz os equiva­
transferência, aoparsol-frio, da incompatibi­ lentes acumularem-se pode produzir a dis­
lidade entre frio-calor. persão por justaposição de pares díspares.

Da mesma criança: “Como é que fica de B...otte 7; “O que é a chuva ? - Água. - De


noite? - Équando é tarde. - Como fica de noite onde vem ? - De Deus. - O que é Deus ? - É
quando é tarde ? - Fica tudo escuro. - Mas Jesus. - E Jesus ? - No céu. - ...O que é o céu ?
como é que fica tudo escuro? - Porque é hora - Cinza. - Como Jesus pode estar no céu ?
de dormir. - Por que fica escuro quando é ...Como ele pode fazer a chuva ? - Água. -
hora de dormir ? - Porque fic a de noite. - Como ele pode ter água ? - Por um riacho. -
Como é que fica de noite ? - No céu. - E como Onde está esse riacho ? - Na terra. - Como é
é que fica de noite no céu ? - Não sei. - Como que Deus, que está no céu, pega água num
é que fica de noite ? - Por que o céu fic a riacho na terra ?...Como ele pode pegar a
escuro. - Como é que o céu fica escuro ? - água ? - Com um jarro. - E a água do riacho,
Começa a fic a r tarde. - Por que, quando fica de onde vem ? - Da fonte. - E a água da fonte?
tarde, o céu fica escuro ? - Porque fic a tudo - Do rio. De Jesus.”
escuro."
A explicação dada, aqui da chuva, pa­
Em torno da palavra “noite”, dispõem-se rece ser menos a expressão de uma cren­
os pares onde ela se une a “tarde”, “escuro” e ça primitiva do que o resultado de pares
INTERAÇÃO DOS PARES 69

bifurcados, de pares trocadilhos e de pares estavam perdidos. - Onde eles estavam antes
contrastes. De fato, há um tempo de hesita­ de estarem perdidos ? - Eles estavam na casa
ção quando a criança precisa explicar as re­ deles. - E antes de estarem na casa deles, onde
lações entre a água do céu e a do riacho por eles estavam ? - No pátio. - E antes do pátio ?
intermédio de Jesus. De início, ela enunciou - Ah! Bom, eles estavam na casa deles. -
o par dúplice que a água forma com a chuva ...Quando você levou esses meninos e essas
e com o riacho. É para uni-los entre si que ela meninas para casa, o que é que seus pais
combina, em seguida, providencialismo e an­ disseram ? - Elesficaram bravos. - Eles estão
tropomorfismo: Jesus e seu jarro, a própria sempre na casa de seus pais ? - Sempre. - O
união deles corresponde ao par contraste “no que eles fazem em casa ? - Eles lavam louça e
céu-na terra”. Enfim, ela passou do céu mís­ depois fa zem a com ida deles.”
tico, pelo qual ela definia Jesus, ao céu cinza,
que é o da chuva. Por meio de um par alótro- As associações são feitas, aqui, gradual­
po e do trocadilho que disso resulta, ela con­ mente e de maneira quase automática: en-
funde o plano da Providência e o da natureza. contrar-achar, achar-perder, estar perdido-
Mas esses discursos sem nexo são muito estar em casa, estar em casa (dentro de casa)-
menos suscetíveis de chocar a criança do que estar no pátio, o que ele disse ? - Ele estava
o adulto. Eles correspondem a saltos de sua bravo. Pares complementares, pares con­
imaginação entre objetos, ao mesmo tempo, trastes, pares usuais formam os elos desse
globais e parciais. A diversidade inopinada relato que não corresponde a nenhuma rea­
desses conteúdos mentais serve exatamen­ lidade e que não parece ter sido premeditado.
te, pelo contrário, para seduzi-la. Eles agra­ Seu desenvolvimento, sustentado, aliás, pelo
dam a seu gosto de renovamento, sua cu­ prazer de brincar com a incredulidade do
riosidade impulsiva, sua repugnância pelas ouvinte, parece vacilar de par em par.
severas reduções de suas representações a É o relato sob seu aspecto não apenas
algo de contínuo, de homogêneo e de monó­ mais acidental, mas também mais formal. Os
tono. Assim, ela se entrega, de bom grado e pares, encadeando-se dois a dois, são, aqui,
de forma lúdica, a essas associações díspa­ menos do que uma simples seqüência de
res e surpreendentes. A estrutura fragmenta­ anedotas. Entre anedotas, pode, deve haver
da dos pares, é, sem dúvida, uma limitação de uma integração mais ou menos rigorosa. Num
seus meios, mas a criança encontra nela uma relato coerente, é preciso um conjunto des­
satisfação, que lhe é uma espécie de sedução, critivo ou demonstrativo. O relato é, assim,
em ultrapassar, sem cessar, a propósito de uma forma de explicação, a que é, inicial­
um objeto, as imagens que ela dele tem por mente, acessível à criança, porque seu tema
outras imagens, e cada objeto por um outro transforma-se numa sucessão de circunstân­
objeto, ao mesmo tempo em que lhes desco­ cias, todas pertencentes ao campo dos fatos.
bre relações. Assim, ela aglomera conjuntos Ela pode, ainda, conservar a forma em pares,
onde seu pensamento posterior poderá traçar porém dirigida.
sistemas coerentes de conhecimento. Ao contrário, a explicação, que reduz os
Essas associações de pares podem, aliás, fatos a princípios, é muito mais tardia. Pois as
degenerar-se - em certas crianças ou em cer­ relações entre fatos, em vez de se trans­
tos momentos - em fabulação absurda ou em formarem imediatamente na simples suces­
mistificação. são deles, são compreendidas apenas quando
relacionadas a um terceiro termo feito de
V...el: partindo das palavras “menino” e representações que não são dados imedia­
“menina" diz ter filhos: “onde você encontrou tos da experiência sensível. A essas repre­
meninos e meninas ? - Eu achei na rua. Eles sentações e às operações que elas tomam
70 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

possíveis são necessários símbolos. É, então, palavra não ofereça nenhum a dificuldade
um outro plano que se sobrepõe ao dos particular, m as que produza um a outra, que
dados puramente sensíveis e ao qual é preciso pertence à mesma esfera de significação. Um
que elesse integrem como a algo de mais real, doente, solicitado a repetir “igreja " responde
embora virtual, e que ultrapasse cada um “D eus” (Goldstein). Um outro respondia, a
deles pela constância, pela generalidade, mas “crocodilo”, “tartaruga" (Henneberg); um
que depende de uma imaginação inteiramente outro dizia “m eia”p o r “calças"e ‘porta"por
abstrata. “janela ” (Aíohn).”
A explicação proposta por esses autores
REVTVISCÊNCIA DO PAR é, ao mesmo tempo, por demais limitada e
NO PENSAMENTO PATOLÓGICO confusa: “Lotmar pôde mostrar que a pa-
rafasia não era determ inada p o r analogias
Se o par é uma estrutura primitiva no fonéticas, m as pelo fa to de que duas palavras
pensamento da criança e que, provavelmente, pertencem à mesma esfera de significação".
pode ainda ser utilizado pelo do adulto, mas É, provavelmente, muito justo objetar, aos
tão subordinado a seus fins que, em si mesmo, antigos autores, que situar a parafasia entre
passa desapercebido, pode-se supor que, ao os problemas descritos como afasia sensorial,
longo de certas regressões ou dissociações seria dar, às influências sensorimotoras, uma
funcionais, ele deve reaparecer. É bem co­ importância essencial que elas não possuem,
nhecido o caso desses doentes que parecem e que pode até mesmo estar totalmente
brincar de dar respostas de contorno, através ausente. Porém, não é verdade que a confusão
de uma palavra que tem alguma relação com dos termos não possa repousar sobre uma
a palavra esperada, mas cuja discordância assonância, tanto quanto sobre uma relação
com a pergunta torna a linguagem deles de sentido: contraste, o fato de pertence­
rebuscada, estranha ou absurda. O fato é ge- rem um ao outro, associação usual ou cir­
ralm ente atribuído a uma atitude de oposição cunstancial.
ou de zombaria, ou seja, a uma intenção. Dizer, sobre a parafasia, que ela é “a
Mesmo se fosse estritamente assim, o meca­ conseqüência de um a dificuldade que a u ­
nismo utilizado voluntariamente permane­ m enta no desencadeam ento das funções
ceria, entretanto, a ser explicado. Contudo é verbai? é enunciar uma condição evidente,
bem plausível que, nos casos de desintegra­ mas não dar a causa da substituição. “O que,
ção mental como a esquizofrenia ou a sín­ no estado norm al - ao mesmo tempo em que
drome de Ganser, a oposição seja menos cau­ fa z parte do complexo que determ inará a
sa psíquica que resultante e que suas mani­ palavra-, perm anece sob o lim iar da cons­
festações motoras, verbais ou afetivas resul­ ciência, aparece, aqui, em plena luz. A
tem de reações elementares de contraste ou escolha da palavra fa z-se no m om ento em
de automatismo, que voltaram a se produzir que a expressão, que se tom ou m ais fluida,
por si próprias. transpôs o lim iar da consciência ”. Também
Em todo caso, certas respostas estranhas é muito justo, evidentemente, mostrar que a
que foram notadas quando houve dissolução palavra não tem, para aquele que a procura,
da linguagem, como na afasia, parecem como que uma existência anterior ao sentido,
encontrar a melhor explicação na revivis- mas que ela faz parte de um complexo do
cência dos pares por si próprios. É o que qual deve, por fim, destacar-se. Contudo,
ocorre com os doentes estudados por Gelb e atribuir unicamente à dificuldade ou vis­
Goldstein: “Não é rafo que o doente, solicitado cosidade da expressão o fato que a palavra
a repetir um a palavra, não possa repetir a ceda o lugar a um outro elemento qualquer
que acabam os de dizer-lhe, mesmo se essa do complexo, é uma explicação não apenas
INTERAÇÃO DOS PARES 71

indeterminada demais, mas em desacordo nhecimento da causa. Eis aí um circuito que


com o caso dado precisamente como exem­ é, evidentemente, atribuível a dificuldades
plo, onde o sujeito tem, não que encontrar anormais de evocação e de associação, mas
por si mesmo, mas apenas repetir a palavra. que põe em evidência as estruturas elemen­
Aí, de fato, não pode se tratar de uma abor­ tares para as quais podem regressar as fun­
dagem progressiva que se interromperia, antes ções da linguagem ou da ideação, e que,
de estar acabada, pela irrupção prematura de conseqüentemente, demonstra a existência
um termo que ainda não é o procurado. É delas.
preciso, ao contrário, supor que, mesmo A constatação dessas formações binárias
quando já está auditivamente realizada e pode ser encontrada também nesta obser­
individualizada, uma palavra, assim como vação de Gelb, sempre a propósito dos afási-
um termo qualquer, não pode permanecer cos (J. dePs., 33,p.409). Incapaz de organizar
isolada, mas sempre tem, ela própria, ten­ as cores segundo a aparência fundamental
dência a se especificar, com ajuda de um delas, segundo a “claridade”, o “calor” ou a
termo complementar que forma par com ela. “frieza” do tom, “ele podia agrupar, geral­
No estado normal, esse termo auxiliar, embora m ente duas a duas, cores escolhidas, fre ­
vindo em segundo lugar, é reduzido pelo qüentemente, com m uito cuidado eprecisão,
primeiro. Porém, mais recente na intuição mas levando em consideração apenas a
psicossensorial, é ele que emerge, que adequação concreta e m om entânea delas,
monopoliza o instrumento de expressão, se tal como ela se im punha, a ele, segundo a
algum enfraquecimento funcional impede que relaçãofortuita delas, por razões intuitivas e
a redução seja feita. concretas”. Gelb insiste sobre a inaptidão
Eis um outro exemplo de Goldstein. “O dessa relação entre duas cores para servir
doente a quem perguntam os de ondeprovêm como regra posterior de classificação. Ele vê
as ondas da água responde: “Oventosussura, nela algo de fortuito, o que pode haver de
o vento... vento. ”O autor: "O que você disse fortuito e, conseqüentemente, de não-mental
aí? O vento sussura?" O doente: “A s ondas... na apercepção do concreto. Ele nota que a
as ondas m urm uram , o vento sussurra" (ar aproximação preferida do doente era a de
completamente ausente). O autor: “Mas o cores que concordam entre si em todos os
que é, então?" O doente: "Isso deve ser um a pontos, ou seja, cores idênticas. E, sem dúvida,
poesia. Eu mesmo não sei como veio, como nada consolida tanto o primeiro esforço do
explicarisso. O que eu devia dizer? As ondas? pensamento para superar a impressão bruta
De onde vêm as ondas? Então, veio: “As dos objetos por um ato, quanto a assimilação
ondas m urm uram , o vento sussurra. “Então, do inteiramente semelhante, o reconheci­
é o vento!’ mento de uma identidade, uma tautología. A
Aqui, a relação causai entre ondas e ligação é, contudo, o resultado de uma ope­
vento é visivelmente deduzida: “então, é o ração que supõe dois termos. De início, ela se
vento”. Em vez de ser direta, ela consegue limita aos dois termos particulares que une e,
formular-se apenas por intermédio dos dois conseqüentemente, não pode se estender a
termos “sussurrar” e “murmurar”, relação de outros “como um a regra posterior de clas­
assonância. Um está ligado a vento, o outro, sificação/’. Será essa uma razão para opô-la
a ondas. São os dois pares vento-sussurro, radicalmente a toda veleidade de raciocínio?
ondas-murmuram, dos quais um dos termos, O exemplo da criança mostra, ao contrário,
sussurra e murmura, formam, juntos, um como, entre dois pares, a relação dos termos
terceiro par, que fazem, enfim, com que seja tende a se transferir de um a outro para fazer
identificada a relação entre o vento e as ondas. com que disso saia uma conclusão, que, aliás,
A assonância abre o caminho ao reco­ pode ser viciosa, ou como os pares podem
72 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

reagir, uns sobre os outros, a fim de chegar à muito diferente do poder constelante que
solução de um problema explícito. opera no imediato da percepção ou da ação.
Os pares já são como um agrafo do Há outros pares, enfim, onde a criança parece
conhecimento sobre o objeto desdobrado da proceder principalmente por analogia, sob
intuição sensível ou intelectual. Eles agem forma, aliás, quer positiva, quer negativa, e
como ato de posse, assimilação ou diferen­ acontece-lhe mesmo, freqüentemente, de for­
ciação, em todo caso, como princípio de li­ mular uma relação sem reconhecer, em pri­
gação mental, de ligação ativa, e não mais de meiro lugar, se ela é de contraste ou de seme­
união passiva. Provavelmente, eles ainda se lhança.
limitam a afirmações de adequação ou de Os pares analógicos ainda podem ser
inadequação entre efeitos particulares, e elas encontrados no adulto. Eles podem até mesmo
podem ser apenas totais, porque não podem se tomar um procedimento literário “Não hã
ser limitadas, em cada um, por outras ade­ p ior economia do pensam ento do que a
quações ou de inadequações simultâneas. analogia: “um prado roçado recentem ente”.
Assim, a participação de um mesmo efeito em O que hã de m ais cansativo, escreveu A. Gide
vários pares faz com que ele, sucessivamente, (J., 822), do que essa m ania de certos
mude para significações diversas. Sua co­ literatozinhos que não podem ver um objeto
existência seria uma quase-impossibilidade. sem pensar im ediatam ente em um outro. ”
Seria preciso que ele de algum modo se di­ Jules Renard, o “caçador de imagens”, a quem
vidisse embora pertencesse, a cada vez in­ se dirige esse acesso de mau-humor, não
teiramente e sem distinção, ao par onde entra aceitaria evidentemente, a repreensão de
momentaneamente. economizar sua pena, visto que descreveu,
A natureza desse agrafo é variável. Os ao contrário, o quanto é preciso tèr o espírito
dois termos do par podem estar unidos pela ágil para fazer a imagem sair e apreendê-la. É
oposição deles, que, contudo, exprime-se às bem verdade, entretanto, que sua arte consistia
vezes, inicialmente, sob forma de identidade. na sábia exploração de uma forma muito
Eles podem implicar um ao outro, quer como elementar de pensamento, e que o fato de
os dois pólos de uma mesma situação, donde substituir a imagem ou o nome do objeto por
alternância, quer como unidos de fato na uma outra imagem ou por um outro nome
experiência ou na sensibilidade do sujeito, pode ser observado em fases bem primitivas
donde sincretismo. A análise dessa união do pensamento, ou quando ele se desagrega
sincrética pode formular-se, para a cons­ em seus elementos mais simples.
ciência, como um simples sincronismo, mas Se o par é verdadeiramente isso, é pre­
também nela despertar o sentimento de um ciso prever reencontrá-lo nas formas de pen­
vínculo mais íntimo e mais substancial, de sar e de falar próprias às fases mais remotas
uma dependência causai ou de uma adequa­ das civilizações humanas. Ainda restam hoje
ção e de uma apropriação recíprocas, que vestígios? Um explorador, num relatório on­
serão expressas sob forma de finalidade, sem de anuncia que pôde reconstruir trinta lín­
que, aliás, a criança tenha nitidamente a noção guas ou dialetos, escreve: “Um a prim eira
de que um dos dois termos existe em vista do classificação dessas línguas me perm itiu, ao
outro. Na verdade, ela se mostra, com muita mesmo tempo, traçar um mapa de migrações
freqüência, incapaz de decidir qual o efeito na Nova-Caledônia e isolargrupos lingüísti­
ou a causa, qual o meio ou o objetivo, ficando cos no seio dos quais conservaram-se o m a­
a relação ambivalente e invertendo-se alterna­ ior núm ero de noções não diferenciadas
damente. Sob esses aspectos diversos, o sin­ (a unidade-par, doença-defunto, cadáver-
cretismo é um estado ainda bem elementar, deus etc.) ou o m aior núm ero de expres­
onde a atividade da representação não parece sões gram aticais que refletem a estrutura da
INTERAÇÃO DOS PARES 73

sociedade (duais, até mesmo o “substituto ” da, e sua tendência ao emprego das estruturas
deles, etc.)." (Leenhardt, relatório de 5 de binárias, que é sua primeira manifestação de
julho de 1939.) Essas noções não diferencia­ existência, seu primeiro passo fora da confu­
das, onde dois termos coexistem, ao mesmo são universal, em direção a atos diferencia-
tempo confundidos e distintos, essas unida- dores e de relação? Que baste, aqui, notar
des-pares, assim, talvez, como a freqüência essa coincidência, esperando a interpretação,
do dual também, não lembram os pares onde pelos antropólogos e lingüistas, dos pares
não cessa de se moldar o pensamento da que resultam das realizações do pensamento
criança, antes que ele seja capaz de enunciar, coletivo.
entre os termos deles, um relação determina­
CONCLUSÕES
E
COMENTÁMOS

As estruturas elementares do pensamento uma observação feita com freqüência, con­


têm condições negativas e positivas. Positivas, dicionado ou alterado por seus desejos ou
elas correspondem às exigências primeiras seus estados afetivos, ele sofre a influência
do pensamento discursivo, que faz com que das circunstâncias que podem, seja de forma
a atividade intelectual passe para um plano durável, seja momentaneamente, manifes­
novo. Negativas, elas são anteriores, embora tar-se em sua conduta ou motivá-la.
necessárias a seu advento. Entre as etapas Em conversas como as de onde são
sucessivas pode ter, aliás, não apenas vínculos extraídos os exemplos desse estudo, as
de dependência orgânica, mas semelhanças relações da criança com o interlocutor podem
de retardamento, como se observa quando o tornar-se tão preponderantes que o objeto
nível funcional aumenta e provoca a trans­ delas se encontra, às vezes, como que su­
ferência a outras operações de formas já primido. Em todo caso, é impossível con­
realizadas por condutas mais primitivas ou siderar uma resposta da criança como o re­
mais simples. É um fato de “deslocamento” sultado exclusivo de suas reflexões, de suas
sobre o qual insistiram Stem e Piaget. crenças ou de seu saber. Freqüentemente, ela
se transforma ao longo da conversa. Assim,
O COMPORTAMENTO ela nunca deve ser separada da situação que
INTELECTUAL DA CRIANÇA a acompanha, nem de seu contexto. A criança
não tem ponto de vista pessoal, ou então, ela
A dependência do pensamento com o faz valer de forma bruta e maciça. Se
relação a seus comportamentos anteriores é conversa, participa quase tanto das palavras
muito marcada na criança. As situações e os do interlocutor, na medida em que as
problemas podem ser, pelo do adulto, afas­ compreende, quanto das suas. Nem sempre
tados de toda contingência não intelectual. sabe muito bem o que é do outro ou o que é
Com a criança, pelo contrário, a atividade dela mesma. Essa confusão no intercâmbio
mental não pode, frequentemente, explicar­ não é, aliás, factícia. Ela é apenas um retorno
se senão sob o ponto de vista de sua ativida­ às origens. Toda palavra, todo pensamento
de total, mesmo as situações intelectuais falado e, conseqüentemente, mesmo todo
permanecem pessoais. Enquanto o progresso pensamento silencioso foram, no início dia­
relizado pelo adulto é fazer passar ao primeiro logados, permanecem mais ou menos
plano, e, freqüentemente de forma exclusiva, dialogados na criança, retornam ao diálogo
o objeto de suas reflexões, para a criança, o nos casos de regressão ou de dissociação
objeto permanece, ; com mais freqüência, psíquica, sob a influência, por exemplo, de
subordinado ao conjunto de suas reações emoções violentas ou nos casos ditos de
efetivas. O objeto não é apenas, segundo automatismo mental, onde o sentimento do
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 75

pensam ento pessoal dá origem a conflitos associada ao mutismo oposicional e de um


interlocutórios e a im pressões de desapos- mecanismo muito sem elhante é a resposta de
sam ento psíquica. A participação limitada da contorno que pode, com o aquele, assumir
criança em todas as fases do diálogo acarreta um aspecto sistemático. Parece que, no m o­
sua submissão ao ponto de vista do outro, mento de se produzir, ela sofre um desvio,
quando a palavra é deste. Isso é, aliás, mais que substitue o sentido exigido pela pergun­
um a necessidade de sua com preensão do ta por um a associação ou um automatismo
que um sinal de sugestionabilidade. elementares. Sem dúvida, p o d e existir uma
Contra essa alienação alternada de si em intenção. Particularmente, a criança pode fa­
outrem ergue-se um a necessidade de con­ zer um jogo de opor discursos sem nexo às
trolar-se que pode dar, gradualmente, agres­ exigências mais ou m enos fastidiosas do
sividade à resposta, e fazer da conversa uma adulto. Mas mesm o fora da mistificação, ela
emulação, onde a única questão torna-se tam bém pode encontrar neles um prazer
uma necessidade de prevalecer, de ser o que intrínseco. Na verdade, ela se entrega, assim,
fala mais forte ou que tem a última palavra. às surpresas e como que às descobertas que
Esse gosto de discutir contra todo bom senso, podem ser provocadas por um a falta de coe­
para m anter seu ponto de vista próprio, são espontânea entre os m om entos ou os ma­
em bora indefensável, ainda pode ser en­ teriais diversos de suas operações intelectuais.
contrado em certos adultos. A oposição pode, A influência exercida, sobre as reações da
também, assumir um a forma absoluta e ne­ criança, por suas relações com o outro, mutis­
gativa: é a recusa de participar da conversa. mo e respostas de contorno, têm, como con­
Essa atitude torna-se com o que exatamente dição comum, a aptidão persistente de sua
simétrica à do interlocutor. Com a insistên­ atividade psíquica em se deixar dissociar.
cia das perguntas, cresce a obstinação do mu­ Essa insuficiência de continuidade e de
tismo. Q uando esse duelo de duas vontades coordenação mentais está, ela própria, rela­
que se afrontam ainda é encontrado na idade cionada com uma falta de domínio sobre os
escolar, é com o retom o episódico de um a instrumentos do pensam ento. Eles opõem à
fase que foi indispensável no desenvolvi­ criança uma certa inércia, que se traduz por
m ento psíquico da criança, para tirá-la da um atraso de com preensão ou de resposta,
dependência onde sua participação nas si­ donde resulta, freqüentem ente, um aparente
tuações ambientais e nas atividades do outro desacordo na sucessão das perguntas e das
mantinham-na. Mas a causa disso é diversa: respostas; p o r um a espécie de viscosidade
sentim ento de anim osidade mais ou menos das imagens e das noções, que as im pede de
repentino para com a pessoa do interlocu­ fundir-se em conjuntos mais extensos de
tor, necessidade de afirmar a sua, desacordo significações e provoca a divisão delas, le­
fortuito das atitudes recíprocas, fracasso real vando-as a curto-circuitos onde o pensam en­
ou previsto, provocando um a reação siste­ to se perde; enfim, pela persistência das mes­
mática de abstenção, capricho sem causa mas imagens, das mesmas fórmulas, dos
aparente. mesmos vocábulos que tendem a se repetir,
mesmo fora de propósito, se acabaram de ser
Todos esses mecanismos podem ser utilizados. Essa persistência pode ir até a
constatados, mas têm um fundo comum: uma embolia verbal, ou seja, a parada do pensa­
falta de ligação estável entre os momentos da mento através de uma palavra, que incessan­
vida psíquica. A todo instante, ela está sujei­ tem ente substitui aquelas através das quais
ta a deixar-se suspender ou desviar por ele poderia acabar de se desdobrar. A essa
im pressões de causa, às vezes, inteiramente confusão de termos a criança sucum be tanto
subjetiva. Uma reação com muita freqüência mais facilmente quanto, entre as palavras,
76 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

assim como entre as próprias idéias, o sentido está afastado demais que podem se produzir
permanece mais ou menos indiferenciado e lapsos. Mas, na criança, ele pouco pode se
um mesmo sentido pode ser ambivalente, ausentar. Ao mesmo tempo que a pobreza da
ou seja, ser, ao mesmo tempo, ou, alternada­ expressão limita seu conteúdo, este dispõe,
mente, ele próprio e seu contrário. Indiferen- ainda muito mal, dos recursos que o saber
ciação e descontinuidade caminham junto. verbal poderia lhe oferecer. O saber verbal
Indistintos entre si, as etapas ou os termos do opõe-lhe sua pobreza, sua inércia, ou tende a
pensamento são, na mesma medida, despro­ manifestar-se por si mesmo, fazendo preva­
vidos de relações mútuas. lecer, sobre o pensamento, seus próprios
É assim que o pensamento da criança é mecanismos.
perpetuamente constituído de temas inter­ Essa insuficiência é de menor conse­
rompidos, de temas simplesmente unidos e qüência na criança por causa do papel ainda
algumas vezes contraditórios, de uniões nas restrito que desempenha seu pensamento.
quais os mesmos temas são, alternadamente, Ele está muito menos apto do que o do adulto
assimilados e opostos. Esses encadeamentos a se separar das situações que o motivaram e
incoordenados vão, sem cessar, da estagna­ das circunstâncias concretas delas. Ele per­
ção no mesmo lugar à digressão. Mas a di­ manece, habitualmente, ligado, por algum
gressão pode também prosseguir por si pró­ lado, ao detalhe ou à sucessão delas. Deve,
pria, devido aos efeitos que a criança pode portanto, ter a espécie de descontinuidade
disso obter, para uso do outro ou para sua que a seqüência dos acontecimentos pode
própria satisfação. Ela se desenvolve então, inserir na seqüência das idéias. Mas, prin­
sob forma de uma fabulação, que inventa-se, cipalmente, o pensamento sofre tanto mais
por si só, pouco a pouco. essas inserções quanto é, primeiramente,
simples acompanhamento delas. Sem o apo­
O COMPORTAMENTO io da linguagem, ele é incapaz de se desen­
IDEO-VERBAL volver. E mesmo esta, antes de ser evocativa,
antes de poder assumir completamente o
A influência que exercem, um sobre o papel de suprir o que está ausente, o atual­
outro, o material e a descontinuidade do mente inexistente e, mais tarde, de enfrentar
pensamento fica bem aparente na seqüência um mundo que não seja mais imediatamente
do discurso. A linguagem da criança é, fre­ sensoriomotor, a linguagem é exclamativa,
qüentemente, muito elíptica. Por um lado, de demonstrativa, amplificativa. Enfim, uma sim­
fato, seu material verbal é pobre. Aliás, não ples auxiliar das impressões perceptivas, das
tanto como vocabulário, mas no uso a ser reações afetivas ou práticas. É estritamente
extraído dele. As palavras não são tudo. Elas complementar da experiência no momento
contraem, entre si, relações de sentidos sobre em que esta é vivida. Não há necessidade de
as quais é, habitualmente, inútil refletir para exprimir o que é aparente. Ela se limita a
que provoquem suas conseqüências. Consti­ traduzir a ressonância subjetiva suscitada pe­
tuem, assim, um “saber verbal” que pode los traços surpreendentes da situação, pelas
manter uma espécie de funcionamento auto­ peripécias da cena, a acentuar os detalhes
mático, mesmo quando a fala intencional é que parecem importantes, ou mesmo a lem­
abolida, como em certos casos de afasia brar determinados efeitos relacionados com
amnésica. Normalmente, o objeto e os obje­ as circunstâncias presentes, embora, no mo­
tivos do pensamento podem apenas afastá-lo mento, não manifestados por elas. Ela não
de sua tradução, qúe ele entrega ao saber tem que exprimir o próprio objeto do pen­
verbal, sob um controle mais ou menos vigi­ samento que é o dado, o presente, o per­
lante. É nos momentos em que o pensamento cebido, o efetivo.
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 77

Embora muito depois que as falas da que devem fazer com que a simultaneidade
criança souberam emigrar do meio senso- confusa e global da intuição passe para a
riomotor para o das puras representações sucessão dos gestos e das palavras. Na pró­
mentais, elas conservam as mesmas lacunas pria sucessão, é preciso, ainda, uma certa
referentes ao essencial. Quantas vezes ela se simultaneidade, para que ela não se alongue
exime de enunciar as circunstâncias concre­ em momentos sem unidade mútua e para que
tas de onde resulta uma situação imaginada, corresponda progressa, mas continuamente,
de designar os personagens de outro modo ao conteúdo que nela se desenrola. Essa
a não ser pelo mais anônimo dos prono­ mistura de persistência e de desdobramento,
mes, de evocar a base sem a qual os termos de efetivo e de transitivo é assegurada pelo
de seu relato, ou de sua explicação nada tem que permite, à atividade psíquica, dilatar o
de comum, de coerente, de compreensível. presente e o mesmo até o durável e o diverso.
Evidentemente, o pensamento da criança es­ Assim como há um poder constelante no
tá tão inteiramente ocupado por seu objeto espaço, que organiza, a todo instante, a per­
que este é, para ele, ao mesmo tempo, o que cepção e a ação prática, há um no tempo e,
é inútil e o que é impossível de exprimir. Evi­ provavelmente, as raízes deles estão inti­
dentemente, ainda, reduzir as palavras e mes­ mamente confundidas. A constelação no tem­
mo identificar, por meio de imagens precisas, po são as combinações de ritmo e de melodia,
o conteúdo mental, é uma operação de com­ que fornecem ao ato mental a medida pela
ponentes já tão minuciosos que se fosse qual se agrupa o distinto em unidade e em
preciso, como o fizemos, distinguir entre um conjuntos unificáveis. Experiências precisas
pensamento com imagens e um sem imagens, mostraram que o poder constelante da criança,
este seria, de longe, anterior ao outro. Mas seja na simultaneidade, seja no sucessivo,
levantar esse problema é postular um realis­ tem limites mais estritos que no adulto. Mas a
mo da imagem que esquece seu papel es­ diferença aumenta consideravelmente se ele
sencialmente expressivo, seu alcance sim­ deve agrupar, em vez de elementos simples,
bólico, e que ela responde simplesmente a como pontos ou sons hom ogêneos, elemen­
um certo nível na hierarquia dos símbolos. tos diferenciados e dotados de uma forma ou
Entretanto, oque moatram essas dificuldades, de um sentido. Naturalmente, quando os agru­
é sua semelhança no plano da experiência pamentos são uma realização da linguagem,
concreta e no da representação: elas se trans­ sistema de símbolos significativos, outros
feriram de um para outro. Nos dois casos, a fatores, além do ritmo e da melodia, intervém
situação extrai do sujeito reações puramente também para unir pensamento e duração.
pessoais e particulares, antes de se deixar Mas eles devem ajudar, da mesma maneira, as
exprimir por este em sua totalidade objetiva. idéias e o tempo a tomar a medida mútua
A esses motivos de fragmentação elípti­ deles.
ca acrescentam-se outros, que atestam uma O poder de agrupamento pode, com
insuficiência no próprio processo do pen­ igual capacidade, ver o que está agrupado,
samento quando este se exprime. Ele deve estender ou reduzir seu alcance. Se a capa­
passar, sem cessar, por alternativas de des­ cidade constelante é menor na criança do que
dobramento e de contração, ora voltar-se pa­ no adulto, na duração assim como no espa­
ra as frases e as palavras que vão exteriorizá- ço, a isso vem acrescentar-se a diminuição
ío e traduzir-lhes os detalhes sucessivos, ora da velocidade devida à inércia de suas reali­
controlar-se por si mesmo como intuição de zações psíquicas, à viscosidade, às repeti­
conjunto e como intenção projetada para no­ ções delas, que também empobrecem cada
vos desenvolvimentos. Entre esses dois ter­ momento do conteúdo mental. As relações
mos da alternativa, inserem-se intermediários, de fato, de ato, de sentido distendem-se e
78 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

dissociam-se. Pois há uma questão de ve­ particularmente, o que se observa no campo


locidade subjacente às operações mentais, da sintaxe. Entre o sentimento de uma nega­
que devem conjugar, incessantemente, o ção e o de um condicional, por exemplo, a
instantâneo e o sucessivo, a intuição e a dis­ criança, não sabendo como distribuí-los, dei-
tribuição do ato em momentos que substi­ xa-os se sobrepor, podendo chegar a uma
tuem uns aos outros, embora mantendo fórmula incompreensível ou contraditória.
unidade e continuidade. É contra a influên­
cia dissociativa do tempo, onde é preciso AS DESCQNTINUIDADES DO
que se detalhe nossa atividade, que Descar­ PENSAMENTO INFANTIL
tes recomendava restringir os termos do ra­
ciocínio entre si, através de uma recapitula­ Condensação e fragmentação 'do pen­
ção suficientemente repetida, até fazê-los se samento ocorrem simultaneamente. A des-
contraírem numa intuição única. Mas, é em continuidade permanece latente entre ter­
todos os graus da atividade intelectual e na mos simplesmente aproximados. Não redu­
simples passagem do pensamento à fala que zidos'à unidade de uma fórmula intelectual
se encontra essa obrigação contrária de uma ou de uma conduta prática, eles possuem
apercepção total e de uma realização frag­ conflitos potenciais. Aqui, ainda, a lingua­
mentária, cuja síntese é a continuidade: conti­ gem, antes de estar suficientemente flexível,
nuidade das próprias estruturas verbais, do explícita e ordenada, pode se chocar com
discurso ou do raciocínio. dificuldades que ela deveria de suprimir. Janet
Entretanto, a natureza dos termos agru- mostrou a economia e a coerência que o com­
páveis tem ainda mais importância do que a portamento pode extrair das condutas verbais
rapidez de mobilização deles. Em suas fases que substituem as conduas essencialmente
de condensação, o pensamento retém o que motoras. Já os gestos e os deslocamentos no
dilatou na fase de expansão, por meio de espaço, substituídos por uma simples su­
fórmulas em que se possa manter, e de onde cessão de atitudes, não apenas poupam-lhe
possa ser evocado, quando se quiser, todo o atos que exigem gasto muscular e tempo, mas
conteúdo intuitivo sucessivamente percor­ lhe fazem dominar melhor as circunstâncias.
rido. É da aptidão para ligar um sentido aos Entre estas, a escolha toma-se possível: e
símbolos que depende o poder de encontrar tendo a atitude o poder de suspender o ges­
ou de compreender as fórmulas que pontuam to, certas veleidades podem ser, finalmente,
as etapas do processo intelectual. Ela é bem reduzidas por outras. Nem sempre sem um
reduzida na criança. Assim, esta possui um conflito bem aparente. Animais como o ca­
procedimento próprio para reter os detalhes chorro freqüentemente mostram isso. A per­
de suas lembranças, ou de suas reflexões, plexidade deles entre estimulações que os
que tenderiam a se dissipar, ou seja, agarrar­ levariam a atos exclusivos um do outro, mos-
se aos mais salientes deles e reuní-los. Em tra-os tensos, ofegantes, excitados, princi­
vez de encontrar a expressão que convenha palmente se cada uma das duas estimulações
ao conjunto, ela justapõe certos traços, não persiste ou se repete com insistência. Muitos,
podendo manter todos presentes. É a fase- entretanto, são espontaneamente capazes de
refrão. Mas a queda dos termos intermediá­ preferir uma delas, desviando-se da outra.
rios, longe de colocar necessariamente em Essa alternativa, onde o aparelho muscular
evidência as relações essenciais, corre o risco ainda é disputado, entre combinações de
de falseá-las e de oçasionar um contra-senso. tensões contrárias, exige sempre um gasto
A exata coordenação das intenções ou das apreciável de energia e de tempo. É possível
circunstâncias é substituída, freqüentemen­ constatar isso também na criança, a partir do
te, pela mútua interpenetração deles. É, momento em que seus gestos podem ser
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 79

mantidos em suspenso por veleidades entre falado, que tendem também a mantê-lo frag­
as quais ela parece reservar-se o direito de mentado. E se alguma fusão ocorre de uma
escolher. O resultado disso pode ser ora blo­ ilha à outra, isso acontece, com mais fre­
queios, onde as atitudes, constituindo obstá­ qüência, por substituição ou por ocultação
culo uma à outra, entravam o movimento, ora mútuas entre alguns dos termos delas. En­
impulsos, onde as atitudes e as possibilidades tretanto, há casos em que embriões, ini-
de precaução e de escolha que a eles ligam cialmente desunidos ao acaso da experiência
são absorvidas no ímpeto motor. A criança e do conhecimento, tendem a se reunir para
comporta-se, assim, freqüentemente, como constituírem conjuntos mais extensos e mais
um verdadeiro esquizofrênico. coerentes.
É então que a linguagem oferece-se como Assim, as idéias da criança sobre as coisas
um meio ainda mais eficaz de reduzir o ato apresentam relações de simples proximidade,
efetivo em algo que se limita a representá-lo, de onde podem resultar quer anastomoses
e que permite fazer com que ele reúna, no corretas, quer bem freqüentemente também,
tempo e no espaço onde ele não se desenrola comparações incoerentes, contaminações ou
mais de forma exclusiva, a imagem de atos substituições viciosas. De qualquer maneira,
diferentes ou mesmo contrários. As falas, em ela é feita de representações estáticas, pro­
vez de verdadeiros atos, são o irreal oposto cessos fechados sobre si mesmos, elemen­
ao real, são a negação e a hipótese tomadas tos simplesmente justapostos, que respon­
possíveis. O relato frequentemente factício, dem aos aspectos sucessivos ou diversos das
a mentira marcam, para Janet, uma etapa coisas, e que se opõem ou se ocultam entre si,
decisiva na evolução intelectual do homem. em vez de se deixar reduzir, todos juntos, à
Mas a linguagem não está imediatamente unidade, à permanência do objeto e cada um
apta a suprimir os conflitos através da com­ a um sistema de qualidades ou de relações.
paração de simples eventualidades. Aos que
procediam das coisas, ela acrescenta outros, AS ESTRUTURAS ELEMENTARES
que lhe são próprios.
As palavras têm um sentido que pode Nesse nível, entretanto, o pensamento
gerar confusão, seja porque ele ainda não não é amorfo. Ele não é “transdução” pura e
está suficientemente diferenciado para a simples. Tem uma estrutura, elementar, sem
criança, seja porque ele é efetivamente poli­ dúvida, mas que é dada como ele, senão seus
valente. Em vez de uma escolha ou de uma progressos posteriores seriam inconcebíveis,
redução apropriada, os diferentes sentidos pois ele não ultrapassaria os puros dados
vão constituir obstáculos uns aos outros. Eles sensorimotores, embora seja a aptidão para
altemam-se, substituem um ao outro ou se reclassificá-los de maneira autônoma.
encobrem. Dissociam o pensamento ou o Sua primeira atividade pode ser, en­
tornam incoerente. Por outro lado, ligados a tretanto, ignorada; pode ser considerada co­
representações, cada um deles exprime cer­ mo pura sucessão, onde haveria apenas subs­
tos aspectos das coisas. Mas os aspectos di­ tituição indefinida de um termo por outro, ou
versos de cada objeto podem também se jus­ seja, ausência total de organização. Eis aí um
tapor ou se contradizer, sem chegar ao objeto aspecto negativo dos primeiros esboços ob­
como que distinto, em si mesmo, das pro­ serváveis nas formas mais simples ou mais
priedades, efeitos, mudanças das quais é a mutiladas da ideação. Bem antes que, a pro­
soma. A essas relações da linguagem e do pósito da criança, falasse-se de “transdução”
conhecimento perceptivo acrescentam-se ou simples passagem sucessiva de pensa­
condutas intelectuais que se tornaram cos­ mento a pensamento, a interpretação, dada
tumeiras, circuitos habituais do pensamento por Heibronner, à “fuga das idéias” observada
80 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

nos maníacos, era a de explicar a seqüência encontrar em sua experiência. Freqüente­


delas através da simples associação de cada mente, como que por inadvertencia, ela subs­
idéia à seguinte, de tal modo que ela formasse, titui o nome do objeto pelo de um outro ob­
com aquela que a ocasiona e aquela que ela jeto, afirmando a identidade deles. Na ver­
ocasiona, dois pares distintos e sem unidade dade, os contornos deles em sua sensibilida­
de sentido. A cada novo termo, o pensamento de são, ao menos momentaneamente, pouco
poderia, portanto, desviar-se num sentido distintos. Sua representação do mesmo objeto,
diferente, ou melhor, não teria nenhuma durante o tempo em que ela o imagina, não é
direção própria e seu desenvolvimento sofre­ mais fundamentalmente homogênea e está­
ria, a cada instante, qualquer uma das asso­ vel do que são diferentes suas representações
ciações que poderiam resultar do último termo de dois objetos que uma semelhança impõe,
enunciado. Essa descrição é, evidentemen­ simultaneamente, à sua imaginação. O par é,
te, muito esquemática. Não leva em consi­ ao mesmo tempo, identificação e diferencia­
deração, particularmente, impulsos afetivos ção: o idêntico é desdobrado, o diferente é re­
ou interesses que os estados de dissociação duzido à unidade. Essas operações que são o
intelectual mais avançados podem deixar essencial do pensamento, mas que exigem
subsistir. Ela é, portanto, falsa, se pretende com seus progressos determinações cada vez
explicar, através de puras associações suces­ mais específicas e complexas, inicialmente
sivas, a seqüência das idéias. Ela é apenas a estão misturadas. Elas próprias deverão di­
análise estática da sucessão realizada uma ferenciar-se.
vez. Mas sua própria distribuição em pares Aliás, não é apenas o sentimento de uma
não é o simples resultado de associações que semelhança que faz dois objetos entrarem
uniriam, ignorando-se uma à outra, cada ter­ num par, mas ainda tudo o que pode fazê-los
mo ao que precede e ao que vem em seguida. se encontrar na sensibilidade do sujeito e,
O par é a estrutura, mais elementar sem bem particularmente, o encontro empírico
dúvida, sem a qual o pensamento não existiria. deles no mundo onde ele age e percebe. En­
É uma espécie de molécula intelectual onde tre a semelhança ideal e a concomitância, ele
se encerra o ato de pensamento sob sua não é, de resto, capaz, inicialmente, de dis­
forma mais simples e mais indiferenciada. tinguir bem nitidamente. E, nessas próprias
Um único e mesmo objeto não poderia ser concomitancias, ele não sabe reconhecer as
pensado senão por desdobramento. A tau­ que são intermitentes ou constantes, contin­
tología A é A, que não acrescenta nada ao gentes ou necessárias. Eis aí as diferenças que
conhecimento do objeto é, contudo, indis­ ele não concebe. Do mesmo modo, quando
pensável à sua tomada de consciência como começa a utilizar as fórmulas de causalida­
objeto. No plano do pensamento, o par é de, é sob forma indivisa ou ambivalente, com
anterior ao objeto isolado. Este pode existir cada um dos dois termos podendo ser, in­
apenas através daquele. distinta ou alternadamente, dado como a
Muito freqüentes na criança, as tauto­ causa e efeito.
logías estão bem distantes da necessidade Esse confusionismo pode apenas ser
lógica e do formalismo vazio que essa equação encontrado na aplicação dos pares às rea­
de estrita identidade tem para nós. Elas são lidades. Freqüentemente, uma ligação é in­
uma formulação indispensável, onde se ex­ devidamente transferida a dois objetos dife­
prime uma espécie de constatação mental em rentes. O desacordo dissolve-se, então, quer
face das representações que se oferecem ao pelo abandono do novo par, quer, ao con­
espírito. Elas se confundem insensivelmen­ trário, por sua manutenção, embora em opo­
te com as analogias simples, e estas com as sição com o que existe. Essas relações va­
combinações sincréticas que a criança pode gas e flutuantes explicam o fato de que uma
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 81

sucessão de pares possa se desenvolver por exerça, é preciso ou sair da unidade, des­
causa de ligações quase automáticas entre os cobrindo nestas partes constituintes, ou re­
termos deles, e levam a conversas sem relação duzir o múltiplo descontínuo através de um
com o que está ocorrendo, a uma fabulação ato de assimilação. Segundo os casos, cabe à
que se desenvolve pouco a pouco e sem tema unidade ou à pluralidade de se fazer ou se
premeditado, embora, freqüentemente, com desfazer. Na verdade, pode-se apenas ter
aquela satisfação lúdica que a criança normal­ coexistência exata entre a unidade e o múlti­
mente procura, ao se entregar a funções cujos plo. A atividade intelectual pode conhecer
resultados, ainda imprevistos, têm como que apenas a unidade do múltiplo ou a unidade
o atrativo de uma descoberta. no múltiplo, e o múltiplo é, inicialmente, para
A oposição essencial está entre essa ela, apenas oposição ou desdobramento: o
estrutura binária e o discurso lógico, muito secundário, o antes ou o depois, o outro, que
mais flexível em seu ajustamento ao real. Os seriam inconcebíveis sem uma intuição ini­
termos do par têm relação apenas um com o cial única.
outro. Excetuada essa relação, não há nada, Reduzidas a si mesmas, essas duas ope­
no momento, de onde eles possam extrair sua rações dão origem a conjuntos indivisos e
significação, por pouco extensa e sistemática que ainda não são relaçõesde conhecimento.
que seja. Eles são exatamente um ato do Anterior mesmo às relações de tempo e de
pensamento, que tende a se apoderar das lugar, a ligação dos termos unidos no par
coisas onde o fazem penetrar, aó mesmo parece tomá-los inteiramente equivalentes e
tempo, a experiência sensorimotora e os ele­ a criança os toma ou os troca, freqüentemente,
mentos da linguagem. Mas ainda não provo­ um pelo outro. Há, sem dúvida, algo que os
cam, com eles, os conjuntos de referências aproxima, mais ainda informulável. O par é
que devem ligar um ao outro, os objetos do uma formação elíptica, cujo sentido pode ser
conhecimento. Essa é uma fase ainda pré- intuitivamente evidente, mas com freqüência,
conceitual, pré-relacional da inteligência teó­ também obscuro ou barroco. O que aumenta
rica. Assim, um par dificilmente se expande a confusão, é o fato de que, implicando simul­
por si só. Dessa forma ele está condenado a taneamente o mesmo e o diferente, há casos
uma espécie de ação circular. E só pode em que, alternadamente, é uma ou outra des­
escapar da insuficiência dessa oscilação entre sas funções que prevalecem, pois a deli­
termos imutáveis através do recurso a outros mitação delas no objeto permanece variável
exemplares, mas sempre do mesmo tipo. ou indecisa. Na ausência de relações defi­
Quanto à passagem de um par a outro, ela só níveis, o equilíbrio permanece instável. Con­
é possível através da transferência de termos. trariamente a uma diferenciação que, indo
Contudo, a ligação assim obtida corre o risco, até uma completa exterioridade mútua, abo­
freqüentemente de constituir cadeias he­ liria o ato de pensamento, a completa iden­
terogêneas, que poderão ser uma causa de tificação nada acrescenta ao conhecimento.
conflitos entre as necessidades unitárias do A fórmula primeira do par é, contudo, a
pensamento e o sentimento empírico das da identificação. AéAéaligaçãomaissimples,
realidades. mais neutra, mas também mais absoluta.
Quando há dualidade inicial de objeto ou
NATUREZA DOS PARES desdobramento, é ela que se oferece sempre,
invariavelmente. A assimilação opera no pla­
No par, afrontam-se duas condições, no das coisas, o desdobramento no das intui-
dois momentos exatamente complementa­ ções qualitativas. Uma refere-se aos dados
res do pensamento: unidade e diferenciação, empíricos do conhecimento, a outra às clas­
assimilação e pluralidade. Para que ele se sificações abstratas. Elas ainda permanecem
82 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

estranhas um a a outra, porque ainda estão na logorréia maníaca. Freqüentem ente, elas
indiferenciadas e misturadas. As identificações se impõem à criança com o única razão de
entre objetos são, com freqüência, apenas associar dois term os juntos. Assim, disso re­
pseudo-identificações. A criança afirma al­ sulta um contra-senso ou um trocadilho invo­
ternadam ente, a propósito deles, o mesmo e luntário. As conversas da criança estão muito
algo diferente não há decisão possível en­ mais sujeitas a perm anecer sob a influência
quanto não houver nada com que relacioná- da assonância na m edida em que foi esta que
las para explicar a união delas. A única relação presidiu suas primeiras tentativas de lingua­
praticam ente inteligível é a de um a partici­ gem. A forma que ela dá, no início, às pala­
pação; é um simples vínculo existencial, o vras é a da assonância: é um par form ado pela
único que um a inteligência elem entar sabe mesma sílaba repetida ou por duas sílabas
colocar entre as coisas. Mas ainda puram ente muito semelhantes: papá, mamá, cocô, papô...
intuitivo, ele não pode ultrapassar o particular. Ao mesmo tem po que pela assonância, os
A identidade de um objeto com um outro não dois term os do par podem , aliás, estar ligados
im pede sua identidade com um terceiro ou pelo sentido. Então, o par é sobredeterm ina-
quarto, entre os quais a criança não reconhece do. É a uma sobredeterm inação desse gêne­
nenhum a espécie de semelhança. Fórmula ro que recorrem a poesia ou a eloqüência,
de identidade e heterogeneidade, confor­ quando procuram, nos elem entos sensori-
m idade existencial, porém dispersa em reali­ motores da fala, um apoio plástico para o
dades exclusivas um as das outras, implicam- pensam ento. A importância respectiva da as­
se e opõem -se. Com toda sem elhança, m es­ sonância é, aliás, bem variável. Contudo, se­
m o parcial, entre os objetos, sendo apenas m elhante apropriação é habitual em toda
com preendida de forma global e indivisa, linguagem essencialmente oral: nos ditados
cada um estende-se sobre outros, apesar de ou contos populares, entre outros, assim como
incompatibilidades mútuas. E, entretanto, se nas cantigas que agradam às crianças. Os
não entrasse em alguma relação o objeto efeitos sensorimotores subsistem quase que
perm aneceria fora do pensam ento. Para tor­ sozinhos nas quadrinhas ou “rimas” que são
nar-se objeto intelectual, ele deve, portanto, transmitidas de geração em geração.
correr o risco de adulterar-se, sucessivamente, Entretanto, mesm o na criança a influên­
em agrupam entos inconciliáveis e de neles cia da expressão sobre o par p o d e ser de or­
alterar sua própria integridade. dem intelectual. Ela pode fazer predom inar
nele um desses automatismos de significação
Aliás, está longe de ser sem pre um a se­ que estão implicados no “saber verbal” e que
m elhança entre coisas, a qual é o motivo do o fazem, em grande parte, pensar por nós,
par; com muita freqüência, a expressão pre- mas sob o controle, mais ou m enos vigilante,
valace sobre a realidade, com o é freqüente na de nosso pensam ento. Na m edida em que já
criança para um a função ainda próxima de está suficientemente desenvolvido na criança,
seus primórdios, e que se tom a um objeto de ele pensa por si só, mas sem controle e de
atividade mais ou m enos lúdica. Não apenas forma, freqüentem ente, incoercível. As rela­
a expressão vale por si só, mas há casos em ções que ele p õ e em jogo podem ser, aliás,
que seu aparelho sensorim otor precede o seu das mais elementares. Isso seria, por exem ­
valor significativo. Esse caso é habitual quan­ plo, a simples oposição dos contrários. Acon­
do as relações da fala e da ideação são afrou­ tece, à criança, de formar pares por antifrase.
xadas, quando a função intelectual degrada­ O que se tom ará forma agradável no adulto,
se ou ainda está próxima de suas origens. As conserva, para ela, um a espécie de significa­
assonâncias multiplicam-se à custa de rela­ ção indeterminada ou misteriosa. Os contras­
ções conceituais nas litanias dem enciais ou tes de onde surge o par extraem a origem
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 83

deles quer do folclore, fornecido pelo adul­ PAPEL INTELECTUAL DOS PARES
to, às curiosidades da criança, quer de ima­
gens vindas ora de sua experiência direta, ora A ambivalência dos termos no par é a
da ambiência intelectual na qual está inse­ conseqüência da interpenetração funcional
rido. entre o dúplice e o único; é a causa das
O contraste é o que transforma a assimi­ inversões perpétuas deles. Mas a inversão é
lação entre objetos de experiência em desdo­ ainda devida a outras condições do pensa­
bramento da intuição qualitativa ou intelec­ mento em pares, das quais é um elemento
tual. Uma impressão só é perceptível quando essencial. Pois os termos dos pares só mudam
se destaca de um pano de fundo. Toda noção tão facilmente seu lugar devido a relações
implica seu contrário. É o seu modo mais exclusivas que os unem um ao outro. Os pa­
simples de especificação. Mas o par, ao mes­ res são formações necessariamente isoladas,
mo tempo que opõe, une, e a criança, freqüen­ disso podendo resultar dois efeitos contrá­
temente, dá preferência a função unificado­ rios: a inversão e uma irreversibilidade intei­
ra, em vez da oposição do conteúdo. Assim, ramente inconseqüente. A inversão pode ser
parece identificar os contrários. Aliás, a opo­ explicada facilmente, visto que cada um dos
sição é também função, como a unidade, e é termos está sem ligação com um terceiro
uma função cujo objeto é, inicialmente, mui­ termo que poderia imрог-lhe, com relação ao
to maldeterminado. Há contrários de dife­ outro, uma certa direção. O pensamento em
rentes tipos que a criança, às vezes, mistura pares não é orientado, é, quando muito, o
entre si do modo mais incoerente. O con­ foco de movimentos alternativos, sem refe­
trário também pode ser tomado pelo comple­ rência a qualquer ação ou motivação exteri­
mentar, e a confusão se faz muito mais facil­ or. Mas, ao mesmo tempo, ele apresenta, em
mente na medida em que uma situação, onde razão do mesmo isolamento dos pares entre
há agente e paciente, ativo e passivo, ini­ si, uma irreversibilidade que pode ser contrá­
cialmente é apreendida de maneira indivisa ria à lógica nais evidente. O mesmo termo
pela criança, no começo, no plano prático, não pode ser imaginado como representan­
antes dos três anos, e depois, muito mais do, sucessivamente, como ele faz na verdade,
tarde ainda, no das representações intelec­ dois papéis diferentes, porque, então, seria
tuais. É assim que vere clarear são tomados preciso estabelecer, entre pares sucessivos,
um pelo outro ou assimilados: o sol vê porque uma corrente que transformaria a simples
clareia. alternância em sucessão ordenada. Por exem­
A indiferenciação entre a unidade e o plo, a criança admite muito bem que uma
dualismo, que são as duas condições essen­ novilha nascida de uma vaca possa se tomar
ciais do par, pode ser marcada, ainda, na vaca, mas recusa-se a imaginar que essa vaca
freqüência de ações alternantes ou circulares possa, por sua vez, dar origem a uma novilha.
entre os dois termos do par. Cada um deles Seria-lhe necessário, na verdade, fundir, em
recebe, alternadamente, a prioridade sobre o uma única série, os pares vaca-novilha, novi-
outro, sem que a criança pareça experimen­ lha-vaca para concluir disso novamente va­
tar o menor sentimento de contradição. Basta ca-novilha. As ações circulares que ela imagi­
uma simples concomitância entre dois efei­ na são de dois termos, entre os quais a ação
tos para que eles sejam dados, sucessiva ou inverte-se sucessivamente. Elas cessam as­
simultaneamente, como a causa um do outro. sim que for preciso representar uma ordem,
Entre ambos, os papéis invertem-se, sem que por menos numerosos que sejam seus ter­
a criança pareça encontrar aí dificuldade, mos. O pensamento em pares é, portanto, es­
nem perceber que sua explicação nada re­ sencialmente descontínuo, e através disso se
solve. explicam, simultaneamente, as inversões dos
84 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

termos no par, que são simples confusão ou INTERAÇÃO DOS PARES


ambivalência, e a írreversibilidade da ação,
quando sua inversão supõe a passagem por Formação fechada em si mesma e, nes­
uma seqüência determinada de etapas. se sentido, isolada, o par, entretanto, não
Se os pares produzem um pensamento pode existir sozinho, e tampouco seus termos
aglomerado e sem coesão, eles são, contu­ podem existir um sem o outro. Seu dualismo
do, pensamento, mas sob sua forma mais. interno é anterior, na representação intelec­
elementar. Combinam o mesmo e o outro, ou tual, à unidade, a cada uma das unidades que
seja, estabelecem uma relação entre termos ele agrupa. Do mesmo modo, cada par pos­
separados ou separáveis. Contudo, ainda tula outros, concorrentes ou complementa­
passam pela alternativa bruta do outro e do res, sem os quais ele não poderia se formar
mesmo, da disjunção radical, onde o par se ou se fazer acolher. Se ele é ato do pen­
rompe, e da assimilação total, onde ele desa­ samento, implica uma escolha, uma adesão
parece por falta dos esboços onde poderiam que exigem eventual oposição a outros pares.
estar expressas as relações das coisas entre si, Contudo, essas relações não são exprimíveis
em toda a sua diversidade. Provavelmente, a nessa fase que precede a das relações. As
criança emprega muito bem, com a simples mesmas dificuldades são encontradas entre
fórmula de identidade, algumas locuções os termos do par. Pares reagem um sobre o
destinadas, pela linguagem corrente, a rela­ outro, sem poder nem se fundir nem se opor
ções definidas, mas sem lhes dar sentido de forma definida. Com toda propriedade ou
determinado. Seus “quando” eseus “porque” relação de existência confundindo-se com o
são o vocábulo usual que ela encontra para ser global, o termo de um par não pode entrar
intercalar entre dois termos que deve unir. num par diferente sem provocar ou a perda,
Freqüentemente, ela não une a isso nenhu­ por esse termo, das propriedades ou relações
ma idéia particular de tempo ou de causa­ que justificavam o primeiro par, com exclusão
lidade. recíproca dos dois pares; ou a transferência,
O ato intelectual que une ou que desdo­ ao segundo, de qualidades ou efeitos que não
bra, afrontando o mesmo e o outro, tem, lhe pertencem. Assim, a identidade das coisas
provavelmente, de modo simultâneo, como é não apenas confundida em cada par, mas
condição e como conseqüência, o emprego e alterada de par a par.
a descoberta das qualidades que servem para No plano intelectual, a existência dos
classificar as coisas, relações que justificam a pares e as reações mútuas dos mesmos são
existência delas. Sem elas, a crinaça sempre tão anteriores à representação autônoma das
na presença de seres singulares e diante do coisas quanto, entre dois pares cujos termos
dilema ou de assimilá-los, embora distintos, seriam chamados para fundirem-se segun­
ou de dissociá-los, embora tendo algum do a experiência corrente, um terceiro par
fundamento comum. Essa alternativa estrita, pode levantar uma barreira: assim, entre os
chocando-se com intuições ou constatações pares nuvem-chuva e chuva-água, o par que
da experiência, deixar-se-á penetrar, atenuar interfere é nuvem-fumaça. Em seus agrupa­
e reduzir pelo vocabulário, pelas noções mentos sucessivos, o mesmo termo toma-se
recebidas. A chegada às qualidades e às rela­ como que diferente de si mesmo. Ele adqui­
ções seria, aliás, impossível, se o pensamento re como que existências impermeáveis en­
em pares já não fosse um pensamento de tre si. É fragmentado, dissociado, ora isso e
comparação e de conhecimento, se, mesmo ora aquilo, ou então, toma-se o intermediá­
reduzido aos pares, ele não ultrapassasse, a rio através do qual se opera, não uma redu­
seu modo, cada um dos pares nos quais ção, mas a ocultação de uma realidade nu­
parece fragmentado. ma outra muito diferente: por exemplo, a
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 85

chuva na fumaça que sai do carvão pela cha­ contrários como “calor frio” que poderia ser
miné. considerada, erroneamente sem dúvida, como
Esse papel do terceiro par ilustra bem a o prelúdio de uma denominação que substitui
diferença do pensamento nessa fase e na das a qualidade subjetivamente experimentada
categorias ou das relações. Ele introduz pela qualidade catégorial. Enfim, pode resultar
incompatibilidades ou identificações arbi­ numa combinação objetivamente discor­
trárias. E isso ocorre precisamente porque a dante, como “pássaros-pêlos.”
insuficiência do pensamento em par consis­ A coalescência, em um único par, de
te na ausência de um terceiro termo, onde termos mais ou menos díspares, pode ser
exprimir-se-ia a semelhança-diferença dos devida à dupla significação do termo inter­
termos aproximados ou a relação de existência mediário: a palavra “vivo”, por exemplo,
deles. Contudo, esse terceiro teimo, capaz de opondo-se, simultaneamente, a “inanimado”
estabelecer uma medida exata entre os dois e a “morto”; o sol sendo, ao mesmo tempo, a
termos de um par e, justamente por isso, fonte do dia e do calor. Entre os termos da
capaz de fornecer uma medida comum a dupla série que procede desse duplo sentido
termos esparsos nos pares ou agrupamentos podem-se produzir fluxos e reflux os, que tra­
associativos mais diversos, não deve mais duzem a força contrária das diferenças sentidas
identificar-se com um objeto concreto e par­ no objeto e de uma expressão única.
ticular. Ele deve confundir-se com um poder Entre dois pares, pode haver relação de
definido de classificação ou de explicação. modelo à cópia, por transferência, para o
Fica livre dos próprios objetos e é-lhes como segundo, de uma ligação própria ao primeiro.
que anterior, na medida em que a relação que Gênero de repetição freqüente na atividade
estabelece entre eles poderia aplicar-se a mental da criança, que apresenta uma grande
qualquer outro objeto que apresentasse as inércia, uma forte tendência à persistência ou
qualidades desejadas. Pelo contrário, o que à analogia formal. De fato, ela é, sem cessar,
introduz o terceiro par, éum novo objeto que dividida entre seu exato ajuste às coisas e os
não possui relação com os dos dois outros circuitos das fórmulas que utiliza, com esses
pares, dos quais, freqüentemente, intercepta, últimos inicialmente prevalecendo na criança
assim, as relações naturais. nova. No conflito perpétuo entre a realidade
A influência dos pares entre si é de- dos,objetos e os instrumentos indispensáveis
monstrável apenas pelos erros ou incoerên­ do pensamento, o decalque quase automáti­
cias que provoca. Conforme à lógica ou à co dos pares entre si pode ter, como con­
experiência, seus resultados não são reco­ seqüência, um absurdo, o aparecimento de
nhecíveis dos que o raciocínio no adulto uma incompatibilidade, uma falsa assimilação,
origina. É verdade que, no adulto também, os uma mudança de efeitos. Porém, a sucessão
pares devem continuar a reagir entre si, mas dos pares pode ter também, como resultados,
sob um controle que deixa deles, emanar a fazer prevalecer, por graus, as lições da
idéia ou a expressão, filtrando o incoerente experiência e fazê-las encontrar sua fórmula
ou o fantástico. intelectual, através de um refiramento pro­
Entre dois pares, podem operar-se a gressivo das representações apropriadas.
elisão do termo que eles têm em comum e a Enfim, freqüentemente, é uma relação, tão
redução dos dois outros termos em um único natural que pareceria dever ser ¡mediatamente
par. O resultado dessa aproximação pode exprimível, à qual uma cadeia de pares serve
assemelhar-se a um simples rebuscamento de intermediário.
ou singularidade de expressão, por exem­ A necessidade do aparelho intelectual
plo “céu” substituído por “paraíso” fora de entre a prática das coisas e a expressão
propósito. Pode levar à assimilação de dois ideológica delas é muito bem colocada em
86 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

evidência para rigidez muito arcaica que é simplicidade, o ato motor é alternativa, al­
inerente aos pares. Entre os termos destes, ternância, simetria, substituição bilateral,
que nunca podem ser confrontados a não ser intervenção bimanual. Os gestos de apro­
dois a dois, há apenas lugar para a alternativa, ximação e de recuo, de desejo e de esquiva
o dilema, a disjunção, a eliminação ou a estão perpetuamente como que em potencial
síncope. Embora sejam a etapa preliminar do um no outro, no animal que hesita. O fracasso
pensamento e necessária a seus progressos de uma tentativa provoca, instantaneamen­
posteriores, os próprios pares, exprimindo te, o movimento inverso, uma falsa manobra
uma relação, constituem, inicialmente, um ou um falso equilíbrio, o reflexo de senti­
obstáculo ao pensamento de relação que do contrário, uma dificuldade, o ato com­
deles procederá. A relação é puramente plementar ou idêntico da outra mão. O pró­
binária, quer entre os termos do par, quer prio aparelho motor é construído num plano
entre pares sucessivos. Termos do par e os de antagonismo e de simetria: grupos mus­
próprios pares são elementos inteiros que culares de extensores e de flexores que não
não se deixam contemplar na diversidade de cessam de colaborar, ao mesmo tempo em
seus aspectos qualitativos ou de suas relações que se opõem; lado direito e lado esquerdo,
existenciais. Pois as qualidades ainda não cujas reações são ocasionados por semelhan­
podem ser consideradas, independentemente ça ora alternada, ora simultânea. Mais pro­
dos objetos, de modo a classificá-los entre si, fundamente ainda, o balanço e seus gestos de
e nem as relações fora do fato efetivo, de vai-e-vem. Ele parece, especialmente em
maneira a determinar-lhe o lugar na ordem certos animais, tais como o urso e o elefan­
dos acontecimentos e das coisas. Acres­ te, exteriorizar-se como uma meditação so­
centando-se um ao outro, por causa de afi­ nolenta do movimento. Ele invade o com­
nidades ou de coincidências freqüentemen­ portamento de certos idiotas, e se une, pou­
te confusas, os pares mostram um pensamen­ co a pouco, através das fases fisiológicas de
to que se renovaria de instante a instante, contração e de relaxamento que se referem
com a espécie de inconstância que é própria aos diferentes aparelhos, aos movimentos
à atividade da criança. Eles parecem respon­ pulsáteis propriamente ditos, cujo eco cons­
der a suas aptidões, ao mesmo tempo que titui uma base de ritmos diversos sobre a qual
satisfazem seus gostos, e é assim que se de­ se destacam as ações particulares.
senvolvem facilmente em seqüências lúdi­ Em suas relações com as realidades
cas, onde os encontros de trocadilhos e de­ exteriores, o ato procede ainda de dualismos
talhes fabulatórios são-lhe visível fonte de unitários. Misturado às situações por suas
distração. impressões e suas reações, o sujeito delas se
desdobra opondo-se ao outro ou às coisas.
O PAR NA EVOLUÇÃO MENTAL Essa dissociação, que tem, como condição
inicial, a união do indivíduo com o que ele
A existência do pensamento em pares precisará repetir para fora de si como estra­
poderia ser confirmada por sua reviviscencia nho, ainda toma a forma dos pares ato-efei-
ao longo de certas regressões mentais e pela to, esforço-obstáculo, agente-paciente. Pa­
marca que ele pôde deixar na linguagem ou ra confirmar essa resolução em pares da
no sistema ideológico dos povos primitivos. indivisão informulável, na qual se produ­
Mas qual é o seu lugar na evolução psíquica ziriam, reciprocamente, as circunstâncias e
da criança? suas reações, a criança entrega-se a jogos nos
Essa estrutura elementar do ato inte­ quais ela representa, alternadamente, cada
lectual teve como que protótipos nos com­ papel: receber um tapa e dá-lo, pegar uma
portamentos anteriores. Reduzido à sua maior bola e jogá-la, esconder se-procurar. Assim, a
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 87

condensação progressiva, sobre o próprio ordenados. Não é mais, como na experiência


sujeito, do que ele deverá ou poderá atri­ da galinha, uma relação cujos termos podem
buir a si e circunscrever nos limites de seu mudar simultaneamente de valor sem mo­
poder perceptivo e prático, impõe-lhe o ato dificá-la que a criança distingue, é uma cor
de dissociar, em dois termos opostos e com­ determinada que ela aprende a reconhecer,
plementares, o conteúdo bruto de sua ex­ e a cor deve essa identidade fixa, por ela ad­
periência. quirida, ao fato de que subentende toda a sé­
Contudo, esse é, em sua evolução psí­ rie e não é diferenciável, apenas das nuanças
quica, um progresso em várias etapas. Uma mais próximas. Provavelmente, os contrastes
estrutura binária muito mais elementar já po­ sucessivos que a criança toma-se capaz de
de ser descrita na atividade perceptiva dos apreender entre tons próximos servem-lhe
animais. É o que demonstram, com muita para elaborar a série cromática; porém, a
elegância, as experiências de Koehler sobre a ordem estável das diferenças que a constituem
galinha que ele condiciona a bicar apenas os depende do poder que a criança tem, desde
grãos colocados sobre uma faixa de um certo então, de construir uma série, cujos termos
brilho, sem tocar nos que se encontram sobre possam ser organizados sob a própria iden­
uma faixa mais escura e contígua à primeira. tidade deles, quaisquer que sejam suas com­
Se, na seqüência, uma faixa mais clara que binações momentâneas e seu lugar na série.
aquela na qual a galinha bica substituir a faixa Portanto, essa operação ultrapassa, de longe,
escura, é aquela que vai atrair as bicadas: a simples estrutura dos pares. É um ato inte­
qualquer que seja o brilho absoluto das faixas, lectual que exige, da criança, uma maturação
é sempre na mais clara que os grãos serão intelectual de um nível mais elevado.
bicados. Portanto, a galinha reage não a uma No plano das reações imediatamente
nuança determinada, mas a um contraste, ou motivadas pelo meio do momento, não é a
melhor dizendo, a uma diferença que supõe série, é a constelação que se sobrepõe ao par.
dois termos. Ainda aí trata-se de um par, de O comportamento pode ter, como ponto de
uma estrutura, ao mesmo tempo, única e partida e como ponto de imparto com o real,
dupla. Todo o aprendizado das cores, segundo pares perceptivos e pares motores, mas seu
Koffka, corresponde, na criança, ao mesmo nível depende de sua riqueza e de sua apro­
mecanismo. É por oposição ao conjunto de priação estrutural, ou seja, das diversas cir­
todas as outras que permaneceram indistintas cunstâncias que podem ser utilizadas. Se­
que a primeira toma-se identificável. Depois, gundo o poder que tem para organizar seu
a diferenciação é feita entre as mais opostas e, campo de atividade, o animal apodera-se dos
por graus, os contrastes tomam-se mais sutis, conjuntos que faz concorrer, na espera de
chegando a uma classificação mais ou menos seus objetivos ou em seus jogos. Seus próprios
nuançada, segundo a idade ou os indivíduos. movimentos são o vínculo e a razão derradeira
Entretanto, esse resultado não poderia disso. São contatos entre coisas, distâncias e
ser reduzido a uma simples justaposição, ou posições ordenadas de modo que seus ges­
melhor, interfoliação de contrastes ou de pa­ tos possa, por intermédio deles, derrubar
res, que tenderiam, progressivamente, para qualquer obstáculo entre ele e o resultado co­
uma escala mais habilmente graduada. Pois biçado. Trata-se, aí, exatamente, de saber re­
está na natureza dos pares serem “inversí- conhecer, no fundo dos objetos presentes e
veis” à vontade; seus dois termos nunca têm das relações deles, a configuração dos meios
relações a não ser um com o outro; e as re­ que poderão levar o ato a seus fins. As intuições
lações que se estabelecem entre os próprios operatórias do animal reduzem-se, portanto,
pares não são das que podem lhes fazer às relações de espaço, que existem em po­
realizar uma série com níveis regularmente tencial, simultaneamente, em suas veleidades
88 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

motoras e na situação local. Segundo a ex­ o ato dissociado, e o par apresentar-se-á sob
tensão ou a complexidade desse plano, as forma de uma alternativa ou de um dilema.
estruturas mais elementares de toda per­ Mas o que caracteriza principalmente o
cepção e de todo movimento acabam por par é a relação exclusiva de seus dois termos
nele desenhar ações mais ou menos diver­ entre si e, conseqüentemente, a perpétua
sificadas e eficazes. A íntima penetração mú­ reversibilidade deles, assim com o sua própria
tua do gesto com a extensão aí mistura-a du­ incapacidade de orientação. Ele pode ser,
ração de forma inicialmente indiscemível. indiferente ou sucessivamente, tomado em
Esse bloco, onde se traçam os circuitos da um sentido ou em outro, e é incapaz de acres­
ação, é o mesmo onde o pensamento, por sua centar, a suas relações intrínsecas, relações
vez, deverá introduzir o sistema de suas ca­ extrínsecas. Para sair deste estado, seria pre­
tegorias e de suas relações. ciso que, além de sua ligação mútua, seus
Para ele também, a estrutura elementar é termos pudessem estar simultaneamente, em
o par. Já há muitos anos, Harald Hõffding, ligação com um terceiro termo que lhes daria
discutindo a objeção feita, por diversos au­ uma direção definida e fixaria sua verdadeira
tores, a Ribot, de que o monoideísmo, pelo relação. Seria preciso que, em vez de estar
qual ele definia a atenção, seria, pelo contrário, fechado em si mesmo e isolado, o par pudesse,
o aniquilamento do pensamento, emitia a aqui também, ordenar-se sobre um plano de
hipótese de que, no princípio da vida mental, relações em que seus termos tomar-se-iam
era preciso antes imaginar a pluralidade das livremente ajustáveis a outros termos quais­
idéias. Despojada de seu caráter atomístico e quer.
estático, essa pluralidade torna-se o ato que
postula, ao mesmo tempo, o único e o diverso. OS PARES E O PENSAMENTO
Em qualquer campo e sobre qualquer matéria DE RELAÇÃO
em que opere, o ato tem, como ponto de
partida ou de chegada, a unidade, não po­ Dos mais belos estudos consagrados,
dendo surgir sem termos para unir ou para por Piaget, à gênese do número e da quan­
dissociar. Ora é a diversidade que parece tidade podem ser extraídos vários exemplos
inicial: o ato teria que reunir termos primi­ que mostram a necessidade de um terceiro
tivamente distintos, como os propostos pe­ termo para a edificação de uma ordem qual­
la realidade empírica. Ora é a unidade: os quer de relações. Se se trata de organizar os
dois termos necessários ao exercício do pen­ objetos segundo o tamanho dos mesmos, é
samento resultariam de uma distinção no necessário que cada termo seja considera­
conteúdo de uma intuição quer sensível, quer do, ao mesmo tempo, como maior que o
abstrata. Nos dois casos, entretanto, unificação precedente e menor que o seguinte. Por falta
e desdobramento implicam-se mutuamente. de saber aprender, simultaneamente, essa
Se dois objetos da experiência são distingui­ dupla relação, que faz, de cada termo, um
dos do resto para serem unidos, é o pres­ intermediário entre dois outros, a criança só
sentimento da possível ligação deles que faz consegue agrupar dois objetos, dizendo, de
com que sejam discernidos. Se a unidade cada um, que ele é maior ou menor do que o
intuitiva torna-se objeto de pensamento, isso outro. Contudo, ela pode tirar, dessas com­
ocorre porque uma relação já foi aí percebida. parações, apenas pares disjuntos; e ela não
Ora, também, com o ato unificador preva­ consegue deduzir a ordem respectiva de três
lecendo sobre o conteúdo, a fórmula do par objetos medidos dois a dois, enquanto, por
será a da identificação pura e simples entre os simples intuição sensorial, ela os classifica
dois termos do par, mesmo distintos, he­ facilmente. A classificação intelectual é, de
terogêneos ou opostos. Ora, pelo contrário, é fato, de um nível bem superior. À simples
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 89

estrutura de contraste, ou seja, de unidade no do mesmo modo para a organização dos pe­
oposto ou no diverso, que pode resumir a sos.
constituição dos pares, ela sobrepõe uma Nesse último caso, Piaget supõe que a
operação inteiramente nova. Para que cada bipartição dos pesos tem um critério pu­
termo possa desempenhar o papel de tercei­ ramente subjetivo ou “egocêntrico”. Seria co­
ro termo relacionado a dois outros, quer re­ locado, de uma lado e de outro, o que a com­
conhecido como maior que um e menor que paração com as próprias forças da criança a
outro tornando-se o intermediário deles, quer faria achar pesado ou leve. Se não há dúvida
maior ou menor que ambos indicando em que as noções de peso, como qualquer outra,
que sentido a série deve continuar, é preciso, têm suas origens em intuições sensorimotoras,
que todos juntos, eles possam ser reduzidos a classificação em mais pesado, mais leve,
a uma ordem que ultrapásese a cada um e que responde a um contraste cujo limiar desloca-
eles se unam em uma função que implique a se segundo o peso absoluto dos objetos a
abertura de um campo novo de atividade, a serem comparados, e não segundo um limi­
seriação. te absoluto que dinstinguiria, nos esforços
Um outro exemplo operatoriamente mais musculares da criança, entre os que lhe são
complexo é a comparação do líquido conti­ fáceis e os que lhe são penosos. É uma relação
do em dois recipientes de formas diferentes exatamente análoga à das faixas claras e
por meio de um terceiro. O que há propria­ escuras, sobre as quais as galinhas de Koehler
mente de intelectual nessa estimativa pode bicam. A escolha constante da mais clara,
se presumir no fracasso sofrido por crianças obtida através do condicionamento, não é
muito novas, se as formas dos vasilhames são determinada por uma espécie de subjetividade
diferentes demais. Os níveis diferentes far- sensitiva que faria as galinhas distinguirán,
lhe-ão concluir por quantidades diferentes, de forma absoluta, entre o que é claro e o que
apesar da igualdade dos dois conteúdos ver­ é escuro. O par claro-escuro é uma estrutura
tidos no terceiro vasilhame. Isso ocorre porque em si mesma, completamente destacada seja
a intuição sensível, e suas referências ou ro­ da verdadeira intensidade luminosa, seja da
tinas habituais, ainda prevalecem sobre uma intensidade bruta de excitação. Seus efeitos
ordem de imagens que sejam estranhas aos persistem, qualquer que seja o valor de seus
puros dados da percepção. É necessário que componentes. É apenas mais tarde, no mo­
elas venham substituir as aparências sensí­ mento que terá podido constituir uma série
veis com uma substância que se conserva, de em graus contínuos, que cada um de seus
transvazamento em transvazamento, e que termos verá um valor absoluto ser atribuído a
permanece constante através das mudanças. cada um de seus deslocamentos ao longo da
Esse apoio das comparações quantitativas escala liminosa.
opõe um outro plano de representação às Os contrastes claro-escuro, pesadoleve,
intuições sensoriais. É uma integração fun­ grande-pequeno são as estruturas elementares
cional nova. supostas pela diferenciação perceptiva. Eles
A preponderância do par sobre a seria­ marcam o momento em que algo toma-se
ção pode dar, às classificações, a forma de distinto nas impressões sentidas. Medem um
uma alternativa. Tendo que organizar obje­ poder de discriminação cuja referência é
tos segundo o tamanho deles, a criança limi­ menos subjetiva do que ligada à determinação
ta-se a colocar de um lado os pequenos e do meio. A determinação tem seus níveis. O
do outro os grandes, como se houvesse animal ou a criança inicialmente reagem a
duas grandezas absolutas, e como se não uma diferença, qualquer que seja, entre certos
existissem nem nuanças, nem graus entre os limites naturalmente, o valor absoluto dos
objetos de cada classe. Assim, ela procede efeitos que ela mede. Uma diferença apenas
90 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

entre dois termos só pode deslocar-se através é um clichê fotográfico. É a somatória de


dos variáveis graus de intensidade. Para que impressões e de investigações que devem
ela se tom e a diferença de duas intensidades completar-se e controlar-se entre si para che­
ou de duas qualidades determinadas, é pre­ gar à imagem, que é a única conhecida pelo
ciso que essas intensidades ou essas qua­ sujeito. Quanto às condutas, se não são o
lidades sejam especificadas por outra coisa resultado mecânico de correções parciais que
aleem da relação recíproca delas. É preciso sucedem a tentativas fracassadas, são, con­
um terceiro termo, cuja relação, com cada tudo, precedidas por causas e esboços que
uma delas, modifique-se, mesmo no caso em pontuam a duração de organização delas. Na
que a mudança simultânea delas não mo­ fórmula de uma constelação insere-se não
dificasse a relação mútua das mesmas. Então, apenas o espaço, mas o tempo. Na verdade,
a determinação das coisas tomr-se-á possí­ eles permanecem confundidos. O espaço
vel, sucedendo à simples determinação dife­ ainda está apenas no estado de relações dinâ­
rencial através do meio exterior. micas, cujas variações ocorrem com o tempo.
De uma estrutura binária, e espaço e o tempo
DOS PARES ÀS SÉRIES ainda estão ausentes. Eles estão implicados
na de uma constelação.
Tanto no plano perceptivo como no Também no plano intelectual, o par não
plano intelectual, o par reduzido a si mesmo está orientado nem no tempo, nem no espa­
escapa ao tempo e ao espaço, no sentido em ço. Ele é o ato que une, ao mesmo tem po que
que não tem nem antes nem depois e que a distingue, sem poder especificar, inicialmen­
posição de seus termos é indefinidamente te, a natureza da relação. Mas é de um nível
mutável ou reversível. Ele ainda não é o co­ que ultrapassa a própria constelação percep­
meço de uma trajetória, que exigiria sucessão tiva ou prática. Piaget mostrou que uma crian­
e campo estável onde se realizar e se ins­ ça já capaz de ordenar entre si, através de
crever. Toda sucessão como tal supõe uma tentativa livre, três ou quatro objetos de gran­
simultaneidade potencial, e a simultaneidade deza ou de peso diferentes, pode fracassar se,
é impossível sem um espaço, quer físico, para ordená-los, tiver que compará-los ape­
quer mental. Ao contato do meio físico, as nas dois a dois. No primeiro caso, é uma
constelações da percepção e da ação repre­ simples constelação à qual basta a intuição
sentam o poder que o sujeito tem de ordenar perceptiva. No outro, é preciso ligar os obje­
impressões ou meios segundo relações to­ tos a serem organizados através de uma fór­
pográficas. É sobre esse aspecto espacial das mula tal como “o mais pesado à direita, o mais
estruturas, principalmente, que têm insistido leve à esquerda”, podendo essa fórmula, aliás,
os teóricos da forma. Porém, a constelação ser de expressão tão concreta quanto se de­
não é um dado instantâneo, embora se realize sejar, mas, precedendo o agrupamento a ser
como um conjunto de certa forma indivisível. realizado e permanecendo distinta, em vez
Para se produzir, ela deve edificar-se. A de se confundir e de se realizar com ele. É a
complexidade na coerência e na unidade, série oposta à constelação.
que constitui uma percepção ou uma con­ Através disso, inaugura-se um plano no­
duta, depende do termo de que elas dispuse­ vo de operação. E este também tem seus
ram para se formular. graus. Pois, ao simples agrupamento maior-
Provavelmente, a duração de maturação menor, mais pesado-mais leve, tão grande-
delas não ê indefinida. Mas pode ter sido tão pesado, qualquer que seja o valor das
curta demais para o nível de integração que grandezas e dos pesos, sucede a fase na qual
as circunstâncias ou as aptidões do sujeito a criança poderá fazer com que corresponda,
teriam podido permitir. Uma percepção não sucessivamente, com os termos de uma série
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 91

regularmente crescente, termos semelhan­ imperceptível, do que havia sido apreendido


tes: cada aproximação de objeto a objeto é na percepção, e que poderia retomar à per­
um par; mas, a sucessão dessas aproximações cepção, se as condições ou o ato que a tor­
aí acrescenta o que Piaget chama de uma naram imperceptível dessem lugar a con­
"multiplicação de relações”. Fora da igual­ dições ou ao ato contrários.
dade dois a dois, intervém, então, o alinha­ Piaget insistiu, de maneira decisiva, sobre
mento, que implica um espaçamento e o a reversibilidade essencial do ato intelectual.
prosseguimento da ação até o final da série. O Mas, a reversibilidade não opera no vazio. O
ato unificador, que é o par, sai de sua primi­ ato puro é uma abstração. É o mesmo ato que
tiva simplicidade para compor-se com rela­ explica a operação mais simples ou mais tau­
ções que saem; elas mesmas, de sua primitiva tológica e mais complexa ou mais fecunda.
confusão, dando lugar a sistemas diferentes Entre as duas, há a diferença do campo ope-
de representações, de símbolos ou de ins­ ratório, a natureza e a riqueza do material de­
truções: “aqui, lá, mais longe, antes, agora, las. A partir do momento em que o ato não se
depois". Entretanto, o resultado dessa reali­ refere mais aos dados efetivos da percepção,
zação já intelectual permanece intuitivo: a esse material deve poder representá-los en­
equivalência das duas séries assim consti­ quanto eles estão ausentes e é preciso supô-
tuídas parece desaparecer se o espaçamento los presentes, mas escondidos, ou condi­
é modificado de uma para outra. O espaço cionalmente presentes, ou seja, eventual­
com o qual é composta cada série é um mente realizáveis. Fora da persistência dos
espaço ainda puramente perceptivo, e esse mesmos em uma lembrança global, que se
espaço permanece intimamente confundido prestaria mal às alternativas do perceptível e
com todos os aspectos efetivos da série. do invisível, é preciso representações disso­
A um nível mais elevado, a equivalência, ciadas, símbolos diferenciais, uma linguagem
uma vez constatada, não é mais posta em apropriada, para responder à necessidade de
dúvida, mesmo se os objetos de uma série imaginar, separadamente, o que deve poder
mantêm o espaçamento deles e os da outra desaparecer e persistir separadamente. To­
são unidos. Simples caso de memória? Mas a da análise intelectual supõe um poder e um
criança da fase anterior não tem falta de material correspondentes de intuição e de
memória. Simples raciocínio de identidade, o expressão intelectual. É deles que depen­
que não mudou devendo permanecer o dem a compreensão e a inversão nos diferen­
mesmo? Mas o raciocínio de identidade já se tes campos do conhecimento, e eles mudam
manifestara, na fase anterior, pela construção mais ou menos de um ao outro.
de uma segunda série, semelhante à pri­ Eles já são necessários, sob sua forma
meira. A diferença entre os dois casos é que a elementar e como que radicular, assim que o
identidade não é mais global. O espaçamento par for ultrapassado. É unicamente de um
pode muito bem mudar, as duas séries per­ terceiro termo simultaneamente em relação,
manecem semelhantes se a ordem e o número seja positiva, seja negativa, com seus dois
dos termos das mesmas não variaram. Essa termos, que ele pode receber uma direção e
dissociação entre as diferentes característi­ iniciar uma série. Esse terceiro termo per­
cas do conjunto perceptivo, que permite tencerá, no início, ao plano perceptivo. Ele
afirmar a constância da série, apesar de uma será de natureza idêntica aos termos do par.
ou outra mudança de aspecto, supõe o poder Será um bastão como eles, ao mesmo tempo
de representá-las distintamente. Represen­ maior que um e menor que o outro, ou um
tação que não pode ser unicamente percep­ vaso cuja capacidade estará numa relação
tiva, visto que deve poder ser oposta, even­ determinada com a dos dois vasos a serem
tualmente, à percepção. É a persistência, no comparados. Semelhante a eles, ele introduz
92 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

entre eles, entretanto, algo novo: a medida e própria. Isso é evidente se se trata de bastone-
o que pode servir para medir, uma operação tes individualmente distintos. Mas a persis­
e um instrumento. tência de um líquido ao longo de seus trans-
O campo operatório é distinto do simples vazamentos sucessivos é de apreensão já
campo perceptivo. Já para os objetos sim­ muito mais tardia na criança, tão tardia que,
plesmente situados no espaço, não é a mesma aos seis ou sete anos, ela ainda é capaz de
coisa constatar posições e realizá-las, mesmo não admití-la. Essa persistência não é coisa
com o modelo sob os olhos. Certos sujeitos sensorimotora. Postulado prático desde os
ainda podem realizar um e não podem mais dois ou três anos, ela é questionada nova­
o outro; seu campo perceptivo permanece, mente quando a medida intervém entre os
mas escapa à ordem que o campo operatório objetos, porque, então, ela se transpõe sobre
poderia aí realizar. Há algo no campo opera­ um plano de operações ideais, onde o objeto
tório que o põe acima dos puros dados em­ não é mais estritamente ele mesmo, mas o
píricos. Há a capacidade que supera o fato, instrumento ou o símbolo de uma ordem em
que o precede, que, conseqüentemente, es­ potencial, de uma possível ordenação em
capa aos sentidos, pertencendo ao que não é série. Os próprios objetos tomam-se símbo­
imediatamente perceptível. O campo opera­ los, esperando um material propriamente
tório da medida está no mesmo caso. Con­ simbólico, cuja natureza diversifícar-se-á e
tudo, o instrumento da medida, o terceiro cujos níveis de abstração operatória elevar-
termo, é bem material e presente, como os do se-ão, aumentando a extensão e a eficácia da
par a ser comparado. Mas, a partir do mo­ ordem a ser descoberta ou a ser realizada nas
mento em que ele é instrumento de com­ coisas.
paração, isso ocorre porque ele próprio per­ A ultrapassagem do par é, no plano das
tence ao campo operatório, porque ele repre­ realizações sensorimotoras, a constelação;
senta outra coisa além de suas simples rela­ no plano das realizações intelectuais, a série,
ções individuais com um, depois com outro a saber, uma sucessão ordenada que pode ser
objeto. Ele é o símbolo de uma grandeza, quer de objetos, quer de acontecimentos.
com graus variáveis, segundo os objetos a Nos dois casos, a estrutura elementar integra­
serem comparados; implica um alinhamento se em uma ordem que a faz passar para um
possível, um alinhamento operatório, em plano operatório novo. Diante de situações
potencial; supõe uma ordem virtual que pode concretas, a reação elementar está integrada
ser imaginada apenas num meio ideal, num por esse poder constelante, que representa a
espaço intelectualizado. Nessa grandeza mes­ união dinâmica do espaço e do tempo ainda
mo ele supõe uma constância, sem a qual não não dissociados. Diante de objetos a serem
poderia servir para medir suas variações. comparados ou de efeitos a serem explica­
Se não houvesse outra coisa nos obje­ dos, a integração é a das aparências sensíveis
tos além das simples relações perceptivas com uma ordem que tem, por instrumento
dos mesmos, se eles não fossem nada além necessário, símbolos, visto que ela se distin­
de estruturas no plano sensorimotor, eles se gue, da ordem empírica ou vivida, como uma
relacionariam entre si, ao mesmo tempo em ordem para sempre virtual e operatória,
que seriam relacionados a outros objetos quaisquer que sejam, efetivamente, suas rea­
quaisquer. O objeto deve ter uma persistência lizações presentes.
SEGUNDA PARTE

CONTRADIÇÕES
E ANTINOMIAS
CAPÍTULO I

AS ORIGENS DIVERSAS
DO CONHECIMENTO
IGNORÂNCIA SUBJETIVA DAS ORIGENS

As origens do conhecimento, na criança, ção, vir de seus pais; segundo diversos auto­
são diversas, e, muito freqüentemente, a causa res, ao contrário, é às mães delas que elas se
de contradições das quais ela é tanto menos referem no que concerne à vida e aos deveres
capaz de escapar quanto não sabe representar afetivos. Às vezes, o pai toma-se um homem.
de onde lhe vêm as noções das quais faz uso. Parece que o pai é, para a criança, um protó­
O pensamento reflexivo, o que se desdobra tipo de autoridade, ao mesmo tempo em que
face a si próprio, o poder de assumir, como a testemunha da ambiência extra-familiar e,
um ponto de vista, suas próprias idéias, ainda mais tarde, o vínculo com o que precedeu a
não estão ao alcance da criança. Ora ela criança no mundo das origens.
imagina que seu pensamento presente é Essa alternância entre afirmações opos­
essencialmente seu, que d a mesma o tas é muito freqüente nos hábitos da criança,
inventou, que o advinhou: que esquece instantânea e totalmente a
primeira, mesmo que a segunda dela proce­
"Como você sabe que a cidade de da, ainda que apenas por contraste ou de
Boulogne estava lá antes do Sena? - Por n in ­ modo complementar. Por vezes, aliás, ela
guém . - Mas então como você sabe? - Eu afirma simultaneamente duas hipóteses con­
adivinhei.-Você adivinha muitas coisas como traditórias, da mesma maneira que considera
essa? - Não. - Quem lhe fez adivinhar? - como idênticos dois termos unidos em um
N inguém .” par cujo vínculo é a oposição dos mesmos (v.
1* Parte: os pares). O princípio de contradi­
Ora, pelo contrário, ela confessa sua ção é posterior às estruturas elementares que
ignorância, sua incerteza, mas pela fórmula põem a consciência diante das representa­
“Eu não m e lembro m a tí\ como se fosse caso ções.
de memória, ou seja, noção adquirida e de
proveniência estranha. A contradição é ainda EXPERIÊNCIA PESSOAL E TRADIÇÃO
mais explícita quando a mesma criança invo­
ca o testemunho de seu pai, após ter dito que As origens efetivas do conhecimento são
ela sabia a coisa por si própria. Inúmeras a experiência pessoal da criança e o que ela
crianças atribuem, de boa fé, suas idéias, às aprende através do meio. Admite-se, comu-
vezes as mais infantis e extravagantes, a uma mente, que entre os dois não há conflito; mui­
tradição, que elas declaram, quase sem exce­ to pelo contrário, as experiências limitadas,
96 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

lacunares ou confusas da criança são am­ lhe preciso, pouco a pouco, resolver bem
pliadas, completadas, esclarecidas, explicadas incoerências para colocar ordem entre elas.
pelas noções que lhe são inculcadas. Contudo, Não há oposição a não ser entre suas
certos autores supõem que não deve ter si­ experiências pessoais e o que o meio lhe
do sempre assim. Em um artigo póstumo so­ ensina. De suas próprias experiências sur­
bre “Inteligência e técnica” (1938), Charles gem oposições. O que vem do outro é igual­
Blondel opõe, em povos primitivos e mesmo mente polimorfo e dispare. É, inicialmente, a
nas épocas históricas, há da civilização gre­ linguagem, o material ou “saber verbal” de
ga, por exemplo, a atividade especulati­ Gelb e Goldstein, que contém significações
va e a atividade técnica. Contrariamente a mais ou menos obscuras, sobre as quais ela
Durkheim, para quem o conhecimento e a precisa exercer sua sagacidade, formular
ciência resultam da religião, Blondel acha hipóteses, variando-as e retificando-as segun­
que elas se desenvolveram em oposição com do as circunstâncias. Há os contos oferecidos
as crenças e os mitos, sob a pressão das a sua imaginação, a suas curiosidades, as
necessidades materiais e sob o impulso das opiniões que são trocadas no seu redor e há
necessidades naturais. É o pragmatismo inte­ os ensinamentos da escola. Se ela não esti­
gral oposto ao idealismo integral. Sem dúvi­ vesse inclinada a se deixar monopolizar to­
da, esse é um dualismo absoluto demais. talmente por cada uma de suas idéias su­
Entre as técnicas e a ideologia de uma época, cessivas, com exclusão das que precediam,
há relações indispensáveis. O que, do nosso sua confusão e, provavelmente, seu desâ­
ponto de vista longínqüo, se opõe, podia, nimo seriam grandes diante da inconciliável
pelo contrário, condicionar-se na estrutura diversidade delas.
real das relações que uniam, por intermédio
do trabalho organizado, o indivíduo a seu
grupo social e os indivíduos às necessidades
vitais. Aliás, somente o contato com as coisas A) O REALISMO PERCEPTIVO
não poderia dar lugar a conhecimentos, ou
seja, a representações manipuláveis fora da A existência das coisas pode limitar-se,
presença efetiva delas. É preciso o instrumento para ela, ao ciclo das aparências, dos estados,
do pensamento, que deve ter sido procurado das circunstâncias que elas a vê atravessar.
e elaborado partindo-se das crenças mais
primitivas e, segundo nossos contemporâ­ A. R...er 7; “De onde vêm as flores? - A
neos, mais estranhas à realidade objetiva. gente compra. - Elas duram para sempre? -
Mas, inversamente, se o suposto divórcio Não, elas m urcham . - O que é que elas viram
da ideologia e da atividade prática, antes da quando ficham murchas? - A gente joga fora.
época moderna, parece contrário à evolu­ - E o que elas viram quando são jogadas fora?
ção real das civilizações e das técnicas delas, - A gente compra mais. - Mas e as que a gente
tanto intelectuais como materiais, o acordo jogou? - A gente põe na lata do lixo. - E as
constante e como que necessário entre as coisas que estão na lata de lixo? - A gente joga.
experiências da criança e o que ela pode re­ - Onde? - Num cano. - E depois, o que é que
colher da ambiência ideológica parece ser isso vira? - Levam elas. - Para onde? - Num a
uma ilusão. Dentro da realidade, a criança outra lata de lixo. - O que fazem então?
encontra-se diante de noções cuja origem ela -Jogam fora. - Onde?...No final, o que é que
não sabe discernir, que não sabem nem isso vira? - Jogam no buraco. - O que é que
mesmo esponteamente confrontar entre si, isso vira no buraco? - Elas murcham , a gente
esquivando-se, assim, do sentimento agudo não vê mais. - E por que a gente não as vê
das eventuais contradições das mesmas. É- mais? - Porque as puseram num buraco.”
AS ORIGENS DIVERSAS DO CONHECIMENTO 97

Incapaz de imaginar qualquer coisa além W...ter 7; vangloria-se de ter “morto"


do acontecimento visível, ela repete, indefi­ colméias: “Como você as matou? - Com um a
nidamente, as duas ou três peripécias que martelada, elas estavam todas juntinhas,
pontuam a existência das coisas para ela. elas não se m exiam , e entãopam f- Você não
Assim, muito freqüentemente, é o ciclo ope- foi picado pelas abelhas? - Ah! não. - De onde
ratório que lhe faz as vezes de explicação. vêm as abelhas? - Não sei nada disso, e depois
eu vi uns grilos, eles têm chifres, grilos não
V...cher 7; 1/2 “Como as flores crescem? são maus, gafanhotos, bichos de quatro p a ­
- A gente m exe a terra, fa z buracos, põe tas que têm as cabeças assim ( um a cabeça de
sementes, as empurra, cobre, rega todas as alfinete).”
noites. - Mas onde a gente arruma as sementes?
- N o arm azém onde a gente vai comprá-las. Em vez de operações que se relacionam
- Mas onde o vendedor as arruma? - Ele vai ao mesmo objeto, a evocação se faz, aqui, de
comprar. - O nde?... (a criança finge refletir, objeto a objeto e a seqüência deles não tem
mas sem responder à pergunta que lhe é outro limite a não ser o poder de encadea-
repetida). Como se faz sementes?... Quem faz mento lembrança a lembrança.
as sem entes?... De onde elas vêm ?... Onde A descrição pertence, naturalmente, a
encontraram a primeira semente? - Na terra.” essa forma de conhecimento. No início, estri­
tamente limitada às impressões sentidas, ela
Bem explícita enquanto se trata de relatar é, freqüentemente, de um realismo percepti­
a seqüência dos gestos que ela viu fazerem, a vo no qual o adulto, desgostoso com seu
criança pára no momento em que deveria ir próprio conformismo conceituai, encontra,
além disso. A última origem das coisas que por vezes, um sabor de pura e natural ingenu­
ela consegue atingir é, habitualmente, o idade. Contudo, é nesse momento, também,
vendedor. que ela pode pôr a criança em conflito com
noções que, para nós, se tomaram tão usuais
M...ton G. 7; “Você já viu flores cresce­ que as tomamos como a imagem imediata das
rem? - Já (sorriso). - Você gosta das flores? - coisas.
Gosto. - Como as flores crescem? - Não sei. -
Como as sementes podem dar flores? - Por­ A...aud 6; “O que você fez na praia? - Eu
que tem algum a coisa dentro. - O que é? - Não brinquei de roda. - O mar é bonito? - A gente
lembro m ais o nome. - Como a gente pode vê água. - Muita? - Não m uita. - Mais do que
arrumar sementes? - No vendedor. - E como o poderia caber neste quarto? - Não tem água
vendedor pode arrumá-las? - Não sei.” no quarto. - Mas a gente poderia colocá-la
F...ni 6; “De onde vem a couve? - Da aqui? Ela entraria? - Não, porque ela escorre­
terra. - O que a gente faz para ela crescer?... ria.”
Você sabe como a gente faz as flores cresce­
rem ? - Precisa regar, enterrar. - As flores? - É. O fato, aqui, domina a comparação. Ele
- Onde a gente as encontra para enterrá-las? - é ele próprio, unicamente, e dado a, cada vez,
No vendedor. - E o vendedor, onde ele as em seu indissolúvel cortejo de circunstân­
consegue?...” cias, sob o aspecto bruto que ele tem para a
sensibilidade, ou seja, refratário às análises e
Nesse caso, a explicação não ultrapassa às abordagens que nos fazem colocar as coi­
a enumeração das circunstâncias ou dos ob­ sas na escala uma das outras. É pelo mesmo
jetos que puderam ser encontrados na expe­ motivo que a criança não pode formular a
riência pessoal da criança. Esta também de­ hipótese do mar contido num cômodo no
genera facilmente em simples digressão. qual ele não está efetivamente, que ela não
98 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

pode imaginar seu volume distinto de sua respiram. - A gente respira às vezes quando a
fluidez e que ela o vê como uma pequena gente fa z ginástica. (Ela tosse.) Q uando a
quantidade de água. A lembrança de sua gente tosse, a gente não respira. Q uando a
impressão visual, isolada no campo de sua gente fa z xixi, a gente respira. Q uando a
representação, não tem nenhuma razão para gente fa z cocô, a gente não respira. Q uando
evocar outras dimensões além das de um a gente rí muito, a gente respira. - Por que
tanque qualquer. quando a gente faz xixi a gente respira, e
Se a percepção explora, a representação quando a gente faz cocô a gente não respira?
fixa e delimita. O que passa da percepção pa­ - Porque a gente f a z cocô; e quando a gente
ra a representação pura pode ser um simples fa z x ix i a gente respira.”
instantâneo, situado tão longe da investiga­ C. ..ní 6; 1/2 “O que é respirar?... Você
ção perceptiva quanto da sistematização con­ está respirando agora? (meio deitada na
ceituai. Por vezes, o objeto é, assim, apenas cadeira, ela olha para sua barriga que se
uma impressão da sensibilidade. ergue)... A gente pode ficar sem respirar? -
Isso fa ria m al para a garganta. - O que é
I... as 6; 1/2 “O que é o sol? - É um a bola. respirar?... Como a gente faz para não respirar?
- Como uma bola? - Redonda. - Redonda - Assim (ela pára de respirar e logo depois
como? - (A criança desenha um círculo com sorri). - Mas diga-me como você faz. - (Ela
a mão). - De que tamanho? - Não sei. - A gente respira contra um espelho) - O que é isso? -
poderia colocá-la aqui? - Ah! Poderia. - Ela é D izem que époeira- O que que é essa poeira?
grande como este armário? - M enor" ... Como você fez essa poeira? - Eu respirei”

Aqui, as dimensões aparentes do sol no Para a criança, a respiração limita-se às


campo do céu deixam-se sobrepor às di­ impressões que esta lhe dá, quer sensorial se
mensões das objetos que ocupam no mo­ ela a vê do exterior em outrem ou em si pró­
mento o campo visual da criança. Elas as acei­ pria, quer cinestésica se ela observa seus pró­
ta como estão, sem nenhum esforço de es­ prios esforços, através dos quais a respiração
timativa. Esse realismo perceptivo, que ainda pode ser suspensa ou ampliada. A criança
se observa aos seis anos e mesmo mais tarde, manifesta uma certa sutileza para notar os
limita, freqüentemente, a existência de um efeitos sonoros, visuais ou subjetivos da res­
objeto ou de um fato ao que é perceptível dos piração, mas não apreende os prolonga­
mesmos. mentos funcionais desta. Ela lhe parece in­
termitente e como que acidental. A criança
H...é 6; “Aqueles animais (cavalos, burros, não sabe remontar, das manifestações mais
vacas) respiram? - Respiram. - Como eles aparentes da respiração à sua continuidade e
respiram? - Às vezes quando eles se sentem à sua constância. Ela ainda está no plano da
mal. - Você respira? Como você faz? - Eu faço representação fenomenista, no qual a imagem
assim: Ah, Ah. - Eles só respiram quando se limita-se a traduzir a impressão sensível, com
sentem mal?-Só.- Quando eles não se sentem a qual, aliás, ela está com freqüência pro­
mal, eles não respiram? - Não.” fundamente ocupada. Ela é, então, capaz de
D...net 7; “Quem respira? - Um doente. - discriminações finas, mas sem parecer ul­
E quem mais? - Q uando operam alguém. - trapassar o próprio fato e nem procurar ex­
Aquele que operam? - O homem, a m ulher ou plicá-lo.
o m enininho... ou quando a gente está com
m uito calor. - Quando é que a gente respira D. ..net 7; “O ferro é pesado? - Д um
além disso? - Q uando a gente dorme.” pouco. - E você, você é pesado? - Um pouco,
Сапу P...it 6; “Diga-me coisas que não muito. - Se a gente pusesse você na água,
AS ORIGENS DIVERSAS DO CONHECIMENTO 99

você seria pesado do mesmo jeito? - Menos criança esforça-se para justificar imaginando
pesado. - Por quê? - Porque o Sena me levaria. circunstâncias mais ou menos plausíveis,
- E quando você sai da água? - A gente fich a como o desaparecimento do sol atráves das
m olhadinho. - Mas você fica mais pesado do árvores, mas algumas das quais eia deve
que quando você estava na água? - É.” abandonar porque são estranhas demais à
representação do sol, como ocorre com os
Ela soube constatar a diminuição de seu olhos. O conflito é visível entre o conteúdo
peso pessoal quando se banha na água. Esse da palavra e o da imagem, entre o sentido
gênero de observações puramente sensíveis literal e os esquemas experimentais dos quais
é muito freqüente na criança. Contudo, elas a criança pode dispor. A resultante inclina
permanecem dispersas e o interesse delas li­ ora para um, ora para outro.
mita-se a elas mesmas. P...CO 9; “Agora é dia, como é que vai
ficar de noite à tardinha? - O sol se deita. - O
B) A INTERPRETAÇÃO DA LINGUAGEM que quer dizer “o sol se deita”? - As nuvens o
escondem. - Fica de noite quando têm nu­
Face à impressão direta que a criança vens?... Fica de noite quando as nuvens
recebe do objeto, há a expressão que ela escondem o sol? - Fica. - Agora a gente vê o
pode ser obrigada a lhe dar e as noções li­ sol ou ele está escondido pelas nuvens? - É. -
gadas a esse intermediário. Muitas das fórmu­ É de noite? - Não. - Como é que não é de noite,
las correntes, que ela procura utilizar, a exem­ já que as nuvens escondem o sol?... Depois da
plo do adulto, podem induzi-la, se ela as ana­ noite, como é que fica de dia? - O sol se
lisa ou se é instada a explicá-las, a desenvolver levanta. - O que quer dizer “o sol se levanta”?
representações sem relação com a realidade. - Ele esconde as nuvens."

J...ot 8; “O que quer dizer que o sol vai se “O sol se levanta; o sol se deita”, duas
por? - A noite. - Mas o que quer dizer: ele vai expressões correntes que a criança dá,
se por? - Que ele vai dormir. - Como ele faz imediatamente, como a causa do dia e da
para dormir? - Ele se deita. - Que quer dizer noite. Elas não tem relação aparente com a
dormir? - Que ele fech a os olhos. - O sol tem explicação que ela imagina em seguida: sol e
olhos? - Não. - Como ele fez para dormir? - Ele nuvens encobrindo-se alternadamente. De
se deita no chão. - Como ele se deita no chão? onde surge, aliás, uma contradição: a tela que
- Ele desce do céu. - E quando ele desceu? - Ele as nuvens produzem, freqüentemente, contra
fic a no chão. - A gente o vê às vezes no chão. o sol durante o dia.
- Não. - Como é que a gente não o vê? - Porque
ele fic a entre as árvores. - Se a gente fosse H...OUX 7; “Onde está o sol de noite? -Ele
para aquele lado, a gente poderia vê-lo? - tá deitado'- Onde ele está deitado? - No céu.
Poderia. - E como é que a gente nunca foi? - - E quando ele não está deitado, onde ele
Porque a gente se queim aria. - Como é que as está? - Fora. - Onde, fora? - Fora do céu. -
árvores não se queimam? - Porque elas não Onde o sol fica quando ele está fora do céu?...
estão m uitoperto... - Como o sol pode dormir? O que é o sol? - Fogo. - Onde fica esse fogo?
- No chão. - Mas como ele pode dormir? - - No céu. - Eu pensei que o sol estivesse fora
Porque a gente não f a z barulho. - Dormir é do céu. - Ele se levanta.”
fechar os olhos? - É. - O sol não tem olhos? -
Não. - Então, como é que ele pode dormir? - Aqui, a contradição está nos comentá­
Ele só está no chão.” rios que as fórmulas do sol que se levanta e
Ao termo “pôr-se” encadeiam-se asso­ que se deita provocam como o sol deita-se
ciações costumeiras cuja aplicação ao sol a no céu, a criança o põe fora do céu quando
100 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

ele não está deitado, por uma espécie de intermédio dos olhos e do corpo. A criança
alternativa verbal que parece aplicar ao parece supor que, na morte, os olhos se
espaço, o princípio de contradição. Freqüen­ fecham e que o corpo se abre. A origem
temente, na verdade, é um simples auto­ puramente verbal dessa idéia á evidente. Os
matismo verbal que parece entrar em conflito olhos fechados, como indício da morte, não
com a experiência. sendo suficientes para caracterizá-la, a crian­
ça opõe o corpo aos olhos como o todo à
W...ter 7; “O que é que as pedras fazem parte, e aberto a fechado, como os dois con­
quando a gente as joga na água? - Elas caem, trários. Neste caso, ela completa a imagem
na água e depois elas nadam. - As pedras acrescentando-lhe botões, o que parece ter-
nadam? - Não, elas caem no fu n d o da água!' rificar ela própria. Se estivesse entregando-se
A associação cair na água-nadar, ini­ a uma fantasia lúdica, ela a tomaria em pri­
cialmente, prevaleceu sobre um fato de ex­ meiro lugar. Em sua estranheza, esse exem­
periência familiar para a criança, o afundar plo apenas mostra melhor a influência even­
das pedras. Esse gênero de contradição é tualmente exercida pelo vocabulário sobre a
tanto mais fácil, na criança, quanto à coesão imaginação. O inverso também pode se pro­
é ainda frouxa ou lenta entre as diferentes duzir, ou seja, a influência de uma imagem
esferas da atividade: aqui entra a verbalização ou de uma situação sobre o sentido das pa­
e a reminiscência de fatos correntes. lavras:

INTERFERÊNCIA DA LINGUAGEM H...é 6; “Têm animais que pensam? - Os


E DAS IMAGENS PERCEPTIVAS lobos, os lenhadores. - O que são lenhadores?
- São bichos. - Bichos como? - Bichos malvados.
Sob a influência da linguagem, a criança - Você já os viu? - Já. - Onde? - Nos bosques. -
também pode interpretar, agrupar, modificar Diga-me, como eles são? - São grandes. - Que
suas impressões perceptivas. Às vezes, o efeito mais? - São malvados. - E o que mais? - São
é brutal, grosseiro e lembra o trocadilho. fortes.”

D...aud 8; “De onde vêm os pintinhos? - Através de uma contaminação, a ima­


Vêm dos ovos. - Os ovos estão vivos? - Não. - gem global do bosque torna todos os seus
Por que eles não estão vivos? - Porque eles habitantes, no espírito da criança, bichos. An­
não têm olhos. - Os cegos têm olhos? - Têm, tes que ela tenha realmente aprendido a des­
mas eles estãofechados. - Se eles não tivessem tacar a palavra da coisa correspondente e a
olhos, eles não estariam vivos? - Esta- coisa da palavra, flutuações de sentido pro-
riam.(sorriso.) - O que mais é preciso para duzem-se entre as duas, que provocam, fre­
estar vivo? Basta ter olhos? - É. - quando a qüentemente, estranhas confusões, mas
gente morre a gente ainda tem olhos? - Eles que também podem suscitar analogias quer
ficam fechados. Como os dos cegos? É . -
- - pitorescas, quer capazes de oferecer, às re­
Como é que a gente está morto se a gente flexões da criança, uma comparação fe­
ainda tem olhos? - Porque o corpo se abriu. - cunda:
Como é isso? - Esqueceram de fechá-lo... -
Como? O corpo pode abrir e fechar? - Com L...our 6; 1/2 “O mar se mexe? - Mexe. -
botões. - Você tem botões? - Não (longo Como ele se move? - Ele anda. - Como ele faz
estremecimento como que de medo)" para andar? - Ele salta, ele f a z como uma
víbora. - Você já viu víboras? - Não. - Então,
Entre os dois pares vida-morte, abrir- como você sabe que o mar salta como uma
fechar faz-se uma assimilação estranha por víbora? - Tem nos livros. - Nos livros, eles não
AS ORIGENS DIVERSAS DO CONHECIMENTO 101

saltam? - Assim (ela faz, com a mão, um gesto Sena. - Como eles fazem o Sena andar? -
de ondulação que poderia muito bem figurar Porque tem corrente dentro. - O que é a
tanto o movimento das ondas como o andar corrente? - Eu nunca vi. - O que mais a
de uma serpente)." corrente faz andar? - Os barcos. - O que mais?
- As pessoas que nadam . - Que mais?... Só? -
Há, aí, assimilação de imagens per­ Só. - Como é que a corrente faz os barcos e as
ceptivas entre objetos muito diferentes por pessoas que nadam andarem? - Não sei.”
intermédio da palavra “saltar” que convém a
ambos. A influência da palavra na repre­ Imaginar canos, a propósito da corrente,
sentação das coisas pode ser ainda mais pro­ não leva a criança a nada, e ela percebe que,
funda quando sua significação literal ou ori­ sob a palavra, não há imagem. É o que lhe
ginal prevalece sobre as outras. Então, a crian­ acontece freqüentemente: ela se encontra,
ça é capaz de construir um sistema fabulatório então, entre seu saber verbal e suas imagens
ou uma teoria. usuais, diante de um enigma.

H...le 8; “A água se mexe. -Ê a corrente Martins 7; “Um rio se mexe? - Mexe sim,
q u e fa z ela mexer, - è um fio . - Umfio gr ande a água. - Como a água se mexe? - Pelo vento.
(como um fio elétrico que ela mostra). - Ele - Quando não tem vento, a água não se mexe?
não viu. - Outras pessoas viram. - Op a i dele - Mexe, às vezes quando não tem vento. -
disse para ele que tinha visto. - Ele viu no Como ela pode mexer sem vento? - Pela
lugar onde a gente vê. No fu n d o da água. - corrente. -O q u e é a corrente? - Não sei. - Mas
N afábrica. - Outros hom em viram. -É um fio o que quer dizer corrente? - Não sei.”
de barbante. - Os bondes mexem com a
corrente. - É fe ita com um fio de ferro e Por falta de imagem correspondente, a
barbante. - É como a corrente da casa dele explicação tornou-se inteiramente verbal.
para acendera luz. - A corrente da água é a A criança só pode sair do conhecimento
mesma coisa. - O Sena é a corrente.” puramente usual, cujo único destino possível
é a rotina, se encontra uma fórmula falada.
A criança recebe, de seu meio, uma No entanto, o saber verbal precede, em mui­
palavra. O sentido que ela lhe dá está calcado tos casos, as possibilidades imaginativas da
na imagem de objetos ou de usos que lhe são criança, ainda incapaz de transpor sua ex­
familiares. Ela interpreta o que não conhece periência concreta e particular em imagens
ou não compreende segundo o que já per­ mais despojadas que sejam suscetíveis de se
tence à sua experiência: um adulto não faria combinarem em conjuntos mutáveis e di­
do mesmo modo. Contudo, a experiência da versos de circunstâncias.
criança é limitada e puramente concreta. As A linguagem tem suas condições pró­
imagens que ela fornece à criança podem não prias de existência e de desenvolvimento.
convir. Ela se encontra, então, na alternativa Ela tem uma estrutura, uma lógica que po­
ou de supor, para estabelecer o acordo, uma dem subsistir e funcionar, como o mostraram
coincidência de circunstâncias freqüente­ Gelb e Goldstein a propósito da afasia, mes­
mente barrocas, ou de reconhecer sua igno­ mo quando a idéia não é mais capaz de evo­
rância e sua incompreensão. car a palavra e nem a palavra, a idéia. O que
é regressão, nesse caso, pode, a um certo
Mouton G. 7; “O Sena se mexe? - Mexe. - grau, encontrar-se em sentido inverso, ao
Como? ... Sozinho? - Não. - Então, como? - longo da evolução intelectual na criança. A
Pela corrente. - O que é a corrente? - São os aprendizagem da linguagem faz com que
canos. - Onde estão os canos? - Dentro do esta se antecipe mais ou menos sobre o
102 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

conhecimento e sobre a compreensão. Ela eles nadam? - Com barcos. - Mas como eles
não é uma simples coleção de etiquetas das fazem? - É a âgua que fa z eles nadarem . -
quais a criança extrairia, apenas na estrita Como a água faz para fazê-los nadar? - Assim
medida, noções e coisas que ela já consegue (movimento de braçadas).”
conceber realmente. Através do vocabulário
e da sintaxe, ela tem, empotencial, um mundo O antropomorfismo aqui aplicado aos
de relações, de afinidades ou de oposições barcos é, evidentemente, secundário à pa­
que precedem o momento no qual ela rece­ lavra-imagem “nadar”. A criança encontra-se
berá de sua aplicação a situações ou a objetos visivelmente embaraçada entre a representa­
determinados, significações precisas. É por ção da palavra-imagem e a dos barcos, cujo
isso que ela é uma fonte de conhecimento ou nome ela se limita, numa de suas respostas, a
pré-conhecimento, é por isso também que repetir, como se pudesse encontrar aí a ex­
ela pode pôr a criança em dificuldade, quan­ plicação procurada. Contudo, é, finalmente,
do a experiência concreta ocorre depois dela. a imagem do nado que prevalece.
Esse desacordo pode ser nocivo ou útil, ao O conflito entre a palavra-imagem e o
mesmo tempo pela invenção ou pelo senti­ objeto também pode ser resolvido à custa da
mento de ignorância que disso resultam. O palavra, que é reduzida a seu puro valor de
esforço de invenção, salutar por si próprio, expressão imaginada.
pode ocorrer também sem crítica e desen­
volver as tendências fabulatórias da criança. H...zé 7; “O sol vai morrer? - Não... A
A ignorância pode ser estimulante, mas tam­ gente d iz às vezes "morrer", é quando um a
bém confinar a criança no respeito da palavra nuvem passa na frente, quando ele vai
por si própria. embora.”
O conflito nem sempre está, aliás, entre
a experiência e a linguagem. Ele é muito mais Outras vezes, é entre as próprias palavras,
freqüente entre uma combinação palavra- quando as imagens correspondentes não
imagem e objetos aos quais a imagem não combinam, que deve operar-se o esforço de
convém. A criança não pode fazer de outro crítica ou de redução.
modo a não ser juntar, a toda palavra que ela
escuta ou emprega, uma representação: essa R...ault 8; “Como é que fica de noite? -
é a condição fundamental da função simbóli­ Porque tudo que tem no céu épreto,- não tem
ca que, desenvolvendo-se, toma-a capaz e m ais luz; as nuvens deitaram; só tem a lua.
desejosa de falar. Mas, esse conteúdo pode - Como é que tudo fica preto? - Porque as
ser, de início, apenas estritamente prático ou nuvens foram deitar; todo o bonito está
perceptivo, pois os campos da ideação abs­ deitado; é tudo preto; só tem a lua. - O que
trata permanecem-lhe fechados. Nas flu­ quer dizer que elas deitaram? - São as nuvens
tuações recíprocas da palavra-imagem e do que estão apagadas. - Por que você diz
objeto, o destino pode ser diverso. Ou este deitadas quando é apagadas? - Porque. - Por
vai colocar a incoerência no saber verbal, ou quê? - Porque elas estão apagadas, isso quer
deixa-se escamotear por ele. dizer que estão deitadas. - É a mesma coisa
“deitadas” e “apagadas”? - Elas só fica m
B...è6; “Têm barcos no mar? - Eles nadam . apagadas; a gente as cham a deitadas. - Por
- Como eles fazem? - Com os barcos. - Como que a gente diz deitada, quando elas estão
eles fazem para nadar? - Assim (movimento apagadas? - Porque a gente não as vê mais.”
de braçadas). - Os barcos têm mãos e braços?
- Têm. - Você já viu barcos com mãos e O conflito entre duas palavras-imagens
braços? - Não sei. - Os barcos do Sena, como leva, aqui, a criança não apenas a reconhecer
AS ORIGENS DIVERSAS DO CONHECIMENTO 103

o caráter convencional delas, mas também, Entre o que ouviu e o que vê, a criança
a encontrar o terceiro termo: “a gente não as deve resolver uma contradição. Ela se furta a
vê mais”, que justifica o emprego de “deitada” isso localizando o objeto que escapêi à sua
e de “apagada” simultaneamente, ainda que vista numa parte do repolho que seria invi­
as significações próprias a cada um sejam sível. É o único meio que ela tem de não
díspares. Assim, a prática da linguagem não recusar o testemunho da experiência, ao mes­
só traz, para os conhecimentos da criança, mo tempo em que obedece às explicações re­
uma contribuição de origem social que po­ cebidas.
de, aliás, mal compreendida ou muito lite­
ralmente compreendida, suscitar conflitos C...ni 6; 1/2 “O que é o sol? - Um círculo.
com suas experiências concretas e pessoais, - Ele é quente ou frio? - Quente. - Do que ele
mas, exatamente por isso, exerce suas ap­ é feito? - Tem fogo dentro. - Quem pôs esse
tidões de invenção, de interpretação, de fogo no sol?... De onde veio esse fogo? - O
crítica, para finalmente levá-la a reduzir a diabo. - Você já viu o diabo? - Não. - Onde está
linguagem ao papel de instrumento conven­ esse diabo? - No céu. - Ele é mal? - É. - O céu
cional. nos faz bem, ele nos esquenta? - É. - O diabo
é mau mesmo? - É.”

A contradição ocorre, aqui, entre o papel


C) OS CONHECIMENTOS benéfico do sol e maléfico do diabo, entre
uma realidade conhecida e um personagem
Uma terceira origem de conhecimentos, fabuloso, cuja união dá-se por intermédio do
e também de conflitos, são as tradições que a fogo, através da confusão do fogo solar e do
criança recebe de seu meio. Por vezes, trata- fogo infernal. Essas ficções, aliás, levam a
se de fábulas imaginadas pelo adulto, desti­ criança a justapor dois planos distintos: o das
nadas às crianças, e que podem apenas lançá- realidades perceptivas e o dos mitos.
las na incoerência se estas tentam ajustá-las à Contudo, o aprendizado recebido na
própria experiência delas. escola também pode suscitar dificuldades.
Pois as ações que ele supõe ultrapassam o
A...aud 6; “Quando a sua mãe era peque­ aspecto imediatamente compreensível das
na, você já estava aí? - Não, eu estava no coisas. Sem dúvida, a criança é capaz, às
repolho. - Você ficou muito tempo no repo­ vezes, de repetí-las corretamente e sem lhes
lho? - Fiquei. - Você se lembra quando você alterar o sentido.
estava no repolho?- Lembro, e depois a mamãe
levava a gente para o campo quando agente M...tin J. 7; 4 “Como é que fica de noite?
era pequenininho. - Todas as criancinhas - Porque o sol vai embora. - Onde ele vai? - A
estiveram em repolhos? - Д elas vêm dos terra gira e ele vai clarear a Am érica.”
repolhos. -... Antes de estarem nos repolhos, Da mesma criança: “De onde vem o
o que é que as criancinhas eram? - Não sei. - calor? - Do sol. - E no inverno, quando tem
Todos os repolhos podem dar criancinhas? - sol e faz frio? - Porque a terra girou e isso
Podem, sim, senhor. - Você já viu, alguma fa z calor nos outros países. - É, mas a agen­
vez, criancinhas nos repolhos? - Não, agente te ainda vê o sol? - Porque ele está m ais lon­
não vê no repolho. - Por quê? - Porque elas ge.”
estão na ponta do repolho. - O que quer dizer
na ponta do repolho?... Na terra, em cima? - Resposta elíptica, como é freqüente na
Elas estão na terra. - Como elas podem estar criança, que não compreende facilmente as
na terra? - Não sei." sutilezas do discurso, mas vai direto ao fato.
104 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Ainda da mesma criança: “De onde vem explicação aceita de modo rígido ou estrito
a chuva? - A água evaporou, as nuvens se demais.
abriram e a água cai de novo. - De onde vêm
as nuvens?- Do chão.- O que são? - São água. J.,.ly, 9 anos, sabe explicar que a água
- Água como no Sena? - Não, tem água den­ das nuvens é a água que evaporou sob o calor
tro. - Como é que pode? - Porque ela cai, e do sol. Ela própria a compara à água da
depois, então, ela sobe em vapor e depois ela panela sobre o fogo. A chuva é a água das
vai de volta para dentro." nuvens que se condensa por causa do frio.
Contudo, a presença do sol de dia e o aqueci­
A palavra “abrir” acarreta, aqui, uma in­ mento consecutivo das nuvens embaraçam-
terpretação errônea sobre a natureza das nu­ na e ela deve acrescentar, à sua primeira
vens, que são consideradas como um reser­ explicação, uma explicação de choque, que
vatório. corresponde, evidentemente, a uma base de
Ainda da mesma criança: “O que é que imagens familiares. “Como pode chover de
faz as árvores crescerem? - É a água e a terra. dia? - Quando as nuvens se batem. - O que é
- Como isso os faz crescer? - Porque as raízes que acontece quando as nuvens se batem? -
sãopara comer; elaspegam água e coisas que Porque a água se form a em gotas e cai. -
eslão na terra. - Como as raízes fazem para ...Como é que ela não cai de imediato? -
comer? Elas têm uma boca como nós? - Não, Porque ela é leve. - Como ela é primeiramente
elas têm buraquinhos.” leve e se toma pesada? - Porque a água se
move, ela se form a em gotas.”
A lição foi compreendida e contra-sen-
sos não são nela inseridos. Mas o exemplo O ajuste, feito pela criança, das noções
dessa criança é bem raro e, em muitos outros recebidas aos conhecimentos resultantes de
casos, a noção apreendida aloja-se no espírito sua experiência cotidiana é o que justifica
apenas inserindo-se entre imagens que lhe com muita freqüência, suas explicações arti­
mudam o sentido. ficial istas.

M...on 7; “Como é que fica claro de dia e F...ge 7; “De onde vem a água da chuva?
escuro de noite? - Porque o céu vira. - Como - Do céu. - E a água do céu? - Do vapor. - O que
é que isso pode fazer a noite? - Porque tem um é o vapor? - É como fum aça. - De onde vem
lado preto e um lado branco, para os chineses o vapor? - Da água quente. - A chuva vem do
epara osfranceses. Quando é noitepara eles, vapor? - Vem, sim, senhor. - E o vapor da água
é dia para agente. - Como o céu vira? - Porque quente? - Д sim, senhor. - Onde fica essa água
ele é um a roda enorme." quente? - No fogo. - Onde está o fogo? - No
fogão. - Se não tivesse fogão, não teria vapor?
Duas aprendizagens, sobre a rotação da - Não, senhor. - Se não tivesse fogão, não teria
terra e sobre os antípodas, levam a criança a chuva? - Não, senhor."
representar o céu como uma grande esfera
envolvente, semi-branca e semi-preta, que Esse artificialismo não é espontâneo, é
giraria apresentando, alternadamente, em deduzido. Ele é como que ditado pelas per­
cada hemisfério convexo da Terra, um de guntas às quais a criança deve responder e
seus hemisférios côncavos. mostra bem que espécie de hiato o raciocínio
Nem sempre é a ligação delas unicamente da criança deve preencher, frequentemente,
com as imagens das quais, nessa idade, a para colocar coerência entre as idéias que ela
criança pode dispor, que provoca a alteração recebe de seu meio e as imagens que sua
das noções recebidas, é também a de uma prática cotidiana das coisas lhe faz recolher.
AS ORIGENS DIVERSAS DO CONHECIMENTO 105

H...vin 6; 1/2 “De onde vem a água do canos e fábrica de outro. Quanto às relações
Sena? - Dos ríos. - E a água dos rios? - No mar. que as unem, falta-lhes clareza. Não é de uma
- De onde ela vem? - Dos canos. - De onde convicção espontânea, correspondente a uma
vem a água dos canos? - De urna fábrica. - A fase do pensamento, que resulta, pelo menos
água dos rios vem de uma fábrica? - Vem. - E aqui, o artificialismo. Ele é a única ligação que
a água da fábrica?... Como pode ter água a criança sabe estabelecer entre os diferen­
numa fábrica? - Do chão. - Tem muita água no tes conteúdos de seu conhecimento. Mas, fre­
chão? - Não. - Sempre tem água no chão? - qüentemente, a aproximação deles perma­
Não." nece disparatada. Então, encontram-se pos­
tos em contato, ou confundidos, planos dife­
A criança une, peça por peça, as noções rentes da ideação. E esse é um novo aspecto
recebidas e imagens de objetos usuais: Sena, das dificuldades com as quais a criança se
rios, mar, fontes subterrâneas de um lado; choca.
C A PÍTU LO II

AUSÊNCIA DE PIANO S DISTINTOS


NO PENSAMENTO DA CRIANÇA

A criança não está apenas em presença Da mesma criança: “O céu fica longe? - É
de conhecimentos que são de origem dife­ alto.-A gente pode ir até lá? - É o meninoJesus
rente - experiência própria, material verbal, que pode subir lâ em cim a. - Como? - Ele tem
noções oriundas do meio ambiente - mas asas. - A gente poderia ir lá de avião? -
também de crenças ou de idéias que perten­ Poderia. No ano passado, eu fu i à Itália...”
cem a diversos planos de pensamento e entre
os quais ela ainda não sabe estabelecer as Neste caso, a criança relaciona a tradição
distinções ou as subordinações necessárias. mitológica a exemplos da natureza, por meio
de asas, que atribui ao menino Jesus, a partir
DESACORDOS DO EMPIRISMO do modelo dos pássaros. Todavia, parece
E DO MITO que seu instrumentalismo deixa-a experi­
mentar um sentimento de diferença, uma vez
F...gli 5; 1/2 “Quando é que a gente vê a que ela escapa, através de uma digressão, à
lua? - Q uando é de noite. - Por que a gente não hipótese de que o homem também poderia
a vê quando é de dia? - Porque tem sol. -Como subir ao céu com as asas de seus aviões.
é que fica de noite? - É Deus que fa z a noite Assim, pode existir um conflito latente entre
chegar. - Como é que ele faz isso? - Não sei. - a necessidade de unificação intelectual - que
Como é que fica de dia? -É o so lq u e fa z o dia ainda deve limitar-se à simples assimilação,
chegar. - Onde fica o sol durante a noite? - Ele uma vez que a diferenciação crítica é-lhe
dorme. - Quando ele dorme, pode ficar de ainda inacessível - e a impressão já pressentida
dia? - Não. - Como é que ele faz para dormir? de que essa unificação agrupa noções hetero­
- Ele se deita" gêneas.

A fonte dessas respostas é a experiência D...al 7; 1/2 “Por que a noite vem no fim
cotidiana: sincronismo do luar e da noite, do dia? - Porque o céu vai embora para a
do dia e do sol; tradição providencialista de China e a noite chega em Paris. - O que é a
Deus; interpretação literal de locuções cor­ noite? Como ela pode chegar em Paris? - Não
rentes que levam ao antropomorfismo. Três sei... É como um a grande cortina preta que
origens, mas também três planos diferentes está no céu. - É mesmo uma cortina preta? - É.
do pensamento, que a criança ainda se limita - Do que ela é feita? - Não sei.-A gente pode
a justapor. Esse é um primeiro estado, que ela tocá-la? - Não... Só Deus pode tocá-la. - Por
vai logo superar, procurando explicações que quê? - Porque ela está alta demais. - E de
reúnam esses planos entre si. avião? - Não, porque os aviões não voam tão
AUSÊNCA DE PLANOS DISTINTOS NO PENSAMENTO DA CRIANÇA 107

alto assim. - Como é que o céu pode ir à mas a conduz também a compor conjuntos
China? - Porque ele anda. - Como ê que ele díspares. Ocorre-lhe, então, acrescentar, a
pode andar? - Porque ele tem pés. - Você já vju cada um dos termos justapostos, os detalhes
os pés dele? - Não. - Então, onde é que eles que lhe convêm, mas cuja aplicação, em
estão? - No alto. - Onde os pés deles pisam? - outro termo, pode ser barroca. Conseqüente­
No ar.” mente, a criança pode dar a impressão de
acreditar em monstros, enquanto a única
Explicação física de origem escolar, arti­ responsável é sua pouca capacidade para
ficial ismo, providencialismo, antropomorfis­ manter-se, simultaneamente, atenta às res­
mo coexistem sem poder conciliar-se. Entre­ pectivas relações dos dois objetos colocados
tanto, a criança não se mostra sensível a inve- paralelamente. Entre o que deve ser descrito
rossimilhanças flagrantes, como, por exem­ e o que serve para descrevê-lo, é o primeiro
plo, a desproporçôes evidentes entre o fato a que é enunciado e é o segundo que está pre­
ser explicado e a pequenez do dispositivo sente na imaginação.
invocado.
N...ot 7; “O que é a noite? - É quando a
gente não vê m ais o claw . - Por que fica de O MITO E A EXPERIÊNCIA ROTINEIRA
noite? - Porque todas as luzes são apagadas.
- Agora é de noite? - Não. - Por quê? - Porque É muito mais a este mecanismo do que a
tem um a lu z grande que está acesa... um a uma ilusão direta que devem ser atribuídos
lâm pada grande. - O que é essa lâmpada certos casos de antropomorfismo mais ou
grande? - Não sei. - Você já a viu? - Não. - Onde menos fabulátorio. Duas possibilidades, o
ela está? - No céu. - Por que ela se apaga? - É antropomorfismo e o artificialismo, que são,
o m enino Jesus que apaga. - Por que ele aliás, freqüentemente confundidos, calcam a
apaga essa lâmpada? - Ele vira o botão. - Por explicação dos fatos naturais uma no tipo de
que ele a apaga? - Não sei. - Por que fica de aptidões propriamente humanas e a outra
noite? - Porque apagou a noite. - À noite, a nos resultados de sua engenhosidade. É pre­
gente acende a lâmpada grande da rua, não ciso um longo esforço da criança para conse­
deveria ficar de dia? - Não sei.” guir eliminar os traços demasiadamente in­
compatíveis com a representação do objeto
É a associação claridade-luzes que leva a em questão.
criança à analogia das lâmpadas, que ela
presencia todos os dias, com a causa do dia, J...ot 8; explica de onde vem o trovão:
mas ela não parece perceber a amplitude “Como é que duas nuvens que se encontram
necessária para imaginar esta lâmpada celes­ fazem barulho? - Porque tem eletricidade. - O
te. Não concebe a idéia de assimilá-la ao sol: que é eletricidade? - É um a h a . - Como é que
de fato, com muita freqüência, as crianças essa luz pode fazer barulho? - Q uando elas
atribuem ao sol o calor, mas não a luz do dia. batem um as nas outras, sai fogo. - O que
O providencialismo representado pelo meni­ provoca o fogo? - As luzes. - E o sol, por que
no Jesus, longe de colocar a explicação na ele nunca faz barulho? - Ele não se mexe. - Ele
escala do fato em questão, é reduzido à do sempre fica no mesmo lugar? - Às vezes, ele
artificialismo, no qual, aliás, é calcado. A anda. - Quando anda, ele não precisa se
incapacidade que a criança apresenta habitu­ mexer? - Precisa. - Então, o sol se mexe? - Às
almente para projetar a imagem simplesmen­ vezes, nem sempre. - Quando mexe, ele pode
te analógica que ela faz das coisas em um fazer barulho? - Não. - Por quê? - Porque ele
único e mesmo fundo tem, provavelmente, a não bate em nada. - Como é possível? -
vantagem de facilitar-lhe as aproximações, Porque ele presta atenção. - O que é o sol?
108 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Como é que ele pode prestar atenção? Ele tem O instrumentalismo é, freqüentemente,
olhos? - Não. - Então? - Ele vai bem deva­ uma solução inventada no momento para
garinho. - Mesmo indo assim devagarinho, responder a uma objeção, mas que pode tam­
ele não poderia bater em alguma coisa? - Se bém estar repleta de inconseqüências ou de
ele ouve algum a coisa, ele vai embora. - contradições.
Como ele pode ouvir alguma coisa? Ele tem
orelhas? - Não. - Como ele pode escutar? - Da mesma criança: “Quando cai toda a
Porque ele sabe que vai ter barulho.” água do céu, não chove mais? - Não senhor...
e depois, às vezes, ela volta. - Como? - Porque
Ao lado de noções aprendidas, como a tem água que está m a r e a água passa por
ocorrência de trovões a partir da eletrici­ cim a de algum a coisa. - O que é essa alguma
dade das nuvens, permanece ainda a expli­ coisa que está no ar? - Um c a m . - De onde
cação antropomórfica, mas já em regressão: vem a água que passa pelo cano?... Por que
a imagem que a criança tem do sol opõe-se puseram um cano? - Porque sem ele não
a que ela lhe atribua órgãos que lhe permi­ choveria. - O que faz com que a água suba
tiriam ver e ouvir; no entanto, ela lhe atribui pelo cano? - Não sei... porque às vezes tem
a visão e audição, ou seja, uma consciência m uita fum aça: ela segura a chuva. - Se você
sensorial despojada de suas condições cor­ jogar água na fumaça, a água não cai no chão?
porais. - Não, senhor, porque as nuvens seguram. -
A passagem de um plano a outro pode Você já tentou jogar água na fumaça? - Não,
também se efetuar por analogia entre os senhor. - Seu pai fuma? - Elefu m a cigarro. -
fenômenos naturais e os modos operatórios Quando ele fuma, ele faz fumaça? - Faz, sim,
que a criança comumente presencia. Trata-se senhor. - Se você tentasse jogar água na
da explicação instrumentalista. fumaça de seu pai, ela não cairia no chão? -
Não, senhor.”
G...ain6; “O que são as nuvens? - Fumaça
branca. - De onde vem essa fumaça? - Do As imagens que se apresentam à crian­
fogo. - Onde está esse fogo? - N um a caldeira. ça não são muito coerentes. Para explicar a
- E essa caldeira? - É de ferro. - Onde ela está? repetição da chuva depois que o céu ficou
- Num a m áquina de lavar m inério ” sem nuvens, ela imagina o transbordamento
da água trazida por um cano. Mas a seme­
Apesar da desproporção dos fatos as­ lhança das nuvens com a fumaça impõem-se
similados, da não concomitância dos efeitos novamente, e a criança faz dela uma substân­
dos mesmos e das diferenças de lugar, a fu­ cia capaz de embeber, de reter a água. Ela jus­
são entre as nuvens do céu e o vapor da má­ tapõe as imagens oriundas de sua experiên­
quina de lavar minério é, contudo, feita devi­ cia cotidiana, mas que correspondem a rea­
do a certa semelhança sensorial e porque lidades díspares. Além disso, cada imagem
cada uma das representações da criança ain­ funde dois tipos de fatos evidentemente
da pertence a um bloco, sem discernimento díspares: as variações meteorológicas e as
nítido de suas condições ou elementos dife­ ações humanas. Enfim, a imagem, ao substituir
rentes e sem capacidade para distribuí-las as realidades que ilustra, obriga a criança a
em planos distintos. Entre a incapacidade tirar conclusões que contradizem manifes­
para fazer a análise de cada realidade e a in­ tamente as observações mais comuns. Assim,
capacidade para discriminar as realidades a imagem concreta, na qual são reduzidos ao
entre si há, provavelmente, muito mais de­ mesmo nível planos diferentes de experiência,
pendência recíproca ou concomitância do altera seus dados mais familiares. Na verdade,
que conseqüência de uma relação em outra. a criança não consegue estabelecer, entre
AUSÊNCA DE PLANOS DISTINTOS NO PENSAMENTO DA CRIANÇA 109

suas imagens das coisas, as diferenças de — a quem ela atribui, por meio de uma
meio, de proporção, de condições; em suma, explicação providencialista, o poder de im­
não sabe utilizar o aparelho de noções e de pedir a chuva e de iluminar o mundo — é
esquemas que lhe permitiriam impedir a visto por ela sob a aparência de uma crian­
coalescência delas. Essas relações viciosas ça como outra qualquer. Ela o submete, su­
provocam rupturas nas relações objetivas e, cessivamente, ao tempo, admitindo seu
freqüentemente, incoerências lógicas. crescimento; ao número, supondo que ele
As explicações mitológicas que são dadas tem companheiros semelhantes a si mesmo;
à criança, em vez de atenuar sua dificulda­ ao espaço, fazendo-o viver, senão nos
de para ordenar seus pensamentos entre si, mesmos, pelo menos em locais exatamente
acrescentam a estes suas próprias contra­ semelhantes aos seus. Ela reduz ao plano de
dições. suas experiências efetivas o plano das rea­
lidades transcendentes, que devem explicar
M...ès explicou que o dia se deve ao o real superando-o. O que a criança recebe, a
menino Jesus que ilumina com uma luz: “A esse respeito, do adulto, ela só consegue
gente não vê o m enino Jesus. - Mas a gente vê assimilar a objetos imediatamente percep­
a luz do menino Jesus? - Não. - Então, como tíveis. Projetar as condições de existência dos
é que ela ilumina? - É o Papai Noel. - O que é mesmos em uma ordem de noções ou fór­
o Papai Noel? - Ele traz brinquedos. - E o mulas que lhe sejam distintas, pelo menos
menino Jesus, o que é? - Égrande assim (ela provisoriamente, e estabelecer esse intervalo
mostra as dimensões do m enino Jesus em sua momentâneo entre a intuição concreta das
m anjedoura, uns 35cm ). - O Papai Noel coisas e os potenciais explicativos que, de
conhece o meninojesus? - Conhece. - Quem míticos, retornarão ao real com a ciência,
é o maior dos dois? - O Papai Noel. - Eles são supõem um poder de desdobramento inte­
da mesma família? - Não. - O menino Jesus lectual que a criança ainda não possui.
tem um pai? - Tem. - Quem é pai do menino Assim, o mitológico acaba, frequente­
Jesus? - Ele está no céu. - Você não sabe quem mente, por misturar suas ficções providen-
é? - Não. - O Papai Noel tem filhos? - Não. - Ele cialistas e antropomórficas às ficções realistas,
é casado? - Ele tem um casacão comprido. - que opõem novas dificuldades à necessidade
Ele é casado? - Não. - O m eninojesus cresce? que a criança tem de tomá-las correntes, ao
- Cresce. - Qual é o tamanho dele este ano? - mesmo tempo, entre si e com objetos de sua
Assim (unsJO cm ). - E o ano passado? - Assim experiência.
(10cm ). - Quando ele crescer, como vão
chamá-lo? - Jesus... ele vai na escola. - É aqui N...et 8; 1/2 colocou em Jesus, diversas
que ele vai à escola? - Não. - Onde ele vai à vezes, a causa das coisas sobre as quais era
escola? - No céu. - Têm outras crianças que interrogada: “O que é Jesus? Éaquele que nos
vão com ele à escola? - Não. - Tem uma escola pôs no m undo. - Como ele fez? - Ele planta
só para ele? - É o Papai Noel que o leva na repolhos bem grandes epõe a gente dentro. -
escola. - Ele fica sozinho na escola? - Têm Por que ele precisa de repolhos para nos pôr
outros m eninos Jesus. - Ele são iguaizinhos às dentro? - Porque a gente não viveria. - Por
outras crianças? - São. - Como é que eles que é preciso repolhos para viver? - Éporque
sabem fazer a chuva parar? - Não sei.” eles são ruins. - Por que é preciso repolhos
ruins para nos fazer viver? - Porque os repolhos
O que a criança tenta imaginar, só o custam m uito caro. - Ele não poderia nos
consegue através de suas representações colocar em outro lugar, em vez dos repolhos?
familiares, ou seja, nos mesmos termos de sua - Poderia, as m enininhas são colocadas
experiência cotidiana. Assim, o meninojesus dentro das rosas. - Você foi colocado num
110 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

repolho? - Fui. - Onde estava esse repolho? - subterfúgios para justificar que nunca cons­
No campo. - Você o viu? Não. - Você se tatara o que pertence, entretanto, ao mundo
lembra? - Não. - Por quê? - Porque fa z m uito das coisas, nem percebera o que era per­
tempo. - E o seu irmãozinho, ele é mais novo ceptível. Se o homem nasce em um pé de
que você? - Д ele tem 6 anos. - Você o viu repolho, isso ocorre porque Jesus colocou-o
dentro de um repolho? - M o. - Por que não? lá; mas se Jesus existe, é porque ele próprio
- Porque eu não estava com a m inha mãe. - nasceu num repolho. Perde-se, assim, o iní­
Você viu outras crianças nos repolhos? - Não. cio, que se procurou atribuir a Jesus, e é aí,
- Por que não? - Porque cortaram os repolhos então, que a explicação naturalista é no­
lã em casa. - Q uando você vai ao campo, vamente substituída pela intervenção da
você vê outros repolhos? - Não tem nada Providência, sob a figura da Virgem Santa.
dentro. - Por quê? - Porque é longe onde a Confissão de fracasso. E ele é duplo. Limi­
gente tem que irprocurá-los. - Você nunca foi tada à imagem concreta das coisas, a criança
tão longe assim? - Não- Sua mãe poderia levar deveria nela procurar - mas não o consegue -
você? - Ela nunca quis. - Você pediu a ela? - a do caso indicado como a origem. Aliás, esse
Pedi. - Por que ela não quis ir? - Ela disse que caso, tampouco, não poderia deixar de ter
era longe demais. - Jesus também ficou den­ uma origem, e assim indefinidamente. Procu­
tro de um repolho? - Ficou. - Quem o colocou rando na ordem da natureza o início da exis­
dentro do repolho? - O homem que vendia os tência, mas não descobrindo, em suas pró­
repolhos. - Ele também foi colocado dentro de prias experiências, a imagem concreta que
um repolho? - Foi. - Quem o colocou? - Um lhe era sugerida pelas tradições destinadas ao
outro homem. - O primeiro que foi colocado seu uso, foi em vão, portanto, que esforçou-
dentro do repolho, quem o colocou? - N in­ se para justificar essa ausência através do
guém, porque era semente que tinha lá.- Mas distanciamento no tempo, quando se tratava
as sem entes brotam e dão repolhos, não de seu próprio nascimento, através do distan­
crianças. - Q uando os repolhos crescem, a ciamento no espaço para os outros recém-
gente põe as crianças dentro. - Q uem pôs a nascidos. Mas, não é a simples ocultação pela
primeira criancinha num repolho? - Um distância ou pela duração que pode transmu­
homem. - Mas, e ele, quem o colocou dentro dar a experiência bruta em experiência re­
do repolho? - Nossa Senhora.” fletida, a impressão imediata das coisas, ou
Aqui, é bem nítida a alternância entre o das situações, em representações intelectuais.
mitológico e a ficção realista. Esta última res­ A criança já percebe que, por trás de cada
ponde à necessidade de coerência mental, caso de sua experiência perceptiva ou prática,
que é possível para a criança apenas por é preciso supor outra coisa, mas ainda só sabe
assimilação imediata do que ela imagina às procurá-la em casos semelhantes, que se
suas experiências ou representações concre­ esforça somente para recuar indefinidamen­
tas. O mitológico responde à necessidade de te no tempo e no espaço, até que eles pare­
ultrapassar a experiência concreta e particu­ çam não mais pertencer ao mundo das coisas
lar para explicá-la. A cada um deles corres­ acessíveis, as que, para a criança, não pos­
ponde uma tradição, que a criança gostaria suem razão de existir em si mesmas.
de encaixar uma na outra: origem em alguma
parte da natureza, criação através de um ser INCAPACIDADE DA CRIANÇA
divino. Mas, os princípios delas são incom­ DE DISSOCIAR O PLANO DAS CAUSAS
patíveis e a escolha impõe-se novamente. DO PLANO DAS COISAS
Partindo de Jesus, a criança retorna à Virgem
Maria. No meio tempo, a explicação realista, A criança ainda não sabe imaginar algo
porém fictícia, obrigou-a a toda espécie de oculto que colocaria, como para o primitivo,
AUSÊNCA DE PLANOS DISTINTOS NO PENSAMENTO DA CRIANÇA 111

a potência mística em comparação com o fa­ Nestes casos, a criança freqüentemente só


to, ou, como para o adulto de nossos dias, sua consegue invocar o “ouvir falar”.
imagem intelectual e a de suas condições
transmutáveis entre si. Temos, aqui, dois pla­ M...tin J. 7; disse que a tempestade é uma
nos distintos, embora devam ser considera­ bola de fogo que cai quando o vento so­
dos conjuntamente, uma vez que são' a pra: ”Quem fez essa bola de fogo? - O diabo.
proeção mental dupla de uma única e mes­ - Você acredita que o diabo existe? - Acredito.
ma realidade. O desdobramento deles ainda - O que mais faz o diabo?... Você já o viu? -
não se efetuou para a criança. O real con­ Não. - Onde ele está? - No céu. - Você já o
creto, ao qual sua atividade sensorial, afe­ escutou?-/á.-Q uem lhe falou do diabo? - Era
tiva e motora mistura-a - esse mundo de ob­ alguém que fa la va dele na rua. - Falava o
jetos entre os quais ela já sabe mover-se e quê? - Não escutei. - O que mais o diabo faz?
que aprende a usar e usufruir - ainda não - F az as pessoas morrerem. - E o que mais? -
encontra em suas aptidões psíquicas, em Às vezes, agente morre de doença. - É o diabo
uma maturação satisfatória de suas fun­ que faz a gente morrer quando está doente? -
ções nervosas, o meio de dissociar-se siste­ Não, são as doenças. - E os velhos? - É o
maticamente, de modo a se realizar sob for­ diabo. - Então, se não tivesse diabo, os velhos
ma de representações e sob as espécies não morreriam? - Morreriam sim . "
de símbolos diferentemente combináveis en­
tre si. Aqui, o diabo parece ter um papel bem
Se a criança é capaz de construir persona­ modesto. Introduzido, por uma espécie de
gens fantásticos ou de imaginar os persona­ simbolismo afetivo, como agente daquilo que
gens fabulosos dos contos, ela o faz sempre é terrível e medonho - o raio, a morte - ele,
sob forma sensível, por simples alteração dos contudo, cede seu lugar a causas naturais: a
traços que observa ao seu redor, e é no mun­ doença, a velhice. Entretanto, acontece que a
do de suas percepções que ela os faz existir, criança adota a fábula de forma pessoal. Mas,
que ela pensa encontrá-los. Donde a grande longe de ser fecundada por sua própria ima­
esterilidade ou o restrito conformismo do so­ ginação, a fábula parece opor-se a seu senso
brenatural quando a criança o invoca. íntimo das realidades exteriores ou pessoais.
C... vin7; “Onde está o sol hoje?- Em Deus.
- Como o sol pode estar em Deris? - Porque ele M...on 7; “Em nasci em junho. - Você se
vai depressa. - O sol poderia estar em você? - lembra do seu nascimento? - Lembro. Eu
Não. - Como ele pode estar em Deus?...” estava no m eu carrinho e queria a m inha
Da mesma criança, que faz de Deus a sopa. Eu d izia "toute...toute. ’’E quando eu
causa do vento: “Onde está Deus? - No céu. - queria algum a coisa no m eu bolso, eu dizia
Como ele é? - Como um bicho. - Você já o viu? "tote™. ”- Mas, e antes de nascer? - Eu era um
Não. - Como você sabe como ele é? - Como anjinho. - Você se lembra? - Lembro. - Como
um bicho. " você era? - Eu tinha asinhas, estava no céu e
Esta resposta é bastante estranha para não tinha mamãe, não tinha ninguém , não
nós, modernos, embora de acordo com as era am ado. - Como “amado”?- Eu ainda não
religiões antigas. A criança ouviu falar de­ Unha nascido. - Você se divertia quando
las? Parece pouco provável. Com que tipos você era um anjinho? - Não. - Você se chate­
de imagens, de reminiscências, de associa­ ava? - Não. - Você ficou triste de ter nascido,
ções fortuitas relaciona-se essa definição?
Em todo o caso, ela aparece sem explicação,
sem desenvolvimento, sem nada que a ligue (18) N.T. - Na linguagem infantil, “toute”significa “sopa”
aos papéis anteriormente atribuídos a Deus. ( “soupe”) e “tote” significa “bolso” (“poche”).
112 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

de ter virado um garotinho? - Não. - O que mata, eles morrem. Eles cortam o pescoço
você gosta mais: ser um anjinho ou um garo­ сот um a faca, e metem a tesoura na boca
tinho? - Um garotinho. Q uando eu crescer, deles. Isso os mata. - Como você sabe que eles
m u terfilhos. - Quantos?- Dotó e um carro... um estão mortos? - A gente vê. Às vezes, a gente
Rolls Royce, e eu vou com prar um Peugeot dá.- O que a gente dá? - Galinhas, patos. -
para a m am ãe.” Mas, e as pessoas? - Eles as m atam . - Como?
- São os ladrões que m atam com um revólver.
Visivelmente trata-se aqui, de uma criança - Se ninguém matar com um revólver, não se
que tem prazer em contar sua história segun­ morre? - Morre, a gente poderia beber algum a
do os relatos verdadeiros ou místicos de seu coisa que não fa z bem. - Como a gente
meio, narrando-os como lembranças pesso­ poderia beber alguma coisa que não faz bem?
ais. Entretanto, ela não pode impedir-se de - A gente poderia beber veneno. - Se a gen­
fazer um protesto de sua verdadeira sensibi­ te não bebesse veneno, não morreria? -
lidade: “Não tinha mamãe, não tinha nin­ Não... não poderia. - Então, quem não levou
guém, eu não era amado” que ela transforma, um tiro, tomou veneno? - Д senão eles não
em seguida, em “eu não tinha nascido19”, as- morreriam. - Não morreriam? - Elespoderiam
sonância que se limita a evocar o tema, mas morrer assim mesmo. - Ah, bom! - Às vezes
que talvez, exprime também uma súbita re­ elespodem morrer na cam a. - O que a gente
tração de pudor. O contraste entre uma ima­ faz quando eles morrem na cama? - Vem um
gem convencional do anjinho com suas asas homem que os coloca num caixão e enterra;
e esse retomo sobre si é surpreendente. a gente põe flores e, às vezes, com as de flores.
- Eles ficam debaixo da terra? -Ficam, e a í eles
Os conteúdos díspares que se mistu­ não podem m ais se mexer, então eles engor­
ram nas explicações da criança devem-se a dam lá embaixo. - Eles ficam lá para sempre?
incapacidade, que ela apresenta, para pro­ - Ficam sim, senhora, eles não podem sair
jetar sobre uma base, por pouco uniforme e nunca mais. Às vezes, m udam de caixão. -
constante que seja, a seqüência de suas re­ Como é que mudam de caixão? - Alguém tira
presentações. Cada uma delas permanece epõe num outm .”
particular. Em outras ocasiões, a criança pode
limitar-se também a uma espécie de assimi­ Ao enunciado da morte como destino de
lação progressiva, que se funde, pouco a todos os seres vivos, segue-se a enumeração
pouco, com um caso particular de conjuntos dos casos particulares, citados, cada um , como
muito diferentes, sem que suas diferenças fato geral: a forma de matar as aves, sem que
sejam superadas. Unidade ilusória: trata-se, se anuncie inicialmente do que se trata, depois,
ainda, de uma simples sucessão sem genera­ por analogia, a forma pela qual o homem
lidade, com cada conjunto conservando seu pode ser morto, com a ajuda do revólver ou
caráter particular, em vez de uma base co­ do veneno e, só no final, a criança fala do caso
mum. O tema alimenta-se de analogias e es- mais freqüente - a morte na cama - com a
quiva-se do conceito. seqüência de circunstâncias que ela acarreta.
Essa é a fase em que o pensamento ainda
H...gi 7; “Diga-me, o que morre? - Todo segue o curso das representações concretas,
m undo pode morrer, os bichos, até as árvo­ mas já é também aquela em que as represen­
res. - Como é que agente morre? - Se alguém tações são capazes de limitar-se progressiva­
mente entre si, de tal modo que os casos
(19) N.T. - Em francês, há assonância entre “eu não era diferentes acabam por constituir as diversas
amado” (je n’etais pas aimé”) e “eu não tinha nascido” alternativas de uma mesma eventualidade. A
(je n’étais pas né). unificação ocorre, mas por simples adição,
AUSÊNCA DE PLANOS DISTINTOS NO PENSAMENTO DA CRIANÇA 113

como repartição consecutiva. O nível ainda a coordenação exata desses planos entre
elementar de suas operações concorda, no si: qual deverá servir de fundo ao outro, de
caso com certos outros indícios de atividades acordo com as necessidades efetivas do pen­
conceituai inerte e mal diferenciada. É o caso, samento?
por exemplo, da concepção dos pronomes
ao substantivo que representam, ou do fato Embora ainda nos escapem quase que
ou ato expressos antes que seja distinta a totalmente as relações das cerebrações e da
categoria dos objetos ou de seres que a eles atividade intelectual, o que sabemos sobre a
correspondem. Não se trata de uma simples maturação progressiva dos centros cerebrais,
questão de evocação verbal; é o atraso de sobre a permeabilização por etapas das fibras
atribuição, ligado à fraca capacidade para nervosas, sobre relações funcionais que elas
discernir, com precisão, os diferentes grupos tomam possíveis, não nos deixa dúvida de
entre si. Não se trata de debilidade de repre­ que os progressos das possibilidades intelec­
sentação concreta, mas sim de delimitação tuais estão ligados a estes fatores. Sem dúvi­
seletiva entre definições, das quais deveriam da, as áreas extremamente diversas e variá­
resultar a emergência de uns e a recusa de veis da cerebração não correspondem às
outros. topografias grosseiras, justapostas e fixas, que
foram estabelecidas sob a denominação de
A análise das inconseqüências, contradi­ localização cerebral. São áreas dinâmicas,
ções ou absurdos que as respostas das crian­ que não se delimitam nem em superfície,
ças apresentam às perguntas que lhes são nem em profundidade, mas que realizam
feitas, um pouco insistentemente, sobre obje­ estruturas, cujos elementos indefinidamente
tos que pertencem, contudo, à sua experiên­ mutáveis podem corresponder-se a distân­
cia costumeira mostrou-nos que elas se de­ cias mínimas ou extremas e escalonar-se em
vem à diversidade à variabilidade de fundos planos cujo número deve aumentar segundo
sobre as quais seus pensamentos sucessivos os níveis variáveis da inteligência ou do ato
se projetam. O exemplo mais simples é a enu­ intelectual. Evidentemente as estratificações
meração, que pode agrupar, quer objetos celulares e fibrilares do córtex cerebral dão
que correspondem, todos, ao conceito inici­ somente uma imagem grosseira e estática
al, quer, ao contrário, objetos que apresen­ desses planos. É um simples teclado, no qual
tam entre si, somente ligações particulares e as estruturas fixas estão bem longe de serem
fortuitas que fazem com que toda a série não conhecidas em sua sutileza, e sobre as quais
passe de uma mera justaposição de termos as estruturas funcionais podem ainda se
díspares, aos quais é impossível descobrir multiplicar quer fixadas pelo hábito, quer
um caráter comum. A unidade do fundo so­ modificadas continuamente pelas exigências
bre o qual se destacam o pensamento expres­ das situações exteriores ou mentais. Estas
so, e, se necessário, a coerência dos fundos situações, aliás, são sempre combinadas, mas
sucessivos que devem corresponder ao seu com uma proporção variável quer de ativida­
desenvolvimento, supõe uma perspectiva de de sensorimotora, quer de atividade gnóstica
planos mais ou menos numerosos, nos quais ou simbólica. Os elementos anatômicos são
se organizam os temas segundo vínculos de distribuídos topográficamente como os ins­
pendência. Estes serão do mais particular ao trumentos de uma orquestra, cuja justaposi­
mais geral, do individual ao essencial, da con­ ção no espaço faz-se sem relação com os
seqüência ao princípio, do fato à causa e to­ acordes e melodias que resultam na sinfonia.
das as outras relações que a ánalise e a compre­ Do mesmo modo, cada situação, segundo
ensão da experiência podem impor ao espíri­ suas necessidades, extrai, da orquestra ner­
to. Mas, a grande dificuldade é precisamente vosa, os efeitos que lhe convêm.
114 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

A simplicidade da ideação, na criança, que parte, assemelham-se muito ao exercício ain­


parece desenvolver-se em um único plano, da compacto e dispare de um cérebro cujos
onde a sucessão de temas e imagens só pode sistemas de associação permaneceram rudi­
ser justaposição, devido ‘a falta de fundos mentares, e a cujos diferentes territórios falta­
que lhes possam dar unidade e continuida­ ria coordenação e onde cada um destes seria
de, a ausência de ligação e de coesão entre uma massa uniforme.
eles, como se cada um executasse sua própria
C a p ítu lo in

AS DIFICULDADES
D A COORDENAÇÃO MENTAL

Devido a sua inaptidão para distinguir, - Você já viu essa escada? - Já. - De que ela é?
entre si, os planos diferentes sobre os quais - De madeira. - Onde vai a água do Sena? Ela
a representação deve projetar o real para ex­ vai na bacia onde os barcospassam. - O que
primir sua diversidade, evolução e condições; é essa bacia? - É um tacho."
devido a origens heterogêneas que seu co­
nhecimento consulta, sem que ela saiba aliá- A coerência desse relato é totalmente
las, nem mesmo diferenciá-las entre si; devi­ exterior. Sem nenhuma aparência de emba­
do também a influências de tipo ainda primi­ raço, a criança passa da topografia à meteo­
tivo, que os temas introduzidos em seu pen­ rologia, depois ao artificialismo mais pueril.
samento, sob forma de pares, exercem um Ela enumera nomes de lugar, explica a água
sobre o outro, a criança só pode sair da confu­ do sena através da chuva e a chuva através do
são à custa de contradições, de que algumas uso doméstico que um habitante do céu faria
são verdadeiras antinomias. Os próprios esfor­ da água. Os termos sucedem-se por contigüi-
ços da criança para reduzi-las são, inicialmen­ dade: Paris, Boulogne, Chaville, três localida­
te, procedimentos muito elementares, por des vizinhas. Água-tomeira, subir - escada,
exemplo, uma simples cascata de invenção água-bacia, bacia - tacho, seqüência de pares
fabulatória. da qual cada termo ocasiona o segundo como
que automaticamente. Daí nascem circuns­
AINDIVISÃO DO SUJEITO tâncias, cuja realidade é afirmada pela crian­
E DO OBJETO ça, como se fossem fatos de sua experiência
pessoal. Essa fabulação, por simples justapo­
V... el ; “De onde vem a água do Sena? - Ela sição de temas díspares, preenche, entretan­
vem de Paris. - E antes de Paris, de onde ela to, as lacunas da explicação e pode dar, a seu
vem? - De Boulogne. - E antes de Boulogne? inventor, a impressão de uma resposta para
- De Chavilie. - E antes de Chaville? - Do céu. todas as dificuldades. É a forma de afirmação
- Como ela vem do céu? - Bom! Porque chove. e de segurança mais económica.
- E antes de estar no céu? - Bom! É o homem Mas, o que tom a semelhantes pots-pour-
que vai procurá-la e depois ele se lava e ris aceitáveis para a criança, não é apenas a
depois ele a joga. - Onde está esse homem? - multiplicação, difícil de ser reduzida, de seus
Ora! Ele está no céu. - De onde ele pega a diferentes sistemas intelectuais, se ela não
água? - Bom!Elepega da torneira. - Onde está pode ordenar sua representação das coisas
essa torneira? - Em Paris. - Como ele sobe de segundo uma perspectiva coerente, é também
novo para o céu? - Bom!Ele tem um a escada. a dificuldade para realizar um ponto de vista
116 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

estável. Ela está, inicialmente, num estado de expressos e que, talvez, nunca emergirão
ambivalência mental que se deve aos próprios nominativamente à consciência, permane­
primórdios do pensamento. cendo mais ou menos confundidos com
O ato compreensível por experiência in­ outros, uma espécie de intuição coletiva dife­
tuitiva tem algo de indiviso. Ele tende muito renciada, tanto é verdade que o drama eclip­
mais a confundir os dois termos entre os quais sa os próprios atores. A menos que “Eu”, “Ich”
se desdobra do que a identificá-los isolada­ pertençam à linguagem exclamativa, emoti­
mente. O pulo que une o animal a sua presa va, reivindicativa, que é de um campo funci­
não tem, por preliminar, uma imagem distin­ onal muito mais primitivo, o pronome da
ta de si e da presa. Mesmo se o animal é primeira pessoa é tardíamente utilizado pela
mantido afastado, sua vista terá muito menos, criança pequena, que fala de si mesma com o
como efeito, detalhar os traços descritivos da auxílio de seu próprio nome ou de “ele" ou,
presa do que fazê-la entrar em sistemas de eventualmente, “você.” Por falta de ter sabido
relação próprios a integrá-la em seu campo isolar o que pertence propriamente à sua
de ação. A própria criança inicialmente dis­ pessoa das ações e das cenas das quais a
tingue-se mal dos objetos de sua atividade. ambiência a fez participar, um deficiente
Quando o ato de pensamento intervém, ela mental, do qual fiz a observação, falava de si
deve, primeiramente, desfazer a unidade que mesmo na terceira pessoa, como outros teri­
a ação prática realiza; deve-se dissolver-lhe am falado dele, ou na segunda, como teria
os termos e projetar cada üm sobre um fundo feito, a seu respeito, seu interlocutor. É uma
no qual realizarão a identidade deles. Mas significação funcional semelhante que os
essa separação não ocorre sem a sobrevivên­ jogos de ação alternante têm, em que a crian­
cia de uma participação mútua, que se traduz ça é, alternadamente, autor e paciente: assim,
pela ambivalência de cada um dos dois. exercita-se em identificar ela mesma em cada
Seguramente, a idade em que é possível inter­ um dos dois papéis. Uma diferenciação insu­
rogar a criança, levá-la a explicar os objetos ficiente das pessoas pode fazer-se sentir ain­
de seu meio, segue, de bem longe, o momen­ da muito mais tarde na~èotífusão dos prono­
to em que se realizou praticamente a distin­ mes.
ção entre ela e o outro, entre ela e o objeto.
Contudo, no plano das definições e dos con­ C...ard 6; 1/2 “No que pensa seu pai? - Ele
ceitos nos quais ela é forçada a penetrar, pensa quando ele vai morrer. - E você, no que
aparecem novamente algumas das confu­ você pensa? - Q uando você vai morrer. - E a
sões que-ela, há muito tempo, resolveu na suá mãe, ela pensa? - Д ela pensa quando ela
prática. Por sua vez, a inteligência teórica vai morrer.”
deve delimitar, suficientemente, os termos
entre os quais o desdobramento já está nítido “Pensar” é, evidentemente, para essa
no plano da conduta efetiva e da sensibilida­ criança, sinônimo de tristeza, provavelmen­
de pessoal. te devido à atitude séria que acompanha a re­
Podemos notar a confusão freqüente dos flexão ou o devaneio, seu objeto será, por­
pronomes. Dificuldade gramatical prova­ tanto, o mais triste possível. Cada resposta
velmente, mas cuja origem derradeira pode relaciona-se à pessoa enunciada na pergun­
ser apenas uma dificuldade para distribuir os ta. Retomando “você”, a criança designa a si
seres ou os objetos implicados no relato ou própria; ela, aliás, não tratava seu interlocutor
na explicação, cada um em seu local de ação. por “você.” Em vez de mudar o “você” para
Os “eles” ou “que” Sucessivos referem-se a “eu”, ela, na verdade, dele se apropriou. In­
personagens diferentes. Até mesmo com fluência ecolálica provavelmente, mas cujo
freqüência, representam seres ainda não efeito seria impedido se não subsistisse uma
AS DIFICULDADES DA COORDENAÇÃO MENTAL 117

espécie de imprecisão no sentimento prono­ que a palavra queimar conserva no espírito


minal que a criança tem de si mesma. da criança, entendida alternada e quase que
simultaneamente como ser consumido e pro­
AMBIVALÊNCIA pagar chamas ou calor: é, evidentemente, de
ATIVO-PASSIVO um fogo substancial ou flogístico que a cri­
ança tem, aqui, a imagem.
Esse confusionismo persistente entre
sujeito e objeto explica ainda a incerteza, H...vin 6; 1/2 enumerou coisas que an­
freqüentemente observável na criança, em dam: “A água anda deslizando. - O que mais
sua interpretação ativa ou passiva da mesma anda deslizando? - A areia. -E o que mais? -
palavra. Provavelmente, nessa idade, ela uti­ O escorregão. - O que é um escorregão?...
liza suficientemente as forma gramaticais que Onde tem isso? - Nas escadas, nas ruas. - Um
distinguem uma voz da outra para não se en­ escorregão não é a escada? - Não. - Como é
ganar quando são empregadas. Mas, o equí­ um escorregão? - É um bastão que desliza. -
voco reaparece assim que a intervenção de­ Um bastão de ferro? - Não, de pedra. - Esse
las cesse de canalizar o pensamento, por bastão é uma escada? - Não. - Ele fica ao lado
exemplo, com as palavras como sentir, quei­ da escada? - Não. - Onde está o escorregão?...
mar, deslizar, que têm, à vontade, ambos os Tem escorregões em todas as escadas? - Não.
sentidos. - Em todas as escadas das ruas? - Não. - Têm
escorregões sem escadas? - Têm. - Onde têm?
C...tin 6;l/2 acabou de enumerar os seres - No picadeiro. - Como são os escorregões
que vêem: “E o que é que sente? - Pessoas, dos picadeiros? - São grandes. - Onde têm
tartarugas quando estão mortas, anim ais. - picadeiros? - Nasfestas. - Os escorregões dos
O que quer dizer “sentir” ? - Alguém que sente picadeiros andam como a água dos rios? -
algum a coisa, os pássaros. - O que mais Não. - Por que não é igual? - Porque a gente se
sente? - Mais ningúem . - Só as pessoas, os molha na água.”
animais, os pássaros? - Д só eles”
Por mais confusa que permaneça a des­
É óbvio que, pela adição, as tartarugas, crição do “escorregão”, é óbvio que o
de “quando estão mortas”, a criança passou, movimento, através do qual podem ser ani­
momentaneamente, do sentido ativo ao sen-,, mados a areia ou a água, foi bruscamente
tido passivo da palavra, sem nem mesmo substituído pela idéia de superfície escorre­
parecer perceber. gadia. Como para o fogo flogístico, o escor­
regão assume, aqui, uma espécie de reali­
E..,ard 7; explicou que o fogo queima o dade substancial, na qual se unem o ativo e o
que jogamos nele e que, após a combustão, passivo.
não resta mais nada: “Se a gente queimasse A inversão mútua do ativo e do passivo é
toda a terra, não restaria mais nada? - É. - ainda mais surpreendente quando, em vez de
Restaria alguma coisa? - Só restaria a tera... e ter uma semelhança de palavra como eixo,
fogo. - A terra não pode queimar? - Não. - Têm ela acarreta, pelo contrário, uma substituição
coisas que não podem queimar?- Tem a terra entre palavras recíprocas. Parece, então, um
e o fogo. - O fogo não pode queimar? - Ele pensamento no espelho, onde revivem,
pode queim ar alguém.” provavelmente, as tendências binárias do
pensamento primitivo.
A incoerência aparente das respostas, o
fogo que não queima, tanto quanto a terra, T...ni 7: “As lagostas escutam? - Ah!Não,
deve-se, evidentemente, ao sentido ambíguo elas não podem fa la r ”
118 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Falar e escutar são identificados, pela R...er A. 7; “O sol está vivo? - Está. - Por
criança, como complementares, mas também quê? - No céu. - Por que está vivo? - Porque ele
como o ativo e o passivo do mesmo ato, vê.-O que ele vê? -Ele vê o céu. - E o que mais?
confundidos em um mesmo sujeito. - Ele vê a terra. - A lua está viva? - Está. - Por
quê? - Porque ela vê. - Como você sabe que
R...er 7; “Quando a gente está morto, a ela vê? - Porque ela tem luz. - E a lâmpada vê?
gente ainda escuta? - Não. - A gente ainda vê? - Vê. - Por quê? - Porque ela está acesa. - E
- Não. - A gente ainda tem fome? - Não. - Como você vê?... Você está aceso?... Como você
é que a gente não tem mais fome, não escuta pode ver? - Porque tenho olhos. - O sol tem
mais, não vê mais? - Porque a gente não d iz olhos? - Não. - Como ele pode ver então? -
m ais nada. - Quem não diz mais nada? - Os Porque ele tem luz.”
hom ens e as mulheres. - Por que eles não
dizem mais nada? - Porque tem um morto. - Se A hesitação da criança, causada pela
os homens e as mulheres dissessem alguma brusca comparação da visão no sol e no
coisa, o morto escutaria? - Não. - Por que o homem, mostra que ela não percebera, ini­
morto não escutaria? - Porque ele está no cialmente, a distinção entre estas duas con­
caixão. - Quando ainda não o puseram no dições complementares: a luz e o olho. Sen­
caixão, ele escuta? - Não. - Por que ele não do reconhecida a dualidade deles, a criança
escuta? - Porque ele não fa la " persiste, contudo, em dotar a ambos da visão,
como se cada um deles reunisse as duas
Após vários desvios, que denotam, aliás, condições inversas dela. O par ver-clarear
como tateia um pensamento ainda global na submete-se à lei de assimilação mútua entre
atribuição dos papéis e na análise dos moti­ seus dois termos, observada tão freqüente­
vos, a razão derradeira, que impede o morto mente nessa fase onde o pensamento é feito
de escutar, é ainda que ele não fala. como que de moléculas não orientadas e
Uma outra confusão entre os dois ter­ cujos termos são facilmente invertidos ou
mos complementares de toda percepção, a confundidos. Eis uma confusão do mesmo
ação externa que a produz e a impressão tipo que ver-clarear, mas a propósito de
recebida, é a de ver e de clarear. Prova­ noções mais abstratas.
velmente, isso ocorre devido à indivisão ini­
cial entre o sujeito e cada uma das situações J...ot 8; “Por que você diz que a madeira
nas quais ele próprio se viu vivendo-as. Pois é inteligente? - Porque a gente pode fa z e r
sua experiência bruta, original, resulta exclu­ m uitas coisas com madeira. - Tudo o que é
sivamente das estruturas sensorimotoras que de madeira é inteligente? - É. - O ferro é
fazem existir, para ele, sua ambiência e fazem- inteligente? - (Negação com a cabeça. De­
lhe sentir sua própria existência. Mas, há pois): Ê. - Por quê? - Porque a gente pode
mais aqui. A identificação do olhar e da luz passar. - Por que é inteligente poder passar?
persiste freqüentemente no próprio adulto, - Porque as nossas roupas não fic a m am as­
embora a ação não seja mais enfocada como sadas. - O vidro é inteligente? É . - Por quê?
-

inevitável e integralmente recíproca. Ela po­ - A gente pode fa z e r m uitas coisas. - E as


de perpetuar-se, assim, apenas fundindo-se pedras? - São. - Por quê? - Porque agentepode
com uma outra ilusão ou intuição, a da ati­ construir um a casa. - E quando a casa está
vidade e do poder próprios ao olhar, como de pronta, as pedras ainda são inteligentes? -
um raio que mergulha, penetra, revista e, se Não. - Por quê? - Porque a gente não pode
for preciso, fascina, podendo essa impressão, fa z e r nada com elas. - E os panos são inteli­
aliás, ser sentida tanto como sofrida ou como gentes? - São, porque a gente pode fa z e r
exercida. roupas. - Uma cortina é inteligente? - Д por-
AS DIFICULDADES DA COORDENAÇÃO MENTAL 119

que a gente pode cortar em pedaços. - Uma distinguir e delimitar os pontos de vista, o da
cortina sabe que a gente pode cortá-la em recomendação e o do risco a ser prevenido,
pedaços? - M o. - Assim mesmo ela é inteli­ que essa inversão denota.
gente? - É. - O que quer dizer inteligente? - A inversão pode também se produzir
Que ela ê bem diretía. - O que quer dizer ser entre a causa e a conseqüência.
bem direita? - Que ela sabe bem.”
A...on 7;3 “As árvores podem morrer? -
MISTURA OU TROCA DE Podem. - O que acontece quando elas mor­
PAPÉIS ENTRE AGENTE E PACIENTE rem? - Elas fic a m velhas demais. - Quando
elas ficam velhas demais, o que acontece? -
A confusão, aqui, é muito nítida entre o Isso fa z elas morrerem.”
ato criador e seu objeto. A inteligência de
uma ação é transferida para a matéria sobre a D...al 7; 1/2 “O que é o nevoeiro? - É a
qual é permitido que a ação se exerça, mas a terra que está no ar. - A gente pode ver o
matéria perde sua inteligência assim que a nevoeiro? - Pode, sim, senhor. - Você já o viu?
utilização sofrida a tom e imprópria a outras - Já, sim, senhor. - A gente pode entrar no
eventuais transformações. Contudo, não cabe nevoeiro? - Só os aviões que entram no
à matéria “saber” o que é possível realizar nevoeiro. - Por que a gente não pode entrar
com ela. A definição de ser inteligente por ser nele? - Porque fic a de noite."
direito permanece obscura. Contudo, o pen­
samento da criança fica, aqui, sem ambi­ A noite é a conseqüência da entrada no
güidade. As possibilidades de emprego estão nevoeiro. Provavelmente, essa conseqüência
como que em potencial na matéria utilizá­ pode agir como causa, melhor dizendo, como
vel; elas participam da inteligência que será motivo no plano da finalidade, do inten­
preciso para utilizá-la. Sendo elas abolidas cional e do condicional. A resposta da criança
pelo emprego feito da matéria, a inteligência seria correta se ela tivesse dito “ficaria” ao
desta se elimina com elas. Esse espelho, no invés de “fica.” Mas, seu erro não éum simples
objeto, das intenções e possibilidades às fato de vocabulário ou de gramática. É devido
quais ele se presta e o fato de tomar umas a uma dificuldade de perspectiva. Ela não
pelas outras mostram bem a incerteza da sabe distinguir ou dispor, entre si, o ponto de
criança entre os termos subjetivos e objeti­ vista dos fatos e o dos desejos.
vos de seu pensamento e a confusão inicial
desses dois pontos de vista. L...ard 5; 1/2 “Quando chove, como a
A confusão também pode produzir-se gente sai? - Com um guarda-chuva. - Por que
entre os sentidos positivo e negativo: com um guarda-chuva? - Porque está cho­
vendo. - É, mas por que a gente sai com um
T...oy 6; 1/2 “Você pensa? - Penso, às guarda-chuva quando está chovendo? - Por­
vezes. - Como você pensa? - Eu esqueço meu que não deve chover... - Mostre-me como
casaco, às vezes. - Seu pai pensa? - Às vezes. você faz com o seu guarda-chuva. - Eu abro.
- Como ele pensa? - Às vezes, ele esquece o - E então? - Eu ponho em cim a da m inha
casaco de couro dele. - E a sua mãe pensa? - cabeça. Chove. - Então, por que você o põe
Não... ela nunca esquece? em cima da sua cabeça? - Para que chova.”

A locução “Pense bem”, que é um aviso Aqui, ainda, a criança mistura os planos
contra o esquecimento, explica, provavel­ do intencional e do real: do sujeito e do
mente, essa confusão de sentido entre pensar objeto. Ela aplica, à chuva, as fórmulas de evi­
e esquecer. Mas, é ainda a incapacidade para tar que deveriam ser aplicadas a sua própria
120 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

pessoa. “Porque não deve chover” em vez de não afunda?... Uma pedra que a gente joga no
“Porque não devo me molhar” ou, pelo menos, Sena afunda? - A funda.- Por quê? - Porque ela
“Porque não deve chover sobre mim.” Mas épesada. - O que é pesado afunda? - A funda.
ela se movimenta tanto às cegas entre essas - Um barco afunda? - Não. - Ele é pesado? - É.
distinções que acaba mudando o negativo - Por que um barco que é pesado não afunda?
para positivo: o fato cujas conseqüências de­ - Porque tem m uita água. - Por que um a
vem ser evitadas é dado como procurado: pedra afunda? - Porque não é de madeira. -
“Para que chova." Por que a madeira não afunda? - Porque é
A incerteza do ponto de vista pessoal menos pesada que um a pedra. - Uma pran­
leva, portanto, com muita freqüência, a cri­ cha de madeira é menos pesada do que uma
ança a confundir sujeito e objeto, ativo e pedrinha? - Não. - Por que a pedrinha afunda
passivo, causa e conseqüência. A inversão e a prancha de madeira não? - (M o vim en to
dos papéis é, aliás, muito freqüentemente, dos lábios, m as sem resposta).”
favorecida pela existência de palavras com
sentido facultativamente ativo e passivo, por Essa criança já sabe fazer, de maneira
pares verbais que unem termos complemen­ abstrata, a comparação entre a madeira e a
tares e também por aqueles pares implícitos pedra e classificá-las corretamente segundo a
que associam, constantemente a uma noção, categoria peso, mas ela fica desconcertada se
seu oposto, de tal modo que os contrários for preciso fazer uma segunda dimensão, a
substituem-se freqüentemente entre si, seja do volume, intervir simultaneamente. Ela
por simples lapso, seja mesmo em idéia, no consegue ordenar, entre si, os objetos em
espírito daquele que comete a confusão. relação a um eixo, mas não os segue mais nas
Enfim, há a sua incapacidade para manejar o variações deles em relação a um segundo
condicional, resultado de sua incapacidade eixo: as duas dimensões fundem-se nova­
para distinguir o ponto de vista subjetivo da mente e o objeto não tem mais outra relação
intenção ou da hipótese e o ponto de vista a não ser com suas impressões e suas possi­
do real. bilidades subjetivas. Assim, ela retoma à noção
do peso absoluto, ou seja, do esforço que
EFEITOS INVERSOS deveria ser fornecido por uma determinada
DE UMA MESMA CAUSA força, a sua, que não pode variar em função
CAUSA INVERSA do objeto. Quando ela diz, sobre a madeira,
DE EFEITOS SEMELHANTES em geral, que esta é menos pesada e sobre a
pedra, que é mais pesada, apenas esquece as
Contudo, essas inversões não são as outras dimensões que estariam aptas a tomar
únicas. Pode haver também as de eficiência, um objeto de madeira mais pesado, para ela,
dos efeitos contrários que são atribuídos a do que um objeto de pedra. Ela faz um com­
uma mesma causa ou, inversamente, o mesmo paração simples, sem proporcionalidade, que
efeito a causas opostas. deve induzi-la ao erro assim que for confron­
tada com o real, onde todas as dimensões
D...aud 8; “Os barcos afundam? - Não. - interferem. Os efeitos sensíveis só podem en­
Por quê?- Porque tem água dem ais no Sena. trar em contradição entre si, se estão re­
- As pedras afundam? - Não. - Se você jogar lacionados a uma dimensão única. Em conse­
uma pedra, ela afunda? - A funda. - Por quê? qüência, essa dimensão corre o risco de tor­
- Porque não épesqda. - Se você jogar uma nar-se, ela própria, contraditória. Correspon­
rolha, ela afunda? - Nao, porque ela não ê de exatamente a uma intuição, mas a intui­
pesada. - Por que a pedra, que não é pesada, ção dos objetos concretos pode ser mais for­
afunda, e a rolha, que também não é pesada, te. A criança percebe muito bem que o peso
AS DIFICULDADES DA COORDENAÇÃO MENTAL 121

intervém na diferença entre dois objetos. Mas criança não sabe mais representar outra coisa.
ela o dará, facilmente, como a razáo de dois Com as aparências de um logicismo absurdo,
efeitos contrários e, com freqüência, não sabe que faz o peso agir independentemente das
mais, face a um efeito, se deve explicá-lo condições locais mais evidentes, ela chega a
através de um valor positivo ou negativo. É esse ilogismo de lhe dar, alternadamente, um
assim que ela dará, como razão da imersão da valor positivo ou negativo, a fim de explicar
pedra, sua falta de peso e, do boiar da rolha, o mesmo efeito conforme se trate do barco ou
sua falta de peso também. Depois ela atribui das pedras. Suas explicações assemelham-se
o peso à pedra, mas, então, por que, embora a perspectivas reversíveis, onde os mesmos
mais pesado, o barco flutua? Uma dimensão traços podem ser percebidos, alternadamente,
isolada toma-se contraditória com o real, em alto ou baixo relevo, porque o desenho
porque ficam sem projeção possível de suas que compõem está isolado e sem um meio
variações num quadro de referência no qual próprio para lhe dar uma orientação deter­
elas poderiam ser comparadas com outras minada. Aqui, a inversão depende do objeto
variações do objeto, de modo que se torna momentaneamente enfocado, ou melhor, do
possível encarar cada uma das dimensões, efeito relacionado a esse objeto, mas o isola­
por si própria, em sua continuidade, sua mento do fator considerado é também com­
constância e sua identidade. pleto, relativamente aos outros fatores e até
Eis um outro exemplo de efeitos con­ mesmo aos traços mais concretos da situação.
trários explicados pela mesma causa. Os raciocínios da criança parecem, às vezes,
levar a abstração até a extravagância e a inco­
P...ot 7; “Se a gente jogasse uma pedra erência. Mas a abstração, na criança, freqüen­
grande na água, ela afundaria? - A fundaria. - temente, é apenas oaniquilamento provisório
Por quê? - P o rq u e um a pedra é p e s a d a . - Por de tudo o que não é o traço ou a noção que se
que os barcos não afundam? - Porque as ilumina em determinado momento em seu
pedrinhas n ã o deixam eles andar. - E como espírito, como um fantasma na noite.
é que as pedrinhas não deixam as pedras
andar? - P o rq u e os b a rco s sã o m a is p e s a d o s ” FLUTUAÇÃO DOS ATRIBUTOS

O peso explica, ao mesmo tempo, que a , Se o mesmo efeito pode, conforme o


pedra afunde e que o barco bóie; que a água objeto, ser atribuído a variações do sentido
seja deslocada pela pedra, mas que as pedri­ inverso na causa, as flutuações e as inversões
nhas do fundo, sobre as quais o barco deve devem ser habituais nas explicações da cri­
ficar, não o sejam, porque ele é mais pesado ança, segundo seus pontos de vista suces­
do que a pedra; ou melhor, que a pedra, sivos.
atravessando a água por causa de seu peso,
não possa ser mantida na superfície pelas L...ard 7; 1/2, como a criança J...ot para
pedrinhas do fundo, porque é insuficiente­ “inteligente”, diz que é “vivo” tudo o que
mente pesada. Essa razão parece-nos difícil serve para um fim, tudo o que pode ser objeto
de imaginar, porque, em vez do peso, nós de uma ação: “o tinteiro está vivo? - Está. - Por
vemos, instantaneamente, que é preciso quê? - Porque tem tinta dentro. - E a tinta está
questionar a distância entre o leito e a su­ viva? - Está, porque ela é de um a corpreta. -
perfície da água. Nós projetamos, imedia­ Tudo o que é preto está vivo? - Está. - A lousa
tamente, o mecanismo invocado sobre o está viva? - Está. - Por quê? - Porque a gente
fundo onde se desenham, ao mesmo tempo, pode escrever nela. - Têm coisas que não
as outras condições essenciais da situação. estão vivas? - Têm. - Quais? - Os anim ais que
Mas, no momento em que imagina o peso, a (gtão mortos. - A gente pode fazer alguma
122 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

coisa com os animais que estão mortos? - afirmações contrárias a propósito dos mes­
Casacos com as peles deles. - As peles estão mos objetos. Elas se repelem ou se encobrem
vivas? - Não. -E o s casacos? - N ão.-E o s cha­ mutuamente, mas sem se delimitar, nem dar
péus, estão vivos? - Estão. - Por que os chapéus uma definição diferencial de seus princípios.
estão vivos e os casacos não? - Os chapéus, a O da utilização faz, inicialmente, com que a
gente põe n a cabeça, eos casacos são de peles vida seja atribuída a todos os objetos, mesmo
de bichos. - Às vezes, os chapéus são feitos inanimados, devido ao emprego dos mesmos.
com peles de bichos? - São, os chapéus dos Tendo, asim, eliminado a oposição vivo-inani­
esquimós. - Os chapéus feitos com pele de mado, a criança opõe morto a vivo por substi­
bichos estão vivos? - Estão. - Por que os cha­ tuição de um par alótropo por outro. O tin­
péus feitos com pele de bichos estão vivos e teiro, a tinta, a lousa estão vivos, mas os
os casacos não? - Os Chapéus m antêm o calor. bichos mortos não estão. O que procede de­
- Os casacos também? - Também. - Então, eles les, por exemplo, as peles, também não está.
estão vivos ? - Estão. - Os casacos também Mas, dos objetos utilizáveis que são feitos
estão vivos? - Também. - As peles de bichos com elas, surgirá um conflito. Ele se mani­
não estão vivas e os casacos que a gente faz festa a propósito dos casacos, que não estão
com elas estão vivos? - As peles de bichos vivos porque são feitos com peles mortas, e
também. - As peles de bichos estão vivas e os dos chapéus, que estão vivos porque são
bichos mortos? - É. - Quando o bicho está usados na cabeça. A definição pelo uso e a
morto, sua pele ainda está viva? Por quê? - pela matéria são opostas, como se fossem
Porquea gente p o d efa zer casacos e chapéus. exclusivas uma da outra no mesmo objeto, ou
- A carne dele ainda está viva, quando ele está como sê fossem de mesma ordem; a criança
morto? - Está. - Por quê? - Porque a gente pode mostra, assim, a visão parcial, particular, dispa­
comê-la. - E quando ela é comida ainda está re das coisas, ao mesmo tempo que sua falta
viva? - Está. - Por quê? - Porque quando ela é de discriminação intelectual. Mas, em seguida,
comida, no açougue sempre sobra. - A que constatando que há chapéus de pele e con­
você comeu? - Não. - Ela não está mais viva? servando-lhes o atributo da vida, ela segue,
- Não. - ...O que tem no bicho que não está novamente, o primeiro princípio, restituindo
mais vivo, já que sua pele e a sua carne estão a vida tanto aos casacos, que mantêm o calor
vivas? - Ele... e tam bém seus nervos. - O que como aos chapéus, como às peles dos bichos
são nervos? - São fio zin h o s para fa z e r as mortos, de onde são tirados os casacos e
patas dele andarem . - Por que não está mais também à carne, porque é comestível. Mas
vivo? - Porque ele não anda mais. Q uando então, o que é que não está vivo nos bichos
ele andava, isso m exia os nervos dele. - O que mortos? O próprio bicho, sem dúvida, mas a
é que mexia os nervos dele, quando ele criança acrescenta os nervos, as patas, o cére­
andava? - As patas dele. - E como as patas dele bro, que servem para seus movimentos aboli­
podiam andar? - Era o cérebro dele que fa zia dos pela morte. Outra contradição: o cérebro
as patas dele andarem . - ...Quando o bicho pode ser comido como a carne. Novo refluxo:
está morto, o cérebro dele fica vivo? - Não. - não estando o cérebro vivo, a carne tam­
A gente não pode comê-lo - Pode. - A gente pouco o estará. Essa sucessão de alternativas
não pode comê-lo como a carne? -É .-Ele está opostas seria impedida por um agrupamento
vivo ou morto? - Ele não está vivo. - A carne conceituai dos objetos. Contudo, eles ainda
está viva? - Não. - Por quê? - Não sei. - Por que só se reúnem segundo participações mútuas
ela não está viva? - Porque o bicho está m ono.” mais ou menos extensivas. Está vivo o que
participa do ato de escrever: o tinteiro, a tinta,
Assistimos, aqui, ao fluxo e ao refluxo, a lousa. Não vivo é o que participa do bicho
segundo os pontos de vista sucessivos, de morto. Mas, o que é uma coisa viva não é
AS DIFICULDADES DA COORDENAÇÃO MENTAL 123

definido. Assim, a criança pode opor dois seres é absorvido gradulamente. Mas, sen­
objetos, um como vivo e o outro como não do o casaco evocado um possível objeto de
vivo, por motivos tão heterogêneos quanto o esquecimento e não convindo nem ao sol e
de ser um chapéu e de ser feito de pele de nem mesmo aos animais, a direção se inverte
bicho. A participação é, provavelmente, em e o pensamento é retirado, de forma gradual,
um sentido, copenetração dos objetos entre daqueles que, presumivelmente, pensavam.
si, mas, ao mesmo tempo, relaxamento na
identidade de cada objeto: o bicho morto P...CO 9; disse que a lua, nós, os animais,
acaba por se dividir entre a vida e a morte Deus, os santos e as plantas podem dormir:
segundo suas partes, e cada uma de suas par­ Seus cabelos podem dormir? - Q uando a
tes pode sofrer a mesma alternativa: a came gente dorme, os cabelos devem dormir. - E a
estará morta no bicho e viva no açougue. sua camiseta? - Não. - Por quê? - Porque ela é
Além disso, comida, ela permanecerá viva, depano. - Por que o que é de pano não pode
porque ainda existe no açougue. Assim, eli­ dormir? - Porque não tem olhos. - As árvores
mina-se até o limite entre as partes de uma podem dormir? - Não. - Você não me disse
mesma substância; as que subsistem poderão agora há pouco que elas podem dormir? - É.
propagar sua existência e virtudes às que não - As árvores têm olhos? - Não. - Por que as
estão mais vivas. Sem dúvida, a criança tem árvores podem dormire a sua camiseta não?...
dificuldade para pensar, simultaneamente, E a sua cama, quando você dorme à noite, ela
no conjunto e em suas divisões; para distin­ deve dormir também? - Deve (com um a voz
guir entre o fundo e o que deve ser dele incerta). - Ela deve dormir também? - Deve. -
destacado para individualizar-se e ter um Seu quarto também dorme quando você
destino diferente. Mas, através da mesma dorme? - Não. - No seu quarto têm coisas que
persistência de união dinâmica, afetiva ou dormem ao mesmo tempo que você? - Têm. -
intuitiva no todo ainda indiferenciado e global. O quê? - A cam a. - E o que mais? - O guarda-
É em conseqüência disso que a criança vive roupa. - Tem ainda alguma outra coisa que
no particular e no concreto. dorme ?...”

Da criança para a qual “pensar” é “esque­ A aptidão para o sono estende-se ou


cer", t...oy 6; 1/2 “Uma galinha pensa? - Ela retrai-se na medida em que os objetos pa­
cresce. - Diga-me, oque pensa? - Todo m undo. recem, por algum motivo, aparentar-se ou
- Uma galinha pensa? - Pensa. - E uma vaca? opor-se éntre si. Mas, os motivos são vagos e
- Pensa. - E uma aranha? - Também. - E uma flutuantes. Com aquele que dorme, dormem
formiga? - Também. - E um peixe? - Também. os cabelos. Essa participação no sono se es­
- E o sol pensa? - Pensa. - Como ele pensa? - tende à cama e daí ao guarda-roupa, mas não
Porque ele esqueceu as coisas dele. -Como? O à camiseta devido ao fato, que poderia aplicar­
sol esqueceu alguma coisa? - Um casaco. - O se a todos os outros objetos citados, de que
sol tem um casaco? - Não. - Por que você me ela não tem olhos. Parece que o fundo desta­
disse que ele esqueceu um casaco? - Ele não cado como motivo de cada objeto deslocar-
tem. - O sol pensa? - Não. - E a mosca, como se, contudo, com ele. Donde a impossibi­
ela pensa? - Ela não pensa. - Você disse que lidade de constituir séries contínuas e coe­
ela pensava. - Não. - Você pensa? - Penso, às rentes.
vezes.”
M...ard7; “Seus olhos estão vivos? - Estão,
Sendo pensar sinônimo de esquecer, a sim, senhora. - Seu nariz está vivo? - Não...
faixa do esquecimento é propagada de um Está, sim . - Por que seus olhos estão vivos? -
animal ao outro e mesmo ao sol: o campo dos Porque a gente fa z eles se mexerem. - Seus
124 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

olhos sempre se mexem? - Ê . . . de noite eles mutuamente, podendo a preponderância per­


nãosem exem porque agente dorme.-Quando tencer, aliás, a um ou a outro. Nenhuma de­
você dorme, seus olhos estão vivos? - Não, finição estável, nem apropriada, é, de fato,
senhora, porque a gente não f a z eles se possível, enquanto as imagens ou temas se
mexerem. - E o seu nariz, está sempre vivo? - impuserem ou se propagarem cada um por si
Não, senhora, nem sempre, só de noite que ele e alternadamente.
não está vivo. - Quando é que ele está vivo? -
Só de dia. - Como você sabe que ele está vivo AS ANTINOMIAS NA CRIANÇA
de dia? - Porque a gente f a z ele se mexer. Os
nenenzinhos tam bém fa ze m o n a riz deles se Assim, os objetos unem -se ou opõem -se
mexer. - E a sua língua está viva? - Está. - Por no pensamento da criança, não segundo
quê? - Porque a g en tefa z ela se m exer.-E o s classificações metódicas, m as na m edida em
seus cabelos? - Não. - Por quê? - Porque a que podem ser assimilados por um tema, que
gente não pode fa z e r eles se mexerem. - E se estende ou que se contrai, segundo as
você, você se mexe de noite? - Às vezes, circunstâncias encaradas em determ inado
quando eu sonho. - Quando você não se momento em cada objeto. Por falta de fundos
mexe, você está vivo? - Não, senhora. - Você distintos sobre os quais as coisas se desta­
já ouviu falar de pessoas que estão mortas? - quem segundo a diversidade dos elementos
Já, sim, senhora. - Os mortos se mexem? - delas, elas são confundidas em uma par­
Não. - Os mortos estão vivos? - Não, senhora, ticipação comum. Os temas podem variar; e,
quando eles não estão mortos, eles estão como ondas que se propagam, eles podem,
vivos. - Quando você dorme, você não se alternadamente, recobrir os mesmos objetos,
mexe, você está morto? - Não, senhora, eu embora, com freqüência, contraditórios en­
durm o. -Mas você não está vivo quando você tre si. O conteúdo mental pode ser alter­
dorme? - Não, senhora.” nadamente captado por áreas móveis de in­
fluências diversas. Disso resultam contra­
Ao contrário do caso anterior, é, aqui, o dições, que nos parecem tão grosseiras que
fundo que persiste, apesar das contradições ficamos surpresos ao ver a criança aceitá-las
suscitadas por cada nova circunstância ou tão facilmente. Realmente, é preciso, à signi­
cada novo objeto proposto. Em um primeiro ficação das coisas e às exigências da ação,
exemplo, a vida foi identificada com o movi­ uma estabilidade, uma coerência, de que o
mento. Ela, portanto cessará ou será suspen­ pensamento da criança ainda parece inca­
sa ao mesmo tempo que ele, como no sono. paz. Precisamos saber exatam ente do que
E, contudo, a criança não se resigna a consi­ falamos, defini-lo, a fim de que, durante a
derar com o m ortos os que dormem. Ela che­ operação mental, seu objeto não se modifi­
ga então, ¡mediatamente após ter lembrado a que, tomado-a ilusória e errônea, o que é
oposição morto-vivo - “quando eles não es­ freqüente na criança.
tão mortos eles estão vivos” - a se declarar A definição é-lhe algo difícil, devido a
nem morta, nem viva, quando dorme. Assim, suas insuficiências intelectuais: fragilidade
encontra-se dissociado um dos pares-con­ do ponto de vista pessoal, ausência de pers­
trastes mais conhecidos e mais primitivos. pectiva mental, fraco poder de delimitação
Com efeitos contrários, a mesma insuficiên­ entre temas simultâneos ou sucessivos, don­
cia de pensamento explica que o fundo mude de contaminações constantes, mas, ela ofere­
ao mesmo tempo que o objeto ou que per­ ce também dificuldades intrínsecas, essenci­
sista apesar do objéto: há, nos dois casos, ais, que o próprio adulto teve que enfrentar.
incapacidade para desdobrar o fundo do A lógica conceituai de Aristóteles, basea­
objeto, de modo que eles se assimilem da na definição estendida a todas as coisas e
AS DIFICULDADES DA COORDENAÇÃO MENTAL 125

no silogismo, foi um grande progresso. Foi essencial, em sua existência em si. Hegel,
também, aliás, um a ontologia, contra a qual, pelo contrário, considerou as antinomias co­
após vários séculos, deve ter se insurgido a mo ligadas aos progressos do espírito humano.
filosofía científica, esperando que a própria Cada uma delas é relativa a um m om ento do
lógica se demonstrasse insuficiente. Ela ana­ pensamento. O pensamento não pode ser
lisa o que já pertence ao conteúdo do pen­ reduzido a uma simples coleção de conceitos
samento, mas como mostrou Descartes, ela ou princípios estáticos. Ele é, essencialmente,
nada pode acrescentar ao que já é conhecido; evolução, movimento. É preciso que ele se
ela só pode servir para explicitá-lo. Tendo o tome. Pelo tomar-se, o ser e o não ser unem-
espírito do homem tido sempre como objetivo se. Do mesmo modo, o contrário sucede ao
a extensão e o aprofundamento do conhe­ contrário, não por simples substituição ou
cimento, essa estabilização e as aquisições supressão, mas fazendo surgir, da negação
continuamente novas da experiência já eram mútua deles, uma forma nova de pensamento
uma contradição. ou de realização que, simultaneamente, negue
Há mais. A definição conceituai tem, por e contenha a ambos, superando-os.
grande mérito, o de ser exclusiva, de ser ba­ As antinomias não podem ser unica­
seada no princípio de contradição: eu penso mente reduzidas às que foram deduzidas por
o que penso; e, ao mesmo tempo, não penso Aristóteles ou por Kant. Elas são as etapas do
em outra coisa. Mas, esse exclusivismo chega progresso; elas podem ser encontradas ao
a antinomias na medida em que o real ul­ longo da história, como momentos críticos
trapassa o conceito, em que o real é imenso e do conhecimento ou da civilização. Elas não
instável. são determináveis de uma vez por todas.
A criança luta, precisamente, com o Renovam-se como se renovam os problemas
instável, o instável da experiência vivida, aos quais a evolução do saber ou da vida
para onde ela é levada por não saber esta­ impõem que se encontre uma solução. O en­
belecer nenhuma relação fixa ^ que possa contro de uma antinomia não é um limite que
ultrapassar o alcance intuitivo da experiência o espírito deva aceitar. É o indício de que um
em curso. Mas é um instável e uma imensidão novo progresso tomou-se necessário e pos­
que já lhe fazem sentir os limites dos planos sível. Deve incitar a dar um novo salto para a
onde tende a se formular seu pensamento. A frente. A história das ciências está marcada
existência dê antinomias foi reconhecida pelo por antinomias.
próprio Aristóteles. Para aqueles que con­ As antinomias não podem permanecer
tinuam acreditando na identidade do conhe­ estranhas ao pensamento da criança, que
cimento com os planos conceituais, não é segue também uma evolução inevitável. Co­
possível resolver as antinomias e elas mar­ mo para o adulto, suas imagens, suas no­
cam os limites da razão especulativa: essa é a ções ainda intuitivas das coisas, dão-lhe
conclusão de Kant. quando ela as formula, uma representação
A antinomia consiste na necessidade de estática, que lhe parece identificar-se com
admitir, simultaneamente, dois princípios que elas. Ela não acredita ser possível que elas
se excluem. Aristóteles e Kant puseram em sejam diferentes de como ela as vê, embora
evidência diferentes pares de antinomias. Eles estejam sujeitas a mudar, a se transformar e
viram n isso a prova de q u e é necessário embora, em todo o caso, estejam unidas aó
criticar a razão, limitar o alcance do conhe­ real por outras relações além daquelas das
cimento. Kant, em particular, deduziu que o quais a imagem ou a noção presentes são a
conhecimento não pode u ltrapassar os sim­ expressão.
ples fenômenos, que ele não apreende as Em geral, as antinomias que se impõem
coisas tais como elas são em sua natureza à criança foram ultrapassadas pelos adultos.
126 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Contudo, nem sempre seria muito difícil seu conteúdo. É aliás, nos momentos em que
mostrar como elas ainda podem inspirar certas esse conteúdo parece poder escapar e vacila,
especulações ou certas ilusões, como, pelo que a consciência tende a se posicionar como
menos no passado, elas foram a origem de que anterior a tudo, como autora de tudo,
certos sistemas ou meditações filosóficas. Eis como reabsorvendo tudo nela. Em que crian­
algumas das que se encontram, com mais ça seu devaneio não a fez se perguntar se os
freqüência, nas respostas da criança. Inicial­ seres que a cercavam não eram apenas
mente, a que opõe o ser que percebe e o aparências, das quais ela se negava a re­
percebido, o sujeito e o objeto do conheci­ presentar os sentimentos, os interesses di­
mento, o ato de consciência ao conteúdo da ferentes dos seus, indiferentes aos seus? Em
consciência. seus momentos de inércia forçada, de so­
nolência embalada, de contemplação vaga,
Ch...vin 7; acabou de afirmar que nasceu que criança não acabou se perguntando se as
antes de todas as coisas: “Mas havia casas pessoas que ela percebia a seu redor eram
antes de você nascer? - Tinha. - Quem inteiramente reais? Semelhantes ilusões fo­
construiu as casas? - As pessoas. - Então havia ram reveladas, por Janet, nos psicastênicos
pessoas antes de você nascer? - Tinha. - Essas e descritas, por outros autores, em estados
pessoas, você as viu? - Vi. - Quem eram essas próximos da síncope, no desmaio que se
pessoas?... Não eram seu pai e sua mãe? - inicia pu termina, na hipnagogia ou na
Eram uns homens. - Havia mulheres também? narcolepsia. Transpostas para o plano da
- Também. - Eles nasceram antes de você, especulação, elas se tomam idealismo integral.
antes de seu pai e de sua mãe? - Não. - Como A atitude individual do solipsista assume,
podiam construir casa? - Eram pessoas." então, como que um alcance coletivo ou
universal; a impressão contigente é tida como
Não há indivíduos anteriores á criança, necessária. O fato, para cada um, de não
nem mesmo seu pai e sua mãe: ela é o sujei­ poder ultrapassar nas coisas a consciência
to absoluto de tudo o que existe. Mas, para que ele tem delas, transforma-se em afirmação
explicar as condições de sua própria exis­ metafísica de que a consciência os ultrapassa,
tência, há um ser coletivo, anônimo, per- de que a existência está na consciência, não
sonanges indefinidos e, por assim dizer, sem nas coisas.
imagem. Os termos da antinomia estão, aqui,
bem nítidos. As coisas têm existência para A ORDEM DA PERCEPÇÃO
nós apenas na medida em que são percebi­ EA DA EXISTÊNCIA
das, conhecidas por nós. Não podemos
afirmar que elas são, senão porque tomamos Todas essas especulações repousam no
consciência delas. Qual o motivo de prolon­ fato, muito simples, de que há duas ordens
gar a existência delas para além disso? Eis aí que se opõem. A ordem relativa à percepção
a atitude solipsista. A maneira sutil ou obs­ do mundo: e sem um sujeito para percebê-lo,
cura pela qual ela é, às vezes, apresentada pe­ seria como se ele não existisse, visto que não
los filósofos, pode dar a ilusão de que é o final haveria nenhuma testemunha de sua exis­
de um pensamento que se analisou muito tência. A própria ordem de sua existência. Na
profundamente. Na verdade, ela é muito medida em que descobre o mundo, em que
primitiva. Está longe de ser estranha à criança. toma consciência dele, a criança atribui a si
Ela é, de fato, a intuição mais imediata e uma anterioridade absoluta sobre as coisas.
menos diversificada qfue existe da consciên­ Mas, é-lhe preciso colocar aí sua própria
cia pessoal e da vida subjetiva que nela se existência: por exemplo, alojar seu coipo nu­
mistura e que é sentida como a condição de ma casa, imaginar seu próprio nascimento.
AS DIFICULDADES DA COORDENAÇÃO MENTAL 127

Obrigada a fazer sua pessoa entrar no tem­ possam ser, para o adulto, o ajustamento de
poral, é-lhe permitido admitir que havia algo seu eu sentido ao conjunto das coisas conhe­
antes dela, algo que devia ter autores e assim cidas ou conhecíves, a transmutação perpétua
por diante. Ela o faz, então, de uma forma de seu eu absoluto em um eu efêmero e re­
vaga e coletiva. Esse coletivo é o equivalente lativo, a subordinação de seu ser atual ao
do universal e do necessário filosóficos. A sucessivo, tanto pessoal quanto universal, é o
criança ainda não sabe integrar seu pen­ resultado de uma evolução através da qual se
samento em uma idéia limite e absoluta. Ela constituiu uma ordem de pensamento ainda
se detém ainda no indefinido, no inonimado, ignorada pela criança.
no inumerável. É uma solução menos acabada, A antinomia pode, ainda, assumir um
porém análoga e que responde à mesma aspecto mais objetivo, no sentido de que as
necessidade. contradições de anterioridade parecem não
Se ela retoma, entretanto, ao que a toca mais estar entre o sujeito e os objetos, mas
de perto, imediatamente passa de novo, ao entre objetos. Na verdade, há apenas trans­
primeiro plano, a consciência que ela tem de ferência da ilusão. Em vez de ser relativa ao
si própria. É o sujeito que retoma sua pre­ próprio sujeito, a anterioridade absoluta per­
ponderância: o solipsismo reaparece. Assim, tence à representação do objeto. Não é mais
quando falamo-lhe de seus pais, por mais o criador, mas o ato criador da imagem, que
extravagante, mais contrária à definição que parece anterior a qualquer início da existência.
a coisa possa parecer, ela se atribui nor­ O que é imaginado ou percebido parece não
malmente, então, uma anterioridade de nas­ poder existir. Contudo, no plano das coisas
cimento sobre eles. Isso ocorre porque ela comparadas entre si, a anterioridade abso­
não está mais no plano objetivo das coisas, luta ou eternidade deve transformar-se em
não está mais na cronologia dos seres ou das anterioridade relativa.
coisas. Ela retomou para o da afirmação
pessoal, da consciência sujeito, do que dá a R.G...el 7; “Você já viu a Torre Eiffel? - Já,
existência às coisas pensando nelas. sim, senhor. - Ela nunca foi construída? - Não,
Para resolver essa antinomia, será preciso senhor. - Você acha que ela sempre existiu? -
que a criança chegue a formas de pensamento Acho, sim, senhor. - Q que existiu primeiro, o
que lhe permitam ultrapassar, ao mesmo Sena ou a Torre Eiffel? - O Sena. - Então, a
tempo, o plano do estrito subjetivismo e o do Torre Eiffel só existiu depois? - É. - De que ela
realismo puro. Será preciso que ela saiba, ao é feita - É feita de ferro. - Foram homens que
mesmo tempo se pensando e pensando nas a construíram? - Foi, sim, senhor. - Faz tempo?
coisas, colocar-se entre elas, pensantes ou - Não sei.”
não. Ela deverá saber organizar sua ante­
rioridade efetivamente sentida entre tudo A criança não pode imaginar a coisa, cuja
o que pode tornar-se, para ela, objeto de existência percebe, como não tendo sempre
consciência, em uma seqüência cronológica existido. E, contudo, entre dois objetos, ela
na qual ela própria não será mais do que um estabelece uma ordem de sucessão. O tempo
termo da sucessão, entre o que a precedeu e já é uma relação entre dois termos, mas ainda
o que a seguirá. Em vez de serem alternativas, não é uma ordem que ultrapassa todos os
a intuição subjetiva e a imagem indefinida­ objetos ao mesmo tempo e na qual possa ser
mente repetida das condições próprias para a integrada cada existência. Eis, aqui, a pas­
realidade familiar deverão unir-se em um sagem entre o ser bruto e a passagem ao ser,
devir que substituirá o devir individual como ou começo. O que fornece a representação é
suporte, ao mesmo tempo, do que lhe é es­ o ser, ou seja, algo de estático e de absoluto.
tranho e de si própria. Por mais familiares que A própria representação ainda não foi unida
128 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

a nenhuma origem. Ela se identifica mais ou açougueiros. - Têm pessoas que morrem? -
menos com o sujeito que pensa; ela não está Antes a gente era em quatro, m as têm dois
classificada, com relação a ele, na série dos que morreram."
estados que podem se produzir e se suceder
nele. Nem todos os planos, entre os quais Os conflitos de pensamento são bem
deveria poder permutar um mesmo estado visíveis nesse exemplo. Contraste entre as
mental-sujeito, pensamento, objeto de pen­ pessoas conhecidas da criança e aquelas cuja
samento são distintos; eles permanecem existência, ela apenas supõe: é apenas por
confusos; ou melhor, ainda estão desinte­ analogia com seus avós matemos que ela
grados. É um ou outro que prevelace; é de um também atribui, a seu pai, um pai e uma mãe.
a outro que a criança passa, sem apreendê- Mas, a irrealidade desses seres apenas ima­
los em sua perspectiva recíproca. De tal modo ginados é tal que, devendo ter reconhecido
que o mesmo objeto é ora eterno, ou melhor, pais para a mãe de sua mãe, ela não hesita em
sem começo, como sua própria imagem; ora identificá-los com um tio e uma tia: os vivos
posterior a um outro. de seu conhecimento dão, assim, carne e
Eis um outro exemplo, no qual a anti­ osso aos seres oriundos apenas de seu racio­
nomia parece a ponto de ser reduzida por cínio. Do mesmo modo, ela conhece a morte
raciocínio, ou melhor, pela distinção mais através da de seus irmãozinhos, mas não sabe
bem reconhecida entre o plano das repre­ fazer morrer e reincarna, em personagens
sentações e o das realidades escalonadas no atuais, aqueles de que ela deve ter suposto a
tempo. existência no passado. Ela mostra, de fato,
uma certa incapacidade para representar o
M...nin R. 7; “Seu pai tinha um pai? - Um mesmo ser sob dois estados ou em duas
pai?- É. - Não, ele tinha um a mãe, m as não etapas diferentes de sua existência: suces­
pai. - E você, você tem um pai e uma mãe? - sivamente vivo e morto ou criança e depois
Tenho. - E a sua mãe? - Ela tinha um p a i e adulto. Ela tem necessidade de explicar que,
um a mãe. É o vovô e a vovó. - E o que o seu se seu pai teve um pai, isso ocorreu quando
pai tinha? - Um p a i e um a mãe. - Você não ele era pequeno. Mas, esse incoveniente, que
disse agora há pouco que ele não tinha pai? - ela sente ao supor um pai para seu pai, tem
Eu pensei mal. - Por que você achou que ele uma raiz mais profunda ainda, que ela própria
não tinha pai? - Doispais, isso não com bina. põe em evidência quando explica: “Dois pais,
Q uando ele tinha um pai, ele 'era peque­ isso não combina.” Ela confunde tão total­
nininho. - A mãe da sua mãe, ela tinha pais? mente o ser que ela tem por pai com o pai em
- Q uando ela era pequena. - Quando a gente sua totalidade específica, que há lugar apenas
fica grande, a gente não tem mais pais? - Tem. para um pai, para o seu. Há dupla incapaci­
- Sua mãe ainda tem os pais dela? - Tem. - Por dade, a de distinguir entre o objeto particular
que, quando a gente é pequeno, a gente tem e a representação em sua eventual genera­
pais? - Porque a gente é m uito pequeno; a lidade; a de seguir o ser individual nas etapas
gente não poderia viver; agente não poderia de sua evolução, em seus estados sucessivos,
cozinhar, trabalhar. A gente poderia se vestir. sob a diversidade de seus aspectos possíveis.
Ainda, quando a gente ê bem pequenininho, Há conflito entre a representação fixa, estática,
a gente não poderia. - Onde estão os pais da única e o ser mutante ou múltiplo. Há antino­
mãe da sua mãe? - Não sei. - Eles estão em mia entre a fixação isolada das coisas pelo
algum lugar onde você poderia ir vê-los? - pensamento e a necessidade da integração
Estão, em Sens, na B.F. - O que é isso? - É meu delas na ordem universal das coisas.
tio e m inha tia. - As pessoas vivem sempre? - No exemplo seguinte, a antinomia, em­
É ...eu ainda tenho um a Ha e um tio, eles são bora procedendo dos mesmos princípios,
AS DIFICULDADES DA COORDENAÇÃO MENTAL 129

refere-se a uma outra dificuldade: o movi­ forçada, o movimento espontâneo, é a mesma


mento. que Leibnitz opunha à antinomia cartesiana:
o universo é feito não de extensão e de mo­
Р...со 9; “O que fazem as árvores? - Elas vimento transmitido, mas de mónadas que
mexem. - Por quê? - Porque tem vento. - O que são forças cujo movimento é a manifestação
é o vento? - É a poeira. - Como a poeira pode imediata, sem que haja ação de umas sobre as
fazer árvores mexerem? - Ela bate nelas. - outras. O movimento existe por si próprio.
Como a poeira pode bater nas árvores - Porque Assim, desaparece a necessidade de lhe en­
ela não pode se libertar? - O que você quer contrar um começo.
dizer com “se libertar”? - Ela não pode se
moverporque tem outra. - Se ela não pode se A antinomia pode referir-se ao próprio
mover, como ela pode bater nas árvores? - Ela espaço.
não presta atenção. (Acríançaparece, então, M...on G.7; definiu o céu como uma
um pouco distraída.) - O que quer dizer “se esfera oca que gira: “O que é a terra? - Não sei.
mover”? - Ela não pode se levantar. - Por que - Se a gente andasse bastante, a gente poderia
ela não pode se levantar? - Porque ela voa no chegar ao fim da terra? - Não, é longe de­
chão e bate na base da árvore. - E o que é que mais... de carro, sim ... ou de trem. - O que
faz com que a poeira bata na base da árvore? tem no fim da terra? - Um m uro para separar.
- São outras que a em purram por trás. - E - E o que tem do outro lado desse muro? -
essas outras que a empurram por trás, o que Nada. - Se a gente pulasse o muro, o que
as empurra?... Você não sabe? - São outras aconteceria? - Não sei. - A gente poderia
que a em purram p o r trás. - Mas, o que é que ultrapassar o muro com um avião? -É.-O que
empurra todas as poeiras? - Elas voam a gente encontraria?... É claro ou escuro do
sozinhas.” outro lado do muro? - N unca fu i lã.”

É uma concepção solidista das coisas O muro do qual a criança fala materializa
que essa criança exprime. Para explicar a a idéia necessária de um limite, de um con­
pressão do vento sobre as árvores, ela o torno no objeto imaginado. Mas, o muro
transforma em poeira, empurrada, ela mesma, supõe um “alên. ” Aantinomia do espaço que
por poeira e como que presa num bloco de essa resposta formula, assim, para o sujeito,
onde não pode escapar. Mas, o movimento, foi diversamente resolvida, segundo as épo­
que se transmite de um corpo ou de um lugar cas e pelos diferentes sistemas filosóficos ou
a outro, permanece sem origem, com cada científicos. Os eleatos haviam-na enfocado
impulso dependendo, ele próprio, de um em toda a sua generalidade não se tratava
empurrão e assim por diante. A antinomia é apenas, para eles, de saber se o universo é
aquela mesma que foi censurada em Des­ limitado ou ilimitado, mas, levantavam tam­
cartes, cujo universo, reduzido às leis da bém o problema do ser e do não-ser. No
extensão, teria sido apenas imobilidade, sem plano da representação, é a antinomia entre
o “empurrão” divino. Lançado, de uma vez a limitação necessária do que entra em uma
por todas, o movimento tem efeitos que representação e as exigências de uma repre­
repercutem uns sobre os outros, devem sentação que se estenderia ao universo: seria
justificar todos os fatos observados. O movi­ contraditório também supô-lo sem limites e
mento comunicado pode muito bem expli­ supor-lhe limites que poderiam ser apenas o
car, provavelmente, os fenômenos naturais, nada.
mas com a condição dele próprio ser expli­ Assim, as dificuldades que a criança en­
cado de outra maneira além da intervenção contra, quando precisa conciliar sua imagem
providencial. A solução à qual a criança se vê das coisas com a realidade das mesmas, não
130 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

a levam a inconseqüências sem relação com parecem-nos muito grosseiras, ela própria é
os problemas do pensamento adulto. Ela menos sensível a isso, graças ao campo sempre
apenas levou para menos longe as diferen­ restrito, intermitente ou alternante de suas
ciações necessárias entre os planos, onde o intuições mentais. Ignorando-se mais ou me­
objeto e o universo possam, ao mesmo tem­ nos umas às outras, nunca confrontadas com
po, dissociar as qualidades e as relações di­ rigor, elas poupam seu esforço intelectual de
versas deles, e depois encontrar novamente sucumbir sob uma impressão de irredutível
sua unidade. Se as contradições da criança incoerência.
CONCLUSÕES
E COMENTÁRIOS

As dificuldades que o desenvolvimento Mas, nem na própria experiência pesso­


intelectual da criança deve superar apresen- al, nem nas fontes de tradição, não há, no
tam-se como um esforço para tom ar coeren­ início, homogeneidade e coerência. Quando
tes atividades às quais se impõe uma diferen­ a experiência pessoal afasta-se das situações
ciação crescente, à medida que o alcance práticas, onde estão inicialmente absorvidos
delas deve estender-se, a fim de transpor o os gestos e as veleidades da criança, para dar
nível de simples reações imediatas a situa­ origem à descrição e a representações, dois
ções puramente atuais e concretas. A única tipos parecem concorrer, embora resultando
fórmula eficaz será a de resolver, num novo das mesmas causas: uma espécie de realismo
plano funcional, as oposições ou os antago­ perceptivo, que retém das coisas apenas os
nismos que surgem, quer no próprio campo aspectos ou os momentos cujos sentidos
funcional, quer em suas relações com os mo­ recebem uma impressão particularmente viva
tivos ou as necessidades exteriores da ativi­ ou notável, puro fenom enism o reduzindo o
dade. real a uma espécie de mutabilidade indefini­
da entre formas ou objetos diversos. E, por
CONTRADIÇÕES ENTRE outro lado, a imagem confusa onde permane­
AS FONTES DE INFORMAÇÃO cem misturadas, na impressão que corres­
ponde às coisas, o que ela lhes deve e o que
Uma primeira fonte de contradições reais ela deve ao próprio sujeito, ou seja, o que se
ou em potencial resulta das aberturas diver­ refere à sua afetividade, assim como à sua
sas pelas quais a criança comunica-se com o atividade pessoal. O pragm ático está, aí uni­
meio. A parte de seu contato direto com as do ao perceptivo. A experiência é apenas a
coisas está longe de ser tão exclusiva quanto seqüência das situações às quais o sujeito
na maioria dos animais. A ambiência social reage, e a representação que ela realiza disso
também controla sua existência. É até mesmo está na imagem desses conjuntos, onde tra­
ela que suscita os primeiros meios dos quais ços e detalhes são simples circunstâncias do
a criança dispõe em vista de suas necessida­ ato e não têm individualidade distinta. Assim,
des: sua impericia prática é compensada pela na representação dita sincrética, as qualida­
expressão que ela sabe dar a seus desejos. des das coisas são, em cada caso, tomadas
Portanto, de um lado, há experiência direta e uma pela outra, qualquer que seja a diferença
pessoal, de outro, uma linguagem e, em segui­ delas, e quer as associações das mesmas
da, uma tradição. Entre ambas, o acordo não sejam essenciais ou acidentais.
existe de início. Antes de ser descoberto, ele Entre o fenomenismo e o sincretismo, a
dá origem a tentativas que podem nos pare­ oposição parece manifesta. E, contudo, eles
cer, elas mesmas, contraditórias ou barrocas. se alternam e coexistem. O princípio deles é,
132 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

de fato, semelhante: uma imagem sincrética envolve, inicialmente, através da linguagem,


só pode sair de sua confusão indescritível que é um material cujos elementos e cuja es­
transformando-se em um simples e único trutura são, por si próprios repletos de signi­
aspecto que, não tendo sido e não podendo ficação. É através dele que a criança aprende
ser distinguido dos outros, dá a ilusão do a fixar a identidade dos seres e das coisas, ao
todo. Freqüentemente, a descrição limita-se à mesmo tempo que a exprimir suas próprias
enumeração de detalhes dados como equiva­ atitudes com relação a eles, e esse papel é tão
lentes, embora sejam um conjunto dos mais essencial que se toma, freqüentemente, difícil
heteróclitos. Mas, freqüentemente também, distinguir entre a contribuição da experiência
apenas um é retido para todos os outros. E, bruta e a influência das palavras ou das for­
enfim, há momentos em que apenas um é mas gramaticais. Contudo, sua apropriação
notado e se desenha no campo perceptivo. A mútua pode exigir longos prazos. São dois
incapacidade é a mesma nos dois casos. A de sistemas entre os quais são observadas dis-
apreender traços múltiplos como tais: sin- cordâncias. O intenso esforço de análise, que
crestimo. A de opor, ao sucessivo puro das a necessidade da criança, de compreender o
situações ou aparências, o que há de cons­ pensamento do outro e o seu próprio, a faz
tante e de essencial nas coisas: fenomenismo. empreender, sobre o que traduz seu pensa­
Dois momentos, duas condutas contrárias, mento, pode levar ao mais vão dos formalis­
porém complementares, respodem a isso, mos ou a contra-sensos. O aparelho das pa­
uma de atividade entre as coisas, a outra de lavras e das signifcações consistem em estrutu­
abstenção e de expectativa contemplativa. ras de muitas espécies, que podem agir por si
Entretanto, o traço particular, e às vezes for­ próprias e inoportunamente. O exemplo mais
tuito, tomado pelo todo, só consegue posi­ aparente são locuções interpretadas literal­
cionar a criança face a incoerências ou con­ mente: Há transferência, nas próprias coisas,
tradições. É à medida que aumentará sua ca­ das associações que unem os termos delas ou
pacidade de confrontar, entre si, suas repre­ imagens que correspondem a elas. Mas, ainda
sentações, que ela encontrará a ocasião de pode se apresentar um outro caso. Cada um
analisá-las melhor, de completá-las ou reti­ dos elementos aparentes da linguagem per­
ficá-las. tencem, na verdade, a constelações de vocá­
As tendências à descrição pragmática bulos ou de sentido: assimilações morfológi­
dão origem, na criança, a suas explicações, cas, oposições, ambivalências, afinidades se­
muito freqüentes, através do modo operató- mânticas, das quais a criança não é suficien­
rio. Ela faz com que as coisas sigam os circui­ temente mestre para não sentir-lhe os efeitos
tos que lhes faz seguir sua própria atividade e tomá-las como a expressão da própria reali­
ou aquela da qual é testemunha; ela lhes dade.
limita a existência ou a procedência às práti­ Às contradições que podem surgir des­
cas nas quais ela as vê entrar. É por isso que sas imagens, quer entre si, quer com as coi­
ela não sabe, habitualmente, ultrapassar a sas , acrescentam-se as que a criança encontra
origem comercial das coisas. É esta que ela quando confronta sua experiência com o fol­
considera como derradeira, mesmo quando clore que utiliza: contos, crenças ou expli­
se trata de objetos aos quais corresponde cações transmitidos do adulto à criança ou de
uma origem natural. O modo operatório aca­ criança a criança. Enfim, terceira forma de
ba, assim, misturado intimamente, à sua ativi­ tradição, o ensino, a explicação racional ou
dade própria, a atividade comum, à expe­ científica das coisas, onde a criança não deixa
riência pessoal, os còstumes. de inserir, sob as fórmulas que ultrapassam
A tradição é a outra fonte de suas re­ seu entendimento, imagens que lhe sejam
presentações. Através dela, o meio social a familiares. Ainda aqui, os mecanismos que
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 133

ela pode imaginar, por mais engenhosos que no objeto de sua atual representação. Uma
sejam, às vezes, introduzem, entre suas idéias razão semelhante impede-а de reconhecer o
de qualquer procedência, também outros que vem de sua base ou o que ela recebeu de
elementos heteróclitos. outro. Aqui, ainda, a alternância de atribuição
O que pode contribuir mais para a con­ depende de veleidades puramente subjeti­
tradição de suas idéias, é o fato de que ela não vas, conforme lhe pareça mais convicente ela
tem o sentimento muito exato de suas pró­ mesma dar garantias ou invocar a fonte de
prias contradições. Pois é necessária uma toda autoridade, seu pai. Nessas afirmações
certa sistematização nas idéias para que as contrárias ela encontra muito menos difi­
oposições, as incompatibilidades delas se culdade na medida em que sua inaptidão é a
tornem compreensíveis. Ora, elas ocupam, mesma para distribuir a origem de suas repre­
sucessivamente, o espírito da criança, atrain­ sentações entre as pessoas, ou entre momen­
do-se, talvez, ou influenciando uma à outra, tos ou épocas determinadas. Ela é tão incapaz
capazes de deixar uma impressão de continui­ de delimitar o objeto no tempo e no espaço
dade ou de identidade mais ou menos flutu­ quanto de lhe atribuir uma ordem de exis­
ante, mas sem nada de fixo entre elas que tência subjetiva.
permita compará-las, mantê-las uma com
relação à outra, sem contaminação de uma NÃO-DIFERENCLAÇÃO DOS PLANOS
pela outra. Se se faz sentir a necessidade de INTELECTUAIS E INCOERÊNCIA DAS
coerência, e freqüentemente, apenas sob a REPRESENTAÇÕES
pressão de uma objeção, são outras idéias
que surgem, não para reduzir a contradição, Para começar, na criança, o sujeito ainda
mas para conciliar o inconciliável, com a não sabe se distinguir nem se apreender
ajuda de um novo afluxo de imagens que como tal. Ele permanece no estado difuso em
têm, às vezes, entre si, apenas uma afinidade tudo o que experimenta e fica confundido
bem indistinta. com o conjunto da situação vivida ou pen­
A ignorância habitual da fonte delas sada: conteúdo e condições diversas. A segre­
aumenta na criança a sua incapacidade de gação e o posicionamento dos mesmos ope­
coordená-las em argumentos coerentes. Ela ra-se apenas progressivamente. Enquanto sua
toma, uma pela outra, as que lhe vêm da parte, a dos outros e das coisas não estiverem
linguagem e da percepção, da tradição ou da nitidamente diferenciadas, faltará a suas re­
experiência. Confunde, o que a lógica lhe faz presentações uma norma estável que permi­
concluir, com uma afirmação recebida de tiria ordená-las entre si; e ele estará muito
maneira absoluta, uma simples analogia com mais inclinado a misturar ou assimilar, não
um raciocínio. Aqui, ainda, falta um termo apenas noções e imagens de procedência
fixo que permita distribuir as idéias segundo heteróclita, mas também circunstâncias que
a procedência das mesmas. Há casos em que pertencem a planos heterogêneos do real ou
a mesma idéia é, alternadamente, atribuída, do conhecimento. Ele funde o diverso e não
pela criança, à sua própria invenção ou ao sabe dissociar, entre si os diferentes pontos
testemunho de seu pai; em que ela imagina de vista. Desse confusionismo, ele extrai a
tê-la descoberta no momento ou sabê-la há possibilidade de explicação obtida, alterna­
muito tempo. Ela tem, da origem, apenas damente, de todos os domínios. Suas contra­
impressão muito subjetiva de surpresa ou de dições, às quais ele parece, inicialmente,
atração; mas, como é incapaz de ultrapassar insensível, vão, contudo, obrigá-lo gradu­
o acontecimento que a ocupa para organizá- almente ao esforço de análise e de coorde­
lo em seu lugar em uma série, quando essa nação, de onde deverá sair o aparelho no
impressão se atenua, ela não vê mais princípio qual se distribuem nossos conhecimentos.
134 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

O antropomorfismo da criança não é modos operatórios da vida cotidiana. Desse


uma projeção de seu eu nas coisas, que ela modo, esse desvio apenas leva ao mesmo
representaria à sua própria imagem, pois ela gênero de explicação que o artificialismo. Na
não tem uma consciência de si mesma ante­ verdade, o mitologismo, para a criança, posi-
rior à que ta n das coisas. Seria muito mais um ciona-se no mesmo plano que qualquer outra
resíduo de sua sensibilidade subjetiva que ela noção tradicional; e não há plano distinto
nelas deixaria, antes de ter realizado com­ para o que é aprendido ou para o que é visto
pletamente a discriminação, aliás, tão sujeita nem, no que é visto, para os fatos que ultra­
a desaparecer nos momentos críticos da passam o alcance da criança e para os que
consciência, entre o que vem ao mundo exte­ entram na esfera de sua vida prática.
rior e o que lhe pertence. Mas é também um A confusão, em um único plano, de
meio de pôr alguma coerência entre suas imagens tão diversas quanto as do mundo
representações. A realidade familiar é, para doméstico, do mundo físico e do mundo
ela, a das práticas que satisfazem suas neces­ mítico, ocasiona desproporções ou extrava­
sidades, as quais ocupam sua existência e a gâncias de que a criança não parece sus­
de seus próximos. Face a realidades naturais, peitar. Parace que os detalhes reunidos ou
ou ao sobrenatural que lhes foi sobreposto, a substituídos entre si ainda não se relacionam
criança permaneceria com o espírito em sus­ ao plano que colocariam cada um deles em
penso ou dividido, se não lhes estendesse as sua escala. Eles são como que, à vontade,
únicas noções das quais faz uso: aquelas de destacáveis de suas condições de existência
que se alimenta sua vida cotidiana. Artificia- ou de percepção. Não ocasionam, como eles,
lismo ou instrumentalismo, mitologismo ou a base que lhes é própria, que a criança pode,
providencialismo são os diferentes aspectos eventualmente, ser bem capaz de imaginar,
de uma mesma coalescência entre séries mas onde o objeto não se integrou indisso-
diversas do universo. A assimilação pelo ins­ luvelmente. Diante de suas imagens das
trumentalismo e pelo artificialismo da na­ coisas, a criança estaria como que diante de
tureza física aos modos operatórios do homem seus jogos incompletos, cujas peças ela agru­
ocasiona combinações barrocas, agrupamen­ paria sem embaraços, por mais diferentes
tos díspares de imagens, incoerências às quais que fossem em dimensão, natureza e signifi­
a criança pode, inicialmente, dar sua adesão, cação. Se ela é incapaz de reconhecer as
pois esta é de início, mais ou menos sucessiva „ incompatibilidades delas, isso ocorre porque
e fugaz, e que ela aprenderá, progressiva­ ela o é também de reduzir cada rima a seus
mente, a reduzir, ou a eliminar. Mas, essas elementos essenciais. Analisar não é somente
contradições refletem um princípio de uni­ dissecar o objeto sem suas partes, é, ao mesmo
dade, a unidade de uma função, a que res­ tempo, identificar cada uma delas a um gênero
ponde à necessidade de ligar para explicar e ou uma forma determinadas. Ora, essa base
para compreender. Há a mesma confusão de que falta ao objeto global falta também aos
planos com o mitologismo, mas deslocada e seus elementos. Assim, a discriminação das
de sentido inverso. Dessa vez, a explicação realidades entre si e a análise de cada uma
das coisas não é reduzida ao mundo de são, da mesma forma e na mesma medida,
aparências mais familiar à criança, mas, pelo negadas à criança.
contrário, ao que está além das aparências, a O poder que lhe falta para opor, a suas
influências ou a seres que não pertencem ao representações individuais, uma base sobre
mundo sensível. Entretanto, essas interven­ a qual possam se destacar a ou as estruturas
ções de personagens míticos, que respon­ essenciais ou características do objeto, apre­
deriam ao domínio do oculto nos primitivos, senta vários níveis, que vão da incapacida­
são também intimamente assimiladas aos de para superar a experiência puramente
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 135

intuitiva das coisas à incapacidade de lhes dar representação isolada e global, cada objeto,
uma reprodução científica. No plano da reali­ alternadamente, incomparável e identificável
dade simplesmente vivida, elas não têm re­ com outros objetos quaisquer. Se há uma
presentação distinta e podem, no máximo, base, ela segue o objeto. As enumerações da
ser o núcleo de hábitos ou rotinas. Muito criança mostram-no muito bem. Os termos
tempo após ter ultrapassado essa fase, a cri­ sucedem-se sob a influência de relações hete-
ança permanece incapaz de imaginá-las dife­ róclitas e sem que seja possível descobrir-lhe
rentemente porque não lhe são dadas por sua uma rubrica única, uma base comum. Por não
estrutura perceptiva ou verbal. Contudo, é saber constituir bases apropriadas, falta, ao
impossível fazer delas um objeto de pensa­ pensamento, continuidade e unidade. Ele
mento sem estar apto a representá-las de não pode escapar da simples tautología ou da
outra maneira que não sob suas aparências incoerência sem planos, onde possam ser
presentes e não no momento atual: é a con­ distribuídos, em sua exata perspectiva, os
dição primordial para nelas discernir as quali­ traços ou as relações do objeto. É deles que
dades ou as relações que as constituem e para dependerá o poder de distinguir, a respeito
lhes conferir a persistência indispensável de do objeto, o particular e o geral, o individual
existência e de eficiência. Sistematizada, essa e o essencial, a conseqüência e o princípio, o
necessidade é o que leva o primitivo a dupli­ fato e a causa etc. Mas, a grande dificuldade
car as coisas concretas com potenciais ocul­ é de coordenar ou mesmo de distinguir esse
tos, as aparências sensíveis ou práticas com planos entre si.
ações imanentes, o efeito vivido com causas Em vez de se oporem, eles se incorpo­
transcendentes. É a necessidade à qual obe­ ram no objeto. Desse modo, a criança não
decerá o pensamento racional e científico, sabe compor duas dimensões diferentes entre
que projeta o mundo sensível num mundo de si, como o peso e o volume. Ela não cessa de
símbolos, onde possam se exprimir relações assimilá-las ou de esquecê-las, uma pela outra.
e estruturas indefinidamente adaptáveis às Mas, como poderia ela comparar e conjugar
estruturas ocultas ou às relações longínquas as variações delas, se cada uma ainda não lhe
das coisas. Escapar do presente para explicá- dá o meio para classificar o objeto em sua
lo é de uma tal necessidade que a própria classe entre outros, que, a esse respeito,
criança também deve experimentá-la. Não podem assemelhar-se a ele? Ora, eis aí uma
sabendo imaginar uma reprodução das coisas operação de aparência muito mais simples;
sob outras espécies além dos dados empíri­ entretanto, ela tarda muito também, pois sua
cos ou tradicionais, ela se limita a repeli-las, condição fundamental é a mesma. A quali­
tais como estão, para o longínquo ou para o dade do objeto permanece sendo seu atribu­
passado. Mas, essa ocultação pela distância e to próprio, não pode servir para compará-lo
pela duração não é suficiente para transfor­ sistematicamente com outros. Ela mesma per­
mar a experiência bruta em experiência re­ manece inseparável de sua própria nuança
fletida, a impressão ou noção imediata das presente, assim como do conjunto que cons­
coisas em representação ou em relações in­ titui o objeto, enquanto a criança não tiver o
telectuais. poder de destacá-la como uma base evocá-
Não é que a criança não possa, em graus vel quando dela se precisar sobre a qual
diversos, ultrapassar a intuição perceptiva ou possam ser distribuídos, entre si, todos os
a denominação verbal. Senão, ela não supe­ objetos onde ela se deixa reconhecer, quais­
raria a rotina, nem o psitacismo. A imagem quer que sejam suas diferenças de inten­
das coisas na ausência delas já é o desdobra­ sidade ou de nuança. Sem esse desdobra­
mento simbólico das mesmas. Mas, limitado mento, é ora a base que muda com cada
a si próprio, esse desdobramento deixa cada objeto novo ou, dizendo de outro modo,
136 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

incoerência, ora a base que persiste sem con­ podem dar uma idéia. Muito mais graves
vir aos objetos novos ou, melhor dizendo, devem ser as conseqüências do obstáculo
contradição. Aderente ao objeto, a qualidade oposto a essas relações pela impermeabili-
não pode servir à sua comparação sistemática, dade das vias nervosas, como é observado na
e eles mesmos podem apenas assimilar-se criança, antes da mielinização delas. É assim
confusamente entre si, contanto que haja al­ que, na idade em que já pôde aprender a
gum motivo para agrupá-los. combinar as representações mais complexas
Essa ausência de diferenciação (no con­ do concreto, ela ainda não tem capacidade
junto percebido ou imaginado, entre as qua­ para projetar-lhes a imagem sobre planos
lidades ou as relações que permitiriam redu- distintos, que não estejam mais em ligação
zi-la quer a semelhanças e a diferenças defi­ imediata com a ação prática e por meio dos
nidas, quer a uma ordem determinada de quais o real seja, gradualmente, convertido
sucessão e de coexistência), e o isolamento em sistemas de símbolos, que estejam aptos a
ou a confusão dos objetos entre si, que disso representar livremente todas as relações pos­
resultam, revelam um pensamento ainda síveis e as estruturas mais isoladas.
maciço, que se realiza por blocos ainda inor­
ganizados e impermeáveis e que pode ser FLUTUAÇÕES E CONTRADIÇÕES
associado ao estado dos centros nervosos na
criança. Pois eles estão longe de estar, desde Não é tanto a ausência de temas intelec­
o nascimento, todos em estado de funcionar. tuais que se observa na criança quanto a
Durante longos anos, a transformação anatô­ ausência de independência recíproca destes.
mica das fibras e fibrilas nervosas, que lhes Ou simplesmente justapostos, mas estranhos
permitirá unir neurônios e centros entre si, um ao outro, ou difundindo-se um no outro.
deve prosseguir. Os efeitos dessa maturação Ora parece haver uma propagação mútua,
progressiva não têm a mínima importância se que os transforma mais ou menos um no
se trata das funções intelectuais ou se se trata outro, uma osmose que os faz se copenetrar.
das funções motoras. Mas, é mais fácil reco­ Ora a disparidade deles pode ser reduzida
nhecer se a criança anda do que se ela racio­ apenas por ajustamentos acrescentados. A
cina. A evolução do pensamento, muito mais explicação da criança retoma à fabulação. As
delicada para reconhecer e muito mais tar­ circunstâncias necessárias são gradualmente
dia, tem, como condição, que, entre os centros imaginadas; mas elas apenas fazem com que
do córtex cerebral, estabeleçam-se relações a cadeia dos elementos se alongue, sem dar,
numerosas, sutis, diversas, enfim, tais como a aos fatos, uma medida comum. Elas per­
estrutura e o arranjo mútuo de suas varie­ tencem ao mesmo plano que eles, em vez de
dades celulares, de seus sistemas de associa­ reduzi-los a seu princípio. Pela mesma razão,
ção profundos ou tangenciais, longos ou as categorias de objetos são mal delimitadas.
curtos permitem imaginá-las. Os fatos ou traços, que poderiam ser dados
O córtex divide-se em inúmeros terri­ para caracterizar cada uma delas, não lhes
tórios, todos diferentes por sua composi­ podem ser dissociados e nem opostos, como
ção celular e pela repartição sistemática das uma base que corresponderia exata e unica­
células em camadas nitidamente distintas mente a elas. Além disso, esses fatos ou esses
(Brodman). É óbvio que essas diferenças de­ traços só são discernidos confusa e levemente
vem tornar efeitos possíveis cujas próprias identificados entre os que as coincidências
diferenças são suscetíveis de serem elevadas ou as rotinas da experiência subjetiva podem
a potências que não temos condição de ava­ agrupar ou separar.
liar, mas das quais a variabilidade e os pro­ Na sucessão dessas peripécias, nenhu­
gressos indefinidos do pensamento humano ma referência é fixa. Mesmo o ponto de vista
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 137

pessoal é flutuante, pois ainda está muito objetos, para melhor classificar estes últimos,
preso às situações às quais o sujeito é mis­ podem apenas encontrar como que um limi­
turado por sua atividade ou por suas re­ te, em oposição com outras definições tam­
presentações. Estando confundido com ò bém levadas a seu limite. A definição pôde
objeto, toda perspectiva intelectual é radical­ ser mostrada como opondo-se às aquisições
mente impossível. Mas, entre os campos da da experiência no campo do conhecimento,
experiência, ele põe um outro vínculo, o da à representação da mudança e do devir na
participação. Ela é a origem das afirmações história dos seres.
contrárias que se sucedem, a propósito do Sem dúvida, a evolução racional e cien­
mesmo objeto, conforme ele se ligue, na evo­ tífica do homem foi apenas um longo esforço
cação que a criança faz, a um ou outro, sem para dominar oposições renovadas. A base
delimitação das semelhanças e das diferen­ destacada das coisas em cada época, para
ças. Não sabendo distinguir, nas coisas, sua que elas possam projetar nela algumas de
existência própria e os modos que permitem suas relações, acabou sempre entrando em
compará-las entre si, a comparação delas pa­ conflito com a realidade das mesmas, ainda
rece-lhe implicar, ao mesmo tempo, afinida­ não expressa e que permanecerá instável, de
de de m odo e de existência, ou melhor, re­ modo que uma nova tentativa tomava-se
lações ambíguas de semelhança e de iden­ necessária, frequentemente inversa à prece­
tidade. Mas, ao mesmo tempo em que elas dente, para justificar efeitos ainda irredutí­
parecem fundir-se umas nas outras, a iden­ veis às definições anteriores; e impunha-se a
tidade de cada uma toma-se mais frágil. Os obrigação, nesse caso, de encontrar a fórmu­
fluxos e refluxos que as fazem encontrar-se la que pudesse convir, simultaneamente, aos
confundidas, ora com umas, ora com outras, efeitos mais antiga e mais recentemente
fazem delas objetos sem individualidade es­ explicados. É o sentimento dessas contra­
tável, coerente, nem exclusiva. Mais do que dições que, também de época em época,
unidades nitidamente delimitáveis, elas são a fazia com que filósofos como Zenon, Aristó­
substância onde podem se propagar, segun­ teles ou Kant concluíssem que, entre o ser e
do a proximidade ou a inspiração do momen­ a razão, há antinomia. Considerando a razão
to, ondas que as unifiquem de modo sucessi­ de sua época como a razão eterna, e os prin­
vo, e de forma contrária, em conjunto ora cípios do conhecimento como imutáveis, eles
ampliados e ora retraídos excessivamente. criavam um abismo intransponível entre a
O motivo desses agrupamentos difere, necessidade e a possibilidade que o homem
evidentemente, da definição lógica, quando tem de apreender o real, entre sua intuição e
até mesmo a raiz intuitiva seria a mesma para suas explicações da vida íntima e universal.
os dois. A definição estabiliza, em cada objeto Mas, as contradições já ultrapassadas aí fa­
ou cada acontecimento, o que pode fazê-lo zem ver, tanto no futuro como no passado, o
aproximar-se de um outro. Por isso mesmo, sinal e a condição do poder que o homem
ela lhe assegura uma identidade fixa entre tem de saciar, sem cessar, sua sede de unir-se
todos aqueles aos quais o uniram determina­ ao mundo através de novas conquistas.
da semelhança, determinada relação, parci­ Ainda fisiológicamente incapaz de mul­
ais e mensuráveis. Mas por isso mesmo tam­ tiplicar os planos através dos quais a experi­
bém, ela tende a imobilizá-lo, a esquematizá- ência direta das coisas pode ser decomposta
lo em planos rígidos. Uma vez formulada, ela em sistemas definidos e precisos de conheci­
só permite a análise de seu próprio conteúdo, mento, a criança encontra, em suas noções
ao termo da qual as distinções e as delimita­ ainda inteiramente intuitivas da realidade, as
ções, que ela teve o mérito de estabelecer antinomias que estavam ligadas às confu­
entre os aspectos ou os efeitos diversos dos sões mais grosseiras do pensamento em suas
138 AS O R IG E N S D O PENSAMENTO NA CRIANÇA

origens. Freqüentemente, ela parece ceder à todos esses casos, é a dificuldade para dis­
ilusão solipsista e sofrer as contradições des­ sociar, dentro das situações intuitivamente
ta. A distinção fundamental, que permanece apreendidas, os elementos e os papéis entre
ainda precária ou intermitente para ela, é a do os quais o próprio sujeito parece difundir sua
sujeito e do objeto, de tudo o que pode uni- presença.
los opondo-os. O sujeito permanecé confun­ As próprias distinções que a criança sabe
dido com o ato mental, em vez de ser consi­ fazer, as de qualidades comuns por exemplo,
derado como o autor permanente de todos os como o peso ou o volume, têm, por sua vez,
atos mentais. O objeto com o conteúdo da algo de indiferendado, de único, de rígido,
consciência. A ordem real com a ordem da que as põem em oposição com as realidades
percepção. Essa aparente absorção de toda de onde elas parecem ter sido liberadas. Elas
existência na do eu tem, como contrapartida, parecem mesmo substituir seus aspectos ou
o aniquilamento do eu. seus efeitos, como se o desdobramento ope­
Nada é mais vago, na criança, do que a rado entre o objeto e suas propriedade não
função pessoa, tanto para ela própria, quanto pudesse impor-se à própria atividade intelec­
para os outros. Seu emprego dos pronomes é, tual. Sempre reduzida a nada enfocar senão o
frequentemente, anônimo, indeciso e contra­ simples, é preciso que ela escolha entre a
ditório. Se se trata de outrem, eles antecipam- coisa ou a noção abstrata. De duas noções
se com relação à designação e, visivelmente abstratas, a criança, naturalmente, só sabe
também, à imagem dos indivíduos implicados imaginar uma por vez, ou melhor, ela reduz a
na cena evocada; designam, alternadamente, esta todas as que podem entrar simultanea­
e às vezes como que simultaneamente, os mente em sua intuição. Assim, ela faz o peso
papéis opostos. Se se trata dela própria, o variar ao mesmo tempo que o volume. E
emprego da terceira pessoa alterna com o da quando, desse modo, ela acaba contradizen­
primeira, como se a criança oscilasse entre do as realidades mais habituais, com intre­
situar seu ato no mundo exterior, entre todos pidez ela inverte o curso das coisas, a não ser
os atos que aí entram em jogo, e apropriar-se que atribua efeitos contrários à mesma causa
dele como sua autora. Essa ambivalência do ou, ainda, que invoque causas opostas para o
objetivo e do subjetivo explica certas ambi- mesmo efeito.
valências da linguagem: confusão entre no­ Assim, nas relações obrigatórias de suas
ções complementares como ver-clarear, fa- primeiras noções intelectuais e de sua expe­
lar-escutar ser utilizável ser inteligente, con­ riência, a criança dá a ilusão de escapar da
fusão entre a significação ativa e passiva de incoerência apenas omitindo-as umas pelas
certas palavras como sentir, queimar escor­ outras ou até mesmo negando os traços que
regar, cujos papéis a criança não percebe que acabou de lhes atribuir. Ela fica condenada a
troca no mesmo relato ou na mesma ex­ essas inconseqüências, porque as qualidades
plicação. A ambivalência justifica sua dificul­ das quais fala, a propósito dos objetos, embo­
dade para diferenciar o intencional e o real, ra diversas em cada um, permanecem parti­
seus desejos e os fatos, assim como sua igno­ culares, fragmentadas, longe de estabelece­
rância ou o uso deslocado que a criança faz rem, entre si, uma corrente, cujos intervalos
do condicional. Concorda com a inversão de poderiam ser preenchidos por outros obje­
sentido entre a recomendação e seu motivo: tos de nuanças intermediárias ou pelas mu­
o aviso “pense bem nisso” faz com que a danças do mesmo objeto. São ou noções
criança dê a “pensar” o sentido de esquecer. puramente verbais e sem conteúdo sensível,
A ambivalência alia-se à inversão da causa e ou fragmentos de sensibilidade sem conti­
da conseqüência, à substituição recíproca nuidade, nem medida comum. Assim, explica-
dos fins e dos meios. O que está em causa em se que a criança possa, conforme o objeto,
CONCLUSÕES E COMENTÁMOS 139

atribuir o mesmo efeito às variações inversas que é pensado, ou melhor, que existe fora do
da mesma qualidade. Na verdade, não se trata pensamento, cuja existência deve preceder a
de variações propriamente ditas, mas de do sujeito que pensa. Entre o subjetivismo e
estados diferentes, relacionados a situações o empirismo puros, a criança sabe apenas os­
diferentes. A criança permanece com uma cilar, porque não sabe distingui-los suficien­
visão global e sincrética, que alterna, aliás, temente, de modo a transformar, em seguida,
com a abstração mais absoluta. Pois a ima­ o dualismo deles numa ordem de condições
gem de um todo sem partes, nem relações que ultrapasse as aparências respectivas dos
distintas, desaparece, necessariamente, na mesmos e dê à consciência, seu lugar no
de uma dessas partes ou dessas relações, universo.
tornada, repentinamente, distinta. A causa Aliás, a criança está tão longe de repre­
comum delas é a inaptidão para as represen­ sentar essa ordem que a do tem po - que é a da
tações diferenciadas. A abstração, na criança, anterioridade relativa entre os seres ou as coi­
é apenas o aniquilamento passageiro das ou­ sas - limita-se, para ela, a uma simples relação
tras condições ou propriedades. Ela está, em entre dois termos. De fato, a anterioridade
um sentido, no lado contrário da abstração absoluta, que ela se atribui como sujeito que
verdadeira. Falta-lhe o que é, psicologica­ pensa, existe simultaneamente com o que
mente, o essencial da abstração: o poder de poderia parecer o seu contrário, a eternidade
opor um aspecto a todos os outros do mesmo da coisa pensada: o Sena ou a Torre Eiffel
objeto e de opor, ao objeto, a coleção eventual sempre existiram. Nos dois casos, há ausên­
de todos aqueles onde esse aspecto poderia cia de começo, por incapacidade de repre­
encontrar-se em graus diversos. sentar uma sucessão verdadeira no tempo.
Ambos, sujeito que pensa e conteúdo do pen­
ANTINOMIAS samento, são intemporais. Entretanto, entre o
Sena e a Torre Eiffel, é o primeiro que é ante­
A essas inconseqüências e a essas con­ rior à outra. A anterioridade não é uma or­
tradições ligam-se verdadeiras antinomias, dem entre as coisas, ê uma simples relação,
que a criança não consegue deixar de for­ como as que constituem as estruturas biná­
mular, se a elas é levada. A mais primitiva rias por onde começa o pensamento. A rela­
parece ser a que reduz a existência do mundo ção binária é uma simples diferenciação,
ao sujeito que tem a imagem deste como de que faz as coisas saírem do instinto e põe
seu autor, mas sem poder alojar o próprio nelas a marca do pensamento, mas ainda não
sujeito em outro lugar a não ser nesse mundo. ultrapassam o plano delas e não as projeta
Por um lado, a criança que desperta para a por sobre uma base onde cada objeto pode­
representação das coisas tem a impressão ria ser, eventualmente, comparado a objetos
que elas nascem realmente, e que nada há quaisquer.
nelas que supere as imagens que a criança Uma outra antinomia é a do objeto par­
tem das mesmas. Isso é incapacidade para ticular, individual, com traços estritamente
desdobrar sua representação em imagens e identificados, enfim, tal como ele deve ser
coisas, para ordenar ambas em duas séries distinguido, entre os outros, para impor-se
distintas, para reconhecer cada uma delas como real, e a necessidade de imaginar-lhe a
como dependente de condições diferentes, generalidade, a constância, o devir. Se a crian­
apesar de seu conteúdo comum. É, por outro ça consegue fixá-lo em uma imagem precisa,
lado, a necessidade de reconhcer as relações ela não pode mais imaginá-lo em suas mu­
do sujeito com a realidade exterior onde ele danças. A sua representação necessariamente
se vê existir. É o ponto de vista alternativo do estática e fixa do estado presente, ela não
sujeito e do mundo, um que pensa e outro sabe opor a representação de uma sucessão,
140 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

separada do objeto tal como ele é efetivamente operatória. Mas, esse impulso supõe um outro,
imaginado, embora confundindo-se even­ e assim por diante. Acontece-lhe, contudo,
tualmente com ele. Por falta de ser visto no de resolver o problema supondo movimentos
futuro, ele não é visto como durável. Como a autônomos. É a mesma resposta, que a de
imagem de sua duração confunde-se com a Leibniz, ao mesmo problema proposto pela
de seu estado presente, o objeto não é mais teoria cartesiana da extensão. A intuição
ele próprio assim que muda. E, contudo, a animista é o arquétipo empírico disso. A
criança tem a experiência do objeto que dura criança sente que pode encontrar o movi­
embora mude. Mas, assim como não sabe mento em si. Mas, levada a seu limite trans­
ordenar as mudanças em sucessão contínua, cendental, essa idéia é, como a outra, a fonte
ela não consegue desdobrar o objeto em de insuperáveis contradições. Se se trata do
conjunto de traços diferentemente combi- espaço diretamente imaginado, a antinomia
náveis ou provisórios e em uma base que é tanto para ela como para os eleatos, a de
persiste sob aspectos variáveis. Ela passa, não poder representá-lo sem limite, e cada
portanto, sem saber se posicionar, de uma limite sem um além, que deve ser, ele pró­
constância sem mudança a mudanças sem prio, limitado.
persistência do objeto. Essa aderência do
objeto total com sua imagem presente não se INTEGRAÇÃO E
opõe apenas à sua comparação com ele pró­ DIFERENCIAÇÃO FUNCIONAIS
prio, mas também com os outros. Assim como
não é capaz de vê-lo nas etapas de sua trans­ As dificuldades e as contradições, que a
formação, a criança não pode descobrir nele criança encontra ao longo de sua evolução
o geral, ou seja, o que permitiria ordená-lo intelectual, devem-se às diferenciações que
entre outros objetos eventualmente seme­ fazem com que esta se eleve de nível, mas
lhantes. Ela precisaria, na verdade, duplicar que correm o risco de ocasionar dissociações
cada um dos traços reconhecíveis no objeto ou oposições, enquanto a união não for
em uma representação que não seria mais restabelecida, num novo plano funcional,
esse próprio traço, mas, ao mesmo tempo pela restituição, aos elementos desunidos e
que esse traço, a base onde lhe poderiam ser doravante subordinados, da coerência e do
comparados todos os graus ou semelhanças dinamismo que a diferenciação fizera-lhes
que ele pode comportar. Aqui, ainda, a crian­ perder. O que funcionalmente dividiu-se deve
ça vê-se forçada a optar pelo único e pelo integrar-se a uma fórmula superior, que su­
irredutível, ou por uma assimilação indistinta prime o antagonismo, ao mesmo tempo em
do semelhante o individual e o geral são-lhe que se assegura dos resultados relacionados
igualmente inacessíveis, porque ele é ainda à ampliação do campo funcional.
impossível ver, atrás de cada coisa, a ordem A integração não é um fato que se limita
das coisas e, sob a semelhança, o número. às relações mútuas das operações intelec­
O movimento causa antinomias seme­ tuais quando estas mudam de nível. Ela tam­
lhantes. Sem dúvida, no plano sensorimotor, bém pode ter sua expressão orgânica, assim
ele é um dado primordial. Foi sua projeção no como terá, mais tarde, seus aparelhos simbó­
espaço a ser percorrido, um espaço já men­ licos. Na parte inferior da escala animal,
surável, intelectual, que pôde motivar as excitação e reação têm, como sede, as mes­
antinomias dos eleatos. Para a criança, a difi­ mas células. Quando as duas funções cin­
culdade é explicar o começo do movimento. dem-se em dois sistemas celulares distintos, o
Ela o imagina, iniciaímente, como que resul­ circuito deve ser estabelecido por uma sinap-
tante de um impulso, assim como todos os se, onde o fluxo aferente de um poderá suscitar
movimentos dos quais ela tem a experiência o fluxo aferente do outro, por intermediário
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 141

dos neurônios. Um novo tipo de órgãos pode ser mais ou menos elevado, os extre­
corresponde à nova função. Ele integra o que mos atingidos bem desiguais.
a diferenciação dos elementos sensitivos e Considerada globalmente, a função inte­
motor teria suprimido, a relação da sensi­ lectual mantém a percepção sob sua depen­
bilidade e do movimento. A função sinápti- dência. A percepção não poderia estar isola­
ca desenvolve-se, então, prodigiosamente, da do ato intelectual, dos objetivos que ele
através das espécies animais, multiplicando persegue, nem das representações, símbo­
os níveis de sinapses, à medida que se acres­ los, significações através dos quais procura
centam as diferenciações funcionais, nos seu ajustamento sempre mais exato com o
próprios campos de atividade anteriormente objeto. Contudo, a dependência funcional ou
oriundos de diferenciações semelhantes. A morfológica da percepção não varia somente
ruptura resultante de uma diferenciação deve com o nível de evolução atingido pelo ato
ser compensada pelo restabelecimento, um intelectual, segundo os indivíduos, ela muda
plano novo, da unidade funcional dissoluta, também no mesmo indivíduo, segundo as
e essa própria unidade toma-se uma nova fases do ato intelectual, e com os momentos
função autônoma, até o dia em que deverá da vida. Na própria percepção, estão integra­
integrar-se à alguma função superior, tomada das as imagens que resultam das reações
necessária por diferenciações novas. sensofimotoras suscitadas pelo meio. O nível
Um ato, ou melhor, um processo está da integração pode ainda modificar-se por
integrado a um outro, quando funde-se, em razões devidas à sua própria elaboração.
sua unidade dinâmica ou funcional, como Embora pareça instantânea no momento em
um elemento ou em fase doravante subordi­ que se produz, o tempo de que ela dispôs in­
nada. Não é nem justaposição, nem associa­ flui sobre a fórmula dos elementos agrupa­
ção, nem mesmo combinação, mas redução a dos: assim o mostraram experiências onde as
uma fórmula onde ele perde sua autonomia e durações de apresentação eram rigorosamen­
de onde recebe, doravante, seu papel ou sua te dosadas. Entretanto, a integração dos ele­
significação. Toda desintegração leva os com­ mentos na percepção já é mais rigorosa ou
ponentes do ato ou da função a um nível fun­ mais exclusiva do que a da percepção no ato
cional inferior, e, freqüentemente, ao estado intelectual e é difícil isolar uma imagem sen­
de atividades definitivamente dissociadas, sorial por si própria, como chega, contudo, a
discordantes ou nocivas. É o caso das lesões fazer o experimentador. A fortiori, essa ima­
nervosas que rompem a sinergia necessária gem deve-se estritamente aos sistemas sen-
das funções tônica e cinética, desenvolven­ sorimotores, postos em movimento pelee
do contraturas e, desse modo, tomando o estimulantes exteriores. A análise, mas uma
movimento difícil ou impossível. A integra­ análise doravante mutilante, pode, contudo,
ção oferece graus diversos de irreversibi- prosseguir na decomposição deles em auto­
lidade, conforme seja mais antiga, mais fun­ matismos cada vez mais simples, rígidos e,
damental ou mais recente e ocasional, con­ finalmente, inadaptados. A integração supri­
forme, também, seu aparelho seja orgânico mida deixa subsistir, da diferenciação corres­
ou não. No ato de pensamento, as integra­ pondente, apenas estruturas fragmentárias,
ções são mais móveis, mais intermitentes. O inoperantes ou que produzem obstáculos.
aparelho delas está nos meios de expressão, O exemplo do sistema motor daria uma
nos sistemas de símbolos, onde a polivalência demonstração idêntica. As funções cinéticas
permanece grande e permite a passagem, e tônica, dissociadas por lesões dos centros
muitas vezes insensível, entre os diferentes nervosos que são dedicados às integrações
planos da atividade intelectual. Conforme os funcionais delas, opõem, frequentemente, os
indivíduos, o nível habitual da integração maiores obstáculos às veleidades motoras
142 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

do sujeito. Na evolução motora da criança, estão penetrados e, às vezes, contrariados


são conflitos semelhantes, mas que gradual­ pelas noções que ele deve a sua ambivalên­
mente aparecem e são reduzidos, entre fun­ cia verbal e técnica, ao mesmo tempo que ao
ções de início dissociadas, que explicam as despertar de suas próprias aptidões funcio­
primeiras impericias de seus gestos. nais.
A integração é a realização de um con­ Contudo, inicialmente, ele também é ab­
junto novo, onde os elementos perderam sua sorvido, em suas relações com o meio físico,
individualidade própria e devem receber, do pelas ações que misturam seu esforço com a
conjunto, a significação e o papel deles, p e­ resistência das coisas, a distribuição de seus
lo menos no limite de sua diferenciação gestos com a dos objetos ou dos fins deles,
funcional, ou seja, do lugar particular que suas intenções com a descoberta de topo­
ocupam no campo funcional. As estruturas grafias favoráveis. Os êxitos estão relaciona­
mais vastas, aquelas através das quais aumen­ dos com uma fusão que tom a as circunstân­
tam o campo e os meios de ação à medida que cias exteriores e as operações do sujeito
elas se sobrepõe, diversificando-as e organi­ intimamente solidárias, que as une numa
zando-as, as estruturas mais confundidas, única e mesma estrutura. Não apenas é-lhe
mais amorfas, mais limitadas e menos efica­ difícil, assim, discernir exatamente entre si
zes, podem ser vistas como que respondendo próprio e cada uma das situações das quais
às descrições dadas pelos teóricos da “forma” ele participa sucessivamente, mas, também,
(Gestalt). É exatamente o todo que dá, aos à exceção de suas rotinas perceptivas ou
componentes, seu sentido e seu papel. Mas a motoras, das quais ele é, aliás, mais o ins­
integração aumenta a forma. Entre as formas, trumento do que o observador, ele só apre­
há apenas concorrência das mais ou menos ende fluxos e refluxos entre as coisas e sua
viáveis e adequação ou simbolização mútua ação. Se o campo operatório suscita suas rea­
das que coexistem. A integração, pelo contrá­ ções, ele próprio não cessa de ser modifica­
rio, implica uma dialética das formas. Níveis do por elas. As variações mútuas e simultâneas
as separam. A passagem de uma à outra é delas são a conseqüência e a condição de
exigida pela divisão que se opera ao nível uma atividade eficaz. Nada é constante nesse
inferior. Antes que tenha podido definitiva­ plano das realizações concretas. É apenas a
mente prevalecer a nova realização funcio­ estrutura em seu conjunto - que dá, em cada
nal, surgem antagonismos ou contradições. caso, a configuração às coisas e às condutas
No campo intelectual, as formas são que elas suscitam -, que põe um limite ao
muito mais móveis e as relações dos níveis mutável e ao indistinto.
funcionais bem mais intermitentes e variá­ Mas, essa é uma espécie de identidade
veis. Assim, as antinomias podem reaparecer que não ultrapassa cada situação particular. E
por muito tempo e com insistência. Contudo, outras necessidades, outras tendências entram
as que são observadas na criança já estão em conflito com essas estruturas autônomas.
suficientemente superadas pelo adulto de Entre elas, é preciso fazer elementos estáveis
nossos dias para que o mecanismo delas te­ durar; no interior de cada uma, é necessário
nha se tom ado aparente. Da inteligência con­ isolar esses elementos, essas invariantes,
creta e prática ao conhecimento objetivo e mudanças que eles sofrem. Essa é a exigência
especulativo, devem operar-se numerosas dis- de uma atividade que quer utilizar a expe­
sociações e integrações. riência de outra forma que não pela rotina.
Provavelmente, essas duas formas da Esses são também os imperativos do pensa­
inteligência nunca são completamente dis­ mento falado, cujo lugar é essencial na evolu­
tintas no homem e, desde sua infância, seus ção psíquica e na adaptação social da criança.
meios de adaptação às situações presentes já Discernir o mesmo e o outro proporciona-lhe
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 143

toda uma série de problemas, onde a diferen­ invariável e uniforme seria o desconhecível.
ciação e a integração vão engendrar, entre si, O espírito sem discernimento da diversidade
níveis em níveis sucessivos. e das transformações é a ignorância. A cisão
A não ser que se limite a reconhecer a deve, portanto, a cada vez, ocorrer entre o
identidade de uma massa indiferencíada, ou invariante e o que o modifica. Porém, dois
afirme a identidade de cada circunstância ou sentidos, um sentido passivo ou estático e um
de cada objeto com eles próprios, o mesmo sentido ativo, podem ser dados à expressão
postula o outro, ou seja, a diferença ou a mu­ “qúe o modifica”; dois sentidos que corres­
dança: as categorias ou as relações. Inver­ pondem a dois níveis do conhecimento. O
samente, o outro pode defmir-se apenas com que se opõe inicialmente ao mesmo é a diver­
relação ao mesmo. O mesmo corresponde ao sidade que é possível constatar nele: entre
princípio de conservação, sem o qual não objetos que têm algo de semelhante ou de
haveria pensamento possível, pois se ele não comum, são percebidos diferenças sistemáti­
conservasse algo de imutável, o próprio objeto cas ou, complementannente, entre objetos
do pensamento ocultar-se-ia, à medida que diferentes, são reconhecidos uma semelhan­
este especula. Essa necessidade recebeu ex­ ça ou uma afinidade específicas; esse é o
pressões diferentes: equação, análise-sínte- princípio da classificação. No objeto iden­
se, reversibilidade, grupo20. A conservação tificado como o mesmo podem também ser
tem necessidade de poder ser atestada: se, salientadas diferenças: é a descrição da mu­
nas transformações constatadas, houver al­ dança. Mas, tanto nesse caso quanto no pri­
go que se transforme, será preciso poder en­ meiro, trata-se apenas de modalidades de
contrá-lo igual a si mesmo, ao final das ope­ certo modo inertes, porque simplesmente
rações ou mesmo em uma etapa qualquer do constatadas em sua existência presente. Em
ciclo delas. Se posições ou movimentos cons­ um nível superior, a diversidade dos objetos
tituem um sistema, eles possuem relações entre si ou do mesmo objeto com ele próprio
mútuas que devem permitir o retomo do pode estar integrada em uma curva ou em um
sistema a sua fase de origem ou a uma fase processo, que a reduz à unidade, dando a
intermediária. Fundamental, essa condição tudo o que ela comporta de termos diferentes
do pensamento, a cada vez, tomou formas um vetor comum. É o gênero de explicações
apropriadas a seus objetos particulares e mais que a ciência esforça-se para dar das coisas.
ou menos rigorosas ou abstratas. Elas são Esse modo de integração é verdadeiramente
controladas por aquele algo que deve per­ uma explicação. Mas a integração tem tam­
manecer constante e que se define dife­ bém níveis menos elevados. No campo do
rentemente para cada um dos campos em conhecimento, assim como no das coisas,
que tiveram que se fragmentar o conhe­ qualquer diferenciação, qualquer dissocia­
cimento do mundo e o mundo de nossos co­ ção que não seja simples dissolução exige um
nhecimentos. Mas, em cada um, a dissocia­ retorno à unidade em um plano superior.
ção realizou-se entre o que permanece e o É com os primeiros níveis dessas dife-
que se transforma, entre o mesmo e o outro. renciações-integrações que a criança luta. O
Sem a persistência e sem a existência de mesmo que ela deve conseguir identificar
algo que seja comum, não há objeto para o tem dois aspectos, corresponde a duas fun­
conjiecimento. Mas também não há conheci­ ções: mesmo objeto ou mesma qualidade. Eis
mento sem diferença ou sem mudança. O ser aí duas evoluções de suas noções intelectuais
que são, em grande parte, complementares:
não há meio de justificar a identidade de um
(20) Piaget indicou, recentemente, em que sentido o
“grupo” defnido por H. Poincaré pode também servir
objeto sem reduzi-lo a suas qualidades está­
de definição ao ato intelectual. veis ou variáveis, nem de identificar uma
144 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

qualidade, diferenciando-a das outras e con­ que sente e do mundo pode resolver-se
ferindo-lhe sua unidade específica, sem fazer apenas integrando a existência subjetiva e a
dela o atributo de objetos individuais que ela das coisas num devir, que não é mais o do
permite reunir. Contudo, as duas evoluções sujeito somente, mas, também, o das coisas
têm graus ou fases que podem não ser sincró­ entre as quais é preciso que sua existência
nicas. A identificação de um objeto com ele saiba discernir seus próprios limites. A inva-
próprio está longe de ser primitiva. O exem­ riabilidade e a inércia resultantes, para o eu
plo dos animais mostra como ele ocasiona absoluto e para as coisas desanimadas, de sua
condutas diferentes e não é visivelmente con­ dissociação, devem ser compensadas pela
siderado como o mesmo, conforme os agru­ integração das mesmas a um princípio de
pamentos ou as estruturas variáveis onde ele mudança, o tempo, cujo fluxo ocasiona, para
pode encontrar-se no campo perceptivo ou todos os seres indistintamente, o desapareci­
no plano operatório. Koehler deu vários mento incessante de estados e de momentos
exemplos disso com os macacos. Na criança que não retomarão. O dinamismo, excluído
muito nova também, o mesmo objeto inicial­ pela diferenciação entre o sujeito e o objeto,
mente pertence, segundo as circuntâncias ou é recuperado, graças à operação da duração
suas disposições do momento, a conjuntos impessoal, comum a todos.
práticos ou perceptivos que modificam-lhe o Contudo, a duração não pode permane­
aspecto ou a significação e que o impedem de cer sob a forma de ato puro. Ela busca uma
ser reconhecido como o mesmo. A qualidade representação na duração cronológica, em
à qual falta o suporte de um objeto estável e todas as imagens que podem, a cada momen­
bem delimitado no início confunde-se com as to, tornar-lhe a extensão sensível, nos sím­
reações perceptivas ou práticas que suscita. bolos que a exprimem, nas medidas que lhe
Depois, tendo o objeto adquirido sua perma­ prolongam as perspectivas. Então, por sua
nência, ela parece confundir-se com ele, como vez, o tempo assim individualizado vai ser a
sua propriedade essencial e particular, ou fonte e o centro de conflitos, que resultarão
como se fosse estritamente intercambiável de novas diferenciações e desejarão novas
com ele. É somente mais tarde que ela se integrações. Por exemplo, a dissociação do
liberta de cada objeto para se tomar, entre tempo e do espaço, tão intimamente con­
todos, um meio de comparação e de classifi­ fundidos na origem quando o movimento
cação. vivido ou o ato que se executa, são a comum
Durante a dissociação, sem dúvida a e indecomponível medida deles. Mas, como
mais primitiva, a do subjetivo e da coisa, o desigualdades entre velocidades fazem va­
sujeito, sempre presente por si mesmo, co­ riar diferentemente as distâncias e as dura­
meça por considerar-se como o invariante ções, a diferenciação impõe-se entre o espa­
fundamental. Sendo a ilusão solipsista supe­ ço percorrido e o tempo. Ainda uma vez, a
rada em seguida, a solução pode ser procura­ inércia da duas invariantes resulta disso.
da em dois planos diferentes, no plano trans­ Perdendo o dinamismo que o possuía quan­
cendente e no da vida. No plano transcen­ do ele ainda se confundia com o movimen­
dente, se o ponto de vista substancial preva­ to que o envolvia, o espaço imobiliza-se em
lece sobre o ponto de vista pessoal, há a partes mensuráveis, em frações e em frações
crença platônica na metempsicose das almas de frações. Mas ele impõe, ao tempo, uma
sem começo nem fim, ajuste entre a eterni­ fragmentação semelhante. E, doravante, ha­
dade e o tempo; no caso contrário, há a verá, o problema, em todos os campos dos
oposição pascalina dò caniço que pensa e do fatos e do conhecimento, de encontrar a
universo infinito, resolvendo-se na solução união deles, quer no plano operatório, quer
teológica. No plano da vida, o conflito do eu no plano especulativo; de descobrir os
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 145

sistemas de representações e de símbolos seres particulares sobre quem repousa sua


suscetíveis de exprimir, a propósito de tudo própria genealogia, ela se limita ao emprego
o que existe, os efeitos comuns do tempo e daqueles pronomes anônimos que marcam
do espaço. freqüentemente nela as dificuldades ou a
A toda invariante corresponde um certo lentidão de sua imaginação e de sua ideação.
grau de determinação, pois ela não pode A forma abstrata dessas fórmulas está longe
estar isolada dos conjuntos empíricos onde de responder a uma verdadeira generaliza­
se detalha a experiência vivida, senão fa­ ção. Pois suas conversas mostram, em toda
zendo-se reconhecer em certos efeitos cons­ ocasião, os estritos e contraditórios limites
tantes, delimitando-se com uma precisão onde está encerrada, quer no tempo, quer no
suficiente entre as outras circunstâncias da espaço, essa aparente coleção de humanos.
situação ou as outras propriedades do objeto. Na verdade, a criança permanece no ino-
Por seu lado, a integração nova que deve minado, no indefinido. Ela não atinge a idéia-
restaurar a unidade de ação, destruída pela limite, que é uma definição que substitui
dissociação de um conjunto quer concreto, seres encontrados por seres virtuais, e seres
quer intelectualmente já elaborado em ele­ indistintos por seres nitidamente qualifica­
mentos fixos, toma-se fornecedora de ne­ dos. Ainda inapta para essa integração, que
cessidade. Bem entendido, trata-se de uma daria, aos indivíduos comuns de que ela
necessidade gradual e progressiva, embora mesma se dissociou, a unidade de natureza e
ela possa ser dada, de imediato, como total. de devir deles, ela permanece no limiar da
Mas ora ela é apenas global, mítica ou verbal; necessidade e do universal. Ela só sabe,
ora falta a ela, efetivamente, a universalidade quando muito, transcendê-los mitológica­
à qual ela parece pretender, e suas próprias mente, ou melhor, adotar, de maneira mais
aplicações farão logo aparecer zonas de ou menos verbal ou artificialista, vocábulos
indeterminação, que poderão ser resolvidas ou tradições mitológicas.
apenas por uma nova distribuição das in­ As experiências engenhosas de Piaget
variantes entre si e por fórmulas novas de para reconhecer como a criança adquire as
integração. noções de número e de quantidade mostram
Os primórdios ainda grosseiros desse detalhadamente com quais contradições ela
processo dialético na criança deixam, contu­ pode se chocar, em seu caminho para livrar-
do, transparecer a necessidade que é preciso se das aparências puramente sensíveis, elas
de satisfazer. Em luta com as contradições de próprias contraditórias, e para transformá-las
seus solipsismo, ela deve supor outros indi­ em invariantes, às quais será preciso que se
víduos como ela. Mas isso não ocorre de ime­ sobreponha uma visão operatória. Mas, não
diato sob forma específica, ou seja, como se trata somente de dissolver, de uma vez
uma coleção de seres cuja existência pode e por todas, os vínculos que unem a intuição
deve ser afirmada no passado, mesmo sem o perceptiva e a atividade abstrata do espírito.
conhecimento dos seres particulares que a Não se trata somente de uma oposição estável
compõem. Embora já admita, sem se contra­ entre invariantes e operações inteligíveis. É
dizer mais, que seus pais necessariamente através de uma seqüência de níveis progres­
devem tê-la precedido na vida e no mundo, sivos que o dinamismo das impressões e das
seu esforço para imaginar pais para seus pais reações concretas fixa-se em invariantes, às
corre o risco, sem cessar, de mudar de direção quais deve se sobrepor um ato unificador,
repentinamente e ela acaba dando, como que, ele próprio, fixa-se em sistema estável
ancestrais, contemporâneos, mas que, com de símbolos. E os símbolos, tomando gra­
freqüência, são pessoas que vivem longe e dualmente o lugar dos elementos percep­
que são vistas raramente. Se não encontra tivos, substituídos por aqueles na media em
146 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

que exprimem, melhor que eles mesmos, as uma progressão nova na redução do ser ao
relações de coexistência e de devir, tomam- conhecimento,
se, cada um por sua vez, os elementos de
TERCEIRA PARTE

O SINCRETISMO
DA CRIANÇA
C A PÍTU LO I

INSUFICIÊNCIA DE
ORGANIZAÇÃO MENTAL
AUSÊNCIA DE PODER DISCRIMINATIVO NA CRIANÇA

Em suas origens na criança, o pensa­ anteriores, realizando, assim, uma espécie de


mento não é feito do modelo dos pensamen­ pensamento persistente ou automático. O
tos expressos do adulto, que parecem enca­ efeito pode ser também inverso. A insuficiên­
dear-se regularmente num circuito delimitado, cia de delimitação pode deixar subsistir, si­
onde se sucedem, com a significação deter­ multaneamente, diferentes impressões ou
minada que pertence a cada um, os objetos, temas, dos quais nenhum tem o poder de re­
os atributos e as relações deles, as ações que duzir os outros e que coexistem sem chegar
exercem. Pelo contrário, ele nasce a partir de nem a coincidir, nem a se excluir de uma for­
impressões que despertam, indistintamente, ma qualquer. Vimos vários exemplos desses
nos diferentes campos da sensibilidade, da diferentes casos.
lembrança, da experiência, da intuição inte­ É a incapacidade de organização propria­
lectual. São como que áreas luminosas, ini­ mente ditas, suas formas e suas causas que se
cialmente isoladas e que devem conseguir vai .examinar agora.
coincidir para chegar a um ato mental. Mas, Inicialmente, eis um exemplo que mostra
para não ser simples confusão ou simples como um mesmo termo pode ser a causa de
agrupamento fortuita, a coincidência supõe impressões díspares e como que diferentes.
um poder prévio de delimitação precisa e Uma criança de 6; foi solicitada a enumerar as
prolongada. Ora, as contaminações, tão fre­ coisas que sentem. Um adulto escolheria,
qüentes e tão diversas na atividade psíquica inicialmente, entre o sentido ativo e o sentido
da criança, mostram o quanto esse poder de passivo da palavra. Em seguida, ele se orien­
discriminação é, nela, frágil e lábil. A unidade taria para uma sensibilidade determinada:
realiza-se entre dois conteúdos mentais como olfativa, geral, afetiva. A cada uma, ele pode­
que por curto-circuito. Por outro lado, essa ria fazer corresponder séries determinadas
incapacidade de delimitação faz com que um de agentes externos. A natureza e a seqüência
certo conteúdo mental possa tomar impos­ das respostas são bem diferentes.
sível o despertar ou o surgimento de um ou­
tro conteúdo, que poderia ser complemen­ C.P....it 6; “Diga-me coisas que sentem. -
tar e orientar o pensamento para investiga­ Percevejos... quando fa z cócegas. - O que a
ções ou conclusões determinadas. Ou o pri­ gente sente? - Que fa ze m cócegas na gente...
meiro conteúdo repete o mesmo com insis­ quando mulheres estão perto de nós, ãs
tência, ou então, ele é ocasionado pelo que vezes, eles nosfa zem cócegas. - E o que mais
ele implica, imediatamente, por associações sente? - Asfolhas... o vento, os relâmpagos. -
150 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Os relâmpagos sentem? - A h! não. Q uando a aproximação: vento chama relâmpago e esse


gente bebe, se sente; quando a gente l impa, novo complexo se sobrepõe ao antigo ou o
se sente.” eclipse. Sendo o tema sentir então lembrado,
são impressões muito diferentes das pre­
Devido exatamente à desordem delas, o cedentes que são evocadas: as associações
mecanismo dessas respostas exige um co­ beber-sentir, limpar-sentir, que parecem nada
mentário detalhado. Para pôr a primeira sob ter de específico, mas ser puramente subjetivas
sua forma lógica, é preciso admitir que a ou fortuitas. Sem cessar, o pensamento flui, o
palavra “sentir 21” evocou na criança uma tema é ultrapassado, seus limites conceituais,
sensação muito particular, a de coceira, e que fracos e imprecisos, são, a todo momento, eli­
ela logo imaginou nos percevejos a causa minados.
dessa coceira. Ora, é na ordem inversa que
seu pensamento procede. O primeiro pre­ Eis um outro exemplo, onde a disparida­
sente em seu espírito foi o agente. Um mo­ de das evocações é menos sensível, porque
mento de hesitação foi-lhe necessário para as imagens sucessivas pertencem à mesma
exprimir a impressão correspondente. A im­ ordem de realidade, mas as funções diversas
pressão foi substituída, inicialmente, pela que estão a elas ligadas permanecem estranhas
causa da impressão, o passivo pelo ativo. entre si e se justapõem sem determinar uma
Persistindo o tema fazer cócegas, um outro escolha: elas não podem ser confrontadas,
agente é acrescentado, então, ao primeiro: as não sendo nitidamente delimitadas entre si.
mulheres. Depois, tendo a palavra “sentir”
sido repetida, ela evoca, de repente, um ob­ G...ry 6; 1/2 O que seca é o que foi
jeto de uma espécie totalmente diferente, “as exposto de forma prolongada a um sol quen­
folhas”, das quais é difícil dizer se sentem te: “Por que o sol é quente? - Porque ele é
porque exalam um odor ou porque sofrem a vermelho. - Tudo o que é vermelho é quente?
carícia do vento, cujo nome surge imediata­ - Não. - Por que o sol é quente? - Não sei. - O
mente. E o próprio vento não será, aqui, que é quente? - O sol, ofogo. - O sol é a mesma
apenas o autor de sensação, como eram os coisa que o fogo? - Não. - O sol não é fogo? -
percevejos? Ou ele sente o perfume das fo­ Não. - Como é o sol? - Não sei. - Sempre existiu
lhas? Talvez os dois sucessiva, ou melhor, in­ o sol? - Não. - Quando não tinha sol, como
distintamente. Antes de existirem, cada uma era? - Um pouco escuro. - Seu pai já tinha
por si própria, como o supunha o associacio- nascido, quando não tinha sol? - Não. - Ha­
nismo, as imagens devem diferenciar-se e viam pessoas que já tinham nascido quando
ordenar-se entre si, a partir de complexos não tinha sol? - Não. - O que é que tinha então?
ora perceptivos ora de idéias, que são como - A noite. - Tinha árvores? - Tinha. - Animais?
que uma região de sensibilidade ou de pen­ - Tinha. - E homens não? - Tinha. - Já tinha
samento que se ilumina de forma difusa e homens? -Já. - Ficava sempre de noite? - Não.
onde as relações das partes podem, ini­ - As vezes ficava de dia? - Ficava. - O que faz
cialmente, ser ambíguas, polivalentes e mo­ o dia?... Como é que fica de dia? - Não sei.”
mentaneamente reversíveis. As represen­
tações da criança pequena, que não exi­ MUTABILIDADE DA BASE CONCEITUAL
gem um interesse ou necessidade imedia­
tos, podem permanecer nessa etapa. Elas Entré a primeira e a segunda parte dessas
se propagam, freqüentemente, por simples respostas, as contradições são manifestas.
Isso ocorre porque entre as duas, a base
(21) N.T. - em francês, a palavra "sentir” pode significar mudou subitamente. Inicialmente, trata-se do
“sentir” e “ter odor”. sol ardente, cuja cor é dada como a causa de
IN SUFICIÊNCIA DE PODER DISCRIMINATIVO DA CRIANÇA 151

seu calor, por uma dessas confusões sincréti­ porque têm raízes, e quando não têm m ais
cas habituais nas crianças novas. Causa pró­ raízes, quando a gente as desenterra, elas
pria ao objeto mesmo e cuja ação não pode morrem... Tartarugas respiram, mas só um
ser generalizada. Inversamente, o calor, co­ pouquinho. - As plantas estão vivas? - Estão.
mum ao sol e ao fogo, não ocasiona, entre - Você disse que não agora há pouco. - Д mas
eles, outra relação a não ser de semelhança, eu pensei melhor.”
por falta, para a criança, de saber lhes reco­
nhecer um princípio idêntico. As imagens A base conceituai estende-se, visivel­
globais deles devem causar sua incompatibi­ mente, da primeira às últimas respostas.
lidade, pois a análise ainda não é capaz de Inicialmente, é a simples imagem de crianças
isolar o traço que justificaria efeitos seme­ praticando ginástica respiratória. Depois, sob
lhantemente observáveis em cada um. Isso forma indefinida, partitiva, facultativa, a res­
equivale também a dizer que a aproximação piração é atribuída a “pessoas, animais." Se-
deles limita-se à de um par, onde dois termos guem-se as plantas, mas que trazem a evo­
são unidos de uma forma qualquer, à vontade cação de um órgão necessário à subsistência
íntima e vaga, mas sem que a ligação deles delas, sem ser respiratório. O objeto ultrapas­
ultrapasse a eles próprios e seja a expressão sa o tema conceituai; sua imagem completa­
de uma série que permite quer medir as se com detalhes que são estranhos a ele ou,
semelhanças qualitativas deles, quer compa­ pelo menos, que suporiam a confusão da res­
rar as condições de existência dos mesmos. piração com a vida. A estreita conexão real
Bruscamente, o sol fonte de calor é substituí­ deles pode impedir a criança de imaginá-los
do pelo sol fonte de claridade, e a base da diferentemente? Os traços aparentes de uma
qual se destacarão as respostas da criança e outra não são os mesmos. Entre a sucessão
será a alternância entre o dia e a noite. Então, dos objetos e de seus detalhes não há,
a criança reconhece, após tê-la negado, a portanto, unidade de base, mas variação com
existência de seres vivos antes do sol. Não o objeto. Não é simplesmente inexperiência
existiam durante as penumbras pré-solares, de linguagem se a criança dá, como ser que
existem na obscuridade que precede o dia. respira, pessoas e animais e não os pessoas e
Mas, nova fonte de contradição, entre o sol e os animais. Para atribuir a uma totalidade de
o dia, o vínculo causai ainda é frágil: pode seres ou de objetos um caráter determinado,
haver dias sem sol aparente; pôde ficar de dia seria preciso não apenas saber, a propósito
antes do sol. Assim se transforma, sem cessar, de indivíduos quaisquer, representar a soma
e com o desconhecimento da própria crian­ deles, mas também delimitar estritamente o
ça, a base que motiva suas representações que é esse elemento. Essas duas operações
sucessivas. Essas mudanças panorâmicas a são, aliás, solidárias e complementares. A
tornam insensível às inconseqüências com as menos que se dê uma definição precisa, é
quais ela desconcerta, freqüentemente, o impossível reconhecer, à medida que serão
adulto. imaginados, os seres quaisquer a que ela
A inconsistência e a mutabilidade da convém; e, sem o poder de imaginar, a pro­
base conceituai ainda estão muito aparentes pósito de seres quaisquer, uma coleção ideal
no exemplo seguinte: da qual seriam apenas exemplares, a busca
de uma fórmula que lhe convenha, e somen­
C...in 6; 1/2 Perguntamos à criança quais te a ela, é inconcebível. É preciso a estreita
são as coisas que respiram: “Quanto têm combinação do múltiplo e do único, do aci­
m eninos que fa zem movimentos com os bra­ dental e do permanente, do individual e do
ços. - O que mais respira? - Pessoas. - E o que essencial. Antes de realizá-la, a criança vi­
mais? - Anim ais. - As plantas respiram? - Д ve no mutável que não se conhece como
152 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

mudança, no diferente que se apresenta co­ é que a gente reconhece o lugar? - Tirando a
mo idêntico, no contingente sob forma de terra. - Mas, e para tirar no lugar certo? - Do
absoluto. A confusão devida a essa inca­ lado da floresta.”
pacidade de opor quadros fixos ao particular
pode levar a uma mutabilidade do pensa­ Sobre a base da floresta, aparentemente
mento, que tem todas as aparências da incoe­ compreendida porém apagada e vaga, per­
rência. filam-se temas que parecem querer eclipsá-la
mais ou menos inteiramente, desenvolvendo-
P...ot 7; “O que tem numa floresta? - se cada um por si, e cujas relações mútuas,
Água. - O que é uma floresta? - É um a roda, embora sejam evocadas, ou continuem a ser
é arredondada. - Essa roda é grande? - É. - obscuramente irradiadas pela imagem da
Como o quê?... Maior que esse quarto? - Não. floresta, têm uma aparência vaga e até mesmo
- O que tem nessa roda? - Água. - Só tem água? incoerente. É a idéia de uma lagoa ou de uma
- Peixes. - O que mais tem numa floresta? - bacia que se sobrepõe à da floresta: primeiro
Nadadores. - E o que mais? - Patos. - Não é sua forma, depois seu conteúdo. A forma
outra coisa além de água? - É . - O que mais é desenvolve-se, assim, em tema geométrico:
uma floresta? - Um quadrado. - E no quadra­ redonda, quadrada, retangular e novamente
do, o que tem? - Vidro branco. - O que mais? quadrado grande e redonda. Nesse meio
- Vidro verde. - O que a gente faz desse vidro? tempo, o tema das árvores parece querer
- Garrafas. - Uma floresta também é verde? - emergir, mas imediatamente dissociado em
É. - Uma floresta pode ser também outra verdura e em substância destinada à confecção
coisa? - Retangular. - O que tem nesse retân­ dos móveis. Daí surge um outro tema, o das
gulo? - Água. - Uma floresta não pode ser matérias que uma floresta pode conter: além
ainda outra coisa? - Um quadrado grande. - O da madeira, o ferro. Essa sucessão e essas
que tem nesse quadrado? - Água. - Uma alternativas denotam um pensamento muito
floresta não pode ser também outra coisa? - flutuante, cujos motivos, mal coordenados,
Madeira. - Que forma ela tem? - Éarga. - Que contaminam-se, contudo, um ao outro e são,
cor? - Verde. - Como se chama essa madeira?... às vezes, em si mesmos, incompletamente
Como ela é colocada? - Com pregos. - Ela foi identificados. O redondo, onde a água da
colocada sozinha? - Um homem. - Para que floresta é contida, inicialmente é reduzido às
serve essa madeira? - Para fa z e r cadeiras. - dimensões de um quarto, depois toma-se
De onde vem essa madeira pregada? - Do capaz de conter peixes, patos, nadadores. O
vendedor. - Mas que relação tem a floresta verde de suas folhagens é, primeiramente,
com essa madeira? - Redondo. - Na floresta captado por um desses trocadilhos (“vert” -
não tem mais outra coisa, além dessa madeira, “verre”) que estão longe de serem sempre, na
desse vidro, dessa água? - Aço. - Você nunca criança, uma facécia proposital, mas que
esteve numa floresta? - Não... Ah!Já, eu já vi indicam a preponderância da palavra sobre
um a no campo. - Como era aquela que você o pensamento e da fonética sobre o senti­
viu? - Redonda. - O que é o.aço? r D um . - E de do. “Verde” (“vert”) toma-se “vidro” (“verre”),
que cor ele é? - Branco. - Diga-me coisas de com suas associações usuais. Surge então,
aço. - As bicicletas, os carros, as motos. - O “madeira”, termo corretivo, mas que não
aço está numa floresta? - Está. - Como aparece corrige e que se limita a justapor suas asso­
esse aço? - Ele cresce. Como ele cresce? - Com ciações mais habituais às do vidro. Assim, o
terra. - Cresce sozinho? - É. - Como a gente termo árvore, que poderia bloquear essa
reconhece o aço? - Molhado. - E se você divergência, e que era a palavra necessária
quisesse procurar aço? - No vendedor. - E ele, para definir a floresta, parece ter sido con­
onde ele vai procurar aço? - Na terra. - Como denado à exclusão, embora devesse ser o
INSUFICIÊNCIA DE PODER DISCRIMINATTVO DA CRIANÇA 153

mais espontâneo, о mais intimamente impli­ e das representações espontâneas, muito


cado na idéia de floresta. menos elevado, é mais facilmente transposto.
Assim, vemos, freqüentemente, exprimir-se,
DESVIOS E TRAJETOS FALSOS em vez do vocábulo ou da idéia procurados,
o que pode acompanhá-los no aparelho verbal
É assim que, pelos problemas se­ ou mental. No campo da ideação, um esco-
cundários, a criança se deixa conduzir, como toma obstrui o resultado visado, enquanto é
se tomasse o cuidado de evitar o vocábulo e invadido pelo que aquela pode trazer consigo
a noção adequados. Semelhantes fatos são de atividades ou de processos expressivos,
observados também em patologia, quer em imaginative» e intelectuais.
casos onde, freqüentemente, a fraude é Na verdade, uma idéia não pode ser
pressentida, quer quando de déficits psi- formulada ou identificada sem ser procura­
coneurológicos incontestáveis. Na síndrom e da através da agitação difusa de uma mate­
de Ganser, parece que o sujeito pratica uma rial variado, da qual é preciso que ela redu­
espécie de mistificação pedante, enviesando za, com o maior rigor, o que deixaria, nela,
para respostas ou locuções não apenas incerteza, inexatidão, contradição, erro. Como
aproximativas, mas também freqüentemen­ ela tende para a clareza lógica, nós acredita­
te contrárias ao sentido ou ao bom senso, e mos que ela seja, normalmente, um puro
de um absurdo que dá a impressão de ser resultado da lógica, embora seja o de uma
rebuscado, porque parece jogar com o diferenciação e de uma seleção sobre a base
qüiproquó de vocabulário, de imagem ou de ativada no momento, dos processos diversos
idéia. Mas, a dificuldade de encontrar a palavra que correspondem à situação psíquica e a
exata, por mais simples e esperada que seja, suas necessidades. O que a patologia pode
é observada também na afasia, e é uma pe- mostrar é essa realização da idéia em câmara
rífrase, de aspecto muito mais complicado, lenta, truncada ou desviada. Na criança tam­
que é, contudo, capaz de supri-la. Em seme­ bém, ela se perde facilmente em operações
lhante caso, o esforço do sujeito e o desapon­ parasitas às custas do essencial, permanece
tamento de seu fracasso são tão evidentes em suspenso ou se extravia. Freqüentemente;
que é incontestável a causa orgânica e forçada é o que deveria ser reduzido que emerge:
de sua insuficiência verbal. A explicação uma representação simplesmente comple­
desses fatos é que a simplicidade aparente de mentar, ou lateral, ou contrária, ou mesmo
um resultado não implica uma simplicidade resultante de simples automatismos verbais,
correspondente do ato psíquico. A deno­ de analogias fonéticas, de assonâncias. Pois
minação intencional, exata e precisa de um as camadas através das quais o ato intelectual
objeto, o enunciado escolhido de uma idéia deve se fundir são diversas, e dão lugar a
têm um limiar muito mais elevado do que manifestações dissociadas ou incoerentes, se
uma simples tentativa, que procura orientar­ houver insuficiência no poder de integração
se entre associações ou noções familiares. que deve adaptá-lo a seu objeto e combiná-lo
Basta querer exprimir uma palavra ou à situação.
uma idéia para que o esforço a ser feito
aumente e para que o fracasso espreite o B...at 7; 1/2 “O que são bolas de gude? -
distraído, o cansado ou o doente. A brusca Bolas. - Como são feitas? - De pedra. - Como
emergência da palavra, da lembrança, da é que essas pedras são bolas de gude? - Para
idéia obstinadamente rebeldes, no próprio fa z e r miar. - Como é que elas são redondas?
instante em a atenção renunciante disso se - A gente compra. - Como a vendedora tem
desvia, é um efeito constatado freqüente­ essas bolas de gude?... Ela as achou? - É. -
mente. Pelo contrário, o limiar das locuções Onde? - Nos buracos. - Como é que têm bolas
154 AS ORIGENS DO PENS AMENTO NA CRIANÇA

de gude nos buracos?... Alguém as pôs lá? - Após ter definido as bolas de gude por
Não. - Como é que elas estão lá? - São os sua forma: “bolas”; por sua substância: “de
colegas que as perdem . - Mas onde os cole­ pedra”; por seu uso: “para fazer rolar”; por
gas as têm? - No pátio. - Como, no pátio? - sua origem: “a gente as compra”;bruscamente,
Porque eles brincam de bola de gude. - Como a criança tem o espírito atraído por uma
eles tinham bolas de gude para jogar?... De imagem cuja evocação é devida, talvez, apenas
onde vêm as bolas de gude? - Da terra. - à uma assonância: “onde as achou? - nos
A gente as encontra na terra? - É. - Com o buracos22.” Então, ela se torna o único centro
quê? - Com pás. - Q uando a gente cava, o de seu pensamento. Só sabe representar, al­
que a gente encontra? - Bolas de gude. -J á ternadamente, o buraco onde a bola de gude
redondinhas? - É. - Como é que têm bolas foi deixada esquecida e o buraco que é preciso
de gude na terra? - Para brincar. - Alguém as cavar para extrair o conteúdo do solo. Entre
pôs na terra? - Não. - Por que a gente as os dois termos dessa alternância, ela não es­
encontra na terra? - Porque a gente as perde. tabelece nenhum vínculo. Eles têm o mesmo
- Onde estavam antes as que a gente perde? - centro, mas parecem duas explicações di­
N os b u ra co s. - E as que a gente perde jogando? vergentes, enquanto esse centro impede qual­
- T inha u m b u ra co e a s b o la s d e g u d e quer outra explicação de se mostrar. Es­
c a íra m n o b u ra co . - De onde vêm as bolas sa persistência de uma mesma base represen­
de gude que a gente perde jogando?... As tativa é a exata contrapartida da inconsistên­
bolas de gude e as pedras são a mesma cia que é observada na criança. São os efeitos
coisa?...” opostos de uma mesma insuficiência.

(22) N.T. - Em francês, há assonância entre “onde as


achou?” (“où tro u vées ”) e “nos buracos” (“dans les
trous”).
C A PÍTU LO II

CONTAMINAÇÕES
E DIGRESSÕES
AS CONTAMINAÇÕES DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Face a conhecimentos cuja fonte é diver­ fossem inaptos a se diversificar segundo as


sa, a criança deve, freqüentemente, o fato de necessidades e, sobretudo, a manter a diver­
escapar das contradições e da incoerência sidade respectiva deles sem que se unifiquem
apenas à sua inercia mental, que a impede de e se neutralizem um ao outro. Os exemplos
evocar, a propósito do mesmo objeto, todo о dessas contaminações mútuas são observados
material mental do qual poderia dispor. Ela se tanto nos atos mais simples e aparentemente
deixa dominar totalmente pelo complexo de mais automáticos quanto nos que parecem
imagens ou de pensamentos que estão se puras operações lógicas.
desenvolvendo, e são necessárias as perguntas
do adulto para que ela seja forçada a fazer o I я C ontam inações d e Palavras
inventário das noções diversas que, em dife­
rentes ocasiões, pôde formar seu espírito. A contaminação verbal é freqüente, o
Elas vêm, assim, colocá-la brutalmente face a que está relacionado com a freqüência das
dificuldades que, nas condições habituais, alterações, consonâncias ou rimas na criança.
ela teria que resolver apenas ocasionalmente A substância sensorimotora das palavras ainda
ou por uma dessas inconscientes meditações pesa muito sobre o emprego e a evocação de­
onde se elaboram, às vezes, até mesmo à las, freqüentemente, dando origem às substi­
meia voz, suas reflexões sobre as coisas. tuições ou às formações híbridas, conhecidas
Mas, no que diz respeito às assimilações, pelo nome de lapsus linguae.
freqüentemente viciosas ou barrocas, que a
criança pode ser solicitada a fazer, através L...er: “Uma árvore não está viva? - Ela
dos interrogatórios do adulto, entre percep­ cresce. - Então, ela não está viva? - Ela mexe;
ções ou noções díspares, o próprio funciona­ só as folhas m exem quando ela está viva.”
mento espontâneo de seu pensamento é,
com freqüência, uma causa de singularida­ É o vento que faz as folhas mexerem.
des. Entretanto, seu nome foi substituído por vi­
Na criança, o poder diferenciador da vo, que a criança acabou de ouvir e, que,
inteligência é fraco. Entre os atos psíquicos, talvez, ele próprio tenha contribuído, por sua
as imagens, os temas ideativos, a diferencia­ semelhança com “vento”, para evocar a ima­
ção é grosseira e, principalmente, frágil, como gem das folhas de árvores em movimen­
se seus campos de operação, no cérebro, to. Ligada à insuficiência diferenciadora da
156 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

atividade psíquisa e nervosa na criança, a intenções do pensamento, só podem ser ex­


contaminação não se produz apenas no plano plicados pelo estado ainda difuso de seu ma­
sensorimotor. terial e de suas operações.
A contaminação ainda pode se efetuar,
A... aud 6; “É dia quando sua mãe levanta? não mais por substituição de palavras, mas
- Ela acende um a lâm pada. É quase de dia. por coalescência de sentido entre duas pa­
- Como é quase de dia de manhã? - Porque a lavras, ou seja, por incapacidade para man­
gente dorm iu cedo." ter estanque o contato entre dois termos.

A criança substitue aqui: “acordar” por J...ot 8; acabou de atribuir a inteligência


“dormir.” A contaminação dá-se aqui, entre a objetos diversos, devido ao uso que pode
os dois temas complementares que ocupam ser feito deles, pela confusão, aliás, freqüente
seu espírito: o sono da noite e o despertar da na criança, entre o passivo e o ativo: “O que
manhã. A cada um desses dois termos, cor­ quer dizer inteligente? - Que ele é bem direito.
responde um termo de sua resposta. Em vez - O que quer dizer “ser bem direito”? - Porque
de se delimitar nitidamente como contrários ele sabe bem. - O pé da mesa é bem direito? -
ou sucessivos, eles invadiram um ao outro e É. - Ele sabe bem? - Sabe. - O que é que ele
se misturaram, para originar uma espécie de sabe? - Ele sabe que a gente vai cortá-lo. - E a
híbrido. Outros exemplos são de análise um sua cortina é bem direita? - É. - Por quê? -
pouco mais complicada. Q uando a gente pendura. - Quando a gente
não a pendura, ela não é direita? - Não. - Ela
H ...O U X 7; “A gente vê a lua ao mesmo sabe quando a gente não a pendura em alguma
tempo que o sol? - Não. - Por que? - A lua é de coisa? - Não. - E quando a gente a pendura, ela
noite. - Por que a lua é somente de noite? - sabe? - Sabe."
Porque de dia fic a escuro.”
Uma vez efetuada a contaminação entre
Essa última resposta é, evidentemente, direito e inteligente, por causa de uma apro­
contraditória. O aspecto da primeira já era ximação que nos permanece obscura, a apli­
anfibológico, “é” significando muito mais a cação dessa igualdade tem como que um
identidade da lua com a noite do que sua rigor algébrico. A inteligência pertence ou
aparição de noite. T endo a incapacidade para não à cortina conforme ela, suspensa, caia em
delimitar exatamente as relações entre esses pregas direitas ou carregada, una-se aos ritmos
dois termos levado ao emprego da fórmula ou movimentos do corpo. O contraste pode
mais simples, porém a mais confusa, disso parecer paradoxal entre a confusão de sen­
resulta como que uma única e mesma super­ tido das duas palavras e as conseqüências
fície compacta, indivisa que, unindo escuro, impertubavelmente deduzidas da definição
noite e lua, terá aumentado muito mais seu comum delas. Mas, as causas delas têm algo
poder extensivo. A tal ponto que seu contrá­ de complementar. Num caso, duas signifi­
rio, o dia, embora evocado para se opor a cações confundem-se por invasão mútua de
isso, será como que envolvido por ela, em vez suas áreas mentais. No outro, sua significação
de lhe marcar nitidamente a fronteira. O par- comum não se deixa reduzir pela confronta­
contraste dia-escuro é, portanto, formulado ção de suas conseqüências com os dados
também sob a forma mais simples, que é a da mais elementares da experiência ou do racio­
assimilação ou da identidade, embora a indi­ cínio, por exemplo, com a representação da
cação do contraste fosse exigida e devesse ser cortina, de sua identidade, de sua perma­
reforçada pelo sentido do conjunto. Tais con- nência. Nos dois casos, é a difusão do processo
tra-sensos, em contradição manifesta com as intelectual que explica o fato de que ele não
CONTAMINAÇÕES E DIGRESSÕES 157

admite delimitação nem do interior nem do A contradição, aqui, é evidente entre os


exterior, quer em seu conteúdo atual, quer dois termos opostos, calor e frio, que ela
em relação ao de suas representações suces­ funde por eliminação do termo intermediá­
sivas. rio, o vapor. Provavelmente, trata-se de no­
ções ensinadas e que a criança apreendeu
CONTAMINAÇÃO DE MOTIVOS mal, fixou mal. Mas, a assimilação, em vez de
OU DE TEMAS lacuna, só se tom ou possível por causa da
delimitação frágil demais mantida, pelo in­
Pode haver também contaminação dos telecto, entre noções que deveriam se ex­
motivos, das justificações dados de um fato. cluir.
A contaminação ainda tem outros efeitos
G...in 7; “A gente passou em cim a de além da queda de um termo intermediário ou
um a ponte. Tinha um as tábuas. - Por que a da substituição de uma palavra, de uma sig­
gente passa em cima da ponte? - Porque têm nificação, por outras. Pode haver difluência
pessoas que teriam medo. - Medo do quê? - De de um tema já enunciado, ou não, para chegar
afundar.” a interpretações inteiramente particulares e,
frequentemente, estranhas.
Literalmente, a resposta é um contra-
senso. Ela só pode ser explicada pela con­ A...aud 6; “O que quer dizer “morto”? -
taminação de uma circunstância objetiva - a Que a gente morreu. - O que quer dizer
necessidade de transpor o rio -, e da impressão morto? - Que agente nãopode m ais se mexer.
subjetiva que se liga à ação imaginada. Mas, - Por que a gente não pode mais se mexer?...
essa impressão supõe a ação que se executa, E se eu lhe agarrasse e se você não pudesse
longe de motivá-la. A ordem exata das rela­ mais se mexer? - A gente se enforcaria.”
ções é, portanto, invertida sob o impulso da
influência afetiva. O tema representativo não É o tema da morte, unido ao de ser
pôde ser mantido a salvo de seus reflexos agarrado, que se condensa no de se enfocar.
sensíveis. Semelhantes curto-circuitos tomam o jogo
A contaminação também é observada das hipótese muito precário com a criança.
entre noções objetivas, sempre por inca­ As circunstâncias condicionais fundem-se ou
pacidade para manter distintos os dois temas eliminam-se sob a influência das mais vivas
ou as duas representações que são evocados representações, quando cada uma delas de­
mutuamente, mas que se contraem elíptica­ veria permanecer nítida e distinta, enquanto
mente entre si. Suas verdadeiras relações são não for encontrada a solução que responde
eliminadas diante de relações de mera simul­ ao conjunto delas. A difluência de uma sobre
tané idade, ou melhor, de difusão e de coales- a outra pode, aliás, ter, como efeito paradoxal,
eência. oposições e distinções, em vez de uma sim­
ples fusão global.
P...CO 9: “Como é que chove? - A
professora nos explicou isso fa z tempo. - Por C...tin 6; 1/2 “O que vê? - As pessoas, os
que faz frio? - È o inverno. - Como? É o anim ais, os pássaros que voam ... - O que
inverno? (12 de maio). - Não, hoje não. - mais vê?... As plantas vêem? - Não. - Elas
Como é que faz frio? - Porque cbove?(ctiança respiram? - Respiram. - Elas não vêem? - Não,
de nome e origem italiana) - Como é que é por isso que elasficam plantadas na terra.
chove? - Tem calor que vira gotas. - Como é Elas mexem as folhas, m as sem saber onde
que o calor em gotas faz frio? - Porque ele gela. elas vão.”
- O que é que gela? - O calor.”
158 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Entre plantas e animais, a criança man­ A forma explicativa é um molde onde


tém a distinção. Mas, o tema da mobilidade, penetra freqüentemente, a contaminação en­
provavelmente acarretado pela assonância tre temas que não têm outras relações além
de “vêem” e “voam”, funde-se com o da visão, de uma certa semelhança ou sua presença
de tal modo que a oposição do que “fica simultânea no espírito.
plantado” e do que “voa” acaba explicando a
dos seres que não vêem e dos que vêem. Mas N...ret 6; 1/2 “Como os barcos fazem
a isso não se limitam os contrastes, acom­ para não afundar? - Se eles afundassem , é
panhados por uma contaminação de temas: porque eles não saberiam dirigir. - São os
o movimento de suas folhas vem se opor à barcos que não sabem dirigir? - Não, são os
imobilidade da planta. Donde uma nova nadadores, não, ospilotos de barcos que não
distinção implícita, a da simples agitação e da sabem dirigir. - Quando não têm pilotos nos
locomoção, mas sob a forma de uma nova barcos, eles afundam? - Afundam , sim, senhor.
contaminação: a locomoção parece ser trans­ - E as pedras afundam? - Sim, senhor. - Como?
ferida às folhas opondo-lhe o que está pre­ - Porque os barcos colocam elas no fu n d o da
cisamente em questão, a não-visão, o fato de água. - As tábuas afundam? - Não, senhor. -
“não saber onde vão". A análise desse exemplo Os barcos não as colocam no fundo da água
pode parecer muito mais complexa na me­ quando eles passam? - Sim, senhor. - As tá­
dida em que ele é mais elíptico, como o é, buas e as pedras afundam do mesmo jeito? -
freqüentemente, o pensamento da criança. Д sim, senhor.”
Discernir logicamente suas fórmulas é, ne­
cessariamente, distinguir os termos que ele A semelhança entre objetos que flu­
confundiu, dissociar as noções ou atitudes tuam inicialmente provoca a substituição de
mentais que foram indevidamente captadas “pilotos” por “nadadores”, sob a influência
uma pela outra, recolocar cada coisa em seu do tema que se impõe, então, ao espírito da
próprio lugar e na ordem desejada. Sentindo criança: os barcos. Persistindo a sua pre­
perfeitamente a diferença entre animais e ponderância, a queda das pedras ao fundo da
plantas, a criança misturou os elementos di­ água é-lhes também atribuída, fora, eviden­
ferenciais que se apresentavam em seu es­ temente, de qualquer experiência ou ilusão
pírito, dando a essa contaminação, a forma de perceptiva, e simplesmente por sua pro­
uma explicação, aliás, contraditória: as plantas pagação à totalidade dos pensamentos em
não vêem porque elas estão fixas no solo, não formação. Pela mesma razão, o caso das tábuas
vêem porque não sabem para onde vão. En­ é assimilado ao das pedras. Assim, as aparen­
tre esses dois argumentos, embora imedia­ tes sistematizações da criança são, com mui­
tamente consecutivos, a imagem das folhas to mais freqüência, atribuíveis à extensivida-
agitadas opusera-se à da planta enraizada e, de dispersadora de um tema do que à gene­
ao mesmo tempo, fundira-se com a dos ani­ ralização ou à dedução conceituais. Muito
mais em movimento. Ou, mais do que essas mais do que a teoria, é à contaminação de to­
imagens, é a do movimento que se impusera do um processo intelectual pela difluência de
sob o aspecto exclusivo do movimento loco­ uma representação ou de uma atitude men­
motor e, sob essa forma, era dado impli­ tal.
citamente às plantas, após ter servido para
diferenciá-las dos animais. Tais inconseqüên- L...dec7; "Q uando o trigo cresce, agente
cias são freqüentes na criança, precisamente corta o trigo e o leva para o m oinho de trigo.
por causa de sua incapacidade para manter - E depois? - O moleiro esmaga, isso vira um a
distintos eem sua integridade inicial, os dados pasta branca. - E depois? - A gente semeia. -
do processo intelectual em andamento. E quando a gente semeia, o que cresce? -
CONTAMINAÇÕES E DIGRESSÕES 159

Trigo. - E para fazer crescer alhos porrós? - A temente, contra a vontade do sujeito. Parece
gente semeia a sem ente de albosporrós. - De que, à diferenciação cerebral de onde ela
onde vem a semente de alhos porrós? - Do resultou, não pode se opor uma a outra, pa­
moleiro também. - E como o moleiro tem a ra modificá-la ou suprimí-la. Na verdade, é
semente do alho porró? - Esmagando-o. - O com lesões graves do cérebro, onde as co­
que ele esmaga? - Pó verde. - E como ele tem nexões anatômicas e as possibilidades fun­
pó verde? - Nos campos. - Como é esse pó cionais estão profundamente danificadas que
verde? - Ele é de caules verdes. - E como são esses fatos se produzem. Também, aliás, nos
esses caules verdes? - Estão na terra. - Como estados de torpor, na sonolência ou na dis­
eles aparecem? - Na prim avera, eles cres­ tração.
ceram.”
R...au: “O carvão está sempre quente? -
O ciclo do trigo contamina, aqui, o dos Não. - Quando o carvão está quente? - Terça-
alhos porrós, fazendo-os passar também pe­ feira. - Como é que o carvão está quente na
lo moinho. Mas, uma outra contaminação já terça-feira?... Nos outros dias, o carvão não
se produzira a propósito do trigo. As relações está quente? - Não. - Como é o carvão quando
do trigo com a terra parecem prevalecer, ele está frio? - Preto. - E quando ele está
nesse ponto, sobre as outras, no espírito da quente? - Preto. - Quando ele está quente? -
criança porque, do moinho onde o trigo en­ Terça-feira. - ...Por que o carvão está quente
trou após a colheita, ele sai sob forma de na terça-feira? - Porque ele está em cim a do
"pasta” para ser semeado. Depois, por exten­ fogo. - E no domingo? - Ele não está quente. -
são desse circuito aos alhos porrós, é para Por quê? - Ele não está em cim a do fogo. - E na
serem semeados que seus caules são trans­ terça-feira, por que ele está em cima do fogo?
formados em pó verde. A difluência de um - Não sei. - E na segunda-feira, o carvão está
tema sobre o outro é evidente, pois não há em cima do fogo? - Não. ”
nada, seguramente, nem nas experiências
pessoais da criança, nem no ensino recebi­ Provavelmente, essas respostas, que pare­
do, que possa justificar essa crença, ou me­ cem, ao mesmo tempo, comuns e sistemáti­
lhor, essa opinião, que deve ter surgido no cas, poderiam fazer-nos pensar que a crian­
próprio instante em que foi formulada, como ça, se compraz em mistificar aquele que a
um simples efeito de difusão num campo interroga. Mas, a atividade lúdica sempre é
intelectual ainda inapto para diferenciar te­ apenas a exploração de reações inicialmen­
mas consecutivos ou concorrentes. te espontâneas. O que nos chama a atenção
aqui, tanto nas repetições quanto nas oposi-
RESISTÊNCIA INCOERCÍVEL ções, é a rigidez delas: “terça-feira” parece ter
DE UM TEMA sido uma resposta como que automática à
palavra “quando”; mas, uma vez dada, ela
Um efeito simétrico à confusão dos temas exclue todos os outros dias da semana, por
é a resistência de um tema atual a qualquer uma espécie de lógica igualmente automáti­
modificação, sua persistência apesar de seu ca. "Preto” é, pelo contrário, uma resposta
caráter absurdo e de estimulações contrárias. indiferenciada, quaisquer que sejam os ca­
Quando se trata de fatos muito elementares, sos, carvão que queima ou carvão frio. Aliás,
como a repetição da mesma palavra, pôde- a criança fala do carvão como se ele fosse
se falar de embolia verbal, como se observa aquecido pelo fogo e não como combustível,
nos afásicos, nos dementes e, freqüentemente como se ele estivesse em cima e não dentro.
também, na criança. A mesma locução retor­ As relações enunciadas parecem puramen­
na sem cessar, fora de propósito e, freqüea- te formais, as imagens impermeáveis entre
160 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

si, não modificáveis uma pela outra. A im­ suas próprias implicações latentes. Essa se­
pressão é de um pensamento estereotipado, melhança de mecanismo pode ocasionar co­
fragmentário. Face à contaminação há disso­ mo que um conflito entre a impermeabili-
ciação. Nos dois casos, há uma igual insufi­ dade do tema e a contaminação, quando é a
ciência de diferenciação, mas, em um, coales- propósito do mesmo objeto que temas fecha­
cência, no outro, disseminação. Um tema po­ dos se produzem.
de desenvolver-se na criança, como que ina­
cessível a qualquer incitação estranha. L...ges8; “O que são as nuvens? - Fum aça.
- Como fumaça? - Preta. - De onde vem essa
D...and 6;l/2 “Como o trem pode fazer o fumaça? - Das cham inés. - Nos lugares onde
seu chapéu voar? - Porque ele vai depressa. - não tem chaminé, não tem nuvens? - Têm
Por que ir depressa faz vento? - Porque é a chaminés, nuvens. - Não têm lugares sem
m áquina que os p uxa. - Por que isso faz chaminés? - Não. - Todos os lugares têm
vento? - Porque a m áquina tem motor. - Mas chaminés? - Não. - Têm chaminés no mar? -
como o vento pode vir do motor? - Porque ele Não. É o sol que esquenta a água. - Têm
põe carvão.” nuvens no mar? - Não... em cim a. - Têm? -
Têm. - O que são essas nuvens? - Nuvens que
Por um lado, parece, as questões pro­ estão cheias de água. - Essas nuvens são
curam fixar a criança sobre o mesmo temak fumaça? - É. - É fumaça ou água? - Não sei...
por outro, seu relato a faz passar de detalhe Deve serfum aça ou água. - Se é fumaça, de
em detalhe. Na verdade, há persistência, em onde ela vem, já que não têm chaminés? - Têm
seu espírito, de um mesmo tema, apesar das cham inés nas casas de praia, têm casas
questões que procuram suscitar nele o tema nos rochedos. - Você disse que as nuvens
do ar deslocado. A limitação da ideação, aliás, em cima do mar estão cheias de água? - Bom,
se traduz pelo emprego de pronomes que é o sol que esquenta e a água vai embora
substituem termos que ainda não foram for­ como vapor... Foi o senhor que fe z esses
mulados. Esse é, ainda, o efeito de um pen­ desenhos bonitos? - Fui eu. - São bonitos...
samento cujo poder de evocar ou de formar bolas aqui. - O vapor é fumaça? - Não... é
imagens é obtuso, cujas estruturas presen­ água. - O que é a fumaça? - Água, sujeira,
tes diferenciam-se ou transforma-se penosa­ carvão preto?
mente.
Como esses exemplos de temas inaces­ O embaraço dessa criança é visível en­
síveis a qualquer diversão e que prosseguem tre suas nuvens-fumaça e suas nuvens ma­
por si próprios podem, por seu mecanismo, rinhas, que, alternadamente, repelem-se e
aparentar-se aos efeitos aparentemente con­ parecem estar a ponto de fundir-se. Final­
trários da contaminação? Nos dois casos, é a mente, ela sabe apenas justapor a sujeira, o
simplificação do campo intelectual que tende carvão preto das primeiras e a água em vapor
à unidade do tema; no da contaminação, as das segundas. As faixas de representação
diferenças são reduzidas, por uma assimila­ que correspondem a cada uma não conse­
ção recíproca dos motivos distintos, em um guem nem se fundir e nem encontrar o siste­
único processo; no da persistência, nada po­ ma onde poderiam se intregar juntas, por
de introduzir diferença no processo em anda­ exemplo, o calor que sai da chaminé, assim
mento. Certos casos de persistência podem como do sol.
até mesmo ser reduzidos à contaminação. Em A incompatibilidade mútua de temas si­
vez de poder se modificar para se adaptar multâneos a propósito do mesmo objeto está
às peripécias da experiência ou da conversa, longe de ser excepcional na criança.
o tema é, sucessivamente, contaminado por
CONTAMINAÇÕES E DIGRESSÕES 161

L...cher falou, anteriormente, da lua como Aqui, ainda, há concomitância de um


de algo “vivo” e como proveniente da fumaça: tema antropomórfico e de um tema per­
“Como é então a lua? - Ela tem olhos. - A lúa ceptivo. A analogia do céu com o meio em
vê? - Vê, sim, senhora, ela vem da fum aça. - que a criança vive é desenvolvida não sem
Como ela vem da fumaça? - Elafic a embaixo algumas reservas, mas que desaparecem
da fum aça, depois ela vem e fic a redonda. - pouco a pouco; ao mesmo tempo, efetua-se
Como d a é? - Ela não tem pernas. -E o que uma confluência gradual com o tema per­
mais? - Não sei. - De que é a lua? - Defum aça. ceptivo e, finalmente, com o céu, como local
- Do que são os olhos delas? - Como os nossos. de origem do vento. Aqui, a contaminação
- E ela é de fumaça? - É. - Ela tem uma boca? tende a unificar dois temas díspares. Mas is­
- Tem, sim, senhora. - Se ela é de fumaça, so só é possível devido à incapacidade em
como ela pode ter olhos e uma boca?... A lua que se encontra a criança para delimitar os
tem olhos?- Tem. - Ela está viva?- Está. - Como dois temas. É dessa mesma incapacidade que
ela está viva? - Porque ela sai da casa dela, e procedem a sobreposição ou a alternância
depois ela vem, ela levantar deles, mesmo se são díspares, e a simul-
A afinidade entre a contaminação e a taneidade estanque deles, sem eliminação de
justaposição de temas incompatíveis traduz- um pelo outro ou sem integração dos dois
se aqui, por sua íntima combinação: por um num sistema mais abrangente.
lado, as brumas de onde a lua se ergue, tor-
nam-se sua substância; por outro, sua seme­ 2e As Digressões
lhança com uma face humana faz-lhe atribuir
não apenas os mesmos órgãos, mas também As digressões são freqüentes nos relatos
os mesmos hábitos de existência que o ho­ ou nas respostas das crianças. Elas parecem
mem possui. Cada um desses dois aspectos como que meandros habituais ligados ao
ocasiona uma natureza correspondente; duas regime de seu pensamento. Mas, às vezes,
naturezas evidentemente inconciliáveis e que elas dão a impressão de verdadeiros discursos
a criaça não parece sentir nenhum incômodo sem nexo.
em admitir simultaneamente.
Perguntamos a W...ter 7; como o Sena se
N...et 6;l/2 falou, anteriormente, do céu mexe: “Porque os peixe fa ze m assim (gesto
como do lugar de onde vem o vento. Depois com a mão). Às vezes, eles saltam e fa z assim
ela o povoou com animaizinhos e criancinhas, (desenho de um círculo em cim a da mesa).
essas montando naqueles para se divertir: Depois, os pedreiros fa ze m casas; eles com­
“Como a gente pode passear no céu? - No céu. pram massa de vidraceiro para as janelas; a
- Como é o céu? - Assim (ela mostra, com a gente pinta. Lustres, lâm padas (segue a enu­
mão, uma seqüência de degraus em forma de meração dos objetos, que ela procura com os
arco). - É duro ou mole? - Émole. - De que cor? olhos na sala, que possam servir para a
- Branco assim (mostra o céu). - A gente pode decoração de um a casa)"
andar em cima? - A gente não pode andar;
m as as criancinhas no céu podem . - Por que Repentinamente, sua resposta bifurcou
não poderíamos andar? - Pode, agentepoderia para um tema sem relação com a pergunta.
andarse estivesse no céu.., - Têm árvores, flo­ Provavelmente, foi o traçado desenhado em
restas, rios no céu? - Têm, têm árvores. - Iguais cima da mesa, para mostrar a onda feita so­
as daqui? - Não como aqui. Aqui, têm m uitas bre a água pelo salto do peixe, que subi­
estradas, no céu, não têm muitas. - Tem tamente evocou a imagem de um plano e a
muito vento no céu? - Tem. - Por quê? - Porque dos pedreiros e de uma casa em constru­
épara irem todas as ruas, de todos os lados.” ção._Segue-se, de forma aliás, muito vaga, o
162 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

enunciado das operações ou objetos de - Teria gente. - Quando não tem sol, onde
decoração interior. Provavelmente, a asso- ficam as pessoas? - Em casa. ”
nância contribui para isso: peixe, pedreiro,
casa, massa de vidraceiro23. Essa influência A palavra e a imagem do sol operaram a
do pensamento, pelo que há de mais formal substituição do tema cultura pelo temapasseio.
na expressão, corresponde exatamente ao
que ele tem de vago quando as digressões S...et 6; “Está chovendo agora? - Agora
sobrevêm. tem sol. E depois, têm pessoas que estão dor­
mindo; e quando a gente dorme, têm pessoas
L...ges 8; explica que: “O sol está lá, a lua que estão trabalhando. ”
está láe a terra gira. - Como você sabe disso?
Mas é clam, a gente gira. A lua está em cim a Por intermédio do sol, a posição bom
dosol, e depois a gentegira e agente, àsvezes, tempo-chuva transforma-se na de dia-noite,
cai. Q uando a gente vira, a gente cai, agente que se apresenta, ao espírito da criança, sob
caí de cara no chão. O senhor não viu outro forma de uma noção ensinada: os antípodas.
dia o bêbado perto da prefeitura: ele estava
de porre e ele caiu. Que horas eram? 11 e D .. .ne 6; 1/2 “A gente não escuta o ven­
meia, 3 ou 4 e meia. ” to? - Clam, a gente o escuta soprar ãs vezes.
Deve-se assinalar que essa criança, já No m ar também. Têm caranguejos no mar. ”
grande, é muito fabuladora.
Aqui, pelo contrário, é para um fato de
Não é mais um gesto aqui, mas o par experiência pessoal que a palavra faz o pen­
verbal girar-cair que leva a brusca troca do samento bifurcar.
tema cósmico por um tema pessoal. A crian­
ça não parece estar, aliás, sem consciência da W...ter 7; “Como um barco nada? -
mudança, pois ela retoma “quando a gente Porque tem. água; é de m adeira. Às vezes, a
gira”. Contudo, ela continua a derivar ao gente fa z cestos depalha, deferro. A g en tefa z
sabor de suas lembranças. A orientação sub­ sofás (ela continua enum erando os objetos
jetiva de seus interesses, sua débil adesão aos que procura com os olhos a seu redor). ”
objetos de pensamento ou ao real, é mostra­
da nas perguntas que ela faz sobre a hora: As percepções presentes da criança
é de manhã ou de tarde? Só lhe importa que levam-na, do barco, aos objetos que a cir­
seja a hora de saída da escola: 11:30 hs., ou cundam, por intermédio de sua substância
4:30 hs. comum, a madeira.
Entre dois temas díspares, a mudança O termo de transição pode ser o nome
é marcada, às vezes, por uma palavra da qual de um estado afetivo.
se ramifica uma outra série de imagens.
A.A...dré 6; Como ele conta a queda de
K...vé 6; disse que o sol faz o trigo uma árvore: “Você não teve medo? - Não,
crescer e a chuva faz o trevo crescer: “se não m am ãe tem medo dos ratos. Q uando fic a de
tivesse chuva, não teria trevo? - Não. - E se noite eufaço ela andar, eufaço ela ir para a
tivesse sol? - Não. - O que teria, se tivesse sol? cama. - Como você faz? - Eu lhe dou a mão.
- Você tem medo de ratos? - Não. - Do que
você tem medo? - Não. Uma vez m am ãe disse
(23) N.T. - Em francês, há assonância entre “peixe"
a papai: "Venha A ndré” para ir procurar
(“poisson”); “pedreiro” (“maçon"); “casa” (“m aison”) e carvão num a caverna, e seu p a i não quis.
“massa de vidraceiro" (“m astic”). Era para um a mulher. Papai nunca tem
CONTAMINAÇÕES E DIGRESSÕES 163

medo. Ele não quis irláporqueera de dia. Ele enunciado de circustâncias sem relação com
estava descansando. - Mas você tem medo? - a pergunta feita, mas graças às quais a criança
Д eu tenho medo dos cam undongos. Ê às parece novamente distribuir, ao outro, o
vezes têm ratos. Eles arranham a parede. A sentimento que ela tem o cuidado de não
gente acendeu a luz. Eles fugiram ; a gente atribuir a si próprio. As novas imagens assim
procurou em todo lugar. - Por que você tem introduzidas tendem, aliás, a se desenvolver
medo dos ratos? - Eles mordem. ” por si próprias, substituindo o tema da noite
pelo da família.
Foi a palavra “medo” que fez surgir Desse m odo, todos os graus parecem
bruscamente, em vez das lembranças engra­ poder ser observados entre a digressão in­
çadas que a criança estava evocando lem­ troduzida por um acidente formal da expres­
branças profundamente afetivas. Se a expres­ são, gesto, assonância, associação verbal, a
são delas é confusa isso ocorre porque seu que resulta de uma impressão mais ou menos
esforço para se justificar, ao mesmo tempo acidental vinda do meio, e aquela em que se
que se recorda, faz-lhe inicialmente, inverter exterioriza uma preocupação latente. Mas,
o papel entre sua mãe e ela própria e substi­ por mais diversas que sejam suas causas, a
tuir a sua pessoa pela de seu pai. Mas, ela não digressão corresponde muito bem a um estado
tarda a se perder. Faz sua mãe chamar seu pai e a uma fase determinados da mentalidade
por seu próprio nome, depois, ela própria infantil.
introduz-se, na terceira pessoa, pela expres­
são “seu pai.” Finalmente, ela admite que não T...ni José 7; descreve a festa de Saint-
é seu pai, mas ela própria que tem medo dos Cloud: “ Têm anim ais que sobem e descem e
ratos. A digressão produz-se, portanto, exata­ d ã o ca m b a lh o ta s. -Esses animais estão vivos?
mente por causa de uma palavra, mas, so­ - Ah, n ã o , elessão de papel. - O que é que tem
bretudo, por meio de uma certa desordem, de vivo na festa de Saint-Cloud? - Macacos. -
que resulta, aqui, de uma influência emotiva Que mais? - Cachorros para puxar, são de
e de um conflito íntimo. Assim, misturam-se, verdade. - O que quer dizer vivo? - Isso quer
sob o efeito da emoção, as distinções, que dizer que eles não estão mortos. - O que quer
permaneceram precárias, graças às quais a dizer morto? - Que a gente não come mais,
criança aprende a manter seu ponto de vista q u e a g e n te n ã o bebe m a is e que a gente não
pessoal, condição primordial de uín pensa­ a n d a m a is d e moto. Eu gosto m ais das
mento que não se perde. m á q u in a s. A h , o s ca v a lo s grandes não me
Na mesma criança, o medo também é interessam (ela conta, então, diversas histó­
causa de digressão, sem que tenha sido deno­ rias sobre carros e motos). - E o q u e acontece
minado. depois que a gente morre? - Eles jogam a
g e n te no S en a. Eles co lo ca m a gente num
“Por que a gente só pode ver a lua à cemitério e depois, então, quando a gente
noite? - Porque ê de noite. M eu irm ãozinho está bem morto, eles vão jogar a gente. - O
sempre tem medo. M inha irm ã fa z ele cair. Sena está vivo? - Ah, não, é água. - A água
Q uando ele anda, eleparece um maluco,- ele nunca está viva? - A h não, têm peixes. - Os
quer a ndar bem depressa, Se a m inha irmã- peixes estão vivos? - Д é para comer. Sabe,
zin h a vê que a gente está olhando para ela, têm la g o sta s. Eu co lo co na água com m uito
ela n ã o fa z nada. De noite, m eu p a ifa z meu sal e e u en ch o dentro; e então a lagosta não
irm ãozinho andar. " m ex e m ais depois. - As lagostas estão vivas? -
A h sim, está viva, é vermelha. - Tudo o que é
Aqui, é o próprio motivo do medo, vermelho está vivo? - Ah não, ela era verme­
a obscuridade da noite, que provoca o lha. Eu pego um cordão, um a pinça, e depois
164 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

eu coloco em cim a de um a form a e dou um a peixes estão vivos .na água para serem co­
martelada, pã, eu quebro um a pata dela, eu midos: segue-se, então, uma longa drigressão
chupo. Eu chupei todas as patas. Me davam sobre a maneira de cozinhar e comer as
lagostaspor nada. Ah eu, eu não passo onde lagostas. A essa confusão do ativo e do passi­
têm carros (ela continua, p o r algum tempo, vo, acrescenta-se a dos atos complementa­
o relato de lem branças e de experiências res: as lagostas não escutam porque não fa­
pessoais, com unia imprecisão de circuns­ lam; a dos atos contrastados: elas não falam,
tâncias, aliás, quase completa e quase sem elas brigam; a do objeto e do sujeito: à pergun­
prestar atenção às perguntas feitas). - As ta “o que pensa”, a criança responde as coi­
lagostas enxergam? - Д na água. r Elas res­ sas que são pensadas; a de qualidades
piram? - Não senhora. - Você tem certeza que fortuitamente reunidas: viva e vermelha. Ain­
não respiram? - Ah, não. - Elas enxergam? - da é confundida a oposição vivo-morto e
Enxergam, até os camarões. - Elas ouvem? - vivo-inanimado. Na associação do cemitério
A h não, elas não podem fa la r. Elas brigam e do Sena, o destino dado ao cadáver do ho­
entre elas. Ah, os lagostins, a senhora sabe, mem e ao do animal parece contaminado. As
eles mordem. - As lagostas pensam? O que espécies próximas são substituídas entre si
pensa? Diga-me coisas que pensam. - Elas ou, pelo menos, atraem-se sem necessida­
ainda querem fic a r na água. - As coisas que de: peixe, lagosta, lagostim, caranguejo.
pensam? - Elaspensam que elas querem ir na Mesmo se eles não se misturam como con­
água salgada e não voltar m ais para a rede. trastados demais, os temas não conseguem
- Diga-me outras coisas, além das lagostas, elimiar um ao outro: a imagem da moto, in­
que pensam. - Elaspensam também que elas troduzida pela idéia da atividade própria à
não vão m ais chegar pertinho. - É, mas isso vida e, simultaneamente, oposta ao cavalo,
são as lagostas. Têm outras coisas, além delas, após ter sido desenvolvida em digressão
que pensam? - Elaspensam também, quando prolongada, reaparece, repentinamente, de
o hom em colocara rede, elas não vão voltar forma incoerente, após o desenvolvimento
m ais para a água. - Só as lagostas pensam? - sobre a lagosta: “Ah eu, eu não passo onde
Ah, não, a gente também, e também os a n i­ têm carros”.
m ais os gatos e os cachónos. " Não há, portanto, firme delimitação en­
tre os temas ou as imagens acidentalmente
Aqui, estão reunidas diversas varie­ evocadas, o que pode ter dois efeitos inver­
dades de digressões que se aproximam, aliás, sos: ora a ignorância mútua delas com alter­
da persistência de um mesmo tema, apesar nâncias repentinas, ora a contaminação recí­
das perguntas feitas. Sob aparências con­ proca das mesmas. Tampouco há distinção
trárias, são dois casos idênticos. precisa entre as qualidades, os objetos ou as
relações que se encontram reunidos quer na
Procedem da mesma base. Quer o pen­ experiência concreta do sujeito por coinci­
samento pareça disseminar-se em tom o do dência, quer em seu empirismo intelectual
tema em andamento ou quer ele resista a através de semelhança. E, enfim, não há dife­
qualquer esforço para mudá-lo, ele revela a renciação estável entre esses dois aspectos
mesma inaptidão para seguir uma ordem, oponíveis de qualquer situação ou qualquer
seja íntima, seja estranha. Ele escapa disso coisa: agir-sofrer, claro-escuro.
por uma espécie de confusionismo genera­ Na ausência dessas referências, o pen­
lizado. Sobre muitas dessas digressões, pa­ samento da criança segue a inclinação do
rece flutuar a imagem de uma mesma ação, a momento, que é, com mais freqüência, pro­
de comer. Mas, ela é considerada no sentido duzida, na criança nova por influências
ora ativo, ora passivo: viver é comer, mas os efetivas ou por acontecimentos que ela
CONTAMINAÇÕES E DIGRESSÕES 165

Suas digressões mais freqüentes parecem ser A. A...dré acabou de dizer que seu pai
reminiscências. poderia morrer: “Como? - Não sei. Outro dia,
ele chegou em casa tarde. Tinha um a gara­
C...in: “Como é que o vento pode fazer gem . Ele não sábese estava aberta. A gente fo i
os barcos afundarem? - Porque têm pássaros até a rua deS.D e repente, elefalhou. O carro
que fa ze m vento e que se cham am gaivotas. quebm u. ”
São moles as gaivotas. - Como você sabe que
são moles? - Porque elas não têm m uito A morte do pai liga-se a uma espera
sangue. Eu vi um a morta. Éproibido m atá- inquieta, cujo relato é, evidentemente, uma
las, ese o tivéssemos visto, aquele lá, estaria mistura das circunstâncias contadas pelo pai
na cadeia. Eu vi m uitas gaivotas. Elas são e as próprias da criança. Outras vezes, a
cinzas e brancas.” digressão leva a uma incoerência formal, por
omissão de circunstâncias intermediárias.
Aqui, a lembrança pessoal combina-se
com o detalhe descritivo ou sincrético e, sem Da mesma criança: “A h não, um a vez
dúvida também, com a assonância mole-gai- eu estava na casa da m inha tia. Era de noite.
vota24. Mas a gente estava no ônibus ?

C...er: “Como as árvores crescem? - Com A reminiscência pode ser mais banal,
sementes. O homem tem um jardim , m as ele relacionar-se a fatos correntes e não singula­
não quer dá-lo para nós. O jardim dele está res.
cheio. - Como a alface cresce? - A gente põe
sem ente no jardim . A gente plantou alface. C. P...it 6; acabou de dizer que as folhas
Mas é um jardim sujo. Elas não cresceram murchas acabam caindo no Sena e no mar.
muito. Crescemflores... - De onde vem a água Ela acrescenta: “Д têm bichos malvados no
do Sena? - A água do Sena?- É. - O homem põe mar. - Esses bichos estão vivos? - Д às vezes
água dentro e depois elepára e depois elepõe a gente pega ospeixes. - Quando a gente pega
de novo. Ah, quando neva, é dum , não tem os peixes, eles estão vivos? - Ah, não, eles
nada para fa zer. Depois, ele põe água de estão mortos. A gente põe dentm da gam ela e
novo. A gente m udou, agora agente mora em eles nadam . Depois, agente cozinha e come.
Bellevue. F az tempo. A festa da criança era - Por que os peixes morrem quando a gente
bonita. Os fogos de artifício não duraram os tira da água? - Porque a gente pôs um
muito; elesfizera m um barulhão.” ganchinho na boca deles.”

Ainda nesse exemplo, há uma assonân­ A digressão das folhas murchas aos pei­
cia provável - sujo-alface, Bellevue-festa bo­ xes, passando pelos bichos malvados do mar,
nita25, e traços descritivos. Mas a criança segue, é acompanhada por outras desordens, que
principalmente, o encaminhamento de suas não são de um mecanismo diferente: por
lembranças pessoais, que dão, as suas respos­ duas vezes, a criança inverte a ordem dos
tas, uma aparente incoerência, pois são co­ termos, os peixes estão mortos quando a
mandadas por circunstâncias particulares, as gente os tira da água, mas eles nadam na
quais ela não sente necessidade de justificar. gamela. Eles morrem com o gancho que lhe
retiramos e não com o que os pegou. Essa
(24) N.T. - Em francês, há assonância entre “m ole” incapacidade para observar a exata sucessão
(“m ou”) e “gaivotas* (mouettes").
dos acontecimentos explica não apenas as
(25) N.T. - Em francês, há assonância entre “sujo”
("sale”) e “alface" (“salade"); e entre “Bellevue” e "festa
inversões deles mas as diversões das quais
bonita” (“belle fête"). eles se tomam a origem.
166 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

A incoerência explícita é apenas um limi­ mostrou posteriormente um de seus alunos, a


te para o qual tende a digressão. Toda di­ participação indispensável do córtex cerebral,
gressão é, em si mesma, uma incoerência, é apenas esta, contudo, que permitiria a estri­
mas com relação a processos de pensamento ta diferenciação do excitante escolhido entre
mais ou menos vastos. Ela é devida à eli­ outros mais ou menos próximos, e é por is­
minação das referências e dos planos que so que ele lhe atribui o papel de analisador.
lhes são necessários para se desenvolver. Se­ Duas zonas antagonistas seriam suscetíveis
ja efeito, seja causa dessa eliminação, o sub­ de se formar, uma da excitação, a outra da
jetivismo está sempre em sua raiz. Mas o sub­ inibição, esta se comprimindo em tom o da
jetivismo não indica a preponderância da primeira à medida que a excitação eficaz de­
pessoa sobre as coisas. Muito pelo contrário, ve se tomar específica, o que é obtido repe­
é o persistente caráter vago de sua formação tindo-se, o número de vezes que for preciso,
que toma possíves essas perpétuas confusões o excitante condicional associado ao excitan­
entre o subjetivo e o objetivo, entre as remi- te incondicional e, sem essa associação, os
niscências pessoais e as relações de acon­ excitantes que é preciso distinguir. Mas, po­
tecimentos ou de coisas. As confusões entre de acontecer que, entre excitantes próximos
noções conexas, porém opostas, entre pontos demais, essa diferença de potencial não possa
de vista passivo e ativo, correspondem a uma ser obtida ou que ela seja suprimida brus­
fase ainda infantil da personalidade, lembra camente, de tal modo que ambos se tomem
os jogos alternantes da criança. quer positivos, quer negativos, um confis­
cando o outro.
A INTELIGÊNCIA Os efeitos da contaminação podem ser
FUNÇÃO DISCRIMINATEVA uma substituição de palavras, sob a influên­
cia quer da simples assonância, quer do sen­
Temas que se contaminam entre si, que tido; uma substituição de sentido entre duas
opõem a outros uma resistência incoercível palavras (inteligente-direito); uma substitui­
ou, pelo contrário, que desmoronam diante ção de motivos (o motivo objetivo sendo
de outros são o resultado de uma mesma in­ deslocado por uma impressão puramente
suficiência mental: incapacidade para dife­ subjetiva); coalescência de dois termos in­
renciar os processos intelectuais, a fim de que compatíveis (o calor gela); um cruzamento
eles não se misturem, que eles se delimitem muito particular de imagens (morto+laços -
corretamente, que eles possam se suceder à enforcamento); a transferência, entre dois
vontade. objetos, de duas qualidades confundidas, em­
Psicólogos definiram a inteligência como bora inteiramente distintas (o combinado
um poder de discriminação. As provas, por vista-movimento, observável nos animais, es­
exemplo, com a ajuda das quais Spearman tendido às folhas de árvores, que mexem
queria medir o fator geral (g) da inteligência, “sem saber para onde vão”); a assimilação de
afastando-o de todos os fatores técnicos ou um ciclo causal a um outro (as relações, aliás
específicos que podem complicar suas o- invertidas, das sementes de trigo ou da fari­
perações, segundo a diversidade dos objetos nha, aplicadas à semente dos alhos porrós).
intelectuais, consistem em comparações onde Esses fatos parecem ser explicados por
se trata, simplesmente, de indicar por “bem” um poder ainda insuficiente de discrimina­
ou “mal”, se uma figura é a que convém ou ção. A comparação entre uma definição da
não na séria representada. É uma conclusão inteligência como a de Spearman e o papel
bem parecida que Pavlov extrai de suas analisador atribuído por Pavlov ao córtex
experiências sobre os reflexos condicionais. cerebral, poderia dar a idéia das insuficiências
Se o estabelecimento deles não exige, como que permanecem observáveis na criança.
CONTAMINAÇÕES E DIGRESSÕES 167

Segundo a idade, e também segundo os in­ romperia o sincronismo das ondas e tomaria
divíduos, as operações mentais ou o momen­ impossível o registro das mesmas. Essas di­
to psíquico, o poder diferenciador do campo ferenciação às custas de ondas uniformes,
intelectual poderia variar, como parece que que seria a condição da atividade sensorial e,
deve variar o do córtex cerebral. Suas partes provavelmente também, da atividade inte­
contígüas ou suas camadas sobrepostas de­ lectual, simbolizaria exatamente o que se ob­
vem muito bem ser a sede de processos mais serva na atividade mental da criança: um
ou menos delimitados e distintos, de onde conflito entre seu esforço para delimitar, para
resultaria a possibilidade de operações quer distinguir, uns dos outros, seus temas inte­
estritas e precisas, quer combinadas e rica­ lectuais e o retom o ao semelhante, que ten­
mente organizadas, quer estanques entre si, de, sem cessar, a fundi-los, a misturá-los ou a
embora simultâneas. substituí-los entre si. Sem dúvida, a interpre­
É com muita dificuldade, atualmente, tação das ondas registradas pelo oscilógrafo
que se tom a possível aprender algo sobre as é ainda muito contestada. Essa comparação
variações dinâmicas, cuja sede é o córtex não tem, de forma alguma, a pretensão de ser
cerebral. Contudo, seu registro elétrico come­ uma explicação. Ela mostra apenas a que
çou, sob uma forma, aliás, ainda inteiramente análise das correntes de ação cerebrais pode
global. O oscilógrafo catódico permitiu obter levar a da atividade intelectual.
o traçado de ondas em ritmo determinado, Outras comparações são ainda possíveis,
que são diferentes para diferentes regiões as quais poderiam ilustrar, de forma con­
do córtex. A interpretação delas ainda é pro­ vergente, o mecanismo das insuficiências so­
blemática. Embora desejando que os psicó­ fridas pelo pensamento da criança. Segundo
logos interessem-se por isso, Adrian constata a teroia da G estalt, todo ato psíquico é uma
que elas ainda pertecem ao campo da pura estrutura dinâmica, ou seja, uma diferenciação
fisiología. Parece que só se pôde apreender ordenada no campo dos influxos nervoso.
reações sincronizadas. As mais fáceis de serem Provavelmente, as estruturas da G esU at não
obtidas, as ondas alfa ou as ondas de Berger, se referem unicamente ao córtex, nem mesmo
com dez oscilações por segundo e com pon­ aos centros nervosos. Elas são encontradas
to de partida principalmente occipital, desa­ nos objetos das impressões e das reações, e
parecem tanto no sono profundo quanto com são conjuntos cujos fatores, tanto externos,
os olhos abertos, quando o olhar é ativo, ou quanto psicofisiológicos, são solidários. Sob
seja, provavelmente, ao mesmo tempo duran­ a influência de uns e de outros, as mudanças
te o repouso do cérebro, e quando a atividade que sobrevêm não são mudanças parciais,
dos centros nervosos, que residem nessa mas formas que variam em sua totalidade.
região ou em tom o dos centros visuais, rece­ Sua diversidade, sua complexidade, sua adap­
be, das impressões recebidas, uma dife­ tação exata aos objetos e aos objetivos da ati­
renciação qualquer. Registráveis, ainda, em vidade podem também ser atribuíveis apenas
outros lugares além da região occipital ou ao poder diferenciador e discriminador do
dando lugar, às vezes, a ondas mais lápidas e aparelho psíquico, que faz as formas da ba­
menores, elas ainda seriam suprimidas, se­ se emergirem. Sem ele, os traços ou as cir­
gundo Adrian, desde que se desperte a ativi­ cunstâncias utilizáveis são apenas uma massa
dade sensorial da região correspondente. As­ amorfa e indistinta, ou então uma simples
sim, o cérebro em vigília, mas desocupado, acumulação, uma sucessão descontínua, uma
vibraria de forma sincrónica em cada uma de pluralidade também amorfa.
suas partes. Um ato de percepção qualquer O poder diferenciador do ato intelectual
só poderia desenvolver-se sobre essa base ou psíquico poderia ser comparado também
dinâmica através de uma diferenciação que a aquelas figuras no espaço que foram dados
168 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

no raciocínio, particularmente do silogis­ resultados do ato mental supõe, em sua reali­


mo. Provavelmente, isso é substituir o proces­ zação, o poder de discernir entre os objetos
so em m ovim ento do pensamento pela geo­ ou as circunstâncias, de dissociar as seme­
metria, como, aliás, o silogismo substitui o lhanças e dessemelhanças deles, de observar
dinamismo intelectual por conceitos está­ as incompatibilidades deles e de autenticar
ticos. Mas, a própria possibilidade* de expri­ os encontros legítimos dos mesmos.
mir, por posições diversas e combinadas, os
Capítulo in

FABULAÇÃO E TAUTOLOGIA
i 2 F a b u la ç ã o

A fabulação está, freqüentemente, muito como a experiência objetiva. Para a criança,


próxima, na criança, da simples digressão, sua experiência está misturada demais com
pelo menos por seu mecanismo. A ela seus desejos, suas reminiscências, sua rotina
acrescenta-se, contudo, uma intenção e, com para ser objetiva. Suas explicações são por
freqüência, levanta-se a questão de saber em demais a justificação, a ilustração ou a sim­
que medida a criança acredita em suas pró­ ples emergência de sua experiência para
prias invenções, em que medida ela imagina serem controladas. As imagens que se formam
obter o crédito de seus interlocutores. Na na criança são, simultânea ou sucessivamen­
verdade, ela parece poder percorrer todos os te, a impressão recebida das coisas e a tradu­
intermediários entre a credulidade ou a auto- ção fantasista que delas pode fornecer o
sugestão e a mistificação. Eis aí duas atitudes material habitual de seus devaneios. Ela quase
intimamente solidárias e que sãó constante­ não dispõe de analogias verificadas. E até
mente combinadas no mesmo indivíduo. O mesmo quando souber fazer um emprego
gosto pela mistificação desenvolve-se sem­ racional das noções ao seu alcance, as
pre sobre um terreno de credulidade pes­ explicações que poderá tirar disso terão, fre­
soal. É uma desforra, sobre o outro, das qüentemente, o aspecto de fábulas. É, aliás,
ingenuidades passadas ou potenciais, uma com freqüência, através de fábulas que o
vantagem preventiva e uma defesa, ao mes­ adulto responde às curiosidades dela. Muitas
mo tempo que o prazer de poder ceder à invenções sobre as quais a criança tece
atração do insólito e do maravilhoso, atri­ fantasias receberam seu tema do adulto. A
buindo ao parceiro o eventual ridículo da ficção não é apenas natural da criança, ela lhe
situação. O interlocutor é considerado, em é também proposta ou imposta.
graus diversos, como bobo, testemunha, Seus desenvolvimentos são, contudo,
cúmplice. Quanto menos uma opinião ou extremamente variáveis segundo os indiví­
uma história tenham fundamentos objetivos, duos. A fabulação toma-se, em alguns, uma
mais lhes é necessário o do assentimento verdadeira mitomania. Quando a criança quer,
público. Partilhar uma ilusão é dar-se um portanto, fazer do adulto seu bobo ou seu
motivo suplementar para dela se convencer. cúmplice, o tom toma-se com freqüência,
Na criança, a necessidade de convicção jovial e de um igualitarismo muito livre. Ela
não ultrapassa, habitualmente, o simples limita-se, em outras, a uma procura mais ou
prazer de imaginar. Sua fabulação é lúdica e menos aleatória de analogias pelas quais o
é por isso que faz parte de suas atividades sentimento da criança procura exprimir-se.
naturais. Ela está também longe da explica­ Ela responde, então, a disposições ou a insu­
ção controlada e do que o adulto encara ficiências mentais que mudam сота a idade e
170 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

com os sujeitos. As invenções da criança mesmo aproximar-se da fuga das idéias sob
estão muito longe, na verdade, de serem sua forma extrema ou maníaca, em que as
sempre imputáveis a um excesso de imagina­ simples associações sucessivas dão lugar a
ção. Elas não são apenas uma forma de expli­ uma dispersão causada pela irrupção, nas
cação ou de compreensão facilmente acessí­ conversas ou nos atos, das solicitações per­
veis para ela; elas traem, com freqüência ceptivas ou mnésicas mais estranhas durante
também, uma espécie de incontinêneia idea- as representações.
tiva, que denota uma fraqueza particular das
condutas intelectuais. G...el 6; “A gente corre dentro do vento;
é pesado. O sol é m ais gordo que isso (um
RELAXAMENTO DA IDEAÇÃO projetor de globo esférico grande). Ele quei­
m aria a gente se tivesse gases, que fa ria m a
A maior fabulação é observada nas gente saltaraté o sol. A gente cairia em cima,
crianças cujas distrações são mais repentinas ele queim aria a gente. - Por que o sol nos
e mais freqüentes. Sob uma influência qual­ queimaria? - Porque ele tem fogo. - Existe al­
quer, bruscas reviravoltas sobrevêm em suas guém que faz esse fogo andar? - Não, ele anda
respostas ou em seus relatos, das quais elas se sozinho. -O solé grande? -É.- Ele é maior do
apercebem mais ou menos e as quais elas que esta sala? - Ê. - Ele não entraria aqui? -
tentam harmonizar com o conjunto através Não, ele é m aior do que a casa. M ais alto.
de outros rodeios e de novas divagações. Você ia ver, se ele entrasse aqui, todos os
Esses saltos de atenção podem confinar com papéis iam queim ar e os papéis lá fo ra
a fuga das idéias. Inicialmente descrita como tam bém . Escuta! Ele não se comportou direito
um efeito da excitação intelectual e da exube­ (ela escuta censurarem um a criança na
rância imaginativa ou ideativa, essa fuga pa­ classe ao lado). Nós estamos na prim eira
rece, sobretudo, imputável a um relaxamen­ série. A gente vê os m olequínhos da prim eira
to das condutas intelectuais mais elevadas. As série. Ah! como fic o u em baralhado! (os fio s
significações mais ricas dão lugar, gradual­ do projetor).”
mente, a combinações onde abundam as a-
nalogias brutas e aproximativas, as simples Aqui, diversões totais, devidas a per­
aproximações de vocabulário, as assonân- cepções auditivas ou visuais quaisquer, mis­
cias, encontros puramente episódicos de turam-se com as substituições de objetos ou
impressões e de automatismos. Entre os ter­ com as digressões que mantêm alguma relação
mos sucessivos, as relações tomam-se cada com a representação inicial. O sol sucede ao
vez mais contigentes, ou seja, elas estendem- vento, o que ê “gordo” ao que é “pesado." A
se a um termo decrescente desses termos, e ignição solar evoca o destino dos homens
Heilbronner até mesmo reduziu a fuga das que dela se aproximariam ou dos papéis de
idéias ao fato de que elas têm, cada uma, um que ela se aproximaria. O tratamento por vo­
modo qualquer de associação com aquela cê aparece ao mesmo tempo que o relaxa­
que a precede com a que a segue, mas não mento das idéias.
com as mais afastadas. Não há tema comum
ao conjunto. J. t...ni 7;2 gaba-se de ter navegado
Os casos mais aparentes de fabulação na “Você não tem medo que o barco afunde? -
criança são, efetivamente, aqueles em que as Ah, não, cara.” Ela conta, então, que viu um
associações são feitas pouco a pouco, barco afundar enquanto estava no porto de
contrariamente ao adulto, que obedece, de Toulon. Havia pessoas a bordo. Houve muitos
preferência, às exigências da ilusão, seja por afogados. Um único homem foi salvo. “Então
si mesmo, seja por outrem. Ela pode até võcê viu os afogados. - Vi eu vi todos eles. Eles
FABULAÇÃO E TAUTOLOGIA 171

estavam no fu n d o e depois subiram . - Você os boca grande, dentes e um a coisa aqui (ela
viu no fundo da água? - Vi, quando eles passa a mão sob o queixo e sob as orelhas). -
estavam no fu n d o . - A água era profunda, Uma barba? - Ah, não!- O quê? - Uma coisa.
muito profunda? - Ah era. - Mas não é difícil - Que coisa? - Uma queixada, ora! - O que
ver numa água profunda? - Eu olhei com eles fazem com essa queixada? - Nada, ora! o
binóculos, não com luneta. - Você sabia que senhor tem um a e não fa z nada com ela. - Eu?
havia afogados? - Não. Mas eram m eus e eu Eu tenho uma queixada? - Tem, a í (mostra o
peguei. São os meus. - Você não teve medo? - queixo). Todo m undo tem um a. - Então, os
Ah, eu olhei. Eu dissepara m im mesmo "Que tubarões são como os homens? - Claro que
se d a n e". - Como? - Д eu não queria nem não, têm um troço aqui (ela descreve um
saber, eu não era o dono do barco.” sem icírculo), e um outro troço que entra
dentro. Tem no dicionário. - Você viu isso no
Neste último exemplo, o desejo de dicionário? - Vi. - Não no mar? - Vi. - Por que
assombrar, a bravata, a zombaria passam você não traz um tubarão aqui? Iria divertir
para o primeiro plano ao mesmo tempo que todo mundo. - Ah, bom! O professor bateria
a trivialidade, mas a falta de nexo da impro­ em m im epuxaria m inha orelha. O diretor é
visação permanece visível. A fabulação se­ m au e a professora também. - Você chama os
gue, de preferência, as oportunidades que o tubarões pelo nome - Chamo. - Como? - Os
discurso oferece â imaginação, já que não tubarões. - Eles não têm nome? - As baleias
pode prevê-las e ordená-las. têm.”

L...ges 8; “O que você vai fazer quando Aqui, é a dramatização, sob forma pessoal
crescer? - Como m eu pai, eu vo u fa zer aviões. de suas representações, que leva a criança a
- Você nunca andou de avião? -Já. - Onde? - fabular. É freqüente o procedimento, no
No mar. - Em que lugar? - No mar, onde têm adulto também, de fazer-se passar por teste­
aviões. - Mas onde? - Onde o m ar encontra o munha direta ou de colocar-se na cena, seja
Sena. - Você foi lá? - Fui, no m ar onde têm por vaidade, seja para impressionar mais atra­
tubarões. - Você viu òs tubarões? - Não, eles vés de seu relato. Mas à criança falta certeza,
são maus. - Por quê? - Porque têm um a boca mesmo na ilusão. Ela não sabe reduzir uma
grande. - Mas você também não tem uma espécie de resistência entre o imaginário e o
boca grande? - E eles mordem. - Você anda real. Donde certas hesitações iniciais, restri­
sempre de avião? - Às vezes de domingo; ções e mesmo contradições sobre as preten­
quase toda quinta eu vou ao clube. - No clube sas fontes de seus conhecimentos: a visão
têm tubarões? - Não, os tubarões nadam e direta ou o dicionário. A maneira pela qual as
elas não nadam . - Quem? - As pessoas; têm imagens se sucedem é bem aparente. Seu
um as que não nadam .- É só no domingo que vínculo é, no conjunto, bem frouxo; é de uma
voê vai ver os tubarões? - Não todo domingo. imagem àquela que a segue que existe uma
Precisa passar dois domingos, no terceiro eu relação, cuja precisão, aliás, deve, na seqüên­
vou. M eu p a i não pode ir lá todo dia. Ele cia, ser retificada ou completada freqüente­
conserta as luzes, as rodas do hidroavião, ele mente. Há como q u e uma tentativa para dar
as enche. - Onde você vai ver os tubarões? - a cada imagem, evocada pela precedente,
Eu vou ver lá onde está cheio. - Mas onde está seu local exato entre circunstâncias ou conhe­
cheio deles? - No mar, m as eu não sei onde. cimentos que a criança não pode evitar. Mas
- Quando você chega na beira do mar, você as correspondências só são fixadas mais tar­
vê os tubarões? - Vejo. - Eles vêm perto da de. Assim faz a criança com a “queixada”, em
beira? - Não, eles vão no meio. - Como você que ela parece identificar, apenas secunda­
pode vê-los? - Eu vejo de longe. Eles têm um a riamente e por analogia, o queixo.
172 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Esse caminhar termo a termo pode, por tinha um a ainda. - Ela quebra às vezes? -
si só, levar a uma certa incoerência ou contra­ Quebra. - Como? - Porque não é m uito sólida.
dições, de aparência fabulatória. - Como ela pode se quebrar, contra o quê? -
Porque ela pode cair. - Onde ela cai? - No céu.
V...aux 7; 1/2 “Você já viu o mar? - Ah! Vi - O que é que não deixa que a lua caia? - No
com m eu tio e depois com m inha tia. - Como céu. - Sim, mas o que é que não a deixa cair?
o mar é feito? - É n o Sena. - O mar e o Sena são - Porque ela tem asas. - Como é que ela pode
a mesma coisa? - No Sena, têm peixes, no mar, cair?- Porque ela não tem asas. - Ela tem ou
não têm. - Qual é o maior dos dois? - Ah! é o não tem asas? - Ela tem. - Como ela pode cair?
Sena, ele vai longe. - O mar é grande? - - À? vezes, as asas não fu n cio n a m mais. -
Grande como o céu. - Você já tomou banho Quem não as deixa funcionar? - Jesus.”
de mar? -Já, com peixes. - Ora! Você disse que
não tinha peixes. - Tem, tem um m ar onde Vê-se como, de cinrcunstância em
têm peixes. Eu segurei num a parede. - A água circunstância, conforme as necessidades
do Sena é boa? - Д ê salgada. - De onde vem da explicação, um sistema tende a se cons­
a água do Sena? - Do mar. - E a água do mar? tituir. Mas o que lhe permite estender-se
- Do Sena. - De onde vem a água da chuva? - é também o que o tom a frágil, pois, reunin­
D eParis.” do-se cada termo, não ao conjunto, mas ao
termo precedente, o conjunto fica incoe­
A fragilidade das associações entre rente e, por vezes, contraditório. Embora pe-
termos simplesmente consecutivos resulta das remptoriamente afirmado, permanece um fato
comparações que a criança deve fazer. A condicional ou intermitente: a lua tem ou não
confrontação dos objetos dois a dois faz, asas, conforme trate-se de explicar que ela
freqüentemente, com que se atribua a apenas fica suspensa no céu ou que está sujeita a cair
um o que pertence aos dois ou a este o que só e a se quebrar; ela quebra-se ora entre as
é verdadeiro para aquele. Para opor o Sena mãos de Jesus, para formar o sol, ora porque
ao mar, a criança começa dizendo que há é frágil e porque cai. Do mesmo modo, ela é
peixes em um e não no outro, mas a água de duplicada para explicar que subsiste mesmo
ambos é salgada. Sobre as divagaçoes que após ter constituído o sol. Esse caminhar ao
podem disso resultar, a fabulação procura acaso, de detalhe em detalhe, é freqüente na
jogar um véu de coerência. criança.

NECESSIDADE DE JUSTIFICAÇÃO N.. .é 6; conta que fez carboneto explodir


E DESORDEM DAS IDÉIAS em suas mãos. “Isso não matou você? - Não.
- Não queimou você? - Não. - Como isso
Para justificar o que acaba de adiantar, a aconteceu? - Eu coloqueipapelão em m im . -
fabulação pode, desse modo, tomar-se a fonte Você tinha papelão em volta das pernas, dos
de novas associações. braços, da barriga? - Tinha. - Como você tinha
esse papelão? - Eu acbei. - Mas você podia
P...ot 6; “Como Jesus pode fazer o sol? - andar? - Não.”
Com pedaços de lua (ela tinha dito,
anteriormente, que as estrelas sãopedaços do Ajustificação gradual pòde, ainda, tender,
sol). - O que que é a lua? - É quando fic a não à acumulação das circunstâncias que
escuro. - Mas o que é? - É um a bola. - Ela é completam objetivamente o sistema, mas das
grande? - Д como o s&l. - Existem várias luas? que explicam as possíveis insuficiências do
- Existem.- Quantas? - Pode ter duas. - Por que testemunho. Ela é, então, de precaução e de
duas? - Porque se a gente quebrasse uma. defesa e denota, por conseqüência, um certo
FABULAÇÃO E TAUTOLOGIA 173

controle, senão sobre a coerência do próprio ferro. - Com o quê? - Com máquinas.” Outras
relato, pelo menos sobre o crédito a obter do vezes, são relações sensíveis, mas feitas em
ouvinte. desordem: “Tem vento na luz” indica, talvez,
uma dessas borrascas em que o vento parece
A.,A...dre 6; a respeito de urna bomba fazer o sol reluzir. A associação perceptiva é
que alimentaria o Sena. “Você a viu? - Elafic a mais manifesta nessa comparação: “Ele voa,
longe. - Quando você foi vê-la? - Q uando a como os pássaros.” Movimento semelhante,
gente chegou, era quase meia-noite. - Estava mas traduzido por um corpo, em vez de
escuro? - Os bicos de gás estavam acesos no permanecer invisível como ocorre com o
pátio. - Como você a viu então? - A gente fo i vento. A uma necessidade semelhante de
vê-la com um a luz. - Quem segurava a luz? - figuração, deve responder o tema dos homens
M eu p a i” levados pelo vento até o céu, depois caindo
novamente na terra, segundo peripécias que
Para evitar uma descrição de que ela não parecem encadear-se automaticamente, cada
saberia, provavelmente, como se livrar, a uma como complementar da precedente.
criança começa citando as circunstâncias que Assim, a fuga das idéias pode ter como efeito
a impediram dever: distância, escuridão. Mas misturar imagens familiares, ou mais fáceis e
como afirmava ter visto, ela deve acrescentar mais concretas, às que o objeto impõe.
a que lhe tornou a visão possível: uma luz Eis aí uma espécie de insuficiência cujos
segura por seu pai. resultados, quando conservam uma aparência
O relaxamento do sistema, para o qual de oportunidade, poderiam passar por in­
deve tender o relato ou a explicação, ocasiona venção. Um pensamento orientado pela lógica
também, freqüentemente, o desenvolvimento segue de perto sua direção puramente abs­
de temas parasitas, que devem alguma trata. É unicamente nos momentos em que
aparência de continuidade unicamente aos sua coesão enfraquece que ele se abre às
automatismos de suas associações. fantasias da imaginação e às digressões fi­
gurativas. Freqüentemente, a espontaneidade
C...aux 7;l/2 “O que é o vento? - O vento da alegoria pareceu ligada ao relaxamento
está no céu. Tem m uito vento. Às vezes, ele maníaco das idéias. Certos momentos da
leva hom ens para o céu. Eles caíram de novo; criação poética ou literária podem dever algo
a gente não via mais; e depois a gente viu de a uma espécie de embriaguez, dita inspiração.
novo. Q uando eles caíram, eles morreram; a Naturais ou factícios, esse relaxamento da
gente ouvia ospés deles. - O que o vento faz? razão, esse abandono do pensamento à
- Ele voa. - De onde? - Do chão. - Mas onde ele sensibilidade verbal ou plástica puderam
fica? - Ele vem de debaixo da terra. Ele voe, ser um causa ou um procedimento de enri­
como os pássaros. - Do que o vento é feito? - quecimento estético. Mas o poder de esco­
Deferro... Eu vi, não, era de madeira, eu vi. lher entre as sugestões da metáfora ou da
- Ele é feito com o quê? - Com m áquinas. - imagem deve subsistir, senão para opor às
Onde estão essas máquinas? - Em Paris. - O analogiasum crivo bem cerrado, pelo menos
vento não é fabricado? - Tem vento na lu z ” para combinar a pertinência delas ao valor
expressivo das mesmas. É a extrema fragi­
A desordem destas respostas, das quais lidade desse poder, na criança, que toma
várias parecem ininteligíveis, adapta-se muito evidente por quais ligações elementares a
bem ao que é descrito como fuga das idéias. imagem pode se impor e se desenvolver.
Algumas relacionam-se não mais ao objeto
da conversa, mas unicamente aos termos da P...y 6; “Como é o sol?... O que é?... De
questão precedente: “Do que ele é feito - De que é feito?... De madeira? - Não. - De quê? -
174 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

De ferro. - E a lua? - De ferro também. - Ela onde vem o vento* - Vem do céu. - O que é o
brilha? - Brilha, porque lustraram bem com céu? - Não sei. O vento quebra tudo; ele
um pedaço de pano. - Como puderam fazer quebra tudo. - O céu fica longe? - Fica, é l á o
isso?... Quem a fez brilhar? - Um homem. - céu (gesto no ar). - Como ê feito? - Parece... É
Como ele fez? - Para que ela fiq u e limpa. - feito... Eu não sei. - O que existe no céu? -
Quem é o homem que a fez brilhar? Um Água, vento, tem tudo, tudo, tudo. - E o que
homem como eu? - Não, ê um pianista que mais? - Não sei. - A água do céu, o que é? - Não
fa z tudo. - O que que é um pianista? - Ê um sei. - Como você chama essa água? - Todas as
homem que guarda os carros. - É mesmo um pessoas que têm lá em cim a, elas abrem as
pianista? Não é um garagista? - Д um gista. - torneiras, a água cai, depois elas fogem e
E um garagista de Boulogne que fez o sol chove. - Então é a chuva? -É.- Quem são essas
brilhar? -É.- Você o conhece? - Não. - Se você pessoas que estão lá em cima? - Não sei... são
fosse garagista, você poderia fazer o sol bandidos. - Nós, nós poderíamos ir lá? - Não.
brilhar? - É. - Como você faria? - A gente pega - Como eles puderam ir lá? - Eles pegaram
um pedaço de pano, esfrega em cim a. - Como um as escadonas; subiram e largaram a
você faria para esfregar em cima? - A... a... a escadona... Eles vêm roubar nos mercados. -
gente esfrega com a m ão e um pedaço de Mas se eles largaram a escada? - Ah, eles
pano. A gente esfrega com força na lua para ainda têm lá em cim a. Elespõe para baixo e
que ela brilhe. - Onde está a lua? - No céu. - descem. - Não é verdade o que você está me
Para esfregar a lua é preciso ir para o céu? - contado. - É. - Como você sabe? - Eu sei. -
Não, ela deita no chão. - E o sol também? - Como você sabe? - Foram uns hom ens que
Também. - Quando eia está no chão, como contaram para o m eu pai, e, para todo
ela pode voltar parà o céu? - Ela voa. - Como m undo. - Seu pai contou isso para você? - É.
ela voa? - É o vento que empurra. - Quando - Não, é mentira. - Não... não (ele cora). -
não há vento, ela fica no chão? - F ica” Quando você conta mentiras para seu
irmãozinho ele acredita? - Acredita. - E eu, eu
A falta de nexo das idéias é, aqui, grande acredito? - (Erguer dubitativo dos ombros).”
o suficiente para que a criança nunca fique
embaraçada por uma inverossimilhança. A É a ignorância ou a indolência, marcadas,
concordância de sua resposta com a última primeiramente, por numerosos “Não sei”, que
pergunta feita lhe é suficiente. A esse ponto, suscitam, enfim, o gênero de explicações mais
chega a não haver mais nem mesmo metáfora fácil, mais pueril, as que se limitam a invocar
possível, pois em vez de ser do tema como a atividade dos homens para dar conta dos
que seu eco no plano das imagens, cada novo fenômenos naturais. Chegando a esse nível, a
detalhe é dado aqui como expressão literal de criança tem apenas que encadear as circuns­
si mesmo, sem respeito a suas relações com o tâncias ou instrumentos habituais dessa ação,
conjunto. Essa resposta termo a termo às mas com o sentimento de que, a essas respos­
dificuldades da situação ou às objeções pode, tas, falta seriedade. As associações têm algo
aliás, assumir um aspecto nitidamente lúdico. de automático: “fugir” suscitou a expressão
“bandidos” e bandidos a “roubar nos merca­
P...y 9; (irmão do anterior). “Há vento dos.” Desse modo, o tema inicial é como que
sobre o Sena? - Não. - O que é o vento? - Não parasitado por um tema acessório, que se de­
sei. O vento, ele quebra as árvores. - Como ele senvolve conjuntamente com ele, mas sem a
quebra as árvores? - Não sei. - O vento é forte? menor ligação lógica. Através disso, verifica-
- A h é, é forte. - Você já viu o vento? - Vi. - se a queda de registro intelectual que corres­
Como se vê isso? - Não sei, não se vê. - Então ponde à fabulação. O jogo desenvolve-se num
como a gente sabe que existe vento?... De plano de onde o esforço critico está ausente.
FABULAÇÂO E TAUTOLOGIA 175

EXTRAVAGÂNCIA E INCOERÊNCIA nós. - E o que mais ele tem como nós? - Os


olhos, o nariz, a boca, as orelhas e tam bém as
A criança deixa-se levar, então, por mãos. - Ele tem as mãos como nós? - Tem as
associações, às vezes extravagantes, que mãos e tam bém ospés. Ele tem tudo como nós.
podem, aliás, dar satisfação a certas maneiras - Você já viu os pés do sol? - Não, eu vi o Papai
pueris de se fazer valorizar ou, ainda, a com­ Noel. Ele está todo vestido de carne. Eu o vi na
plexos que não poderiam ser reconhecidos rua. - Como o Papai Noel está vestido de
de outro modo. carne? - Não sei... Ele está de roupa. - O que
a gente vê do sol quando a gente vê o sol? - A
T...ni José 7; “Seus cabelos estão vivos? - lua. - O que a gente vê do sol? - A gente só vê
Ah não, são fios. - Fios? - Pêlos. - Às vezes lhe a cabeça e tam bém os olhos, e também o
cortam os cabelos? - A h sim . - Por quê? - nariz, e tam bém a boca.- Como é que a gente
Porque senão fica ria um a juba, como os não vê outra coisa? - Porque está alto. - O sol
leões. Eu teria m uito cabelo. Eu vi um homem é grande? - Como agente. - Se nós estivéssemos
que com eu sessenta pessoas. Ele era gordo no lugar do sol, os outros nos veriam como
também. Jogaram fa ca s em cim a dele. Ele ele? - Veriam. - Como ele é? - Redondo. - E o
morreu. Eu mesmo m atei um tigre” que mais? - Não sei.”

A comparação de seus cabelos à juba do Consideradas em seu conjunto, as res­


leão desvia a criança, bruscamente, para um postas desta criança aproxima-se, frequen­
tema de voracidade e de assassinato, desor­ temente, da incoerência, porque seu tema
denado o suficiente no detalhe dos atos e dos antropomórfico, que reduz a explicação de
personangens, para que ela própria acabe se toda realidade a atos ou a traços de sua
tomando o herói. Este exemplo de fabulação experiência direta e pessoal, exprime-se e
mostra bem a simultaneidade da grandilo­ prolonga-se em descrições e em detalhes mal
qüência megalomaníaca e da regressão inte­ ajustáveis aos objetos inacessíves dos quais
lectual. Os temas da fabulação são, neces­ ela fala. É-lhe necessário dar ao sol e à lua,
sariamente, do mesmo nível que ela, ou seja, assimilados ao homem, as mesmas partes do
levam a criança às imagens mais pueris de seu coipo, mas ela se dá conta de que estas não
material intelectual. são visíveis. Assim, ela é perpetuamente
encurralada entre uma suposta semelhança e
P...ot 6; “O que que é o sol? - É a luz. - as diferenças reais, porque é incapaz de
Como ele ê ? - Ê alguém. - Como seu pai? - É. distinguir entre o objeto e a figuração mais ou
- N ãoé seu pai? - Ah não. - O soléum homem? menos aproximativa ou fictícia deste. É então
-É.- Você tem certeza? - Tenho. - Como ele é que ela recorre ao personagem mítico do
feito? - É alguém que compra criancinhas, e Papai Noel, de que ela, simultaneamente,
depois são homens. - O sol terh criancinhas? - parece sentir bem a irrealidade, visto que o
Ele tem osJesus. - E a lua? - A lua são pessoas. veste de carne, como se sua forma carnal
Éalguém que tem asas. - Se eu tivesse asas, eu fosse apenas um disfarce. Mas essa é uma
seria como alua?- A h n ão.- Por quê?- Porque diversão que não lhe traz nenhuma segurança,
a gente nunca é igual. - A lua é má? - É . -E pois ela nem sempre sabe deixar o plano das
o sol? - Também. - O sol vai morrer? - Não. - assimilações concretas e completas pelos
Por quê? - Porque está no céu. - E a lua? - Não. prazeres da ficção, do símbolo e da abstração.
-Por quê - Porque está no céu. - Por que quem Seus prazeres são de uma outra espécie. São
está no céu não morre? - Para veras crianças os que respondem às facilidades intelectuais
que são boazinhas. - O sol vê? - Todas as do jogo. A criança encontra uma ocasião de
crianças. - Como ele vê? - Ele tem olhos como entregar-se a eles nas fábulas recebidas do
176 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

adulto. Estas não a colocam, habitualmente, é alto? -É.- Alto como o quê? - Como o teto. -
ao nível da crença, mas a levam ao da Você o vê sempre? - Vejo. - Onde? - Na
fabulação. cham iné. - Então sua chaminé é muito grande?
- É . - O que ele estava fazendo na chaminé? -
D...net 6; disse que o dia e a noite são Ele traz brinquedos. - Deus tinha um papai? -
feitos pelo Papai Noel: “O Papai Noel vai Não. - Antes de D., o que havia? - Uma
morrer? - Ele dá brinquedos. - O P.N. pode criança. - Quando Deus era criança, ele tinha
morrer? - Não, ele já morreu; ele tem um a um papai? - Tinha. - Quem era? - O diabo. -
feridinha, m as elepode voar. - Quem fez uma Como? O papai de Deus era o diabo? - Era. -
feridinha nele? -E le caiu naspedras, e depois O diabo é bonzinho?- Não. - E Deus?- É. -O
saiu muito, m uito sangue. - Faz tempo que que havia antes do diabo? - Um outro homem.
isso aconteceu? - Foieléque nasceuprim eiro. - Quem era esse homem? - O m enino Jesus. -
- Ele morreu faz tempo? - Faz. - Como a gente O menino Jesus existia antes do diabo? -
fica quando morre? - Ele tinha um arra- Existia. - De onde o diabo veio? - Ею céu. -E
nhãozinho e cortaram suas pernas e antes do menino Jesus, o que havia? - A
colocaram asas no lugar. - Quem fez isso Virgem María.”
nele? - Foi um homem que cortou as pernas
dele epôs asas. - Por que fizeram isso com ele? Aqui, ainda, afrontam-se as tradições e
- Porque o P.N. é bonzinho e queriam que ele as aptidões representativas da criança: a
trouxesse brinquedos. - Ele morreu? - Não, ele imensidade atribuída a Deus, mas sua redu­
ainda está vivo, pára colocar nas chaminés, ção imediatamente consecutiva a grandezas
depois para ir às lojas para procurar visíveis, às que lhe oferece o aposento, o
brinquedos.” espaço delimitado em que ela se encontra
então e finalmente às de um homem capaz de
Morto no início, o Papai Noel não está entrar no aposento: a existência de Deus,
mais no fim. No intervalo, a fabulação fê-lo anterior a todas as outras e, contudo, Deus-
passar de uma existência, tal como se pode criança devendo ter um pai, esse pai, um pai
descrevê-la após a morte, e cuja afirmação é e assim por diante, como é necessário imagi­
aqui, provavelmente, apegas psitacismo, a nar para os homens. Assim, a criança vai
uma existência realista, explicando, através recuar de personagem em personagem, na
de uma transformação orgânica, de uma ordem em que eles retomam à sua memória.
operação cirúrgica, sua passagem da vida Ela transforma até mesmo o par-oposição
terrestre à vida anfíbia: terrestre e aérea. As­ Déus-Diabo em p>ar-ffliação. As relações das
sim, a criança acomoda, segundo seus meios coisas se fundem, à mercê das necessidades,
de representação, as fábulas do adulto. Fre­ em formas variáveis e improvisadas, que
quentemente, é-lhes preciso contaminar marcam uma regressão do pensamento à fase
diferentes espécies de reminiscências que se da pura reminiscência enumerativa.
deformam mutuamente - morte, chagas, Diante de uma dificuldade insolúvel, a
ressurreição, anjos munidos de asas - mas criança vê-se cair novamente ao nível da
reunidas a sua maneira e segundo um fabulação.
artificialismo ao seu alcance.
G...el 6; “O sol está vivo? - Não, é a lua
N...é 6; “Você já viu Deus? - Vi. - Como que está viva. - Como você sabe? - Porque eu
ele é? - Ele ê grande. - Grande como o quê? - vejo nos livros. - Por que a lua está viva? - Não
Como a parede. - Elé poderia entrar nesta sei direito. O sol está lá longe. A gente não o
sala? - Poderia. - Poderia passar pela porta? - vê bem redondo lá. - De que cor é a lua? -
Poderia. - Então ele não é muito grande. Ele Am arela.- Do que ela é?-De pele. - De p>ele
FABULAÇÃO E TAUTOLOGIA 177

como os seus sapatos? - De pele como nós. - O simples fato de repetir uma fábula do
Ela tem um rosto como nós? - Tem. - Braços? adulto incita essa criança a enfeitá-la, imedia­
- Tem. - Pemas? - Tem e tam bém um a barriga. tamente, com facécias grosseiras. A fabula­
- Ela come? - Come, ela tem um a cabeça ção é um nível inferior de expressão inte­
grande. - Ela fala? - Fala quando ela vê gente. lectual. A fuga das idéias a acompanha fre­
Não tem gente lá em cim a. Só tem o Papai qüentemente; o pensamento vagueia, ao aca­
Noel. - A gente vê a lua? - Não, ê de noite que so, de circunstância em circunstância; os deta­
a gente vê. Ela anda na nossa frente, conos­ lhes reúnem-se para se justificarem um ao
co. Ela nos vê pequenos assim (ela afasta outro, mas, freqüentemente, à custa do con­
as mãos uns 20cm ). Ela sabe que a gente é junto, que se toma mais ou menos incoeren­
grande. Têm m uitas coisas aqui: é um a roda te. Os temas que intervém são, de preferên­
de bicicleta; parece que têm uns quadradi­ cia, os mais familiares, os mais automáticos,
nhos misturados (instrum entos que ela os mais subjetivos. A criança sente bem o
percebe à sua volta, no laboratório); é para caráter lúdico de suas palavras e não pode
saber tudo que a gente vem aqui. E também mais impor-lhes o controle e a disciplina da
os olhos que a lua tem. A gente não a vê bem; reflexão. Inversamente, os temas pueris fa-
ela está escondida pelas nuvens. Elas vão zem-na recair na desordem das amplifica­
longe, longe, no meio do campo. Têm no ções fabulatórias. É assim que as lendas, às
campo, as nuvens que não são tão altas como quais o adulto, por vezes, recorre para res­
o céu.” ponder às curiosidades, que julga intempes­
tivas, das crianças, incita-as a formas absur­
A lua viva, é sua imagem vista em livros das ou triviais de pensamento. Através de
que a criança comenta aqui. Uma seqüência suas invenções despropositadas, as crianças
de detalhes antropomórfícos disso decorre. A lhe pagam com a mesma moeda.
desordem, a confusão destes com observa­
ções sobre o ambiente, a própria incorreção 2 Q Primeirosesforços em direção
sintática indicam o relaxamento em que cai a à coerência intelectual
ideação quando a criança entrega-se à fabu­
lação. A TAUTOLOGIA

M...on G. 7; gabou-sê de que teria É grande o embaraço da criança para


crianças: “Como você vai fazer? - Eu vou com­ ajustar, entre si, os fragmentos de pensamen­
prá-las. - Onde? - N um a parteira. - Como as to face aos quais a colocam suas aquisições
parteiras fazem para ter crianças? - Elas vão diárias, cujas fontes são, aliás, diversas: situa­
procurá-las nos repolhos. Tem um m enini- ções às quais ela mesma se pôs a prova, re­
nho dentro, no campo, que mordeu meu agindo a elas através de condutas apropria­
dedo, é um a outra m enininha que fe z cocô das, noções extraídas das pessoas que a
no m eu dedo. - Mas então ele tinha dentes? - cercam, idéias inspiradas pelas fórmulas
Não, eu senti que ele chupou m eu dedo. - verbais que ela é induzida a ouvir e a utilizar,
Você viu o bebê? - Não. - Como isso aconteceu? sendo que a significação polivalente dessas
- Porque não o tiraram . - A gente não vê os fórmulas aumenta ainda mais a confusão.
bebês que estão nos repolhos? - Não, quando Diante desse material inteiramente formado,
agente os tira. - É preciso abrir o repolho? - É. que ela ainda não sabe como integrar no
- Em todos os repolhos têm criancinhas? - mesmo conjunto, quais vão ser os meios e as
Têm. - E quando a gente come um repolho? condições de sua coerência intelectual,
- A gente não as vê sempre. - Então não têm objetivo necessário de todo pensamento?Tem
crianças em todos os repolhos? - Não." ele, desde o início, mecanismos particulares
178 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

simples para isso atingir? Em que momento e O que é enunciado não o é, evidente­
por quais progressos a criança toma-se apta a mente, sem causa, qualquer que seja a ordem
raciocionar como o adulto? Duas hipóteses dessa causa. Por exemplo, a simples auto-
são possíveis: ou há apenas uma diferença de ecolalia ou a palilalia são uma repetição que,
grau nopoderde reunir, entresi, os elementos na falta de uma significação ideológica,
mais ou menos numerosos que entram no responde a mecanismos sensorimotores ou
conteúdo de um pensamento; ou, então, o motores. Entre as causas pode haver, pelo
progresso de seu pensamento deve fazer a contrário, uma motivação ou mesmo uma
criança passar de uma fase à seguinte, de uma intenção. Dizer “uma mesa é uma mesa”; “um
estrutura a uma outra espécie de estrutura. cão é um cão”, “uma criança é uma criança” é
Isso só pode ser constatado através de um uma fórmula cuja significação pode ser a de
exame minucioso. reduzir estritamente o objeto designado ao
A coerência, na criança, é inicialmente, a que sua definição ou seu conceito permitem
simples tautología. Pudemos procurar deduzir esperar dele. Dizer “esta mesa é uma mesa" é,
a lógica da simples fórmula A é A. Mas, na ainda, acentuar a intenção de classificar o
criança, a tautología não tem essa forma objeto presente, ou seja, o conjunto das
abstrata e conceituai. Ela ainda mergulha no reações sensoriais e práticas que sua presen­
mundo de impressões da criança, no das ça tende a produzir, sob uma noção que ultra­
situações às quais seus atos e sua sensibilidade passa o instante presente, porque é dotada de
a misturam. Então, alguns elementos de uma sanção permanente e reconhecida. Di­
objetividade podem entrar nas fórmulas que zer “isto é uma mesa” marca uma intenção,
a criança tenta construir. Mas, ao mesmo ainda mais formal, de significar que “isto”, de
tempo, elas são ameçadas de contigência, de que podíamos não ter identificado o uso, a
incerteza e, por vezes, de absurdo. Na verdade, estrutura, a natureza, é assimilável a toda uma
o alcance do esforço lógico quase não permi­ categoria de objetos que controlam e permi­
te à criança ultrapassar impunemente a estri­ tem condutas bem determinadas: é dar a sig­
ta identidade, enquanto ela não1puder ul­ nificação, que ainda podia lhes faltar, a um
trapassar o plano de suas impressões con­ grupo de impressões efetivas. Todo conheci­
cretas. mento que se acrescenta a um objeto proce­
A pura tautología é a repetição exata, no de da mesma fórmula, desde que o conteúdo
segundo termo, do termo a ser definido. É a do segundo termo seja nitidamente definido.
forma de pensamento que apresenta menos Atautología pode ser também um simples
riscos, mas que traz também menos sentido. fato subjetivo, uma tomada de consciência. A
Contudo, lógicos e metafísicos discutiram associação que o uso , o ouvir dizer, etc.,
sobre o sentido da cópula “é” e sobre a tinham feito penetrar em mim,, sob forma de
diferença do termo único em sua primeira e hábito ou de automatismo, é, repentinemnte
em sua segunda apresentação. É evidente , retomada, repetida porque agora me dou
que, valorizando a cópula e insistindo sobre conta de que a ligação, de início simplesmen­
a diferença entre A sujeito e atributo, tom a­ te aceita, que unia um grupo de impressões à
se possível extrair disso um sistema do co­ denominação correspondente, é uma rela­
nhecimento ou um sistema do mundo. O ção de significado a significante. Mas pode
segundo A pode, em particular, fazer o pri­ acontecer também - e na criança isso é fre­
meiro entrar no mundo das Idéias ou das ca­ qüente - que, ainda lhe fazendo falta o nome,
tegorias. Para o psicólogo, ele deve conside­ o conceito, as relações adequadas, a criança,
rar os casos e as situações em que a tautología situada ainda pouca acima da coisa, saiba
se produz, assim como sua forma, que pode encontrar somente a própria locução de onde
ser diversa. tinha partido e sobre a qual recai seu esforço.
FABULAÇÃO E TAUTOLOGIA 179

R...au: “Você dorme às vezes? - Durmo. expressos, elétricos. - Como os balões cativos
- O que quer dizer dormir? - A gente dorme.” podem ficar no ar? - Porque eles voam. Eles
colocam algum a coisa para eles descerem.
Uma espécie de desdobramento pode Tem um botão, a gente aperta em cim a. -
mostrar como a tautología é uma definição Como o balão cativo voa? - Porque tem alguma
em potencial, por exemplo, quando, da coisa para fazê-lo voar. N um avião, tem
palavra a ser definida, e tirado o adjetivo aviadores. A gente compra um tinteiro (?).”
derivado.
B...ère 6; “Como é o sal? - Ésalgado.” Em suma, a ação de voar, de descer é
explicada por si mesma. Contudo, a criança
Ela pode também apresentar-se como esforça-se para encontrar-lhe instrumentos,
uma alternância entre dois termos comple­ agentes: o botão, os aviadores. Já é um
mentares: desdobramento entre o efeito e sua causa,
mas o efeito é sempre explicado por si mesmo.
Da mesma criança: “Como os barcos Por mais rudimentar que seja o pensamento
ficam sobre o mar? - Eles nadam . - Como eles tautológico, ele é, contudo, um primeiro passo
fazem para nadar? - Com os barcos.” no caminho da abstração. É uma identificação
Provavelmente, o termo “com”denota a inten­ de algum modo estática, mas já representativa.
ção de enunciar um meio, um instrumento, Ele opõem-se, desse modo, à inteligência
mas ele pode apenas ocasionar a repetição da prática, onde se fundem, em um conjunto
palavra “barco”. dinâmico como em um todo único e contínuo,
os elementos da situação e da ação que a ela
Por que a pedra vai para o fundo da água se relacionam.
e a madeira não? - Ela nada. - E a pedra? - São Interativa no fundo, a tautología coloca
pedras. dois termos já em vista de sua unificação pos­
terior. Contudo, falta muito, na criança, para
A colocação de pedra no plural parece que a tautología tenha, de imediato, a signi­
indicar que o caso individual é reduzido a um ficação analítica de onde resultaria que o se­
fato coletivo, a um fato de experiência usual, gundo termo seria o conceito, o fato geral ao
a uma categoria de objetos que têm propri­ qual se reduziria o primeiro, e que o ultrapas­
edades conhecidas. Mas se tudo isso está em saria, como a regra ultrapassa o caso particular.
embrião na tautología, reduzida a si mesma, A relação estabelecida entre os termos os
como aqui, ela não traz nenhum elemento de deixa, ao contrário, no mesmo plano e, se a
explicação. criança quer justificar a passagem de um para
Outras vezes, ela se exprime como se outro, ela o faz intercalando, na mesma,
desse uma razão mecânica, mas a intenção, operações singularmente concretas. Assim é
assim marcada, não acrescenta nada a seu a maneira pela qual a criança L...cot 6; explica
conteúdo: a origem do pano segundo o esquema de que
o pano é de pano, e cujo realismo elementar
W...er7; “O que éum “balão cativo”?(do representa muito bem o tipo de relações que
qual a criança falou espontaneamente). - É ela é capaz de imaginar no plano mental.
para que as pessoas subam dentro. Elas vão
embora e, quando elas estão no país delas, “De onde vem o pano? - A gente fa z . -
elas descem. - Como elas descem? -É o balão Como? - Com agulhas. - E com o que mais? -
cativo que desce num a garagem grande, e Com pedacinhos de pano. - E de onde
quando é longe demais, elas vão procurar vêm~os"pedadnhos de pano? - A gente co­
um táxi e depois elas chegaram. Têm trens meça rasgando os pedacinhos de pano
180 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

e então depois a gente cola e isso vira o um segundo termo, que é própria da expres­
pano. - Por que a gente os rasga se é para são de todo pensamento, toma-se ainda mais
colá-los de novo? - Ê para colar de novo. - aparente quando a criança se utiliza de dois
Sim, mas então por que rasgá-los? - São outros termos entre os quais ela passa alternada­
pedaços depano. - Por que colá-los no pano? mente, como se fossem origem, causa ou ex­
- A gente conserta. - Mas já que o pano plicação recíprocas.
consertado já é pano, de onde vem o pano? -
Ele vem da lavadeira. - Mas a sua mãe, que é C...ard 6;l/2 “De onde vem a água que
lavadeira, onde ela encontra o pano? - Na vai para o riacho? - Têm pessoas que jogam a
loja.” água. - Onde essas pessoas arranjam essa
água? - Na fonte. - De onde vem a água da
A tendência à tautología é, aqui, evidente. fonte? - Do riacho. - Então, de onde vem a
Interrogada sobre a utilidade de rasgar o água do riacho? - D a fonte. - Mas de onde vem
pano se é para colá-lo de novo, ela se limita a água da fonte? - Do riacho. - Por que existe
a reafirmar: “é para colar de novo.” Ela não uma fonte? - Porque a água do riacho vem. -
sabe dar outra origem ao pano que não seja o Como a água do riacho vem? - D a fonte. - Por
próprio pano. Mas como deve imaginar o que que a água do riacho vai para a fonte? - Porque
o precedeu, a criança supõe que, anterior­ o riacho corre. - Sempre existe água no riacho?
mente, ele foi rasgado. Contudo, ainda não é - Tem... tem vezes que não tem. - Quando não
suficiente ultrapassar o que deve ser ex­ tem água no riacho, tem água na fonte? -
plicado: sendo a identidade do pano consigo Não... - De onde vem a água do Sena? - Ela
mesmo e a inutilidade da operação inter­ vem do riacho. - E a água da fonte? - Ela vem
mediária flagrantes demais, a criança escapa do riacho e também, às vezes, ela vem do
disso imaginando um outropano, ou seja, ela Sena. - Antes de estar no riacho, na fonte ou
passa do simples para o múltiplo, mas sem no Sena, onde estava a água? Ela estava em
realmente ultrapassar o que era preciso outro lugar? - Estava. - Onde?...”
explicar. Ela apenas troca a identidade por
uma semelhança estrita. A duplicação dos DA TAUTOLOGIA
seres não pode suprir o desdobramento do À EXPLICAÇÃO CIRCULAR
objeto e do conceito, do efeito e da causa, do
efetivo e das origens etc. Tentando desse A tautología assume, aqui, a forma de
modo evadir-se da simples tautología, a circuito de dois termos. Seguramente, não há
criança consegue apenas, de início, voltar a nada de absurdo em imaginar o perpétuo vai-
ela, devido à incapacidade para decompor o e-vem de uma água corrente entre a fonte e o
real em termos de plano, de valor ou de papel riacho. Mas a criança apresenta esse caso
distintos. Ela sabe apenas alinhar ou identificar concreto e particular como um fato exclusivo
os objetos segundo a imagem concreta e e universal, ou melhor, ela ainda não sabe
particular que cada um representa para os distinguir entre os dois, e seu pensamento
seus sentidos ou para o seu espírito. Esse permanece sempre intermediário entre a
poder de simples identificação é, aliás, ele explicação e a particularidade. Seguramente
mesmo, uma aquisição. Por outro lado, o ainda, a explicação física, assim como os
insucesso da criança em ultrapassar a fenômenos físicos, podem ser descritos como
tautología indica que ela já percebe a neces­ circuitos mais ou menos vastos que unem o
sidade de fazê-lo. diferente ao idêntico. Mas as operações, seja
A oposição entre a incapacidade para do espírito, seja dos agentes físicos, que levam
ultrapassar o tautológico, que é própria do a essa redução, transformam a simples tauto­
pensamento da criança, e a necessidade de logía em ação criadora. É aí que está a distância
FABULAÇÀO E TAUTOLOGIA 181

entre as possibilidades intelectuais da criança Central. - O que que é o Mercado Central? É


e as do adulto, entre o registro empírico das onde põem carne e legumes. -Têm sementes
impressões e a experiência científica. no Mercado Central? - Têm. - Mas quando não
tem mais no Mercado Central, onde os ho­
O circuito pode ser de mais de dois mens vão procurá-las? - Nos jardins. - Onde
termos sem se tornar outra coisa que um elas ficam nos jardins? - Na terra. - Como elas
simples retorno tautológico. foram parar na terra? - Elas são plantadas.-
Plantadas por quem? - Pelo homem que tem o
HL.art 5; “O que que é o Sena? - É água. ja rd im ”
- De onde vem essa água? - Dos rios e vem dos As sementes são plantadas e encontra­
esgotos. - E a água dos rios? - Pelas avenidas. das na terra. Aqui, ainda, há superposição
- Antes de estar nas avenidas, onde ela estava? exata dos dois termos, qualquer que seja o
- Ela está nos canos. - Como ela fica nos circuito intercalar, que traduz usos familiares
canos? - São canos que fica m em cima da para a criança.
água. - Antes de estar nos canos, onde ela Entremeada de termos diversos, essa
estava? ~No rio.- E antes de estar no rio? - Ela alternância de termos recíprocos ou de pa­
estava em outros canos, isso vinha de outros péis inversos, atribuídos ao mesmo, poderia
rios. - E primeiro, onde ela estava ?-Ela estava ser interpretada como um simples efeito de
nos canos.” inadvertência ou de persistência. Mas os cír­
culos puramente binários onde os dois ter­
A multiplicação dos termos apenas põe mos, os dois papéis podem ser intercambiá-
em evidência quão contigente fica a expli­ veis imediatamente parecem responder bem
cação, dada sob forma geral. Parece que a a um tipo elementar de pensamento, sendo
criança queria escapar do círculo que a leva os próprios termos interpolados apenas uma
sempre do rio aos canos e vice-versa, mas ela vã tentativa para escapar do círculo e para
só chega a diversificar esses termos acres­ procurar um álibi. Ele pode também compli­
centando-lhes outros semelhantes. car-se de uma outra maneira, que faz sobres­
Esses círculos tautológicos são dos mais sair ainda melhor sua natureza. Os termos
freqüentes.-- que se misturam pertencem a dois círculos
diferentes que se fecham, cada um em si
P...et; “De onde vem a água do Sena? - mesmo.
Da fonte. - E a água da fonte? - Não sei - Pense H...vin 6; 1/2. A água do Sena, disse a
bem. - Do Sena? - E a água do Sena? - Da criança, vem dos rios, a água dos rios, de
fo n te ” canos, a água dos canos, de uma fábrica.
“Como pode haver água em uma fábrica? - Da
D...pe 5; “De onde vem a água do Sena? terra. - Têm muita água na terra? - Não. - Tem
- Dos esgotos. - E a água dos esgotos? - Do sempre água? - Não. - Então de onde ela vem
Sena. - Você tem certeza? - Tenho. Vem água quando tem água?... - O que acontece para ter
de outro lugar para o Sena? - Vem. - De onde? água na terra? - P arafazer a água correr. - De
- Pelos canos. - E a água dos canos? Do Sena. onde veio essa água que está na terra? - De um
- Para onde vai a água do Sena? - Para os poço grande. - E a água do poço, de onde ela
esgotos.” vem? - Dos rios. - Mas você não disse que a
P...et: “Onde você vai arranjar sementes água dos rios vinha da terra? - Da fábrica. - E
para plantar na terra? -Eu vou comprar na a água da fábrica? - Da terra. - E a água da
venda. - Como o vendedor as arranja? - São terra, de onde ela vem? - Dos riachos. - O que
hom ens que trazem para ele. - E esses ho­ são os riachos? - Riozinhos. - A água dos
mens, como eles as arranjam? - No Mercado riachos, de onde ela vem? - De um a fonte. - E
182 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

a água da fonte? - Dos canos. - E a água dos próprias necessidades de se explicar as coi­
canos? - De um a fá brica.” sas já lhe fazem sentir a insuficiência da simples
Fábrica e terra, repetindo-se alternada­ identificação que é a tautología. A criança,
mente, formam como que dois anéis, cada assim, procura romper o círculo invocando
um fechado em si mesmo e introduzidos um outros tecidos, outros canos, outras fontes, o
no outro. Entre os termos interpolados, rios e que nada acrescenta ao fato a não ser uma
riachos têm uma espécie de equivalência que multiplicidade indeterminada. Acontece-lhe,
faria deles um terceiro anel. também, de procurar o mesmo resultado
Essa tautología circular pode não ultra­ imaginando um terceiro termo.
passar a simples identificação sinonímica: M...ard 6; “O rio corre num buraco. -
В...lot 7; “O que é a chuva? - Éágua. - De Onde é esse buraco? - N um canto. - Para onde
onde ela vem? - Do tempo. - O que é o tempo? vai a água que cai nesse buraco? - Ela vaipara
- É céu. - E o que é o céu? - É o tempo.” o Sena. - Mas de onde vinha essa água? -Do
Ela pode também exprimir-se sob a forma Sena. - Ela vem do Sena e volta para ele? - Logo
ou por ocasião de causalidade: que ela fo i toda embora. - Mas antes de estar
B...ert 6; “Como é que fica de noite? - no Sena, ela estava em algum lugar? - Q uando
Porque o sol não vem m ais amarelo. - Como chovia. - Então de onde vem a chuva? - Ela
o sol não vem mais amarelo? - Porquefica de vem do céu.”
noite. - Como fica de noite? - Porque o céu não Esta criança, assim como as preceden­
queim a mais. - Por que o sol não queima tes, começa identificando a origem e o fim.
mais? - Porque é de noite.” Ela parece até mesmo querer justificar o mo­
R...er 7; “O que quer dizer que as pes­ vimento circular de maneira mecânica, pelo
soas morreram? - Porque colocam um túm u­ enchimento do que se esvaziou. Mas isso
lo nelas. - Se não colocassem um túmulo ainda não é responder à pergunta feita, e ela
nelas, elas não morreriam? - M orreriam... - apercebe-se disso repentinamente quando a
Quando colocam um túmulo nelas, onde elas pergunta lhe é expressa sob uma forma ex­
ficam? - No buraco. - Por que as colocam no plícitamente local. É nesse momento que ela
buraco? - Porque não as deixam ver. - Por que chega a afastar-se do círculo tautológico.
não as deixam ver? - Porque as colocam no Provavelmente, esse terceiro termo é trazido
buraco.” apenas pela reminiscência empírica; a cri­
As razões que a criança parece dar aqui ança ainda não constrói o ciclo da água pela
são apenas fatos conexos que se acompa­ operação da evaporação e da condensação,
nham em sua experiência e que ela é incapaz mas simplesmente justapõe à imagem da água
de ultrapassar para ordená-los entre si. Ela corrente a da chuva caindo do céu. Contu­
passa, assim, de uma circunstância a outra, do,essa simples triangulação topográfica já
dando-as indiferentemente como causa e faz com que seu pensamento ultrapasse a
como conseqüência. Ela limita-se, na ver­ fase da pura identificação entre a imagem e
dade, a identificá-las, constatar-lhes a ligação seu conteúdo.
habitual. E é assim que enunciá-las suces­ Outro exemplo, desta vez não de origem,
sivamente é, na realidade, apenas uma pura mas de causalidade:
tautología. Se lhe acontece, contudo, de colo­
car essa tautología sob uma forma causai é, %i...nez 6; “Os barcos no Sena andam? -
provavelmente, porque ela é tentada a utili­ É com a água que os empurra. - O que faz a
zar as formas de falar que ouve, antes de água andar? - Papéis. - Como os papéis fazem
conhecer bem a dimensão das mesmas, e sob a água andar5 - Eu não sei... é a água que os
a pressão das perguntas que lhe são feitas f a z andar. - Quem faz a água andar? - Papéis
pelo adulto. Mas é também porque suas e também os barcos. - O que é que faz os
FABULAÇÀO E TAUTOLOGIA 183

papéis e os barcos andarem? - O ven to сот tes? - Ah sim. - A semente vem do caule ou o
velas. " caule da semente? - Д a semente vem do
No início, cada termo, água de um lado, caule. - Mas o caule vem da semente? - Não,
papéis e barcos de outro, é, alternada ou vem da raiz, a raiz vem da terra, o caule vem
sim ultaneam ente, o que dá e о que recebe о da raiz e a semente vem do caule. - Quando
movimento, até que a criança imagina, brus­ a gente coloca a semente na terra, o que
camente, o terceiro term o que, aliás, faz a acontece? - A semente fic a grande, sai cheia
impulsão surgir. Aqui, ainda, o terceiro term o de patinhas, são raízes, e depois vem o caule,
torna possível um a ordem que não seja de e depoisfic a cheio de sem entinhas. - Então a
simples identidade de ambivalência ou de raiz vem da semente? - Vem e depois a se­
alternância. Um círculo pode, aliás, responder m ente vem da terra,- agente colocouprimeiro
perfeitam ente às relações reais das coisas terra; e depois a gente colocou um a semente
entre si; mas afasta a simples identificação da e depois saiu um a raiz e depois o caule saiu
origem e do termo, da causa e do efeito, do da terra.- Quando não tinha sementes, podia
agente e do objeto, porque, sob um a forma ter raízes? - Não, e também ela precisava de
qualquer, intervém um terceiro termo: água para crescer, e também ela precisava
P...er 8; “O que que é a chuva? - É á g u a . sempre de sementes para comer. - Quem
- De onde vem essa água? - D o céu. - Como é precisa sempre de sementes para comer? - A
que tem água no céu? - O que que é o céu? - outra sem ente e a raiz, porque agente não vê
São n u ven s. - E as nuvens, o que são? - Á gu a. m ais a semente, a raiz fic a toda em volta. -
- Água como na bacia? - Não, evaporada. - Quando ainda não tinha caule, podia ter se­
Como ela evapora? - Q uando fa z sol. - Por mentes? - Não, porque a semente cresce ao
que ela evapora quando faz sol? - Para que mesmo tempo que o caule. - E quando ainda
não tenha demais, talvez. - De onde ela não tinha sementes, podia ter caules? - Não.”
evapora? - No chão. - Como é que tem água no O ciclo que vai da semente à semente
chão? - Ela cai do céu. - É a água que caiu do começa não sendo percebido na íntegra. Ele
céu que evapora? - É. - E é a água que eva­ se complica e seus fragmentos unem-se ape­
porou que cai do céu? - É. - De onde vem a nas progressivamente. A semente provém do
água? - Do Sena. - E a água do Sena, de onde caule, o caule da terra e da raiz; depois o caule
ela vem? - Do céu.” da raiz e a raiz, ao mesmo tempo, da terra e da
O terceiro term o, que evita que o círculo água; enfim, com a ajuda da imagem da ger­
seja ou um a simples tautologia, ou uma con­ minação, a raiz é reconduzida à semente. Mas,
fusão de papel, é a evaporação, que explica entre a semente enterrada na terra e a contida
o retom o da água caída no chão ao estado de no caule, a identificação parece ainda obscu­
nuvens no céu. A solução pode, como aqui, ra. Eis aí, aparentemente, a contrapartida da
ter sido dada à criança pela explicação do assimilação tautológica, que retoma imedia­
adulto. Mas ela é, freqüentem ente, obrigada tamente o termo já expresso, ou que confun­
a procurá-la por si mesma através dos frag­ de dois termos vizinhos. Na verdade, esses
m entos de conhecim ento ou de experiência. dois fatos inversos são o indício de uma difi­
R...ault 8; “O que é preciso para que haja culdade essencial. A criança está dividida en­
flores que cresçam? - Sem en tes e ta m b ém tre a necessidade de coerência, cuja forma mais
á g u a . - O que que são sementes? - São se- elementar, mas menos instrutiva, consiste
m e n tin h a s em círculo, é trigo, trigo ou grão. na identificação do objeto com ele próprio,
- De onde vêm as sementes? - D o cau le. - De e sua incapacidade para reencontrar a or­
onde vem o caule? - D a terra, é a r a iz q u e o dem e a unidade de um processo cujos ter­
f a z crescer. - Para que a raiz cresça, o que é mos são múltiplos. Entre eles, o fio de seu
preciso? - Á g u a, te rra .- Não é preciso sem en­ pensamento tende, sem cessar, a se romper.
184 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

O que ela reúne são, primeiramente, em pe­ meios, dos efeitos. É ela que é preciso que se
queno número e como que simplesmente saiba representar a propósito dos mesmos, a
aglomerados. A ordem que lhes deve ser con­ fim de reencontrar, ultrapassando-os um por
ferida só pode ser descoberta reconduzindo- um e todos juntos, sua unidade e, com ela, a
os à ação de que são testemunhas, segundo o coerência do pensamento.
lugar que têm na sucessão das causas, dos
P -

CAPÍTULO IV

AS CONFUSÕES SINCRÉTICAS

É atualmente noção corrente que as procedimentos empregados para indicá-las:


representações da criança são globais ou as mãos da criança, que ela junta para dar a
sincréticas, ou seja, que ela não sabe decom­ impressão de uma bola, levam a uma redução
por o objeto, ou as situações, em propriedades de tamanho. É a forma que substitui o volu­
ou em circunstâncias diversas e que, entre me, reproduzindo, assim, a confusão feita
tudo o que os manifesta à sua sensibilidade oralmente entre a extensão do sol e um círculo.
ou ao seu conhecimento, inclusive o que ela Essas duas maneiras de exprimi-lo mostram a
coloca de si mesma, há fusão e confusão, de que ponto é real a assimilação entre o con-
tal modo que cada traço, mesmo acidental, torno-forma e o contorno-tamanho do ob­
parece valer todos os outros e pode ser dado jeto. Poderia parecer que, à forma circular, é
como que exprimindo a totalidade. Mas, a ligada uma única dimensão possível. Na ver­
confusão vai ainda mais longe. Não apenas as dade, essa correlação não existé, pois ela já
diferentes espécies de qualidades ou de cir­ suporia uma dissociação entre duas quali­
cunstâncias parecem equivalentes no con­ dades reduzidas, em seguida, à identidade. O
junto em que se encontram, mas são dadas fato é que o sol deve evocar, na imaginação
umas pelas outras, como se não houvesse, da criança, uma circunferência momentane­
entre elas, diversidade qualitativa, ou como amente única e isenta de qualquer com­
se fossem, sob nomes variáveis, perfeitamente paração, precisamente porque não é decom-
intercambiáveis. Na idade de 7 ou 8 anos, as ponível em cada um dos traços que permi­
explicações da criança ainda formigam com tiriam compará-la. E é, provavelmente, pela
essas substituições. mesma razão, que a criança parece repelir,
mesmo do ponto de vista da simples di­
CONFUSÃO E SUBSTITUIÇÃO MÚTUAS mensão, a comparação, que lhe é sugerida,
DAS QUALIDADES SIMULTÂNEAS do sol com sua cabeça. Assim como o sol, a
cabeça, de fato, forma um todo indissociável
B...otte 7; “O que é o sol?... Ele é grande?... e, por isso mesmo, incomparável.
CMovimento negativo da cabeça). De que
tamanho é o sol?... Ele é maior do que você? L...cher 6; “E as flores, como elas cres­
- Não. - Grande como o quê? - Como um cem? - Elas crescem na terra também (Como
círculo. - Ele é grande como a sua cabeça? - as árvores). - Como elas crescem? - Elas vêm
Não. - Não tão grande? - Não. - Maior? - Não. pequenininhas e depois elas crescem gran­
- Ele é maior? - É. - Mostre com as mãos Ca des. - Antes de serem pequenas, como elas
criança ju n ta os dedos das duas mãos pelas são? - Elas são brancas."
extremidades, como se os moldasse sobre
um a bola)." Aqui, a criança passa da dimensão à cor.
Mas a razão disso é mais obscura. Tratava-se,
As dimensões indicadas são, evidente­ a propósito do tamanho, no qual a criança
mente, bem flutuantes. Elas referem-se à resumia o crescimento da planta, de remon­
grandeza aparente do sol, mas variam com os tar até o que precede as aparências atuais da
186 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

planta, ou seja, até a semente. Respondeu a rua, de onde vem esse escuro? - Às vezes, não
criança através de um epíteto qualquer ou fic a escum. Acendem os bicos de gás na rua.
não deu ela, como anterior à mais extrema - Quando fica escuro na rua, de onde vem
pequenez, a menor dimensão perceptível, esse escuro? - Não lem bm mais.”
uma cor que, com freqüência, é para ela a
ausência de toda qualidade visível? Sabe-se Aqui, as confusões são múltiplas. Elas
que a criança, freqüentemente, qualifica como têm, por base comum, a fixação da criança às
branca a transparência da água. Semelhan­ circunstâncias concretas, que são as do mo­
tes substituições são, veremos, muito fre­ mento presente, ou que pertencem aos mo­
qüentes. Mas esta exige, sem contestação mentos de sua experiência familiar. Ela é
possível, que o campo da cor e o da grande­ incapaz de dar-lhes a menor generalidade.
za ainda não estejam delimitados. Eis um No início, ela opõe, à pergunta que lhe é feita
outro exemplo, onde a confusão é, eviden­ sobre as causas da noite, o fato de que não é
temente, mais sutil. de noite no momento em que fala. Mais tarde,
ela dará à expressão “daqui a pouco”, que seu
N...et 6; 1/2 “O vento é forte? - Não interlocutor usou como substituta de “esta
m uito. - Mas você não disse que o vento faz noite”, seu sentido literal de “num instante”,
o Sena andar? - É forte, >m as não muito, e, de novo, ela objetará, à pergunta sobre as
porque o vento não vai rápido.” causas da noite, que daqui a pouco não ficará
de noite. O fato real impede-а de considerar
Há conflito, no espírito da criança, entre a eventualidade habitual. Por outro lado, ela
um efeito da força, a velocidade, que ela não sabe desligar-se da prática familiar que
identifica com todos os seus efeitos possíveis, opõe a luz às trevas. Ela dá os motivos dessa
e sua grandeza. Confusão inevitável, enquanto prática, que pertencem à sua experiência
ela não souber distinguir, para deles fazer mais próxima, à sua experiência familiar, em
escalas distintas de comparação, os aspectos vez de responder sobre as causas da noite.
ou efeitos diferentes da força. A causa dessas Ligada a essa simples oposição da escuridão
confusões, que é a incapacidade para imagi­ e da claridade, ela não chega a distinguir
nar para além de impressões reais e concre­ entre escuro e noite. Ela os faz alterarem-se
tas, aparece bem nas respostas seguintes. como equivalentes acoplados. Seu pensa­
mento é radicalmente incapaz de conceber o
N...et 6; 1/2 “Como é que fica de noite? - eventual, o geral, o teórico. Essa incapacidade
Não fic a de noite. - Nunca fica de noite? - Não. para ultrapassar o dado concreto parece ter,
- E quando você dorme de noite? - Não, a lu z por conseqüência, o fato da criança atribuir
fic a acesa. - Por que acendem a luz? - Para ver uma existência substancial ao “escuro”, que
bem. - Por que a gente tem que acender a luz entraria, da rua, nas casas. Mas, aí ainda, não
quando fica de noite? - Porque m inha avó estando a rua sempre escura, os momentos
sempre lê o jornal de noite. - Por que ela de sua experiência entram em conflito. Ela
acende para 1er o jornal de noite? - Porque procura esquivar-se disso através da expres­
não fic a m uito claro. - Por que não fica muito são “àsvezes”, que serve, com tanta freqüência
claro? - Porque é de noite. - Por que à noite na criança, para reajustar seu pensamento
não fica muito claro? - ... Porque a lu z não global e estático à variabilidade do real. Mas,
está acesa. - Por que acendem a luz? - Porque ela é pega, imediatamente, pela oposição
ela lê ojornal. - Está claro agora? - Está. - Esta que a prática usual, entre a escuridão e os
noite, no jantar, vai ficar claro? - Não, senhor. meios de iluminação, lhe oferece: aqui, os
- Por que está claro agora e daqui a pouco não bicos de gás. Dois efeitos de aparência con­
vai ficar? - D aqui a pouco vai fic a r ciam . - trária conjugam-se intimamente: uma com­
Sim, mas esta noite, por que a gente vai ter pleta aderência a conjuntos concretos de cir­
que acender a luz? - Porque toda noite não cunstâncias e oposições esquemáticas de
fic a ciam . - Por quê? - Porque fic a escum . - onde a diversidade e a variabilidade das cir­
De onde vem esse escuro? - Vem da rua. - Na cunstâncias parecem excluídas.
AS CONFUSÕES SINCRÉTICAS 187

Um outro efeito inverso desse apego ao ASSIMILAÇÃO MÚTUA ENTRE


concreto é o conflito entre experiências di­ CATEGORIAS DIVERSAS
versas que começam por se evocar .uma à
outra. Mas o resultado é sempre uma con­ Essas confusões não consistem apenas
fusão perpétua das qualidades e das no­ em passar de uma qualidade ou de uma
ções entre si. circunstância concretas a uma outra, como se
fossem equivalentes pelo fato de que se
L...ges 8; "Como os barcos podem ficar encontram no mesmo objeto ou em situações
sobre a água? - Porque é assim (ela coloca as semelhantes. Elas têm, por vezes, conse­
mãos em V ).-Por que assim (V) ele fica sobre qüências de aspecto mais sistemático; pro­
a água? - Porque é de madeira. - E se a gente vocam a assimilação mútua de categorias
fizesse assim (V) com as pedras? - Afundaria. sobre cuja distinção, contudo, certos filósofos
- Mas se a gente fizesse assim (V)? - Seria fizeram repousar toda experiência possível.
preciso colocar m adeira em baixo daspedras.
Sem isso, afundaria, se agente não colocasse R...au; “O que que é o dia? - Não sei de
m adeira embaixo. - Por que, se a gente nada. - O que é noite?... Você sabe o que é a
colocar madeira embaixo, não afunda? - noite?... O que quer dizer noite? - Não sei de
Porque o gesso, ou então... como jáP... a cal nada. - Quando é que a gente dorme? - N um a
iria para o fu n d o ... como um peixe, se ele não cam a. - Quando? - De noite. - Como você
tivesse asas, ele iria para o fu n d o . - De que sabe que está na hora de ir para a cama?...
são as asas do peixe? - De penas. - E se elas Você iria para a cama agora? - Não. - Por
fossem de pedra? - Ele iria para ofu n d o . - E quê?... Tem sol quando você está na cama? -
se elas fossem de madeira? - Ele iria para o Não. - Onde ele está? - Na parede. - Se você
fu n d o . - Por quê? - Porque se ele tivesse asas saísse da cama, se você fosse lá fora, haveria
de m adeira e se elas fossem assim (mão sol? - Não. - Onde ele está? - Naparede. - Onde
vertical), ele iria para ofu n d o . Seria preciso está essa parede?...”
q u e elasfossem retas (m ão horizontal). Eu sei
nadar (gesto com as mãos).” Essas respostas monossilábicas apre­
sentam algumas obscuridades. Parece que
Forma, substância, órgãos são, suces­ procedem mais de locuções ou de associações
sivamente, invocados a propósito tu e r do habituais do que da reflexão. Pelo menos, a
mesmo objeto, quer de objetos divenos, aos criança não parece capaz de explicá-las. “Na
quais eles não convêm indistintamente. parede”, em particular, é bem misteriosa.
Donde as contradições de que a criança não Parece que, em seu vocábulário, isso é sinô­
chega a se livrar. Para ela, cada objeto é um nimo de “no canto, de castigo”. Faz a criança
aglomerado de qualidades, de que ela pode uma espécie de assimilação entre o desa­
muito bem fazer o inventário sucessivo à parecimento do sol à noite e a criança isolada
medida que as imagina para as necessida­ das outras como punição? A resposta “numa
des da explicação ou da descrição, mas sem cama" à pergunta “quando à gente dorme?”
saber discerni-las entre si. Muito pelo con­ substitui o tempo pelo lugar, evidentemente
trário, ela atribui-lhes uma espécie de unida­ por causa da forte associação que une “dormir”
de fundamental, que é, ao mesmo tempo, a à “cama”. Provavelmente, a criança acaba
de seu ato mental e a do objeto. Assim, o dizendo, após um certo tempo de latência,
efeito, que é comum a diferentes objetos, re­ que se dorme de noite. O tempo pertence,
memorando cada um em sua totalidade ou, portanto, ele também, à consciência que a
pelo menos, em seus traços mais familiares, criança tem de seus atos, mas não é, aqui, tão
mais representativos ou mais espontanea­ distinto para que não possa se deixar, ini­
mente evocáveis, vê-se relacionado com as cialmente, substituir por essa outra dimensão
causas mais diversas. O desejo de coerência, do real que é o lugar.
que a criança, contudo, queria por em sua ex­ Mas, eis um exemplo em que a confusão
plicação, leva apenas a contradições. é muito mais explícita.
188 AS ORIGENS ЕЮ PENSAMENTO NA CRIANÇA

G...el 7; “O sol é grande? - Ele está em simples justaposição, sem integração daquela
todo lugar. - O sol está em todo lugar? - Está. por este. Provavelmente, a criança poderia
- Quando ele está embaixo (ou seja, durante muito bem ter a imagem de várias árvores.
o dia, segundo a criança), ele não está no céu Mas, ela não sabe fazer corresponder a isso
(ou seja, à noite)? - Não, senhor. - Então ele um espaço nitidamente exclusivo de qualquer
não está em todo lugar. - Está, sim, senhor. - outro, porque ela substitui, pela árvore
O que quer dizer “em todo lugar”? - Isso quer coletiva, uma coleção nitidamente imaginada
dizer sempre.” de árvores reais. O objeto que não é único
torna-se o geral. Mas o geral parece invadir o
Assim, a dimensão é definida pela ubi­ espaço das coisas. Ou melhor, a árvore múlti­
qüidade e a ubiqüidade por uma duração pla dissolve-se nesse indefinido de árvores
sem fim. Essa assimilação de uma grandeza que podem reunir-se ou demultiplicar-se entre
com uma presença universal, e desta com si, sem chegar a constituir um conjunto de­
uma persistência ilimitada, indica que o limitado. É a fase, ainda indecisa, entre o
pensamento da criança ainda não transpôs concreto e o abstrato, entre o individual e o
explicitamente a fase em que seu conteúdo geral, a fase do eventual, das noções flutuan­
permanece qualidade pura e em que as quali­ tes, dos termos sob os quais o real passa sem
dades já não são as direções e as dimensões ser a eles integrado, sem neles encontrar sua
ordenadoras das coisas. A impressão difusa expressão total, sem se despojar de suas sin­
que a claridade solar pode dar exprime-se, gularidades individuais. As expressões que
indistintamente, sob as espécies do inde­ servem para a criança escapar das objeções
finido no campo triplo da extensão, dos luga­ mostram bem o caráter fluido de seu pensa­
res ocupados, da permanência. mento: “Têm”, fórmula ambígua que pode
A mesma criança faz uma confusão ainda querer dizer “têm árvores que estão em todo
mais grosseira, mas bem instrutiva, entre “em lugar”, afirmação absurda, mas que simbo­
todo lugar” e “vários.” lizaria a noção da árvore em geral, impossível
de imaginar, quer em um lugar particular,
“Fale-me de coisas que estão em todo quer em lugar algum, e “têm árvores em todo
lugar como o sol. - As árvores. -Aquela árvore lugar”, afirmação evidentemente falsa e que
lá está em togo lugar? - Não, senhor. - Onde significaria, quando muito, uma simples
ela está? - Lá, senhor. - Então as árvores não eventualidade: o possível encontro de árvo­
estão em todo lugar? - Têm. - As árvores do res onde há espaço. É bem o que indica
bosque de Saint-Cloud estão em todo lugar? - também “às vezes”, locução tão freqüente­
Estão, sim, senhor. - Mas elas não estão aqui, mente empregada pela criança em sua inca­
estão? - Não, senhor. - Então, elas não estão pacidad e para ultrapassar a experiência vaga,
em todo lugar? - Às vezes. - As árvores de indeterminada, fortuita, e para reduzir um
Saint-Cloud estão em todo lugar? - Estão, sim, encontro de acontecimentos ou de pro­
senhor. - Mas elas não estão aqui; já que elas priedades a uma relação de necessidade.
não estão aqui, então elas não estão em todo A confusão entre “em todo lugar” e
lugar. - Estão, sim, senhor.” “várias”, que era apenas potencial com as
árvores, toma-se explícita com o sol, sobre o
Para esta criança, parece apenas locali- qual toma a falar a criança.
zável uma árvore particular, individual, a
árvore determinada que ela percebe. O que “A lua está em todo lugar? - Não, senhor.
não é presentemente localizável perde-se na - Por que ela não está em todo lugar como o
vaga representação de “em todo lugar”, que é sol? - Porque não tem m uito. - E o sol? Existem
o indefinido fora do qual permanecem “aqui” vários sóis? - Têm em todo lugar. - Existem
e “lá”, lugares reais. Parece, aqui, que, co­ vários sóis? - Têm, sim, senhor. - Então não é
meçando a ser feita a distinção entre o que se sempre o mesmo sol? - Não, senhor. - E
oferece à imaginação concreta e o que é o existem várias luas? - Não, senhor. - Como
reflexo mental disso, havia, primeiramente, você sabe que existe só uma lua? - Não sei.”
AS CONFUSÕES SINCRÉTICAS 189

Assim, a impressão da ubiqüidade, que a contínuas quer múltiplas, que se deixam ima­
claridade do sol, espalhada por todo lugar, ginar no espaço, mas combinadas a relações
dava, após ter sido resolvida na noção de de existência, de duração, de sucessão ou de
“sempre”, leva à noção de pluralidade, por repetição no tempo.
intermédio da palavra ambígua “muito”, que
pode significar, ao mesmo tempo, uma quan­ J...y 9; “Sempre existiram homens? - À s
tidade contínua e uma multiplicidade. Entre vezes, eles m orrem . - Sempre existiram ho­
essas noções diversas, essa criança é ainda mens? - Têm h o m en s q u e vo lta ra m . - Onde
incapaz de manter delimitações estáveis, eles estavam antes de voltar? - P equ en in in h os.
apesar de, provavelmente, para cada uma, - Antes de serem pequenos, eles foram gran­
haver certas diferenças de fundo intuitivo. des? - N ão. - Antes de serem pequenos, como
Mas ela não pode impedi-las de se fundirem, eles eram? - Eles f ic a r a m g ra n d e s. - Sempre
assim que vê, nasmesmas, grandezas simples: existiram bebês assim? - Às vezes, n ã o tin h a.
nesse plano de generalidade e de abstração, - Quando não existiam bebês, o que existia?
ela tem apenas representações globais, que - N ão sei. - Todas as pessoas grandes foram
mudam com o conteúdo mental e furtam-se à bebês? - Têm p e sso a s q u e têm bebês e ou tra s
comparação. que não tê m ”

Com 9; P..x o ainda confunde grandezas, Visivelmente, nem sempre há con­


tais como pluralidade e comprimento ou cordância entre as respostas e as perguntas,
crescimento: “Por que você precisa cortar o entre o pensamento da criança e o de seu
cabelo às vezes? - P o rqu e a g en te sen te c a lo r interlocutor; e é por isso que o da criança não
n o verão. - Sim, mas por que você precisa é capaz de manter, sob os mesmos termos, a
cortá-lo de vez em quando? - N ão f a z m u ito mesma constância de conteúdo e de sentido.
tem p o q u e eu cortei. - Por que, quando a Mas, essa incapacidade é devida à incon­
gente já o cortou uma vez, precisa cortá-lo de sistência e à mistura de noções, entre as quais
novo mais tarde? - P o rq u e a g e n te tem m uito. o adulto sabe distribuir os objetos de seu
- Por que a gente tem muito? - P orqu e ele pensamento e as modalidades de existência
cresce d e n ovo. - Como é que o cabelo cresce? dos mesmos. A criança começa, aqui, opondo
- Tem m u ito e ele a u m e n ta . - Como é que ele “às vezes” a “sempre”, o discreto ao contínuo,
aumenta?... Ele aumenta sozinho? -A u m en ta . o eventual à regra, segundo sua tendência
- Como ele pode aumentar sozinho? - P o rqu e habitual de imaginar apenas a respeito do
ele tem m u ita co isa p a r a com er. -... O que ele particular, do indeterminado e, por inca­
encontra para comer? - Ele com e m in h a cabeça pacidade, de pensar o geral. Ela substitui a
(ela ri).” idéia da humanidade, que teria sempre exis­
tido, pela dos indivíduos que morrem, como
A progressão das respostas é, aqui, bem ela havia oposto “às vezes” a “sempre.” Mas,
significativa. As primeiras são de ordem pura­ a reunião de termos que ela faz tem algo de
mente utilitária ou pessoal, depois aparece a impróprio, pois parece dizer que apenas
noção de tamanho, mas sob a forma ainda alguns homens morreram ou que os mesmos
imprópria de quantidade, e é apenas por homens poderiam morrer às vezes. Ela res­
intermédio do “crescimento” dos cabelos que ponde como se “sempre” se referisse aos
se opera a passagem entre o número e o mesmos homens de quem ela não admite,
tamanho, aliás, simplesmente justapostos na evidentemente, que sejam imortais. É sua
mesma frase. Essa diferenciação, que é feita inaptidão para pensar o homem categoria
gradualmente, mostra a que ponto a criança que dá à sua objeção essa forma acidental ou
começa a distinguir mal, entre si, noções que contingente, de onde resulta um contra-senso.
são, contudo, o suporte indispensável de A mesma combinação de representações
nossas representações. particulares e de fórmulas contingentes pros­
A dificuldade é ainda maior quando a segue. “Têm homens” introduz, não, eviden­
distinção deve ser feita entre grandezas, quer temente, a idéia de que os homens poderiam
190 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

ressuscitar, como faria crer a interpretação enunciado de uma causa, de um motivo, de


literal da frase, mas que outros homens vie­ uma conseqüência, de um objetivo, a criança
ram. Contudo, se a criança não sabe dar uma permanece, por muito tempo, embaraçada
expressão correta ao seu pensamento, a ver­ com o “como" das coisas ou dos aconteci­
dade é que ela não sabe pensar o gênero mentos. Suas réplicas exprimem, então, rela­
humano, nem indivíduos puramente abstra­ ções completamente heterogêneas.
tos, assim como ela não sabe pensar o tempo,
senão como um tempo comum e particular. H...vin 6; 1/2 “Como existe fogo no sol?
Desse modo, ela é obrigada a confundir o - Ele é redondo.”
“sempre” puramente existencial com o “sem­ T...me8; 1/2 “Existem flores no jardim de
pre” de duração efetiva. São homens particu­ sua tia? Como elas são? - Margaridas. - Como
lares num tempo concreto que ela continua a elas crescem? - No jardim . - Como elas cres­
ter no espírito quando os considera, suces­ cem no jardim? - Na terra. - Como elas cres­
sivamente, como pequeninos e bebês ou cem na terra? - A flo rfic a em cim a da raiz. -
tendo se tom ado grandes, e quando lhes Como existe uma raiz? - Na terra. - Como
atribui crianças, em vez de conftindi-los, do existe uma raiz na terra? - Para fa z e r a flo r
nascimento até a morte, no encadeamento crescer. - Como é que existe uma raiz na terra?
anônimo das gerações sucessivas. - Para que ela cresça. - De onde vem a raiz?
Mas, a confusão entre as modalidades - Pela semente que a gente semeia.”
concreta ou abstrata da existência, particular
ou catégorial dos seres e de suas propriedades, Entre as respostas da primeira e da
pode transferir-se até para as relações do segunda criança, a diferença é grande. No
pensamento consigo mesmo. A dúvida, por primeiro caso, tem-se a confusão grosseira­
exemplo, em vez de formular-se como tal, mente sincrética entre a forma e a essência
parece exprimir-se, no plano da existência total do sol. No segundo, elas chegam perto
real, como uma intermitência, e a afirmação do objeto da pergunta o suficiente para dar a
como uma continuidade. impressão de que ela foi compreendida.
Contudo, elas nunca lhe são exatamente
A...von 7; 3 “As árvores pensam? - Não o apropriadas; em vez de como, elas indicam
tempo todo. -... O sol está vivo? - Ele está vivo onde: no jardim, na terra, em cima da raiz; a
o tempo todo. - ...Como é a grama? - É verde. finalidade, a intenção: para fazer a flor cres­
- É espessa? - Não o tempo todo.” cer; o próprio fato, sob forma positiva e con­
dicional: para que ela cresça, sem isso ela não
Assim, o tempo parece ser, para essa cresceria; enfim, aproximando-se muito da
criança, como uma tela intermediária entre a solução: a origem germinativa da planta.
realidade sensível e suas operações mentais, As respostas mais freqüentes são ou fi­
sobre a qual se projetaria a impressão de nalistas, ou tautológicas:
maior ou menor conveniência recíproca das
mesmas. Eis aí, provavelmente, uma etapa K...vé 6; “Como existe água no céu? -
nas sublimações que levam da experiência Para beber.”
sensorimotora à experiência mental. Mas, se N...et 6; 1/2 “Como é que existe vento? -
já há evolução, no início permanecem fun­ Porque é para ter ar. Se a gente não tivesse
didos planos que convém, ao pensamento vento, a gente fica ria com calor?
normal e adulto, distinguir. H...vin 6; 1/2 “Como é que existe água na
tena? - Para fa z e r a água correr.”
INDETERMINAÇÃO ENTRE Da mesma criança: “Como é que fica
MODALIDADES DO REAL claro de dia? - A gente não dorme sempre. -
Fica de noite porque a gente dorme? - E. - Se
Essa confusões aumentam com a dificul­ a gente não dormisse, não ficaria de noite? -
dade das perguntas feitas. Ainda que já res­ Ficaria. - Ficaria? - Ficaria. - Quando não tem
ponda facilmente ao “por quê” através do sol e não fica de noite, fica claro? - Para ir
AS CONFUSÕES SINCRÉTICAS 191

trabalhar. - É porque a gente trabalha que escuro? - É no céu quefica um pouco escuro;
fica claro? - Por outra coisa.- Por quê, por que então a gente ainda vê escurecer m ais para
coisa? - Para ir fa z e r compras.” fic a r de noite. - Como pode escurecer? - É um
m enino Jesus que fa z escurecer. - Como fica
A resposta finalista é a mais espontânea, de dia? - Porque não é preciso que a noite
na criança mais nova, porque é a mais sub­ fiq u e o tempo todo”
jetiva: exprime, habitualmente, a relação mais
interessante, mais imediata das coisas com o Finalismo e providencialismo misturam-
sujeito. A importância desse ponto de vista é se à identificação tautológica. Sem ser ainda
tal que a inversão opera-se facilmente entre uma resposta ao “como”, ela mostra, con­
os dois termos, fazendo, do interesse, a causa tudo, através de quais vias pode encaminhar-
do efeito. Mas, no finalismo da criança, há, se para isso: descrição, indicação de graus
com freqüência também, a simples consta­ sucessivos, desdobramento entre dois ter­
tação de uma afinidade entre dois objetos ou mos perceptivamente sinônimos - escuro e
duas circunstâncias que são, habitualmente, noite - que, sendo ambos suscetíveis de serem
ligados na experiência dela. Ela tende, então, reduzidos a condições diferentes, abrem
para a identificação, freqüentemente tau­ possibilidades para a explicação.
tológica, do objeto, que já marca, a despeito
de sua aparência absolutamente elementar, S...et 6; “Como a água do Sena sobe até
um passo no sentido da objetividade. O ato o céu? - Ela sobe, sobe, sobe, vai até o céu. E
de determinar a identidade do objeto ainda depois têm dias em que não fa z sol; fic a
está longe de explicar por qual meio ele é o escuro, escuro; e depois, é a í que a água cai.”
que é, mas já é exprimir-lhe a realidade. Aliás,
finalismo e tautologismo começam a ser A mesma palavra “sobe”, repetida, é aqui
freqüentemente associados. uma pura tautología. Contudo, ela produz
um certo acento de intensidade, que exprime
H...vin 6; 1/2 que tinha explicado a noite a ação cumulativa e prolongada de onde
através do sono responde também: “O que pode resultar a chuva. Essa palavra tem,
que é a noite? - Fica escuro. - Como isso portanto, um pouco mais que um simples
acontece? - Porquefica de noite. - Como é que valor descritivo.
fica de noite? - Porque o dia fo i embora. - Ainda próximo do tautologismo, com
Como o dia vai embora? - Aos pouquinhos. - desdobramento dos sinônimos, está o nive­
De onde ele vai embora? - Do céu. - O que que lamento de dois termos complementares, em
é o dia? - Ê o sol. - Como é que fica de noite que um possa ser, em seguida, dado como a
quando o sol vai embora? - Ê o sol que nos causa do outro.
ilum ina.”
J...ot 8; “Como é que existe o frio? -
Por intermédio de uma assimilaçãqglobal Porque é congelado pelo frio . - É o gelo que
entre o so le o dia, que sucede à oposição d ia- faz o frio ou o frio que faz o gelo?-É o frio que
noite - lógica de pares - o “como” a.aba fa z o gelo. - Mas, então, o que faz o frio? - Ele
obtendo uma resposta correta. Mas, a pri- fa z neve. - É o frio que faz a neve ou a neve
meira réplica tinha sido tautológica, escuro e que faz o frio? - É ofrio q u e fa z a neve. - Então,
noite, desdobrados, explicando-se cada um o que faz o frio? - Elefa z o gelo. - Você disse
por seu turno. que é o frio que faz o gelo? - O frio gela. - Mas
o que é que faz o frio? - Ele fa z as plantas
D...net 6; “Como é que a noite vem? - morrerem. - De onde vem o frio? - O calor. -
Porque ela não vem o tempo todo...porque é É o calor que faz o frio? - Д о ca lo rfrio ”
preciso que a gente durm a. - Como é que
pode ficar de noite? - Q uando a gente vê que Frio estando desdobrado em congelado
começa a fic a r escuro, fic a um pouco de evoca, de maneira complementar, o gelo e a
noite. - Como é que pode ficar um pouco neve. Contudo, a criança não se engana sobre
192 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

a causa e sobre o efeito mas, convidada a dar que seja evocável sem a imagem de outras
a causa, ela sabe apenas enunciar efeitos. circunstâncias, de que a mais familiar ou a
Então, oferece-se a ela o par-contraste frio- tornada mais real pela situação ou pelas dis­
calor, dois term os de que ela crê fazer um a posições presentes do sujeito tende, esponta­
causa limitando-se a uni-los. Se essa resposta neamente, a exprimir-se, a menos que seja
pudesse ter um sentido, a contradição apenas repelida por uma outra. Mas há também a
se transformaria em tautología. Assim, a crian­ falta de aptidão para discernir as diferentes
ça com eça a exercer seu poder de análise no espécies de relações entre si. Por muito tempo,
círculo, m uito estreito, de elem entos sincréti­ os termos que respondem a elas, preposições
cos, nocionais ou verbais em que ela só tem, ou conjunções, permanecem, de sentido ou
freqüentem ente, a escolha entre a identifi­ de uso, incertos para a criança, visto que não
cação do dessem elhante ou a tautología. pertencem mais a locuções ou a expressões
Por vezes, a análise limita-se ao em prego sintáticas que se tornaram como que auto­
de um a preposição vaga para reintroduzir, máticas. A ordem na qual sua significação
sob forma de explicação, o nom e da coisa cessa de ser confusa ou ambígua foi estudada
que é objeto de explicação. por autores como Piaget.
Aliás, ela não depende exclusivamente
D ...pe 5; 1/2 “O que que é o Sena? - É das possibilidades ligadas à maturação in­
água. - Ele se mexe? - Mexe. - Como? - Com a telectual da criança, mas também de sua am-
água.” biência lingüística e, assim, verifica-se o con­
curso necessário da evolução e do meio. Em
Q uanto muito, “com” poderia dar a várias línguas, como o italiano, as duas ati­
impressão sincrética da massa líquida em tudes complementares “por quê” e “porque”
movimento. exprimem-se pela mesma palavra. Disso deve
Não são apenas as relações de identi­ resultar que elas permaneçam por mais tempo
dade, mas relações de lugar ou de tem po, que como que indiferenciadas. Primitivamente,
podem ser dadas com o respostas ao “como." de fato, elas se confundiriam, segundo Piaget.
Ele encontrou, em numerosas crianças em
K...vé 6; “Os carneiros com em o quê? - Genebra, o emprego prolongado de “pour­
Capim. - O que que é o campim? - É verde. - quoi” (por quê) em vez de “parece que” (por­
Como ele aparece? - Nos campos.” que). Mas, nas crianças parisienses, essa su­
J ...ot 8; “O sol se mexe? - Mexe. - O tem po bstituição é excepcional. Ela quase só é en­
todo? - É. - Como? - Sozinho. - Como ele pode contrada em crianças de origem italiana, que
se m exer sozinho? - Q uando ele vai se deitar. podem falar bem o francês tão correntemente
- O que quer dizer ele vai se deitar? - De noite." quanto seus colegas, mas cujo meio com­
porta alguma pessoa que ainda fala, eventu­
Embora tendo dito que o m ovimento do almente, o italiano. Parece, portanto, que é
sol é ininterrupto, a criança lhe dá com o suficiente uma influência, mesmo limitada e
causa um m om ento de seu curso, o de seu intermitente, para abalar a distinção de sen­
encontro com o horizonte, provavelmente tido entre duas atitudes complementares ou
com o o mais im pressionante de sua per­ em espelho. Mas, a mesma indeterminação
cepção. pesa, com freqüência, sobre todas as varie­
A dispersão de relações quaisquer como dades de relações. As simples locuções de
resposta ao “com o” não é um simples sub­ lugar, as primeiras, contudo, a serem com­
terfugio da criança para mascarar sua inca­ preendidas e empregadas, também podem
pacidade de invenção, é muito mais falta de dar lugar a imprecisões.
crítica e de controle. A simples forma de inter­
rogação induz a atitude da réplica: chega a T.. .niJosé 7 (de origem italiana); “A gente
poder provocar, na criança muito nova, al­ pode ir longe de bicicleta? - Em todo lugar. Eu
guns instantes de diálogo com puras intona- vou um pouco num a aldeia. - O que é que há
ções. Depois, não há objeto ou circunstância nessa aldeia? - Tinha hom ens sentados sobre
AS CONFUSÕES SINCRÉTICAS 193

um a igreja. - O que mais você viu? - Eu passo Essa resposta, que se limita a repetir, sob
p eno da parada do trem. O trem estava forma explicativa, o condicionamento do fato
passando. Eu vi, o trem corria.” a ser definido, não ê mais do que uma tautolo­
gía. “Porque” não tem nenhum sentido ade­
Embora usando o francês como se usasse quado. Ele pode traduzir, apenas de uma
sua língua materna, essa criança confunde o maneira muito confusa, a atitude do inter­
termo de origem e o de destinação: a pergunta rogado.
unde com a pergunta quo. Provavelmente, o
emprego de "sobre”, com igreja, é elíptico e N...ret 6; 1/2 “Como é que existe vento?
subentende uma parte da igreja: degraus ou - Porque é para ter ar. S ea gente não tivesse
bancos. Mas, a criança não se deteve nessa vento, a gente fica ria com calor”
simplificação pela singularidade da fórmula,
mostrando, assim, que ela ainda não é sensível Aqui, justapõem-se duas conjunções de
à significação exclusiva de “sobre” e às in­ sentido divergente, uma indicando a causa
compatibilidades de combinação que po­ original e a outra o propósito. Que a segunda
dem disso resultar. não tenha eliminado a primeira é ainda a
prova de que a incerteza da significação delas
De outra criança, C...ni 6; 1/2, esta não toma suficientemente sensível sua in­
também de origem italiana, mas falando compatibilidade.
francês correntemente: “De onde vem a água
do Sena? - Por um riacho.” C...ard 6; 1/2 “Sua mãe pensa? - Pensa,
ela pensa quando ela vai morrer. - Os cachor-
Mas a concorrência sublatente de um rinhos pensam? - Eles jpensam quando eles
falar estrangeiro apenas faz agravar uma vão morrer, que quando eles vão fic a r doen­
indecisão que começa a ser comum a todas as tes.”
crianças.
A fórmula regular seria “ela ou eles
A. A...dre 6; diz, sobre uma barcaça, que pensam que...”. Mas ela não leva facilmente
ela anda “com” um outro barco (o reboca­ ao que queria dizer a criança. A noção de
dor): “De que são as árvores? - Com m a­ tempo, que ela tem no espírito, irrompe com
d eira ” “quando”, que falseia o sentido da frase. A
idéia é, evidentemente, “ela ou eles pensam
Mesmo para o adulto, a palavra “com” na época em que morrerão.” Em vez de per­
tem significações bem diversas: acompanha­ manecer no conteúdo do pensamento,
mento, instrumento, substância, o emprego “quando” reporta o ato do mesmo para a
que a criança faz dela é ainda mais extenso. É época que deveria ser o objeto dele. Sob a
uma partícula de junção quase tão polivalente impressão desse contra-senso, a criança rein­
quanto “então” na sucessão e a criança faz um tegra “que”, que fora substituído por “quando. ”
uso dela quase tanto quanto intemperante. Mas, a simples justaposição de “que” e de
Mais ainda que as preposições, as con­ “quando” tom a a frase completamente incor­
junções são de um emprego complicado, reta e ainda mais dificilmente inteligível. Atra­
ambíguo ou supérfluo, mostrando o quanto vés disso, a criança mostra bem sua inca­
as relações que elas exprimem permanecem, pacidade para utilizar as conjunções para
por muito tempo, confundidas ou imbricadas. dissociar e ordenar o conteúdo de seu pensa­
mento, para nele colocar os elementos sub­
B. ..ère 6; “Se a gente joga uma pedrajetivos
na e objetivos, cada um em seu lugar. Ou
água, ela vai até o fundo? - Porque a gente seja, para fazer o pensamento passar da fase
joga um a.” sincrética para a fase articulada.
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS
A REPRESENTAÇÃO GLOBAL OU SINCRÉTICA

Tomou-se comum definir a atividade exprimir as relações constantes ou as pro­


intelectual da criança como global ou sincré­ priedades estáveis dos mesmos. Eis aí um
tica. Essa representação da evolução mental progresso evidente, do qual é possível cons­
nos primórdios da ontogênese tem, por seu tatar a importância no desenvolvimento in­
lado, contribuído para mostrar a insuficiência telectual da criança. Mas, a substituição radi­
e a falsidade das análises que colocavam, nas cal da realidade perceptiva por esses inva­
origens da vida psíquica, elementos já indi- riantes não está isenta de inconvenientes na
vidualizáveis, demultiplicados, periféricos e escala do próprio conhecimento. Pois eles
obtidos da matéria do conhecimento, como são rapidamente considerados como a reali­
são as imagens e seus supostos protótipos, as dade original, como primitivos, inelutáveis,
sensações. Com o sincretismo, a inteligência necessários, como sendo do absoluto ou do a
começa a emergir da atividade prática e da priori. Ora, a história do pensamento mostra
vida afetiva. Na medida em que ela é aí, que eles, nunca exprimiram a realidade em
inicialmente, mais ou menos confundida, o sua totalidade, e esse resto é abandonado
sincretismo é sua etapa infantil. opõe-se, um dia, à çxtensão indefinida das
Ele não deve, aliás, ser descrito apenas conseqüências dos mesmos.
negativamente. Ele tem seus níveis e sua Impõe-se então sua refacção, a qual não
significação funcional. A globalização pode seria, a cada vez, tida como um escândalo da
atingir conjuntos mais ou menos vastos e razão, se eles não tivessem sido considerados
mais ou menos coerentes. Ela pode, confor­ como os dados iniciais e fundamentais da ex­
me o caso, parecer fragmentária ou de grande periência - essa mistura do ser e do conheci­
raio. É assim que se resolve a contradição de mento - e se o estado de sensibilidade e de
uma apercepção limitada aos detalhes, como inteligência, que os precedeu, tanto na espécie
é constatada na criança, e de uma visão global. quanto no indivíduo, não tivesse sido igno­
Os conjuntos são muito limitados, mas não rado. As novas delimitações ou reduções mú­
apresentam as articulações externas ou inter­ tuas, a que eles devem, então, se submeter,
nas que distinguem um pensamento orde­ poderiam ser interpretadas como um retomo
nado do sincretismo. A um nível muito baixo, passageiro pelo sincretismo primitivo, pois,
em particular no animal, o sincretismo pode na escala do indivíduo, a persistência de um
reduzir seu campo a ponto de lembrar a certo sincretismo, sob o formalismo usual e
abstração. Segundo a idade do indivíduo, o coletivo da percepção ou do conhecimento,
número e a diversidade das circunstâncias é, provavelmente, a condição, em todas as
que ele aglutina podem variar muito. Ele áreas, estética ou erudita, de uma invenção
pode, aliás, mostrar atividade ainda no adulto. verdadeiramente nova.
Estudar seu desaparecimento na criança
é, evidentemente, ver as confusões iniciais re­ O PENSÁVEL E O EXISTENCIAL
solverem -se segundo planos e perspectivas
que permitem ordenar, entre si, os aconteci­ Na criança, contudo, o problema não é a
mentos e as coisas, de modo a descobrir e a escolha dos invariantes, mas seu poder de
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 195

discerni-los e de integrar, neles, o real que ela Esses ajustamentos têm condições tão
percebe. Diferentemente do pensamento complexas que as evocações corresponden­
adulto, o da criança não traça para si circuitos tes têm, necessariamente, um limiar funcio­
nitidamente delimitados, cujas etapas pos­ nal muito elevado. Em momentos em que a
sam controlar-se entre si, enquanto ele segue imagem espontânea das coisas é capaz de
seu curso, e cujos termos tenham uma signi­ exprimir-se com fidelidade sob o abalo das
ficação fixa. Se o pensamento de desenvolvi­ circunstâncias ou da lembrança, essas mes­
mento normal vai se modificando, isso não é mas palavras, esses mesmos traços, esses
esquecimento de si mesmo e transformação mesmos detalhes que ela utiliza podem
com cada objeto novo, mas diferenciação e muito bem escapar ou ter falta de exatidão,
identificação progressivas. desde que a intenção misture-se a eles, ou
Ele se diferencia do que é estranho aos seja, quando fazem parte desses limites que o
seus motivos ou aos seus objetivos, através da conhecimento deve estender até as coisas
massa das situações, quer externas, quer in­ para classificá-las, distingui-las entre si, iden­
ternas, que surgem, a cada instante, diante tificar cada uma delas ou, apenas, para de­
dele, através dos sistemas onde estão enre­ signá-las nominalmente. Isso ocorre porque,
dados os elementos que deve reunir para na verdade, é preciso que eles os faça emer­
exprimir-se, apropriar-se e inventar-se. Ele gir através de várias camadas funcionais. Mas
diferencia cada um dos termos em que aparece estas podem permanecer dissociadas entre
para si mesmo do que não responde à estrita si. Em cada uma, estruturas mais fáceis ou
significação que ele postula ou persegue. mais familiares tendem a captar ou a afastar o
Ele identifica a palavra ou a imagem com pensamento, incapaz, nesse momento, de
a intenção. Supõe-lhes uma identidade que fazer coincidir os elementos delas que reali­
ultrapassa o instante e o uso presentes. Pro­ zariam exatamente a concordância da pa­
jeta a existência das mesmas sobre um plano lavra e da idéia: elementos dos espectros
e que o mundo das representações e o das sonoro e simbólico, de onde a palavra deve
coisas devem concordar, sobre um plano de surgir, influências sensorimotoras e concei­
significações solidárias, distintas e constan­ tuais que levam à representação e quê ela
tes, sobre o plano das categorias, em que a própria tem em potencial. A simples dis­
passagem dos objetos à definição e vice- tração pode perturbar esse indispensável
versa seja sempre possível, em que a coin­ ajustament o, que, normalmente, parece um
cidência entre uma designação e o aspecto ato simples; donde lapsos de diferentes es­
das coisas que ela visa seja inalterável, em pécies. Lesões orgânicas podem causar-lhe
que, por conseqüência, a reversibilidade de entraves insuperáveis, por exemplo, a para-
um para outro seja uma certeza em todos os fasia, essa doença da linguagem. Na criança,
momentos do processo intelectual. Na prática, ele permanece, por muito tempo, incom­
essa coerência exata, total e durável entre o pleto ou irregular.
real e o pensamento, que parece ser evidente, Em vez do exato ajustamento requerido,
exige a redução mútua do múltiplo e do para cada caso, entre os diferentes campos
único, do acidental e do permanente, do funcionais, impressões dispersas produzem-
individual e do essencial. O que está esparso se em sua sensibilidade, em sua lembrança,
através das coisas e do tempo deve poder se em suas intuições intelectuais ou em sua
condensar em um traço evocável ou reco­ atenção na ambiência. Longe de se ordena­
nhecível por si mesmo. Sob a diversidade ou rem ou de se reduzirem entre si, elas se con­
as variações devidas a alguma circunstância trariam, se eclipsam ou se contaminam mu­
fortuita ou particular, a natureza, que dura, tuamente. São como praias luminosas que se
deve tomar-se identificável. Dos seres ou estenderiam no mesmo lugar ou que se
objetos indivisos que a experiência fornece, é estenderiam gradualmente, desviando o pen­
preciso saber extrair a estrutura que faz cada samento de sua direção, de seus contornos,
um deles existir uma existência semelhante a fazendo-lhe esquecer seu objetivo ou con­
si mesma. fundir seus objetos. Assim, podem realizar-se
196 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

muito bem dois efeitos contrários: a mis­ seja, estabilizá-las em um conceito. Não sa­
tura ou a justaposição de temas inconciliá­ bendo ultrapassar o contingente, ou seja, a
veis. simples constatação de circunstâncias per­
A inaptidão para as eliminações ou para ceptivas ou imaginativas, ela formula cada
as reduções necessárias liga-se, evidente­ uma como absoluta. A existência basta-se a si
mente, à fragilidade dos temas que são pro­ mesma. Não tendo ainda a existência das
priamente intelectuais ou conceituais. Eles coisas outras relações a não ser com sua
podem muito bem ser levados ao espírito própria sensibilidade, a intuição que a cri­
pelos objetos correspondentes, mas não ança tem disso é a razão suficiente das mes­
podem resistir às diversas assimilações he­ mas. A mobilidade contínua de seu pensa­
terogêneas que, simultaneamente, podem mento insere-lhes incoerência, a criança
deles proceder. O objeto concreto prima so­ atribui a d as a mesma realidade consistente
bre o conceito. Por qualquer lado ou de que a cada instante de sua própria existência.
qualquer maneira que se faça a assimilação, Em vez de relações unificando as coisas,
os objetos que ela une o são de maneira basta-lhe que elas girem em tom o de um
global. Tudo neles torna-se quer semelhan­ mesmo foco, mesmo à custa das associações
ça, quer diferença, mesmo se o traço de se­ mais divergentes. A unidade de foco é o
melhança ou de diferença mudar de sentido conteúdo de sua representação momentânea.
com cada um. É o tudo ou nada, simples­ Mas esse conteúdo pode se enriquecer, por
mente mitigado pela aptidão que a criança sobreposição, com imagens nascidas no
tem de deixar um termo de suas comparações mesmo instante das influências mais diver­
mascarar-lhe o outro. sas. Disso resulta, freqüentemente, algo bar­
Dessa discordância em seu poder de roco e, por vezes também, algo que se asse­
representar as coisas e suas qualidades co­ melha a uma criação estética mas, como
muns resultam enumerações incoerentes. Os sempre na criança, involuntária, fortuita e
objetos que são sucessivamente evocados incompleta.
podem perder toda a relação com o tema que A sobreposição tem , por contrapartida, a
deveriam ilustrar, o conceito é ultrapassado, desagregação, pelo menos, da expressão. O
seus limites são estendidos até a incon- que se representa ao espírito da criança pode
seqüência ou completamente esquecidos. não levar à sua fórmula. Ela se decompõe, em
Outras vezes, é uma mudança de panorama vez de ficar heterogênea. Nos dois casos, há
que gira em tom o de um dos termos enu­ a mesma falta de coerência íntima. Mas em
merados. Com ela, com freqüência, o sistema um, o diverso se amalgamava, no outro, o mes­
das associações se transforma, a linha do mo não chega a identificar-se. São os acessó­
pensamento se quebra. Ou, então, o tema rios que podem prevalecer sobre a imagem
subsiste, mas sucessivamente com signifi­ ou sobre a idéia adequada. Provavelmente,
cações diferentes. O caso é particularmente essa preferência paradoxal não ocorre sem
freqüente quando comporta um sentido, quer certa tendência à contradição ou à oposição.
ativo, quer passivo. Então a criança cita, in­ Ela é, contudo, tomada possível apenas atra­
diferentemente e sem discernimento, obje­ vés das condições compostas da denomina­
tos dependentes de um e de outro. Ela recai ção ou da afirmação, mesmo a mais simples.
naquela ambivalência do contraste e do A produtividade intelectual da criança pode,
idêntico, que foi assinalada a propósito dos em certos casos, reunir os efeitos que se ob­
pares. servam na síndrome de Ganser ou na afasia:
É preciso, contudo, que todo pensa­ discursos sem nexo, trocadilhos, substitui­
mento se dê um ponto de vista fixo, sob pena ções barrocas, circunlóquios, perifrases. A
de renunciar a si mesmo. Levada pela mu­ ausência de relações diferenciadas em e entre
dança de suas impressões ou de suas idéias, os conteúdos do ato mensal, que é própria do
a criança as consider!, entretanto, consisten­ sincretismo, pode, portanto, ter por con­
tes. Ela considera como idêntico o que difere, seqüência quer a mistura, quer a dissociação
por falta de saber identificar as diferenças, ou dos mesmos.
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 197

O COMPLEXO E O CORRELATIVO sem que fosse possível imaginar um sem o


outro, dissociam-se para entrar em conjuntos
Na idade de 5 а 6 anos, quando, entre variáveis. Incapaz de imaginá-los inde­
outras aptidões, o desenvolvimento mor­ pendentemente de um objeto particular, a
fológico da linguagem já é suficiente para criança encontra-se face a oposições fixas e
permitir que a criança entre na idade escolar, irredutíveis. Para ela, cada objeto é, tal como
os conjuntos diante dos quais a coloca sua se oferece à sua imaginação do momento,
experiência direta das coisas já são, desde há como que uma conglomeração indissociável,
muito tempo, objetos ou situações nitida­ de que ela percebe bem as qualidades diver­
mente delimitados e individualmente identi­ sas e mesmo as mudanças destas, mas sem
ficáveis. Mas, as dificuldades reaparecem se poder isolar cada uma delas por si mesma.
seu pensamento deve decompor esse objeto Seu espírito adere aos conjuntos concretos e
ou essa situação, doravante distintos, em suas não sabe classificar os aspectos ou os efeitos
propriedades ou em suas circunstâncias. A dos mesmos imputando-os a princípios que
criança sabe reconhecer bem as qualidades possam produzi-los ou explicá-los em outro
ou as conjunturas pelos efeitos particulares caso que não o presente.
das mesmas, mas, nas relações delas com o O estado compacto, único e, aliás,
objeto, ela não pára de confundi-las entre si, momentâneo, que sua representação lhe dá
de trocar uma pela outra, como se permane­ das coisas, tem como conseqüência que, longe
cessem intercambiáveis ou equivalentes: de considerá-las como conjuntos necessários,
forma e tamanho, por exemplo, são definidos ela não sabe ultrapassar a simples consta­
um pelo outro, como se houvesse apenas um tação do modo real de existência das mes­
tamanho possível ou existente para uma mas. O sincronismo é a forma de expressão
determinada forma. Essa forma e essa di­ que se oferece mais espontaneamente à crian­
mensão podem, aliás, depender mais dos ça, e é o sentido que é preciso, com mais fre­
meios de expressão do que do objeto a ser qüência, atribuir a suas respostas sobre a
descrito, mais, por exemplo, do contorno causalidade. Ela é totalmente incapaz, na
espontaneamente traçado pelo gesto do dedo verdade, de dar, a qualquer circunstância, a
e de sua amplitude natural do que da imagem menor generalidade. O fato real esconde-lhe
ligada ao sol. Assimilação semelhante pode a eventualidade habitual; com tanto mais
ser feita entre a pequeneza e a brancura, que razão, ela não saberia imaginar uma eventua­
tendem, para a criança, para um mesmo limi­ lidade geral e teórica. Para ultrapassar sua
te, o neutro ou o indiscemível: o branco é, de impressão ou sua imagem reais ou concretas
fàto, a ausência de cor, donde sua confusão do objeto, para passar de um objeto para um
freqüente com o transparente; o pequeno outro, ela tem apenas, no primeiro caso, seu
oculta suas qualidades da percepção e pare­ procedimento habitual do par, em que opõe
ce perdê-las. Outro exemplo, a confusão da e reúne, ao mesmo tempo, dois termos que
força e da velocidade, dadas indiferentemente têm, entre si, alguma relação. Pois já é um ato
uma pela outra, porque se fundem, em seu de pensamento fazê-los alternar, sucessi­
limite, em uma mesma impressão de potência. vamente, como a causa e o efeito, no objeto
Contrastando com essas fusões, mas de em questão, embora a explicação circular
mesma origem, há as oposições esquemáti­ seja, sob essa forma simples, puramente ver­
cas e de onde toda diversidade, toda variabili­ bal. Quanto às diferenças entre objetos ou
dade são excluídas, quando se trata de com­ situações comparáveis, o que há de consta­
parar objetos ou de reuni-los segundo sua tação puramente contingente, nas razões
semelhança. Então, as propriedades, que eram dadas pela criança, é muito bem colocado em
assimiladas entre si, no mesmo objeto, tor­ evidência por sua locução favorita “às vezes”,
nam-se contraditórias quando variam, inde­ que vem, a todo instante, atenuar suas afir­
pendentemente umas das outras, em objetos mações absolutas. Essa palavra não cessa de
diferentes. Forma, substância, órgãos, que intervir em suas conversas para reajustar, à
tinham sido dados como estando ligados, variabilidade do real, seu pensamento global,
198 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

que empresta, à com plexidade do momento, pensam ento sincrético na criança. Por um
um a aparência estática, um a existência como lado, incapacidade para decom por a repre­
que imutável. sentação do objeto em propriedades que lhes
A apreensão maciça do objeto tem , como servem de base em suas relações eventuais
contrapartida, as relações indiferenciadas. A com outros objetos. Por outro, incapacidade
criança parecer fazer com que parâm etros para oferecer um a base de qualidades ou de
distintos sejam simbolizados juntos. Na reali­ relações distintas entre si, mas com uns a série
dade, ela não sabe considerá-los isolada­ determinadas de objetos reais. Objetos e
mente. Eles se fundem , sem cessar, em um a propriedades dos objetos, ainda mal isolados
espécie de dim ensão única, a qual corres­ uns dos outros, são, ao m esm o tem po, mistu­
ponde, no objeto, à equivalência de todas as rados e estranhos entre si. Não sendo sufi­
propriedades que nele se encontram. Não se cientem ente distintos, eles não podem ter
deveria, na verdade, confundir a identificação relações definidas. Os objetos apenas se jus­
sincrética de várias dim ensões e a idéia de tapõem na intuição sensível ou na lembrança.
grandeza sob sua forma mais abstrata. Entre Mas, assim que sua imagem ultrapassa a
as duas, escalonam-se todas as operações capacidade imaginativa, eles se tom am flui­
que distinguem, uma da outra, as dimensões, dos e c o m o que inexistentes. A criança pode
e que extraem, de cada uma, o que pode lhe dar sua realidade a uma árvore ou a um
ser comum com todas as outras, o que pode bosque, mas não sabe considerar com o reais
se prestar a operações semelhantes: em um várias árvores que não sejam ou árvores indi­
caso, simples qüiproquó, no outro, seleti­ viduais, ou um certo grupo de árvores. “Várias”
vidade cada vez mais precisa. Assim, a crian­ se tom a como que um a árvore coletiva,
ça exprime o tem po e o lugar um pelo outro, genérica, que está, ao mesmo tem po, em
assimilando, sucessivamente, a ubiqüidade a todo lugar e em lugar nenhum . “Várias” funde-
um a duração sem fim e vice-versa. Ela traduz se com “em todo lugar”mas, ao mesmo tempo,
a claridade difusa do sol ao m esm o tem po “em todo lugar” é eliminado de todo lugar
pelo núm ero dos locais ocupados, por sua distintamente imaginável. O múltiplo tom a­
extensão indefinida e por sua permanência. se o geral, o geral invade o espaço, mas é um
A propósito de seus cabelos, ela explica que espaço que não pertence mais ao das ex­
se tornam com pridos e que é preciso cortá- periências concretas, dos encontros com o
los por causa de seu número. Ela emprega, m undo sensorimotor.
um pelo outro, “em todo lugar” e “vários.” A Há aí, ao mesm o tem po, passagem e
razão dessa confusão é instrutiva. Esses dois confusão. Passagem do único ao múltiplo e
termos são como que estranhos ao particular do múltiplo ao gênero, do meio concreto das
e ao concreto: um ou outro local determinável, coisas, ou espaço sensorimotor, ao meio
“aqui” ou “lá”, perm anecem fora de “em todo abstrato das idéias, ou espaço intelectual.
lugar.” Um objeto só é localizável se é imagi­ Mas, ainda não há limite nítido entre o geral
nado individualmente. Vários não o são e e o espaço, nem entre o espaço intelectual e
reúnem -se a “em todo lugar” em um a espécie o espaço das coisas, de m odo que o múltiplo,
de m undo indistinto onde desapareceriam ainda mal integrado no geral, invade o es­
todas as delimitações dos objetos e das cenas paço global das coisas. Esse espaço é como
realmente percebidas. Desse modo, a equi­ que reprimido, no abstrato e no irreal, pelas
valência m útua de todas as propriedades que próprias coisas. Fase ainda indecisa entre a
pertencem ao m esm o objeto e que parecem representação singular e a representação em
ser-lhe particulares ou como que pessoais, potencial ou conceito. A árvore múltipla da
corresponde, fora do objeto, a uma outra realidade se demultiplica indefinidamente.
equivalência, a de noções sucessivamente Mas, em vez de se incorporar em um a multi­
separadas e confundidas, mas de onde parece plicidade potencial ou conceituai, ela per­
excluída a imagem de objetos individuais e manece como que aderente à sua represen­
reais. tação sensível, que pode ser apenas espacial.
Eis aí dois aspectos com plem entares do Em número indefinido, ela está em todo lugar,
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 199

mas esse em todo lugar não está em lugar se desenvolve com ela, a Idéia é o arquétipo
nenhum no mundo sensível, onde a multi­ das coisas. Mas, na ordem da natureza, ela
plicidade indefinida das árvores não pode ser vem depois, com as estruturas que a cons­
percebida. Ela não é uma realidade, é ima­ ciência acrescenta à vida e que tomam
ginária. O geral permanece uma noção flu­ possíveis as etapas da experiência humana.
tuante, sob a qual o real ainda não está inte­ A confusão entre essas duas espécies de
grado. Ele não tem nenhuma necessidade, anterioridades é apenas a conseqüência de
funde-se, ainda, no eventual, no acidente, no uma confusão que permanece grosseiramente
fortuito. Donde a freqüência, na criança, das aparente na criança, a da representação e do
expressões “têm uns” ou “às vezes.” objeto, do ato intelectual e de seu conteúdo.
Incapaz, por exemplo, de pensar o O real identifica-se, para ela, com a imagem
homem sob a espécie humanidade, ela res­ ou a palavra que a ele se aplicam. Ela acredita,
ponde que “às vezes, homens morrem” à até mesmo, que estas são capazes de vencer,
pergunta “se sempre houve homens.” A fór­ efetivamente, a distância, se esta existir, entre
mula é, manifestamente, ambígua, ou me­ seus desejos e o resultado desejado; é por isso
lhor, inadequada. A indeterminação, mar­ que dissemos que ela atribuía uma virtude
cada por “às vezes” e pela ausência de artigo mágica à linguagem. Na existência ou na
diante do substantivo “homens”, a simples estrutura das coisas, a criança pode ainda, até
reação de contraste, que faz opor “morte” ao mesmo, projetar, com os traços positivos de
problema da existência com ou sem início, sua representação, o que esta tem de mais
indicam a confusão que subsiste, no espírito subjetivo, ou seja, o grau de crença ou de
da criança, entre o indivíduo e a espécie, a certeza que a criança lhe atribui. Se ela lhe
mortalidade acidental e a morte necessária, o deixa qualquer dúvida, em vez de saber for-
eventual e a regra. Os seres e os fatos ainda mulá-la, é no objeto que a criança a locali­
são apenas circunstâncias empíricas, que zará, sob a forma de uma incerteza, de uma
permanecem particulares e que podem, intermitência. Ela não sabe muito bem se as
quando muito, acumulando-se, recobrirem- árvores pensam ou não. Ela dirá, portanto,
se, fundirem-se em noção rotineira, onde que elas não pensam o tempo todo. Eis aí um
certos traços mais constantes e mais marca­ novo exemplo da zona intermediária, onde
dos prevaleceriam sobre a fragilidadei dos as noções da criança flutuam entre o concreto
outros. Mas a imagem heterogênea, que aisso e o abstrato, o contingente e o necessário. O
resultaria, permite apenas reconhecer casos existencial tende, sem cessar, a prevalecer
semelhantes, ela nada tem de essencial, nada sobre o essencial no campo das idéias, en­
de uma fórmula onde se exprimiria, por cima quanto a cliva^em, entre as relações que as
dos simples dados da representação, a na­ idéias têm que objetivar e suas ligações sub­
tureza ou a razão lógica das coisas imagina­ jetivas, permanecer incerta.
das, qualquer que fosse, aliás, o número É, sobretudo, o tempo que permanece,
eventual de seus exemplares. Pois aí instala- de modo prolongado, o local dessas interfe­
se uma nova ordem de realidade, a de criações rências arcaicas. No próprio adulto, sua ima­
intelectuais: seres de razão que não podem gem permanece, na verdade, tão heterogênea
ser obtidos, no indefinido, por uma simples que fica muito sujeita às ilusões, muito facil­
sobreposição de acontecimentos sensíveis, mente alterável pelas variações do humor ou
de provas concretas, mas que exigem um ato pela doença. Na criança, os momentos vividos
original de integração eque possam ser dados ficam, por muito tempo, como que inconci­
como a estrutura ou a lei das coisas. É a liáveis ou estanhos entre si. Ela sabe integrá-
oposição do que deve ser ao que existe, este los, muito mal, na unidade de sua própria
controlando aquele no plano da experiência, existência. Com tanto mais razão, ela não
onde nasce todo conhecimento, mas sendo- sabe representar o tempo abstrato e total,
lhe subordinado no plano da intuição intelec­ onde devem ordenar-se os tempos de cada
tual e do próprio conhecimento. Há verdade existência particular. Ela sabe apenas ima­
no que diz Platão. Para o espírito que nasce e ginar tempos particulares, que permanecem
200 AS ORIGINS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

dissociados. “Sempre” fragmenta-se em mo­ expressão mais sincrética, ou seja, a mais


mentos efetivos ou em repetições dadas como indiferenciada, que existe de uma situação.
indefinidas, sem chegar ao “sempre”do tempo As coisas que concordam contêm a razão
total. mútua delas. Simples reconhecimento do que
existe, sob a forma de uma justificação. Mas a
PENSAMENTO DE RELAÇÃO justificação não ultrapassa, então, a tautolo­
INDIFERENCIADA E MUTABIUDADE gía. É simplesmente o “deve ser” acrescen­
DO OBJETO INTELECTUAL tado ao ser. Adesão total e indiferenciada,
que é bem do estilo da criança. O que há de
As tendências sincréticas da criança sempre imperioso em seus gestos ou seus
podem ser tornadas mais aparentes aumen­ desejos, em seu impulso na direção das coisas,
tando-se a dificuldade das perguntas. Ao mesmo indiferentes, insufla-se na represen­
“como" ela responde muito mais penosa­ tação delas. Seu voluntarismo espontâneo
mente que ao “por quê.” O objetivo, os moti­ permanece misturado às impressões que lhe
vos, a causa oferecem-se mais diretamente ao dá o mundo exterior.
seu pensamento que o procedimento, o meio, Assim, a tautología, mesmo sob sua forma
o subterfúgio utilizável ou o mecanismo das mais literal, nunca é neutra nem abstrata.
coisas. As relações que ele tinha se tomado Mais que uma igualdade abstrata, é um ato de
capaz de discernir no primeiro caso, mistu­ posse mental. A repetição de dois mesmos
ram-se de novo no segundo. As réplicas tor- termos dá à identidade do mesmo com o
nam-se insignificantes. Limitam-se a desen­ mesmo como que um acento de intensidade.
volver a representação, mas sem relação com Aparentemente, na utilização do outro, essa
a interrogação. As circunstâncias de tempo e repetição torna mais efetiva, para a cons­
de lugar são dadas uma pela outra; os de­ ciência, a adesão do pensamento ao seu
talhes sucedem-se como uma simples se­ objeto. A repetição da mesma fórmula, as­
qüência de imagens familiares e sem consi­ similada a si mesma, pode também como que
deração com o tema em andamento. Digres­ querer ultrapassá-la, não apenas para insistir
sões inserem-se uma sobre a outía. Freqüen­ sobre a realidade de seu conteúdo, mas para
temente também, a criança responde sob for­ nele introduzir uma ação, a que faz as coisas
ma finalista. durarem, ou crescerem e tenderem para o seu
O sincretismo favorece o fmalismo de máximo. Desse modo, encontram-se sempre
duas maneiras: fazendo prevalecer, por um misturados, na criança, o ser e as veleidades
lado, a invasão do subjetivo no conteúdo do que ela faz passar de si para as coisas. Às
pensamento; fixando-o, por outro lado, em imagens que ela têm das mesmas, falta esta­
sua fase tautológica. No fmalismo da criança, bilidade. A própria rigidez delas faz com que
o interesse, o desejo que o efeito suscita são o objeto mude sob elas. Globais e estáticas,
dados como sua causa. Por uma espécie de elas não podem se garantir contra a transfor­
inversão no tempo, é a conseqüência que se mação, porque faltam-lhes termos de com­
tom a a origem. O modo intencional é es­ paração e categorias necessárias para ex­
tendido às coisas. Dito de outra maneira, as primi-la. Elas próprias são, por conseqüência,
tendências utilitárias, práticas, herdando a muito freqüentemente provocadas por essa
força primitiva que se liga aos apetites, pre­ transformação. Repetem-se, dando a ilusão
valecem sobre a ordem objetiva. Mas, acon­ de que são as mesmas, mas já não são mais
tece também que o fmalismo pareça des­ semelhantes a si próprias. Sua globalização,
pojado de toda preferência afetiva, que ele se ao se deslocar, engloba, insensivelmente,
limite a indicar uma simples conformidade outras circunstâncias, por vezes incompatíveis
entre as partes e que essa conformidade seja com os conjuntos precedentes.
a simples constatação de uma ligação habi­ Esses deslizes fazem, provavelmente,
tual ou da ligação presente das mesmas. Elas com que falte, ao pensamento da criança, a
podem também ser consideradas, sucessi­ fixidex indispensável a conclusões corretas e
vamente, como a razão uma da outra. Eis aí a a representações coerentes, mas tomam a
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 201

aparente tautología de suas afirmações anos. Em Paris, ela é muito rara e encontra-se,
menos estéril. Eles podem, de início, levar à quase sem exceção, em crianças de origem
identificação do dessemelhante, contradição italiana, para quem o francês se tornou a
cuja tomada de consciência, pela criança, língua corrente, mas cuja família deve ainda,
agirá como um dos estimulantes mais enérgi­ de tempos em tempos, fazer uso do italiano.
cos de sua reflexão. De maneira mais insidi­ A presença do “perche”, com seu duplo sen­
osa, eles ocasionam, por vezes, a substituição tido de “por quê” e de “porque”, no meio
mútua de sinônimos ou de aparentes equi­ social da criança, basta, portanto, para lhe
valentes, cada um dos dois termos trazendo tornar menos nítida a designação recíproca
consigo um cortejo diferente de associações, da causa e do efeito, que começam, de fato,
que poderão querer enriquecer-se um pelo a formar, em seu espírito, um par de termos
outro, quer suscitar entre si incompatibili­ não orientados. Mas, a extrema dificulda­
dades, e iniciar, assim, a análise de suas de que os surdos-mudos encontram no em­
circunstâncias particulares ou comuns. Dan­ prego das conjunções e das preposições
do lugar a digressões mais ou menos con­ mostra, de maneira ainda mais abrangente,
fusas, elas tenderão, como primeira etapa, o quanto esses meios de articulação entre
para a descrição e, muito mais tarde, para co­ nossas imagens e nossas idéias estão sob a in­
ordenações mais sistemáticas, para expli­ fluência da fala. Contudo, a ordem de seu
cações mais inteligíveis. Mas, a própria des­ aparecimento demonstra que, na criança,
crição tem seus graus; ela pode atingir o nível seu atraso depende de seu sentido, confor­
de uma demonstração. Na criança, ela per­ me ele esteja mais ou menos afastado das
manece como uma justaposição de tra­ intuições brutas que a experiência sensível
ços ligados entre si, de maneira contingen­ dá. Ele se confunde com os níveis suces­
te ou subjetiva. sivos da maturação intelectual. Os erros ainda
O estado larvar, na criança, das relações cometidos por volta dos 6 ou 7 anos, nas
a serem inseridas entre as coisas ou entre os questões de lugar, que são as mais concretas
pensamentos, pode ser medido pela pobreza e as mais cedo acessíveis, por exemplo, entre
e pela inexatidão das preposições e das os advérbios que indicam a proveniência e os
conjunções que ela utiliza. Piaget estudou, que indicam o objetivo, são a melhor prova
sistematicamente, as etapas do emprego das das diferenças, freqüentemente subestima­
mesmas, as quais são, manifestamente, liga­ das, que podem subsistir entre a compreensão
das a uma evolução mental onde o acaso das da criança e a do adulto.
circunstâncias quase não tem lugar. Contudo, O que pode se observar também, é
o papel da ambiência lingüística permanece uma superfetação das conjunções, duas de­
importante. Os progressos, de que o indivíduo las, cujo papel difere, introduzindo a mes­
se toma capaz com a idade, só são possíveis ma proposição “que quando eles morre­
se ele encontra, em seu meio intelectual, um ram” ou “porque é para.” Com a ajuda das
material correspondente de objetos ou de conjunções, a criança deve dissociar, para
instrumentos. Provavelmente, é a ele que coordená-las segundo relações estritas, as
competirá, em seguida, adaptar-lhes o sen­ circunstâncias, ainda misturadas, de uma
tido e o emprego, segundo suas necessidades situação ou as de seu pensamento. Mas,
intelectuais; mas eles permanecem comouma se os instrumentos ainda lhe são de uma
base e uma norma indispensável para seu significação ou de um uso pouco familia­
pensamento. res, tomarão a análise mais vaga e a hesita­
Um atraso na clara diferenciação de re­ ção entre eles pode ocasionar dois deles
lações, contudo fundamentais, pode ser a ao mesmo tempo, os quais serão expres­
conseqüência de uma fórmula que perma­ sos um após o outro, embora um seja feito
neceu ambivalente. Em Genebra, Piaget cons­ para introduzir o fato e o outro a data, um a
tatou uma substituição muito freqüente do causa e o outro a conseqüência. Aqui, ainda,
“parece que” (porque) pelo “pourquoi” (por constata-se a ambivalência das noções in
quê) nas respostas das crianças entre 5 e 7 versas.
202 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

CONTAMINAÇÕES E DIGRESSÕES claro-escuro, podem ser substituídos ou


cruzados entre si e q u e'a evocação de um
Podem resultar, do sincretismo, dois efei­ pelo outro, quer explícita, quer implícita,
tos inversos, a contaminação e a digressão. pode orientar o discurso para outras situações,
Ambas estão ligadas ã inércia mental da crian­ outros objetos, ou reflexões completamente
ça e muitos mecanismos lhe são comuns. O estranhas ao tema inicial. Todas as oposições
que ocupa o espírito desenvolve-se nele por binárias da linguagem podem, assim, tomar­
si mesmo, sem obedecer, ainda, à influência se a fonte seja de contaminações, seja de di­
de instâncias superiores. Mas o desenvolvi­ gressões: pares-alótropos, ou seja, tendo um
mento pode levar quer a uma mistura do termo comum mas cujo sentido difere em
processo em andamento com alguma cir­ cada um, alternativa passivo-ativo, confusão
cunstância nova, quer a um encadeamento entre o ato intelectual e seu conteúdo.
sucessivo de circunstâncias sem relação com Os erros de significação, de onde re­
o tema inicial. A causa freqüente de ambos é sultam contam inações e digressões, podem
uma pergunta feita à criança. A idéia que ainda ser devidos, não ao material da lin­
aquela lhe propõe, ou é parasitada por suas guagem, mas às noções ou imagens aproxi­
representações espontâneas ou, então, pare­ madas pelo discurso. Ora há simples encon­
ce escapar em imagens que não têm mais re­ tro de circunstâncias, objetos ou qualidades,
lações com ela. sem relação essencial um com o outro, mas
O ponto de partida das contaminações que são confundidos ou substituídos entre si.
ou digressões pode corresponder a um dos Por exemplo, o morto fica imóvel; imóvel, ele
níveis funcionais que estão integrados no ato é amarrado. Por contaminação dos dois, ele é
mental. enforcado. Digressão, ao contrário, no caso
No plano sensorimotor, a assonância, ou do bom tem po, que faz a conversa desviar da
alguma analogia de estrutura, pode ocasionar cultura para o passeio ou vice-versa. Ora a
quer a contração de vocábulos vizinhos em assimilação ou a passagem são feitas entre
um produto heterogêneo, quer a substituição, dois termos incompatíveis, por intermédio de
da palavra adequada, por um o u ta que destrói uma imagem que, por acaso, condensa duas
ou deturpa o sentido da frase. A esse gênero qualidades diferentes e que opera a trans­
de contaminação corresponde a digressão, ferência delas de um objeto para outro. Pode
onde a passagem de um tema a um tema haver também transferência de sentido entre
diferente opera-se em conseqüência da atra­ duas locuções, por intermédio de analogias
ção que a semelhança morfológica entre duas ou de intuições subjetivas que parecem difíceis
palavras exerce. O simples gesto que a crian­ de compreender: assim ocorre entre “saber”
ça faz para melhor descrever seu pensamento e “estar direito.” Mas, uma vez admitida a
pode, como a expressão oral, ser a causa de equivalência, ela é aplicada, pela criança,
uma digressão. com um rigor dedutivo que parece tanto mais
É também ao nível do sentido que a idéia impertubável quanto ela é, ideologicamente,
pode ser alterada. Mas o sentido é uma zona menos justificável: a cortina suspensa, cujas
ampla, feita, em suas camadas inferiores, de pregas caem direito, é inteligente, mas não o
conjuntos verbais cujos termos implicam-se é de outra maneira. Ora, enfim, a analogia é
ou controlam-se entre si, de maneira quase ligada às classificações entre objetos que são
automática e gradualmente, em direção aos necessários ao exercício do pensamento, e a
níveis superiores, de significações mais mó­ contaminação ou a digressão fazem-se entre
veis e mais livremente adaptáveis às inten­ espécies vizinhas: o que pertence ao homem
ções originais do pensamento. A região mais é atribuído aos animais ou vice-versa. Ela
profunda é particularmente povoada por pode tam bém ter causas mais subjetivas e
pares verbais. Seus termos são palavras que, operar confusões ou trocas de motivos em
de algum modo, tiràm seu sentido uma da razão de afinidades afetivas, quer habituais,
outra, por contraste ou como complemen­ quer acidentais: assim é a contaminação entre
tares. E assim que dormir-acordar, dia-noite, a ponte e o medo: “a gente atravessa porque
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 203

a gente tem medo.” A impressão penosa que outro ocasiona a alternância deles. O curso
acompanha o ato é, contra toda lógica, dada embaraçado do pensamento é favorável aos
como seu motivo. Há digressão, ao contrário, subterfúgios, que lhe fazem esquecer, re­
quando o medo, inconfesso, que a idéia da pentinamente, sua direção primeira. Contra­
noite inspira na criança, toma-se na seqüência dições de que a criança tem dificuldade para
do discurso, o medo de seu irmãozinho ten­ se aperceber, de que ela custa a se livrar são,
tando andar: substituição de motivo e substi­ freqüentemente, o resultado desses encon­
tuição de pessoa. tros entre termos inconciliáveis, que podem
quer se conglomerar, quer se opor, quer se
INSUFICIÊNCIA substituir entre si. Ela parece ser, com
DE DISCRIMINAÇÃO INTELECTUAL: freqüência também, de uma dedução lógica
AGLUTINAÇÃO E DIFLUÊNCIA que estenderia, impertubavelmente, a ob­
jetos díspares uma mesma definição.
Além de suas causas comuns, a contami­ Essa extensividade de um tema, cuja
nação e a digressão fixam-se no mesmo es­ difusão não é detida por nada, está do lado
tado difuso do material e das operações in­ oposto da generalização e da dedução con­
telectuais. Entre as diferentes representações, ceituai. Não ésistematização, mas difluência.
assim, como entre os com ponentes intrínsecos Em vez de caracteres estritamente escolhidos
de cada uma, não há nem delimitação, nem e combinados de maneira a fazer com que se
coordenação. Nada vem se opor ao fato de encontre o semelhante nas coisas, tem-se a
que um processo mental estenda sua área de aglutinação do dispare sob a rubrica do
ação à custa de outros processos, quer com­ momento. A criança assiste à fusão ou â
plementares, quer apenas simultâneos. Nada sucessão de temas consecutivos ou concor­
também pode fazer com que um seja redu­ rentes. Ela parece admitir a coerência ou a
zido pelo outro. Nada pode obrigá-los a se continuidade dos mesmos. Mas o que ela
confrontarem com seu objeto ou com seu exprime, são m uito mais opiniões extem­
objetivo, com a realidade, nem mesmo com a porâneas e variáveis do que convicções. Ela
intenção de onde emanavam de iriício. não supera o plano das puras representações
Dois efeitos inversos podem ser devidos pelo da subordinação delas ao real. Ou me­
a essa inaptidão diferenciadora: o encontro lhor, ela ainda não distingue representação e
ou a mistura por um lado, e a resistência dos real. Portanto, ela está totalmente inapta para
temas entre si. De qualquer modo, a unidade o jogo dashipóteses, do pensamento suspen­
de tema ou de representação é, para o sujeito sivo diante do objeto. É a representação
que pensa, indispensável. Mas como ela não momentaneamente mais favorecida que
pode fazer-se por estruturação adaptada do prevalece sobre as outras, quer absorvendo-
campo intelectual, por integração ou seleção, as, quer substituindo-as. Ainda não pode
parece-nos que a criança tem um pensa­ haver hierarquia entre o possível e o cons­
mento confuso ou discordante, sem variedade tatado, pois ainda não existe, na criança, o
ou descontínuo. Face a conjuntos barrocos, poder de manter as representações distintas
persistência irredutível de imagens ou de entre si e de escolher as que devem ser
locuções, com o sé observa em certas mani­ integradas ao sistema dos fatos e das relações
festações patológicas: absurdos rebuscados reconhecidas com o con stan tes.
das esquizofrenias, embolias ideativas ou O papel essencial da diferenciação no
verbais de certas lesões cerebrais que consti­ ato intelectual encontra seu eco em numero­
tuem um obstáculo à formulação imaginativa sas teorias. É através do poder de análise,
ou falada do pensamento. atribuído ao córtex cerebral por Pavlov, que
O discurso sem nexo está muito próxim o o mesmo explica a possibilidade de criar
da persistência. A resistência do tema em reflexos condicionais estritamente ligados,
andamento dificultando o que deveria com­ não apenas a um certo gênero de excitações
pletá-lo, disso resultam freqüentes elipses. sensoriais, mas a uma nuança ou um grau
Uma redução insuficiente de um tema por perfeitamente determinados dessa excitação.
204 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Do mesmo modo, em sua tentativa para ex­ A contaminação parece, sobretudo, li­
trair do ato intelectual o que ele tem de funda­ gada ao embaraço e como que ao entrave
mental fora de toda técnica, de todas as con­ produzido por dois elementos, que se apre­
dições ou de todo material, por menos espe­ sentam simultaneamente no aparelho men­
cial que seja, Spearman chega à conclusão de tal, em vez de um suceder ao outro ou ser
que ele é, essencialmente, um ato de discer­ eliminado por falta, ao mesmo tempo, de
nimento. Na interpretação que Adrian dá das interdiscrim inação e de distribuição no tempo.
correntes de ação, registráveis na superfície Quanto à digressão, ela parece ser, habitual­
do córtex cerebral em período de vigília, mas mente, devida à preponderância do subjetivo
fora de todo processo, seja perceptivo, seja sobre o objetivo. É, com freqüência, quando
intelectual, tratar-se-iam de ondas síncronas o objeto da representação suscita uma reação
entre si e que respondem ao dinamismo global afetiva que se produz uma digressão. Uma
dos elementos nervosos em estado de alerta, emoção a favorece, atenuando as distinções
mas ainda não ocupados. Se elas se tomam mais familiares, que distribuem, em volta da
imperceptíveis aos nossos meios de mensu- pessoa, aquilo que a toca sem fazer parte
ração assim que um ato mental se produz, é dela mesma, inclusive a distinção do eu e do
porque, simultaneamente, se produziria uma outro, que o contágio das emoções sempre
diferenciação dessas ondas que dissociaria a tende mais ou menos a suprimir.
massa das mesmas. Uma outra concepção Na criança, a invasão constante do ob­
ainda, onde o ato intelectual levaria a um jeto de seus interesses momentâneos, onde
diferenciação, é a da G esltatí, As estruturas, se unem intimamente, ao verdadeiro desejo,
de onde resultam os conjuntos que realizam o simples jogo de suas atividades funcionais
o feliz agrupamento que dá à situação exte­ e a força de seus automatismos não controla­
rior ou mental sua representação adequada dos, faz da digressão uma manifestação das
ou sua solução, são um colocar em forma de mais freqüentes. A digressão é, com muita
elementos, que são, desse modo, separados freqüência, constituída de reminiscências,
da massa indistinta, como que sobre um fun­ onde o objeto da representação desaparece
do de circunstâncias, de impressões, de pos­ diante da pessoa e onde são abolidos, em
sibilidades objetivas, imaginativas ou con­ benefício do instante presente, os quadros
ceituais, que permaneceram insignificantes. mnemônicos, as referências graças às quais
A insuficiência, que explica a contami­ as lembranças mantêm sua individualidade.
nação assim como a digressão, é exatamen­ Desse modo, as condições próprias da di­
te a inaptidão para extrair da massa, onde eles gressão juntam-se às condições comuns do
mergulham a cada nível da atividade psi- sincretismo infantil. É um confusionismo
comotora, verbal ou mental, os elementos generalizado, onde os temas da represen­
que o processo intelectual exigiria; é a in­ tação, assim como os fatores elementares do
capacidade desse processo para ordená-los ato psíquico, insuficientemente diferenciados,
em figuras dotadas de coerência interna e misturam-se, quer no mesmo momento, quer
mútua, de tal modo que, por seu desenvolvi­ em sua sucessão, fundem-se, ou altemam-se,
mento e sua progressão, elas pudessem reali­ ou justapõem-se, nesse estado misto de as­
zar as respostas que convêm às intenções e similação e de ignorância mútuas que a
aos objetivos do pensamento. Na contamina­ ausência de relações definidas ocasiona.
ção, esses elementos misturam-se uns nos
outros. Na digressão, eles se dispersam e frag­ COERÊNCIA E DIVERSIDADE:
mentam o ato intelectual. Esses dois efeitos A TAUTOLOGIA E A FABULAÇÃO
contrários, resultantes de condições seme­
lhantes, ficam próximos com uma freqüência Ao esforço intelectual da criança, ofere-
grande demais para não serem fases inter­ cem-se duas direções - a da diversidade e a da
mitentes e variáveis cio esforço intelectual. coerência - que devem, mais tarde, coincidir
Mas, certas disposições podem favorecer para estender o campo do conhecimento,
mais a um do que a outro. mas que não chegam, no início, a se unir.
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 205

Uma leva a criança através dos aspectos babee o nível das significações que encade­
variáveis das coisas, a outra a obriga a nelas iam o discurso, até fazê-lo degenerar em sim­
descobrir algo de constante, quer permita ples fuga das idéias, onde abundam as apro­
reduzir as mudanças ou as diferenças das ximações puramente inúteis e os qüiproquós.
mesmas a relações determinadas. Mas é-lhe A fabulação pode ser uma espécie de diva-
preciso, para isso, conseguir ultrapassar os gação através de analogias mais ou menos
dados brutos da experiência ou da tradição. justificadas e justificativas. Pode ser também
De outro modo, ela pode apenas seguir a uma espécie de atestado pessoal, acrescido,
sucessão das coisas ou constatar a identidade pelo narrador, às circunstâncias evocadas,
de cada uma consigo mesma. fazendo, de si próprio, a testemunha ou o
Contudo, são duas vias que a encami­ protagonista do que está narrando. A simples
nham para um início de explicação. A tau­ representação recebe uma ativação subjetiva
tología tem graus. Ela parte de um simples re­ que restabelece a confusão da imagem e da
conhecimento mais ou menos intuitivo e con­ coisa, da pessoa e do objeto, do eu e do outro.
fuso, depois ela opõe, ao objeto, sua imagem O adulto ainda pode ceder mais ou menos a
ou seu conceito. No intervalo, ela se torna isso, a criança torna a cair nessa situação tanto
uma disciplina, uma tentativa de delimitação mais facilmente quanto ela mal saiu dela. Ela
rigorosa. Por seu lado, a sucessão de um também pode entregar-se, com uma boa
relato ou de uma descrição é uma amplifi­ vontade parcial, a afirmações onde pode­
cação, que pode tender a preencher lacunas mos, objetivamente, constatar apenas a mRo­
reais ou supostas, de modo a tomar verossím il mania. E a imputação pode parecer-nos tanto
o que não parecia no início. Ela se opõe à menos contestável quanto, com muita fre­
disciplina como uma licença ou uma com­ qüência, a criança tenta, visivelmente, de­
placência. Os dois procedimentos mergulham monstrar, contra toda evidência, que ela tem
suas raízes em tendências diferentes. Por um razão. Mas não há nela limite preciso entre o
lado, o gosto de reencontrar o já conhecido, ato em si e o objetivo do ato, entre o jogo
o habitual, o pessoal, sentimento que pode ir funcional e a utilidade prática, entre as
até a deleitação íntima ou a exaltação estron­ diversões lúdicas e a obrigação.
dosa, como é visível, na criança pequena, A fabulação é, ela própria, um nível da
quando do retomo das mesmas coisas ou, atividade psíquica e, como tal, apresenta um
ainda, no cachorro, quando de seu retomo conjunto de traços que se chamam e se con­
aos mesmos lugares após algum tempo de trolam mutuamente. O prazer de imaginar
ausência, mas que pode, também exigir uma está relacionado com uma grande fraqueza
atenção concentrada de seleção e de es­ de convicção. A criança não está ao nível da
crutínio. Por outro lado, um desejo de reno­ crença, mas ao da fábula. Ela ainda não tem
vação e de aventura, que poderia tomar-se um senso suficiente da objetividade, do que
quer necessidade de evasão para fora do real, existe fora de suas representações e pode
de abertura forçada contra ele, quer investi­ resistir-lhes, do controle que elas devem so­
gação estudiosas fora do conhecido ou do frer. A explicação basta-se a si mesma, sem
imediatamente conhecível. Mas, na criança, verificação necessária. O fundamento do que
essa maneira de explicar limita-se, quando a criança afirma, do que ela imagina, não é
muito, a acumular as circunstâncias de mesmo procurado nas coisas, de que ela não sabe
plano que o fato a ser justificado e pode levar fixar, comparar, analisar as imagens, mas no
apenas à fabulação. fato de imaginá-las assim. Ele não está nessa
A fabulação tem seus níveis. Ela pode ser coerência íntima consigo mesmo de onde
simples incontinência ideativa, como é fre­ brota a certeza, mas na substituição total de
qüente na criança e como os adultos tagarn­ suas representações sucessivas uma pela
ias dela fornecem o exemplo. As superfe- outra. Ele não é íntimo e pessoal, mas como
tações de detalhes e de circunstâncias não que emprestado. A credulidade substitui a
acontecem, então, sem um relaxamento na crença. A criança aceita a imagem ou a idéia
seqüência das idéias, ou melhor, sem que presentes, quer elas lhe tenham, aliás, vindo
206 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

espontaneamente ou do outro. Entre as duas, Se a fabulação leva a manifestações ele­


ela não sabe distinguir, ou melhor, ela tem mentares de pensamento, ela também pode
necessidade de confundir. Enquanto ela não ser, não apenas o resultado destas, mas um
souber conquistar totalmente sua autonomia esforço para justificá-las, para resolver a inco­
pessoal, o suporte das personalidades estra­ erência delas, para dar-lhes um aparência de
nhas permanece-lhe indispensável. Ela quer verossimilhança. Contudo, a solidariedade
manter com elas uma indiscemível mistura. que reina entre todos os efeitos do mesmo
Ao mesmo tempo em que lhe faz falta o poder nível mental tom a o remédio semelhante ao
de realizar plenamente o objeto, é-lhe pre­ incoveniente. A fabulação explicativa pro­
ciso o assentimento do outro. Por muito tem­ cede, ela também, de um termo a outro, como
po, ela permanece mais sob a dependência faz a fuga das idéias, sem ultrapassar a ligação
do ambiente social do que do meio objetivo. mútua dos mesmos. Ela passa, assim, ao acaso
Ela acredita naquilo que acreditam em volta ou segundo a necessidade, de circunstância
dela. Também para acreditar em algo, ela em circunstância, quer elas possam ou não
deve fazer com que os outros acreditem nis­ pertencer, todas, à mesma situação. Os traços
so. O segredo da mitomania, mesmo no particulares alinham-se, à custa do conjunto.
adulto, é procurar enganar o outro para As associações são menos dirigidas pelo
enganar a si mesmo. O que não é crível sentido do que por automatismos. Misturas
toma-se crível pela ilusão partilhada. Assim de circunstâncias que chamam uma a outra
como o mistificador, que procura e repele, ao ou que o meio mistura ao pensamento, atração
mesmo tempo, a mistificação para si mesmo mútua de imagens, analogias e até mesmo
projetando-a no outro, a criança está, perpe­ simples metáforas suscitam temas parasitas.
tuamente, a lançar para alguém a naveta de Pois a metáfora não é, para a criança, uma
suas ilusões para fazer delas uma verdade. É simples locução. Ela conserva, ao mesmo
verdade aquilo que é possível acreditar e tempo que seu sentido de uso, seu sentido
fazer acreditar. literal, que substitui facilmente o pensamento
Mas, esse nível inferior da crença não que ela acaba de exprimir. Sem cessar, nessa
acontece sem um nível bem baixo do com­ idade, o vínculo lógico é dissolvido pelas
portamento social e intelectual. A parte de figuras do verbo, não estando ainda feita a
jogo que ela supõe faz do outro um parceiro distinção entre a representação e as palavras
que se trata de ter como bobo ou como que traduzem. A fórmula é a coisa e vice-
cúmplice. Donde uma mudança de tom à versa. A criança crê na conformidade ne­
medida que a intenção de iludir toma-se mais cessária, na Unidade de existências das mes­
consciente. Para impor ou surpreender, o da mas. Ela também não cessa de atribuir a uma
bazófia; por cinismo, o da trivialidade; para o que reaparece na outra. Tudo o que a
fazer desaparecer as distâncias com a vítima linguagem comporta de antropomorfismo,
ou o comparsa, o tratamento por você. Mas de imagens realistas ou místicas pode ser
todas essas ações são reversíveis. Um certo considerado como tão verdadeiro quanto o
grau de familiaridade com a criança a leva a objeto de experiência, e a ele se mistura.
fabular, a se vangloriar, a afirmar, através de Freqüentemente, a fabulação parece um
seus embustes, a igualdade ou a superiori­ simples efeito dessa confusão. Ela é a re­
dade que ela se atribui em comparação com pentina prevalência do aparelho verbal e de
o interlocutor. A criança pode, até mesmo, seus desenvolvimentos sobre a idéia ade­
considerá-lo tão sem importância que suas quada das coisas. Ela assimila o que é, para o
pretensões mais pueris surgem, deixando adulto, abstração símbolo ou simples ficção,
aparecer complexos, habitualmente escon­ à realidade concreta.
didos, de satisfação pessoal ou de rivalida­ A fabulação pode ser, assim, a atmosfera
de. Com essa diminuição de controle sobre habitual e como que natural da criança. Tudo
si mesma, ela entrega-se a temas idiotas, lhe é causa de fábula, e o adulto responde,
grosseiros, desconexos, que demonstram uma com freqüência, a suas curiosidades, através
evidente regressão intelectual. de fábulas. Para a criança, a fábula não é mais
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 207

quimera do que ela é certeza. Seu espírito subjetiva em sua realização presente, essa
evolui em uma zona intermediária, onde o relação pode, contudo, implicar, eventual­
verdadeiro e fantasia não se opõem, mas mente, uma espécie de generalidade, pois as
permanecem confundidos em uma espécie impressões da criança registram-se, com
de combinação funcional, que é a atividade freqüência, sob a aparência de uma tradição,
lúdica. É através dela que a criança pode onde termos de sua experiência já estão unidos
entregar-se, sem reserva, às solicitações de maneira determinada. A criança está, em
comuns de seus apetites e da ocasião, experi­ sua presença, como que diante de tudo o que
mentando, assim, da maneira mais diversa, o a linguagem lhe traz: ela lhe procura a signi­
material ao seu alcance. ficação. Utilizando-a como fórmula inten­
cional de identificação, ela toma consciência
TAUTOLOGIA de uma relação sancionada por outros. A
E PENSAMENTO DE RELAÇÃO simples tautología a introduz, então, no mun­
do das convenções intelectuais. A novidade
Como a fabulação é o diverso, alimento que o simples redobramento A é A introduz
do conhecimento sob sua forma mais ale­ em sua vida intelectual é uma réplica, dada à
atória, a tautología dá ao mesmo, que é o realidade subjetiva, para transformá-la em
fundamento do conhecimento, seu aspecto algo admitido e reconhecível pelo outro.
mais terra-à-terra. O pluralismo puro e simples A tautología pode, aliás, ser, na criança,
das impressões ou das representações as faria apenas a conseqüência de um vocabulário
escoar como a areia. Mas, relacioná-las não ou de uma ideação pobres demais para res­
pode ser o resultado de uma simples agluti­ ponderem às suas necessidades de ex­
nação ou de uma coesão inteiramente pressões. Face ao objeto, ela se sente pronta
mecânica. A unidade deve se fazer num outro a ultrapassar o que nele percebe de pura­
plano. Ela supõe uma estrutura nova, que mente individual e como que fortuito, mas os
faça dos termos associados um conjunto onde termos lhe faltam e ela pode apenas repetir
cada um tenha, com os outros, uma espécie aqueles de onde ela partiu, sem chegar à
de identidade. Entre todos, é preciso algo de fórmula que lhes daria a significação de um
comum. Fazer de uns a explicação de outros tipo, de algum modo essencial, ao qual seria
é reduzi-los ao mesmo. Mas esse mesmo deve identificado o objeto real. Seu poder catégo­
resultar de um desdobramento, que lhe per­ rial, no que se refere ao real, é ainda muitíssimo
mita estarpresente, simultaneamente, noque grosseiro para que ela saiba opor, em suas
era distinto ou dividido. A função unificante, tautologías, a imagem do gênero à do exem­
que é a da compreensão, supõe uma ope­ plar. Elas ainda não são classificações, porque
ração de transferência: a substituição, dos a criança continua a aderir demais ao concre­
termos a serem unidos, por uma imagem to, ao particular, para ser capaz de tirar disso
nova e, da simples aproximação dos mesmos, o equivalente estável, a representação sus­
por uma ordem em que eles estejam re­ cetível de não variar passando de um objeto
lacionados. Mas o princípio de identidade, a outro, quaisquer que sejam as diferenças
necessário à formulação do pensamento, não acidentais que se acrescentam às semelhanças
dispõe, na criança, das representações, nem dos mesmos. Ela oscila, assim, em graus diver­
das relações que fariam com que o conheci­ sos, entre uma necessidade e uma inca­
mento saísse dele. Aplicando-se uniforme­ pacidade. A imagem que a criança se esforça
mente a suas impressões ou imagens suces­ para compreender escapa e a obriga a recair
sivas, ele pode apenas marcar uma adesão nos dados particulares e momentâneos, de
consciente. Ele é o simples reconhecimento onde ela procurava erguer-se até aquela.
da existência delas. Nas lutas com essa dificuldade, as for­
Essa identificação da impressão consigo mas de que a criança dispõe são, no início,
mesma não é, aliás, sem importância. Ela já muito elementares: às vezes, ela se limita a
suscita uma relação onde existe, em poten­ introduzir a palavra repetida através da pa­
cial, a do sinal com a coisa. Ainda pessoal e lavra de ligação mais neutra: “o barco nada
208 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

com os barcos.” “Os” еш vez de “o” indica, coisa libera-se do vocabulário, visto que sua
contudo, uma mudança de papel ou de signi­ imagem faz desaparecerem as diferenças
ficação. O ato de colocar no plural pode, deste. Mas, na mesma medida, a linguagem
noutras vezes, bastar-se a si mesmo: “Por que nada acrescenta à tautología. Esta responde
a pedra vai até o fundo da água? - São pedras. ” às necessidades do pensamento, que se
Dar, ao segundo termo, a forma coletiva é, exprime através de relações, mas permanece
evidentemente, isentar o primeiro de sua encerrada na identidade concreta ou na
singularidade. Isso seria o equivalente de equivalência verbal, sem atingir a definição
uma definição, se a criança se mostrasse capaz conceituai, o fato geral, a regra.
de distinguir, entre si, as propriedades dos Contudo, as tautologías da criança não
objetos, para agrupar, sob cada uma, as revelariam sincrestismo se, aos conjuntos fe­
coleções correspondentes. Mas ela ainda está chados sobre si mesmos em sua identidade
longe disso. O desdobramento da coisa em presente, elas não misturassem a identifi­
seu plural é apenas uma justificação empírica cação de termos, freqüentemente heterogê­
do fato através de sua ocorrência habitual: a neos, mas confundidos na mesma intuição
freqüência não é a regra. O plural pode sensível ou intelectual. Elas são a afirmação
também ser introduzido pela palavra “outros." formal da constância que é necessária ao
Assim, a origem do pano é uma remendagem conteúdo do pensamento enquanto ele ope­
de pedaços de pano tirados de outros panos ra, mas esse conteúdo é de origem empírica
que foram despedaçados. O plural assume, e pode registrar apenas ocorrências, enquanto
então, como que um valor substancialista. o pensamento não for capaz de aí apreender
Mas a substância não ultrapassa o objeto relações. A tautología pode, portanto, consis­
como algo que ele teria em comum com tir em unir termos diferentes. E assim, acon-
outros objetos semelhantes. São objetos idênti­ tece-lhe de aproximar circunstâncias instru­
cos a ele mesmo, realidades de mesmo plano mentais que poderão se tomar a origem de
e que não podem servir para explicá-lo, visto um desdobramento correto entre a causa e a
que eles deveriam, por sua vez, ser explica­ conseqüência. Mas o que manifesta sua ver­
dos da mesma maneira e assim indefinida­ dadeira natureza é o fato de que a relação dos
mente. A passagem do único ao múltiplo é, termos, qualquer que ela seja, permanece
ainda, um desdobramento que não exige indefinidamente reversível. Eles são, indife­
nenhuma transferência: a matéria do pano rentemente, a causa, a origem, a explicação
permanece o próprio pano, em vez de ser o um do outro. E se o papel deles pode, desse
fio e as operações, as transformações que ele modo, inverter-se à vontade, é porque eles
deve sofrer, entre muitas outras possíveis, participam da identidade do mesmo con­
para se tomar pano. junto sincrético. A relação expressa, se é
Ó segundo termo da tautología pode ser diferente da identidade, por exemplo causai,
também um adjetivo tirado do primeiro. Ao parece mais dirigida pelos hábitos de lin­
objeto, ele junta o que é próprio do objeto. guagem do que pela própria intuição causai.
Aqui, ainda, ele indica a veleidade de ultra­ A explicação circular na criança é, ao
passá-lo, de reduzi-lo a uma semelhança espe­ mesmo tempo, simples justaposição e con­
cífica ou a um princípio de existência. En­ fusão, porque os termos reunidos não têm,
tretanto, ele não o coloca, finalmente, em re­ entre si, outras ligações a não ser sua
lação com nada mais a não ser seu próprio ocorrência e sua identificação mútua. Sua ca­
conteúdo intuitivo. deia pode alongar-se sem que se acrescente
Ele pode ser também um simples sinô­ nada à explicação. Assim, no circuito entre a
nimo do primeiro. Mas a relação entre os dois água da torneira e as nuvens ou no das
permanece um simples par verbal, no qual plantas e das sementes, a criança pode muito
eles podem, indefinidamente, mudar de lu­ bem interpolar intermediários mais ou menos
gar, sem que um sirvar ao outro de interme­ numerosos, dos quais a sucessão desordena­
diário com um conjunto constante de pro­ da, as alternâncias injustificadas mostra bem
priedades ou de relações. Certamente, aqui, a que ela sente apenas, de um para outro, certa
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 209

conformidade de existência ou certa seme­ No que era particular, e por causa disso
lhança de natureza, mas que ela não discerne, mesmo sem determinação rigorosa, é distin­
entre eles, verdadeiras relações. Éuma simples guido algo de homogêneo, sobre o qual o
passagem entre objetos de mesmo plano, diverso possa desenhar-se sob a fonna de
cuja série poderia ser prolongada indefini­ relações estritamente definidas. Através de­
damente sem resultado. Eles são, como que las, organiza-se o que era o domínio da ocor­
à vontade, confundidos ou impenetráveis rência empírica ou da analogia subjetiva.
entre si, porque não passam jamais pelo pla­ Reduzir os objetos do pensamento ao ho­
no operatório. A tecelagem para o pano, a mogêneo responde à necessidade, em que
evaporação para a água, a germinação para ele se encontra, de reduzi-los a um certa
as sementes, tantas etapas onde é preciso unidade, de neles descobrir a identidade
ultrapassar os próprios objetos, para imagi­ necessária à sua própria coerência. Mas a
nar uma mudança que justifica o ato de re­ redução ao homogêneo tem, como contra­
lacioná-los, especificando suas diferenças e partida indispensável, o poder de imaginar
levando essa diferença a um ato, que pode relações, estruturas diferenciais, que se re­
muito bem ser um ato da natureza ou um ato duzem às operações de que o homogêneo
técnico, mas ao qual o espírito deve ser capaz pode ser o lugar ou a matéria. Toda vez que,
de dar sua representação, integrando a ela, a um nível qualquer do real, opera-se a fusão,
simultaneamente, a matéria sob sua forma no homogêneo, de realidades até então consi­
inicial e final. deradas como estranhas entre si, toma-se
A incapacidade da imaginação operatôria necessário imaginar as operações pelas quais
na criança é posta em evidência muito bem podem ser explicadas suas diferenças ou suas
quando os termos reunidos formam não um, transformações uma na outra. É, portanto,
mas dois circuitos, que se recortam sem terem falso dizer que a passagem das coisas no
nada em comum, a não ser os termos a serem campo do inteligível, onde elas encontram
explicados. A ausência total de integração sua identidade fundamental, é uma espécie
entre as duas séries em contato resulta da in­ de triste monotonia e de morte que substi­
coerência recíproca das mesmas. Entre as du­ tuem a diversidade da vida, como sustentam
as, não é imaginável nenhuma operação que os anti-racionalistas. Pelo contrário, a diver­
possa permitir assimilá-las. Sua aproximação sidade que existia nas coisas sem ser com­
provém apenas de uma ligação termo a termo, preendida toma-se diversidade e riqueza da
que faz de sua soma, não um conjunto, mas razão, que aumenta, proporcionalmente, seu
um ajuntamento desarmónico. Essa etapa só poder de combinação, de invenção, de comu­
é ultrapassada no momento em que dois ter­ nhão com as forças construtivas do universo.
mos simplesmente contíguos podem ser, si­ Fazer o conteúdo da experiência passar,
multaneamente, relacionados com um ter­ simultaneamente, pelo plano do homogêneo
ceiro de onde eles recebem como que uma e do operatório, é fazê-lo passar do sincretis­
topografia ou uma direção determinadas. Suas mo ao inteligível. É substituir essa mistura de
relações cessam, então, de ser pura e simples­ confusão e de dissociação, que é a represen­
mente recíprocas e os ligam, ao contrário, a tação puramente concreta das coisas, pelo
uma ordem ou a uma estrutura que ultrapassa mundo das relações. Mas a descoberta das
a ambos. Sua posição cessa de ser indefinida­ relações não se faz no mesmo nível que as
mente reversível, seu papel alternante, sua coisas que devem entrar em relação. Ela su­
significação ambivalente. Mas esse resultado põe um novo nível onde possa operar-se a in­
supõe que o terceiro termo implique outra tegração dessas coisas a uma nova ordem
coisa que as relações de cada um com cada funcional. Esta representa, ao mesmo tempo,
um, que ele introduza, entre eles, as dimen­ a redução das mesmas a uma medida comum
sões do espaço - se se tratam de posições, as e o conjunto das operações por onde podem
dimensões da substância ou da causalidade - ser postas em evidência as estruturas particu­
se se tratam das coisas e desua transformação. lares e as mudanças delas.
LIVRO SE G U N D O

AS TAREFAS INTELECTUAIS

PREAMBULO

Os meios intelectuais de que dispõe a confusões encontram-se, ainda, nas origens


criança começam por não estar no mesmo históricas de nossa racionalidade e infiltram-
nível das tarefas do conhecimento. Por mais se nela sob a forma de veios mais ou menos
elementar que possa parecer-nos seu princí­ diluídos e disjuntos. Algo dos mitos subsiste
pio, estas são o resultado de uma evolução em Platão, e o esforço de Aristóteles foi o de
histórica que durou milênios. Elas são dúpli- dar o estatuto deles às discriminações da
ces: identificar os objetos segundo suas representação e da definição. Mais voltados
semelhanças e suas diferenças; constatar e para o ato, os ritos prolongaram-se, inicial-
explicar sua existência. Por um lado, a mente, na magia e na alquimia, antes de
representação e seus limites; por outro, as chegarem aos procedimentos puramente
relações de espaço, de tempo e de causalida­ físicos da ciência.
de. Por mais prejudiciais que elas nos pare­ Para a criança, não se trata, evidente­
çam hoje, passaram-se longos períodos antes mente, de passar novamente por nenhuma
que elas fossem dadas como o fundamento dessas etapas, que desapareceram de sua
de todo pensamento possível. Uma região do ambiência. Mas também ela deve transpor as
psiquismo humano, anterior às exigências de que se sucedem, desde o momento em que já
nossa razão, mostra-se povoada de mistici- sabe reagir por condutas bem adaptadas às
dade, de ritos, de mitos, de operações mági­ situações reais, até aquele em que é capaz de
cas, de feitiços e de simulacros. As fracas aplicar, aos objetos, representações ade­
luzes que a etnologia e a lingüística podem quadas, ao mesmo tempo em que é capaz de
nela projetar fazem-nos assistir a surpreen­ reconhecer suas condições de existência.
dentes passagens entre pares, de que os dois Assim como o pensamento através das eras, o
pólos são, eles mesmos, frequentemente seu segue uma dupla orientação: constituir
considerados como intercambiáveis ou para si um sistema ideal que lhe permita
ambivalentes: o semelhante e o oposto, o identificar rigorosamente os objetos, compará-
idêntico e o outro, a parte e o todo, o momen­ los, classificá-los, em uma palavra, conhecê-
to e a eternidade, o lugar e a ubiqüidade, a los; determinar as relações de que a existência
filiação e a imanência. Os vestígios dessas dos objetos, é o sinal ou o resultado, em uma
212 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

.palavra, explicá-los. O ponto de partida é o em direção à sua representação e às suas


mesmo para as duas, o que justifica as con­ condições de existência, tende a dois resul­
fusões freqüentes que se produzem ao longo tados inversos: imputar-lhe, sob forma de
de sua diferenciação. qualidades, ou de propriedades, todos os
Na constatação de um efeito ou de um efeitos de que ele pode ser a causa; decompô-
objeto estão implicados, ao mesmo tempo, o lo em relações onde ele perde sua identidade
reconhecimento de sua natureza e o de sua fechada e que lhe conferem a existência ape­
presença, ou seja, da imagem específica, ou nas reduzindo-o a puras conjunturas de espa­
individual, e da realidade. Esta não é, aliás, ço, de tempo, de fatores diversos. Essas duas
uma etapa inicial. Constatar é imobilizar algo orientações do pensamento são, forçosa-
das relações que variam, sem cessar, entre a mente, complementares. Suas fases nem
atividade perceptiva ou motora do sujeito e o sempre são simultâneas. Na criança, a identi­
aparecimento sucessivo dos acontecimentos ficação parece um pouco mais precoce. As
ou dos objetos. No início, é às solicitações perguntas que ela faz sobre o nome dos
diversas do meio sobre seus apetites, seus objetos precedem, ligeiramente, aquelas sobre
automatismos, sua engenhosidade prática que o lugar que eles ocupam. A denominação não
a criança se entrega. Sua parada diante do é simples curiosidade de vocabulário. A
objeto, não por ausência momentânea de intervenção do vocabulário já supõe a aptidão
meios ou de desejo, mas para considerá-lo para colocar uma imagem distinta sobre o
como tal, para disso fazer um simples objeto objeto denominado; ela ajuda, aliás, a fixá-lo
de curiosidade, marca seu acesso a uma forma em seu isolamento individual ou específico;
nova de atividade, onde a coisa cessa de ser ajuda, até mesmo, a isolá-lo, aplicando-lhe o
puramente sensorimotora e toma-se idéia. O modelo de distinções ideológicas implicado
uso já pudera fazer, de certos objetos, ins­ por cada palavra de uma língua. Quanto às
trumentos aos quais se une a sua busca de perguntas de lugar, elas atestam, ao mesmo
resultados mais ou menos previstos. Mas sua tempo, que a criança é capaz de manter a
identificação confunde-se com a rotina ou as representação do objeto em sua ausência,
tentativas de que eles se tomaram o centro ou mas também que ela reduz a ausência dele a
a causa. Sua individualidade é kx>mo que um simples deslocamento e que, sob certas
reabsorvida no ato para o qual eles servem. condições de lugar, ela pode afirmar sua
Ao contrário, a estabilização do objeto-idéia persistência.
consiste, simultaneamente, em isolar a coisa Os dois sistemas de representação e de
e em descobrir suas ligações no mundo relação apresentam duas etapas fundamen­
exterior. Isolá-la, para atribuir-lhe seus efeitos, tais. A primeira é, no campo da representação,
quer perceptivos, quer práticos, sob a forma um simples enunciado das coisas, descrição
de uma essência que permita reconhecê-la ou relato; no campo das relações, uma simples
em cada uma de suas aparições, ou seja, constatação de presença em tal lugar e em tal
supô-la para reconhecê-la entre as seme­ momento. A segunda é a definição, por um
lhanças e as diferenças das outras, Ela se lado, a explicação, por outro. A definição,
torna, então, representação mas, por causa que transforma a representação em classes
disso, abandona sua existência necessa­ definidas, com exclusões mútuas, ajustamen­
riamente efetiva. É preciso, para restituí-la, a tos sistemáticos. A explicação, que justifica a
esta última, religá-la ao que constitui realmente existência ou a não-existência através da
a existência das coisas, ou seja, a presença causalidade, ou seja, através da necessidade
destas num sistema de lugares, de tempos, de que une determinadas conseqüências a deter­
circunstâncias necessárias. minadas condições.
Essa evolução divergente do objeto, Entre os dois sistemas, pode haver
PREÂMBULO 213

contaminações ou trocas: contaminação, o produzi-las, ou melhor, é à essência delas


fenomenismo, por exemplo, que é um recuo que se queria misturar a existência como um
da causalidade para a simples descrição e que de seus atributos. Por seu lado, a magia ou a
reduz a explicação causal a uma simples alquimia não se limitam a realizar conjunturas
narrativa de existência; troca, por exemplo, de elementos e de operações físicas, mas é
da causalidade à representação, a propri­ preciso que, no momento supremo, inter-
edade, que imputa à coisa, sob forma de venha o ato ideal que traduz e deve tomar
qualidades, os efeitos que resultarão de sua eficaz uma fórmula consagrada.
presença em um certo conjunto de presenças. Mais tarde, a distinção parece afirmar-
Da representação à causalidade, o finalismo se entre as ciências operatórias, como a física
que descreve certos arranjos de causas e de ou a química, e as ciências descritivas, como
efeitos, mas que atribui ao conjunto deles o são certas partes das ciências naturais ou das
poder de produzir-se, ele próprio, sob a ciências sociais. Contudo, a descrição, que
influência de intenções obscuras ou de um não pode, em si mesma, implicar a explicação
decreto providencial. Também acontece que causai, pode esforçar-se para reencontrar a
certas etapas do conhecimento pareçam causalidade, duplicando as imagens que ela
conduzir, como em espelho, as primeiras classifica, entre si, de um estatística, simples
confusões da representação e da existência. constatação de existência, mas cifrada e que
Por mais longe que se possa remontar, permite, assim, reconhecer em que medida
a imagem só parece, inicialmente, poder elas poderiam condicionar-se bem entre si,
mentalizar-se através do simulacro ou da ou seja, aparecer como fatores mútuos de
efígie, associados à invocação oral. O objetivo existência. Em compensação, acontece à
é fazer existir realmente o que é reproduzido própria física de ter que se concentrar em
sob forma concreta, provavelmente, mas no simples constatações estatísticas, na impos­
estado de simples representação. Etapa sin­ sibilidade em que se encontra de determinar
crética onde permanecem intimamente mis­ as relações individuais dos elementos pre­
turadas a expressão, a imagem e a existência sentes. E até mesmo, para cada elemento, a
das coisas. Nesse período mítico, a repre­ determinação simultânea de suas relações
sentação parece dever prevalecer sobre as com as duas coordenadas essenciais da
discordâncías de tempo e de lugar, como se existência, seu lugar no tempo e seu lugar no
elas não fossem as coordenadas rigorosas de espaço, onde tornar-se impossível, como no
cada existência, mas contingências inde­ período da indeterminação sincrética. Mas,
terminadas que seriam modificáveis à von­ no intervalo desses dois momentos, é o saber
tade. Quando acaba se operando a separação humano que se interpõe.
da imagem e da ação, logo que se desen­ Talvez o paradoxo se tornasse menos
volvem, freqüentemente com uma espécie pertubador se a ordem do espaço e a do
de hostilidade recíproca, por um lado, o tempo fossem consideradas, não como um
sistema especulativo das representações, dado fixo ou a priori quer do universo, quer
classificadas em gêneros, em espécies e da razão, mas em sua história, em sua evo­
distribuindo as coisas em categorias bem lução, nos fluxos e refluxos de sua diferen­
ordenadas, por outro lado, os corpus de ciação. Elas devem ser perpetuamente ajus­
práticas e de receitas supostamente capazes táveis aos objetos que o mundo propõe à
de transformar o real, cada um dessas duas razão. Para a criança, elas não respondem a
orientações conserva, por muito tempo, noções evidentes logo de início. Provavel­
algumas pretensões ou procedimentos da mente, a percepção as têm em potencial mas,
outra. À classificação das coisas é, com às percepções, é necessário acrescentar uma
freqüência, imputado um certo poder de ordem de noções que se referem a outra coisa
214 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

.que a cada percepção particular. É preciso seu alcance, ou que causam problemas cujos
ultrapassar as coisas para imaginá-las e para dados não entram nos dados da experiência
explicá-las. corrente, sofrem um grande atraso. Em relação
É o que aparece muito bem nas ao que é imediata e completamente coisa
tentativas âs quais a criança deve se entregar para as atividades da criança, eles podem ser
para estabilizar o conteúdo de suas repre­ chamados de as ultracoisas. Sob esse nome,
sentações e para reduzir, a relações estri­ eles fornecem alguns exemplos destinados a
tamente definíveis, a existência daquilo que confirmaros capítulos que serão, em primeiro
é. Segundo os objetos, seu esforço é mais ou lugar, consagrados à representação das coisas
menos lento. Aqueles que estão menos ao e à explicação do real.
PRIMEIRA PARTE

A REPRESENTAÇÃO
DAS COISAS
C a p ítu lo ï

O INVENTÁRIO
Iе О Pees amento Descritivo

Inicialmente associada às coisas através de cada situação ou de cada objeto, derivam,


de seus movimentos, seja porque ela insira em parte, dos atos através dos quais se ope­
entre elas suas próprias forças, a fim de rava a passagem concreta da coisa à imagem.
modificar as relações ou as formas das O gesto, após ter sido complementar da coisa
mesmas, seja porque ela faça, de seu próprio a ser modificada, tomou-se complementar da
corpo, o campo de sua atividade, acomodando coisa a ser expressa. O pensamento parece
sua atitude à presença das coisas, procurando muito bem ter sido mímico, antes de ser
reproduzir algo delas, assemelhar-se a elas, falado. Da mesma forma, ele passou, em
imitá-las, a criança não poderá opor-se a elas, seguida, por todas as etapas ou formas da
como objetos distintos de si mesma, senão descrição mais ou menos literal, esperando
por meio de imagens de onde sejam, gra­ distribuir a realidade conforme ele saiba
dualmente, eliminados os elementos sub­ descobrir nela propriedades que explicam as
jetivos. Mas a imagem permaneceria estranha ações das coisas entre si. Traços dessa evolu­
ao objeto, ou melhor, ela não teria podido ção podem ser observados na criança. A
nascer nem se constituir um conteúdo de menos que se olhe para ela, é, por vezes,
realidades consistentes se, das mais concretas impossível compreendê-la, pois as palavras
às mais abstratas, ela não se encontrasse que emprega são puramente demonstrativas.
combinada a atos ou a situações efetivas, de Elas anunciam, chamam a atenção, mas são
que ela cònservaria determinadas circuns­ vazias de qualquer conteúdo representativo.
tâncias ou determinados traços particulares, É o gesto que lhes faz as vezes. A regressão da
os mais próprios para fazê-las reviver. Cada linguagem, no afásico, põe em evidência os
nível incorpora-se no seguinte, mas nele mesmos graus. A interjeição, o chamamento,
permanece latente. Ao mesmo tempo, a o gesto sobrevivem nele, muito freqüente­
imagem sempre se fixa mais a seus meios de mente, à denominação e, bem entendido, à
expressão ou de evocação, ou seja, aos sím­ explicação, senão sempre ao circunlóquio ou
bolos e resume-se nisso mais ou menos à tentativa de descrição.
completamente.
B...ère 6; “São grandes as ondas? - Assim
A DESCRIÇÃO GESTUAL (braço estendido horizontalm ente). - Como
elas fazem? - Assim (reptação da m ão)"
Os símbolos, que acabam tendo, pratica­ A. A...dre 6; “De que tamanho é a lua? -
mente, seu lugar nas significações que o Assim (gesto circular m arcando a dim ensão
pensamento do homem constrói para além de um prato grande)"
218 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

G... ain 6; “Como o sol? - É com traços assim contrária, pode também tomar-se o instru­
(faz, сот о dedo, movimentos сото se traças­ mento de seu aparecimento.
se raios).” Conseqüências devem ser tiradas disso,
L...et 6;l/2 “O Sena se mexe? - Não, - Se você para os surdos-mudos por exemplo. Uma
põe uma rolha no Sena, ela fica no mesmo pretensão absurda e vã consiste, por vezes,
lugar? - Fica, depois ela sobe assim (fa z seu em impedir-lhes o uso dos gestos, que lhes
dedo ir de cim a para baixo e vice-versa).” são de uma tal necessidade prática intelec­
tual que dois surdos-mudos não podem es­
O gesto aqui, refere-se a certos modos tar frente a frente sem improvisar uma lin­
ou movimentos das coisas. Ele não as enun­ guagem e que as próprias pessoas que po­
cia. Não é um meio de evocar a imagem dem ouv ir, em contato habitual com um
delas, de substituí-las. A criança limita-se a surdo-mudo, nunca podem fiscalizar-se o su­
descrever o objeto que ela escutou nomea­ ficiente para não acompanhar suas palavras
rem. Seus gestos não são uma linguagem, com uma mímica que, com freqüência , so­
como podem ser nos surdo-mudos, como zinha é compreendida . O motivo dessa in­
puderam ser em certas fases muito remotas terdição seria o de readaptar o surdo-mudo
da humanidade. Eles não ocasionam, por­ à sociedade dos que ouvem obrigando-o a
tanto, as mesmas dificuldades para exprimir 1er os lábios. As possibilidades dessa leitura
as coisas em conceitos ou em relações. Eles são, de qualquer modo, muito limitadas. Se
não ocasionam os modos de pensar que Cu­ ela representasse, verdadeiramente , tudo o
shing assinalou, em povos primitivos, como que o surdo pode receber de sua relação
os vestígios de “conceitos gestuais.” O que com as pessoas que o cercam, seu desen­
eles marcam, tanto na criança quanto no afá- volvimento intelectual e sua própria socia­
sico, é uma pobreza , uma inércia de voca­ bilidade seriam terrivelmente atrofiados. O
bulário, causa ou conseqüência, em graus va­ que falta aos surdos-mudos são os meios de
riáveis , de uma certa incapacidade para de­ expressão, com todas as limitações mentais
compor a imagem concreta em termos, noções que podem disso ser a conseqüência. Longe
ou comparações que destacam, da coisa, seus de entravar suas necessidades de expressão,
diferentes traços, para deles fazer o traço de sob qualquer forma que elas possam se ma­
união com outras coisas. nifestar, conviria, ao contrário, estimulá-las.
A designação gestual permanece, por­ Não há nenhuma dúvida de que seu sentido
tanto, longe de toda elaboração conceituai. da expressão seria desenvolvido e abriria-
Mas ela poderia estar na origem de uma re­ lhes um acesso muito mais amplo aos outros
constituição gráfica com as esquematizações modos de expressão, inclusive o dos lábios.
que se seguem.Evoluindo, ela poderia, por­ De um para o outro, fariam-se comparações,
tanto, tornar-se o meio de reconhecer e de execeria-se uma emu-lação ,uma estimulação.
assinalar sem elhanças. Eis aí, de fato, um ca­ Longe de obrigar a linguagem gestual dos
minho onde a criança se lança bem facilmente, surdos-mudos a ser clandestina, longe de re­
desde seus esforços para reproduzir, através legá-la aos empregos mais brutos e , às ve­
de gestos ou atitudes exageradas ou conven­ zes, mais baixos, seria preciso ajudá-la a se
cionais, o que a choca ou a diverete no outro, desenvolver, estudar todas as sua possi­
até os grafitis e os desenhos, que se fixam bilidades, se necessário, constituir comissões
muito rápido em figuras estereotipadas para de pesquisas e de experiência, onde colabo­
cada categoria de objetos. Assim, mesmo a rariam surdos-mudos e mímicos. Pois não se
descrição puramente gestual, ao mesmo tem­ trata de transferir a linguagem oral para os
po em substitui a fórfhula verbal ou concei­ dedos, como fazia o padre de L’Épée, mas
tuai ainda inutilizável e é-lhe, de algum modo, exigir, do próprio gesto, todos os seus po-
O INVENTÁRIO 219

deres de expressão. Elevada a essa dignida­ Desse modo, a criança parece operar,
de, a linguagem gestual se tomaria uma lin­ por retoques sucessivos, para diferenciar o
guagem que teria sumas regras esua sintaxe, ovo oval do redondo, ao qual ela começou a
que, em certas circunstâncias, as próprias compará-lo aproximativamente. Esse vai-e-
pessoas que podem ouvir utilizariam. Tanto vem entre a forma elementar ou esvaziada de
ela poderia servir, ao indivíduo, para a com­ suas particularidades, que a tomaria imprópria
preensão das outras linguagens, quanto po­ para representar os objetos individuais, é a
deria, por comparação com elas, completar descrição minuciosa de cada um é contínuo
nossos conhecimentos sobre as relações do na criança. É aí que está o papel da descrição
pensamento e da linguagem. em sua evolução mental: não, propriamente
falando, a sobreposição, aos indivíduos, da
DO ESQUEMA AO INDIVIDUAL espécie e do gênero, mas algo de muito mais
primitivo, a aprendizagem de estruturas mais
A influência do esquema gestual ou de ou menos complicadas, ou heterogêneas,
seu sucedâneo gráfico é, freqüentemente, que permitem que a criança oponha, suces­
muito parente na linguagem da criança. sivamente, o que é informe ao que se converte
em uma forma limite, depois à forma limite de
C...in 6;l/2 “O que é a lua? - É um a outras estruturas, que se distingüem dela por
bolinha que parece com um homem.” algum acidente, e assim por diante, desde as
mais puras até as mais misturadas com ele­
Faz-se a fusão da lua e do homem espon­ mentos imprevistos. Essa diferenciação fun­
taneamente por meio dos círculos, for­ cional é, sem cessar, estimulada pelas ima­
mas limites, simples, absolutas, às quais a gens heterogêneas que as experiências con­
criança reduziria sua imagem das coisas, onde cretas da criança fazem-lhe registrar das coisas.
ela inscreveria, de modo semelhante, coisas A criança também passa, de um esquematismo
dessemelhantes? É ela a simples reminiscên- exagerado, a descrições exatas.
cia das imagens que, favorecendo essa ten­
dência, o adulto lhe dá da lua como que de A...dre 6; “Vocé sabe o que é a lua? - Isso
um rosto? Pouco importa: sugerida ou es­ fic a redondo e é aceso dentro.”
pontânea, essa esquematização entra, ime­ M...ard 7; “Como são as folhas embo-
diatamente, nos procedimentos de expres­ loradas? - São am arelinhas. - Para onde vão
são da criança. as folhas emboloradas? - Elas caem .- E depois?
Aliás, não é porque ela não seja, in­ - Elas são quase quebradas. - E depois? - F az
versamente, capaz, a propósito de um objeto cinza.”
determinado, de diferenciar-lhe a forma par­
ticular. Ela vai, alternadamente, da forma sim­ Por um lado, a indicação mais lacônica:
plificada, convencional, para a forma per­ contorno e enchimento, um simples esquema ;
cebida. Assim, a descrição faz-se, ao mesmo por outro, uma seqüência de transformações,
tempo, por si mesma e sob a influência de cada uma marcada por um traço minucioso.
atividades redutoras que a ultrapassam.
A...aud 6; "Onde está o céu? - Ele é muito
M...ard 7; “Como é um ovo? - É oval. - E grande, tem em todo lugar. - Mas não aqui. -
o que mais? - Um pouquinho redondo. - E o Elefica, às vezes, no pátio. - Como a gente o
que mais? - É pontudo em baixo. - E o que vê? - É lá em cima. - Você não o vê daqui? - Do
mais? - Tem um lado que épontudo e o outro pátio, a gente vê. - Como ele é? - Um pou­
não é pontudo. - O ovo é mole? - Duro, a quinho preto e um pouco de sol."
casca.”
220 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

A descrição acrescenta, aqui, uma nota­ por mais insignificantes e estranhos ao es­
ção bem sutil do aspecto que um céu, meio sencial que eles sejam. A descrição ainda não
luminoso, meio nebuloso, oferece à noção é capaz de definir-se a si própria.
de sua ubiqüidade. Desse modo, ela está
sempre entre a impressão pessoal, ou o fato DESCRIÇÃO NARRATIVA
particular, e o limite convencional, o esquema
usual ou fato banal, ora unindo-os, ora mais Um procedimento muito próximo, que a
subjetiva e ora mais conformista. crinça utiliza particularmente em suas
É dessa maneira que ela desempenha explicações, é a forma narrativa. Nesses caso,
seu papel, que é o de transpor a experiência são incidentes ou situações que se invocam e
diretamente experimenta em termos que a se encadeiam entre si. Os relatos da criança
tornem igualmente válida para outros. Ela são, aliás, com freqüência, mais enumerativos
não pode comunicar-se, a menos que adote do que verdadeiramente organizados. As lo­
mais ou menos, por mais escrupulosa e literal cuções que usa são as que se limitam a marcar
que seja, as formas da sensibilidade banal e a sucessão: "e depois", "e então". Mas, mais do
que encontre para si um meio de noções que verdadeira sucessão, trata-se freqüen­
comuns. Ela deve usar imagens e compa­ temente, de simples justaposição. Ela faz
rações. Mas, sobretudo, ela supõe uma lin­ também grande uso de "quando" ou "às vezes"
guagem ou gestual, ou gráfica, ou oral. Essa para introduziruma circunstância, cuja ligação
linguagem é regulada por suas condições ao fato em questão pode ser das mais variáveis.
próprias de existência e por seus meios de
execução. A descrição submete-se, portanto,
às exigências daquela, tentando, ao mesmo N...et 6; 1/2 “ O que que são as nuvens?
tempo, adaptá-la a seus fins presentes. É um - É quando chove”
jogo perpétuo de ações e de reações, que a B...ère 6; “Às vezes, eu não vou na esco­
faz oscilar e a faz passar, sucessivamente, sob la. - Por quê? - Q uando eu fic o doente.”
a influência preponderante quer da expressão, A...dre 6; “Como os dentes crescem?
quer da experiência. - Para crescer, quando a gente come bem "
É por causa disso, aliás, que ela marca G...ain 6; “Como o sol faz para dar calor?
um limiar importante na conduta intelectual - Q uando elefic a vermelho. ”
da criança. As relações desta com o real, onde “Para que servem as nuvens? - É para
ela está mergulhada, não consistem mais, fa z e r a neve ca ire quando chove” (Embora
apenas, em reagir às situações encontradas, a forma da resposta tenha sido, inicialmente,
recompondo-as. A descrição atesta que ela se a que respondia à forma da pergunta, o
tomou capaz de operar sobre representações, “quando” reaparece como que de maneira
de esforçar-se para colocá-las de acordo, ao incoercível.)
mesmo tempo, com suas impressões sensíveis P...et; “Como você sabe que estamos
e com seu material corrente de imagens ou de vivos? - Q uando a gente anda. - Seus olhos
procedimentos. Donde, na criança, a fre­ estão vivos? - Estão. - Como você sabe? - É
qüência de seus desvios num ou noutro quando eles se mexem. -... - Como a gente vê
sentido. Ora a descrição é desviada de seu que morreu? - Q uando o coração não bate
objeto por uma expressão mais fácil ou mais mais.”
sedutora. Ora ela parece estagnar-se, pela D...ne 6; 1/2 “Como a gente pode fazer
incapacidade para libertar-se da impressão vento com um leque? - Q uando a gente está
original e para encontrar-lhe um equivalente com m uito calor.”
exprimível. Ora, enfim, ela pode prosseguir, Às vezesse rve para limitar uma afirmação
por simples invocação de detalhes entre si, absoluta demais, para evitar conseqüências
O INVENTÁRIO 221

definitivas demais. É a simples eventualida­ “Por que o ar não fica nos países frios? -
de oposta à necessidade. O pensamento da Porque, às vezes, ele vai embora p o r todos os
criança move-se no contigente; ele não sabe lados.” (Aqui, ainda, o fato é oposto a uma
distinguir, entre si, as relações, nem, por espécie de lógica elementar.)
conseqüência, estabelecer relações fixas. Q uando tem, evidentemente, uma sig­
nificação temporal, mas a criança, com fre­
B...ère 6; disse que sempre vai passear qüência, substitui as relações completamente
aos domingos: “Todos os domingos? - Ãs diferentes que a pergunta feita pode implicar
vezes, eu não vou.” por essa significação. Essa relação de tempo
A...dre 6; “O que os ratos podem fazer a é, aliás, das mais elementares. Consiste em
você? - Não m uita coisa, andam , às vezes, em uma simples coincidência de circunstâncias,
cim a dopé... e, às vezes, tem um rato, ele vê sem indicar, verdadeiramente, uma ordem de
a gente, ele vai para o cano, ele volta, ele dependência. Freqüentemente, os dois termos
come porcarias, ele come tudo na valeta!’ que ela une podem ser interventidos à
O Sena “às vezes vai para lá e às vezes vontade: "Chove quando fa z m au tempo" e
para lâf (nenhuma corrente num sentido "Faz m au tempo quando chove”. E assim,
determinado, nenhuma regra.) muitos outros exemplos. Q uando pode ser
“Д isso pode acontecer com m eu p a i às cópula entre dois termos que não perten­
vezes (morrer).” (Eventualidade talvez ne­ cem , essencialmente, ao tempo e pode marcar
cessária, mas com data indeterminada.) uma simples conveniência, uma identidade,
G...ain 6; “Quando toda a água do céu uma associação de natureza inteiramente
caiu, como é que ainda pode chover mais indeterminada.
tarde? ...Será que não chove mais? - Não Acontece o mesmo com o “às vezes”. Os
senhor... e depois, às vezes, ela volta.” (Fato contos de crianças começam com “Era uma
de experiência oposto à conseqüência lógica.) vez”. Eles estão, desse modo, bem posicio­
nados no tempo, mas através de uma fórmu­
Anoitece para que se durma “O que é la que dispensa posicioná-los em um mo­
que não deixaria que dormíssemos de dia? - mento determinado do tempo. "Uma vez”
Ningúem. - Então, por que fica de noite? - não se inscreve em nenhuma série temporal.
Porque, às vezes, a gente não está cansado de É como que um tempo fora do tempo verda­
dia, e quando a gente chega do trabalho, a deiramente vivido pela criança, um tempo
gente está cansado. (A associação habitual sem referências possíveis. Do mesmo modo,
do sono e da noite, dada, inicialmente, sob “às vezes” é um meio, para a criança, de
formà de relação finalista e necessária, é, em evadir-se, quando a proposição emitida pare­
seguida, substituída por uma outra relação, a ce estar em oposição com circunstâncias reais
do sono e do cansaço causado pelo trabalho ou incontestáveis. A diferença é que, ao con­
do dia. A substituição de um por outro é trário de “uma vez”, “às vezes” apela para
operada por intermédio do “às vezes”, que é contingências que podem produzir-se no
um meio de relaxar o rigor ou a constância da plano da experiência real. “Era uma vez” é
relação precedentemente expressa, nela in­ uma locução de adulto para ser usada com
serindo uma relação conexa. Aqui, a conti- crianças. Mas a criança diz “às vezes”. Assim,
gência, indicada por “às vezes”, não se apóia confirma-se que, dela mesma, ela não sabe
sobre o que se segue, como queria a frase, imaginar um tempo diferente do tempo
mas é dirigida para trás, para a relação a ser realmente vivido, como faz, ao contrário, o
corrigida, porque é, inicialmente, formulada primitivox. Ela permanece no plano concreto
de modo absoluto demais.)
O vento, diz ela, vem dos países frios (1) Ver De l'acte à la pensée.
222 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

das coisas. Está integrada ñas circunstancias, imoralidade podem ser sublimadas pela ex­
mas não sabe destacar-se delas para ordená- pressão estética e acrescentar-lhe a satisfação
las, reduzi-las entre si de modo a definir as mais refinada de uma dissonância resolvida.
relações específicas das mesmas. Ela opõe, à Nada disso ocorre nos relatos da criança,
regra, o eventual. Ela ainda não é capaz de ainda menos em suas explicações. As cir­
estabelecer, entre as circunstâncias que reú­ cunstâncias encadeiam-se, ou melhor, su­
ne, a unidade, o equilíbrio que delas fariam, cedem-se, sem constituir um conjunto onde
verdadeiramente, um conjunto, um todo ló­ estejam, finalmente, solidárias entre si. Parece
gico, explicativo ou apenas narrativo. Ela en­ que, de uma para outra, a criança mais ou
cadeia imagens e circunstâncias tais como menos perdeu a memória da totalidade das
elas estão ligadas em suas experiências ha­ mesmas e que só subsiste de cada uma,
bituais ou fortuitas, ou segundo associações embora tomada em bloco, seu ponto de
que o interrogatório lhe propõe. Elas não contato com suas vizinhas. E é precisamente,
têm, entre si, a espécie de proporção que se aliás, porque elas são, de maneira isolada,
observa nos relatos ou nas explicações do como que indivisas e globais que, de uma
adulto, cujo pensamento está sempre, de para outra, a passagem pode ser, suces­
maneira mais ou menos rigorosa, como que sivamente, uma associação diferente. Há sim­
em busca de uma equação, de uma equi­ ples transdução.
valência final entre os acontecimentos ou os
resultados de que se trata de justificar e as 2° A E n u m eração
circunstâncias ou causas enunciadas. Essa
equação, esse equilíbrio impõem-se em uma A enumeração é a forma freqüente sob a
simples seqüência de incidentes, a partir do qual se desenvolve o pensamento da criança.
momento em que lhes atribuímos uma sig­ Ela pode mover-se de imagem em imagem,
nificação. Ela pode, seguramente aliás, per­ de objetos em objetos, sem ter que ultrapassar
tencer a planos variáveis do pensamento, a experiência concreta das coisas. Desse mo­
conforme trate-se de explicações físicas ou do, ela pode aproximar-se da simples trans­
morais. dução, onde a razão de agrupar os termos da
As obras do espírito mais fantasistas, um série reduz-se, essencialmente, ao ato que os
romance, um drama não escapam a essa reúne um a um, podendo os motivos da apro­
necessidade. Ficaríamos insatisfeitos com uma ximação mudar de associação em associação.
obra literária na qual faltasse coerência entre Mesmo se ela já é um inventário intencional
as partes, entre o acontecimento para o qual de objetos, de acontecimentos, de atos que
tende e suas premissas históricas, psicológi­ parecem ter entre si algo de comum, ela ainda
cas ou morais. Há pessoas que se indispõem pode uni-los sucessivamente, segundo pontos
com uma história que termina mal, onde os de vista diferentes. Ela oferece, contudo, o
maus, por exemplo, triunfam. Se o mal vence, meio de controlar, através de exemplos, o
é preciso uma instância superior onde o sentido dado às palavras, num período em
equilíbrio se restabeleça sob forma quer de que a criança ainda não sabe defini-las com a
uma necessidade ligada ao destino, quer de ajuda de equivalentes ou pela indicação de
uma responsabilidade mesmo involuntária, qualidades, de efeitos, de causas, de cir­
quer de uma espera ou de uma esperança cunstâncias apropriadas. Procedimento esco­
compensadoras, quer apenas da resignação lar, é um método para ensinar significações,
ao fato consumado. Mas o plano moral não é para exercitar a aptidão conceituai da criança,
o único onde o equilíbrio possa se recuperar. 0 e para ensiná-la a agrupar os objetos por ru­
Por vezes, ele se restabelece através de invasão bricas, a ordenar essas rubricas entre si, con­
de um plano sobre o outro. Uma vilania, uma forme elas se estendam a objetos que têm em
O INVENTÁRIO 223

comum qualidades mais particulares ou mais Não conseguia lembar-se de nomes de pes­
numerosas. Assim, a enumeração apresenta soas, a menos que representassem, para si,
graus, e também falhas, que permitem medir pessoas determinadas. Nesse nível, a enume­
a flexibilidade e o rigor crescentes para onde ração é um decalque da experiência concre­
devem tender as relações que o pensamento ta. A palavra ainda está absorvida na coisa. As
é capaz de contrair com as coisas. imagens monopolizam o pensamento, como
se ele fosse o simples filme da sucessão delas.
A ENUMERAÇÃO DE ORIGEM Muitas enumerações espontâneas na
PERCEPTIVA E SENSORIMOTORA criança pequena são desse tipo. Frequente­
mente, aliás, elas se confundem com a sim­
A enumeração mais primitiva parece ser ples denominação dos objetos, seja porque a
a que reúne os objetos, não segundo qua­ criança os está reunindo efetivamente, seja
lidades que lhes seriam próprias, mas con­ porque ela queria deles dispor, seja, apenas,
forme eles se refiram à atividade do próprio porque eles se chamem um ao outro na cena
sujeito e sejam “constelados” pelo que ele que ela está vivendo em intenção ou em ima­
pôde ou poderia efetuar. É, sob forma, fre­ ginação. A enumeração é, então, apenas o
qüentemente, de intenção, o equivalente da aspecto verbal da experiência em que a criança
lembrança sincrética, a qual agrupa circuns­ encontra-se momentaneamente empenhada
tâncias que não têm, entre si, outra ligação a por sua atividade sensorimotora ou pelo
não ser a de pertencerem ao mesmo acon­ desenrolar de suas representações. É a fase
tecimento ou ao mesmo momento e a de da enunciação ou da formulação oral. A ex­
terem sido vividas no mesmo instante de pressão verbal permanece, muito ainda, um
existência. Esse gênero de enumeração é o simples eco que se acrescenta ao ato, à per­
que Goldstein 0. de Ps., 33, 481) encontrou cepção ou à imagem, para se conseguir dirigir
em afásicos. Os objetos não são reunidos o encadeamento das palavras pronunciadas,
segundo a cor, a forma, a matéria, o uso, e mais ainda, para exercer, entre elas, uma
como é fácil de obter, à vontade, com sujeitos escolha conceituai.
normais, mas na medida de seu emprego Ela é, contudo, um gesto de uma espécie
eventual ao longo de uma situação pessoal e particular, apto a se apropriar de si mesmo e
particular. Uma doente evocava, na mesma a se desenvolver fora das situações ou dos
série, objetos díspares porque eram os que objetos que o motivam, atos e percepções
ela teria levado consigo em viagem, ela não sonoras reagindo um sobre o outro. A criança
sabia enumerar os objetos que se encontram pequena entrega-se facilmente à atividade
em uma cozinha, a menos que fosse levada, vocal e verbal por si mesmas. Ritmos, modu­
pela conversa, a representar sua própria co­ lações, consonâncias, junções silábicas inspi­
zinha. É como se as palavras tivessem per­ ram-lhe ladainhas ou canções que a ocupam
dido o poder de evocar um exemplar qual­ durante longas pausas. Essas qualidades plás­
quer das realidades de que cada uma é o ticas da fala também não ficam sem ter sua
nome e de serem, elas próprias, evocadas influência na seqüência das palavras que são
pelo conceito correspondente, mas é como evocadas, na criança, em seu período de
se elas permanecessem ligadas à imagem de atividade concreta onde o conceito ainda não
uma realidade particular, como é o caso de pode projetar nada a não ser sombras apa­
um nome próprio. Uma outra doente não era gadas e fugidias.
capaz de dar uma lista de animais, a não ser Se é possível compará-la ao afásico, cujas
dos que ela havia encontrado em um jardim palavras permanecem ligadas à sua atividade
zoológico; a ordem em que ela os havia visto pessoal, a criança pequena lembra também o
era a ordem imutável em que podia citá-los. maníaco, pela influência que exercem, sobre
224 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

suas enumerações, tanto os objetos de suas Mesmo retorno perpétuo aos objetos que
percepções presentes quanto os efeitos senso- a circundam ou que pertencem a seu meio
rimotores da linguagem. Suas associações so­ habitual em G...el 7; “Qual é a forma da lua?
frem essa influência tanto mais facilmente - Redonda. - E a forma do sol? - Quadrado'1.
quanto elas escapam mais à de instruções ou - O que mais existe de quadrado? - Pedaços de
de temas puramente abstratos ou intelectuais. madeira. (Ao mesmo tempo em que dá essa
resposta ainda m uito imprecisa, a criança
Convidada a citar coisa que não es­ passeia o olhará sua volta.)- E o que mais?...
tivessem vivas, H...é 6; responde: “As árvores - Uma tábua, um a cadeira, um quadro, um a
(de que acaba de se falar). - E o que mais? - lousa (todos objetos que estão sob seus olhos.)
As mesas. - E o que mais? - (ela olha ã sua - E o que mais?... Uma coisa quadrada que
volta) A s cadeiras. - E o que mais? - Os você conheça? - A parede. - E na sua casa? -
armários. - E o que mais? - As janelas.” Uma tábua, um peso, cadeiras. - As cadeiras
C...in 6; 1/2 “E coisas duras? - Uma mesa, são quadradas? - Não, senhor. - Então? - A
um a casa, cadeiras, um radiador, o teto, o toalha de mesa. - Por que as cadeiras não são
armário. - Mas fora dos objetos que estão quadradas? - Porque tem o encosto. - Que
aqui? - Madeira, árvores. - E o que mais? - Os forma tem o encosto? - Quadrado. - E a ca­
postes telegráficos. - E o que mais? - A s cha­ deira? - É cruzada (há, no aposento, cadeiras
m inés das casa. - E o que mais? - As janelas, dobráveis de ferro). - E na rua? - Umpedaçode
o teto da escola, o pátio, os m eninos e as m e­ madeira, um pedaço defeno. - E o que mais?
n in a s- Como é que os meninos e as meninas - Um banquinho, a tábua onde se coloca o
são duros? - Porque eles têm carne. Q uando medidor, um quadro, um quadrado. - O que
a gente morre, a gente mexe nos ossos e eles é redondo? - A lua. - E o que mais? - A
quebram .” lâm pada (olhando a grande lâm pada de
vidro fosco de um refletor), o papel (de­
A supressão do tema é, aqui, visível. É signando opapel estendido sobre um cilindro
para os objetos presentes ou perto dos lugares registrador), os cestos, o aquecedor, um as­
onde se encontra a criança que retoma a sento de um a cadeira redonda, um a roda,
enumeração, mesmo após o convite para um a garrafa, um balde, um jarro (todos
procurar em outro lugar. Dos lugares, ela objetos presentes, salvo os dois últimos)."
passa para as pessoas que a cercam. Muito
mais em discordância com o tema “O que é A fragilidade de evocação é manifesta
duro?”, ela cita, após objetos efetivamente nesta criança. Se é convidada a deixar os lu­
duros, “meninos” e “meninas”. Sua justificação gares onde se encontra por outros que ela co­
- “eles têm carne... eles quebram”- assemelhar- nhece, contudo, bem, os objetos que ela cita
se-ia, muito mais, a uma retificação. Não é, inicialmente são dos que ela acaba de nomear
literalmente, nem uma nem outra, mas uma como presentes, ou então, são dos mais
simples enunciação relativa às novas imagens insignificantes: “Na rua?- Pedaços de madeira,
que ocupam seu pensamento. pedaços de ferro”; e os objetos seguintes a

INCONSISTÊNCIA
DO TEMA ENUMERATIVO (1) Essa primeira resposta bem paradoxal explica-se
pelo jogo combinado de dois pares; o par-contraste re-
Essas associações frouxas, essas subs­ dondo-quadrado sobrepõe-se ao par lua-sol, de que ele
serve para diferenciar os termos, não aplicando, a cada
tituições quase total de cada representação um, uma característica que lhe convém, mas por uma
pela seguinte lembram bem “a fuga das idéias”, espécie de operação algébrica, onde as relações próprias
freqüentemente descrita nos maníacos. a um dos pares são globalmente transferidas ao outro.
0 INVENTÁRIO 225

levam para casa. A inconsistência das idéias R...ault 8; 1/2 “Diga-me coisas que são
manifesta-se a respeito da cadeira, cujo en­ pesadas. - Aspessoas, as baleias, as serpentes
costo é, inicialmente, excluído da ' forma (que ela acabou de citar a propósito do que é
quadrada, ou melhor, cúbica, que aquela forte). - O que mais é pesado? - As árvores
formaria sem este, depois citado como o que (anteriorm ente citadas a propósito do que é
há de quadrado na cadeira. A influência da vivo). - E o que mais? - As cadeiras (objetos
assonância parece, enfim, marcar-se na su­ presentes). - Como as serpentes são pesadas?
cessão “quadro, quadrado.” É o índice de - Porque elas são compridas. - E as cadeiras?
uma evocação mais sujeita às incitações sen- - Porque são de ferro. - Como a gente sabe
sorimotoras que à idéia do tema, a menos que que é pesada? - Porque a gente vê.”
haja sobredeterminação do tema evocado H...zé 7; “O que é pesado? - Os cabelos
pelas duas influências. (já citadosapropósito de “forte ’’) .- Como eles
são pesados? - Porque a gente não pode
G...in 7; “O que não pode ser aceso? - A carregá-los,-se a gente quisesse carregá-los, a
terra, o ferro, a serra.” gente cairia com eles. Nem os touros, nem os
elefantes, porque são pesados e depois eles
A assonância é evidente. Um outro efei­ atacariam; às vezes, eles em purram os car­
to, com muita freqüência aparente nas enu­ ros. Vacas, bezerros, bois. Eu sei disso agora
merações da criança e que parece contrário (todos esses anim ais, salvo os dois últimos, já
ao que os objetos da percepção produzem, é tinham sido citados a propósito deforte. " E n-
o retomo de palavras recentemente pro­ tre outras definições da força, tinha sido
nunciadas, mas a respeito de outros temas. dado o poder de carregar; ser pesado é não
Sua revivescência atesta a persistência latente poder ser carregado. Mesma noção, m as in ­
dos esquemas psicomotores, que têm tendên­ vertida).”
cia a se reexteriorizar mesmo fora de pro­
pósito. É uma marca de inércia, de lentidão Mesmo enquanto sobrevêm séries cujos
nas mudanças de acomodação mental e mo­ termos sucedem-se em razão de um termo
tora e, para empregar a palavra aplicada aos comum, é , com freqüência, difícil ver nelas a
epilépticos, de “viscosidade." Por causa disso, influência de uma qualidade, de uma defini­
manifesta-se uma outra forma de debilidade ção, de um plano categorias.
na evocação mental: a preponderância, so­
bre a ideação, da exteriorização verbal, a cau­
sa inicial desse desequilíbrio podendo ser a H...oux 7; “Diga-me coisas que são pesa­
fragibilidade da primeira, ou seja, a irreduti- das. - Um pedregulho, um a pedra. - E o que
bilidade da expressão, uma vez realizada sua mais? - Uma árvore. - E o que mais? - Uma
forma. As duas acontecem juntas na criança. garrafa. - E o que mais? - Umfogareiro a gás.
Essa revisvescência ou persistência de - E o que mais? - Um fogareiro a querosene. -
respostas recentes a respeito de perguntas E o que mais? - Uma lâm pada a querosene.”
novas ocasiona uma aparência de incoerên­
cia bem mais marcada que a influência das Os dois primeiros termos são sinôni­
percepções reais, onde há sempre uma apa­ mos, os dois seguintes díspares, os três últi­
rência de acordo, causada pelo ambiente mos unidos, dois a dois, pelas palavras foga­
comum, entre os dois interlocutores. Ao reiro e querosene, entrando o conjunto, ape­
contrário, as enumerações que a persistência nas muito aproximadamente, sob a rubrica
influencia podem ser inteiramente incom­ proposta. Assim, na mesma enumeração, ob­
preensíveis e injustificáveis para quem ignora servam-se o idêntico, o heterogêneo e simples
a conversa precedente. anéis, feitos muito mais de uma semelhança
226 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

verbal parcial entre termos consecutivos do no Sena estão vivos? Diga-me coisas vivas? -
que de uma representação comum. Rãs, gafanhotos, elefantes. - E o que mais? -
A coexistência do dispare e da seme­ Um tigre. - Isso é tudo o que existe de vivo? -
lhança estrita, mas de uma semelhança estra­ É. - Você não está vivo? - Estou. - E eu? - Está.
nha ao tema indicado, são um sinal freqüente - E o que mais existe de vivo? - Os leões,
da incapacidade conceituai na criança. pássaros, papagaios, corvos, galinhas, p ín -
tinhos, galos... um irm ãozinho, um a irm ãzi-
C. P...tit 6; “Os peixes enxergam? - Ah, nha.”
não!- Eles não enxergam? - Enxergam, mes­
mo na água. - Diga-me outras coisas que Nessa enumeração, sucedem-se diferen­
enxergam. - Eu não vejo m uita coisa que tes séries: as feras, os pássaros, a família. Mas,
enxerga. Д serpentes (segue-se um a digres­ não sendo a rubrica própria a cada uma
são sobre duas serpentes que a criança d iz ter manifestamente evocada por sua afinidade
matado, sobre as lesmas, sobre as rãs que se conceituai com a rubrica-referência, é possí­
agarram quando saltam ). - Só os peixes e as vel perguntar-se se, verdadeiramente, é como
serpentes enxergam? - É - E você, você não rubrica que ela age ou se, muitos mais, a
enxerga? - Eu enxergo. - E eu? - Também. - passagem não se faz entre objetos que
Diga-me quem enxerga. - O seu G. (seu agrupam certas ligações analógicas ou de
professor), a professora, um a outra professo­ hábito. Uma espécie de dependência mútua,
ra, doisprofessores, quatro professores, cinco de motivos variados, não desempenha, aqui,
professores. Д m ais um a mulher, um ho­ um papel maior que o tema conceituai? A
mem. - Os pássaros enxergam? - Enxergam. - mistura, nessa enumeração de grupos, contu­
As árvores enxergam? - Ah, não!Elas não têm do, reconhecíveis, permite supô-la.
olhos.”
C...in 6; 1/2 “Diga-me coisas que estão
Aparecem séries duas vezes: na primei­ vivas. - Um gato... epássaros tam bém ... um
ra, serpente é, provavelmente, ocasionada, papagaio, um cavalo, um cachorro, um a
segundo uma espécie de analogia, por peixe; gaivota, um burro, um lobo, um a águia, um
ela ocasiona lesmas, que ocasiona rãs, fican­ avestruz. - Como se chama tudo isso? -
do esse conjunto bem heterogêneo. Na se­ Anim ais. - Só os animais estão vivos? - Têm
gunda, a criança passa da pessoa que a inter­ macacos, pessoas, um a macaca, um gorila!’
roga para a de seu professor e, tendo enun­
ciado a palavra “professor”, ela se limita a O que surpreende, aqui, é a comple­
repeti-la, parecendo adicioná-la a si mesma. xidade das séries entre si. Como segundo
Simples iteração verbal ou tentativa mental termo, a criança parecia pronta a enumerar
de inventário? Em todo caso, a enumeração pássaros, mas eles se distribuem em terceiro,
desenvolve-se por si mesma, em termos estri­ sexto, nono e décimo lugar. No intervalo,
tamente similares e sem adequação especial intercalam-se o gato e o cachorro, o cavalo e
com o tema da visão. o burro, respectivamente em primeiro e quin­
Entre esses dois extremos, da simples to, quarto e sétimo lugar, embora eles pa­
repetição verbal ou sinonímica e do qual­ reçam, dois a dois, constituir pares familia­
quer, podem aparecer séries homogêneas, res. Ter-se-ia a impressão de que os termos
mas a definição, de que cada uma seria sus­ que têm alguma afinidade mútua são, de pro­
cetível, permanece como que exterior àquela pósito, alternados com outros. Na realidade,
de que se trata de ilüstrar, as associações em potencial devem ser, cada
uma, momentaneamente retardadas pela
Da mesma criança: “Os peixes que estão inércia ídeo-verbal da criança, os termos das
0 INVENTÁRIO 227

diferentes séries desempenhando, sucessi­ que precedem imediatamente na enumera­


vamente, uns a respeito dos outros, um papel ção. Não é, contudo, o conceito de inseto que
de preenchimento. O tempo que elas em­ voga, visto que, à lembrança de sua primeira
pregam para se completar pode medir a resposta, a criança recusa, de novo, o que ela
debilidade da evocação. A aptidão aos agru­ atribui a espécies semelhantes.
pamentos analógicos não falta, contudo, a Para explicar o disparate das enume­
essa criança. Ela parece opor, aos animais, os rações, basta reconhecer o quanto as rubricas
macacos e as pessoas, traduzindo, assim, um que lhes conviriam têm pouco poder evoca­
sentimento de diferença e de semelhança: dor e mesmo o quanto o sentido delas varia,
aparentemente, dos antropóides e do homem, segundo os objetos que a criança agrupa sob
em oposição ao resto das espécies animais. as mesmas.
Mas essa distinção não tem, evidentemente,
nada de conceituai. D...aud 8; “O que tem nas árvores? -
Folhas. - Sempre têm folhas nas árvores? -
DA ANALOGIA AO CONCEITO Não. - Como é que não têm folhas numa hora
e, em seguida, têm? - Porque o dia está bonito.
Um outro indício do caráter mais ana­ - Crescem folhas nas casas? - Não. - Por que as
lógico que conceituai da enumeração, na folhas crescem nas árvores e não nas casas? -
criança, é a admissão ou exclusão alternante Não é um a árvore. - Existem outras coisas,
do mesmo termo sob uma mesma rubrica, onde crescem folhas, que não são árvores? -
conforme mudem os que precedem. Nas cerejeiras, nas macieiras, nasameixeiras.
- Mas isso não são árvores? - São. - Existem
R...ault 8; 1/2 “Diga-me o que é que outras coisas, que não são árvores, onde
pensa. - Eu penso que vou ter um a poltrona. crescem folhas? - Verduras, rabanetes, grose­
- Você pensa? - Penso, às vezes, em algum a lhas. - Por que crescem folhas nisso tudo? -
coisa. - E eu, eu penso? - Não. - Como eu não Porque são legumes. - Por que crescem folhas
penso? - Têm vezes. - Diga-me o que é que nos legumes? - Porque é para comer. - Por
pensa. - As pessoas. - E o que mais? - Os que crescem folhas nas árvores? - Porque
pássaros. - Como os pássaros pensam?... Em chove. - Por que não crescem folhas nas pe­
que eles pensam? - Que eles vão fa z e r um dras quando chove? - Porque não são árvores."
bom ninho. - Os peixes pensam? - Pensam. -
E as árvores? - Não. - E o carro? - Não. - E as Essa criança sabe classificar objetos sob
formigas? - Não. - E os elefantes? - Pensam. - a rubrica correspondente: “árvores” faz-lhe
E os cachorros? - Pensam. - E as minhocas? - evocar “cerejeiras”, etc. “Verduras, couves”
Não. - E as aranhas? - Pensam. - E as moscas? são denominados “legumes.” Ela sabe, por­
- Pensam. - E as formigas? - Pensam. - Você tanto, passar da rubrica aos objetos, dos
não tinha me dito “não” agora mesmo? Elas objetos à rubrica. E a rubrica serve-lhe para
pensam ou não pensam? - Não. explicar, por exclusão, a ausência de certos
Uma espécie de onda negativa tinha, efeitos nos objetos que não entram nela -
inicialmente, se estendido das árvores e do “não são árvores" -, enquanto, por outro lado,
carro até as formigas. Simples persistência? ela procura motivos variáveis para os objetos
Mas a onda positiva que se seguiu a partir dos que entram nela - “para comer... porque o dia
elefantes deixa-se interromper a propósito está bonito... porque chove.” O conceito
das minhocas. A atribuição do pensamento começa, portanto, a funcionar, mas uni­
às formigas, contrariamente à primeira res­ camente em suas relações com objetos con­
posta, parece, portanto, devida especialmente cretos, não com as propriedades que o ca­
à sua analogia com as aranhas e as moscas racterizam, tais como “ter folhas.” Ele não
228 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

pode, portanto, através desse intermédio qua­ Aqui, o desequilíbrio entre a categoria-
litativo, unir a outras categorias os objetos aos qualidade e a categoria-objetos é manifesto.
quais ele se estende. Ele ainda é unilateral, “Forte” ocasiona, primeiramente, “pai", que é
irreversível: “árvores” explica que não haja completado por termos da categoria família:
folhas nas casas, porque elas não são árvores; “criancinhas e mãe.” Terminada essa enu­
mas “ser folhoso” não permite passar a outra meração, “forte”sugere “bichos grandes”mas,
coisa a não ser as árvores. A qualidade ainda de novo, encontra-se eclipsado pela idéia de
não é evocadora das categorias ou dos objetos, dano, a qualbcasiona “moscas na carne”, não
enquanto que os objetos já podem classificar- sem restrição, aliás, visto que a força delas
se sob uma rubrica nominativa. É preciso está estritamente limitada ao momento de
sugerir um objeto para ocasionar a enu­ seu contato com a carne. Naturalmente, a no­
meração de objetos semelhantes e a deno­ ção de força não pode permanecer a mesma
minação da categoria correspondente: “cou­ nesses diferentes casos, o que a criança só
ves” evoca “verduras, rabanetes” e seu con­ sabe, aliás, exprimir através de uma diferença
junto a palavra “legumes.” As associações de grau: os pais mais fortes do que as moscas
fazem-se, ainda, de objeto a objeto, embora na carne.
suas analogias já sejam as de uma mesma As enumerações disparatadas podem ser
classe. Mas a qualidade permanece depen­ devidas, não apenas à variabilidade de sentido
dente demais das realidades concretas onde de que a mesma palavra é suscetível segundo
ela se encontra para ser capaz de evocá-las as categorias de objetos, mas também a as­
por si mesma. Ela não as define, é apenas similações de sentido entre noções díspares.
nelas constatada. Ela ainda não faz a síntese
entre as coleções de objetos e a razão do P...ot 7; explicou que os barcos emergem
agrupamento deles. Permanece um acidente, da água por causa das pedras que estão no
tão comum quanto for preciso, mas um sim­ fundo e por causa do vento “Quando eles
ples acidente. Sua própria existência conti­ estão mais pesados, onde eles ficam, na água
nua tão subordinada que, longe de poder ou fora dela? - Eles saem da água. - As coisas
servir a uma classificação, ela muda mais ou que são pesadas saem da água? - Saem. - O
menos de significação segundo os objetos que quer dizer pesado? - Porque é claro. -
que ela ajuda a descrever. Pesado e claro são a mesma coisa? - São. -
Diga-me coisas pesadas. - Os barcos, as p e­
H...et 6; 1/2 diz que o vento faz o mar
dras. - E o que mais? - Os barcos parisienses.
mexer porque ele é forte: “O que que é o
- E o que mais? - As cam inhonetas. - E o que
vento? - É a r.- Como é que o ar tem força?...
mais? - As lambretas. - E o que mais? - As
Diga-me outras coisas que são fortes. - Os
banquetas. - E o que mais? - Uma porta. -
carros. - E o que mais? - Os automóveis, os
trens. - Os carros e o vento são fortes da Diga-me coisas claras. - Água. - E o que mais?
mesma maneira? - Não. - Que diferença - O dia. -E o que mais? - As lâmpadas. - E o
existe...” que mais? - As paredes. - Por que a parede é
M...ard 7; “O que é forte? - Os pais, as clara? - Porque ela é cinza. - Pesado e claro
criancinhas. - E o que mais? - As mães... são a mesma coisa? - São. - O ar é claro? - É. -
bichos grandes. - E o que mais? - As moscas na O ar é pesado? - É. - Como? O ar é pesado? -
carne, quando elas vão em cim a da carne. - Não. - O ar não é pesado e ele é claro? -
Quando elas não vão em cima da carne, elas Q uando a gente respira, ele não épesado. -
não são fortes? - Não, senhora. - Como é que Pesado e claro não são a mesma coisa? - Não.
a mosca na carne é forte?... É forte como os - Você tinha dito que era a mesma coisa. -
pais? - Não, senhora, é menosforte" Não, pesado e claro não são a mesma coisa”
O INVENTÁRIO 229

Essa enumeração heterogênea é devida, tornar a enumeração incoerente ou absurda,


além da influência da persistência (barco- seja porque ela contrarie a escolha e a tome
pedra, anteriormente em questão) e a asso- heterogênea, seja porque a classificação, já
nância (caminhoneta-lambreta-banqueta), à definitiva demais, dos objetos semelhantes, a
discordância da assimilação qualitativa claro- faça estranha ao que a assimilação qualitativa
pesado com o enunciado de objetos que deveria definir.
apresentam uma ou outra dessas proprie­ O atraso da identificação qualitativa em
dades, senão as duas ao mesmo tempo. Na relação à coleção pode ser posto em evidência,
verdade, essa assimilação enigmática não mesmo em caso de enumeração correta, atra­
chega a prevalecer sobre as relações do vés do caráter inadequado das justificações
conceito ao objeto, prova da anterioridade dadas.
que estes têm sobre a própria definição qua­
litativa. Dia, água, lâmpadas, parede são coi­ H...zé 7; “O que está vivo? - Os cavalos,
sas que podem ser declaradas claras, mas as galinhas, os homens, todos os bichos estão
não pesadas. Barcos, caminhonetas, lam- vivos. Todos os hom ens também. Todas as
bretas, banquetas, portas são coisas pesadas, mulheres também. Todo m undo. Todas as
mas não claras, os três primeiros elementos pessoas. - As árvores estão vivas? - Estão, sim,
pertencendo muito mais, aliás, à categoria senhora. - Por quê? - Porque elasficam de pé.
veículo do que à categoria peso. A junção, no Se a gente cortar, elas não vão m aisficar de
plano qualitativo, não pôde repercutir-se pé. - O que é que morre? - Todo m undo pode
sobre o das coisas. Ela exigiria, além disso, morrer, os bichos, até às árvores”
uma escolha tanto mais difícil quanto o
encontro das duas propriedades no mesmo Espontaneamente, essa criança passa ao
objeto não pode responder a nenhum deter­ termo que totaliza e que esgota, desse modo,
minismo, pois elas não têm determinante a enumeração. Ela sabe, portanto, manejar as
comum nem influência recíproca. A criança relações do objeto singular ou da classe parti­
ainda está muito longe de poder ultrapassar cular com o grupo completo. A justificação
os simples encontros perceptivos ou ima­ inteiramente episódica ou, pelo menos, intei­
ginativos, onde o acidental e o essencial po­ ramente especial para as árvores, às quais ela
dem misturar-se. Assim se explica que ela não dá vida, estendida, por ela mesma, a todos os
saiba manejar as categorias qualitativas nas seres, apenas mostra melhor sua incapacidade
relações mútuas delas. Ela apenas as justapõe persistente para definir a qualidade, de que
ou as confunde, a confusão delas ocasionando ela faz, contudo, um quadro exato.
quer a mistura entre categorias diferentes de A enumeração, familiar à criança quase
objetos, quer, quando vem a se confirmar a deste o momento em que ela saiba fazer en­
relação conceito-objeto, a simples justaposi­ trar o nome das coisas em sua linguagem, é o
ção delas. Aqui, elas parecem permanecer espelho fiel das dificuldades funcionais que
reciprocamente independentes. A coexis­ pesam sobre sua ideação nas etapas suces­
tência da confusão, no plano das qualidades, sivas de seu desenvolvimento intelectual.
e da disjunção, no plano dos objetos, tende a
CAPÍTULO II

A COMPARAÇÃO

A criança pensa ou exprime-se, com própria da criança, por meio da analogia,


freqüência, por analogia. A analogia é-lhe mostram o esforço de imaginação que ela
espontânea. Ela lhe oferece um meio podero­ pode exigir sob suas aparências de simples
so de extensão imaginativa, um meio pré- repetição mecânica e, por conseguinte, a útil
conceituai de ultrapassar a situação subjetiva ginástica intelectual que ela faz com que seu
e real. Ela não vai apenas de objeto a objeto, espírito faça.
de situação a situação, através de uma espé­ A comparação é uma operação diferente
cie de assimilação pragmática ou qualitativa, e difícil, onde reaparece, com uma força
ela vai também do conhecido, do familiar, do nova, o obstáculo que separa o pensamento
subjetivo ao desconhecido. É um meio de da inteligência prática. O objeto ou a situação
ultrapassar-se a si mesma e também de situar­ estão, nesta, em ligação imediata com a ação
se nesse fluxo das coisas ou dos aconteci­ do momento, suscitam-na, são modificados
mentos, que precede, na criança, o mundo por ela de maneira particular, podem muito
das causas. bem opor-lhe certas resistências, que ocasio­
nam quer um reforço do esforço, quer um
R...er 7; “Seu pai vai estar sempre lá? - subterfúgio, quer um malogro, mas que não
Vai, - Seu pai foi um menino? - Foi. - E quando se impõem, por si mesmas, fora de toda ação
ele era menino, ele tinha um pai? - Não. - presente, como um conjunto de qualidades
Quem é que lhe dava sopa? - Era a m am ãe ou de propriedades diversamente utilizáveis
que a fa zia . - A mamãe foi uma menina? - Foi. e das quais muitas, pelo menos, não estão
- O que ela comia? - M ingau. - Quem é que sendo nem estão no ponto de serem utiliza­
dava mingau para ela? - Não sei. - Sua mãe das. O pensamento coloca, ao contrário, seu
tinha um pai e uma mãe? - Tinha. - E seu pai, objeto como que a distância do sujeito, con­
ele tinha um pai e uma mãe? - Tinha. - Onde fere-lhe uma existência independente das
eles estão? - Eles estão lá em casa. - E eles, eles ações que podem exercer-se sobre ele ou por
tiveram um pai e uma mãe? - Tiveram. - Onde seu intermédio, delimita-о entre os objetos
estão o pai e a mãe deles? - Trabalhando. - que o cercam.
Onde? - Cuidando de casas. - Quem cuida de Essa ainda é apenas uma primeira etapa,
casas? - A m am ãe. - O pai e a mãe de sua mãe a que estabiliza, fixa, encerra em cada objeto
trabalham? - Trabalham. - Onde? - Cuidando o que é identificado como pertencente a ele
de casas.” e como suscetível de ser sempre nele
encontrado. Mas o pensamento do objeto só
As hesitações e ás confusões que se é completo se este pode ser imaginado
misturam a essa exploração do passado, do semelhante e dessemelhante, inicialmente
que era anterior à existência e à experiência entre outros objetos e, mais tarde, em relação
A COMPARAÇÃO 231

a si mesmo, quando a criança toma-se capaz lua ao mesmo tempo que o sol? - Não. - Por
de representar a mudança. quê? - A lua é de noite. - Por que ela é só de
A comparação marca, portanto, um noite? - Porque o dia fic a escuro”
momento capital no conhecimento, mas que
supõe aptidões de que a criança está, inicial­ Essa contradição evidente é o resultado
mente, desprovida. Quando ela já é capaz de de uma troca de termos entre os dois conjun­
considerar um objeto em sua individualidade tos sol-dia, lua-noite de que se tratava de
e em sua permanência perceptiva ou concei­ comparar. Puramente verbal, provavelmen­
tuai, a aproximação entre dois objete» pode te, ela não implica necessariamente uma
alterar-lhes a imagem. Quando ela já sabe confusão de idéias, mas denota um menor
representar as combinações diversas desses poder de orientar, de maneira discriminativa,
objetos, a presença deles lado a lado, cada os gestos em relação com cada um e que são
um em seus limites qualitativos, pode emba­ deles uma dependência, fazendo parte dos
ralhar ou destruir a intuição dos traços co­ mesmos na medida em que o meio de exprimi-
muns deles. Pois sua dualidade concreta los faz parte deles também.
deveria estar subordinada à nítida e clara Outro exemplo de troca ou de anexação,
definição do que é semelhante neles, embo­ por um dos termos, de uma particularidade
ra sejam distintos e diferentes, O ato de com­ que convém apenas ao outro:
paração supõe um poder de diferenciação
intelectual que mantém, fora de toda con­ O ...al 7; convidada a distinguir o gelo da
fusão mútua e de toda difusão recíproca, neve, responde à pergunta “De onde vem o
dois sistemas de imagens, ao mesmo tempo gelo? - Do céu. - Como ele vem do céu?... De
mantendo distinta, como um critério a lhes onde vem a neve? - ЕЮ céu. - Como a neve
ser aplicado e sobre o qual medir suas vem do céu? - No chão. - Mas como ela vem do
coincidências e as não-coincidências, uma céu? - Ela cai. - E o gelo? - Não. - Então ele não
qualidade que, por ser-lhes reconhecida como vem do céu? - Não. - Onde você viu gelo? - Na
comum, deve, primeiramente, ser separada água”
dos mesmos.
A transferência, para o gelo, da resposta
CONTAMINAÇÃO MÚTUA que se referia à neve indica a preponderân­
DOS TERMOS A SEREM COMPARADOS cia de uma imagem sobre a outra e a inca­
pacidade para evitar que ela projete na
O simples poder de conservar os dois outra seu reflexo. É preciso a evocação
termos de comparação distintos um do outro concreta da neve caindo do céu no chão para
começa a fazer falta à criança. Por vezes, a dissociar dela o gelo como estando situado
confusão ou a substituição de um por outro é na água.
tão grosseira que parece um simples lapso. Entre a imagem das coisas que a criança
Evidentemente, o pensamento real da crian­ tira de sua experiência e a semelhança delas
ça pode ser, então, diferente do que ela em idéia pode haver conflito. Os contornos
exprime. Mas o erro da fórmula não revela delas, embora conhecidos, misturam-se; os
menos o embaraço de ter, sob o mesmo de uma são absorvidos pela outra no mo­
olhar, dois objetos sem deixar suas imagens mento em que seu espírito as une, pois a
estenderem-se um a sobre a outra ou criança não tem o poder de pensá-las dis­
recobrirem-se. tintamente juntas, mantendo-as, cada uma,
em seu lugar sobre uma única e mesma base.
H...OUX 7; “O que é maior, o sol ou a lua? A diversidade e a pluralidade delas tendem a
- O sol. - O que é a lua? - Fogo. - A gente vê a se reabsorver, sób a influência da semelhança,
232 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

mesmo parcial ou aproximativa, que ocupa o F...gli 5; 1/2 fala do sol, da lua, das
espírito. A unificação se faz, heterogênea ou estrelas; perguntamo-lhe: “E a Terra, ela é
substitutiva, a despeito das diferenças. grande? - É fin a .” E ela segue dizendo que a
Reaparece, aqui, uma desordem já ob­ água é m ais fin a , ou seja, fluida.
servável no plano perceptivo-motor. Na
verdade, a criança permanece, por muito A identidade de nome faz a criança passar
tempo, incapaz de manter separadas for­ da terra planeta à terra substância. Uma ima­
mas ou estruturas a serem realizadas simul­ gem substitui a outra, em oposição com a re­
taneamente e de impedir a conglomeração presentação comum aos objetos de que se
das mesmas no espaço. Por exemplo, no tratava.
caso, embora simples, de uma mesma figura
a ser recomposta duas vezes com a ajuda de D...vai 7; 1/2 disse que o céu desloca-se
fragmentos semelhantes, a tendência pri­ para dar lugar à noite, porque ele tem pés que
meira é a aproximação maciça de todas as se colocam sobre o “ar”. Mas, à pergunta “O
peças, o que tem como efeito habitual fazer, que é o ar" ela responde “é como vento. -
inicialmente, com que seja esquecida a or­ Podemos andar sobre o ar? - Não"
dem das duas imagens a serem realizadas
lado a lado. O modelo a ser reconstruído O ar é suporte ou meio sem consistência,
perde-se na busca de uma figura onde todas conforme ele deva explicar o movimento do
poderiam entrar e de onde algumas acabam sol ou seja assimilado ao vento.
sendo, arbitrariamente, excluídas. De modo Essa Iabilidade das imagens faz com que
complementar, as peças mobilizam-se em o mesmo objeto possa cair, sucessivamente,
um todo contínuo no espaço, e a imagem do de uma para outra e como que se transformar
modelo a ser reproduzido é inconsistente. de analogia em analogia.
Essas duas causas simultâneas de erro en­
contram-se no plano da comparação: fra­ H...art 5; diz, sucessivamente, que o sol
gilidade da representação comum e atração é grande como um balão, que ele esquenta e
ou eliminação mútua dos traços que com­ clareia porque ele se acende, que ele se
põem a imagem dos objetos comparados. acende “por um fio e um botão, tem chum bo
Mas, já na imagem de cada um, sua dentro”, que pessoas estão “no sol ” para
unidade sincrética faz com que os traços se acender, que elas abrem asjanelas para não
confundam ou seja tomados um pelo outro. ficarem com calor demais.
Como eles se manteriam, em relação a um
outro objeto, como um critério fixo quer de Essa cascata de analogias sucessivas, mas
semelhança, quer de diferença? incoerentes, torna, evidentemente, toda com­
paração verdadeira impossível. A imagem
H...art 5; “Por que o sol queima? - É muda à medida que a necessidade das res­
porque ele é quente. - Como ele é quente? - É postas ou o acaso da percepção, da fantasia,
porque ele clareia.” de impressões pessoais, de que, às vezes, é
difícil compreender o sentido ou a origem,
MUTABILIDADE DAS IMAGENS assim exigem.

Freqüentemente simultâneos ou de B...otte 7; “O que é mais brilhante, a lua


mesma origem, dois efeitos diferentes pa­ ou o sol? - A lua. - Como é a lua? - Como um a
recem transformar-sé um no outro. A fácil ponte. - Onde você viu pontes? - No rio. - Ela
mutabilidade das imagens pode, também, é uma ponte como no rio? - Não. - Então por
ocasionar substituições de objetos: que você disse que é como uma ponte?...”
A COMPARAÇÃO 233

Que imagem pôde suscitar essa com­ D...net 7; “O sol enxerga? - Enxerga. -
paração? Provavelmente, a de ter visto refletir- Como ele exerga? - Com os olhos. - Como são
se um raio de lua contra um rio. Mas a criança os olhos dele? - Grandes. - Como é o sol? -
é incapaz de explicar-se. Analogias e Grande. Redondo como um a bola. Ela gira
diferenças sucedem-se em seu espírito sem por baixo da terra. - O sol tem um nariz? - Tem
que ela saiba precisá-las entre si, nem reduzir e também um a boca redonda. - Então ele
cada objeto à sua própria identidade, es­ cheira? - Cheira. - E a boca dele, o que ele faz
pecificando o que lhe é comum com outros. com ela? - Ele não mexe nela... n ã o fa z nada.
É, com freqüência também, um objeto - Ele não come? - Não, ele esquenta aspessoas.
presente que impõe a imagem da comparação. - O que mais ele vê? - Pessoas, anim ais. - E a
D...vai, sete anos e meio, tendo sob os olhos lua, ela enxerga? - Enxerga. - Como a lua é? -
a lâmpada de um projetor, define o sol como Branca, um pouco branca. Ela tem olhos,
uma lâmpada. Da mesma maneira, Goldstein um nariz, um a boca. - Como o sol? - Д mas
notava, num afásico, que, conforme o am­ ela clareia menos que o sol.”
biente circundante, ele chamava um canivete
de estilete, descascador de maçã, faca de pão, A atribuição da visão ao sol e, por
faca e garfo. Assim, o objeto transforma-se conseqüência, dos olhos, é tanto mais fácil
por um jogo de analogias, cujos motivos são- quando clarear e enxergar são, freqüen­
lhe impostos de fora. A criança ainda não temente, identificados, sobretudo quando se
realizou seu modelo íntimo, autônomo, trata dos astros, por causa da confusão, que é
liberto, através de uma significação po­ freqüente na criança, entre esses dois ter mos
livalente, de sua dispersão em imagens ou em complementares: agir e sofrer aaçâo. Aos
aplicações concretas. Ele ésempre um desfile, olhos acrescenta-se, em seguida, o resto do
mais ou menos acidental, de usos ou de rosto, à imagem do homem, embora in-
semelhanças, ainda não integrados a algo de tervenha também a de uma bola que gira e
único nessa diversidade. Resta ao objeto que esquenta, mais conforme à idéia do sol,
tornar-se essa diversidade em potencial.
mas pouco compatível com a primeira.
Mas a imagem ou a série de imagens que
Também acontece de o antropomorfismo
o controlam podem ser também tanto íntimas
afastar-se da realidade e, desaparecendo os
quanto externas. Em particular, essa imagem,
órgãos, subsistir apenas a sensibilidade.
esse esquema que cada um tem de si, de seus
movimentos, de seu corpo, que é, ao mesmo
tempo, a condição e a soma das aprendizagens A...on 7; 3 “O que é que o sol vê? - Ele vê
necessárias a nossas ações sobre os objetos, agente. - Ele ouve? - Ouve. - O que ele ouve?
de nossos contatos com as coisas, serve, com - A gente. - Ele tem orelhas? - Não. - Olhos? -
freqüência também, para imaginá-los sob um Não. - Como ele pode ouvir? - Não sei. - E
aspecto antropomórfico, como se a clivagem como ele pode ver? - Não s e i”
não fosse completa, na sensibilidade ativa
que nos une à realidades externas, entre o A analogia, que tende mais à assimi­
que nos atribuímos e as qualidades que lhes lação que à comparação, vai de encontro, fa­
delegamos. Ainda muito tarde, a criança re­ cilmente, a contradições. Disso resultam ou
encontra nelas vestígios de si mesma e os imagens heterogêneas, incoerentes, ou am­
desenvolve sob forma mais ou menos aber­ putações que tornam a assimilação inex­
tamente lúdica, com freqüência, aliás, incita­ plicável. Essas dificuldades atingem sua ma­
da a fazê-lo pelas expressões metafóricas da ior atividade quando a contaminação opera­
linguagem corrente ou pelas perguntas do se entre o sujeito e o objeto; nada pode alte­
adulto. rar mais a identidade dos termos presentes.
234 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

PREPONDERÂNCIA ABSOLUTA é igual? - Não. - Então me diga, quando você


OU ALTERNANTE toca no gelo e na neve, o que é que eles têm
DE UM TERMO SOBRE OUTRO que não é igual? - O gelo.”

É difícil para a criança, não apenas não Além da enunciação de um dos dois
modificar, um pelo outro, os termos que as termos a serem comparados, em vez da dife­
semelhanças ou os contrastes deles impõe, rença deles, misturam-se, aqui, respostas de
simultaneamente, à sua atenção, mas também espécie diversa, que podem ajudar a fixar
manter, entre eles, a igualdade formal, o melhor o estado e o mecanismo comuns dos
equilíbrio puramente verbal que a simples mesmos. Há confusão entre as relações de
fórmula de uma comparação exige. tempo e de lugar: “Onde existe gelo? - No
inverno.”Há relações causais impossíveis de
L...ot 6; “O que é o vento? - Échuva. - Os evocar: embora a noção de frio, necessária à
dois são a mesma coisa? - Não, não é igual. - explicação do gelo, esteja manifestamente
O que é que existe neles que não é igual? - É presente no espírito da criança, esta não chega
o vento.” a formulá-la, рюг falta de poder ultrapassar o
plano das circunstâncias concretas ou das
Esse gênero de respostas, onde a criança qualidades sensíveis pelo plano mais abstrato
retoma um dos dois termos a serem compa­ das propriedades ou das relações. Acontece-
rados, em vez de indicar o traço de semelhan­ lhe, também, de juntar, pura e simplesmente,
ça ou de diferença, já foi notado por vários sob uma fórmula de identidade, um segundo
autores. Ele é muito freqüente. objeto como que justificando o objeto em
causa, gelo-neve: aqui, ainda, em vez de uma
0...al 7; acabou de dizer, alternada­ relação definida, há simples sentimento
mente, que o vento faz o frio e que o frio faz confuso de semelhança, de possessão comum.
o vento. “Diga-me coisas que são frias. - O A criança não sabe, portanto, separar, dos
gelo. - O gelo e o vento são a mesma coisa? - termos presentes, aquilo que permitiria, ao
Não. - O que que não é igual? - O gelo. - O ge­ mesmo tempo, distingui-lo e classificá-los.
lo faz vento? - Não. - O que existe neles que Ela pode apenas passar de objeto em objeto
não é igual?... O que é o gelo? - Não sei. - Você globalmente, sem chegar a dissociar, de cada
não sabe o que é o gelo? - Sei. - Então diga. - um, o que lhe permitiria estabelecer, entre
Ele derrete. - Quando derrete, o que é que eles, coincidências particulares. A menos que
forma? - Água. - Como é que se faz gelo?... se fundam um no outro ou que se neutrali­
Onde existe gelo? - No inverno. - Por que tem zem, é preciso realmente, portanto, que haja
gelo no inverno? - Ê neve. - O gelo e a neve são um termo cuja imagem esteja presente na
a mesma coisa? - Não. - O que é que não é exclusão do outro.
igual? - A neve. - Por que a neve não é igual?... A prova dessa preponderância unilateral
De onde vem a neve? - Do céu. - Você já é a atribuição, ao termo que permanece à
pegou a neve na mão? -Já . - Você já pegou margem, de um traço que absolutamente não
gelo? -J â .-O que é que não é igual? - A neve. lhe convém, mas que se relaciona com aquele
- Por que a neve não é igual? - Porque não é cuja imagem ocupa a consciência:
a mesma coisa. - Como você vê que não é a
mesma coisa? - A neve derrete na hora. - F...mi falou longamente das árvores e
Quando ela ainda não está derretida, como das flores que crescem. “E os cabelos, eles
você sabe que não é gelo? - A gente a coloca crescem? - Crescem, épreciso cortá-los, senão
na mão, a gente a coloca na água. - Então o ficaria comprido demais. - Eles crescem como
que acontece? - Elafic a derretida. - E o gelo, as árvores? - Não. - Por quê? - Porque não é
A COMPARAÇÃO 235

igual. - Por que não cresce igual? - Não é a sejam, sucessivamente, privados da marca
mesma terra. - O que que é a terra dos que lhes é reconhecida, a cada um, isolada­
cabelos? - Eles crescem sozinhos. - E as árvores? mente, pode dar lugar a uma espécie de in­
- Crescem sozinhas também. - Então eles decisão sobre a identidade respectiva dos
crescem igual? - Crescem. - E o que é que não mesmos.
cresce sozinho mesmo? - Os cabelos. - Como
os cabelos crescem? - Sozinhos. - Você não Da mesma criança: “O trigo cresce como
tinha dito que eles não cresciam sozinhos as árvores? - Não, um pouquinho só. - Ele
agora mesmo? - Não, eles crescem sozinhos. - cresce como as flores? - Dão botões. - O que é
E as árvores? - Elas crescem. - Sozinhas? - Elas que dá botões? - Asflores. - E o trigo? - Ele dá
crescem sozinhas. - Os cabelos e as árvores farinha, pão. - O trigo dá botões? - Dá. -
crecem do mesmo jeito? - Crescem. - Os Então, ele é como as flores? - Não. - Por que
cabelos e as árvores são a mesma coisa? - Não. não é como as flores? - Não crescem ”
- Por quê? - Não crescem igual. -Por que eles
não crescem igual? - Não são as mesmas Cada um dos dois termos começa por
folhas. - Os cabelos são folhas? - Não.” oferecer-se com o que se relaciona mais
intimamente ao seu complexo representativo:
Quando a criança diz, a propósito dos as flores que saem de botões, o trigo de onde
cabelos: “não é a mesma terra... não são as saem a farinha e o pão. A mesma palavra “dá”
mesmas folhas”, evidentemente ela não faz ou “dão” exprime os dois casos, apesar da
disso uma representação direta, mas se limita diversidade deles. Mas, em seguida, os botões
a excluí-las da que ela faz das árvores. Se são atribuídos ao trigo e o crescimento pare­
fosse capaz de imaginá-las em igualdade, ce negado às flores. Enfim, a resposta “um
longe de parecer atribuir, também, aos cabe­ pouquinho só” é das mais ambíguas. É uma
los, folhas e uma implantação terrestre, ela simples fórmula de dúvida, de precaução,
destacaria esses dois traços do objeto onde se ou ela estabelece um grau entre o crescimen­
encontram para opô-los àquele onde eles to das árvores e o do trigo? Mas, então, a
não se observam. Mas ela está longe de poder qual dos dois ela se refere? Às árvores onde
operarumatal dissociação. Assim se explicam o crescimento é menos sensível, ao trigo
as contradições formais entre as quais se onde ela cessa mais cedo? É impossível que
distribuem suas respostas. Sucessivamente, se possa escolher entre as três hipóteses.
ela atribui e nega, ao mesmo objeto, a pro­ O obstáculo que os dois objetos podem
priedade de “crescer sozinho”. Se ela a atri­ constituir para realizar-se mentalmente ex­
bui, é porque pensa nesse objeto; se a nega, plicaria bem tanto a incerteza subjetiva da
é porque pensa no outro. Pois ela não pode resposta quanto a incerteza de sua atribui ção
negar-lhes o que vê neles quando os imagi­ objetiva. Há um sentimento de diferença que
na; mas ela sabe que são diferentes e, não hesita, e que, permanecendo indiviso entre
sabendo analisar e reconhecer a diferença, os dois termos da comparação, não tem sen­
esta permanece global. A qualidade ainda é tido preciso.
incorporada ao objeto, a cada objeto par­
ticular. Ela não poderia ser dele extraída pa­ CONFLITOS ENTRE AS
ra tornar-se comum a vários, e não apenas DIVERSAS QUALIDADES
àqueles onde ela é, sucessivamente, cons­ DOS OBJETOS COMPARADOS
tatada, mas à série daqueles onde ela poderia
ser eventualmente observada. A incapacidade de manter, simultânea e
Essa presença alternante dos dois objetos distintamente, dois objetos no campo da visão
na consciência, de onde resulta que eles mental é ligado um conflito, patente ou latente,
236 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

entre os que cada qualidade do objeto con­ cia de analogias é disparatada; as imagens
siderado pode evocar sucessivamente e entre repelem-se ao mesmo tempo emque são reu­
as diversas qualidades dos objetos assim nidas; nenhuma é tomada distintamente e à
aproximados. exclusão das outras, como exemplo de uma
qualidade que o sol também compartilharia.
0...al 7; “Como é que às vezes é dia e às Saber apenas, a propósito de um objeto,
vezes é noite? - O solfa z o dia. - Como o sol imaginar um outro, é necessariamente ou
faz o dia? - Porqueparece que ele está ch eio de assimilá-los de maneira indevida, cada ima­
fogo. - O que que é o sol? - Èofogo. - Quando gem nova eclipsando a precedente ou alte­
tem fogo na chaminé, é o sol? - Não. - Então, rando-a, ou opô-los ao mesmo tempo apro-
que fogo é o sol? - É como um a cabeça. - Por ximando-os, essa forma negativa de compa­
que é como uma cabeça?... Como é uma ração marcando, aliás, um progresso no po­
cabeça? - Não sei. - É grande o sol?... Grande der de diferenciação.
como o quê? - Grande assim (gesto circular).
- Então, é grande como um balão? - É. - A B...ert 6; “Diga-me uma coisa quente
gente poderia colocá-lo aqui? - Não. - Por como o sol. - Umfogo. - O sol é quente como
quê? - Porque ele está no céu. - Ele poderia um fogo? - Não é tão quente quanto o sol. Um
entrar nesta sala? Teria lugar? - Não. - Por quê? fogo é quente com carvão. Mas um fogo, não
- Porque ele está alto demais. - Ele poderia é quente em um a casa. - Que diferença existe
entrar aqui, se a gente pudesse fazê-lo descer? entre o carvão que queima e o sol? - Bom, é
- Não. - Por quê? - Porque ele derrete. - Por que igual, o fogo fa z tanto calor quanto o sol. -
ele derrete? - Não sei. - Quando ele está no Existe fogo no sol? - Não. - Como o sol faz para
céu, ele derrete? - Não. - Por que ele derreteria queimar? - Porque ele fa z calor!’
aqui? - Porque não é alto. - E se ele derretesse,
como ele ficaria? - Preto. - Preto como o quê? Essa criança oscila entre as diferenças e
- (A criança olha em volta de si) Como ferro a assimilação do fogo e do sol. Ela considera
preto. - Por que ele derreteria aqui? - Fazfrio. as diferenças concretas com as quais envolve
- O que faz com que o sol seja quente? - Não o fogo, carvão que o alimenta, casa onde ele
sei. - Quando o sol não está quente, como ele queima, como incompatíveis com a imagem
fica? - Preto. - O sol é a mesma coisa que fogo? do sol. Apenas o calor lhes é comum, ora mais
- Não. - É a mesma coisa que ferro? - Não. - fraco no fogo, ora igual. Mas ela só sabe
Então, ele é a mesma coisa que o quê? - Como explicar o do sol pelo próprio calor. Ele
ferro preto P permanece ligado ao objeto, não como um
resultado que suas causas ou suas variações
No início, o lugar do sol no espaço parece permitiriam comparar com outras mani­
primar sobre o resto e impede de olhá-lo em festações semelhantes, mas como um dado
qualquer outro lugar, mesmo se suas di­ essencial e que não se deixa ultrapassar em
mensões o permitissem: lugar e grandeza cada caso particular.
mantêm-se ainda juntos. A impossibilidade Entretanto, à diferença dos objetos
dessa suposta migração é, em seguida, jus­ concretos que opõem entre si o bloco indi­
tificada pela destruição que se seguiria, como vidual de suas próprias qualidades, a ação
se o sol devesse seu ser e seu calor à sua parece diferenciar-se mais facilmente dos
posição ou ao conjunto de seu meio: sin­ casos particulares, e as analogias assumem
cretismo local. Contudo, ele foi, suces­ mais rápido um comportamento catégorial.
sivamente, comparado ao fogo, aumácabeça,
depois ao ferro preto, provavelmente, por H...vin 6; 1/2 disse, sobre a água, que ela
oposição ao ferro incandescente. Essa seqüên­ anda. “O que anda? - As pessoas. - E o que
ACOMPARAÇÃO 237

mais? - O sol. - E o que mais? - A poeira, a lua, ela pode se mexer? - Como os m eninos. -
as estrelas, os anim ais. - A água anda como as Como os meninos se mexem? - Eles andam .
pessoas? - Não. - Então, como ela anda? - - O que é preciso para andar? - Pés. - A lua tem
Rolando. - Quais são as coisas que andam pés? - Não. - Então, como ela pode andar
rolando? - A s bolas, as bolinhas de gude, as como meninos?...”
bicicletas. - A água dos rios anda como as
bolas e as bicicletas? - Não. - Então, como ela Ocasionada pela palavra “mexer-se”, a
anda? - Escorregando. - Diga-me coisas que imagem dos meninos que andam com os pés
andam escorregando. - A neve, a água. - A choca-se com a da lua que, no entanto,
água dos rios anda como a neve? - Não. - Qual também se mexe. Não se dá nem assimilação
é a diferença? - Ela não pára. - Então a neve indevida de um objeto pelo outro nem
pára? - Não. - Qual é a diferença? - A água. - passagem ao que poderia ou ser-lhes comum
Sim, mas o que é que não é igual? - A neve que ou opô-los, mas o pensamento permanece
derrete. - O que é que faz a neve que derrete? em suspenso.
- Água. - O que mais anda escorregando Por vezes capaz de imaginar uma ação
como a água? - A areia. - E o que mais? - O sob seus diferentes aspectos, a criança fica
escorregão. - O que é o escorregão?... Onde muito mais atrasada para as comparações
tem isso? - Nas escadas e nas ru a s” qualitativas. As qualidades demoram para se
separar do objeto. Elas permanecem, nele,
Essa criança já opera de maneira dife­ misturadas a outras e confundidas. Os campos
rencial. De objeto em objeto, ela retifica o perceptivos são mal distinguidos entre si.
termo que convém menos a um que a outro. Efeitos díspares são dados como análogos ou
A água anda, mas não como as pessoas. Ela sinônimos, de modo desconcertante. Acon­
rola portanto, mas não como as bolas ou as tece, à criança, de enunciar simples diferenças
bicicletas. Ela escorrega portanto, como a de grau entre qualidades heteróclitas. As
neve e a areia, mas não exatamente como a noções de “demais” e de “não o suficiente”,
neve, contudo. Chegada a esse ponto, a de “mais” e de “um pouquinho" etc., pre­
criança não sabe mais substituir um nome de cedem, de longe, a identificação das qua­
deslocamento por um outro e ainda não sabe lidades particulares. Elas têm, por vezes, uma
fazer outra coisa a não ser opor objeto a origem subjetiva, a comparação a si mesma,
objeto, permanecendo incapaz tanto de a suas forças, a seus meios.
reduzi-los a propriedades que permitam
classificá-los e ligar sua diversidade às suas A. A...dre 6; “Você come bem? - Eu como
causas. A dificuldade faz, então, com que a bem mais. Eu como pratos grandes de sopa.
criança retroceda para respostas de uma fase Papai quase não come. M inha irm ã m enor
ainda muito pueril: enunciação do objeto a come um pouquinho.”
ser comparado em vez da diferença pedida,
confusão do objeto que segue o declive com O sentimento de capacidade ou de sa­
o próprio declive. Tais substituições tendem tisfação que ela experimenta ao comer bem
a mostrar o quanto a imagem dos objetos traduz-se pela palavra “mais” colocada após
concretos ainda prevalece sobre a imagem “bem”, depois pelas palavras “quase nada”
quer das qualidades, quer das relações. A e “um pouquinho”, para seu pai e para sua
todo instante, ela constitui um obstáculo à irmã menor, aos quais ela logo se compara
livre apropriação das noções com as coisas. espontaneamente.
Entre os objetos, as comparações de graus
B.. .otte 7 ; “O sol se mexe? - Mexe. - Como são, com freqüência, cheias de contradições.
ele se mexe?... A lua se mexe? - Mexe. - Como P...ly 6; “O que é maior, o sol ou a lua? -
238 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

O sol. - Ele é grande como o qué?... Grande nenhuma diferença, senão de tamanho, pode
como a minha cabeça ou menor? - Menor. - ser evocada.
Grande como a minha boca? - Não. - Maior
que a minha cabeça? - Não. - O que é maior, M...in 7; 4 “O que é a lua? - É um a bola de
o sol ou a lua? - A lua. - Você não tinha dito fogo. - Então ela é exatamente como o sol? - O
agora mesmo que o sol era maior? Qual dos sol é quente, a lua não é quente. - Como isso
dois é maior? - A lua.” acontece?... Qual deles é maior, o sol ou alua?
- A lua. - Como é que ela não tem calor?... Que
Entre o sol e a lua, a relação inverte-se ela não clareia tanto quanto o sol? - Porque ela
após a tentativa de sugerir, entre os objetos é menos vermèlha, tem menos fogo... - E as
próximos, um termo de comparação cabeça- estrelas, o que são? - Fogo. - São a mesma
sol. Qualquer que seja a influência em causa, coisa que o sol? - Não, elas não clareiam. -
é manifesto que a comparação é instável Como isso acontece?... As estrelas são maio­
porque suas referências não têm nada que res que o sol? - Menores. - Maiores que a lua
não seja particular e acidental. Na verdade, ou menores? - Menores.”
não se tratam nem mesmo de referências,
mas de simples aproximações termo a ter­ A dificuldade, aqui, está entre uma
mo. A criança limita-se, freqüentemente, a semelhança substancial - todos os astros são
enunciar “mais” ou “menos” diante de um dos de fogo - e a diferença deles - de calor ou de
dois. claridade -, a qual a criança constata com a
ajuda de “mais” e de “menos”. É, ainda, através
B.. .otte 7; “Por que fica escuro “na noite”? de um “mais” e de um “menos”, colocados
- A genie dorme. - E por que fica de noite diante de “fogo”, que ela sai dessa situação: a
quando a gente dorme?... Por que o dia e a lua, embora maior, tem menos fogo que o sol.
noite não são iguais? - N ãofica m ais de d ia ” Ela ainda não sabe invocar algo sobre as
circunstâncias, como a distância das estrelas
Enunciar uma diferença de grau é, com por exemplo, que poderia ser oposta ao maior
freqüência, o único meio que a criança tem brilho do sol. Mas em vez de ser de objeto a
de marcar um sentimento de diferença, na objeto, segundo a única qualidade conside­
incapacidade em que se encontra de evocar rada, a comparação exigiria uma classifica­
as qualidades diferenciais dos objetos a serem ção e uma comparação de classificações, ou
comparados. seja, uma correlação. Ora, a criança está lon­
ge disso, pois suas comparações referem-se,
P...CCO 9; acabou de explicar o movi­ mais freqüentemente, às qualidades mais
mento do sol através de seu deslocamento ao contingentes, ou seja, as menos próprias para
longo de uma esfera. “O que é a lua? - Ê um a lhe fazer descobrir o princípio das semelhan­
bola de fogo também. - É a mesma coisa que ças ou das diferenças.
o sol?... O que existe neles que não é igual? -
Nada. - É a mesma coisa? - Não. - O que existe B...at 7; 1/2 “As bolinhas de gude e as
neles que não é igual? - O tam anho. - Qual é pedras são a mesma coisa? - As pedras são
maior? - O sol. - O resto é igual? - Não. - O que pesadas. - E o que mais? - E depois elas
mais não é igual?..." m achucam . - O que são as pedras?... Onde a
gente as encontra? - Em cim a de um muro. -
Todas as pedras ficam em cima de um muro?
O sentimento de diferença parece muito - Não. - Onde a gente encontra outras pe­
nítido e “Nada” deve, provavelmente, ser en­ dras?... Onde você viu pedras? - Nofu n d o da
tendido no sentido de “nada é igual". Contudo, terra."
ACOMPARAÇÃO 239

O que torna a comparação difícil ou fortuitas e limitam-se, habitualmente, a uma


impossível é que a criança considera imagens simples indicação ou oposição de grau.
particulares e vê cada objeto, não no que ele
pode ter em comum com outros ou de DESLOCAMENTO OU CONTAMINAÇÃO
específico, mas envolvido pelas circunstâncias DE UMA MESMA QUALIDADE QUE
que lhe oferece, inicialmente, sua memória. PERTENCE A DIFERENTES OBJETOS

G...in 7; “É só porque elas não são da A incapacidade da criança, ao mesmo


mesma cor que a terra e a pedra são diferentes? tempo, para distinguir, em um mesmo objeto,
- Д a terra ê preta e a pedra é branca. - A cada qualidade das outras, e para compô-las
pedra é dura? - Não, senhor. - Não é dura? - Д entre si para explicar as diferenças e as seme­
sím, senhor. - Você não tinha dito que não? - lhanças, joga-a em contradições insuspeitá-
Eu não tinha entendido. - A pedra é dura? - É veis para o adulto, mas que, sucessivamente,
- E a terra? - Não. - O que quer dizer “duro”? - a paralisam ou estimulam suas reflexões.
Quer dizer que a gente não pode quebrá-la.
- A gente pode quebrar a terra? - Pode, sim, A... on 7 ;3 “As m oseas estão vivas? - Estão.
senhor. - A gente pode quebrá-la como um - Como a gente? - Não. - E os peixes? - Tam­
fósforo? - Pode, sim, senhor. - É exatamente a bém. - Os peixes e as moscas estão vivos da
mesma coisa? - Д sim, senhor.” mesma maneira? - Não. - O que é que está
vivo da mesma maneira que a gente? - Os
A oposição preto-branco, que a criança bichos. - Uma mosca é um bicho? - É . - E um
sobrepõe, respectivamente, à pedra e à terra, peixe? - Também.- Está vivo da mesma ma­
não se aplica aqui, evidentemente, de maneira neira que a gente? - Está, m as é menor.”
constante nem específica. O qualificativo
“duro”, que lhe é sugerido como mais fun­ No início, estando o tamanho misturado
damental, parece despertar nela apenas uma às qualidades constitutivas de cada ser, a vida
noção bem vaga. Se ela começa negando a não podia ser semelhante no homem, no
dureza à pedra, é, evidentemente, por inad­ inseto e no peixe. Foi preciso um termo
vertencia, mas também porque a ligação delas neutro como “bichos”, de onde toda dimen­
não se impunha à sua imaginação como são particular estava, forçosamente, excluí­
essencial. Ao mesmo tempo, ela diz não fazer da, para que a vida se tomasse coisa comum
diferença entre a quebra da terra e a de um no homem e no animal. Por esse intermédio,
fósforo. Assim, as nuanças perceptivas foi abolida a oposição global que impedia de
parecem tão atenuadas quanto é frouxa a aproximar o homem e o inseto, de unificar a
relação entre a qualidade sugerida e o objeto. vida, de se dissociar disso o tamanho. Para
Na realidade, a evocação é, aqui, duplamente isolar das outras uma qualidade e para tornar
insuficiente. Fora do objeto em que ela é possível o reconhecimento dela em todo lugar
confundida, com tudo o que pode aí se onde se encontre, a despeito de outras dife­
constatar simultaneamente em um mesmo renças, é ainda uma imagem de seres con­
conjunto particular, falta à qualidade força ou cretos que é necessária a criança, mas entre
existência. Partindo dela, é tão difícil, para a os quais, por mais diversos que seja, toda
criança, representar os objetos onde a qua­ diferença seja necessariamente esquecida a
lidade se encontra quanto a eventual di­ partir do momento em que são agrupados
versidade de suas nuanças. Ela ainda não é sob um mesmo nome, sob uma representação
uma potência catégorial. É por isso que as comum. A unidade qualitativa procede do
comparações, que ela permite, de objeto a gênero e não o gênero de uma semelhança
objeto, são, com freqüência, inteiramente qualitativa.
240 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

A ligação das qualidades com cada objeto co significa transparente, para outra, ao con­
particular fragmenta-as a ponto de a mesma trário, a aparência turva ou “grossa” que a
poder ser dada, sucessivamente, como o que água prestes a ferver tem. Mas o emprego da
exprime a diferença de dois objetos compa­ mesma palavra para dois aspectos que se
rados. trata de opor mostra bem que, longe de ser
um meio de comparação, a qualidade é algo
N...et 6; 1/2 “Q uando agente a esquenta de relativo a cada objeto e que deve a ele, a
(a água), ela fic a grossa. - O que a gente vê, cada vez, sua significação particular. Ela não
quando ela fica grossa? - A gente vê a água. - tem, portanto, a espécie de existência própria
A água fica do mesmo jeito do que quando ela que poderia fazê-la servir para classificar,
estava fria? - Ah, não! A gente vê a água segundo os graus de que ela é Suscetível, os
quente. - Ela não é igual à água fria? - Ah, não! diferentes objetos onde ela se encontra.
Q uando ela estavafria, ela era m ais branca, Inversamente também, duas qualidades opos­
e quando ela está na panela, ela é m ais tas podem ser atribuídas ao mesmo objeto,
vermelha... Ah, não!E la é m ais branca. - A sem que a criança perceba a contradição:
água mais branca é a água fria ou a que ferve? dada como equivalente da água que ferve, a
- É a água fria . - Então, como é a água que fumaça deveria ser branca, mas, em si mes­
ferve? - Ela ê como a fu m a ça que está lã. - ma, ela é preta. Aqui, não é mais a qualidade
Então, a fumaça é água quente? - Ah, não, que é cindida em duas espécies diferentes, é
ora!Não é água quente. - O que é? - Ê algum a o objeto que é cindido em duas qualidades
coisa preta que vai para o cêu. - A água que opostas. Mas a razão é, nos dois casos, seme­
ferve também é preta? - Ah, não! Não êpreta. lhante. É a indissociabilidade do objeto e da
- Mas você não tinha me dito que a água que qualidade que leva à ruptura ora de um, ora
ferve é igual à fumaça? - Ah, não! É a cor que de outro.
é igual a isso. - de que cor é a fumaça? - Ê
preta. - Então, a água que ferve é preta? - (Se­ L...ec 7; “O que que é a lua? - Ê um objeto
guem-se frases confusas. Parece que a criança escuro. - O que quer dizer um objeto escuro?
aproxima, sucessivamente, a água-vapor do - Que é um a coisa que não tem m uito calor.
branco e do preto, conforme ela a imagine - Diga-me outros objetos escuros. - A lua...
sob as espécies água ou fumaça e, por outro quando não tem sol. - E o que mais? - O
lado, conforme assimile branco a transparente, quadro, as mesas (objetos escuros que ela tem
preto a espesso.) sob os olhos)... - Como a gente sabe que é a
lua? - Porque ela não fa zfo g o como o sol. - O
A dificuldade de distribuir as qualidades que ela faz? - Ela fa z cada vez m ais escuro. -
e seus graus entre os objetos é manifestamen­ O que é que a gente vê quando a gente olha
te causada pela dependência, em que elas para ela... Como a gente sabe que é ela?...
estão, de cada objeto. Por vezes, acontece até Diga-me como ela é. - Redonda. - E de que
mesmo de elas serem modificadas por isso: cor? - Branca. - Diga-me coisas brancas. - Um
assim, a água que esquenta na panela é, num abajur, um a garrafa. - E o que mais? - A zu ­
momento, declarada vermelha, por difusão, lejos, lâmpadas, m adeira. - A lua é branca
nela, do complexo sincrético onde o fogo, em como o abajur? -É .-Se ela é branca, como ela
razão de seu papel capital, projeta sua pró­ pode ser escura? - Porque não tem fogo. - O
pria cor. Em compensação, a água fria e a que é branco pode ser escuro? - Pode."
água quente, que a criança procura distinguir,
são ambas qualificadas de "mais branca”. A lua é, portanto, simultaneamente es­
Provavelmente, a expressão não tem, nos cura e branca. Simples indicação de grau?
dois casos, o mesmo sentido: para uma, bran­ Expressão análoga ao claro-escuro? Talvez
A COMPARAÇÃO 241

seja exatamente essa, na verdade, a impressão la como a água da torneira? - Poderia. - A


em volta da qual oscilam as respostas da gente poderia pôr peixes do mar no Sena? -
criança. Contudo, a oposição é, ao mesmo Não. - Por quê? - Não sei. - Como você sabe
tempo, mais maciça e mais discordante. Assim que a gente não poderia? - Porque eles não
como, mais acima, a água que ferve era iam poder viver. - Por quê? - Porque eles estão
contaminada pela vermelhidão do fogo, aqui acostumados a viver no mar. - Como eles
é a noite que estende sua obscuridade sobre perceberiam que a gente os colocou no Sena?
a lua. Também sua cor pode, em seguida, - Não sei.”
evocar a do quadro negro. Mas ela também é
branca e definida como a superfície refletora Essa criança deve debater-se entre uma
de um abajur ou a substância transparente do assimilação completa do Sena com a água e
vidro. Ela é, portanto, como que dividida as imagens, irredutíveis entre si, do Sena, dos
entre dois contrários, porque participa de lagos e do mar. Donde suas contradições;
dois conjuntos, que são, cada um, indisso­ ela acaba consentindo com a assimilação com­
ciáveis: de um lado, a noite, de outro, esse pleta do Sena e dos lagos, mas persiste em
cortejo de coisas diáfanas que correspondem repelir a do Sena e do mar. Incapaz de outras
ao aspecto dela. Sua verdadeira oposição aproximações que não sejam de objeto global
com o sol é sua falta de calor e a ausência do a objeto global, ela corre o risco, a todo
sol quando ela brilha. Mas os termos de com­ instante, de ficar em desacordo consigo mes­
paração sueedem-se, como conjuntos con­ ma. Cada vez que o recobrimento de uma
cretos aos quais a lua é, alternadamente, imagem por uma outra tende a unificar dois
assimilada, com a ajuda do qualificativo objetos, o choque com um terceiro par­
correspondente. cialmente diferente torna-se uma even­
tualidade possível. A água é o Sena, mas o
N... aire 7; 1/2 diz que há campos em todo Sena, os lagos, os mares são coisas diferentes,
lugar, mas não onde há o Sena. “O que é o embora todos os três sejam de água. Por falta
Sena? - Ê ãgua. - Em todo lugar onde tem água de poder considerar os objetos de outro modo
é o Sena? - É. - Você já foi ao Bosque de a não ser em sua totalidade, a criança não
Boulogne? -Jã.- Existe o Sena no Bosque? - sabe nem reuni-los, nem opô-los de modo
Têm lagos. - São a mesma coisa que o Sena? - específico. São sempre dois conjuntos que
Não. - Em todo lugar onde tem água não é o ela põe frente a frente e, se ela deve justificar
Sena, então? -É .- Em todo lugar? - É .- O que a exclusão mútua dos mesmos, é, freqüen­
são os lagos? - Água. - Mas não é o Sena? - É. temente, através de uma circunstância de que
- Então os lagos são o Sena? - São. - E o mar, ela não sabe afirmar outra coisa senão que
você sabe o que é? - É água também. - É a pertence a um dos conjuntos e não ao outro:
mesma coisa que o Sena? - Não. - Então, o assim, peixes de água salgada que não são
Sena não está em todo lugar onde tem água. peixes de água doce.
- Está. - Então, o mar é o Sena? - Não. - Onde
tem água não é sempre o Sena? - Ê . . . o m ar RECORTE DOS OBJETOS
não é da mesma água que o Sena. - A águ a da COMPARADOS UM SOBRE O OUTRO
torneira é do Sena? - Ê. - Por que a água do mar
não é igual à água do Sena? - Não sei. - Por que Essas próprias oposições, essas pró­
você diz que não é a mesma água? - Não são prias contradições servem, frequentemen­
os mesmos peixes. - Como você sabe?... Você te, para a criança, de razão suficiente em
já os viu no mercado? - Já. - Você nunca viu a seus argumentos. É um procedimento que
água do mar? - Não. - Você sabe o gosto da parece ser a utilização de suas limitações
água do mar? - Não. - A gente poderia bebê- mentais.
242 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

N...aire 7 ;l/2 “Diga-me coisas que são Tinha carne, pele. - E o caracol, ele está vivo?
pesadas. - Um carro. - Uma pedra é pesada? - Está, é de cam e.”
- É . - E uma pedra bem pequenininha? - Não,
eia afunda assim mesmo. - Por que ela afunda, A criança não se aflige para ajustar a
se não é pesada? - Porque não é de madeira. “vivo” a locução corrente “em carne e osso”,
- Existem outras coisas, além da madeira, que a não ser suprimindo “e osso”, que não pode
não a fundam? - Existe. - O que? - Não sei. - convir aos insetos. O procedimento pode ser,
Não existem outras coisas além da madeira? - ao contrário, o de dar um acréscimo ao traço
Um galho de árvore. - Não é de maddeira? - É.” que não combina com todos os objetos
comparados.
A analogia negativa toma-se, desse mo­
do, para a criança, um meio de explicação. N.. .aire 7; 1/2 “O que é preciso para viver?
Mas, opondo somente objeto a objeto ou - Comer. - E o que mais? - Beber. - E o que
objeto a efeitos e, por conseqüência, sem mais? - Casa para fic a r protegido do frio. - O
nehuma generalidade, a analogia recai nos que é que está vivo? - A gente e os bichos. - E
mesmos incovenientes que a assimilação po­ o que mais? - Os peixes. - E o que mais? - As
sitiva. Ela implica, constantemente, exceções pessoas. - Os bichos têm casas? - Não, elas
ou contradições. Se a criança quase não parece fa zem casas com o capim. - E os peixes têm
embaraçada por ela, é porque a mono- casas? - Não. - Eles podem viver? - Podem. -
polização de seu espírito, pelo objeto ou Viver sem casa? - A casa deles é o S en a ”
pelas circunstâncias de sua representação
presente, a impede de evocar casos de A casa amplia-se, aqui, às dimensões do
controle. Ela não é, por causa disso, menos Sena. Simples assimilação verbal talvez, mas,
forçada a reajustar perpetuamente, entre si, contudo, procedimento que assegura a coe­
os termos de suas comparações. Seus pro­ rência, pelo menos formal, do pensamento
cedimentos são uma espécie de recorte dos consigo mesmo e evita-lhe a contradição. É
objetos, uns sobre os outros, de modo a neles um progresso evidente sobre a idade e que o
modificar os traços que se opõem e a obter as objeto imaginado pela criança se metamorfo-
coincidências que sua maneira atual de en­ seia ao sabor de suas explicações fabulatórias.
cará-los exige. Aqui, ainda, a criança é capaz
de esquecer tudo o que não pertence estri­ H...art 5; “O que é o sol? - É como um
tamente ao seu ponto de vista do momento e balão. - Como é um balão? - Bem redondo. -
de considerar certas facetas das coisas como O sol é grande? - É um pouco m enor que um
o todo das mesmas. balão. - Ele poderia entrar aqui? - Poderia. - O
O recorte pode ser uma simples su­ que você sente quando está no sol? - Eu sinto
pressão. que ele queim a. - Por que ele queima? - Por­
que é quente. - Como ele é quente? - Éporque
D. ..val 7 ;l/2 “As flores estão vivas? - Não, ele ilum ina. - Como é que ele ilumina e es­
senhor. - Por quê?... Diga-me coisas vivas. - A s quenta? - Éporque ele acende. - Como? - Por
pessoas, os cavalos, ospardais, os tigres... N ão um fio e um botão,- tem chum bo dentro. - De
encontro m ais nada. - Por que eles estão onde a gente o acende? - No balão, no sol. -
vivos? - Porque são de carne e osso. - A carne Mas quem acende? - Pessoas. - Pessoas na
e os ossos estão vivos? - Estão. - As moscas terra? - Não. - No sol? - Não, dentro do sol. -
estão vivas? - Estão. - Elas são de carne e osso? Elas não ficam com calor demais? - Elas abrem
- Não. - Por que estão vivas? - Porque estão as janelas.”
vivas, são de carne e osso. - Você já encontrou A facilidade com a qual o sol se transforma
ossos numa mosca quando a esmagou? - Não. é igual apenas ao caráter absoluto dado, pela
A COMPARAÇÃO 243

criança, às qualidades de cada objeto, como sões imaginativas que uma palavra pode
se ele fose único ou respondesse a um tipo suscitar: selvagem opõe-se, inicialmente, à
uniforme; na verdade, é porque a criança tem natureza onde brilha o sol, depois toma-se o
do objeto, a cada instante, apenas uma imagem homem que vive só. Essa passagem é um
particular, onde as qualidades, não são um resquício da inconsistência que acompanha a
meio de classificá-lo entre outros objetos, sucessão das imagens na criança nova e que
mas um conjunto de propriedades indivisas e toma ilusória toda comparação verdadeira.
como que pessoais. Assim, o sol não é grande A comparação marca, portánto, um nivel
como um pequeno balão, ele é menor que em sua evolução psíquica. Ela dá seqüência à
um balão, o que não o impede de ser dado, analogia, que dá seqüência, ela própria, à
em seguida, como um habitat do qual é simples sucessão metamórfica das imagens, e
possível abrir as janelas. Essa contradição que supõe uma certa conservação de uma na
entre os elementos absolutos do objeto e sua outra. Mas, da analogia, resulta uma con­
variabilidade provém do fato de que o pen­ taminação mútua ou a mascaragem da pri­
samento da criança pequena limita-se ao meira, que parece, no entanto, perpetuar-se
momentâneo. Ela está abaixo da comparação. na segunda. A exemplo de outros proce­
Alguns anos mais tarde, pelo contrário, a dimentos primitivos de pensamento ou de
criança saberá conservar, entre as imagens expressão, ela pôde ser utilizada como pro­
sucessivas de seu pensameno que terão uma cedimento literário. Esse “caçador de ima­
certa semelhança, uma delimitação mais es­ gens” impenitente que foi o escritor Jules
trita. Renard fez dela um verdadeiro sistema. E
André Ginde o censura por isso com vi­
P...ier 8; “O que que é o sol? - Fogo. - De vacidade.
onde vem esse fogo?... Para que haja fogo, o A comparação é bem diferente. Ela supõe
que é preciso? - M adeira e carvão. - Para o sol, a estrita fixidez dos termos que são apro­
é preciso madeira e carvão? - Não. - Então, ximados e do traço que lhes serve de medida
como existe fogo no sol?... O sol sempre vai comum. Embora a criança dificilmente atinja
existir? - Não. - Como o sol vai acabar? - o grau desejado de nitidez e de firmeza, a
Q ueim ando. - Vai ter uma hora onde o sol comparação é-lhe um meio freqüente de de­
não vai mais queimar? - Não. - O que vai finição e de explicação, pois responde à sua
acontecer? - Vai cair água. - Por que não cai forma habitual de pensamento, que é a de
água quando faz sol? - Porque ele esquenta, - justapor, entre si, objetos concretos, conjuntos
Sempre existiu o sol? - Não. - Como era antes? sincréticos. Ela tem, portanto, na criança, um
- Era selvagem. - O que isso quer dizer? - Estar rigor muito variável. Começa não ultrapas­
sozinho. - O que é que estava sozinho? - O sando a estrutura do par, onde os termos são
homem. - Como o sol começou? - Comofogo. unidos, com freqüência muito fortemente,
- Como esse fogo começou? - Pelo vapor.” por uma afinidade mal determinada e em
conseqüência de uma assimilação global,
Entre o fogo e o sol, que ela aproxima em acidental ou subjetiva. Assim que ela pode
razão do calor emitido, a criança sabe, con­ estender-se, de maneira coerente, a um nú­
tudo, manter a diferença, porque ela não mero maior de termos, ainda que apenas três,
decide explicar o sol pelos procedimentos já implica uma fórmula mental distinta dos
artificialistas que na sua experiência corrente próprios objetos, inaugura o poder de evo­
lhe ensina sobre o fogo. Ela ainda não está, cação intelectual e faz o pensamento da
contudo, inteiramente protegida das digres­ criança passar para o plano das idéias.
Cápitulo in

A IDENTiriC AÇÃO D O OBJETO


O QUALITATIVO

Is A identificação do objeto

A DISPERSÃO PRIMITIVA DO OBJETO

A percepção e o conhecimento parecem Naturalmente, é para as realidades menos


feitos para decalcarem o objeto. Ser sensível diretam ente ao alcance da criança q u e elas
ou reagir à sua presença seria identificá-lo persistem por mais tem po. O que ela não teve
como tal. Sua realidade teria algo de primiti­ ocasião de manipular, o q u e entra em sua
vo, de total, de necessário. Assim argumenta experiência apenas sob forma de imagens
o senso comum. Mas a experiência mostrou perceptivas pode ainda escapar da lógica da
que ele pode, ao mesmo tempo, ser e não ser identidade, bem após a data em que a criança
para aquele de quem ele ocupa o campo tom ou-se capaz de responder a questões
perceptivo ou utilitário. A patologia humana m etódicas sobre a natureza ou a razão das
mostrou que certas lesões ou deficiências coisas.
cerebrais suprimem o poder de reconhecê-
lo, mas não o de ter sensações e gestos que a R...ault 8; “O que que é a chuva? - A
ele se refiram. Nada permite afirmar que o chuva é quando as nuvens m udam e depois
animal saiba opor-se a ele. Objetivo, instru­ a chuva vem. As cores m udam ; agente apaga
mento ou obstáculo, ele entra em suas mani­ ofogo e depois acende outrosfogos. - Por que
festações de apetite ou em seus movimentos a gente apaga o fogo, se é para acender
como motivo ou meio. Integra-se a eles, sem outros? - Para m udar. - E o que é que muda?
individualizar-se como algo que seja indepen­ - Fica igual. - Antes que fosse chuva, o que
dente deles ou que sobrevive a eles. As impres­ que era? - Era a água que caía. - Onde ela
sões sensoriais, os incidentes exteriores, aos estava? - No céu. - Como é que tem água no
quais a criança pequena reage, são o indício céu? - É no trovão. - O que é o trovão? - É o
de situações importantes para ela, antes de raio?- E o raio, o que é? - É como neve, é todo
significarem a existência de objetos determi­ branco. - Não é neve? - Não. - No que ele se
nados. Podemos marcar as etapas através das transforma?... Ele fica sempre assim? - Fica. -
quais ela chega a distingui-los como tais com O que o raio faz? - Ele cai em cim a das casas,
base em suas relações perceptivas e práticas. e depois as destrói. - O que é que cai sobre as
Dificuldades de mesmo gênero reproduzem- casas? - O raio. - É o que é branco que cai
se quando o objeto penetra no campo da sobre as casas? - Não o raio, é pó. - Você tinha
representação ou do pensamento discursivo. dito que o raio era como a neve e agora é o pó:
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 245

qual dos dois...? ( Sorriso confuso e meigo)... sim, senhor. - Não existe outra água que vem?
Diga qual dos dois. - O p ó . - E o vento, о que - Não, senhor. - Então, o Sena não corre? -
é? - O vento ê o trovão .- О vento é pó? - Não. Corre, sim, senhor. - Em Paris é o mesmo Sena
- Você tinha dito que o trovão era o raio e que que aqui (em Boulogne)? - Não, senhor. -
o raio era pó. Então... Então, o que que é o Existem vários Sena? - Não, senhor. - Você viu
vento? - É trovão Г o Sena em Paris? - Vi. - É o mesmo Sena? - Não.
- Então, existem vários Sena? - Existem, sim,
Através das fórmulas de com paração ou senhor. - Os barcos de Saint-Cloud podem ir
de com pleta assimilação, as imagens suce- para o Sena de Paris? - Não, senhor. - Quando
dem-se, recobrem -se ou separam -se como eles passam pela ponte de Saint-Cloud, para
fariam nuvens de forma mal definidas e variá­ onde eles vão? - Não sei. - Você nunca foi para
veis. Parecem estirar-seno espírito da criança, Paris de barco? - Não, senhor."
sem poderem , de maneira exata, coincidir ou
diferenciar-se. Parecem identificar realidades As contradições são, aqui, numerosas,
sim plem ente conexas; assim, chuva, trovão e mas as dificuldades são mais graves do que
vento. Elas delineiam conjuntos barrocos: pareceria à primeira vista. É, inicialmente, o
raio e neve, por intermédio do pó, simples renovar da água, com o Sena permanecendo
assonância O , de um lado, simples analogia o mesmo, que a criança não pode imaginar.
visual, de outro. Elas inserem um braseiro Além disso, seria preciso que ela o repre­
que se apaga entre as nuvens que refletem o sentasse, simultaneamente, em vários lugares,
sol e as que se fundem em chuva. De sua os quais a criança não aprendeu a unir. Ela
sucessão não resulta nenhum a definição também hesita entre um e vários Sena. As i-
precisa, nenhum a delimitação nítida entre os magens que ela tem do mesmo ainda são es­
objetos evocados. tritamente estáticas. Mesmo o movimento de
Identificar um objeto é reduzir, à sua deslizar que ela nele constata é muito mais
simples unidade, seus aspectos variáveis e a uma qualidade, uma maneira de ser da á-
diversidade de suas relações. Pode acontecer gua do que um deslocamento que o leva pa­
que a criança o faça tão num eroso quanto ele ra outro lugar. O dos barcos permanece liga­
pode assumir aparências diferentes. do aos locais onde é observado. A redução
não é operada entre os espetáculos variáveis
F. ou parciais do objeto, o qual permanece,
..gli 5; 1/2 “O que é a lua? - Depois têm
redondas. - Existem várias luas? - Existem. - E desse mode, fragmentado em vários.
o sol, existem vários? - Um só. - Qual é maior,
a lua ou o sol? - A lua. - A gente vê várias luas? A CONFUSÃO DOS OBJETOS
- Vê.”
O efeito inverso também pode, aliás, se
Provavelmente, quando falou de luas produzir. A confusão ainda é tal entre as
que são redondas, a criança pensava nas noções de lugar e as de qualidade, que uma
putras formas que as fases da lua a fazem simples semelhança qualitativa pode fazer
assumir; a cada um a delas, a criança faz com que objetos sejam identificados, apesar
corresponder um a lua diferente. de sua diversidade de lugar.

G. ..el 7; “A água do Sena vai embora? Ela N.. .et 6;l/2 falou da fumaça feita, um dia,
corre? - Não. - É sem pre a mesma água? - Д por um homem que acendia seu cigarro em
um bosque. Mostramo-lhe, pela janela, a
O N.T. : Em francês, há assonância entre “raio”(“foudre”) fumaça que uma chaminé de fábrica solta:
e “pó” (“poudre”). “Aquela fumaça ali vem do bosque? - É a
246 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

mesma ju m a ça que a que está no bosque. - deixam-se como que desaparecer pela se­
Então, ela vem do bosque? - Não, ela não vem melhança qualitativa. Se fosse necessário fazer
do bosque, m as é a mesma fum a ça . - Faz dessa etapa uma representação positiva, ela
tempo que o homem fez fumaça no bosque? corresponderia à fórmula de existência que
- Ah, fa z ! F az tempo. - E aquela fumaça ali é foi chamada de participação, onde as coisas
a mesma que a que está no bosque? - É a têm, de um trapo comum qualquer, do sim­
mesma. - Ela é feita com os papéis do ho­ ples fato de “se pertencerem” mutuamente, o
mem? - Não, é feita com fósforos. - Você já viu poder de se substituírem, de se engendrarem,
fazerem fumaça na sua casa? - Ah, jâ ! Um dia, de se eqüivalerem entre si, a despeito de suas
tinha um colchão que a m inha mãe distâncias no tempo e no espaço. É uma
desm anchou, um colchão que estava cheio identificação difusa, poli-, ou melhor, a-morfa,
de percevejos. Teve um homem que pôs fogo que chega, freqüentemente, a confundir os
nele. Fazia m uita fu m a ça que subia até o princípios de comparação e os de existência
céu. - Não era a mesma fumaça que aquela lá? ou de geração, as relações de nossas repre­
- Ah, não! Não era a mesma.” sentações e as das coisas.
Não é que a criança não tenha, com
Assimilação, de um lado, distinção, de freqüência, um sentimento de multiplicidade
outro: em um caso, sjlo fumaças longínquas que duplica o ato de assimilação e não ex­
e, de algum modo, impessoais; no outro, perimente a necessidade de conciliá-los quer
trata-se de um incidente que pertence às em proveito desta, quer em proveito do ou­
próprias lembranças da criança. A confusão tro. Na falta de relações definíveis, ela se
não é possível entre circunstâncias banais e entrega aos artifícios de imaginação, que
uma lembrança que marcou em sua existên­ deformam, e nem sempre inconscientemente,
cia. Contudo, o particular e o geral ainda se sua representação das coisas.
confudem: toda fumaça que se eleva nó ar ê
a mesma que feita, um dia, por um homem M...rès explicou que o Menino Jesus
em um bosque. Assim parecem abolir-se, faz a chuva parar e, à pergunta “Como?”, d a
diante da analogia qualitativa, as diferenças respondeu: “É o Papai Noel. - O que que é o
de tempo e de espaço. Essa identificação Papai Noel? - Ele traz brinquedos. - E o
opera-se sob o aspecto da palavra ambígua Meninojesus, o que é? - Grande assim (afas­
“mesma”. Ela pode exprimir, na verdade, ta as mãos uns 25cm ). - Então, ele não sabe
quer a identidade de substância, quer um andar? - Sabe. - Você já o viu? - Vi, na m anje­
traço de semelhança ou um gênero de rela­ doura. - Onde? - Na missa. - Ele está na missa?
ções que permite colocar vários objetos na - Está. - Então, ele não está no céu? - Está, no
categoria correspondente, quer, enfim, um céu e na m anjedoura. - Quando ele está na
indivíduo singular, único. Não há identifica­ manjedoura, ele está no céu? - Não. - Quando
ção sem escolha entre essas três espécies de ele está no céu ele pode estar na manjedoura?
identidade, que são, aliás, solidárias entre si. - Não. - Como ele faz para ir para o céu
Mas é uma diferenciação de que a criança não quando ele está na manjedoura? - Ele voa. -
é capaz logo de início. É preciso uma apren­ Como ele faz para voar? - Ele tem asas. - Você
dizagem que exige um determinado grau de as viu? - Não. - Mas você o viu mesmo na
maturidade intelectual. Entre a analogia per­ manjedoura? Vi. - Você viu as asas? - Vi. -
-

ceptiva e a identidade substancial, a passa­ Você não disse primeiro que você não as
gem não tem nem mesmo que ser feita pois, tinha visto? - Porque ele está no céu. - Mas
não sendo ainda nitidamente especificáveis você o viu? - Vi. - Onde? - Na m anjedoura. -
nem uma nem outra, distingui-las é impossí­ Você o viu voar? - Não. - Se você estivesse lá
vel. Mesmo diferenças de tempo e de lugar olhando para ele na manjedoura, você o veria
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 247

voar? - Veria, se eu fosse o M enino Jesus. - dade, onde Lévy-Bruhl vê um ilogismo, não é
Como é que a gente não pode vê-lo voar? - Ele acessível à criança, pois supõe visível ou o
voa rápido. - É o menino Jesus que faz a oculto, ou seja, entre o percebido e o pensável.
chuva parar? - Ê. - Quando ele está na A identificação, pelo pensamento, do objeto,
manjedoura, ele pode fazer a chuva parar? - em sua própria unidade estritamente material,
...Ele está no céu. -Mas, e quando ele está na requer o p o d er de im aginar o real
manjedoura? - Não.” simultaneamente em vários planos, de operar,
entre eles, perpétuas transferências. É a isso
Sob a pressão das perguntas e das ob- que a criança mostra-se, por muito tempo,
jeções que elas levantam, a criança é, mani­ inábil. Ela não pode agir de outro modo, em
festamente, levada a fabular. É um proce­ seu realismo ingênuo, a não ser justapor,
dimento que lhe é habitual e inevitável en­ como tendo o mesmo gênero de existência, a
quanto d a não dispor dos mesmos recursos pessoa e a efígie, a coisa e seus a sp eao s, o
mentais que o adulto. Aqui, contudo, a fabu- modelo e а imagem, o espaço sensorimotor e
laçao não submerge suas lembranças per­ os diferentes níveis do espaço imaginado ou
ceptivas. E é o que aumenta o embaraço da do espaço mental.
criança. A identificação do ser que ela evocou
choca-se com vários obstáculos. Ela aparece- SUBSTITUIÇÕES MÚTUAS DAS
lhe, inicialmente, em duas pessoas: uma cri­ QUALIDADES SUBSTÂNCIAS, LUGARES
ança e um ancião, que ela define um pelo
outro, porque a tradiação atribui quer a um, Desse modo, acontece que, à diversidade
quer a outro, o papel de distribuir brinquedos. das qualidades, a criança faça responder
Depois, sob duas espédes: sua efígie visível, objetos diferentes.
na figuração ritual; sua existênda celeste, a
qual estão ligados seus poderes. Mas a criança H...oux 7; “Como é a água do mar? - A zul.
ainda não é capaz de uni-las pela relação de - Quando você a coloca no balde, ela fica azul
imagem a realidade, de emblema a potência - Não. - Onde ela fica azul? - No fu n d o . - Por
ausente ou invisível, pois ela ainda não sabe que ela não fica azul no balde? - Porque não
dissociar nitidamente a representação do ob­ ê longe que eu apego. - Se você fosse pegá-la
jeto, nem projetá-los em planos diferentes de longe, ela ficaria azul? - Ficaria, sim , senhor.
pensamento. Dessa aderênda ao concreto - É a mesma água? - Não. - Existe uma
surge uma outra dificuldade: a dualidade, separação? - Existe. - Ela não se mistura? -
não apenas de espécie, mas de lugares. E, pa­ Mistura. - Ela se mistura? - Não. - O que é que
ra evitar o escândalo lógico da ubiqüidade não a deixa se misturar?... Existe uma parede?
real, ela adota a hipótese da migração, aqui, - Não.”
ainda, o perceptível prevalecendo sobre o
sobrenatural, primeira forma do ideal. É, na A criança tenta, aqui, justificar a dife­
verdade, porque é rápido demais que o vôo rença perceptiva através de uma diferença
do Menino Jesus não é visível e não, como a substancial, e esta através de uma diferença
criança parecia a ponto de exprimir, porque de lugar. Embora ela não consiga, assim,
um olho fisiológico humano não poderia vê- explicar a separação material que exigiria a
lo: “Veria, se eu fosse o Menino Jesus”. Ela é, não-mistura das substâncias, essa tentativa
assim, levada, em oposição a suas lembranças de transformar, uma na outra, uma diferença
perceptivas, a modificar a imagem de Jesus qualitativa e uma diferença de lugar já é um
em sua manjedoura, acrescentado-lhe asas. progresso acentuado do pensamento. Para
Violação da realidade por realismo elementar. medi-lo, basta mencionar esta constatação
A ubiqüidade das crenças primitivas, na ver­ bruta feita por uma criança de 5; 1/2.
248 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

F. ..gli “Como é que a água do marvezes,


é fumaça vermelha e, às vezes, fumaça
salgada? - Não sei. - A água do Sena é salgada? branca? - Porque, às vezes, tem carvão ver­
- Não é o mar.” melho e, às vezes, a gente não vê que ele ê
vermelho. - Por que existe fumaça branca? - É
Por vezes, aliás, a assimilação ou a subs­ carvão branco. - A gente vê muito carvão
tituição entre qualidade e lugar ainda são um branco? - Vê, sim, senhor. - Onde a gente o vê?
pouco desordenadas e incoerentes. As ten­ - Onde a gente o compra. - Você já viu carvão
tativas de justificação permanecem bloquea­ branco? - Vi, sim, senhor. - Branco como o
das no sincretismo da representação. quê? Mostre-me, aqui, alguma coisa branca
como o carvão branco. - (Após ter olhado em
G. b...et 8; “O que é o Sena? - É água. - sua volta, ela mostra papel branco.) - O
Água como? - Verde. - É água como a da carvão é branco assim? - A gente não vê que
torneira? - Não. - O que não é igual? - O Canal. ele ê branco. - Mas, então, como a gente sabe?
- Por que a água do Sena e a da torneira não - A gente vê quando ele é queimado, quando
são iguais? - Não é a mesma água. - Por que a gente vê a fum a ça .”
não é a mesma água? - Porque ela não é igual.
- De onde vem a água do Sena? - Da chuva. - Distinção de aspecto, distinção de obje­
E a água da torneira? - Do canal.-E a água do to, distinção de lugar: brancas e vermelhas,
canal? - Branca. - Sim, mas de onde ela vem? são nuvens diferentes, que desaparecem e
- Da chuva? - Então, é como a água do Sena? reaparecem alternadamente. Pouco a pouco,
- A água do Sena é verde. - Por que ela é essas distinções repercutem-se na suposta
verde? - Porque tem verde dentro.” origem das duas espécies de nuvens, na
fumaça de que elas seriam feitas, no carvão
A alternância é, aqui, contínua, para de onde ela sai e que assumiria, respectiva­
justificar a diversidade dos objetos, entre a mente, a cor delas por uma espécie de con­
qualidade e a origem de lugar. Para evitar tágio qualitativo. Mas a contradição entre as
uma tautología pura e simples, a diferença de qualidades deduzidas e as da experiência
qualidade é explicada pela presença de uma não escapa à criança. A necessidade leva-a a
substância correspondente: “tem verde den­ distinguir, sob as aparências, aquilo que, sem
tro”. Assim, o pensamento da criança mostra- ser visível, aparece nos resultados. Grande
se incapaz de ordenar os objetos entre si progresso, se a criança ultrapassasse, através
segundo relações nitidamente distintas. Uma disso, a impressão dos sentidos para atingir o
simples diversidade qualitativa pode levar, objeto ou a causa. Mas ela é aí encurralada, ao
através das séries variáveis de relações, a contrário, pelo prolongamento realista que
distinções despropositadas. ela lhe dá. Na enumeração dos objetos que
devem possuir a qualidade, para explicar sua
G...aume 6; “São as mesmas nuvens que existência ao fim de uma série, um deles,
são vermelhas e depois brancas? - Não, se­ evidentemente, não a possui. Basta supô-lo
nhor, têm nuvens vermelhas e nuvens aí, invisível. Mas esse invisível não é o do
brancas. - Quando têm nuvens vermelhas, princípio explicativo que o primitivo buscava
onde ficam as brancas? - Elas vão embora no oculto e o racionalista na idéia. É uma nota
para outro lugar. - E quando têm nuvens que falta no teclado sensorimotor. Ainda não
brancas, onde ficam as vemelhas? - Elas vão é o desdobramento, a mudança de plano, que
embora para outrç lugar... - O que são as oporia, aos simples efeitos perceptivos ou
nuvens vermelhas? - É fum aça. - E as nuvens acontecimentos sensorimotores, o que per­
brancas? - É fum aça branca. - De onde vem mite encontrar-lhes outras relações que as
essa fumaça? - Dofogo... - Por que ele faz, às implicações subjetivas dos mesmos. É muito
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 249

mais um obstáculo do que uma ajuda na Várias causas que, aliás, encaixam mais
identificação do objeto. ou menos umas nas outras, tomam as res­
postas dessa criança confusas. Primeiramen­
A QUALIDADE ESPECÍFICA te, uma certa inércia mental, que as faz, por
E OS GRAUS NA QUALIDADE vezes, atrasar na seqüência das perguntas,
ou que substitui, o que é perguntado, por
Para que as qualidades tomem-se um uma circunstância, provavelmente relacio­
meio de distinguir corretamente entre os ob­ nada com o objeto, mas não com a pergunta
jetos, será preciso que cada uma delas se feita-, por exemplo, “quando ela está bem
liberte das outras relações nas quais a criança seca”. Em seguida, as dificuldades da com­
as mistura, que elas não sejam mais a qualidade paração, o espírito da criança aderindo, suces­
própria de um objeto único, que elas sejam sivamente, à imagem de cada objeto e não
escolhidas de tal maneira que pertençam es­ chegando mais, finalmente, a fazer coincidir
sencialmente ao objeto e não fortuitamente. corretamente, com cada um deles, as diferen­
Eis uma escolha correta. ças enunciadas: sucessivamente, a terra e as
pedras serão declaradas “cinzas” e “pretas
L...out 6; 1/2 “Não é a mesma coisa a perto dos rios”.M aso princípio dessas confu­
pedra e a terra? - Não. - Qual é a diferença? - sões provém da incapacidade, em que ainda
Não sei. A terra é terra preta. E a terra não é se encontra a criança, de reunir os objetos se­
dura; as pedras são duras!’ gundo os graus de uma rubrica qualitativa.
Embora ela oponha cinza, preto e branco,
Após ter citado uma qualidade con­ multiplicando os “um pouquinho” e “só um
tingente, a criança cai na diferença espe­ pouquinho”, visivelmente cada indicação está
cífica. Mas o caso pode ser exatamente in­ ligada à imagem momentânea de objetos
verso. particulares que se sucedem em seu espíri­
to sem que os termos de atenuação, unifor­
G...in 7; “Não é a m esm a coisa a pedra e memente empregados para os dois objetos,
a terra? - Não. - Qual é a diferença? - A terra é respondam, o menos possível, a uma clas­
um poucopreta. -E a pedra? - Ela é um pouco sificação qualquer. Assim substituem-se, entre
cinza. - Fora isso, é a mesma coisa? - Não. - si, a terra compacta e a poeira superficial, a
Qual é a diferença? - A terra que é fin a , ela é terra seca e a terra molhada, a qual é, brus­
um pouquinho branca. - Você disse que a camente, substituída pelas pedras molhadas.
terra era preta. - Eu quis dizer um pouquinho A criança não se apercebe de que a relação é
preta. - Ela é um pouquinho branca ou um entre a umidade e a cor mais escura, não entre
pouqinhopreta?- U m pouquinho cinza e,por esta e cada um dos dois objetos comparados.
cima, um pouquinho preta. - A gente pode Desse modo, os objetos parecem misturar
tirar o que está por cima? - Pode. - Então, suas qualidades e tendem, cada um, a perder
com o ela fica? - Q uando ela está bem seca. - sua homogeneidade, sua identidade, por falta
E a pedra? - Umpouquinho cinza. - Então, ela de uma qualidade graduada que os tome
é com o a terra? - Não, senhor. - Por quê? - A comensuráveis e que dê conta, em cada um
terra é sempre um pouquinho preta e a pedra deles, das mudanças devidas às circunstâncias.
um pouquinho cinza. - Você não tinha dito É como se o objeto se multiplicasse com a
que a terra tam bém era um pouquinho cinza? diversidade de seus aspectos, cada um de
- Só um pouquinho. - Existem outras diferen­ seus estados sucessivos fixando-o em sua
ças? - Têm um asquesão todaspretas. - Quais? existência total. Provavelmente, a criança
- Perto dos rios. - O que é preto perto dos rios? praticamente ultrapassou essa fase. Mas con-
- Pedras.” tinua-lhe impossível justificar a permanência
250 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

do objeto, quando ela procura defini-lo por mas o gelo não é o vento. A criança tem como
oposição a qualquer outro. Essa implicação, que o sentimento de uma não-coincidência
a cada vez particular, das qualidades na coisa exata, o que já marca um progresso, pois esta
ou vice-versa é o que a impede de escolher, deveria dar lugar, não a uma diferença de
entre elas, a que permitira distinguir entre grau desta vez, mas a um vínculo de causa­
dois objetos. Incidentemente, ela fala da terra lidade. Se o frio parece ter mais generalidade
“que ê fina” para especificar a cor da poeira, que o gelo, é, provavelmente, porque este é
mas não percebe que a falta de coesão entre o efeito daquele. Mas ele próprio é identificado
partículas é precisamente o que distingue a com o vento e o ar, provavelmente como
terra da pedra. Assim, cada qualidade, cada resultado deles. Assim se delineia, entre os
nuança de qualidade permanece a de um objetos, uma ordem que, dando a cada um
objeto, tal como ele se oferece, momen­ seu lugar entre os outros, permitirá distingui-
taneamente, na representação da criança. Ela los entre si e atribuir, a cada um, sua total
não se classifica verdadeiramente entre ou­ identidade. O que regula essa possibilidade é
tras nuanças ou outras qualidades e também o poder de decompor as identificações
não é rigorosamente discernida de outras primitivas de objeto a objeto, destacando, de
qualidades associadas, mas heterogêneas. Por cada um, suas diversas qualidades ou par­
conseqüência, permanece impossível a es­ ticularidades para colocá-las em termos de
colha da qualidade catégorial e específica categorias ou de relações.
que conviria à comparação dos objetos con­
frontados. DISCORDANCIAS ENTRE
Há frases de transição onde a qualidade, SISTEMAS DE IMAGENS
ao mesmo tempo em que sempre se identi­
fica com objetos concretos, pode, contudo, Se a inaptidão da criança para realizar
apresentar graus que servem para distingui- distintamente as relações e qualidades, de
los. maneira a destacá-las de cada objeto parti­
cular para delas fazer um meio de classificação
J...ot8; “O que é o vento? - Éfrio. - O que ou de comparação entre todos, é a causa de
é o frio? - Égelo. - O frio e o gelo são a mesma ela não chegar a identificá-las rigorosamente,
coisa? - Não. - O que é o frio? - É a r.- Tudo o ela própria está ligada a uma ideação ainda
que é ar é vento? - É. - O ar e vento são a esporádica e como que estagnante, cujos
mesma coisa? - São. - Exatamente a mesma temas produzem-se e desenvolvem-se cada
coisa? - É. - O que é o ar? - Um ventinho. - O um por si, sem chegarem, com freqüência, a
que é um ventinho? - É leve. - O que é? - Não se unir e a s e reduzir entre si. Disso resultam
é pesado. - De onde vem o ar? - Do frio." incoerências que podem quer desorientar a
criança, quer impor-lhe afirmações barrocas.
Ao mesmo tempo, a criança sabe afirmar
formalmente a identidade do vento e do ar e P...y 6; À pergunta repetida três vezes:
marcar, entre eles, uma diferença qualitativa “O que é o vento?”, ela começa não res­
que já é uma diferença de grau na mesma pondendo nada. "Como ele é?... É grande, é
qualidade, o que confirma a íntima associação pequeno? - G rande. - Ele se mexe, não se
dos dois atos. Ao contrário, as relações mexe? - Se mexe.-Como ele pode se mexer?...
permanecem mais ambíguas entre o vento, o Você se mexe? - Não... sim . - Como você se
frio, o gelo. A passagem de um a outro faz-se mexe? - A ndando com os pés. - E o vento,
pela fórmula de ideritidade: “é ”. Contudo, a como ele se mexe?... O nde tem vento? - No
assimilação continua confusa. Entre o frio e o céu. - Aqui tem vento?- Não. - E lá fora? - Tem.
gelo, ela não ê reversível: o vento é o gelo, - Por que não tem vento aqui? - Porque os
A ID EN iraC A Ç Ã O DO OBJETO. O QUALITATIVO 251

v id ro s estã o fe c h a d o s. - E po r que tem vento T.. .oy 6; 1/2 “Como é o sol? - Ébranco, às
lá fora?... Como vento faz?... Você p o d e fazer vezes, um pouquinho preto. - Ele se mexe? -
vento? - N ão. - E eu? - N ão. - (Sopramos.) O Mexe. - Ele tem pernas para correr? - Não. -
que que é isso? - É vento. - Você p o d e fazer Então, como ele corre? - Ele corre assim (gesto
isso? - Posso. - Faça. - (E la sopra.) - O que q u e vago da m ão). - Como? - Com pernas de
é o vento? - F u m a ça . - Você p o d e fazer madeira. - Ele tem pernas de madeira? - Não.
fumaça? - F u m a n d o u m cigarro. - Você fuma? - Por que você disse que ele tem pernas de
- Ày vezes, meu p a i те d â um . - Eu fumei madeira? - Ele corre assim (Mesmo gesto que
agora mesmo? - Não. - Eu fiz vento? - Fez. - anteriorm ente))
Como que eu fiz? - Comfum aça. - (Sopramos.)
Eu fiz fumaça? - Fez. - O que que é a fumaça? A ausência de pernas, inicialmente
- É como vento. - Como a gente faz fumaça? - enunciada, ocasionou como que automa-
Com canos. - Têm canos aqui? - Não, no céu ticamente a imagem de pernas artificiais. Mas,
têm. (Ela ergue um dedo.) - Como você pode incompatível com a do sol, ela é imedia­
fazer fumaça se não têm canos? - Com as tamente retirada, sem poder dar lugar a outros
chaminés, elasfazem fum aça. - E eu, eu faço desenvolvimentos. Se, contudo, ela pôde
fumaça? - Não. - (Sopramos de novo.) Eu fiz produzir-se, é porque, entre as duas imagens,
fumaça? - Fez. - É fumaça? - É.” não se operara essa espécie de fusão an­
tecipada que controla a formulação do pen­
A inércia intelectual da criança tem, samento, essa simultaneidade da imagem
aqui, seus dois efeitos complementares: in­ latente e das imagens induzidas, que assegura,
capacidade para evocar, espontaneamente, à ideação, sua coesão, sua continuidade, suas
uma representação relacionada à pergunta possibilidades de progressão. No espírito da
feita, incapacidade para conter o desen­ criança, as luzes que se acendem uma à outra
volvimento da que foi suscitada em seguida permanecem mais ou menos dissociadas.
em seü espírito. Tendo o sopro que sai dos Assim, o declínio, como que autônomo,
lábios lhe lembrado, ao mesmo tempo em da imagem que se realiza por si mesma pode,
que o deslizar do vento sobre seu rosto, o em certos casos, levar ao enunciado de um
gesto do fumante, é essa última imagem que sistema muito afastado da impressão inicial
se impõe. A fumaça, por sua vez, ocasiona ou do modelo empírico, opor-se a eles,
suas associações familiares de canos e de transformar-lhes a representação, diferenciá-
chaminés, que estão em oposição com a la desmedidamente de outros objetos que lhe
pequena experiência feita para lembrar-lhe a eram mais ou menos próximos.
ação do vento. Contudo, ela não hesita em
identificar vento e fumaça, embora seja, J...ot 8; “O que é a lua? - É um a luz. - Ela
prímeiramente, obrigada a reconhecer a é como o sol? - Não. - O que não é igual? - A
possibilidade, para aquele que sopra, de lua. - Por que ela não é igual ao sol? - Porque
produzir vento sem fazer fumaça. E, enfim, ela é branca. - O que que é a lua? - É luz. - E
ela assimila completamente ar expirado e o sol? - É fogo. - A gente vê sem pre a lua? - De
fumaça. Assim, a identificação que ela faz dos noite. - Por que não de dia? - Porque ela
objetos coloca-a em desacordo com os da­ dorme. - Como ela faz para dormir? - Elafecha
dos perceptivos e com suas primeiras os olhos. - E o sol? - Não. - A lua é uma pessoa?
afirmações. - Não. - É uma luz? - É. - Comó ela tem olhos?
O conflito pode, aliás, ser também re­ - Eles são brancos. - O que mais ela tem? - A
solvido em sentido inverso, através da retração cabeça. - E o que mais? - O rosto. - E o que
da assimilação, se esta contraria, de maneira mais? - O nariz, a boca. - O nariz dela é
chocante demais, a verossimilhança. grande? - Não. - E a boca? - Também não. - E
252 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

o que mais, о que mais ela tem? - As pernas, D...in (mostramos para ela uma mesa
as orelhas, os dentes. - A lua é uma pessoa escura) “O que é isso? - Uma lousa. - E isto?
como a gente? - Não. - O que não é igual? - Ela (uma mesa de madeira clara). - Uma mesa. -
vive no céu. - Você viu as pernas dela? - Não. O que tem de diferente? - Pés. - E isto, o que
- Como isso acontece? - Porque ela épeque­ é? (uma lousa fixada verticalmente na pa­
nininha. - Como você sabe que ela tem per­ rede). - Uma lousa. - Para que serve a lousa?
nas? - Para ela andar. - Se ela não tivesse - É para escrever. - E uma mesa? - É para
pernas, ela não poderia andar?- Não. -E o so l comer. - Nesta mesa aqui (a clara), a gente
tem pernas? - Não. - Como ele pode andar? - come? - Come. - E quando você escreve na
Ele anda por causa do vento. - A lua não classe? - Д num a lousa pequena. - Como ela
poderia andar por causa do vento? - Não. - Por é? - Ela tem pés de ferro. - As vezes a gente
quê? - As pernas dela a parariam ." pode escrever numa mesa? - Pode, sim , senhor,
a gente pode escrever no caderno. - Mas
Provavelmente, a fabulação faz parte quando você está na classe, você escreve
dessa descrição. É uma maneira e um proce­ numa lousa? - É. - Então, você não escreve no
dimento habitual na criança, cuja atividade é seu caderno? - Eu ponho o caderno na lousa.
sempre meio lúdica, meio realista, como - Por que uma mesa e uma lousa não são
convém ao seu caráter mais funcional que iguais? - Não ê igual. - Sim, mas por quê? -
utilitário. O resultado das respostas obtidas Porque tem pés grandes. - Onde tem pés
não demonstra menos os mecanismos in­ grandes? - Na lousa.”
telectuais postos em jogo. A palavra “dormir”,
aplicada à lua e, talvez, induzida pela palavra A assimilação ou a distinção dos objetos
“noite” que a precedia, talvez também, mais faz-se, aqui, segundo a cor, que é uma qua­
relacionada com a fragilidade de seu aspecto lidade contingente. Ela leva a criança a clas­
que com o do sol, ocasiona toda uma se­ sificar as mesas escuras com o quadro mural,
qüência de imagens antropomórficas, que separando-as das outras mesas. Prova­
acabam por opô-la, radicalmente, à imagem velmente, a cor parece concretizar-se com
puramente física do sol, feito de fogo e movido outras distinções. Mobília de sala de aula, de
pelo vento. Esses dois astros seriam, portanto, aparência habitualmente escura, euso: mesas
colocados, por essa criança, em categorias in­ para escrever ou mesas para comer. Ou seja,
teiramente distintas, se, na realidade, os obje­ o detalhe fimda-se num conjunto sincrético
tos ainda não primassem sobredas categorias, de que ele se tom a o equivalente. Mas disso
e se a imagem própria a cada um não perma­ resultam duas discordâncias: escrever no
necesse singular e como que solitária. A iden­ quadro pode ter como sentido escrever
tificação peqnanece, assim, individual epode, diretamente ou colocar o caderno em cima e,
conforme os casos e o momento, obstruir as por outro lado, inconseqüência muito mais
generalizações mais naturais e o raciocínio. grave que essa simples anfibología, os pés
A distinção entre dois objetos próximos dados como distintivo das mesas escuras
ou da mesma espécie, e a aproximação parecem, por isso mesmo, negados às mesas
simultânea de um com outros que dele dife­ claras e atribuídos ao quadro mural. Certa­
rem muito mais, podem também resultar de mente, a criança escaparia dessas conse­
um detalhe acessório. Os caracteres essen­ qüências se estivesse em condições de torná-
ciais são, então, eclipsados. Disso resulta las explícitas. Mas, precisamente porque é
uma frágil coesão nos resultados intelectuais incapaz de evocá-las de maneira espontânea
da criança, rupturas e dissociações no sistema e como ela se limita a sempre imaginar apenas
de suas representações ou, pelo menos, cer­ um caso ao mesmo tempo, ou a considerar
tas discordâncias de vocabulário. alternadamente cada sentido esquecendo o
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 253

outro no mesmo instante, ela deixa subsistir As nuvens são nuvens mas, ao mesmo
uma grande confusão na diferenciação dos tempo, céu e sol. Assim como o céu, elas se
objetos entre si e, por conseqüência, na transformam em água mas, no entanto, mu­
identificação de cada um. dam diferentemente e, em todo caso, não são
Essa predominância de uma imagem iguais. O sol, embora sendo nuvens, não se
acessória, a ponte que ela pode lançar entre assemelha às nuvens. Termo comum, as
duas realidades diferentes em prejuízo de nuvens permanecem dissociadas sob a for­
semelhanças essenciais, as singularidades ma nuvens, céu, sol. À identidade substan­
de vocabulário que podem disso resultar, cial, a criança opõe a mudança, que enuncia
são suscetíveis de lembrar a linguagem bar­ até mesmo como uma mudança perpétua,
roca ou rebuscada de certos esquizofrêni­ como a mudança em si. Depois, à mudança,
cos. Neles, há subversão análoga, mas ela sobrepõe a diversidade de aspecto, “de
muito mais indelével, no ajustamento ou na roupa”. Certamente, essa oposição, ou me­
evocação mútua das imagens, nas clas­ lhor, a unificação do único e do diverso, é
sificações intelectuais e na identificação dos o problema fundamental do pensamento fa­
objetos. ce às coisas, mas com a condição de resolvê-
A dissociação pode, ainda, produzir-se a lo através de um sistema de relações defi­
propósito de objetos semelhantes e seme- nidas. Enquanto elas permanecem informulá-
íhantemente denominados, mas, respecti­ veis, só é possível uma oscilação entre o
vamente, em combinação com conjuntos idêntico e o outro a propósito do mesmo
representativos diferentes. objeto. O objeto perde, a todo instante, sua
identidade.
E...ard 7; disse que Deus é como nós,
mas não é visível porque está no céu, O REALISMO QUALITATIVO
escondido pelas nuvens. “O que que é o céu?
- É á g u a .-E as nuvens?- Éágua. - O céu e as A etapa de transição onde chegou essa
nuvens são a mesma coisa? - Não, não m uda última criança mostra, com uma particular
do mesmo jeito. - Como o céu muda? - Vira nitidez, as dificuldades encontradas pelo
água. - E as nuvens? - Viram água. - Os dois pensamento na identificação dos objetos.
mudam igual? - M udam . - E o sol, o que é? - Trata-se, ao mesmo tempo, de distingui-los
São nuvens. - O sol é a mesma coisa que as individualmente e de encontrar, para eles,
nuvens? - As nuvens são um pouco menores. um termo de classificação ou de comparação,
- O sol é tão grande quanto o céu? - Umpouco ou seja, uma base comum com outros. A
menor. - Quando a gente vê o sol, a gente vê água, que constitui, simultaneamente, o céu
as nuvens? - Não. - O sol são nuvens? - É. - e as nuvens, as nuvens, que são, ao mesmo
Então, quando a gente vê o sol, a gente vê tempo, nuvens, céu e sol, desempenham
nuvens? - Não. - Então, o que é o sol? - Nuvens. esse papel de mediador. Mas, com a expe­
- Então, quando a gente vê o sol, a gente vê riência, a unidade do mediador se parte. Por
nuvens? - Não. - O sol não são nuvens? - Д uma contradição aparente, a criança susten­
assim mesmo. - Como você sabe que é o sol ta, obstinadamente, a unidade do sol e das
ou nuvens? - Porque está mudado, nunca, nuvens e a impossibilidade de ver nuvens ao
nunca igual. - Por que não é igual? O que não se olhar o sol. Isso ocorre porque ela ainda
é igual? - Porque quase nunca é igual. - Que não pode despojá-las de sua singularidade
diferença existe? - Porque tem um a outra concreta, embora faça delas a substância do
roupà. - Como você sabe que não é a mesma sol. Ela ainda não é capaz de concebê-las
roupa? - Porque tem um que tem um a roupa- como uma classe ou um fator mais geral,
nuvens e o outro um a roupa-céu.” como uma categoria, ainda que lhes atribua
254 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

esse papel. Ela exprime desajeitadamente a termos, sem chegar a ajustá-los juntos de
idéia de uma dessemelhança, mas sempre no maneira estável.
plano das aparências. Ainda mistura, sem Em outros casos, os termos invocados
distingui-los nem coordená-los, mudança e são como que completamente atraídos, de­
aspecto. Mas seu desdobramento em toupas- pois repelidos, um pelo outro, cada um po­
nuvens e т ира-sol prepara o mais abstrato dendo ser idêntico apenas a si mesmo, em­
daquilo que é e daquilo que parece. bora dados, sucessivamente, como exatamen­
Seu esforço tende a unir dois termos por te sinônimos entre si.
intermédio de um terceiro, mas esse último
permanece, ele próprio, coisa concreta e par­ P...ot 7; “Quando o Sena se mexe, o que
ticular, como as duas primeiras. Seria preciso o faz se mexer? - O vento. - O que é o vento?
ultrapassar a assimilação termo a termo por - Ê o ar... ê ofrio.-O a ré sempre vento? - Não.
uma identificação triangular. Mas, no ponto - Quando o ar vira vento? - Q uando fa z frio .
em que está a criança, os fatores poderiam - E o frio, o que ê?-Ê vento. - O frio e o vento
alinhar-se em qualquer número sem fornecer- são a mesma coisa? - Não. - Que diferença
lhe a solução, porque ela continua a atribuir, existe? - O vento sopra. - E o frio? -É a r.-O frio
a cada um, uma realidade sincrética e absoluta, e o ar são a mesma coisa? - Não. - Por que é
onde mantém reunidos todos os elementos, diferente? - Porque o frio ê ofrio . Q uando a
mesmo contingentes ou intermitentes, que gente anda na rua, a gente sente frio. - O que
se encontram misturados em suas represen­ é que faz o vento soprar? - É ar. - O ar não
tações, enquanto está à procura de um prin­ sopra? - Não. - Como é que o ar, que é frio,
cípio permanente e, em certa medida, irre­ pode fazer o vento soprar? - Porque o aréfrio,
dutível. Assim, ela parece só saber justapor, elefa z o vento soprar. - E como o ar frio pode
enumerar, acoplando, sucessivamente, cada fazer o vento soprar? - Porque o frio é bem
um dos termos com um outro, como se ele frio. - O frio e o vento são a mesma coisa? -
devesse, por essas coincidências sucessivas, Não. - O que que não é igual, se não é a
realizar o acordo de todos, dando-os, suces­ mesma coisa?...”
sivamente, cada um como a razão de todos.
Mas ela não pode escapar, em seguida, ao A alternância entre a explicação circular
sentimento das diferenças irredutíveis dos do vento pelo frio, depois do frio pelo vento,
mesmos. e a explicação tautológica do frio por si mes­
mo; a oposição do ar ao vento que sopra e a
H...et 7; 1/2 “Do que é feito o vento? - explicação do vento que sopra pelo ar; a assi-
Com poeira. - Quando não tem poeira, não m ilação ora do ar e do vento, do frio e do ven­
tem vento? - Às vezes, tem vento sem poeira. to, do ar e do frio, mas a recusa a identificálos,
- O que é esse vento sem poeira? - Êsó ar. - O mostram o quanto essas imagens, embora
que é o ar? - Vento. -Não existe ar sem vento? surgindo uma da outra, permanecem irredutí­
-A h, existe. - Então, o que é o ar sem vento?... ” veis a uma integração comum. Parecem pra­
ias que se iluminariam simultânea ou sucessi­
É, inicialmente, a poeira, circunstância vamente, invadindo-se uma após a outra,
contingente, e a própria criança se apercebe mas retrocedendo, uma diante da outra, sem
disso, que ela dá para explicar o vento; depois chegarem a se ordenar em tom o de um centro
é o ar, vento sem poeira; e, enfim, tendo o comum.
vento servido de definição recíproca ao ar, a Entre os termos evocados, a confusão
conclusão, contudo, é de que pode haver ar pode resultar do fato de que a ação de um
sem vento. O pensamento oscila, apesar de prima sobre a dos outros de modo irredutível
uma certa gradação implícita, entre esses três e discordante.
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 255

A...ré 6; “О que é a chuva? - È água. - De nevoeiro? - Mesmo quando não chove, é


onde vem essa água? - Bom! Ela fa z o vento nevoeiro. - A noite é sempre chuva e nevoei­
cair. - Como ela pode fazer o vento cair? - E ro? - Chove de noite. - Sempre chove à noite?
depois isso f a z a chuva cair. - De onde ela - Chove. - Sempre? - Às vezes, não o tempo
vem? - Ela vem do céu. - Ela está sempre no todo. - Ò que faz a noite? - Chove. - Mas às
céu?- Está. - Como ela vai para o céu?- Ela vai vezes não chove? - Não. - Como é que fica de
pelo vento. - Como o vento faz a chuva ir para noite? - Não sei.”
o céu? - Bom! Ela fa z a água ir. - Como o
vento faz essa água cair? - Bom! Elefa z cair Chuva, trovão, nevoeiro, noite são ter­
pelp céu. - Antes de ficar no céu, onde essa mos que têm alguma, conexidade entre si.
água fica? - Ela caiu. - Diga-me como pode Evocam um ao outro e são enunciados como
existir água no céu. - Porque o dia está feio. - idênticos. Mas a criança recusa-se, em segui­
Mas como a água vai para o céu quando o dia da, a confirmar a identidade deles, pois sen­
está feio? - Pelo vento.” te bem a diferença dos mesmos. Tendo parti-
d o d e uma associação habitual, apercebe-se
A imagem da chuva que cai prevalece, de que ela não convém a todos os casos. Mas
em magnitude ou em insistência, sobre as não sabe substituir o conjunto empírico das
outras, e falseia suas relações. Ela pode até ligações definidas e estáveis por planos nos
mesmo tomá-las tão distintas que, às vezes, ê quais os fatos ou os objetos poderiam clas­
difícil saber quais, entre elas, são designadas sificar-se rigorosamente. Cada uma de suas
pelos pronomes: “isso faz a chuva cair” ou assimilações deve ser dada como eventual.
“ela faz a água ir”, feminino que só pode Donde seu uso freqüente de locuções, tais
relacionar-se à própria água, embora se esti­ como “às vezes”. O contingente é o seu uni­
vesse falando do vento e de sua ação. Aqui, verso; mas a simples identificação de um
portanto, não é mais a alternância de imagens acontecimento ou de um objeto supõe a
mais ou menos equivalentes, é a preponde­ constância e definições estritas, ou seja, o
rância de uma sobre as outras que falseia a princípio de necessidade.
estrita identificação referente a elas. Mas é
sempre incapacidade para ultrapassar a ima­ A NÃO-PERMANÊNCIA DO OBJETO
gem global, para dissociar seu conteúdo,
para ordenar suas relações e suas qualidades Não basta, na verdade, para identificar
de modo a poder comparar, classificar, unir o um objeto, projetar sua imagem presente e
que está em causa. O pensamento da criança acidental no sistema de qualidade e de rela­
permanece monopolizado pelas circunstân­ ções que permitem reconhecê-lo; sua exis­
cias particulares. Ele é, desse modo, mantido tência deve, ainda, ser prolongada para além
na impossibilidade de especificar as deli­ de suas aparências momentâneas. É preciso
mitações ou as relações, as quais permitem que ele exista por e para si mesmo, assim
reunir ou opor as coisas entre si. como para o conhecimento. Apenas com
essa condição ele assume sua plena realidade.
M...rès; “As vezes odia fica feio?- Não sei. A impressão concíeta que ele ocasiona na
- O que que é a chuva? - Não sei. - Quando sensibilidade ou na imaginação está longe de
chove e a gente sai, o que acontece? - O ser suficiente para constituí-la. Quanto mais
trovão. - E quando chove e não tem trovão? - viva, quanto mais exclusiva ela for, mais
Tem, às vezes. - O trovão é a mesma coisa que também a criança pode afastar-se do ser e
a chuva? -É .- Mas e quando tem chuva e não tender para o fantasma lúdico ou alucinatório.
tem trovão? - Tem nevoeiro. - O que é o Monopolizada por ela, a criança fica a meio
nevoeiro? - É a noite. - Então, a noite é caminho das duas. Ela não sabe atribuir ao
256 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

objeto uma constância, uma persistência ple­ então, o que é? - Não sei. - Quando ela derrete,
namente independente dele mesmo. Ela não o que ela vira? - Não fic a m ais nada. - Se você
sabe representar nem a permanência do real pega neve nas mãos, o que acontece? - Faz
através da diversidade dos aspectos ou dos frio. - Mas a neve, o que ela vira? - Não sei. -
seres, nem a plena individualidade de cada Ela continua neve? - Ela continua na mão. -
um, duas necessidades inversas mas com­ Ela não muda? - Não. - Você, alguma vez, já
plementares, sobre as quais devem se fundar pegou neve na mão? - Peguei. - E ela conti­
a realidade e a identidade de toda coisa. nuou neve? - Continuou. - E se você coloca­
sse neve no fogo? - Não teria mais. - O que ela
I...as 6; 1/2 “O que quer dizer “o gelo viraria? - Ela ficaria queim ada. - E o que
derrete”? - Não sei. - O que quer dizer “um mais? - E depois não tinha mais.”
torrão de açúcar derrete"? - Q uanto agente o
coloca na água. - Então, o que acontece? - A incapacidade da criança para imaginar,
Não tem mais. - Como é que não tem mais? - por trás do aspecto momentâneo das coisas,
Não sei. - Se você coloca uma bolinha de gude a persistência delas é, aqui, bem evidente.
na água, ela derrete? - Não. - Por que uma Não apenas ela não sabe imaginar esponta­
bolinha de gude não derrete e um torrão de neamente que pode encontrar a presença das
açúcar derrete? - Não sei. - Quando o açúcar coisas sob espécies sensoriais diferentes e,
está derretido, é a mesma coisa? - Não. - O que por exemplo, por meio do paladar, o torrão
é que mudou? - Não sei. - Se eu ponho dois de açúcar que a fusão oculta da sua vida, mas
copos de água, um onde o açúcar derreteu, também não há meio termo entre persistir
outro de onde eu tirei a bolinha de gude, eles sem mudança, como é imaginada a neve na
são a mesma coisa? - Não, porque tem um que mão, ou desaparecer totalmente, como ela
é branco (sem cor, transparente) e o outro faria “queimando” no fogo: existência e des­
que está sujo. - Qual é o que é branco? - truição absolutas. Entre as impressões sen­
Aquele onde tem açúcar. - Por que o copo soriais que dão o objeto como exterior e as
onde tinha a bolinha fica sujo? - Porque ela impressões subjetivas de frio ou de sabor
rolou no chão. - Se eu a tivesse limpado bem açucarado que ela ocasiona não há vínculo
antes, você ia poder saber qual eram os copos? substancial. A criança só conhece, das coisas,
- Se a bolinha não estiver suja, a gente não efeitos díspares e momentâneos.
vai poder saber. -Por que a gente põe açúcar Ao mesmo tempo que não sabe estender
na água? - Para elaficar doce. - Como é a água a existência do objeto para além de suas ma­
com açúcar? - É bom. - E quando a gente nifestações reais, não sabe delimitá-la niti­
colocou uma bolinha na água?... Ela é parecida damente nem distingui-la em relação à de
com a água com açúcar? - Não. - Então, a outros objetos semelhantes.
gente pode saber qual é a água onde a gente
colocou a bolinha e qual é a água onde a R...er A. 7; “O que existe nos galhos das
gente colocou açúcar? - A água onde tem árvores? - Folhas. - Sempre têm folhas? -
açúcar ê doce. - Como é que, quando você Sempre. - No inverno também? - Não. - Como
coloca um torrão de açúcar na boca e o é que não têm mais folhas e, depois, têm de
chupa, depois não tem mais? - Porque o novo? - Porque elas caem. - O que acontece?
torrão de açúcar dim inui. - Por que ele - Elas nascem. - Como é que elas podem
diminui? - Porque ele derrete. - O que quer nascer? - Porque têm outrasfolhas. - Onde? -
dizer “derreter”? - Não sei. - Quais são as Têm pequenas e depois elas nascem. - E as
coisas que derretem? “ O açúcar. - E o que folhas que caíram, o que é que elas viram? -
mais? - Não sei mais. - A neve derrete? - Elas nascem. - As que caíram? - Elas crescem
Derrete. - O que que é a neve? - Ê branco. - E também. - Como? - Porque têm folhinhas. -
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 257

Onde elas caem? - No chão. - E quando elas nência do ser em transformação.As aparências
estão no chão? - Elas voam . - Onde? - No chão. prevalecem sobre a existência independen­
- E depois, o que é que elas viram? - Nas te das coisas. Tendem à confusão do que é
árvores. - São as folhas que estão no chão que distinto, mas sem operar uma verdadeira
vão para as árvores? - Não, crescem outras. - fusão por continuidade ou identidade de e-
E as que caíram, onde elas vão? - Elas xistência. Também podem, aliás, ocasionar
nasceram. - Mas e as que caíram no chão, o o efeito contrário: em vez de assimilarem,
que é que elas viram? - Elasficam vermelhas. entre si, seres semelhantes ou sucessivos,
- E depois? - Nascem outras!’ colocam antes a alternativa da persistência
ou do desaparecimento absolutos dos mes­
Embora essa criança pareça, inicialmente, mos. No fim, essa inaptidão para ultrapassar
distinguir nitidamente entre as folhas que o mundo das aparências, para dar ao objeto
caem e as folhas que nascem, embora ela fale uma individualidade durável, leva ao meta­
de “outras folhas” que nascem e daquelas que morfismo.
ficam vermelhas no chão, essas oposições
ficam, por vezes, como que a ponto de D...et 6; “De onde vem o Sena? - Ele vem
desaparecer. Ela chega a dizer que as folhas da cascata. - E a água da cascata? - É a água
que caem nascem também, que retornam às do céu que caiu em cascata. - E a água do céu?
árvores. Contudo, ela não chega ao ponto de - São as nuvens. - E as nuvens, de onde elas
imaginar um ciclo que levaria as folhas secas vêm? - Com fum aças. - As fumaças são água?
às fases de eclosão. Não é a substância das - São. - É água as fumaças? - Д é o carvão que
folhas que se conserva para dar as folhas a gente põe. - O carvão pode fazer água? -
novas da primavera. Não é a idéia do per­ Não, é ofogo que é água.-O ïogo e а ágoa são
manente que se transforma e se retransforma. a mesma coisa? - São. - Você tem certeza? -
Tratar-se-ia muito mais de um pensamento Não. - Quando você põe a mão nâ água e no
inverso, de imagens fragmentárias e estáticas. fogo, é a mesma coisa? - Ah não! Queima. -
No início, as folhas são dadas como que du­ Então, como a água é fogo? - Q uando a gente
rando para sempre. Depois, com a lembrança põe água no fogo, ãs vezes derrama um
da queda delas, a criança opõe-lhes outras pouco.”
folhas que nascem. Mas, entre esses dois con­
trários, uma aproximação se opera, quando Remontando do rio à cascata, da cascata
ela deve imaginar no que se transformam as à chuva, depois às nuvens e até mesmo à
folhas que caem. Simples contaminação e fumaça, que ela confunde, provavelmente,
não relação de origem a produto. As folhas com o vapor, a criança parece seguir a água
que nascem não são explicadas pelas folhas sob seus diferentes aspectos e, no entanto, a
murchas. Elas permanecem distintas delas; fumaça-vapor é, em seguida, assimilada ao
mas o que era, anteriormente, as folhas carvão, a água é identificada com o fogo.
murchas parece fundir-se com elas. Aparente Provavelmente, a criança parece, no final,
inversão no tempo, na realidade, simples retornar ao vapor: “Quando a gente põe água
superfetação de imagens. As folhas novas são no fogo, às vezes derrama um pouco” e a
outras folhas; e as folhas que caem apenas brusca evaporação que se segue deve ser o
sobrepõem, ao aspecto presente delas, seu que une, no espírito da criança, o fogo e a
aspecto antigo, porque a criança não sabe o água. Mas eis que isso prova bem o que suas
que fazer com ela. Mas é bem aparente que representações das coisas conservam de
elas não têm lugar na renova das árvores. puramente perceptivo e que não há nenhuma
Na realidade, é ainda, aqui, o jogo dos razão para atribuir, a suas associações rio-
aspectos sensoriais que substitui a perma­ cascata-chuva-nuvens, um outro valor que às
258 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

associações nuvens-fumaça-carvão-fogo- sai ou afunda? - Sai. - O que é pesado sai da


água. A sucessão das aparências ou dos as­ água ou afunda? - A funda na água. - E os
pectos parece esgotar, para a criança, a rea­ barcos onde a gente coloca pedras saem ou
lidade das coisas. Elas parecem suscetíveis de afundam? - A fundam . - Você não tinha dito
se transformarem umas nas outras, sem outra agora mesmo o contrário? - Tinha.”
duração para cada uma, sem outra persis­
tência, sem outro princípio de existência a É fácil levar a criança a se contradizer e a
não ser a reunião das mesmas na experiência contradizer a experiência a pretexto de um
familiar do sujeito. adjetivo que implica certos efeitos, por tanto
tempo, pelo menos, quanto ela lhe atribuir
2e O Qualitativo: Confusões e Conflitos um sentido absoluto e não souber compô-lo
entre efeitos e qualidades com outras propriedades ou relações, tais
como o volume. O pesado adiciona-se pura e
O efeito, relacionado a uma qualidade simplesmente ao pesado, sem jamais poder
do objeto, exprimindo-se por um adjetivo, é ser privado de seus efeitos.
um modo usual de explicação e de justificação.
É o poder incluso na substância. “O ópio faz M...nez 6; “Os barcos não vão para o
dormir porque tem uma virtude dormitiva.” fundo da água? - Não. - Como isso acontece?
(Molière.) Assim, em muitos casos, a qualida­ - Eles vão para o fu n d o da água. - Inteiros
de é apenas o decalque do objeto ou a subs­ para o fundo? - É. - A gente não os vê mais? -
tância do efeito constatado. Trata-se de uma Vê, a gente vê. - Uma pedra na água vai para
simples tautología denunciada por Descartes, o fundo? - Vai. - Por quê? - Porque ela pesa
antes de Molière. É uma lógica de inclusão, pesado. - Um barco não vai para o fundo da
cujo único interesse pode ser o de classificar água? - Não. - Ele não pesa pesado? - Pesa. -
os objetos entre si, de instituir rubricas. E esse Por que ele não vai para o fundo? - Q uando
já não é um mérito pequeno: verbal, pro­ ele está vazio, ele não vai para o fu n d o .
vavelmente, essa maneira de definir tende a Quanto tem m uita gente, ele vai para o
prevenir as contradições e as incoerências. fu n d o . - Nunca têm pessoas que vão no
Assim como a lógica aristotélica, ela permite barco? - Têm. - Elas vão para o fundo da água?
delimitar classes e categorias, deduzir, para - Não. - Mas ele é pesado, ele pesa. - Porque
tudo, um conjunto de objetos, semelhantes o Sena é assim (ela estende os braços
sob certas relações, que serão suscetíveis de horizontalmente), - Uma pedra é mais pesada
apresentarem efeitos semelhantes e, final­ que o barco? - É. - Uma pedrinha vai para o
mente, passando do campo verbal ao dos fundo da água? - Vai. - Ela pesa mais que um
fatos, verificar certas correlações que esten­ barco?...”
derão o campo das previsões e do conhe­
cimento. Contudo, o manejo causai dessas O peso e a imersão na água parecem,
definições qualitativas apresenta grandes para essa criança, rigorosamente ligados; se a
dificuldades para a criança. pedra, mesmo pequena, afunda, isso ocorre
Uma das noções que melhor mostra iàso porque ela é pesada. Mas eis aí simples de­
é a do peso, embora muito familiar para a dução de um efeito conhecido à propriedade
criança e frequentemente invocada por ela. correspondente. Ainda não é uma relação
entre volume e peso. De outro modo, a criança
P...ot 7; disse que as pedras vão para o saberia aplicá-la em sentido inverso ao barco,
fundo da água porque são pesadas. “O que é que ela faz, alternadamente, flutuar e nau­
pesado sai da água ou afunda? - A funda na fragar, conforme o imagine na realidade ou
água. - O barco onde a gente coloca pedras imagine seu peso. Presa nessa contradição,
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 259

ela acaba procurando em outro lugar sua As contradições são numerosas. A causa
explicação: se o barco não afunda vertical­ delas não é~ap>enas a oposição dos efeitos
mente na água é porque a superfície da água constatados e do valor em si atribuído à
é horizontal. Ela parece, portanto, fazer um qualidade correspondente, mas também da
conflito intervir entre duas direções diferen­ assimilação completa entre essa qualidade e
tes, como se elas opusessem sólido a sólido. uma outra: entre o p>eso e a força. Provavel­
Contudo, ela sabe bem que a água se deixa mente, a confusão foi, inicialmente, o resul­
atravessar; ela se limita, portanto, a tratar as tado de uma inversão entre o ativo e o passivo,
direções no espaço como propriedades em de uma transferência entre o agente e o objeto:
si que poderiam constituir um obstáculo é preciso força para mover o peso. Mas a
uma à outra. identificação permanece, em seguida, total.
Donde a incerteza a respeito do barco: atribuir-
F...ge 7; tentou explicar, uma pela outra, lhe força e fazê-lo afundar, ou deixá-lo flutuar
as palavras “peso” e “pesado”. “O que quer e negar-lhe a força. O mesmo acontece com
dizer que o peso é pesado? - É que ele tem o vidro: indo para o fundo da água, ele é
m ais força. - O que quer dizer ter força? - pesado e, portanto, forte, mas, contudo, leve
Quer dizer que agente é m ais forte. - Diga-me de manejar e quebradiço. Bem entendido, a
coisas que têm força. - O peso, o barco, as criança não sabe explicar esses efeitos
pedras, oferro. - O peso e a força são a mesma contrários à sua definição pelo fato de o vidro
coisa? - São, sim, senhor. - O que vai para o ser delgado, pois seria-lhe necessário com­
fundo da água é o que tem peso ou o que tem por entre eles, e não mais identificar ou opor,
força? - O que tem força. - Diga-me coisas que de modo bruto, dois fatores diferentes: a
vão para o fundo da água. - Oferro, o vidro, resistência e o volume.
as pedras. - O barco tem força? - Tem, sim,
senhor. - Ele vai para o fundo da água? - Não, E...ard 7; “Por que os barcos não vão
senhor. - Você disse que o que vai para o para o fundo da água? - Porque são de m adeira.
fundo da água é o que tem força: e o barco? - - A madeira não vai para o fundo da água? -
Ele tem força. - Ele vai para o fundo da água? Porque não é fura d a . - Uma pedra vai pra o
- Não, senhor. - Tudo o que vai para o fundo fundo da água? - Vai. - Por quê? - Porque elas
da água tem força? - Tem, sim, senhor. - O têm furos. - E as que não tem furos? - São
barco tem força? - Não, senhor. - O ferro, você pesadas demais. - Os barcos não são pesados?
não disse que ele tem força? - Tem, sim, - São, às vezes, quando eles são grandes. -
senhor. - Por quê? - Porque ele épesado. - E o Quando eles são grandes eles não vão para o
vidro, por que ele tem força? - Porque ele é fundo da água? - Não, porque ainda são de
m uito pesado. - Você não pode levantar madeira. - Por que a madeira não vai para o
vidro? - Posso, sim, senhor. - E você acha que fundo da água? - É m adeira sólida. - Por que
o vidro é pesado? - Não. - Você não tinha dito a madeira sólida não vai para o fundo da
que o vidro era pesado? - O chumbo. - Sim, água? - Porque ainda não tem furos. - Se você
mas o vidro, ele é forte? - Д sim, senhor. - Por fizesse furos nessa tábua, ela iria para o fundo
quê? - Porque é pesado. - É difícil para você da água? - Não. - Então, não é por causa dos
beber no сорю? - Não, senhor. - Você acha furos que a madeira vai para o fundo da água?
que é pesado? - Não, senhor. - Então, por - Não, não tem furos, e depois não ê pesada
que você diz que é pesado? - Porque ele vai demais. -Se tivesse furos, ela iria para o fundo
para o fu n d o da água. - Ele quebra fácil? - da água? - Iria. - Essa tábua, se ela tivesse
Quebra, sim, senhor. - O que quebra é forte? furos, iria para o fundo da água? - Iria. - Você
- Д sim, senhor. - O vidro é forte? - Não, não tinha dito agora mesmo que ela não iria?
senhor.” - Ela iria. - E você, você iria para o fundo da
260 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

água? - Irla. - Por quê? - Porque eu não sei - Como assim? - P arafazer os barcos andarem.
nadar. - O que é que vai para o fundo da - Elas ficam dentro ou fora dos barcos? - No
água? - As pedras, ferro, terra. - E o que mais? fu n d o dos barcos. - Na parte de dentro dos
- Gesso, cim ento. - Por que isso vai para o barcos? - É. - Sempre têm pedras na parte de
fundo da água? - Não sei. - O que é que não vai dentro dos barcos? - Não. - O que é que acon­
para o fundo da água? - A m adeira... as tece quando têm pedras no fundo dos barcos?
tábuas, os barcos, os pedaços de madeira. - - Elas levantam os barcos. - Como? - Porque
Por quê? - Porque não tem furos. - Se você têm várias. - Elas os levantam como? - Eles são
fizesse furos numa tábua ela iria para o fundo maispesados. - Mas quando eles são mais pe­
da água? - Iria." sados, onde eles vão?... Para o fundo da água
ou para fora? - Eles saem da água. - As coisas
A falta de unidade entre as explicações que são mais pesadas saem da água? - Saem.”
fornecidas, sua não-necessidade são mani­
festadas. Por um lado, “pesado” é dado como A contradição à qual a criança chega é
uma causa de imersão; contudo, a terra vai explícita. As pedras vão para o fundo da água
para o fundo da água sem ser pesada. Por porque são mais pesadas do que ela. Os
outro lado, o peso não parece ser uma causa barcos são levantados acima da água porque
única, nem mesmo suficiente, visto que, após estão carregados de pedras. O peso é uma
ter dito da madeira que ela flutua, a criança força que age num ou noutro sentido, confor­
coloca ainda, como condição, a ausência de me o fato a ser explicado. Provavelmente, a
furos e sua solidez (que a impede de ser criança chegou apenas gradualmente a in­
furada). Evidentemente, é a transferência, verter, para os barcos, a direção do peso. Ela
para a madeira, de fatos observados com o tinha começado atribuindo, à ação do vento,
barco que ocasiona essa explicação suple­ o fato de que eles flutuam. É a comparação
mentar. Mas ela mostra até que ponto perma­ deles com as pedras que a levou, em seguida,
nece grande a confusão entre efeitos gerais e a ver nestas aquilo que os ajuda a emergir.
casos particulares, entre as diversas espécies Essa inconseqüência surpreende, após sua
de causas, entre a substância e o objeto afirmação, perfeitamente correta, a respeito
formado. das pedras e da água. Mas a criança havia
apenas anunciado uma relação de dois ter­
P...ot 7; “Um barco é mais pesado que mos, como as crianças, freqüentemente, a
uma pedra? -É .- Como é que a pedra vai para formulam bem antes de saberem classificar
o fundo da água? - Porque a pedra ê mais sistematicamente os objetos sob uma rubrica
pesada do que a água. - Qual é o mais determinada. Efetivamente, ela não parece,
pesado: o barco ou a pedra? - O barco. - O de modo algum, constrangida de não estender
barco é mais pesado do que a água? - O barco aos barcos - em sua opinião, mais pesados
é m ais pesado. - O barco vai para o fundo da que as pedras-, os efeitos do mais pesado que
água? - Não. - Por que ele não vai se ele é mais a água. Os pares água-pedra, pedra-barco
pesado que a água? - Porque, quando tem justapõem-se sem serem colocados sob uma
vento, os barcos se levantam. - Quando não regra comum. Em cada um, o sentido do efei­
tem vento, eles vão para o fundo da água? - to pode ser invertido, pois nada pode impe­
Vão.'- Não tem sempre vento? - Não. - E dir a inversão de um par. Essa falta de coesão
quando não tem vento, os barcos vão sempre entre as relações que a criança sucessivamente
para o fundo da água? - Vão... Q uando tem imagina explica o fato de que, a cada novo
vento, isso levanta õs barcos. - Como é que, objeto, o mesmo efeito possa encontrar uma
quando tem vento, ele não levanta as pedras? causa diferente. Ela é incapaz de conceber
- Porque aspedras estão no fu n d o dos barcos. uma definição que ocasione efeitos contantes.
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 261

L...er 6; “O que está vivo? - As galinhas, pode derreter na água? - Não, senhor, porque
os galos, os cavalos. - E o que mais? - E mais a lã ê de cordão. - A lã não é dura? - Não,
os gansos, e os patos e as pom bas e os senhor. - Ela não derrete na água? - Derrete,
porquinhos. - Você já viu árvores? - Elas estão sim, senhor. - Porque você disse agora mesmo
vivas? - Não. - Como é que uma árvore não que ele não derrete na água? - Eu tinha
está viva? - Ela cresce. -Mas como ela não está entendido a corda. - O seu lenço é duro? -
viva? - Ela não se mexe. Só asfolhas ê que se Não, senhor. - Ele derrete na água? - Não,
mexem, qu a n d o fa z vivo (lapsopara "vento”) senhor. - Como é que isso não acontece? -
( ). - As flores estão vivas? - Não, senhora, Porque um lenço é de fio . É um pouquinho
quando tem vento, elas se m exem também. E duro. - Por que ele não derrete na água? - Ele
aí, às vezes, a gente encontra caracóis no é um pouquinho grosso.”
parque. - O bosque está vivo? - Não, senhora.
- O fogo está vivo? - Não, senhora. - Você está Entre as duas séries, do qualificativo e
vivo? - Estou, sim, senhora. - Como é que dos objetos, a discordância é, aqui, manifes­
você está vivo? - Porque antes eu era pequeno ta. A dificuldade nasce assim que se trata,
e fiq u e i grande. - Como assim? - Eu estava não mais de apenas reunir vários objetos sob
num repolho; o repolhoficou grande; e a í eu a mesma rubrica, mas de assimilar duas pro­
saí do repolho; e depois eu fiq u e i grande. - E priedades entre si, como a não-fusão na água
antes de estar no repolho? - Compram o e a dureza, de tal modo que a presença de
repolho; o repolho fic o u grande e eu sa í do uma num objeto permitiria afirmar sua pre­
repolho.” sença no outro. Não estando a correlação
justificada, a cada novo objeto pode nascer
Dois temas estão presentes, o da vida e o uma contradição. Na realidade, a criança
do crescimento. Eles não são sem relação um conhece apenas objetos e mostra bem isso
com o outro. E é por isso que a criança por sua evocação de outros objetos para
enuncia o crescimento a propósito das árvores. justificar sua definição: após ter sido de
Mas, então, é sob forma de exclusão mútua, algodão, a lã toma-se de cordão, de corda, ou
porque, em seu espírito, o que prevalece é seja, provavelmente, algo que resiste à tração
uma impressão de incompatibilidade entre a e que deve, como o fio dos lenços, participar,
vida e a árvore. Na seqüência, ao contrário, o de alguma maneira, da dureza. Assim explica-
crescimento será dado como a razão de sua se que a lá não derreta a água. É pela analogia
própria vida. Dois temas que a analogia faz e pela participação que a criança remedeia a
com que se evoquem mutuamente podem, confusão das propriedades e repara sua
portanto, sucessivamente, ser opostos ou incapacidade para tratar as qualidades em
assimilados, conforme o objeto imaginado. categorias onde os objetos possam ser colo­
Enquanto uma definição é a afirmação de que cadas segundo definições estritas.
todo objeto que entra na categoria corres­
pondente apresenta certos caracteres, aqui, a R...ault 8; 1/2 acaba de ser interrogado
relação pode mudar ou, até mesmo, inverter- sobre o que pensa, o que sente, o que reflete.
se com cada novo objeto. “O que é que é forte? - Asserpentes, as baleias,
as pessoas, as abelhas. (Esses dois últimos
G...in 7; define como duros os objetos nomes são uma revivescência de enume­
que não derretem na água. “Como é feita a lã? rações anteriores.) - Como as abelhas são
- Com algodão. - É dura? - Não, senhor. - Ela fortes? - Elas picam e as vespas também. - As
serpentes picam? - Não. - As baleias são fortes?
( ) N.T.: há assonância, em francês, entre "vivam”
- São. - E as pessoas, elas picam? - Não. - São
( “vivo”) e "du vent’ ("vento”). fortes? - São. - É porque picam que as abelhas
262 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

são fortes? - Não. - Por que elas são fortes? - ou noções abstratas. Na criança, são situações,
Porque elas têm asas. - As pessoas têm asas? freqüentemente simples aliás, que ocupam
- Não. - Nós somos fortes? - Somos.” sua imaginação. Cada uma é por demais
particular, com freqüência por demais fortuita
A ausência de efeitos ou de sinais cons­ para deixar-se decompor em circunstâncias
tantes, próprios para definir a força, é. tanto ou em variáveis que permitiriam explicá-la
mais sensível aqui que, não apenas a criança ou classificá-la.
muda de motivo para cada espécie citada,
mas acontece-lhe de negar a algumas delas F...gli 5; 1/2 “O que é o mar? - Têm
um atributo da força das mesmas que, na pedras, é quente.”
verdade, elas também possuem: as serpentes A...dre 6,- “O que o vento faz? - F az as
e as abelhas são fortes, as abelhas porque roupas secarem.”
picam, quanto às serpentes, elas não picariam. A mesma criança, interrogada sobre o
É bem a prova de que as imagens delas curso dos barcos “Um domingo, eu vi um a
sucedem-se independentemente dos traços barcaça de areia, ela andava.”
que poderiam uni-las. Cada uma delas per­ Da mesma “Sempre quando a gente vai
manece singular. O que acaba por demonstrá- na casa da m inha tia, m eu irmão fic a
lo é a substituição do poder de picar pelas zangado.”
asas, como índice de força na abelha. Elas lhe “O que que é estar morto? - Sai sangue
são, entre as espécies citadas, ainda mais da gente. - (Mostramo-lhe um pequeno arra­
particulares, e a relação delas com a idéia de nhão em seu dedo.) Você morreu quando
força fica ainda mais longínqua. Eviden­ saiu sangue daí? - (ela ri).”
temente, o pensamento das abelhas, como o
de cada espécie sucessivamente, agora apaga A respeito de qualquer pergunta, ocorre
o das outras. A criança descreve cada uma uma cena familiar, a lembrança de um acon­
por si, sem que sua atenção seja retida espe­ tecimento, com freqüência único e dado como
cialmente pelos traços comuns delas. Um geral, uma circunstância especial formulada
objeto pode muito bem fazer pensar em um como uma regra absoluta. As representações
outro, e este em um terceiro, mas entre os da criança parecem difundir-se no tempo,
três, nem mesmo de cada um a cada um, não por falta, para ela, de saber manter uma estri­
há noção comum que justifique a aproximação ta localização delas, e todo detalhe pode
deles. Há uma relação, quer concreta, quer tender ao universal, simplesmente porque é,
formal, uma analogia mais intuitiva que momentaneamente, dos casos possíveis, o
refletida, podem muito bem acoplar dois único considerado. Mas essa particularidade
objetos, mas não fazer ultrapassar o par, dos quadros ou das imagens tom a difícil a
porque a relação ou a analogia são, a cada coordenação dos mesmos em conjuntos
vez, particulares e nada têm de uma categoria coerentes.
intelectual, de uma qualidade, de um princípio
tornados independentes de cada objeto para IMAGENS PARTICULARES,
classificá-lo entre os outros, de uma trajetória GRANDEZAS INCOMENSURÁVEIS
estendida pelo espírito no mundo das coisas.
F...ge 7; “O que é maior, o sol ou a Terra?
3° Do Particular aos variáveis - A Terra. - Ela é grande como o quê? - Como
um a casa. - Existem casas que não estão na
Entre os negros do Sudão, dizem, cada Terra? - Elas estão todas na Terra. - Se a Terra
palavra designa uma situação complexa e não é maior que uma casa, as outras casas não
não existem palavras para exprimir ligações podem estar na Terra. - Elas estão na Terra. -
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 263

A Terra é grande como o quê? - Como um pertence mais à simples representação con­
campo. - Você já viu campos? - Vi, sim, creta e empírica das coisas.
senhor. - É muito grande?... Nos campos exis­ Pode acontecer também que, inversa­
tem casas? - Não. - A Terra não é maior que um mente, a criança parta do limite ou da tota­
campo? - Não, senhor. - Ela é tão grande lidade. Mas então, ainda é incapaz de explicar
quanto um campo? - É - E não eixstem casas o jogo das partes.
no campo? - Não. - Então, onde elas estão? -
Pertinho da aldeia. - As casas estão na Terra? N...aire 7;l/2 “O que é o sol?... Você já o
- Estão, sim, senhor. - Mas e se a Terra não é viu? - É redondo - Ele é grande? - É. - Como?
maior que o campo? - Do lado dos campos. - - Tão grande como todas as cidades. - A gente
Mas e se a Terra não é maior que o campo? - o vê tão grande como ele é?... Como a gente
Ela é m aior que o campo. - Todas as casas o vê? - Grande assim (ela curva os dois
ficam do lado do campo? - Ficam. - As casas braços). - Por que a gente não o vê tão grande
de Boulogne e de Paris ficam do lado do como ele é? - Porque ele está longe demais. -
campo? - Não. - Elas ficam na Terra? - Ficam. Como é que a gente sabe que ele é tão
- De que tamanho é a Terra? - Do tam anho de grande? - Porque não pode ter vários. - É
vinte campos" porque não pode ter vários que ele é grande?
Por quê? - Porque é de fogo. - Como você sabe
Essa criança mostra-se incapaz de re­ que não pode ter vários? - Não sei. - Têm
presentar a relação de contido a continente, vários sóis? - Têm só um . - Como a gente sabe
das partes ao conjunto. Assim que deve de­ que tem só um? - Porque ele ê grande. - Por
finir uma grandeza, enuncia um termo de que não pode ter várias coisas grandes? -
comparação que é uma imagem particular. Porque não tem lugar. - Você já viu o sol no
A casa, as casas, o campo, os campos, como céu?... O céu é grande como o quê? - Como o
se eles tivessem uma grandeza única, ne­ sol. - O céu e o sol são grandes do mesmo
cessária, absoluta, são dados, sucessiva­ jeito? - São. - Quando você olha o sol no céu,
mente, como medida da Terra, e permane­ eles são do mesmo tamanho? - São. - O sol fica
cem como que exclusivos uns dos outros, sempre no mesmo lugar do céu? - Fica. - Ele
embora todos estejam, simultaneamente, nunca se mexe? - M exe, às vezes- Quando ele
na Terra. Uma dimensão é um objeto; cada se mexe, onde ele vai? - Lá e depois lã (mostra
objeto permanece irredutível a qualquer à d ireita e à esquerda). - Quando o sol se
outro; as dimensões só podem ser substi­ mexe, o céu se mexe com ele? - Não. - E onde
tuídas entre si, ou são colocadas lado a lado, ele se mexe? - No céu. - Ele pode ir para
mesmo quando cada uma delas tende a diferentes partes do céu? - Pode. - O que é
exprimir a dimensão total. A representação maior, o céu ou o sol? - Os dois. - O sol pode
do todo é impossível, porque não há ima­ se mexer no céu mesmo se o céu não é maior
gem concreta que a criança saiba fazer res­ que ele? -O solé de fogo, ele pode atravessar
ponder a ele, e porque, entre as imagens o céu. - Para se mexer no céu, o sol não
evocáveis, há simples concorrência, alter­ precisa ser maior que ele? - Não.”
nância, substituição mútua ou justaposição.
Elas não podem ordenar-se em uma con­ É a totalidade que assume, aqui, forma
figuração total porque, sendo cada uma par­ concreta e absoluta. Condensando, a propó­
ticular, deveriam ser ultrapassadas por um sito do sol, as duas noções, de imensidade e
meio que contenha a todas. Seria-lhes ne­ de unicidade, sincréticamente associadas, ela
cessário integrar-se a um todo cujos limi­ é expressa, inicialmente, pela totalidade das
tes ultrapassariam todas conjuntamente. Ima- cidades, depois pela totalidade do céu. Não
giná-lo simultaneamente com elas já não há limite na totalidade, qualquer que seja seu
264 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

objeto. O sol e o céu são, portanto, exata­ - Ninguém. - Então, por que fica de noite? -
mente coextensivos. A criança deve, no en­ Porque, às vezes, agente não fica cansado de
tanto, reconhecer a mobilidade do sol no céu. dia e, quando a gente chega do trabalho, a
Mas uma imagem, a do fogo, parece tomá-la gente está cansado. - Por que fica de noite? -
insensível a essa contradição, porque o fogo Para dorm ir”
“atravessa”, o que lhe dá algo de ilimitado em
sua irradiação, em sua difusão, em sua pro­ A inércia de evocação ainda é tal, na
gressão: três efeitos diferentes contraídos em criança, que, a não ser por uma circunstância
um só. As relações de continente a contido concreta e subjetiva, como dormir, ela pare­
não ficam também menos contraditórias que ce incapaz de exprimir o sentido de uma
anteriormente. A dificuldade parece inversa, palavra tão corrente como noite. Mas, em
mas procede da mesma causa. Enquanto, no compensação, essa associação constitui um
primeiro caso, os espaços poderiam muito obstáculo à distinção do dia e da noite, tendo
bem se justapor e se acrescentar entre si sem a criança devido convir que o doente ou o
chegarem a se inserir em uma mesma soma, homem cansado dormem também de dia.
aqui, a soma não chega a se dissociar em Se se trata da causalidade, são, ainda,
espaço total e em móvel viajando nesse es­ imagens particulares que se opõem a uma
paço. Embora esses deslocamentos impo- explicação de conjunto.
nham-se à percepção da criança, a grandeza
do sol não fica menos total, ou seja, tão P...ot7;“A água do Sena se mexe? - Mexe.
extensa quanto o céu. Nos dois casos, a - Como? - F az ondas. - O que faz ondas? - A
dimensão, por mais imaginária e abstrata que água, quando tem vento. - Quando não tem
seja para o sol e para a Terra, adere tão vento, o Sena não se mexe? - Não. - Se você
expressamente aos objetos que devem expri­ deixa uma rolha cair no Sena, ela se mexe? -
mida que é impossível ordená-los entre si. Ela Mexe. - Mas e se não tem vento? - Mexe. - O
não pode ser, desse modo, nem adicionada que a faz se mexer? - As pedras. - As pedras
consigo mesma, nem dividida: as partes fazem a rolha se mexer? - Fazem . - Onde
permanecem estranhas entre si, as totalida­ ficam as pedras? - Na margem. - Como elas
des se confundem. fazem a rolha se mexer? - Uma pedra fa z a
Assim como para o espaço, as distinções rolha se mexer. - E se a rolha está no meio do
de tempo podem, elas também, aglomerar-se Sena e as pedras na margem? - Não, quando
sobre circunstâncias particulares, que tomam agentejoga um a pedra. -S ea gente não joga
penoso compô-las entre si. pedra, a rolha não se mexe?- Não. - Uma rolha
no Sena não se mexe sempre? - Não.”
G...ain 6; “O que quer dizer: ficar de
noite?... Você nunca ouviu dizer: fica de noi­ O vento e as ondas, a pedra cuja queda
te, vai ficar de noite? - Não, senhor. - Quando empurra a rolha que flutua; duas imagens
a gente dorme é de dia? - Não, senhor, é de particulares que se isolam do conjunto e
noite. - Então, você sabe o que é a noite? - É impedem de evocar a água do rio levada pela
quando o sol vai embora. - Por que fica de corrente.
noite quando o sol vai embora? - Porque A imagem que se une aos termos de
precisa; porque, quando a gente acaba de quantidade pode, ainda, opor a parte à tota-
trabalhar, a gente fic a cansado. - A gente lização.
não poderia dormir de dia? - Pode, sim, se­
nhor, quando agente está doente. - Quando A. A...dre 6; faz o vento sair das árvores
a gente fica cansado, a gente não poderia dor­ “Se a gente cortasse todas as árvores, não teria
mir de dia? - Não. - O que é que não deixaria? mais vento? - Não m uito. - Ainda haveria um
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 265

pouco? - É. - De onde ele viria? - Por outras hesitação.) Têm uns que morrem e outros que
folhas. - Mas onde elas estariam, se não tives­ não morrem.”
se mais árvores? - No chão, elas estariam cor­
tadas.” Limitando-se a fórmulas indefinidas: “às
vezes”, “quase”, “têm uns”, essa criança evita
Cortadas todas as árvores, outras folhas as contradições habituais nessa idade; no
ainda tomariam possível um resto de vento. fundo, aliás, seu pensamento não nos parece
Mas essas folhas estão no chão. A explicação mais coerente por isso. A maneira desastrada,
toma-se, então, incoerente. Na realidade, as equívoca pela qual ela responde “sempre” a
imagens sucedem-se esquecendo-se ou uma pergunta onde se encontrava “nunca”
abolindo-se umas às outras. “Todas” e “outras”, mostra o quanto é mais embaraçoso o empre­
cada uma ligada a um objeto particular, são go dessas palavras exclusivas, onde devem se
simplesmente justapostas. A criança repre­ combinar, na afirmação ou na negação, um
senta folhas, sem considerar que todas as grupo completo com uma definição precisa.
árvores desapareceram; “outras” pode, por­ Para a criança, na verdade, toda experiência
tanto, suceder e constituir um obstáculo a permanece particular. Ela não pode considerar
“todas”. Essa condensação de toda noção nada sob o ângulo da necessidade ou da uni­
sobre imagens dissociadas toma impossível o versalidade. As causas são apenas incidentes
pensamento de uma regra geral. que se sucedem. Na falta de uma, é a outra.

CONTINGÊNCIA; AUSÊNCIA 0...al 7; “Por que a água leva os barcos?


DE PROPORCIONALIDADE - Porque os barcos fica m em cim a da água.
- Mas por que eles ficam em cima da água? -
D...pe 5; “Como a água se mexe? - Por Porque os fa ze m andar com... com ... com
causa dos barcos. - Ela se mexe só por causa motores. - E quando os motores não
dos barcos? - É. - Se não tivesse barcos, ela funcionam, os barcos não ficam em cima da
não se mexeria? - Não sei.” água? - Ficam. - Então? - A gente os amarra.
- E quando a gente não os amarra, eles não
O pensamento da criança é o mundo da ficam em cima da água? - Não. - O que é que
contingência e do acidental: “nunca”, “sem­ eles fazem? - Eles vão embora? - para onde? -
pre”, “todos”, “nenhum” estão perpetuamen­ Sem m otor.-Mas para onde? - Eles vão embora
te sujeitos a exceções; são provisórios como para outros lugares. - Mas eles ficam em cima
a imagem presente; não podem se estender da água? - Às vezes, eles se batem?
a mais nada; pois isso seria opor, ao aciden­
tal, o possível e o impossível, que são o resul­ Não apenas a explicação, mas o próprio
tado de integrações abstratas. fato a ser explicado se transforma: o que
P...pot 6; “Os bichos morrem? - Às vezes impede o barco de afundar pode ser tanto o
têm uns que sim. - E as pessoas, elas morrem? motor quanto suas amarras. Mas, sem amar­
- Às vezes. - Têm pessoas que nunca morrem? ras, em vez de afundar, ele flutua para outros
- Não, têm sempre pessoas que morrem. - lugares. O retorno ao tema “naufragar” não é
Todas as pessoas morrem? - Quase. - Têm mais imaginado a não ser sob a forma de um
pessoas que não morrem? - Às vezes. - O que acidente. O acidental e o contingente estão
é que não morre? - Os guardas. - Por que os ligados, ao mesmo tempo que as represen­
guardas não morrem? - Porque são homens tações particulares, a variabilidade ou o va-
que guardam os elefantes, e os policiais godos temas-referências. Daí podem resul­
tam bém ... - Se os seus colegas virassem tar desproporções evidentes entre os fatos
policiais um dia, eles não morreriam? - (Longa comparados.
266 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

A mesma criança, N...et 6;l/2 que res­ profundidade permanece, nesse caso, um
ponde com exatidão “Como a gente o veria se dado abstrato. Também a distância entre o sol
tivesse muito vento? - Faria m uito frio. - O e a Terra parece ser, para muitas crianças, de
vento faz barulho? - Q uando é forte, ele fa z um alcance comparável aos deslocamentos
barulho. Q uando não é forte, não fa z m ui­ dos objetos que elas vêem se erguerem perto
to", explica a chuva do céu através dos sal- delas. Assim, a explicação da palha que um
picos das poças d ’água: “De onde vem a água pé-de-vento oculta à vista.
que existe no céu? - Na rua, quando a gente
salta nas poças, elas salta para o céu. - Toda G...y 6; “Então, quando a palha voa, ela
a água da chuva vem das poças d’água? - é menor que quando ela não voa? - É. - Como?
Vem." - Q uando ela está alta, o sol a esconde. -
Como o sol pode escondê-la? - Q uando a
Portanto, a criança já tem uma certa idéia palha vai atrás do sol.”
de proporcionalidade, mas, por muito tempo,
ela fica desorientada por suas aplicações. A A palha que se ergue no ar pode, por­
proporcionalidade tomou-se-lhe familiar nos tanto, ultrapassar a distância da Terra ao sol.
casos freqüentes, simples, onde há unidade Sua invisibilidade não é nem mais relacio­
de experiência perceptiva: a força do vento e nada a seu afastamento, mas a um meca­
a intensidade de seu barulho. Mas, entre os nismo que, em uma idade anterior, interes­
salpicos das poças e a água que cai em forma sou muito à criança: o desaparecimento do
de chuva, a unidade perceptiva funciona em objeto por trás de uma tela e que reaparece,
sentido inverso. Ela falseia, de modo grosseiro, aqui, no plano da explicação causal. É, assim,
as relações de quantidade, substituindo as uma nova imagem que substitui a da peque­
verdadeiras relações físicas, que não lhe são nez crescente.
um objeto de intuição sensível, por suas A dificuldade toma-se, ainda, muito mai­
próprias imagens. or quando se tratam de efeitos onde diferen­
Mesma observação para as relações de tes campos sensoriais estão implicados, por
grandeza aparente e de distância, que res­ exemplo, o peso, onde intuições de esforço
pondem a impressões constantemente reno­ devem ser ligadas ao aspecto visual do obje­
vadas e cujas variáveis pertencem, ambas, ao to, enquanto que entre o aspecto visual e os
campo visual. movimentos devidos à gravidade, a corres­
pondência nada tem de constante. Disso re­
T...ni 7; 1/2 olhando pela janela “Olhe, sulta que as imagens suceder-se-ão ou opor-
um avião! Ele vai cair... Ah! Ele épequeno. se-ão sem poderem ser reduzidas a termos
Q uando ele está longe, parece que a gente estáveis, que permitiriam comparar os objetos
pode segurá-lo com a mão." entre si.
Р...СО 9; “O sol é grande? - Ele é alto. Não
parece que ele é grande porque ele é alto." F...ge 7; “Tudo que vai para o fundo da
água é “forte”? - Д sim, senhor. - Uma espon­
Entre esses dois exemplos, há, aliás, uma ja vai para o fundo da água? - Não, senhor. -
diferença de nível, embora o raciocínio seja Quando você coloca uma esponja grossa
idêntico. Por muito tempo, na verdade, a num balde cheio de água, ela não vai para o
criança atribui ao sol sua grandeza aparente. fundo? - Não, senhor. - Um pano de chão vai
Isso ocorre porque suas dimensões visíveis para o fundo? - Não, senhor. - Você tem
não variam, como as do avião, com a distân­ certeza de que uma esponja não vai para o
cia; ele se desloca a uma distância grande de­ fundo? - Tenho, sim, senhor. - Por quê? -
mais e como que sobre um único plano. A Porque ela é leve. - Você vai para o fundo? -
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 267

Vou, sim , senhor. - Por quê? - Porque eu CONTRADIÇÕES ENTRE


sou pesado. - Ferro vai para o fundo? A DEDUÇÃO E A OBSERVAÇÃO
Você já viu essas caixas de ferro onde a
gente põe doces? - Vi, sim , senhor. - O raciocínio dessa criança é bem
Quando uma caixa está vazia e bem fe­ consistente. Mas surgem contradições en­
chada, ela vai para o fundo? - Não, se­ tre os fatos de observação, que ela nota
nhor. - Por quê? - Porque não tem água habitualmente sem os falsear, e as con­
dentro. - Por que ela iria para o fundo se seqüências lógicas que ela quer dar às noções
tivesse água?... A caixa é de ferro? - É, de peso e de volume. Por um lado, eia é de
sim, senhor. - Q ferro é pesado? - É, sim , opinião que, contrariamente à experiência,
senhor. - Então, como é que ela não vai
sendo a esponja e o pano leves, eles não vão
para o fundo? - Porque não tem água den­
para o fundo da água. Por outro lado, ela se
tro. - Mas o ferro é pesado. - Não é ferro
encontra diante do contraste da pedrinhâ e da
grosso. - Por que o ferro que não é grosso
pedra que afundam, enquanto que a caixa de
não vai para o fundo da água? - Porque
não tem m uita grossura. - Por que, quan­ metal e o barco flutuam. Ora, ela não sabe
do não tem muita^grossura, não vai para o compor peso e volume, que lhe parecem
fundo? - Porque é le v e .- Uma pedrinhâ variar no mesmo sentido: o que é mais grosso
tem muita grossura? - Não, senhor. - Ela deve ser mais pesado e vice-versa. Assim, ela
vai para o fundo da água? - Vai, sim , se­ diz sobre a caixa, que flutua porque é leve,
nhor. - Como é que isso acontece? - É p e­ que ela é menos grossa que a pedrinhâ, sem
sada. - Quando ela não tem muita grossu­ nem mesmo especificar se se trata somente
ra, ela pode ser pesada? - Pode, sim , se­ de suas paredes. Essas contradições provêm
nhor. - Por que a caixa não vai para o do fato de que ela trata as qualidades dos
fundo? - Porque a caixa não é tão grossa objetos como propriedades absolutas e suas
quanto a pedrinhâ. - Uma pedra grossa relações como relações absolutas. Sendo uma
vai para o fundo? - Vai, sim , senhor. - Se tábua leve, a criança é, inicialmente, tentada
a gente põe uma pedra grossa num barco, a multiplicar a leveza de várias por seu nú­
vai para o fundo? - Não, senhor. - Por mero e é preciso que ela imagine o peso delas
quê? - Porque ela está no barco. - Por que sobre seus ombros para reconhecer que
ela não faz o barco ir para o fundo? - Os muitas é mais pesado do que uma só. O que
barcos são leves. - Se a gente coloca uma flutua deve ser leve e, por conseqüência,
pedra pesada num barco, o barco fica pe­ volumoso. Mas a experiência das coisas
sado? Fica, sim , senhor*. - Ela vai para mostra o contrário. Assim, a criança assiste a
o fundo da água? - Vai, sim , senhor. - choques perpétuos entre os objetos que
Quando a gente põe uma pedra num bar­ manipula e sua primeira manipulação das
co, ele vai para o fundo da água? - Não,
qualidades com a ajuda das quais ela tenta
senhor, porque têm m uitas tábuas. - O
que é que acontece, se têm muitas tábuas? defini-los.
- Porque as tábuas são m uito leves. - N...é; “Ese você deixa uma pedra cair na
Quando têm muitas tábuas, é mais leve do que água? - A água pula. - E a pedra? -Ela afunda.
uma tábua só? - É, sim , senhor. - Se seu - Até onde ela vai? - Até o fu n d o . - Mas e os
pai dissesse para você carregar doze tá­ barcos, por que eles não afundam? - Porque
buas, seria mais leve do que uma tábua só? têm pedras grossas. - E se você joga um
- Uma é m ais leve. - Por que, quando têm pedacinho de madeira na água? - Ele anda. -
muitas tábuas, ele não vai para o fundo da Ele não afunda como a pedra? - Não. - Por
água? - Porque as tábuas ficam em cima quê? - Porque opedaço de madeira épequeno.
da água. - Por quê? - Porque são mais le­ - Um pedaço grande de madeira afunda? -
v es.” A funda. - E a pedrinhâ? - Não.”
268 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Não chegando ainda a dar uma inde­ Os argumentos invocados estão, aqui,
pendência mútua às qualidades que começa sem nenhuma relação entre si. A propósito da
a distinguir no objeto, e fundindo, assim, madeira, a dimensão: apenas os pedaços
peso e volume, a criança é levada a dizer, pequenos boiam. A propósito da pedra, o
contrariamente aos fatos observados, de peso. Para os barcos, que são declarados ora
maneira evidente, por ela, que a madeira vai pesados e ora leves, é a quantidade de água
para o fundo da água se é grande e que a que os faz flutuar. Não vem ao espírito da
pedra flutua se é pequena. criança que a mesma causa deveria opor-se à
imersão da pedra, nem estabelecer uma
B...et 8; “E se você joga uma rolha na relação qualquer entre a massa do líquido e a
água? - Ela afunda. - A gente não a vê mais? dos sólidos que são neles mergulhados. A
- Têm vezes que ela nada. - Como isso água não é um meio comum a todos os
acontece? - Porque ela é um pouquinho mais objetos. Ela forma par com cada um.
grossa. - Como é que ela afunda? - Porque ela
é pesada demais. - Por que, às vezes, ela é Da mesma criança: “Como uma árvore
pesada demais e, outras vezes, não é? - Porque pode sair de uma semente tão pequena? -
ela é grossa. - Quando ela é grossa, ela é Porque a gente coloca m uitas sementes. - Se
pesada ou não? - É quando ela é pesada. - a gente colocasse só uma semente, não teria
Quando ela é grossa, ela afunda ou não? - Ela árvore? - Não. - Para fazer crescer muita grama,
afunda. .. - O que quer dizer pesado? - Grosso é preciso muitas sementes? - Não. A gentepõe
dem ais e grande demais.” um punhado p a ra fa ze r um a árvore crescer.
- Quantas sementes? - D oispunhados. - Como
Após alguma ambigüidade, pelo menos uma árvore pode crescer com dois punhados
de expressão, no início, a criança acaba iden­ de sementes? - Porque têm m uitas sementes.”
tificando formalmente peso e volume: o mes­
mo objeto flutua se é pequeno, imerge se é Aqui, a relação é simples, a criança supõe
grosso. uma espécie de proporcionalidade entre o
volume que atingirá a árvore e a quantidade
L...er 6; “À lua é pesada? - Não, senhora. de sementes que a fazem nascer. É uma
- Por quê? - Porque não é grande.” transferência de seu estado futuro para suas
origens, uma representação ainda relativa­
Ao mesmo tempo que o tamanho, acon­ mente estática da transformação. Provavel­
tece também, à criança, de invocar a quan­ mente, o contraste é manifesto demais para
tidade, mas sempre de maneira particular e que a criança possa pensar em estabelecer
absoluta. um equivalência estrita. Ela tende muito mais
a restabelecer um certo equilíbrio entre a
L...our 6; 1/2 “Os barcos não vão para o árvore e a grama. É uma simples relação glo­
fundo da água? - Não. - E uma pedra vai para bal de uma à outra. É, aliás, notável que a
o fundo? - A pedra êpesada. - Os barcos não equivalência seja procurada de quantidade a
são pesados? - São. - Então? - Ê que tem m uita dimensão e não de quantidade a quantidade:
água. - Onde? - No mar. - E quando eu deixo é preciso muitas sementes para uma árvore,
uma pedra cair na água? - Ela épesada.-E os não são necessárias muitas para muita grama.
barcos? - Eles não são pesados. - E um pedaço Ocupado o espírito pela altura vertical da ár­
de madeira? - Os pequenos não vão para o vore, a criança parece não saber representar
fu n d o . - Por que os barcos que são maiores a extensão horizontal da grama. Ela apresenta,
não vão para o fundo? - Porque tem m uita com freqüência, essas intuições unilaterais e
água.” como que exclusivas, incapaz que é de fazer
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 269

entrar, simultaneamente, em suas avaliações, derretem na água e a bolinha entre os que são
o que se adiciona em altura e em largura. A mais leves que o açúcar. Assim raciocina a
altura parece, habitualmente, impressioná-la criança, contrariamente, com freqüência, as
mais que a extensão, cujos contornos ficam suas experiências mais familiares, enquanto
mais fugente em seu campo perceptivo. as qualidades não estenderem, entre os
Em casos mais complexos, a dependência objetos, uma rede nitidamente definida e
mútua do volume e da quantidade dá lugar a permanecerem aderentes a eles.
relações muito menos nítidas. Parece, então, que a criança não sabe
distinguir entre o que ela concebe e o que vê.
D...aud 8; “Se você coloca um torrão de São como dois planos, diferentes por defi­
açúcar na água, ele vai para o fundo? - Vai. - nição, que se confundem, ou melhor, que
Você continua vendo-o? - Não. - Por quê? - substituem um ao outro. Não há acordo exato
Porque ê a água que não deixa. - Como? - entre os dois enquanto não se tornarem
Porque tem m uita água. - E se você coloca sistematicamente oponíveis. Para fazer o caso
um pedaço de giz? - Ele derrete. - O giz particular entrar sob a idéia, a criança deverá
derrete? - Derrete. - Como assim?... E se você resolver contaminações de que são respon­
coloca uma bolinha de gude... Ela fica na sáveis seus procedimentos de pensamento,
água? Você continua vendo-a? - Vejo. - Por os únicos que estão, inicialmente, à sua
que você continua vendo-а e não vê o acúçar? disposição.
- Porque a bolinha não é tão pesada quanto
o a ç ú ca r- É porque o açúcar é mais pesado J...ot 8; "Como é que os barcos não vão
que a gente não o vê mais? - É. - Se você coloca para o fundo da água? - Sem isso, eles não
um pedaço de ferro na água, você continua poderiam nadar. - Por que os barcos não vão
vendo-o? - Não. - Ele faz como a bolinha ou para o fundo da água? - Porque eles não
como o açúcar? - Como o açúcar.” afundam . - Por que eles não afundam? -
Porque não tem algum a coisa pesada. - O
O desaparecimento do açúcar que cai que é pesado afunda? - Às vezes. - Nem
na água causa, aqui, problemas, não apenas sempre? - Não. - Uma pedra afunda na água?
nas explicações da criança, mas até em suas - Afunda. - Por quê? - Porque êpesada. - E um
lembranças ou em seu testemunho sobre barco grande afunda na água? - Não. - Por
fatos de observação contudo correntes. Não quê? - A gente não colocaria nada pesado
sabendo relacioná-lo à fusão, ela invoca dentro. - Se a gente colocasse uma pedrinha
sucessivamente, o volume de água e o peso no barco grande, ele afundaria? - Não
do açúcar. A bolinha que permanece visível afundaria. - Mas, uma pedrinha é pesada,
será declarada mais leve do que o açúcar. Em não é? - É. - Então, como é que, se a gente a
compensação, o ferro, que é mais pesado, coloca no barco não afunda. - Porque o barco
deverá desaparecer como o açúcar, assim é tãopesado que elepode levar essapedrinha.
como, aliás, o giz, em razão, provavelmente, - Como é que o barco pode levar essa pedrinha
de sua semelhança com o açúcar. Assim, a e a água levar o barco grande? - Porque a
criança raciocina por contrastes ou por as­ água tem forçapara levantaro barcogrande,
similações absolutas, enquanto não souber, e a pedrinha, ela afunda. - Por que a água
nitidamente, dissociar dos objetos suas di­ tem força para levar o barco grande e não a
versas qualidades, nem repartir entre elas os pedrinha? - Porque o barco grande éfeito de
efeitos observáveis. O par pesado-leve, que madeira que nada, e a pedrinha é fe ita de
se sobrepõe à alternativa permanecer aparente pedra. - Por que a madeira nada e a pedra
ou desaparecer, tem, por conseqüência, a de não? - Porque a madeira é m ais leve do que a
colocar o ferro e o giz entre os objetos que pedra. - Então, o barco grande é mais leve do
270 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

que a pedrinha? - É. - Você poderia carregar о quando tem madeira, ela a estraga. - É
barco grande? - Não. - Por quê? - Porque é porque ela é branca que ela derrete o açúcar?
pesado. - E a pedrinha, você poderia carregá- - Éporque é um pouco cinza que ele derrete.
la? - Porque ela é m enor do que o barco. - Ela É a água que o quebra, logo que ele fic a na
é mais pesada? - Não. - Então, por que ela vai água. - Por que o açúcar se quebra logo que
para o fundo da água? - Porque ela épesada fica naâgua? - Porque ele derrete. - Por que ele
e não é de madeira. - Mas ela não é mais derrete? - Porque não é como ferro. - A terra
pesada do que o barco? - Ela é menospesada. não é dura? - Não. - A terra derrete também? -
- Então, se ela é menos pesada? - Ela éfeita de Derrete. - Como o açúcar derreteu na água? -
p e d ra ” Porque a água é um pouquinho cinza. -
Como ela fica quando o açúcar derreteu
Essa criança já associa a imersão ao peso, dentro? - Ela fic a na água. - Você já bebeu
assim como à sua conseqüência necessária água com açúcar? - Já. - Como é a água? - Ela
e, gradualmente, ela poderia parecer muito é um pouco branca, quando o açúcar der­
próxima de conceber a relação, variável reteu. - Se colocassem na sua frente dois
segundo as substâncias, entre peso e volume; copos, um onde tem açúcar derretido e outro
mas seu raciocínio limita-se, definitivamente, sem açúcar, como é a água? - Tem um a um
a opor a pedra e a madeira como duas pouco cinza e outra um pouco branca. -
substâncias de qualidades contrárias. É ainda Você pode saber qual é uma e qual é a outra
por um contraste, pela desigualdade de peso sem experimentar? - Posso. - Se você as expe­
entre o barco e a pedra que ela explica o rimentasse, seriam a mesma coisa? - Não,
poder que um tem de suportar o outro. Nesse senhor, a água é melhor quando tem açúcar
sistema fechado, o peso perde sua direção, dentro. - E quando tem terra que derreteu na
torna-se uma simples relação de força entre água? -A águafica todapreta. - Existem ainda
dois termos do par: enquanto ele levaria a outras coisas que derretem na água? - Opapel.
pedra para o fundo da água, permite ao - O papel pode derreter na água? - Pode. -
barco, mais pesado do que ela, sustentá-la em Quando o papel derrete na água, o que é que
cima. Ele parece, portanto, ter duas orien­ dá? - Não é bonito. - O papel? - Д sim, senhor.
tações contrárias, ou melhor, que não podem - A gente ainda o vê? - Não, senhor. - Como
ser invertidas, como é a regra em todo agru­ você sabe, então, que ele não é bonito? -
pamento simplesmente binário. Mesma opo­ Porque a gente não pode m ais escrever nele
sição de força entre o barco e a água. Ligada quando está molhado. - O papel derretido e
ao objeto particular ou exprimindo apenas o papel molhado são a mesma coisa? - Não,
uma relação quer de contraste, quer de con­ senhor. - Se a gente o coloca na água, ele fica
flito, quer de equilíbrio entre dois objetos, derretido ou molhado? - Elefic a derretido."
a propriedade ou qualidade permanece
ambivalente, contraditória, rica de inconse- “Derreter” só pode responder, eviden­
qüências. Ela não põe ordem entre as coisas, temente, a imagens diferentes, conforme ele
mas pertence a um mundo que permaneceu se aplique ao açúcar, à terra, à madeira ou ao
fragmentário. papel, embora a palavra não fique sem exercer
uma certa influência sobre a imagem, assim
G...in J. 7; “O que mais existe de duro? - como quando é respondido, ao contrário da
O ferro. - E o que mais - A madeira. - A experiência, que o papel desaparece por fusão
madeira é sempre dura? - Não, senhor, quando na água. O conflito é, aliás, patente entre a
está na água, ela estraga a madeira. - Como imagem assim deduzida e a imagem real,
ela a estraga? - Porque a água é um pouquinho entre a água que manteria o papel em disso­
branca. E depois, ela derrete o açúcar; e lução e o papel molhado. Ele leva a criança a
A IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO. O QUALITATIVO 271

se contradizer. Esse caráter disparatado da que para nós. É muito mais um traço cons­
noção segundo os objetos é, necessariamente, tatado na coisa, que a criança liga a sua exis­
complementar de sua imperfeita delimitação: tência assim como ele o é à sua percepção,
fusão, consistência dura e mole ou friável, sem que ela já saiba relacionar-lhe o objeto
cores branca, cinza ou preta sobrepõem-se ou o efeito como ao que preexiste a eles e po­
entre si e são, sucessivamente, tomadas uma deria, eventualmente, produzir outros seme­
pela outra. A cor cinza ou branca da água é lhantes. A ordem das causas, não mais do que
dada ora como a causa e ora como a a das categorias qualitativas, ainda não existe
conseqüência da fusão. Isso ocorre porque, nessa idade. Elas ainda estão integradas na
na realidade, o que a criança enuncia sob representação concreta e particular das coisas.
forma de causa não é causa no mesmo sentido
Capítulo IV

A DEFINIÇÃO

OPOSIÇÃO DA REPRESENTAÇÃO ESTÁTICA


E DA REALIDADE MÓVEL

O que é muito desconcertante, para a Em oposição com o que há de diverso e


criança, é a oposição entre as coisas que de móvel nas coisas, elas não o são menos
mudam, que não eram ou que não são mais, com as atividades que traduzem. O renovar
que começam ou acabam, e as representa­ não é menor no indivíduo que pensa do que
ções que delas faz a criança, onde a existên­ nas coisas que ele pensa. Insistimos sobre as
cia das mesmas está ligada a imagens deter­ modificações que sua própria atividade não
minadas, a práticas habituais. Na medida em cessa de lhe fazer experimentar, sobre as
que procura definir melhor, para si mesma, variações contínuas de seus estados afetivos,
os traços essenciais, a realidade deles, ela sobre a incessante instabilidade de sua
apenas aumenta a estabilidade, o imobilismo evolução subjetiva. Talvez o comportamento
das noções que lhes correspondem e toma, real do sujeito tenha traços de constância que
assim, a antinomia mais aparente. Provavel­ tornem essas considerações mais teóricas e
mente, suas representações ainda não têm o mais metafísicas do que praticamente verifi­
mesmo grau de abstração ou de individuali­ cáveis. Mas, num outro plano, o das opera­
dade que as do adulto. Não apresentam nem ções mentais propriamente ditas, vimos in­
a mesma pureza conceituai, nem a mesma vasões, contaminações, as quais mostram que
singularidade concreta. Elas não são nem as delimitações conceituais estão longe de
gerais, nem particulares. Ainda são uma con­ serem primitivas, que os temas representativos
cordância entre as atividades ou desejos cos­ ou ideológicos parecem propagar-se como
tumeiros da criança e os objetos dos mes­ ondas que interferem ou recobrem-se entre
mos. Mas nada perdem em fixidez. O que si, e eis aí também uma fonte de contradições
lhes falta em clareza ou precisão tem, como ou de dificuldades.
contrapartida, a rigidez das relações sub­ Desse modo, os conceitos que são ne­
jetivas e unilaterais que elas exprimem. Elas cessários para definir as coisas, para dar ao
têm, em cada caso, algo de absoluto, pare­ nosso pensamento das coisas um conteúdo
cem relacionar-se a cada objeto ou a cada estável e bem delimitado, devem interpor-se,
situação, estrita e como que nominalmente. como uma tela sobre a qual toda realidade
Imobilizam a coisa no que ela é ou parece ser teria um contorno invariável, entre dois ocea­
momentaneamente, sem ainda oferecer-lhe a nos móveis: o das coisas que se transformam,
gama de graus delas, para ajudá-la a compa­ o das idéias que se formam. Provavelmente,
rar-se consigo mesma, em suas variações, ou eles seriam incapazes de se erguer entre os
com as outras. dois sem um sistema mediador. Esse sistema
A DEFINIÇÃO 273

é о que é fornecido ao indivíduo pela socie­ que nele encontram nossos movimentos,
dade; é, em primeiro lugar, a linguagem e, impressões cutâneas e impressões anesté­
através dela, é toda uma coleção de instru­ sicas de peso. A passagem da palavra à
mentos para agir sobre o meio ou pelo meio, realidade percebida é bem visível. Ela é feita
a qual implica harmonia, convenções, no­ gradualmente, através de substituição de ter­
ções comuns. Mas saber utilizá-lo, dar-lhe mos, que vão dos mais convencionais aos
significações relacionadas com o uso coletivo, mais subjetivos. Mas a consciência de um
as necessidades individuais, os acontecimen­ dualismo entre a noção comumente aplicada
tos imprevisto, é uma aprendizagem infini­ aos acontecimentos e sua experiência própria
tamente variável e cheia de tentativas. A pode ser nitidamente indicada pela criança.
criança vai ter que ajustar, entre si, termos
cuja origem, como vimos, é diferente. Ela se W...er 7; “Quando a gente morre, você
encontrará face a, pelo menos, dois - expe­ disse que a gente sobe para o céu? - É lá em
riência própria e tradição -, que devem ser cim a! - Onde? -Lá em cima, no ar.- Você me
mantidos distintos para controlar-lhes a disse que a gente é enterrado. A gente ainda
concordância. É uma operação que se opõe, está na terra quando vai para o céu ou para o
de algum modo, à inteligência constelante ou inferno? - Têm uns que m e contaram isso, que
inteligência prática, a qual vimos que unifica a gente ia para o céu e para o inferno; às
todas as circunstâncias favoráveis de uma vezes, a gente fic a no cemitério. - Quando a
situação em uma espécie de estrutura comum, gente está no céu ou no inferno, a gente ainda
onde as possibilidades do momento sejam está no cemitério? - Não. - Como é o céu? - Às
coordenadas às intenções e aos objetivos. vezes, é todo branco, a zu l e todo preto. Isso
Aqui, ao contrário, o objeto do pensamento querdizerque vai chover.-E os mortos estão
coloca-se como que desdobrado. no céu? - Têm gente que m e disso isso."
Os exemplos mais simples são aqueles
em que a oposição é entre uma simples ex­ Essa criança não pode imaginar a
pressão verbal e o uso que dela ê feito, entre presença simultânea dos mortos em sua se­
uma significação e sua justificação. pultura e em lugares onde sobreviveriam
após a morte. Ela não distingue, aliás, o céu
G...el 6; “O que é o vento? - Vento... místico do céu visível onde alternam-se as
vento. - Sim! Mas como você sabe que tem nuvens e o azul. Incapaz de combinar entre si
vento? - Eit vejo. - No que você o vê? Como? essas noções díspares, ela se contenta em
- Com os olhos. - Se você fechasse os olhos, invocar uma espécie de notoriedade pública.
você não saberia que tem vento? - Saberia, eu A incapacidade em que se acha a criança
sentiria no rosto. - De onde é que vem o paramanter definições fumes e precisas, frente
vento? - Não sei. - Do que é o vento? - Nada, a objetos que são evocados à sua lembrança,
a gente corre dentro... Épesado. O solé m aior faz com que, freqüentemente, suas enume­
que ele. Ele nos queim aria etc.” rações entrem em conflito com o termo a ser
definido, pela interferência de séries que têm
A criança começa repetindo o nome a entre si alguns termos comuns, embora elas
ser definido, como se ele tivesse, por si sejam diferentes.
próprio, uma espécie de conteúdo intuitivo,
como se já fosse uma descrição ou uma B...et8; “Diga-me coisas que nadam. - Os
definição. Depois, ela invoca a visão, a fonte barcos (de que se acabara de falar). - E o que
mais habitual de nossas certeza objetivas. mais? - Os hidroaviões, os carros. - E o que
Enfim, ela chega a impressões mais espe­ mais?... Você já viu barcos andando na água?
cíficas: a do ar que roça o rosto, a da resistência - Já. - Onde? - Em Saint-Cloud. - Você já viu
274 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

carros na água em Saint-Cloud? -Já. - Eles não estão vivas? - Estão. - As plantas estão vivas e
afundavam? - Às vezes, quando eles vão rápido não têm cabeça, então?... Por que as pedras
demais, eles vão na água. - Quando eles vão não estão vivas? - Não sei. -A s estátuas estão
na água, eles afundam? - Não...A gente não vê vivas? - Não. - Elas têm cabeças, por que elas
as rodas. - Então, as rodas afundam, não o não estão vivas? - Elasforam feitas. - A lua foi
carro? - Não. - Se ele entrasse mais, ele nadaria feita? - Foi. - Quem fez a lua? - Deus. - E o que
ou não? - Eles entrariam . Q uando eles estão mais Deuz fez? - As pessoas. - E então, as
amarrados, eles não entram; eles tam bém pessoas estão vivas? - Estão. - Mas as pessoas
não nadam . - O que mais é que nada? - Uma foram feitas, por que elas estão vivas?...”
carroça, quando não tem cavalo na frente.”
Para cada objeto, o motivo explicativo
Em vez de se prender aos objetos que difere e não pode valer para os outros. A
flutuam, essa criança passa dos barcos a outros criança sabe invocar apenas circunstâncias
meios de transporte, sendo que vários não díspares, sem descobrir uma que seja comum
são do tipo que anda na água. Duas séries a todos os objetos, que tenha por conse­
diferentes interferem, por falta, para a que qüência um certo caráter de necessidade e
está em causa, de manter ou até mesmo de que possa traduzir-se em definição siste­
encontrar sua fórmula. A criança tenta reme­ maticamente modificável, conforme os casos
diar as dificuldades que disso resultam invo­ a serem justificados. Em vez dessas correções
cando, a cada vez, circunstâncias corretoras. ou adaptações, a cada vez surge um detalhe
Ela parece tergiversa, de modo a não ser co­ novo.
locada em situação de erro. Tachariamo-la,
facilmente, então, de má fé. Na realidade, isso H.-.oux 7; “Como os barcos fazem para
é apenas, mais ou menos, uma aparência. As não ir para o fundo? - Eles têm remos. - Se eles
circunstâncias que ela invoca são o contrário não tivessem, eles iriam para o fundo? - Iriam .
de conseqüências rigorosas, como a contin­ - Quando os marinheiros vão embora e tiram
gência o é da necessidade e o relato da defi­ os remos, os barcos vão para o fundo do mar?
nição. São dois modos diferentes de pen­ - Não. - Como isso acontece? - Porque eles têm
samento, os quais distinguem a criança e o um motor. - Todos têm um motor? - Não. - Os
adulto. Incapaz de definir, a criança é verda­ barcos sem motor vão para o fundo do mar?
deiramente sensível apenas ao acontecimen­ - Não. - Por quê? - Porque eles têm um vapor.
to. Ela conta sem saber deduzir. O conto ê o - Todds os barcos têm um vapor? - Não. - E os
que corresponde a essa maneira de repre­ que não têm? - Eles têm remas.”
sentar as coisas. Mesmo certos romances para
adultos mantiveram esse gênero de estrutura, A confusão entre “boiar” e “andar”marca,
a ação parece desenvolver-se neles apenas aqui, a incerteza da definição. Todas as razões
sob a influência de coincidências fortuitas. dadas são mecanismos de propulsão. Mas, se
se tratasse exatamente de explicar o movi­
0...al 7; após ter descrito a lua. “A lua mento deles, a essa enumeração de barcos a
está viva? -N ão. - Diga-me coisas vivas. - As remo, a motor ou a vapor faltaria rigor. Na
pessoas. - E o que mais? - Os anim ais. - E o que realidade, não se trata, aqui, de uma clas­
mais?... O que quer dizer “estar vivo”?... sificação dos barcos segundo seus meios de
Quando a gente diz “está vivo”, o que isso deslocamento. A criança não distingue entre
quer dizer? - Não sei. - As plantas estão vivas? os objetos: é a propósito dos mesmos barcos
- Estão. - Por quê?... Ras pedras? - Não. - Por que ela substitui os remos pelo motor. Em vez
que as pedras não estão vivas? - Elas não tem de distribuí-los sob a rubrica transportes, cada
cabeça. - As plantas têm cabeças? - Não. - Elas um com seu índice mecânico, ela apenas
A DEFINIÇÃO 275

evoca, a cada vez, circunstâncias novas para noite vem. - Então? - É quando é tarde. -
atenuar a imperfeição das já citadas. As duas Porque a Terra gira nessa hora? - Porque o sol
séries, a dos objetos enumerados, a dos tra­ se deita"
ços variados que devem explicar efeitos
comuns a todos, introduzem-se ainda, de A independência mútua, a falta de inte­
modo frouxo, uma sobre a outra, sem se gração entre os temas de explicação são,
combinarem, de modo rigoroso, para cada aqui, bem aparentes. São, inicialmente, uma
espécie particular. expressão usual - “o sol se deita” - e o ensina­
A incapacidade da criança para ajustar mento recebido - “a Terra gira” - que são
os dois temas um ao outro obriga-a a sim­ simplesmente justapostos sob forma de sin­
plesmente afirmar coexistências. Para cada cronismo com a ajuda da conjunção “quan­
objeto, existem circunstâncias novas, quer do”. O movimento da Terra parece, em segui­
díspares entre si, quer sem firme relação com da, ser atribuído ao sol “que faz a Terra girar".
o objeto individual. O sincronismo é uma Após um retorno à simples afirmação da
forma de coexistência, corresponde a simples equivalência - “o sol se deita... isso quer dizer
relações temporais, relações do tipo narrativo. que é tarde” -, sobrevêm, repentinamente, o
tema das nuvens escondendo o sol, meca­
F...ge 7; “Como a noite vem? - É quando nismo da tela, com o qual a criança tem uma
o sol está deitado. - O que quer dizer que o sol longa familiaridade: desde a idade de um a
se deita?- É quando a Terra gira. - Como o sol dois anos, o objeto, subtraído de sua vista
se deita quando a Terra gira? - Porque é o sol. pela interposição de outro, era para ela uma
- O sol faz o quê? - É quem fa z a Terra girar. fonte de surpresa e de jogos. Mas esse novo
- Como ele faz a Terra girar? - É quando ele se tema apenas se justapõe aos outros, alterna­
deita. - O que quer dizer que ele se deita? - se com eles, enfim, desaparecer diante da
Q uer dizer que é tarde. - Como é que ele se simples justaposição das duas primeiras fór­
deita? - Équando é m uito tarde. - Como ele se mulas: “o sol se deita... a Terra gira.”
deita? - Ele se esconde atrás das nuvens. - Se Ainda um exemplo de não-integração,
não tivesse nuvens, ele não poderia se es­ sempre relativamente ao sol e à noite, entre
conder? - Nao, senhor. -Nos dias em que não os temas invocados:
têm nuvens, ele não se deita? - Não, senhor. -
Nesses dias, a noite não vem? - Vem, sim, N...aire 7; 1/2 distinguai o sol da lua,
senhor. - Como é que a noite vem? - Porque é colocando fogo em um e não no outro “De
a Terra que gira. - Como é que, girando a onde vem o sol? - Da Tera, ele ainda está um
Terra, a noite vem? - São as nuvens que pouco lá em cima. - Quando ele vai embora,
escondem o sol. - Para que a noite venha, é para onde ele vai? - Ele está sempre lá em
preciso nuvens ou é preciso que a Terra gire? cima. - À noite, o sol está lá em cima? - Elefica
- Que a Terra gire. - Por que a noite vem mas baixo, o sol sobe e depois, de noite, ele
quando a Terra gira? - É quando é tarde. - O fic a m ais baixo. - Onde mais baixo? - Ele
que quer dizer tarde? - É quando fic a de noite. ainda está no alto. - A gente o vê no alto? Vê.
- ...A gente poderia não deixar a noite vir? - - À noite, a gente vê o sol? - Não, a noite
Não, senhor. - Por quê? - Porque ele é alto. - O esconde o sol. - Como ela pode escondê-lo? -
que é alto? - O céu. - E daí que ele é alto?... Se Porque o sol sobe e a noite abaixa. - O que é
ele não fosse alto, a gente poderia não deixar a noite? - É escuro. - Como é que o escuro
a noite vir? - Não. - Por quê? - Porque a Terra pode subir e descer? - Porque o sol se deita. -
gira. - Como? - Q uando a noite vem, a Terra Onde o sol fica quando ele se deita? - Elefica
gira. - A gente a vê girar? - Não, senhor. - m ais alto que o escuro. - Quando ele está
Como você sabe que ela gira? - É quando a deitado, onde ele fica? - Não sei. - Ele fica mais
276 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

alto ou mais baixo? - Q uando ele não está rios que corre que a f a z se mexer. - Como é
deitado, ele fic a m ais baixo. - E a noite, que a água dos rios corre? - Ela anda. - Como
quando é de dia, onde ela fica? - No alto. - O ela anda, como é que.ela corre? - Ela anda. -
que é que faz a noite subir e descer? - Não sei. Como ela anda? - Ela desliza. - Como ela faz
- O sol sobe e desce sozinho? - Ele desce para deslizar? - Ela mia. - Como ela pode
sozinho. - Como ele pode descer sozinho? rolar? - Andando. - Como a água faz para
Não sei. - Para subir e descer, o que é preciso? andar?...”
- Porque o sol está no alto. Q uando a noite
sobe, ele desce. É a noite que o faz descer? - É. Entre o vento e a corrente, a criança não
- E a noite, o que é que a faz subir? - É o sol. - escolhe. Ela também não explica a causa da
Qual é mais pesado, a noite ou o sol? - Os dois corrente. Limita-se a lhe justificar o mecanis­
pesam iguais.” mo através de uma acumulação de sinônimos
mais ou menos discritivos.
Como no exemplo precedente, a noite é Essa incapacidade para produzir os temas
devida ao desaparecimento do sol por trás de evocados à unidade de uma mesma defini­
uma tela, não mais de nuvens, mas por trás da ção leva, freqüentemente, a contradições: a
própria noite. Contudo, a explicação perma­ justaposição ocasiona a dissociação.
nece confusa, porque a criança sabe apenas
justapor, entre si, duas imagens opostas: de N...et 6; 1/2 “Você já viu barcos? - Já, no
um lado, a do sol, aparentemente próximo da Sena. - Eles andam? - Andam . - Como? - É a
Terra durante a manhã e a tarde mas, no água que osfa z andar, e tam bém o vento. É
entanto, “aindaum pouco lá em cima, sempre o vento que fa z a água a ndar e a água, os
lá em cima”, ou seja, sempre no céu, primeira barcos. - Têm barcos que vão para um lado e
contradição; de outro lado, a da noite que outros barcos que vão para o outro lado? -
cairia como uma cortina, com um movimento Têm, sim, senhor. - O que é que faz um barco
inverso ao do sol, para colocá-lo atrás dela, andar para um lado e um outro para o outro?
hipótese contrária a seu movimento aparen­ -É a água que está lá (ã direita) e a água que
te. De modo que, sem mesmo parecer prestar está lá. - A água que está aqui (à direita) faz
atenção nisso, a criança inverte ainda uma andar o barco que está lá, mas quem a faz
vez o sentido no qual se deslocariam o sol e andar? - É o vento. - E a água que está lá (à
a noite, esta subindo e o outro declinando. esqupi da)? - Elaf a z os barcos andarem com
Essa sucessão de relações inconciliáveis en­ remadores, a que está lá. - Quem a faz andar?
tre si atesta muito bem a independência mú­ - A água / - É . - É o vento. - O vento faz andar
tua em que ficam suas representações e a sua para os dois lados ao mesmo tempo? - Não ao
incapacidade para coordená-las em uma mesmo tempo. - Então, existem dois ventos?...
fórmula comum e coerente. O vento precisa soprar para os dois lados ao
O exemplo seguinte mostra, ainda, dois mesmo tempo? - Tem lá e tam bém tem água
temas que não chegam a se conjugar. lá. - Mas e o vento? - Tem vento no céu. - O
vento pode soprar para um lado e para o
H...vin 6; 1/2 “Então, ela se mexe (a água outro ao mesmo tempo? - Pode.”
do Sena)? - Mexe. - O que é que a faz mexer?
- O vento. - Ela se mexe sempre para o mesmo Tendo começado por afirmar que o
lado? Não. - Ela não vai sempre para o mesmo movimento transmite-se do vento para a água
lado? - Vai. - O vento vai sempre para o e da água para o barco, a criança parece ter
mesmo lado? - Não. -'Então, se o vento não vai alguma dificuldade para remontar, das
sempre para o mesmo lado, como ela pode ir diversas direções tomadas pelos barcos, ao
sempre para o mesmo lado? - É a água dos desdobramento que seria necessário supor
A DEFINIÇÃO 277

no vento. Ela sabe apenas, inicialmente, ima­ água do mar é amarga- porque é azul e,
ginar uma distribuição de água no espaço, o provavelmente, é a incompatibilidade global
que tornaria, provavelmente, suas correntes dessas qualidades com a água da torneira e a
independentes entre si. Ela queria evitar o do Sena que leva a criança, no final, a lhes
fato de ter que reconhecer que o vento deve atribuir uma origem em oposição com o mar:
soprar em dois sentidos “ao mesmo tempo”. a terra (par contraste mar-terra).
Mas, tendo reduzido o movimento dos barcos
ao do vento, é-lhes preciso, finalmente, admitir O IDÊNTICO NO DIVERSO
a decomposição do vento em várias direções
simultâneas. A definição é necessária ao conhe­
cimento, com o qual certa filosofia até mesmo
D...net 6; “Você já viu o Sena? - Já. - Ele a confundiu. Não apenas ela enuncia os
se mexe? - Mexe. - Como? - Para ir para o mar. resultados da experiência e da análise, mas é
- Ele se mexe sozinho? -É o vento que empurra a condição necessária ao estabelecimento ou
um pouco. - Pra ir para o mar? - É. - E quando à descoberta de relações definidas e estáveis.
o vento o empurra para o outro lado? - Ele vai Na medida que se ajusta a elas, ela pode até
para o outro lado. - Então, ele não vai para o mesmo parecer o princípio das mesmas e
mar? - Não. elevar-se, conforme a natureza dessas rela­
ções, aos graus de abstração mais elevados.
É, aqui, a definição primeira que se Mas ela deve também responder às seme­
dissocia em seu contrário. lhanças e às diferenças visíveis das coisas,
fornecendo um meio de classificá-las. Eis um
C...in 6; 1/2 “Você sabe de onde vem a problema cheio de incertezas em cada campo
água do Sena? - Ela vem do mar. - Como a e sobre o qual Aristóteles mostrou que tem
água do Sena vem do mar? Não sei. - Então dois termos: compreensão e extensão, ou
como você sabe? - Me disseram. - E a água do seja, conjunto dos traços que entram na
mar, de onde ela vem?... - Você nunca viu o definição e grupo de indivíduos a quem ela é
mar? - Nunca. - E a água da torneira, de onde aplicável. Há aí, ainda, toda uma série de
ela vem? - Ela vem do Sena. - Que gosto tem relações a serem concebidas e ajustadas. O
a água do mar? - Ela é azul. - Que gosto ela discernimento, referindo-se a objetos fre­
tem? - Amargo. - A água do Sena é amarga? - qüentemente complexos e confusos, que a
Não. - E a água da torneira? - Não. - Como é definição exige, faz disso uma operação que
que a água do Sena não é amarga se a água do não pode estar, logo de início, ao alcance da
mar é amarga? - Porque ela ê azul. - O que criança. Ela é, por isso mesmo, um revelador
quer dizer amargo? - Não é bom. - Diga-me das etapas que seu espírito deve percorrer,
coisas que são amargas... Você conhece coisas desde a imagem mais ou menos bruta à
amargas? Não. - A água do Sena vem do mar? imagem racional das coisas.
Não. - Você não tinha me dito que a água do
Sena vem do mar? - Não... é. - Então não é Quando, da atividade puramente práti­
verdade? - Não. - De onde vem a água do ca, em que cada situação controla seus atos,
Sena? - Da terra." quer segundo rotinas adquiridas, se ela é
habitual, quer pelo despertar de suas intuições
É um terceiro caso que se apresenta topográficas ou mecânicas, se ela é nova, a
aqui: a primeira afirmação é abandonada criança passa ao conhecimento, este consiste,
para evitar a contradição. Contudo, a criança inicialmente, na estabilização, em cada objeto,
mostra-se ainda muito dominada por assimi­ “ dos efeitos a serem nele encontrados como
lações ou diferenças puramente sincréticas: a sendo-lhe próprios. Mas ele ainda não lhe
278 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

permite ultrapassar a representação concreta não têm nuvens não tem céu? - Tem, sim,
e particular do objeto. É o objeto global que senhor. - O céu e as nuvens são a mesma
começa a ser seu princípio de compreensão, coisa? - Não, senhor. - Então, o que é o céu? -
de comparação, de classificação. Ao mesmo É o sol. - Quando não tem sol, não tem céu? -
tempo, ele lhe constitui um obstáculo, porque Tem, sim, senhor. - O céu e o sol são a mesma
é indecomponível e, desse modo, é contrário, coisa? - Não, senhor. - Então, o que é o céu? -
por suas diferenças, aos outros objetos que É o vento. - Quando não tem vento, não tem
poderiam ser-lhe assimilados em razão das céu? Tem, sim, senhor...” e o interrogatório
semelhanças dos mesmos. Essa oposição é prossegue idêntico com o céu-lua, o céu-dia,
agravada pela incapacidade, em que a repre­ o céu-tempestade.
sentação global das coisas, feitas pela criança,
a coloca, de enunciar o que sua intuição lhe É visível que a criança dá como idênticos
faz sentir de comum entre elas, de outro objetos que têm apenas algumas conexida­
modo que sob a forma de uma completa des mútuas. Entre os primeiros que aproxi­
identidade. O fato de se pertencerem mutua­ ma, ela admite uma perfeita semelhança, como
mente, que a criança acredita descobrir entre se fossem uma única e mesma realidade. Le­
realidades, incidentes, traços quaisquer não vada, em seguida, a distinguir entre o ar em
encontra limite em algo que, afastado de suas ação e aquele que não o está, ela reconhece
respectivas massas, poderia ser oposto ao que pode haver falta de concomitância cons­
que lhes é comum. Ele ocasiona, portanto, a tante ou não-identidade entre objetos defi­
afirmação de uma coincidência total entre o nidos um pelo outro: o ar inicialmente dado
que, contudo, não poderia coincidir. Donde como vento e nuvens; depois o céu, origem
essas perpétuas pseudo-identificações, que do sopro que faz o vento, dado, ele também,
deixam perpetuamente em suspenso a como nuvens e, sucessivamente, como o sol,
questão de uma exata assimilação ou de um como vento, como a lua, como o dia, ou a
diferença irredutível. Entre as duas, a criança tempestade. A enumeração torna-se tanto
não cessa de oscilar em aparentes con­ mais fácil quanto a busca de uma identidade
tradições. Ela usa objetos como sinônimos exata parece ser esquecida em um simples
aproximativos, cujas divergências ela não inventário. Esse modo de acumular imagens
saberia exprimir e nem resolver. Ela substitui em ligação qualquer com o objeto a ser defi­
realidades entre si. Eis aí sua primeira maneira nido, como se, através disso, sua natureza
de definir. devesse ser explicada, denota a incapacidade
para determinar relações ou analisar seme­
F...ge 7; “O que é o ar? - É o vento. - Não lhanças, ou seja, para detalhar cada objeto em
tem ar quando não tem vento? - Tem, sim, componentes ou segundo relações que po­
senhor. - Quando não tem vento, assim mesmo deriam marcar seu lugar exato entre outros
tem ar? - Não, senhor. - O que é o ar? - São as objetos. Eis aí a “fase substância”, onde a
nuvens. - Quando não tem nuvens, não tem representação ainda não pode ultrapassar o
ar? - Têm, sim, senhor. - As nuvens e o ar são objeto concreto e global. Etapa à qual a
a mesma coisa? - Não, senhor. - Então, o que regressão funcional pode levar o afásico.
é o ar? - É o vento. - O que é o vento? - É o ar. Goldstein destacou casos onde a reminiscên-
- O que que é o ar e o vento? - É igual - O que cia de nomes, quando se trata de objetos, é
é? - O vento sopra e o a r também. - O que quer inteiramente correta, enquanto os nomes de
dizer soprar? - É o ar quando a gente sopra. - qualidade não são mais evocáveis, a menos
Então, às vezes, o arhião sopra?- Não, senhor. que sejam associados, pelos hábitos verbais,
- Como é que ele sopra às vezes? - Porque é o a um nome de objeto, como “vermelho” a
céu. - O que é o céu? - São nuvens. - Quando “sangue."
A DEFINIÇÃO 279

A essa representação fragmentada de outro equivalente, o ar, e essa nova assimila­


objetos, supostamente que se pode sobrepor ção indiferenciada leva-a a emitir a con­
e idênticos, embora sejam apenas justapos­ tradição paradoxal de que nem sempre há ar,
tos, liga-se a incapacidade para encontrar o visto que, no momento em que fala, não há
único, o idêntico, o necessário, o constante nuvens.
sob o que é, ao mesmo tempo diverso e
semelhante, distinto mas em relação de causa A SIMPLES CONCOMITÂNCIA
e efeito, de todo e de parte, etc. Incapacida­
de de redução e de integração, ao mesmo A expressão substancialista das relações
tempo que de distribuição, conforme as próprias para definir um objeto não é a única
categorias de qualidades ou de relações. Essa que se encontra. A criança pode limitar-se ao
dificuldade aparece bem nessa mesma enunciado de um fato concomitante, ou seja,
criança. mais ou menos de uma ação.

“O que são as nuvens? - Épreto. - Tudo B...ére 6; “O que são os relâmpagos, já


que é preto são nuvens? - Não. - O que são as que você os viu? - Chove.”
nuvens? - É o tempo. - O que é o tempo? - É
conforme os dias como eles são. - O tempo é A circunstância que deve definir o objeto
todos os dias? - Д sim, senhor. - As nuvens é pode ser a ele ainda por uma conjugação de
todos os dias? - Conforme o tempo como ele é. lugar ou de tempo.
- O que são nuvens? - É trovão. - Quando têm
nuvens, tem sempre trovão? - Tem, sim, L...our 6; 1/2 “O que que é a praia? - É
senhor. - O que é trovão? - Uma bola de fogo. onde a gente apanha mexilhões.”
- E as nuvens? - É o ar. - Sempre têm nuvens?
- Têm, sim, senhor. - E agora? - Não. - Sempre F.. .ge 7; “O vento sopra e o a r também. -
tem ar? - Não, senhor." O que quer dizer soprar? É o a r quando a
gente sopra. - Então, às vezes, o ar não sopra?
A criança debate-se, de maneira fre­ - Não, senhor. - Como é que ele sopra às
qüentemente contraditória, entre a única vezçs? - Porque é o céu.”
forma de definição que esteja em seu poder,
a identificação pura e simples de um objeto a Explicaçãosubstancialista - “Como é que
um outro, e as diferenças que ela, contudo, ele sopra? - É o céu” - alterna, aqui, com a
neles percebe, nesse caso particular, sua expl icação temporal. “Quando a gente sopra”
constância ou sua intermitência respectivas. parece enunciar, na verdade, o que distingue
Em termos, aliás, ambíguos, ela parece opor o vento do ar.
as nuvens ao tempo, como o que é variável ao
que é permanente. Disso ela não afirma J...ly 9; “O que que é o vento? - Q uando
menos, mais tarde, que há sempre nuvens é inverno. - Nunca tem vento quando não é
embora não haja no momento em que fala, o inverno? - No verão, fa z vento. - Então, o que
que indica, talvez, seu embaraço para dis­ que é vento? - Ê quando ele assobia. - O que
tinguir entre a existência local ou temporária que é o vento?... Como ele assobia? - Ele chia.
e a existência absoluta. Essa dificuldade para - como ele pode chiar? - Ele levanta poeira. -
aplicar a suas representações as diferenças de É isso que faz o chiado? - É - Como ele pode
tempo e de espaço é a causa, provavelmente, levantar poeira? - Porque ele sopra em cima.
de ela admitir a coexistência total das nuvens - Como ele pode soprar em cima? - Não sei -
com o trovão. Contudo, para evitar afirmar- O que é que sopra assim? - É a terra. - Como
lhes a identidade estrita, ela dá às nuvens um a terra pode soprar? - Não sei.”
280 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

“Q uando” introduz, aqui, duas circuns­ isso dá frio... as hélices de aviões... as janelas
tâncias de espécie muito diferente: a estação abertas... as correntes de ar”. Com freqüência,
em que o vento sopra com mais violência ou o traço é puramente descritivo.
freqüência e o som que ele produz. A seqüên­
cia mostra que, entre os motivos evocados, K. ..vé 6; “O que é o fogo? - É vermelho, é
não há apenas ligações de concomitância amarelo. - O que é? - Ele queim a. - como isso
mas ou menos frouxas. A poeira levantada acontece? - Porque é quente. - Como ele fica
pelo vento e depois, por seu intermédio, a quente? - Fósforos que a gente risca em cim a
própria terra são sucessivamente combina­ de algum a coisa, isso fa z ele fic a r quente.”
das com o barulho do vento e com o próprio Da mesma criança “O que é um fósforo?
vento, como sua causa. Na realidade, a ligação - È madeira. - Assim? (a mesa). Se eu a
de causalidade não tem a mesma precisão cortasse, ela daria fósforos? - Tem vermelho
que no adulto. Ela parece, sobretudo, unir os na ponta. - Se eu mergulhasse madeira na
diferentes traços de um mesmo conjunto. Os tinta vermelha, isso daria fósforos? - Não da
detalhes ou as circunstâncias sucedem-se na pintura.”
ordem em que se oferecem à imaginação da
criança e a fórmula que os introduz é a mais A criança não ultrapassa as aparências
cômoda, a mais corrente ou a que a conversa nem os fatos que lhe são mais familiares.
sugere. Acontece, desse modo, que o detalhe de suas
descrições seja o que o objeto oferece de mais
S...eg 8; 1/2 “Como você sabe que existe banal, de menos específico.
vento? - Porque a gente sente atrás da gente.
- E o que mais? - Porque a gente vê as árvores L. ..our 6; 1/2 “O que a gente pode ver em
se mexerem. - De onde vem o vento?- Vem Havre? - Casas, árvores. - E o que mais? -
das hélices de avião. - E quando não têm Bicicletas. - E o que mais? - Lojas. - E o que
aviões? - Vem do céu. - Como?... O que é o mais? - Não lembro mais. - A gente não vê o
vento? - Ele vem da água. - O vento molha mar? - A gente vê, m as elefic a longe. - E o que
você? - Não. - O que é o vento? - Ele m e dá frio. mais a gente vê? - Barcos.”
- E o que mais? - M eu casaco voa. - Como ele
faz seu casaco voar? - Porque têm correntes de A evocação dos barcos só pôde juntar-se
ar. - O que são correntes de ar? - É quando as ao que mostram as ruas de uma cidade
janelas estão abertas. - E o que mais? - Ele ba­ qualquer após a do mar, feita pelo interlocutor.
te nas janelas. Por quê? - Porque têm vento. - Quanto mais subjetivas são as descrições da
O que é o vento? - Quando tem vento, isso quer criança, mais elas tendem para a banalidade,
dizer que vai chover. - O vento não é chuva? - pois ela não sabe escolher entre suas
Ah, não! - Então, o que é? - É a tempestade.” lembranças. As mais raras, as que pertencem
mais exclusivamente ao objeto, deixam-se
Nessas respostas estão reunidas diít facilmente eclipsar pela mais corrente. A
rentes locuções, tais como “vem de”, “quando” rotina, ou melhor, o que há de mais concreto
ou “é”, sem que seja possível ver nelas a nas coisas, prevalece.
expressão de relações nitidamente definidas.
Os traços que elas introduzem não tem outra C. P. .it 6; “O que que é estar vivo? - Todo
relação mútua a não ser a de pertencer ao o mundo. - Como a gente está vivo? - Não sei.
mesmo conjunto de experiências. Aos termos - E se a gente não estivesse vivo? - Bom, a
muito gerais, comoD céu, a água, a chuva, a gente estaria morto. - Como a gente fica
tempestade, misturam-se impressões pes­ quando morre? - A gente morre. A gente fecha
soais ou fatos particulares: “meu casaco voa... os olhos, e depois os levam num enterro, e
A DEFINIÇÃO 281

depois a g e n te co loca coroas, e dep o is a g en te Sinal e fato confundem -se como fazem causa
v a i re g a r a s flores. Às vezes, co lo ca rflo res e à s e conseqüência. Acontece o mesmo com a
vezes a n d a r n o cem itério. Às vezes, têm vida. O essencial é reduzido a manifesta­
h o m en s q u e f a z e m b u ra co s e d ep o is colocam ções particulares: atividade do vendedor, da
d e n ovo a areia. - Por que eles fazem buracos? criança que brinca, do trabalho doméstico.
- P a ra c o lo c a r os mortos. - Como a gente vê Essa incapacidade de subordinar os dados
que alguém está morto?... Como se vê isso? - brutos da experiência ou da imaginação a
Se vê em u m leito, em u m leito d e morte. - conjuntos onde cada um esteja em seu pla­
Como as pessoas vêem que podem colocar no, m antenha relações exatas com os di­
alguém em um leito de morte? - P o rq u e ele ferentes princípios diretores do conheci­
está m orto. - Como a gente vê que ele está mento, é o que foi descrito sob o nom e de
morto? - Q u a n d o eles o en terram . - Como a sincretismo.
gente sabe se ele está morto ou não? - Isso se
vê q u a n d o a g en te está em u m buraco. - SUCESSÃO DESORDENADA
Antes de estar no buraco, a gente já está
morto? - Já, eles estão m ortos n a ca sa deles. - Mesmo um a simples série de etapas,
Na casa deles, como a gente vê que eles estão em bora solidárias entre si, pode perm anecer
mortos? - N ã o sei. Eu n u n c a vo u n a ca sa tão confusa que a criança não pára de alterar-
d a s p e sso a s p a r a v e r u m m orto. - Como a lhes a ordem de sucessão.
gente vê que a gente está vivo? - Q u a n d o eles
sa em d a ca sa deles, às v e ze s q u a n d o eles F...mi 6; “O que que é o trigo? - A g en te
estão n a ja n e la , q u a n d o a g e n te está fo ra , os f a z f a r in h a co m ele. - Mas o trigo, o que é? -
ven d ed o res q u a n d o eles ven dem , os m e- É p a r a f a z e r p ã o . - O que é o trigo? - O
n in in h os, a g e n te ta m b ém os vê n a ru a en terraram . - Você já viu trigo? - Já. - Como
b rin ca n d o . - A gente pode estar vivo dentro ele é? - C om se m e n tin h a s den tro. - Onde a
de casa? - P ode, às vezes, a g e n te lim p a a gente vê essas sementinhas? - No trigo. - e o
ca sa .’’ trigo, onde a gente vê? - N ão sei. - Você nunca
viu trigo? - Já. - Onde? - N a ven d a , em sacos.
As imagens que a criança evoca aqui são - E antes de colocá-lo nos sacos? - Em u m a
das que pertencem às manifestações de que d eb u lh adora. - Você já viu debulhadora? - Já.
a morte é envolvida: funeral, visitas ao - Para que elas servem? - P a r a e sm a g a r o
cemitério, leito de morte. Mas a enum eração trigo. - Antes de ser colocado na debulhadora,
delas nem sem pre segue a ordem narrativa. onde estava o trigo? - Em u m saco. - Você
Acontece até mesmo de elas parecerem da­ tinha dito que era depois da debulhadora. -
das como anteriores à m orte e não como suas N a terra. - Na terra, com o ele é?... A gente o
conseqüências. A verdadeira sucessão delas vê? - Vê. - Como ele é? - Ele é com prido. - Como
não escapa, provavelmente, à criança. Mas, ele é feito? - A g e n te o e sm a g a n a d e b u lh a ­
interrogada sobre a definição e sobre os si­ dora. - Q uando ele está na terra, como ele é?
nais de morte, ela se deixa, sucessivamente, - É p re c iso a rran cá-lo. - Você já viu arran­
dominar pelas circunstâncias mais surpre­ carem o trigo? - N ão... co m en x a d a s. - Você
endentes. Elas prevalecem sobre a cronolo­ viu arrancarem? - Vi. - Antes que a gente o
gia e, até mesmo, sobre as relações de causa arranque, como ele é? - Crescido. - Como ele
e conseqüência. A distinção ainda não é está crescido? - N a terra. - Para que ele cresça,
suficiente entre a consciência do fato e o fato. o que a gente faz? - P recisa a rra n ca r. - A
A ordem da consciência prevalece sobre a da gente o arranca quando ele está crescido,
realidade. Assim se explica que a criança mas e antes? - N ão sei.”
pareça dar o enterro com o um sinal da morte.
282 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

As respostas são, freqüentemente, de de memória. É preciso, às próprias imagens


contorno, como se seguissem mais o desen­ da lembrança, seus sistemas diferenciais, os
rolar de associações espontâneas do que a quais supõem uma atividade catégorial do
ordem das perguntas. O tema é suscitado, espírito. Se os aspectos ou as condições do
orientado por estas, sem lhes obedecer estrita objeto não se deixam ordenar sob rubricas
e instantaneamente. A escolha que elas exi­ que permitam classificá-lo entre as coisas que
giriam entre as imagens é, frequentemente, são e que se transformam, ele é como que
atravessada pela invocação dessas imagens inteiramente aglutinado pela imagem ou pela
entre si. Mas uma outra escolha também é relação do momento, e permanece disperso
alterada, a que regularia a sucessão das eta­ entre representações díspares.
pas pelas quais sua cultura e seu emprego
fazem o trigo passar. Seu ensacamento é L...dec 7; “O que é o sol? - Éfogo que tem
dado ora como anterior, ora como posterior à no c é u -Como é esse fogo? - O solé para nos
debulha. A criança parece, aliás, confundir ilum inar. - Ele queima? - Queima. - O que ê
debulha e moagem. Talvez, também, ela es­ que queima? - Madeira. - De onde vem essa
teja embaraçada por esse termo coletivo - madeira? - Dos bosques- O que é que a faz
“trigo” no singular - que se aplica, ao mesmo queimar? -Jesu s-O solé grande? - É -Grande
tempo, às sementes e ao que contém as como? - Ê um a bola. - Uma bola grande
sementes, ou seja, as espigas, que ela não como? - Como a Terra. - A Terra é grande? - É.-
sabe nomear, falando das sementinhas “que Como? - Como um a bola. - Uma bola grande
estão dentro”. Entre a semeadura e a ceifa, ela como o quê? - Como o céu. - O que que é o
também não parece fazer distinção. Ambas céu? - É um a ilum inação. - E a noite, o que é?
confundem-se com o trigo que está na terra, - Fica escuro de noite. - Como fica escuro? -
em oposição ao trigo batido e ao trigo farinha. Como um m anto.”
Parece, até mesmo, fazer-se uma contamina­
ção entre a colheita do trigo e a arranca das Convidada a especificar sua primeira de­
batatas. Assim, as imagens relativas ao seu finição do sol, que era, ao mesmo tempo, de
uso, às operações que ele exige, são como substância e de lugar - fogo e céu - a criança
flutuantes, sem ligação determinada entre si, transforma-a em outros objetos sem propor­
e sujeitas a se deixarem captar ou adulterar ção com ele. Embora grande como a Terra,
por uma analogia qualquer. Por falta de se depois como o céu, o sol seria um fogo que se
ordenarem no tempo, elas deixam confusa e alimenta de madeira recolhida em bosques.
um pouco incoerente a imagem do próprio É, além disso, através de uma forma que a
trigo, onde elas deveriam integrar-se todas criança responde à pergunta sobre suas
juntas. O objeto ainda não existe em si; ele dimensões, como se uma implicasse a outra.
permanece distribuído em fórmulas, que Grandeza e forma assim confundidas pare­
existem aos pares, que o ligam a qualquer cem fundir-se em um único objeto concreto e
circunstância particular: trigo moído, trigo particular, em vez de serem variáveis servin­
em sacos, trigo na terra, trigo pão. Mas a idade do para classificar todos os objetos possíveis
em que a criança sabe apenas reunir os traços entre si. Noções independentes de cada ob­
do objeto entre si, como eles se oferecem à jeto, mas eventualmente abertas a todos; poder
sua imaginação, em que ela apenas os justa­ de transcrever as realidades materiais e
põe, sem chegar a ordená-los segundo rela­ efetivamente percebidas ou imaginadas em
ções estáveis e que respondam às condições algo que as ultrapassa, cada uma delas e
do real, às exigência^ do pensamento siste­ todas, como o campo ideal onde poderia se
mático, tom a incerta até a simples descrição distribuir toda existência efetiva ou possível;
narrativa, que poderia parecer pura questão em suma, ainda fazendo falta, à criança, a
A DEFINIÇÃO 283

capacidade de apreender o ser como poten­ Aqui, a conseqüência subjetiva, “molha­


cial, ela é limitada à representação de objetos do”, acrescenta-se ainda ao par de sinôni­
particulares, e cada objeto pode apenas se mos: chuva-dia feio, mas apenas como se­
dispersar em imagens dissociadas que res­ gunda resposta. Formalmente, ela se separa
pondem a seus diferentes traços e relações. deles, mas estava neles implicada.
A enumeração, ao contrário, que detalha
IDENTIFICAÇÃO o objeto e deve, de algum modo, exteriorizá-
DE DESCRIÇÃO DO OBJETO lo, parece combinar-se menos a impressões
íntimas do que a conhecimentos recebidos
O esforço de definição na criança é dis­ de outrem.
putado entre a aproximação do objeto com
outras realidades ou noções suscetíveis de M...in R 7: “O que é a tempestade? - A
exprimir-lhe as propriedades, e a conserva­ tempestade... a tempestade, é a chuva que
ção de sua identidade. Antagonismo que opõe cai. - E é tudo? - Não. - Então? - Raios e
a tendência às representações concretas ou tam bém o relâmpago. - O que que são os
práticas e a necessidade de continuidade raios? - São duas bolas de fogo que se encon­
lógica. Formar-se uma imagem das coisas é tram. - De onde elas vêm? - Do fogo. - De onde
percorrer-lhes todos os traços à medida que vem esse fogo? - Ele vem ... não sei. - E o
são perceptíveis ou que se evoquem no es­ relâmpago? - Éfogo que cai. - É a mesma coisa
pírito. Tal descrição é uma simples enume­ que os raios? - Quase, m as não igualzinho.
ração, no período em que a criança não sabe Ele cai sempre em cim a das coisas que são
ultrapassar o registro das coexistências ou m ais pontudas e m ais altas.”
das sucessões. Formar-se a realidade do ob­
jeto é reduzi-lo a si mesmo. Tal identificação A simples identificação é encontrada,
é uma simples tautología, no período em que aqui, nas bolas de fogo que vêm do fogo.
as impressões não se ordenam em séries Senão, são os traços próprios da tempesta­
independentes dos próprios objetos, mas de que se acrescentam entre si, sem que a
neles permanecem, a cada vez, como inclu­ criança saiba indicar-lhes as relações. Para
sas e nele misturam o próprio sujeito através diferenciar raios e relâmpagos, que ela não se
de sua sensibilidade. Eis aí uma dupla con­ decide a assimilar, ela deve recorrer a uma
seqüência do período sincrético. É ora a noção aprendida: o relâmpago é atraído pelas
necessidade de imagens, ora a de realidade pontas.
que prevalece, mas há casos mistos. É essa dupla tendência, quer à iden­
tificação do objeto, com preponderância das
C...ni 6; 1/2 “Você já viu montanhas? - Já. necessidades ou fatores subjetivos, quer ao
- Onde? - Na Itália. - As montanhas são desenvolvimento de sua representação, com
bonitas? - São. - Como elas são? - Como intervenção mais ampla de imagens ou de
encostas.” noções vindas do exterior, que vai controlar
a evolução da definição na criança, através de
Encosta é, evidentemente, um simples fases alternadas e, provavelmente também,
sinônimo de montanha, uma espécie de com preponderância variável de um ou de
tautología, mas sob a forma cinestésica do outro fator, conforme os indivíduos. Nos dois
declive a subir. A impressão sensível acres­ casos, aliás, a forma pode ser simples ou
centa -se, portanto, à simples identificação complexa.
nominal. A definição pela substância ou por ou­
K...vé 6; “Como é que chove? - Porque o tros objetos pode corresponder mais quer ao
d ia fica feio. - O que é a chuva? - Ê molhado." tipo de descrição, quer ao de identificação.
284 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

M. ..nez 6; “O que é a chuva? - É água.Quando


- a gente diz que tem vento? - A s ár­
Como é água da chuva? - Não sei. - A água da vores se mexem. - Como é que as árvores se
bacia e a água da chuva são a mesma coisa? - mexem? - Porque o vento bate nas folhas. -
São.” Como o vento pode bater nas folhas? - Não
sei. - Mas o que é o vento? - Não lembro mais.
O caso é ambíguo. Essa afirmação de - Você nunca sentiu avento? - É algum a coisa
semelhança completa entre a água que cai que fa z mexer. - De onde vem o vento? - Não
em forma de chuva e a que é despejada na sei.”
bacia é simples passagem de objeto a objeto,
com omissão das diferenças deles, ou já seria Aqui, ainda, os efeitos externos, visuais,
ultrapassagem das impressões subjetivas pa­ precedem e a criança parece mal poder ultra­
ra reconhecer, por trás das diferenças de passá-los. Contudo, a expressão desprovida
aspecto e de uso, algo de verdadeiramente de objeto “alguma coisa que faz mexer” aca­
homogêneo e idêntico? ba, também, por implicar a ação como tal, a
qual não pode formular-se no espírito sem a
N. ..ier 9; “O que é que faz a água (dointuição, de base subjetiva, de um esforço.
Sena) se mexer? -É o vento. - Então você sabe Ela é o intermediário necessário entre a apa­
o que que é o vento? - E lefaz poeira. - Então, rência múltipla, diversa, sucessiva, dispersa
o que é o vento? - Não sei. - O que a gente das coisas e a identidade íntima que pode
sente quando tem vento?... Como a gente reunir e unificar os aspectos, as partes, as
sabe que tem vento?... Quando tem vento, variações delas. Ela coloca, sob as aparên­
como você percebe isso?... Quando você sai cias, a força que transforma, a substância que
e tem vento, o que você sente? - Tem poeira. sofre as transformações, e supõe, desse modo,
- Como ele faz poeira? - Porque ele empura a o permanente. A definição da criança pode,
poeira. - Como ele pode empurrar a poeira? - também, começar pelo enunciado dessa for­
Porque o vento é forte. - Como a gente sabe ça ou dessa substância.
que ele é forte? - Porque ele leva você. - Como
ele faz? - Ele empurra você. - Como? - Ele G...ry 6; 1/2 “O que é o vento? - É a r . - O
segura a gente.” ar, o que é? - Algum a coisa que sopra. - Como
ele pode soprar? - Não sei. - A gente pode ver
Apesar de insistentes perguntas, essa o vento? - Não. - Como a gente sabe que tem
criança só sabe, inícialmente, definir o vento vento? - Por um cata-vento. - O que faz o
pelo movimento da água e da poeira, efeitos cata-vento? - Elegirá com o vento. - Como o
externos. É apenas por intermédio de uma vento pode fazê-lo girar? - Soprando em cima.
assonância “empurrar poeira”. ( ) e do que - Como o vento pode soprar? - Não sei. - O
esse efeito supõe de força, noção sempre im­ vento sopra forte? - Sopra. - O que mais ele
pregnada de subjetividade na criança, que pode fazer soprando? - Ele pode fa z e r as fo ­
ela acaba, por fim, a afirmar a impressão ci- lhas caírem. - E o que mais? - Os galhos das
nestésica de impulso ou de resistência expe­ árvores, fa z e r os papéis voarem. - O vento é
rimentada no vento. Aqui, a ação sobre os muito forte? - É. - Diga-me outras coisas muito
objetos e a impressão experimentada sobre si fortes. - A tempestade. - O que é a tempestade?
mesmo se justapõem, com prioridade para a - É... no mar. - O que é a tempestade no mar?
imagem das coisas. - É o vento que sopra m uito forte.”

I...as 6; 1/2 “O que que é o vento?... Não apenas essa criança começa sua
definição pela substância e pela ação do
( ) N.T.: em francês, "pousser poussière”. vento, mas quando deve passar a efeitos
A DEFINIÇÃO 285

visíveis, é, inicialmente, no cata-vento, artifício Ch. ..ier “O que que é um fogo de artifício?
instrumental para colocá-lo em evidência, - Os homens colocam um grande pedaço de
que ela pensa. Ela só passa às suas mani­ madeira, um pedaço de papelão, um fósforo.
festações naturais pressionada por novas Ele anda rápido. Estala m uito.”
perguntas. Provavelmente, afirmando que o
vento ésubstância e ação, ela nada acrescenta Instrumentos e ação implicam-se, aqui,
ao seu conhecimento, mas, através disso, dá- um no outro.
lhe uma espécie de consistência. É assim que
as coisas recebem a identidade delas e que o W...er 7; “O que são os repolhos? - A
real pode ser nomeado. gente põe sementes. A gente nãopode colocar
as sementes antes; a gente precisa cavoucar
D...et 6; “O mar se mexe? - Mexe. - Como antes a terra. No dia seguinte, a gente rega.
ele se mexe? - Com as ondas, e tam bém ele - Como a gente rega? - Para que ele cresça. -
tem um a corrente. - Como é uma corrente? - Com o que a gente rega? - Com o regador e a
Porque ele anda depressa.- Ele anda depressa gente coloca água. - De onde vem a água do
em todo lugar? - Anda. - Como a gente sabe regador? - Da bomba e também, depois, a
que tem uma corrente? - A gente vê que a gente lava a louça."
água se mexe. - As ondas são corrente? - Não.
- Por quê? - Éágua. - E a corrente? - Éágua que A ação domina, aqui, nas representa­
corre. - Como é que têm ondas no mar?... ções da criança. Mas é, por sua vez, fonte
Sempre têm ondas? - Ah, não!Às vezes, o m ar de dispersão e de digressão. Ela permane­
fic a calmo. - Por que têm dias que ele fica ce ligada a evocações puramente pessoais.
calmo e dias que ele tem ondas? - Porque tem À rega vêm acrescentar-se os outros cos­
tempestade. - O que faz a tempestade? - Porque tumes domésticos. O pensamento da criança
é um a tempestade. - O que que é uma tem­ é, desse modo, ameaçado de dispersão, ao
pestade? - Porque tinha ondas grandes até o mesmo tempo, pelas analogias ou as rela­
meio do mar, barcos que balançavam que ções entre objetos e pelas divagações da
entravam no porto." ação, que pode muito bem agrupar, reunir
as mudanças de aspecto de que ela é a cau­
A criança começa, aqui, por dois efeitos sa, e que faz circular o idêntico sob o di­
diferentes da água em movimento, as ondas verso, mas que pode também deixar-se
e a corrente, que são aspectos visíveis do mar. dominar pela seqüência subjetiva da ro­
Ela lhes reconhece a intermitência, o que a tina, das práticas familiares. As substitui­
obriga, evidentemente, a imaginar, por trás ções de objeto a objeto pela ação e das ações
deles, a água, alternadamente agitada e entre si por reminiscência de aconteci­
tranqüila. Contudo, é na direção da descrição mentos habituais são muito freqüentes na
objetiva que a criança é, sobretudo, levada, criança.
como ela o mostra falando da tempestade.
W...er 7; “A gente tem vinho, ele é feito
ATIVISMO SUBJETIVO com cerejas. - Como? A gente faz vinho com
E ORDEM OBJETIVA DAS COISAS cerejas? - Não sei. - O que é o vinho? - Épara
beber. Ê pum,- quando a gente põe água
Uma descrição onde se associam, na­ dentm ele não é p u m . - Você bebe vinho? -
turalmente, os detalhes objetivos e a ação Ah!Nãopum . Às vezes, eu bebo tisana quando
subjacente é a do modo operatório. Ela eu estou resfriado. Depois a gente compra
também é de um emprego muito freqüente linha para costurar, a lã para tricotar e um
na criança. cachimbo para fu m a r.”
286 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

O tema bebida cede lugar, repentina­ segunda causalidade que interviria a título
mente, ao tema compra, e as compras são, corretivo, quando os fatos são contrários ao
objetivamente, das mais disparatadas. Essa efeito presumido da ação ou da engenho-
incoerência corresponde ao nivel onde, sidade humanas.
exclusivo demais, o sentimento da ação, quer
pessoal, quer estranha, mas vivida em W...er 7; “A madeira nada? - Ah, nada!
participação com o meio, como é freqüente Q uando a gente fa z um barco. - Uma pedra
na criança, substitui a ordem das realidades nada?-Ah, não!Ша afunda. Às vezes, quando
presentemente em causa. agente joga um bom pedaço, ele batee depois
volta. - Onde ele volta? - Em cim a do Sena. -
A. A...dre 6; interrogada sobre o mo­ Uma pedra é pesada? - Ah, não! Têm um as
vimento do Sena, que atribui aos barcos e grandes que são pesadas. Elas não nadam . -
sobre o sentido em que ele corre: “Não, às E as pedrinhas, elas nadam? - Nadam. - As
vezes, ele vaip o r ali. Não passa m uitos barcos pedrinhas nadam? - Nadam, nem sempre.
p o r ali. De domingo, passam . Q uando é Têm um as pequenas que são um pouquinho
domingo, agente vai olhá-lho. Q uando não pesadas."
é domingo, agente não vai. Q uando meu p a i
está de férias, a gente vai passear. De noite, Aqui, ainda, há justaposição entre duas
quando ele chega, a gente sempre precisa ir causalidades. É a ação humana q u e toma a
passear” madeira flutuante sob forma de barcos, que
faz as pedrinhas voltarem do fundo do rio.
A criança tem sempre tendência a in­ Mas a observação desmente as conseqüências
corporar a ação que deveria imaginar nas da explicação. Entre as duas, institui-se um
coisas na sua ação, provavelmente como na conflito. A pedra vai até o fundo da água, fato
origem intuitiva por onde sua atividade práti­ de observação. A ação do homem a faz subir
ca a mistura, inicialmente, âs coisas. Quando novamente à superfície, fato contrário à
se dá a separação entre ela e as coisas, não observação, mas que deve explicar-se pela
apenas sua atividade é, inicialmente, o modelo necessidade de reduzir os fatos de experiên­
das outras, mas tem tendência quer a assimilá- cia a algo de idéntico. Persistindo, desse modo,
las, quer a substituí-las. Essa distribuição a contradição entre a realidade e o que deve­
permanece, na verdade, por muito tempo ria resultar do princípio invocado, é nesse
ambígua nas respostas da criança. momento que a criança faz intervir uma
segunda causalidade, o peso. Mas, confun­
R. G...el 7; “O barco afunda? - Não. - A dindo-o com o volume, ela não ousa fazer
pedra funda? - A funda. - Por quê? - Porque a dele aplicação nas pedrinhas, e ele perma
gente joga. - Um pedaço de madeira afunda? nece, por conseqüência, em oposição com
- A funda. - Quando você joga madeira, uma fatos familiares, de modo que deve, final­
vara, ela afunda? - Não. - Por quê? - Porque ela mente, recorrer a uma dessas convenções
não épesada. - E os barcos, por que eles não que está acostumada a usar: “pedrinhas que
afundam? - Porque eles estão amarrados.” são um pouquinho pesadas”. Seu esforço de
explicação não chega, desse modo, nem a
Quando o objeto afunda como a pedra, uma definição, nem mesmo a duas definições
ou flutua como os barcos, é a ação de jogar ou suscetíveis de se suprirem conforme os casos,
de manter amarrados que a criança ainda está mas ao contingente e ao individual: o que
tentada a atribuir esses dois efeitos contrários, é grande é pesado, mas o que é ¡jeque-
embora já saiba invocar a leveza da madeira, no também pode ser um pouco pesado;
mas com que a título excepcional, como uma as pedrinhas devem flutuar, mas existem
A DEFINIÇÃO 287

algumas que vão para o fundo. О conflito en­ - Um carro anda? - A nda. - Como ele anda? -
tre suas explicações espontâneas pela ação Porque têm pessoas que o fa zem andar. - Ele
do homem e a explicação física, que exigiria anda sozinho? - Não. - Ele está vivo? - Não. -
definições estritas, é acompanhado por um Como é que você sabe que as pessoas estão
conflito ainda mais fundamental, entre a vivas? - Porque elas andam . - Os olhos estão
experiência e suas tentativas de explicação. vivos? - Não. - Por que eles não estão vivos? -
Porque eles não andam . - Sua língua está
V...er 7; 1/2 “O Sena se mexe? - Não. - viva? - Não. - Por quê? - Porque ela não anda.
Você nunca viu nada no Sena que se mexesse? - E seus braços? - Não. - Por quê? - Porque eles
- Primeiro, eu vi a corrente: aliás, ela vai não andam , e tam bém eles não têm pernas.
inclinada. - Então, ele se mexe? - Mexe. - - Suas pernas estão vivas? - Não... quando a
Você já viu a inclinação? - Não. - Como você gente anda elas fica m vivas. - E os bichos,
sabe? - A professora m e falou. - O que é que como eles estão vivos? - Porque eles andam .
se mexe no Sena? - Só tem a água que mexe. - Você já andou de carro? - Já. - Quando você
- E, então, o Sena fica no mesmo lugar?- Fica.” está no carro, você anda? - Não. - Você está
vivo quando você está no carro? - Não. - Você
O deslizar do rio, que é uma noção en si não está vivo quando você está no carro? -
nada à criança, obriga-a a distinguir entre as Não. - Quando você está na sua cama, você
margens e a água do rio, para distribuir- anda? - Não. - Você está vivo quando você
lhes, respectivamente, a imobilidade e o mo­ está na sua cama? - Não. - Então nós dois não
vimento. Eis aí um verdadeiro progresso, estamos andando, já que estamos sentados? -
pois, habitualmente, uma de suas maiores Não. - Nós estamos vivos?... Seus colegas que
dificuldades, face a noções que devem servir- estão brincando no pátio, eles andam? -
lhe para identificar ou para definir as coisas, Andam . - O que quer dizer “a gente está
é aprender a não aplicá-las globalmente, ou morto”? - Que a gente não se mexe mais. -
seja, em contradição com a inter-estrutura de Quando você está na sua cama, você se
suas partes ou com a sucessão de suas mexe? - Não. - Você está morto quando você
mudanças. É uma das causas que fazem está deitado? - Não. - Você está vivo? - Não.”
alternar, com os efeitos freqüentemente
absurdos da dedução, os da observação, de A assimilação, obstinadamente mantida,
que cada aspecto novo exige uma definição da vida e do andar leva a criança a limitar
nova. progressivamente o universo da vida. Ela
exclui dele, salvo as pernas, todas as partes
DEDUÇÃO E OBSERVAÇÃO do corpo e, em particular, os braços, “porque
eles não têm pernas”, depois os m om entos,
A dedução responde à necessidade de não realmente de imobilidade, mas nos quais
reunião e de identificação, de que a ação pes­ o sujeito fica sentado ou deitado. Com uma
soal é o modelo. A observação leva à diver­ espécie de lógica mecânica, ela chega a admi­
sificação e à dispersão. Uma tende à unifica­ tir a existência de um estado que não seria
ção subjetiva, a outra a captar a diversidade nem a vida, nem a morte: provavelmente, a
das coisas. Mas, indo em sentido inverso e em contradição se tornaria forte demais se se
conflito constante, cada uma delas falha sem considerasse como morto tudo o q u e não está
o concurso da outra. andando. Mas a resistência do real à essa
conclusão leva apenas a uma dessas con­
C...ard 6; 1/2 “O Sena está vivo? Como ele venções tão freqüentes na criança, a uma
está vivo? - P orque ele anda. - E as pessoas, simples neutralização. A intrepidez que ela
como elas estão vivas? - Elas também andam . emprega aqui para manter fora da vida o que
288 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

não anda traduz sua necessidade de coerên­ viva? - Não, porque nem sempre tem água.
cia, não com as coisas, mas consigo mesma, Q uando a gente gira, ela abre, a água corre;
seu desejo de reduzir, através de suas afir­ m as quando a gente gira de novo, ela não
mações, as realidades exteriores a seus temas corre mais. - Se a gente deixasse a torneira
intelectuais. Seguramente, essa tendência sempre aberta, ela estaria viva? - Estaria... ia
confunde-se, aqui, mais ou menos, com sua inundar a casa também. - Mas a torneira
tendência a reproduzir em série os mesmos estaria viva? - Estaria. - E a água que corre da
gestos psíquicos, em outras palavras, por torneira, ela está viva? - Está, porque ela está
suas tendências de persistência. Ela também semprefresca. - A água que eu pego na bacia
é favorecida pela incapacidade da criança está viva? - Q uando a gente joga, não; quando
para comparar, para conservar simulta­ ela está na bacia, sim. - Por que ela está viva
neamente, no campo de sua atenção, duas na bacia e não está mais quando a gente a
imagens, duas noções tais como a dos seres joga? - Q uando ela está na bacia, ela está
com vida e a dos seres que andam. Enquan­ viva. Depois, tem sabão, ela fic a ruim, não
to prevalece a dos seres que andam, ela está m ais viva. - A água da bacia começa viva?
anexa totalmente a si a outra e elimina-lhe - Д e depois ela ê envenenada p o r sabão. - A
tudo o que não é ela. Para evitar essa confusão, água da garrafa está viva? - Está. - Quando eu
seria necessário, para a criança, o poder de a despejo no meu copo, ela está viva? - Está.
representar, distintamente, os traços dife­ - E a água do meu copo, quando eu a bebo,
renciais da vida, quaisquer que sejam as ela está viva? - Não. - Por quê? - Porque ela está
diversas associações dos mesmos. Pelo con­ na sua barriga. - E por que ela não está viva
trário, ela as resolveu totalmente em certas na minha barriga? - Não s e i”
manifestações muito particulares e muito
momentâneas da vida. A significação da palavra “vivo” parece,
certamente, aqui, bem confusa e esclarece-
Inversamente a uma tal redução, sis­ nos sobre as imagens variáveis e inesperadas
temática, a despeito de suas conseqüências que as conversas dos adultos podem desper­
absurdas, observa-se também uma varia­ tar no espírito da criança. Ela parece modifi­
bilidade que traz, com cada novo objeto, uma car-se de objeto em objeto e diminuir pro­
nova razão, fornecida por um elemento qual­ gressivamente: a oposição espontânea dos
quer dele. rios, que “só têm água”, às pessoas que
comem mostra-o bem.
L...ard 7; 1/2 “Estar vivo e morto não é a
mesma coisa? - Não. - Qual é a diferença? - CONTRASTES VARIÁVEIS
Q uando a gente está vivo, a gente pode COM O OBJETO
andar. Q uando está morto, agente não pode
andar. - É só? - É.-E um bebê que não pode Se a vida não tem índice único, mas
andar? - Ele está vivo. - Por quê? - Ele come. - apenas contingentes e individuais, isso ocor­
Quando a gente não come, a gente está morto? re porque ela não é verdadeiramente algo de
- Às vezes. - Os rios comem? - Não. - Eles estão comum a todos os seres vivos, mas muito
vivos? - Estão. - Por quê? - Porque tem água. mais porque, em cada ser, ela parece ter um
- Quando tem água em algum lugar, está vivo? contrário, que realiza com ela uma estrutura
- Está, porque os rios têm só isso. As pessoas de contraste ainda muito elementar: a água
têm o que comer. - Por que os rios estão vivos? corrente dos rios com a água estagnada, a
- Porque eles têm sempre, sêmpre água. - água fresca da bacia com a água ensaboada,
Então, quando tem sempre água em algum a água pura da garrafa e do copo com a água
lugar, está vivo? - Está. - Uma torneira está deglutida. De sentido ainda vago, a noção de
A DEFINIÇÃO 289

vida, uma vez adotada pela criança, toma-se - Q uando elas duram m uito tempo. - E os
gradativamente mais tênue com os objetos bichos, por quê eles estão vivos? - Q uando
que permite opor entre si. Antes de ter podi­ eles têm o que comer. - E nós, por que estamos
do fixar com precisão seu próprio conteúdo vivos? - Nós comemos. - O que quer dizer
qualitativo e, com razões mais fortes, de po “estar vivo”? - Q uer dizer que a gente está em
der manter o menor papel conceituai, ela cima da vida. - O que é a vida? - Q uando a
exprime uma simples relação, como no plano gente tem boa saúde. - Quando a gente não
perceptivo, a do mais e do menos iluminado, tem boa saúde, a gente não está vivo? - Ê. - E
onde cada um dos dois termos não tem valor quando a gente não está vivo, o que é que a
intrínseco, mas existe apenas complemen- gente está? - Morto. - O que quer dizer “morto”?
tarmente com o outro, quaisquer que sejam - Que a gente não está m ais em cim a da terra.
as mudanças reais da intensidade luminosa -Então, onde a gente está?-D ebaixoda terra.
deles. Isso também ocorre com o contraste - As plantas que estão mortas, onde elas
vivo e não vivo, transponível entre pares estão? - A gente joga na lata de lixo. - E as
sucessivos de objetos, qualquer que seja a borboletas que estão mortas, onde estão? -
nuança própria da diferença deles. Pro­ Elas não voam mais. - Mas onde elas estão? -
vavelmente, há muito bem, entre essas Se elas estavam sobre asflores, elasficam lá,
diversas nuanças, o sentimento de uma certa - E as folhas que estão mortas, onde elas
afinidade, como entre uma seqüência variá­ estão? - Elas caíram da árvore. - Onde elas
vel de iluminações, senão a transferência ficam depois? - Debaixo da terra.”
entre pares seria impossível. Mas, como meio
de comparação, a qualidade ou a noção são Aqui, ainda, há oposições que variam
vistas apenas através dessas relações, de iní­ com cada objeto: flores murehas ou colhi­
cio qualitativamente bem indeterminadas. Eis das, má saúde ou morte, colocação ou de­
aí um tipo de discriminação que precede a saparecimento sob a terra contrastam com a
definição, ou seja, o poder de classificar os vida. Provavelmente, manifesta-se alguma
objetos de outro modo que opondo-os dois a veleidade de encontrar um índice comum.
dois, e de descobrir suas semelhanças, muito Desse modo, a vida, inicialmente negada
mais que um simples contraste. ao sol, é-lhe,em seguida, reconhecida, por­
que ele se move como as pessoas e os ani­
Р...СО 9; “Você sabe o que quer dizer mais. Comer pertence, ao mesmo tempo, ao
“estar vivo”? - Que a gente vive. - Diga-me o homem e aos bichos. Mas essas definições
que está vivo. - A gente. - E o que mais? - As não podem convir às plantas, de modo que a
plantas. - E o que mais? - Os anim ais. - O sol criança encontra-se levada à necessidade de
está vivo? - Não. - A Terra está viva? - Não. - E procurar, a cada vez, suas razões em um caso
o Sena? - Está. - Por quê? - Ele se mexe. - O sol particular. Na verdade, aliás, sua necessi­
não se mexe? - Mexe. - Ele está vivo? - Está. - dade e seu poder de fazer coincidir, com
As plantas se mexem? - Não. - Elas estão vivas? todas as coisas que têm um caráter comum, a
- Estão. - Por que elas estão vivas, se elas não definição desse caráter, quase não anteci­
se mexem? - Porque elas não estão murehas. pam um sobre o outro. Tanto um quanto
- Por que elas estão vivas quando não estão outro são incompatíveis com sua maneira de
murehas? - Q uando a gente arranca. - Por raciocinar por simples oposição entre dois
que, quando a gente as arranca, elas não termos.
estão mais vivas?... E então? - Elas não ficam
quietas na água. - Como a gente sabe quando G...ry 6; 1/2 “Por que não é preciso regar
as plantas estão vivas? - Q uando elas não quando chove? - Porque tem água que cai...
estão murehas. - Por que as plantas murcham? - Como pode ter água lá em cima? - Porque,
290 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

quando não chove, tem água que sobe... - De L...ard 7;l/2 “O que mais existe de vivo,
onde ela sobe? - De debaixo da terra.” fora os animais e as plantas? - Ás fru ta s e
tam bém as pessoas. - Por que as frutas estão
Essa alternância de efeitos inversos res­ vivas? - Porque elas estão sempre atrás da
ponde bem, aqui, ao ciclo natural, mas o que árvore. - Elas estão vivas quando estão atrás
parece motivá-la de modo imediato é um da árvore? -É.-E quando elas não estão mais?
mecanismo mental de contraste, como a indica - Elas ainda fic a m vivas, elasficam estraga­
a expressão “de debaixo da terra”, que se das também. - E quando a gente as come, elas
opõe a “subir” e a “lá em cima” muito mais do ainda ficam vivas? - Não. - Por quê? - Elas
que traduz, com exatidão, as fontes de fica m comidas. - As suas unhas estão vivas? -
evaporação. Não. - E os seus dentes? - Não. - E a sua língua?
O contraste pode ser o de dois objetos. - Está. - Por quê? - Porque ela fa la . - E os seus
olhos? - Estão. - Por quê? - Porque eles estão
Р...СО 9; “As flores pensam? - Não. - E as abertos. - E quando eles estão fechados? - Eles
borboletas? - Pensam. - Por quê? - Porque elas ainda estão vivos. - Por quê? - Não sei. - Então?
querem irem cim a de um a flor. - E as moscas? - Porque depois eles se abrem de novo. - Mas
- Pensam. - Por quê? - Q uando elas querem ir e quando eles estão fechados? - Eles ainda
em cim a da gente. ..-Eos cabelos? - Não. - Por estão vivos. Se eles nunca m ais se abrissem de
quê? - Porque eles não têm cabeça.” novo, eles não estariam m ais vivos. - Os seus
dentes estão vivos? - Estão. - Os que foram
Todo o conteúdo de suas respostas limi­ arrancados ainda estão vivos? - Não. - E os da
ta-se a uma oposição de termos: borboleta a sua boca? - Estão, porque eles têm raízes. - E
flor, cabelo a cabeça. Entre os objetos assim as suas orelhas? - Estão, porque elas estão
confrontados, a relação pode ser apenas a penduradas atrás da m inha cabeça. - E os
contigüidade deles, quer na conversa - flor e brincos, eles estão vivos? - Não. - Por quê? -
borboleta -, quer na representação - cabeça Porque eles são de pedra ou de outra coisa. -
cabelo. O contraste não tem necessidade de E os cabelos? - Estão. - Por quê? - Porque eles
ser dado nas coisas; ele é nelas colocado, pe­ estão sempre atrás da m inha cabeça. - Tuodo
la criança, sob uma forma qualquer, para tra­ o que está atrás da sua cabeça está vivo?- Está.
duzir um simples sentimento de incom­ - Seu chapéu também? - Também. - Por quê?
patibilidade e, através disso, recusar atribuir- - (A criança esboça um gesto de dúvida). -
lhes qualquer propriedade comum, em par­ Você tem certeza que ele está vivo? - Tenho.
ticular aquela da qual se trata. É uma maneira - Quando ele estava na loja, ele estava vivo? -
global e vaga de raciocinar. Se as borboletas Estava. - Como se faz um chapéu? - Não sei. -
querem ir sobre as flores, seu papel respectivo Com o quê? - De pano. - O pano está vivo? -
implica diferenças que se estendem a seu ser Está. - Com o que ele é feito? - Comfio . - O fio
total: se umas pensam, as outras não o podem está vivo? - Está. - Por quê? - Não sei. - Então?
fazer e vice-versa. Se a cabeça pensa, os - Não sei. Está vivo, porque a gente fa z algu­
cabelos, que não têm cabeça, visto que estão m a coisa com ele. - As pedras estão vivas? -
implantados na cabeça, são incapazes de Estão. - Por quê? - Porque a gente constrói
pensar. A fórmula do raciocínio é uma sim­ casas. - E as casas estão vivas? - Porque a
ples alternativa, aliás muito elíptica, qualquer gente mora nelas.”
que seja a intuição empírica ou afetiva que ela Sucessivamente, essa criança fornece
possa levantar na sensibilidade da criança. motivos de vida que variam conforme os
A uma certa fase, há fluxo e refluxo da objetos e, por vezes também, para o mesmo
lógica e das imagens, da assimilação e do objeto. As frutas estão vivas porque elas
singular. pendem da árvore, assim como o estão as
A DEFINIÇÃO 291

orelhas, que estão “atrás da cabeça”:, ou o repentinamente, de transformar-se ou, pelo


chapéu, que está em cima: participação na menos, de ampliar-se. Enquanto os brincos
vida por “pertencer” a um ser vivo? Mas as eram excluídas da vida porque são de pedra,
frutas ainda estão vivas quando são colhidas as pedras são a eia integradas, porque servem
e enquanto não são comidas, e os dentes, para construir casas que servem para a habi­
enquanto têm raízes: a integridade morfoló- tação. Eis aí um retorno à fase em que a
gica? A língua está viva porque fala e os olhos criança confu de ativo e passivo, atribuindo, à
porque estão abertos: atividade funcional? A própria matéria, as qualidades necessárias
criança sabe até mesmo distinguir entre o para utilizá-la ou para dar-lhe forma.
fechamento intermitente dos olhos e o que Essa seqüência de contradições é teste­
seria definitivo, ou seja, entre o fato bruto e a munha do fato de ser a criança, sucessiva­
realidade da qual ele é o índice. Mas ela se mente, disputada pela intuição direta que ela
contradiz. Aos dentes, assim como às unhas, tem de cada coisa ou de cada caso e pelas
ela começara por negar-lhes a vida. É após tê- razões que seu pensamento pode dar-se para
la reconhecido na língua e nos olhos, em reuni-las, para mover-se entre elas, como é
razão da atividade dos mesmos, que ela a sua função. As duas tendências se alternam e,
reconhece nos dentes enquanto estão na boca. frequentemente, encobrem-se uma à outra.
A justificação para eles também podia ser seu Nesse conflito, alteram-se mutuamente. O
uso, sua atividade, visto que mastigam. Mas é objeto parece, por vezes, como que amputa­
a integridade material deles e, talvez, o fato do das propriedades que não se conciliam
de pertencerem ao corpo vivo que a criança com o tema em ação; as é sobretudo o tema
invoca, enquanto que sua mudança de dire­ que se transforma. Ela ainda não está
ção parece bem determinada pela assimila­ suficientem ente afastado das coisas, para
ção, que ela faz disso, às outras partes do servir para classificar as semelhanças ou as
corpo, que acaba de admitir que estão vivas: diferenças delas, se deixar-se modificar por
extensão de uma mesma propriedade às partes elas.
de um mesmo conjunto. O motivo que ela Pode acontecer que o mesmo motivo
exprime não é, portanto, aquele que, incons­ seja, simultaneamente, fornecido para jus­
cientemente, deve inspirá-la. Enquanto, na tificar dois efeitos contrários, pois a passa­
realidade, o que voga é a assimilação lógica, gem de um objeto a outro impregna-о sin­
é a própria imagem do objeto que fornece a créticamente com as imagens próprias a cada
justificação. Outra contradição: os brincos, uma.
embora presos ao rosto como as orelhas, não
estão vivos, porque são de matéria inerte, D...net 6; “O que quer dizer “estar vivo”?
mas os chapéus o estão, porque se relacio­ - Porque а gente cresce, а gente está vivo. -
nam com a cabeça, assim como os cabelos, e Você está vivo? - Estou. - E eu? - Está. - E esta
já o estão na chapelaria, porque são feitos senhora?- Está. - Uma borboleta?- Está. - Uma
com uma matéria que serve para algo: a flor? - Não, um a flo r não é um homem, um a
assimilação dá-se de objeto a objeto, por florcresce. -O q u e cresce não está vivo? - Não.
vínculos quaisquer de analogia, e o motivo - O que quer dizer vivo? - Porque a gente
justificador muda conforme os casos. Acon­ cresceu em algum a coisa. - Uma flor está viva
tece, desse m odo, que o mesmo motivo tenha ou não? - Não. - Ela cresceu em alguma coisa?
uma significação oposta para dois objetos - Ela cresceu na terra. Mas não é um homem
diferentes e que os motivos difiram para o também."
mesmo objeto. Mas uma inconseqüência
ainda mas grave pode produzir-se: a signifi­ “Crescer" é dado como uma definição da
cação do traço a ser definido corre o risco, vida mas, ao mesmo tempo, como motivo
292 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

para negá-la às plantas. Seu sentido ou suas tinamente, uma forte carga afetiva, e as im­
conseqüêncas parecem variar com a repre­ pressões que deve evocar são pessoais d e ­
sentação completa e global de cada coisa. mais, provavelmente secretas demais e par­
Ainda misturado a cada uma, ele não pode ser ticulares demais para que a criança possa
isolado das diferenças delas para tomar-se, imaginar impressões semelhantes em outrém.
entre elas, um meio de estrita comparação ou Ela também nega o pensamento ao seu
de medida. interlocutor, ao seu professor, ao seu diretor,
Esses conflitos, tão necessários à criança embora o tenha, precedentemente, atribuído
çara realizar o ajustamento de suas impres­ às aranhas, aos cachorros e à lua. Mas ela já
sões ou de suas experiências com as palavras caíra em contradição a propósito dos animais
ou as noções que devem fazê-la sair do ou dos astros. O pensamento pertence às
simplesmente vivido e do particular, é ora o aranhas porque picam, aos cachorros porque
tema a ser definido que se flexiona, sobretu­ latem, sendo, provavelmente, sinônimo de
do quando se trata de uma noção ainda pouco uma certa atividade. Mas não existe nas
familiar e obscura, ora o traço que sustenta a moscas, “que saem dos banheiros”, nem nos
definição. cavalos. Inconseqüência ainda mais grave,
ele é atribuído à lua como estando “com o
L...er 6; “O que é que pensa? - A lua. - Papai Noel", mas não ao sol, que está “tam­
Como ela pensa? - Ela vem d a fum a ça . - O bém com o Papai Noel”. Para cada uma dessas
que mais pensa? - O P a p a l Noel. - Como ele distinções, a criança mostra-se muito cate­
pensa? - Ele tra z brinquedos. Ele passa pela górica, mas suas razões permanecem mis­
cham iné. - E o que mais? - Os cachorros. - teriosas. As que ela alega valem apenas para
Como eles pensam? - N ão sei. - A s aranhas o caso presente. Mais do que razões, são
pensam? - Não, senhora... Д às vezes, de traços ligados à imagem de cada objeto, dela
noiie, q u e n o s picam . - As mocas pensam? - recebendo a significação momentânea deles
não, senhora. Elas saem dos banheiros. - Os e, por conseqüência, impróprios para tornar-
cavalos pensam? - Não, senhora. - E os ca­ se, entre vários objetos, uma medida comum,
chorros? - Pensam. - Como? os cavalos não um fator que mantém, com relação a todos,
pensam e os cachorros pensam? - Às vezes, seu sentido ou sua eficiência próprios. Se,
tem um cachorro que fic a no nosso jardim . como parece aqui, a criança não responde ao
Eles lateni. - O sol pensa? - Não, senhora. - E acaso, as diferenças que ela faz entre objetos
a lua? - Pensa, sim, sen h ora. - Como? -O sol de mesma categoria só podem ter seu moti­
não pensa e a lua pensa? - A lua está com o vo em impressões nebulosas, onde a subje­
Papai Noel. - E o sol, com quem ele está? - tividade da criança desempenha o papel
Com o P apai Noel também. - E o sol não essencial.
pensa? - Não, senhora. - A lua pensa? - Pensa, Em vez de o próprio tema variar com os
sim, senhora. - Você pensa? - Penso. - Como objetos, ele pode fazer variar os motivos
você pensa? - (Ele enrubesce vivam ente) Na conforme o objeto.
Hortense. - O que você quer dizer? - Não sei.
- Eu penso? - Não, senhora. - E o professor, ele D...et 6; “Uma árvore está viva? - M o. - E
pensa? - Não, senhora. - E o diretor? - Não, um peixe? - Está. - Por quê? - Porque ele tem
senhora.” olhos, tem um a boca. - Uma estátua está viva?
- Não. - Por quê? - Porque é de pedra. - Uma
O sentido da palavra “pensar” muda boneca está viva? - Não. - Ela tem olhos e uma
visivelmente com sua atribuição a persona­ boca? - Ela não fa la , não se mexe. Q uanto a
gens ou a objetos diversos. Relacionando-se gente deixa ela sozinha, ela não m uda.
ao próprio sujeito, ela parece assumir, repen­ Q uando a gente fa z ela andar, ela se mexe.
A DEFINIÇÃO 293

- O sol está vivo? - (Após alguns instantes de capim, mas é capim também. - O que é que
reflexão) Não. - Por quê? - Porque ele não elas comem? - E las bebem, m as não come. -
anda, e tam bém ele não fala, ele não se mexe. Você não tinha me dito que elas comem
- Os peixes estão vivos? Eles não falam? - Eles capim como as vacas? - Não, elas comem o
fa zem "puâ, puá, р и л ". - O vento está vivo? que tem na terra. - Então, elas estão vivas, já
- Não. - Por quê? - Porque não é ninguém . - O que comem? - Não. - O Sena está vivo? - Não,
vento não fala? - Ele fa z vü, ú, ú, assim.” porque ele n ã o com e nada. É á g u a .”

Com cada objeto, a criança deve mudar Sobre a atribuição da vida aos objetos a
de motivo: presença de certos órgãos, subs­ criança não varia. É constantemente aos
tância, ativdade espontânea. Ainda não é mesmos objetos que ela a atribui ou a nega.
uma definição; mas já é uma análise diferen­ Ela também procura dotá-la de atributos fi­
cial, guiada pela comparação de um tema fixo xos. Mas é nesse ponto que lhe é preciso
com uma sucessão de objetos diversos. contar com as contradições, pois os que ela
Contudo, toda tentativa de submeter dois invoca para afirmar que a vida exista en­
objetos a umesmo critério faz com que apa­ contram-se em objetos de onde ela a declara
reçam contradições: ter olhos e uma boca é ausente. Ela é, portanto, levada a retoques e
um sinal de vida para os peixes, não para as a expressões, aos quais está acostumado seu
bonecas; emitir um som o é para os peixes pensamento sem rigor, mas de onde nascem
ainda, mas não para o vento. O atributo outras contradições. Ora ela distingue entre
indicado não é, portanto, nem essencial, nem beber e comer, que havia, inicialmente,
inserido em um conjunto de condições que associado como um critério da vida. Ora ela
lhe especificariam o sentido e o alcance. opõe comer um pouco, ou comer veneno, a
comer como seres vivos. Depois ela faz do
R...ault 8; “Eu estou vivo? - Está. - E você? capim um alimento envenenado para as
- Estou. - Por que a gente está vivo? - Porque plantas e salutar para as vacas; ela assimila as
a gente come e a gente bebe. - as árvores estão flores ao capim, que ela começara consi­
vivas? - Não. - Por quê? - Porque eleas não têm derando como alimento delas. Essas variações
que comer; é m adeira. - As flores estão vivas? mostram bem, provavelmente, que ela já tem
- Não. - Por quê? - Porque elas não têm que o sentimento de uma correlação necessária
comer. Elas têm que beber, m as não têm que entre a vida e os sinais ou condições da vida.
comer. - As flores crescem? - Porque elas Mas, face a cada objeto particular, ela, por
bebem eporque elas têm um pouquinho para enquanto, sabe apenas enunciar os traços
comer. - Então, elas estão vivas? - Não. - É que nele constata, sem reconhecer se são ver­
preciso comer muito para estar vivo? - As dadeiramente um meio de diferenciar o que
flores comem algum a coisa que não ê bom. - está vivo do que não o está. Ela os apreende
O que elas comem? - Capim. - O capim não é como pertencendo ao objeto, mas não como
bom? - É veneno. - As vacas estão vivas? - superior a cada objeto, porque comum a toda
Estão, porque elas comem capim e fazerm uma categoria e ausente das outras. Ela ainda
elas beber num cocho, Elas comem capim e não inscreve o atributo que encontra nas
fe n o ( slevou m uito a voz, como se se dirigisse coisas entre essa dupla determinação, da qual
a um contraditor; mas ê a si mesma que ela Aristóteles mostrou a necessária solidariedade:
contradiz). - O capim é veneno? - É, ele compreensão nitidamente definida, exten­
envenena as pessoas e não os bichos, é bom são rigorosamente controlável. O plano no
para eles. - Então, os bichos estão vivos? - qual se forma a imagem concreta dos objetos
Estão. - As flores que comem capim como as ainda não se desdobrou para originar aquele
vacas estão vivas? - Não, é capim. Elas comem onde os diferentes traços e relações dos
294 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

mesmos podem ser isolados, manter-se, reco- nuação, que, aliás, não é de grau, mas de
nhecer-se em todo lugar onde se encontram. duração. Para as árvores, o pensamento seria
A manutenção de uma definição, quais­ intermitente e, por um efeito freqüente nessa
quer que sejam os objetos encontrados, a idade, o acidental substituindo o essencial, o
extensão a todos aqueles em que se observa particular tornando-se definição, é a intermi-
um certo traço de um outro, que foi declarado tência que se toma o sinal do pensamento : o
o seu concomitante constante, coloca, para a Sena não pensa porque é sempre igual. Mas
criança, dificuldades que podem medir sua do pensamento, reconhecido nas árvores
sutileza de espírito e que são, elas mesmas, como ligado à vida, passando às suas mani­
medidas pelos fluxos e refluxos de seu festações efetivas, ela fica perplexa. Contra­
pensamento. riamente ao antropomorfismo, imputado às
crianças de maneira absoluta demais, a crian­
A...on 7;3 “O que está vivo pensa? - ça nega às árvores nossa sensibilidades,
Pensa. - As árvores pensam? - Não o tempo mesmo as mais elementares, de contato ou de
todo. - Têm vezes que elas pensam? - Têm. - O temperatura. É preciso uma mutilação com
Sena pensa? - Ele é o tempo todo igual. - E as uma faca ou a perda de suas folhas para fazê-
árvores não são sempre iguais? - Não. - As las sentir algo. Apenas um atentado à inte­
árvores sabem coisas? - Sabem. - O que é que gridade delas poderia, portanto, despertar-
elas sabem?... Elas sabem quando faz frio ou lhes a consciência. Quanto ao crescimento
calor? - Não. - Elas não sentem se faz frio ou das folhas ou à agitação das mesmas, pelo
calor? - Não. - Elas sentem que a gente está fato de que o sol ou o vento são-lhes a causa,
perto delas?- N ão... sentem, sim. - Elas sentem a criança parece concluir que as árvores não
se eu lhes der um murro? - Não. - E se eu fizer poderiam ser a eles sensíveis. Provavelmen­
um buraco nelas com uma faca? - Sentem. - E te, como lhe acontece freqüentemente, isso
quando as folhas se mexem? - Não sei. - Como ocorre por confusão entre o que sofre a ação
as folhas das árvores se mexem? - É o vento e o que age, este substituindo completamen­
que fa z elas se mexerem. - Quando eu quebro te aquele. Os limites que temos como funda­
o galho de uma árvore, ela sente? - Não. - Se mentais na distribuição das impressões e dos
têm pássaros que vão na árvore, ela sente? - movimentos, dos efeitos e das causas, do
Isso fa z que elas se mexerem. - Elas sentem sujeito e dos objetos permanecerem incer­
que isso as faz se mexer? - Não sei. - A árvore tos. As variações no desenvolvimento dos
sabe que suas folhas crescem? - É o sol. - Mas temas, as suas confusões, as suas trocas mú­
ela sabe que elas crescem? - O inverno fa z tuas, a incoerência de suas conseqüências tor-
elas caírem. - A árvore sabe que elas caem? - nam-se menos surpreendentes.
Sabe. - Ela sabe que elas crescem? - É o sol. -
Quando as folhas dela crscem, ela sabe? - A QUALIDADE IDENTIFICADA AO
Não. - E quando elas caem? - Sabe. - Porque OBJETO
ela sabe que elas caem e não que elas crescem?
- O sol fa z elas secarem. - Por que a árvore Em suas relações com o meio, através
sabe que suas folhas caem? - Não sei.” das situações às quais a misturam suas neces­
sidades, sua atividade, sua sensibilidade, a
Nessa criança, as noções já têm uma criança deve aprender a discernir os objetos.
certa fixidez; desse modo, a coexistência Não apenas os que são elaborados de propó­
constante que ela supões entre a vida e o sito, para servir de maneira estritamente apro­
pensamento causam-lhe embaraço quando priada, durável e repetida, mas também os
se trata das árvores. Ela sai dele através de objetos naturais, entre os quais ela deverá
uma expressão, não de dúvida, mas de ate­ gradualmente, repartir a origem dos efeitos
A DEFINIÇÃO 295

que experimenta ou dos quais é testemunha. dificuldade que elas se fundem no mesmo,
Reconhecer um objeto é, antes de tudo, atri­ que elas nele se especificam, umas em relação
buir-lhe certas ações quer presentes, quer às outras, ao mesmo tempo em que se tomam
possíveis; é dotá-lo de propriedades ou de suficientemente distintas do próprio objeto
qualidades. Provavelmente, a explicação para torná-lo comparável a outros, ou com
pelas qualidades do objeto pode parecer-nos ele mesmo em suas próprias mudanças, sem
puramente tautólogica, como a famosa virtu­ que se esboroe sua identidade.
de dormitiva do ópio. Na evolução mental da A passagem da qualidade ao objeto, e
criança, ela não constitui menos o resultado vice-versa, pode exprimir-se apenas por
de identificações complexas, as quais exigem desdobramento verbal: a cereja é vermelha.
a cooperação de todas as atividades de que é Ela tem, primeiramente, algo de automático e
capaz, desde as mais individuais até as que, Goldstein, em seus estudos sobre os afásicos,
como os usos correntes ou a linguagem, a observa que ela denota saber verbal e que
colocam mais intimamente sob a influência persiste, mesmo que o doente já não saiba
de seu meio. mais escolher as palavras que responderiam
A inteligência prática funde todas as às suas intenções intelectuais: o nome do
coisas, servindo, para o instante presente, de objeto ocasiona o da qualidade e o da quali­
objetivo ou de meio, em um mesmo conjun­ dade deve completar-se pelo do objeto, sob
to dinâmico, onde o efeito a ser obtido utiliza, pena de, nessa fase, permanecer sem signifi­
dos objetos, o que é exigido pela ação e por cação. A associação dos dois parece o mo­
seus resultados, sem ter que distinguir entre mento em que se tomarão, isoladamente,
eles, nem ter que identificá-los. Para a rea­ instrumentos eficazes de evocação. No adul­
lização mental deles, é preciso que a criança to em regressão, ela pode fazer sobreviver, às
recomponha as relações de lugar, de suces­ livres formulações verbais do pensamento, o
são, de causalidade que ligavam, às diversas poder de encontrar a palavra que responde à
situações, seu esforço, suas necessidades e qualidade e de imaginar a qualidade que
seus desejos. Um local determinado é-lhes respoüde à palavra. Na criança, ela deve
bem destinado, mas pode mudar sem que preludiar ao de colocar, sob uma denomina­
eles próprios sejam modificados, ou poderia ção qualitativa comum, os objetos que apre­
ser imaginado diferente. Eles dura, ou seja, sentam a mesma qualidade, com ou sem
eles opõem, à simples sucessão das impres­ diferença de grau ou de nuança. Stem reco­
sões e das experiências, um passado e um mendava, para ensinar as cores à criança,
futuro estranhos ao próprio sujeito. Eles po­ acrescentar-lhes um nome de objeto: o mar é
dem entrar no campo da contemplação pura azul, a árvore verde etc. É exatamente da
e, mais tarde, no da especulação, mas, através mesma maneira quesería preciso acrescentar
disso mesmo, eles delimitam-se, entre as ou­ “morango” ao “vermelho” ou “bilhar” ao “ver­
tras realidades, como a origem ou foco de de”, para que um afásico de Goldstein sou­
ações e de empregos eventuais. Eles fazem o besse designar, em amostras, a cor corres­
universo da criança ultrapassar a fase das rea­ pondente. O nome da qualidade permanece
ções naturais, das rotinas como improvisações ainda desprovido de força sem a imagem do
práticas, condensando-se sobre si os dados objeto. Ela é a de um objeto determinado à
da experiência imediata e tomando-se dela, exclusão dos outros. É determinada nuança e
distintamente, conjuntos estáveis onde in­ não outra; A doente de Goldstein recusava-se
terferem possibilidades de uso e qualidades a chamar de vermelho diferentes variedades
perceptivas. Mas, por mais íntima que seja a de vermelho. Assim, a regressão da lingua­
implicação mútua das qualidades que definem gem pode fazer com que particularidades, às
o objeto, suporte indispensável, não é sem quais um nome se liga, ainda sejam, contudo,
296 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

reabsorvidas pelo concreto, assim como, na mo a massa, que ele é feito com massa. “O
criança, o concreto começa aderindo intima­ que que é a massa?- Éalgum a coisa quese en-
mente às já providas de um nome distinto. rola. - Como? - Com as mãoes. - Ela é feita com
Um outro doente não podia, com os olhos o quê? - Com fa rin h a e água. - E a farinha, o
fechados, designar o alto, o baixo, a direita, a que é ? -è algum a coisa que é branca. - Diga-
esquerda, enquanto era capaz disso com os me outras coisas que são brancas. - Copos,
olhos abertos, porque, então, o que ele mos­ pratos, papel branco. - A farinha é a mesma
trava, na realidade, era o teto, a lâmpada ou o coisa que tudo isso? - Não. - Então, o que é a
céu, o assoalho, a mão que segura a navalha, farinha? - Não sei. - Sabe, você sabe sim. - É
aquela que não escreve. Seguramente, é a pa­ algum a coisa branca. - É como papel? - Não,
lavra que lhe fazia eleger um objeto na direção porque o papel rasga. - E a farinha? - É como
indicada, mas ele não podia evocar uma dire­ a terra. - Igualzinha à terra? - Não. - O que que
ção sem um objeto do qual a palavra recebesse não é igual? - Pedras. - Diga-me coisas que
sua significação. Do mesmo modo, na criança, sejam como a farinha e a terra. - Lousas. - As
a imagem de um objeto começa sendo o com­ lousas são a mesma coisas que farinha? - não.
plemento necessário, sem o qual o nome de - São a mesma coisa que terra? - São. - Por quê?
uma qualidade não pode representar nada. - Porque é da mesma cor. Épreto. - Diga-me
Mas disso resulta que este, smultaneamente coisas que sejam, ao mesmo tempo, como a
utilizado para dois objetos distintos, parece terra e farinha. - Panelas. - Elas são a mesma
estabelecer entre eles uma ligação de identi­ coisa que farinha? - Não. - São a mesma coisa
dade substancial e que cada objeto tenderia a que terra? - È, são pretas. - Diga-me alguma
se dividir, conforme suas diversas qualidades coisa que seja como farinha. - Umapanqueca.
o façam aproximar-se de objetos diferentes. - Por que é a mesma coisa que a farinha? -
Eis aí uma fonte perpétua de contradi­ Porque é branca. - É a mesma coisa que terra?
ções, às quais o espírito da criança encontra- - Não, porque a terra é preta, a fa rin h a é
se constrangido de reagir. A diferença dos branca. - Você não conhece alguma coisa
objetos obriga-a a retormar, incessantemen­ que seja, ao mesmo tempo, como terra e fa­
te, a identidade que ela acaba de formular. rinha? - Não. - O que tem de igual na terra e na
Essa diferença é, aliás, por vezes, conside­ farinha? - A fa rin h a é branca e a terra épreta.
rável, pelo fato de que a qualidade ainda - Tem alguma coisa igual nas duas? - Não.”
pertence a cada objeto individualmente e não
pode tornar-se comum a vários, instituindo, O caráter ainda concreto da representa­
entre eles, variações de nuanças e de graus. ção revela-se, inicialmente, aqui, em sua
Os objetos que seu nome pode evocar, em expressão operatória ou instrumental. Amassa
virtude do saber verbal, correm o risco de é o que se enrola com as mãos. Desse modo,
serem dos mais díspares. Dizer que as asso­ também o afásico, quando não encontra o
ciações da criança são concretas, não ê excluir nome de uma coisa, exprime-a através de
que sejam também rigorosamente verbais. uma circunlocução tomada da maneira de
Pelo contrário, elas devem, ambas, estar no manejá-la ou de empregá-la. A noção como
mesmo grau pois, estando o nome de quali­ tal extrai, primeiramente, sua significação e
dade ligado, em cada um de seus empregos, sua expressão da ação prática, esperando
a cada coisa, ele não tem mais significação que ela se encontre suficientemente separa­
própria e precisa, e os nomes de objetos da dela, através da palavra, para ser lançada
que o completam são devidos, para cada um, através da rede de relações onde impressões
a essas simples ligações autoáticas, que e objetos, qualidades e coisas, efeitos e causas
Goldstein chama de saber verbal. ajustem-se de maneira diversa, conforme o
G...y 6; 1/2 disse que o pão é “doce” co­ que os dados da experiência exigem. Ela fica,
A DEFINIÇÃO 297

em seguida, ligada aos seres concretos nos qualidade, aos objetos evocados é dispare e
quais a sbustância do real se vê repartida. Eles verbal que o objeto a ser definido encontra-
são tão necessários à sua intelecção que, fre­ se, finalmente, ou dissociado, ou isolado. A
qüentemente, substituem-na: não é simples inexatidão e a fragilidae do vínculo qualitativo
inadvertencia se, questionada sobre a dife­ entre os objetos, reunidas à implicação mú­
rença da farinha e da terra, a criança respon­ tua, no mesmo objeto, de todas as suas qua­
de “as pedras”. Ela cede, desse modo, à sua lidades, fazem com que a evocação de um
persistente inclinação de imaginar um ob­ objeto a propósito de um outro possa resultar
jeto, muito mais do que uma simples pro­ de influência confusas e combinadas, que
priedade. É também porque a substituição impedem, no que se refere a elas, de ser
desta por aquele tem algo de instantâneo reduzido a uma única relação nitidamente
que a palavra “branco”, aplicada à farinha, definida. É assim que a panqueca, dada como
ocasiona, em seguida, por sua ligação parti­ equivalente da farinha, deve isso, parece,
cular com cada um, o enunciado de objetos juntamente com sua cor, ao fato de ser feita
tão diferentes como os copos - branco sendo com farinha e nas caçarolas ou frigideiras que
confundido, aqui, com transparente-, depois a criança acaba de citar. Essas relações, ao
prato e papel branco. A qualidade ainda adere mesmo tempo complexas e confusas, que
demais a cada objeto para ser realmente um estão em perfeita correlação com o particula­
traço de união entre eles. Ela se limita a fazê- rismo das qualidades e a falta de virtude ca­
los se suceder, menos em razão de uma seme­ tégorial destas, explicam o fato de que os
lhança verdadeiramente percebida do que objetos só possam ser agrupados dois a dois,
por causa de uma evocação puramente verbal. deixando a criança impedida de indicar um
A assimilação entre objetos, que se dá, terceiro que seja, simultaneamente, seme­
freqüentemente, sob a forma absoluta da lhante aos outros dois.
identidade, deixa a criança diante de um A ausência de discernimento entre as
agrupamento inteiramente heteróclito. É en­ qualidades diversas e de especificação preci­
tão que ela vai partir em uma nova direção, sa para cada uma explica o fato de que a
abandonando a cor pela pulverulência, co­ criança limita-se, freqüentemente, a enunciar
mum à farinha e à terra. Mas aqui, ainda, o uma diferença de grau.
sentimento de uma incompatibilidade leva-a
de volta à cor e a faz agrupar, após a terra, pa­ F...ge 7; “O que quer dizer pesado? - É
ra opô-la à farinha, a lousa, que ela tem sob os quando tem peso. - O que quer dizer peso? -
olhos, e as panelas. Apesar de uma diferença Q uando o peso é m ais pesado. - O que quer
manifesta de tom, esses três objetos são, cada dizer que o peso é mais pesado? - É quando
um por sua vez, evocados pela mesma palavra ele tem m ais força. - O que quer dizer ter
“preto”. Todo atributo que fez, inicialmente, mais força? - Quer dizer que a gente é mais
com que o objeto se aproximasse de outros forte.”
objetos leva, portanto, quer ao seu retalha-
mento entre semelhanças diversas, quer à sua À parte a substituição de pesado por
exclusão do agrupamento esboçado. força, toda a explicação reduz-se a um sim­
ples m ais de majoração sobreposto a uma
INDETERMINAÇÃO DO CONTEÚDO tautología.
QUALITATIVO
B. ..otte 7; “Por que о dia е a noite não são
Não é apenas em razão das qualidades iguais? - Fica m ais de dia. - Como é que fica
que não são comuns aos objetos compara­ mais de dia?- É d e m a n h ã ”
dos, é também porque a aplicação, de cada Aqui, ainda, a criança limitase a repetir
298 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

um dos termos da comparação, fazendo-o ser mesmo tempo, que o vento é visível e invisí­
precedido de mais. vel. Porvavelmente, ver substitui, de maneira
global, perceptível, pois, tendo que se pro­
H,..vin 6; 1/2 “A poeira anda como as nunciar, em seguida, sobre a cor, ela diz
pessoas? - Correndo. - O que mais anda “branco”, por uma substituição aqui, ainda da
correndo? - As pessoas. - E o que mais? - Os impressõa exata por um vocábulo corrente.
anim ais. - Ainda tem mais alguma coisa que Mas a confusão entre branco e transparente é
anda correndo? - Não. - A poeira anda corren­ habitual na criança. O branco começa, na
do como as pessoas? - Não. - Qual é a dife­ verdade, anexando-se o incolor. Às nuanças
rença? - A poeira corre rápido.” dissociadas do prisma opõem-se, de início,
indistintamente, a ausência total e a fusão
Após parecer ter dado a corrida como o delas, o invisível e as superfícies ou os corpos
que distingue a poeira das pessoas que andam, que refletem a luz total. Fato inverso e com­
essa criança atribui a corrida também às pes­ plementar do que assinala Koffka na diferen­
soas, e a única diferença que ela sabe indicar ciação das cores pela criança: as primeiras-
é uma rapidez maior da poeira. Assim, ela que emergem na percepção só são primei­
parece identificar, quase em graus, duas for­ ramente discernidas por oposição ao conjunto
mas de movimento que apenas uma metáfo­ indistinto das outras. Em seguida, é gradual­
ra lhe permite reunir sob um mesmo nome. O mente que o contraste se nuança, para deta­
grau é a distinção cuja fórmula exige o míni­ lhar o bloco primitivo em uma gama de estru­
mo de busca, de imaginação, de análise in­ turas sempre mais sutis e mais complexas.
tuitiva. Ele se limita a autenticar, para os dois O esforço, que se impõem à criança,
objetos, o mesmo conteúdo mental, por mais para dar às qualidades a expressão diferen­
confuso que seja e, com freqüência mesmo, cial delas observar-se em todos os campos da
tõ variável de um objeto a outro. Pode res­ percepção.
ponder ao sentimento de uma diferença
qualquer. Naturalmente, não tem nada a ver, C... in 6; 1/2 “O que é forte? - Aspessoas, os
então, com uma escala qualitativa. É uma bichos. - Como as pessoas são fortes? - Éforte
estrutura das mais elementares, que se limita duro, porque às vezes têm lutadores de boxe
a indicar a idade onde o que era simplesmente que lutam boxe... Ê só... As águias são fortes.
percebido começa a se tornar objeto de - O que quer dizer “forte duro”? - Não sei. -
comparação. Forte e duro são a mesma coisa? - Não. - Você
Além desse emprego vago e global do acabou de dizer “forte duro”. - Explique o que
comparativo, a indiferenciação qualitativa ou é. - Porque não é a mesma coisa, forte e
a confusão das qualidades pode, ainda, ser duro. "
marcada pela maneira imprópria de definir
efeitos, mesmo muito correntes. É, inicial­ Aqui, a criança oscila entre a assimilação
mente, uma ambigüidade de expressão em e a oposição. Ela parece ser disputada por
relação, visivelmente, com estruturas per­ dois contrastes ou duas estruturas, a que
ceptivas ainda mal sistematizadas e até mes­ opõe solidariamente ao que é frágil e mole o
mo negativas. que é forte e resistente, a que distingue, nos
conjuntos, um termo ativo e um termo passivo,
R. G...el 7; “O vento pode ser visto? - ou seja, os dois termos complementares do
Pode. - Você tem certeza? - Tenho, sim, se­ agente e do paciente, inicialmente confundi­
nhor. - e a cor dele? - $ branco. - a gente o vê dos em uma espécie de unidade dinâmica
passar? - Não, senhor.” onde o objeto ainda não é discernível do
A criança parece, portanto, dizer, ao subjetivo. A definição qualitativa assume
A DEFINIÇÃO 299

precisão apenas com a progressiva diferen­ ção de seu volume até o grau de tenuidade
ciação do mundo exterior, não apenas em em que cessa de ser visível. Em sentido inver­
seus objetos, mas primeiramente em relação so, a força do vento obriga a criança a restitu-
ao sujeito. ir-lhe a quantidade, de onde deveria resultar
Acontece, freqüentemente, que, entre as sua visibilidade. Mas ela não se apercebe da
qualidades, a criança estabelaça certas ho­ contradição. Ela raciocina de maneira intei­
mologías subjetivas, sem relação com as cate­ ramente formal, utilizando cada noção por si
gorias de efeitos ou de objetos. mesma, segundo seus graus e até o desapare­
cimento sensível da mesma. Simultaneamen­
L...ot6; “O vento é o céu. - O que é o céu? te, ela assume como que um valor negativo
-É o vento. - Então, o vento e o céu são a mes­ que a separa do concreto, e ela se isola dos
ma coisa? - São. - Olhe a cor do céu. - Bran­ outros efeitos perceptivos, cuja explicação
co. - E lá a direita? - E le parece um pouquinho não vai mais ser possível senão à custa de
azul. - E o vento? - Branco - Ele não parece um uma contradição. É a maneira que a criança
pouquinho azul também? - Parece. - O céu se tem de se subtrair do mundo sensível para
mexe? -Não. - E o vento? - Mexe, porque ele explicá-lo. Ainda incapaz de imaginar, sob os
sopra. - Como ele sopra? - Pelo mar. - Como o dados brutos da experiência, as condições e
mar faz o vento soprar? - Pelos barcos. - Mas as estruturas de onde eles resultam, a criança
c o m o l- Ê o vento que empurra os barcos... - pode apenas atenur-lhes, gradativamente, as
Mas e o vento? - Ele está no céu. Às vezes, ele qualidades sensíveis.
sai de lá, às vezes, elefic a escondido no céu.
- Mas a gente o vê? - Não, ele é branco, agente SINCRETISMO E FORMALISMO
não pode ver, ele é m uito fin o . - Ele é branco
como o quê? - Como isso (um a folh a de p a ­ Por mais contraditória que possa parecer,
pel). - Branco como a água ou como o papel? essa confluência do sincrestimo e da abstra­
- Branco como um papel. - Mas eu vejo o pa­ ção não é fortuita. Não é nem mesmo um
pel. O vento é branco, fininho, fininho, o pa­ efeito da inconseqüência própria da criança.
pel é um pouco grosso.- Se ele é fininho, como No campo das impressões perceptivas ou das
ele é forte? - Porque tem m uito vento... - Mas imagens, e no das representações qualitati­
como você sabe que tem muito vento? - Por­ vas ou intelectuais, ela resulta das mesmas
que eu vi no céu; e depois, quando tem sol, a tehdências à simplificação indiferenciada, à
gente não vê o vento.” descontinuidade, à ignorância mútua, aos
contatos puramente fortuitos dos conteúdos,
Essas respostas fornecem um exemplo dos momentos, dos atos mentais. O pensa­
de sincretismo e de abstração misturados, o mento global não é mais necessariamente
que poderia a priori parecer paradoxal. Por total do que esquemático. Ainda não é nem
úm lado, há assimilação global do vento e do um, nem outro; mas pode dar a ilusão de um
céu, indiferenciação do conjunto vento-mar- ou de outro, conforme tenha por objeto im­
barcos, onde a origem do movimento que os pressões de motivos múltiplos e misturados
agita passa, sucessivamente, de um a outro e, ou, ao contrário, figuras, relações simples es­
enfim, alternância, em bloco, do vento e do peciais. Em um caso, é a confusão intrínseca
sol, que pertencem, respectivamente, aos dois que parççe prevalecer; no outro, o exclusi­
casos opostos do mau e do bom tempo. Por vismo. Os obis têm em comum, entretanto, o
outro lado, há abstração, a qual parece perder fato de que a imagem resultante do ato per­
de vista a percepção levando as qualidades ceptivo ou intelectual tem, em sua fórmula
invocadas ao limite onde elas cessam de ser presente, algo de incomparável, mas essa for­
perceptíveis: cor incolor do vento e diminui­ ma, por mais absoluta que pareça, pode flu-
300 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

toar, por falta de uma estrita delimitação. Essa feito? - Para colocar no café e nos doces.
falta de referências definidas tem a dupla con­ - Quando ele está derretido no café e nos do­
seqüência de interditar todo relacionamento ces, ele não é mais bom? - Д porque, se a
exato das representações entre si e de favo­ gente coloca no doce, ele ainda é açucarado.
recer as transmutações desapercebidas das - O que é que o açúcar no doce vira? - O do­
mesmas. Nada pode opor-se à passagem e- ce fic a açucarado quando a gente come.
ventual de uma à outra, se as diferenças de­ -Quando ele está derretido no doce, a gente
las permanecem informuláveis. Irredutíveis, pode vê-lo? - Não, senhor. - Tocá-lo? - Não,
elas são, pura e simplesmente, assimiladas pe­ senhor. - O que é que ele vira? - Ele derreteu
lo espírito à procura de unidade e de coerên­ no doce. - Quando ele derrete, não tem mais
cia. Mas a unidade pode se dar, quer por eva­ açúcar? - Tem, sim, senhor, ainda têm os
poração total de uma substância sensível frá­ pedacinhos.”
gil demais, que a criança não pode mais reter
em sua representação simplificada das co­ Nas respostas dessa criança pesa, pri­
isas. meiramente, uma certa ambigüidade, pelo
A independência mútua das representa­ fato de que ela parece substituir o corpo
ções, na criança, nunca é tão aparente do que derretido pelo líquido de fusão ou, pelo
quando ela quer explicar, um pelo outro, menos, pelo conjunto deles. Essa incapacida­
após tê-los dissociados, dois traços que per­ de para manter isoladas as imagens deles,
tençam ao mesmo objeto de experiência. embora haja mistura efetiva, tem, por conse­
qüência imediata, uma confusão sincrética
G...in G. 7; “O que mais derrete na água? entre a invisibilidade do sal e o gosto assu­
- Sal. - Quando ele está derretido, a gente mido pela água. Parece mesmo uma inversão
ainda o vê? - Não, senhor. - Como é que a entre a causa e o efeito, ao mesmo tempo que
gente não vê mais uma coisa derretida? - um transporte, apenas para o sai, do sabor
Porque ela fic a azeda. - O que quer dizer transmitido ao líquido: o sal se tom ou invisí­
azeda? - Quer dizer que ela não é m a is boa. vel porque se tomou azedo. Simples erro de
- A gente não a vê mais? - Não, senhor. - A expressão? Mas ele está manifestamente re­
gente pode pegá-la? - Não. - Como a gente sa­ lacionado com o próprio pensamento da
be que não é mais boa? - Porque a gente não criança. A condensação, no que derrete, do
pode m ais beber ela, porque está amarga. - gosto “azedo” ou “amargo” ou “não bom”
Quando o açúcar derrete, ele fica amargo? - transmitido à água pelo sal é estendida ao
Não, senhor. - Você disse que as coisas açúcar. Essa transferência também mostra
derretidas são amargas. - Eu não tinha enten­ bem a que ponto o pensamento sincrético é,
dido o que o senhor tinha dito. - Quando as ao mesmo tempo, formal. A noção calcada
coisas ficam derretidas, o que é que elas em uma experiência particular parece desli­
viram? - Não são m ais boas. - Quando o a- gar-se dela e como que existir por si própria,
çúcar derrete, ele não fica mais bom? - Não... de modo que se repete a propósito de um
- Por que a gente põe açúcar na água, se ele objeto inteiramente diferente, ao qual abso­
não fica mais bom? - Porque, quando o açú­ lutamente não convém: o açúcar que derrete
car está dentro, agente não pode m ais beber não é bom. É apenas gradualmente, evocando
ele. - Por quê? - Porque agente acha que não a lembrança concreta das pessoas que gostam
é bom. - Então, por que a gente põe açúcar na do açúcar, depois do açúcar acrescentado ao
água? - Porque tem qente que gosta. - É bom café ou ao doce, que a criança consegue
ou não é bom? - Tem gente que gosta e tem retomar sua primeira assimilação do açúcar
gente que não gosta. - Por que se faz o açúcar? com o sal. Assim se manifestam sua visco­
- Porque dentro é açucarado. - Por que ele é sidad e mental e, ao mesm o tem po, o particu-
A DEFINIÇÃO 301

larismo de suas representações sincréticas, о a inteuição experimental. Em seguida, são


qual é, pelo menos parcialmente, a conse­ objetos verdadeiramente moles ao serem
qüência destas: cada uma delas constitui sis­ tocados que a criança, convidada a citar ou­
temas, ao mesmo tempo, sem relações inter­ tros exemplos, enumera. Ainda, dos três que
nas definidas e sem relações externas, senão ela fornece, um, o sangue, não é mole, mas
de analogia ou de concomitância confusas. líquido, e um outro, a cortina, é muito mais
Mas disso resulta também que a defini­ flexível que mole. Ela só tem, portanto, da
ção fica duplamente confusa: em sua com­ moleza, uma noção bem flutuante. Levada ao
preensão, visto que as qualidades mais dife­ sol, ela lhe justifica a moleza simplesmente
rentes são dadas uma pela outra em razão de pelo que lhe é o atributo essencial, a luz. To­
seus simples encontros; em sua extensão, vis­ davia, ela parece acrescentar, por esse in­
to que esses conjuntos qualitativos são trans­ termédio, à compreensão de mole, a difusão
feridos, em bloco, a objetos que apresentam ilimitada: o sol ilumina todo o mundo.
opostos deles. O choque dessas noções im­ A delimitação incerta das qualidades
próprias e da experiência não cessaria de entre si pode, evidentemente, resultar, em
lançar a criança em um sentimento de inco­ parte, das contaminações subjetivas que se
erência, se ela disso não escapasse mais ou operam na sensibilidade ou na experiência
menos em conseqüência da descontinuidade da criança. Mas as noções operam também
que é posta em seu pensamento precisamen­ por si mesmas, segundo afinidas ou contras­
te por suas tendências ao sincrestimo e à vis­ tes como que abstratos. Relações mais for­
cosidade mental: suas idéias ou suas repre­ mais ainda podem intervir, as quais são a
sentações substituem-se entre si, sem que as simples transposição ideológica da percep­
contradições delas sejam reconhecidas. ção diferencial.
Desse modo, as propriedades começam
a se contaminar mutuamente no objeto, antes L...et 6; 1/2 disse, anteriormente, que não
de poderem servir à classificação dos objetos. ficamos pesados na água quando nadamos
A indecisão do contorno destes e a sua con­ “Seu eu ando, eu fico pesado? - Não. - E se eu
fusão fácil com outros são bem colocados em me sentar nos seus joelhos? - Não... é. - Por
evidência quando a criança deve dar exemplos que eu não fico pesado quando eu ando e fico
de cada uma.' pesado quando me sento nos meus joelhos?
- Porque eu não sou pesado e o senhor é. - Se
D...et 7; “Diga-me coisas que são duras. eu me sentar na cadeira, eu fico pesado? -
- Pesos, um a rm á rio, um g u a rd a -lo u ç a . - O Não. - Por que eu não fico pesado se eu me
sol é duro? - Não, um a caixa. - Como o sol é, sento na cadeira e fico pesado se eu me sento
se ele não é duro? - Mole. - O que mais é mole? nos meus joelhos? - Porque a cadeira é de
- Fígado, sangue, cortina. -O solé mole? - É. madeira e ela está apoiada no assoalho. - Se
- Como o sol é mole? - Porque ele ilum ina eu me sentar em cima de uma pessoa grande,
todo o m undo. - Como ele ilumina todo o eu fico pesado? - Não, porque os dois são a
mundo? - Não sei." mesma coisa.”

Comparadas com objetos que lhes ser­ RELAÇÃO DIFERENCIAL


vem de ilustração, as qualidades parecem, SUBSTITUINDO A QUALIDADE
aqui, ser de significação bem diversa. Segura­
mente, o epíteto “mole”, aplicado ao sol, o Antes de saber fazer, de uma proprieda­
foi, inicialmente, apenas por oposição a de, o atributo de um objeto, a criança percebe
“duro”. O contraste precedeu o conteúdo nela apenas uma simples relação. Ela ainda a
positivo. O “saber" verbal valeu mais do que confunde com as estruturas elementares da
302 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

percepção, que se impõem, à sensibilidade, mentar de contraste ou equivalência tomada


como diferença ou como equivalência. “Eu relação entre o sujeito e cada objeto, ou entre
não sou pesado e o senhor é... Os dois são a o que suporta e o que é suportado, o peso não
mesma coisa." Ela substitui o peso do objeto pode ser avaliado em função das forças que
pela comparação entre o peso do suporte e o regulam as relações dos objetos entre si.
do objeto que é suportado. Se o suporte é Simples relação diferencial que se assimila as
menos pesado que o objeto suportado, o coisas, ele não se deixa decompor em fatores
objeto será pesado. Se há igualdade de peso, distintos e toma-se algo de absoluto, até em
o objeto perde seu peso. Assim, os efeitos de suas mudanças.
percepção, devidos ao contraste ou à igual­
dade, são transferidos para as próprias coisas, D...aud 8; “Diga-me o que é pesado. -
ou melhor, ainda não são distinguidos delas. Um automóvel, o carro. - O que não é pesado.
Essa confusão une-se à do agente e do pa­ - O papel. - E o que mais? - Os panos, os
ciente. Em vez de opor o peso e a força barbantes.”
necessária para sustentá-lo, a criança sabe
apenas estabelecer um equilíbrio de peso. A O peso é, evidentemente, aqui, apenas o
força incopora-se ao peso. Não se trata, peso absoluto, o peso sem consideração do
portanto, como poderia parecer inicialmen­ volume, o peso em relação às forças do sujei­
te, de estimar o peso proporcionalmente ao to: pequeno e manejável, um objeto é leve;
esforço e o esforço proporcionalmente às grande e descómodo, é pesado.
forças de cada um. Provavelmente, a impres­
são subjetiva do esforço a ser fornecido não C... P.t 6; “Diga-me coisas pesadas. - Os
está ausente dessas respostas; há realmente pesos, um a mesa, um armário, às vezes, os
oposição entre a carga que seria, para a crian­ prêm ios grandes (provavelmente, os livros
ça, o peso de uma pessoa adulta e a insen­ oferecidos como prêm io aos melhores alu­
sibilidade da cadeira, aliás, sustentada pelo nos), às vezes, osguarda-louças. - O que quer
assoalho, que suprime o peso da pessoa sen­ dizer pesado? - É quando a gente não pode
tada. Mas a impressão subjetiva permanece levantar.”
subordinada a uma diferença ainda impessoal, T...ni José 7; “Um carro é pesado? - Ah, é!
só se dissociando desta mais tarde. O ego­ Épesado. Meu p a i trabalha na Ballot. E lefaz
centrismo não é inicial. O que precede é uma carros. - O que quer dizer pesado? - Quer
íntima implicação mútua dos dois termos da dizer que a gente não pode levantar. - E forte?
ação. Estes são tão pouco discemíveis entre si - Que a gente tem força. - Pesado e forte são
que são reduzidos à mesma medida, o peso. iguais? - Ah, não! Q uando a gente d iz que
A qualidade deum objeto pode, portanto, algum a coisa éforte, ela pode levantar um a
variar ou desaparecer com as diversas rela­ bicicleta.”
ções em que ele entra. Essa relatividade é
muito diferente da que poderia ser explica Nesses dois exemplos, o peso é defini­
pela variabilidade das condições físicas às do, do mesmo modo, pelo malogro de um
quais ele se veria submetido: por exemplo, esforço. No segundo, a força é a contraparti­
sua perda de peso igual ao do volume de da do peso, é o poder de levantar. O objeto
água deslocada, verdadeira relação cujas citado está relacionado com as próprias for­
variáveis são determinadas e mensuráveis. ças da criança. A noção de força também é
Pelo contrário, as mudanças de peso, que a detalhada em exemplos particulares.
criança imputa ao objeto, são apenas a ex­
pressão da relação diferencial que está na G..,dy 6; “Duro e forte são a mesma
origem de toda percepção. Estrutura ele­ coisa? - Não. - Diga-me coisas fortes... Você
A DEFINIÇÃO 303

sabe o que quer dizer forte? - Sei. - Diga-me o alguém e então com er ele depois, porque são
que é. - Porque a gente briga com um outro. ruins. - Os cavalos são fortes? - Porque eles
- Você é forte? - Não. - E eu? - Não.” podem p u x a r um a carroça e tam bém porque
a gente pode subir nela. Às vezes, tem m uita
A noção é absorvida de tal modo no palha, issofa ria ele cair. Se eles estão com dor
exemplo dado para defíni-la que parece so­ na pata, isso pode fa z e r ele cair. Se ele não
frer uma limitação. A força é negada a qualquer está com dor na pata, isso não vaifa z e r ele
um que não brigue, ou que não seja imaginado cair, porque ele é forte. - Como os gansos são
brigando. A comparação entre os dois termos fortes? - Porque ele poderia bater na gente
do ato é, ainda, preponderante. Ela impede com suas “velas"; e depois quebrar um a
que se estenda a noção para além de um fato perna da gente assim,- e depois ele poderia
relacionado a uma pessoa como agente ou morder a gente. - E os elefantes, como eles
paciente. são fortes? - Porque a gente pode subir em
cim a.”
D...et 7; “Diga-me o que é forte. - Um Os elefantes, os primeiros citados, o são,
hom em . - Como um homem é forte? - Elepode evidentemente, em razão de sua massa, mas
carregar um a criancinha nas costas e a mão também porque se acabara de falar neles. As
embaixo dos pés. - O que mais é forte? - gansas e os gansos, as vacas e os touros estão
Mulheres. - E o que mais?... O sol é forte? - É. na relação de fêmea para macho. Entre essas
- Como ele é forte? - Elepode voar. - Onde ele duas espécies de pares, o vínculo parece ser
voa? - Nas nuvens.” a fazenda. Entre cavalos e vacas, o tamanho é
semelhante. Essa enumeração é uma aglu­
É partindo do homem e em suas relações tinação de relações heterogêneas. Mas, sobre­
com a própria criança que, espontaneamen­ tudo, ela não é controlada por uma noção
te, a força é definida. Ainda uma vez, o bem determinada da força. Para cada animal,
exemplo limita, aqui, a aplicação da noção. A os efeitos citados são diferentes, ora perigos,
força do sol é justificada através de uma ação ora serviços. São como partículas que se
análoga à do homem, ele próprios se sustenta prendem em núcleos mais ou menos coe­
nos ares, como o outro sustenta o peso da rentes, mais ou menos consistentes e duráveis,
criança. Essa aderência do espírito ao traço mas que não estão unidas nem ordenadas
particular pode, aliás, ter um resultado inver­ entre si por linhas contínuas de forças, do tipo
so. A mesma palavra força, por exemplo - das que levam o pensamento do adulto, atra­
pode cobrir a imagem de ações diversas, de vés da rede das coisas e das idéias, para seus
que nem sempre é fácil reconhecer as rela­ objetivos e para suas conclusões.
ções, pois as ações mudam com as categorias É, por vezes, a propósito do mesmo
de seres enumerados e estas podem ocasio­ objeto que a definição é assim heteróclita.
nar uma à outra, em conseqüência de outras
analogias que as da força. É a subjetividade A...aud 6; “O vento é forte?- É - О que o
intuitiva ou formal delas que ocasiona as vento faz? - ele empurra. - Como ele pode
coincidências mútuas das enumerações e dos empurrar? - Porque ele é duro. - Como isso
temas descritivos. acontece” - Porque ele está no céu. Elefa z as
cham inés caírem .A gente não deve tom ar ele
H...gi 7; “Diga-me o que é forte. - Os na cabeça. Caiu um “estrelhado" na rua. -
elefantes que são fortes. - E o que mais? - As Como ele é tão forte? - Porque ele está no céu.
gansos, os gansos. - E o que mais? Os cava­ - Onde é o céu? - ele é m uito grande, tem em
los, as vacas, os touros. - Como os touros são todo lugar.”
fortes? - Eles brigam; eles poderiam m atar A força do vento, sucessivamente defini-
304 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

da por seus impulsos, por seus efeitos devas­ mesma qualidade em objetos, não apenas
tadores, por sua natureza, pelo céu onde ele distintos, mas em outras relações diferentes
se move, pela amplidão e pela ubiqüidade do entre si. É o fato de ser de madeira e de tijolos
céu, ou seja, sucessivamente, por sua ação, e que torna os objetos duros, é o fato de ser de
uma consistência relacionada à ela, pelo lugar água que toma o Sena mole, é o fato de ser de
que ele ocupa, por suas dimensões, depois massa de vidraceiro que explica a moleza da
por sua onipresença, dá um exemplo de massa de vidraceiro e, enfim, é o fato de ser
anéis heterogêneos, através dos qusi, gradual­ deixar modelar que faz reconhecer essa
mente, as explicações da criança se comple­ moleza. Todos os níveis de explicação estão
tam ou se complicam. aqui reunidos, mas em sentido inverso ao da
ordem lógica, que deveria partir da ação ação
AJUSTAMENTO CIRCULAR ENTRE exercida ou sofrida, ser relacionada ao objeto
QUALIDADE E OBJETO que lhe é a origem, depois estendida à subs­
tância de que os objetos são feitos.
Desde o momento em que se torna capaz Esse ajustamento circulare da qualidade
de identificar em objetos as relações de aos objetos, e reciprocamente, apresenta,
sensibilidade ou de ação que a unem a seu contudo, dificuldades que as inconseqüên-
meio, acriança também aprende a passar do cias de crianças mais novas podem compro­
efeito à natureza do objeto e vice-versa. A var.
ação exercida ou sofrida torna-se a qualida­
de. Alternadamente, o objeto define a quali­ F,,.g!i 5; 1/2 disse anteriormente que a
dade e a qualidade, o objeto. Como acontece terra e a água são finas. “O que é vento? - Ele
com os círculos viciosos com os quais ão é fino. - Mas fino do que a água? - Não. - Mais
delimitados nossos cohecimentos, disso re­ fino do que a terra? - A terra é m ais pesada e
sulta uma adequação gradual das noções às ta m b é m têm m a is p e d r a s n a terra. - Qual é o
coisas, ao mesmo tempo que uma redução mais forte, a terra qu o vento? - É o vento. -
gradual das coisas aos fatores do conheci­ Como o ventoé forte? - Como aspedras. -Qual
mento. é o mais forte, o vento ou as pedras? - O vento.
- Por que as pedras são fortes?... Como você
C...ard 6; “O que é duro? - O muro. - E o sabe que são fortes? - São feita s com gelo e
que mais? - Postes, árvores. - Como as árvores depois com terra. - As pedras são de gelo? -
são duras? - Porque são de madeira. - E o mu­ Não. - Não é a mesma coisa? - Não, o gelo é
ro? - Poque tem vezes que é de madeira e têm m ais pesado. - Quando tem gelo? - Q uando
vezes que é feito de tijolos. - É duro da mesma fa z frio. - E as pedras? - Elasfazem um a outra
maneira, quando é de madeira e quando é de pedra e depois isso quebra. - O vento é mais
tijolo? - К - O Sena é duro? - Não. - Por quê? - duro do que as pedras? - O vento é fin o . - O
É de água. - A água não é dura? - Não. - Como vento é mais forte do que as pedras? - É o
ela é? - Mole. - Diga-me outras coisas moles. vento. - Como você sabe que o vento é forte?
- Massa de vidraceiro. - E o que mais?... Como - Q uando tem poeira que voa. - o que o vento
é que a massa de vidraceiro é mole? - Porque pode fazer quando ele é muito forte? - Éfrio.
é de massa de vidraceiro. - Sim, mas como - E o que mais? - Um barco."
você sabe que é mole? - Porque, se eu mexo
nela com os dedos, é mole." Aqui, é grande confusão. Ela mostra o
quanto o que pode parecer simples tauto-
A qualidade, aqui, é explicada pelo ob­ logia circular entre objeto e propriedade já
jeto, mas o próprio objeto é reduzido à sua exige de adequação precisa. A criança divaga
matéria, ou seja, ao que é a razão comum da facilmente de um objeto a outro e de quali-
A DEFINIÇÃO 305

dades em qualidades. Os objetos aos quais a água? - Vai. - Ele anda? - Anda, como um
mesma qualidade é atribuída nem sempre a motor. Os barcos maiores p uxam um a bar­
apresentam no mesmo sentido, ou esse sen­ quinha. - Por que ele não vai para o fundo da
tido é muito vago: “fino”, que é estendido, da água? - É o m otor que não deixa. Se tivesse
terra e da água, ao vento, significa, eviden­ m uita gente, ele ia para o fu n d o da água. - A
temente, sem coesão, mas em um caso, é pul- madeira vai para o fundo da água? - Não, ela
verulência, e no outro, fluidez. Contudo, “pe­ fic a em cima. - Porque? - Porque é dura. -
sado” parece ser dado como o contrário de Uma pedra vai para o fundo da água? - Uma
“fino” por assimilação entre consistência e pedra não vaipara o fu n d o da água porque
peso. Provavelmente, está baseado num sen­ é pesado. - Você já jogou pedras na Água? -
timento vago e subjetivo de resistência, que Nunca não!Eu estava nos barcosparisienses.
parece imediatamente evocar a noção com­ Mas eu vou p en o da água sozinho. - Uma
plementar de força. Fazendo dos dois como pedra não cai no fundo da água? - Não. - O
que uma única e mesma propriedade, a crian­ que é que cai no fundo da água? - Alguma
ça estabelece uma simples diferença de grau coisa que não é pesada. - O quê? - Às vezes,
entre violência do vento e a dureza da pedra. um pedacinho de pã o vai até o fu n d o da
Ao mesmo tempo, ela reúne os dois termos água. - Diga-me coisas pesadas. - Umapedra,
que começara opondo, quando distinguía um barco, um pedaço grande de pão. - Um
entre a fineza do vento e a da terra que con­ pedaço grande de pão vai para o fundo? -
tém pedras. Assim, propriedades e objetos, Não, porque é pesado. - E o que mais é
embora definindo-se mutuamente, atraem- pesado? - Uma barca. - Diga-me coisas que
se ou repelem-se sem que a diferença das não são pesadas. - Um subm arino, um peda­
qualidades seja nitidamente marcada. A so­ cinho de pão, um a castanha pequena. - Por
lidez das pedras em relação à terra é explicada que as coisas pesadas não vão para o fundo?
pelo gelo; mas o gelo é distinguido das pedras - Porque ê alto demais, não pode ir p o r bai­
porque seria mais pesado. As- noções são xo da água. - O que quer dizer pesado?...
aproximadas como se fossem idênticas ou Quando a gente diz que uma coisa é pesada?
contrárias, embora tendo, entre si, simples - Um barco épesado, um a barca. - Sim, mas
vínculos de analogia ou pelo fato de perten­ como você sabe que é pesado? - Porque os
cerem uma à outra, q uem as representações, pedaços de m adeira são grandes. - Uma pe­
quer na sensibilidasde da criança. O sincretis­ dra é pesada? - Uma grande, m as um a pe­
mo, anterior ou poder de identificação objeti­ quena não é pesada. - Um torrão de açúcar é
va ou qualitativa, marca-se aqui, ainda, por pesado? Não. - Ele vai para o fundo? - Às ve­
uma acumulação de imagens, sem indicação zes. - Papel é pesado? N ão. - Vai para o fundo?
das relações das mesmas: poeira, frio, barco, - Vai. - Sempre? - Nem sempre; às vezes têm
são, sucessivamente, evocados pela do ven­ uns que não vão, às vezes têm uns que vão.”
to. Entre o vento e o barco, permanece suben­
tendido algo como atempestade no mar. A criança segue, aqui, o caminho oposto
A confusão, causada pelo conflito fre­ ao da definição própria do peso: o que afun­
qüente das circunstâncias ou das situações da é leve, o que flutua é pesado e o mais in­
concretas, às quais a criança deve aplicar suas teressante é que lhe acontece de dar exem­
definições, onde a qualidade identifica-se plos empíricamente plausíveis disso. Ela aca­
ainda mais ou menos com o objeto ou a subs­ ba inserindo “às vezes” em suas respostas
tância, ocasiona freqüentes contradições. para atenuar-lhes o rigor. Precaução que
Acontece até de a criança lhes dar como que combina, no fundo, com sua fase intelectual,
um rigor sistemático. pois a criança está sempre considerando ape­
D...et 6; “um barco vai para o fundo da nas circunstâncias particulares e explicando
306 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

efeitos bem determinados tomando, umas e leve? - Pode. - Se eu jogar um pedra na água,
pelas outras, qualidades muito diferentes: a ela vai para o fundo? - Vai. - Porquê? - Porque
madeira flutua porque é dura. Desse modo, é pesada. - Uma árvore na água vai para o
explica-se também que ela seja capaz de fundo? - Não, senhor. - Por que? - Porque é de
relacionar certos efeitos às qualidades exa­ madeira. A m adeira é m ais leve que tudo. -
tamente contrárias. O que é pesado não pode Uma árvore é mais leve que uma pedrinha? -
ser submergido. O peso é, desse modo, as­ Não, senhor. - Então, por que a árvore não vai
similado ao volume, o qual impediria a imer­ para o fundo, se ela é menos leve que a
são total. Mas vários objetos que a criança cita pedrinha? - Porque a árvore anda m elhorem
dizendo que bóiam quase não respondem a cim a da água do que as pedras.”
essa assimilação: por exemplo, um pedaço
grande de pão. Tais inconseqüências não Essa criança já parece atribuir, de modo
podem ser explicadas de outro modo senão constante, um peso específico às substâncias:
pela grande dificuldade as diferenciações e o ferro e a pedra afundam na água porque são
das classificações às quais a criança deve en­ pesados; a madeira flutua “porque é mais
tregar-se para ajustar efeitos e propriedades leve que tudo”. Mas não sabe ajustar essa
entre si e para isolar o objeto das circunstân­ definição ao caso particular de cada objeto.
cias particulares em que se encontra. Diante dos barcos de ferro que flutuam, é
obrigada a supor duas espécies de ferro, ou
DISCORDANCIAS EVENTUAIS ENTRE seja, ela renuncia, na verdade, à sua explica­
QUALIDADE, SUBSTÂNCIA, OBJETO ção. Contudo, ela comepara observando,
espontaneamente, que um barco deve en­
Quando esse trabalho, em grande parte, cher-se de água para afundar. À respeito da
já se operou, quando já se estabeleceu a árvore, mais pesada que uma pedrinha que
equivalência de certas propriedades com afunda, ainda não sabendo coordenar as
certas substâncias, a dificuldade pode renascer noções de peso e de volume, ela se limita a
para distinguir os próprios objetos e as subs­ explicar que ela flutua porque é de madeira.
tâncias de que são feitos, pois a substância já Essa oposição dos argumentos substância e
é um termo comum ao qual será necessário, peso mostra quão frágil permanece, para ela,
agora, reduzir os casos particulares. a ligação de um peso determinado com uma
subsbância determinada. Ela acaba até
D...al 7; 1/2 “Osbarcos afundam na água? abandonando o argumento substância após
- Não, senhor, só quando eles estão cheios de o argumento peso e constantado, simples­
água. - Porque eles não afundam? - Porque mente, que a árvore anda melhor sobre a
eles são de m adeira e de ferro. - Se eu jogasse água do que as pedras.
um pedaço de ferro na água, ele não afunda­ Não há intermediário, para ela, entre
ria? - Afundaria. - Diga-me porque o barco de contradizer-se e a explicação tautológica do
ferro não afunda e o ferro afunda. - Não sei. - fato por si mesmo. Suas primeiras tentativas
Pense bem. - Porque é de ferro de propósito de reduzir a qualidade à substância levam no
O .- Como o fizeram de propósito? - Não sei. final das contas, apenas ao enunciado dos
-Esse ferro não é a mesma coisa que o outro? efeitos constatados. Mais abstratas, a noção
- Porque ele é leve. - O ferro pode ser pesado de substância choca-se com os casos particu­
lares e deixa-se fragmentar por eles.

( ) N.T.: No original en francês, a um jogo de palavras B...ère 6; “O lápis e a mesa são a mesma
entre “fer exprès" (“ferro d e propósito") e “faire exprès” madeira? - Não, não é a mesma. - Porque não
(“fazer de propósito"). é a mesma? - Para escrever.”
A DEFINIÇÃO 307

Embora estivesse, anteriormente, reduzido a qualidade do objeto nem sempre sabe a


o lápis e a mesa à mesma substância, seu uso qual dar a prioridade de existência. N atu­
diferente rompe essa unidade: em sua imagem ralm ente, é no objeto que sua experiência
global da coisa, é o uso que prevalece sobre a prática e utilitária tende a lhe fazer reco­
matéria, a ação sobre a substância. nhecer o real, onde as qualidades têm seu
Habitualmente, a qualidade é reduzi­ centro, onde podem variar ou suceder-se,
da à substância ou ao objeto assim como ao do qual são, finalm ente, a maneira de ser.
seu princípio. Mas essas relações ainda são Contudo, essa base não fica firme logo de
tão incertas que o inverso pode produzir-se início, pois a criança começa dando suces­
e a qualidade é dada como a totalidade ou sivamente, em cada uma das qualidades,
como a essência do objeto. novidades que sua atividade faz surgir e,
N...er 9; “O que é o sol?... Como ele é quando a imagem das qualidades como tais
feito? - Branco. - E o que mais?... (Mostramos começa a se desenhar sobre sua imagem
a parede) de que cor é isto? - Branco. - É o sol? das coisas, a criança é, freqüentem ente,
- N ão. - Então, o que é o sol? N ão sei. Você já tentada a suprimir esta diante daquela.
o viu? - Já. - Como você sabe que é ele? - N ão É sobretudo, entre a qualidde e a
sei. - Mas quando você o vê, o que você vê? - substância que a oposição destaca-se na
Branco.” criança, pois a substância é um interm ediá­
P...ot 7; “Como é feito “o quente”? - É o rio entre o objeto concreto e a proprieda­
am arelo.” de. Quando há desacordo entre os efeitos
N...et 6; 1/2 “Como são feitas as nuvens? imputados a uma qualidade e os constata­
- São feita s com verm elho.” dos em um objeto dotado dessa qualidade,
Nesses três casos, uma certa cor ou freqüentem ente é na substância que é pro­
nuança parece esgotar a descrição ou a de­ curado o meio de escapar à contradição.
finição do objeto. Se essa inversão das re­ N ...aire 7; 1/2 explicou que o papel
lações é, de preferência, excepcional e, afunda na água porque é transparente e não
mais freqüentemente, uma fantasia barroca é grande. “ Quando é transparente, ele
que pode traduzir uma certa atitude de afunda? - A fu n d a . - Se você colo'casse vi­
oposição ou de ludismo, isso ocorre por­ dro na água ele afundaria? - A fu n d a ria ,
que o objeto, reduzido a uma qualidade, é, p o rq u e é d u ro . - Diga-me coisas duras. -
por causa disso mesmo, despojado de todas A s p e d r a s , a s b a rra s d e f e r r o , a ço , c o b re ,
as qualidades de que recebe, contudo, sua f e r r o . - E a madeira? - É, a g en te p r e c is a
plena realidade perceptiva ou prática. A s e r r a r p a r a q u e b ra r. - Ela afunda na
qualidade, que ainda não é uma categoria água? - E la n a d a . - Porque ela nada? -
que permita classificar os objetos sob um P o rq u e é d e m a d e ira . - Por que madeira
certo ponto de vista, mas que é dada como nada? - P o rq u e ela não a tr a v e s s a a á gu a. -
o fundamento dos mesmos, assimila obje­ Por que ela não atravessa a água? - N ã o
tos díspares. No objeto ou na substância, s e i. - Diga-me coisas que atravessam a
pelo contrário, qualidades diversas devem água. - A m a d e ira , uma ro lh a , uma tá b u a .
poder se encontrar, combinar-se, condi- - E coisas que não atravessam a água? -
cionar-se mutuamente. Por mais evidente F e rro , a ç o , uma c a d e ira , um c a r r o . - Por
que seja esse fato, ele não causa menos que têm coisas que atravessam a água e ou­
problemas à criança, enquanto ela pratica­ tras que não atravessam? - P o rq u e é p e s a ­
mente não estiver saído do sincretismo, d o , o que n ão a tr a v e s s a a á gu a é p e s a d o . ”
que identifica a qualidade com o objeto e É por ser de madeira que a madeira
que confunde, entre si, todas as qualidades não afunda na água, embora seja dura, en­
do mesmo objeto. Seu esforço para separar quanto que o vidro, o ferro etc., afundam
308 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

porque são duros. Desse modo, a qualidade dos. - Como o Sena pode correr? - Porque
dada como causa a certos efeitos pode ele é liso. - Os encerados correm? - Não. -
também ser encontrada com efeitos contrá­ Por quê? - Porque não são de água.”
rios. Ela já é dada como causai, embora te­ O que não é de água não pode fluir.
nha, sobretudo, valor de circunstância. Is­ Mas se o Sena flui, isso ocorre porque é
so é mostrado pela fácil passagem da liso. E liso como outros objetos que,
criança entre duas qualidades muito dife­ no entanto, não fluem. O que as expli­
rentes a propósito do mesmo efeito. Embo­ cações da criança têm, ao mesmo tempo,
ra o vidro seja mais transparente que o pa­ de sincrético e de ocasional aparece bem
pel, a criança substitui, espontaneamente, aqui. Na palavra liso, parecem fundir-
a transparência pela dureza como motivo se impressões provavelmente bem diver­
de sua imersão. Ela tem, aliás, apenas uma sas. Aplicada ao Sena, ela deve ser mais
imagem tão obscura do mecanismo que une ou menos sinônimos de líquido, daquilo
a qualidade aos efeitos correspondentes que desliza, ao mesmo tempo que pode
que o inverte, durante suas explicações, traduzir o aspecto reluzente da água: a
sem parecer disso se aperceber. Se a ma­ assonância lisa-desliza, acrescentando-se
deira flutua é, sucessivamente, porque não à simultaneidade perceptiva reluzente-des-
atravessa a água e porque atravessa. A pa­ lizar, faz-lhe condensar essas diferentes
lavra atravessar deve ter mudado de senti­ significações. Mas, com outros objetos,
do no intervalo. No início, tratava-se da ela assume o sentido de polido, de brilhan­
ação exercida pela gravidade sobre os cor­ te, de superfície escorregadia, em vez de
pos mais pesados que a água e, em segui­ corpo que está deslizando, e deve aban­
da, parece tratar-se da mobilidade que um donar a fluidez. Assim, ela tem uma signi­
corpo pode conservar através de um líqui­ ficação heterogênea que, conforme os
do sem ir ao fundo. Essa inconstância das objetos, coloca-a, em alguns, em oposição
noções e das imagens explica as incon- com os efeitos que explica em outros. Essa
seqüências e as contradições que influen­ confusão de propriedades diversas sob
ciam as definições da criança. Como pode­ o mesmo vocábulo, a qual ocasiona a atri­
ria ela escapar à incoerência e salvaguar­ buição dele a objetos díspares, coexiste
dar suas necessidades lógicas sem abando­ com o efeito inverso, ou seja, a limitação
nar uma explicação por outra? a casos muito particulares do termo, que
N ...ot 7; “ A água do Sena se mexe? - deveria definir-lhe muito mais: assim, ten­
M exe. - Como? - E la c o r r e . - Como ela do sob os olhos um encerado, a criança não
pode correr? - P o rq u e e la é lisa . - Diga-me sabe, nesse momento, imaginar outros
coisas lisas? - U m a g a rra fa . - Uma garrafa tecidos. Essas duas tendências, aparente­
corre? - N ã o . - Diga-me outras coisas li­ mente contrárias, têm a mesma causa. Mos­
sas. - A s vid ra ça s. As vidraças correm? - tram a dificuldade que ainda sente a crian­
Não\ - Outras coisas lisas. - Panos. - Que ça para transformar a percepção ou a re­
panos são lisos? - Q u a lq u er um. - Têm pa­ presentação concreta em análise qualitati­
nos aqui? - Têm . - Mostre. - L á (um e n c e ­ va, condição necessária, ao mesmo tempo,
r a d o ). - E isso também é pano? - (as corti­ para individualizar rigorosamente o objeto
nas). - É. - É liso? - N ã o . - Então, nem to­ e para fazê-lo passar sob as rubricas ou as
dos os panos são lisos? - E . . . n ã o . - Mos­ categorias que conciliam seus efeitos cons­
tre-me outros panos aqui. Têm? - N ã o . - tatados e a definição estrita de suas pro­
Têm panos na sua ¿casa? - Têm d o is . - Co­ priedades. Se a criança falhar nisso, po­
mo eles são? - E le s sã o liso s . - Para que derá apenas retornar à explicação do obje­
servem os panos da sua casa? - O s e n c e ra ­ to por si mesmo, a não ser que o explique
A DEFINIÇÃO 309

pela substância de que é feito. Mas, entre о em conflito e efeitos opostos são, suces­
efeito e a substância, a concordância ainda sivamente, atribuídos à mesma propriedade;
pode ser falseada. o peso faz o objeto flutuar se se trata do
chumbo e o faz afundar se se trata da pedra.
L...et 6; 1/2 “se você joga uma rolha no Em seguida, a substância vê a propriedade
Sena, o que acontece? - Nada. - Ela vai para о contrária a seus efeitos aparentes ser-lhe
fundo? - Não. - Se você jogar uma pedra, ela subtraída: o chumbo cessa de ser pesado,
vai para o fundo? - Vai. - Por quê? - Porque é visto que o barco flutua; o cachorro perde seu
um a pedra. - E a rolha? - Não. - Por que? - peso se está vivo e se nada; ganha peso, pelo
Porque é de cortiça. - Um barco vai para o contrário, se está morto e pára de boiar.
fundo da água? - Não. - Por quê? - Porque ele Desse modo, as tentativas que a criança faz
tem chum bo embaixo. - Por que o chumbo para ultrapassar as constatações mais ou
não deixa ele ir par o fundo? - Porque é menos rigorosas de suas experiência, e para
pesado. - Por que a pedra vai para o fundo? - reduzi-las a algo de mais constante, de mais
Porque ela êpesada. - Por que o chumbo não genérico que cada uma delas, obrigam-na a
vai para o fundo da água? - Porque o chumbo modificar suas definições segundo cada caso,
épesado. - E a pedra? - Ela épesada também. com o risco de se contradizer expressamente,
- Por que que os dois não vão para o fundo da porque ainda não sabe discernir, no conjun­
água?... O que é pesado vai para o fundo da to de uma situação ou de um objeto, a parte
água? - Não vaipara ofu ndo da água. - E um do todo, nem os fatores uns dos outros, nem
pedra então? - Vai para o fu ndo da água. - o papel recíproco dos mesmos na estrutura
Por quê? - Porque épesada. - Diga-me coisas que constituem.
pesadas. - Uma laje... uma pedra. - E o que Uma qualidade não tem conseqüências
mais?- Umpedaço de madeira. - O que é mais próprias, nem conseqüências que possam
pesado, uma laje ou um pedaço de madeira? ser, invariavelmente, opostas aos resultados
- Uma laje. - O que mais é pesado? - Quando de conjunto. Toda vez que se apresenta,
um cachorro morre no Sena, fica pesado. apenas contribui para o aspecto do resto.
Chumbo. - Por que um cachorro fica pesado? Efetivamente, ela não tem valor causal ou
- Porque ele não pode mais se mexer. - um específico, mas está ligada a todos os efeitos
cachorro vivo não é pesado? - Não, porque ele observáveis como que por um vínculo de
nada. - Um barco no Sena é pesado? - Não, participação imediata, de tal maneira que o
porque ele tem chumbo embaixo. - Então, ele objeto que flutua confere ao peso o poder de
não é pesado? - Não. - Um pedaço de madeira fazer flutuar, e o objeto que afunda o de fazer
é pesado? - Não muito, não.” afundar, pois, nessa participação indistinta é
preciso, ainda assim, que a criança esboce as
As contradições, assim com o as tauto­ relações de que ainda não sabe nada de
logías,são flagrantes aqui. A pedra vai para o preciso mas com as quais seu pensamento
fundo da água porque é pedra, a rolha não vai será elaborado.
porque é de cortiça e o barco também não Mesmo quando já sabe distinguir nitida­
porque tem uma quilha de chumbo. Para esse mente entre o objeto e a substância, atribuin­
último caso, a criança sabe, por experiência, do, a cada um, seus traços específicos ou dis­
que, sem chumbo sob a quilha, o barco viraria, tintivos, renascem conflitos a propósito quer
mas ela confunde virar com afundar e o dos fatos observáveis, quer dos outros objetos
chumbo com a substância total do barco. Essa aos quais se estende a qualidade considerada.
oposição da experiência global com uma
definição incompleta leva-a a contradições H...oux7; “Um garfo vai para o fundo da água
inevitáveis. Substância e propriedade entram ou fica em cima? - Vaipara ofundo. - Por que?
310 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

- Porque é de ferro. - Por que o ferro vai para cia, volume, estrutura etc. -, que realizam,
o fundo da água? - Porque é pesado. - Se o desse modo, através de suas combinações, o
ferro é pesado, o garfo é pesado também? - objeto face às impressões que ocasiona, e
Não. - Como assim? - Porque ele êfino. - Diga- que sujeitam-no a relações qualitativas fixas,
me coias que são finas. - Umpedaço de pano. apesar das contradições que podem surgir
- e o que mais? - Vidro. - Vidro vai para o fundo entre os diferentes campos sensoriais.
da água? - Vai. - Diga-me coisas que não são
finas. - Um pé. - Um pé como? - De madeira. CONFUSÕES DE SENTIDOS INTRA E
- E o que mais? - Uma roda. - E o que mais?... INTERQUALITATIVOS
As coisas finas vão para o fundo da água? -
Não. - Um garfo é fino? - К - Ele vai para o Enquanto os resultados dessa análise
fundo da água? - Vai. - Então, as coisas finas não encontrarem limites suficientemente di­
vão para o fundo da água? - Vão. - Sempre? - ferenciados e estáveis, o objeto permanece­
Não. - Quais são as coisas finas que vão para rá indeciso entre sua própria realidade e as
o fundo da água? - Q uando são de ferro. - atestações subjetivas de sensibilidade. Inver­
Quais são as que não vão para o fundo da samente, enquanto a qualidade própria do
Água? - Panos, papéis, cartões.” objeto permanecer sujeita às mesmas flutuações
que as impressões do sujeito, as noções
Essa criança já distingue jentre a substân­ relativas ao objeto correrão o risco de lhes
cia e o objeto, entre o peso do ferro que, para serem imputados efeitos diferentes confor­
a criança, está mais relacionado com a defi­ me os objetos: as coisas finas não vão para o
nição do que com uma experiência particular, fundo da água e, contudo, o garfo e o vidro,
e a leveza prática do garfo, que ela já explica embora finos, nela afundam. Em compen­
por seu pouco volume, por sua fineza, ela sação, os objetos citados como não sendo
opõe, em sua representação, o caso particular finos são os que flutuam: um pé de madeira,
ao habitual. Mas ainda não é uma relação, é uma roda.
uma simples constatação. Não é uma relação
de densidade, a qual permitiria identificar o F...ge7; “O que é que vai para o fundo da
peso do ferro em todos os objetos feitos desse água, o que tem peso ou o que tem força? - É
metal. É apenas a oposição entre a impressão o que tem força. - Diga-me coisas que vão
dada pelo objeto e a qualidade de sua subs­ para o fundo da água. - O feiro, o vidro, as
tância. É um desacordo, uma negação da pro­ pedras. - Um barco tem força? - Tem, sim,
priedade incialemente afirmada, por incapa­ senhor. - Ele vai para o fundo da água? - Não,
cidade de justificar a distância entre a reali­ senhor.”
dade da coisa e o esforço subjetivo que a ela A força é, alternadamente, atribuída aos
se liga. Provavelmente, é no esforço a ser for­ objetos que afundam na água e aos que flu­
necido que a noção de peso tem sua origem tuam. Essa inconsistência nas relações entre
primeira, de modo que, com o esforço, desa­ as propriedades e suas conseqüências tem,
pareceria o peso. Mas o peso é, em seguida, como contrapartida, a confusão ou a perpé­
passado para a coisa. Esta parou de trans­ tua substituição das qualidades entre si.
formar-se qualitativamente ao sabor da sen­
sibilidade que a acolhe, na medida em que C. P...it 6; acabou de definir subjetiva­
podia ser melhor decomposta em suas parti­ mente “pesado” como o que não pode ser
cularidades quer constitutivas, quer aciden­ erguido. “Diga-me coisas fortes. - Não sei. -
tais, e se tomava niais estritamente um lugar Você não sabe o que isso quer dizer? - É
de encontro para traços suscetíveis de variar quando a gente é grande. - Diga-me coisas
independentemente uns dos outros - substân­ duras. - Árvores. - Como as árvores são duras?
A DEFINIÇÃO 311

- As árvores, quando a gente corta elas intei­ ferro. - Uma locomotiva é forte?- Я - Por quê?
ras, são pesadas. Uma mesa ê pesada. - Mas - Porque é grande. - Um montão de palha é
eu não disse coisas duras?..." forte? - Não. - Mas e se ele for muito grande?
- Я -Um monte grande de palha é forte? - Não.
Forte e grande, duro e pesado são dados - Por que um monte grande de palha não é
como sinônimos. Na linguagem corrente, íortê-P orque épequeno. - Vocêjáviu montes
“forte” e, freqüentemente, empregado como grandes de palha no campo? São pequenos?
eufemismo para “grande”. É isso o que leva a - Não. - Por que eles não são fortes, então? -
criança a confundir o sentido deles? Não Porque eles se dobram. - O vento se dobra? -
é,pelo contrário, o uso popular que seria um Não. - Um avião é forte? - É - Por quê? - Porque
retorno ao que leva a criança a confundi-los: égrande.”
provavelmente, uma certa homologia de Se podem ser igualmente qualificados
impressões ainda insuficientemente diferen­ de “forte” o vento, a madeira, a depdra, o fer­
ciadas? Para “duro” e “pedado” parece ser ro, o tecido, o homem, o vidro, um automó­
esse o caso. Talvez a criança coloque uma vel, uma locomotiva, um avião, isso ocorre,
naunça entre as duas palavras: ela explica a evidentemente, dando, a cada vez, atributos
dureza da árvore porque, cortada mas inteira, diversos à força. Esta ê, sucessivamente, assi­
é pesada. De pé, ela seria dura, ou seja, milada à dureza ou a grande dimensões. Ca­
resistiria a todo esforço para deslocá-la; da um desses termes é considerados em
cortada, ela exige um esforço considerável. sentidos diferentes. A dureza do tecido que
Pesado seria apenas um diminutivo de duro. não se rasga não é a da madeira e nem a do
Mas, quer haja essa graduação ou simples ferro. Não é à mesma intuição de grandeza
substituição de um termo por outro, assi­ que a criança pode reduzir o tamanho de seu
milação ou confusão, o poder de delimitação pai e o de uma locomotiva. As dimensões
qualitativa permanece nitidamente deficien­ estão de tal modo ligadas, em cada caso, à
te e a qualidade objetiva incorpora-se na im­ idéia de força que a falta de força faz com que
pressão subjetiva. sejam negadas, ao objeto, suas dimensões
A essa assimilação entre qualidades di­ reais: um monte grande de palha não é forte
versas corresponde a de objetos heteróclitos porque é pequeno. Assim, as qualidades dife­
sob a mesma rubrica qualitativa. rentes não têm independência recíproca: sua
G...y 6; 1/2 disse que o vento é forte “o influência mútua pode fazê-las mudar de
que mais é forte como o vento?... O que quer sinal, a ponto de a grandeza tomar-se peque-
dizer forte? - Quer d izer que é dum. - O que neza se o objeto, em vez de ser duro, se curva.
é duro? - Madeira, uma pedra, ferro, pano. - É a supressão de toda diferenciação qualita­
O pano e a madeira são fortes do mesmo tiva diante do sentimento subjetivo, o qual
jeito? - Não. - Como o pano é forte?... O que é encontra-se, ele próprio, regredindo gra­
forte como o pano? - Papel. - O papel é forte? dualmente até uma relação extremamente
- Não. - Por quê? - Porque ele rasga. - A elementar e global das diferenças ou das
madeira é forte/ - É. - Forte com o o vento? - resistências que o objeto opõe ou não ao su­
Não. - Por que não é igual? - O vento é mais jeito. É, até mesmo, muito mais o sentimento
forte que a madeira. - Por que?... Diga-me anônimo de um simples contraste, de tal
outras coisas que são fortes com o o vento. - modo despojado de toda significação precisa,
Não sei. - Seu pai é forte? - É. - Como ele é que fica como que despersonalizado, e que
forte? - Não sei. - Ele é forte com o o vento ou une as simples intuições de diferença, as
com o vidro? - Como o vidm . - Como a gente quais são as primeiras referências e as estru­
vê que ele é forte? - Porque ele égrande. - Um turas mais elementares da sensibilidade. É
automóvel é forte? - È - Por quê - Porque é de desse modo que a diferença de força entre a
312 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

madeira e o vento chega a ser definida com o carne. Q uando a gente morre, agente mexe
uma sim ples diferença de grau. Essa redução nos ossos e eles quebram - Os meninos e as
da qualidade a uma estrutura de oposição ou meninas são duros como o pátio? - Ah, não!
de contraste autoriza, evidentem ente, todas Não tão duros. - Qual é a diferença? - Porque
as comparações, mas, ao m esm o tem po, inva­ os ossos não são duros dentro, enquanto que
lida-as, visto que nada resolve ds semelhanças a terra tem lajes embaixo, das grandes.”
ou das diferenças entre objetos.
H ...é 6; “Diga-m e coisas fortes. - Um Para justificar sua enumeração dispara­
homem. - E o que mais? - A estrada. - Como a tada, a criança restringe-se a oposições entre
estrada t forte? - Porque ê de pedra. - Como a os objetos reunidos, em seguida do objeto
pedra é forte? - Como parece. - Duro e forte consigo mesmo. Ela despoja as crianças da
são a mesma coisa? - São. - Diga-m e coisas carne delas, que começara dando como
que são duras e fortes. - Camas, vendedores, motivo da dureza das mesmas; imagina-as
carros, escadas, pesos que a gente pesa. - reduzidas, pela morte, ao estado de esque­
Vendedores e pesos são duros da mesma leto e só tem, então, que estabelecer uma
maneira? - São... não. - No que eles não são diferença de grau entre os esqueletos e as
iguais? - Porque a pedra quebra. - E os ven­ pedras. Para justificar essa diferença, é ainda
dedores, por que não são iguais à pedra? - um contraste que entra em jogo: os ossos são
Porque são duros. - O que é vendedor? - Um duros exteriormente e ocos dentro, as pedras
homem. - Um hom em é duro? - É. - E uma ficam sob a terra que sustentam. Há uma
pedra? - É. - Por que um homem não se grande diferença entre esse procedimento e a
quebra, se ele é duro? - Porque é de c a m e ” definição ou a qualidade catégorial. Ele con­
siste em simples aproximação ou oposição
Sob a mesma palavra “duro” são reuni­ termo a termo entre partes de objetos e obje­
dos objetos bem heteróclitos, entre os quais a tos, podendo esses agrupamentos, aliás, tra­
comparação é, finalmente, im possível. Cada duzir relações reais. Através disso, a experi­
um permanece distinto dos outros, o adjetivo ência que a criança tem das coisas encontra
não exprimindo nada que lhes seja comum. um meio de se exprimir, embora ela ainda
Na falta de unia sem elhança, para obter pelo seja incapaz de imaginar uma propriedade
m enos uma oposição, a criança teve que pura, que esteja suficientemente livre de cada
substituir o peso pela pedra: a pedra quebra, coisa para servir de medida para todas.
o hom em é de carne e não quebra. Contraste Por falta da criança saber reduzi-la a
sim ples e que desm ente a definição dos dois uma definição estável, a razão dessas apro­
através da mesma palavra “duro". É ainda a ximações ou dessas oposições pode escapar-
fase das ligações termo a termo, ou melhor, lhe repentinamente e impor, à sua engenho-
dos pares, fía é incompatível com uma defi­ sidade, comparações que recorrem a circuns­
nição que pode servir à classificação de todos tâncias extrínsecas, em vez de se basearem na
os objetos que apresentam o traço definido. natureza dos próprios objetos. A extrava­
Contudo, para justificar seus agrupamentos gância dos motivos então invocados faz, fre­
barrocos, habitualmente não faltam explica­ quentemente, com que se reconheça a que
ções à criança. ponto sua representação permanece disper­
sa entre aspectos do objeto que são, por
C... in 6; 1/2 citou com o “duro" mesas, ca­ vezes, puras aparências perceptivas.
sas, cadeiras, radiadores, o teto, postes de ele­
tricidade, as janelas, o telhado da escola, o pá­ G...ry 6; 1/2 “Um avião é forte? - É. - Por
tio, os m eninos, as meninas. “Como os meni­ quê? - Porque é grande. - Um avião é mais
nos e as meninas são duros? - Porque eles têm forte que um monte de palha? - É. - É menor
A DEFINIÇÃO 313

que um m onte de palha? - É. - Então, por que muda de direção, vai do avião para a palha,
é mais forte? - Porque é maior. - Você tinha me em vez de relacionar, ao tamanho dos objetos
dito que ele era menor. Рот que ele é mais próximos, o do objeto que se afasta.
forte? - Porque o avião voa. - Por que ele pre­ Desse modo, só resta da relação grande-
cisa ser forte para voar? - Porque ele têm asas. za-distância um simples contraste entre dois
- Por que ele é forte? - Não sei. - A palha, objetos, de tal modo fechado em si mesmo
quando voa, é forte? - Não. - Por que o avião que é permitido inverter a ordem deles, su­
é forte quando voa e a palha não? - Não sei. - bordinar a realidade da palha à do avião
Pense bem, você vai descobrir. - Porque, trazido para o solo, esquecer que, para a
quando ela voa, a gente vê ela menor. - E pequeneza aparente da palha, há outros
quando o avião voa? - Não sei.-A gente não motivos que os motivos para a pequeneza
o vê menor? - Vê. - É do mesmo jeito que a aparente do avião. Essas simples relações de
gente o vê menor? - Não. - Como a gente vê a contraste, que não impõem ao pensamento
palha menor? Qual é a diferença? - A palha ê um ponto de vista e nem uma direção fixos,
redonda. - Por que a gente a vê menor por­ são iguais à confusão ou à substituição mú­
que ela é redonda? - É quando o avião está tuas de qualidades heterogêneas. Assim como
embaixo que a palha é menor. - Quando a não são capazes de reduzir as diferenças
palha voa, ela é menor do que quando ela percebidas a uma escala estável de nuanças,
não voa? - É.” de graus ou de variações, também não po­
dem continuar elas mesmas, ao longo das
Assim, a noção de tamanho, â qual a comparações. Não param de se anexar entre
criança queria reduzir a da força, ainda está si conforme os casos e as circunstâncias. As
tão integrada nos dados perceptivos que a correlações dão lugar à aglutinação. Para
criança não sabe explicar as causas para as toda situação ou todo objeto novo, elas se
quais ela varia: afastamento quando o avião modificam mutuamente. Noções extrema­
voa, dispersão quando são as partículas de mente diversas ou vagas chegam a ser sincre-
palha. Provavelmente, a criança tem a intui­ tizadas sob o mesmo vocábulo: comparada
ção disso, mas de m odo tão particular para ao avião, a palha é vista menor porque é
cada caso que não chega a isolar, e nem a “redonda”. Será assimilação da palha em
comparar, as condições, tão diferentes, em partículas à palha em montes, contaminação
que o olho percebe a palha e o avião com o entre a pequeneza da partícula e a forma do
pequenos. A relação da distância e da dimen­ monte, com oposição global às formas angu­
são aparente é, para ela, exatamente um fato losas do aviao? Que inorganização conceituai
de experiência. Contudo, ela a exprime, não da percepção esse exemplo nos mostra!
em relação ao m esm o objeto, mas sob a A relação termo a termo, que está ligada
forma de uma relação entre dois objetos: é à diferenciação entre dois objetos, assim como
quando o avião está em baixo que a palha é à estrutura mais simples de onde a qualidade
pequena. Em vez de constatar a diminuição possa surgir, levou-nos ao par. Antes de tomar­
aparente do avião com seu afastamento, ela se propriedade do objeto, definindo seu poder
parece afirmar a maior pequeneza real da e permitindo reuni-lo, por semelhança ou
palha quando o avião está próximo. Incapaz diferença, entre outros objetos, a qualidade
de exprimir a diferença da grandeza percep­ passa por diferentes fases: simples estrutura
tiva e da grandeza real, ela inverte a ordem dos de contraste, de oposição, de diferença; pas­
termos: é a palha que se tom a pequena e não sagem à noção de grau, mas onde podem ser
o avião, porque, em vez de segui-lo em seus confundidas qualidades heterogêneas, equi-
deslocam entos, ela o traz para o chão perto valências qualitativas que resultam de sim­
dela, com suas dim ensões reais. A comparação ples circunstâncias acidentais ou habituais.
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS

A grande novidade do comportamento alternadamente, a prioridade. Mas seu poder


humano, na história das espécies, é uma exato de ajustamento, postulado pelatentativa
atividade que é falada e que, por conseqüên­ que uma definição correta é, está longe de ser
cia, traduz as coisas em palavras. Desse modo, um fundamento ou uma certeza primordial
ela pôde, gradualmente, submeter-se à dire­ (V, De l’A cte à la Pensée). Civilizações mais
ção do conhecimento. O motivo de espanto, primitivas mostram o papel dos ritos destina­
no mundo animal, são relações de lugar e de dos a colocar um vínculo de continuidade
tempo entre o ato e o efeito que não permi­ entre a coisa rebelde e a ordem imaginada, o
tem supor-lhes a representação no autor. papel da palavra, não para descrever, mas
Milagre do instinto, dizem normalmente. Mas como evocação mágica, o papel do simulacro
o “milagre” da representação, habitualmente, como instrumento de comunhão com as forças
pouco nos impressiona. Parece-nos milagre estranhas que é preciso atrair para si, em
um resultado que descobrimos em sua reali­ suma, todo esse longo esforço que impeliu o
dade global e isolada. O que nos é familiar homem, que sonha exercer, sobre as coisas,
demais, porque em nós se realiza, não é mais um outro poder que apenas aquele de suas
milagre. aptidões sensorimotoras, aplicar-lhes o que
já o unia a seus congêneres - o mimetismo
NASCIMENTO DA REPRESENTAÇÃO afetivo ou prático, o pedido ou as instruções
orais - e que, gradualmente, sujeitou-o a uma
O princípio e a prática da imagem ou da imitação, de onde o jogo sempre mais sutil e
idéia que traduzem o objeto eram adquiridos mais bem apropriado das técnicas verbais e
já bem antes que o pensamento se tomasse intelectuais fez surgir a representação. Mas a
capaz de explicar-se consigo mesmo. O harmonia assim pretendida é delicada demais
“como” era simplesmente um problema quer para que a criança não tenha, ela também,
de especulação filosófica, quer de técnica que tatear.
correta. Não é por acaso se um Platão ou um Inicialmente misturada às coisas por seus
Aristóteles abrem para nós a era da razão apetites, seus gestos e sua sensibilidade, a
adequada às coisas, da razão por excelência. criança deverá, para conhecê-las, delas sepa­
Os cânones de uma definição correta só se rar sua própria existência. Ela as quer ou
tornam possíveis e necessários para encerrar evita, atrai ou rejeita, solicita ou reprova, não
o período das tentativas, das confusões, dos como distintas delas, mas como o comple­
conflitos entre as intenções do verbo e o des­ mento ou a perda de seu ser. Ela está unida a
tino das coisas; para inaugurar o período em elas pela rotina, e por suas condutas auto­
que o problema é apenas o de reconhecer, máticas, ou então, une-as a si por ações no­
no outro, o reflexo deste - mundo ou pensa­ vas, que delas utilizam as disposições, as es­
mento - ao qual a especulação filosófica dá, truturas, para nelas se realizar ou diminá-las.
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 315

É o campo da inteligência perceptiva e prática. terríveis que se misturam em seus contos


Nele, tudo é apropriação mútua e fusão. O preferidos. Um objeto pelo qual ela se inte­
conhecimento, pelo contrário, supõe seres ressa ainda é uma história para ela. É uma
separados e oponíveis, mas, antes de tudo, aventura, um pequeno drama de impressões
oponíveis a quem os conhece. Para apreendê- e de descobertas. Por seu lado, uma seqüên­
los como separados de sua própria existência, cia de incidentes ainda não tem, para ela,
a criança deve poder deles fazer o inventário. cronologia precisa, subordinação determi­
São-lhe necessários nomes para lhes dar uma nada. É apenas uma totalidade de onde o
individualidade distinta e estável. Mas a de­ acontecimento tira seu sentido, sua fisiono­
nominação pode corresponder a uma fase mia, sua realidade global. Os dois grandes
onde a fala é ainda o simples eco do desejo, caminhos por onde o conhecimento vai avan­
da percepção ou da ação. Ela é, então apenas çar - o da definição e o das relações -, ainda
a formulação das impressões ou das condutas são confundidos.
que se sucedem, sem ter o poder de evocar. A separação far-se-á quando as simples
A criança só pode saber colocar um nome nos sucessões enunciadas se tornarem enumera­
objetos à medida que os percebe, manipula e ção, ou seja, reunião de seres ou de caracteres
pode limitar-se à enunciação do gesto que uidos sob uma mesma rubrica, quer seja
executa. Isso ainda não é nem lembrança, devido a uma semelhança comum ou ao fato
nem instrução. É apenas concomitância das de pertencerem um ao outro. Mas essa con-
manifestações orais com as ocupações mo- !dição é, precisamente, muito difícil de preen­
netâneas da criança, mas por onde se opera cher para a criança. Suas enumerações são
uma correspondência sempre ma^s exata e constantemente heteróclitas. O tema e o objeto
mais familiar. continuam ainda confundidos demais para
Chegará o dia em que o instrumento que não ocasionem, sucessivamente, um ao
verbal possuirá, suficientemente, significa­ outro. Na verdade, um grande trabalho se
ções bem diferenciadas para que, na ausên­ impõe à criança: o de saber .comparar os
cia dos objetos ou dos atos, possa unir-se à objetos entre si, de saber reuni-los segundo
simples imagem deles e servir para tomá-la suas semelhanças, dissociá-los segundo suas
mentalmente presente. É a idade em que a diferenças. É preciso, portanto, saber distin­
representação se põe a existir por si mesma. guir objetos e qualidades; identificar o objeto
Ela não tem mais, como suporte necessário, com ele mesmo, apesar de sua diversidade
uma percepção concomitante, mas apenas perceptiva ou de uso, e reconhecer-lhe toda
seus próprios meios de expressão. No início, a diversidade de suas qualidades; opô-lo a
adere firmemente a eles. Primeiramente, só qualquer outro objeto e uni-lo aos que pos­
pode ser pensado o que é descrito ou relata­ suem, com ele, uma qualidade comum. Eis aí
do. Mais tarde, esses próprios vínculos rela­ operações que permanecem, durante muito
xarão e toda uma seqüência de passagens tempo, confusas e incoerentes na criança.
sutis reunirá o pensamento falado ao pensa­ Não é apenas com essa dupla distribuição -
mento não formulado. Mas, por muito tem­ qualidades em cada objeto e objetos sob cada
po, a criança só saberá fixar sua representa qualidade - que ela se choca mas também
ção dando-lhe seu equivalente de palavras. com a mutabilidade dos próprios objetos e
Ela a relata para si ou faz com que seja com as mutações, freqüentemente neces­
relatada para si traços por traços, aconteci­ sárias, das qualidades entre si no mesmo
mentos por acontecimentos: entre a descri­ objeto. As qualidades não devem permanecer
ção e o relato, a homologia é grande. A da maneira como são percebidas no objeto,
criança ouve, com a mesma atenção, a suces­ elas devem como que transcender a percep­
são dos aspectos e dos atos maravilhosos ou ção, tornar-se mais virtuais que concretas, a
316 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

fim de convir a um objeto qualquer e destinar, for nocivo. A percepção, ao se liberar por si
para ele, um local determinado entre os outros. mesma do circuito estímulo-movimento, ape­
Ela deve tornar-se potencial e categoria, abs­ nas faz com que se desenvolva essa aptidão
tração e agrupamento. É com essa condição para a antecipação. A análise de qualquer
que uma definição correta se tomará possível, percepção particular mostra que ela ultrapassa
po t adaptação mútua de seus dois conteúdos consideravelmente a impressão de onde, efe­
- qualidade e coisa -, de sua compreensão e tivamente saiu. Ocasionar a percepção per­
de sua extensão. Mas è o detalhe das dificul­ tence, portanto, a uma espécie de índice, por
dades encontradas pela criança que pode vezes muito sutil. De sua discriminação exata
mostrar as condições psicológicas dessas ope­ e precisa, de sua escolha judiciosa, embora
rações. irrefletida, depende a justeza ou a oportu­
nidade da representação. Ele pode, aliás,
DA EXPERIÊNCIA SUBJETIVA À IMAGEM varias conforme as circunstâncias. Não con­
siste em um código rígido, mas no poder de
A descrição é a passagem do objeto à ser, por si só, a causa da image. Por seu lado,
linguagem. Entre os dois, entram em jogo a imagem também não é, em quaisquer
muitas alternativas. Se o objeto deve, por circunstâncias, a mesma. Ela resulta de seu
inteiro, figurar em sua própria representação, índice momentâneo tanto quanto do objeto.
deve também, para tal se tornar, despojar-se, Se o objeto em seu todo deve nela refletir-se,
em grande parte, das impressões que respon­ não é um reflexo, a todo instante, total.
dem à sua presença e revelam sua realidade. A representação é, em si mesma, ums
Inicialmente, só há objeto se este é distingui­ simplificação do objeto, mas uma simplifica­
do das reações subjetivas, sem as quais, con­ ção variável, cujo próprio poder está, precisa­
tudo, sua existência permaneceria estranha mente, nessa variabilidade. Tudo que ela
para que o percebe. Ele não pode opor as pode fazer dele aparecer é, comumente,
propriedades que o constituem aos apetites, considerado como que aí ficando inscrito
recusas, atitudes ou gestos que suscita, senão permanentemente. Isso é retirar da repre­
pela clivagem deles. É uma operação de flu­ sentação sua função essencial, que é a de
tuações e de graus múltiplos, cujas incertezas substituir o objeto pelos símbolos por onde
continuam a repercutir na criança quando ela pode entrar nos diferentes meandros do
se esforça para exprimir a imagem que tem pensamento, e é tom ar seu papel impossível,
das coisas. Mas essa eliminação do subjetivo, inconcebível. Ela nasce da impressão, por
controlada pela necessidade, em que sua vezes furtiva, que as circunstâncias exteriores
evolução mental a coloca, de reduzir o que acabam permitindo; disso ela tira, não a cada
sente a sistemas duráveis de objetos e de vez a totalidade de seu próprio conteúdo,
causas suscetíveis de serem imaginados e mas o traço indispensável ao ato intelectual
conhecidos, não é a única. Ela é precedida ou prático que a utiliza. Ela é mais processo
por uma outra, que está ligada às primeiras que realidade sempre efetiva. Mas se pode,
relações do indivíduo e do meio. desse modo, simplificar o objeto, isso ocorre
A antecipação perceptiva é um fato porque o representa por inteiro, porque éo
extremamente geral, através do qual o orga­ poder de evocar à vontade, no conjunto deles,
nismo aprende a reagir, de maneira apropria­ seus aspectos e suas propriedades, porque
da, sob a influência de uma impressão asso­ permanece sendo o equivalente de sua
ciada, mas que precede aquela à qual perten­ exploração.
ce essencialmente o poder de provocar a rea­ Essa exploração, concentrada ou disse­
ção. Desse modo, o excitante fundamental minada no tempo e no espaço, deve, ne­
pode achar-se escamoteado, ou evitado, se cessariamente, ter ocorrido. Ela constitui a
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 317

experiência que o sujeito tem do objeto. Vista sua significação precisa. Certas regressões da
no jogo da representação, a experiência vai fala levam a essa fase. Por esse meio, aliás, o
do concreto total ao símbolo mais elíptico, nome se integra ao objeto; toma-se seu
cada grau subsistindo potencialmente sob os complementar; parece-lhe tão profundamen­
índices mais abstratos, ou seja, capaz, a todo te unido de existência quanto as proprieda­
instante, de completá-lo ou de acentuá-lo. des cuja presença constata ou requer, espe­
Mas se o índice pode, em muitos casos, ter rando poder evocar-lhes a pura representação.
como que uma prioridade de fato sobre a Seu valor simbólico ainda é fraco, e é por isso
representação total, ele existe apenas em que ele pode conservar-se nessa função até
função dela e de seu desenvolvimento virtual, quando a função simbólica é mais ou menos
estando ele mesmo ligado à riqueza da expe­ abolida, como em certos casos se afasia.
riência e do conhecimento. À medida que a Mas a estrita dependência do gesto ou da
representação recobre-se de conteúdo, seu palavra com relação a situações reais e concre­
manejo corre o risco de tomar-se pesado tas ocasiona, quando eles delas se separam e
através de tudo o que deve significá-la e devem significá-las na ausência das mesmas,
realizá-la conforme as necessidades. À medi­ conseqüências opostas. Eles podem reter
da que cada índice pode ter que evocar uma delas apenas circunstâncias ou semelhanças
realidade mais rica e à medida que os traços muito parciais. Não exprimem a própria coi­
utilizáveis segundo os casos se multiplicam, sa, mas algo dela. Não são suficientemente
suas relações exigem um poder mais extenso símbolos para delas serem inteiramente o
e mais isento de escolha e de subordinação. substituto. O gesto não é, na criança ou no
A criança não é capaz disso. Suas represen­ afásico, o que é para o surdo-mudo ou para o
tações permanecem obstruídas, mais ou me­ primitivo: um equivalente exato do objeto. A
nos inoportunas e incompletas. palavra também não, embora vinda do adulto,
para quem essa significação é evidente. Disso
DA IMAGEM À LINGUAGEM resulta que a criança se encontre, como sem­
pre, novamente lançada entre duas neces­
A única maneira de exprimir-se que é, sidades contrárias: de um lado, a natureza
então, acessível ao seu pensamento é o essencialmente concreta de suas represen­
enunciado dos traços que formam o conteú­ tações; de outro, o caráter forçosamente limi­
do momentâneo do mesmo. Mas essa descri­ tado do que ela pode disso reter para exprimi-
ção, por mais elementar que seja, causa um lo. Donde o contraste, muito aparente nela,
problema: a passagem da imagem à lingua­ de uma aderência confusa ou inteiramente
gem. Não é que elas formem dois sistemas global às coisas e de uma esquematização de
independentes, entre os quais seria preciso, tal modo exagerada que pode tomar-se in­
chegado o momento, fazer ligações. A dife­ compreensível. Suas simplificações voltam-
renciação entre a expressão e a representa­ se rapidamente para a estereotipia puramen­
ção onde ambas saíram. A criança pequena te abstrata. As elipses de sua linguagem disso
ainda imita tudo o que se apresenta a seu fornecem a prova, apesar dos retoques a que
espírito ou tudo o que quer representar. Ela o exemplo ou as exigências do adulto a
representa suas idéias antes de falá-las, ou submetem sem cessar. Mas seus desenhos e
melhor, os sons ou as palavras com as quais seus graffiti, até mesmo suas comparações
ela as acompanha são, de início, puramente fornecem uma imagem ainda mais surpreen­
demonstrativos, exclamativos, optativos. dente disso. Aliás, é impossível ver aí uma
Limitam-se a assinalar ou procuram provocar forma mais abstrata do símbolo, pois, sob a
a presença da coisa. É do gesto que os aparência deles, operam-se substituições, de
acompanha que eles recebem, inicialmente, que a própria criança não se apercebe, ou
318 AS OMGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

assimilações injustificáveis entre as realida­ formas, as normas que ela impõe e o senti­
des mais afastadas. mento da experiência. Esse esforço de
Essa oposição é mostrada muito bem no apropriação não é ignorado pelo adulto, mas
comportamento intelectual da criança, que o resultado lhe suprime, habitualmente, os
deve, sem cessar, percorrer, em sentido in­ traços, enquanto é freqüentemente descon­
verso, o intervalo de suas imagens globais e certante, na criança, o desvio entre seu tema
de seus esquemas exagerados, sem nunca inicial e o que sua fala chega a traduzir disso.
chegar a atribuir-lhes uma correspondência Desse modo, a descrição, que tende a fazer a
precisa e definitiva. Por certos lados ou em impressão direta das coisas entrar na estrutu­
certos momentos, a coincidência entre o ra de uma representação, é, com freqüência,
sincretismo integral e o esquematismo mais desviada desta por seus próprios meios de
abstrato parece exata: em uma situação sim­ expressão. Ela já não é mais essa representa­
ples e sem mudança, um resíduo muito ção no instantâneo, visto que procura expor-
especial para fazer asvezes de todo um lhe o conteúdo, e ainda não pode compor-lhe
conjunto. Mas, basta sobrevir uma circunstân­ os traços. Aqueles de que ela procura apode­
cia nova e confusões, por vezes extravagan­ rar-se a dirigem. A sucessão deles abole a
tes, produzir-se-ão. Assim, vemos a criança intuição do conjunto. Tendo que se detalhar
voltar sempre aos detalhes particulares das no tempo, a representação se dispersa.
coisas, os quais lhe permitem retocar ou Essa influência do tempo passa de tal
reencontrar sua representação das mesmas. É modo para o primeiro plano que a descrição
à descrição que ela, desse modo, retoma. Ela empresta, com freqüência, suas formas do
lhe é indispensável. relato, de que ainda está mal diferenciada. Os
Ela corresponde a uma etapa da evolu­ termos reúnem-se entre si como incidentes se
ção intelectual. Em conflito e em relações reuniriam. A descrição parece a descoberta
perpétuas com a esquematização, ela tende' ou o encontro de impressões ou de detalhes
não apenas à reduzi-la, mas se deixa, por sua sucessivos. Contudo, mesmo em um relato
vez, mais ou menos reduzir. Só é simples de acontecimentos, os incidentes são relacio­
adição difusa de impressão ou de incidentes nados sem cronologia precisa. As locuções
em seu nível mais baixo. Na reunião deles, ela de tempo são apenas um meio de encadear
deixa mais ou menos prevalecer certas analo­ os termos de uma sucessão qualquer, ainda
gias quer subjetivas, quer realistas. Disso não podendo exprimir com rigor relações de
emergem como que estruturas mais ou me­ momento. A criança constrói para si apenas
nos definidas, mais ou menos complicadas, muito imperfeitamente a impressão da dura­
que são um primeiro agrupamento dos obje­ ção, a qual lhe seria indispensável para reagir
tos. Ela lhes supõe formas que procedem de contra sua influência dissolvente, dando-lhe
formas limites e esquemáticas, mas as quais meios de referência para o "antes", o "depois"
ela se dedica a diferenciar e corrigir. Ela reúne e o "simultâneo". O uso que as descrições da
o individual, enquanto este ainda não pode criança tiram das expressões temporais é
ser alinhado sob gêneros e espécies. Unindo unicamente o de unir dois termos ou de
a impressão pessoal à fórmula, toma-a co­ indicar a contigüidade: é o caso de "e depois"
municável pela imagem, pela comparação, e "então", onde se exterioriza um simples
pelo signo gestual, gráfico, oral. Mas é, de­ sentimento de passagem e que podem se
finitivamente, à linguagem que ela deve con­ tomar um tique verbal nos adultos distraídos
duzir e às suas condições que ela deve se ou que circulam às cegas entre suas idéias e
sujeitar. íf suas lembranças; é o caso de "quando", pura
Na criança, freqüentemente, pode ser cópula que liga um par de circunstâncias ou
observada uma oscilação entre os usos, as de objetos, mesmo sem relação de tempo; e é
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 319

o caso de "às vezes", cuja freqüência, nas Mas é em tdoso os campos e em todos os
conversas da criança, responde à sua' neces­ planos do conhecimento que o estudioso
sidade de limitar o alcance de suas afirma­ deve se esforçar para encontrar os termos que
ções, de livrá-las de conclusões ou de conse­ a tomam possível. Devendo ser recomeçada
qüências definitivas demais. "Às vezes" flutua diante de cada nova ordem de fatos ou de
no anterporal. Não é nem mesmo o extratempo- situações, essa tarefa pode levar às fórmulas
ral, como na expressão “era uma vez” , que mais diversas da reversibilidade. Aliás, o que
situa imediatamente os contos da criança fora cada um deve representar não é nada além do
do tempo corrente. "Às vezes" tem, como que o ato pelo qual é reconhecida a equiva­
único objetivo, fazer com que a criança esca­ lência intrínseca, sem a qual haveria apenas
pe da necessidade, pois ela tem apenas o descontinuidade e incoerência entre as coi­
sentimento do eventual. Suas impressões se sas e seus componentes, um conjunto e seus
separam umas das outras, ou até mesmo se elementos, um processo e suas fases, uma
reúnem, sem que ela tenha a preocupação e trajetória e suas posições sucessivas, a idéia e
sem que seja capaz de fazer delas os elemen­ seus objetos. A reversibilidade das operações
tos ou as partes de um conjunto. Ela não sabe intelectuais é o que pode fazer aparecer e o
nem delimitar um todo, nem o decompor ou que mede as irreversibilidades freqüentemen­
o recompor. Cada coisa, cada acontecimento te observáveis na natureza. Mas, por mais
valem por si mesmos, sem nada de sistemá­ necessárias, evidentes e até mesmo simples
tico a que eles possam se integrar. que possam, por vezes, parecer essas rela­
Embora o modo narrativo seja dos mais ções, elas exigem, em cada caso, um ato de
freqüentes na criança - o de suas impressões integração, quer muito abstrato, quer corren­
ou lembranças enunciados à medida que se te, conforme a natureza dos termos nos quais
apresentam -, ele continua ainda muito longe se baseie a operação. Mesmo suas formas
do relato. O que ela conta segue em linha mais simples não estão ao alcance da criança.
reta, de surpresas a clichês e de incoerências Foram mostradas, especialmente por
a repetições, sem previsão da seqüência, sem Piaget, em seus belos estudos sobre a aquisi­
proporção entre os incidentes e suas conse­ ção do número e da quantidade pela criança,
qüências, sem o equilíbio, entre o aconteci­ as dificuldades que esta sente para relacionar
mento e suas condições, entre a conclusão e unidades com sua soma, termos sucessivos
suas premissas, que toda obra intelectual com a sucessão de que fazem parte. De
persegue. Assim que surge o problema de maneira ainda mais concreta, ela não sabe
compreender ou de explicar, surge uma pôr mais conformidade entre os objetos, cu­
equação, da qual se trata de discernir e de jas imagens atraem-se uma às outras em seu
comensurar os termos. Concreta ou abstrata, espírito, do que em suas descrições ou em
sensível ou científica, ela supõe o poder de seus relatos. Suas conversas apresentam o
relacionar as partes com o todo, o resultado tipo enumerativo tão habitualmente quanto
com seus elementos, o caso particular com os tipos narrativos ou demonstrativos. Mas,
um caso geral. Conforme as circunstâncias, espontânea ou provocada, a enumeração
ele opera num ou noutro sentido; deve ser apresenta as mesmas inconseqüências. Seus
sempre capaz de operar, alternadamente, em termos sucessivos são irredutíveis a uma
cada um dos dois. A reversibilidade é seu rubrica ou a um tema únicos. Ao nível mais
fundamento e sua justificação. Piaget insistiu baixo, é "transdução" pura e simples; ou
sobre a importância essencial que lhe deve melhor dizendo, cada passagem de um para
ser atribuída. Ele vê nela o essencial do ato outro vale por si mesma; a seqüência dos
intelectual. Define-a segundo o modelo do termos não é um conjunto, o qual seria o
que Pincaré chama de grupo em mecânica. resultado de uma regra comum ou que se
320 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

deixaria explicar por uma mesma direção do por sua atividade verbal, ainda mal diferen­
pensamento. A transdução está do lado opos­ ciada de seus concomitantes intelectuais e
to ao do ato conceituai. Entre os dois, é sensorimotores. Ora é atração quase automá­
preciso, para a criança, vencer muitas etapas. tica de vocábulos que oferecem alguma
Antes que ela saiba evocar os objetos - apesar semelhança ou contraste de sentido, ora as-
das diferenças individuais deles, mas por sonânçia ou simples persistência.
causa de traços comuns -, para reuni-los em Nem tu d o é disparate nas enumerações
uma série homogênea, ela encontra, em cada da criança. Mas os fragmentos homogêneos
um, traços diversos e misturados, que toma que nelas são encontrados não têm relação
um pelo outro, porque estão reunidos, mas com o tema inicial. Séries diferentes alter­
que ela pode tanto menos identificar quando nam-se ou servem mutuamente de enchi­
estão espalhados separadamente em outros mento. Um mesmo termo pode, sucessiva­
objetos. mente, ser admitido ou ser excluído. São
No entanto, ela não está diante de tantas ondas analógicas que prevalecem gradual­
coisas irredutíveis entre si, pois a incapacida­ mente, e não o mesmo critério que regula o
de, em que ela se encontra, de distribuí-las todo. A proximidade prevalece sobre o
segundo caracteres que podem ser marcados conjunto. Conforme as circunstâncias
de um para outro, tem como contrapartida, sucessivas, disso resulta, para o mesmo objeto,
precisamente, a fusão mais fácil das mesmas uma assimilação ou um contraste. Como nos
nos processos em que a criança se empenha. pares, as ligações começam se fazendo,
Ela as aproxima ou as assimila, na medida em globalmente, termo a termo. Depois a analogia
que pertencem à situação que a criança está ganha em força, mas ainda não é evocadora
vivendo. Ela as faz entrar em constelações por si só. A série só se desenvolve
pessoais, conforme elas se insiram em uma gradualmente se seu primeiro termo é dado.
mesma lembrança ou sejam o objeto, o ins­ O motivo se lhe tom a qualitativo apenas
trumento ou o simples acessório de suas tardiamente. Após ficar misturado com situa­
intenções. A única relação que ocasiona, ções puramente subjetivas, onde os objetos
então, cada uma é a da sua apropriação ou o são reunidos segundo a utilização momen­
fato de pertencer ao ato ou à situação imagi­ tânea deles, sua relação com eles toma-se
nados. Mas ela mesma pode tomar-se toda a mais íntima, mas permanece, inicialmente,
situação, estando o campo das representa­ global.Entre eles, é tudo ou nada, quaisquer
ções fortemente limitado na criança. De seus que sejam suas diferenças podem, sucessiva­
traços misturados, emergirá um para produ­ mente, tomar-se absolutas, em detrimento do
zir uma associação sem relação com a prece­ resto, porque são simples acidente, como o
dente. Freqüentemente, aliás, ele pertence resto. Por mais constante que seja, o acidente
menos à coisa do que ao ato, ou melhor, ao nunca tem outro fundamento além do de ser
que os mantém intimamente misturados no constatado. Essa é a fase em que se encontra,
pensamento da criança. Em particular, a lin­ inicialmente, a criança. A qualidade permane­
guagem é uma causa freqüente de desconti- ce de tal modo subordinada ao conjunto que
nuidade em suas enumerações. pode mudar de sentido, conforme o objeto a
Antes de ser o instrumento por excelên­ ser descrito. Somente reconhecida nas coi­
cia da análise conceituai e das classificações, sas, ela não pode nem servir para a classifica­
a linguagem começa permanecendo, ela ção delas, nem audar a evocá-las. Ela não
mesma, engajada em toda uma estratificação existe por si. É tão mal identificada que lhe
de pertencimentos Onde mergulham suas acontece de ser definida ora por sua presença
significações puras. As enumerações da crian­ em objetos, onde os efeitos que lhe são
ça são, com muita freqüência, controladas imputados são sem relação entre si, e ora por
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 321

uma qualidade inteiramente diferente do representação vai tender, por um lado, para o
mesmo objeto. Duas condições, contudo, são essencial e o estável que define a estrutura e
solidárias: que ela seja distinguida do que não a significação do objeto, por outro lado, para
é ela em cada objeto e que ela faça com que as etapas variáveis que explicam a evolução,
todos os objetos onde se encontre sejam a existência dele. Comparações com outros,
distinguidos. Eis aí as condições de uma comparações com ele mesmo: as primeiras
definição estável e correta: a compreensão e levam a uma espécie do tipo íntimo e válido
a extensão, sem as quais não há possibilidade para todos os objetos semelhantes, os aspectos
nem de analisar o objeto, nem de reunir os dispersos em objetos distintos; as segundas
objetos numa mesma dasse. dissociam os aspectos sucessivos do objeto,
para reduzi-los a alguma circunstância exte­
INTERFERÊNCIAS DA COMPARAÇÃO NA rior. Esse termo duplo, onde diferenças e
REPRESENTAÇÃO semelhanças vão buscar sua definição, sua
causalidade rigorosa, está, em germe, na
Para conhecer as semelhanças e as dife­ comparação, e a comparação se confunde
renças que permitem aproximar ou distinguir com a formação de imagens sistematicamen­
os objetos entre si, é necessária a compara­ te aplicáveis às realidades empíricas. É um
ção. Ela não está mais no plano do conheci­ passo crítico no desenvolvimento do conhe­
mento concreto, mas opera sobre idéias ou cimento. Não é surpreendente que ela seja,
imagens. Deve tirar, do objeto, imagens que de início, vacilante.
lhe sejam comuns ou não com outros. Supõe, Assim como, freqüentemente, a ascen­
portanto, simultaneamente o poder de de­ são a um outro nível intelectual, ela ocasiona
compô-lo em imagens, que traduzem seus conflitos. O desdobramento não ocorre sem
diversos motivos de semelhança ou de dife­ confusões entre o objeto e as imagens. Antes
rença. Análise e classificação são comple­ de serem integrativas, elas contaminam ou
mentares. escamoteiam sua representação e interferem
A realidade dos objetos impõe-se à cria na sua identidade. Ora a idéia da semelhança
nça muito tempo antes que ela saiba com­ faz, de cada objeto, um too heterogêneo de
pará-los. Ela se preparou para distingui-los onde são excluídos, arbitrariamente, certos
de seu eu e para distingui-los entre si com o traços próprios de um ou de outro, ora a
uso e as expressões que aprendia a tirar deles, semelhança é quebrada pela aproximação de
conforme a natureza ou a estrutura dos mes­ traços que eles não têm em comum. Aconte­
mos, e de maneira permanente. Então, ela já ce, enfim, de a semelhança ocasionar, por
pôde opô-los ou agrupá-los como dotados cobertura total, uma espécie de qüiproquó
de eficiência quer semelhante, quer diferen­ ou de lapso. O poder de estabilizar uma
te, quer contrária. Mas, essa é uma distribui­ discriminação é, na verdade, muito débil na
ção puramente prática e subjetiva. Ela tam­ criança. O que deveria ser mantido distinto
bém já pôde reconhecê-los individualmente, tende a se unificar, assim que a atenção se
por vezes, com uam fidelidade que surpre­ desvia, por pouco que seja, das partes. Atrain­
ende o adulto. Mas a representação que deles do-se diretamente entre si, conforme suas
tem é particular demais para ser completa. Ela afinidades particulares, os elementos su­
permanece ligada à coincidência de índices, primem a pluralidade dos conjuntos. O re­
por vezes, insignificantes. Ela não liga o obje­ torno ao único parece aliviar a inteligência da
to ao que explicaria sua natureza e seu ser, à tensão excessiva que um campo de represen­
sua classificação e à sua causa. tações diferenciado demais lhe imporia.
É através do ato de colocar em imagens As alterações sofridas pela representa­
as semelhanças e as dessemelhanças que a ção do objeto mostram do que provém a
322 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

fragilidade da comparação na criança. A re­ Assim se explica que a criança fale, com
presentação conserva aderências, que po­ freqüência, de um objeto em termos que só
dem, a qualquer instante, afastá-la dela mes­ conviriam a um outro. Se é o sentimento da
ma, inicialmente com a ambiência do momen­ diferença deles que prevalece, ela exprime a
to, de onde surge, com freqüência, o segundo oposição dos mesmos por uma espécie de
termo da comparação. É o que se produz tam­ atribuição negativa: os cabelos e as árvores
bém nos afásicos: o objeto a ser definido é não são iguais porque não são a mesma terra,
assimilado a um objeto percebido e, quaisquer as mesmas folhas. A troca pode, também, ser
que sejam as diferenças, ele experimenta sua mais completa: após ter oposto os dois pares
marca. Há aderência também na linguagem, flores-botões, trigo-farinha, uma criança atri­
como se a representação não distinguiese bui botões ao trigo mas, por oposição, recusa
entre aquela e a coisa, de tal modo que as o crescimento às flores. Ou então, a hesitação
significações de uma substituem as proprie­ que ela tem sobre a diferença entre dois ob­
dades da outra. É assim, por exemplo, que jetos a faz hesitar sobre a atribuição, a cada
um objeto recebe órgãos humanos por inter­ um, de um elemento que lhes é comum. Seu
médio de uma locução que designa, ao mesmo pensamento não chega, portanto, a se liber­
tempo que sua atividade, a de um ser vivo. É, tar das imagens individuais, que respondem
com freqüência, difícil supor que a criança à sua representação dos objetos, e nem a es­
acredite realmente na transmutação animista colher entre elas. Quando ela não as mistura
da coisa, mas ele também não fabula necessa­ de objeto para objeto, temos a assimilação
riamente. É simplesmente a comparação que global, com omissão quer das diferenças,
se desenvolve e um de seus termos que pre­ quer das semelhanças. Mas, quando a com­
valece sobre o outro. Desse modo, o mesmo paração ultrapassar dois termos, a assimila­
objeto se encontrará reduzido, por analogias ção global tenderá para a incoerência, se um
sucessivas, a imagens inconciliáveis entre si. deles serve de intermédio a outros dois cuja
Ele se dispersa em semelhanças e em diferen­ assimilação mútua é impossível.
ças tão múltiplas quanto são as causas delas, O caráter global das comparações e a
ou seja, as coincidências da percepção, da incapacidade para reunir, na representação
linguagem e das intuições ou reminiscências do objeto, as imagens que constituem pode­
subjetivas que lhe estão ligadas. O objeto aí riam parecer contraditórios, assim como a
perde sua identidade, pois sua representação incapacidade para decompor a representa­
permanece muito mais um simples desfile ção em suas imagens elementares e o caráter
mais ou menos acidental de imagens do que efetivamente parcial das comparações. Na
realiza um modelo da coisa. Ela não pode lhe realidade, esses traços concordam. As com­
dar verdadeiramente sua reprodução, ou seja, parações são, ao mesmo tempo, globais e
aquilo que permanece constante, qualquer parciais. Elas não distinguem entre as ima­
que seja a diversidade das semelhanças e das gens da representação, mas essas imagens
relações, e onde se integram, sem se substi­ são em número limitado. Elas são o que a
tuírem, as imagens próprias para exprimi-lo. aproximação ou a ocasião as fazem ser. Não
Em suma, algo que permanece em potencial são evocáveis à vontade, o que tom a impos­
por trás dos aspectos que o realizam. É a inap- sível opor, entre si, semelhanças e diferenças
tidão da criança para ultrapassar o campo das e classificar cada objeto, segundo sua poliva-
simples imagens, para lhes sobrepor, como lência, em diversas categorias ao mesmo
uma realidade mais real do que elas próprias, tempo. Mesmo restringindo-se a uma única
um centro permanênte de organização e de qualidade, é ao objeto, e não à qualidade, que
evocação, que faz, dos objetos comparados, a criança dá a prioridade. Ela passa de um
objetos perpetuamente alienados em outros. objeto a outro, segundo a semelhança que
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 323

neles encontra; não imagina a semelhança um a outro ou há dissonância recíproca entre


em si mesma para procurar os objetos que eles; as próprias relações que nos parecem as
esta pode unir. mais essenciais, as de espaço, de tempo, de
causa, podem ficar confundidas. Mas o agru­
A PRIMEIRA ETAPA DA COMPARAÇÃO pamento, por mais confusos que sejam seus
motivos, por mais variáveis que sejam seus
Antes da qualidade, é a ação que parece limites, tende a justificar sua unidade, a pre­
poder desprender-se mais cedo do objeto e cisar sua significação. A partir de então, a
diferenciar-se, como tal, dos casos particula­ identificação dos objetos e das qualidades
res. Ainda lhe é preciso um vocabulário sufi­ será simultânea.
ciente para exprimir suas formas diversas, na O pensamento da criança passa por três
falta do qual ela reintegra objetos particulares momentos sucessivos. Inicialmente, o meta­
e novamente passa por confusões e fragmen­ morfismo, que está aquém da comparação
tações. Quanto à qualidade, freqüentemente pois, passando esta de objetos em objetos e
mal discernida das outras em um mesmo sem fórmula para fixar o do momento pre­
objeto, como poderia ela, entre várias, servir cedente no momento presente, ela tende ou
de critério invariável? Seu papel é de tal modo a esquecê-los alternadamente, ou a trans­
ignorado que, interrogada sobre o que dois formá-los um no outro. Mais tarde, a passa­
objetos têm de igual ou de dessemelhante, a gem é ligada a um sentimento de semelhan­
criança limita-se, com freqüência, a respon­ ça; mas a assimilação dos objetos é total,
der pelo nome de um deles. A própria quali­ mesmo se seu motivo é parcial. Eles são
dade pode quer se tom ar totalmente neutra, dados um pelo outro, mesmo se comportam
por confusão de todas, e exprimir-se apenas diferenças flagrantes. É uma identidade-con-
sob forma de mais ou de menos, quer mudar traste, da qual o adulto pode fazer um jogo
de significação a cada novo par de objetos mordaz. A criança não sabe dela se de­
comparados. Ela se fragmenta, desse modo, sembaraçar, alternadamente atraída por um e
em uma cascata de analogias incoerentes. A por outro. É a fase da analogia. A comparação
analogia pode, aliás, ser negativa, ou seja, sucede à analogia, assim como esta ao me­
implicar menos semelhanças que diferenças. tamorfismo. Com a analogia, os termos per­
Acontece, então, à criança, de modificar a petuam-se um no outro. A comparação con­
fórmula, de retalhá-la para ajustá-la a seu serva a identidade de cada um. E preciso que
novo objeto. O progresso é, então, evidente. ambos e o traço que os une conservem uma
Provavelmente, o tema da comparação nem fixidex rigorosa. Isso implica o poder de se­
sempre tem a fixidex que, sozinha, a tomaria parar, dos objetos, aquilo que os faz se­
legítima, mas já vale por si mesmo. É ele que melhantes. Ora, a criança, inicialmente, sabe
prende a atenção, em vez de, a cada vez, apenas explicar um objeto por um objeto,
receber sua nuança dos objetos considera­ definir o concreto pelo concreto. E mais ainda,
dos. Passar de um a outro é como que uma as primeiras estruturas da representação são
seqüência de exceções; e, nesse sentido, não pares onde contraste e assimilação começam
há regras, mas apenas casos especiais. Con­ se confundindo. Provavelmente, a analogia e
tudo, o instrumento da regra já existe, visto a diferenciação nelas existem em potencial.
que é utilizado. Mas duas tarefas se impõem, então: a iden­
Não é de uma qualidade tão maleável tificação dos objetos por si mesmos e sua
que pode nascer a comparação. É a aproxi­ decomposição em qualidades, elas mesmas
mação prática, perceptiva, ou verbal dos identificáveis separadamente e que possam,
objetos que lhe é, inicialmente, a causa. No desse modo, tomar-se comuns a quaisquer
início, eles apenas pertencem mutuamente objetos.
324 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

A IDENTIDADE DO OBJETO uma significação, da qual elas são apenas os


índices intercomplementares, e que o faz
O objeto é comumente considerado passar para o nível das realidades que sub­
como um elemento primitivo da percepção, sistem por e para elas mesmas, com as pro­
que se transmitiria tal qual no conhecimento priedades, a identidade, o nome, a sobrevi­
intelectual. Não há necessidade, contudo, de vência delas. Ele transcende a percepção,
supor uma imagem do objeto para explicar as simples causa, simples encontro dele pelo
reações que ele pode suscitar quer no animal, sujeito. Ele dá, ao conteúdo da experiência
quer na criança, quer até mesmo no adulto. subjetiva, uma forma de integração nova,
Ele pode servir de objetivo ou de instrumento une-а a um modo de existência que o toma
sem estar ainda identificado, ou seja, isolado independente dela. A percepção no plano
do resto como possuidor de uma realidade sensorimotor, que é o ato imediato face à
distinta, permanente, individual e específica. coisa, repete-se no plano intelectual, onde o
Esse gênero de representação seria, muito objeto deve conquistar sua identidade na
mais, contrário às condições e ao desenrolar dispersão dos aspectos, dos efeitos que lhe
da ação. Voltada para o campo sensorimotor, são atribuíveis, mas em comum com outros
esta consome, para dele se apropriar ou para objetos distintos e diferentes dele. Após ter
utilizá-lo, aquilo que o meio põe ao seu realizado sua percepção, é preciso aprender
alcance; ela subordina as propriedades das a pensá-lo.
coisas às suas próprias virtualidades; supri­ Conforme sua natureza, ele opõe, à
me-lhes a existência em si e delas retêm percepção e ao pensamento, dificuldades
apenas a contribuição das mesmas na opera­ variáveis. O objeto que se deixa manipular,
ção em andamento. A atividade prática co­ aquele cujo manuseio é regulado pelo uso e
nhece mais situações que objetos. Move-se por uma estrutura definida, valoriza tanto
entre circunstâncias favoráveis ou desfavo­ mais rapidamente, por equivalência pluris-
ráveis. "Constela-as" em vista de seus fins e sensorial de seus traços, sua unidade, suas
segundo suas aptidões. A engenhosidade do diferenças, tanto específicas quanto indivi­
animal ou da criança, diante de problemas duais. Se se trata, pelo contrário, daquilo que
práticos, mostra que ela se move como que poderia ser chamado de as ultracoisas, no
num campo dinâmico, onde nada adquire sentido de que escapam à ação do sujeito
existência, a não ser em função dos gestos naquilo que o rodeia e que pertencem unica­
possíveis ou propícios. No adulto, acontece o mente à esfera das impressões sensíveis, por
mesmo muito mais freqüentemente do que vezes, impressões unissensoriais, a diferen­
se imagina. Ao se impor, a imagem das coisas ciação mútua delas e a identificação de cada
cria um obstáculo ao desenrolar motor dos uma são muito mais precárias e lentas. É o
atos. Há até mesmo casos patológicos, em que ocorre com as tempestades, as nuvens, o
que ela é completamente abolida, sem que o raio, a chuva, o vento: coisas misturadas na
poder automático de apreender e de utilizar percepção e que se deixam menos nitida­
a coisa seja suprimido. Mais ainda, no plano mente reduzir a noções separadas pela inte­
da própria percepção, o objeto pode não ser ligência. Podem surgir, ainda, outras difi­
mais apreendido como objeto, embora ainda culdades. Por exemplo, a propósito de obje­
o seja sob cada um de seus aspectos sensí­ tos como a lua, cuja existência perceptiva é
veis. As diversas impressões que produz intermitente e variável. Entre suas aparições
poderão ser enumeradas à medida que são sucessivas e modificadas, a criança pode não
sentidas, mas ele nãò é reconhecido. aprender os motivos para dela fazer um úni­
O objeto não consiste, portanto, na mera co e mesmo objeto. Evidentemente, eles já
reunião das impressões. Ele lhes sobrepõe estão longe da percepção pura. Dificuldade
C O N C L U SÕ E S E C O M E N T Á R IO S 325

análoga ocorre сош o Sena, que a criança lente é, para ela, tão imediato ou tão pouco
pôde ver em diferentes locais sem lhe seguir imediato quanto o idêntico. Há objetos cuja
o curso, ou do qual ela considera quer acor­ natureza é serem comuns nos limites de seu
rente, quer as margens: com qual das duas emprego; eles devem tender ao genérico.
identificá-lo e como ela saberá que é preciso Mas, há objetos que começaram sendo co­
unir os diferentes setores do mesmo? Reduzir muns, assim como o "papai" com o qual a
ao mesmo o que está disjunto na percepção, criança pequena começa a chamar qualquer
ou cuja imagem está dissociada, exige um ato homem, e que devem levar ao individual.
de representação ideal, para nele integrar Salvo se a prática não admite nenhuma subs­
todas as partes, todos os aspectos possíveis tituição, o objeto permanece, por muito
do objeto. tempo, em uma zona intermediária entre o
geral e o singular.
O "MESMO" E SUAS SIGNIFICAÇÕES Um terceiro grau do mesmo é a confor­
midade, não de aspectos ou de efeitos, mas
Na verdade, por mais elementar ou de existência ou de substância. Essa identifi­
imediata que possa parecer a afirmação do cação também não é simples. Ela pode re­
mesmo, mais imediata, parece, face ao obje­ duzir ao mesmo quer o diferente, quer o
to, ela implica, primeiramente, que o objeto distinto; o vapor, a chuva, o rio à água; a
esteja separado da sensibilidade e a ela opo­ mesa, a canoa, o chalé à madeira. O poder de
nha sua própria existência. Mas ela pode, reunir o diverso sob o semelhante parece,
também, oferecer toda uma graduação de aqui, atingir um nível muito mais elevado.
significações diversas. O empirismo estabe­ Mas, na realidade, a identidade substancial
lecia o primeiro grau no reconhecimento de não tem, na criança, rigor sistemático. Ela não
que determinado objeto é exatamente ele sabe explicar, através da evaporação, o cir­
mesmo ou, se a presença dele é intermitente, cuito da água entre a terra e as nuvens, e nem,
que ele é o mesmo. Mas a adesão, que realiza, através da explocração da floresta e da indus­
no objeto, um princípio de constância, impli­ trialização da madeira, a transformação das
ca, portanto, a crença em sua durável con­ árvores em objetos diversos. Freqüentemen­
cordância com a lembrança. A criança, habi­ te, ela até mesmo confunde ou inverte a
tualmente, quase não se preocupa, como ordem dos termos e diz, por exemplo, que as
certos psicastênicos, em se questionar a esse árvores são feitas com a madeira dos armá­
respeito. No entanto, a dúvida sobre a iden­ rios. Contudo, por mais indecisa que seja, a
tidade do objeto consigo mesmo e através do unidade de substância está longe de ficar sem
tempo está longe de lhe ser estranha. Mas, é efeito no exercício de seu pensamento. Pensar
na própria representação que ela se exprime, as coisas é encontrar-lhes uma certa unidade.
e não a respeito dela. Em vez de ser crítica, ela Apesar das confusões sincréticas, de que ela
é credulidade, em vez de irrealismo, fan­ ainda carrega o sinal, a unidade de substân­
tasmagoría. cia, unindo o mundo dos objetos à matéria,
Um segundo grau é o mesmo de simples tende a resolver as aderências subjetivas deles.
semelhança. Ele parece ultrapassar o caso Entre esses três graus do mesmo, qual­
singular para chegar à categoria. O empiris­ quer que seja a ordem que deva ser a eles
mo já veria nisso sobrevir a abstração. Mas, na destinada sob a forma diferenciada e lógica
criança, a operação não tem essa nitidez. A deles, não há progressão, mas desenvolvi­
criança tem a experiência direta de objetos mento conjugado, sucessivamente simultâ­
praticamente intercambiáveis. Ela não lhes neo e alternativo. Antes de atingir o indivi­
aprofunda as diferenças para além da utilida­ dual, a identificação permanece presa a situa­
de ou de seus interesses presentes. O equiva­ ções subjetivas que a fazem difundir-se, por
326 AS O R IG E N S DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

intermédio de semelhanças globais ou de mas é apenas uma presença e não a confusão


traços acessórios, para seres diversos e, fre­ total. É uma participação que implica a ubi­
qüentemente, „polimorfos. A identidade de qüidade. O deus está no ídolo porque pode,
substância lembra uma participação, mas já simultaneamente, existir em lugares diferen­
separada do próprio sujeito, a qual daria a tes, sob formas diferentes ou em substâncias
ilusão da mesma existência sob espécies dife­ diferentes. Tem, portanto, uma existência que
rentes. A distinção não é feita entre a matéria não é mais estritamente a dos elementos sen­
comum e as dessemelhanças dos objetos. Há, síveis. O mais superticioso fetichista já supõe
muito mais, entre todos, como que uma liga­ poderes ocultos, ou seja, ultrapassa a confusão
ção e uma equivalência, por vezes maldéter- entre o que é percebido e o ser. Ele evolui
minadas e flutuantes, que explicariam a se­ entre, pelo menos, dois planos e todas as suas
melhança dos efeitos. O que é objeto de um práticas têm como objetivo relacioná-los. Na
mesmo pensamento assume uma existência criança, pelo contrário, há somente um plano
indivisa. O desdobramento das coisas e da onde se justapõem e se dejustapõem elemen­
representação permanece incerto. A subs­ tos de quaisquer origens: perceptiva, pragmá­
tância, em suas diferentes etapas, serve de tica, oral. Ela os emprega uns pelos outros,
intermediário entre assimilação do real com a por falta, provavelmente, de saber verda­
representação e matéria. Para que as diferen­ deiramente identificar, como faz o adulto.
tes espécies de identificação se tornem possí­ A incapacidade para distinguir entreuma
veis e definitivas, é preciso que a imagem das imagem, ou aspectos momentâneos, e o real
semelhanças e das diferenças se tome inde­ retira deste qualquer permanência. Ele se
pendente. demultiplica com qualquer mudança, quer
de imagem, quer de aspecto, e até mesmo por
IDENTIDADE-ASSIMILAÇÃO E simples aproximação ou comparação de ob­
IDENTIDADES DE TROCA jeto a objeto. O primitivo tem a ubiqüidade
para traduzir as mutações em migrações.
As identificações da criança e as do adulto Como a criança não tem, à sua disposição,
estão, num sentido, do lado oposto uma das essa representação espacializada do ser, a
outras. Numa, há assimilação simples, nou­ qual reduz o efeito esperado ou constatado
tra, integração. A criança faz, do aspecto, a ao deslocamento de presenças específicas, a
coisa, da imagem, o modelo, da efígie, a mudança, no objeto, é a do próprio objeto.
pessoa. Se o mar é azul em lugares diferentes, Mais tarde, finalmente, a qualidade, cessando
é uma diferença de substância. Conforme se de ser potencial substancial, poderá ser ou
trate da cinza ou da chama, o carvão utilizado não imaginada no objeto, sem deslocamento
era branco ou vermelho. A estatueta na man­ no espaço. Ela se tomará o simples poder de
jedoura, que ela vê na igreja, parece-lhe tanto imaginar o objeto de maneira diversa, confor­
o Menino Jesus vindo do céu para lhe trazer me os casos. Ela existirá, a partir de então, por
brinquedos que, para explicar a mudança de si mesma, mas simplesmente como meio de
lugar, ela se vê obrigada a supor-lhe asas: análise e de classificação. Inevitavelmente, é
antes essa alteração em sua percepção do indispensável que, sob sua forma primitiva
que a distinção entre o retrato e o ser. É ela de potencial oculto ou sob a forma depurada
realmente quem é enganada por suas con­ de categoria em potencial, ela se separe do
versas? Pouco importa aqui. O que ela é objeto para lhe conservar sua identidade em
incapaz de conciliar é uma estatueta e o que relação aos outros e sua continuidade de
ela representa, em lugares distintos, e subs­ existência.
tancialmente diferentes. O idólatra também A continuação do mesmo, em cada objeto
pode, muito bem, acreditar na presença real, pensado, supõe, em sua representação, um
C O N C L U SÕ E S E C O M E N T Á M O S 327

poder de antecipação. À imagem presente, é dissociáveis. E é, efetivamente, o que é


preciso saber ligar aquelas que são implica­ mostrado pela fácil dissociação do objeto
das pela aproximaçãso do objeto com um ou entre conjuntos de representações mutua­
outro, a fim de escolher entre a assimilação mente incompatíveis. Frente a cada um, a
ou a oposição. Aliás, elas nem mesmo têm a criança oscila, então, entre o idêntico e o
necessidade de se tomarem efetivas, o que outro, ou então, justapõe várias identidades,
seria, freqüentemente, um entrave para o por exemplo, as de nuvem-nuvem, nuvem-
pensamento. Basta que se traduzam como céu, nuvem-sol, entre as quais sabe distin­
uma resistência latente aos objetos hetero­ guir, mas que deixa coabitar e, se for neces­
gêneos. Antes da imagem, há a aptidão para sário, unír-se na mesma representação.
evocar, antes da assimilação, a confrontação, Essas identidades de troca seriam possí­
explícita ou não. O que importa é manter veis com uma represenetação latente sufi­
distinto o que não deve se fundir e fazê-lo de cientemente firme, nítida e vigilante? Se os
modo preventivo, para evitar as contamina­ objetos parecem se anastomosar gradualmen­
ções, tão freqüentemente observáveis na te, isso ocorre porque, entre suas imagens, há
criança. Nela, de fato, essa atividade de evoca­ simples contatos, porque, através de suas
ção, de eliminação, de diferenciação, que relações mútua não subsiste um termo cons­
ultrapassa de longe as simples combinações tante de comparação que seria aquele terceiro
de imagens, permanece muito débil. Sua termo, indispensável à ordem do pensamento.
ideação é inerte. Esta mostra que é igualmen­ Mas como poderia ele ser isolado, sem um
te incapaz de suscitar imagens em relação desdobramento entre os elementos empíricos
com o tema e de frear as que ele pôde e o plano das evocações, onde a idéia se
provocar. Tem algo de estagnante e de espo­ estabelece, onde, servindo-se dos símbolos
rádico. Fragmenta-se, é um rosário de digres­ indispensáveis, eia mantém sua linha, sob o
sões ou de confusões. fluxo das imagens divergentes, e suscita as
Disso podem resultar afirmações bar­ oportunas? Aos elementos empíricos, é
rocas ou incoerentes. A descrição do objeto preciso uma base onde se projeta, quaisquer
entra, subitamente, em desacordo com sua que sejam a sucessão ou a conjuntura dos
realidade perceptiva ou com o enunciado mesmos, a estrutura das coisas. Mas, não é
anterior de sua natureza. Dois objetos próxi­ uma simples tela para a regulação delas.
mos são colocados, por simples compara­ Também não é simples contraste entre es­
ções, em categorias opostas: categoria antro- truturas intelectuais e o que a sensibilidade
pomórfica para a lua, por exemplo, e física oporia a elas de rebelde e de contrário. Não é
para o sol. Por vezes, é uma qualidade pura­ resistência inerte, nem simples incompati­
mente contingente, como a cor, que fará com bilidade. É evocação e seleção simultâneas.
que o objeto seja classificado, apesar de sua Redução do que o objeto parece ao que o
estrutura, de seu uso, em suma, do essencial. constitui, do que varia ao que permanece. É
Apreponderância de imagens acessórias pode inserir sua imagem presente e acicental em
dar, à linguagem da criança, algo de sur­ um duplo sistema de qualidades e de relações,
preendente e de rebuscado, que lembra bem através do qual o objeto é conhecido e existe.
a dos esquizofrênicos. Nem sempre é fácil Sua representação implica necessidade e
distinguir se a estranheza está apenas na persistência. Ela deve eliminar o que há de
expressão ou na concepção. Pode parecer, contingente ou de provisória em suas apa­
para a criança, que ela se deixa levar, com rências, para conservar o essencial e o durável.
prazer, pelas palavras e pela analogia, a farsas É o poder de enquadrar a imagem no que lhe
intelectuais. Mas, é preciso que suas repre­ dá sua perspectiva de objeto e sua necessidade
sentações o permitam, que sejam facilmente estrutural. É o poder de prolongá-la para
328 A S O R IG E N S D O PE N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

além dela mesma, como um simples sinal do tes, aquilo que, contudo, não pode ser consi­
que ela exprime e como um simples momento derado como tendo, pura e simplesmente, se
do que ela representa. destruído. Piaget mostrou por quais graus a
Um intervalo de vários anos separa essa criança chega a reconhecer que a elevação do
etapa no plano perceptivo e no plano intelec­ nível da água, pelo açúcar, persiste após sua
tual. No primeiro, ela precede a linguagem, dissolução, donde a necessidade de concluir
de modo que é o comportamento prático que por sua conservação sob uma forma qual­
deve indicar o estado da percepção. No se­ quer. Mas, o raciocínio em sentido inverso
gundo, seus trâmites se lêem na linguagem, seria mais justo. A criança só é capaz de
mas são, habitualmente, negligenciados pelo compreender a equivalência de volume, sob
adulto como inconseqüências ou lapsos sem qualquer forma em que esteja o açúcar, dis­
importância da criança, tanto nos repugna solvido ou em torrões, se for capaz de pro­
supor que nossa imagem do real não lhe é curar para qual forma nova deve ter passado
imediatamente semelhante, segundo uma o açúcar, porque não lhe admite o desapa­
espécie de identidade essencial. Assim ocor­ recimento puro e simples. Para a neve, o
re o erro, tão freqüente, de acreditar que o problema pareceria muito mais simples, visto
concreto impõe sua existência pela vivacida­ que sua fusão tem por testemunha, sem
de e sua veracidade pelo detalhe da imagem. mudança de universo, ao mesmo tempo a
Mas, a vivacidade ou a precisão tendem tanto visão e o tato. Contudo, sua persistência sob
à alucinação, ou ao fantasma lúdico, quanto as espécies da água inicialmente escapa à
ao objeto. A criança fica, por muito tempo, a criança. A experiência sensorial não é, por­
meio caminho dos dois. Através disso se tanto, a única em causa ou, pelo menos, é, ela
explicam muitos traços de seu comporta­ mesma, condicionada pela aptidão para ligar,
mento, de que falseamos sistematicamente o de seus aspectos, aqueles que respondem à
sentido impondo-lhes as alternativas que persistência do mesmo objeto, da mesma
existem apenas para nossa atividade diferen­ substância.
ciada de adultos. Essa ordem inicialmente escapa à crian­
A criança não sabe, inicialmente, atribuir ça e dois efeitos inversos podem se produzir:
aos objetos uma persistência independente assim como não sabe procurar e acompanhar
dela mesma, nem reconhecer a permanência aquilo que é e que dura, sob a diversidade de
do real através da diversidade dos aspectos seus aspectos sucessivos, como o açúcar e a
ou dos seres, nem delimitar, entre si, os obje­ neve, acontece-lhe de supor um vínculo de
tos individuais. Parece que a sucessão das existência entre dois objetos distintos, por
aparências ou dos aspectos esgota, para ela, exemplo, entre as folhas caídas das árvores e
a existência das coisas. Por muito tempo, ela as que nascerão. Sucessão invertida, precisa­
parece reduzi-la à reunião delas em sua mente por incapacidade de conceber o devir,
experiência familiar. Faltam-lhe dois poderes em vez de simples analogias: indiferenciação
complementares: imaginar um vínculo subs­ do ser e do gênero, das relações e da repre­
tancial por trás das mutações ou dos desapa­ sentação. O real é ainda, para a criança,
recimentos aparentes do objeto, procurar-lhe apenas uma seqüência de aspectos de liga­
a presença em outrso universos sensoriais ou ções muito frouxas, sob as quais ela não sabe
sob outras formas - réplica ideal e reincarna­ apreender as transformações das coisas e a
ção. É assim que ela não pode representar a permanência delas. Dois term os complemen­
fusão do açúcar ou|ia neve. Ela não sabe rela­ tares, mas que é preciso ser capaz de disso­
cionar o desaparecimento visual do açúcar e ciar para deles tirar o objeto idêntico a ele
o sabor açucarado da água. Não tem a idéia mesmo. O sentido da continuidade supõe o
de procurar, sob espécies sensíveis diferen­ do operatório. Por essa oposição, a simples
C O N C L U SÕ E S E C O M E N T Á R IO S 329

mudança é elevada ao nível de algo que que em nada acelera o conhecimento. Mas
persiste se transformando. ela não é indiferente à formulação do pen­
samento. Consiste em desdobrar aquilo que
O OBJETO REDUZIDO A SUAS manifesta o objeto daquilo que ele ê, seus
PROPRIEDADES efeitos ou aspectos momentâneos de sua
substância, sua percepção de sua existên­
Antes de passarem esse limiar, as re­ cia.
presentações da criança são estagnantes, he­ Provavelmente, ela tem o problema de
terogêneas e contingentes. Estão na alter­ incluir, no próprio objeto, suas relações com
nativa quer de fragmentar o objeto segundo o exterior e, nesse sentido, vai contra a causa­
seus estados sucessivos, quer de reduzi-lo, lidade, que dissolveria, de preferência, os
pura e simplesmente, a qualquer um deles, objetos nas ações que exercem e que sofrem.
de assimilá-lo ou de opô-lo, sucessivamente, Mas, a inclusão responde à necessidade de
a qualquer outro objeto, por causa de seme­ reduzir aquilo que se percebe ou se realiza à
lhanças e de diferenças misturadas, de imagem das coisas, e o mundo, à repre­
confundir-lhe os traços em um único todo sentação. Ela apenas coloca, no objeto, aquilo
global, ou de eclipsá-los por trás do mais que o faz existir para a percepção e entre as
acessório ou do mais acidental. Sem conteú­ coisas. Põe o próprio objeto no grupo dos
do sistemático, elas não permitem identifica­ objetos de mesma classe e desse modo,
ção rigorosa e estável. Simultaneamente â gradativamente, em categorias cada vez mais
persistência do objeto ou da matéria sob a vastas. Ela põe ordem, entre as ações experi­
diversidade de seus aspectos, simultanea­ mentadas e constatadas, através do objeto,
mente à sua individualidade, apesar de certas entre os objetos, através da espécie, entre as
semelhanças, é preciso, portanto, que sejam espécies, através do gênero e assim por dian­
reconhecidas, como tais, as qualidades de te. A cada nível, ela constitui um corpo que
onde resultam suas semelhanças e suas dife­ tem os atributos dele, um todo de caracteres
renças, tanto com eles mesmos quanto com identificáveis, um conjunto coerente ou um
os outros. São dois processos intimamente indivíduo estrita ou sistematicamente delimi­
solidários. tado pelos outros.
Com as qualidades se confundem, de Desse modo, ela traduz também, à sua
início, as propriedades. As primeiras são o maneira, relações, mas de semelhança na
efeito puramente perceptivo das coisas, as independência mútua, de hierarquia na auto­
segundas são a ação que são capazes de nomia, não de existência, de combinação e
exercer sobre o mundo exterior. Entre as de ação recíproca. Ela é incapaz de exprimir
duas, há a distinção da representação e da uma influência transitiva, visto que leva tudo
causalidade. Na criança, esses dois campos para o centro, efetiva ou real, visto que tende
estão tão pouco separados como os do co­ à simples representação. Mas, assim como
nhecimento e da prática. Ela conhece, so­ une, no objeto, qualidades ou compatíveis,
bretudo, os objetos por seu uso ou, pelo ou complementares entre si e torna possíveis
menos, começa definindo-os assim. Portan­ as inferências de uma a outra, ela estabelece
to, é a propriedade que prevaleceria. Mas, em os grupos de objetos sobre concordâncias
vez de reduzi-la às suas condições e con­ análogas e, de grupo para grupo, permite
seqüências objetivas, a criança traduz o efeito verificar se uma certa semelhança ocasiona
constatado em pura qualidade calcada sobre outras. Pelo jogo das atribuições qualitativas,
ele. É o ópio que tem uma virtude dormiti­ pelo exame das concordâncias e das discor-
va, ou a atenção oponível aos outros estados dâncias delas, ela pode chegar à previsão.
psíquicos pela atentividade. Pura tautología Contudo, não à previsão causal, de que ela
330 AS O R IG E N S DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

não tem a certeza, visto que é associativa, a Podem, pelo contrário, neutralizar-se em
constância, visto que é apenas provável, a conseqüência de uma oposição global entre
estrutura, visto que não é o ato diretamente duas espécies de objetos: uma criança, por
constatado. Mas ela encontra, contudo, a exemplo, assimila o crescimento e a vida se se
causalidade, graças à ordem colocada entre tratar de sua própria pessoa, mas os consi­
as coisas, por meio da representação delas, e dera incompatíveis a respeito das árvores. As
entre as representações, por meio das seme- qualidades permanecem tão aderentes ao
lhanças-diferenças delas, das combinações objeto que, com cada um, seus efeitos podem,
qualitativas delas. conforme o caso, inverter-se, inversão essa
Esse edifício de implicações, que pode facilitada pela perpétua ambivalência em que
suprir a observação direta, já está em germe oscilam as primeiras noções, assim como os
na antecipação perceptiva, que não fica sem sentimentos da criança. Disso resulta uma
possíveis erros, mas que, praticamente, faz grande contingência em suas idéias. Em vez
com que o objeto seja reconhecido e clas­ de classificar, a criança mistura as proprie­
sificado, antes de um mais amplo detalha­ dades entre si, muda-as, bruscamente, de
mento de seus traços, em qualquer um de índice ou de atributo: as abelhas são fortes
seus caracteres sensíveis. Ela é exatamente ora porque picam e ora porque têm asas; as
contemporânea do período em que a criança serpentes também são fortes, mas não picam.
toma-se capaz de distribuir, em objetos, aquilo Por mais maleáveis e inconsistentes que
que a cerca. Mas, ao passar do plano per­ continuem, as qualidades têm, contudo, como
ceptivo para o plano ideológico, essa iden­ que um valor em si. Confundidas, elas não
tificação e essa classificação experimentam podem se compor entre si. Por exemplo,
um longo atraso e tentativas. Não se trata mais peso e volume estarão sempre juntos, de
de integrar, a cada objeto percebido, o con­ modo que a criança não pára de se contradi­
junto de suas qualidades sensíveis mas, pelo zer em suas definições ou de contradizer os
contrário, de separar cada uma delas para fatos a respeito da pedra que afunda na água
integrá-las a algo que possa se tomar uma ou do barco que flutua. Justificadas suces­
medida comum entre os objetos represen­ sivamente por índices ou motivos díspares,
tados. Não há passagem entre o objeto e o elas não conservam menos, de cada um, um
gênero, sem sobreposição, à função objeto- valor absoluto: uma tábua flutua porque é
sensível, da função qualidade-categoria. leve; adicionando-se a leveza com o número,
várias tábuas serão menos pesadas para
PROPRIEDADE PERCEBIDA E carregar do que uma só. Disso pode resultar
PROPRIEDADE INTEGRATIVA OU um esquematismo qualitativo, que lembra,
CATEGORIAL aliás, a alternativa habitual pelo sincretismo:
a mistura de todos os traços e o eclipse deles
O isolamento ideal das qualidades, por um único. Assim, a horizontalidade da
condição indispensável da comparação dos água é o que impede os barcos de soçobrar,
objetos entre si, é uma sublimação que não se como se fosse, por si só, algo de intrans­
opera de imediato. Elas são, no início, fre­ ponível: a horizontalidade opõe-se à queda
quentemente confundidas uma com a outra, vertical.
ora porque são as duas faces passiva-ativa do Falamos de realismo qualitativo na crian­
mesmo efeito, por exemplo, pesado e forte; ça. Pode parecer, na verdade, que ela trata as
ora porque seus efeitos permanecem mis­ qualidades, ffeqüentemente, como coisas
turados na sensibilidade da criança, no vo­ capazes de se repelir entre si ou de se adicio­
cabulário ou nas noções ao seu alcance; ora nar. Mais do que realismo, seria melhor,
por causa dos objetos onde se encontram. contudo, falar de abstração, mas, mais do que
C O N C L U SÕ E S E COMENTÁMOS 331

abstração, de omissão, e mais do que omis­ termo comum, o peso permanece contido em
são, de insuficiência integrativa. Se a criança cadaum deles. Eis aí sua forma mais elementar
parece manipular as qualidades como ela de simples diferença qualitativa. É preciso
faria com objetos, isso ocorre porque a noção que ela se tom e categoria.
delas pode parecer-lhe, momentaneamente, As dificuldades da passagem podem se
fazer as vezes dos objetos, onde são suscetí­ reconhecidas pelas confusões, incoerências
veis de ser encontradas, e das condições, de e desproporções que se observam nas avalia­
que são o efeito. A criança as trata, portanto, ções qualitativas da criança. Se se trata do
exatamente por elas mesmas. Contudo, elas volume ou da extensão, as partes são, alterna­
são muito menos a quintessência dos objetos damente, tomadas pelo todo e o todo pelas
do que a falta destes. Elas os substituem partes. Melhor dizendo, não há nem todo,
totalmente, em vez de serem sua razão co­ nem partes, mas objetos, dados como dimen­
mum. Mas, esse desmoronamento intermiten­ sões, que são acrescentados ou substituídos
te dos objetos por trás da qualidade resulta do entre si. O tamanho da terra é comparado ao
fato de que ela não coloca, face a eles, nem de casas ou de campas, mas sem que a
uma ordem, nem uma coleção, ela não é a criança imagine o conjunto deles e nem os
expressão de uma série. É uma intuição mo­ reduza ao total, que deve ultrapassar todos
mentânea, esporádica. Não sabe atribuir a si eles conjuntamente. A criança pára na re­
mesma limites fixos, graduação, direção, presentação empírica e sucessiva das coisas.
progressão. Se permanece incapaz de suscitar A menos que tenha uma imagem concreta do
comparações sistemáticas, de constituir clas­ todo, ou seja, a de um objeto, a criança não
ses, de compor-se com outros sistemas de pode imaginá-lo. Segue-se ou que as gran­
comparação ou de classificação, isso ocorre dezas se justaponham, mas permaneçam
porque ela permanece um simples aspecto estranhas entre si, tendo os objetos uma
das coisas ou o nome de uma impressão espécie de exclusividade recíproca, ou que
sensível, porque ela não é um poder de elas sejam nulas e absolutas. É a totalidade em
discriminação e de agrupamento, um novo si mesma, o ilimitado refletindo-se nos obje­
meio de integrar o real ao conhecimento. tos. As dimensões do céu e do sol se con­
A qualidade inicialmente confunde-se fundem, embora o sol se desloque no céu.
com analogias mais ou menos puras de objeto Mas a criança não parece sensível à contra­
para objeto e confunde-os em uma participa­ dição, pois é incapaz de dar, às partes, um
ção mútua mais ou menos vaga. Assim como todo como de encontrar, em um todo, partes.
cada situação permanece particular, fortuita, Ela permanece no incomensurável.
indecomponível em circunstâncias, que per­ Ocorre a mesma desordem para as di­
mitiram explicá-la, classificá-la, e fica, desse mensões no tempo. Como ele se confunde
modo, como que numa distância intermediá­ com as ocupações quer da própria criança,
ria entre o singular e o geral, o especial e o quer de seu meio (“quando a gente dorme...
universal, uma qualidade é encontrada nos para comer... para trabalhar etc.”), uma
objetos, mas sem os qualificar individual­ medida comum é impossível. As próprias
mente e nem os integrar ao conjunto real e distinções do dia e da noite tomam-se incoe­
virtual, resultante da semelhança deles. Ela rentes, pois elas podem ser, para cada uma,
não pode se tornar a razão*de um conjunto. diferentemente utilizadas. A avaliação das
Freqüentemente, é apenas o meio de uma durações fica equívoca ou contraditória, pois
aproximação binária entre dois objetos: ela elas são fração dos conjuntos mais diversos
continua sendo o peso comparado da pedra ou mais variáveis. As confusões verbais da
e da água, da pedra e do barco; mas os dois criança são o sinal, e não a causa, de sua mio­
pares apenas se justapõem e, apesar de seu pia cronológica. A noção da duração pura, do
332 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

tempo universal, na realidade, não precede, pensamento que o momento seguinte pode­
mas vem após a redução de todos os rá invalidar. Como o ato de pensamento não
conteúdos quer naturais, quer sociais, quer integra seu conteúdo presente, acidental ou
subjetivos e fisiológicos que neles se inscre­ comum, em uma ordem de coisas ou de
vam. “Nunca... sempre” estão perpetuamen­ pensamentos que o determina totalmente, o
te sujeitos a exceções. São provisórios como todo atual é suprimido, instantaneamente,
a imagem, dissociada de qualquer conjunto, por outros. Entre eles, não há as relações do
que acompanham. Não se enquadram em exaustivo e da parte. São conjuntos descontí­
limites definidos. Misturam o sentido da du­ nuos e não conjuntos coordenados. “Tudo” e
ração que está se realizando e do período “nenhum” estão sujeitos a experimentar tan­
realizado, sem saber integrar, um no outro, o tas exceções quanto “sempre” e “nunca”. A
tempo que é vivido na ordem dos tempos ou quantidade está ligada a cada caso ou a cada
do tempo. objeto, como uma qualidade em si, mas sem
A qualidade, senão perceptiva, pelo rigor.
menos nocional, de um movimento pode ser Para fazer uma árvore crescer, são ne­
alterada pela concorrência de imagens aci­ cessárias muitas sementes; para fazer grama
dentais: desse modo, a ação da corrente, que crescer, uma única semente. Simples equilí­
leva horizontalmente a rolha, é mascarada brio comparativo, sem equivalência estrita.
pela do vento ou pela de uma pedra caindo Mas também oposição global de imagens
na água, que fazem a rolha saltar de baixo desinseridas de suas relações. Entre a árvore
para cima. Os dois efeitos são tomados um e o germe, são esquecidas as etapas pro­
pelo outro, por falta de cada um deles ser gressivas do crescimento. A extensão gramada
enquadrado em suas características quali­ eclipsa-se por trás da haste de grama. A parte
tativas. Ainda não é operado o desdobramento substitui o todo: no primeiro exemplo, o
entre o fato e o conjunto, que lhe conferiria último termo da série substitui todos os que
seu lugar ou seu caráter. Podendo apenas fazem a árvore provir da semente; no segundo
apreender casos particulares, a criança deve, exemplo, a unidade individual substitui o
sem cessar, mitigar suas afirmações através conjunto coletivo que significa “grama”. Não
de “têm uns... às vezes... quase”. Nada é há nem coordenação intrínseca do objeto,
necessário, tudo é possível, ou melhor a visto sob uma de suas imagens, com sua
própria distinção do possível e do imposeivel representação do conjunto, nem coordenação
não existe, pois ela suporia os fatos ou as exata entre as duas representações. Em vez
idéias submetidos a uma ordem, a qual eles de apreender cada um dos objetos em sua
deveriam ou não se integrar. Eles são aceitos unidade específica ou catégorial, a criança
tal qual se apresentam, mas são constatados deles separa traços particulares. Ela somen­
e interpretados com uma igual incerteza pois, te é sensível à altura da árvore, não ao de­
sem critério, nem regra, a representação de­ senvolvimento da grama em largura. Ela não
les é tão agitada por imagens ou simples sabe considerar, simultaneamente, as duas
locuções quanto o é a explicação deles por dimensões em sua comparação dos dois
analogias ou ditados. objetos. Mas não se trata, na realidade, de
A mesma contingência é observada en­ verdadeiras dimensões que possam ser redu­
tre os termos de quantidade. Após ter admi­ zidas a uma escala comum; tratam-se de
tido a supressão de todas as árvores, a crian­ qualidades ligadas, de maneira absoluta, a
ça fala de outras folhas, que ainda fariam objetos considerados sob um aspecto ex­
vento. “Todas” íêm% evidentemente, apenas clusivo. Em si, a árvore é grande a grama
um sentido provisório e como que secundá­ miúda: muitas sementes para a árvore, uma
rio. Relaciona-se a um certo momento do única para a grama.
C O N C L U SÕ E S E C O M E N T Á R IO S 333

A quantidade é tão pouco problema de outra como mais pesada. A criança não é
relação quanto tem efeitos inconstantes con­ capaz de conceber isso.Primeiramente, por­
forme o caso: muita água faz um barco flu­ que a decomposição do objeto em unidades
tuar, mas faz uma pedra afundar e até mesmo de volume exigiria que ela soubesse confron­
um pedacinho de madeira, provavelmente, tar, sem os confundir a todo instante, partes e
por oposição comum do tamanho destes ao todo. Além disso, seria-lhe necessário dispor,
do barco. Salvo essa contaminação de um simultaneamente, do peso e do volume como
objeto por outro é o efeito constatado que duas escalas distintas para comparar os obje­
indica, toda vez, o sentido da eficiência. A tos entre si.
uma mudança de um, mudança de outro. Esse é um nível de independência, de
Mas, a verdadeira eficiência não pode ser abstração ou de capacidade que a qualidade
concluída com uma simples constatação em­ ainda não atingiu para a criança. Ela perma­
pírica. Não é uma simples coleção de expe­ nece ligada a cada objeto pela impressão que
riências particulares e descontínuas; é a redu­ a presença deste dá à criança. Desde o plano
ção de todas as experiências a uma ordem perceptivo, provavelmente, a atribuição da
que as explica de modo homogêneo. Cons­ qualidade ao objeto exige uma redução, que
tituir essa ordem, como se fosse anterior a ca­ é muito precoce, de cada impressão ao con­
da uma delas, é indispensável para verificar junto sensorimotor onde ela se encontra. É no
se ela convém a todas. O simples fenomenis- espaço próximo da criança, naquele que tem,
mo deve dar lugar a forças rigorosamente como raio, a atividade de seus braços e de
determinadas e precisamente escolhidas. suas mãos, que o menor deslocamento em
Se as qualidades ficam tão aderentes a profundidade do objeto faz variar, nas pro­
cada caso ou a cada objeto que, com cada um, porções mais colossais, a imagem visual, ou
a mesma pode inverter seus efeitos, tanto melhor, retiniana deste, pois a impressão vi­
mais, em um mesmo objeto, duas qualidades sual já é a integração da impressão periférica
não poderão distinguir, nem opor os seus. É em uma atividade onde ela se instala como o
desse modo que peso e volume permanece­ índice dessa atividade total. Entre as variações
rão confundidos, o plano perceptivo, o con­ da imagem retiniana e os movimentos de
junto cinestésico e visual, que a eles corres­ aproximação ou de afastamento pelos quais
ponde, forma algo de intimamente solidário. os braços fazem o objeto apreendido passar,
Com peso igual, o mais volumoso de dois a ligação tem algo de imediato, embora exija
objetos parece o mais leve. Essa ilusão, que uma aprendizagem à qual a criança pequena
não existe de imediato e que pode nunca se se entrega espontaneamente, com as marcas
produzir em deficientes intelectuais, é o sinal do interesse mais intenso ou mais exuberante.
de uma crescente interdependência entre Desse modo, desde o plano da intuição sensí­
impressões e presunções motoras: face ao vel, opera-se uma dupla operação de desdo­
maior, a acomodação motora é a mesma que bramento e de integração. Desdobramento
face ao mais pesado e é o contraste entre o entre a variabilidade das impressões perifé­
esforço previsto e o esforço real que dá a im­ ricas e a identidade mantida pelo objeto atra­
pressão de leveza. No plano da representa­ vés das manipulações sofridas. Integração de
ção intelectual, é preciso que esse combina­ cada impressão ao conjunto de circunstâncias
do global de peso e volume seja dissociado exteriores e subjetivas de onde aquela tira, a
para que a proporcionalidade deles, ou seja, cada instante, sua significação. É no plano da
o fracionamento deles em partes equivalentes, avaliação intelectual que a mesma operação
tome-se possível. Somente assim o barco que deve repetir-se com o peso e o volume con­
flutua e a pedra que vai ao fundo da água po­ jugados. O volume toma-se, para o peso,
derão ser imaginados um como mais leve e a aquilo que era a distância para o tamanho
334 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

aparente do objeto. Mas, a variação recíproca com que ela se desloque entre os efeitos ou os
deles não é mais nada, imediatamente, como objetos conforme o tudo ou nada. É a lei da
era o efeito do movimento sobre a percepção. alternativa simples. O par pesado-leve repar­
Ela deve ser imaginada como uma compen­ te-se entre os objetos para repartir, entre eles,
sação entre duas variáveis independentes. os efeitos opostos que lhe são atribuídos.
No plano perceptivo, há fusão das séries Assim, a qualidade começa estabelecen­
motora e sensorial, influência ativa de uma do simples relações binárias, quer de con­
sobre a outra. Com a representação intelectual, traste ou de conflito, quer de equilíbrio ou de
pelo contrário, há dissociação das qualidades compensação. Sua existência em si e sem
combinadas no objeto e redução, de cada graus coloca-a, sem cessar, em contradição,
um, a uma ordem qualitativa que permitirá não apenas com os objetos ou os efeitos, mas
classificar os objetos entre si. O objeto per­ também com ela mesma: pela diferença de
ceptivo e o objeto intelectual são dois pontos substância, a pedra afunda e a madeia bóia;
de vista sobre o real que apresentam certas mas, considerados, ambos, como pesados, o
oposições. Um baseia a diversidade das im­ peso faz a pedra afundar e o barco flutuar, in­
pressões na identidade do objeto, o outro ba­ vertendo-se o resultado do peso conforme os
seia a identidade do objeto em uma análise de casos. Ele muda de natureza com os objetos:
suas diferenças. Por uma operação inversa o açúcar, a terra, a madeira, o papel são, to­
àquela que lhe havia ensinado a ver apenas o dos, igualmente capazes de derreter, mas de
objeto individual sob suas impressões variá­ uma fusão evidentemente bem diferente. Ela
veis e misturadas a criança deve, agora, ver, permuta com qualidades bem diversas. Ser
no objeto, variáveis distintas, que devem servir fundível é ter uma consistência mole, uma cor
para classificá-lo. Desdobramento e integra­ branca, cinza ou preta, transferindo-se as re­
ção são como que espelhos um do outro. lações de causa a efeito, sucessivamente, de
Mas a criança não pára de misturar essas um termo para outro, como é comum nas es­
imagens invertidas. Ela não chega a distinguir truturas binárias.
o que vê e o q u e concebe. Os dois planos são, Absoluta, a qualidade não tem identida­
a todo instante, confundidos ou substituídos de fixa. Ainda depende de cada objeto, ela se
um pelo outro. Para estabelecer uma harmonia contradiz de um para outro. Querendo ele-
exata entre os dois, ela deveria saber tomá- var-se ao nível de classificação e da explica­
los sistematicamente, oponíveis. Pelo contrá­ ção, ela entra em conflito com aquilo que é
rio, a qualidade, que a criança queria expli­ constatado. Sua passagem de um plano para
cativa, permanece aderente ao objeto. Como outro será cheia de armadilhas, enquanto ela
motivo explicativo, ela se transfere de uma não substituir sua simples presença no obje­
para outro de maneira absoluta, em vez de to, sua simples concomitância com outrs
ser, entre todos, um meio de classificá-los qualidades, por uma rede ideal que as deixe
conforme seus aspectos ou efeitos. Desse se recortar entre si, conforme todas as cir­
modo, a qualidade encontrar-se-á, constante­ cunstâncias possíveis ou previsíveis, e onde
mente, em contradição que com os próprios cada objeto individual ou concebível encon­
efeitos, quer com os objetos. Por exemplo, tre um lugar rigorosamente determinável.
sendo o peso do açúcar dado como a causa
de sua fusão na água, a bolinha de gude, que O CARÁTER NORMATIVO DO
não derrete, será mais leve do que ele; o ferro, CONHECIMENTO
que é mais pesado, deve derreter, e o giz, pro­
vavelmente devido à sha semelhança com o SUAS DIFICULDADES PARA A CRIANÇA
açúcar, deve, ao mesmo tempo, derreter e ser
pesado. O caráter absoluto da qualidade faz É a definição exata que deve chegar o
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 335

conhecimento das coisas. Só assim elas são ser utilizáveis a seu contato e sofrer-lhe o
identificadb s e classificadas. Mas, a definição controle. O conhecimento tem o objeto em
choca-se com obstáculos intransponíveis na potencial. É o poder de integrar aquilo que a
criança. Compete-lhe prolongar -o objeto ele se relaciona, graças aos instrumentos
individual em coleção de objetos semelhan­ intelectuais que desenvolve. Ao mesmo
temente identificáveis: é sua extensão. Ela tempo, aprofunda a natureza do objeto. A
tende a uma delimitação qualitativa que querela dos rmiversais não era sem fun­
convenha, simultaneamente, ao indivíduo e damento psicológico. Nominalismo e realismo
à coleção, que seja tudo o que pode haver de representavam dois momentos alternantes
comum entre o indivíduo e o grupo corres­ do ato cognitivo. Mas, é do ponto de vista
pondente: é sua compreensão. Dupla elimi­ funcional, e nãosubstancialista, que é preciso
nação e dupla integração. Eliminação, entre considerar as relações deles. O conhecimento
os seres particulares, dos que não são de é essencialmente operatório. Entre os dois
mesma natureza; eliminação, nas essências móveis, que são as mudanças perpétuas do
qualitativas, do acidental e do acessório. mundo exterior e das disposições subjetivas,
Integração de todo ser a um grupo de que sua a representação insere seus limites rígidos.
imagem seja a marca; integração de toda Mas, simultaneamente, ela abre os limites das
particularidade a uma ordem de onde ela categorias, onde a diversidade do real poderá
receba sua significação. A integração tem, exprimir-se em todas as suas transformações.
como efeito, uma inversão: o que era con­ Rigidez necessária, para fixar os elem entos
secutivo toma-se anterior; o que era sim­ estáveis sem os quais seria impossível precisar
plesmente fortuito toma-se previsível e ne­ as diferenças e variações delas. Restituição
cessário. O ser deve ser aquilo que é e não necessária do movimento a essa rigidez, sem
pode ser de outro modo sem deformidade. o que a aparência real ou parcial das coisas
Seus traços não são quaisquer traços, mas se seria imobilizada e encontrar-se-ia, perpe
inserem em um sistema que lhes controla as mámente, em oposição com a realidade delas,
semelhanças e as diferenças. O conhecimen­ com as modalidades diversas da existência
to não seria o conhecimento se não fosse delas. As operações do pensamento não são
normativo. Como a percepção, ele antecipa o o simples decalque das operações que
real, mas, como a percepção, suas antecipa­ prosseguem no mundo, mas não cessam de
ções devem se retificar, ajustar-se, ou, se ne­ tender à representação fiel delas. Elas têm
cessário for, dissolver-se. Como a percepção, seus instrumentos, que são as idéias, com o
ele depende de estruturas que lhe são pró­ que pode lhes dar um suporte e disso fazer
prias; mas o real impõe-se, por seu lado, a um material manejável, como é a linguagem
essas estruturas para tomar-se o conhecível, sob suas formas correntes e eruditas. Mas,
assim como o mundo exterior toma-se o per­ esses instrumentos não serão nada mais do
ceptível, pela organização das impressões que decepção, se não se tornarem a imagem
sensíveis em imagens de objetos presentes. fiel das forças que se manifestam nas coisas e
O conhecimento deve substituir essas as fazem agir.
impressões e imagens por símbolos e repre­ Esse edifício de noções ou de capacida­
sentações que lhe façam ultrapassar as apa­ des, que se especializam para se subordinar
rências efetivas do mundo exterior. Esse no­ mais expressamente entre si, extrapola os
vo nível de organização mental tem suas leis. meios intelectuais da criança. Entre o objeto
Não é surpreendente que suas fórmulas pos­ perceptivo e sua tradução em idéias, ela se
sam desenvolver-se por si mesmas e antecipar choca com o objeto global e com a opacida­
a experiência, de onde, aliás, receberam os de confusa de sua primeira linguagem, com a
elementos, o impulso delas. Mas, elas devem dupla necessidade de um objeto estável e de
336 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

representações diversas, com a necessidade seja oposto, radicalmente, o objeto a ele mes­
inversa de tomar válido, para vários objetos, mo e com que ele seja dissociado em vários.
um mesmo critério qualitativo, com a oposi­ Entre sua substância e a diferenciação aci­
ção da intuição sincrética e do pensamento dental, a discriminação não é feita. Ele forma
formal, com a oposição inversa da diferen­ algo de heterogêneo, onde o signo e a coisa,
ciação abstrata e das relações concretas com a causa e a conseqüência são tomados um
a confusão dos elementos específicos e do pelo outro. É freqüente o eclipse do essencial
conjunto, com a dos limites categorias entre pelo fortuito, do específico pelo banal, da
si. ordem cronológica ou causal pela impressão
A linguagem é, para a criança, o veículo ou pelo interesse subjetivo, da realidade por
das noções correntemente aplicadas, por seu elementos que andam aos pares, que formam
meio social, às coisas, mas, inicialmente, a como que uma molécula de conhecimento
criança sabe dispor dela apenas de um modo mais forte do que o próprio vínculo per­
muito grosseiro. Ela deve descobrir-lhe, deta­ ceptivo. O que é, sensorialmente, um dispersa­
lhar-lhe, esclarecer-lhe a significação por se em objetos tão numerosos que podem
tentativas e ajustamentos graduais. Não exis­ coexistir, a seu respeito, associações: o trigo-
te, desde o início, o acordo entre suas impres­ semeadura, - colheita, - debulhado, - moído
sões originais e as convenções do vocabu­ não é integrado nem cronologicamente, nem
lário e da sintaxe. São duas séries onde são substancialmente, no trigo em grãos, embora
diferentes as causas de confusão, as ligações idênticos tanto após a debulha quanto no
próprias a cada uma. Elas tomam necessários moinho, tanto na espiga quanto no saco. Não
os recortes de uma sobre a outra. As implica­ sendo suas imagens sucessivas distribuídas
ções da linguagem podem ocasionar assi­ entre si conforme as relações que respondem
milações ou conseqüências que são inade­ às condições do real, a coisa permanece
quadas no campo das realidades empíricas; dissociada. Inversamente, a mesma ausência
mas estas, que ficaram na fase do acon­ de limites reguladores a faz aglutinar-se
tecimento puro e simples, das circunstâncias conforme os contatos com uma existência
contingentes, dos conjuntos sincréticos, estranha. Ela só existe em sua imagem pre­
constituem um obstáculo para as conclusões sente, freqüentemente contaminada por ou­
ou as deduções mais legítimas. Disso resultam tras. Nenhum de seus aspectos tem o poder
seqüências de palavras ou de imagens que se de evocar os outros, pois os campos inte­
alongam em enumerações disparatadas, quer lectuais ainda não são permeáveis onde
seu próprio motivo se exprima de modo mal poderiam ser seguidas as transformações
delineado e ambíguo, quer os objetos ou as virtuais de sua representação.
circunstâncias se encadeiem, na lembrança
ou na percepção, de modo fortuito. Seguir- UNIDADE E DIVERSIDADE
se-ão aproximações que desafiam toda defi­
nição lógica: contradições, papéis invertidos, A estabilidade do objeto e a mutabilida-
fusão do que é distinto ou dissociação do de de sua representação são duas condições
mesmo. complementares. Mas ficam dissociadas na
Na verdade, o objeto do pensamento criança. Ela obedece, alternadamente, a uma
permanece global, de identidade mal delimi­ ou a outra, e o objeto escapa a toda definição,
tada, de estrutura, ao mesmo tempo, inde- quer ele permaneça comparável somente a si
componível e pouco coerente. Uma seme­ mesmo, quer ele se transforme, sem cessar,
lhança parcial, uma sirnples analogia formula­ em outra coisa. A forma mais elementar dessa
se em pseudo-identidade. Inversamente, a dupla tendência é, de um lado, a tautología
descoberta de uma diferença faz com que pura e, de outro, a simples enumeração. A
C O N C L U SÕ E S E C O M E N T Á R IO S 337

tautología é uma espécie de parada sobre a considerar os dados empíricos. As duas séries
coisa para constatar sua identidade consigo ainda são independentes.
mesma, ou melhor, sua exata conformidade Face à representação estão as coisas, em
com sua própria representação. A enumera­ sua simples coexistência ou em sua sucessão.
ção vai de um objeto para outro para neles A criança limita-se, com freqüência, a citá-las
procurar certas conformidades. Na criança, uma após a outra, como se cada objeto
elas têm, em comum, o fato de pertencer ao pudesse substituir o precedente para defini-
mesmo período, onde as impressões dadas lo. É um desfile onde a identidade resume-se
pelo objeto não se ordenam em séries in­ em um simples sentimento de equivalência
dependentes dele. Em um caso, a represen­ difusa. Para que ele possa propagar-se de um
tação fixa o objeto em sua forma presente e objeto para outro é preciso, evidentemente,
como que inelutável; no outro, os objetos são que a impressão de sua diversidade seja
dados como sua própria representação, que abolida pela preeminência sucessiva de suas
se transforma com cada um, sem nada es­ imagens. Contudo, essa busca através das
tabelecer de comum entre eles. Ponto de vista coisas para apreender-lhes as semelhanças e
da representação e ponto de vista dos obje­ para reduzi-las, desse modo, à unidade que o
tos, necessidade de coerência e necessidade exercício do pensamento exige, atesta, ao
de diversidade, dedução e observação são mesmo tempo, que não há pensamento sem
igualmente indispensáveis ao conhecimento, diversidade. É no mundo de suas impressões,
mas começam tendo efeitos inversos. é somente nas coisas sensíveis que está a
Com a representação, entra em jogo um diversidade para a criança, não tendo ainda
esforço de identificação que tende, frequen­ os motivos de seu mundo interior autonomia.
temente, a colocar, no próprio objeto, o prin­ Ele é captado por elas; a primeira unidade
cípio e as forças que o fazem existir ou se delas é a única unidade ou continuidade de
manifestar. Traços de impressões anestési­ seus interesse. Mas, de seus interesses, nascem
cas podem até mesmo se deixar reconhecer constatações e, gradualmente, a observação
nele, quer na substância do objeto, onde dirigida. A noção do objeto como tal lhe está
estão misturados seus aspectos, suas partes, ligada. Contudo, ela não termina verdadeira­
suas variações, quer na ação e no papel que mente a observação só se torna possível pelo
servem para defini-lo. Sucede que as expli­ processo inverso de representação dedutiva.
cações da criança parecem nele fundir algo Somente ele permite classificar os objetos em
da própria atividade dela ou do homem em séries e identificar cada um deles.
geral. Disso podem resultar, aliás, digressões, Enquanto continuarem dissociadas, as
reminiscências subjetivas, que vêm parasitar duas tendências permanecerão, ambas, ele­
a tentativa de tom ar o objeto coerente com mentares. A criança passa de uma para outra
ele mesmo. Essa busca de unidade intrínseca, à custa de inconseqüências ou de contra­
que consistem em julgar o objeto segundo o dições. Entre os objetos, a única dedução de
que sua representação contém de essencial, que é capaz são simples assimilações ou
está na origem da dedução. Ela representa simples contrastes, que se transferem de par
um esforço de assimilação pela representação, para par, sem considerar suas diferenças. O
onde esta está impregnada de ativismo de contraste qualitativo perde toda significação
forma, inicialmente, mais ou menos pessoal. específica; toma-se uma simples altenativa
Na criança, a necessidade de coerência tende, sem conteúdo exprimível: é o que ocorre
freqüentemente, mais para a coerência con­ com vivo-não vivo, após algumas peregrina­
sigo mesma do que com as coisas e, por ções através dos objetos. Se for, pelo contrá­
vezes, a dedução pode parecer um desafio ao rio, um contraste de coisas, não poderá ultra­
senso comum. Ela segue seu tema, sem passar seus termos de origem sem dar lugar a
338 AS ORIGENS Ш PENSAMENTO NA CRIANÇA

agrupamentos barrocos: por exemplo, os seu respeito, a possibilidade ou a necessida­


cabelos não têm cabeça. A todo instante, a de de casos semelhantes, fixá-la como uma
criança vê-se presa entre a relação lógica e a espécie definida e que escapa às contingên­
imagem das coisas, entre a assimilação e o cias dos casos particulares. Mas, se não sabe
caso singular. Assim, ela deve mudar de argu­ transformar, desse modo, o fato em poten­
mento, de um objeto para outro, e freqüen­ cial, isso ocorre porque, para as imagens
temente também, para o mesmo objeto: desse concretas de sua experiência, ela ainda não é
modo, a vida será justificada, sucessivamen­ capaz de imaginar uma reprodução, onde os
te, pelo fato de pertencer a um ser vivo, pela diferentes traços delas possam se isolar, du­
integridade morfológica, pela atividade fun­ rar, a fim de serem reconhecidos em todo
cional, pela extensão da mesma propriedade lugar onde se encontrem. A suas impressões,
às partes do mesmo conjunto. Mas, essa va­ faltam limites onde se distribuir : desse modo,
riabilidade leva-a, com freqüência, a negar o as confusões, que a criança permanece incli­
que acabou de afirmar. Tamanha pode ser a nada a cometer entre o efeito e a causa, entre
confusão que ela escolherá, no objeto, um o sujeito e o objeto, explicam a incoerência
traço que não combina com a relação a ser onde se perdem, freqüentemente, suas expli­
justificada; ou então, o mesmo traço será da­ cações e seus desenvolvimentos.
do para sustentar conseqüências contrárias.
Razão de vida na própria criança, “crescer” é DEFINIÇÕES QUALITATIVAS
um argumento contra a vida das plantas. O
espírito da criança é, perpetuamente, dispu­ Uma definição qualitativa, por mais
tado entre a intuição direta das coisas ou dos tautológica que possa parecer, já é uma
casos particulares e o motivo que ela deve ter antecipação. Ela une ao objeto, tal como ele
para reuni-los ou opô-los. Entre os dois, a deve ser, impressões ou efeitos que permiti­
criança sabe se resolver apenas deixando ou rão reconhecê-lo. Ela é o resultado de iden­
o tema de idéias esvaziar-se de todo conteúdo, tificações freqüentemente complexas e onde
ou os objetos comparados perderem as estão em causa atividades diversas. Enquanto
propriedades que não combinam com ele. a inteligência prática opera ligando o resultado
A necessidade de critérios e de objetos aos gestos por intermédio de todas as cir­
estáveis choca-se, na criança, com o contras­ cunstâncias favoráveis, que se fundem com
te de suas impressões pessoais, de suas expe­ eles em um mesmo conjunto dinâmico, a
riências vividas e das noções, das palavras diferenciação das qualidades ou das pro­
cujo sentido é delimitado, cujo uso é regula­ priedades, ou seja, ao mesmo tempo a dos
do do exterior. Ela é contrariada pela diversi­ objetos, exigem identificações que confe­
dade que é encontrada nas coisas e pela rem, a cada um deles, uma tal estabilidade
fixidez que o pensamento procura nelas. que ele possa ser imaginado como sendo o
Atenta à primeira, a criança nada encontra de mesmo, qualquer que seja seu sugar no espa­
com um nas coisas; prendendo-se à segunda, ço, na sucessão de nossos atos ou de nossas
ela não pode descobrir relações que persistam percepções e nos usos que dele serão feitos.
de uma para outra: conforme os seres,ela dá Ele deve, portanto, ser separado das reações
os mais diferentes traços para os sinais ou as naturais, da rotina, das improvisações práti­
causas da vida. Ela sente bem uma ligação ou cas onde seus contornos são amalgamados,
uma conformidade indispensáveis entre os de acordo com a necessidade do momento,
dados da observação, mas pode apenas, a para tomar-se centro durável de possibi­
cada vez, reconhedfer sua coexistência. Ela lidades perceptivas. Ele é subtraído ao puro
constata sem prever. Não sabe transformar a campo da ação para entrar no da contem­
coincidência em relação, ou seja, evocar, a plação ou da especulação. Apenas aí ele
C O N C L U SÕ E S E COMENTÁMOS 339

pode delimitar-se entre as outras realidades, objetos entre os quais deve ser repartir a
como sendo dotado de suas próprias qua substância do real, inicialmente elas não
lídades essenciais. Contudo, essas qualida­ podem deles se separar para desempenhar o
des, de início, não são facilmente distingui­ papel intermediário. O nome que as designa
das entre si. Todas juntas, elas constituem o ou parece aplicar-se apenas ao objeto da
objeto, fazem com que seja reconhecido, mas representação presente, ou estende-se a co­
ainda não podem servir para analisá-lo e nem leções heteróditas. Se não se resume em
para compará-lo, sistematicamente, com simples tautología, ele é menos uma seme­
outros. Elas são a ele incorporadas e fazem lhança do que uma etiqueta consagrada pelo
com que parte de sua substância. Entre elas e uso. Mas, os objetos, assim reunidos, causam
ele ainda não há ruptura. O nome delas uma impressão de diferença, que também vai
ocasiona, como que automaticamente, o dele, se traduzir de maneira puramente concreta
e vice-versa, sem necessidade de uma cópula ou de maneira verbal, quer pelo enundado
entre os dois. sucessivo de outros objetos entre os quais a
É um estado que pode ser encontrado noção se fragmenta, quer por substituições,
em certos casos de regressão mental que unicamente nominativas, de qualidades en­
afetam, sobretudo, a esfera da linguagem. O tre si. Em todo caso, uma mesma designação
nome do objeto ocasiona o da qualidade e qualitativa não implica relação definida.
este deve como que se completar, imedia­ Misturada demais ao conjunto das outras
tamente, pelo primeiro. Em dois objetos dife­ qualidades, que constituem cada objeto, e
rentes, a qualidade não é reconhecida como sem especificação nítida, ela ainda não está
sendo a mesma ou, se o mesmo nome lhe é em estado de assinalar, mesmo entre diferen­
dado, ela ocasiona, entre eles, uma completa ças incontestáveis, o traço predso que obje­
identificação substancial, o que é uma causa tos podem ter em comum. A indeterminação
de contradições perpétuas: é a fase substân­ mútua das semelhanças e das diferenças a
cia da qualidade. Ao mesmo tempo, a própria esvazia de qualquer significação própria. Duas
representação do objeto também regride para conseqüências são possíveis: ou o agrupa­
a fase utilitária. Ele tende a só ser descrito pela mento entre objetos não pode utltrapassar o
ação à qual se presta. Enfim, uma direção do par, que admite uma simples comparação
espaço só vai poder ser indicada por meio de global; ou a comparação dissolve-se nas
um objeto que se encontre nessa direção ou semelhanças e diferenças mais vagas, para
em relação ao próprio corpo. Essas mútuas deixar subsistir, entre elas, relações de mais e
implicações perceptivas, operatórias e ver­ de menos, cuja identidade qualitativa seria
bais, às quais uma lesão nervosa pode levar a bem difícil de reconhecer.
representação, são uma confirmação do sen­
tido que sua evolução segue. INTUIÇÃO SINCRÉTICA E
Ela começa sofrendo a marca da ativida­ PENSAMENTO FORMAL
de prática, de onde ela emerge e à qual ela
deve opor a identidade do objeto. Mas, o que Desde a origem, as representações e
ela condensa de impressõçs sobre o objeto conhecimentos da criança encontram-se co­
começa por fazer dele algo de absoluto, uma mo que disputados entre duas condições
espécie de unidade indecomponível e sem que parecem opostas— a intuição sincrética
comparação possível nem com outra coisa, e o pensamento formal — , mas que têm,
nem com suas próprias mudanças. É então efetivamente, íntimas relações. Por outro lado,
que se produzem efeitos contraditórios. As é-lhe preciso passar de um desses contrários
representações são, no mesmo grau, concretas para o outro: as ligações subjetivas ou práticas
e verbais. Confundidas com cada um dos que sua sensibilidade, sua atividade tecem
340 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

entre as coisas, e a distribuição delas em abstrato. Ele não retém o que pode ser co­
categorias onde possam se expressar a diver­ mum aos objetos; ele se esvazia somente do
sidade e as relações delas. As diferenciações que o colocaria em oposição com cada um
necessárias fazem-se por níveis, que ainda deles; mas essa eliminação não é diferenciada,
são reconhecíveis na idade em que a criança é global. Com mais freqüência ainda, ele
toma-se capaz de explicar-se. Suas diversas adota, no estado em que estiver, uma relação
confusões são o sinal disso. Ao mesmo tem­ que se aplicar apenas a dois deles e estende-
po, elas carregam a marca de suas disposi­ a, mecanicamente, aos outros, sem a menor
ções simultâneas ao global e ao esquemático, consideração pela verdadeira imagem dos
onde se opõem dois aspectos de suas repre­ novos objetos. Ele a substitui, assim, de
sentações: o conteúdo sensível e a assimilação maneira completa, graças, provavelmente, à
mútua delas pelo pensamento. frágil coesão dos atos mentais na criança e à
É, inicialmente, sob forma de blocos inércia que faz o mesmo repetir-se, na falta
indecomponíveis, inorganizados e sem rela­ dos outros. Enquanto o abstrato exprime uma
ções definidas que a criança apreende os ordem entre as coisas, o esquemático é, pelo
objetos e os grupos de objetos. Tudo está, contrário, uma causa de incoerência.
então, em tudo. Mas nem tudo pode ter Na verdade, o isolamento mútuo onde
expressão, senão muito esquemática. Ou podem se encontrar a intuição das coisas e
melhor, o pensamento da criança não é nem seu motivo comum corre o risco, freqüen­
total, nem esquemático. É um a seqüência ou temente, de ocasionar discordâncias. A sig­
uma coleção de representações sem estrutu­ nificação do motivo não é estável. Ela pode
ra nitidamente diferenciada e, por conse­ quer tomar-se inteiramente neutra, quer calca-
qüência, irredutíveis entre si. Mas, a signi­ ser num lado inteiramente particular. As
ficação justificada, que é própria do pen­ coisas, por outro lado, são reunidas ou opostas
samento mesmo quando ele analisa, exige por semelhanças ou diferenças globais, que
um motivo comum a esses conjuntos. É, não podem enquadrar-se, rigorosamente, com
portanto, sucessivamente, a substância das o motivo. Antes de poderem servir para a
representações e a comum apreensão delas, classificação delas as qualidades vão, por­
pelo pensamento, que ocupam a criança. tanto, ou se contaminar mutuamente e
Esses dois momentos complementares ainda perderem a delimitação, o conteúdo, a iden­
não estão conjugados. Seus efeitos são dife­ tidade delas, ou falsear a representação das
rentes, mas para causas semelhantes. Sincre­ coisas misturando nelas anologias, contraste
tismo, quando o espírito olha para as coisas. que nem a percepção, nem a natureza delas
Esquematismo, para a assimilação mútua justificam. Contudo, essas próprias discor­
delas. Nos dois casos, há incapacidade para dâncias, à medida que são reconhecidas,
decompor a experiência em relações diferen­ exigem que sejam resolvidas. Elas aceleram,
ciadas, isolamento mútuo dos atos mentais. A ao mesmo tempo, o desdobramento e a adap­
coisa é feita de impressões confundidas e tação entre o processo do pensamento e a
intercambiáveis. O vínculo é uma qualidade experiência intuitiva, entre as condições for­
desencarnada e cujo conteúdo intuitivo pode mais de uma e as resistências da outra.
evaporar-se até os limites do imperceptível, É clássico admitir a anterioridade lógica
pode assumir, até mesmo, como que um e psicogenética do concreto sobre o abstrato.
valor negativo. O simples fato de ligar, entre Contudo, não é muito aceitável, se uma
si, coisas díspares, ou cujas semelhanças e proceda das intuições perceptivas e a outra
dessemelhanças não estão dissociadas, leva- do esquematismo diferencial. Sem remontar
a a esse grau de abstração. até o plano das reações sensorimotoras, onde
Ou melhor, o esquemático ainda não é o as provas de uma sensibilidade diferencial
C O N C L U S Õ E S E C O M E N T Á R IO S 341

são bem mais precoces, tanto na onto quanto samente porque o ajustamento entre a expe­
na fllogênese, do que as de imagens .percep­ riência perceptiva e as noções que são facil­
tivas, no plano das idéias, a experiência global mente consideradas como o simples decal­
das coisas e as distinções mais ou menos que de idéias dela não se faz de imediato que
vazias de conteúdo qualitativo alternam-se ele ocasiona um vasto trabalho de identifica­
ou coexistem desde o início. A criança abusa ção nocional e de definição. A simples tau­
destas com uma espécie de cegueira inaba­ tología já é uma confrontação do objeto com
lável. Ela tem como que uma balança, onde sua representação. Passar do efeito para a
faz os objetos passarem, dois a dois, sem natureza do objeto e vice-versa, alternada­
consideração pela verdadeira natureza deles. mente definir o objeto pela qualidade e a
Ela procura um equilíbrio, sem levar em conta qualidade pelo objeto, reconhecer que, sob
os efeitos sensíveis que a ele respondem. As um mesmo vocábulo, ou que, graças a um
estruturas elementares de contraste ou de contraste esquemático, são efeitos, ou objetos
equivalência separam-se das realidades ava­ díspares que foram reunidos, levam a operar
liadas. Ao mesmo tempo em que se tomam a seleção mútua dos objetos e das qualidades
absolutas, sua direção parece tomar-se indife­ que permitem distinguí-los entre si, agrupá-
rente. Assim ocorre com o peso. Um objeto los, opor ou coordenar seus grupos.
é pesado em si, mas, conforme o caso, seu
peso o fará flutuar ou afundar. Mesmo que a O PERÍODO PRÉ-CATEGORIAL
imersão de um corpo não seja reduzida à
relação de seu peso com o do líquido, acon­ A dificuldade dessas definições pode ser
tece, à criança, de atribuir o peso ao suporte mostrada por um caso, simples contudo, o da
sólido, não à massa que ele sustenta. Partici­ identificação a ser feita entre a substância das
pação, confusão e inversão de papel, mas, de coisas e os caracteres que elas devem às suas
maneira alguma, relação verdadeira. propriedades. Assim compreendida, a subs­
Não se deveria acreditar que o critério da tância implica a redução dos casos particulares
comparação tenha, pelo menos no próprio a um termo comum. Ela classifica os objetos
sujeito, uma referência fixa. Ele é freqüen­ diferentes na mesma categoria e reduz efeitos
temente, dos mais inconstantes, dos mais ao princípio deles. Mas, ao mesmo tempo, ela
impessoais. É forte aquele que briga; os é relação de existência, é a matéria original,
adultos não são fortes porque não brigam. A aquilo que persiste através das diferentes
força do sol reside no fato de que ele se modelagens dos objetos, o fundamental sob
sustenta no céu: o homem é forte porque as formas diversas, o estático em relação a
sustenta a criança. Por mais absoluta que seja, empregos variados e mudanças. Poderia
a força pode, assim, ser afirmada ou negada parecer que a ordem não pudesse ser invertida
ao mesmo objeto, conforme o motivo da entre esses dois termos. Contudo, a confusão
comparação, e ele mesmo pode mudar com também é freqüente aí. Face a uma mesa e um
o objeto. Sua própria significação está sujeita lápis, a criança diz que é uma outra madeira.
a variar ou a se fundir com uma outra. Desse Provavelmente, há ambigüidade no sentido
modo, a noção de força serve de intermediá­ do mesmo e do outro. Mas, acontece-lhe de
rio para tom ar equivalentes as de peso e de dizer que a árvore é feita com a madeira da
consistência. O círculo das comparações, ou mesa feita em pedaços. Mais freqüentemente
melhor, das assimilações e dos contrastes, ainda, a criança toma uma qualidade do objeto
assume, então, uma amplitude extrema e é por sua realidade fundamental e, por esse
uma nova fonte de inconseqüências. Estas meio, со1oca como que um vínculo con­
não existem, contudo, sem suscitar, na crian­ substanciai entre objetos díspares. O agru­
ça, proveitosas reações intelectuais. É preci­ pamento pode ser extravagante, a ponto da
342 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

criança dar a impressão de jogar com o ab­ sobrepor como que uma rede ideal de séries,
surdo. Mas, essa única tentação supõe que a onde cada objeto possa ser, simultaneamente,
distinção entre qualidade e substância con­ analisado conforme os componentes de sua
serve algo de ambíguo. E, aliás, tomando-a própria estrutura e classificado, entre os ou­
em sentido contrário, feliz por surpreender as tros objetos, conforme eles tenham, com ele,
pessoas que a cercam e ela mesma, a criança um componente comum. A qualidade não
usa, como em muitos casos, sua atividade deve mais ser a de um objeto particular, nem
lúdica para experimentar, para estimular uma o estado subjetivo daquele que a sente, ela
aptidão funcional ainda próxima de seus pri- deve emigrar para um plano onde ela própria
mórdios. esteja no estado puro, onde apresente todos
O que complica o caso são os efeitos, os graus e todas as nuanças ligadas à sua
diferentes ou contrários, freqüentemente atri­ especificidade, ou seja, que a tom e potencial
buídos à mesma qualidade. O mecanismo mais do que realidade, pois é apenas assim
deles permanecerá obscuro para a criança que todas as realidades efetivas, possíveis
enquanto ela reduzir a uma única qualidade, ou fictícias, poderão ordenar-se nela, e se
como que ao essencial, o conjunto das que tornarão assimiláveis pelo conhecimento in­
constituem o objeto. A criança fica, assim, na telectual.
necessidade de atribuir a uma o que se rela­ Na falta desses limites diferenciados e
ciona à outra. É a mesma confusão entre os estáveis, o objeto permanece indeciso entre a
fatores diversos do objeto que a das partes e impressão ou o efeito que a ele se liga e sua
do todo. É a mesma incapacidade para fazer realidade permanece como coisa entre as
com que cada elemento conserve seu lugar coisas. Às contradições, que surgem entre as
ou seu papel na estrutura total. Por falta de noções subjetivas e o efeito constando, acres­
saber apreender o todo organizando, é-lhe centam-se as contradições inter-serisoriais, às
preciso quer mudar sua definição, toda vez quais se presta o objeto, tomado como um
que a observação faz-lhe constatar uma dis­ todo global, pois ele é, simultaneamente,
cordância entre o fator invocado e o efeito, identificado com cada uma de suas próprias
quer admitir uma espécie de equivalência ou qualidades, tidas por absolutas, em vez de ser
de participação mútua entre todos os efeitos decomponível em seus fatores de peso, vo­
observáveis e todas as qualidades dos obje­ lume, matéria etc. Continuamente, a criança
tos, quer, ainda, justapor simplesmente cada toma um pelo outro: forte e grande, duro e
qualidade com os efeitos a serem explicados: pesado etc. Ela assimila ou confunde as va­
o garfo vai para o fundo da água porque é de riações deles e se encontra, desse modo,
ferro, é leve porque é fino. Através desse jogada em uma oposição perpétua entre as
último procedimento, cada relação indivi­ noções que usa e os dados da experiência.
dual pode ser exata, mas sem medida co­ Freqüentemente mesmo, a contradição ê in­
mum, nem coerência. terna às suas afirmações. Ela atribui e nega a
A indiferenciação das qualidades entre si mesma qualidade ao mesmo objeto. Para sair
e da qualidade com a substância corresponde dessas dificuldades, recorre a circunstâncias
a uma fase onde a criança ainda não sabe extrínsecas, entrega-se a aproximações ex­
ordenar os objetos, nem as impressões que travagantes, interpreta, em sentido contrário,
deles recebe, conforme princípios que sejam as aparências perceptivas.
independentes de cada objeto particular e de Os limites objetivos do conhecimento
sua própria sensibilidade. Aos casos par­ ainda são tão flutuantes que a ordem real das
ticulares, que as circunstâncias compõem, coisas inverte-se. Comparando o vôo da pa­
quer no mundo exterior, quer para sua expe­ lha e o do avião, a criança não diz que o avião
riência pessoal, a criança deve aprender a parece pequeno ao se afastar, mas que, se ele
CONCLUSÕES E COMENTÁMOS 343

se aproxima, é a palha que se torna menor. A tintamente, cada objeto, porque tomadas,
relação tamanho-distância reduz-se a um elas mesmas, como que anteriores aos obje­
simples contraste e este permanece tão bem tos e como que o poder de evocar a nuança
fechado sobre si mesmo, tão separado das ou o grau que convém a cada um, de evocar
relações que unem cada coisa ao plano do o objeto que responde a determinada nuança
real, que o aumento aparente de um objeto ou a determinado grau. Falta, às noções da
que se aproxima é expresso como diminui­ criança, a função catégorial.
ção real do objeto de que ele se aproxima. Eis Não se deveria, portanto, acreditar em
aí uma derradeira conseqüência da inaptidão uma distinção inicial entre o objeto em si e a
para apreender outra coisa além de uma qualidade pura. Tanto um quanto outro têm
diferença ou uma semelhança entre dois que ser especificados. A evocação deles é
objetos. Aqui, a relação prevalece sobre a solidária, no plano do conhecimento. Da
identidade estável dos objetos. Em outros coisa para a idéia, a passagem não é imediata,
casos, a criança confunde cada um deles com não mais do que da intuição perceptiva para
o conjunto global e indiferenciado das quali­ a representação, do concreto para o abstrato,
dades deles. do individual para o geral. Sob esses diferen­
É, em ambos os casos, a fase em que os tes aspectos, a transmutação da experiência
objetos se opõem dois a dois, onde o que faz vivida em pensamento do real supõe, simul­
com que sejam comparados é uma simples taneamente ou por fases alternadas, mas
analogia, uma simples oposição, que perma­ complementares, a especificação mútua do
necem como que ligadas particularmente a objeto e do concreto. O objeto só se deixa
eles e que podem muito bem exprimir-se por identificar na medida em que se deixa anali­
palavras de significação variada, mas que não sar; a qualidade só se deixa diferenciar na
são realmente distintas do par formado por medida em que o objeto se deixa distinguir
esses objetos. Se um dos dois passa para um dos conjuntos onde é encontrado. Do mesmo
outro par, a analogia ou a oposição são intei­ modo, o objeto coletivo não existe sem o
ramente diferentes. Entre os dois pares, não conceito, nem o conceito sem o objeto cole­
há meio-termo. As noções da criança ainda tivo. A criança sente igual dificuldade tanto
pertencem às estruturas de contraste. As qua­ para tornar coerente sua noção do objeto
lidades não são identificáveis por si mes­ quanto para tornar estável e distinta a imagem
mas, ou seja, ainda não são uma ordem real de uma qualidade; tanto para agrupar ou
entre os objetos reais ou imaginários. Elas classificar, corretamente, objetos quanto pa­
não constituem uma seqüência de nuanças ra representar o limite ou a regra que deve
ou de graus, que permitiram classificar, dis­ reuni-los.
SEGUNDA PAUTE

A EXPLICAÇÃO
DO REAL
C a p ítu lo I

AS RELAÇÕES “SENSÍVEIS**

I s N oção d e L ugar

Já há muito tempo a criança percorreu as tornos, sua consistência, seus pesos do espaço
etapas do espaço perceptivo: espaço bucal, vazio que ocupam, onde se movem, se opõem
enquanto as únicas reações sensorimotoras e caem, embora ainda demonstre estar bem
suficientemente diferenciadas para explorar insegura sobre as relações de lugar e de
superfícies, volumes, dimensões são as da realidade, quando se trata de objetos não
boca, à qual a criança leva tudo que agarra; manuseáveis, de lugares dificilmente aces­
espaço próximo, de que toma através da síveis ou, sobretudo, de distribuir, em ima­
agitação de suas mãos, atraindo, repelindo, ginação, as coisas no espaço. A aderência
deslocando, percorrendo, manipulando os persiste, então, entre as diferenças de lugar e
objetos ao seu alcance; espaço, enfim, em as de existência, de propriedade, de causa, e
que seu andar lhe faz ultrapassar, à vontade, torna-se muito aparente que o espaço per­
seus ambientes momentâneos, combinar maneceu como algo de sensível e de par­
seus campos visuomotores sucessivos com ticular, que ainda não é o meio abstrato onde
os níveis em profundidade de sua visão a dis­ as coisas podem coexistir, mudar recipro­
tância, medir as distâncias, ligar entre si, camente de posição, mover-se ao mesmo
através de sua própria chegada, os lugares tempo em que permanecem as mesmas; em
que eram os de outras presenças, quer de suma, aquilo que, para nossos contemporâ­
objetos, quer de pessoas; - já há muito tempo, neos, tomou-se o espaço comum, o puro
suas perguntas sobre o lugar, as primeiras espaço, o espaço cuja evidência nos parece
que surgem imediatamente após as pergun­ tamanha que dele faríamos, facilmente, o
tas sobre o nome das coisas, mostraram-na espaço em si.
capaz de evocar, como real, uma existência
não perceptível e de atribuir o desapare­ CONFUSÃO ENTRE
cimento desta a uma diferença de lugar, O LUGAR E A COISA
fazendo, desse modo, com que o espaço ul­
trapassasse os estritos limites da percepção No início da idade escolar, a criança,
efetiva; há muito tempo a criança coloca e normalmente, ainda confunde, com os lugares
desloca os objetos, ordena-os entre si, po- ocupados, a coisa que não tem limite, consis­
siciona-os segundo suas dimensões e suas tência nítida e durável. Assim ocorre com a
formas, distingue praticamente seus con­ fumaça.
348 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

G...dy 6; “O que é a fumaça?... (mostra- percebida no céu e a feita pelo fumante no


m o lh e a fumaça que sai das chaminés de bosque.
uma fábrica). Com о que é feita a fumaça? - Nada pode, tanto quanto alu ze a sombra,
Com o céu? prestar-se a semelhantes assimilações. Des­
M. providas de limites tangíveis e frequente­
..rès disse, sobre a fumaça, que é cha­
ma, mostramo-lhe fumaça do lado de fora: mente onipresentes no espaço onde são per­
“Olhe, o que é aquilo? - Fumaça. - É chama? cebidas, a origem de sua existência é iden­
- É céu” tificada a lugares que seja possível circuns­
Da mesma criança “O que que é a fuma­ crever e designar.
ça? - Ela vem dos fom os. - Como é que tem
fumaça nos fomos? - Ela sobe nos canos. - E D...pe 5; “Como a noite chega? - Porque
antes de subir nos canos? - O fo rn o está na fic a escuro na rua. - Como é que fica escuro
casa e depois nos canos; na cham iné ” na rua? - Porquefica escuro. - Mas como é que
fica escuro? - Na rua. - Sempre fica escuro na
Nas duas primeiras respostas, a fumaça ê rua? - Não. - Quando fica escuro na rua, de
confundida com o céu onde se espalha e se onde isso vem? - Não sei. - ...Quando fica de
dilui. Na seguinte, é definida apenas pelo noite, não fica também um pouco claro? -
circuito de fornos e de canos por onde passa. Fica. - O que é que clareia? - A parede. - Como
Eis um outro exemplo um pouco mais com­ ela clareia? - Os bicos degás. - Ainda tem mais
plexo e que mostra, melhor ainda, o que a alguma coisa que clareia a noite? - Não. - Você
fumaça tem, por assim dizer, de consubstan­ já olhou o céu à n o ite /-Já.- Você viu alguma
ciai com as circunstâncias de lugar. coisa no céu? - Nada.”

N. ..et 6; 1/2 “De onde vem a fumaça/ - É Obscuridade e claridade parecem, por­
dos lugares quentes. - Você acha que ela vem tanto, aderir essencialmente a lugares: para a
dos lugares quentes?...Você nunca viu faze­ noite, há uma crença freqüente, na criança,
rem fumaça? - Ah, vi! Às vezes, no bosque, eu de que ela penetra na casa como uma subs­
vi um hom em que acendia um cigarro e isso tância sombria que proviria do exterior: ela é,
fe z fum a ça . - Então a gente pode fazer fuma­ aqui, aquilo que vem da rua sem qualquer
ça? - Não...pode. Se a gente estivesse no bos­ comentário. Quanto ao claro-escuro da noite,
que, a gente poderia fa z e r fu m a ça com um ele é, imediatamente, reduzido ao simples
fósforo. - De onde vem aquela fumaça lá? reflexo projetado sobre uma parede por um
(mostramo-lhe uma fumaça de fábrica). - É bico de gás. A explicação é, nos dois casos,
fu m a ça que tem no bosque." estritamente local. A criança, contudo, acres­
centou à parede um bico de gás, porque essa
Sob formas diversas, essas crianças fonte de luz estava próxima demais para que
identificam a fumaça com o local que é per­ sua imagem não viesse juntar-se, como que
cebida ou imaginada: o céu, os condutos que automaticamente, à da superfície iluminada-
segue, depois os lugares quentes, por contra­ iluminante. Mas a mancha que ela ocasiona
ção, em um único, dos dois pares fumaça- também pode, muito bem, evocar apenas sua
calor e calor-lugares quentes, e, enfim, o bos­ própria localização.
que onde a criança lembra-se de ter visto Da mesma criança “Você está vendo esta
alguém acender um cigarro. Essa imagem, de luz em cima da mesa? (uma nesga de sol). O
algum modo acidental, amalgama tão intima­ que é que faz essa luz? - A janela. - E lá? (no
mente lugar e fumaba que tem o poder de fundo do aposento). -A chaveiào comutador).
ligar, como sendo os mesmos e de mesma ori­ - Mas e em cima do assoalho, o que é que faz
gem local, a fumaça de fábrica efetivamente essa luz? - No chão. - Ponha a mão aqui: o que
A S R E L A Ç Õ E S « S E N S ÍV E IS » 349

é que esquenta você? - A luz. - O que é essa coisas, pois aqui, ainda, a diferenciação não
luz? - No chão (mostrando, ao contrário do é feita.
sol, o reflexo sobre o assoalho). - Você acha Entre os lugares e os objetos, a distinção
que essa luz que esquenta você vem do chão? opera-se apenas progressivamente. Para o
(reflexo sobre a parede e sobre o assoalho) - que é inacessível, como os astros, ela é muito
Acho. - Como se chama essa luz?... O que é tardia. E como eles são identificados um pelo
que a faz? - Não sei. - De onde ela vem? - Do outro, disso resulta que podem correr o risco
chão (sempre o reflexo). - Quando a gente vê de partir, mutuamente, sua identidade.
uma luz bonita assim, a gente diz que está
fazendo...? (Levamo-la ao raio, o rosto em L. ..ges 8; “O que que é o sol? - Ê fogo,
pleno sol; ela fecha os olhos). O que você está um a bolona. Então elesesepara. - Como? - De
vendo? - (Ela olha; seus olhos ofuscados um lado tem a lua, do outro, o sol. - Eles ficam
avermelham-se) - Nada. - E então? - O céu. - longe um do outro? - Não. - O sol e a lua são
Quando é que tem luz? - Não sei. - Tem luz a mesma coisa? - Não. - A lua é fogo - É. - É
agora? - Tem. - Como você sabe? - No chão como o sol? - Ah, não!- A lua é fogo mesmo?
(sempre o reflexo). - ...Ainda tem luz? (uma - Д ela clareia. Têm em dois cantos.- um
nuvem passa sobre o céu). - Não. - Como isso pouco lá e um pouco lá. - ...Tem uma lua ou
acontece? - Não sei. - Tem luz de novo? (o sol várias? - Uma lua. - E quando você diz um
reapareceu). Tem. - Como é que não tem mais canto lá e um canto lá? - Bom, o sol está lá, a
luz, se ainda tem? -... O que é que faz essa luz? lua está lá e a Terra que gira
- O dia. - E o que é o dia? - Q uando fic a ciam .”
O que parece embaraçar a criança é o
À exceção do comutador, de tal modo conflito entre a definição local e a definição
ligado, na prática, ao uso da luz que a criança substancial. A identidade de substância, que
o cita sem razão e como que automaticamente ela atribui ao sol eàlua, faz-lhe procurar, para
a propósito de uma nesga de luz produzida distinguí-los, uma diferença de lugar, ou seja,
pelo sol sobre a parede, todas as suas respostas provavelmente, para cada um, uma loca­
são indicações de lugar, ou melhor, limitam- lização essencial e estável. Mas eis que a
se a identificar cada reflexo com o local criança chega a fragmentar a lua, provavel­
ocupado, sem que a criança saiba remontar à mente porque esta muda de lugar. A criança
origem comum de todas essas claridades encontra-se, desse modo, opondo, à duali­
dispersas, mesmo quando, voltada para ela, dade do sol e da lua, uma outra dualidade
tenha os olhos ofuscados por ela, e mesmo local, que parece fazer-lhe, repentinamente,
quando a sombra produzida por sua mão, recear a fusão parcial deles, como se fosse
colocada através do raio luminoso, suprima a uma alternativa inevitável, pois seu pensa­
nesga de sol do assoalho. Seu espaço ainda é mento permanece, por muito tempo, de tipo
o das coisas percebidas, das posições rea­ binário. Sendo a distinção local o fundamento
lizadas. Ainda não é o das relações, nem das único da identidade respectiva deles, ela
trajetórias imaginadas de um ponto a outro. O renuncia imediatamente à essa bipartição.
efeito percebido é percebido apenas onde Esses retornos, essas paradas bruscas, essas
está. Ele é, aí, ao mesmo tempo efeito e causa, contradições aparentes de seu pensamento
ou melhor, efeito e causa ainda não são não podem ser explicados senão através de
diferenciados. Esse pensamento, que per­ dificuldades implícitas, das quais a criança só
manece ligado à presente localização de cada se apercebe quando com elas se choca.
coisa, ainda não pode elevar o espaço ao
plano de causalidade. Quando muito, ele o M. ..in R.7; “O que é o sol? - É o sol. - Você
fundiria com a substância ou a aparência das o conhece? - O sol, eu conheço, eu o vejo. - O
350 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

que é?...Ele é grande?-É .-Como? - Ele está em todo lugar. - sol está em todo lugar? - Está. -
todo lugar...Parece que ele é pequeno assim Quando ele está embaixo (ou seja, durante o
(gesto circular da circunferência de um prato) dia), ele não está no céu (onde ele entraria à
e ele está em todo lugar. - Como em todo noite)? - Não, senhor. - Então ele não está em
lugar?... O que quer dizer em todo lugar?... Em todo lugar - Está, sim, senhor. - O que quer
todo lugar é aqui também? - Não, no céu. - dizer em todo lugar? - Q uer dizer sempre."
Como é que ele é pequeno e está em todo
lugar? - Não sei. - O que quer dizer em todo Em vez de um conflito, aqui é “em todo
lugar? - Em todo lugar, que ela está lá e que lugar” que define a dimensão. Mas o conflito
está lá. - Aqui é em todo lugar? - Não. - Na reaparece entre a ubiqüidade suposta e os
Terra é em todo lugar?- N ão” deslocamentos do sol no espaço. Como o de­
monstra sua assimilação com “sempre”, “em
Aqui, o conflito ocorre entre o lugar e a todo lugar” parece significar, aqui, ausência
dimensão, conflito cuja origem está, talvez, de limites. Mas sob forma ainda puramente
na percepção do sol no céu e ubiqüidade da qualitativa. “Em todo lugar” não é todo o es­
luz. Contudo, essa ubiqüidade permanece, paço; não é o conjunto de todos os lugares
ela própria, aderente e limitada a lugares existentes ou imagináveis; não é a soma que
determinados. A Terra dela é excluída. “Em exclui toda possibilidade de outros lugares,
todo lugar” exprime a identificação do sol mais longe ou alhures; não é a integração de
com a luz que ele difunde, mas ele próprio tudo o que pertence ao mundo extenso. É
identifica-se com o céu, provavelmente como apenas como que algo de intrínseco ao objeto
com a expressão dos espaços onde se propa­ extenso e sem relação com o que lhe é es­
ga e de onde declina a luz do dia; prova­ tranho ou exterior, sem relação até mesmo
velmente, também, porque, entre “em todo com o meio necessário a seus deslocamentos.
lugar" e o céu, há uma espécie de semelhança É a incapacidade para fazer a parte entrar em
qualitativa: ausência de localização precisa e um todo. É a simples justaposição. É o quali­
como que exclusão do que é delimitido. O tativo que substitui as relações. A significação
objeto concreto, como a Terra em seu con­ puramente qualitativa de “em todo lugar” é
junto, é excluído de “em todo lugar”, porque ainda mais aparente no exemplo seguinte.
seus contornos, seus detalhes, sua consis­
tência constituem um obstáculo ao próprio G...el 7 ; “Diga-me outras coisas que estão
espaço ao delimitá-lo. em todo lugar. - As árvores. - Aquela árvore lá
está em todo lugar? - Não, senhor. - Onde ela
O ESPAÇO QUALIDADE está? - Lã, senhor. - Então elas não estão em
todo lugar? - Têm árvores que estão. - As
O espaço ainda n ã o é o lugar dos objetos; árvores do bosque de Saint-Cloud estão em
mas já tende a deles liberar-se, afastar-se. todo lugar? - Estão, sim, senhor. - Mas elas não
Nessa primeira dissociação, ele os deixa do estão aqui, estão? - Não, senhor. - Então, elas
lado de fora de si mesmo, porque ainda é não estão em todo lugar - Às vezes. - As
confundido, senão com uma substância, pelo árvores do bosque de Saint-Cloud estão em
menos com uma qualidade essencial. Dessa todo lugar? - Estão, sim, senhor. - Mas elas não
qualidade, o vazio onde deverão ordenar-se estão aqui, já que estão no bosque de Saint-
os objetos, ele ainda faz algo que é incon­ Cloud. Então elas não estão em todo lugar. -
ciliável com eles e os lança para fora dos Estão, sim, senhor.”
próprios limites dele. '
A árvòre isolada e efetivamente perce­
G...el 7; “O sol é grande? - Ele está em bida não está em todo lugar. Mas a árvore de
AS RELAÇÕES « S E N S ÍV E IS » 351

algum m odo coletiva da lembrança, mesm o “Têm árvores em todo lugar”. Mas como a
definida pelo local onde se encontra, pode expressão não seria ambígua, se “em todo
estar em todo lugar. Ela é individualmente lugar” ainda não é coextensivo a um espaço
não localizável, não sendo imaginada in­ onde todos, lugares e objetos, encontrariam
dividualmente. Ela está em todo lugar, não distintamente o lugar deles? E aliás, face a
tendo lugar distinto entre as outras. Há um em duas sérias, aqui o número e o espaço, a
todo lugar intrínseco ao bosque de Saint- criança contamina-as constantemente. Para
Cloud, que se justapõe a outros lugares sem estabelecer entre elas relações quaisquer, ela
se tornar, com eles, parte de um todo que os deveria poder mantê-las distintas. Ora, ela
ultrapassaria, compreenderia todos e que seria ainda não sabe considerar simultaneamente
o em todo lugar universal. Aqui e em todo duas noções sem que invadam uma à outra e
lugar podem, desse modo, permanecer exte­ misturem seus termos, que não podem, por­
riores um ao outro. Aqui é o lugar onde se tanto, tornar-se os termos de uma relação
distribuem os objetos presentemente per­ definida.
cebidos. Mais longe é “outro lugar”, imagem
esfumaçada e vaga, mesmo sob o nome de O ESPAÇO CAUSALIDADE
lugares determinados. A realidade de aqui
não tem medida comum com em todo lugar Essa confusão do lugar com noções
da lembrança. São dois planos de existência conexas explica o fato de que, sendo, de
diferentes: percepção e representação, mas todas essas noções a mais conhecida, pois
representação ainda inorganizada. “Em todo todo objeto deve ser percebido no local que
lugar” tem o vago de uma grande quantidade ocupa no espaço, o lugar substitui, em muitos
indiferenciada, com a qual ele se confunde, o casos, a noção mais particular com a qual se
vago dos objetos que são apenas imaginados, fundiu. É especialmente muito freqüente que
e sob forma coletiva. Ele permanece, aqui, o lugar seja dado como a causa daquilo que
ainda coberto pela substância das coisas, mas nele se produz.
coisas não efetivas, e exprime o caráter ne­
gativo delas. “Às vezes” acentua essa sig­ B...ert 6; “Como a gente faz para ter ár­
nificação de vago e de contingência, assim vores. -A gente rega, então elas crescem. Elas
como, no outro exemplo, “sempre” exprimia vêm da terra. - Se eu regar a terra em qualquer
o ilimitado. Entre “em todo lugar” e a árvore lugar, vai crescer uma árvore? - Vai, ou então
comum da lembrança, há uma espécie de na terra do jardim cresce verdura. -Não é a
assimilação. A multiplicidade vaga do objeto mesma coisa. - Como a verdura aparece? - A
que não é imaginado individualmente con- gente rega. - Você já tentou? - Já, cresceram
funde-se com o vago dos lugares onde pode feijões. - E as flores? - A gente rega também. -
se colocar esse objeto múltiplo. As duas séries Você sabe o que são sementes? - É pão.”
contaminam uma à outra, pois são, ambas, o
indefinido. A mesma operação tem efeitos diferen­
Assim como a criança não distingue tes que dependem do lugar regado. Prova­
nitidamente entre vários e todos, também velmente, é tanto uma constatação quanto
não discerne entre disperso no espaço e o uma explicação. São distinções ainda vagas
espaço total. Suas resposta “têm árvores que na criança, cujas representações, longe de
estão” à pergunta: “Então elas não estão em envolverem o objeto, sucedem-se por enu­
todo lugar?” tem como significação aparente meração, os feijões depois da verdura, ou por
que há árvores que estão em todo lugar ao par, o pão a propósito das sementes.
mesmo tempo. A despeito da aparência A...aud 6; “Para ter repolhos, o que a
gramatical, a resposta parece querer dizer: gente faz? - Precisa plantar. - E os repolhos
352 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

que a gente planta, como a gente os arranja? como algo que lhes seja distinto, a ponto de
- A gente fa z buracos e depois eles crescem. - admitir, para elas, todas as mudanças de lu­
É só fazer um buraco para que eles cresçam? gar e, para todos os pontos do espaço,
-É .- Você faria um buraco no pátio, cresceria conteúdos indefinidamente variáveis, mas
um repolho? - Não, na terra. - Você faria um tem, naturalmente, tendência a identificar
buraco na terra em Malleville, cresceriam as diferenças diversas dos objetos a essa
repolhos? - Ê. - Você tem certeza? - Num constante que é o espaço. Duas funções
jardim . - E num campo? - Isso daria terra. - parecem competir ao espaço, as quais per­
Não cresceria nada? - Cresceria gram a. - Se manecem mais ou menos fundidas: a marca
você quisesse fazer cenouras crescerem, o local, que se confunde com o objeto e pare­
que você faria? -E u as comeria. - Você gosta ce dar-lhe seu caráter, sua determinação es­
de cenouras? - Gosto. - Se você quisesse fazê- pecíficos, e a extensão, o lugar ocupado que
las crescer, o que você faria? - Não sei.” ainda não se funde no meio desmaterializado,
que é o espaço homogêneo, onde os objetos
Aqui, ainda, a diferença de lugar parece, são sentidos como coexistindo e se moven­
por si só, ocasionar uma diferença de planta. do sem eles próprios mudarem. Um parece
Nesta criança, assim como na precedente, o identificar a coisa e a topologia como algo de
papel das associações próximas é bem apa­ único e de particular, o outro parece isolar, de
rente. Mostra exatamente qual fase inicial todas as coisas, o que a existência delas tem
representa a assimilação das causas específicas de mais universal, de mais totalmente per­
a simples diferenças locais: se o repolho evoca mutável entre elas. A criança permanece em
o jardim, o campo evoca a terra, depois a uma certa ambivalência entre o lugar-objeto
grama, a cenoura evoca a gulodice, desviando e o espaço vazio. Essa indiferenciação relati­
a criança do tema cultura. va lembra um pouco a que subsiste nas cren­
Nessa concordância entre certos lugares ças dos primitivos, que atribuem, a lugares
e certos efeitos, a simples constatação é pro­ determinados, uma influência sobre a exis­
longada por um sentimento de determinação tência e sobre o destino do clã que e ou
ou a idéia de uma predeterminação acredita ser originário desses lugares.
A aderência primitiva da imagem ao local
A...aud 6; “O que você quer ser? - Lavador correspondente pode ser vista em respostas
de minério. - Por quê? - Porque a gente fic a como esta:
perto da m áquina de lavar minério. - E se
você não ficasse perto dessa máquina? - Não C. P...it 6; “Como a gente vê que alguém
sei. - E se você ficasse perto da igreja, o que morreu? - Se vê num leito, num leito de
você faria? - Eu fa ria a igreja. - O que você morte."
faria na igreja? - Não sei. - Você limparia a
igreja ou você seria o padre? - (Ele ri com A aderência do lugar e da causa ocasiona
prazer) P confusões.

O caráter ecolálico da resposta “Eu faria C...in disse, sobre o gelo, que este se
a igreja” e a forma lúdica que a conversa forma no Pólo Norte: “A água do Sena vira
parece assumirnão impedem que a influência gelo? - Vira. - É gelo que vem do Pólo Norte?
local ainda marque, aqui, sua preponderância. - Não, mas égelo do Pólo Norte e, com ojâ tem
Eis aí, provavelmente, um fato ligado a uma m uito gelo no Sena, isso fa z um m ontão de
certa fase da representação em suas relações gelo. Então, às vezes, ele se desprende e vem
com o real. Uma representação sincrética não para a França.”
apenas não pode dissociar o espaço das coisas O lugar de algum modo específico do
A S R E L A Ç Õ E S « SEN S ÍV E IS » 353

gelo no Pólo Norte e sua formação eventual sencialmente concreta e particular. Per­
com a água do Sena, após uma aparência de manece, com freqüência, confundida com
conflito entre as duas origens, marcada por simples objetos.
“não”, acabam por acumular seus efeitos,
mas sem verdadeira repartição entre os dois N...aire 7; 1/2 “O nde nós estamos aqui? -
lugares, de modo que o gelo do Pólo mais o Em Boulogne. - O nde fica Boulogne? - Não
do Sena formam uma única massa, cujo peso sei. - O que é que tem ao lado de Boulogne?
a separaria do Pólo para levá-la à França. - O Sena. -E ao lado do Sena? - Barcos. - Mas,
ao lado? - Pontes. - E ao lado das pontes? -
^DETERMINAÇÃO TOPOGRÁFICA Carros. - Q uando os carros já passaram a
ponte, onde eles ficam? - Eles atravessam a
Vemos o caráter qualitativo que con­ ponte. - Mas onde eles ficam então? - Por lã,
servam as noções de lugar. As diferenças de Por lá ou por lã. - Eles ficam em Bologne? -
lugar no espaço, Pólo Norte e Sena, são como Ficam. - Você já saiu algumas vezes de
que incorporadas pela combinação sincrética Boulogne? -Já. - O nde você ficava então? - Em
gelo-Pólo Norte, que atrai para ela todo o Paris. - O nde fica Paris? - Fica longe de
gelo, mesmo o formado no Sena. A função Boulogne. - O nde fica Orly? - Fica longe
gelo-Pólo Norte tem algo de total e de ex­ também. - Orly fica em Paris? - Quase não
clusivo. É uma fase onde os conjuntos en­ fica. - O que que é a França?... Você nunca
contrados pela criança em sua experiência ou ouviu falar da França? - Não. - O que é um
nas noções recebidas são absolutos, sendo país? - Uma aldeia. - O nte têm aldeias? - Não
indecomponíveis. Desse modo, com muita sei. - Existem muitas aldeias? - Existem. - Se
freqüência, o vínculo do lugar e do objeto ou você fosse passear, você sem pre encontraria
do efeito é dado como exclusivo. aldeias? - Encontraria. - E s e você fosse ainda
mais longe? - Encontraria. - Sempre têm
N...é 6; “Não tem Sena em Paris? - Não. - aldeias? - Têm. - Para ir às aldeias, por onde
Onde ele passa? - Na fren te da m inha casa. - você passa? - Nas estradas e nas calçadas. - E
Onde você mora? - Na rua de Buzenval. - Ele perto das calçadas, o que é que tem? - A
passa só perto da rua Buzenval? - É." estrada fic a no meio. - Do outro lado da
calçada, o que é que tem? - Não sei. - A gente
Imaginar o Sena em outros lugares além vê alguma coisa quando a gente está na
daquele onde ela o vê habitualmente, e calçada? - Na calçada? - É. Têm árvores. - e
simultaneamente em vários lugares, exigiria, perto das árvores? - Tem terra. - Como é essa
da criança, que soubesse realizar, em espírito, terra? - Preta. - Tem muita dessa terra? - Tem,
o espaço contínuo onde se distribuem os mas não onde tem o Sena."
sítios do rio e onde se desenha seu percurso.
Dois traços, provavelm ente correlati­
L...ot 6; “De onde vem o Sena? - De vos, são observados nessas respostas: o vago
Charenton. - Para onde ele vai? - Para Cha- extremo das relações indicadas e a repre­
renton." sentação dos lugares através das coisas. “Ao
lado de” é tom ado, indistintamente, em seu
Um único nome para o montante e pa­ sentido próprio e no de “sobre”, como estão
ra o jusante, como se fosse coextensivo ao os barcos ou as pontes em relação ao rio.
rio. O nome de lugar enunciado ou imagina­ “Longe” é suficiente para indicar a disposição
do parece abarcar, instantaneamente, o ob­ das localidades entre si. E é através de “quase
jeto inteiro. A representação dos lugares é não fica” que a criança responde à pergunta
extremamente reduzida, ou melhor, é es­ “Orly fica ou não fica em Paris?”, expressão de
354 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

incerteza ou d e ignorância provavelmente, As vezes, mesmo o céu fragmenta-se para


mas sob tuna forma que parece admitir como responder a cada uma das qualidades, a cada
que um meio term o entre exterioridade e a um dos poderes contrários que lhe são atri­
interioridade. Por outro lado, são objetos buídos.
contíguos n o espaço que a criança enum era
quando é questionada sobre relações de lugar, N...ret 6; 1/2 “De onde vem o frio? - Do
após os barcos, as pontes e os carros, as céu. - E quando faz calor, de onde ele vem? -
estradas, as calçadas, as árvores, a terra. Fora Dos lugares quentes. - Onde fica o céu? - No
dessas realidades concretas, ela parece in­ alto do teto. - E onde ficam os lugares quentes?
capaz de evocar a extensão entre as aldeias, - Por lã (ela indica, â sua esquerda, um a
os campos que se estendem para além dos direção qualquer). - Não tem céu nos lugares
objetos justapostos nos quais se recorta seu quentes? - Tem, tem um céu. - Não faz frio
meio, o campo onde as estradas se estendem. nesse céu? - Ah, não! É quentinho. - É o
Ela parece incapaz de evocar o intervalo mesmo céu que aqui? - Ah, não!- Então têm
entre os objetos, ou melhor, o espaço que vários céus? - Ah, têm! Têm uns quarenta,
subtende as distancias e a distribuição dos m ais ainda. - E você, quantos céus você já
objetos entre si. No plano da representação, viu? -E u já vi m ais de quarenta. - Onde você
ela lembra a criança pequena ou o afásico no os viu? - Eu vi de noite, no Parque de Saint-
plano da ação perceptiva e manual, que não Cloud, nos Bois de Boulogne e até mesmo
podem distribuir os objetos numa superfície aqui.-N ão éo mesmo céu? - Ah, não/N ão são
vazia a menos que os aglomerem. É a mesma os mesmos céus. - Como você sabe? - Porque
incapacidade, em dois planos diferentes, para eles não são iguais. Têm vermelhos, azuis,
fazer, dos intervalos, uma realidade. marrom. Têm branquinhos com aviões
Identificação do espaço com os objetos, dentro. - Como é o céu do Bois de Boulogne?
confusão das relações no espaço são obser­ - Ê branco. - E os céus vermelhos, onde eles
vadas, alternadamente, na criança. estão? - Os céus vermelhos... eu vi p o r lá
(indica opoente). -E os céus marrom, você já
P...CO 9; “Como é que faz frio? - Porque os viu? - Não. - Você disse que tinha visto. -
não tem sol. - Por que não tem sol? - Ele vai Ah, vi! Eu vi por lá. - Como são esses céus? -
dormir. - Ele está dormindo agora? - Não. - São feitos com branco, marrom e vermelho. E
Mas está fazendo frio. - O sol entrou dentro. - também têm anjinhos no céu.”
Dentro do quê? - No céu. - E quando ele não
entra no céu, onde ele fica? - Ele sai. - De A distinção dos céus, ora segundo eles
onde? - Do céu. - Quando ele sai do céu, onde propaguem o frio ou o calor, ora segundo a
ele fica? - No céu, para fa z e r a gente sentir localidade de onde são percebidos, ora se­
calor. - Você disse que ele sai do céu; onde gundo sua cor; a tentativa de unificar cores e
ele fica quando sai do céu? - No c é u ” lugares, indicando quer uma direção no céu,
quer um local da terra, mostram bem a confu­
Quer saia ou entre no céu, o sol está são que persiste entre o espaço e lugares
sempre no céu. Evidentemente, os lugares determinados, entre esses lugares e certas
onde se operam seus movimentos são vagos propriedades ou qualidades. Donde várias
e ambíguos. Não há nem inclusão, nem exte­ contradições: necessidade de admitir tantos
riorização explícitas. O espaço que os atos de céus quantos neles se sucedem efeitos, atri­
entrar e de'sair implicam permanece ligado a buição de um efeito determinado ao céu de
cada um, sem checar a constituir o espaço um certo lugar, embora esses efeitos possam
único, para o qual poderia se colocar a alter­ diversificar-se para o mesmo lugar: por
nativa estrita de estar dentro ou de estar fora. exemplo, o céu de Bois d e -Boulogne, longe
A S R E L A Ç Õ E S « S E N S ÍV E IS » 355

de ser sem pre branco, p o d e tornar-se verm e­ uma grandeza particular. As noções de gran­
lho ao final da tarde, na direção do poente. deza tendem mesmo a se separar de seu
Essas dificuldades podem ser resolvidas objeto e até a substituí-lo: em vez de res­
por volta dos sete ou oito anos. Parece, então, ponder sobre as dimensões comparadas do
que o céu seja um intermediário útil para sol e do céu, a criança inicialmente responde
passar do espaço q u e se confunde com o “nada”, como se devesse responder sobre o
objeto e do espaço comum onde se deslocam que ultrapassaria as dimensões do céu, que
os objetos. deve imaginar como o limite das extensões
concebíveis. No entanto, é nesse momento
D...al 7; 1/2 “O céu é grande? -Ê .- Como que ela dá a distância da América como a
o quê? - Como a França toda. - Também tem maior: sempre algo de particular levando ao
céu nos outros países? - Tem, sim, senhor. - É absoluto.
o m esm o céu? - Д sim, senhor. - Se ele está ao Provavelmente, o céu já é uma dessas
mesm o tem po em cima da França e em cima imagens ambíguas que partem da percepção
de outros países, ele é maior que a França? - e que são suscetíveis de ultrapassar os limites
Д sim, senhor. - Como o céu pode clarear? - da imaginação sensível, para se tomarem o
Porque ele tem luzes. - A gente vê essas luzes? lugar de toda imagem possível, e para se
- Não, senhor. - O que é o sol? - Fogo que está prestarem às combinações especulativas cu­
no ar. - O céu e o s o l não são a mesma coisa? jos materiais se tomarão simples esquemas e
- Não, senhor. - Para que serve o sol? - Para a puros símbolos. Mas esse objetivo ainda está
gente sentir calor. - O sol é maior que o céu? longe da criança. No momento em que ela já
- Não. - Qual é o maior? - Nada. - Não, é o céu tende a ultrapassar todas as coisas, é uma
ou o sol que é maior? - É o céu. - E qual fica coisa que ela considera como medida do
mais longe? - É a Am érica. - A América fica todo. É difícil saber, para cada criança, até
mais longe do que o céu? - Fica, sim, senhor. que grau de abstração ela é capaz de seguir
- Mais longe que o sol? - Д sim, senhor. - Céu essas imagens-noções. Mas são elas que são,
ou sol, qual é o q u e fica mais longe?-É o céu." efetivamente, o intermediário através do qual
o espírito separa-se, não sem recaídas fre­
O céu é, aqui, único. Contudo, ainda não qüentes, das representações concretas para
é o espaço onde poderiam ficar todos os atingir o que deve tê-las, todas, em potencial,
lugares ou extensões imagináveis, visto que a reais ou imaginárias. Desse modo, o efetivo
criança o reduz, inicialmente, às dimensões transpõe-se em virtual.
da França, sem perceber, espontaneam ente, Talvez a passagem para a abstração
que ele não poderia se estender, ao mesmo suponha o que escapa parcialmente aos
tempo, sobre os outros países. É sempre, sentidos ou à imaginação, o que é parcial­
portanto, incapacidade para integrar as partes mente inexistente e incompreensível. Se a
em um todo q ue ultrapassa a todas ao mesmo criança e o homem tivessem se interessado
tempo, porque só podem existir nele. É apenas pelo que é manipulável, talvez não
sempre a parte tomada pelo todo, e o concre­ tivessem ultrapassado a inteligência prática.
to captando o virtual. É como que um valor É o que é parcialmente incompreendido que
absoluto dado a um caso particular, a França obriga que sejam feitas transferência no
parecendo ter, aqui, o papel de uma extensão mundo das idéias. O oculto não é outra coisa.
máxima. Do mesm o m odo, quando ques­ Mas não é um elemento, é uma busca. Nem
tionada sobre a distância comparada do céu todo animal pode estar diante do incom­
e do sol, a criança responde a América. Pen­ preensível, lançar um olhar sobre o inaces­
sando então, evidentemente, apenas na maior sível. Todo problema que surge é um pro­
distância imaginável, ela a reduz, ainda, a blema que pode ser resolvido: os símbolos
356 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

tornam possível a ultrapassagem do concreto,


através da imag' m -potencial, As fórmulas de tempo empregadas aqui
são quaisquer umas, quer estereotipadas, quer
2a N oções d e te m p o as primeiras que surgem, mas sem qualquer
significação além da de exprimir uma certa
O tempo utilizado, sentido, percebido, duração.
denominado, representado, calculado, conce­
bido cobre uma grande diversidade de planos De uma outra criança, um pouco mais
e de operações psíquicas. Seria contrário à nova, que falou do Menino Jesus. “O que é o
observação identificá-lo a uma intuição ori­ Menino Jesus? - É um hom enzinho. - Um
ginal, única e total logo de início. Ele se dis­ homenzinho como você? - É. - Você já o viu?
persa ou se reúne conforme se confunda com - Está num livro. - Tem gente que já o viu? -
os gestos, a expectativa, os ritmos, as perio­ Não. - Então como você sabe que tem um
dicidades fisiológicas ou sociais, os sincro­ Menino Jesus? - ... É um hom enzinho que
nismos, as durações mutuamente correlativas sobe na escada. - Faz tempo que ele nasceu?
ou independentes, as transferências do pre­ - Faz. - Quanto tempo? - F az cinco dias. - E
sente ou do pessoal para o passado e futuro você, faz tempo? - Não. - Quanto tempo? -
ou para o objeto, as medidas ou as referências Quatro anos. - Quem nasceu primeiro, você
diversas que lhe são aplicadas. A maneira ou o Menino Jesus? - O M enino Jesus. - Faz
pela qual ele se oferece à criança, solicitada a quanto tempo que ele nasceu? - Quatro anos.
perspectiva das coisas, as relações dos aconte­ - E você? - Dois anos. - Você não disse que o
cimentos ou das existências, é apenas um M.J. nasceu fazem cinco dias e depois fazem
problema entre muitos outros, mas que mostra quatro anos? - Quatro anos. - O que é mais
a quais primeiros esforços a criança deve en­ longo, quatro anos ou cinco dias? - Quatro
tregar-se para adaptar as noções correntes de anos. - Então, por que você tinha dito cinco
tempo à sua experiência pessoal, para orga­ dias? - Eu me enganei. - O Menino Jesus tem
nizar esta com a ajuda daquelas e diferenciar, um papai? - Tent. - Quem é? - O Papai Noel. -
entre si, as relações que ela tem em potencial. O Papai Noel é velho? - Não. - Quanto tempo
faz que ele nasceu? - Quatro anos. - E o
INDETERMINAÇÃO Menino Jesus? - Nove anos. - Quem nasceu
DAS NOÇÕES DE TEMPO primeiro, o Menino Jesus ou o Papai Noel. - O
MeninoJesus. -Mas você tinha me dito que o
A confusão inicialmente é grande, tanto Papai Noel era o papai do Menino Jesus. - É.
nos termos utilizados quanto na imagem das - Quem é o papai, o Menino Jesus ou o Papai
sucessões. Noel? - Um homem grande.”

De uma criança de pais italianos e que As estimativas de tempo parecem, aqui,


retorna, por vezes, à Itália, mas que compre­ contraditórias. “Cinco dias” e “quatro anos”
ende e fala correntemente o francês F.,.gli 5; são dados, consecutivamente, um como uma
1/2 “Você ficou muito tempo na Itália? - Três longa e outro como uma curta duração. O
dias. -... Você ficou muito tempo no trem? - nascimento da criança e do Menino Jesus,
Três dias. -... Quanto tempo faz que você fala que precedeu o dela, remontam, ambos, a
francês? - Quatro dias. -... Quanto tempo faz quatro anos. O Papai Noel, que é o pai do
que você está em Paris? - Não sei. - Quanto Menino Jesus, nasceu depois dele. Contudo,
tempo faz que você está vindo na escola? - sobrevêm retificações. Incitada a comparar, a
Não sei. - Quantos anos você tem? - Cinco criança sabe que quatro anos é uma duração
anos... Não se i” mais longa que cinco dias. Na seqüência, ela
AS RELAÇÕES « SENSÍVEIS » 357

muda os quatro anos para dois, para si mesma, Mesmo os fatos naturais que se inscrevem
e nove para o Menino Jesus. Atribui um outro na duração, como o crescimento, e que são
pai ao Menino Jesus que não o Papai Noel. Ela suscetíveis de dar uma imagem ou uma
parece, portanto, apta a refazer os primeiros medida concreta dela, são apreendidos pela
dados incialmente enunciados: É capaz de criança apenas de maneira rígida, estereo­
neles pôr ordem novamente. Eles têm, por­ tipada e freqüentemente desapropriada.
tanto, alguma significação para ela, mas com
uma espécie de individualidade bruta que os P .. er A. 7 ; “Você não cresce? - Cresço. - E
faz, inicialmente, impor-se do jeito que estão o que mais é que cresce? - Homens. - Os
à imaginação ou ao aparelho verbal da criança. homens crescem? - Crescem. - Seu pai cresce?
Eles ainda não estão fundidos nos sistemas - Cresce. - Você vê seu pai crescer? - Vejo. -
classificadores de que deveriam traduzir ape­ Você o viu quando ele era menor que agora?
nas os graus. - Não, ele era pequeno antes. - Você o viu
A comparação das frações diversas entre pequeno? - Não. - Ele é sempre igual desde
as quais o tempo pode ser decomposto - se­ que você o viu? - Não, ele égrande agora. - Ele
manas, meses, anos - apresenta, para a criança, ainda está crescendo? - Ele comia sopa. - Ele
grandes dificuldades, se é necessário que vai ficar ainda maior? - Vai. - Ele vai ficar cada
ajuste a elas sua existência pessoal. vez maior? - Vai. - Então ele vair ficar como a
Torre Eiffel? - Ah, não!- Por que não? - Porque
De uma criança de 8; L...es, cujo desen­ ele não vai crescer mais. - Ele ainda está
volvimento intelectual está, aliás, retartado crescendo? - Está. - Por que ele vai parar de
por sua instabilidade e suas tendências fabu- crescer? - Ele vai comer sopa. - Mas se ele
latórias: “Quanto tempo você vai ficar em come sopa, por que ele não vai ficar cada vez
Montluçon? - Vinte dias. - E depois? - Eu vou maior? - Porque. - Por quê? - Ele ainda vai
me divertir. - E quando passarem os vinte comer. - Então ele vai ficar cada vez maior? -
dias? - As mulheres vão arrum ar m inhas coi­ Vai. - Por que ele não vai ficar grande como
sas e eu vou voltar. - Para onde? - Na m inha a Torre Eiffel? - Porque ele não vai com erm ais
casa, aqui. - Quantos anos você vai ter, de­ sopa... Porque ele não gosta m ais de sopa.”
pois desses vinte dias? - Treze ou doze anos.
- Em vinte dias você vai ter treze ou doze Entre as perguntas e as respostas, há
anos? - Ou então nove ou dez. - Quantos anos certos acordos, e, entre as respostas, contra­
você tem? - Oito anos. - Para ter dez anos, dições, que resultam da firme rigidez dos
quanto tempo falta para você? - Vinte dias, ou temas presentes. Inicialmente, a criança não
então trinta, ou vinte dias. - Você acha que sabe relegar o crescimento de seu pai ao
você vai ter dez anos no fim de vinte dias? - Eu passado, embora não se lembre de tê-lo visto
vou ter, talvez, uns nove anos ” Explicamo- menor do que atualmente. Seu tempo pessoal
Ihe, então, as semanas, os meses e os anos. e o que corresponde à existência de seu pai
Suas respostas mostram que elà persiste em permanecem confundidos, de modo que,
tomar uns pelos outros os fracionamentos de admitindo o crescimento de seu pai, ela se crê
sete, trinta e doze. As reduções a serem ope­ obrigada a admitir que o viu crescer. Em
radas de um sistema fracional a um outro lhe seguida, a própria imagem do crescimento
escapam, embora saiba ordená-los entre si. tem algo de absoluto e conseqüências ilimi­
Cada unidade de duração oferece-se a ela de tadas: o que cresceu deve crescer infi­
maneira maciça, freqüentemente modificada nitamente. Há outro tema, a aplicação, ao
por um algarismo qualquer. O número ainda crescimento, do ditado popular “comer sopa
não lhe é um meio de percorrer o tempo para crescer”. É através dele que a criança
decompondo-o por frações apropriadas. tenta justificar um crescimento que não pode
358 A S ORIGENS D O PEN SA M EN TO N A C R IA NÇ A

constatar, mas que acredita ser necessário conhecido ou denominável e sua aceitação,
afirmar, continuando, no presente e no futuro, inicialmente de homens abstratos que a teriam
o quesabe do passado. É através dele também precedido, em seguida de casas, sem as quais
que ela encontra o meio de parar esse cres­ ela não concebe seu próprio nascimento, e
cimento, quando este ameaça ultrapassar as das pessoas necessárias à construção dessas
fronteiras do verossímil. Desse modo, a du­ casas. O pensamento da criança é, assim,
ração objetiva e a duração subjetiva perma­ com muita freqüência implicativo; e o pos­
necem misturadas, o que é do passado anexa tulado de suas representações entra, fre­
a si o presente e o futuro, ou melhor, o fato qüentemente, em concorrência com as ima­
invade o tempo, porque as distinções de gens de sua experiência. O conflito, aqui,
tempo ainda são vagas demais para lhe impor resulta do sentimento preponderante de sua
limites. Para essa confusão, o único remédio própria duração de vida, que ela faz começar
é supor e interromper, à vontade, o ato ali­ antes de qualquer outra. Para resolver a
mentar, ao qual é atribuído o crescimento. contradição de seu pai maior que ela, embora
Para a criança, conciliar seu tempo pes­ tendo nascido depois, ela recorre à noção do
soal, onde deve inscrever-se tudo o que ela crescimento acelerado pela abundância ali­
sente ou aprende, com o tempo que é obriga­ mentar. Ela associa, contudo, à anteriorida­
da a imaginar para o que não é ela mesma, de absoluta que a si atribui, como sujeito de
é uma grande dificuldade. Ela oscila entre tudo o que pode lhe revelar a existência uni­
uma espécie de anterioridade absoluta ou versal, outras existências, quer de seus pró­
pessoal e anterioridades relativas ou objeti­ ximos, quer anônimas e abstratas. É por es­
vas. se intermédio que poderá se operar a trans­
ferência de sua duração pessoal para a duração
C,..in 7; “Seu pai nasceu antes de você? - sem início que é atribuída ao conjunto das
Não. - Quem nasceu primeiro, seu pai ou coisas. Antes dessa cisão, sua própria pessoa
você? - Fui eu. - Você nasceu primeiro? - é o lugar de assimilação entre o que sempre
Nasci. - E eu, eu nasci antes de você? - Fui eu. deve ter sido e a anterioridade absoluta do
- Você nasceu primeiro? - Nasci. - Têm outros sujeito.
homens que nasceram antes de você? - Têm.
- Você conhece esses homens? - Não. - Como C...in 6; 1/2 “Você sempre existiu? - Ê. -
você sabe então? - Porque eles cresceram Antes de você nascer, você já existia? - Já. -
antes. - E seu pai não cresceu antes de você? Seu pai sempre existiu? - Sempre, sim, senhor.
- Fui eu que cresci prim eiro. - E como você - Quem nasceu primeiro, você ou seu pai? -
sabe que você cresceu antes de mim? - Porque Não sei. - Seu pai foi uma criancinha? - Foi. -
a coisa cresceu rápido. -... Seu pai é maior Quando seu pai era uma criancinha, como
que você? -É.- Você nasceu antes de seu pai? você era? - Eu era um bebezinho. - Seu pai foi
- Nasci. - Por que você não é maior que seu um bebezinho antigamente? - Foi. - Quando
pai? - Porque ele come demais. - ... Existia seu pai era um bebezinho, o que você era? -
alguma coisa antes que você nascesse? - Não. Eu também era.- Vocês eram doisbebezinhos?
- Nadinha? - Não. - Tinha casas antes que você - É. - Qual dos dois era maior? - Era o papai.
nascesse? - Tinha. - Quem construiu casas? - - E quando o seu pai era bem, bem bebezinho,
Foram as pessoas. - Tinha pessoas antes que o que você era? - Eu era um pouco maior. -
você nascesse? - Tinha.” Você foi maior que o seu pai em algum
momento? - Fui. - Como é que seu pai ficou
São manifestases contradições entre a maior que você? - Porque ele com eu m uita
pretensão dessa criança com relação à prio­ sopa. - E você não comia? - Não. - Sua mãe
ridade de sua existência sobre a de todo ser nasceu antes de você? - Não sei. - O que quer
AS RELAÇÕES « SENSÍVEIS » 359

dizer nascer? - Não sei. - Você nunca ouviu passagem de um para outro exigirá, para
falar, sobre uma criancinha, que ela acabou além da assimilação de outras existências à
de nascer? - Não. - Você já viu cachorrinhos e duração pessoal e além de suas transferên­
gatinhos? - Já. -... Como eles.apareceram? - cias graduais para coisas ou épocas tem­
Eles apareceram pelas mães. - Como? - Porque poralmente ordenadas entre si, o poder de
elas precisam ser grandes bastante para incorporar tudo o que pôde ou poderia exis­
darem cachorrinhos e gatinhos.” tir em uma duração isenta de toda limita­
ção.
A geração, que a criança conhece para
os animais, é ocultada, se se trata dela mesma, B. ..te 6; 1/2 "Sempre existiram homens?
pela impossibilidade em que se encontra de - Sempre. - E seu pai sempre existiu? - Sempre.
se imaginar não existindo. A própria noção - Como você sabe? ... Ele disse isso para
de nascimento parece permanecer-lhe es­ você?... Ele não foi criancinha? - Foi, como eu.
tranha. É segundo sua própria imagem que - Ele sempre existiu antes de ser peque­
ela vê seu pai. Tamanha é a assimilação que nininho? - Não, senhor. - Sua mãe também foi
a criança admite ora seu pai, ora ela mesma pequena? - Foi. - E seu pai também? - Também.
como maior que o outro. Aqui, ainda, pode se - Mas e antes deles, tinha alguém que existia?
constatar o quanto a procede por analogias - Tinha, sim, senhor, o papai e a m am ãe
abstratas. O mesmo esquema repete-se de deles. - E antes ainda, tinha alguém? - Não,
uma para outra, dela mesma para seus não sei."
próximos. Essa própria identidade indica sua
incapacidade para ultrapassar sua própria Longe de ser o mesmo para todos,
duração e, ao mesmo tempo, para ordenar, “sempre” admite, aqui, a anterioridade da
entre si, as durações particulares, ou seja, mãe sobre o pai, sendo suprimido pela ima­
para integrá-las em uma duração comum. gem dos pais ainda crianças e, provavelmen­
te, pela noção conexa dos tempos em que
O TEMPO QUALIDADE eles mesmos ainda não existiam. As transfe­
rências sucessivas de existência de uma gera­
Embora a anterioridade absoluta do ção para as precedentes não ocasionam, com
tempo subjetivo tenha por corolário a ausência elas, a extensão de “sempre” até fazê-lo coin­
de início, a criança dessa idade não sabe dar cidir com uma duração impessoal. "Sempre”
a “sempre” o sentido que deveria ser a con­ sujeita-se à condição das durações que per­
seqüência dele e que ele tem na linguagem manecem individuais, que se justapõem, so­
do adulto. O “sempre” da criança permanece brepõem-se entre si ou se sucedem, sem se
um “sempre” particular e qualificativo, que projetarem sobre um mesmo fundo de tempo
pode ele mesmo contradizer-se, conforme os que não pertenceria a nenhum ser particular.
objetos aos quais é aplicado. Tanto quanto o C. ..ni 6; 1/2 “O sol sempre existiu? -
tempo não é a integração das durações par­ Sempre. - A Terra sempre existiu? - Sempre. -
ticulares, “sempre” não pode ser uma medida O que apareceu primeiro, o sol ou a Terra? -
onde sejam suscetíveis de increver-se e de O sol.”
comprar-se todas as existências. O absoluto D. ..pe 5; “O Sena sempre existiu? -
da subjetividade nada tem de um limite único Sempre. - Boulogne sempre existiu? - Sempre.
que nada poderia ultrapassar. Ele é, ao - O que apareceu primeiro, o Sena ou
contrário, ignorância de todo o resto. É apenas Boulogne?... O que é que existiu primeiro? -
uma afirmação incondicionada de existência. Boulogne.”
Não é o total que se liberta de todas as M...on 7; “O Sena sempre existiu? -
condições, absorvendo o conjunto delas. A Sempre. - O Sena existiu antes de Boulogne?
360 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

- Eu gosto m ais do Sena. - O que é que existiu nascer? - Não. - Seu pai nasceu antes de você?
primeiro, o Sena ou Boulogne? - Boulogne. - - Nasceu. - Não existia sol quando seu pai
... De onde vem o Sena? - De um riacho. - O nasceu? - Não. - O sol começou a existir só
riacho existia antes de Boulogne? - Não, era quando você nasceu? - £ .- ... Antes de você
Boulogne. - Como o riacho apareceu? - Pela nascer, O que é que existia? - Fazia frio. -
chuva." Existia alguma coisa? - Não. - Existiam árvores?
- Existiam. - Homens?- Também.- Onde você
Eis aí um fato muito freqüente: não pare­ estava antes de nascer? - Na cam a. - Você já
ce contraditório, para a criança, que um ser tinha nascido quando você estava na cama? -
tenha sempre existido e seja, contudo, pos­ Não. - Por que fazia frio antes de você nascer?
terior a um outro. Quanto à anteriodade da - Era escuro. - Então, existiam árvores e elas
cidade em relação ao sítio natural, Piaget já a estavam no escuro. - Não. - E os homens
assinalou em numerosas crianças suíças, que estavam no escuro também? - Não. - Como
acreditam que Genebra precedeu o lago. Tal­ você sabe que era escuro antes de você nascer
vez isso ocorra porque as casas parecem - Era de noite. - Era de noite para os outros
pertencer mais necessariamente às condi­ homens? -... Era de noite para todo o mundo?
ções de existência da criança e o rio ou o lago, - Era. - Então os homens não enxergavam
muito mais às circunstâncias acessórias; tal direito? - Não. - Eles nunca enxergavam direito?
como essa criança que, colocando sua exis­ - Não. - Como é que, assim que você nasceu,
tência como anterior a tudo e, provavelmente, enxergavam direito? - Era de dia.”
como a condição do tempo, ou como aquele
tempo que está antes do tempo nas crenças Vemos o conflito de dois sistemas ainda
dos primitivos, admite, contudo, que, antes concorrentes. Quando a criança parte de si
dela, havia necessariamente casas. Uma ver­ mesma, só pode representar antes de si ou,
dadeira inversão deverá se produzir entre por transferência, antes de seu pai, ausência
o tempo subjetivo e o tempo objetivo. Será de sol, frio e obscuridade, ou seja, algo que
necessário que a criança tome-se capaz de se lembra a nada. Mas, a objetos ou seres
classificar entre o que não é ela mesma. É, a quaisquer, ela sabe atribuir uma existência
propósito do tempo, o problema bem co­ independente da sua, em um mundo que não
nhecido da criança entre seus irmãos e irmãs, é desprovido de luz, de calor, de sol. Essa
que ela reconhece como seus irmãos sem se oposição entre a intuição subjetiva e o realismo
considerar como um deles. A criança não concreto reduz-se, no final, à distinção per-
tem, de imediato, o poder de considerar a si feitamente objetiva do dia e da noite. Desse
mesma da maneira como considera os outros, modo, os conjuntos costumeiros em que se
de projetar sua própria existência como num distribuem a vida e as experiências da crian­
meio fora dela. Ela não sabe dissociar sua ça podem ocultar-lhe e fazer-lhes esquecer
pessoa dos conjuntos concretos onde sua as antinomias que ela encontra, nas pró­
percepção e sua ação a enredam. prias origens de sua consciência, entre sua
São eles, contudo, que são a causa das própria duração e das coisas, entre os limites
primeiras brechas produzidas em sua atitude de sua sensibilidade e a imensidão do mundo.
de sujeito absoluto, na confusão inicial de sua É possível reencontrar, ainda por muito tem­
consciência com a imagem das coisas e com po, vestígios dessa contradição sob atenua­
a própria existência delas. ções ou subterfúgios que marcam a invasão
recíproca das duas durações; é possível ver
B,..ot 7; “O sofeé fogo. Sempre existiu essa contradição esboroar-se ou diluir-se em
esse fogo? - Não. -... Faz tempo que ele existe? termos, quer mais fragmentários, quer mais
- Faz. - Já existia esse fogo antes de você vagos.
AS RELAÇÕES « SENSÍVEIS » 361

P...CT 8; “Antes que existisse o sol, о que O VAGO E A AMBIGÜIDADE


é que existia?... Árvores? - Tinha o sol. - Mas DAS FÓRMULAS DE TEMPO
e antes do sol, não tinha nada? - Pessoas. -
O nde ficavam as pessoas que viviam antes do Em sua indeterminação, as relações de
sol? - Na casa delas. - Onde era a casa delas? tempo são constantemente empregadas, pela
... Em Boulogne?... Boulogne existia? - Existia. criança, sob as espécies da palavra “quando",
- Existiam casas como agora? - Não. - Como significando o sincronismo, e da locução “às
eram? - Casinhas de madeira. - Fazia calor, vezes”, significando o eventual. No adulto,
fazia frio? - Fazia frio . - Era de dia, era de “quando” pode estender-se a muitas relações
noite? - Era de dia.” cujo tempo é apenas a cobertura deixada
flutuante, porque mais precisão parece inútil.
Ao dizer que, antes do sol havia pessoas, Na criança, seu emprego, ainda bem mais
a criança retoma, sob uma forma abstrata e geral, responde às relações indiferenciadas
anônima, à ilusão do sujeito que precede das coisas, que são apreendidas em sua
todas as coisas, como a condição, não apenas unidade sincrética, sem que ela seja capaz de
do conhecimento delas mas da existência discernir a natureza das ligações às quais são
delas. Contudo, a criança se sente, de imediato, devidos os encontros de circunstâncias ou
obrigada a fazer esses seres anteriores às efeitos de que suas representações são feitas.
coisas entrarem na ordem das coisas. Ela lhes Não que a significação estritamente temporal
supõe um “na casa delas”, que concretiza sob de “quando” lhe escape, mas o próprio tempo
a forma costumeira das casas. Imaginando-as e as outras espécies de relações que nele
de um tipo arcaico, ela se dá a impressão de permanecem incorporadas ainda têm algo de
conciliar, com o maior recuo possível no formal ou de acidental e não exprimem, de
tempo, as condições habituais da existência. maneira alguma, uma ordem verdadeira. Na
E, de fato, ela substitui, pelo tempo cronoló­ verdade, a criança pode responder como que
gico, aquele tempo anterior ao tempo e fora automaticamente à pergunta “quando" através
do tempo, que é o único que poderia convir de uma palavra qualquer, mas que é uma
ao sujeito, como autor das coisas de que toma determinação temporal.
consciência. Mas a criança pode ver apenas
as miragens dessa oposição sobre as paredes R...eau “A gente sempre vê o sol? - Não.
da gruta. Para apreender-lhe a origem, seria- - Quando é que a gente não o vê? - Na terça-
lhe preciso poder se desviar das simples feira. - Que dia é hoje? - É quarta. - Na quarta
impressões sucessivas que ora o sentimento a gente vê o sol? - Vê.-E na terça? - Também.
de sua própria existência e ora a diversidade - Quando a gente não o vê? - Na segunda.”
das coisas com as quais a oposição a mistura Como a criança sabe denominar os dias
lhe dão. Para operar a síntese dos pontos de da semana, a pergunta “quando”faz-lhe enun­
vista concorrentes, falta-lhe o poder de ajus­ ciar um deles, evidentemente ao acaso, visto
tar sua própria existência ao número de todas que ela responde, sucessivamente, “não” e
as outras, e de imaginá-las todas juntas em “sim” para o mesmo dia.
uma duração que, ultrapassando todas as
durações particulares, se tomaria o lugar de C...in 7; “O que que é a chuva? - ÉDeus.
todas as durações possíveis. Ora, a criança ~ Como você sabe quando está chovendo? -
sabe viver apenas no particular e no inde­ Para lavar a estrada. - De onde a chuva
finido. As impressões acrescentam-se entre si vem?... Quando chove? - No sábado. - Em que
em sua experiência bem antes que ela possa dia nós estamos? - Sábado. - E amanhã? -
reduzi-las a uma soma que suporia unidade e Domingo. - Vai chover amanhã? - Não. -
base comum. Nunca chove de domingo? - Têm vezes que
362 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

chove. - Sempre chove de sábado? - Não. - Não sabe distinguir entre elas. Nem mesmo
Então, quando é que chove? - No sábado e no faz uma diferença de freqüência. Entre os ob­
domingo. - Nunca chove nos outros dias? - Às jetos ou as circunstâncias que ela encontra
vezes. - Quando o tempo está bom chove? - ligadas em suas representações, não procura
Não. - Por quê? - Porque o tempo está bom!" outra relação a não ser o fato da simulta-
neidade dos mesmos. Forçosamente, a enu­
Certas crianças, e mesmos adultos ingê­ meração que deles faz pode e deve, mais
nuos, afirmam que, em certos dias do ano ou frequentemente, ser a descrição, senão a defi­
da semana, como o dia de Páscoa ou do Pen­ nição, de uma determinada situação.
tecostés ou o domingo, deve, necessaria­
mente, fazer bom tempo ou chover. Isso é M...inJ. 7; “Como é que o vento às vezes
confundir duas séries que não têm relações sopra muito forte e às vezes muito fraco?...
fixas: o calendário e a meteorologia. Não Quando ele sopra muito forte?... - Q uando
parece ser esse o caso dessa criança, A ligação tem tempestade. - O que é a tempestade? - É
da chuva e do sábado ou do domingo não quando cai o raio e tem um relâmpago. - De
tem, para ela, nada de constante. “Quando” é onde vem a tempestade? - É quando chove e
corrigido por “às vezes”. Ele estabelece apenas tem tempestade. - O que é a tempestade? -
um sincronismo facultativo e não indica, de Uma bolona de fogo.”
maneira alguma, um conjunto de circuns­
tâncias próprias para determinar a chuva, e A associação do vento e da tempestade
que pertenceriam a um dia determinado do não é, evidentemente, constante, mas a tem­
ano ou da semana. A coincidência é apenas pestade comporta o vento ao mesmo tempo
possível. A criança enuncia-a para responder que o relâmpago e o raio. Desse modo, ela
à pergunta feita, e porque não representa, no pode dar a impressão de corresponder a algo
tempo, outras relações a não ser de simples de essencial no espírito da criança. Aliás,
coincidência. Sua afirmação só seria falsa se não é duvidoso que, sob a palavra “quando”,
implicasse a necessidade ou a constância. Ela estejam próximas relações que vão do fortui­
é apenas vã; é semelhante a todas as que a to à necessidade e que a criança pode não
criança é suscetível de omitir a propósito do ser insensível às diferenças delas; mas ela
tempo, onde ainda só sabe registrar simples ainda não sabe analisá-las e nem criticá-las,
concomitâncias. pois ainda não é capaz de ultrapassar o plano
dos simples acontecimentos. “Quando”pode,
G...ry 6; 1/2 “Como a noite chega? - Têm portanto, ser considerado, pelo adulto que
estrelas. - O que são as estrelas? - São bolinhas. escuta, dentro das significações mais diver­
- Por que têm estrelas à noite? - Não sei. -Por sas, sem tê-las explicitamente para a própria
que, quando é de noite, têm estrelas? - Porque criança.
fic a escuro. - Por que não têm estrelas de dia?
- Porque de dia é o vento. - O que é o dia? - É B...ert 6; “De onde vem a água do Sena?
quando o céu fic a branco. - O que é que faz - Ela vem quando chove.”Significação de ori­
o céu ficar branco? - Não sei.” gem.
D...et 6; “Para que serve o sol? - Q uando
Das associações enunciadas por essa fa z tempo bom.” Significação de finalidade.
criança, umas são constantes e mesmo expli­ A...dre 6; “Quando a gente pode ver o
cativas: por exemplo, a da noite e do céu sol? - D urante o dia, quando não fa z frio .”
estrelado; mas outras,são perfeitamente con­ Significação de efeito.
tingentes, como o do dia e do vento. Contudo, D...ne 6; 1/2 “Como a gente pode fazer
a criança as dá como sendo de mesmo valor. vento com um leque? - Q uando a gente está
AS RELAÇÕES « SENSÍVEIS » 363

com m ulto calor.” Motivo em vez de meca­ É para quando chove. - O que as nuvens
nismo. fazem quando chove? - Ah, bom, elasfica m
G...ain 6; “Para que servem as nuvens? - sempre e depois vão embora. - Por que têm
è para fa z e r a neve cair e quando chove.” nuvens quando chove? - É para ver se vai
Conseqüência. chover.”
“Q uando” pode ser interpretado como
introduzindo uma causa. As nuvens destinadas a mostrar que vai
chover: essa criança traduz explicitamente
B. ..re 6; Às-vezes eu não vou na escola.
sua- confusão da causa e do indício. As fór­
Por quê? - Q uando fico doente.” mulas de tempo que utiliza simultaneamente
A...aud 6; “Como as árvores crescem? - permitem que seja claramente o vago das
Q uando a gente planta.” noções correspondentes. “Para quando” so­
A. A...dre 6; “Como os dentes nascem? - brepõe finalidade a sincronismo. “Às vezes
Para crescer, quando a gente come bem.” quando” atenua o sincronismo através do
(Aqui, o sentido é, talvez, ambíguo. É a associ­ eventual. Enfim, “sempre” e “depois” con-
ação, tão freqüente, de comer-crescer. Suas tradizem-se na mesma frase.
relações com o nascimento dos dentes pare­ “Quando” é utilizado pela criança como
cem ter algo de ambivalente.) simples vínculo entre duas circunstâncias, e
C. ..ni 6; 1/2 “Como a grama aparece? não- para fazer um acontecimento entrar em
Q uando fa z sol.” uma ordem de fatos. Ela ainda só sabe unir
Da mesma criança “Como a gente sente termos dois a dois, e não constituir séries. É
o vento? - Q uando a gente está sem гоглра. ” uma fase pela qual passam todas as suas
manifestações intelectuais. Por exemplo, na
Freqüentemente, “quando” pode ser classificação de comprimentos entre si, Pia­
compreendido como o que passa da causa ao get mostrou que ela começa constituindo
efeito. Ele fixaria muito mais o índice sobre o pares, um maior com um menor, sem conse­
objeto ou sobre a noção. guir colocar cada comprimento entre um
menor e um maior, segundo uma progressão
P...ret “Como você sabe que nós estamos regular.
vivos? - Q uando a gente anda. - Seus olhos "Às vezes” é, aparentemente, a fórmula
estão vivos? - Estão. - Como você sabe? - É que retorna com mais freqüência nas expli­
quando eles se mexem. -... Como a gente vê cações da criança. Ela parece, de maneira
quando está morto? - Q uando o coração não muito exata, refletir o estado de seu pensa­
bate mais.” mento. Os contos para crianças começam
G...ain 6; “Como o sol faz para dar calor? pela palavras “Era uma vez”. Provavelmen­
- Q uando elefic a vermelho.” te, esse é um efeito da “convergência” que
Stem destacou na linguagem dos adultos que
A maneira pela qual a criança pode se dirigem às crianças, por necessidade mais
intercalar “quando” ou combiná-lo com ou­ ou menos inconsciente de se colocar ao alcan­
tras conjunções, ou preposições ou advér­ ce delas imitando-as. Contudo, as duas fórmu­
bios mostra o sentido ainda amplo e poliva­ las não têm a mesma significação. “Era uma
lente que ela lhe dá. vez” parece indicar um momento do tempo,
mas sem especificar qual. É como um tempo
N...et 6; 1/2 “O que são as nuvens?... fora do tempo vivido pela própria criança;
Você já viu nunvens? - Já, eu vejo às vezes de portanto, não tem necessidade de ser es­
noite. - A gente não as vê de dia? - Vê, às vezes, pecificado de outro modo. “Às vezes” não é
quando chove. - O que que são as nuvens? - mais preciso do que a outra fórmula, mas o
364 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

plural suprime o que o momento indicado “Algumas vezes” introduz, aqui, um caso
podia ter de único; evoca momentos como particular, um exemplo sob o enunciado de
os outros, ou seja, pertencem à duração um fato geral. Se “às vezes” permanece sendo
corrente, de onde a criança não sabe, aliás, a fórmula mais freqüente, isso ocorre porque
evadir-se. Ou melhor, o tempo fabuloso, seu emprego é muito mais polimorfo, mais
“uma vez”, que se tomará o tempo metafí­ confuso, mais elementar.
sico, permanece mais ou menos confundi­
do com seu tempo pessoal, com o tempo A mesma criança que dizia “uma vez”
empírico, “às vezes”, do mesmo modo que para evocar uma lembrança, aliás real ou
ela ainda não sabe distinguir nitidamente a imaginária, mas particular e pessoal, diz, sobre
ficção da realidade. Desse modo, o alcance o Sena, que “às vezes ele vai por lá”, para
de “uma vez” não é exatamente o mesmo na indicar sua direção, mas sem lhe afirmar a
boca dos adultos e na sua, o que pode, aliás, constância, substituindo, desse modo, a regra
aumentar a ilusão dos contos. Ao escutar peloeventual,e,sobreseupai,dizque “é, isso
“uma vez", a criança entrevê um aconte­ q u e r a c o n te c e r à s vezes co m m e u p a i (m o r­
cimento ao mesmo tempo irreal e possível, rer) ”, na intenção, provavelmente, de marcar
que ela não sabe muito bem como localizar, uma a simples probabilidade, a qual, aliás,
quer em suas lembranças, quer em sua refere-se muito mais à data do acontecimento
expectativa. do que ao próprio acontecimento. “Quer” em
vez de “pode”( ) acrescenta à frase, com
A...dre 6; “Você já viu pessoas mortas por efeito, algo de mais determinado, embora
árvores? - N u n c a vi. Um a vez, eu vi u m a sob forma antropomórfica.
á rvore q u e tin h a caído, e u escutei u m barulho,
era d e noite." Há casos em que “às vezes” tem, como
simples papel, o de introduzir, na frase, um
“Uma vez” tem, aqui, um contexto que índice de incerteza, a pretexto de uma
mostra bem essa zona meio imaginária, meio realidade pouco estável ou de uma aparência
realista onde se move a criança. Ela pôde ver enganosa.
efetivamente uma árvore caída, mas a lem­
brança é tão vaga que ela a completa, e exa­ S.,,et6; “Onde está o sol? - P o r lá. - Onde?
tamente por causa disso toma-a quase fictícia, - À s v e ze s a g e n te o vê d e p e rto e ele está longe
ao acrescentar “Eu escutei... era de noite.” co m o u m a viã o . Às vezes, e le fic a n a fr e n te e
Ora, tratava-se precisamente, para ela, de f i c a a trá s d a gente. - Onde está o avião? - Ele
justificar um fato que tem o memso caráter está ta lv e z em P a ris e a g e n te o v ia lã. P a p a i
dúplíce de não se ligar ao real por nenhuma m e en sin o u tudo. - Onde está o sol? - A h! N ão
lembrança, mas de ter impressionado sua sei se está em B ou logn e e em Paris. - Quando
imaginação: o esmagamento de uma pessoa ele está em Boulogne onde ele fica? - Ele vê
por uma árvore. em todo lu g a r em B oulogne. Ele f i c a n o m eio
d o céu. ”
“Algumas vezes”, também frequente­
mente empregado pela criança, tem uma Perturbada pela necessidade de corrigir
significação mais evoluída. as posições aparentes dos objetos ou dos
móveis longínquos, o que a criança traduz
J...ly 9; explica que o sol bebe a chuva, por “às vezes” é a sua incerteza. O que parece
que dela faz vapor. “$ p o r q u e ele e sq u en ta a
á gu a. - Onde está a água que ele esquenta? - O N.T.: há assonância, em francês, entre “quer” (“veut”)
A lg u m a s v e ze s é a á g u a d o Sena." e “pode” (“peut”).
AS RELAÇÕES « SENSÍVEIS » 365

próximo está longe, o que vemos na frente explicação: a simples contingência em vez de
pode estar atrás, e o que aparece aqui está, às causalidade.
vezes, em París. “Às vezes" apresenta-se como Há casos em que essa contingência é
um corretivo eventual do que é percebido, absoluta, e nega toda constância nos fatos
mas um corretivo, em cada caso, hipotético e observados, nas propriedades das coisas.
indeterminado. Transfere o desacordo, mas
ou menos incompreensível, entre a realida­ D...et 6; “Um torrão de açúcar é pesado?
de e o aspecto das coisas, para o plano da - Não. - Ele vai para o fundo da água? - Às
crença ou do conhecimento, nele projetando vezes. - Papel é pesado? - Não. - Vai para ao
como que algo de fortuito e de duvidoso. Eis fundo da água? - Vai. - Sempre? - N em sem pre,
aí uma confusão de planos muito feqüentes à s vezes têm u n s q u e n ã o vão, à s v e ze s têm
na criança. u n s q u e vão."

M...in J. 7;4 “Sempre existiu o sol? -À s Isso não é introduzir no curso das coisas
v e ze s ele n ã o p a s s a p o r aqui. - Ele sempre uma variabilidade semelhante àquela que se
existiu? - Sempre." observa nas condutas humanas?

A primeira resposta visa a ausência ou a B. ..ère 6; após ter dito que vai sempre
invisibilidade freqüente do sol. A segunda, passear aos domingos, responde à pergunta
sua permanência. Dessa contradição, a crian­ “Todos os domingos?” - À s v e ze s eu n ã o vou. ”
ça livra-se através de “as vezes”, que indica,
sob a forma mais indeterminada, menos A exceção após a regra? - Ainda não.
explicativa, a oposição do que é e do que Incessantemente, chocam-se, nas afirmações
parece. Mas a criança nem sempre soube da criança, os “sempre” eos “às vezes”. Como
fazer ou manter essa distinção, e é por isso “tudo”, “sempre” nada tem de exclusivo. Ao
que “às vezes” marca a incerteza das idéias, lado de “tudo” e de “sempre” podem subsistir
em vez de significar o divórcio possível da outros objetos ou outras eventualidades. As
percepção ou da representação e do real. totalizações da criança nunca são acabadas;
“Às vezes” pode marcar uma alternân­ permanecem particulares ou momentâneas.
cia, uma sucessão, mas a qual a criança não Não ultrapassam o conteúdo presente da re­
sabe explicar e que traduz de maneira fe- presentação, que nunca é catégorial e que se
nomenista. limita ao individual, ou melhor, que perma­
nece a meio caminho do individual e do ge­
G...ain 6; “Depois que a água do céu ral. As coisas podem reunir-se entre si, os
caiu, ainda pode chover? - Não, sen h or... E acontecimentos sucedem-se para além dos li­
depois, à s vezes, ela vo lta p a r a lá. - Como? - mites que a criança parece ter colocado; e ela
P o rq u e se n ã o n ã o ch overia m ais. - Por que é não sente nenhum embaraço em se desdizer.
preciso que chova? - Porque, à s vezes, n ã o Há casos em que “às vezes” expressa
f a z b o m tem po. - Por que é preciso que não uma sucessão que nos parece necessária. O
faça bom tempo? - Porque, à s vezes, têm que a criança expressa através disso e a única
n u n v e n s q u e n ã o sã o bonitas." coisa que ela parece aprender é o sucessivo
como tal. O sucessivo faria-lhe as vezes de
Ao mesmo tempo em que utiliza a fór­ explicação ou de definição.
mula explicativa “porque”, a criança limita-se
a constatar efeitos, quer contrários, o bom C. ..in 6; 1/2 “Morto e vivo são a mesma
tempo e a chuva, quer equivalentes, a chuva, coisa? - Não, senhora. - Qual é a diferença? -
o mau tempo e as nuvens. “Às vezes” serve de Às vezes, a g e n te está vivo, à s vezes, a g en te
366 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

está morto. - Então o que quer dizer “morto”? está sob o signo da morte. As etapas desse
- Porque a gente não é m ais a mesma pessoa destino são imaginadas no tempo apenas
que antes; agente ê de ossos; depois os vermes secundariamente. Por mais simples que possa
vêm com er a gente; e depois a gente é um parecer-nos a sucessão no tempo, ela é,
esqueleto; prim eiro a gente é de carne e contudo, uma ordem a ser colocada entre os
depois a gente é de ossos." acontecimentos e as coisas que não existe
logo de início nas aptidões da criança. Então,
Sob a forma ambígua “às vezes... às mesmo que ela pareça substituir outras ordens
vezes”, que poderia fazer com que se acre­ mais complexas pela ordem do tempo, fre­
ditasse em algo de fortuito ou em uma qüentemente ela apenas utiliza locuções cujo
alternância reversível, parece exatamente sentido ainda está indiferenciado. Por muito
que essa criança considera uma mudança de tempo, em todo caso, as relações de tempo
estado que implica o antes e o depois, ou seja, são, para ela, apenas uma simples coinci­
o sucessivo. Mas a progressão dos estados dência, dois a dois, de acontecimentos ou
ainda está bem desordenada. A própria su­ circunstâncias, e não a localização destes em
cessão onde parecem introduzir-se as ex­ uma duração onde cada um tomaria seu lugar
plicações da criança permanece bem confusa. entre todos os outros. Para além disso, a
O fato é freqüente. criança sabe indicar apenas o eventual, o
contingente, o fortuito.
W...er 7; “Você está vivo? - Ah, bom,
estou, ora! Todo m undo, moscas... moscas S...et 6; “Como ela sobe no céu (a água
voam. - Como você está vivo? - Não sei de na­ das nuvens)? - Ela sobe, sobe, sobe. Ela vai
da. - Você tem certeza que está vivo? - Tenho, embora para cim a no céu. E depois têm dias
às vezes a gente morre quando fic a doente." que não fa z sol. Fica escuro, escuro e depois
é a í que cai água. - Por que ela cai? - Porque
A maneira pela qual essa criança utiliza têm vezes que... Papaijá me ensinou e eu não
“quando” e “às vezes” para reduzir a morte à sei mais. - O Sena se mexe? - Têm vezes que o
sua causa natural, a doença, faria supor que a ar vem <à toda velocidade. O Sena se mexe e
morte é contemporânea da doença. Portanto, depois nas curvas... Às vezes têm pessoas que
não é possível dizer que a sucessão seja a caem dentro, e depois elas não podem m ais
primeira forma de causalidade. A sucessão voltar. "
que a criança é capaz de expressar inicial­
mente é tão confusa quanto a causalidade. E 3a O MOVIMENTO
não é o simples efeito de uma interpenetração
entre o tempo e a necessidade; a mesma A dificuldade que a criança sente para
desordem pode ser encontrada em uma conceber o movimento, por sua natureza
simples enumeração de acontecimentos. contrária à representação das coisas, que é
estática e que as fixa em certo estado, é-lhe
C. disfarçada por ela mesma, não apenas pela
P..,it 6; “Quando a gente pega os
peixes, eles estão vivos? - Ah, não! Estão habitual labilidade de suas representações
mortos. A gente coloca na água da gamela e e pelo esquecimento gradual das transfor­
eles nadam . Depois agente cozinha e come. " mações delas, onde é forçoso que se dissi­
Há contradição entre o fato de nadar na pem a própria noção da mudança e do mo­
água da gamela e o de já está morto no vimento, mas também por causa da percep­
momento de nela ser çplocado. Mas a criança ção e da imagem diretas que a criança delas
está, inicialmente, sob a impressão do fato tem. As dificuldades surgem quando se trata
global de que o peixe pescado para ser comido de explicá-las.
AS RELAÇÕES « SENSÍVEIS » 367

MOVIMENTOS RELATIVOS, percebe qual dos trens, o seu ou o vizinho,


MOVIMENTOS CIRCULARES entra em movimento.
MOVIMENTOS RECÍPROCOS A explicação do movimento através de
um impulso circular é das mais freqüentes
Os movimentos aos quais a criança assis­ para as crianças de cinco a seis anos.
te sem deles participar de início são confun­
didos com os corpos em movimento. São os N.,.é 6; “Os barcos andam na água? -
deslocamentos relativos deles que parecem, Andam . - Como? - Eles se arrastam. - Como
inicialmente, impor-se a suas descrições e a eles podem se arrastar na água?-É a água que
suas explicações. fa z eles andarem . - E a água, quem a faz
andar? - Os barcos. - Então quem faz os barcos
“O Sena se mexe? - Mexe. - Quem o faz andarem? - A água.”
mexer? - N ã o sei. - São os barcos no Sena que É sem a menor hesitação que essa crian­
o fazem mexer? - É a água. - Os barcos vão ça parece considerar satisfatória a explica­
todos na mesma direção? - N ão. - Como é que ção do movimento através de uma ação
eles podem ir em direções diferentes? - São os recíproca. Ocorre o mesmo com esta outra
barcos que andam sozinhos. - Como eles criança:
podem andar sozinhos? - É a á g u a que fa z
eles andarem . - Então quando eles vão um H...art 5; 11 “O que é o Sena? - Éágua. -
por aqui e outro por lá? - Indo p o r aqui o Ele se mexe? - Mexe. - Como? - São os barcos.
barco em purra a água por lá. - Como isso - Como eles fazem? - Éporque a água anda
pode acontecer? - Com madeira. - Como com embaixo. - Como? - É o barco. - E como o
madeira? - O outro que vai p o r lá (gesto 'a barco anda? - Eles andam a vapor"
d ir e ita ) f a z a água girar p o r lá (gesto 'a Aqui, a primeira causa invocada é o des­
esquerda). - É a água que empurra o outro locamento relativo dos barcos e da água,
barco? - Não. - Como isso acontece? - O barco depois a origem do movimento é procura­
que vai p o r lá fa z a água girar e isso fa z o da em outro lugar que não em seus efeitos
outro andar.” visíveis: em uma força mecânica. A ação
Várias explicações chocam-se: movi­ circular, calcada no efeito visível, é, de fato,
mento autônomo do barco, movimento por­ chamada a se dissociar. Ela tem, em germe,
que ele é de madeira; mas o que parece duas espécies de explicações, a do movimen­
prevalecer é o impulso mútuo que a água e os to comunicado e a do movimento autôno­
barcos dariam um ao outro, sendo seus des­ mo. Uma responde aos dados correntes da
locamentos relativos promovidos ao papel experiência, a outra, a uma necessidade lógi­
de causa. Provavelmente, ainda há apenas ca, cuja origem é provavelmente, uma intui­
uma dissociação insuficiente entre o efeito ção subjetiva de espontaneidade motora.
observável e o mecanismo. Muito mais que A necessidade dessas duas explicações p o ­
um verdadeiro movimento recíproco, trata- de manifestar-se de maneira bem contra­
se de uma atribuição hesitante e alternante; ditória.
mas, dessa confusão resulta uma representa­
ção circular do movimento que ocorre com L...et 6; 1/2 “O que é que se mexe sozinho?
freqüência nos hábitos mentais da criança, - Uma hélice que a gente fa zfu n c io n a r (gesto
tendo seus pensamentos tendência a se frag­ descritivo). - A hélice se mexe sozinha? - Não,
mentar em sistemas fechados e reversíveis. A porque a gente fa z ela funcionar. - Existem
falta de perspectiva deles ocasiona, no plano coisas que se mexem sozinhas? - Q uando a
mental, o mesmo gênero de ilusão que o gente mexe um fio de balança. -Ele se mexe
viajante em seu vagão, de onde ele não sozinho? - Não.”
368 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Desse modo, permanecem confundidos, - Com os barcos. - Onde os barcos vão? - Às


nesses exemplos, o instrumento que recebe e vezes no mar, às vezes no Jardin desplantes."
transmite o impulso com o ato de impulso, do
qual o autor permanece eclipsado e como Ora colocada nos barcos e ora no mar, a
que esquecido. Entre os dois, a criança expri­ causalidade é, evidentemente, uma noção
me, aliás, apenas uma simples concomitância frágil. Sua ambivalência acaba por ser tradu­
“quando” e só depois percebe a contradição zida com a ajuda de um simples termo de
de suas respostas. companhia “com”, assim como, mais acima,
ela era expressa em sincronismo puro.
Da mesma criança: “O que é o vento? - Algumas vezes a criança parece querer
São asfolhas das árvores que fa zem o vento. sufocar a dificuldade multiplicando os termos.
- Lá onde não têm árvores não têm vento? -
Não. - O que é que faz as folhas das árvores se L...ot6; “Como o vento sopra? -Pelo mar.
mexerem? - A s outras árvores que se mexem. - Como o mar faz o vento soprar? - Pelos
- Como as outras árvores se mexem? - So­ barcos. - Mas como? -É o vento que empurra
zinhas. - Como elas podem se mexer os barcos. -.Para empurrar os barcos, o vento
sozinhas?...Existem outras coisas que se me­ é muito forte? -É .- Como o vento pode fazer?
xem sozinhas? - O p a p e l. - Ele se mexe sozinho? - O vento anda, os barcos não andam , os
- Q uando ele voa. - Quando é que ele voa? - hom ens colocam as barcas na água e as
Q uando tem vento? - Ê o papel que faz o barcas fa zem os barcos andar."
vento? - Não. - O papel se mexe sozinho? -
Q uando tem vento.” Da mesma criança “São os barcos que
levam o Sena. - Como eles fazem? - Com as
Não sabendo onde situar a origem do barcas deles. - Mas quem é que leva os barcos?
movimento, no papel ou no vento, a criança - A água.. A h, não, as barcas."
limita-se a enunciar um simples sincronismo
com a ajuda de “quando”. Desse modo, ela Parece que a criança tem que encontrar,
pensa, provavelmente, em se furtar 'a contra no labirinto embaralhado de objetos que sua
dição já encontrada com o vento e as árvores. percepção das coisas une sincréticamente, o
Tendo colocado, inicialmente, a origem do começo que lhe permitirá desembaraçar o
vento nas árvores e tendo percebido que resto. Após terem sido dados como o in­
invocar outras árvores de nada lhe servia, termediário com a ajuda do qual o mar produz
teve que se resignar ao movimento autôno­ o vento, os barcos são o que o vento empurra,
mo das árvores. passando, assim, do papel ativo ao papel
Mas a criança também pode invocar passivo. Mas logo a origem do movimento
alternadamente ambas as origens, sem sen­ deles não é mais o vento, são simples barcas.
tir a contradição. Isso ocorre no par água- A causa parece, aqui, partir do mais vasto, o
barco, cuja estrita reversibilidade é tão mar, para se concentrar nos limites estreitos
freqüente. do objeto menor, as barcas, como se o espí­
rito da criança a apreendesse melhor assim
M...ti6; “Existem coisas no Sena?- Barcos. condensada.
- Os barcos andam? - Andam . - O que é que
os faz andar? - A água. - E o que faz a água MOVIMENTO AUTÔNOMO
andar? - Os barcos. - Qual é mais forte, a água E MOVIMENTO COMUNICADO
ou os barcos? - É a água. - A água se mexe? -
Não. - Então ela não pode fazer os barcos Por muito tempo pode ser encontrado
andarem, podem? - Ela anda. - Onde ela vai? um vai-e-vem ou uma confusão entre o
A S R E L A Ç Õ E S « S E N S ÍV E IS » 369

movimento autônomo e o movimento comu­ “às vezes” indica o que essa causa pode ter de
nicado de origem variável. acidental. Produzida por pedras que caem, as
vagas também produzem-se sem pedras. A
P...CO 9; A água se mexe sozinha?-M exe. causalidade ainda não se separou nitidamente
- Diga-me que água é que mexe? - A água do da contigência sincrética.
Sena. - Como ela se mexe? - Ela fa z como O movimento comunicado é aquele de
ondas. - Como as ondas se mexem? - . . . É o que a criança pode decifrar a origem, a causa
vento que as empurra. - Então ela não se ou o mecanismo, nos conjuntos de circuns­
mexe sozinha. - Às vezes quando os barcos tâncias acessíveis à sua experiência.
passam . - Quando os barcos passam, ela se
mexe sozinha? - Mexe. - Os barcos se mexem A.A...dre 6; “O Sena se mexe? - Mexe,
sozinhos? Não. - Com o que eles se mexem? - pelos barcos.”
Com um motor. - Existe outra água que mexa S.. .itch 6; 1/2 “Com que os barcos andam?
sozinha? - Existe, o mar. - Como o mar se - Com um motor. - O que faz a água andar? -
mexe sozinho? - Porque têm ondas. -Como é É o barco quando ele anda. - Se não tivesse
que têm ondas? - É água quando ela se mexe. barcos, a água não andaria? - Não.”
- Como é que a água do mar pode se mexer? V...el “O que é o Sena? - Para fa z e r os
- Ela se m exe sozinha. - Como ela faz? - barcos nadarem . - O Sena se mexe? - Mexe. -
Q uando a gente joga pedras nela às vezes. - Como? - Ele se m exe quando os barcospassam
É isso que faz ondas?...Quando a gente joga em cim a. - E quando não têm barcos, ele não
pedras na água, ela se mexe sozinha? - Mexe. se mexe? - Não.”
- E se a gente não jogasse pedras? - Ela se
m exeria assim mesmo. - Como ela se mexe­ Seguramente, o movimento comunica­
ria? - Ela se m exeria porque ela tem vontade do à água pelos barcos é, para a criança, um
de se mexer. - A água da torneira se mexe fato perceptivo. Mas ela faz dele o motivo
sozinha? - Não. - que é que a faz se mexer? - de um par exclusivo e fechado, cujos ter­
A chavinha. - E se a gente tirasse a chavinha, mos, aliás são unidos, habitualmente, apenas
o que aconteceria? - A água não correria por um simples “quando”. O movimento co­
mais." munica-se entre objetos percebidos como
contíguos. Parece que ele vai, com mais fre­
Várias respostas parecem, aqui, contra­ qüência, do objeto mais nitidamente de-
ditórias. Ao mesmo tempo em que é declara­ limitável, mais consistente, mais sensível ao
do espontâneo, o movimento das ondas sobre outro. Mas sua direção também pode ser
o Sena é explicado pelo impulso do vento, ambivalente, a ação pode ser recíproca ou
depois dos barcos, que são movidos por circular, como vimos anteriormente.
motores. O movimento espontâneo do mar é Há casos, ainda, em que a criança não
devido às pedras que nele caem; mas, con­ se deixa enquistar em sua representação do
tinuando o mar a se mexer, mesmo sem momento, em que, a despeito de sua habi­
pedras que caiam, a criança invoca a vontade tual inércia mental, de sua persistência em
que o mar tem de se mexer, prova de que ela repetir o mesmo ato mental e da dificulda­
compreende bem o sentido de “mexer-se de concomitante para evocar outros mo­
sozinho”. Seu pensamento ainda é muito tivos, ela enumera, pelo contrário, uma la­
sucessivo, contigente e mesmo ambíguo. Ela dainha de circunstâncias, à medida que deve
não pode impedir-se de acrescentar, ao reconhecer a sobrevivência do efeito ao de­
movimento, que declara ser autônomo, algo saparecimento de cada uma.
responsável pelo impulso, sem parecer perce­
ber a contradição. Quando muito, a palavra D...and 6; 1/2 “Como a água do rio se
370 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

mexe? -Porque tem vento. - E quando não tem O órgão pode, aliás, levar ao instrumento,
vento? - Ela se mexe. - Como ela se mexe? - ou seja, à explicação mecânica do movimento
Porque têm barcos. - Quando não tem vento inicialmente dado como autônomo.
e nem barcos, ela pode se mexer? - Pode, é
porque tem a fábrica. - E se não tivesse a D...in “Como você pode correr depressa?
fábrica? - Ela se m exeria assim mesmo. - Por - À toda velocidade. - Mas como você faz? - É
quê? - Tem um moinho. - E se não tivesse preciso ir rápido. - Mas de onde vem a sua
moinho? - Porque tem peixões. - E se você força para correr? - Naspernas. - Então as suas
tivesse pescado todos os peixões? - Mexeria, pernas são fortes? - Não demais. - Tem alguma
porque teria peixes que viriam de N antes.” coisa que vai mais rápido que você? - Tem. -
Quem vai mais rápido? - Sou eu. - O vento vai
Essa passagem, que parece ser indefini­ mais rápido que você? - Vai. - Como? - Ele vai
da, de uma causa a uma outra, faz pressentir rápido...à toda velocidade. - Mas como? -
que nenhuma é suficiente, o movimento Com os pés dele. - O vento tem pés? - Tem. -
persistindo para além de cada uma. Pro­ Como ele corre? - Rctpido. - Mas como ele
vavelmente, a criança nunca terá falta de ou­ pode correr? - Não sei. - O que mais vai mais
tros peixes vindos de outro lugar. Contudo, rápido? - O trem. - Como? - Com as rodas dele.
ela pode muito bem perceber que, por esse - O que é que faz o trem andar? - Com molas,
intermédio, não pode atingir um primeiro elas estão ligadas com rodas. - O que faz as
termo. Desse modo, a explicação através do rodas andarem? - São as molas. - O que faz as
movimento autônomo pode, por sua vez, molas andarem? - São as molas... - Como as
prevalecer, com analogia antropomórfica e molas são feitas? - Com ferro. - E que forma
intuição do sentido íntimo. isso tem? - Deferro. - Mas que forma isso têm?
- Pontinhas. - Como assim? - É pontudo na
B...ette 6; 1/2 “Como os barcos podem ponta. - Os pássaros vão rápido? - Vão. -
andar? - Eles nadam . - Como eles fazem? - Não Como? - Com asas.”
sei. - Os barcos fazem movimentos para nadar?
- Não.” Entre as marcas de um pensamento ainda
muito infantil - respostas de contorno ou em
Aqui, o antropomorfismo limita-se ao atraso, tautología, comparação sem segundo
emprego de um verbo que pode constituir termo (“Quem vai mais rápido que você? -
imagem, mas sem desenvolvimento da ima­ Sou eu”) -, a assimilação antropomórfica ex­
gem. Ela pode, freqüentemente também, plica o movimento espontâneo do vento
completar-se através de alusões à experiência através do uso de pés. Estes levam às rodas e
familiar ou de atribuições de órgãos. às molas para o trem. Desse modo, animismo
e instrumentalismo reúnem-se, e o caminho
Lefranc “O sol está vivo? - Está. - Como fica livre para enumerações que serão tão
você sabe que ele está vivo? - Ele anda. - Ele indefinidas quanto o número dos objetos
anda rápido? - Não. - Ele tem pernas para evocáveis.
andar? - Não. - Como ele faz para andar sem Na realidade, o antropomorfismo da
pernas? - Ele anda de joelhos.” criança não é um princípio. Ele ainda não
pode ser dado como a raiz subjetiva da “força”.
Uma espécie de arranjo regulou o confli­ Ganhando sucessivamente, por via de ana­
to que surgira entre a imagem do sol e a logia, novos objetos, a criança empresta-lhes
estatura de um horrítem andando: as pernas, as circunstâncias materiais próprias a cada
inicialmente negadas ao sol, foram dobradas um. A criança, antes de introduzir nas coisas
nos joelhos. a espontaneidade de que tem a experiência
A S R E L A Ç Õ E S « S E N S ÍV E IS » 371

íntima, deverá despojar, de suas qualidades L...our 6; 1/2 “Como o mar faz para se
sensíveis, a realidade sensível que ela lhe mexer? - O vento empurra. - Mas como o
escolherá como suporte. É por esse in­ vento se mexe?- Ele voa... Elese m exesozinho,
termédio, mas depurando-o e sublimando-o, ele voa.”
que ela poderá passar do animismo puramente
subjetivo, e a todo instante contaminável pelos Eis aí, parece, o vôo reduzido à sua
detalhes da realidade externa, à noção de um trajetória aérea, à imagem unicamente de sua
agente que seria detectável em objetos potência, espécie de tautología, aliás.
díspares. Parece que esse papel de transição
entre a experiência puramente concreta que R.G...el7; “Diga-me o que é o vento? - Ele
se une a cada coisa e a noção das forças que se mexe. - Como ele se mexe? - O que ele faz?
podem nela se manifestar, em particular pelo - Porque ele anda. - Como ele faz para andar?
movimento, é, freqüentemente, desempe­ - Ele vai para frente. - Como ele faz para ir
nhado pelo vento, invisível e impalpável, para frente? - Assim (gesto, para frente, do
mas fonte de mudanças muito aparentes e busto e do queixo). - E como você faz para ir
por vezes violentas. para frente? - Me empurram. - Você não pode
ir para frente sozinho? - Posso, sim, senhor. -
G...ain 6; “Como o sol pode ir embora? - Como você faz? - Assim. - Onde está o vento?
Pelo vento. - Como o vento pode empurrar as - No céu. - Mas e quando ele sopra na sala? -
nuvens e o sol? - Porque a fu m a ça não é forte. Porque ele vai para frente. - Quando ele vai
- E o sol? - O sol também não.” para frente, onde ele está? - Ele se mexe. -
Quando ele se mexe, onde ele está? - Ele vai
Aqui, a ação é expressa sob a forma embora. ”
primitiva de uma simples relação de dois
termos, estrutura elementar da percepção e É através das palavras “mexer-se, andar,
do pensamento: relação de força entre o ir para frente” que a criança esforça-se para
vento e os corpos que ele põe em movimento. definir a potência e a figura do vento, sem
Quando o par tende a se abrir e encontrar nele nada misturar de sensível, a não ser um
para si ligações fora dele, a criança só sabe gesto do queixo que nada tem de descritivo e
encontrar, no início, pontos de apoio intei­ parece muito mais traduzir um sentimento
ramente elementares. íntimo de propulsão. Mas, sob os vocábulos,
C...in 6; 1/2 “É Deus que fa z o vento. - expressa-se nitidamente a mudança de lugar:
Como ele pode fazer o vento? - Não sei. - Para ele passa do céu para a sala, vai embora. Feito
que serve o vento? - Para fa z e r os barcos para explicar o movimento, o vento retorna
andarem . - O vento faz os barcos andarem? - pura e simplesmente ao espaço, como se
Ele os em purra” pudesse dele extrair a noção de potência que
ele tem, por papel, de aumentar.
Força de impulso, como que imaterial,
sobre os objetos repletos de consistência V...er 7; 1/2 “O mar se mexe? - Mexe,
sensível, o vento é dado como a emanação quando tem um a tempestade. - Como ele faz
inexplicável de um ser, por definição, todo para se mexer?... O que é que faz o mar se
poderoso. Sua espontaneidade é transferida, mexer? -É a r.- Como ele faz o mar se mexer?
para fora dele, para a causa das causas, para -... O ar se mexe? - Мехе... Д o a r se mexe
a força das forças, para um começo absoluto sempre. - A gente o vê se mexer? - Não... a
e irremediável. Outras vezes, a potência é gente sente no rosto, a gente sente o vento. - O
incorporada em um ato que parece mais ou que é que faz o vento se mexer?... É o vento
menos escapar às necessidades da matéria. que faz o mar se mexer? - É o vento. - E quem
372 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

faz o vento se mexer? - Ele se m ex e so zin h o . - pedra se m exe sozinha? - Não. - Se você tem
O vento está vivo? - Não.” uma pedrinha na mão, ela se m exe sozinha?
- Não... S ea gente fa z assim (m ovim ento da
Em vez do espaço» aqui» é ao tempo que mão) ela se mexe. - Se você a deixa cair, ela se
é relacionado o vento, com o movimento sem mexe? - M exe.-Ela se mexe sozinha? - Q uando
interrupção. Provavelmente, é a fluidez do ar a gente solta, ela se mexe. - Ela se mexe
que a criança quer traduzir ao declará-lo sozinha quando a gente a deixa cair? - (G esto
sem pre móvel, mas, exatam ente por causa vago da cabeça). - Insistimos. - Mexe. - Como
disso, ela não tem mais que buscar fora dele é que ela não se m exe sozinha na m ão e mexe
seu com eço, nem sua causa. Do m ovimento sozinha quando a gente a deixa cair? - Porque
contínuo ao movimento essencial, a passagem a gente solta. - O q u e é que faz ela se m exer
deixa-se conceber. O m ovimento essencial, sozinha quando a gente a solta?
sob suas manifestações mais diversas, é a
seqüência indefinida de circunstâncias par­ A grande dificuldade, para a criança, é
ticulares e contingentes agora reduzidas pelo situar o movimento em um cam po de força
princípio que deve explicar o próprio movi­ que ultrapasse o corpo em movimento. Ela
mento. Contudo, a criança está bem longe de concebe o movimento transmitido à pedra
poder conceber a causalidade física, em bora pela mão porque a passagem de um corpo
a constóte. para outro é percebida e imaginada facil­
mente. Mas a criança não consegue imaginar
M...ez 6; “O Sena se mexe? - M exe - que, simplesmente solta pela mão, a pedra
Como? - Descendo. - O que é que faz se possa entrar em m ovimento, sem que um a
mexer? - N ã o sei.” outra força lhe seja aplicada do exterior e
nenhum a força nova possa animá-la do
Ela enuncia a ação do peso no movimento interior. Sob os m ovimentos aparentes, ela
da água, m as não sabe identificá-la à cau­ não sabe descobrir as forças em jogo, nem , na
salidade. E mais ainda, seus efeitos podem pedra m antida pela mão, o esforço que lhe
surpreendê-la. equilibra o peso. No movimento, ela ainda vê
apenas corpos em movimentos e fatos des­
L...et 6; 1/2 “O que é que se m exe contínuos, particulares, ao m esm o tem po aci­
sozinho?... Você se m exe sozinho? - Me mexo. dentais e absolutos, de um a contingência in­
- O que é que mais se m exe sozinho?... Uma definida e de um a autonom ia incondicional.
C apítulo II

A CAUSALIDADE

A PRÁTICA DA
CAUSALIDADE E SUA REPRESENTAÇÃO

Q uando chega a idade em que é possível manifestações essenciais ou acidentais deles


questionar a criança sobre a causa de efeitos, e o feliz acontecim ento consecutivo está des­
que lhe são familiares sem pertencerem , provida de qualquer outro motivo a não ser a
contudo, à sua própria esfera de ação, já há satisfação, já por vezes ou freqüentem ente
m uito tem po sua atividade prática observa as encontrada, enquanto se produziam as rea­
exigências da causalidade. Desde o mom ento ções que se tornaram, p o r conseqüência, o
em que a necessidade e o desejo fazem re­ instrumento dela. Sua força dissolve-se intei­
nascer os gestos que lhes deram satisfação, é ram ente na intensidade do desejo e na fre­
esta que é posta em jogo. Contudo, ela está, qüência das conjunturas favoráveis. Falta com­
então, bem longe de sem pre comportar a pletam ente a consciência das relações entre
intenção e a percepção dos meios. A aprendi­ causa e resultado.
zagem que disso a criança fez refere-se, alter­ Ao contrário, os efeitos sensorimotores
nadam ente, ao resultado constatado e ao da atividade circular, onde os gestos e as
objetivo perseguido. percepções que disso resultam encadeiam-
O hábito, adquirido pelo lactante, de dar se, provocando-se e modificando-se recipro­
gritos, se estes têm, como efeito, fazê-lo ser camente, parecem muito bem a escola onde
pego nos braços de sua mãe, precede todo se refinou o sentido da causalidade direta,
cálculo deliberado mas se liga a um a série efetiva, mas com um a certa ambivalência, a
cujas origens confundem -se com os mecanis­ causa p o d endo ser, alternadam ente, suposta
m os elementares que unem o ser ao seu meio no m ovimento que produz a sensação ou na
por seleção m útua das circunstâncias e das sensação que o modifica.
reações. Provavelmente, a solicitude mater­ Q uando a atividade da criança extravasa
na, que a criança parece então explorar, é, para os objetos exteriores, é-lhe preciso so­
contrariamente às condições físicas, um poder frer as condições deles, e a causalidade ten­
sobre o qual o da criança tem apenas uma in­ de, necessariamente, a se tom ar mais unila­
fluência indireta e aleatória; é um conjunto teral. A estrutura déles tom a-se para ela, um
que parece com plexo e repleto de incertezas. tema de exercícios: batentes de porta girando
Mas, precisam ente, essa é um a diferença que em suas dobradiças, vai-e-vem de um a gaveta
a criança não saberia imaginar, e a ligaçãoque em suas corrediças, forro de um sapato, de
seus apetites formam entre um a das próprias um a luva, de um recipiente. Desse m odo, ela
374 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

desenvolve esse gênero de aptidões que seu manejo habitual. Se há contraste entre
podem ser abolidas, no adulto, através da sua prática mecânica das coisas ao seu alcan­
agnosia-apraxia. Contudo, o interesse p o d e ce e sua explicação dos fatos familiares, mas
dividir-se, de maneira desigual, entre o mo­ que ultrapassam o limite de sua atividade
vim ento tom ado possível pelo objeto e a con­ pessoal, não há, contudo, cisão radical de
figuração do próprio objeto. atitude. Passando de um para outro, ela não
Durante muito tempo, a criança fica muito perde toda a coerência consigo mesma; não
mais ocupada com sua própria atividade, à é obrigada a um a conversão total; restam-lhe,
qual as coisas apenas fornecem um a simples entre os dois, algumas passagens, por mais
causa. Mais tarde ainda, elas se integrarão, em estreitas que sejam. Ela poderá, assim, sentir
sua atividade puram ente prática ou autom á­ muito m elhor as contradições e a necessida­
tica, com o o simples com plem ento ou pro­ de de resolvê-las. A distância das etapas
longam ento de seus gestos. Mas chega um a segundo cada plano de atividade não im pede
idade em que se observará a influência opos­ as anastomoses, nem as inflitrações de pre­
ta do nom e ou do conceito que correspon­ pararem a redução delas ao mesm o tipo.
dem ao objeto. As flutuações são freqüentes Contudo, esta nunca será com pleta, mesmo
entre esses três termos: veleidades subjetivas no adulto. Ela poderá até m esm o variar mui­
do movimento, condições rígidas que o to com os indivíduos conform e os diferentes
m anejo do instrum ento p o d e lhe impor, ins­ cam pos de atividade e de pensam ento deles
truções q ue o uso ou a tradição a ele unem . sejam mais hom ogêneos ou mais dispersos.
Mas a criança deles escapa, habitualmente,
através d e sua atividade lúdica. Ela prefere, CONFUSÃO DOS TERMOS
ao objeto rigorosam ente construído e estri­ E CONFUSÃO DAS RELAÇÕES
tam ente ajustado, um a matéria não delineada
ou relativamente informe, que ela p o d e usar A causalidade é a união da coisa ou do
a seu m odo, isso ocorrendo com um a ampla efeito ao que os produz e que deve, p o r con­
cum plicidade de sua imaginação. Sobre um, seqüência, precedê-los de algum modo; ela
se ela pura e simplesmente não se desinteressa tem, portanto, algo que parece, essencial­
por ele, ela exercerá m uito mais, com o que mente, ultrapassá-los. É um a relação que a
por curiosidade ou por desforra, seus gostos eles justapõe, no tem po ou no espaço, um a
de destruição; por meio da outra, ao contrário, realidade exterior. Por mais necessária que
sua engenhosidade simbólica ou edificadora. essa condição pareça logicamente, ela é,
As duas atitudes podem , aliás, tom ar-se com­ contudo, precedida, na criança, p o r um esta­
plem entares. Ao despedaçar o brinquedo de do de sua sensibilidade e de seu conheci­
uso ou de forma rígidos demais, a criança mento, onde o que é efeito ou causa é apenas
p o d e colocar, em proporção variável, algo da uma parcela, ainda am algam ada ao bloco
agressividade e do interesse por sua estrutu­ sincrético que corresponde aos objetos ou às
ra mecânica. Os aperfeiçam entos que ela situações. Misturada às particularidades di­
traz, p o r vezes com amor, aos brinquedos de versas deles, a relação causai não tem n en h u ­
que é a autora podem com o uso, impor-lhe ma fixidez, é suscetível de entrar em combi­
precauções e minúcias que impõem um limite nações diversas ou contrárias. O que se tom ará
tirânico a suas improvisações motoras. a propriedade das coisas, inicialmente não
Esse vai-e-vem entre o subjetivo e o ob­ distingue entre o determ inante e o determi­
jetivo ainda não term inou, na idade de cinco nado, confunde-se com um conjunto, freqüen­
anos e meio ou seisen o s, quando a criança tem ente contingente, de circunstâncias, e é,
começa a poder ser questionada sobre as sucessivamente, assimilado aos mais varia­
realidades q ue são de seu meio, mas não de dos tipos de explicações. A causalidade, ou
A C A U S A L ID A D E 375

melhor, as diferentes concepções ou formas form a neve, quando cai água... e depois, às
da causalidade assim que se tom am enunci- vezes, com os esquis a gente desliza em cim a
áveis, inicialmente entram em sua espécie de na Rússia. - A neve é feita com gelo? - Q uando
mistura, onde se justapõem entre si e com tu­ o gelo derrete, ele vira neve... Q uando é
do o que pode pertencer à representação Natal, vem neve. Este ano não teve. Este ano
das coisas. só veio gelo. - D e onde vem o gelo? - Vem do
Pólo Norte... Têm esquimós e ursos. Não têm
H,..art 5;11 “O que ê o vento? - É o que m uitos esquimós, p o rq u efa z m uitofrio. Têm
fa z frio. - Como o vento faz frio? - Ê porque m uitos ursos, porque eles têm m uito pelo. Às
têm portas abertas. - São as portas abertas que vezes, eles comem você. - Todo gelo vem do
fazem o vento? - São. - Q uando a gente está na Pólo Norte? - Vem, ele passa por* todas as
rua, têm portas abertas?- (Vagosorriso e olhar cidades. São os ursos com as patas deles que
interrogador.) Têm portas que são verdes, fa zem ele ir embora. - No ano passado, de
am arelas e cinzas. - Nos bosques tem vento? onde vinha o gelo dos riachos? - Do Pólo
Por quê? - Éporque têm árvores que “chocam ”. Norte. - O Pólo Norte fica longe? - Fica, sim,
- Como elas chocam? - Éporque os galhos se senhor. Precisa passar p o r todas as cidades
separam. - Como os galhos se separam? - É para ir lá, com o avião. Q uando não tem
porque elespesam pesado. - O que quer dizer m ais cidades, precisaria um hidroavião; ele
“os galhos chocam ”? - É porque a gente fic a vaiem cim a da terra eem cim a da água. Têm
embaixo.” barquinhos no hidroavião. Eu vi nas Gale­
rias Lafayette. Tinha contos de fa d a , de ne-
Esse exem plo m ostra bem as confusões grinhos... No Châtelet, eu tam bém vi anim ais,
que o pensam ento da criança p o d e realizar. A um elefante, um crocodilo. Eles vinham
estrutura sensorim otora da palavra pode quando agente chamava. - O Pólo Norte fica
invadir o sentido: as portas verdes, amarelas longe? Como o gelo pode vir de tão longe? -
e cinzas são introduzidas pelas portas abertas. Porque não tem m ais água nos riachos. No
“Chocar” por “cobrir”( ) é um a simples subs­ Sena, não tem m ais água: é o gelo. Às vezes,
tituição de palavras q u e não influi sobre o ele se solta. Ospássaros vêm p ica r o gelo. Às
pensam ento. Mas a experiência familiar da vezes, ele se solta.”
corrente de ar através das coberturas da mora­ A tendência às digressões ressalta a
dia com eça im pondo-se com o a causa do textura desse pensam ento, que é m enos ur­
vento em geral. D epois ele é atribuído quer às dido que feltrado. As circuntâncias resultam
árvores, quer à ausência delas: para o mesmo gradualmente um a da outra p o r simples mis­
efeito, duas circunstâncias contrárias. O afas­ tura e formam com o que fragmentos con­
tam ento dos galhos é dado com o sua causa, tínuos, mas multicores. Nesse enredam ento
em bora seja seu efeito: inversão de sentido amorfo, as relações de causalidade confún-
entre um e outro. As causas são díspares: dem-se nas outras e parecem , freqüente­
portas abertas, agitação e peso dos galhos, mente, tom ar de em préstim o m uito mais as
frescor q ue a som bra deles proporciona. O fórmulas de causalidade do que traduzir uma
frescor, o frio, o vento são o núcleo mais ou idéia de causa. Origens local e causai confun­
m enos indiviso dessas diversas cinrcuns- dem-se sob as espécies do Pólo Norte, que
tãncias: labirinto sincrético. parece ter sido, inicialmente, um a resposta
ao “de o n d e”, interpretado em seu sentido
C...in “Você já viu a neve? - É o gelo que primitivo e literal de espaço. As relações das
imagens aglomeradas entre si são tão vagas
( ) N.T.: Em francês, há assonância entre “chocar”
que parecem , sucessivamente, ou idênticas
(“couver”) e “cobrir” (“couvrir”). ou exclusivas um as das outras. O gelo, a neve
376 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

e a água são, inicialmente, dados como tendo cachorros mortos. Entre os momentos de
se transformado um no outro, depois a água uma mesma causa, ele ainda não pode por
do Sena com o tendo desaparecido diante do uma ordem e limita-se a acumulá-los: o vento,
gelo vindo do Pólo Norte. Provavelmente, a o céu, o tempo feio. Semelhante confusão
criança não tem, d e cada caso, um a represen­ entre termos conexos deve, evidentemente,
tação distinta. É segundo as circunstâncias da impedir toda representação nítida da cau­
conversa ou de sua imaginação que as coisas salidade, que consiste em relações ordenadas
lhe parecem ou entrarem um as nas outras, ou de dependência.
se repelirem.
Nessas condições, a causalidade, quando M...ès “O que é a fumaça? - Ela vem dos
com eçar a se diferenciar verdadeiram ente fom os. - Como é que tem fumaça nos fomos?
das outras relações, será, de início, apenas - Ela sobe nos canos. - E antes de subir nos
um simples desfile de circunstâncias mais ou canos? - Oforno fic a na casa, e depois, no ca­
m enos ocasionais ou intercambiáveis. no, na cham iné. - Como tem fumaça no
cano? - Agentepõe m adeira no fo m o edepois
A...ré 6; “O que é o Sena?- Têm nadadores sai fum aça. - Como a madeira pode fazer
dentro. - Como os nadadores não vão para o fumaça no fomo? - Não sei. - Pense bem .-N ão
fundo? - Porque eles se seguram bem. Eles dão sei. A gente põe carvão. - Comoo carvão pode
cam balhotas na água. - A água do Sena se fazer fumaça? - Colocando o papel e a m a­
mexe? - Não, ela è m uito fria. - Ela se mexe? deira. - Como é que tem papel aqui e não
- Não... Д ela se mexe. - Como? - Ela se mexe fumaça? - É o carvão que fa z fum aça, e
pelos nadadores, pelo vento, pela terra, pelas também a m adeira e tam bém o papel. - Por
rolhas e ainda pelos cachorros mortos. - Se que a gente põe tudo isso no fomo? - Para ele
não tivesse tudo isso dentro, ela se mexeria? esquentar. - E o que é que esquenta?... É &
- Ela se m exeriapela terra, pelo vento. - Como fumaça? - É o fo m o .- O fogo não esquenta? -
ela se mexeria pela terra? - Ela desce, desce, Esquenta, sim, senhor. - O que que é o fogo?
desce. - A Água se mexe sempre do mesmo -É o fo m o . - O fogo é o fomo? - É. - E a chama,
lado? - È - Onde ela vai? - Ela mexe, mexe, o que é? - É a fum aça. - A chama e a fumaça
mexe. - De onde vem a água do Sena? - Ela são a mesma coisa? - São. - Olhe (fumaça do
vem do céu. - Como? - Pelo céu, quando o lado de fora): O que é aquilo? - Fumaça. - É
tempo fica feio. - Vem água para o Sena por chama? - É céu.”
outro lugar além do céu? - Ela vem pelo vento,
pelo céu, pelo tempo feto." A fumaça identificada, sucessivamente,
com a chama e com o céu, o fogo com o
As respostas freqüentem ente de con­ fomo; a fumaça explicada pela simples pre­
torno, a enum eração, na mesma resposta, de sença da madeira, do papel e do carvão, sem
causas com conseqüências díspares, a tripla nenhuma indicação operatória: tantos traços
repetição da m esm a palavra, com o que para que mostram o quanto ainda estão indistintas,
suprir, através de um reforço da imagem para a criança, tanto as relações de causalida­
correspondente, a incapacidade para ultra­ de quanto a diferenciação entre objetos rela­
passá-la dando-lhe o com plem ento que a tivos ao mesmo conjunto perceptivo ou re­
questão exigiria, mostram a confusão e a presentativo. Ela reúne tudo o que é neces­
estagnação persistentes do pensamento. Entre sário para se fazer fogo, mas esquece de
os m ovim ento da água, ele ainda não pode acendê-lo, fase da simples enumeração. Ela
distinguir os redem oinhos que nela podem identifica, sucessivamente, o mesmo objeto a
causar o s nadadores, as ondas que nela faz o objetos sem relação entre si, fase da assimila­
vento, a corrente que leva as rolhas e os ção puramente global e concreta. Fase de um
A C A U S A L ID A D E 377

pensamento ainda inapto a formular rela­ A simples assimilação d e term os entre si,
ções. Ou melhor, as que fazem as vezes de em vez de um a dependência causai e de
qualquer outra são as de Jnterioridade: 2 puras distinções locais, é observada ainda si­
primeira definição dada da fumaça 6 que ela multaneamente, no exem plo seguinte, num a
sobe do fomo pelo cano e pela chaminé. As criança já de oito anos.
designações locais ainda apresentam uma
certa ambigüidade: “o fomo fica na casa, e R...ault 8; “O vento égelo. - Tem gelo lá?
depois no cano, na chaminé”. Simples elipse - Não, ele está no céu, a gente não vê. - Tem
de “fumaça”; mas a elipse denota uma certa vento? - Tem. - O que é o vento? - Gelo. - Mas
inércia do pensamento, que pode ser lento como é que tem vento aqui e não gelo? - O sol
para evocar, ao mesmo tempo, a palavra e a estã deitado, o vento está no céu, e depois isso
imagem. E o que também deve favorecê-la é fa z frio . - O vento não está no céu, já que ele
o fato de que, entre os objetos assim agrupa­ faz as árvores se mexerem, não é? - Ele está
dos, a topografia permanece vaga: cada um em baixo do céu. - E o gelo, onde está? - Não
deles tem seu continente, mas esses conti­ tem. - Você não disse que ele estava no céu?
nentes ainda não estão unidos em um con­ - (Sorriso confuso e meigo). - Como o vento
junto rigorosamente coordenado. faz para as árvores se mexerem? - Porque ele
Confusão de termos, tautología, simples está gelado, porque o sol está deitado!’
justaposição ou enumeração de lugares po­
dem ser observados, simultaneamente, em É grande, aqui, a confusão entre o vento,
uma mesma criança, no lugar da causalidade. o gelo, o frio, o céu. Alternadamente, o vento
está no e em baixo do céu. O gelo está n o céu
D...in “Por que faz frio? - Porque tem e não está mais aí. O vento é atribuído ao frio,
vento. - Como ê que tem vento? - Porque as após ter sido identificado ao gelo. O frio do
árvores se mexem. - De onde vem o vento? - céu, após ter sido atribuído ao gelo, é expli­
De um lugar. - Onde ê esse lugar? - Nos cado pelo pôr-do-sol, inverno e noite sendo,
bosques. - Como é que tem vento nos bos­ assim, implicitamente tom ados um pelo ou­
ques?... De onde vem o vento? - Nos campos. ' tro. É uma confusão de imagens maldelimi-
- O que é que faz o vento nos campos? - É o tadas, entre as quais o céu parece feito, como
fr io . -É o vento que faz o frio ou o frío que faz os bastidores de um teatro, para esconder as
o vento? - É o frio. - O que é que faz o vento? m udanças de papei m útuas delas. Aliás, é aí,
-É océu. - O vento e o céu são a mesma coisa? sem dúvida, que está o progresso. Afastando
- Não. - O que é o céu? - É o céu. - O que faz a causa para esse lugar quase fictício que é o
o vento? - É um lugar.” céu, a criança já tende a distingui-las'|de seus
efeitos sensíveis. Mas ela a imagina sob as
A indicação de uma causa mecânica - a espécies de um gelo invisível. Ela ainda só
agitação das árvores explicando o vento, ou sabe identificá-la com um objeto concreto, ao
talvez, inversamente, o vento explicando a mesm o tem po em que dá a ilusão de ter ultra­
agitação das árvores -, ainda corresponde passado o m undo das coisas pelo m undo das
apenas a uma representação tão confusa, na causas, através da simples interposição da te-
criança, que ela parece esquecê-la para enu­ la-distância entre os sentidos e o objeto gera­
merar os lugares de onde o vento pode sair: dor dos efeitos experimentados.
sucessivamente, um lugar, os bosques, os
campos, o céu e de novo um lugar. Ao mesmo CONCOMITÂNCIA
tempo, ela declara, sobre o céu, que é o céu: OU ENCADEAMENTO
tautología. Ela atribui, alternadamente, o frio
ao vento e o vento ao frio: ambivalência. Se a causa inicialmente é confundida
378 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

com simples diferenças locais, ela tem também do “porque”, entre a chuva e o vento, assim
afinidades particulares com as semelhanças como entre o vento e o inverno: “no inverno”.
de tempo, com o sincronismo, Na sucessão
das perguntas que a criança pequena faz e A...on 7; 3 “O que é o trovão? - E lefa z as
que atestam a ordem em que suas curiosidades casas quebrarem. - Como ele pode fazer as
tornam-se capazes de se manifestar, “onde” casas quebrarem? - Ele acende o fogo e fa z
precede, de muito longe, as perguntas de elas caírem. - Como é o trovão? - Q uando fa z
causa, mas “quando” e “por quê" são quase calor demais, issof a z o trovão cair.”
contemporâneos. Entre eles, portanto, deve
haver uma certa conformidade de condições Aqui, há íntima combinação do sin­
ou, em todo caso, uma grande proximidade cronismo e do eficaz.
de etapas.
Np mundo perceptivo, aliás, que é o das T...ème 8; 1/2 “As árvores estão vivas? -
primeiras atividades acessíveis à criança, é o Estão. - Como elas estão vivas? - Q uando as
acompanhamento mútuo e habitual delas folhas caem, ela morre. - As folhas caem
no tempo que pode conferir, às circunstân­ sempre? - No inverno. - E a árvore morre
cias, o poder de fazer umas anteciparem as sempre? - Q uanto têm raios. - Ela morre
outras. Entre a previsão, a expectativa sis­ quando têm raios ou quando as folhas caem?
temática e a causalidade, entre o sinal e o - Têm vezes que têm raios.- E se não têm raios?
agente, há, certamente, uma diferença, mas a - Elas não caem. - Elas morrem quando as
qual a criança permanece, por muito tempo, folhas caem? - Não. - Por que as árvores estão
incapaz de fazer. Ela exige, freqüentemente, vivas? - Se não estivesse viva, não teria árvore”
o reinicio de um gesto, de um rito perfei-
tamente inútil, para obter o retomo de um re­ “Quando” indica, nesse exemplo, um
sultado desejado. O que já se seguiu deve se simples indício (quando as folhas caem) ou
seguir ainda, o que esteve ligado permanece uma causa (quando têm raios)? A criança
assim até experiência contrária. Seu desejo enuncia essas duas circunstâncias como equi­
ou seu medo dotam de eficácia, uns sobre os valentes e como desempenhando o mesmo
outros, os acontecimentos que os acom­ papel. Na realidade, o vínculo entre elas e os
panharam: anunciar-se é ocasionar-se um ao fatos a serem explicados é dos mais frouxos,
outro. Sua intenção, sua expectativa são a visto que o encontro delas é, em seguida,
força viva que parece unir. Isso assemelha-se dado como uma simples eventualidade (tem
ao cata-vento de Spinoza, que acreditava ser às vezes). Finalmente, o único motivo dado à
o autor de seus deslocamentos se deles tivesse, vida é uma tautología, a vida parecendo estar
simultaneamente, a representação. assimilada à existência ou, talvez, ao que faz
existir (se não estivesse viva, não teria árvore).
M...on 7; “Você sabe o que é o vento? - Assim, a passagem do objeto a suas relações
São as árvores que se mexem. - Como elas se quer locais, quer temporais, quer causais
mexem? - Q uando fa z fr io . - É o frio que faz começa por uma procura muito indecisa onde
as árvores se mexerem ou as árvores, se ela as mistura entre si, sem chegar a especificar
mexendo, que fazem frio? - Não sei.” rigorosamente nenhuma delas.
Da mesma criança “O que são borboletas? Essa incapacidade é uma fonte de arbi­
- Q uando fa z calor, elas aparecem.” trário absoluto na causalidade e, por con­
M...ez 6; “Como é que pode ter vento? - seqüência, de contingência.
Éporque chove. - Nunca tem vento quando K...vé 6 ;“Depois da noite,o q u e tem?- O
não chove? - Tem, é no irw em o.” dia. - Como o dia vem? - Q uando a noite vai
Há simples concomitância, a despeito embora. - Para onde ela vai embora? - Para a
A CAUSALIDADE 379

casa dela. - Como ela vai embora? - Pelo de uma situação para delimitar os traços espe­
vento. - Como o dia vem? - Pelo vento. - De cíficos do caso considerado, ou seja, para
onde vem o vento? - D as árvores. - Se não circunscrever um campo de força onde haja
tivesse árvores, não teria vento? - Não. - Se relação adequada e constante dos termos
não tivesse vento, não teria o dia e depois a propostos como causas e como efeitos, para
noite? - Teria a noite assim mesmo. - Sempre dar-se um conjunto cujos termos bastam-se
teria a noite? - Não, teria o dia também.” entre si, e para realizar uma estrutura equili­
brada cujas partes correspondem-se exata­
Assim, a passagem da noite para o dia, mente, um todo cuja análise e síntese sejam
embora causada pelo vento, efetuar-se-ia reversíveis. Mas, por muito tempo, a criança
mesmo na ausência deste. sabe apenas acrescentar os fatos aos fatos,
Essa contingência pode ter três espécies incidentes ou qualidades, sem ser capaz de
de efeitos: a substituição, entre si, de causas cessar com sua soma, nem de etabelecer-lhes
intercambiáveis; causas diferentes para um a equação. Sua experiência e sua imaginação
mesmo efeito; não os mesmos efeitos para são um fluxo indiviso, onde as afluências e as
uma mesma causa. Desse último caso, eis um perdas são, por vezes, sentidas talvez, mas
exemplo: não avaliadas.

K...vé 6; “Como o sol faz calor? - Porque Р...СО 9; “O Sena dorme? - Dorme. -
ele é amarelo. - De que cor é este armário? - Como ele faz? - Ele não se mexe. - A gente
Amarelo. - Ele faz calor? - Não, porque não é pode acordá-lo? - Pode, quando passa um
sol.” barco. - Mas de dia, quando não passa barco,
ele fica dormindo ou acordado? - Ele não
Separada a qualidade do objeto, mas dorme. - Como você sabe? - Porque é de dia.
parecendo não ser a propriedade de onde - Como a gente vê que ele está dormindo? -
depende o efeito, é ao objeto em sua identi- Porque ele não se mexe. - Como ele se mexe?
dade total que a criança retoma. Na realidade, - Q uando passa um barco, parecem ondas. -
a qualidade não podia marcar qualquer rela­ E se não passasse barco? - Ele não se mexe. -
ção; permanecia puramente episódica, embo­ E ele não dorme? - Não.”
ra dada como absoluta, ou melhor, como es-
sendalmente idêntica ao objeto: incapacidade Duas causas, o d ia e o movimento, capa­
de análise. zes de despeitar o Sena, são dadas cada uma
por si, isoladamente, absolutamente, sem limi­
K...vé 6; “É só ter sol num campo para ter tação eventual ou recíproca. Se não são síncro­
trigo? - É. - Por que não tem trigo em todos os nas, o caso toma-se contraditório. Se o efeito
campos?... Por que não tem sempre trigo? - Às produzido é contrário a uma ou outra, isso
vezes, tem forragem .” ocorre porque elas nada têm de necessário:
entra-se no campo da contingência. E é assim
Entre o efeito e a causa invocada, não há que a criança é levada a enumerar causas que
razão suficiente, de modo que outros efeitos podem variar para cada caso novo.
produzem-se nas mesmas circunstâncias. S...ez 8; 1/2 “O Sena se mexe? - Mexe. -
Como? - Pelos barcos. - Como eles o fazem se
VARIABILIDADE mexer? - Pelas hélices. - Se não tivesse barcos,
FORTUITA DAS CAUSAS o Sena não se mexeria? - Mexeria, pelo vento.
- Mas e se não tivesse vento, o Sena se mexeria?
Isso é a incapacidade para ultrapassar as - Não. - Pense bem. - Mexe, pelos peixões que
aparências mais banais ou mais importantes fica m embaixo. - E se não tivesse vento e os
380 A S O R IG EN S D O PEN SA M EN TO NA C R IA N Ç A

peixões não se mexessem? -É a corrente. - O - Então por que não apodrece aqui? - Porque
que é a corrente? - São canos que fa ze m o não têm ratos. - São os ratos que fazem
Sena subir. - Como eles fazem? - Porque eles apodrecer? - São.”
fa ze m a água correr. - Onde ficam esses
canos? - No fu n d o do Sena. - E de onde vem Isoladamente, várias dessas respostas
a água desses canos? - Do m a r” seriam bem admissíveis. É o conjunto delas
que faz das mesmas algo de anterior à
A cada causa enunciada corresponde, causalidade. O apodrecimento da madeira
de fato, um movimento diferente da água: poderia muito bem ser impedido por uma
redemoinhos, ondas, corrente. Simples camada de tinta ou de verniz. Ele poderia
aproximação de termos que poderiam ser também produzir-se apenas na umidade da
simultâneos, mas que parecem dados um adega, e a umidade da adega ser um efeito de
pelo outro. A criança tem a intenção de ul­ sua não-aeração. Mas, na verdade, não é o
trapassar as simples relações de coexistência que acontece, assim como a criança combina
eventual; mas não sabe construir a cau­ as circunstâncias que declara como próprias
salidade. Na verdade, a diversidade das cau­ para acelerar ou retardar o apodrecimento.
sas não é, necessariamente, um índice de Suas outras respostas assim o mostram. A
contigência. Se a situação muda, e espe­ possibilidade de apodrecerfora, inicialmente,
cialmente se o fato a ser explicado não é mais negada às pedras e aos papéis por estar
o mesmo, a causa a ser invocada deve ser limitadas aos objetos “de folhas”, como são os
diferente. O contrário suporia causas abso­ legumes de que se tinha acabado de falar.
lutas, e o absoluto na causalidade pode levar, Tendo a aparência de opor pedras e papel a
nos fatos, apenas à contigência. Mas só há uma classe dotada de traços específicos - as
explicação válida se seu objeto permanece o folhas -, na verdade, ela apenas permanecia
mesmo, e a causa só pode mudar se há sob a impressão da ocorrência folhas de
situação modificada. A toda causa nova de­ repolhos ou de alfaces e apodrecimento. A
veria ser ligada uma circunstância nova. Ora, forma conceituai de sua resposta cobria um
a criança limita-se a desfiar as causas, sem se simples dado perceptivo ou imaginativo,
importar se o efeito permanece o mesmo ou ainda não desmentido por outras ocorrên­
varia. Ela ainda está longe de saber fazer cias. Ocorre o mesmo com a falta de ar na
coincidir, em toda a extensão deia,| a série adega e o apodrecimento. O que está sem ar
das causas e a dos efeitos, exprimindo, para é o que não é o livre vai-e-vem do ar do lado
cada mudança de uma, uma mudança da de fora, por conseqüência, não é apenas a
outra. adega onde a madeira apodrece, mas tam­
bém a classe onde ela não apodrece. Prova­
D...aud 8; “As pedras apodrecem? - Não. velmente, pode-se dizer que a criança ainda
- E os papéis? - Não. - Por quê? - Porque não procede por contrastes grosseiros; que ela
são folhas (como as alfaces e os repolhos ainda não sabe manipular, nem combinar os
anteriormente citados).-Am aàeka apodrece? graus das séries em causa, umidade ou falta
- Apodrece. - E a mesa? - Não. - Ela não é de de ar. Mas, precisamente, ela enuncia uma
madeira? - É. - Por que ela não apodrece? - pela outra e, de cada uma, ela toma apenas
Porque tem algum a coisa preta. - E esse um termo ligado ao efeito. Em vez de procu­
estrado de madeira? - Não. - Por quê? - Porque rar compará-la com ela mesma ou com outras,
ele não está na adega. - Por que o que está conforme os casos, a fim de justificar as exce­
dentro da adega apodrece? - Porque não tem ções constatadas, ela a abandona instan­
ar. - O que que é o ar?... Tem ar aqui? - Não taneamente e substitui a falta de ar, que era
(depois de ter olhadoparafora e no aposento). comum à adega e à classe, pela presença de
A C A U S A L ID A D E 381

ratos na primeira e pela ausência deles na Não somente as causas invocadas dife­
segunda. Simples oposição qualquer, mãS rem conforme os objetos, mas apresentam,
sem comparação verdadeira entre dois con­ cada uma, alguma contradição. Os barcos,
juntos onde o efeito a ser explicado é dife­ que flutuam sobre a água, repousam, na
rente. Simples contraste entre dois pares, um verdade, sobre as pedras do fundo. Estas os
positivo, outro negativo: rato-apodrecimento, atrapalham, mas não se opõem ao movi­
sem ratos-sem apodrecimento. mento deles. Elas suportam os barcos,
A circunstância anexada ao efeito para mas matariam a criança. Apenas pequenos
explicá-lo pode ora não ter, com ele, nenhum objetos flutuam verdadeiramente. Mas a
vínculo de causalidade e ora, pelo contrário, criança fica, assim, em contradição com a
não ficar sem relação com suas condições experiência, quando disso deduz que “viu”
determinantes. A criança não deixa, na verda­ grandes pedaços de madeira desaparece­
de, de extrair, de sua experiência das coisas, rem sob a água. Manifestamente, falta unida­
certas intuições de adequação recíproca en­ de e coesão a suas representações, inclusi­
tre circunstâncias determinadas. Ela não deixa ve às que se relacionam ao mesmo objeto.
de ter discernimento concreto e prático. Con­ As pedras, por exemplo, conforme supor­
tudo, enquanto permanece face a simples tem, matem, parem , não podem ser
circunstâncias sem delas extrair séries, sem imaginadas em condições idênticas de posi­
coordená-ías em sistemas segundo um esque­ ção ou de movimento; tampouco supõem
matismo causai, não apenas elas permane­ uma ordem de posições cujas variações
cem puramente contingentes, mas podem previsíveis explicariam a diversidade dos
ser, sucessivamente, utilizadas de modo con­ efeitos. Â imagem ainda é como que um
traditório. reflexo dançante do objeto; ela não o fixa, na
seqüência de suas transformações possí­
N...é 6; “Se você andasse em cima da veis, sobre um fundo rigorosamente de­
água, você iria longe? - Eu me afogaria.-E os terminado. Provavelmente, pode parecer
barcos podem andar em cima da água? - que, a propósito da madeira e das pedras,
Podem, porque têm pedras no fu n d o . - Mas e essa criança utilize-se da dimensão, como
você, as pedras não lhe impediriam de ir para que de um meio para medir se elas podem
o fundo da água? - Não, elas me m atariam . - flutuar ou não. Mas, muito mais que de
E os barcos? - As pedras os atrapalham . - As uma escala, trata-se aí, ainda, apenas de
pedras não impedem os barcos de andar? - um contraste entre o grande e o pequeno,
Não. - E se você deixasse cair uma pedra na sem qualquer consideração sobre as dife­
água? -A água pula. - E a pedra? - Ela a funda. renças dos objetos ou das matéras entre si.
- Até onde ela vai? - Até o fu n d o . - Mas e os A noção permanece isolada e cmo que ab­
barcos, por que eles não afundam? - Porque soluta; fica sem contato com a experiência
têm pedronas.-E se você jogar um pedacinho que ela contradiz. A criança mostra, assim,
de madeira na água? - Ele anda. - Ele não sua incapacidade para conciliar suas ima­
afunda como a pedra? - Não. - Por quê? - gens concretas das coisas e suas noções
Porqueopedaçode m adeiraépequeno.-Ese abstratas de relações. O primeiro uso que
ele for grand c l-A funda. - Uma pedrinha bem ela faz destas está separado de toda reali­
pequenininha afunda? - Não. - Você ja tentou dade e é como que automático. A noção
afundar uma tábua grande? -fá. - Ela afundou? abstrata ainda lhe é tão pouco um meio de
- A fundou. - Não dava mais para vê-la? - Não. ordenar as coisa entre :i que lhe acontece,
- As barquinhas andam em cima da água? - freqüentemente, de inverter-lhes os pólos
Andam . -Elas afundam? - Não. - O que é que mais ou menos, como ela o faz cornos pa­
não as deixa fundar? - As pedras.” res, para explicar efeitos opostos.
382 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

H.-.oux 7; “O que é que vai para o fundo precisa de lugar para correr? - Não sei. - Se a
do mar? Uma pedra? - Vai. - Por quê? - P o rqu e gente colocasse a água da bacia num a tina,
ela n ã o s a b e n a d a r. - O que mais é que vai onde tem mais lugar, ela correria? - Não. - Por
para o fundo do mar? - Um seixo. - E um quê? - Não teria bastante lugar. - E se eu
pedaço de madeira? - N ão. - Por quê? - P o rq u e colocasse a água de uma bacia bem p e­
ele n a d a . - Como ele faz para nadar? - P o rqu e quenininha num a tina bem grande, ela cor­
é p e sa d o . - E uma pedrinha vai para o fundo reria? - É... não. - Por quê? - Porque é grande,
da água? - Vai. - É pesada? - N ão. - Por que ela grande. - Por que ela corre? - Porque ela é lisa.
vai para o fundo? - P o rq u e elas n ã o p o d e m - E quando a água da torneira cai na bacia, ela
n a d a r c o m o p e d a ç o s d e m a d e ira . - Por quê? corre? - Não. - E se ela continua a correr
- P o rq u e p e s a m a is p e sa d o . - Uma pedrinha sem pre na bacia, ela con e? - Corre. - Em que
pesa mais pesado que um graveto? - N ão. - hora ela começa a correr? - Q uando trans­
Então, por que o graveto não vai para o fundo borda. - Q uando ela transborda? - Q uando
da água e a pedrinha vai? - P o rq u e n ã o é d e tem água demais. - Por que ela corre quando
m a d e ira . - Por que é preciso ser de madeira transborda? - Porque passa p o r cim a das
para não ir para o fundo do mar? - P o rq u e a bordas. - E a água do Sena, por que ela corre?
m a d e ira n a d a m elh o r q u e a p e d r a . - Por que - Porque ela tem m uito lugar. - Se ela não
ela nada melhor? - P o rq u e é m a is p e s a d a . - tivesse lugar, ela não correria? - Não. - Se
Q uando é mais pesada, nada melhor? - N ão. estreitassem o Sena, ela não correria mais? -
- Então, por que a madeira, que é mais pesada, Não. - E se fizessem um a barragem no Sena,
nada melhor que a pedra? - P o rq u e a p e d r a é o que aconteceria? - Cairia. - O quê? - A
m a is pesada." barragem. - O que é que a faria cair?-A água.
- Como ela a faria cair? - Porque ela empurra."
É a experiência, aqui, que prevalece sobre
a noção abstrata: a madeira flutua e a pedra A experiência sensível que a criança tem
afunda. A criança não encontra nada melhor das coisas faz com que ela esboce diferentes
para explicar essa diferença a não ser a tau- explicações: a fluidez da água, que ela
tologia: a madeira flutua porque é de madeira qualifica de “lisa", provavelm ente por con­
e, não sendo de madeira, a pedra afunda. Se sonância com “desliza”; o impulso que ela é
ela procura ultrapassá-la, é a palavra “nadar” capaz de exercer para derrubar uma barragem
que lhe faz esboçar uma razão antropo- oposta ao seu curso. Mas ela não sabe
mórfica: “ela sabe nadar m elhor”.Mas quando coordenar essas noções e é sobretudo a de
tenta invocar o peso, ela se contradiz in­ espaço que ela invoca. É ora o lugar exíguo,
cessantemente, atribuindo, sucessivamente, ora o tam anho do recipiente que explica a
o peso mais pesado a um objeto, depois a estagnação da água. Por mais restrito ou vas­
outro, e nisso vendo, alternadam ente, um a to que ela imagine o espaço, ela nunca é
razão de flutuar e uma razão de afundar. apenas um certo espaço, um espaço fechado.
Mesmo quando se trata de noções tão Nunca é o espaço a ser preenchido, que se
primordiais na percepção e para a concei- acrescentaria, além dos espaços preenchi­
tualização quanto é o espaço - essa ordem dos, como um espaço virtual onde se pro­
que parece subtender todas as outras, efeitos longariam espaços limitados de suas re­
contrários podem ser atribuídos à mesma presentações particulares. Ela não sabe pro-
causa ou o mesm o efeito pode ser atribuído a jetá-lo, todos juntos, no espaço essencial, que
causas contrárias. ultrapassa-os todos, porque já é uma ordem
N...ot7; “A águacõrre sempre? - Sempre. do espírito.
- A água das bacias corre? - N ão. - Por quê? - Pode acontecer que a criança enuncie
P orque n ã o tem b a sta n te lugar. - Por que ela uma série de circunstâncias bem relacionadas
A C A U S A L ID A D E 383

com o efeito a ser explicado e que ela dé a ligado ao quadro total da representação ou
impressão de conhecer-lhes as condições: do processo em andamento, correndo mais o
resultado quer de práticas de que ela foi o risco de ser tomado em sentido contrário:
agente ou a testemunha, quer do ensino fragilidade das relações entre cada momento
recebido. Mas, por vezes, um detalhe dispare ou cada imagem do pensamento e a base
mostra que se trata muito mais de enumera­ através da qual devem se ligar à situação ima­
ção do que de compreensão. A noção de ginada ou às condições da realidade. Por esse
causalidade não é uma simples soma, supõe motivo também, embora por um mecanismo
um poder de coordenação entre os diferen­ um pouco diferente, podem produzir-se ou­
tes elementos da causa, e de referência, para tras inversões bem análogas.
cada um, com a ordem de fatores de que é a
expressão presente. H...oux 7; “Por que de dia fica claro? - É
o sol. - Por que de noite fica escuro? - Porque
N. ass luzes são apagadas. - Quais são as luzes
..ot 7; “O que são as flores? - São flo re
bon ita s. - De onde elas vêm? - N a terra. - que são apagadas de noite? - Das casas. - A
Como elas vêm da terra? - A g e n te f a z elas gente não acende luzes nas casas à noite? -
crescerem c o m sem en tes. - Como as flores Acende. - Então, por que fica escuro de noite?
podem crescer com sementes? - Q u a n d o tem - Porque não tem m ais sol."
á g u a . - Como é que, com água, pode fazer
essas sementes crescerem? - P o rq u e elas Aqui, é a oposição escuro-luzes que
p r e c is a m d e á g u a .” permanece como que cindida da repre­
sentação fundamental dia-noite, de modo
É através de uma simples tautología que que a criança começa afirmando a extinção
a criança explica a necessidade da água para de toda luz à noite, enquanto que, ao contrá­
o crescimento das plantas. Do mesmo modo, rio, é o momento em que são acesas. Seu
ela definira as flores através da simples pensamento procede ainda por imagens
repetição do nome delas, ornada pelo epíteto absolutas: assimilação de escuro e de noite,
“bonitas”, que lhes é comumente acrescen­ contraste de escuro e de luz. Assim sim­
tado. Ela está na fase da identificação entre a plificado e como que cegado pelas simples
pluralidade diferenciada dos objetos ou dos oposições nocionais, ele parece ignorar as
fatos, mas ainda não está na fase da colocação nuanças da obscuridade e o fato de que, sem
dos mesmos em série quer conceituai, quer esta, o uso de luzes artificiais seria inútil.
causai. Assim, não há nenhuma razão para Desse modo, a criança, quando tenta explicar
que termos fortuitos ou contrários não se a causalidade, substitui a experiência direta
insinuem na enumeração das causas. que disso tem pelo jogo puramente formal
das noções à sua disposição. Por vezes,
O. mesmo, são simples imagens ligadas a locu­
..al 7; “O que é preciso para que existam
flores?- Á g u a .- E o que mais?- Terra. - E o que ções correntes.
mais?... Como a gente faz para que apareçam
flores? - Frio... ven to.” P...C O 9; “Por que, de dia, a gente não vê
Provavelmente, é uma associação por a luz? -Para que, de noitinha, ela nos ilumine.
contraste que explica essa última resposta de - Mas, de dia, onde ela fica? - Deitada. - O que
aparência contraditória. Todo pensamento quer dizer “deitada”? - Dormir. - A lua dorme
em estado nascente parece ser acompanhado de dia? - Dorme. - Como ela faz para dormir?...
por seu contrário. Ele é ambivalente e recebe O quer quer dizer que ela dorme? - Para
o sinal m a is ou m en o s apenas do conjunto descansar. - Quando você dorme, o que é
onde se integra. Ainda está insuficientemente que você faz? - Eu descanso. - Como a gente
384 A S O R IG EN S D O PEN SA M EN TO N A C R IA N Ç A

vê que você está dormindo? - Eu fecho os adulto relaciona a causalidades de diferentes


olhos. - Quando a lua dorme, como ela faz? - tipos.
Ela não se m exe mais. - Ela faz como você? - P...er 8; “Se você joga uma rolha no Sena,
Não. - O que que não é igual? - Ela não tem ela se mexe? - Mexe. - Como ela se mexe? - Ela
olhos. - Como ela pode dormir? - Ela não se nada. - O que quer dizer nadar?... O que mais
mexe mais, ela não ilum ina mais. - Como ela é que nada? - Os homens. - Você nada? - Não.
pode fazer para não iluminar mais? - Ela se - E como a rolha pode nadar? - As ondas
apaga. - Como ela faz?... Ela mesma se apaga? empurram. - O que são as ondas?... Como é
- Não. - Como ela pode se apagar? - É Deus que têm ondas? - Q uando os barcospassam .
que apaga. - Como? - Eu estou pensando - Como équeos barcos andam sobre a água?...
num a coisa, m as não sei se é isso. - Diga. - Ele Por que eles não vão para o fundo? - Porque
sopra em cim a. - Assim como você sopra em os homens se afogariam. - Se não tivesse
cima de uma vela? - É. - Quando você apaga homens nos barcos, eles não iriam para o
uma vela, você diz que ela está dormindo? - fundo? - Não. - Como é que eles não vão para
Não, que ela está apagada. - Então a lua fica o fundo? - É a água que segura os barcos."
apagada? - Fica. - Ela pode dormir? - Pode...
não. - Não sei, eu... Ela pode dormir ou não? São sucessivamente invocados o mo­
- Ela pode dormir. - Então ela dorme ou é vimento autônomo da rolha, o movimento
Deus que sopra em cima? - Ela dorme.” transmitido da onda para a rolha e dos barcos
para a onda, a finalidade para explicar que os
As duas palavras “dormir” e “apagar-se”, barcos não afundam e o peso da água pa­
aplicadas à lua para explicar que, de dia, ela ra explicar que eles flutuam. Na verdade, é
cessa de iluminar, ocasionam, cada uma, ima­ preciso ver muito mais uma simples cons­
gens que parecem, para a criança, não poder tatação nessas duas últimas respostas: a água
se conciliar e entre as quais ela deve, final­ suporta os barcos, as pessoas que neles em­
mente, escolher. A própria alternativa pela barcam não são por ela tragadas. É como uma
qual ela se decidiu não deixou, aliás, de sus­ definição do barco, feito para navegar com
citar uma contradição: se a criança dorme, isso passageiros. Fato, adequação, objetivo ainda
ocorre porque ela fecha os olhos; mas a lua não estão bem delimitados. Contudo, é para
não tem olhos, seu sono é apenas imobilidade o lado da intenção que parece pender o ar­
e perda de luz. Deve-se notar que a criança gumento, ainda que, nas primeiras respostas,
não identifica ver e iluminar, confusão fre­ misturem-se a mecânica e a espontaneidade.
qüente nas crianças mais novas e que pode­ A confusão das causas é, de fato, muito grande
ria, aqui, conciliar as duas explicações. Seu na criança e é vista, por vezes, em sua maneira
antropomorfismo providencialista, que ela de confundir os termos recebidos do adulto
hesitava em formular e que abandona, deve para deles falar.
ter-lhe parecido uma explicação pueril de­
mais. Em sua incerteza, as razões que ela A. A...dre 6; disse que o vento produz de
apresenta são polimorfas; ora de forma fina­ propósito o frio. “Por quê? - Para fa z e r frio...
lista “para iluminar”, “para descansar”; e ora porque para fic a r doente.”
artificialista, a lua é apagada como uma vela
cuja chama é soprada. A primeira resposta é a simples repetição
do fato a ser explicado sob uma fórmula de
CAUSALIDADE POLIMORFA finalidade. A segunda aglutina “porque” e
'f t “para”, as fórmulas de causalidade e de fi­
Ao longo de uma mesma explicação, é nalidade.
freqüente encontrar, na criança, razões que o Justificar o fato como se ele fosse seu
A C A U S A L ID A D E 385

próprio objetivo é, evidentemente, apenas gradualmente, os objetos lógica ou experi­


acrescentar-lhe sua sombra na tela .da mentalmente mais heteróclitos. Pela mesma
causalidade. Mas também é melhor identificá- razão, ela pode, a propósito do mesmo objeto
lo. No campo da causalidade, assim como ou do mesmo fato, invocar as séries mais
fora dele, a criança oscila, perpetuamente, díspares.
entre a necessidade de delimitar, de estabilizar V...1 “O que que é o vento? - É um a
o objeto de seu pensamento e de definir-lhe árvore. - Como o vento é uma árvore? - Tem
as relações com aquilo que não é ele. Seu um a árvore e tambémgalhinhos, asfolhinhas
ponto de partida é uma etapa que precede crescem e depois isso fa z vento. - Se não
esses processos inversos, mas solidários. tivesse uma árvore não teria vento? - Não...
Circunscrever um objeto, um fato, entre a são as árvores que fa zem o vento. - Eu posso
dupla corrente das impressões e das reações fazer vento? - Pode. - Como? - Vocêprecisa por
que ele suscita, é uma operação que exige um árvores também. - E isto (agitamos um cader­
duplo trabalho de exclusão. Ela só se toma no)? - Bom, sãofolhas que a gente mexe para
possível através da intuição simultânea da fa z e r vento. - E isto (sopramos)? - É vento. - De
coisa e de suas relações, enfim separadas do onde ele vem? - Ele vem das árvores. - Não
enredamento inicial delas. Mas os primeiros têm árvores aqui. - Mas têm árvores no Bois.
termos que a criança sabe utilizar estão longe - Sopre você... De onde vem esse vento? -
de poder distinguir entre o objeto idêntico a Vem do ventre. - Como é que tem vento no
si mesmo e o que lhe é ligado de uma manei­ ventre? - Porquefa z sangue. - O que que é o
ra qualquer, quer pela semelhança, quer no sangue? - Sangue ê no ventre. Ê cerveja que
tempo, no espaço, por um vínculo de exis­ fa z o sangue...”
tência ou de eficiência. A identidade corre o
risco, a todo instante, de ser rompida por A associação usual vento-árvore inicial­
associações que não assinalam relações, que mente se mantém, mesmo a propósito do ar
traduzem apenas a estrutura, ainda inteira­ expirado, e com o risco de invocar, a despeito
mente elementar, de noções em seus pri- da distância, as árvores do Bois de Boulogne,
mórdios. Depois, bruscamente, tendo a própria crian­
ça soprado, são as associações vento-ventre e
J...ot 8; “O que é o vento? - É calor. - vento-sangue, onde, sem dúvida, a assonan-
Como você sabe? - Porque a gente sente frio. cia desempenha seu papel, que substituem a
- A gente sente frio quando tem vento? - К - primeira. Então, não se trata mais de floresta,
Como é que é o calor? - Porque ele vem dos mas de metamorfose entre o vento, o sangue,
lugaresfrios. - Por que você disse calor, se ele a cerveja, que, mais adiante, dará lugar ao
vem dos lugares frios? - Ê calor frio. - O que vinho, como de cor mais semelhante ao
é o calor? - Éfogo.” sangue.

Seria, seguramente, arriscado querer OS PARES E A CAUSALIDADE


interpretar essas respostas à luz de um siste­
ma físico ou metafísico de explicação. Os Tais encadeamentos podem prosseguir,
termos enunciados impõem-se sucessiva­ quer divergindo completamente do proble­
mente à criança como os de pares que repre­ ma causai, quer rodeando-o, mas sem chegar
sentam a alternativa através do qual uma à estrita redução mútua dos elementos no-
noção assume, inicialmente, existência em cionais e dos objetos a serem explicados.
seu espírito: vento-frio, frio-calor, donde a
combinação calor frio, embora o calor seja M...ez 6; “O que é o vento? - Vento
fogo. Desse modo, a criança pode encadear, (suspiro), evento, é vento... que f a z as árvores
■’I

386 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

se mexerem. - E o que é que faz o vento se Assim, a imagem real das coisas, embora
mexer? - O céu. - O céu se mexe? - Não. - familiar à criança, pode sermomentaneamen-
Como o céu faz o vento se mexer? - Não sei. te alterada pelo jogo das estruturas elemen­
- Pense. - Porquefa z frio . - É o frio que faz o tares com a ajuda das quais se inicia a análise,
vento (sinal de assentimento), ou o vento a apreensão delas pelo espírito. Devido à sua
que faz o frio? - É o vento. - É o vento que ligação habitual e como que essencial com o
faz frio? - É. - O que é que faz o vento então? vento, o frio o substitui, e os efeitos respecti­
- Precisa teros m ãosfrias. - Como é que pode vos deles, as ondas, o gelo, parecem ser,
ter vento? - Éporque chove. - Nunca tem ven­ inicialmente, confundidos. É necessária a
to quando não chove? - Tem, é no inverno. - reminiscência de todas as ações que o gelo
Quando chove, como é que tem vento? - permite e que as ondas não permitem para
Não sei.” que eles sejam, enfim, explicitamente distin­
guidos entre si. A identidade qualitativa ou
Os pares usuais vento-árvore, vento-frio, específica de cada coisa corre o risco, a todo
vento-chuva, vento-invemo substituem-se instante, de ser comprometida por intermédio
sucessivamente entre si, sem nunca serem de termos que são comuns a pares divergen­
reduzidos a relações mútuas. Quando muito, tes. A unidade, a identidade só são assegura­
a criança dá, de maneira bem decidida, a das no próprio par. Mas então, nada pode
anterioridade ao vento sobre o frio. Mas a impedir a causalidade de ser reversível nesse
tendência a inverter indiferentemente a or­ grupo isolado. Ora cada um dos dois termos
dem dos termos, que se observa freqüente­ é dado, alternadamente, como a causa do
mente na fase do pensamento binário, é outro (causalidade circular) e ora acontece, à
encontrada novamente quando, em vez de criança, de se enganar sobre a dependência
dar a causa do vento, a criança enuncia um real deles ( substituição mútua da causa e do
de seus efeitos, a impressão subjetiva de frio efeito).
nas mãos. Outra conseqüência dos pares,
igualmente freqüente: o termo comum a dois M...ez 6; “Os barcos no Sena andam? - É
pares faz com que sejam associados os outros com a água que os empurra. - O que é que faz
dois termos, embora díspares ou incom­ a água que os empurra andar? - Papéis. -
patíveis. Como os papéis fazem a água andar? - Não
sei... ê a água q u e fa z eles andarem . - Quem
N...et 8; 1/2 “Como é que, às vezes, têm faz a água andar? - Papéis e tam bém barcos. -
ondas? - Porque é a tempestada, a tempestade Quem faz os papéis e os barcos andarem? - O
começa. - O que é a tempestade? - A tempes­ vento, com velas.”
tade é quando fa z fr io . Então a água gela...
issofa z ondas. - Quando a água gela, o que é Após ter, alternadamente, atribuído à
que isso dá? - Primeiro aparecem pedacinhos água e aos corpos flutuantes a causa de seus
de gelo, depois aparece um a grande poça. - movimentos respectivos, a criança acaba rom­
Quando tem muitos pedacinhos de gelo na pendo o círculo, invocando o vento e as velas
água, o que é que isso dá? - Uma grande dos barcos. A razão dessas inversões aparece
p ra ia ... (É apenas após um longo rodeio, em de maneira clara em outros exemplos, em
que a criança falou de andar e de deslizar que o pensamento parece menos elaborado.
sobre o gelo, que ela reconhece a exclusão D...et 6; “É o vento que faz as ondas, ou
necessária das ondas pelo gelo). Por que a as ondas que fazem o vento? - (Após um a
gente pode andar errt cima do gelo e não em longa reflexão.) São as ondas que fa ze m o
cima da água? - Porque o gelo é dum . - vento. - Como elas fazem? - Q uando fa z
Quando tem gelo, pode ter ondas? - N ã o ” tempestades, fa z vento tam bém .”
A C A U S A L ID A D E 387

INVERSÃO CAUSAL: nos esgotos e o agrupam ento da lua e de um


CAUSALIDADE CIRCULAR lago, que evoca, ao m esm o tem po, a lua
difundindo sua luz em extensões imóveis no
É a sim ultaneidade que domina o espí­ céu e a lua mirando-se em um a água tranqüila.
rito da criança. A atribuição da causa a um ou Essa estabilização das imagens, simples­
outro dos term os que formam um mesmo m ente justapostas, extingue a causalidade,
conjunto pode perm anecer indecisa. A esco­ ou melhor, parece ser anterior a ela. Em
lha é secundária. Ela é, freqüentem ente, seguida, vem a oscilação da causa entre os
imposta pelas circunstâncias do momento, termos presentes.
pela própria pergunta. Mas a transferência de
causalidade tam bém pode ser espontânea. P...y 6; “O Sena se mexe? - Mexe. - O que
é que o faz se mexer? - São os barcos. - E o que
C... in 6; 1/2 enum era objetos pesados. “ O é que faz os barcos se mexerem? - É a á gu a.
assoalho. - Como você sabe que o assaolho é - O que é que faz a água se mexer? - Os barcos.
pesado? - P o rq u e a g e n te a n d a em cim a . Ele - É a água que faz os barcos se mexerem, ou
n ã o qu eb ra ; e m esm o co m p eso s q u e a g en te os barcos que fazem a água se mexer? - É a
jo g a em cim a , ele n ã o qu eb ra . Tem terra em á g u a . - Então, o que é que faz a água se
cim a; têm tijo lo s ” mexer? - São os barcos."

A inversão, aqui, resulta da confusão Essa inversão alternativa da causalidade,


entre o peso e a resistência ao peso; poder-se- com freqüência, não parece, absolutamente,
ia dizer, com o em muitos exem plos pre­ desconcertar a criança. Q uando se faz sentir
cedentes, entre o passivo e o ativo, se, pre­ a necessidade de quebrar esse círculo estreito
cisam ente nesse caso, a ação não estivesse, demais, ela se esforça para inventar uma
ao m esm o tem po, no que pressiona e no que causa estranha a cada um dos dois term os e
suporta. A am bigüidade é tão completa que para sobrepô-la, mas não evita, inicialmente,
parece refletir-se até na ordem dos suportes, o fato de recair na simples ação circular.
que é invertida: é em cima e não embaixo do
assoalho que a criança coloca a terra e os J...ot 8; “O vento se mexe? - M exe. -
tijolos. - Entre as relações locais e as de Como? - Pelo ou tro q u e o em p u rra . - E o outro,
causalidade, a contam inação é, por vezes, o que é que o empurra? - Outro, q u e o e m ­
completa. A criança limita-se, com freqüên­ p u r r a p o r trás. - Mas e o primeiro, o que é que
cia, a justapô-las. o empurra? - É o ven to q u e está a trá s q u e o
em pu rra. - Mas aquele que o em purra por
H...art 5; “De onde vem a chuva? - É trás, quem o empurra? - É a á g u a . - É a água
p o r q u e têm goteira s. - Como? - É p o rq u e elas que em purra o vento? - É. - Como ela pode
têm á g u a . - Quem? - É a lua. - De onde a fazer isso? - Q u a n d o o fr io está baixo, q u a n d o
chuva vem? Da lua? - Bom , ela vem d a lu a. - o ven to está baixo. - É a água que em purra o
Tem lua todas as noites? - Tem. - Quando vento quando ele está baixo? - É. - Como a
chove a gente vê a lua? - Ah, n ão!A g e n te n ão água pode em purrar o vento? - P o rq u e a á g u a
vê. - Como a lua faz a chuva? - A g e n te tem a corre. - Q uando a água corre, ela pode em­
á g u a q u e c a i d o s esgotos, a lu a tem u m lago.” purrar o vento? - P ode. - Q uando o vento fica
alto? - Ele n ã o se m exe. - E com o a água cor­
Após ter sido tentada a explicar a chuva re? - Pelo vento, á s vezes, q u e em p u rra . - Mas
pela água que cai das goteiras e depois pela quem em purra o vento? - Ele em p u rra a
presença da lua no céu, a criança, limita-se a á gu a. - É a água que em purra o vento ou o
colocar lado a lado a água que cai das goteiras vento que em purra a água? - Às vezes, é a
388 A S O R IG EN S D O PEN SA M EN TO N A C R IA N Ç A

á g u a q u e em p u rra o ven to. - Q uando é a água primitiva cuasalidade derivada do par. Ela já
que empurra o vento, o que é que empurra a é um certo grau de sistematização conseqüen­
água? - São os barcos. - São os barcos que fa­ te. Entre os dois termos de cada par, as re­
zem a água se mexer? - São. - E quem empurra lações podem permanecer incertas ou serem
os barcos? - Eles têm um motor. - Se não invertidas em favor do termo perceptivamen­
tivesse barcos, a água não se mexeria? - Não.” te mais bem delimitado, mais concreto ou
mais imediatamente ao alcance do sujeito.
A causalidade circular é, aqui, menos
segura de si. A alternância não é mais regular, K...vé 6; “O que é a noite? - É quando fic a
mas contingente, e antes de invocá-la, a cri­ escuro. - Como é que fica escuro? - Éporque
ança procura explicar o movimento do vento têm estrelas. - O que que são as estrelas? - É
através do próprio vento, não, aliás, através branco. - Mas o que é? - Não sei. - Como as
de um movimento autônomo do vento, mas estrelas fazem a noite? - Porque elas vêm. -
pelo impulso de um outro vento. Contudo, Como elas fazem a noite se são brancas? -
uma regressão indefinida era o único resul­ Q uando fic a bem de noite, elas vão embora.”
tado possível do mecanismo atribuído ao
idêntico, pelo simples meio da pluralidade. E O aparecimento das estrelas com a noite
é procurando uma causa exterior ao vento faz com que a vinda desta seja a elas atribuída.
que a criança recaiu no círculo da água que Indício e causa ainda estão, aqui, mais ou
faz o vento se mexer e do vento que faz a água menos confundidos.
se mexer. Mas, como já está na fase da ação
mecânica, o que passa para o primeiro plano N...et 6;l/2 “De onde vem a chuva? - É
é, inicialmente, o impulso do vento pelo ven­ quando as gotinhas saltam nas poças de
to, depois o atrito da água contra o vento, água e depois elassaltam para cim a no céu...
quando ele é baixo e, enfim, o recuo da água - De onde vem a água das poças? - Ela vem da
pelos barcos. água suja. M eu irmão está sempre sujo;
Antes da ação mecânica, outras influên­ quando ele vê que está chovendo, ele põe a
cias já podem contrabalançar a simples boca assim e bebe. - A água da chuva é suja?
causalidade circular. - É. - De onde vem a água suja? - Vem das
casas, quando a g e n tefa z abre a torneira...
C...in M. 7; “Como os barcos se mexem? - E a água da torneira, de onde ela vem? - É
- Porque têm o n d a s. - O que é que faz as água suja. - Antes de estar na torneira, onde
ondas? - Os barcos. - O que faz os barcos se ela estava? - Ela fic a no pátio, porque está
mexerem? - Ê o vento. - E o vento, o que é? - cheio de água nopátio. - E a água do pátio, de
ÉDeus que fa z. - Como Deus faz o vento? - Ele onde ela vem? - Ela vem de quando chove. -
sopra. - Como ele pode soprar? - Com um a De onde vem a água da chuva? - É quando os
bomba. - Uma bomba grande? - Grande as­ m enininhos quepulam naspoçasd’âgua. - E
sim (35cm ).” a água da poça, de onde ela vem 1-É água que
tem nos pátios.”
Aqui é o instrumentalismo, sob as espé­
cies da divindade, que rompe o círculo entre Com uma certa confusão, aqui, ainda
a onda e os barcos, por intermédio do vento, temos a causalidade invertida ou a causali­
pois a criança já percebe que um sistema de dade circular. É das poças deixadas pela
ação recíproca não pode explicar o movimen­ chuva que viria a água da chuva, é do pátio
to, a menos que e la p o suponha ou receba- onde parece que ela está espalhada que vem
o de fora. a água da torneira: relações invertidas. Mas,
A forma circular não é, aliás, a mais por outro lado, a água do pátio vem da chuva:
A C A U S A L ID A D E 389

relações circulares. A criança parece esboçar ele vem? - Do céu. - Ele sempre vem do céu?
um ciclo da água e sentir a necessidade de - Vem. - Você não poderia fazer vento? - Não.
acrescentar, à pura alternância dos termos, - E eu? - Não, porque as pessoas não têm
uma ação, um dispêndio de energia. Mas não bastante fôlego. Só Deus tem. - E isto? (sopra­
é na evaporação que ela pensa, e sim nos mos). - Д m as não tem bastante. - E isto?
salpicos da água sob os pés das crianças: (agitamos uma folha de papel). - Não, não
antropomorfismo substituindo a causalidade tem bastante. - Nós dois juntos não podería­
física. O ciclo conserva, aliás, algo de unilate­ mos? - Não, p re c isa ria to d a s a s p e sso a s d e
ral: a água da chuva é suja porque a criança todos os países para fa z e r um a tempestade."
imagina-a essencialmente como a água das
poças; é das poças que a água partiu antes de O tema desse diálogo relativo à causa do
a elas retomar. A criança permanece domi­ vento é perfeitamente compreendido pela
nada por suas representações mais familia­ criança. Contudo, suas respostas são, várias
res, mais concretas, mais particulares. vezes, de contorno. Elas são, por vezes, sim­
plesmente descritivas: “o vento faz vú ú ú ”.
TIPOS COMBINADOS Em vez da causa, dão o efeito: “ele faz os
DE CAUSALIDADE barquinhos afundarem”. Invertem a ordem:
há vento “porque as ondas saltam no ar”.
No bloco sincrético onde se misturam as Consideram a questão de origem como uma
primeiras ações da criança, as palhetas de questão de lugar, aliás, com erro na direção:
causalidade que podem ser aí encontradas a “de onde”, a criança replica “onde ele es­
não são de um tipo uniforme. Freqüentemen­ tava?”. Desse modo, as relações apresentam
te, elas justapõem, no mesmo sujeito e no uma espécie de ambivalência, ao mesmo
mesmomomento, respostas relacionadas com tempo em que ainda são mal diferenciadas
formas diferentes de explicação. umas das outras. Causalidade e sincronismo
confundem-se: “quando tem tempestadade”.
C...in “O que é o vento?... Como ele Contudo, a causalidade aparece de maneira
sopra? - S ã o as á rvores que fa ze m ele se mais explícita sob forma de movimento co­
mexer. - Têm árvores no mar? - N ão. - Tem municado: “as árvores fazem o vento se me­
vento no mar? - Tem, às vezes, quando tem xer”. Mas essa indicação de causalidade
um a tem pestade. - Como é que tem vento? - mecânica dá lugar à explicação providen-
E lefa zvú :..ú ...ú . - Mas o que é que faz com cialista através de Deus, que sopra prara
que tenha vento? - Elefa z os barquinhos que produzir faíscas na ponta de um bastão,
têm no m ar afundarem . - Como é que tem contaminação evidente de lembranças fami­
vento no mar? - Porque as ondas saltam no liares ou marcantes, e também dá lugar à
ar. - São as ondas que fazem o vento? - Não. explicação antropomórfica, pois a criança
- Então, como é que tem vento? - Porque no parece, finalmente, admitir que haveria tem­
c é u fa z m exere depois a gente não vê. - O que pestade se todos os homens pudessem so­
é que faz mexer no céu? - É Deus. - E o que é prar juntos.
que Deus faz mexer? - Faíscas na ponta de
um bastão. - O que é que faíscas na ponta de É...ard 7; “O que é o trovão? - Éfogo... É
um bastão podem fazer? - Ele sopra em cima para queimar. - De onde vem esse fogo?... A
para fa z e r faíscas no bastão. - O que é que gente pode fazê-lo com carvão? - Tem Deus,
faz o vento? - VÚ...Ú...Ú.- Mas quem é que faz que pode fa z e r trovão. - Como Deus pode
o vento? - É Deus. - Quem é Deus? - É um fazer o trovão? - Ele d iz para a fu m a ça para
homem que está no céu... - De onde vem o ela subir no céu, antes de ela ir queim ar na
vento? - Onde que ele estava? - Não, de onde casa do diabo; e depois ela sobe no céu e isso
390 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

dá o trovão. Eu sei como a lua se acende. - - Como você sabe? - É porquefoi o papai que
Como?- Ela se acende pelo céu. Senão tivesse me disse. - Como a lua faz o bom tempo? - É
céu, ela não se acenderia. Mas. ..E u sei como porque ela tem um a lâm pada elétrica. Então
tudo se acende, o sol, a lu a , as nuvens... Vem ela não deixa chover; então não tem água. -
d m lugares quentes.” Como uma lâmpada elétrica não deixa cho­
ver? - Porque não tem água.- Por que não tem
O tipo de causalidade aqui dominante é água quando tem uma lâmpada elétrica? - Ê
o mito, mas amalgamado a origens locais: o porque a lâm pada fic a acesa. - As nossa
céu, os lugares quentes. lâmpadas elétricas não deixam chover? - É
Presa entre seu conhecimento prático porque não tem bastante água lá em cim a. -
das coisas que estão ao seu alcance e a obri­ Como? Não tem bastante água lá em cima? - É
gação de enunciar uma causa para realidades porque a torneira não está aberta... Eles
que ultrapassam em muito a escala delas, a fecharam a torneira. - O que é essa água de
criança dispõe do ser providencial cujo po­ que você está falando? - É a água da chuva.
der basta para tudo, que não tem necessidade - De onde vem a chuva? - É porque têm
de ele mesmo ser explicado e onde a re­ goleiras. - O quê? - Éporque eles têm água. -
gressão de causa em causa pode parar. Mas a Quem? - É a lua.”
criança só sabe imaginar essa resposta, que a
tradição e o vocabulário lhe oferecem, segun­ Nessa criança ainda pequena, o agente
do suas próprias experiências usuais. O pro- providencial, invocado inicialmente para
videncialismo da criança é sempre apenas explicar o bom tempo, é seguido, por simples
antropomorfismo e artificialismo. justaposição, pela lua, provavelmente dada
como ocupando também o céu. Segue um
H...art 6;11 “Por que faz bom tempo? - dispositivo ártificialista, cujos detalhes acres­
Porque não tem água. - O que é que tem? - centam-se entre si e ajustam-se à lua de modo
Tem bom tempo. - Por quê? - Porque Deus não incoerente, por duas razões que não ficam,
quer fa z e r m au tempo. - O que é que faz o aliás, sem relação entre si: o sincretismo do
bom tempo? - ÉD eus. - Você acha? - É a lua. pensamento e suas ligações em pares. Enre­
- Como ela faz? - Ela tem um a lâm pada. - dadas nessas formas ao mesmo tempo difu­
Como? Ela tem uma lâmpada? - Com um fio . sas e fragmentárias, as relações de causali­
- Onde está essa lâmpada? - Do lado de fora. dade permanecem dissociadas e de sentido
- Mas onde? - N um esconderijo. - Onde? - incerto. A seqüência das réplicas só pode ser
Perto da porta. - Que porta? - A porta da lua. explicada através de uma passagem de termo
- Como? Ela tem uma porta? - Ela abre como a termo, com o conjunto que disso resulta
a porta da m inha casa. - Por que a lua tem oferecendo apenas uma acumulação de tra­
uma porta? - Para sair. - O que que é a lua? - ços díspares. De associações em associações,
É um troço que é redondo como um “crois­ é difícil reconhecer se a lua é pura e simples­
sa n t”O - -Um “croissant” é redondo? - Não é mente assimilada a uma lâmpada, a quem
ínteirinho redondo. Elefa z assim n .(descreve manipula a lâmpada, a uma habitação fecha­
um com um gesto). A lua é redonda ou é um da por uma porta. A esse tema da lua, que
“croissant”? - A lua fa z assim: n - Você disse deve expressar o fator claridade do bom
que a lua tem uma porta para sair, o que é que tempo, junta-se o tema da água, que oca­
sai? - As pessoas. - Têm pessoas na lua? - Têm. siona, por suas vez, as goteiras e a torneira. A
ligação entre os dois temas fica ambígua:
yT
()N .T .: Em francês, “croissant” significa tanto a fase da
simples contraste ou alternativa no início,
lua crescente quanto o pãozinho que recebeu esse depois subordinação, parece, da água à lua.
nom e justam ente por ter a forma d e uma lua crescente. Mas isso é, provavelmente, tornar explícitas
A C A U S A L ID A D E 391

demais relações que parecem permanecer A dissociação ainda é grande aqui. En­
misturadas. Na resposta, onde uma mesma tre o sol e a claridade do dia, o vínculo não
enumeração aproxima todas as imagens que está estabelecido. A primeira explicação do
a lua - causa do bom tempo - evoca (a lâmpada dia é finalista. Depois intervém, comple-
elétrica, a ausência de chuva, a pouca quan­ mentarmente, o Menino Jesus e seu instru­
tidade de água), a ordem das causas e suas mento, a luz, ambos invisíveis. O Menino
conseqüências poderiam muito bem ser in­ Jesus transforma-se, aliás, em Papai Noel,
vertidas. Será a lâmpada que impede que provavelmente por intermédio dos brin­
chova? Não será muito mais a chuva que quedos que, por tradição, cabe a eles dis­
intercepta a claridade propagada pela lua? tribuir. Do mesmo modo, provavelmente,
Quando não chove, será que isso ocorre por­ o dia fora atribuído ao Menino Jesus, por­
que não há água ou não há água porque não que o céu seria sua morada habitual. O
chove? A exata dependência dos terme» esca­ providencialismo é, com freqüência, de fa­
pa à criança; ela ainda apenas sente a conexi- to, uma combinação do lugar e do instru­
dade dos mesmos. É a fase em que traços, mento.
mesmo incompatíveis entre si, podem ser
reunidos, desde que tenham uma referência P...ot 6; “Como é que fica de dia? - ÉDeus
comum. A lua, ora crescente e ora círculo, “é que fa z isso. - E a noite? - É Deus que fa z isso
redonda como um “croissant”. Sobreposição também. - Como ele faz o dia? - É um a lu z que
de formas que lembra os desenhos heterogê­ ele acende. - Como? - É um a luz, ele deixa o
neos onde a criança risca um perfil nele dia todo, e de noitinha ele apaga. - E a noite,
colocando os dois olhos e uma boca de fren­ como ele a faz? - Ele apaga a luz."
te. Incapacidade para organizar, escolher, G. B...et 8; “O que é o sol? - Ê algum a
eliminar. É de uma maneira muito semelhan­ coisa que brilha. Ê Deus que fa z . - Como
te que os fatores pressentidos da causalidade Deus faz o sol? - Com fogo. - Como ele faz esse
e os diferentes tipos de causalidade começam fogo? - Com madeira, papéis, às vezes.”
a surgir lado a lado sem ligação e, freqüente­
mente mesmo, impossíveis de conciliar. A transposição dos meios humanos para
as mãos do Ser Celeste não poderia ser mais
PROVIDENCIALISMO-ARTIFICIALISMO explícita nem mais concreta. Ela termina,
contudo, numa partícula de dúvida: “às ve­
Em certos casos, contudo, a fusão se faz zes”. O sentimento de inverossimilhança, que
por si só; ela é necessária. Se o providencia- a resposta da criança parece dar à mesma,
lismo cessa de ser puramente verbal, deve fazem-na reduzir sua explicação a uma sim­
transformar-se em antropomorfismo ou arti- ples eventualidade, talvez rara.
ficialismo. É a projeção na escala das reali­ A chuva também, vindo do céu, dá fre­
dades cósmicas ou no espaço celeste. qüentemente lugar à explicação combinada
providencialismo-artificialismo.
M...rès; “O que é o sol? - Sol. - Onde está N...é 6; “O que é a chuva? - Água? - De
o sol? - No céu. - O sol é grande? - Como um a onde ela vem? - Do céu. - Como é que tem
casa. - O que é o sol? - Não sei. - Por que ele água no céu? - É Deus que fa z ela correr. -
clareia? - Para ir trabalhar. - Como é que ele Quando já choveu muito, ainda tem água no
clareia? - É o M enino Jesus. - Como é que ele céu? - Não... - Onde ele pegou a água para pô-
faz para clarear? - Com um a luz. - Você já viu la no céu? - Ele pegou em torneiras. - Onde
essa luz? - A gente não vê o M enino Jesus. - estão essas torneiras?... Quem fez essas tor­
Mas a luz a gente vê? - Não. - Então como éque neiras? - Deus. - Onde ele pegou a água das
ela clareia? - É o Papai Noel.” torneiras? - No Sena. - Mas de onde vem a
392 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

água do Sena? - Da floresta. - E a água da em digressões, a criança não pode apreender


floresta? - Do céu." as desproporções de um detalhe com o con­
junto: é o que ocorre com a abundância da
No ciclo que faz a água do céu passar chuva e a exigüidade do recipiente, o volume
para a terra e vice-versa, a força agente parece da chuva e o fato de ser colocada em gotas.
ser Deus. Ele é aí introduzido pelo céu, mas a Essa fragmentação das imagens toma bem
terra introduz os canos e o Sena. Providen- mais aparente a espécie de decalque que se
cialismo e artificialismo unem-se para unir o opera das coisas usuais, bem conhecidas da
céu e a terra. criança, sobre as que não estão ao seu al­
D...in “Quando o céu flca negro?- Chove. cance, e também a mistura heteróclita que
- Quando chove a gente pode ver o céu? - disso resulta.
Pode, o M eninoJesusfa z a água cair. - Como O vento também, que parece preencher
ele faz a água cair? - Ele está am arrado. - o espaço e vir do céu, dá freqüentemente
Como o Menino Jesus a faz cair? - Gotas. - lugar a explicações semi-providencialistas,
Onde ele pega a água para fazê-la cair? - No semi-artificial istas.
Sena. - Vocéoviu pegar a água? - M o. - Então,
como você sabe? - Está num livro. - Como ele D...al 7; 1/2 “O que é que faz as ondas? -
faz para pegar a água do Sena? - Com um a Équando tem m uito vento. - É o vento que faz
cordona. - Como ele pode fazer isso? - Ele v a i as ondas? -É.- Como ele faz? - É soprando em
comprá-la. - Mas onde? - No bazar. - Você já cima, como se a gente soprasse num bocal,
viu pegarem água com uma corda? - Já, com isso respingaría. -Como é que o vento sopra?
um cordame. - Você viu pegarem água com - Porque é Deus que o f a z soprar. - Como
uma corda? - Ela f i c a am arrada com um Deus pode fazê-lo soprar? - Não sei. - Pense
balde. - É grande o balde do Menino Jesus? - bem. - Porque têm m áquinas para fa z e r ele
Não, épequeno. -Mostre com as mãos de'que soprar. - Onde estão essas máquinas? - No
tamanho ele é... Ele não é muito grande céu. - Quem viu essas máquinas? - Porque tem
então? - Ele p u xa . - Mas e quando tem muita um a hélice para fa z e r ele soprar. - Quem viu
chuva? - Ele entra na casa dele, ele fic a no essas máquinas? - Ninguém... Papai Noel. -
céu. - Como a chuva pode cair em gotas? - ele Então, como você sabe? -Foram os m euspais
pega só um pouquinho, só um pouquinho. - que me disseram que viram isso na história
Mas então? - Não fa z bom tempo. - Por que o da França, que têm m áquinas para fa z e r o
Menino Jesus faz isso? - Ele gosta. - E você? - ven to ”
Não. - Então ele não é bonzinho? - Não, não
é bonzinho.” Após ter explicado as ondas pela justa
comparação da água em um bocal por onde
A descontinuidade do pensamento, pró­ se sopra, o próprio vento é explicado por
pria dessa idade, é marcada, aqui, por uma Deus, provavelmente para colocá-lo na es­
sucessão de pares. As associações elemen­ cala da imensidão onde ele parece difundir-
tares ficam visíveis. É o céu que atrai Menino se, mas certamente também devido à sua
Jesus, assim como, em seguida, “cair” acar­ origem celeste. Contudo, é finalmente a
reta “amarrado”, que não tem grande sentido, máquina e a hélices, conforme o modelo da
a menos que se suponha que o Menino Jesus indústria humana, que é atribuída sua ori­
mantenha sobre si toda a atenção, em detri­ gem. O providencialismo funde-se no artifi­
mento da chuva. A “saber” corresponde cial ismo; ele é, na realidade, apenas sua trans­
“livro”; a “comprar”, “bazar”; a “Menino” Je­ posição celeste. É inútil fazer com que seja
sus, balde “pequeno”; a chuva, entrar em constatada a confusão feita entre o céu mete­
casa. Incessantemente a ponto de incorrer orológico ou estelar e o céu místico.
A CAUSALIDADE 393

FINALISMO B...otte 7; “O que que é a lua? - Para


clarear. - Você não tinha me dito que a lua faz
A explicação finalista também é muito escuro?... Ela clareia ou faz escuro? - Ela fa z
freqüente. claro."

A. A...dre 6; “Mas por que os homens Após o par contraste-identidade lua =


fazem a noite? - Para fic a r de noite. - Por que escuro vem o par perceptivo lua == claro. O
é preciso ficar de noite? - P ara dormir!’ mecanismo da resposta de forma finalista é,
aqui, muito nítido.
As duas respostas são de forma finalista:
a primeira, simples tautología; a segunda H...in 6; 1/2 “A gente está vendo o sol
explica a noite por seu uso. agora? - Está. - Está claro? - Está. - Como isso
acontece? - Porquefica de dia. - Por que fica
R. G...el 7; “O que quer dizer “fica de claro quando fica de dia? - Para nos clarear."
noite”? - Não sei. - Sabe, você sabe sim. - Ê a
noitinha. - O que é a noitinha? - Fica escum. A resposta finalista está, aqui, bem pró­
- Por que fica escuro? - Porque a gente vai xima da tautología: é a substituição alternada
para a cam a. - Se a gente não fosse para a de dia e de claro, a explicação de claro através
cama, não ficaria escuro? - Não, senhor. - de clarear. As partículas de finalidade, tais
(Insistimos). - Ficaria, sim, senhor. - Então, como “é para”, parecem portanto, ter, inicial­
por que fica escuro? - Porque a gente vaipara mente, apenas uma significação muito vaga,
a cam a. - Mas e se a gente não fosse para a muito indeterminada. São apenas uma pa­
cama, ficaria escuro assim mesmo? - Ficaria, lavra de ligação qualquer, entre dois termos
sim, senhor. - Então? - Porque é de noitinha.” que se encontram ligados no espírito da cri­
ança pela estrutura elementar do par. Elas
Aqui, ainda, há alternância da tautología servem à tomada de consciência deles sob a
e da finalidade. Após ter dado à “noite” um forma, mais ou menos tautológica, de uma
quase-sinônimo “noitinha”, é através do há­ definição. As dificuldades nascem assim que
bito, que lhe está ligado, de ir para a cama que a criança é levada a lhes atribuir a significação
essa criança explica. Alternadamente, ela com os fatos.
parece querer ou não fazê-la depender do
sono próprio ao homem. Será, como fre­ A...aud 6; “O que é a lua? - É tudo escuro,
qüentemente ocorre na criança, uma inversão e depois tem a lua. - Como é que tem a lua? -
de papel, bem semelhante à confusão do Porque ê m uito tarde... São as tardinhas que
ativo e do passivo? Mais simplesmente, entre fica m de noite. - Como é que fica escuro? -
dois fatos que ocorrem constantemente jun­ Porque êpara irpara a cama. - E como é que
tos em sua experiência, provavelmente ela fica de dia? - Porque a gente já acabou de
nota um sincronismo, uma espécie de ade­ dormir. - Se a gente nunca acabasse de dor­
quação mútua, sem anterioridade bem de­ mir, nunca ficaria de dia? - Sempre de noite. -
finida de um sobre o outro. Será isso o equi­ E se você não acabasse de dormir e se seu pai
valente de uma definição? Muito menos, pro­ acabasse de dormir? - Ele levantaria m ais
vavelmente: um simples agrupamento, noi- cedo, um pouco de noite. - Quando sua mãe
te-dormir, um desses pares que são o materiai já acabou de dormir, fica de dia? - Ela levanta
elementar do pensamento infantil. A forma cedinho, a gente levanta tarde. - Já é dia
finalista, na criança, é apenas, mais freqüen­ quando a sua mãe levanta? - Ela acende a luz,
temente, uma simples identificação de objeto fic a um pouquinho de dia. - Como é que fica
por meio de um par. um pouquinho de dia de manhã? - Porque a
394 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

gente dorm iu cedinho. - Às vezes você não tom ar café. - A gente não poderia tomar café
vai para a cama quando fica escuro? - É. - se não ficasse de dia? - Poderia. - Então, por
Como isso acontece? - Porque, se nãoficasse que fica de dia? - Para tom ar café. - Mas se a
de noite, a gente não iria para a cam a. - De gente pode tomar café mesmo se não fica de
dia fica claro? - Fica. - Como é que fica claro? dia... - A gente não tom aria café. - Por quê? -
- Porque a gente dorm iu bem. - O sol serve Porque fic a de noite. - A gente não pode
para quê? - Para ir passear." tomar café se fica de noite? - Pode... - De onde
vem a noite? - Ela nos acorda.”
As equivalências habituais de noite com
escuro, com tarde, com ir para a cama e Aqui, ainda, o par mais impórtate é noite-
dormir chocam-se com uma dificuldade quan­ dormir, que uma distração da criança substi­
do a forma impessoal deve dar lugar ao acor­ tui, no final, pelo par contraste noite-acordar.
dar das pessoas que não acordam ao mesmo Em oposição, temos os pares manhã-levan-
tempo. Então, a criança deve atribuir a si, às tar, manhã-tomar café, que a criança dá, alter­
custas dos outros, o papel normativo, embora nadamente, como absolutos e como faculta­
atenuando-o, tanto quanto possível, por “um tivos, presa que está entre o uso e a lógica. Ou
pouquinho de noite” ou “um pouquinho de melhor, são dois planos que ela ainda não
dia” para aqueles que levantam antes dela. sabe dissociar. Assim, ela dá ao adulto, fami­
Contudo, não sendo o sincronismo da noite e liarizado com essas distinções, a impressão
do sono constante para ela própria, a noite de se contradizer. Na realidade, sua expe­
torna-se o simples sinal de uma necessidade riência lhe dá os dois termos como habitu­
ou de uma obrigação: “Se não ficasse de almente unidos, mas como eventualmente
noite, a gente não iria para a cama”. Um separados. Ela mantém-se nessa constatação,
instante depois, ao contrário, é o dia que é sendo incapaz de ordenar, de maneira constan­
dado como a conseqüência de um bom sono te, dois termos entre si, o que implicaria
que termina. Entre a prioridade do fato sub­ o poder de relacionar cada um deles a uma
jetivo e do fato objetivo, entre a necessidade série, de onde extrairiam seu determinismo
causai e o costume ou a convenção, a criança próprio e o seu condicionamento respectivo.
ainda não sabe escolher, porque ainda não
sabe distinguir nitidamente uns dos outros. P...CO 9; “Como é que têm horas em que
Ligações simples, ligações por par impõem- fica de dia e horas em que fica de noite? - É
se a ela. É pouco a pouco que as exigências de para a gente descansar. - A gente não poderia
seu acordo intelectual com os acontecimen­ descansar se não ficasse de noite? - O dia é
tos e as coisas, estimulando a crescente matu­ para a gente ganhar dinheiro. - Por que é
ração das significações diferenciadas, colo­ preciso ganhar dinheiro? - Épara comer. - Por
carão, entre os termos de cada par, a relação que a gente não pode ganhar dinheiro quando
adequada. fica de noite? - Sem isso fica ria m uito difícil
trabalhar sempre. - Como é que fica de noite?
B...otte 7; “Por que fica escuro de noite? - Porque a gente não trabalha sempre. -
- A gente dorme... - Por que fica de dia de Como a noite pode vir?... É dia agora, como é
manhã? - Para levantar. - Se a gente não que à tardinha ficará de noite? - O sol se deita.
levantasse, não ficaria de dia? - Não. - Se você - O que isso quer dizer? - As nuvens o escon­
ficasse o dia todo na cama, não ficaria de dia? dem."
- Não... Ficaria. - A gente pode ficar na cama,
dormir, e fica de dia< assim mesmo? - Fica. - Duas explicações da noite coexistem.
Então, por que fica de dia? - Porque é de Uma tem abertamente o aspecto da finali­
m anhã. - Por que fica de dia de manhã? - Para dade e até mesmo da finalidade subjetiva: é
A CAUSALIDADE 395

preciso que o homem descanse e, se anoi­ associados, séries causais diferentes. A finali­
tece, é porque não se trabalha sempre. A dade, portanto, não parece ser o decalque,
outra invoca um mecanismo físico. As duas já sobre as coisas, do sentimento, que a criança
são perfeitamente distintas, mas é a primeira teria, de ser, ela mesma, uma vontade agente.
que parece mais espontânea. O ritmo da A finalidade não é, essencial nem primiti­
atividade humana, impondo-se muito mais vamente, a projeção, no mundo, e a atribuição,
ao espírito da criança, parece controlar o as forças que povoariam o universo, de in­
ritmo nictemeral. São as necessidades hu­ tenções semelhantes àquelas cuja intuição a
manas e sociais de repouso e de trabalho que • criança extrairia de si mesma. Não faltam as
ela parece dar como causa à alternância da expressões voluntaristas em sua linguagem,
noite e do dia, embora saiba, contudo, imagi­ mas estas não ultrapassam o círculo de suas
nar uma causalidade natural. Entre as duas, veleidades mais pessoais. Elas estendem-se
ela não chega a estabelecer subordinação. pouquíssimo à explicação dos efeitos; ou
Permanecendo os dois sistemas pura e sim­ então apresentam o aspecto de estereotipias
plesmente justapostos, a noite muda de causa sem conteúdo mental.
quando passa de um a outro. A finalidade só
exprime, aqui, a incapacidade para reunir A. A...dre 6; “Por que o vento não nos
duas séries, ao mesmo tempo mantendo deixa ver o céu? - De propósito. - Ele é mau
distintos os sistemas de condições próprios a então? - É. - Por que ele faz de propósito? -
cada uma. A prioridade causai retoma, então, Porque fa z frio , porque para fic a r doente.”
aos termos subjetivos, que parecem ocupar T...oy 6; 1/2 “Como você está vivo? -
muito mais o espírito da criança. Ela está na Porque eu quero estar vivo. - Seus olhos estão
idade, na verdade, em que as disposições que vivos? - Estão. - Por quê? - Porque eles querem
regulam sua atividade e a de seus próximos estar. - Seus cabelos estão vivos? - Não. - Por
ganham em importância, idade em que se quê? - Porque eles não querem estar vivos. -
torna apta para as disciplinas escolares. A Sua língua está viva? - Está. - Como? - Porque
expressão da finalidade só terá que se ate­ ela quer estar. - E a poltrona? - Não. - Por quê?
nuar, utilizar as fórmulas, não da causalida­ - Porque ela não quer estar. - O sol está vivo?
de, mas de oportunidade e do signo para se - Porque ele quer. - Como você sabe? - Porque
tornar correta. ele quer e, às vezes, ele não quer. - Como é
que existe a noite? - Ela é escura. - Como? -
N...et 8; 1/2 “O que vemos no céu? - Porque ela quer ser escura."
Estrelas. - Você as está vendo agora? - Não, de
noite. - Como é que a gente vê estrelas à noite? Dessas afirmações repetidas, desse vo­
- Isso quer dizer que vaifa z e r bom tempo no luntarismo estereotipado, nenhum progresso
dia seguinte. - O céu é, à noite, a mesma coisa intelectual pode resultar. Ao contrário, a fi­
de dia? - Não, ele épreto. - Como é que ele é nalidade, tal como se apresenta, expressa,
preto? - Porquefica de noite. - Por que fica de inicialmente, as associações termo a termo
noite? - Isso quer dizer que é a hora que a que a criança encontra, quer em seu contato
gente vai dormir. - O que é que faz o céu ficar com as coisas, quer em suas primeiras estru­
preto todas as noites? - As nuvens.” turas nocionais de contraste, de semelhança,
de dependência etc. Ela é uma das primeiras
Substituindo, nesse par noite-ir para a fórmulas de relação que a criança esforça-se
cama, a relação de conseqüência por uma para insinuar entre os dois termos do par.
simples indicação de uso ou de oportunidade, Essas fórmulas não tem, inicialmente, signifi­
essa criança mostra sua aptidão para imagi­ cado particular. À medida que a criança toma­
nar, por trás de cada um dos dois termos se mais apta a distinguir a diversidade das
396 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

relações, elas se tomarão mais adequadas. A C...in M. 7; “O que é o vento? - É Deus


grande condição parece ser a de que o par que fa z . - Como Deus faz o vento? - Para
cesse de ser isolado e que seus termos, em fa z e r os barcos andarem .- M as como elefa z?
vez de terem ligação apenas mútua e reversível - Ele sopra. - Como ele pode soprar? - Com
se a criança assim o quiser, integrem-se cada um a bomba. - Ela é grande? - Grande assim
um em uma série onde encontrem suas pró­ (35cm ).”
prias condições de existência e de variação. É A...dre 5; “O que é que faz a noite? -É o
preciso que se desenvolva o poder de pensar tempo. - Como o tempo pode fazer a noite? -
séries por si mesmas, e de substituir, por elas, Por cobertas. - Onde ficam as cobertas? - Em
as simples imagens concretas e imediatas. cim a do tempo. - E como elas podem ir em
cima do tempo? - Por hom ens... - E esses
ANIMISMO homens, quem são? Você já os viu? - Não. - Por
quê? - Porque tem um a m anivela para virar
O animismo pode muito bem inspirar o tempo. - E o dia, como o fazem? - Porque
numerosas manifestações na criança mais tiram a tela.”
nova, particularmente em suas relações com
o que se choca com ela, resiste-lhe ou serve- Entre esses dois exemplos há, provavel­
lhe, por vezes também com as partes de seu mente, a diferença de que, no primeiro, a
próprio corpo e, em seus jogos, para dar bomba parece um simples acessório acresci­
motivos ou instrumentos de atividade. Ele do à ação divina e, no segundo, os homens
parece quase não intervir mais tarde nas invisíveis são os seres eclipsados que a ma­
explicações da criança, senão como veículo nobra da tela, pela qual a criança explica a
do artificialismo. noite, exige: não sem alguma confusão, aliás,
pois o tempo é, alternadamente, dado como
C .Je r “O que é o Sena? - Tem água o que está encoberto por cobertas ou pela
dentro, tem um a torneira, tem um homem, tela, e como o que a manivela põe em mo­
ele quer água, ele tem um poço e a espuma vimento. Mas, em ambos os casos, a expli­
aparece. - De onde vem a água do Sena? - A cação baseia-se no emprego de instrumentos
água do Sena? - É. - O homem põe água familiares ao meio da criança e dos quais ela
dentro, e então ele pára, e então ele põe de não se dá nem mesmo ao trabalho de modi­
novo... Q uando neva,fica duro. Não dá para ficar as dimensões: a bomba de vento, da qual
fa z e r nada. Depois ele põe água de novo... - Deus se serve, é exatamente do mesmo ta­
Como o Sena anda? - Tem um buraco, eles manho que uma bomba pneumática. Com
põem um a torneira, e depois a água corre... muita freqüência, o agente permanece tam­
- De onde vem a água do Sena? - Ela vem da bém incerto ou desaparece.
torneira em baixo do Sena. - E a água da
torneira? - Tem um a m áquina, e então ele Z...ni 7; “Como é que o sol é quente? -
aperta, e então a água corre.” Fogo dentro. - De onde vem esse fogo?... Ele
sempre esteve lá? - Não. - Acendem o fogo? -
A criança relata suas experiências costu­ É. - Quem? - Não sei. - Faz tempo que o
meiras. Se as estende a objetos ou a fatos que acenderam? - Faz. - Não precisa acendê-lo de
não dependem da atividade humana, é-lhe novo de vez em quando? - Não.”
sem dúvida necessário inventar personagens N...et 8; 1/2 “De onde vem a chuva? - Do
que parecerão, por vezes, ocupar o primeiro céu. - O que ê?-É água que desce. - De onde
plano, mas que, na vêMade, são apenas se­ vem a água do céu? - Do Sena. - E a água do
cundárias e tendem a ser assimiladas ao ins- Sena? - De um a torneira. - E a água da tor­
trumentalismo puro e simples. neira? - Em correntes. - E a água das correntes?
A CAUSALIDADE 397

- Dospoços. - E a água dos poços? - De debaixo P...ot G. 7; “Como os barcos fazem para
da terra. Mesmo se, às vezes, a gente não andar? - Porque têm hom ens que têm remos e
tivesse m ais água. - Como é que tem tanta barcos que são a motor."
água embaixo da terra? - Ela vem do mar. - D...aud 8; “Como uma bicicleta pode
Como a água do mar pode ir embaixo da andar?- Porque têm rodase pedais. - Como os
terra? - Porque é fu n d o e tem um buraco. - E pedais fazem as rodas andarem? - Porque tem
de onde vem a água do mar? - Do Sena. - E a um a corrente.”
água do Sena? - De debaixo da terra.”
N...é 6; “O que é a fumaça? - Vento. - De
Nesse ciclo da água, aliás bem confuso, onde ela vem? - Dosfo m o s. - O que precisa
de onde a chuva parece, no final, ser elimi­ para que tenha fumaça? - Fogo. - E para ter
nada, a criança faz intervir os poços e as fogo? - Precisa papel, madeira, carvão,
torneiras, que são os meios de obter a água de fósforos. - Não tem fogo sem fósforos? - Não.
uso doméstico, mas sem apelar, contudo, - De onde eles vêm? - Eles são feitos. - Quem
para uma intenção agente. A água, circulante os faz? - Homens. - Como? - Precisa madeira,
é uma água comunicante, estando confundi­ vermelho, e então, depois acende. - Você
das água do mar e água doce. A criança não poderia fazê-lo? - Poderia. - Onde a gente
parece nem diferenciá-las, nem questionar o arruma o vermelho de fósforos? - A gente
problema da transferência delas; distinção pinta. - Como? - Com carbureto. A gente
específica e processo operatório permane­ coloca isso em lanternas. - Onde a gente
cem estranhos à sua representação. encontra carbureto? - Na floresta. - Você já o
O animismo detém, nas explicações da viu na floresta? - Já. - Onde? - Embaixo d m
criança, um lugar secundário demais para árvores. - Você já encontrou? - Já. - Você já o
responder a uma necessidade essencial de pegou com a mão? Como é? - Branco.”
sua inteligência. Sua freqüência, quando é Nesses exemplos, a criança alinha traços,
observada, deve ser atribuível mais ao meio quer manobras, quer instrumentos, cuja
do que a uma fase indispensável da evolução imagem ela extrai das lembranças que sua
mental. O que a criança procura expressar experiência direta das coisas deixa-lhe. Ela
são os fatos ou as técnicas de que é a descreve. Provavelmente, são-lhe necessá­
testemunha habitual. rios casos simples, o da bicicleta por exem­
T...ni 7; “Um carro respira? - Ah, não!Ele plo, para que sua descrição corresponda à
éfeito pára andar. - Como ele anda? - A gente realidade dos objetos. E trata-se ainda de
pega o volante, põe em prim eira, então a uma das crianças que tem mais idade, oito
gente vê que está indo rápido demais, então anos e meio. Nos outros casos, as relações
a gente põe em segunda e a gente vê que está verdadeiras não são apreendidas, como acon­
indo rápido demais, então a gente põe em tece com o fato de colocar carros em movi­
terceira, e depois vai. A gente põe os pés nos mento. Até com freqüência, são unidos ter­
pedais e vira o volante.” mos sem relação operatória, como fósforos, a
Le D...out 7; “Os bondes andam? - Com cor vermelha, o carbureto, o saibro branco
um motor. O homem gira a m anivela. - E os das florestas.
carros? - Ele gira a m anivela. Tem gasolina,
asinhas. Eleaperta um botãoeo carro começa MECANISMO INSTRUMENTAL
a andar. - São as asinhas que fazem o carro
andar? - As asinhasficam na frente do motor. O artificial ismo ou o instrumentalismo
A manivelafa z as m as andarem .-E para que ainda estão longe da explicação mecanicista,
serve a gasolina? - Eta fa z vapor. - Para que mesmo se são, eventualmente, um inventário
serve o vapor? - Para o cairo sair.” exato de operações ou de instrumentos. Eles
398 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

dependem, ainda, do tipo narrativo ou enu­ de outro jeito? - Não. - (Balançamos uma folha
merativo. A explicação mecanicista exige uma de papel.) - O que que é isso? - Papel. - É o
ultrapassagem desses dados puramente papel que mexe os cabelos? - É o vento. -
empíricos. Enquanto não podem ser projeta­ Como é que tem vento aqui?... Onde o vento
dos num plano de relações, onde os dados do está agora? - Elefo i em bora. - Para onde ele foi
plano perceptivo e usual sejam redistribuídos embora?... (Agitamos novamente o papel.)
segundo fórmulas e princípios apropriados, Como é que ele voltou? -É opapel. - Mas olhe,
há apenas justaposição de receitas, psitacismo o papel está aqui e não tem vento, explique...
ou simples verificação. Quando o papel está em cima da mesa, onde
M...ard 7; “Como nós estamos vivos? - está o vento? - Ele não está aqui. - O nde ele
Com nosso cérebro. - Como estamos vivos está...”
com nosso cérebro? - Porque é o nosso cére­
bro que fa z a gente com er e beber. - Como ele A existência do vento liga-se ao “tem po”,
faz? - Porque é ele que fa z tudo se mexer. - à boca, ao papel, mas sem indicação opera-
Tudo? - A boca, os pés, os dedos. - Como ele tória, de modo que seu desaparecimento,
faz? - Porque tem algum a coisa no cérebro. - persistindo a presença dos outros, permane­
Como ela & - É branca dentro. Écom o um a ce inexplicado, o mesmo ocorrendo com
bola. - Uma bola como? - É bem rendoda, suas intermitências, apesar da presença do
redonda, redonda. E tam bém branca pálida instrumento. Melhor dizendo, há simples
às vezes. - Onde ela fica? - Ela fic a bem justaposição de ambos, sem a formulação do
embaixo. - O cérebro está vivo? - Não. - E a mecanismo. A passagem da causa ao efeito
bolinha branca? - Não, senhora. - Por que não parece ser ainda inexprimível.
está viva? - Porque não está no m u n d o ” A criança não fica, contudo, sempre
Essa criança parece representar o cére­ limitada à simples enumeração dos instru­
bro de modo perceptivamente bastante exa­ mentos, por vezes ela toma, do material
to, por mais amorfa que seja sua descrição; experimental que lhe é mais familiar, o dis­
mas os poderes que lhe atribui são, evidente­ positivo necessário para explicar efeitos fora
mente, apenas a reminiscência de uma lição. de seu alcance. Em vez de uma verificação, é
Provavelmente, o caso está bem além de seus uma transferência, mas possibilitada pelo
conhecimentos e de sua compreensão. Mas, longo hábito do mecanismo invocado. É desse
face a outros fatos, mesmo diretamente cons­ modo que a tela é-lhe um meio freqüente de
tatados e simples, o mecanismo do efeito explicação. Desde sua primeira infância, o
parece permanecer, para ela, também inteira­ objeto ocultado, depois novamente visível,
mente inexplicado. foi-lhe uma oportunidade prolongada de sur­
presa, de interesse, de júbilo. É um momento
B...ot 7; “O que é o vento? - Ele sopra. - importante aquele em que percebe que aqui-
Como ele sopra? O que é que o faz soprar? - quilo que desapareceu pode reaparecer, em
É o tempo. - É o tempo que sopra? - É. - Como que se sabe pensar a existência do que não
ele faz para soprar?... O que é que o vento faz? é mais percebido, em que descobre que é
- Ele sopra. - E quando sopra, o que é que faz? possível fazê-lo voltar e imaginá-lo em algum
- F azfrio. - É o vento que faz o frio ou o frio lugar, embora invisível. Essa experiência, uma
que faz o vento? - É o vento que fa z o frio. - de suas primeiras descobertas ao sair da pura
Você poderia fazer vento? - Não. - E eu? - Não. percepção, é também uma das primeiras que
- (Sopramos.) Eu posso fazer vento? - Pode. - ela utiliza no campo da explicação.
Você também? - PossÔ. - Como é que a gente
pode fazer vento? - (Ela scpra). - Como Você P...er 8; “Como é que fica de dia e em
fez vento? - A boca. - A gente pode fazer vento seguida de noite?... O que é que faz o dia e o
A CAUSALIDADE 399

que é que faz a noite? - De noite, nuvens frente das nuvens?... Onde ela fica durante o
escondem o sol. - E de dia? - As nuvens não dia? - Ê o s o l durante o dia, a lua fic a atrás.
escondem. - Têm nuvens de dia? - Têm. - De - Então, à noite, a lua se mexe para se colocar
dia, as nuvens não escondem o sol? - Não. - E na frente?...”
de noite, sempre têm nuvens? - Têm. - Você
nunca saiu à noite? - Não. - Nunca viu o céu à A tela, aqui ainda, ocasiona contradições
noite? - Não. - o que é a lua? - Éfogo também. insolúveis. A criança põe frente a lua e o sol
- Quando é que a gente vê a lua? - De noite. - de um lado, as nuvens do outro. Atribui ate
Onde ela fica? - No céu. - Então você já viu o mesmo o movimento às nuvens, encarre­
céu à noite? - Já. - O que mais a gente vê no gadas de encobrir o sol e a lua alternada­
céu à noite? - Estrelas. - Quando a gente vê a mente. Mas é esse alternadamente que per­
lua e as estrelas, têm nuvens? - Têm. - Como manece impossível de ser explicado. Seria
a gente pode ver a lua e as estrelas se têm necessário supor uma mudança de posição
nuvens? - Olhando para elas. - Por que as entre a lua e o sol; mas o movimento ini­
nuvens não escondem a lua e as estrelas? - cialmente foi-lhes negado. Ainda uma vez, é
Para que fiq u e de dia. - Como é que as o modo operatório que está faltando, é a
nuvens não escondem a lua e as estrelas?...” representação do mecanismo que falha.

O sistema de explicação adotado pela L...ges 8; “A gente pode ver a lua e o sol
criança prevalece sobre sua percepção direta ao mesmo tempo? - A gente vê prim eiro o sol
das coisas e leva-a a contradições. A noite ê e depois a lua, quando fic a de noite. O sol e
devida à tela formada pelas nuvens diante do depois a lua. - Por que a gente não vê o sol à
sol e, por conseqüência, de dia, é preciso que noite? - Porque, de noite, todas as nuvens são
elas, embora presentes, não o escondam. À pretas. Têm um as que são verdes. - Por que
noite, elas o escondem, mas não a lua e as isso não deixa que se veja o sol? - Porque as
estrelas. O mecanismo imaginado para expli­ nuvens escondem o sol, e o sol esconde as
car a alternância do dia e da noite toma estrelas. - Por que a gente não vê a lua de dia?
inconcebíveis os aspectos da realidade, é - São as outras nuvens que escondem as
inconseqüente consigo mesmo, mas a cri­ verdes. - É de dia ou à noite que as nuvens são
ança não sabe imaginar outra coisa. pretas? - É de noite. - Por que a gente não a vê?
- O solfic a na frente-, ele esconde a lua; então
L D...out 7; “O sol se mexe? - Não. - Ele tem o sol quefica ligado ju n to co m a lua ...à s
fica sempre no mesmo lugar de noite? - São as vezes. - Como é que, à noite, a gente vê a lua?
nuvens que o escondem. - E quando tem, - Não sei. - Como é que fica de noite? - Porque
assim mesmo, luz e a gente não vê o sol? - É não fica de dia. As nuvenzonaspretas escon­
que têm menos nuvens. - Quando o sol entra dem o sol um pouco m ais alto, a lua embaixo.
na sala, ele fica sempre no mesmo lugar? Ele O solfic a no alto (gesto), e a lua um pouco
se mexe? - Não, éporque passam nuvens. - As m ais baixo (gesto), e as nuvens na fren te... -
nuvens mudam de lugar? - M udam . - O que é Como é que tem o dia depois da noite? - Não
que as faz andar?... Elas andam sozinhas? - sei. - Pense bem. - Não sei. - Fica de noite e
Não. - Então, o que é que as faz andar? - O depois fica de dia? - A noite passa e o dia vem
vento. - Você vê a lua às vezes? - Vejo, quando no lugar da noite. - Como isso acontece? - São
fic a de noite. - Como é que a gente a vê? - as nuvens que a n d a m ”
Porque ela brilha, é fogo.- Mas por que a
gente não vê o sol? - Porque a lua se põe em O mecanismo da tela continua a causar
cim a das nuvens; o solfic a embaixo. - A lua grandes embaraços. Essa criança também
não se mexe? - Não. - Como ela faz para ir na experimenta, sem resultados, complementos
400 AS ORIGENS DO PENSAMENTO N A CRIANÇA

e modificações. Duas explicações parecem podem andar se eles tocam as pedras? -


estar, inicialmente, em concorrência. Por uma Porque, à s vezes, a s p e d r a s le v a n ta m d a
espécie de contam inação entre a causa e o terra. - Quando elas levantam da terra, o que
efeito, as nuvens que fazem a noite são pre­ é que acontece? - os barcos se levantam .”
tas. Depois, é a tela que prevalece sobre a cor.
Ela é até mesmo dupla: nuvens sobre sol e sol Inútil insistir, aqui, sobre o jogo das as-
sobre estrelas, o que toma, aliás, inconcebível sonâncias: afimdar-rolar, entrar-levantar ( ).
a visão noturna das estrelas. O jogo da tela O princípio da explicação está em outro lu­
parece, então, modificar-se: as nuvens pretas gar. O conhecimento prático do suporte
cobrem as verdes, o sol esconde a lua. Como sólido, que está ligado, para a criança, aos
a explicação ainda não basta, o movimento primeiros êxitos de seus equilíbrio, vem
reservado às nuvens é completado pela misturar-se à sua explicação da flutuação. A
posição recíproca da lua e do sol acoplados estabilidade dos barcos sobre a água toma-se
“ligados junto”, o sol no alto, a lua embaixo. imobilidade sobre um fundo resistente. Mas,
A despeito dessa precisão, a criança confessa com a flutuação da água, ela suprime também
não saber como o deslocamento das nuvens a explicação de seus deslocamentos. Então
pode fazer com que se alternem o dia e a ocorre a operação inversa. Como ela transfe­
noite, a visão do sol e a da lua. Ela imagina rira aos barcos a imobilidade do fundo, ela
apenas p>osiçÕes estáticas, posições simples­ transfere ao fimdo a mobilidade dos barcos,
mente colocadas em pares. Mostra-se inca­ mas sob a forma contingente que “às vezes”
paz de coordenar três termos: as nuvens, a indica. É a confissão de um simples expedi­
noite e o dia ou as nuvens, o sol e a lua. Isso ente. Desse modo, o mecanismo do fato a ser
ocorre porque, ao mesmo tem po, seria-lhe explicado decompõem-se em dois termos
mecessário o poder de imaginar o espaço e contrários e inconciliados - solidez e deslo­
suas dimensões, independentem ente de sim­ camento -, cada um, p o r assim dizer, em
ples posições recíprocas. Intuição indispen­ estado puro. A não-intuição de posições
sável para representar, além de relações par­ regularmente modificáveis no espaço regride
ticulares e fragmentárias, relações que se trans­ para um estado ainda mais fixo da represen­
formam permanecendo ligadas, ou seja, uma tação, onde se opõem fixidez em si e mo­
explicação mecanicista. Dos próprios me­ vimento sem causa.
canismos de que a criança utiliza-se há
mais tempo, ela, inicialmente, não sabe dar a
imagem mental. MECANISMO E MOVIMENTO
Uma outra experiência mecânica, ainda
mais elementar que a tela, é a do suporte. Mas O que oferece dificuldade à criança é o
ela se mostra tanto mais difícil de ser com­ fato de utilizar suas experiências práticas,
binada com a mudança ou o movimento. que são o material mais positivo e mais
espontâneo de suas explicações, para delas
P...ot G. 7; “Por que os barcos não afun­ extrair modelos de mecanismo aplicável às
dam? - Porque têmpedras. - Onde têm pedras? coisas. Se ela não tem que ultrapassar a simples
- No ju n d o da água. - Como é que as pedras constatação de uma causa natural, a razão
não deixam os barcos afundarem? - Porque as dada pode estar correta. Mas permanecerá
pedras não rolam. - Por que é que, não sendo algo de isolado ou de incompleto, de
rolando, elas não deixam os barcos afun­ interrompido.
darem? - Porque as pedras entram na terra. -
E daí? - A terra não pode mexer. - Os barcos ( ) N.T.: Em francês: "couler-rouier, enforcer-enlever-
tocam as pedras no fundo? - É. - Como eles soulever”.
A CAUSALIDADE 401

J...y 9; “De onde vem a água? - De um a rochedos. - Têm rochedos no Sena? - Não. -
fo n te . - Como ela tem força para empurrar a Têm ondas? - Têm. - O que é que faz as ondas,
outra água? - P o rq u e ela vem rápido. - Como no Sena? - Os degraus. - Onde têm degraus? -
ela vem rápido? - Porque a m ulher p e g a N as m argens, quando a g e n te q u e r descer.”
á g u a ; depois, q u a n d o ela f i c a su ja n o balde,
a m ulherjoga fora. - Como é que isso faz a á- Todos os movimentos do rio são, aqui,
gua vir rápido? - P o rq u e têm en costas. - O que explicados por uma causa única: o declive
é uma encosta? - É u m a estra d a q u e sobe bem justifica a corrente e esta, as ondas, por seu
alto.- Como é que isso faz a água vir rápido?... ” encontro com o obstáculo, quer barcos, quer
rochedos. Na falta de rochedos no Sena, ela
Para evitar a regressão ao infinito da lhes assimila os degraus que, de quando em
água que empurra a água, é, inicialmente, o quando, descem do cais para o rio. Analogia
artificialismo que se oferece à criança como muito vaga, desproporção entre o efeito e a
explicação da água que corre; e a água de causa. Mas imagens familiares que têm uma
uso doméstico, a água já utilizada parece, por coerência suficiente.
um instante, ser a origem de toda a água Contudo, por mais próximas que essas
corrente. Mas, sob a impressão provavel­ explicações estejam de simples dados per­
mente dessa desproporção, a criança acres­ ceptivos, elas podem mostrar, nas crianças
centa, incontinenti, a encosta, ou seja, o mais novas, inconseqüências de onde se
declive, a gravidade, que é, de fato, a causa deduz que uma intuição mecânica é neces­
natural, essencial. Contudo, sua intuição sária, mesm o nesses casos elementares.
permanece tão global, tão particular, tão
confusa que ela d efín e a encosta como uma P...fer 6; 1/2 “O que é um moinho? - É
estrada, como uma subida e não como a u m a ro d a g r a n d e e ch eia d e ta b u in h a s. Uma
descida que coqviria aqui. Aliás, ela não po­ tábua pega a água, ela sobe e a água cai de
de explicar sua àção. novo. - É a água que faz o moinho andar ou o
moinho que faz a água andar? - É a água...
Le D...out 7; “O Sena se mexe? - Pelo Q u ase sem p re tem u m a q u e d a d ’á g u a . Isso
vento, ele fa z ondinhas. Q uando n ã o tem fa z o m oinho andar e a roda gira. É nos
vento, ele corre. Ele corre porque ele está em campos que tem isso. O trigo, a gente corta
descida. - Você já viu a descida? - Já, porque com ceifeiros. - Como a água se mexe. - Tem
a estra d a s e in c lin a e a m argem d o S en a um a queda d ’á gua. A á g u a p u la no á r e s e
também.” mexe. - Como é que é a queda d’água? -
P a rece u m a d e sc id a q u e tem a ssim (gesto da
Aqui, a distinção estabelece-se, logo de mão para baixo), que vai no a r.”
início, entre os dois movimentos do rio que,
tão freqüentemente, a criança confunde: a Segundo essa criança, é, portanto, a roda
agitação superficial das ondas e o escoamento do moinho que eleva a água sobre suas pás e
da água. Cada um é reduzido, corretamente, a deixa cair; é o moinho que põe a roda em
à sua causa sensível. movimento, embora seja, ele próprio, movido
pela água; a queda d ’água é água que pula no
N...et 8; 1/2 “Por que têm ondas quando ar; e, apesar de seu gesto da mão para baixo,
os barcos se aproximam? - Porque tem cor­ ela compara a cascata a uma descida que vai
rente. - O que é que faz a corrente? - Q uando pelo ar. Será simples acaso o fato de ela
abaixa, quando desce. - O que é que desce? inverter o sentido de todas as ações que são
- A água. - O que é que faz a água descer? - A exercidas no moinho? Ela saber por em con­
descida.-E as ondas, o que é que as faz? - Os tato os agentes delas, mas não apreende que
402 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

são, cada um em seu lugar, os instrumentos Incapaz de reduzi-la a suas coordena­


da gravidade. das, a criança sabe, habitualmente, imaginá-
A imagem inspirada pelo espetáculo de la apenas tal qual, e repetindo a mesma de
um declive descido pode também inspirar- objeto em objeto. É o movimento comuni­
lhe apenas um artificialismo, freqüentemen­ cado que ela representa mais espontane­
te impróprio para explicar o próprio movi­ amente. Nele ela encontra uma intuição das
mento. mais familiares, a do impulso, que deve ser a
imagem mais primitiva do esforço que é
P...CO 9; “O sol muda de lugar? - M uda. - despendido sobre as coisas. Assim, ela tem
Como? - Ele rola. - Como ele rola?... Como um que considerar apenas a passagem de um
balão?... No alto... Embaixo? - Embaixo. - Se termo a outro. Mas, freqüentemente também,
ele está embaixo, o que é que tem em cima ela acaba por perceber que essa passagem
dele?... Tem alguma coisa em cima do sol? - não tem nenhuma razão para parar e que a
Não. - Ele rola embaixo do quê? - Em cim a do causa não cessa de recuar indefinidamente.
céu. - E o céu, como é?...É um assoalho assim?
- Não. - Então, como é? - Curvo. - É duro ou B. ..at 7;l/2 “Como é o mar? Ele se mexe?
mole? - É dum . - Duro como o quê? - Eu sei; - Мехе. - Como? - As ondas sobem, depois
m as tam bém eu acho que não é isso. - Diga. descem. - O que é que as faz subir e descer? -
- Eu acho que é como madeira. - O sol fica A água. - Como ela faz? - A água empurra a
embaixo ou em cima do céu? - Em cima. - água. - Como é que a água pode empurrar a
Como a gente pode vê-lo se ele está em água?... O que empurra a água para ela
cima?... Nós estamos em cima ou embaixo? - empurrar a água? - Um barco. - São os barcos
Embaixo. - O céu fica entre nós e o sol? - É. - que fazem as ondas andarem ou as ondas que
Então, como a gente pode ver o sol? - Tem que fazem os barcos andarem? - São as barcas. -
nem um a ja n elin h a .” As barcas fazem as ondas? - Fazem. - Se não
tivesse barcas, não teria ondas? - Teria. -
Não sem hesitação, essa criança constrói Então, quando não têm barcas, o que é que
o céu como uma abóbada, aberta por uma faz as ondas? - os barcos que sobem. - Como
janela, por onde se veriam os deslocamentos os barcos fazem ondas? - Pelo motor.”
do sol rolando sobre ela de cima para baixo. Para evitar a repetição da água que
Contudo, essa tradução instrumental dos empurra a água, essa criança imagina um
dados perceptivos, que parece utilizar o peso movimento transmitido por barcos, barcas e
para explicar o movimento aparente do sol, depois um motor.
não leva em consideração sua face ascen­
dente. É sempre a mesma indetefminação ou C. ..in “O mar se mexe? - Mexe, sim,
ambivalência na direção atribuída a um movi­ senhor. - O que é que o faz se mexer? - São os
mento ou a uma ação. barquinhos que fa zem ele se mexer. - Se não
A imagem de um declive descido por um tivesse barquinhos, ele não se mexeria? -
objeto sólido ou líquido é, contudo, uma das Mexeria, têm tam bém ospeixes que fa ze m ele
mais familiares à criança. Contudo, transfor­ se mexer. - Como a gente vê que ele se mexe?
má-la em causa exige uma relação de subor­ - Porque têm bichos dentro. - Como ele se
dinação estável e constante entre dois ter­ mexe? - Porque têm peixinhos que fa ze m ele
mos, o móvel e o plano fixo. A criança não é, se mexer. - Mas como ele faz? - Ele se joga no
logo de início, capaz de realizá-la. A ação ar, e depois ele fa z assim (suas mãosfa zem
permanece, por muito tempo, como que um gesto de rotação de trás para fren te) Г
indivisa entre os dois. Nada impede de supô-
la invertida. Aqui, a criança parece sentir um certo
A C A U S A L ID A D E 403

desacordo entre o movimento contínuo da às vezes quando tem raio, o vento que sopra
água e a intermitência dos impulsos que ela bem forte, então as árvores caem .”
sofre. Aos barcos, ela acrescenta os peixes
pequenos e os bichos, cuja presença e, pro­ O embaraço desta criança, quando lhe é
vavelmente, cuja agitação são constantes. No preciso indicar de onde as árvores recebem o
final, contudo, ela parece admitir que a água impulso que elas transmitem ao vento e este
tem o poder de lançar-se por si mesma no ar. à água, também é grande. A agitação delas, e
A criança cede à contradição vagamente mesmo a de suas raízes, coisa, provavel­
pressentida da causa que está oculta, limi­ mente, mais profunda e misteriosa, não lhe
tando-se a multiplicar seus antecedentes, e parece suficiente para explicar a origem do
da causa verdadeiramente inicial. movimento, e é a uma espécie de círculo que
a criança parece chegar: após ter feito das
P...CO 9; “Se não existissem barcos, o árvores a causa do vento, como é freqüente,
Sena nunca se mexeria? - Não. -Você já olhou ela mostra as árvores que caem sob a ação do
embaixo das pontes? - J á .- A água se mexe raio e da força do vento.
embaixo das pontes? - Ela não se mexe. - Se A criança pode combinar de maneira
você joga uma rolha, ela fica no mesmo lugár? diferente a ação dos corpos sólidos e a do
- Ela se mexe. - Como ela se mexe? - Ela anda. vento.
- Como ela pode andar?-É a água q u e fa z ela
andar, quando vem um barco. - Se não tem A...aud 6; “O Sena se mexe? - É a água
barco, a rolha Fica no mesmo lugar? - Não, ela que se mexe. - O Sena e a água não são a
anda. - Então o que é que a faz andar? - Ela mesma coisa? - Toda água se mexe. - O Sena
anda quando a gente joga um a pedra na e a água são a mesma coisa? - Não sei. - Como
água. -S ea gente não jogasse uma pedra, ela a água se mexe? - São os barcos que fa zem ela
não andaria? - É. - Ela não andaria? - Não, ela se mexer. - E os barcos, como eles se mexem?
andaria. - O que é que irip. fazê-la andar? - O - É o vento que empurra. - Como ele faz para
Sena. - Como ele faria?...” empurrá-los? - É fo rte ”
As incertezas, as dificuldades insuspeitas
Outro exemplo de conflito entre uma em que nossas perguntas podem lançar a
explicação que é procurada em impulsos criança são marcadas, aqui, na distinção que
particulares ou acidentais e o efeito vasto e ela faz, no início, espontaneamente, entre o
contínuo a ser explicado. Mesmo retorno à Sena e a água, entre o continente e o con­
autonomia do movimento: é o Sena que anda teúdo, entre a permanência do rio e suas
por si mesmo. Não se trata mais de declive, ondulações variáveis. Quanto às relações
nem de gravidade; mas o movimento comu­ entre os corpos em movimento, o corpo sólido
nicado é uma causa insuficiente demais; e a de onde provém o impulso, o barco, são
causalidade regride para uma simples atri­ apenas um intermediário entre dois fluidos, o
buição do efeito ao objeto onde é observado. vento e a água. Com a ajuda da observação
dos fatos, a prioridade habitual dada ao con­
P...fer 6; 1/2 “O que é que faz as quedas sistente com relação ao impalpável na ordem
d ’água andarem? -É o vento q u efa za so n d in - das causas é invertida tanto mais facilmente
has; elefa z a água e a chuva andarem . - O em favor do vento quanto ele forma com os
que que é o vento? - São árvores que se batem, barcos um par cujos termos mudam de papel
raízes que se batem; issofa z vento. - Como é sem dificuldades. Em ligação, ao mesmo
que as árvores se batem? - Porque, quando as tempo, com a água e o vento, a ação dos
árvores se batem, as raízes se batem. - Às barcos pode exercer-se em dois sentidos
vezes... é... às vezes,perto da água, é muito... divergentes. Mas não ocorre, ao espírito da
404 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

criança, que a força do vento também poderia Ao comparar o vento sobre o mar ao ato
mover tanto a água quanto os barcos. de soprar sobre a água com um bocal, parece
que a criança está a ponto de generalizar a
В., .at 7; 1/2 “O que é que o vento faz? - Ele causa dinamizando-a, mas a operação leva-a
empurra os papéis. - Como? - Ele fa z eles ao operador, e a imagem de seu próprio
voarem pelo ar. - Como ele faz? - O vento esforço ao antropomorfismo mítico.
empurra os papéis. - Como ele pode em-
purrá-los?... O vento é forte? - É.” AS DIFICULDADES DA
EXPLICAÇÃO MECANICISTA
Aqui, não há ambigüidade possível. А
leveza dos papéis flutuando ao sabor do A criança não é menos afeita à explica­
vento é algo de visível demais para que a ção física do que a qualquer outra. Mas esse
origem do movimento possa ser invertida. tipo de explicação leva-a a mais impasses
Enfim, o corpo sólido pode ser eliminado, e do que o finalismo ou o providencialismo,
o impulso ser exercido de fluido em fluido. que põem a causa no próprio efeito ou
num poder calcado num efeito. Por mais fí­
N...ot 7; “Por que a água do Sena corre? sica que seja, a explicação física passa pelas
- É o vento que empurra. - E a água da formas de pensamento ainda elementares
torneira? - Não sei. - Pense bem. - Porque ela dessa idade.
é lisa. - O que é o vento? - Ê a r.- Como ele
pode empurrar a água? - É quando ele toca C...in 6; 1/2 “Se um homem entra na água
nela. - Como ele toca na água? - Quando ele para nadar, ele fica tão pesado quanto quan­
está baixo.” do ele fica no chão? - Ah, não, senhor, porque
a água, tem rochedos que fic a m em volta,
A força do vento age, aqui, por contato. então isso deixa ela pesada e a gente flu tu a
Ela é mais sensível que a do peso, embora na água.”
invisível. Para a água da torneira, a criança só
sabe explicar seu movimento através de sua O peso menor do corpo imerso é atribu­
fluidez. O do Sena é explicado pelo impulso ído a um aumento de peso da água, e este ao
do ar, que pode ser sentido sobre nós mesmos peso dos rochedos circundantes. Contraste e
ou constatado nos objetos que ele carrega participação: dois procedimentos primitivos
consigo. Eis aí, ainda, uma forte ligação entre de pensamento. Os rochedos comunicam
a causa e a impressão sensível. Contudo, a algo de seu peso à água, e a diminuição do
força já parece, no vento, separar-se daquilo peso dos corpos mergulhados nela toma-a,
que dá aos objetos sua materialidade menos em proporção, supostamente mais pesada. O
contestável para o senso comum: o que se par leve-pesado serve para distribuir seu papel
deixa ver e tocar. O modo operatório pode, respectivo aos dois termos presentes - corpos
ainda acrescentar-se à rarefação do conteúdo flutuante e líquido -, enquanto propaga, de
sensível, para dissociar a força e a causa dos um objeto para outro, dos rochedos para a
conjuntos concretos. água, a qualidade que parece ser necessário
atribuir-lhe. A participação pode, aliás, assu­
D... al 7; 1/2 “O que é que faz as ondas? - mir a forma mecânica de uma intromissão ou
Équando tem muito vento. - É o vento que faz de uma penetração.
as ondas? - É. - Como ele as faz? - Soprando.
Como se a gente soprasse num bocaU lsso „ A...on 7; 3 “Como você respira? -Ê a terra
respingaría. - Como é que o vento sopra? - que fa z respirar. - Como você respira? - (Ela
Porque é Deus que f a z éle soprar” fra n ze o n a riz respirando.)- Como a terra faz
A C A U S A L ID A D E 405

respirar? - É o ven to q u e en tra n a terra, isso d á poderia então? - Poderia. - A gente vê a água
a r p a r a a s árvores.” subir? - Não, a gente não po d e ver. - Por quê?
- Não sei. - Você já esquentou água em uma
Eis uma espécie de participação que une panela? - Não. - Você já viu água no fogo? -Já.
tudo o que respira na Terra à terra como a - O que acontece se a gente põe água no fogo?
causa de toda respiração. Em seguida, o ar - Ela esquenta.- O que acontece? - Vira bolha.
necessário à respiração é injetado na terra, - O nde fica a bolha? - Na água. - E quando a
sob forma de vento, e depois liberado pelo gente esquenta a água por m uito tempo? -
sopro que emana das árvores. Não sei. - Se a sua m ãe deixar a panela tem po
demais no fogo, o que vai acontecer? - A
T...ni 6; 1/2 após ter explicado o movi­ panela vai queimar. - Por quê? - Porque ela
mento do Sena através do movimento dos vai fic a r quente demais. - Q uando a panela
barcos, e o dos barcos através da corrente que queima, o que é que a água vira? - Ela cai no
parte do Sena e “vai em todo lugar nas máqui­ fogo. - Q uando ela cai no fogo, o que ela vira?
nas”, “De onde vem a corrente? - D o Sena. - - A gente não vê mais. - Como isso acontece?
Como? - Q u a n d o f a z frio . - E quando faz - Ela esquenta. - Sim, mas como é que ela
calor? - S em pre tem u m a corrente. - Como é desapareceu? - Porque tem um buraco pa ra
que isso acontece? - É o ven to q u e en tra n a o fogo respirar. - Ela caiu no buraco? - Caiu.
á g u a .” - Q uando o fogo é apagado, a gente encontra
a água de novo? - Não. - O que é que ela vira?
Após a causalidade circular ou recíproca - Ela é esquentada. - O que é que ela vira
do Sena, posto em movimento pelos barcos e quando é esquentada? O nde ela fica? - Ela vai
as máquinas destes pela corrente do Sena; pa ra o carvão. Têm buracos no carvão. Ela
após a coexistência do mesmo efeito - a cor­ passa, ela vai embora no carvão. - Q uando o
rente - com condições contrárias - frio e calor fogo apaga, ainda tem carvão? - Tem. - Tanto
após essas marcas de indiferenciação per­ carvão quanto antes? - Não, um pouco menos.
sistente entre os elementos de uma mesma - O que é que a água vira? - Ela f e z buracos.
situação, a penetração das máquinas, que - Onde? - No ca rvã o . - Q uando o carvão já
levam os barcos, pela corrente do Sena e da queimou, ainda tem carvão? - N ão. - E a água
corrente pelo vento mostra o mecanismo que que estava nos buracos? - Ela f o i em bora. -
se esboça no seio do participacionismo geral, Para onde? - P a ra a m a d e ira . - E se não tem
o qual é próprio ao pensamento sincrético. O madeira? - P a ra o fo g ã o . - A gente pode achá-
simples impulso pode também combinar-se la no fogão? - Não. - Então, onde ela fica.? - Ela
ou altemar-se com a intromissão ou a pene­ f ic a q u e im a d a . - O que é que ela vira quando
tração. fica queimada? - Ela v a i em b o ra . - A gente a
vê ir embora? - N ão. - Como isso acontece? -
É...ard G. 7; explica as nuvens através da P orqu e tem o fo g o q u e é vermelho."
água q u e sobe n o céu. - De onde ela vem para
subir no céu? - D a terra. Q u a n d o tem sol, ela É surpreendente, aqui, constatar como a
sobe d e n ovo. - Como ela faz? - Tem ven to qu e simples aproxim ação de noções percepti­
ela f a z su bir. - É o sol ou é o vento que a faz vas, que poderia parecer suficiente, deixa a
subir? - O vento. - Você não tinha dito que era criança, contudo, incapaz de explicar o desa­
o sol? - Eu a in d a n ã o sabia. - Como o vento parecimento da água sob a influência do
faz para fazer a água subir? - P orqu e ele f a z ela calor. Ela sabe invocar, sucessivamente,
s u b ir a ssim (gesto repetido d e leva n ta r). - Às apenas o impulso do vento para fazer a água
vezes ele faz a água da bacia subir? - Não. - Ele subir novam ente da terra para o céu, ou a
não poderia? - Q u a n d o tem ven to fo rte. - Ele perda da água, que ferve na panela, através
406 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

dos buracos do fogão, do carvão, da madeira, Como a pólvora p o d e fazer a rolha explodir?
embora tenha visto “a bolha” produzida pela - O papelfura e fa z apólvora descer. Q uan­
ebulição na água e, provavelmente também, do ela bate na rolha, ela explode. - O que é
o vapor que dela se desprende. Ela supõe que explode? A pólvora? - Os vendedores
uma migração da água que ferve através colocaram algum a coisa que fa z explodir.
dos buracos, embora tenha constatado o Onde eles colocaram? - Eles m isturaram a
desaparecimento de substâncias, tais como o pólvora com algum a coisa para fa z e r ela
carvão e a própria água, devido à combustão explodir. O quê? - Não sei. - Dá para ver? -
ou ao calor. Mas não sabe ligar esses dados Não. - A pólvora não poderia explodir sozi­
entre si. Mais que interpretar a sucessão deles nha? - Não. Se a gente deixasse algum a coi­
como mudanças de estado, ela reduziria cada sa cair em cima, ela explodiria. A gente ti­
um desses estados à existência de uma nha am arrado a pólvora num a pedra com
substância: a água agitada pela ebulição é a um pedaço de barbante. Jogamos uns paus
bolha; a água que evaporou foi embora atra­ bem grandes em cima, issofe z explodir. - O
vés de buracos. A imagem que ela pode ter da que é que explodiu? - A gente colocou a
ebulição ou da evaporação não consegue pólvora que estava num papel na rolha, e
tornar-se uma imagem de perceptiva ope- como a pedra era pontuda, ela entrou na
ratória. O que desapareceu pura e simples­ rolha e explodiu. - Por quê? - A pedra bateu
mente desapareceu; o aspecto sob o qual um com força na pólvora, e a pólvora bateu
objeto foi percebido permanece imutável, contra a pedra. - Por que, quando a pedra e
mesmo invisível. Com esse exemplo pode-se a pólvora se batem com força, isso explode?
calcular a distância que há entre uma simples - Porque fic a muito apertado... - Por que,
conexão perceptiva e uma ligação causal. É quando bate com força, aparece um a chama
preciso, para aprender uma causa, realizar a e explode? - Porque a pólvora fic a muito
integração operatória dos dados sensíveis, e apertada e se mistura... A gente encontrou a
não imobilizá-los como em substâncias in­ rolha em pedaços. ”
variáveis. Contudo, as únicas ações que a
criança sabe introduzir na causalidade são Impulso ou pressão da haste ou da pól­
ações sensíveis que ela usou pessoalmente, vora contra a rolha, paus ou pedra contra a
como o impulso ou procura de um objeto pólvora. Penetração da haste ou da pedra na
através dos esconderijos onde ele se oculta. É rolha. Mistura compacta da pólvora com outra
apenas empirismo sobreposto a empirismo. coisa ou consigo mesma. Contudo, a criança
A explicação ainda nada tem de lógico. não se satisfaz e imagina, por detrás da pól­
Em vez de se justaporem, como neste vora, um a outra substância que a faz explo­
exemplo, impulso e penetração podem com­ dir. Depois, ela retorna ao simples relato da
binar-se de maneira mais ou menos con­ operação. Hesita visivelmente, sem chegar a
fusa. encontrar a causa da deflagração. Sem dúvi­
da, não é surpreendente que ela não possa
L... ard 7; 1/2 "Eupoderia ter levado meu explicar o poder explosivo da pólvora. Mas
revólver de rolha. Ele fa z barulho como um aqui, importam apenas suas condutas intelec­
de verdade. Tem um a rolha e pólvora, e a tuais face à dificuldade: tentativa de descri­
rolha fic a em pedacinhos. Como a pólvora ção mecânica, confusa e, finalmente, inope­
pode fazer o revólver funcionar? -Tem um a rante; simples relato operatório; suposição
hastezinha de ferro que empurra a rolha. de um a substância acrescida à substância da
F az um buraco na rcdha onde tem pólvora, e experiência unicam ente para introduzir-lhe a
explode como um revólver de verdade. Mamãe causa que está oculta. Traduzir a causa em
m e disse: “Você não vai brincar com isso”. - uma substância nova é apenas repelir a difi-
I
A C A U S A L ID A D E 407

culdade, que poderia existir dessa maneira G.B...et 8; “Uma tábua afunda ou não
indefinidamente. Contudo, é um procedi­ afunda? - Ela nada. - Por quê? - Porque ela é
mento que já mostra a necessidade de pro­ de madeira. - Por que a madeira nada? -
curar a causa não apenas nos dados brutos da Porque ela ê como os barcos. - Por que os
percepção. barcos nadam? - Porque eles são de m adei­
ra... Mesmo quando eles são de ferro, eles
CAUSA E SUBSTÂNCIA nadam . - Por que os barcos nadam? -Porque
a madeira não afunda. - Por que, quando
A razão substancialista do efeito é, aliás, eles são de ferro, eles não afundam? - Oferro
essencialtoente concreta. Inicialmente, é até é como a madeira. - Se você joga ferro na
mesmo puramente tautológica. Nesse caso, água, ele afunda ou não afunda? - Ele nada.
contudo, já é um desdobramento da repre­ - Você já jogou ferro na água? - Não.”
sentação em relação a seu objeto. Prenuncia
a análise qualitativa, de que é a forma ainda A substância é causa: tábuas e barcos
global e indiferenciada. Fica, freqüentemen­ flutuam porque são de madeira. Os barcos de
te, nela misturada. A dificuldade de uma ex­ ferro flutuam também. A criança, em vez de
plicação pode fazer regredir de uma para procurar em outro lugar a razão, limita-se a
outra. concluir que o ferro é, como a madeira, uma
Sob sua forma mecanicista, a causa subs­ substância que flutua. A assimilação lógica
tancial consiste, pura e simplesmente, em prevalece sobre a experiência. Um mesmo
explicar o efeito através de uma substância efeito supõe a propriedade correspondente
correspondente, que seria acrescentada ao em duas substâncias, embora contrárias uma
objeto. à outra a esse respeito. Qualquer que seja sua
verdadeira natureza, a substância ainda é no
G...inJ.7; disse que, na beira da água, as objeto, apenas a réplica do que é necessário
pedras são mais escuras (evidentemente nele explicar.
porque ficam úmidas). “Por que elas são mais
escuras? - Porque é a terra que vem p o r cima. F...gli 5; 1/2 “Como um barco pode nadar
- Por que, perto dos rios, a terra vem por cima? em cima da água? - Porque um barco é feito de
- Porque a terra não está bem enterrada madeira. - Por que a madeira fica em cima da
em baixo do capim, ela escorrega. - Quando ágaa? -Porque ela nada. - Uma pedra fica em
a gente molha uma pedra, ela muda de cor? - cima da água? - Não, ela afunda. - Por que
Não.” uma pedra afunda e a madeira não? - Ela é
pesada. - A madeira é pesada? - Não. - O barco
Para que haja mudança de cor, é preciso é pesado? -É.- Por que o barco não vai para
que uma outra substância cubra o objeto. o fundo da água? - Porque ele nada como os
Certamente, já há desdobramento entre a homens. - Com o quê os homens nadam? -
causa e efeito, mas estes são assimilados, Com as mãos. - E o barco? - Porque ele é
respectivamente, a dois objetos ou substân­ cortado assim. - Como ele é cortado? - Ele tem
cias diferentes, e sua relação é uma simples um a m áquina que corta a água.”
sobreposição.
No substancialismo tautológico, ao con­ A causalidade é, aqui, heterogênea. Mu­
trário, efeito e causa permanecem no objeto, da para cada objeto, e mesma causa muda
mas é o próprio objeto que é desdobrado, e de sentido por inversão do passivo para ati­
sua réplica, idêntica à realidade ou não- vo: o corte ou forma do barco toma-se o cor­
completa, já tem, pelo menos, mais gene­ te da água pela máquina dele. É uma mistu­
ralidade e permanência que ele. ra, ou melhor, um metamorfismo ainda
408 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

profundamente sincrético. À razão subs- são contrários. Para cada nuvem, qualidades,
tancialista “é feito de madeira” sucede a propriedades ou mesmo naturezas diferen­
antropomórfica “ele nada como os homens” tes: a nuvem preta é fumaça. Substância e
e a qualitativa “ela é pesada”. Essa imbricação qualidade ainda estão misturadas, e é neces­
pode dar lugar aum a espécie de ação ambígua sário que acompanhem o metamorfismo das
ou de polivalência atribuída às substâncias coisas, em vez de fornecerem às semelhanças
postas em causa. destas uma base comum e à diversidade delas,
o código ou a escala das nuanças ou dos
G...ain 6; “Como é que fica de noite graus.
quando o sol vai embora? - Porque ele vai A distinção entre substância e qualidade
em boraporlá. Tem um sol quepassa, e depois é feita, inicialmente, por simples separação,
fic a de noite. - Tem um sol que faz ficar de sendo a razão dada, conforme a ocasião, quer
noite? - Uma nuvem . - Ê porque tem uma substancialista, quer qualitativa.
nuvem que passa que fica de noite? - Д sim,
senhor. - Fica sempre de noite quando têm Z...ni 9; “O que é que tem em cima do
nuvens? - Não, senhor, tem um a nuvem que Sena? - Barcos. - Uma pedra no Sena vai para
fa z fic a r de noite e um a nuvem que fa z fica r o fundo? - Porque ela égrande. - E os barcos,
de dia. - Como é que uma nuvem faz ficar de por que não afundam? - Porque são de m a­
noite?- - Porque ela épreta. - Nunca pode vir deira. - Por que a madeira não afunda?...”
uma nuvem preta quando tem sol? - Não, Substância e qualidade são, aqui, mais
senhor. - O que é que não deixa ela vir? - É a constatação que análise.
nuvem que fa z fic a r de dia que não deixa. -
E a nuvem que faz ficar de noite, de onde ela CAUSA E QUALIDADE
vem?-É a fu m a ça queépreta. - Quando o sol
vai embora, como ele pode ir embora? - Pelo Poderia parecer que, na ordem da cau­
vento.” salidade, assim como na da percepção, a
qualidade devesse ser o fato inicial. Se o
A explicação pode parecer bem confusa. objeto pode ser reconhecido, isso ocorre,
Parece até mesmo ter se modificado ao ser primeiramente, devido à impressão que ele
expressa. Provavelmente, era o mecanismo causa nos sentidos; se pode ser utilizado, é
da tela feita pelas nuvens contra o sol que a devido às suas propriedades. Nos dois casos,
criança tinha, inicialmente, na cabeça. Mas a ação que ele exerce, quer no sujeito, quer
um lapso fê-la substituir a nuvem pelo sol: no meio, resulta das diversas qualidades
“tem um sol que passa”. Logo em seguida, ela suscetíveis de manifestá-lo. Contudo, rela­
o retifica, dizendo que era uma nuvem; mas a cionar a um objeto suas qualidades já é saber
mesmá inconsistência de representação, que disso fazer uma fonte permanente de pode­
favoreceu o lapso, ocasiona a substituição res determinados, quaisquer que sejam as
definitiva do sol por nuvens. O dia tem, assim circunstâncias a que ele seja misturado. Ora,
como a noite, nuvens como causa. O sol é, a evolução psíquica mostra, tanto na criança
portanto, exatamente como uma nuvem que quanto no animal, a existência de uma fase
passa, mas, diferentemente da noite, não ê onde as relações entre o sujeito e o mundo
uma nuvem preta. Parece que a impressão de exterior são conseqüências de situações que
alternância entre a claridade e a escuridão, devem sua estrutura momentânea e seu sen­
entre o dia e a noite prevalece sobre a nítida tido tanto às necessidades, apetites ou atos
determinação dos objetos e é expressa sob a do primeiro quanto aos objetivos e meios
forma substancial das nuvens. Contudo, con­ oferecidos pelo segundo, sem qualquer indi­
forme os casos, os efeitos ou as aparências vidu alização das realidades que constituem o
A C A U S A L ID A D E 409

campo perceptivo e operatório, a não ser a é vermelha? - Para não ir para o fu ndo da
que resulta de utilizações ou solicitações que água. - Como ela é vermelha? -Porqueprecisa
já se tomaram habituais. O objeto permanece ser vermelha, senão iriapara o fundo. A bóia
dissolvido nos diferentes conjuntos dos quais não pode se despregar, senão o barco vai
as reações perceptivo-motoras do sujeito fa­ para o fundo. Têm peixes que se chamam
zem-no participar. lamostins; depois, quando eles têm filhotes,
Contudo, mesmo que se veja estabiliza­ eles carregam eles nos braços. O vento po­
do, identificado e tenha se tomado reco­ de fazer os barcos irem para o fundo? - Por­
nhecível por si mesmo e em qualquer que que tem muito vento que f a z os barcos irem
seja a ocasião, os índices, virtudes ou male­ para o fundo. - Se os barcos têm uma bóia,
fícios que impõem a existência dele à cons­ como o vento pode fazê-los ir para o fundo?
ciência do sujeito estão longe de poder se - Porque, às vezes, a bóia se desprega. Têm
distribuir em qualidades definidas e distintas. pregos grandes atrás, e ãs vezes eles se sol­
À qualidade, ligam-se duas operações muito tam, quando não está bem pregado. - Se a
mais tardias: a análise que decompõe o obje­ bóia não se soltasse, o vento não poderia
to segundo seus diferentes caracteres per­ fazer o barco ir para o fundo? - Não. Mas
ceptivos; a classificação que faz, de cada peixes, ás vezes, poderiam m order a bóia
caractère, um meio de aproximação ou de para pegar as pessoas que estão no barco,
oposição com outros objetos. A essa ela­ para machucá-las, às vezes, os tubarões, os
boração da qualidade sensível, a qualidade polvos.”
causai acrescenta, ainda, outras dificuldades,
pois sua união com os efeitos da realidade Várias causas são, aqui, justapostas: os
exterior acrescenta novas relações às de barcos flutuam se não houver água demais,
simples comparação perceptiva. O efeito ob­ se não houver ventos, se a bóia não se des-
jetivo pode não estar conforme com a im­ pregar ou não for arrancada pelos peixes e se
pressão subjetiva. É o caso, em particular, dos ela for vermelha. Dessas condições, apenas a
objetos ou dos conjuntos cujas diversas di­ bóia e sua cor parecem essenciais: “precisa
mensões qualitativas não variam no mesmo ser vermelha, senão iria para o fundo”. A cor
sentido. As contradições em que a criança^ da bóia toma-se causa com ela. Não lhe está
então, enreda-se mostram a que ponto ainda ligada como uma simples particularidade de
são grosseiras, impuras, ambíguas, fracionais, seu aspecto, é-lhe acrescentada sem qual­
as séries qualitativas por ela constituídas. quer idéia de relação e confunde-se totalmen­
A desordem que a explicação dos efeitos te com ela. Contudo, uma tão completa co-
ocasiona no sistema das qualidades pode, alescência só é possível entre dois termos
inicialmente, traduzir-se por um ato de rela­ como que isolados do resto e cujo encontro
cionar sem significado particular e, por vezes, atual esgota a significação. Na verdade, se
extravagante. cada um deles fosse reduzido à série da qual
dependem, a bóia à dos dispositivos que
C...in “Os barcos não afundam? - Não, fazem flutuar, e a cor às diversas pinturas com
porque tem uma bóia vermelha. Quando ela as quais um objeto pode ser revestido, seria
não é vermelha, ela afunda, p o r que, às difícil, para a criança, tomar um pelo outro,
vezes, tem água demais no mar. Têm ondas. atribuir-lhes efeitos que de modo algum lhes
- Quando não tem muita água, os barcos não pertencem. No presente caso, bóia e cor
afundam? - Não. - Quando tem muita água, os estão inteiras em seu encontro presente e
barcos não podem ficar em cima da água? - ainda não estão integradas à ordem de
Não. - E a bóia, como ela é? -Éassim (gesto no realidades de onde poderiam conservar sua
a r com o dedo). É vermelha. - Como éque ela . natureza e seu papel respectivos.
410 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Tanto quanto entre o objeto e uma de causai, parece isolar a qualidade em si mesma
suas qualidades, a confusão causai pode tam­ e atribuir o efeito unicamente a seu excesso.
bém ocorrer entre duas qualidades do objeto. Se se trata, pelo contrário, de comparar, por
seu intermédio, dois objetos, a criança esqui­
A...aud 6; “Por que os barcos não vão va-se: será a pedra maior que o barco, mais
para o fundo da água? - É fu n d o demais. - E dura que o barco? - Será a criança que afunda
se você joga uma pedra? -Ela fic a no fu n d o . mais dura que o barco? A cada uma dessas
- Por quê? - Porqueela não pode nadar. - Por perguntas, a criança responde apenas através
quê? - Porque ela é muito grande. - E os de uma diversão ou de um novo argumento.
barcos? - Eles nadam, eles não vão para o Provalvemente, trata-se aqui de uma com­
fundo. - Por quê? O barco não é tão grande paração um pouco complexa, que põe em
quanto a pedra? - A água é dura. - Os barcos relação, ao mesmo tempo, dois objetos e um
são maiores que as pedras? - São. - Por que a efeito. Mas, por seu lado, a comparação de
pedra vai para o fundo e o barco não? - dois objetos é um simples contraste, ou seja,
Porque a água não pode segurar a pedra. - um fato elementar de percepção, uma simples
Por que ela não pode segurar a pedra e segura estrutura binária, que não implica, de modo
os barcos? - Porque a pedra é mais dura. - algum, que a qualidade correspondente pos­
Como você sabe que a pedra é mais dura que sa ser pensada como uma ordem entre as
o barco? -Porquefizeram ela crescer. - Como? coisas, como um meio de classificação ou de
- Porque, se têm paredes grandes, a gente medida, como uma categoria. Elemento ain­
coloca ela, se têm buracões (gesto no ar). - Os da esporádico do conhecimento, não é sur­
barcos não são duros? -Não. ..têm barquinhos. preendente que a qualidade seja, alterna­
- E se a gente coloca a pedra no barco? - O damente, aquela que é encontrada no objeto
barco vaipara o fundo com a pedra. - Se um talvez fortuitamente, ou a que une com um
homem cai na água, ele vai para o fundo? - certo objeto a um certo efeito, freqüentemente,
Não,porque ele estavapçrto dem ais da água.. aliás, apenas calcando-se nesse último. Assim,
- Ele vai para o fundo se ele cai? - Vai, ele cai a água é dura porque resiste à pressão do
no fu n d o . - Por quê? - Porque ele é dum barco, mas não se trata de comparar a dureza
demais. - Você é duro? - Sou. - Como uma do barco à sua. Inversamente, a pedra é dura
pedra? - Não. - Mais duro que um barco? - porque vai para o fundo da água, assim como
Não. - Como você vai para o fundo e ele não? o homem que mergulha, mas não o barco,
-Porque, seagentepõeágua, obarcoafunda. " visto que flutua. A causalidade é, aqui, re­
duzida a uma ruptura de equilíbrio entre um
A imersão da pedra na água é atribuída a excesso e uma insuficiência. É visível que a
seu volume, não a seu peso, depois a sua dureza não é imaginada simultaneamente
dureza, e sua dureza ao volume que ela é na pedra, no homem, no barco e na água,
suscetível de assumir quando as pedras são como uma propriedade que lhes seria comum,
acrescentadas às pedras na construção ou mas em graus diversos. Ela serve para
reparação de uma parede. Essa substituição compará-los dois a dois, e o menos transforma-
de qualidade entre si, quer por confusão de se em mais, se o fato a ser explicado assim o
uma com outra, quer por atribuição sucessiva exige. Essa inversão é própria das estruturas
do mesmo efeito a cada uma, explicam-se binárias. Ela bastaria para mostrar que a
pelo caráter como que absoluto e próprio dos qualidade invocada ainda não é das que
objetos em que elas se encontram e pela permitem a comparação, a diferenciação, a
inaptidão consecutiva delas para servir para classificação. Não sendo ela mesma série,
comparações ou relaç&s. A palavra “demais”, pode apenas misturar-se às outras no plano
que acompanha tão ffeqüentemente o adjetivo da causalidade.
A CAUSALIDADE 411

Toda generalidade, toda força dedutiva que o tem po fica preto?... Como é q u e fica de
fazem-lhe, necessariamente, falta, A passa­ dia? - O tem pofica branco. - Por que o tem po
gem de um caso a outro depende da simples fica ora branco, ora preto?... O que é que faz
analogia. com que ele fique branco ou preto? - Porque
fic a de dia."
G...in 7; “A terra queima? - Não, senhor.
- O carvão queima? - Queima, sim , senhor. - A explicação poderia parecer, aqui, um a
Por que a terra não queima e o carvão quei­ simples tautología, ou então, a simples so­
ma?- Porque o carvão é duro; e, a medida que breposição do par preto-branco ao par noi-
queima, quebra. - A terra não queima? - te-dia. Contudo, a palavra tem po, que é, sem
Porque ela apaga ofogo. - Por quê? - Porque, dúvida, apenas um substantivo tão indeter­
quando a gente acende um fósforo, que a m inado quanto possívçl, é acrescentada para
gente põe na terra, ela não queima. - Quais permitir os dois epítetos preto e branco. En­
são as coisas que podem ser acesas? - Madei­ tretanto, ela introduz algo a que poderia ser
ra, carvão, papel, o barbante, o giz. - O giz? atrbuído um papel.
- Д sim, senhor. -E o que mais? - O paletó, os
sapatos, o lenço.” M...ez 6; “O que é que faz a noite? - Fica
de noite. - Como fica de noite? - Não sei. -
O carvão queima, a terra não queima, Pense bem. - É o céu que gira bem deva­
simples constatação. Parece que a compara­ garinho. - Como é que, quando o céu gira,
ção deles poderia fornecer um motivo lógico. fica de noite? - Tem preto. - Como Assim? - No
Um é duro e reduzido a p ó pela combustão, céu. - Então o céu é preto? - É. - E quando é
o outro já é pó no início. Mas, anteriormente, dia? - É branco. - O céu tem duas cores? -
o tijolo fora dado como incombustível devido Têm.”
à sua dureza, e a enumeração dispare que se
segue furta-se não somente à definição da Partindo de um a simples tautología “fica
dureza, mas, aparentemente, a toda defini­ de noite porque fica de noite”, esta criança
ção por pouco estável ou coerente que seja. atribui ao céu, que substitui, aqui, o tempo,
Há, portanto, apenas uma feliz coincidência um movimento de deslocamento; é a alter­
que pode fazer com que, em dois objetos, a nância noite-dia tom a-se um céu preto-
mesma qualidade coincida com um efeito branco. Este caso perm anece ainda indiviso
que lhes é comum. entre a explicação instrumental, um a esfera
envolvente semi-branca ou preta, e a simples
CONTRADIÇÕES E sobreposição de pares.
OPOSIÇÕES QUALITATIVAS
Da mesma criança, “O que é o sol? - É a
Ainda dois exemplos, para mostrar a lua. - E o que é a lua? - Épara olhar de noite,
ambigüidade ou as alternativas, por vezes quando é de noite. - E então, e o sol? -É a lua
contraditórias, das qualidades dadas como quefaz. - Qual é maior, o s o lo u a lua? -É o sol.
causa: ou seja, a cor e o peso. A causalidade - Como a lua pode fazer o sol? - Porque ela é
cor é, frequentemente, apenas uma simples branca. - Qual é a cor do sol? - Branco.”
tautología. É a constatação do efeito dado No início, há o par habitual lua-sol, sob
como sua causa. Contudo, ela pode compli­ sua forma mais simples, a identidade. Depois,
car-se. introduz-se entre os dois um a relação de fi­
liação e, enfim, a filiação converte-se na iden­
B...ot 7; “O que é que faz a noite? Como tidade de cor. Contudo, sendo o sol o termo
é que fica a noite? - O tempo fica preto. - por a ser explicádo, é do m enor que provém o
412 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

maior, paradoxo ao qual a criança deve, aliás, cair água, não fica de noite? - Fica. - Como é
ser muito pouco sensível, pois o vínculo que, às vezes, têm nuvens e não fica de noite?
causai assemelha-se muito mais a uma par­ - Porque são nuvens brancas. - Quando têm
ticipação mais ou menos ambivalente. Nessa nuvens brancas, fica ou não fica de noite? -
fase, o sentido do trajeto entre a causa e o efei­ Não fica de noite. - E quando fica de noite,
to permanece bem indeterminado. Outro como são as nuvens? - Elas são pretas.”
exemplo de participação por intermédio de
cor: Após uma simples tautología, e depois
uma razão finalista “porque a gente precisa
H.-.oux 7; “O que é a fumaça? - Épreto. - dormir”, a criança explica a noite pelas nuvens.
... Por que tem fumaça quando a gente acende Aqui, é a cor delas, semelhante à da noite, que
as fogueiras? - Porque a gente coloca carvão. parece estar em causa. De dia, as nuvens são
- Por que o carvão faz fumaça? - Porque ele é brancas. Explicação ou simples constatação?
preto. - Quando a gente queima papel, tem A criança, frequentemente, toma uma pela
fumaça? - Porque elefic a preto. - Como é que outra. Ela pode, até mesmo, ao misturá-las,
ele fica preto? - Porque a gente acende. - Por chegar a argumentos bizarros.
que ele fica preto quando a gente o acende?
- Porque ele fa z chamas. - por que ele fica N...et 8; 1/2 “A gente vê o sol à noite? -
preto quando faz chamas? - Porque a gente Não. - Como é que a gente não o vê? - Porque
acende. - E quando a gente acende carvão, de fica preto. - Como é que a gente vê as estrelas?
que cor ele fica? - Vermelho. - Por que ele faz - Porquefic a preto. - Por que a gente não vê
fumaça, se ele fica vermelho? - Não sei.” o sol e vê as estrelas quando fica preto? -
Porque as estrelas são brancas e o sol é
A explicação da fumaça através da amarelo. - O que são as estrelas? - Pedaços de
negrura do carvão poderia ser interpretada sol. - Como esses pedaços de sol são brancos
fisicamente, assim como a produzida pelo se o sol é amarelo? - Porque mudam eles de
papel. Contudo, o conjunto das respostas cor. - Como? - Colocam eles na tinta. - Quem
mostra, simplesmente justapostos, fatos de os muda de cor? - A tinta. - Quem os põe na
observação corrente. Uma sucessão de ma­ tinta? - Jesus.”
nobras bem aparentes, tais como acender um
fósforo, faz as vezes da ação causal; cada Constatações: o sol invisível e as estrelas
efeito é dado como sua própria causa. Assim visíveis à noite, a cor amarela do sol e “branca”
procede a participação, simples extensão, a das estrelas. Mas elas assumem forma causai
outros objetos, como que por contaminação, e a relação entre o sol e a noite inverte-se: é
da causalidade tautológica observada em um ela que o oculta. O preto tem, portanto, dois
deles. efeitos contrários, conforme se trate do sol ou
das estrelas. Essa diferença é, então, explicada
J...ot 8; “Como é que fica de noite? - por sua coloração diferente, apesar da suposta
Porque é de noite. - Por que é de noite? - identidade de sua substância, e essa nova
Porque a gente precisa dormir. - como é que contradição reduz a criança a uma explicação
fica de noite? - São nuvens pretas que apa­ artificialista e providencial. Contudo, qualquer
recem. - Sempre têm nuvens à noite? - Às que seja sua explicação, a diferença de cor
vezes, têm duas, três, brancas. - Se não tiver em nada explica a diferença de visibilidade
nuvens, não fica de noite? - Não. - Quando no preto. Esses exemplos mostram o quanto
têm nuvens, fica sempre de noite? - Não, nem são incertas e arbitrárias as relações de efeito
sempre. - Como é que não fica de noite quan­ e de causa.
do têm nuvens? - Vai cair água. - Quando vai Ao contrário da cor, o peso é, de todas as
í
A C A U S A L ID A D E 413

qualidades, aquela que pode parecer mais explicar quer resultados idênticos, quer
idênticas à própria substância das coisas, mas resultados opostos. As qualidades das coi­
é uma noção com duplo acesso e de duas sas são traços particulares a cada uma, que
dimensões. Em relação ao sujeito, é pesado podem ser encontrados em uma e em outra
aquilo que ele não pode erguer, é o peso com efeitos diferentes, e que não podem ser
absoluto. Mas o peso dos objetos comparados um meio de relação entre dois objetos, peso
entre si, o peso objetivo deles, é a densidade, do barco, por exemplo, e peso da água
onde o volume respectivo deles deve ser deslocada. As relações de qualidade são re­
considerado para tom ar a comparação pos­ guladas apenas pela contingência. As qua­
sível. lidades não são uma ordem que permite classifi­
car os objetos e verificar a que outros pontos de
S...itch 6; 1/2 “Se você coloca uma pedra vista eles são ou não comparáveis. Contudo, é
na água, o que é que acontece? - A pedra cai somente a esse preço que a causalidade toma-se
na água. - E se você coloca madeira? - A sistemática e necessária. Antes disso, ela é ape­
madeira, quando o barco vêm, ela nada. - nas uma simples afirmação de concomitância,
Por que a pedra afunda e a madeira nada? - sujeita a variar conforme os casos.
Porque é pesada demais. - O que é pesada
demais? - A pedra. - E o barco, ele nada ou
afunda? - Ele nada. - O barco é ou não é B...ette 6; 1/2 “Se a gente jogasse uma
pesado? - Eleêpesado. - O que é mais pesado, pedra no Sena, o que ela faria?... E madeira? -
o barco ou a pedra? - O barco. - Como é que Ela nada. - E a pedra? - Não. - Como é que a
a pedra afunda e o barco não? - Porque não é madeira nada? - Não sei. - E como é que a
igual. - Por que não é igual? - Não sei.” pedra afunda? - Épesada demais. - A madeira
é mais pesada que a pedra? - É. - Então, por
Pesado e afundar é um par que o voca­ que a pedra não nada? - Porque é pesada. -
bulário, assim como a experiência, impõem Mas a madeira, que é pesada, nada assim
à criança. Assim, ela dirá, indiferentemente, mesmo? - Nada. - Então, a pedra, que é pe­
que o que é pesado afunda e que o que sada, nada também? - Não.”
afunda é pesado. Mas o peso ainda não é Incapaz de comparar, com volume igual,
suscetível de provocar uma comparação en­ a madeira e a pedra, e atribuindo ao peso da
tre objetos. A criança limita-se a explicar o pedra o fato de ela afundar, o peso da madeira,
efeito pelo termo de excesso “demais”, que que ela diz ser maior, não impede de afirmar
isola, por assim dizer, a qualidade em si que ela flutua. Peso “demais” faz a pedra
mesma e faz dela uma razão suficiente, um afundar, “mais” peso permite que a madeira
motivo absoluto. Se se trata de apreciar o flutue. A qualidade, sob sua forma intensiva,
próprio peso, a criança o faz em relação a é causa. Sob sua forma relativa, ela não tem
suas próprias forças, a sua intuição dinâmica. mais efeitos constantes.
O barco é, portanto, mais pesado que a pe­
dra, e, contudo, não afunda como a pedra. A...on 7; 3 “Uma rolha vai par o fundo do
A criança limita-se a responder que “não é Sena?- Não. - Porquê? - N âoépesada. - E uma
igual”, sem poder explicar melhor. Na ver­ pedra, vai para o ftindo do Sena? - Vai. - Por
dade, ela sabe proceder apenas por quê? - Épesada. - Por que que o que é pesado
aproximações individuais e por analogia. vai para o fundo do Sena? - Porque épesado
Após um combinado de efeitos semelhan­ dem ais para resistir. - O que quer dizer
tes e de diferenças, ou de efeitos desse­ pesado? - Não sei.-O que é pesado? - A terra.
melhantes, apesar das semelhanças, ela é - E o que mais? - Árvores. - As árvores vão para
incapaz de atingir o fator conveniente para o fundo do Sena? - Vão.”
414 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Aqui, manifesta-se uma necessidade de ela abandona a explicação qualitativa pela


acordo entre a presença do peso e seus efeitos. explicação instrumental. As dificuldades são
O par pesado - não pesado sobrepõe-se ainda mais visíveis no exemplo seguinte.
exatamente ao par boiar-afundar. Relação
absoluta. Ele é aplicado a casos em que a G. B...et 8; “Se você joga uma rolha no
experiência demonstra o contrário. A dedução Sena, ela fica no mesmo lugar? - Ela afunda.
está em oposição com a observação. A noção - A gente não a vê mais? - Têm vezes que ela
de peso parece, aliás, confusa ou puramente nada. - Como é que ela nada? - Porque ela é
tautológica: é pesado aquilo que não “resiste” um pouquinho maior. - Como é que ela
à obsorção. afunda? - Porque ela é pesada demais. - Por
que, âs vezes, ela é pesada demais e, outras
N...ot 7; “Os barcos afundam?- Não. - Por vezes, não é pesada demais? - Porque ela é
quê? - A água segura. - Como a água faz para grande. - Quando ela é grande, ela é pesada
segurá-los? - Não sei. - Pense bem. - Não sei. ou não? - £ que ela épesada. - Quando ela é
- Uma pedra afunda? - Afunda. - Por quê? - grande, ela afunda ou não? - Ela afunda.”
Porque ela não está num barco. - E um rolha?
- Não. - Por quê? - É a água que segura. - Por Além do peso, o volume é, aqui, in­
que a água segura a rolha e não a pedra? - vocado. Mas, em vez de compô-los entre si, a
Porque a rolha não é pesada e a pedra é criança começa opondo seus efeitos. Maior, a
pesada. - O barco não é pesado? - K - Por que rolha flutua, enquanto seu peso deve fazê-la
a água o segura? - Porque ele não é tãopesado afundar. Cada um dos dois fatores parece agir
quanto a pedra. - Você pode segurar uma por sua própria conta e de maneira inversa.
pedra com a mão? - Posso. - Você pode segurar Talvez a criança tenha o vago sentimento que
um barco? - Não. - O que é mais pesado, a a associação deles exige uma correção. Mas,
pedra ou o barco? - É o barco. - Por que o em vez de fazer a correção apoiar-se no peso
barco não afunda, se ele é mais pesado que a subjetivo -o maior volume de uma substância
pedra? - Porque ele tem um a hélice que o pode fazê-la parecer mais pesada sem que ela
segura. - Não existe barco sem hélice? - Existe. realmente o seja -, é ao peso subjetivo que a
-Por que eles não afundam? - Porque eles têm criança retoma quando conjuga peso e volume
grandes barras em cim a.” no mesmo objeto e, contrariamente à sua
primeira afirmação, ela conclui que a rolha
O peso assume, aqui, uma espécie de maior é a que deve afundar. A primeira
valor recíproco ou relativo: sendo a água confrontação entre peso e volume tende a
dada como o que sustenta o barco ou a rolha, opor as noções qualitativas como influências
a força que o faz flutuar ou afundar não está absolutas. Reunidas, elas não podem con­
mais localizada apenas nos objetos. Ao mesmo tradizer o sentimento subjetivo. A causalida­
tempo, o peso toma-sè um meio de comparar de não pertence ao campo da intuição sen­
sistematicamente os objetos entre si, qual­ sível.
quer que seja, por outro lado, a diversidade
deles. Não apenas a rolha, mas o próprio CAUSALIDADE E TAUTOLOGIA
barco começam a ser ordenados como me­
nos pesados que a pedra. Esse duplo pro­ O campo de impacto sensorimotor, on­
gresse) simultâneo deixa, contudo, a criança de a ação encontra as coisas, deve estar
acessível ao argumento do peso subjetivo, subordinado a um campo de relações, onde
pois ela ainda não sabe compor o peso com as relações serão selecionadas e sistema­
o volume. Obrigada a admitir que o barco tizadas, onde as conseqüências poderão ser
pesaria mais em sua mão do que uma pedra, deduzidas, onde serão possíveis arranjos que
A C A U S A L ID A D E 415

permitam interpretar o acontecimento real e seja individualizado sob forma pessoal. A


que, comparando-se a ele e retificando-se, obrigação de explicar parecia ter conduzido
acabem por nele se calcar. Contudo, essa a criança à fase difusa em que os objetos
sublimação intelectual da experiência bruta, ainda não são bem distinguidos da impressão
esses campos de projeção onde a coisa que produzem, onde sujeito e coisas ainda
encontrada será detalhada em símbolos estão misturados, ativo e passivo confundi­
sempre disponíveis, onde relações serão dos. A emergência, nessa massa flutuante, de
livremente construídas e depois comparadas termos consistentes e duráveis pode iniciar,
entre si e com o acontecimento, é um gênero no plano ideológico, certas distinções que
de atividade ainda inacessível à criança, são munirão o pensamento de termos a serem
regiões de seu pensamento impermeáveis, unidos ou opostos. Mesmo quando a causa
como podem sê-lo as regiões de seu sistema indicada é puro eco do efeito, ela não assume
nervoso que não atingiram seu período de menos, desse modo, uma espécie de an-
maturação funcional. terioridade sobre ele. A tautología inicia, as­
Ainda limitada ao plano de suas relações sim, o desdobramento da força e do resulta­
empíricas com coisas, a criança, contudo, é do. Ela pode, também, realizá-lo explicita­
impelida, pelas necessidades nascentes de mente.
seu pensamento, pelo material mental à sua
disposição, pelas solicitações de sua am- Le D...out 7; “O vento não está vivo? -
biência humana, a lhe dar uma réplica ideal. Não, é ar, a r que salta. - Como o vento salta?
Mas, inicialmente, é apenas sob a forma, - É o a r que o so lta ”
muito vã, de um redobramento tautológico. É
o efeito causa de si mesmo, a causalidade Seguramente, dando-lhe como sinôni­
circular etc. Freqüentemente, o emprego do mo “ar que salta", a criança não dá a conhecer
neutro marca esse esforço para dar às coisas a causa do vento. Contudo, ela o decompõe
um princípio que não seja literalmente elas em substância e ato, o que é quase uma
mesmas. definição. A criança é, aliás, levada, pelo mo­
vimento de seu pensamento tanto quanto
B...rt8; “O que é o sol? - F azcalorno céu. pela assonância, a uma individualização mais
- Como o sol faz calor no céu? - Porque isso analítica - “o ar que salta" toma-se “o ar que
queima. - Como o sol pode queimar? - Porque solta o vento" -, em vez de um sujeito e de
tem disso no céu. - Como o céu pode queimar? uma ação, um sujeito, uma ação, um objeto.
- Porque f a z calor no céu. - O que é que faz
calor, o sol ou o céu?- Éosol. - Como ele faz L...et 6; 1/2 “O vento se mexe sozinho? -
para queimar no céu? - Não sei.” É. - Como ele faz? - Porque o a r fa z ele andar.
- Como o ar faz o vento andar?... São as folhas
Provavelmente, para dar-se a ilusão de que fazem o vento andar ou o vento que faz
não se repetir pura e simplesmente, a crian­ as folhas andarem? - É o vento que fa z as
ça separa do objeto como que sua emana­ folhas a ndarem ”
ção sob a forma de um neutro, que poderia
ser tanto seu efeito quanto sua causa. Na re­ O desdobramento do vento em ar e em
alidade, ela se restringe ao par sol-calor e fica movimento é tanto mais importante aqui que
entre esses dois termos, sem qualquer va­ a criança começou dizendo que “o vento se
riedade, a não ser o sinônimo “queimar". O mexe sozinho” e acabou atribuindo-lhe a agi­
próprio sol é, inicialmente, expresso por tação das folhas. Aqui, ainda, a ação desen­
uma locação neutra “Tem disso..." São ne­ volve-se em ação transitiva: “o ar faz o vento
cessárias repetidas perguntas para que ele andar”.
416 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

G...ain 6; “Como é que o vento se mexe? H...oux 7; “Por que a tempestade faz
- Porque tem alguma coisa que f a z ele apa- ondas? - Porque isso cai cornforça. - O que cai
recer. - Essa alguma coisa, o que é? - É a r mais com força? - A água. - Que água? - Do céu. -
forte. - Como o ar pode ser mais forte? - Ele Como a gente chama a água que cai do céu?...
empura o vento. - Como ele pode ser forte Você já viu água cair do céu? -Já. - É a mesma
para empurrar o vento? - Porque é a r vivo. - coisa que as ondas? - Não. - Como a água que
De onde vem esse ar vivo? - Vem de um lugar cai do céu pode fazer ondas? - Isso cai com
frio.” força, com força."

A tautología é, aqui, menos evidente. No início, um neutro, “isso”, depois, sob


Inicialmente, é alguma coisa que faz o vento a pressão das perguntas, “isso” toma-se água.
aparecer, ou seja, um agente que parece ser- Essa água não é mais a das ondas, mas a que
lhe estranho. Essa alguma coisa é o ar, mas a tempestade faz cair do céu. Essa passagem,
que é imediatamente distinguido do vento provavelmente facilitada por “isso”, dissocia
por uma diferença de força. Enfim, o par o conjunto sincrético de onde partira a crian­
habitual vento-frio leva a definir o vento ça; e o único meio que ela encontra para
como ar proveniente dos lugares frios. A estabelecer uma relação é de dobrar o ad­
explicação tautológica ou substancial, após vérbio de intensidade “com força”, grau sem
ter sido acompanhada por uma explicação comparação.
qualitativa, transforma-se em explicação es­
pacial ou geográfica. Assim, o material verbal Le D...out 7; “O sol se mexe? - Não. - À
ou mental de distinções, de comparações ou noite, ele fica sempre no mesmo lugar? - São
de noções empíricas de que a criança dispõe as nuvens que o escondem. - Mas e quando
já inicia vias por onde poderão enveredar tem, assim mesmo, luz e a gente não vê o sol?
suas explicações, à que lhe será possível - É que têm menos nuvens.”
conceber relações estritas e constantes. Os
exercícios aos quais ela se entrega dessa Ainda uma diferença de grau, desta vez
maneira não são inúteis, mesmo quando se localizada na causa suposta. Ela não exprime
limitam a uma reduplicação do efeito ou são mais uma intensidade qualitativa, mas uma
simples artifícios verbais que nada acres­ quantidade de substância. Indica apenas uma
centam ao seu conhecimento ou à sua com­ oposição e não uma verdadeira quantidade.
preensão das coisas.
Por exemplo, bem antes de saber cons­ H.-.oux 7; “Como é a água do mar? -
tituir escalas qualitativas que lhe sirvam para Salgada. - Como você sabe? - É a areia. - Se
medir os efeitos entre si segundo suas va­ você colocasse areia na água do Sena, ela
riações estritamente graduadas ou segundo ficaria salgada? - Não. - Então por que a água
as variações de suas causas, a criança utiliza, do Sena é salgada? - Vem da areia. - Se você
freqüentemente, os termos “mais” e “menos”. colocasse area na água do mar, ela ficaria
Provavelmente, apenas enuncia um senti­ salgada? - Não. - Por que a areia salga a água
mento de diferença. A comparação é apenas do mar e não a água do Sena? - Ponqué agente
Um contraste entre dois terme®, estrutura não coloca tudo. - Mas e se a gente colocasse
elementar. Mas é um manusear que prepara toda a areia do mar, salgaria o Sena?- Salgaria."
o momento em que a criança saberá não
apenas enunciar relações ao mesmo tempo O caráter absoluto da quantidade não
contingentes e absolutas, mas diferenciar em poderia ser mais nítido. Seria preciso toda
relação à causa delas, os gratis de um mesmo areia do mar para transformar a água doce do
efeito. Sena em água salobra. Não é dosagem, mas
A CAUSALIDADE 417

inversão total de uma na outra. A aderência ressalta séries de algum modo independentes
que a quantidade conserva com o sincretismo e que permitiriam aplicar-lhes relações válidas
é evidente. A assimilação completa da areia para todos os casos análogos. As estruturas
com a salinidade da água é um segundo traço causais permanecem no estado elementar de
disso. Assim, as diferenças de quantidade ou estruturas, que se referem apenas aos dois
de grau que intervém nas explicações da termos unidos no momento, ou de simples
criança ainda só têm função nas comparações modos operatórios eventualmente transfe­
binárias e globais. Sob a forma de qualidades ridos de um grupo de objetos a um outro, por
ou de propriedades, assim como sob a forma vezes muito diferente.
de relações puras, a causalidade ainda não
tê tm . c a í
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS

Descrever, denominar o objeto, classifi­ conhecimento. Mas, sobretudo no início, elas


cá-lo, segundo seus caracteres e suas quali­ correm o risco de serem confundidas ou de
dades, em seu lugar entre outros objetos, é não poderem se reunir. É a alternativa habi­
dele conhecer a natureza, não explicar-lhe e tual quando a diferenciação ainda é insufi­
nem mesmo constatar-lhe a existência. Ele ciente, e que pode ser observada na história
poderia ter desaparecido e não mais poder do conhecimento: a Idéia fundamento do ser,
reaparecer, que sua representação poderia o gênero da espécie, a espécie do indivíduo;
convervar-se e permitiria compará-lo a ou­ ou, ao contrário, o mundo descrito com o
tros, como ocorre em paleontologia. O caso resultado de criações miraculosas. Há ambi­
seria semelhante mesmo para um objeto pu­ güidade semelhante na criança: ela toma,
ramente imaginário. Definir é fornecer à i- facilmente, o que imagina pelo que é, e a
deação sua matéria e seus instrumentos, é descrição ou o relato fazem-lhe as vezes de
ampliar e melhorar os meios de compreen­ explicação. A essa mistura da representação
são. Mas o real não está implicado na re­ e do real corresponde não apenas a flutuação
presentação e nem em suas análises ou seus que vimos anteriormente nos limites da re­
sistemas. Ele depende das relações que unem presentação, mas também nos do real.
os fatos aos fatos, abstração feitas das se­
melhanças ou das diferenças destes. Sobre a EXTENSÃO CONCRETA
percepção, pode ser construído um edifício E ESPAÇO-MEIO
de qualidades, que tomam possíveis aproxi­
mações entre objetos cujo encontro nunca foi As primeiras relações a se liberarem da
observado. Mas ela comporta também um experiência concreta são as relações de lugar.
aqui, um agora, que atestam a presença do Elas o fazem em várias etapas. Inicialmente,
objeto, e que suscitam o problema do porque, no plano perceptivo-motor, é a redução em
na medida em que o fato de existir supõe os um único dos espaços sensoriais, postural,
meios para existir. preensivo, locomotor, e sua liberação simul­
As duas orientações que partem do que tânea dos gestos ou dos objetos que o mani­
é percebido pelo sujeito - representações e festam. As explorações da criança no mun­
relações - estão ligadas. Elas podem ter que se do exterior e em si mesma mostram os pro­
completar; podem altemar-se na obra do gressos dessa adaptação, gradualmente mais
420 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

coerente, mais polivalente, mais extensa. No pode multiplicar sua existência, se sua perce­
plano da representação pura, ou seja, sem pção é imaginada como multilocal.
objeto presente, as perguntas de lugar se­ Coisa e posição permanecem confun­
guem de perto as de denominação. As distin­ didas. O espaço ainda não é o local das
ções de lugar parecem, então, subordinadas trajetórias que cada objeto poderia nele tra­
à identificação dos objetos sob um vocábulo çar. ele está nas coisas mais do que as coisas
correspondente. De fato, como imaginá-los nele. Parece capaz de especificá-las comple­
em outro lugar onde não foram percebidos se tamente. A noite é o que vem do céu. Um
não foram nitidamente individualizados? A reflexo de sol sobre a parede é uma luz que
palavra é o signo indispensável para a realiza­ nada pode ligar ao sol, cujos raios incidem
ção mental deles. Ela atesta a permanência no aposento; substância e causa estão in-
reconhecida na soma de impressões que a teiramente ali, no lugar da mancha luminosa.
presença de um mesmo objeto pôde dar; ela A fumaça é, sucessivamente, assimilada ao
é o que fixa e mantém essa permanência à céu onde se dispersa inconsistente, sem limi­
disposição da atividade intelectual. Ao mes­ te nítido ou durável, ao circuito que ela
mo tempo, atesta-lhe a validade para todos os percorre entre o forno e a chaminé, à flores­
objetos semelhantes e a oposição com o ta onde o fósforo acendeu o fogo, aos luga­
dessemelhante. Ela classifica qualificando. res quentes, fonte de calor e, portanto, de
As relações de lugar supõem, portanto, a fumaça. Parece que se trata da mesma fuma­
representação qualitativa das coisas. ça, e disso resulta uma estranha aparência de
Iniciálmente, a diferenciação permanece assimilação entre esses lugares que, no en­
indistinta entre a imagem das coisas e o es­ tanto, são bem distintos. A identidade qua­
paço ocupado. Ela só se opera sucessivamen­ litativa ocasiona como que uma participação
te para as diversas categorias de objetos. mútua entre as mais diferentes regiões do
Precoce para os que entram diretamente na espaço.
atividade da criança, que pertencem a suas Vemos, por outro lado, que lugar e cau­
manipulações costumeiras, que lhe servem salidade parecem permanecer confundidos.
habitualmente, ela é tanto piais retardada O local onde a coisa é percebida parece ser
quando os objetos se furtam mais às investi­ dado como uma razão suficiente de sua exis­
gações sensorimotoras da criança ou quando tência. Mas como as relações seriam nitida­
ocupam espaços fora do alcance dela. Em vez mente delimitáveis entre si, se permanecem
de ser um sistema de relações e como que um misturadas à substância dos objetos e à sim­
meio homogêneo, onde o objeto possa ser ples representação dos mesmos? Pode ocorrer,
imaginado como idêntico a si mesmo em seus sem dúvida, que a análise científica deva, por
deslocamentos, o espaço permanece impre­ vezes, reduzir a causa a posições. Ela pode ter
gnado de elementos existenciais e qualitati­ que modificar as classes nas quais as necessi-
vos. Ele é, como as coisas, uma realidade dadas mais correntes introduziram o real, e é
sensível e particular. Uma diferença de lugar útil saber que, longe de serem um dado ou
pode implicar diferenças de identidade indi­ uma condição inicial, essas classes são uma
vidual, de propriedades, de causa. Assim, po­ aquisição por muito tempo incerta, ambígua
dem surgir conflitos entre a definição subs­ ou que, por vezes, permanece variável e
tancial e a definição local de um objeto. A lua frágil. Mas esses retornos do que fora diferen­
é, alternadamente, assimilada ao sol, como ciado ao mesmo estão bem longe do que o
materialmente idêntico, e fragmentada em sincretismo conserva confundido e como que
quatro luas, devido a diferenças locais que em estado difuso. Entre os dois, distribuem-
lhe são atribuídas. O lugar onde é percebido se todas as operações, as razões e os resultados
o objeto esgota sua realidade, mas também operatórios que transmutam o real segundo
C O N C L U S Õ E S E C O M E N T Á R IO S 421

seus empregos, os postos de observação ou localizada em todo lugar; e, por oposição, são
os meios de experiência. colocados fora de em todo lugar os objetos
Os qüiproquós por muito tempo come­ que são percebidos individualmente. A me­
tidos pela criança mostram a dificuldade que dida comum do número e da extensão é,
ela sente para dissociar, dos objetos desdo­ aqui, o indefinido. O que está disperso parece
brados, o que se tomará o espaço comum a sinônimo de espaço total. Mas, na realidade,
todos, o meio onde todos devem poder existir total ainda nada é para a criança, a não ser um
e se mover, como se ele fosse neutro e homo­ dado empírico. É um conjunto qualquer, sem
gêneo. Ela começa, freqüentemente, por coordenação precisa com outros conjuntos.
designá-lo, em oposição com o que é locali­ Falta à totalidade, para fundir-se inteiramente
zado ou localizável, como “em todo lugar”. em si, e a uma soma, para apropriar-se de
Mas esse “em todo lugar” logo é posto fora suas próprias partes, ser verdadeiramente um
dos objetos e reduzido, por exemplo, ao limite ou um agrupamento que tenha seu
vazio do céu. O espaço toma-se, assim, uma critério ou sua lei.
realidade acessória, é pura e simplesmente
justaposto às coisas, na medida em que estas ESPAÇO SENSÍVEL
são incompatíveis com o vazio. Se por acaso E ESPAÇO PENSÁVEL
ele se aproximar delas, então tende nova­
mente a se confundir com as qualidades do Nessas confusões insere-se uma outra, a
objeto, ou com outras relações dos objetos do pensável e do percebido. A árvore que a
entre si. O sol, por exemplo, está em todo criança vê, está la, não está em todo lugar. A
lugar, embora pareça pequeno no céu. Esse árvore que ela imagina, a árvore em geral, a
em todo lugar tende a expressar, prova­ árvore coletiva, é por ela colocada em todo
velmente, a difusão, através de todo o céu, da lugar, pois não sabe onde situá-la. O conjun­
luz irradiada por essa fonte, cujo lugar ocu­ to dos lugares reais, mas que é pura repre­
pado é tão pequeno. Mas, desse modo rein- sentação, visto que ultrapassa, necessaria­
troduzido no próprio objeto ou em suas ema­ mente, todos os campos perceptivos par­
nações, novamente transformado em sua pro­ ticulares, é, assim, confiscado pela aptidão
priedade intrínseca, confundido com suas para imaginar o objeto não individualmente,
dimensões, “em todo lugar” põe em conflito mas em série indefinida. Ou, inversamente,
a ubiqüidade do sol e seus deslocamentos, a imagem permanece monopolizada por
que exigem um campo mais vasto que ele uma representação ainda concreta do espa­
mesmo. Ainda não há subordinação da parte ço, mesmo se ela já não é mais uma simples
ao todo. Cada grandeza é pensada por si imagem, mas o poder de imaginar o objeto
mesma. “Em todo lugar” permanece sendo como se quiser. O virtual ainda provém do
uma qualidade e uma qualidade absoluta. real. Realização e exposição no espaço sempre
Ainda não é o que se opõe a toda localização prevalecem sobre o pensamento potencial,
particular, melhor dizendo, o que não pode a imagem sobre o conceito. Na migração de
ser concebido sem a aptidão para integrar o um para outro, vemos o papel que o espaço
dado, qualquer que este seja, eríi uma noção desempenha. Após ter-se liberado dos es­
limite. paços sensorimotores. particulares para
Por intermédio de “em todo lugar” opera­ constituir o meio homogêneo onde os obje­
se também a confusão entre o espaço e a tos são isoláveis e podem permanecer os
quantidade. Está em todo lugar o que parece mesmos mudando de lugar, ele deve ou dei­
inumerável. De modo menos preciso, uma xar os objetos libertarem-se dele quando
multiplicidade vaga de objetos que não podem passam ao estado de representação ideal e
ser imaginados sob espécies particulares é de imagens em potencial, ou ele próprio
422 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

sublimar-se, como o campo diferente do em Boulogne e em Paris. Para admiti-lo, se­


campo perceptivo onde as representações ria-lhe necessário representar, entre os dois
puras possam se desdobrar, sem se fixarem fragmentos, um espaço contínuo onde po­
instantaneamente na imagem do real. Para deriam estender-se os sítios do rio. Mas essa
a criança, os dois planos permanecem, por é uma base que ela ainda não sabe destacar
muito tempo, mais ou menos indiferencia­ das coisas e na qual, por conseqüência, ela
dos, e é por isso que parece tão fácil altemá- não pode nem distribuí-las, nem movê-las. O
los. vago e a inexatidão dos termos que ela em­
O espaço é o que há de mais constante prega para marcar as relações de lugar mos­
no objeto de nossas impressões, visto que tram a que ponto falta coerência a essa base:
cada coisa tem sua extensão e seu lugar. Ele “ao lado” e “em” são tomados um pelo outro;
está misturado às diferenciações essenciais: ela responde “quase não fica” à pergunta
não apenas a das partes e do todo, cuja “Orly fica em Paris?”. Freqüentemente, ela
insuficiência é mostrada por “em todo lugar” indica lugares com o auxílio de objetos, sendo
quando, em vez de serum limite comum, ele alguns deles móveis: pontes, barcos, carros,
se justapõe a outros “em todo lugar” ou a estradas. Ou então ela expressa uma exten­
outros espaços; não apenas a do objeto são através de uma sucessão de objetos em­
percebido e de sua representação coletiva ou parelhados, como se fosse incapaz de ima­
virtual; não apenas a do disperso e do extenso, ginar intervalos, que não se confundam, eles
do difuso e do ilimitado, do número e da próprios, com objetos. Ela parece estar na
ubiqüidade, mas também outras diferencia­ alternativa ou de identificar o espaço com
ções, de aspecto mais concreto e mais ele­ objetos, ou de confundir as relações de espaço
mentar. Durante muito tempo, a criança pa­ entre si. O espaço parece assimilar-se nas
rece tentada a explicar o efeito específico coisas, assim como, a pouco tempo, parecia
através do lugar ocupado: a simples regra ser o supremo determinador delas.
deve fazer cada planta brotar do local pre­ Essa contaminação persistente do espa­
destinado. É pura constatação, poder-se-ia ço e das coisas acarreta conseqüências que
dizer, que nos campos cresce trigo, nas poderiam parecer extravagantes. Desse modo,
pradarias, capim, na horta, legumes, no jardim, a criança parece admitir, ao mesmo tempo,
flores. Mas a incapacidade para ultrapassá-la que o sol sai do céu, mas que ele ainda está
confunde-se com a atribuição imediata do ali. Ela não sabe, portanto, escolher expli­
efeito ao lugar, A identificação das coisas com citamente entre a exteriorização e a inclusão,
a topologia pode ser ainda tão bruta que exigência que nos parece indispensável, mas
lança a criança na incoerência: desse modo, porque nos sentimos obrigados a relacionar
o gelo que ela vê formar-se no Sena é, ao os deslocamentos do sol a um céu ou um
mesmo tempo, o gelo do Pólo Norte e, al­ espaço unificado, do qual a criança ainda não
ternadamente, ela os substitui entre si ou os tem a nítida intuição. Ocorre-lhe também de
adiciona. As diferenças das coisas permane­ fragmentar o céu em vários céus, conforme
cem ligadas às diferenças de lugar. Causa e ele seja fonte de frio ou de calor e conforme
lugar continuam confundidos. a cor de suas nuvens ou as regiões de onde é
Com freqüência também, a existência percebido. Por volta de sete a oito anos, o céu
local das coisas conserva algo de exclusivo, parece, com freqüência, servir de mediador
como se elas só fossem imagináveis no local entre as coisas e o puro espaço. Se, na verda­
onde foram vistas; e o mesmo objeto desdo­ de, ele não está vazio, o que nele é percebi­
bra-se ou fragm entare se sua presença é no­ do é impalpável, difuso, disperso, incon­
tada em lugares diversos. Uma criança acha sistente, mutável ou móvel, como a luz do sol,
impossível que o Sena corra simultaneamente as estrelas, as nuvens. Ele é uma imagem
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 423

ambígua que parte da percepção, mas que já uma simples descoloração dos dados sen­
carrega consigo algo com que se pode ul­ síveis. Ela resulta do sentimento de que a
trapassar os limites da imaginação sensível, realidade escapa parcialmente aos sentidos e
para servir de meio a toda imagem, ou melhor, à imaginação, de que ela não está inteira na
a toda existência possível. Para ultrapassar experiência efetiva, de que é preciso prolongá-
todas as coisas, a criança, inicialmente, toma, la para além das simples práticas subjetivas.
como medida do todo, uma coisa. É o que se furta à influência delas e que
Mas hã aí contradição, e a operação não permanece incompreendido que obriga ‘a
pode ser feita por simples desaparecimento transferência das coisas para o mundo das
dos objetos em um outro e de todos os limites idéias. O ocultismo, aliás ligado freqüen­
neste. Pois o objeto é apenas uma grandeza temente ao estudo dos astros, prenunciou as
particular, que o torna comparável a um outro. categorias do conhecimento, precisamente
É por isso que a criança representa a grandeza porque não era um dado, mas uma busca,
do céu como sendo igual à da França, sem e porque colocava, por trás das coisas,
considerar outros países também cobertos potenciais. Os simulacros gestuais, gráficos,
por ele. É sempre a mesma dificuldade das orais foram os meios de captar esses po­
relações entre as partes e o todo, mas agravada, tenciais; deles foram extraídos os símbolos
pois a passagem que deve operar-se aqui não que servem, para a ciência, para os mesmos
é do menor ao maior, mas ao que deve fins. Em toda representação das coisas há
ser maior que qualquer outra grandeza, e, uma intenção ou uma significação de po­
quaisquer que sejam, suas dimensões e seu tencial.
número, conter a todas. É a passagem do que
está determinado ou pode ser determinado TEMPO VIVIDO E TEMPO OBJETIVO
ao que é potencial. Em vez dessa passagem,
na verdade conceituai, a criança só é capaz Enunciar ou constatar uma coisa, um
de prender-se ao particular e de considerá- acontecimento não é apenas dizer “aqui ou
lo como absoluto, o que é simples inapti- lá”, mas também “agora, antes ou depois”. O
dão para apreender relações. Os absolutos fato simplesmente observado, gravado, tem
sucedem-se e substituem-se em seu espíri­ duas coordenadas, o espaço e o tempo. Mas
to, assim como seus pensamentos são es­ especificar “antes” e “depois” em relação a
porádicos e não-coordenados. O absolu­ “agora”, ou seja, especificar o próprio “ago­
to é um sentimento bruto e estéril, comple­ ra”, exige que a coisa, o acontecimento, ou
tamente oposto à conquista racional do mesmo a sucessão bruta, inscrevam-se entre
universo, que dá ao efetivo sua definição os termos de uma série que tenha alguma
virtual. homogeneidade e alguma independência. O
Contudo, o inacessível espacial estimula tempo psicológico não é um dado inicial.
esse esfoço do pensamento, e o papel da Mesmo já muito desenvolvida, sua elabora­
astronomia deve ser sido importante para ção permanece cheia de saltos e de ilusões,
libertá-lo do simples empirismo. Provavel­ como o adulto pode constatá-lo em si mesmo
mente, o homem, se só tivesse se interessado se não tem a ajuda do calendário e se não
pelo que é manipulável, não teria ultrapassado substitui suas impressões pessoais pelos da­
a inteligência prática, que ele tem em comum dos do mesmo. O tempo tem, como com­
com os animais. Não é possível ao animal ponentes indissoluvelmente complementa­
obstinar-se em direção ao que suas tentativas res, o fato subjetivo e a ordem objetiva de
mostram-lhe fora de seu alcance, em direção sucessão. Querer reduzir um ao outro é des­
ao que se tomará o incompreensível no plano truí-lo. Mas, pelo menos, encontramos, de
intelectual. A passagem à abstração não é um para outro, uma grande variedade de
424 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

termos intermediários; ou melhor, a com­ acessíveis, das sínteses de onde o sentimento


binação indispensável dos dois faz-se em elementar da duração extrai sua fonte. Os
diferentes níveis, desde as referências mais primeiros desenvolvimentos, na vida psíqui­
íntimas até as tabelas cronológicas. ca, já são algo de organização.
A crítica de Bergson contra o tempo Quanto à ordem no tempo, as periodici­
objetivado, mecanizado e, como ele diz, dades curtas ou longas, fisiológicas ou de
espacializado, seria justa, se ela não tivesse ambiente, são, inicialmente, simples substi­
por objeto dar crédito a um erro, também tuições, onde o novo estado oblitera o prece­
grave, em proveito do tempo vivido. A intu­ dente e remove as etapas, mesmo recentes,
ição da duração pura, onde ele queria encon­ tanto mais para o irreal quanto menos elas lhe
trar o sentimento íntimo e primordial da exis­ forem semelhantes. A qualidade inicialmente
tência, o dinamismo fundamental da vida, é tem primazia sobre a cronologia. Cada uma
apenas refinamento da contemplação, despo­ das durações tem a uniformidade, como que
jando-se muito sutilmente de tudo o que estática, da nuança afetiva ou da circunstân­
ocupa efetivamente a sensibilidade mais es­ cia que lhe servem de índice específico; elas
pontânea e mais ingênua. Isso é presunção podem atrair-se ou repelir-se uma à outra
de desocupado ou de filósofo. Em todo caso, sem considerar os verdadeiros sincronismos
não há provas de sua prioridade genética. O ou sucessões. Aliás, como elas se ordenariam
comportamento da criança não pode fazer no tempo, se não são consideradas como
com que se suponha nada de semelhante. partes de um mesmo tempo? Ora, elas são,
Suas primeiras reações ao tempo são impaci- com freqüência, heterogêneas e sobrepõem-
ências, que são fruto de uma necessidade, de se entre si. Podem, até mesmo, relacionar-se
um sofrimento, de um desejo, de uma expec­ a outras existências que não a do sujeito. E
tativa, ou seja, de uma orientação em direção este deve reduzir todas elas à sua, ou melhor,
a objetos ou acontecimentos cujo pressenti­ ao presente, que é o único que pode dar-lhe
mento pode muito bem ser algo de mais ou o sentimento de existir, mas prolongando
menos íntíno, mas não pode ser reduzido à esse presente de modo impessoal e indefini­
qualidade da duração pura. Sdfosse necessá­ do para o futuro e para o passado. Ele deve
rio procurar-lhes um denominador comum, dar-lhe proporções incomensuráveis com sua
esse seria a insatisfação. E a análise do conte­ sensibilidade subjetiva. - Essa sublimação dos
údo manifesto deles daria tensões e disten­ tempos vividos no tempo universal, no tem­
sões musculares, generalizadas ou orienta­ po dm potencial, ultrapassa as capacidades
das : simples ímpetos convulsivos ou gestos da criança.
de súplica, de preensão antecipada e, mais Enfim, as divisões formais do tempo, tais
tarde, de simples acomodação em relação ao como a criança as encontra na linguagem,
objeto desejado. não são radicalmente oponíveis ao tempo
As referências psicofisiológicas da dura­ vivido. São apenas um nível mais abstrato de
ção vivida parecem múltiplas: são os ritmos, síntese entre seu senso íntimo e um sistema
que regulam não apenas as funções vegetati­ exterior de referências. O que deve causar-
vas da criança, mas os que acabam por ligar lhe mais embaraço é o caráter móvel de seu
seus movimentos, suas emissões vocais às presente, que a obriga a mudar o conteúdo
suas sensibilidades proprioceptivas ou audi­ concreto dos termos utilizados. “Agora” nada
tivas. O ritmo implica o tempo, mas só pode significa, a não ser situado entre “antes” e
tomar-se-lhe a medida e a consciência se “depois”. Transporte indispensável do pre­
escande outra coisa" que não ele próprio: sente para algo que o ultrapassa, síntese
objeto que balança, andar, melodias ou pala­ suscetível, por vezes, de enfraquecer-se e
vras. Esses são alguns exemplos, facilmente de distender-se em sentimento confuso da
CONCLUSÕES E COMENTÁMOS 425

duração, mas não intuição pura. O presen­ se abrem diante dela e a comparação de
te designado por "agora” logo fará “agora” outras durações à sua. Ela se mostra, na
coincidir com o que “depois” recobre, assim verdade, incapaz tanto de medir seu tempo
como, anteriormente, “agora” era aplicado ao pessoal quanto de reduzi-lo ao tempo vivido
que se tom ou “depois”. Conhecemos as ob- por outros, reduzindo todos ao tempo obje­
jeções da criança quando tentamos fazê-la tivo. Como sujeito, para quem as coisas só
admitir que é preciso chamar de “hoje” o que existem na medida em que as sente e as
era o “amanhã” de ontem e de “ontem” o que pensa, a criança tem a ilusão de ser anterior a
ela chamava de “hoje”. Seu vocabulário, ini­ tudo, e por vezes declara-se anterior até
cialmente, adere às circunstâncias externas. mesmo a seu pai. Contudo, a imagem que ela
Para ordená-las entre si e para dar a seu constrói de seu próprio nascimento leva-a a
vocabulário as verdadeiras significações dele nele implicar a existência de coisas anteriores
seria necessário o poder de apreender, si­ a ela mesma, como casas, e, por conseqüência,
multaneamente, os momentos e a sucessão a necessidade que tenham sido construídas
deles. A impericia da criança a esse respeito por alguém.
pode ser vista na maneira pela qual ela se A anterioridade subjetiva absoluta é, de
engana quando deve reconhecer e classificar fato, a própria negação do tempo. Supor
anterioridades entre si. A dificuldade aumen­ existências anteriores à sua é nele entrar? Mas
ta ainda mais quando lhe é necessário proje­ a criança o faz sob a forma mais anônima e
tar a sucessão em sistemas que fracionam o mais vaga de pronomes coletivos, prova da
tempo de maneira diversa: semanas, meses, dificuldade que sente para retirar sua própria
anos; períodos de 7, 30, 12. Ela opõe ou pessoa do campo onde ela inicialmente se
justapõe essas unidades de forma maciça, mira, antes de poder nele observar os outros.
designando cada uma delas com um número Ainda não há, verdadeiramente, desdobra­
qualquer. Ela mistura nelas até o sentimento mento de existência entre si mesma e as
de sua própria existência: diz que envelhece realidades exteriores, pelo menos na ordem
2 ou 3 anos em 20 dias. do tempo. Há, muito mais, reflexo das con­
dições familiares sobre um início, onde,
TEMPOS INDIVIDUAIS logicamente, elas não deveriam poder existir.
Mas não se trata, na realidade, nem de início,
Mesmo um fato como o crescimento, um nem de presente, nem de passado. A ante­
dos que melhor pode ser lembrado, através rioridades subjetiva não é um limite que nada
de mil circunstâncias, no espírito da criança, poderia ultrapassar. Não é um passado to­
só é apreendido por ela sob forma rígida e talizando todos os passados possíveis, um
imprópria. Em vez de continuidade indivi­ início onde todas as razões de existir assimilar-
dual e ordenada, há simples contrastes, onde se-iam. Não é aquele esforço sem conteúdo
a distinção das pessoas e' das etapas pro­ da razão, aquele espasmo sobre si mesma,
gressivas parecem estar, por vezes, mis­ através do qual ela se dá, por vezes, a ilusão
turadas. Acontece-lhe também quer de atri­ de encontrar para si mesma um termo derra­
buir ao crescimento uma espécie de valor deiro e supremo. É uma simples afirmação
absoluto e de acreditá-lo indefinido para ca­ incondicionada de existência, de onde a du­
da um (o que cresceu deve crescer sem limite ração ainda está ausente.
de tem po), quer de atribuir suas diferenças às A criança permanece ligada ao seu meio
diferenças individuais de apetite para a sopa. presente, mesmo quando é convidada a ex­
Mas ela não imagina o fato de enquadrá-lo na plorar o tempo. O que ela sente é tudo o que
diferença de idades, em que estão implicadas, existe, não por exclusão, mas por ignorância
ao mesmo tempo, a seqüência das etapas que e por negligência do resto. Ela carrega consigo
426 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

o tempo ou, melhor dizendo, ela não sabe à imagem que cada uma delas impõe pre­
nele deslocar-se. Pois ser-lhe-ia necessária, sentemente ao espírito, mas de delimitar a
para apreender seu próprio devir, isolá-lo das realidade de cada uma entre as outras, o que
coisas, e justamente através disso, tomar-se supõe um meio comum onde a própria exis­
capaz de atribuir às coisas um devir inde­ tência do sujeito possa ser posta em seu lugar.
pendente. Contudo, do mesmo modo, seria Apenas através disso a criança verá resolvidas
necessário relacionar cada devir individual a as contradições do tempo subjetivo, que se
uma medida comum, válida para todos os situa, na verdade, fora do tempo cronológico.
devires possíveis. Será somente nesse mo­ Criatura efêmera entre as criaturas, suas im­
mento que ela poderá classificar sua própria pressões assim a transformaram também em
duração entre todas as outras e encará-la no relação às coisas que elas representam, e
estado de puro objeto. cessarão de aí refletir a duração sem limite
Essa noção do tempo ainda é estranha à que ela se atribui. Cada ser tomar-se-á, assim,
criança. Como “em todo lugar” nas perguntas um termo distinto, cuja própria duração será
de lugar, o emprego que ela faz de “sempre” determinada com a ajuda de sincronismos na
mostra-o bem. Ela lhe dá, sempre, apenas um sucessão dos seres. Mas qui, ainda, é menos
sentido qualitativo e particular. “Sempre” re­ uma totalidade a ser encarada em relação a
laciona-se a cada objeto isoladamente. Não um dado conjunto de peças, que uma ordem
indica uma relação entre esse objeto e outros, onde devem inscrever-se todas as existên­
ou com uma medida qualquer de tempo. Ele cias possíveis. É uma ordem, onde todas as
é, pelo contrário, a constatação de uma exis­ durações realizadas ou realizáveis existem
tência por si mesma e sem delimitação. Nele em potencial. Querer realizá-la por si mesma
confundem-se o sentimento de que a coisa sob uma forma qualquer seria, portanto,
continua e o que que ela sempre foi, que não contraditório ou puramente verbal.
pôde começar a ser : o durativo e o existencial. Mergulhada no particular e no indefinido,
Contudo, aplicado a diferentes objetos, ou levada pelo desenvolvimento de suas expe­
seja, tomando-se sua medida comum, ele riências, incapaz de fixar o desfile delas numa
abunda em contradições. Pois, se cada um base onde cada uma assumiria seu lugar no
sempre existiu, não poderia haver entre eles tempo, a criança utiliza-se apenas das relações
anterioridade relativa, enquanto que, ao mais simples. Inicialmente, a de simultanei-
contrário, na aproximação deles, a criança dade púra, marcada por “quando”. É uma
pode dispensar-se de admiti-lo: seu pai e sua palavra cujo emprego, por parte do adulto,
mãe sempre existiram, mas o pai e a mãe pode corresponder a significações muito di­
destes existiram antes deles; o Sena e Bou­ versas, sobre as quais o contexto não pode
logne sempre existiram mas Boulogne é deixar hesitação: origem, finalidade, motivo,
anterior ao Sena. Os “sempre” permanecem, efeito, conseqüência, causa, indício. Elas lhe
portanto, individuais; não se integram em são dadas também pela criança, mas de mo­
uma mesma duração, em uma ordem de do indiferenciado, como atestam suas incon-
sucessão única onde os limites de cada exis­ seqüências: em vez de escolher entre elas, ela
tência possam ser comparados entre si. Os as toma uma pela outra, ou melhor, permane­
“sempre” concretos das coisas entram em ce numa espécie de sentimento ambíguo,
conflito a partir do momento em que se deve sendo que qualquer outra relação parece ser
passar de uma para outra. assimilada na de simples acompanhamento.
Sua unificação sob uma medida comum Até mesmo com freqüência, ela justapõe a
depende da mesma conversão que transforma “quando” preposições ou advérbios que mar­
o tempo subjetivo em fempo objetivo. Trata- cam a vacilação de seu pensamento entre
se de não mais limitar a existência das coisas relações ainda muito pouco distintas para
C O N C L U S Õ E S E C O M E N T Á R IO S 427

que ela saiba decidir-se entre uma ou outra. da crença. Ou entãp, é o invervalo entre a
Por mais elementar que seja a coincidência intermitência de certos efeitos e a constância
marcada por “quando”, acontece-lhe de cor­ da coisa que ela não sabe explicar, a não ser
rigi-la por “às vezes”. Assim é assinalado o através da própria intermitência, mas sem
caráter de simples encontro fortuito que ela distinguir a coisa de seus efeitos. É ela também
sabe reconhecer entre os acontecimentos ou que se toma alternante ou sucessiva.
as coisas. Nem necessidade, nem constância. “Às vezes” é o símbolo do fenomenismo,
Algo de surpreendente ou de habitual. Seu da pura contingência, ao qual o pensamento
pensamento ainda só é sensível ao eventual e da criança permanece, por muito tempo,
ao contingente. ligado. Seu contrário, “sempre”, demonstra
isso também, visto que, ao opô-los, a criança
O EVENTUAL nunca pode fazer-lhes ultrapassar o conteú­
do momentâneo de sua representação. Cada
É ao que corresponde seu emprego objeto tem seu “sempre” particular, em con­
incessante de “às vezes”, que acrescenta a tradição perpétua com o dos outros. Por seu
cada fato enunciado um índice de incerteza. lado, “às vezes” ‘é empregado, freqüente­
“Algumas vezes” tem uma significação mais mente, para indicar uma simples sucessão
evoluída; ele opõe o incidente à constância, onde também a ordem dos termos nada tem
o fato particular ao fato geral, a exceção à de objetivo. Provavelmente, a criança procura
regra; insere o acontecimento na trama do com freqüência marcar o antes e o depois,
real. “Era uma vez”, pelo qual são iniciados os mas, como para o sincronismo, é uma simples
contos infantis, abre, pelo contrário, à ima­ relação de dois termos, e quando a série
ginação, o campo do irreal. Essa expressão alonga-se, os retornos, as confusões são fre­
determinada do indeterminado situa, ime­ qüentes. A verdadeira sucessão das etapas
diatamente, o relato num tempo fora do tem­ perde-se na impressão global, pode ser per­
po. Mas essa é uma distinção que a criança turbada pelo interesse próprio a cada deta­
apreende apenas pela metade. Para ela, o lhe.
limite entre a ficção e o que existe ou poderia Portanto, as locuções de tempo são,
ser encontrado é flutuante. Seu gosto pela freqüentemente, para a criança, apenas uma
atividade lúdica contenta-se com essa im­ simples cobertura. Sãotermos, mais habituais
precisão. Ela fica muito menos à vontade que outros, sob os quais são expressas relações
quando suas respostas devem referir-se a quaisquer bu indiferenciadas. O tempo de
objetos que nada têm de fabuloso e que per­ nossas representações não é uma espécie de
tencem ao mundo da experiência sensível. meio natural onde cada coisa colocar-se-ia,
Uma primeira causa de incerteza é a por si própria, em seu lugar e onde a sucessão
diferença, que ela pode ser obrigada a re­ teria apenas que ser constatada. Ele deve ser
conhecer, entre as aparências e a realidade. construído, assim como, aliás, tudo o que o
Ainda incapaz de resolver a contradição, de espírito deve apreender do real. Ele é cons­
integrar as aparências numa representação tituído de experiências inicialmente muito
que explicaria, um pelo outro, o objeto idên­ particulares, dispersas e sem medida comum.
tico a si mesmo e a diversidade de seus É necessário reduzi-las entre si por uma
aspectos segundo as condições perceptivas espécie de integração que o eleve, a cada vez,
ou segundo as circunstâncias, ela se limita a de nível, dando-lhe um crescente poder de
corrigir a aparência que sente ser enganosa, organização e símbolos mais abstratos. Por­
acrescentando-lhe “às vezes”. Desse modo tanto, ele não é a matriz à qual a causalidade
ela faz, do eventual, a expressão da dúvida e teria apenas que se ligar. É, ele também, uma
transpõe uma locução de tempo para o plano reação original e perfectível do conhecimento
428 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

em relação ao mundo exterior e ao univer­ imobilizam, opondo-se desse modo, à mu­


so. dança e ao devir, que são, de fato, muito mal
apreendidos pela criança. Acontece-lhe real­
MOVIMENTO REAL mente de multiplicar o mesmo objeto pelo
E MOVIMENTO RELAÇÃO número de seus aspectos. Se ela parece,
frequentemente, furtar-se a essa necessidade,
Com o tempo e o espaço vem o movi­ isso ocorre graças à grande labilidade de suas
mento. Como des, este apresenta certas opo- representações e ao esquecimento gradual
sições. Primeiramente, uma inversão entre a das diferenças delas. Assim, o objeto conser­
ordem do conhecimento e a do empirismo va sua identidade por substituição de aspec­
prático. Ele é habitualmente definido através tos, não pela integração deles na imagem de
da distância percorrida em uma determinada sua mudança. Para o movimento propria­
duração. Mas essa prioridade do espaço e do mente dito, a dificuldade que a criança sente
tempo com relação ao movimento só é ver­ para dissociar a base permanente e o elemen­
dadeira no plano intelectual. O movimento to variável, o imóvel e o móvel, pode ser
que se efetua ou o movimento percebido são percebida em suas freqüentes confusões entre
algo de primitivo e de original. O impulso do os movimentos relativos de dois objetos. Ela
sujeito ou a fuga do móvel precedem a tra­ é, no plano intelectual, como o viajante que
jetória. Atrajetória pode ser dividida à vontade atribui a seu próprio trem o movimento do
em metros e em minutos - não o impulso, trem vizinho, mas em sentido inverso. É desse
nem a fuga -, que estão totalmente em ato e modo que ela explica, sucessivamente, o
em devir. O movimento assimilado no espaço movimento do rio através do movimento do
e no tempo tomar-se-ia inconcebível e barco e o do barco pelo rio. Se essa inversão
impossível segundo os membros da escola alternativa não a choca, e se ela crê, com toda
de Eléia, pois toma-se indefinidamente di­ a inocência, na eficácia dessa causalidade
visível e sempre uma nova fração de fração recíproca, isso ocorre devido a sua inca­
intervirá para impedir que ele se realize pacidade para separar, de modo estável, o
totalmente. Na verdade, não é o movimento movimento de uma base de imobilidade. Ela
que depende do espaço e do tempo, é o não sabe dissociar nitidamente e opor sis­
tempo e o espaço que dependem das rea­ tematicamente inércia e ação.
lidades em ato, às quais a noção deles deve Essa incerteza pode ter também como
ser ajustada. O tempo e o espaço nunca são efeito o de fixar a criança ao puro feno-
percebidos como vazios e inertes. Mas opor o menismo. Ela confunde o aspecto das coisas
homogêneo à mudança é uma necessidade com seu mecanismo, o movimento aparente
da análise e da mensuração, pois somente com o impulso, e suas explicações são apenas
assim toma-se possível a construção de sis­ uma seqüência de inconseqüências. Se ela
temas com partes ou funções comensuráveis. tem consciência disso ou se apreende o que
No entanto, os limites recíprocos dos fatores a inversão circular da causa e do efeito têm de
assim dissociados nada têm de imutável, ape­ vão e de contraditório, ela crê, por vezes, po­
sar da ilusão causada pelas distinções que der esquivar-se multiplicando os intermediá­
respondem às noções mais habituais ou às rios ou condensando a força sobre um deles:
necessidades mais correntes. não é mais nem o barco que dá ao rio sua cor­
O conflito entre a natureza do movimento rente, nem o rio que leva o barco, é na peque­
e as classes estáticas das representações na barca presa ao barco que está a origem do
intelectuais pode ser percebido na criança. movimento deles. Aos dois termos vacilantes
Assim que as imagens são reduzidas a um da relação, ela sobrepõe um terceiro, como
conteúdo determinado, elas se fixam e se que para aí substancializar a causa.
C O N C L U S Õ E S E C O M E N T Á R IO S 429

Mas surge uma nova contradição, a do ou a persistência do movimentopermanecem


movimento comunicado e do movimento es­ puramente contingentes, e a criança recai no
pontâneo. O primeiro é de experiência cor­ emprego das locuções mais vagas, “quando”
rente: um objeto desloca um outro. A idéia do ou “com”, para marcar as relações de mo­
segundo foi dada como mais essencial e bilidade. É apenas quando o movimento
traduzindo as intuições motoras do sujeito. espontâneo termina de se individualizar, por
Contudo, não parece duvidoso que a crian­ separação do agente e do efeito, que ele se
ça procure, inicialmente, suas explicações reveste de antropomorfismo. A força motora,
no movimento comunicado. No início, aliás, reconhecida como tal, toma, então, como
ela encerra o movimento apenas entre dois intermediários, os órgãos, os instrumentos
objetos, que formam um sistema fechado. com a ajuda dos quais a criança está acos­
Movimento ora reversível e ora localizado, tumada a ver que as coisas são deslocadas. É
de modo estável, em um dos termos, habi­ uma simples forma de artficialismo.
tualmente no que é melhor delimitável e Uma depuração, uma sublimação são
mais consistente. É, por exemplo, muito mais necessárias para que o movimento seja apre­
do barco que da água que vem o impulso. Em endido no estado de relação pura. As tentativas
seguida, ela remonta de objeto em objeto, da criança assim o demonstram. Por vezes,
mas, naturalmente, sem neles encontrar aque­ ela parece assimilá-lo ao espaço, que ela pa­
le que deve receber seu movimento de um rece supor animado por um potencial on­
outro. Essa regressão indefinida pode, então, de as trajetórias regulares encontrariam seu
levá-la a sentir, senão o ilogismo de procu­ impulso. Outras vezes, é ao tempo, que ela
rar, no movimento comunicado, sua própria parece dotar de qualidades sutis, como a
origem, pelo menos a necessidade de parar. fluidez: assim, a fonte perpétua do movimento
É essa necessidade de uma origem primor­ seria o vento, porque perpetuamente móvel
dial que a leva ao movimento autônomo, e a e inatingível. Por vezes, enfim, ela se atém a
intuição subjetiva de seus próprios poderes locuções de intensidade, que são como que o
motores parece intervir apenas secunda­ meio de ligar os efeitos visíveis do movimento
riamente. Portanto, é por necessidade de a um esforço, a um impulso, metáforas, aliás,
raciocínio que ela aí chega, e não por proje­ ocas ou cujo único conteúdo possível seria
ção de si mesma nas coisas, como muitos uma intuição subjetiva da ação. A propósito
o supuseram, partindo da ilusão de que a do movimento, o que a criança encontra é o
consciência íntima é algo primitivo, enquanto problema da causalidade.
que o esforço da criança inicialmente mistura-
se ao obstáculo em uma espécie de tensão EFICIÊNCIA SINCRÉTICA
que pode aumentar, mas que, em si mesma, E CAUSALIDADE
permanece única. Quando se opera a dis­
sociação, isso ocorre através da distinção si­ No campo da causalidade, assim como
multânea de dois termos complementares nos outros, a explicação ocorre muito mais
ou opostos. tarde que a prática. O comportamento de
Coisa e sujeito são percepções correlati­ todo ser vivo leva em conta, necessariamen­
vas. Por muito tempo, elas permanecem te, a causalidade. Mas os problemas que esta
sincréticamente misturadas nas explicações suscita assumem uma independência cres­
da criança e é desse modo que, por uma es­ cente, à medida que a aptidão para utilizar
pécie de oscilação, ou melhor, de confu­ circunstâncias diversas e organizar o campo
são, ela parece atribuir, ao movimento co­ operatório em vista de ações mais variadas
municado, os méritos do movimento autô­ aumenta. A aprendizagem repleta de erros
nomo. Na mesma medida, aliás, a existência que a criança faz das condutas ligadas a seu
430 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

desenvolvimento funcional ou à execução de samentos da criança carregam a marca. Se a


seus propósitos, mostra o quanto estes podem procura da causalidade consiste em isolar, do
estar na origem das primeiras confusões em resto, uma coisa ou um efeito para reconhecer
que se debate a causalidade explicada. o que os produz segundo certas relações bem
Após os fatos naturais de adaptação definidas no espaço e no tempo, ela não está,
automática, como a mamada, a criança enreda­ evidentemente, ao seu alcance. Ela tem, das
se entre sensações e movimentos de reações coisas, uma representação global onde todas
circulares, onde a causalidade é ambivalente, as relações estão misturadas ou são ambi­
sendo a sensação causa ou modificada pelo valentes. Alternadamente ele dá, um pelo
movimento, mas com o movimento calcando- outro o determinante e o determinado
se na sensação a ser reproduzida ou diver­ a causa e o efeito, ou, para o mesmo efeito,
sificada. Quando os gestos prendem-se aos duas circunstâncias contrárias. Ela enreda as
objetos exteriores, uma certa polarização se circunstâncias, com todos os motivos con­
produz. Eles devem a eles ajustar-se, aceitar fundidos. Substitui, entre si, termos sim­
ou descobrir-lhes a estrutura. Uma ordem plesmente conexos. Invoca, em seguida, as
impõe-se, ou seja, a ordem das coisas. Con­ razões mais díspares. Não parece desen­
tudo, a atitude da criança a esse respeito corajada por conseqüências contraditórias.
permanece, por muito tempo, uma atitude Eia navega em plena contingência. Em suas
intermediária de jogo. Longe de sujeitar-se explicações, os traços sucedem-se ou acu­
estritamente a ela, a criança compraz-se quer mulam-se sem constituir conjuntos. Seu pen­
em nela buscar transformações que afastem o samento parece estagnar-se entre os dados
objeto de sua forma ou de seu arranjo originais, diversos da representação, imagens empíricas,
quer a lhe dar empregos que absolutamente distinções verbais ou sinônimos, rumores.
não correspondem mais à sua natureza, mas Ele está em seu período pré-causal, no qual
que têm, como tema, puras fantasias motoras ainda lhe faz falta o poder de organização que
ou imaginativas. Desse modo, o real só penetra a inteligência prática já tem no campo das
no conhecimento prático ou na representação realidades sensorimotores.
da criança guiado pela ficção, que permite Seu esboço topográfico é vago, sem
experimentá-lo em todas as suas instâncias. coesão, nem unidade. Embora seu pensa­
Enfim, cada situação em que o objetivo não mento pareça, freqüentemente, reduzir a
lhe é diretamente acessível, obriga-a a mo­ índices locais as relações das coisas, ele as
dificar o campo operatório, até que tenha faz, mais facilmente, sobrepor-se. O espaço
encontrado os meios e os subterfúgios que a de cada objeto é-lhe, com freqüência, como
conduzirão a seus fins. Esse remanejamento que interior ou particular e sem coordenação
não é apenas material, ele deve ligar, aos com as outras partes do espaço. É uma
gestos possíveis, as disposições propícias. Iconfusão de imagens maldelimitadas.
Nesse ajustamento mútuo, o gesto não é o Contudo, a causa parece estar, freqüente­
único a se transformar, a topografia e os obje­ mente, confundida com o lugar. Inversamen­
tos aparecem de modo diferente com cada te, a distância, que subtrai o objeto às inves­
nova solução. Configurações e significações tigações diretas dos sentidos, pode parecer
são unas com o ato a ser executado. Assim, os razão suficiente dos efeitos constatados.
contatos sensorimotores com o mundo exte­ Enfim, esse lugar quase fictício que é o céu
rior não possuem, de imediato, uma imagem parece dar, à criança, a ilusão de que ela
objetiva: pelo contrário, eles são menos ultrapassa o mundo das coisas pelo mundo
contato que sua fusãftou transformação mú­ das causas.
tuas. Mesma confusão ocorre entre a cau­
Desse amálgama, os primeiros pen­ salidade e o tempo. Suas afinidades subjetivas
C O N C L U S Õ E S E C O M E N T Á R IO S 431

são, aliás, bem íntimas. Início aproxima­ dos efeitos, a fim de constatar a coincidência
damente contemporâneo dos “quando?” e de suas mudanças. Ela é, portanto, incapaz de
dos “por quê?” nas perguntas feitas pela fixar uma relação como constante, de ligar,
criança. Implicação da causalidade na ex­ um ao outro, a causa e o efeito necessário.
pectativa sistemática, na previsão de um certo Muito pelo contrário, as razões mudam con­
efeito, de certas circunstâncias. Mas também forme a ocasião: causas intercambiáveis, cau­
confusão prolongada entre o sinal e o agente. sas diferentes para o mesmo efeito.
A criança fornece prova evidente disso quando
repete, como um rito, ou faz repetirem o EMPIRISMO E
detalhe perfeitamente inútil que, anterior­ ESTRUTURAS INTELECTUAIS
mente, acompanhou o resultado a ser obtido.
O que veio em seguida deve vir ainda. Simples Contudo, os primeiros pensamentos da
escala a ser percorrida meticulosamente, mas criança não são apenas empirismo percepti­
não verdadeira relação de eficiência, ou vo. Eles supõem o exercício do próprio pen­
melhor, a eficiência não se distingue da massa samento, seu material, suas estruturas, mas
formada pelos incidentes, pelas coisas, pelos ainda elementares e inadequados a seu objeto.
gestos do sujeito; é uma eficiência sincrética. Diante de efeitos diferentes ou de um efeito
A indivisibilidade entre uma circunstância e não de acordo com os exemplos precedentes,
uma conseqüência ainda pode ser reforçada ela não sabe procurar a série apropriada ou a
pelo desejo ou pelo temor, que, aliás, nunca que explicaria a exceção, pois é incapaz de
;stão completamente ausentes da expectativa. constituir qualquer série e de formular uma
Apesar dessa carga afetiva e, em parte, talvez, regra, constituindo o fato que se produz, a
por causa dela, o bloco tempo-causa conserva coisa que a ela se impõe, o plano único de
uma grande contingência. No plano das suas representações.
explicações intelectuais, ele não pode adquirir Ela reage, provavelmente, a essas opo-
mais certeza. A criança atenua incessan­ sições, mas aplicando-lhes contrastes gros­
temente suas afirmações através da restrição seiros, sob forma de noções aos pares, onde
“às vezes”. Toda experiência, por mais se limita, freqüentemente, a transformar o
freqüente ou importante que seja, permanece, mais em menos, o positivo em negativo e
para ela, uma experiência particular, pois é vice-versa. Assim, as imagens em que ela
incapaz de inscrevê-la numa ordem distinta e tenta fixar o objeto não são apenas o reflexo
determinada, quer de momentos, quer de dançante e sem coesão de seus diferentes
condições. aspectos, de seus diferentes estados suces­
Para ela, a realidade consiste em simples sivamente reconhecidos; elas estão, além
coincidências perceptivas ou combinações disso, sujeitas a alternativas automaticamen­
de imagens e de noções que ainda não foram te aplicadas e em freqüente desacordo com
desmentidas pelos fatos. Nos aspectos de suas verdadeiras relações. O contraste grande-
cada situação, ela não sabe reconhecer os pequeno será transferido a objetos cujas ver­
traços essenciais, específicos. Ela os apreende, dadeiras dimensões contradiz ou, então, ele
ou como equivalentes e confundidos, ou próprio se contradirá tomando-se a causa do
como acrescentando-se um ao outro, sem se efeito oposto. Na mesma explicação, a criança
completarem entre si para constituir um pode dar, alternadamente, “demais” e “de
conjunto organizado, de que cada detalhe menos” como razão do mesmo resultado: a
teria seu lugar no equilíbrio total. O poder de água se dispersa porque há espaço demais e
encontrar a soma nas partes e vice-versa, porque há água de menos. A criança manipula
ainda lhe faz falta, assim como o de comparar, o par “de menos-demais” de maneira absoluta
em toda a sua extensão, a série das causas e e sem considerar nem os espaços em questão,
432 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

nem o escoamento em sua continuidade. Os conceito delas, também não é capaz de


espaços que ela imagina são, evidentemente, classificar o efeito e de identificá-lo com suas
espaços particulares e fechados. Ela pare­ condições.
ce considerá-los apenas sob a forma de re­ A dificuldade é dupla; do lado das coisas,
cipientes: no maior, a água espalha-se e, por seria preciso reduzir as disparidades ou os
conseqüência, dispersa-se, mas a criança não resíduos do registro empírico; do lado do
prevê que ela parará assim que atinja seu pensamento, os do material ideológico ou
equilíbrio; no pequeno, ela vai transbordar, verbal. Foi, sobretudo, e por vezes unica­
mas com a condição de que seja abundante o mente, sobre os primeiros que insistiram os
suficiente e que não cesse de se renovar. Aos teóricos do conhecimento. Os dados da ex­
espaços fechados, a criança não sabe acres­ periência externa seriam o campo do hete­
centar nem o que deveria, incessantemente, rogêneo, do irracional, do incompreensível.
abrir-se para a água para que ela continue a O campo do espírito, da razão seria, segundo
correr, nem aquele de onde a água deveria vir Meyerson, o do idêntico; segundo Jaspers, o
sem cessar para que o balde continue a das assimilações intuitivas. O real, em sua
transbordar. Na verdade, a explicação só é diversidade original, permaneceria sempre
possível com a condição de poder represen­ estranho à ciência, que o reduz ao uniforme
tar o espaço sob a forma, de algum modo para explicá-lo, ou à inteligência, que lhe
funcional ou virtual, de espaço a ser pre­ opõe a clareza de suas idéias. Mas, nos dois
enchido e não de um espaço determinado, casos, é o essencial que é omitido, ou seja, as
por maior que seja. Ou o espaço ilimitado, ou operações que se intercalam entre o real e o
então a capacidade do espaço indefini­ idêntico, entre o real e o inteligível, e que dão
damente renovada. Mas esta não é mais um eficácia ou inteligibilidade aos símbolos do
dado bruto da experiência, já é algo de idêntico ou aos das idéias apenas com a con­
operatório. Ou a operação mental que faz o dição de poder constatar a afinidade deles
espírito ultrapassar as simples imagens, para com as operações da natureza. Assim como o
apreendê-las em potencial; ou a operação pensamento não é simples decalque das
natural, apreendida ejrt relação a seus efeitos coisas, também não lhes é radicalmente
como o potencial de produzi-los. A criança heterogêneo. É uma forma de atividade que
ainda não se encontra nessa estágio. Seu pode muito bem resultar de estruturas novas,
poder intelectual permanece molecular. como foram as acrescentadas, pela vida, à
O que pode iludir é sua aptidão para natureza inorgânica, mas que extrai suas
reter e relatar os modos de fazer que viu ou condições das realidades preexistentes e só
que ela mesma efetuou. Assim, para as coisas pode confrontar-lhes suas realizações.
habituais, a causalidade reside em seu pensa­
mento. Mas ela aí está presente no estado de O material de que o pensamento inicial-
simples dispositivos ou de receitas, que per­ mente dispõe presta-se a certas confusões.
manecem justapostos, por vezes, de modo Toda idéia em estado nascente é acompa­
contraditório, sem que a criança manifeste, nhada por seu contrário; ela é a intuição de
espontaneamente, a necessidade de reduzi- uma certa qualidade ou de uma certa relação,
los a uma explicação quer comum, quer mas em estado ainda ambivalente. É do
diferencial. A familiaridade deles faz-lhe as conjunto ao qual se integra que deve receber
vezes de inteligibilidade. Ela ainda só conhece o sinal + ou -. Mas sua ligação com a base, de
as formas mais elementares da necessida onde lhe é necessário extrair sua orientação,
lógica. Elas quase não ultrapassam a simples pode permanecer flutuante. Assim como seus
tautología. Assim como não sabe reduzir o dois pólos permanecerão intercambiáveis, os
objeto a seu gênero ou suas qualidades ao objetos aos quais ele se aplica conservam
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 433

contornos confusos, uma estrutura global e freqüente é a inversão da causa e do efeito;


mal diferenciada. Em vez de ter em potencial freqüentemente também cada um dos dois
modalidades diversas, uma escala nuançada termos toma-se, alternadamente, o outro, de
e sistemática de graus, ele vai limitar-se a um modo a realizar uma causalidade circular ou
contraste, que só admite ou a oposição, ou a recíproca, um sistema fechado onde cada um
assimilação absolutas. Oposição ou assimila­ dos dois termos desempenha, à vontade, os
ção são, com freqüência, transferidas tais dois papéis. Equivalência favorecida pela
como estão, a despeito das próprias coisas. ambivalência ativo-passivo: o que é pesado é
“Preto-noite” toma-se “não há luzes acesas à também o que pode suportar um grande
noite". Os fatos de experiência corrente são peso; ora dois pares ligam-se um ao outro e,
eclipsados pelo jogo formal das idéias. Elas por intermédio de um termo comum, pro­
mesmas são embaralhadas pelo das locuções duz-se um terceiro, de relação causal, que
onde elas o exprimem, e que podem por em acopla quer uma causa e um efeito díspares,
conflito imagens inconciliáveis: a lua que quer dois efeitos incompatíveis entre si: por
desaparece dorme e se apaga. Mas como exemplo, o gelo e as ondas são dados como
pode ela fazer ambas as coisas, como é neces­ a conseqüência simultânea, ou melhor, idên­
sário à criança supô-lo, visto que ela ainda tica, do frio assimilado ao vento ou do vento
não sabe desdobrar as palavras da coisa, para assimilado ao frio.
disso fazer apenas uma expressão figurada?
Enfim, em suas relações com o próprio obje­ MITOS E REALIDADE FAMILIAR
to, a idéia confunde o que o define e o que o
faz existir. Ela tende, simultaneamente, a Sob esse aparato, de algum modo mole­
envolvê-lo em uma noção estável e completa cular, do pensamento, esboçam-se, confor­
e a explicá-lo, o que exige dar-lhe anteceden­ me a ocasião, e freqüentemente misturados
tes que não sejam exatamente ele mesmo. entre si, diferentes tipos de causalidade. Em
Desse modo, ela pode aglutinar, na uma seqüência descritiva, um dos termos
mesma frase, “para que” e “ppr quê”, sem assume importância de causa, sem ser, por
saber escolher entre ambas. “Para que”, vezes, outra coisa a não ser um efeito. Ou
contudo, apenas arremata a definição de um então, é uma indicação de lugar, mas, algu­
objeto ou de uma situação, perfaz-lhe a mas vezes, com erro de direção: “onde” é
significação, dando o uso de um, descobrindo, tomado por “de onde”. É, outras vezes, um
no outro, õ que lhe cabe produzir. “Por quê” simples sincronismo. Mas, ao mesmo tempo,
remonta para aquém disso. Alternância, no podem produzir-se explicações providenci-
seio da idéia, entre o mesmo e o outro, ainda alista, finalistas, artificialistas, mecanicista.
insuficientemente diferenciados. Quando a criança recorre a um agente
A causa dessa ambigüidade está na es­ providencial - aquele cujo nome é-lhe mais
trutura primeira da idéia. Ela não é unidade, familiar, Deus, o Menino Jesus, o Papai Noel
mas par. É um ato e já é algo de organizado. e, por vezes, o Diabo -, ora ela faz porque
Exprime quer tuna diferença, quer uma liga­ reconhece como vã a explicação que faz com
ção empírica. O objeto é por ela distinguido que a primeira causa recue indefinidamente,
ou retido apenas quando em ligação com um por exemplo, um outro vento que empurra o
outro. Assim, a causalidade, como os outros vento, e é para parar numa definição que seja,
problemas intelectuais, vai sofrer a influência por definição, sem causa; e ora ela o faz para
dos pares, que pode não estar de acordo com explicar efeitos que-estão na escala do uni­
a ordem das coisas. Há duas formas dessa verso, ou pelo m enos, fora do alcance huma­
influência: ora é entre os dois termos do par no : fatos cósmicos ou simplesmente intem­
que uma relação viciosa se opera. A mais péries. Contudo, ela dispõe, para representá-
434 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

los, apenas de sua experiência cotidiana. Ela objetiva, não sabendo distinguir entre a cau-
combina os procedimentos desta com o céu, sa e o costume. Ela parece, por vezes, supor
lugar semi-mítico, semi-sideral. Seu provi- que cabe ao ritmo da atividade humana
dencialismo é apenas um artificialismo am­ controlar o da natureza. Seria à necessidade,
pliado. É ainda uma ampliação bem con­ para o homem, de descansar após o trabalho
traditória, pois os instrumentos fornecidos a e de trabaljiar após o descanso que a alter­
um ser celeste para produzir a chuva são, nância entre a noite e o dia obedeceria. As
freqüentemente, apenas um regador e uma necessidades sociais e humanas determi­
escada para ir buscar a água na fonte. Esse nariam os ciclos naturais. Essa maneira de ex­
simples decalque da ação mítica sobre a ação pressar as coisas pode ser favorecida, na
corrente toma-se formalmente sensível quan­ criança, por sua dependência muito mais
do se dá por meio de pares justapostos. direta e mais sensível com relação às regras
Uma forma muito freqüente nas con­ impostas pelos que a cercam do que com
versas da criança é a que exprime a fina­ relação às condições naturais. Não traduz,
lidade. Ela emprega, com freqüência, as pa­ contudo, uma crença sistematicamente ego-
lavras “para que". É a locução que ela insere, centrista e nem uma ligação de ativismo
naturalmente, entre os dois terinos de um par antropomórfico. A criança está longe de acre­
para definir a relação deles. Más ela parece, ditar que seja senhora das circunstâncias e
freqüentemente, não ter ligação definida e das coisas. Ela sente que sua ação está, pelo
seu sentido é muito vago. Por exemplo, ela menos, tão sujeita a elas quanto pretende
une simplesmente dois sinônimos, dois ele­ delas dispor. Ela se limita a enunciar o que vai
mentos de percepção, os dois termos de um junto. Quando muito, ela dá, conforme o
contraste. A fórmula que exprime o uso é, de ponto de vista do momento, prioridade a um
fato, das que mais tentam a criança, cujas ou a outro dos termos presentes.
operações mentais ficam em curto-circuito e, À semelhança de todo finalismo, o seu é
logo depois, são retomadas pela atividade essencialmente descritivo. Demonstra uma
prática. Nada se oferecera ela mais espon­ coexistência, como o do adulto analisa com­
taneamente para completar a identificação binações de circunstância, ou de mecanis­
do objeto: o objeto é, para ela, aquilo que mos. Mas o próprio sistema permanece
pode ser utilizado. É essa preponderância da inexplicado, a não ser que lhe seja acrescen­
prática que faz, de um simples sincronismo, tada uma força de algum modo tautológica,
uma razão, da coincidência, uma espécie instinto ou providência. A finalidade é uma
de motivo absoluto, da oportunidade, uma inserção da representação na causalidade,
predestinação. O par noite-sono fornece a assim como a propriedade é uma inserção
relação finalista “a noite é para dormir”, e essa da causalidade na representação. A única
fórmula parece tomar inconcebível que seja que poderia dar-lhe eficiência seria a ilusão
possível não dormir à noite, dormir de dia, ou animista, imediata na criança, despersonali­
ficar acordado quando os outros dormem. zada no adulto sob a forma, quer de uma
Desse modo, as constatações mais correntes, razão universal, quer de um inconsciente
as ligações de termos que a criança encontra criador.
incessantemente em sua experiência são Na verdade, o animismo parece estar
obliteradas pela forma finalista. praticamente ausente nas explicações da
Ela não sabe dissociar os planos do uso criança. Sem dúvida, seus jogos e suas con­
e da lógica, e nem distinguir, do que vai ne­ dutas com relação às coisas, por vezes, até
cessariamente junto, 9 que está habitualmente mesmo com relação a seu próprio corpo,
junto mas pode ser, eventualmente, separado. mostram-na inclinada a lhes atribuir, por
Assim, ela mistura o hábito subjetivo à ordem uma espécie de reciprocidade, intenções ou
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 435

forças complementares das suas, ou opostas, mesma, quer por intermédio de outrem, foi,
ou análogas, É um momento da diferencia­ para ela, uma freqüente ocasião de jogo e de
ção entre o objeto exterior e si mesma, cujos júbilo, ao longo de seu segundo ano de vida.
primeiros graus são a simetria e, em seguida, Não é surpreendente que um mecanismo,
o espelho. Mas, na fase da explicação, o cujo papel foi tão essencial para verificar a
animismo está em forte regressão, e não há persistência do objeto através das alternati­
aquelas etapas que se repetem a cada nível da vas da percepção, apresente-se entre os
evolução mental. Na verdade, ele se mostra primeiros para explicar mudanças observa­
sempre sob a figura de personagens míticos das no objeto ou mutações entre objetos.
ou providenciais, cujo emprego representa Mas a explicação permanece repleta de
muito menos uma necessidade espontânea inconseqüências, pois o instrumento, aqui,
do que um reflexo das tradições em meio às ainda ocupa por demais o lugar do modo
quais vive a criança. Frequentemente, ela os operatório. Assim, a noite é uma tela de
mistura entre si sem refletir e utiliza-os ape­ nuvens que esconde o sol, mas por que não
nas a fim de poder explicar os fatos da natu­ também a lua e as estrelas? O movimento das
reza através dos procedimentos humanos que nuvens encobre, alternadamente, o sol e a
presencia diariamente. É do reservatório das lua; mas por que alternadamente? Nuvens
experiências ao seu alcance que ela retira pretas são uma tela sobre o sol e o sol sobre
suas explicações. as estrelas; mas como estas são visíveis à
O artificialismo é, assim, o tipo mais noite? O sol e a lua ficam acoplados de modo
habitual de suas explicações. Ele ainda con­ a passar, alternadamente, para cima e para
tinua a uma grande distância da explicação baixo; as nuvens ficam na frente. O que há de
mecanicista, sem excluir a eventualidade de notável neste último exemplo é o fato de a
representar alguns de seus dispositivos, den­ criança alternar as duas explicações, sem
tre os mais simples, a cujo emprego familiar a parecer ser capaz de combiná-las. Talvez ela
criança pôde entregar-se. Mais freqüente­ tenha o sentimento de que, juntas, elas pode­
mente, o artificialismo é puro instrumen- riam constituir um sistema coerente; mas sabe
talismo. Limita-se a enunciar o instrumento apenas justapô-las, pois é incapaz de coor­
que corresponde ao efeito, simples justa­ denar os três termos nuvens-sol-lua. Ela ainda
posição sem modo operatório. A explicação só pode agrupá-los dois a dois. Ainda não
não ultrapassa a constatação, a associação de ultrapassa a situação recíproca de dois obje­
uso ou mesmo de simples linguagem. Quando tos: lua e sol, nuvens e céu. Ela apreende
muito, ela sabe ampliar-lhe a explicação por esses dois conjuntos sob forma estática, sem
via analógica. estar apta a imaginar o movimento inverso da
Contudo, por vezes também, a criança lua e do sol passando, alternadamente, em
imagina um jogo de tela, por exemplo, para cima e em baixo das nuvens. Para represen­
explicar a alternância dia-noite, sol-lua. Nada, tar esses deslocamentos sob forma opera-
nas mudanças do mundo exterior, pôde tória, seria-lhe necessário separar, dos obje­
suscitar de maneira mais precoce o interesse tos, o espaço, e imaginá-lo como um meio
da criança do que o desaparecimento do que possa p erm an ecer-lh es comum,
objeto por trás de um obstáculo ou seu rea­ quaisquer que sejam suas trajetórias res­
parecimento. Perceber um, esperar o outro, pectivas. Assim, a simples passagem de dois
foi, para ela, passar da percepção puramente para três termos supõe uma intuição onde o
sensível à percepção objetiva, era fazer um espaço, cessando de ser uma simples coleção
objeto da impressão fugidia reconhecendo de posições aos pares, torne-se todas as es­
a causa de seu eclipse. Manipular, suces­ pécies de posições em potencial para quais­
sivamente, o objeto e a tela, quer por si quer objetos.
436 AS ORIGENS DO PENSAMENTO N A CRIANÇA

Um outro exemplo de mecanismo, o do cedente e o conseqüente, e nem remontar do


suporte, apesar de tudo também há muito conseqüente ao antecedente.
tempo familiar à criança, pode mostrar com Mas ela, que parece tão propensa à
que facilidade duas opções como a posição e explicação circular, faz isso, na verdade,
o movimento, acabam se opondo. Como os apenas por omissão alternante da causa pre­
barcos mantêm-se sobre a água e como avan­ cedentemente dada. Diante de um simples
çam? Com relação à estabilidade deles, a movimento circular, ela não apreende nem
criança explica que eles ficam sobre as pe­ a unidade, nem a inversão necessárias do
dras do fundo, apoio sólido cuja necessidade mesmo. Tendo explicado o movimento do
é-lhe sugerida por suas experiências mais sol no céu através de sua queda em uma
familiares. Mas, desse modo, os barcos não abóbada sólida, ela esquece a subida que
ficaram imobilizados? É preciso, portanto, naturalmente a precedeu e que deverá reco­
transferir seu movimento ao próprio suporte, meçar. Ela não sente a necessidade de fechar
às pedras “que se levantam às vezes”. O um sistema. Um outro resultado, aparente­
equilíbrio é a solidez, o deslocamento, mobi­ mente inverso, dessa indiferença é o fato de
lidade acidental. Estabilidade e movimento que ela não mostra, com freqüência, nenhum
são condensados num único objeto, onde embaraço em recuar indefinidamente a
parece que devem se chocar: donde o cor­ primeira causa, como no movimento comu­
retivo “às vezes”. Aqui, ainda, o campo nicado, onde a origem do impulso limita-se a
operatório reduz-se à relação entre duas remontar de objeto em objeto. Aliás, basta
coisas, fundo do rio e barcos. O espaço re­ que, nessa corrente, o mesmo objeto reapa­
duz-se a um contato, o deslocamento, ao reça para dar ao conjunto o aspecto circular.
impulso de um a mesma posição fixa. Dos Nos dois casos, contudo, o circuito perma­
próprios objetos, a criança não sabe desta­ nece aberto. Na verdade, mais do que por
car um meio onde sejam possíveis, quer di­ elementos fechados, seu pensamento proce­
zer, onde estejam em potenciàl, direções e de por elementos interrompidos. A repetição
forças diversas. do mesmo, por mais prolongada que seja,
Facilmente, o adulto imaginaria que a apenas mostra sua incapacidade para imagi­
compreensão de um mecanismo pode resul­ nar um todo completo, equilibrado, um ver­
tar de uma simples inspeção perceptiva. As dadeiro sistema de relações, onde o resultado
ilusões da criança mostram que há uma or­ seja decomponível em seus fatores. São as
dem particular a ser colocada entre as per­ condições essenciais da explicação mecânica
cepções e que, limitada a si mesma, a cons­ que fazem falta à criança. Não é surpreenden­
tatação de um efeito mecânico não tem o te que as mais grosseiras desproporções en­
poder de subordiná-lo à sua causa. Ela perma­ tre o efeito e suas causas sejam incapazes de
nece intimamente ligada ao caso particular; chocá-la. A um movimento vasto e contínuo,
com muita freqüência, mesmo a relação não ela não hesita em dar um motor intermitente
é compreendida e se inverte. A criança que e diminuto: é à passagem de uma barca que
viu a água da calha girar o moinho chama a é devida a corrente do rio.
queda de subida, a cascata da água que salta A causalidade mecânica limita-se, para
no ar. Diz que a roda ergue a água sobre suas ela, a um simples conteúdo intuitivo. O
pás, que o moinho faz a roda andar e que, ele movimento comunicado é algo que foi ex­
próprio, é movido pela água. Inversão de perimentado subjetivamente sob forma quer
relações, ação circular, é sempre a mesma ativa, quer passiva, e cujos exemplos são
fragmentação da experiência em ilhotas on­ multiplicados pelo espetáculo das coisas. Se
de a ação passa-se de uma maneira qualquer. a criança começa naturalmente por fazer do
A criança ainda não sabe distinguir o ante­ corpo sólido um motor, do barco, o motor da
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água, isso ocorre porque, ao mesmo tempo, ultrapassar cada objeto, cada efeito. Justificá-
a dureza é o que melhor testa a resistência ou los é mostrar suas relações com um sistema
o poder ofensivo de um corpo, ou seja, a de elementos ou de condições de onde saí­
força sob seus dois aspectos extremos, e ram e devem, necessariamente, resultar. A
porque seus deslocamentos são mais coe­ causalidade física não é autocriação, nem
rentes, mais bem delimitados e mais simples paneriação. Supõe o diverso, e relações de­
de serem identificados visualmente. Contudo, terminadas entre fatores distintos. O que falta
a explicação mecânica tende a isolar a força à criança é aptidão para considerar elementos
do objeto. Mas a criança, inicialmente, só dissociados mas coordenados. Quando sente
chega a ela na medida em que a própria força um vínculo qualquer de existência ou de
dá lugar à intuição sensível. Separar a força conseqüência, em vez de discernir e ligar
do objeto é exatamente desmaterializá-la, com exatidão, ela mistura. Substitui o fato de
mas, para a criança, concebê-la ainda é relacioná-los pela simples participação entre
percebê-la. O intermediário sensível entre condições e resultado. Uma relação de dois
o objeto e a ação pura parece ser, fre­ termos pode ser, assim, fundida com uma
qüentemente, o vento, cuja força brutal tem influência difusa das coisas entre si. Por que
algo de invisível e de impalpável: é assim que o homem é menos pesado quando mergulha
ocorre a explicação do movimento co­ na água? Porque a água é mais pesada por
municado à água pelo barco, mas dado ao causa dos rochedos. O peso dos rochedos
barco pelo vento. Entretanto, mesmo para toma-se o da água, e o homem só se toma
a criança que a propõe, ela nada tem de mais leve por contraste com ela.
universal, nem de sistemático. Seu pensa­ Contudo, a participação pode deixar-se
mento, sempre episódico, não vê a passa­ progressivamente penetrar por estruturas
gem do objeto à força sob a forma do mesmo mecânicas. Uma criança, inicialmente, explica
suporte, e nem, por vezes, sob a forma de um a respiração associando, pura e simplesmente,
suporte aparente. Utilizar eventualmente o ser vivo à terra. “A gente respira pela terra”.
um suporte mostra, pelo menos, por quais Depois, ela explica que o vento entra na terra
graus sensíveis deve, com freqüência, pas­ e que isso dá ar às árvores. Assim, ela trans­
sar a criança para se libertar do sensível e pa­ forma em circuito uma espécie de comunhão
ra imaginar a ação mecânica como uma indistinta entre a terra e seus habitantes. Em
relação e não como uma propriedade das vez de permanecer estagnante entre eles, há
coisas. algo que se introduz de um a outro. Do
mesmo modo, face ao movimento que anima
DIFICULDADE DA o vento, o rio e os barcos, uma outra criança
CAUSALIDADE-RELAÇÃO atribui o deslocamento destes à penetração
da corrente na máquina e a corrente à ação do
As dificuldades da explicação física po­ vento sobre a água. É, portanto, a comu­
dem ser medidas através dos impasses, ten­ nicação entre objetos que tende a substituir a
tativas, confusões em que cai a criança, Não participação, e também a introdução, através
se trata mais, com o o finalismo, de colocar a de todos, de um mesmo elemento ou de uma
causa no próprio efeito, limitando-se a du­ mesma força. A intromissão é um tipo de ação
plicá-lo através de uma potência adequada, já há muito tempo familiar à criança. Em
nem de calcar o poder sobre o efeito a ser determinada idade, foi o motivo de numero­
obtido, como nas explicações míticas, e nem sas tentativas e jogos: os sapatos, as luvas, as
de estender essa hipótese a todo o conjunto bolsas muito a ocuparam. Eis aí, portanto,
das coisas, supondo uma força ou uma in­ ainda um tipo de ação empírica que se
teligência capazes de tudo produzir. É preciso transfere para o plano intelectual, para aí
438 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

representar as relações através das quais a Pois substâncias só podem ser distinguidas
criança procura sair das confusões iniciais. entre si através de seus diferentes atributos ou
Contudo, introduzir qualquer coisa num propriedades, e as diferenças dos objetos ou
recipiente é testar sua capacidade, sua forma. dos efeitos deveriam ser explicadas através
A operação inversa consiste em nele supor de substâncias diferentes, a não ser que,
que esteja contido tudo o que for possível. naturalmente, as tautologías da explicação
Esta é a fase substância da causalidade, que é, substancialista façam com que seja reconhe­
em certos aspectos, um progresso, mas que cida sua insuficiência. Mas, não pertence ela
lança a criança em grandes contradições. à fase em que a criança ainda não sabe separar
Progresso, porque já é procurar a coisa a relação da representação, em que ela encerra
em outros lugares que não nos dados brutos a causa na coisa, em vez de decompor as
da experiência. Para explicar a deflagração coisas em seus fatores? A propriedade é uma
da pólvora em sua pistola, a criança ini­ qualidade, mas encarada como ativa. Ela não
cialmente descreve-lhe o manejo, depois ima­ está apenas no objeto, mas também nos efeitos
gina a ação de acrescentar à pólvora uma que cabe ao objeto produzir. Eis aí uma nova
substância explosiva, mas parece aperceber- dificuldade que ela acrescenta à qualidade,
se de que ainda permanece a ser explicada a a qual também não é tão simples como pode­
explosão desta, e assim por diante inde­ ria parecer. Pois o objeto não é um dado
finidamente. Há coexistência ou alternância inicial da sensibilidade. Ele existe apenas
muito freqüente de explicações, sucessiva­ em um certo nível de organização mental.
mente reconhecidas como insuficientes. Ele é a permanência atribuída a certos en­
Reduzir um efeito a uma substância corres­ contros de impressões, que assumem uma
pondente é necessariamentetautológico. Con­ significação mútua a fim de significar uma
tudo, toda tautología já implica o desdo­ existência. A presença de uma faz concluir
bramento da representação e de seu objeto. pela das outras, a partir do momento em que
Com a substância, o desdobramento deve evoca a imagem do objeto. Assim, as im­
também opor, à produção do efeito, algo que pressões, em sua distribuição em objetos,
lhe seja anterior e que a ele sobreviva: o começam por dar-lhes qualidades que têm
princípio de sua produção. Mas é nesse mo­ uma espécie de equivalência intrínseca. É
mento que as dificuldades começam. Pois o uma primeira etapa, a do sincretismo, após a
desdobramento não é levado ao ponto de qual cada qualidade deverá separar-se do
que a criança saiba unir a identidade dos objeto para ser reconhecida como uma
efeitos ou a semelhança das coisas ao seu semelhança ou uma ordem entre os objetos,
fundamento comum - a substância -, ao mes­ quaisquer que sejam as outras qualidades
mo tempo em que mede sua diversidade deles: período catégorial. O fato de a qualida­
através da escala dos graus, das nuanças ou de pertencer, triplamente, ao objeto, à sua
das qualidades. Para cada mudança do efeito, classificação e, como propriedade, aos seus
ela tem tendência a modificar a substância. efeitos, é o que se toma uma fonte de confusão,
De modo que, a todo instante, esta corre o no campo da causalidade.
risco de ser substituída por uma outra ou de No objeto puramente perceptivo, a
se metamorfosear, embora devesse ser o que assimilação das qualidades entre si é regula­
permanece constante. Ela retorna ao feno- da pela experiência. As variações delas po­
menismo de onde tinha, como objetivo, o de dem estar em sentido inverso, conforme as
extrair a causalidade. circunstâncias ou a perspectiva, sem ocasio­
Essa contradiçãaresulta de uma diferen­ nar contradição no próprio objeto, sem
ciação insuficiente da substância e da qua­ deslocar sua identidade. Muito pelo contrário,
lidade, quesão duas noções complementares. as variações recíprocas de certas qualidades
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tomam-se uma previsão, permitem que o de se encontra. Nessa fase, as contradições


objeto seja melhor identificado através da são evitadas apenas através da neutralização
diversidade das situações em que pode ser ou da substituição das qualidades entre si,
encontrado. São como feixes luminosos que segundo as necessidades da comparação.
o seguiriam em seus deslocamentos, um Ainda não tendo adquirido sua individua­
devendo alongar-se quando o outro contrai- lidade, e incapazes de servir para ordenar os
se e vice-versa. No plano da explicação, ao objetos, elas não ultrapassam a confrontação
contrário, a assimilação mútua das qualidades entre dois objetos, limitando-se a formular
no objeto começa por fazer com que se um mais, um menos ou um demais. O grau
suponha que elas devam sempre mudar no parece substituir a qualidade. Na verdade, é
mesmo sentido. A criança não concebe que, um simples sentimento de diferença, um
com a distância, a diminuição do objeto, ou contraste, um par. Como é habitual nos pares,
com seu tamanho, o aumento de seu peso a relação apresenta-se, por vezes, sob forma
sejam apenas aparentes. Ela não compreen­ inversa: assim, a água é mais dura que o bar­
de que, sendo a queda de um corpo no fundo co e é por isso que este flutua. A causalida­
da água devida ao seu peso, uma pedra pos­ de reduz-se, então, a uma simples falta de
sa afundar e um barco flutuar. Ela é, in­ equilíbrio cujo sentido não está nitidamen­
cessantemente, obrigada a sacrificar quer a te determinado: excesso ou insuficiência de
experiência à explicação, quer a explicação à uma qualidade freqüentemente muito mal
experiência. determinada. A aproximação é, ao mesmo
Uma outra conseqüência da assimilação tempo, global e abstrata ou, muito mais,
entre qualidades do mesmo objeto é a exata esquemática. Seu conteúdo, vasto demais
equivalência delas, de tal modo que os efeitos para não se reduzir a nada, é totalmente
observados em cada um são indistintamente desprovido de generalidade. A passagem de
atribuídos a uma delas: a imersão de uma um caso a um outro não pode fazer-se por
pedra é atribuída a seu volume, depois de sua dedução; ela resulta de simples analogias
dureza, e sua dureza, ao volume que ela pode que podem, elas também, apoiar-se no aces­
ocupar na construção de uma parede. A sório.
participação mútua que une as qualidades Dois exemplos podem dar uma idéia
estende-se para além do próprio objeto, para dessa causalidade contingente e caprichosa,
conferir-lhe as qualidades daquele que ele duas qualidades, a cor e o peso, uma que,
poderia se tomar. Resultado barroco de habitualmente, quase não depende da própria
te n d ên cia nascen te à generalização. substância do objeto, e a outra, pelo contrá­
Freqüentemente, é a qualidade fortuita que rio, que parece expressar, da melhor forma
se atribui os efeitos, às custas da qualidade possível, a materialidade do mesmo. A cor só
específica: assim, a bóia flutua porque é entra habitualmente na explicação através de
vermelha. Por uma dedução que é, aqui, efeitos de algum modo impalpáveis: noite-
ainda um qüiproquó, tudo o que é vermelho dia, sol-lua, fumaça. Explicar a noite através
flutua. É o vermelho que faz flutuar o que do “tempo-preto”, o dia através do “tempo
flutua. branco" parece apenas uma tautología, sen­
A essa eficiência, de algum modo ab­ do o efeito dado como sua própria causa.
soluta, de uma qualidade particular que Contudo, o tempo pode transformar-se em
substitui todas as outras propriedades do ob­ nuvens, início de instrumentalismo. Ou mes­
jeto, corresponde a impossibilidade de dela mo os pares noite-preto, dia-branco podem
fazer um meio de classificação entre os obje­ tomar-se um céu semi-branco, semi-preto,
tos, pois ela se choca, com freqüência, com „que gira em tom o da terra, dispositivo
efeitos contrários nos diferentes objetos on­ mecanicista. O par lua-sol é reduzido 'a cor
440 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

branca dos mesmos, a qual parece fazê-los outro com o seu efeito físico, o excesso de
participar da mesma origem de existência: peso que faz o objeto soçobrar. Outras vezes,
causalidade e substância ainda indivisas. Mas ela procura dissociar o fato de flutuar e as
a alternância do sol de dia, das estrelas à noite qualidades de peso ou de volume: explica,
é explicada pela cor amarela de um, branca então, a não-imersão de modo instrumental,
das outras, que os tom a visíveis, um no céu através da ação da hélice ou dos remos. Ela
iluminado e as outras no céu escuro. A causa não consegue nem mesmo aperceber-se de
é um simples contraste de cores, sendo, ainda que a dissociação que deve ser feita é a do
uma vez, confundida com o efeito a ser peso e do volume. Ainda incapaz de compô-
explicado. Quanto ao dia e à noite, que seria los entre si, ela atribui, a cada um, um efeito
necessário explicar, são pura e simplesmente contrário: o peso da rolha a faz afundar, mas
afirmados ao mesmo tempo que o sol e as se ela é grande, ela flutua. Assim, as qualida­
estrelas: explicação fenomenista. Entre a des são tratadas isoladamente, cada uma
fumaça, que é preta porque provém do carvão, acarretando, de maneira absoluta, os efeitos
e a do papel branco, que também é preta, a que lhe são próprios.
criança parece supor um simples contágio, Reduzir a causa à qualidade consiste,
uma participação por intermédio da cor. freqüentemente, para a criança, quer na sim­
Tautologia, participação efenomenismo qua­ ples enunciação do próprio efeito percepti­
litativos são os curto-circuitos que se pro­ vo dado como sua própria razão de ser: é
duzem entre a representação de objetos ainda o que ocorre com a cor, quando se trata de
mal identificados e a causalidade. realidades puramente visuais como a noite, o
Quando se trata de objetos cuja massa é dia, a luaou o sol; quer na atribuição do efeito
sensível e a realidade tangível, a passagem da às qualidades confundidas ou intercambiáveis
representação à causalidade acarreta uma de cada objeto: peso e volume, por exemplo;
série de contradições, que resultam de con­ quer na substituição das qualidades em de­
flitos que incessantemente renascem entre os sacordo por uma causa estranha: flutuação
dados da experiência e a rigidez, a incorreção assegurada pela hélice; quer, enfim, na atri­
da análise nocional ao alcance da criança. buição, de efeitos contrários, a qualidades
Procedendo somente por analogias globais, que ela ainda não sabe compor entre si.
ela vai de encontro, frequentemente, a casos Incapacidade para identificar as variações
onde o efeito é hora diferente, apesar das e os graus de cada qualidade em objetos
semelhanças, ora semelhante, apesar das diferentes, para distingui-las umas das outras
diferenças. Ela já se esforça muito para no mesmo objeto, para apreendê-las não
relacionar o efeito a certas propriedades do apenas em sua perceptividade pura, eis o que
objeto: o que afunda é pesado, o que não bastaria para constituir uma explicação cau­
afunda não o é. Mas a aplicação lógica dessa sai incoerente. Mas a causalidade não perten­
fórmula não poderá concordar com os efeitos ce ao campo da intuição sensível: se o peso
constatados, pois, não sabendo distinguir o dos objetos pode ser invocado, isso ocorre
peso do volume, a criança atribuirá mais pe­ porque ele não significa mais apenas o que
so ao barco do que à pedra. Para sair da parece pesado, mas porque ele exprime suas
dificuldade, por vezes ela recorre a arffcios relações de equilíbrio. A comparação qua­
puramente verbais. Ela dirá, por exemplo, litativa, que é, inicialmente, um simples con­
que peso dem ais faz o objeto afundar, mas traste entre dois objetos, deve tornar-se não
que mais peso pernote que ele flutue. Desse apenas a escala que contém em potencial a
modo, ela tenta estabelecer uma distinção classificação de todos os objetos onde ela
entre dois valores do peso, um relacionado se encontra perceptivamente, mas também
com seu efeito subjetivo, o peso bruto, o uma simples denominação para sistemas de
CONCLUSÕES E C O M E N T Á R IO S 441

medida onde a sensação de peso não pode ra forma, a tautologia, que se contenta em
mais intervir. identificar o objeto com o nome que o d e sitia
e, por conseqüência, com sua representação,
CONDIÇÕES INTELECTUAIS cuja existência ela, desse modo, coloca. Como
DA CAUSALIDADE explicação, parece extremamente vã, visto
que se limita a dar, como razão de ser ao
O encontro da criança com os objetos de objeto ou como condição de sua existência,
sua atividade pode colocá-la apenas face a nem mesmo sua simples existência, mas a
conjuntos émpíricos, com relação aos quais imagem que permite identificá-lo. Sob essa
ela criará, para si, muitos hábitos ou rotinas, for|na inocente, ela pode muito bem fazer o
mas onde só colocará ordem ao reduzi-los a adulto sorrir. Mas, em certos campos ainda
representações estritas e constantes. Em suas obscuros, ele também retoma a essa explica­
impressões, ela deverá selecionar as seme­ ção do mesmo através do mesmo, temendo
lhanças e as diferenças, para ser capaz de que o fato de renunciar a isso o jogue na
identificar cada objeto e classificá-lo. Nas incoerência. Assim, é por isso que por vezes
situações, ela deverá fazer uma seleção entre parece-lhe que a consciência só pode ser
as concomitâncias ou as sucessões, para explicada pela consciência, e que é preciso
conseguir ligar o efeito â causa. Não bastará reencontrá-la nas origens da vida psíquica,
que ela constate, mas será necessário tam­ até mesmo nas origens da vida biológica,
bém que ela preveja os traços agrupados sob senão nas origens da matéria e do m undo, ou
a mesma representação ou as conseqüências - então renunciar a explicá-la, renunciar até
a serem tiradas de certos fatos. Se não é capaz mesmo ao fato de que ela possa existir, o que
de deduzir mesmo quando observa, não pode é, por definição, considerado como inadmis­
conhecer. Os dados da experiência bruta sível. Ainda é sustentado por alguns como
devem ser reagrupados num campo de pro­ absurdo o fato de que ela possa ser um
jeção onde cada coisa possa detalhar-se em resultado e não se assemelhar a suas condi­
imagens ou em símbolos evocáveis e recom- ções necessárias.
bináveis à vontade, e onde as relações sejam Sob uma forma mais abstrata, outros
livremente construídas, para serem, em se­ vêem na explicação científica apenas a redu­
guida, comparadas entre si e com o aconteci­ ção da diversidade empírica ao idêntico, sem
mento. Antecipação incessantemente retifi- se darem conta do essencial, que é a massa
cável em caso de erro, e que tem o real como das operações através das quais o espírito
limite a ser colocado cada vez mais próximo, pode manter a ligação do diferente com o
mas cujo material e estruturas são intelectu­ mesmo1, e através das quais, por seu lado, a
ais. Esse material de figurações diversas, de natureza polimorfa pôde sair do indiferenci­
palavras e de noções, que a criança encontra ado. As relações são como que assimiladas
em seu ambiente assim como encontra as pela imagem do ser sob dois aspectos equi­
coisas, impõe-se, assim como elas, à sua valentes. Em sua maior sutileza filosófica,
atividade. Ele responde a aptidões como a essas ilusões não vão mais longe que as da
linguagem, e lhes dá oportunidade de serem criança, que confunde representação e rela­
empregadas assim que estejam em estado de ção. A representação procede por semelhan­
fazê-lo. Do meio intelectual em que vive a ças e diferenças e, com relação a cada objeto,
criança, elas recebem estímulo e direção, por
vezes tanto ou mais do que os objetos a se­
(1) Decalque de uma filosofia sobre o regime de uma
rem conhecidos, aos quais a função delas é época: devido ao fato de que toda transação baseia-se
de dar uma réplica ideal. em moeda, a moeda parece propensa a esquecer o
Esse desdobramento tem, como primei­ trabalho criador.
442 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

por identidade. É desse modo que ela causa de. Nos dois casos, há mudança de patamar,
a impressão de penetrar-lhe a essência, de quer da existência para a essência, quer da
compreendê-lo. Explicar e compreender ain­ essência para a existência.
da não estão mais diferenciados do que o es­ Como toda diferenciação, a da repre­
tão representação e relação. sentação e das relações implica um fator
Contudo, se são o resultado de uma comum que se transforma de modo diver­
diferenciação, não são radicalmente hetero­ gente. O fato de a criança passar de uma para
gêneas. A oposição que Jaspers supõe entre outra mostra que ela é um fator de identida­
as relações de compreensão e as relações de de, cuja forma é réplica dada à coisa. Sua
existência é das mais tendenciosas. Nas rela­ forma simples é a constatação, reconhe­
ções de compreensão, mesmo as mais íntimas, cimento do objeto ao mesmo tempo em sua
já há algo de heterogêneo; na representação natureza e em sua presença. Mas a criança,
mais simples entram relações que poderiam inicialmente, confunde a explicação com a
ser consideradas como incompreensíveis sem simples identificação ou a simples denomi­
a existência da própria representação, cuja nação. A palavra, a imagem parecem-lhe
função é a de fundir-lhes os elementos como acarretar a existência da coisa. O que chama­
em um cadinho de identidade: por exemplo, ram de período mágico de seu pensamento é
a cólera e a agressão, que podem ser consi­ apenas a etapa indiferenciada onde a repre­
deradas, alternadamente, como sendo de sentação fica misturada ao ser e, por conse­
mesma essência ou como um combinado de qüência, com toda essa base indistinta e ainda
manifestações mais ou menos variáveis e impensável de relações que fazem com que a
contingentes. Não há representação que não coisa exista. Para fazer com que esse confu­
tenha sua origem na experiência, onde as sionismo entre o efetivo e a imagem que
relações são simples dados irracionais. Inver­ aprisiona o pensamento e altera as coisas
samente, não há relações entre condições e cesse, será necessário um processo simultâ­
resultados, ctija heterogeneidade inicial não neo da representação se liberando do ser,
possa ser reduzida, quando sua assimilação para melhor apreender o objeto em sua
mútua tornou-se familiar o suficiente para diversidade ideal, em seus modos e suas
tomar-se intuitiva. Assim, Descartes propunha transformações eventuais, em suas seme­
reduzir as proposições sucessivas de um ra­ lhanças e diferenças com outros objetos, e da
ciocínio à unidade intuitiva através de uma existência, reduzida a circunstâncias de lugar,
recapitulação suficientemente repetida. Des­ de momento, de causa. Enquanto isso não
se modo, Hume via, unicamente no fato de ocorre, a simples tautología, que é, indife­
nos habituarmos, a razão que nos faz associar rentemente, constatação da coisa efetiva e
fogo e calor. Na realidade, não há diferença reconhecimento de sua imagem, absorve to­
de espécie, há simples diferença de função do seu poder de identificação intelectual. A
entre relações de compreensão e relação de identidade qualitativa, ou semelhança, ainda
existência, entre a representação e o fato. não se dissociou do idêntico existencial, e
Uma dá às coisas uma réplica que as decom­ este ainda não se decompôs nas relações que
põe em semelhanças e em diferenças; a outra o tomam presente ou necessário. Em sua
estende, de uma à outra, uma rede de rela­ divisão entre a representação e as relações, a
ções que lhe explica a existência. Mas as identidade deve tomar-se, por um lado,
relações podem entrar em uma representa­ simples conformidade da coisa a determinada
ção e tomar-se parte integrante e como que imagem ou a determinada idéia, por outro
intuitiva das coisas, assim como as semelhan­ lado, simples relação quer constatada, quer
ças e diferenças podem ser reduzidas a rela­ constante, em condições dadas ou supostas.
ções suscetíveis de lhes explicar a diversida­ O idêntico nas relações não é mais assimila-
C O N C L U SÕ E S E C O M E N T Á R IO S 443

ção do objeto e da representação; é o fato associações continuam sendo, na maioria, de


observado ou necessário. tipo binário e global. Os dois termos, efeito e
As explicações da criança não escapam causa, são ligados de modo indiferenciado,
facilmente da tautología. O desdobramento absoluto, ambíguo e podem desempenhar,
da causa e do efeito é, com freqüência, pura­ alternadamente, ambos os papéis. Ou então,
mente nominal; limita-se a enunciar o próprio a ligação que têm juntos é transferida, tal
efeito como sua própria causa. Ou então, o como está, por via de analogia, algumas ve­
efeito e a causa mudam alternadamente de zes até mesmo por simples persistência, a
papel. Outras vezes, a criança procura isolar outros pares onde pode destoar. Enquanto o
a causa do efeito gramaticalmente, através da pensamento permanecer assim fragmentado
utilização de um neutro. Ela dá isso como em moléculas mais ou menos independentes,
autor do efeito que é preciso explicar. “Isso é evidente que ele não descobrirá relações
queima” ou “faz calor” para explicar o calor, que sejam outra coisa além de uma simples
mas também, naturalmente, como resultado dependência mútua, mas indeterminada, en­
do calor. Como é seu costume, a criança tre dois objetos ou dois acontecimentos. Ele
pode, àssim passar da causa ao efeito e vice- não é capaz de reconhecer relações que va­
versa. Pelo menos, começa, desse modo, a se lham em condições definidas e sem distin­
insinuar a distinção da força e do resultado. ções de objetos, ou seja, que sejam separadas
Por vezes também, o neutro incita a procurar de toda mistura, de toda contigência, e que
um substantivo correspondente, ou seja, o reduzam o empírico a uma ordem onde as li­
desdobramento verbal pode iniciar uma ex­ gações sejam previsíveis, constantes, neces­
plicação verdadeiramente substancial. Na sárias.
massa sincrética de suas impressões, a criança Por mais contrário que pareça a esse
tende a distinguir algum termo consistente e gênero de relações, o par é, contudo, como
durável, que seja a razão de ser ou a origem que a célula inicial de onde elas puderam sair,
do resto. A decomposição do fato em um assim como a própria representação. Dois
sujeito, ou uma substância, e uma ação pode princípios parecem, de fato, aí coabitar, e sua
desenvolver-se em ação transitiva ou de três confusão, feita pela criança, tom a apenas
termos. “O vento se mexe sozinho” toma-se mais evidente a dupla orientação intelectual
“o ar faz o vento se mexer”, ou então, é que disso deve resultar. Por um lado, a
alguma coisa que faz o vento aparecer”. Entre unidade, que é o par, tende à assimilação dos
o ar e o vento, que ela confundia mais ou dois termos. A primeira resposta da criança
menos, a criança vê-se tentada a encontrar limita-se, habitualmente, a uma afirmação de
alguma diferença “o ar vivo empurra o vento”, identidade, de onde se segue, necessaria­
e continua dizendo que “o ar vivo vem de um mente, a diferenciação qualitativa, o reco­
lugar frio”. Assim, a razão geográfica encontra, nhecimento e a classificação dos objetos en­
no desdobramento do vento em ar que em­ tre si conforme suas semelhanças e suas
purra e em ar empurrado, uma oportunidade diferenças. Mas o par é, ao mesmo tempo,
de se produzir. Conforme o material de noções dois termos unidos por contraste ou por
ou de palavras de que a criança dispõe, o coincidência. Anterior à representação deles
hábito que ela tem de propostas de três termos resultante, a ligação dos mesmos tende,
poderá fazer-lhe invocar causas de natureza também, a se dissociar em dois elementos
mais ou menos variada. distintos. Assim, ela prenuncia a procura das
Contudo, a criança ainda está muito longe relações que podem justificar a aproximação
de poder ultrapassar simples ajustamentos e colocar, entre dois objetos ou dois acon­
quertautológicos, quer empíricos, para atingir tecimentos, em si mesmos heterogêneos, um
uma ordem verdadeiramente causai. Suas vínculo de condicionamento de existência.
444 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Vemos, por exemplo, a criança insinuar, entre salidade são questões às quais é preciso que
eles, e por vezes como que por acaso, uma a experiência diga “sim”. Quando responde
locução de lugar, de tempo ou de causalidade. ”não”, o mais bem deduzido sistema fracassa,
Essa dupla instância inclusa 'nas for­ e é preciso fazer a pergunta de outro modo.
mações mais simples do pensamento dis­ Assim, a causalidade deve, a todo instante,
cursivo não explica, evidentemente, sua evo­ modelar-se sobre algo, que aparece, ini­
lução posterior, mas já lhe marca o início, cialmente, como o irracional, tanto, em certos
mostra-o, ao mesmo tempo, como preceden­ momentos, isso pode parecer estranho às
te de uma estrutura de algum modo autonôma, puras construções especulativas, ou melhor,
e como que ligada, por si mesma, às formas ao que especulações anteriores já souberam
de psiquismo que a precederam, e onde o assimilar da experiência. As formas da cau­
contraste, a alternância, a simetria, a bipolari- salidade variaram muito. À medida que de­
dade ainde se traduzem, no comportamento, viam penetrar mais na realidade física, foram
apenas sob a forma dos movimentos ou sob necessários símbolos e fórmulas cada vez
as espécies da sensibilidade diferencial. mais precisos, sutis e abstratos para figurar e
A cada plano de existência correspondem medir seus fatores mais profundos. À medida
estruturas apropriadas. O pensamento tem as que os progressos da investigação tomam a
suas, assim como a vida. Sua função é de experiência mais exigente, a imaginação
conhecer, seu objeto é o mundo. Ele só pode especulativa deve levar seus limites para ca­
utilizar e desenvolver seu material, dele da vez mais longe. Desse modo, tornam-se
extraindo construções e sisjemas que perten­ acessíveis apenas a certas inteligências. Mas
cem ao campo da especulação. Nesse sentido, no caso da criança, esta é incapaz, inicial­
o idealismo tem razão. Mas aí permanecer é mente, de traçar a curva das formas mais
encerrar-se num aparato isolado de suas correntes da causalidade, pois elas não são
origens, de suas condições permanentes, de um dado bruto da experiência, mas já pen­
suas conseqüências. As relações de cau­ samento construtivo.
TERCEIRA PARTE

A S ULTRA COISAS
C a p itu lo I

O PROBLEMA DAS ORIGENS

Como o problema das origens refere-se ampliar, a se generalizar e todas as noções,


a efeitos ou aspectos da causalidade que não que permaneciam até então simultâneas,
são os atuais, é óbvio que a criança, presa tendem a se reduzir àquelas: o tempo antes
entre o estreito horizonte de sua experiência do tempo torna-se, simplesmente, o período
cotidiana e sua incapacidade especulativa, mais recuado do tempo, com a alternativa
deve ser incapaz de responder a isso. Contudo, quer de uma regressão ao infinito, quer de
sua maneira de reagir às perguntas formula­ um início absoluto. Ao mesmo tempo, o an­
das revela níveis pelos quais seu desenvolvi­ cestral deixa de ser consübstancial com sua
mento intelectual passa. progenitura, o criador com a criatura.
Enquanto eles se tomam, desse modo,
INÍCIO ABSOLUTO E CRONOLOGIA distintos, surge o problema das anteriorida­
des relativas, não apenas entre os termos de
O recuo e o início no tempo, que são uma mesma série, como são as diferentes ge­
noções implicadas na de origem, apresentam rações de uma mesma linhagem, mas tam­
uma primeira fonte de dificuldade, verdadei­ bém entre várias séries, e, gradualmente, en­
ra antinomia da razão. A existência e o tempo tre todas aquelas cujo total formará, um dia,
cronológico entram em conflito. Nas crenças o universo, mas somente quando o espírito
dos primitivos, parece ter havido várias etapas. tiver se tomado capaz de integrar-lhe a so­
Inicialmente, a presença efetiva, embora em ma, sob forma de uma potência que ultrapas­
si mesma oculta, dos ancestrais que, juntos, se qualquer série efetivamente acessível e
sustentavam a existência do clã correspon­ estenda-se a toda existência eventual. Então,
dente: o tempo obliterado atrás do ser. De­ surge a antinomia do tempo limitado ou ili­
pois, esboça-se a diferenciação e surge a mitado, que é a do fato e do potencial. Na
idéia de um tempo anterior ao tempo, o tem­ verdade, a redução ideal de tudo o que é, foi
po dos ancestrais. A imanência dá lugar à ou será a algo que deve ordenar-se na su­
anterioridade, mas uma anterioridade sem cessão dos tempos não permite imaginar
nada de anterior asi: o çxtratemporal anuncia um limite para essa sucessão. À medida que
o tempo. Logo, contudo, como as distinções todos os seres e sua duração tem, por de-
cronológicas ganham uma maior precisão nomidor comum, a cronologia, todo limite
e importância, o sistema delas tende a se temporal toma-se impensável. A função
O P R O B L E M A D A S O R IG E N S 447

cronológica parece impor suas condições ao a série dos ancestrais não tem limite, ela se
ser. encontra diante da necessidade teórica de
A integração radical de todas as coisas a prolongar para além de sua experiência
essa destilação do tempo, que produz o tempo pessoal a filiação pai-filho. Nesse momento,
abstrato e homogêneo, só pôde ser feita por sua hesitação entre as duas opiniões é expres­
etapas, o que é atestado pela história das sa por “às vezes”, locução que ela usa fre­
crenças e da filosofia. Inicialmente, bem en­ qüentemente, porque só é capaz de apre­
tendido, ela ultrapassa o alcance da criança. ender algo sob a foima do eventual ou do
Uma primeira irredutibilidade impõe-se a ela: contigente. A obrigação lógica ainda não a
a das outras durações à sua. A criança só pode conduz à regra, pois permanece em conflito
conhecê-las nos limites de sua própria exis­ com a intuição pessoal, e esta não chega, por
tência, e tende a se imaginar como anterior a sua vez, a se repetir, por via de analogia
toda existência, ou melhor, como a medida abstrata, para todos os homens, quaisquer
de toda duração possível. Ela não sabe como que eles sejam.
fazer o macrocosmo entrar em seu próprio
microcosmo, que é, para ela, o fundamento N...é 6; “Você sempre existiu? - Não. -
de toda realidade, visto que é a única fonte de Antes de seu pai, tinha alguém ? - Um outro
onde pode receber a intuição da existência. homem. - Sempre existiram homens? - Sem­
Ainda incapaz de sublimá-la, de despersona- pre. - Eles tinham pais? - Não. - Seu pai tinha
lizá-la, de extrapolá-la, inapta para dissociar um pai? - Tinha. - E esse pai teve um pai? -
suficientemente sua sensibilidade e o objeto, Teve. - Esses homens foram pequenos? -
a representação e o real, normalmente ela Foram. - E esses homens, quando eram pe­
acredita ser, ela própria, o limite do que a quenos, tinham pais? - Tinham . - Os primei­
circunda, e é assim, por exemplo, que sente ros homens tiveram pais? - Tiveram. - Esses
dificuldade para imaginar que seu pai possa também? - Também. - Mas então eles não
ter existido ou nascido antes dela. Vêmo-lo eram os primeiros, já que eles tinham pais. -
oscilar entre as duas afirmações contrárias Não. - Então, os primeiros...?"
como entre os dois termos de uma antinomia1.
Há a mesma hesitação quando se trata de Aqui, ainda, há negação de filiação para
escolher entre a regressão ilimitada e um a massa anônima dos homens que precede­
início. ram as gerações presentes. Contudo, para
cada um individualmente, há o restabele­
C...ni 6; 1/2 “Seu pai tinha um pai? - cimento dessa filiação e tal filiação remonta
Tinha. - E esse pai tinha um pai? - Não. - Têm ao infinito, pois a criança não parece apre­
homêns que não tiveram pai? - Têm. - Sempre ender a contradição de um primeiro homem
existiram homens? - Sempre. - Esses homens que teria, ele próprio, um pai. Ela aplica,
tinham pai? - Às vezes. - Existem alguns que continuamente, a mesma relação filho-pai de
não tinham?...” maneira esteriotipada, sem representar nem
a série, nem se perguntar se é necessário su­
Inicialmente, a criança não admite a fili­ por-lhes ou não um início.
ação pai-filho para além de seu próprio avô. As dificuldades são, evidentemente, se­
E como é preciso que ela admita que outros melhantes quando o problema da anteriori­
homens viveram anteriormente, ela os supõe, dade é transposto do homem para as coisas.
de inicio, sem pai. Contudo, ao perceber que
K...vé 6; “Por que o sol faz calor? - Porque
(1) Para a caducidade sucessiva das antinomias, v. Dos ele está sempre quente. - Por quê? - Porque ele
ato ao pensamento. existe sempre. -...O sol sempre existiu?- Não.
448 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

- Antes do sol, o que é que existia? - A lua. - se sem realmente se unificar. E, aliás, trata-se
E antes da lua? - Nada. - O vento existía antes muito mais de termos aos pares do que de
do sol? - Existía. - E antes da lúa? - Existía. - As séries. Recém-nascido-hospital, hospital-
árvores existiam antes do sol? - Não. - E o pedreiro não se fundem,sob o signo do pri­
vento? - Existía. -De onde ele vinha? - Do céu. meiro homem, em uma série onde poderiam
- O céu sempre existiu? - Não. - Antes, o que ser inseridas cada geração e suas obras. Essa
é que existía? - Nada. - Existía homens antes fusão exigiria uma ultrapassagem de todos os
do sol? - Existía. - Sempre existiram homens? pares ao mesmo tempo e a integração deles
- Não, eles morreram... Eles morreram na por algo que parece dever precedê-los, como
guerra. - Existiam homens antes da guerra? - um meio, uma ordem, uma lei, fora dos quais
Existiam - Eles não estão mortos? - Não. - eles estariam em um caos. O princípio dessas
Como surgiu o primeiro homem? - Nos hos­ confusões no tempo é acentuado por outras,
pitais. - Quem tinha construído os hospitais? que são seu equivalente em campos di­
- Os homens. - Então havia homens antes? - ferentes. Após ter falado dos homens mortos
Era aquele que nasceu prim eiro. - E esse aí, antes da guerra como se estes fossem a co­
como ele nasceu? - Não sei. - Esse primeiro letividade total dos homens que nos pre­
homem tinha um pai e uma mãe? - Não. ” cederam, ela admite que alguns subsistiram:
incapacidade da criança para especificar se é
As noções de tempo são, aqui, des­ do todo ou de uma parte que ela fala, devido
córdemelas e confusas, as contradições, fre­ à incapacidade para distinguir, no objeto em
qüentes. A criança parece indecisa entre a que pensa, entre a representação particular
necessidade de um antecedente e a de um dele e o conjunto de que esta faz parte. Suas
início absoluto. É muito mais o acaso das representações são como silhuetas às quais
associações do que uma preferência qual­ faltaria um fundo para nele projetar suas
quer que ocasiona os termos relativos a uma posições recíprocas. Os diferentes planos de
ou a outra. As séries interpenetram-se e o que seu pensamento ainda estão reduzidos a um
era anterioridade absoluta tomou-se simples único plano. Ocorre o mesmo para o tempo:
sucessão que passa de uma para outra. As cada objeto de pensamento tem o seu plano,
expressões de tempo são utilizadas de maneira sem uma base cronológica única.
ambígua. “Sempre” é, alternadamente, atri­
buído e negado ao sol, que é uma fonte cons­ RECUO INDEFINIDO
tante de caldr, mas que nem sempre existiu, DO ATO CRIADOR
distinção que se compreende. Porém, os dois
sentidos são, em seguida, confundidos: à per­ A antinomia do início absoluto e do ili­
gunta se sempre houve homens, a criança mitado pode ainda expressar-se pela alter­
responde que estes morreram, ou seja, a idéia nativa: um criador, ou a existência absoluta e
de uma sucessão sem início dá lugar à de uma sem início.
vida que deve terminar. A lua, a que nada é
anterior, na série sol-lua, toma-se posterior V...er 7; 1/2 “O que é a Terra?... A Terra
ao vento, quando surge a série vento-sol: sempre existiu? - Sempre. -Sempre existiram
segundo a criança, é o vento que põe o sol homens na Terra? - Não. - Quem colocou os
em movimento. Embora tenha dito, anterior­ homens na Terra? - Foi Deus. - Quem fez
mente, que o vento é produzido pelas árvores, Deus? - Foi Jesus Cristo. - E Jesus Cristo, al­
ela as considera como posteriores ao sol. Há guém o fez? - A Terra existia prim eiro. -
a mesma inconseqüência a respeito do pri­ Ninguém fez a terra? - Não. ”
meiro homem, que nasceu em hospitais, Duas tendências contrárias, que a criança
construídos por homens. As séries justapõem- limita-se a justapor, estão aqui frente a frente:
O P R O B L E M A D A S O R IG E N S 449

a explicação através de um criador e a da O artificialismo, que é uma explicação


existência em si. Inicialmente, ao próprio espontânea na criança, porque é a assimilação
criador ela atribui um criador. Depois, por dos fatos desconhecidos aos que pertencem
falta de nome provalvelmente, ou porque ela à sua experiência usual, provoca também,
sente que essa regressão seria indefinida, a sob forma incisiva, a antinomia da causa
criança retorna à anterioridade absoluta da primordial.
Terra, sua primeira afirmação. A ação do
criador, aliás, fora invocada apenas a respeito D...al 7;l/2 “Como tem fogo no sol? -
dos homens. O mundo seria, portanto, anterior Porquefo i Deus que acendeu. - Como Deus
ao Gênio autor do homem, assim como em fez isso? - Com um fósforo. - O que a gente faz
fábulas antigas. com um fósforo? - A gente esfrega num a
As relações do ilimitado com um primeiro caixa. - E depois? -A gentepõe no papel e isso
termo, no tem po ou no espaço, podem ainda dá o fogo. - O sol é aceso com um fósforo e
ser observadas, sob forma física, a próposito com papel? - É , sim, senhor. - Como Deus
das origens. tinha um fósforo e papel? - Porque ele desceu
para procurar. - Deus foi numa loja comprar
K...vé 6; “As estradas sempre existiram? - fósforos e papel? -Foi. - E não tinha sol antes?
Não, era de terra e depois eles colocaram - Não, senhor. - Então, tinha um vendedor
pedregulhos. - Quem? - Os homens. - As antes do sol? - Tinha. - Ele vendia papel e
estradas não existiam antes dos homens? - fósforos antes que existisse o sol? - Д sim,
Era de terra. - De onde vêm os pedregulhos? senhor. - Se não tinha sol, a gente podia
- Eles nasceram com a terra. - De onde vem enxergar? - Podia, sim , senhor. - Como seria
a terra? - Q uando a água caiu. - Isso fez a sem sol? -Assim ( tempo nublado de inverno).
terra? - Ela nasce. - A água caía sobre o quê? - Como o céu pode clarear? - Porque têm
- Ela caía na terra... sobre nada... Ela caía luzes. - Como são essas luzes do céu? - São
em todo lugar, o tempo todo. - Onde ela caía? redondas como essas lâm padas (grandes
- Ela caía muito, muito; e tinha algum a coisa lâmpadas foscas do projetor). - Como pode
em baixo que segurava. - O que era essa ter luzes no céu? - Porque têm ...porque Deus
coisa? - Não sei.” colocou. - Como é que ele tinha essas luzes?
- Porque elefo i com prar na loja. - O vende­
Para explicar a origem da terra, a criança dor existia antes do céu? - Existia. - Se não
supõe que há água que cai. Será influência do existisse céu, como seria? - Ficaria de noite.
par água-terra ou da palavra “nascer”, por - Sempre de noite? - Sempre. - Existiam ven­
analogia entre a terra e as plantas? Contudo, dedores quando ficava sempre de noite? -
a queda não pode ser ilimitada e o que a água Existiam. - Como é que eles enxergavam
encontra ao cair no vazio é a terra de que direito? - Porque tinha eletricidade. - Como
deveria ser a origem. Diante dessa contra­ assim? -Porque tinha máquinas, eletricidades.
dição, a criança invoca o próprio ilimitado, - Antes das máquinas movidas a eletricida­
sob as formas do espaço, do tempo, da de, ficava de noite? - Ficava, sim, senhor.
intensidade: “em todo lugar, o tempo todo, Ilum inava com querosene. - E como é que
muito, muito”. Porém, ela não deixa de atri­ tinha querosene? - Com m áquinas- A quero­
buir um termo a esse infinito. Ela o reduz ao sene é fabricada com máquinas? - Д sim,
neutro “alguma coisa”: é alguma coisa em­ senhor, com resina. - Como eles enxergavam
baixo que segura a água para fazer dela a o que eles fabricavam? - Com velas. - De onde
terra. Epicuro limitava dessa forma a queda vêm as velas? - Com sebo. - Antes que as velas
indefinida dos átomos, através da declinação tivessem sido feitas com sebo, a gente podia
deles, que fazia com que eles se encontrassem. enxergar direito? - Podia, a gente acendia
450 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

pedaços de m adeira com papel e colocava em procedimentos que são criadores de clarida­
castiçais. - Mas como é que a gente podia de em sua ambiência técnica, ela rompe o
acender os pedaços de madeira? - Com fósfo­ círculo em que se encerra o perpétuo reinicio
ros.. A gente com prava..A gente fa z ia com das mesmas causas e dos mesmos efeitos.
pedaços de m adeira etc.” Porém, a regressão de causas em causas
particulares, em busca de uma delas que seja
Esta retrospectiva da iluminação tem, a primeira, é apenas constatar o constante
sem dúvida, algo de lúdico. Contudo, é visível retorno das mesmas sucessões, o que não é
que, se a criança prossegue dessa maneira uma solução.
com sua vã enumeração de imagem em A origem das plantas mostra muito bem
imagem, isso ocorre porque ela não sabe a contradição, em que a criança se encontra,
reduzi-las, todas juntas, à condição suprema entre a alternância semente-vegetação e a
que demonstraria a inutilidade dessa regres­ necessidade de achar um termo inicial. Seu
são, onde cada termo novo exige um outro, procedimento mais habitual é o artificialismo,
cada meio de iluminação, aquele necessário mas ela também é atraída por outros.
ao fabricante ou ao vendedor. As explicações
sucedem-se, oferecendo, todas, a mesma A...aud 6; “E para fazer os repolhos
dificuldade, sem integração de todas nesta. crescerem? - A g en tefa z um buraco com um a
O desfile delas tem, portanto, como limite, agulhinha, a gente põe sementes de repolho.
apenas o pouco material encontrado, pela - E as árvores? - A gente põe sem ente de
criança, em sua experiência. A ausência de árvores. _ Onde a gente arruma? - A gente
uma conclusão que se aplique a todas e que, compra. - Onde? - Na casa de um a senhora.
de imediato, tom e inoperante sua substituição - Onde essa senhora as arruma? - Vem do
mútua, explica o fato de ela ser incapaz de mercado. - E a semente do mercado? - Não
inserir a noção de origem na de tempo, como sei. - Onde as pessoas do mercado encontram
um início sem qualquer outro começo além essas sementes? - Não sei.”
das condições diferentes de si próprio. Mas
' como ela poderia fazê-lo* se ainda não sabe A origem mercantil das coisas é a que a
opor, aos casos particulares ou aos momen­ criança invoca mais freqüentemente. É um
tos sucessivos de seu pensamento, uma fór­ início para além do qual sua experiência das
mula definida e estável, que permita quer coisas, pelo menos no meio citadino, não lhe
diferendá-los, quer uni-los? A noção de permite remontar.
claridade passa, de maneira disparatada e
sem que ela pareça aperceber-se, do sol e do L...our 6; 1/2 “O que é a grama? - São
dia às luminárias artificiais. Ela chega a folhinhas. - De onde elas vêm? _ Cresce na
assimilar a estas a luz natural, apesar de terra. - Como é que isso acontece? - Cresce
sensíveis diferenças. Evidentemente, ela as sozinho com semente. - De onde vem a
percebe. Mas os termos sucedem-se sem semente? - Não sei. - Sempre existiram se­
serem reduzidos a uma fórmula comum. Eles mentes na terra? - Não, foram hom ens que
se substituem entre si e cada um deles faz colocaram. - O nde os homens encontraram
esquecer as exigências da imagem prece­ sementes? - Eles vão com prar nas lojas. -
dente. O que não é qualitativamente discri­ Como é que têm sementes nas lojas? - São
minado também não o é no plano causai, hom ens que fa ze m e levam para as lojas. -
donde a assimilação artificialista do sol a um Você sabe com o que são feitas as sementes?
fogo de fósforos e deípapel. Provavelmente, - Não. - De onde vêm as árvores? - Um hom em
a criança pode ter a ilusão de que, reduzin­ que põe sem ente para poderfazê-las crescer.
do a existência do sol e do dia a um dos - Onde ele arrumou a semente? - Na loja. “
O PROBLEMA DAS ORIGENS 451

H,..é 6; “As árvores crescem? - Crescem. as arranjaria? - Na loja. - E o vendedor? - São


- Como? - Com semente. - O que é a semente? os hom ens que dão as sementes. Ele precisa
- São grãozinhos. - De onde eles vêm? - São pagar. - Como esses homens têm sementes?
os vendedores que fa zem . - Como? - Eles - Elesfa zem . - Como? - Elesfa zem sementes de
fa zem grãozinhos de maçã.” propósito."

Nos dois últimos casos, o fabricante Sempre o mesmo refúgio da fabricação,


substitui o vendedor. A criança conhece a à qual a criança acaba acrescentando uma
semeadura, não conhece a colheita. Asemente intenção expressa, assim como, anterior­
é portanto, sempre de origem artificial. mente, uma substância: maçã ou cenoura.

ORIGEM HETEROGÊNEA T...ème 8; 1/2 “De onde vem a semente


OU ALTERNANTE que faz as flores crescerem?...E se você
quisesse fazer as flores crescerem? - Eu
N...é 6; “De onde vêm as árvores? - A compraria sementes. - Onde? -N a mercearia.
gente fa z elas crescerem. - Como a gente as - Mas e quando o merceeiro não tem mais,
faz crescer? - Com semente. - E de onde vem onde ele as arruma? -É o entregador que leva
a semente? - São os vendedores. -E como é para ele. - Onde o entregador pega as
que os vendedores têm a semente? - Eles sementes? - Nas sementeiras. - O que é uma
fa zem . - Com o quê? - Com cenouras. - Como sementeira? - Uma arvorezinha. - O que
é que eles têm cenouras? - Elesfa zem . - Com pode crescer com as sementes da arvorezinha?
o quê? - Com semente. - Mas onde eles pegam - Batatas. - Pode crescer outra coisa? - Flores.
a semente? - No chão. - De onde ela vem para -E o que mais? - Cerejas. - As cerejas crescem
o chão? -D o céu. - Você a viu cair do céu? - Vi. com sementes? - É...com caroços."
- Você recolheu? - Não. - Por quê? - Tinha
polícia. Eles não querem que agente recolha Aqui, a origem mercantil, no começo
as sementes.” invocada, retoma à origem vegetal ou natu­
ral, mas inicialmente simbolizada por uma
O caso é, aqui, mais heterogêneo. A árvore especial, que daria, por si só, semen­
criança ignora completamente a colheita. A tes para todas as espécies de plantas. A fun­
semente é sempre fabricada. Contudo, é ção da semente, no momento em que se
esboçado o ciclo semente-planta-semente. A oferece ao espírito da criança, parece isolar-
semente é fabricada com cenoura e a cenoura se de cada planta particular, tomando como
com semente. Mas o vínculo entre elas não é base a sementeira. Mas eis que, ao citar as
de maneira alguma vegetativo. A semente é cerejas, seu caroço retoma-lhe à memória
pura e simplesmente encontrada no chão. como semente das cerejeiras. Assim, com
Terra atrai céu por contraste: a semente cai do muita freqüência, ela oscila entre uma entida­
céu sobre a terra. O mesmo gênero elementar de lógica e as imagens de sua experiência,
de associação aos pares faz com que “recolher” operando mais por substituição do que por
ocasione a “polícia” que impede tal ato. Há redução mútua.
uma evidente fabulação que, acrescentando- A oscilação entre a origem artificialista e
se aos pares, mostra a regressão intelectual da natural resolve-se, habitualmente, em favor
criança diante de uma dificuldade que ela da primeira, nas crianças mais novas: pre­
não quer reconhecer. ponderância do humano.

P...ot 6; “E se você quisesse ter uma D. ..et 6; “Como o vendedor tem sementes?
árvore? - Eu colocaria sementes. - Onde você - Tem alguém que dã para ele. - Quem? - Um
452 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

outro vendedor que fe z as sementes. - Como origem mercantil que ela recorre. Contudo,
a gente pode fazer as sementes? - Com alguma não sabendo como ultrapassá-la, ela se livra
coisa. - Como as árvores crescem? - A gente disso através da ubiqüidade das sementes,
tam bém coloca sementes. - E essas sementes? que poderiam ser encontradas em todo lu­
- São caroços. - Onde a gente os encontra? - gar. Ela envolve a razão de existir delas na
Na terra, nas árvores. - E se não tiver universalidade. Assim, outras dizem “isso sem­
árvores?...Como as primeiras árvores cres­ pre existiu” como razão derradeira da ne­
ceram? - Foi um vendedor que fe z, e as árvo­ cessidade. “Em todo lugar” e “sempre” amal-
res cresceram. - Tinha vendedores antes das gamam-se enquanto isso. Esse processo é, no
árvores? - Tinha. - E o trigo ? - Também são se­ tempo e no espaço, um meio de evitar uma
mentes. - De onde elas vêm? - Da palha. - De regressão de causa e causa, que correria o
onde vinha a palha? - Foi um vendedor que risco de ir ao infinito.
fe z também. - Mas como esses vendedores a
fizeram, se eles não tinham nada? - Eles tin­ J...y 9; “De onde vêm as sementes? - Vem
ham algum a coisa parafazê-las, trocinhos.” das regiões das sementes. - Essas regiões das
As árvores de onde vêm os caroços, a sementes ficam longes? - Ficam. - Onde? -
palha de onde a semente é separada, não Não sei. Elas são trazidas de barco ou de
impedem a criança de reduzir a origem, tanto carro. - Nessas regiões, como a gente encontra
das plantas quanto das sementes, ao comércio sementes? - São feitas com m áquinas. - O que
ou à indústria humana. Ela apreende bem os a gente coloca nas máquinas para fazer se­
conjuntos árvore-caroços, palha-sementes, mentes? - Não sei. - Antes das máquinas, não
mas sob um aspecto estático e sem apreen­ tinha sementes? - Tinha. - Como? - A gente
der uma relação genética. A indústria deve fa z ia à mão. - O que é que cresce com
substituí-la. A matéria que é forçada a utilizar sementes? - Cenouras e coisas verdes. - As
não é procurada na planta e nem no que serve flores crescem com sementes? - Não. - Como
para o seu crescimento, mas em simples elas crescem?... E se você quisesse ter flores
“trocinhos”. num vaso? - A gente precisa plantar. - Onde
O artificialismo opèe, ao problema das a gente encontra flores? - Na região dasflores.
origens, um limite que a criança não sabe - Como é que tem flores na região das flores?
como ultrapassar. - As sementes são feita s com m áquinas. -
Como as árvores crescem? - Com sementes
M.. .ti 6; "Como é que as flores aparecem? ' grandes. - E como a gente as arruma? - A gente
- A gente coloca sementes e depois cres­ também fa z com m áquinas ou à mão. -
ce, cresce, cresce. Cresce devagarinho. Ela Quem as faz? - Homens. - Lá onde não têm
se abre e a gente só tem que cortar com homens? - Não sei (hesitação, riso). Nasflo ­
um a...um a...não um a fa ca ...n ã o sei mais. - restas têm. - Então, têm flores, árvores nas
E como é que aparecem as batatas? -A g en te florestas, e não têm homens? - Ê. - Como é que
põe sementes e depois elas aparecem. - De isso cresce, se não têm homens para fazer
onde elas vêm?- Não sei de nada. - De onde sementes? - Cresce selvagem. - Como isso
vêm as sementes? - A gente compra. - Onde? cresce selvagem? - Ê que tinha alguém que
-Na loja. - O ndeovendedor arruma sementes? tinha plantado árvores, que fo i embora. Ou
- Não sei de nada. Tem em todo lugar. ” sementes que tinham ficado, depois cresce­
ram. - Então, onde têm florestas, existiram
Embora insistindo logo de início sobre o homens antes? - É. - Se os homens não tives­
crescimento das pftmtas, essa criança não sem existido, não existiriam florestas? - Não.
sabe fazer com que delas resultem as semen­ - Como esses homens faziam sementes? - À
tes que servirão para reproduzi-las. É ainda à m áquina. - Você saberia fazer sementes? -
O PROBLEMA DAS ORIGENS 453

Não. - O que a gente pega para fazer sementes? assim como no tempo, a passagem do mesmo
- A gente tem a mão. - Com о que a gente faz ao mesmo não pode encontrar limite. E é
as sementes? - Com um a pinça.” ainda o artificialismo que vem, por um mo­
mento, dar a ilusão de uma intervenção inicial.
Embora essa criança pareça tentada a Contudo, ele também tem que encontrar um
explicar a origem e a diversidade das plantas primeiro termo. Surge, então, a alternância
através de regiões longínquas e lugares espe­ das árvores plantadas pelo homem, mas en­
cíficos, e mesmo quando estava a ponto de contradas em qualquer lugar, onde já haviam
admitir, para as florestas, uma origem “selva­ sido plantadas pelo homem. Para escapar
gem”, ou seja, extra-humana, o artificialismo disso, a criança imagina, bruscamente, que as
não cessa de apoderar-se dela, ou melhor, o árvores são fabricadas na serraria. Mas essa
instrumentalismo: máquina, mão, pinça, à inversão de prioridade entre a tábua e a
exclusão de toda matéria que possa ser tra­ planta não pode ser mantida, pois é preciso
balhada, como se o ato criador pudesse ser extrair a tábua da árvore e encontrar esta
um início absoluto e a técnica pudesse extrair última em algum lugar. Isso é apenas uma
as sementes do nada. nova alternância acrescentada à primeira.
Pode-se ver as explicações locais e ar- Freqüente na criança mais nova, essa inver­
tificialistas altemarem-se, pois cada uma delas são entre o objeto fabricado e o objeto natural
é anulada, sucessivamente, pela impossi­ mostra como a marca o artificialismo, que
bilidade de atingir um primeiro termo, um responde às práticas ou aos aspectos mais
início sem nenhuma anterioridade. familiares de sua experiência primeira, e que
pode, se necessário, fazer-lhe crer no ato
L„.ec 7; “Como a gente faz para plantar criador.
árvores? - A gente cava um buraco e depois
coloca a árvore no buraco. - De onde vem a L...ard 5; 1/2 acabou de dizer que a
árvore? - Dos outros campos. - De onde vêm árvore é de madeira, que a mesa é de madei­
esses outros campos? - Plantaram asprimeiras ra. “De onde vem essa madeira (a mesa)? -
árvores. - Onde arrumaram as primeiras ár­ Não sei. - A gente faz a árvore com madeira ou
vores plantadas? - Nos campos também. - a madeira com a árvore? - Não sei. - A gente
Nesses campos, onde as arrumaram? - Elasfo ­ pode fazer uma árvore com essa mesa? -
ram plantadas e depois cortadas. - Por que Pode. - Como? - A gente a quebra. - E depois?
cortadas? - Para ter outras. - As árvores que - Não lembro. - A gente pode fazer mesas com
foram plantadas, de onde vinham? - Elasfo ­ árvores? - Não. - Você tem certeza que a gente
ram feitas na serraria. - Como elas são feitas não pode? - Não.”
na serraria? - Na serraria, têm cam inhões
grandes, que vão de m anhã e de noite no Entre a árvore e a madeira, não há prio­
bosque para procurar árvores, eles levam ridade, mas entre a árvore e a mesa, a prio­
para aserraría e depois levam para os campos. ridade é dada à esta: é dela que a árvore é
- Mas de onde vêm as árvores que são levadas extraída.
para a serraria? - Dos bosques. - Como é que
têm árvores nos bosques? - Porque pla n ta ­ B...ère 6; “De onde vem o sal do mar? -
ram árvores. - Onde arrumaram as árvores Das ostras.”
que foram plantadas? - Elas foram feita s na
serraria." Na falta de verdadeiro artificialismo, há,
todavia, o animal que secreta; o sal é fabricado.
Em busca da origem primeira, “em outro Contudo, a criança não é incapaz de
lugar” substitui, aqui, “antes”. Mas no espaço, imaginar causas naturais, ora puras, ora com-
454 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

binadas a procedimentos operatórios, ou se­ raiz? - Da terra. Tem terra em volta da árvore.
ja, ao artificialismo. Tudo depende do que ela - Sempre têm raízes na terra? - Q uando não
teve a oportunidade de ver ou de fazer. têm árvores, não têm. - O que vem primeiro?
- Ê a raiz. - E antes da raiz? - Tinha prim eiro
N...ot 7; O que são as sementes? - Ê igual um pedacinho de m adeira que saía e que
apedrinhas. - Se a gente colocasse pedrinhas fico u grande. - Mas e a raiz? - Ela fic o u no
na terra, elas cresceriam? - Não. -Por quê? - fu n d o da terra.”
Porque não tem nada dentro. - E o que é que
tem nas sementes? - Têm outras pequenas. - A origem da planta é, aqui, procurada
Pequenas o quê? - Sementes. - E o que tem nas em uma de suas partes, a raiz, provavelmente
outras sementes pequenas? - Nada. - Como as como a fonte de sua subsistência ou, mais
flores podem crescer se não tem nada? - Não simplesmente, como sua parte mais baixa, a
sei. - De onde vêm as sementes? - Não sei. De partir da qual se daria o crescimento. Há,
dentro da terra. - As sementes sempre esti­ contudo, como que um esboço de recuo no
veram na terra? - Não. - Onde elas estavam tempo e passagem do mesmo ao mesmo,
antes? - Não sei. -Quando não tinha sementes, com redução de tamanho: “tinha primeiro
não tinha flores? - Não.” um pedacinho de madeira.”
A mesma criança, a propósito dos re­
Aqui, não há intervenção humana. É polhos. “Primeiro, eles fic a m em baixo da
através da estrutura da semente que a criança terra; a gente rega e eles vêm para cim a. - Os
tenta explicar a germinação. Ela a representa que ficam no fundo da terra, onde estavam
sob a forma mais simples, a que vai do mesmo antes1-Nofundo, no fundo, no fu n d o . Depois,
ao mesmo, mas com inclusão, ou seja, com elesficam floridos e agente colhe. - Mas quem
redução de tamanho. Poderia essa regressão os pôs lá?Alguém?- Não, eles caíram sozinhos.
ir ao infinito, como as origens no tempo ou - Se a gente colocasse sementes na terra, o
através do espaço? O infinitamente pequeno que é que elas virariam? - Ela fica ria no
afasta a imaginação da criança, que pára no fun d o , no fu n d o da terra, e a gente não
primeiro termo, não tendo à sua disposição, poderia m ais ver.”
como Malebranche, a divisibilidade ilimita­
da da extensão, ou seja, da matéria. Â planta Para as árvores, não há nenhuma inter­
procede da semente, mas essa criança tam­ venção do homem, provavelmente porque a
bém não admite a recíproca. Contudo, não é criança não testemunhou o fato. Para os
na engenhosidade humana que ela procura repolhos, basta a rega, pois ela não deve ter
a origem da semente, mas na terra, origem visto a semeadura. A origem é procurada em
comum, origem oculta dos seres que dela profundidade. A repetição de “no fimdo”ten­
vivem. de a marcar seu afastamento, mas sem lhe dar
conteúdo.
DIVERSIDADE DE Para as flores, acrescenta-se o ato de
ORIGEM CONFORME O OBJETO plantar. “E para fazer as flores crescerem? - A
gente coloca água em cim a. - Se eu colocasse
Há casos também em que a criança não água sobre a terra, o que cresceria? - Violetas
procura ultrapassar suas experiências relati­ e margaridas. - Mas como elas aparecem? - A
vas a cada objeto, para algumas puramente gente planta. - Onde a gente as arruma? - Nas
naturalistas, para outras artiflcialistas. lojas. - Mas onde os vendedores as arruma? -
'Sf. Na cidade. - O que quer dizer “na cidade”? -
L...ot 6; “De onde vêm as árvores? - Elas Elas crescem na terra e depois, quando já
crescem. - Como? - Da raiz. - De onde vem a cresceram, os vendedores colhem.”
O PROBLEMA DAS ORIGENS 455

Regar, plantar, comprar, atos familiares A gente corta, a gente a queim a. - Se você
para a criança, quando se trata de flores. Mas tivesse um jardim onde quisesse colocar uma
a origem mercantil não é o fim. Assim, re­ árvore, o que você faria? - Eu corto a árvore.
começa a alternância ilimitada das duas ori­ - Mas não tem árvore e você quer colocar
gens: a terra, a loja. Dessa forma, há três ca­ uma. Como você faria? - Não sei.”
sos, três explicações diferentes, sem que a
criança passe de um a outro por analogia. Ela A explicação é, aqui, absurda. Parece
mostra, em estado puro, a causalidade, tão inverter a ordem dos termos, como é freqüen­
diversa quanto o é a experiência própria a te na criança: a semente encontrada na terra
cada objeto. O artifícialismo é muito menos em vez de ser nela colocada, a árvore corta­
um tipo de explicação do que um simples da e posta no fogo, enquanto se trata de fazê-
caso de fatos observados. la crescer. Talvez trate-se de usos mal com­
Não dando lugar aos mesmos cuidados preendidos e fixados esporadicamente em
aparentes, com freqüência a árvore não é sua memória: o tamanho da árvore cujos
assimilada às outras plantas. Sua existência ramos são, em seguida, queimados, o em­
parece dever se explicar por si mesma. prego do enxerto. Talvez, também, trate-se
de um confuso amálgama entre todas essas
M. ..nez 6; “O que são as árvores? -imagens.
É
plantada com terra e depois crescem folhas.
- Como é que podemos fazê-las crescer? - B...et 8; “Como as árvores aparecem? - A
Porque é de madeira; têm pedacinhos de genteplanta pedacinhos de m adeira e depois
m adeiras embaixo. - Embaixo do quê? - isso cresce. - Como isso cresce? -É o sol que
Embaixo da terra. -De onde vêm os pedaços fa z eles crescerem. - Se eu plantasse um
de madeira embaixo da terra? - Das árvores. - pedacinho de madeira na terra, cresceria uma
De onde vêm as árvores? - Q uando elas são árvore? - S efo rn o inverno, não cresce; sefo r
pequenas, elas vêm grandonas. г De onde no verão, cresce. - Mas de onde vem esse
vêm as árvores pequenininhas? - As pe­ pedacinho de madeira? - Vem dos bosques. -
quenininhas, nos campos. - Como assim? - Como é que ele apareceu nos bosques? - Ele
Elas são pequenininhas assim nos campos e saiu da terra. - Pedacinhos de madeira podem
depois elespegam e depois eles as colocam na sair de qualquer lugar? - Às vezes, quando a
terra.” g en tefa z buracos. -Eles aparecem sozinhos?
- Ah, não. - Se você quisesse um pedacinho
A origem é, aqui, reduzida ao cresci­ de madeira para plantar uma árvore, onde
mento. A árvore procede de si mesma ou de você o arrumaria? - Eu procuraria na terra.
madeira situada sob a terra. Inicialmente, ela Às vezes a gente encontra quando cava
é pequena. Contudo, o homem vai buscar a buracos. - Você sabe o que são sementes? -
muda de árvore nos campos para plantá-la. A São sementes de trigo que caem. - De onde
origem parece diluir-se em vagos espaços vêm as sementes? - Do trigo. - de onde vem
naturais. Mas os trabalhos de que a árvore é o o trigo? -É o sol q u e fa z ele crescer. - Se você
objeto podem ocasionar contra-sensos. quisesse ter trigo, como você faria? - Não
fa ria nada, eu diria para o sol aparecer. -Por
N. que nem sempre tem trigo onde tem terra e
..ot 7; disse que as flores vêm das
sementes, que as sementes vêm da terra, mas so\7-Porque ê o sol que fa z ele crescer. -Como
nem sempre estiveram nela. “E as árvores, de o sol faz o trigo crescer? - Ele esquenta. -Têm
onde vêm? -Elas crescem assim. - Como elas lugares onde tem terra e não tem trigo? - No
crescem? - Sozinhas. - Quando a gente quer lugar, cresce capim. - Como cresce capim? -
fazer uma árvore crescer, o que a gente faz? - Igual ao trigo.”
456 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Aqui, a origem ainda é diferente para a que mais? - Rosas. -E o que mais? - Margaridas,
árvore, oriunda de um pedaço de madeira, e violetas. ”
para o trigo ou o capim, aos quais basta o sol.
Uma permanece ligada a sua própria subs­ Respostas ambíguas: de modo alterna­
tância, os outros, a uma condição geral demais do, as plantas são obtidas com a própria
da vegetação para explicar sua diferença. planta ou saem, uniformemente, do esterco.
Cada um está tão fechado em si mesmo que Será a antinomia própria à noção de origem
o problema de sua diversidade não parece que surge aqui? Será a identidade do objeto,
apresentar-se. São imagens esporádicas e mas procurada no que ainda não é ele? Trata-
estagnantes, como mostra, ainda melhor, a se, aqui, muito mais, daquela dupla inca­
resposta sobre as sementes. Assimiladas pacidade própria à criança: saber apenas
unicamente aos grãos de trigo, elas são repetir o próprio objeto e confundi-lo com
colheita, mas não semeadura. Tudo se reduz, outros. Incapacidade para decompô-lo em
portanto, à ação do sol. A do homem, para suas qualidades ou em suas condições, de
obter trigo, consiste apenas em preces en­ modo a tornar possíveis comparações ou
dereçadas ao sol. Insuficientemente deter­ classificações verdadeiramente discrimina-
minadas, as causas naturais dão lugar às razões tivas. O sentimento de uma discriminação
místicas. Nada poderia mostrar melhor a necessário pode, assim, traduzir-se por uma
inaptidão da criança diante do problema das afirmação puramente verbal de especifi­
origens do que essa maneira de isolar cada cidade.
objeto com qualquer uma de suas condições,
freqüentemente a mais banal, e de dobrar P...ot6; “O que tem nos campos? - Flores.
pura e simplesmente o efeito com a ajuda de - Só têm flores, não têm campos de trigo? -
uma intercessão adequada. Tem, tem só um, m asé grande. -Como o trigo
cresce? - Ele cresce sozinho. -Mas como?-É a
Mas esse procedimento não é mesmo terra q u e fa z ele crescer. - Como a terra pode
necessário para a criança nova, pois a in- fazer o trigo crescer? - Porque a terra é rápida.
determinação pouco a incomoda. - Tem terra rápida em todo lugar para os
campos de trigo? - Tem, em todo lugar terra
F...mi 6; “Como ele cresce (o trigo)? - Da rápida para os campos de trigo. - Como é essa
terra. -E as flores? - Da terra também. -Então terra 1-Épreta. -É preciso levá-la ou ela já está
é a mesma coisa? - É. - Quando a gente quer lá? - Ela fic a nos campos sozinha. Às vezes,
fazer o trigo crescer, o que a gente faz? - A são os hom ens que colocam. - Como a gente
gente coloca na terra. - O que é que a gente sabe quando a terra é rápida? - Para fa z e r o
coloca na terra? - O trigo. -E quando a gente trigo crescer. - Não precisa mais nada para
quer fazer as flores crescerem? - Precisa que o trigo cresça? - Não. -Ele cresce sozinho?
colocar na terra também. - O que a gente - Não."
coloca na terra? - Esterco. - As flores e o
esterco são a mesma coisa? - São. -E quando Primeira distinção: os campos onde se
a gente quer fazer as árvores crescerem? - A encontram as flores, e o campo único, mas
gente põe na terra. - O quê? - Esterco. - As grande, do trigo. A criança passou as férias
árvores e o esterco são a mesma coisa? - Não. numa aldeia de Beauce. A origem do trigo é
-Então, como é que as árvores podem crescer uma terra especial. A das flores, preceden­
quando a gente coloca esterco? - Elasprecisam temente indicada, são sementes compradas
crescer. - Mas como & esterco pode fazer as na loja. Em um caso, há simples indicação
árvores crescerem? - Elas precisam crescer. - de uma concordância, de certa forma, tau­
O que mais cresce? - Árvores...esterco. - E o tológica. No outro, há o enunciado de uma
O PROBLEMA DAS ORIGENS 457

prática usual. Entre os dois, não se verifica tre a planta e a semente, há apenas uma
qualquer tendência à generalização. A criança sucessão constatada.
atém-se à simples constatação do que pode
ocorrer em sua experiência. Mas, então, ela é D...al 7; 1/2 “O que que são as árvores? -
capaz de descrever bem. Madeira. - As árvores são iguaizinhas à
madeira? - São. -D e onde vem a madeira das
P...er 6;l/2 “Eu vi um castanheiro. Eu árvores? - Da terra e também das sementes. -
f i z um buraquinho com algum a coisa. Eu O que são sementes? - Sementes de árvore. -
coloquei a castanha bem fu n d o , que não De onde vêm as sementes de árvore? - D os
dava para ver mais, e depois eu coloquei jardins. - Como é que têm sementes nos
água. - Como um castanheiro cresce? - Ele jardins?- Com sementes. - Como é que têm
cresce com a água, com o calor, com o ar.. S e sementes nos jardins? - De onde elas podem
não tivesse água, ele teria m uita sede. -Antes vir? - Elas vêm sozinhas n o s jardins. - E de
da gente colocar água, é preciso ter um onde vêm as flores? - Agenteplantasem entes"
castanheiro? -É. -De onde ele vem?- Bem na
prim avera. Bom, o prim eiro castanheiro, fo i Aqui, também, a relação semente-plan-
um lavrador que colocou um a sem entinha ta é conhecida, mas não a relação planta-
de castanheiro na terra. Ela cresceu e depois semente; ou, pelo menos, não é estabelecida
caem castanhas e depois cresce um a raiz a ligação entre elas. Incapaz de constituir es­
e um tronco. Eu vi tudo isso no Parque sa série circular, a criança limita-se a justa­
de Saint-Cloud. - Como o lavrador tinha a por causas heteróclitas: no caso, uma simples
semente de castanheiro? - Tinha folhinhas origem local, os jardins. Ela sabe apenas unir
verdes e um a castanha bem pequena. O fragmentos de experiência. Émanifestamente
lavrador passou um rastelo, porque os pás­ inapta para refletir sobre o problema das ori­
saros pegavam sem entes - O que é que foi gens.
preciso para que o primeiro castanheiro
crescesse? - Fizeram ele com esterco- Você AUSÊNCIA DE
poderia fazer um castanheiro com esterco? - É SÉRIE INTEGRATIVA
no campo. São hom ens fortes que fa zem
isso.” Quando se trata de plantas, o modo
operatório e o artificialismo podem desem­
Tendo ela própria enterrado uma cas­ penhar seu papel. Se se trata do animal ou do
tanha para fazê-la germinar, essa criança homem, esse recurso faz falta. Conforme os
parece ter apreendido a relação da planta à animais, a origem varia com as experiências
semente. Ela até mesmo acrescenta-lhe o da criança. A origem mercantil é freqüente
conjunto das condições físicas favoráveis: para os animais domésticos e particularmen­
água e calor. Contudo, esse conhecimento, te para aqueles, como as galinhas, cuja compra
que parece muito completo, não a impede de a criança tem, com freqüência, oportunidade de
supor que os castanheiros possam nascer do assitir.
esterco, assim como, para a criança prece­
dente, o trigo nascia de uma terra especial e, T...oy 6; 1/2 “Na casa de sua tia, tinha
para Boerhave, os ratos surgiam de panos galinhas? - Não. -E na casa de seus vizinhos?
velhos. A essa explicação, ela sobrepõe, ain­ - Tinha. - Como eles tinham galinhas? - No
da, o artificialismo. Assim, o problema das galinheiro. -É o galinheiro que faz as galinhas?
origens faz-lhe percorrer diversos tipos de - Não. - Como os vizinhos têm galinhas? - Eles
causalidade. Ela os acrescenta ou substitui compram. -D e quem? - De outros vizinhos. -
entre si. Nenhum é, portanto, necessário. En­ E os outros vizinhos? - Na cidade. -Onde, na
458 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

cidade? - Na cidade. -E você comeu ovos na P...ot 6; “Diga-me como é que surgem
casa de sua tia? - Comi. - De onde vêm os os passarinhos? - Ah, bom, é a m ãe que tem
ovos? - Das galinhas. São as galinhas que ovos; e depois ela quebra os ovos e isso dá
fa ze m os ovos. - Tinha pintinhos em S...? - filhotes. - Como ela faz para ter ovos? - Foi ela
Tinha. - De onde eles vêm? - As pessoas que fe z os ovos. - Como é que a mãe nasceu?
compravam. - Onde a gente encontra pin­ - Os ovos eles são brancos. - Como nasceu a
tinhos? - As pessoas compravam. - Onde a mãe pássaro que tem os ovos? - Ela nasceu
gente encontra pintinhos? - Na cidade. -Mas com os outros. São os outros que fa zem os
de onde eles vêm antes? - Eles vêm do campo. filhotes. - E como os outros nasceram? - É
-Antes de nascer, onde ficam os pintinhos? - aquele que tem filhotes, são filhotes que vêm
No galinheiro. - Em que lugar do galinheiro? depois."
- No pátio.- Mas e quando eles são bem
pequenos? - No ninho deles. - Como eles Aqui, a criança só pensa em invocar o
apareceram no ninho? - Pela galinha.” ciclo natural ovo-pássaro-ovo. Quanto à di­
ficuldade do primeiro ovo ou do primeiro
Assim como, há pouco, entre a semente pássaro, a criança não a apreende bem, não
e a planta, a ligação permanece unilateral, ela parecendo nem mesmo ser capaz de consti­
existe realmente da galinha ao ovo, mas não tuir uma série retrógrada. Ela acredita poder
do ovo à galinha ou ao pintinho. A origem é diluí-la em uma pluralidade indeterminada:
mercantil, recua de vizinho em. vizinho, vai os outros. Obrigada a precisar a origem des­
do campo à cidade e da cidade ao campo. ses outros, ela os transforma nos filhotes
Contudo, a imagem do pintinho, ao adquirir daquela que tem filhotes. As individualida­
maior precisão, faz remontar, à medida que des sucessivas confundem-se nas imagens-
ele é menor, do galinheiro ao ninho e do tipos dos filhotes e daquela que tem filhotes.
ninho à galinha. Se essas respostas indicassem uma ordem de
sucessão, seria o termo inferior que passaria
para cima e assim por diante, como no jogo
A imagem da filiação parece permane­ da mão por baixo, mão por cima. Esse gênero
cer bem vaga, contudo, ela não é estranha à de alternância binária é muito freqüente nos
criança. Mas esta não sabe descobri-la por si hábitos da criança.
própria. Ela segue outras imagens mais fa­
miliares. Em qual delas seus desvios e retornos Falando de animais domésticos, a mes­
podem dar-lhe a ilusão de escapar de um ma criança retorna a origem mercantil. “Como
impasse de um primeiro termo? O fluxo de a gente pode arrumar cameirinhos? - Como
seu pensamento no sucessivo ocasiona, evi­ eles crescem? São as vacas que fa ze m eles
dentemente, muito mais do que no adulto, o crescerem. É a vaca que tem filhotes e depois
esquecimento dos termos anteriores e a cri­ são carneiros. - E o que é preciso fazer para
ança pode dar a si mesma a impressão de que ter vacas? - São mulheres que compram. -
ele se move sem chegar a um primeiro termo, Como as pessoas de quem a gente compra
que nunca é um verdadeiro começo. Contu­ vacas as arranjam? - São os vendedores que
do, ela tão pouco tem a necessidade, e nem a têm. - Como eles podem ter vacas? - São as
capacidade, de transformar a sucessão em vacas q u e crescem. - Como elas crescem? -
série, o acontecimento em razão, o fato em Sozinhas. - Elas crescem como as flores na
lei. terra?- Não, elas crescem sozinhas, então são
Se não se trata ii|ais de galinhas, mas de os vendedores que compram. - Para ter car­
pássaros não domésticos, é a origem natural neiros é preciso vacas? - É.-E para ter vacas?
que se apresenta ao espírito da criança. - Não sei.”
O PROBLEMA DAS ORIGENS 459

A alternância ocorre, aqui, entre a ori­ Você conhece os pintinhos? - Conheço, são
gem mercantil e a origem natural, mas com galinhaspequenas. - De onde eles vêm? - Nos
tendência a se rapartir em espécies diferentes. ovos. - Mas eles se tomam galinhas? - Д sim,
A origem natural é, na verdade, tão pouco senhor. - E de onde vêm os ovos? - Nas
razoável, aplicada aos carneiros, ela os faz galinhas. - O que veio primeiro, os ovos ou as
nascer de vacas; é uma espécie de início galinhas? - Ovos. - De onde vieram esses ovos?
absoluto. Quanto às vacas, são misturadas - Eles foram comprados e depois foram со-1
sua geração espontânea e sua proveniência locados na chocadeira - Mas onde o ven­
mercantil. O cido imaginado pela criança ê dedor pegou os ovos? - D asgalinhas. - Então,
um simples agrupamento de imagens empíri­ de onde vinham essas galinhas?...O que veio
ca, que ela não leva a nenhuma necessidade primeiro, os ovos ou as galinhas? - Ovos. - Mas
de causa ou de classe. foi preciso galiphas para pôr os ovos, de onde
elas vêm? - Não sei.”
H...gi 7; “Como você faria para ter gali­
nhas? - Eu iria comprar. - Onde? - Na loja. - A origem mercantil ou artificialista pre­
Onde é que o vendedor as arranja? - Num a valece visivelmente no espírito dessa criança.
m ulher que fabrica. - Como ela fabrica as É através da compra que ela começa, e é à
galinhas? - Não sei. - Você não disse que ela as chocadeira que retoma. Nesse meio tempo,
fabrica? - Ela vai comprá-las. - Onde?...Como ela evoca, sucessivamente, diferentes pássa­
ela pode ter galinhas? - Talvez ela arrum e nos ros do galinheiro, e suas gaiolas quando estão
ovos. Têm pintinhos nos ovos. Depois eles no mercado: preponderância das imagens
crescem. As galinhas põe ovos e ê assim que concretas sobre a seqüência estritamente ló­
têm pintinhos.” gica das representações. São necessárias per­
guntas precisas sobre os pintinhos e sua ori­
A origem mercantil e a fabricação são a gem para que ela rememore o ciclo natural.
primeira resposta da criança quando lhe vêm, Se dá prioridade aos ovos sobre as galinhas,
bruscamente, na memória, os ovos que con­ isso ocorre, talvez, porque eles possuem algo
têm pintinhos. A filiação é estabelecida, mas de mais manejável prestam-se a incubação
sob a influência de uma simples lembrança artificial. Em todo caso, as duas séries, artifi­
que traz, com ela, todo um fragmento de cialista e natural, coexistem em seu espírito,
experiêndas registradas. É assim que se mostra sem que sinta necessidade de subordinar
a incapacidade de evocação autônoma, a uma à outra.
incapacidade de integração entre o conteúdo Elas podem, alternadamente, servir-lhe
do saber e sua utilização rígida racional. de álibi, aliás, involuntário.

G...el 7; “De onde vêm as galinhas e os H...gí 7; “Os ovos vêm das galinhas? -
patos? - Dos galinheiros. - Sempre teve gali­ Vêm, sim, senhora. - E as galinhas vêm dos
nhas e patos nos galinheiros? - Não senhor. - ovos? - Vêm, sim, senhora. - O que vem
E então? - Elesforam comprados. - Sim? - Eles primeiro, a galinha ou os ovos? - A galinha,
foram comprados no campo. - Como é que senão não teria pintinhos. Eles compraram
têm galinhas e patos no campo? - Têm gansos um a galinha e depois teve pintinhos. - On­
no campo. - Como é que têm gansos no de o vendedor arrumou a galinha? - Ele tinha
campo? - Elesforam comprados no Mercado porque existiam galinhas.. A h, não!- De on­
Central. - Como é que têm galinhas, gansos e de vem a primeira galinha? - Ele a encontrou.
patos no Mercado Central? - Em gaiolas. - Por - Onde? - Pelos campos. - De onde ela pode ter
quê em gaiolas? - Porque eles são vendidos. - vindo? - Talvez ela tenha voado. - Como é.que
Mas onde as pessoas os acharam? - Não sei. - essa galinha apareceu? - Foi um a m ulher que
460 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

não a queria mais. - De onde veio essa galos botam ovos? - Botam, sim, senhora e
primeira galinha? - D a casa da m ulher que depois, às vezes, eles brigam. - O galo vem de
não queria m ais a galinha. - Mas e antes? - um ovo? - Vem, sim, senhora, antes ele era p e­
Ela tinha comprado a galinha e depois ela quenininho e depois fic o u grande. - O ovo
pôs ovos e tinha pintinhos dentro que de­ também vem de um galo? - Vem, sim, senho­
ram um m onte deles. - Como essa galinha ra. - E então, de onde vem o primeiro galo? -
apareceu? - Acho que fo i um homem que Do ovo. - O que veio primeiro, um galo ou um
trouxe. - De onde? - Da casa deles. - E onde a ovo? - Um galo. - Como é que apareceu o
primeira galinha estava, antes de estar na casa primeiro galo? - Deram ovos, e depois colo­
deles? - Acho que ele comprou a galinha de caram num a caixa. - Como é que apareceu
um outro vendedor.” o primeiro galo? - Não sei.”

A prioridade da galinha ou do ovo é um Aqui, a dificuldade é reconhecida, mas


problema, evidentemente, insolúvel, mas a não o seu princípio. Percebendo que está
criança nem mesmo o vê. Ela opta pela ga­ presa no circuito ovo-galinha, a criança eva-
linha porque, provavelmente, a imagem da de-se para o galo; mas acaba presa no circui­
galinha poedeira e chocadeira é-lhe familiar. to galo-ovo; então, ela vai para a chocadeira;
Quanto à primeira galinha, essa é uma noção contudo, esse artificialismo mitigado não lhe
que ela não chega a apreender. Ela não sabe resolve o problema, pois ela não sabe de
representar a espécie, integrar o individuo onde fazer vir os primeiros ovos. Tampouco
em uma série que deve ter tido um início. Ela apreende a série em seu conjunto e crê poder
se liga ao próprio indivíduo. “Primeiro” quer encontrar-lhe o início, não mais por uma
dizer, para ela, sem origem conhecida, gali­ regressão do mesmo ao mesmo, mas re­
nha perdida, expulsa, vinda de outro lugar e, correndo a termos exteriores.
finalmente, galinha comprada de vendedor
em vendedor. Assim, “primeiro” converte-se J...y 9; “Como a gente pode ter galinhas?
em regressão ilimitada, mas no plano do - Elas vêm de um ovo. - E de onde vem o ovo?
artificialismo, para onde a criança acaba re­ - Da galinha mãe. - E a galinha mãe? - Do
tornando. galo. - E o galo? - Não sei. - E as franguinhas
que vêm dos ovos, o que é que viram? - Viram
L...er 6; “Você já viu galinhas? - Jã. - um a galinha, às vezes viram um galo. - De
Como é que elas estão vivas? - Batendo as onde vem o galo? - D a galinha. - Como ele
asas (gesto com as duas mãos), e também os vem da galinha? - Com ovo. - Então, precisa de
galos e tam bém os gansos. - Como é que as uma galinha para que tenha um ovo? - É. - E
galinhas aparecem?-Põem ovos; ospintinhos um ovo para que tenha uma galinha? - É. - O
saem e depois elesficam grandes. - E de onde que veio primeiro, uma galinha ou um ovo? -
vêm os ovos? - Ospintinhos saem e depois eles Um ovo. - De onde ele veio? - Do vendedor. -
têm a m am ãe deles. - Mas de onde vêm os Como é que ele tinha o ovo? - De um a outra
ovos? - É um a galinha que bota. - Nem todas galinha. - Então, tinha uma outra galinha
as galinhas põem ovos? - Põem, sim senhora. antes do ovo? - Tinha...o vendedor também
- O que veio primeiro, uma galinha ou um pode vender pintinhos. - De onde veio a
ovo? - Um ovo, e depois tevepintinhos e depois galinha que pôs o primeiro ovo? - Não sei.”
eles saem. - De onde veio esse ovo? - Da
galinha. - O que tinha primeiro? - Uma ga­ Parecendo ultrapassar, logo no início, o
linha. - Como é qúe apareceu a primeira círculo onde a prenderia a sucessão galinha-
galinha? - Foi um galo que botou um ovo e a ovo-galinha, essa criança dá um galo como
prim eira galinha saiu e fic o u grande. - Os primeiro autor da mãe galinha. Contudo, assim
г

O PROBLEMA DAS ORIGENS 461

como a criança precedente, esta também deve mamãe. - Você já viu menininhos nos repo­
fazê-lo entrar na série ovo-galo ou galinha. A lhos? - Não. - O nde estão esses repolhos? - Nos
origem mercantil, através da qual ela tenta campos. Os meninos não podem ver as
escapar do problema leva-a sempre ao mes­ crianças nos repolhos. -Como é que você não
mo ciclo. Essas tentativas, cujo fracasso ela pode ver as crianças nos repolhos? - (Grande
parece prever muito mais rapidamente do suspiro.) ”
que as crianças mais nova, fazem-na reco­
nhecer explícitamente sua ignorância. Aqui, estão justapostas uma fábula tra­
dicional, que vale para generalidade dos ca­
R...ault 8; “O que veio primeiro, ovos ou sos, mas, se trata da própria criança, a exa­
galinhas? - Galinhas. - Por quê? - Porque as ta noção de sua gestação por sua mãe. Dis­
galinhas estavam vivas e os ovos não estavam sociação que mostra o quanto podem per­
vivos. - De onde vem a primeira galinha? - Dos manecer estranhas, uma em relação à outra,
ovos. - Para que tenha galinhas, precisa ter as fontes do conhecimento: o que é dito, o
ovos?...De onde vêm os ovos? - Da barriga que depende da experiência ou do sentimen­
das galinhas. - Então, precisa ter galinhas to pessoais. A tendência a compará-las, a
para ter ovos? - É. - O que veio primeiro? - integrar uma na outra ainda é muito fraca na
Galinhas. ..Precisa galinhas para ter p in ti­ criança.
nhos. Precisa ter galinhas para elas botarem
ovos. - Mas de onde vêm as galinhas que B...ette 6; 1/2 “Como a g a ite nasce? - Em
botam ovos? - Em um galinheiro. - E antes de um repolho. - E antes de estar num repolho?
estarem no galinheiro?...” - Num a árvore. - E antes? - Não sei. - E quem
fez os homens? - Ospapais. - Como você faria
Desde a primeira pergunta, essa criança para ter filhos? - Eu iria trabalhar.”
parece perceber o ciclo sem fim e justifica,
espontaneamente, a prioridade que dá às Aqui, a justaposição, ainda, do elemento
galinhas em relação aos ovos. Elas são a vida tradicional, o repolho, e do progenitor natu­
e os ovos parecem-lhe ser apenas um inter­ ral. Há duas diferenças, contudo: não se trata
mediário sem vida entre dois seres vivos. mais da própria criança, mas do gênero
Evidentemente, ela não chega, dessa forma, a humano, e o pai substitui a mãe. Pode-se
justificar o aparecimento da primeira galinha. comparar essa anterioridade com a do galo
É um início que não se explica. Sua resposta sobre a galinha, indicada, precedentemente
do galinheiro é muito mais uma simples por duas outras crianças? Da mesma forma, a
constatação do que a assimilação da origem a anterioridade da árvore sobre o repolho tem
uma certa espécie de lugar. algo de misterioso. Pode-se ver nisso uma
Quando se trata da espécie humana, a alusão aos órgãos da geração? A criança des­
resposta sobre suas origens são de um tipo, sa idade teria consigo como que um protó­
em aparência pelo menos, muito mais ru­ tipo intuitivo, que a tomaria capaz de com­
dimentar. Frequentemente, referem-se ao fol­ pletar as imagens ineficazes da geração re­
clore que o adulto opõe às perguntas da cebidas do adulto. Se essa interpretação aplica­
criança. se ao caso presente, a última resposta seria
um efeito da censura. Questionada, a criança
D...et 6; “O que existia primeiro, a terra substituiria o papel genital pela simples res­
ou os homens? - A terra existia antes que os ponsabilidade alimentar.
hom ens viessem. - De onde vieram os ho­ Nas crianças mais velhas, é o lado social
mens? - Vieram da terra também, num re­ da paternidade, o ponto de vista alimentar da
polho, num a rosa. - Você veio de onde? - Da vida que parecem prevalecer.
462 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

J...y 9; “Os adultos já foram bebês? - Já. - B...ert 6; “De onde vem a água do Sena?
Todo m undo já foi bebê? -Jiá.-E seu pai? - Já. - Da chuva. - E a água da chuva? - Não sei. -
- E sua mãe também? - Também. - E você? - Quando chove, de onde cai a água? - Ela vem
Também. - Você era bebê quando seu pai e do céu. - Como é que ela vem do céu?...”
sua mãe também eram? - Não. - Quando seu M...ez 6; “De onde vem a água do Sena?
pai e sua mãe eram bebês, tinha adultos? - - Do rio. - E a água do rio?- Não sei. - Você não
Tinha. - Os adultos também foram bebês? - sabe? - Do campo. - E a água do campo? - Do
Foram. - Como os bebês podem viver? Sozi­ mar. ”
nhos? - Não. - Por quê? - Eles são pequenos
dem aispara comer. - Todos os adultos foram A inércia mental com a qual se choca,
bebês? - Foram. - Quem é que dava de comer na criança, a idéia de origem é, aqui, bem
aos primeiros adultos quando eles eram marcada. É a simples passagem de um nível
bebês?- Não sei. - Existiram bebês sem adultos ao próximo nível, com inversão possível na
com eles? - Não. - Então, e bem no começo? - ordem de sua sucessão: do Sena à chuva, da
Não sei." chuva ao céu ou, então, do Sena ao rio, do rio
ao campo e, enfim, do campo ao mar. Mais do
A antinomia é, aqui, plenamente aceita e que uma verdadeira sucessão, trata-se, fre­
sua irresolução é total. As necessidades téc­ qüentemente, apenas de contigüidade entre
nicas da vida exigem, para as crianças, a esferas de imagens - Sena-rio, rio-campo -,
assistência dos pais. Portanto, não há crian­ talvez até mesmo de simples pares contrastes:
ças sem pais, mas também não há pais que mar-campo. Ainda é necessária, com freqüên­
não tenham sido crianças. Duas exigências cia, uma pergunta particular para mobilizar a
contraditórias entre as quais a conciliação associação^ como entre chuva e céu.
permanece impossível.
B...ot7; “De onde vem a água da bomba?
SÉRIES JUSTAPOSTAS E REVERSÍVEIS - Do Sena. - O que é o Sena? - É água. - E de
onde vem a água do Sena? - Do mar. - E a água
Comparativamente à geração, um ciclo do mar? - Dos rios. - E a água dos rios? - Da
totalmente diferente, o da água, mostra a fonte. - E a água da fonte? - Da terra. - E a água
mesma justaposição de efeitos naturais e de da terra?...”
procedimentos artificialistas, que a criança
alterna como amostras fornecidas por sua Aqui, ainda, há inversão de provenien­
experiência. Nos casos mais simples, ela se cia entre a água dos rios e a do mar. Os outros
limita a dar uma ou outra origem. termos encadeiam-se corretamente. O circui­
to está se organizando. Contudo, permane­
A...haud 6; “O que é o Sena? - Tem água ce aberto, a água da terra continua sem ori­
dentro. - De onde vem essa água? - Do céu.” gem, é um primeiro termo que não é ultra­
0...al 7; “De onde vem a neve? - Do céu. passado.
- O que é a neve? - Algum a coisa branca. - E
de onde vem o gêlo? -D o céu. - Como ele vem D...et 6; “De onde vem a água das
do céu?...” torneiras? - Ela vem da senhoria. - E a água da
senhoria? - Ela vem das outras senhorias. - E
O céu é uma fonte muito geral, cujo a água das outras senhorias? - Ela vem do
nome pode ser evocado, quase automatica­ mar. - Como? - É o Sena. - O que o Sena faz?
mente, pela interrogarão “de onde”. Ao mes­ -É a água do Sena. - De onde vem a água do
mo tempo, aliás, que origem local, étambém, Sena? - Vem do céu. - Mas, então, e a água do
eventualmente, origem mítica. céu? - Das nuvens. - E a água das nuvens?...”
O P R O B L E M A D A S O R IG E N S 463

A resposta é, aqui, heterogênea. Inicial­ Esta resposta parece muito mais próxi­
mente, é artificialista: as senhorias que cor­ ma da assimilação sincrética do que do cir­
tam a água ou a dão e a vã regressão de uma cuito.
senhoria para outras. Depois, ela é natura­ Por não saber apreender o vínculo ope­
lista, com uma primeira confusão entre o mar ratório na natureza, é freqüentemente no
e o Sena. Contudo, encontrada a proveniên- artificialismo que a criança nova procura a
cia certa, os termos encadeiam-se correta­ primeira origem das águas correntes.
mente. Já não são mais puramente locais, já
possuem um caráter substancialista. Parece F...gli5;l/2 “De onde vem a água do mar?
que as nuvens poderiam orientar a criança - Não sei. - E a água do Sena?-Ê a chuva que
para as mudanças de estado que explicam o fa z a água do Sena.-E d e onde vem a chuva?
circuito da água. Esse é, contudo, um nível de - Dos tonéis. - Onde estão os tonéis? - No céu.
pensamento que lhe permanecerá ainda por - Como a água dos tonéis faz a chuva? - Com
muito tempo inacessível. As imagens, os co­ a torneira. - E de onde vem a água dos tonéis?
nhecimentos podem multiplicar-se; perma­ - Não sei. ”
necem justapostos, enquanto não intervir o
esquema operatório, que é um grau novo de Instrumentos familiares, sobrepostos a
integração. efeitos sem proporção com eles. Por vezes, o
artificialismo nem mesmo passa pelo céu.
M...on G.7; “De onde vem a chuva? - De
um lago onde f a z muito calor. - Então o que S...et 6; “De onde vem a água do Sena? -
acontece? - É o vapor que sobe e depois caí de Papai m e mostrou ontem no Sena, tem que
novo.-E de onde vem a água do lago? - De um nem um tonel grande, grande como um a
riacho. - E a água do riacho? - Cai um pouco casa epapai m e mostrou que é lá que bom­
de água. - O que veio primeiro, a água da beiam a água.”
chuva ou a do lago? - A chuva. - De onde vem
essa chuva? - Do céu. - E a água do céu? - Não Fabulação ou lembrança incompreen­
sei. ” didos, a criança atém-se a imagens puramen­
te concretas.
Até sua última resposta, a criança parece
ter compreendido o ciclo da água, contudo, é H...art 5;11 “De onde vem a água do
incapaz de fechá-lo. Ela foi instruída sobre a Sena? - De um rio. - E água do rio? - D e outros
evaporação, mas isola-a em um lago, e, em­ rios. - E o s outros rios? - É a água do Sena. É
bora diga, sobre a chuva, que é ela que ali­ a água suja que vem das torneiras. - O que
menta o riacho que alimenta o lago, não sabe são essas torneiras? - É o que fa z a água
concluir de onde vem a água da chuva ou do andar. - Como assim? - É fe ita com ferro. -
céu. Apenas justapõe as noções recebidas e Onde têm torneiras? - Têm nas casas. - Na sua
as imagens, sem transformá-las em uma con­ casa? - Torneiras de lavanderia. ”
tinuidade operatória e substancial.
As primeiras alternâncias que a criança No início, há proveniência recíproca da
sabe dar são menos ciclos ou evoluções peri­ água entre o Sena e os rios. A criança só se
ódicas do que inversões, como se observa afasta dela fazendo a água sair das tinas da
nos pares. lavanderia onde trabalham seus pais.

P...ot? “De onde vem a água do Sena? - A. A...dre 6; disse que água dos rios é
D afonte. - E a água da fonte?- Não sei. - Pense alimentada por uma bomba. “Onde ela pega
bem. - Do Sena. - E água do Sena? - Da fonte. " a água? - Nos esgotos. - E nos esgotos, de onde
464 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

elavem?-£Za vem pelos troços epelosjatos de tendências do artificialismo são exatamente


água. - E a água dos jatos de água? - Não sei contrárias. Ele mergulha nas práticas ou ativi­
de onde ela vem ...Ele jogava alto, até o bico dades que são familiares para a criança, es­
de gás e o bico d eg á s não estava seco. " tando bem longe de saber imaginar formas
anteriores de causalidade. Assim, ele reduz, a
Aqui, ainda, imagens familiares. A do procedimentos usuais, fatos que estão fora
dispositivo instrumental - os canos de irriga­ do alcance humano.
ção - parece até mesmo, no final, escamotear Conforme o nível, as causas podem ser
o objeto a ser explicado, o curso do rio. quer um simples decalque providencialista
da atividade corrente, quer um instrumen-
P...ez 7 ;l/2 “O que é o Sena? - Ele é sujo. talismo mais ou menos engenhoso. É o que
- Por quê? - Porque, às vezes, jogam água suja ocorre com o vento.
nele. - Se não jogassem água suja, teria água
no Sena? - Não. - O Sena sempre existiu? - D...et 6; “De onde vem o vento? - Vem do
Sempre. - Q uando não existiam casas e cida­ céu. - O que é o céu? - É lã que tem o Papai
des como Paris, o Sena existia? - Não. - Como Noel, Deus, todos os que morreram. - Mas
é que o Sena apareceu? - Foram os hom ens como pode fazer vento? - Ê alguém lá em
grandes. - O que eles fizeram? - Eles cavaram cim a que fa z vento. - Quem? - Deus. Elefa z
a terra. - Você os viu? - Não. - Por quê? - Eu assim com a m ão (agita a mão da direita
ainda não tinha nascido. - E seu pai os viu? para a esquerda eda esquerdapara a direita).
- Não sei. - Por que você disse os homens - Você pode fazer vento? - Não vou m uito
grandes? Eles eram maiores do que nós? - Não rápido. "
sei. - Então, por que você disse os homens
grandes? - Porque eles cavavam . - E onde eles Após ter confundido o céu meteorológi­
estão agora? - Eles estão na casa deles. - Onde co e o céu mítico, a criança explica o vento
fica a casa deles? - Não sei. - Eles ainda estão através de um simples movimento da mão,
vivos? - Não. - Então eles estão mortos? - mas em uma escala que ultrapassa, de longe,
Estão. - Por que você disse que eles estão na as possibilidades humanas.
casa deles? - Porque eles estão descansando.
- Eles estão na casa deles ou estão mortos? - D...in “Como o vento pode andar de­
Eles estão mortos. - Então eles não estão mais pressa? - A fum aça. - O vento e a fumaça são
na casa deles? - Não. ” a mesma coisa? - Não. - Quem vai mais rápi­
do? - O vento. - Quem faz a fumaça andar? - O
Aqui, o artificialismo invade tudo. Ao fogo. - Mas quando ela sai da chaminé, quem
mesmo tempo, é evidente a incerteza crono­ a faz andar? - Ofogo. - Então é sempre o fogo?
lógica. As séries são independentes entre si. - Um fósforo. - O que é o fogo? - A gente
O Sena sem pre existiu, ma só depois de Paris acende. - De onde vem o fogo? -Dosfósforos.
e foi cavado pela mão dos homens. Esses - E os fósforos? - Do bar. - Mas como é que o
homens de um a outra era desapareceram, bar tem fósforos? - Na loja. - E o vendedor? -
mas ora repousam em suas casas, ora na Elefa z osfósforos. - Como? - Com gasolina. -
morte. Quaisquer que sejam as causas desse De onde vem a gasolina? - Da loja...O ven­
pensamento dissociado, é evidente que ele dedor fa z . - Como? - Com óleo. ”
tom a o problema das origens prematuro.
Pois seria preciso duplicar a integração cro- Aqui, é grande a confusão entre as séries.
nólogica, que já é impossível, através de uma No início, há uma comparação imediatamen­
integração causai, que faria as aparências te anulada e não explicada entre o vento e a
presentes serem ultrapassadas. Contudo, as fumaça, depois, há uma dupla regressão, que
O P R O B L E M A D A S O R IG E N S 465

faz as origens remontarem de vendedores em - Por que a gente não pode fazê-lo sair inteiro?
fabricantes e de uma substância a outra. O papel não é muito grande. -A s duas páginas
O confusionismo pode dar lugar à frag­ estão cheias. - E se a gente rasgasse o papel,
mentação. a gente poderia fazê-lo sair? - Não, senhor,
precisaria abri-lo assim em dois (pela borda).
C...ni 6 ;l/2 “De onde vem o vento? - Do - E se eu o abrisse assim com um canivete bem
céu. - E o que mais tem no céu?- Deus. - O que fino, eu o faria sair?-Parta. - Se ele saísse todo
é que faz o vento? - O céu. - E isto, é vento? ao mesmo tempo, ele seria muito forte? - A
(agitamos um papel diante de seu rosto). - gente teria frio. - E se eu cortasse a folha assim
(Rindo) Ê. - De onde vem esse vento? - (transversalmente em duas)? - Não. - E assim
Porque o senhor mexeu. - Onde estava esse (em quatro)? - A inda teria vento. Não, preci­
vento? - Ele não estava. - Então, de onde ele saria cortar assim (pela espessura). - E lá
vem? -É dopapel. - O vento é de papel? - Não. dentro tem vento? (em um pedaço de papel
- (Sopramos) De onde vem esse vento? - Eu minúsculo). - Não, senhor, é um pedacinho
sopro... - Quem faz o vento que vem de fora? pequeno demais. - E se eu cortasse este papel
- Ele se f a z sozinho. - Como?...” aqui em pedacinhos bem pequenos? - Não,
senhor, porque se a gente f a z assim (agita um
Descontinuidade radical dos fatos entre pedacinho de papel), não fa z vento. - Ainda
si, nenhuma busca de origem. Papel agitado, tem vento neste pedaço aqui? - Tem. - E se eu
sopro saído da garganta, vento que se produz continuar a cortar, para onde o vento vai? - Ele
sozinho, três termos simplesmente justa­ vai embora. - Você sente ele ir embora?...
postos, entre os quais a criança não procura Preste atenção, eu estou cortando o papel...
estabelecer nenhuma relação. Ela se atém ao Você sente o vento? - Não, senhor, ele está a í
mais puro fenomenismo. Como poderia surgir dentro. - Sim, mas e se eu cortar todo o papel?
a questão de origem? - Eu vou sentir o vento ir embora quando o
senhor tiver cortado todo o papel. - Você
N...et 6 ;l/2 “Você poderia fazer vento? - sente agora? - Sinto. - Não? - Sinto, sim . Ele
Não. - E eu? - Não. - Você quer que eu faça está nos pedacinhos de papel... Eles estão
vento? (sopramos, ela ri). É vento? - É. - Como frios, m inhas mãos, eu sinto. ”
o vento do céu? - Д sim, senhor. - Eu posso
fazer vento de outra maneira? -Não. - E você? Aqui, ainda, há descontinuidade, isola­
- Não. - Você quer que eu lhe mostre como se mento de cada teimo em si mesmo. A inclu­
faz? (agitamos uma folha de papel). É vento* são, no papel, do vento produzido por sua
- Д sim, senhor. - Como é que se faz esse agitação é exatamente o símbolo dos siste­
vento? - A gente poderia fa ze r de uma outra mas fechados nos quais se fragmenta a ima­
m aneira fazen do assim (ela sopra). - Tem gem das coisas que cada uma das impressões
vento aqui entre nós? - Não. - (Agitamos uma ou representações da criança lhe dão. Cada
folha de papel) E agora? - Tem. - De onde vem uma deve conter sua própria explicação. O
esse vento? - Vem de dentro da folha. - próprio vento que está no papel não pode ter
Mostre-me onde ele fica. - Elefica Шdentro nada em comum com os de outra proveniên-
(mostrando a borda do papel). - A gente cia. Há uma dupla incapacidade: de inserir a
pode fazê-lo sair? - Não, senhor. - Como você experiência particular em uma série causal e
sabe que ele está aí dentro? - Porque a gente de descobrir, entre várias, o que pode haver
f a z assim? (gesto de abanar). - Quando a de comum.
gente faz assim ele sai? - Sai, sim, senhor, têm Para cada objeto, para cada situação, sua
uns que saem. - A gente pode fazê-lo sair razão de ser está, portanto, neles mesmos. É
inteiro? - Não, senhor. - Muito? - Sim, senhor. exatamente o inverso do que a noção de
466 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

origem, que é uma integração em vários graus, onde ela se manifesta. É um problema cujas
implica: integração a um mecanismo causai, exigências, ainda hoje, são muito mal con­
integração cronológica, resolução das causas cebidas pelo adulto. Os paralogismos da cri­
presentes em outras, que devem ter precedi­ ança mostram as dificuldades disso de forma
do a forma atual delas e a existência dos seres ampliada.
Capítulo И

CRESCIMENTO, VIDA E MORTE

Como a criança representa a vida, o cres­ se trata da vida e da morte, freqüentemente é


cimento, a morte, tanto para os outros quanto ainda fora de si que as imagina. Segundo,
em relação a si mesma? O problema das provavelmente, a cena que lhe é mais familiar
origens mostrou como é difícil, para ela, ima­ ou que mais a surpreendeu, ela falará de
ginar a duração, independemente dos seres galinhas e de aves de criação ou das cerimô­
particulares, como uma única e mesma cro­ nias e das conseqüências ligadas à morte dos
nologia, onde viriam inserir-se, na ordem de homens. Atém-se, assim, a acontecimentos
sua existência, os destinos individuais. Mos­ externos, em vez de se tom ar o protótipo
trou também a contradição que ela sente para deles para projetá-los, em seguida, em ou­
representar as relações entre essa duração trem.
total com a sua, de sujeito que sente e conhece.
Em um campo mais limitado - o do destino R...er 7; “Existe outra coisa, além das
individual -, como ela vai ser capaz de imaginá- árvores e das flores, que cresça? - Não. -
la para si e para os outros? Quais são os outros Coloque a mão nos cabelos, existe? - Cabelos.
aos quais ela estende a imagem das mudanças? - Os cabelos crescem? - Crescem. - Por quê? -
Sob que forma imagina as mudanças? Porque têm outros cabelos na nossa cabeça.
- Os cabelos crescem? - Crescem. - Como eles
CRESCIMENTO E crescem? - Porque têm m uitos cabelos. -
CONTRASTES ESTÁTICOS Quando não se tem muitos cabelos, eles não
crescem? - Crescem. - Por quê? - Têm cabe-
Quando se trata do crescimento, é muito linhos que crescem e depois têm grandes. - Se
mais no desenvolvimento das plantas que ela a gente cortar os cabelos quando eles ficarem
pensa. Subjetivamente, ela parece ver-se como grandes, o que acontece? - Elesficam grandes
um termo constante, como a norma entre os de novo. - São sempre os mesmos cabelos que
pequenos e os grandes. Levando ao limite ficam grandes de novo? - São. - Como os
essas diferenças com relação a si mesma, essa cabelos podem crescer? - Porque têm ca-
é, provavelmente, a razão de sua preferência belinhos que crescem. - Os cabelinhos que
pelas narrativas de anões e de gigantes. É em crescem são os mesmos que os grandes? -
relação a si mesma que ela distribui os seres, São. - Como é que os pequenos ficam grandes?
segundo a estrutura simples do contraste. Se - Porque têm cabelinhos."
468 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

A dificuldade para imaginar o cresci­ sementes ou caules? - As sem en tes e d ep o is a


m ento, ou seja, um mesm o ser ou um a mes­ uva..."
m a substância m udando de estado, é , aqui,
visível. Ela dá lugar, inidalmente, à pluralida­ Embora, no final, esta criança apreenda,
de: “outros” ou “muitos cabelos". Depois, a em sua totalidade, o ciclo que vai da semente
expressão é ambígua, parecendo indicar a à semente, ela parece ter dele uma imagem
simples sucessão: “têm cabelinhos que cres­ mais organicista e estática do que evolutiva.
cem e depois têm grandes”. Reconhecida a Ela une, termo a termo, a semente aq caule, o
identidade d o cabelo sob seus dois estados, o caule à raiz, mas, no início, a raiz vem da terra
crescimento está m uito mais em um contraste e depois, uma vez feita sua ligação com a
do que em um a progressão. semente, é esta que vem da terra. A criança
A imagem do crescimento permanece parece proceder gradualmente, por simples
descontínua até m esm o quando a criança contigüidade espacial. Sente alguma difi­
conhece-lhe as etapas ou os órgãos. culdade para passar pelos diversos níveis e
para conceber que o caule também sai da
R...ault 8; “O que é preciso para fazer as semente. Ela faz de maneira muito confusa a
flores crescerem? - Sementes e depois água. - ligação entre a semente que surge no caule e
O que são sementes? - São sem entinhas em a que germina na terra. Parece muito mais
círculo. É trigo.. trigo ougrão. - De onde vêm adicionar a semente com a terra e a água para
as sementes? - Do caule. - De onde vem o produzir a raiz do que nisso ver a origem da
caule? - Da terra, é a raiz que fa z ele crescer. planta. Mais do que isso, ela não faz a raiz sair
- O que é preciso para que a raiz cresça? - da semente, mas multiplica, em volta da raiz,
Água, terra. - Não precisa sementes? - Ah, as sementes que aquela deve absorver para
sirni - A semente vem do caule ou o caule da crescer. Aqui, ainda, o crescimento é reduzido
semente? - Д а sem ente vem do caule. - Mas à pluralidade. Provavelmente, essa é uma
o caule não vem da semente? - Não, ele vem pluralidade que se baseia na substância do
da raiz; a raiz vem da terra-, o caule vem da órgão em crescimento e não, como no exem­
raiz; a sem ente vem do caule. - Quando a plo anterior, uma pluralidade simplesmente
gente coloca sementes na terra, o que substitutiva ou cumulativa. Contudo, a criança
acontece? - As sementesficam grandes; saem continua a proceder por adição ou justapo­
patinhas; são raízes; e depois vem o caule; e sição.
depois fic a cheio de sem entinhas. - Então a A analogia entre o crescimento das plan­
raiz vem da semente? - Vem, e depois a sem en­ tas e o seu por muito tempo permanecer-lhe-
te vem da terra. A gente colocou prim eiro á oculta.
terra, e depois colocou um a semente, e de­
pois saiu um a raiz, e depois o caule saiu da N...aire 7; 1/2 “As árvores são sempre a
terra. - Quando não tinha sementes, podia ter mesma coisa? - A gente corta quando elas têm
raízes? - Não, e depois precisa de água para galhos grandes. - Como é que elas têm galhos
ela crescer e tam bém precisa sem pre de grandes? - Porque crescem. - Como é que eles
sementespara comer. - Quem precisa sempre crescem? - Com a terra e as raízes. - É isso que
de sementes para comer? - A outra semente e faz os galhos crescerem? - Porque isso cresce?
a raiz, porque agente não vê m ais a semente, - Como isso pode crescer? - Não sei. - Você
a raiz fic a toda em volta. - Quando ainda não cresce? - Não...Eu preciso com er para depois
tinha caules, podia ter sementes? - Não, as fic a r grande. - Você não cresce, mas fica
sem entes crescem do mesmo tempo que o grande? - É. - Crescer e ficar grande não são a
caule. - E quando ainda não tinha sementes, mesma coisa? - N ão...équase igual. - Por quê
podia ter caules? - Não. - O que veio primeiro, não é igualzinho? - Não sei. "
C R E S C IM E N T O , V ID A E M O R T E 469

É “corn* a terra e as raízes que as plantas por isso mesmo, muito particulares, dissol­
crescem: termo vago cuja significação pode vendo, dessa forma, a unidade do tema. A
ser de companhia ou de instrumento. Elàs maneira mais elementar de definir a vida é
crescem porque crescem: simples tautología. citar aquilo que vive limitando-se a dizer que
Quanto ao seu próprio crescimento, a criança está vivo porque vive.
subordina-o ao fato de comer: associação
consagrada por ditados muito difundidos. P...ot 6; “Diga-me o que está vivo.” - As
pessoas, os passarinhos, só; os gatos, os
A. A...dre 6; “Como os dentes podem cachorros, só. - Por que estão vivos? - Porque
crescer? - Para fic a r grande, quando a gente são bichos. - Por que os bichos estão vivos? -
come bem, m am ãe que disse. - Como comer Porque estão vivos?..Porque são bichos. -
pode fazer crescer? - Pela pele. - Como pode Como você sabe que estão vivos? - Porque
fazer crescer pela pele? - Se a gente come são bichos e pessoas. - Como você sabe que
carne. - Por que a carne faz crescer? - Porque estão vivos quando você os vê? - Porque são
a gente come m uito.” pessoas e bichos?

Ainda uma vez, há a aplicação do ditado: Pura nomenclatura de seres vivos, sem
comer para crescer. O crescimento está liga­ qualquer indicação relativa à própria vida. A
do à idéia de quantidade. Imagens de órgãos enumeração assume, aqui, o aspecto de uma
são a isso acrescentadas: os dentes fazem classificação, mas como os gêneros indica­
crescer, provavelmente, porque servem para dos - pessoas e bichos - não são justificados
comer; crescemos pela pele porque, pro­ por nenhum traço característico, eles se rela­
vavelmente, o alimento a distende; é a came cionam mais à tautología do que à definição.
que faz crescer, provavelmente porque é car­ Essa identificação é, contudo, de um nível já
ne que se acrescenta à came. muito superior às respostas extremamente
extensivas e difusas dadas por crianças mais
F...mi 6; “Como você sabe que o elefante novas.
cresce?- Um camelo, um a cegonha, a macaca,
o macaco. - Como você sabe que o macaco C...ier 5; “O Sena está vivo? - Ah, não o
cresce? - Ele come nozes o tempo todo, ele é tempo todo. - Quando ele está vivo? - Q uando
guloso. - Como você sabe que um elefante o h o m em abre a torneira. - Diga-me outras
cresce? - Ele fic a grande. - Mas como você coisas que estão vivas. - Porque o h om em
sabe? - Ele precisa comer.” abre a torneira e quando cai neve, ele pára.
Q uando cai neve, fic a seco e depois ele abre
Sempre simples assimilação do cres­ de novo. - É só o Sena que está vivo? - A
cimento à abundância alimentar. torneira. - Como ela está viva? - Porque tem
um buraco e depois isso corre pela torneira.
CRITÉRIOS VARIÁVEIS - Diga-me outras coisas que estão vivas. - Os
DA VIDA CONFORME O OBJETO peixes, eles vivem na água. - Você está vivo?
- Estou. - Como você está vivo? - Porque você
A noção da vida é confusa. É um limite come. - As árvores estão vivas? - Estão, porque
entre os seres que se desloca conforme as co lo ca ra m sem en tes boas; sen ão, ela s n ã o
crianças e, por vezes, para a mesma criança cresceriam. - As flores estão vivas? - Estão,
ao longo da mesma entrevista. Então, ha­ mas também precisa colocar sementes. - As
bitualmente, a conseqüência desse fato muito sementes estão vivas? - Q uando já cresceram,
freqüente é que suas enumerações encadeiam a gente põe água, rega com o regador. - Seus
os termos sucessivos por razões globais e, olhos estão vivos? - Estão. - Como eles estão
470 A S O R IG E N S D O P E N S A M E N T O N A C R IA N Ç A

vivos? - Porque comem. - Sem olhos comem? - Não sei.- Você está vivo? - £síow.-Eeu?- Está.
- Não. - Mas eles estão vivos? - Estão. - E a sua - Porque você disse que eu estou vivo? - Não
boca? - Está. - Por quê? - Porque come. - O sol sei.- E você, por que você está vivo? - Não sei.
está vivo? - Não o tempo todo, ãs vezes elefica - Uma mesa está viva? - Não. - Por quê? -
bastante tempo. - Quando é que ele está vivo? Porque é de madeira. - E as suas pernas? - Não
- Se chove, ele não fic a vivo, ele vai embora. sei. - Você não sabe do que elas são? - São de
- Para onde ele vai? - Às vezes, de tarde, ele vai carne. - A carne está viva? - Não. - Se você está
para longe. - Para onde ele vai? - Longe, longe. vivo e é de carne, como é que a carne não está
- Mas onde? - Nas outras ruas. - A lua está viva? viva? - Não sei. - A vaca está viva? - Está. - Por
- A h! Não, às vezes, ela vai embora. - Mas que ela está viva? - Porque é de carne. - A carne
quando ela não vai embora ela está viva? - está viva? - Não sei. -Você me disse que a vaca
Está. - Para onde ela vai embora? - Longe. - está viva porque é de carne. A carne está viva?
Onde? - Se tem sol, ela vai embora para - Está. - Tudo o q u e é d e carne está vivo? - Está.
longe... a noite, ela vai embora.” - Um pernil é de carne? - É. - Então está vivo?
- Está. - O pernil está vivo? - Está. - O que está
Estas respostas são de uma fase infantil, morto está vivo? - Não."
reconhecível facilmente por diferentes tra­
ços: persistência e digressão misturadas, o Os numerosos “não sei” dessas respostas
Sena, a torneira, a neve; não-substituição de não são uma simples expressão de indife­
“você” por “eu” quando a criança responde a rença ou de ignorância. Seu sentido é tão
perguntas referentes à sua pessoa e confusão definido quanto o dos “não” e “sim” que os
no emprego dos pronomes; variabilidade dos acompanham. Não está vivo tudo o que não é
motivos com os objetos. Contudo, não lhes animal: as próprias plantas não estão vivas.
falta sentido. A criança sabe, todas as vezes, Mas as partes do animal, seus órgãos isolada­
com nitidez, o que diz: o homem está vivo mente designados, pertencem a uma zona
porque come e as partes de seu corpo par­ intermediária, e a criança não sabe dizer se
ticipam de sua vida; as plantas estão vivas estão ou não vivos. A única justificação que
porque saem das sementes; a água está viva ela chegou a dar - o argumento da substância,
porque é corrente; a torneira de onde ela sai, madeira para as árvores, carne para os ani­
assim como os peixes, participam de sua mais, levou-a a se contradizer. Após ter colo­
vida; o so le a lua estão vivos quando brilham, cado em dúvida a vida em suas próprias
ou seja, sua vida é intermitente. Se fosse pernas, ela acaba atribuindo-a ao pernil, parte
preciso reduzir todas essas noções da vida a morta de um animal.
uma noção comum, esta seria, evidentemente, As razões fornecidas por essas duas cri­
muito vaga. Mas a criança limita-se a passar anças, a substância e o ato de comer, são das
de uma para outra. Em outras crianças, o que são dadas mais sistematicamente, ora
círculo das coisas vivas é, pelo contrário, uma, ora outra, conforme as crianças.
muito restrito, por razões que elas percebem
evidentemente, mas que não sabem reco­ H...é 6; “As vacas estão vivas? - Estão. -
nhecer. Por quê? - Porque são de carne. - E eu estou
vivo? - Está. - E você? - Também, porque a
I...as 6;l/2 “Diga-me o que está vivo. - Os gente é de carne. - Só o que é de carne está
homens, os bichos, ospassáros. - E o que mais? vivo? - Bois. - Existem outras coisas vivas? -
- Não sei. - As flores estão vivas? - Não. - As Existem, bezerros. - E o que mais? - Homens. -
árvores estão vivas? - Não. - E as folhas das Existe outra coisa de carne que esteja viva? -
árvores? - Não. - E os seus cabelos? - Não sei. Lobos. - Mas os lobos são de carne? - São. - O
- E os seus olhos? - Não sei. - E as suas pernas? que mais você viu? - Burros. - Os burros estão
CRESCIMENTO, VIDA E MORTE 471

vivso? - Estão. - Você já viu árvores, flores? -Já. Ainda da mesma criança “O que está
- Elas estão vivas? - Não. - Por quê? - Porque são vivo? - Peixes, pássaros...peixes,pássaros que
de Jlores. - Por que o que é carne está vivo? - estão vivos. - As plantas estão vivas? - Ah, não!
Porque fo i Deus que fe z. - Deus está vivo? - - Por quê? - Elas não se mexem, não fa zem
Está. - Do que ele é? - De carne. - Por que, nada. - As plantas crescem? - Crescem. - E não
quando a gente é de carne, a gente está vivo? estão vivas? - Não. Para fazê-las crescer, pre­
- Porque a gente comeu.” cisa de á g u a ”

Aqui, as duas razões, substância e comer, É o movimento que é dado, com mais
são dadas uma como apoio da outra. freqüência, como critério da vida.

T...ni 7;9 “O sol está vivo? - Ah, não! É V...el “O sol está vivo? - Não. - E você? -
um a lu z que está no céu. - O Sena está vivo? Estou. - Como? - Bem, éporque épara andar.”
- Ah, não! É água, é gelo que derrete. - O que
é o gelo? - Parece vidro e depois derrete Avida, negada aqui ao sol porque ele não
logo, logo.” anda, pode ser-lhe atribuída, por outras cri­
anças, devido a seu movimento: desacordo
O motivo essencial ainda é, aqui, a subs­ sobre o fato, mas acordo sobre o motivo.
tância, embora a ele se acrescentem razões de
lugar (a luz no céu) e de mutação física (a água L...anc? “As árvores estão vivas? - Não. -
que vem do gelo). Diga-me coisas que estão vivas? - O sol, os
carros, os cavalos, também os cachorros. -
Da mesma criança “Seus cabelos estão Como você sabe que os carros estão vivos? -
vivos? - Não. - E os seus olhos? - Estão. - Por Eles andam . - Você está vivo? - Estou. -Como
que os seus olhos estão vivos e não os seus você sabe que você está vivo? - Não sei. - E eu
cabelos? - Porque a gente está vivo. - E os seus estou vivo? - Está. - Como você sabe que eu
cabelos? - Porque são de pêlos, que crescem, estou vivo? - Eu vejo você andar.”
que são finos, finos. -E os seus dentes? - São H...gi 7; “As galinhas estão vivas? - Estão.
de osso, não estão vivos, crescem. - Você não - Como é que estão vivas? - Elas têm duas
me disse agora há pouco que o que é de carne patas e andam .”
e de osso está vivo? - O que ê de carne e osso, D...et7; “Diga-me coisas que estão vivas.
m as o osso não está vivo. - Como é que o que - Não sei. - Você está vivo? - Estou. - E eu? -
é de carne e osso está vivo e não o osso? - Também. - O que vivo quer dizer?... As plan­
Porque é de madeira que virou osso, depois é tas estão vivas? - Estão... não. Não, elas não
sempre de madeira. - O que é de madeira não estão vivas. - Por que as plantas não estão
está vivo? - Ah, não! Não está vivo.” vivas? - Porque elas não andam . - Por que nós
estamos vivos? - Porque a gente anda. - E o
A substância intervém, aqui, para excluir que mais? - Porque a gente se m exe.-E o que
certos órgãos de sua participação na vida do mais? - Porque a gente tem um a cabeça e as
conjunto. Assimilado à madeira como se fosse flores não têm.”
sua origem, provavelmente devido à dureza
semelhante dessas substâncias, o osso não Mesmo reduzida ao movimento, a ima­
está vivo. Assim como os pêlos, que não estão gem da vida é, para a criança, muito mais
vivos, é uma substância que “cresce”. O que extrema do que íntima. Não é o sentimento
cresce parece ser oposto à vida, assim como a subjetivo da ação que lhe faz afirmar a vida e
planta ao animal, ou seja, ao que possui depois atribuí-la, por transferência, ao que
movimento. não é ela própria. É a simples visão dos seres
472 AS ORIGINS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

e mesmo das coisas que se deslocam. O - Ospadres. - E o que mais? - Os ótjãos. - E o


movimento pode transformar-se em uma ca­ que mais morre?... Eu vou morrer? - Vai. - E
pacidade qualquer. você? - Também. - E seu pai? - Também. - O
que você vai virar quando morrer? - Não sei. -
P...со 9; “Suas orelhas estão vivas? - Estão. A gente fica bem quando está morto? - Não. -
- Por quê?- Porque elas comem. - O que é que A gente fica mal? - Fica.”
elas comem?... Você acha que elas comem? -
Não. - Então, por que elas estão vivas?... O que É apenas após a enumeração coletiva de
está mais vivo, suas orelhas ou suas pernas? - todas as categorias de pessoas que ela sabe
As pernas. Porque elas servem para теfa z e r denominar que a criança admite a sua própria
andar. - E as suas orelhas? - Para escutar. - E morte e a dos seus. Contudo, sua convicção
os seus olhos estão vivos? - Estão. - Mais vivos ainda não é bem firme, pois ela responde um
que as suas pernas ou igual? - Mais que as pouco mais tarde:
pernas. - Por quê? - Porque servem para ver. -
E as orelhas? - Para escutar. - Elas são mais ou ‘Todo mundo morre? - Não. - Têm pes­
menos vivas que os olhos? - A mesma coisa. - soas que não morrem? - Não. - Então, todo
Os olhos e as orelhas estão vivos da mesma mundo morre? - Morre. - Nós todos morre­
forma?-Á.-Eas orelhas e as pernas? - A mesma mos? - Não. - E você? - Eu vou morrer. - E eu?
coisa” - Também. E esta senhora? - Também. - Mas,
então, todo mundo vai morrer. - Têm uns que
A prioridade atribuída, por um instante, não estão doentes. - Mas, e eu? - Vão colocar
ao andar em relação à atividade sensorial ter­ osenhor num buraco. - E você? - Eu também."
mina com a igualdade deles diante da vida.
Contudo, ela mostra bem em que sentido A criança tem plena convicção, agora, de
ocorre a assimilação: do movimento visível, e que vai morrer. Contudo, por uma espécie de
não da intuição sensível, em direção à vida. inversão, é agora, quando se trata da morte
em geral, que ela lhe parece incerta. Há uma
A MORTE, SIMPLES COLEÇÃO DE má integração entre as partes e o todo, entre
CASOS OU DE ASPECTOS PARTICULARES os indivíduos e o gênero humano. Ela parece
encarar com dificuldade a transformação uni­
A morte também se apresenta muito versal dos vivos em mortos. A morte perma­
menos como uma impressão pessoal de amea­ nece como um simples acontecimento, um
ça, é muito menos a negação de um instin­ acidente semelhante à doença. Não é inte­
to do que uma conseqüência de circunstân­ grada ao ser vivo como seu final inevitável. A
cias estranhas ao próprio sujeito. Muitas ve­ criança pára em uma assimilação indefini­
zes, a criança que fala da morte parece sur­ damente extensiva e que engloba ela própria
presa ao pensar, repentinamente, que ela ou ao número daqueles que a morte espreita. Ela
seu interlocutor ou seus próximos possam não sabe generalizá-la por princípio.
morrer. Ela parece admiti-la apenas por ra­
ciocínio. B...ot 7; “Um dia você vai morrer? - Não.
- E seu pai? - Não. - E eu vou morrer? - Não. -
R...er A. 7; acabou de dizer que os mortos O que é que morre? - Eles estão doentes. - Têm
são colocados no buraco. “E eu, vão me colo­ pessoas que nunca morrem? - Não.”
car lá um dia? - Não (riso escandalizado).- Por
que você não acha que vão me colocar no Se esta última resposta corresponde exa­
buraco? - Não sei. - O que morre? - Os homens. tamente ao pensamento da criança, se ela não
- E o que mais? - A s mulheres. - E o que mais? foi induzida pela forma negativa da pergunta,
CRESCIM ENTO» V ID A E M ORTE 473

aqui, ainda, opor-se-iam a morte em geral e ta ç ã o .) Têm u n s que m o rrem e ou tros que n ã o
a de indivíduos em particular. Admitida em m orrem .”
um caso, ela se tomaria novamente acidental
no outro. “Eles estão doentes” circunscreve Aqui, é a imagem de seus semelhantes,
o número dos que morrem. Mas, na verdade, que ela não imagina que possam escapar do
não há distinção entre duas categorias, não destino comum, que lhe faz limitar, de ma­
há a regra e as suas exceções. São dois pla­ neira inteiramente contingente com relação
nos ainda desunidos: o da noção geral e o do ao seu hábito, a imortalidade, inicialmente
individual, que se confunde com o acidental. atribuída aos agentes da autoridade em geral.
Alternando de um a outro, sem saber inte­ Parece que, para esta criança, o que é pode­
grar este naquele, a criança pode exprimir, roso e temível não poderia morrer: incompa­
sucessivamente, duas convicções contrárias tibilidade devida ao caráter ainda afetivo e
sobre a universalidade e a necessidade da sincrético de suas representações. A criança,
morte. aliás, não parece invejar esse privilégio de
escapar da morte. Mais do que ela, a criança
P...ez 7; 1/2 “O que quer dizer “estar teme os personagens que a morte não pode­
morto”? - Porque eles já tinham nascido há ria tocar.
m uito tempo. - A gente é obrigado a morrer? - A imagem que a criança faz mais habitu­
Não. - Têm pessoas que não morrem? - Não. - almente da morte é a que corresponde aos
Todo mundo morre? - Morre. - Por quê? - costumes que testemunhou diretamente ou
Porque elesjá tinham nascido há m uito tem ­ cujo relato ouviu.
po "?
P...ez 7; 1/2 “O que é estar morto? - Por­
A generalidade da morte que vem ao que a gente não respirou direito. - E então, o
final de uma longa vida parece ser, aqui, que acontece? - Os homens nos enterram. - E
admitida. Com alguma hesitação talvez, visto depois? - Eles nos cobrem de terra”
que a criança diz que não se é obrigado a R...er 7; “O que quer dizer as pessoas
morrer. Mas é possível que ela tenha dado a estão mortas? - Porque colocaram num túm u­
“obrigado” uma significação voluntarista, que lo. - E se não as colocassem num túmulo, elas
implicaria o consentimento. não estariam mortas? - Estariam. - O que quer
Há casos em que crianças isentam da dizer elas estão mortas? - Não sei. - Quando as
morte seres que lhes parecem ter um papel colocam num túmulo, onde elas ficam? - No
que se sobressai do comum. buraco. - Por que as colocam no buraco? -
Porque não deixam elas verem. - Por que não
P...ot 6; “Têm pessoas que não morrem? as deixam ver? - Porque colocam elas no bu­
- Às vezes. - Quem é que não morre? - Os raco”
soldados. - Por que eles não morrem? - Porque
são hom ens que protegem as crianças. E os A alternância que faz passar, sucessiva­
policiais também. - Por que os policiais mente, da conseqüência (enterro) para a causa
também? - Porque eles levam a gente para a (a morte), ou do efeito (colocar no túmulo)
prisão e am arram as nossas mãos. - Eles não para o motivo (fazer desaparecer) e vice-
morrem? - Não. - Você poderia ser policial? - versa, mostra o quanto, nesta criança, a repre­
Não, eu gostaria m ais de ser inspet..., não, sentação ainda é a aceitação bruta do fato.
diretor de escola. - Você tem colegas que Ambivalência reversível que suprime as dis­
poderiam se tomar policiais? - Não... Eu não tinções de anterioridade, de resultado, de
sei. - Se tivesse colegas que se tornassem intenção.
policiais, eles não morreriam? - (Longa hesi­ M...ard 7; “Como a gente vê que está
474 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

morto1-A gente não se sente. - O que acontece C...in 6;l/2 “O que quer dizer morrer?...
quando a gente morre? - Têm m uitas pessoas Morto e vivo são a mesma coisa? - Não, sen­
que vêm, flores, um homem que leva o cavalo hora. - Qual é a diferença? - Às vezes, a gente
do enterro. - E depois, o que a gente vira? - Às está vivo, às vezes, agente está morto. - Então,
vezes, a gente vira um bicho (ela ri nervosa­ o que quer dizer morto? - Porque agente não
m ente). - Como a gente vira um bicho? - Uma é m ais a mesma pessoa que antes. A gente é de
serpente. - Como? O morto vira um bicho? - osso, depois os vermes vêm comer você e depois
Porque m uito... Depois ele fic a p o r m uito a gente vira um esqueleto. Primeiro a gente é
tempo no cemitério." de carne e depois de osso.”

Não-sentimento de si, funerais, metem- As imagens concretas que traduzem a


psicose animal, cemitério, esses são os elemen­ idéia da morte para a criança são, aqui, a pu­
tos que se justapõem na idéia da morte nes­ trefação dos corpos. Não lembranças per­
ta criança. Às práticas visíveis que envolvem ceptivas, mas muito mais tradição recebida.
o falecimento, a criança acrescenta, com fre­ Há casos também em que a criança tem ima­
qüência, o destino posterior da pessoa. gens pessoais sobre o desaparecimento dos
corpos.
W...er 7; “Como a gente sabe que está
morto? - Porque a gente engole água, sufoca, A...ré 6; “Todos os animais estão vivos? -
m orre. - O que acontece depois? - A gente Estão, têm uns que já seforam . - Os que já se
n ã o vive mais. - E depois? - A gente é enter­ foram estão vivos? - Não, estão mortos, jogam
rado. - E depois? - Compram flores para eles na água. - Quando estão na água, o que
colocar no cemitério. - Quando a gente está é que eles viram? - Eles são tirados da água e
no cemitério? - A gente está dentro da terra. - jogam em cim a deles sujeira, outros cachor­
...Por que colocam a gente na terra? - Porque ros, pessoas que se afogaram, nadadores. -
não q u erem v e r você n a ru a. A g e n te v a i p a r a Depois, o que é que eles viram? - Eles não
o céu ou para o inferno. Os m aus vão para o viram nada, eles fica m sujos, sujos. - Se a
inferno. Tem u m m e n in o q u e é m a u n a gente quisesse achá-los quando eles estão
classe. Ele se cham a L. - ...Onde é o inferno? - sujos, sujos, o que a gente veria? - Nada, nada.
Tem em Paris e também em Boulogne. É num Só têm rolhas.”
lugar que a gente não vê. É um lugar gran­
de. Tem um a parede e u m telhado. Ninguém Permanece obscuro, para a criança, como
vê. - Se a gente se enganasse, a gente pode­ os corpos acabam por se d estruir. Sua experi­
ria entrar lá dentro? E se você entrasse lá? - ência não lhe fornece imagens adequadas. Ela
Ah, bom, ele m e pegaria com o garfo dele. justapõe, de forma bastante confusa, os cor­
Mas eu daria um a olhada e q u a n d o e u tives­ pos que flutuam sobre a água e os que são
se olhado tudo, eu iria embora. Quando retirados dela, os afogados e os nadadores, as
a gente é bonzinho, a gente vai para o imundícies do rio, a destruição na sujeira.
céu.” Impressão física e depreciação afetiva são
misturadas.
A razão pela qual a idéia da morte trans- Freqüentemente também, é sob uma for­
forma-se, habitualmente para a criança, em ma dramática que a criança imagina o fato de
cenas comuns é bem evidente aqui, ou seja, é morrer.
sua incapacidade para ultrapassá-las. O ele­
mento tradicional do içfemo é reduzido, por A...dre 6; “O que quer dizer “morto”? - A
ela, a uma construção em algum canto dis­ gente sangra. - (Mostramo-lhe um pequeno
simulado de cada cidade. arranhão no dedo.) Você morreu quando
CRESCIMENTO, VIDA E MORTE 475

sangrou? - (Ela ri). - Os hom ens podem mor­ mom ento em que se instala e parece valer
rer? - P o d e m ... Isso p o d e a c o n te c e rã o m eu p a i para todos os casos; inversamente, é a um a
á s vezes. - Como assim? - N ão sei. O utro dia, representação especial que leva todo esforço
ele ch egou ta rd e em casa... (segue-se u m em direção ao geral, pois a criança é incapaz
relato b a sta n te confuso e repleto d e digres­ de evocar diferentes casos oponíveis entre si.
sões). - A gente po d e morrer várias vezes? - Se o homicídio ou o acidente marcam
Não. - Por quê? - P orqu e... - Q uando a gente muito a imaginação, a morte por doença é
morre é para sempre? - É. - Os ratos podem uma experiência comum demais para que a
morrer? - P odem , p o r q u e a g e n te m ata. - E se criança não a leve em conta. Aomesmo tempo,
a gente não os matasse, eles não morreriam? - as dferenças, de certa forma essenciais entre a
N ão. - Nunca? - N ão. - Os hom ens podem vida e a morte, parecem melhor definíveis.
morrer? - P odem , p o r q u e eles sã o atropelados.
- Se eles não fossem atropelados, eles não R...ault 8; 1/2 “E quando a gente não está
morreriam? - N ão.” mais vivo? - A g e n te está m orto. - Como a gente
Sem dúvida, as afirmações universais na sabe que está morto? - P o rqu e a g e n te p e g a
criança não têm o mesmo alcance que no u m a d oen ça. - Como a gente pegou uma
adulto. Absorvida, sem restrição, por sua re­ doença? - N as correntes d e ar. - Como a gente
presentação atual e, nesse momento, incapaz vê que está morto? - A g e n te n ã o sabe. - Mas os
de evocar outras, ela é, sucessivamente, capaz outros, como eles vêem que um a pessoa está
de justapor, sob forma universal, eventuali­ morta? - Eles vêem p o r q u e ela f i c a d e olhos
dades diferentes. A universalização da morte fech a d o s. - Q uando a gente morre, o que a
violenta talvez seja apenas a de uma imagem gente faz? - A g e n te n ã o se m exe m ais. - A
marcante. No primitivo, pelo contrário, é todo gente ainda escuta? - Não. - A gente fica bem
um sistema de representações ocultas que lhe quando está morto? - Fica. - Como? - P o rq u e a
faz supor, por trás de toda morte, mesmo gen te dorm e.”
natural, um a ação maléfica.
A morte resulta, aqui, da doença, mas
M...ard 7; "Como a gente sabe quando esta resulta de um acidente. É a abolição da
está morto? - P o rq u e tem u m homem q u e nos consciência, da sensibilidade e imobilidade.
atropelou. A g e n te n ã o viu qu e o carro estava Contudo, a morte é apenas um sono: com os
vin d o ... - A gente precisa ser atropelado por olhos fechados, dormimos. Dessa forma, ela é
um carro para morrer? - Às vezes, se m orre n a agradável: essa última afirmação é excepcio­
ca m a , p o r q u e co m em veneno. - Um morto nal.
pensa? -E le n ã o p e n sa em n a d a , p o rq u e nosso Os elementos da m ortesãom ais ou menos
cérebro sa iu . - Como ele saiu? - P orqu e a roda oponíveis aos da vida. A substância reduz-se,
p a s so u em c im a d a nossa cabeça." transforma-se: o que era carne tom a-se esque­
leto. A vida era ser útil, a morte é tornar-se
A união perpétua do acidental e do uni­ inútil.
versal é, aqui, flagrante. A insensibilidade do
morto, dada com o um fato universal, é expli­ T...ni 7;9 “O que quer dizer “m orto”? -
cada pelo esmagamento do cérebro por um Q u e r d iz e r q u e a g en te estã n u m a c a ix a . A
automóvel, em bora o último m odo de morrer g en te f ic a em b a ix o d a terra, n ã o f a z m a is
de que a criança acabara de falar fosse o ve­ n a d a , n ã o tra b a lh a m ais. - Por que em uma
neno. A criança alterna constantemente entre caixa? - P orqu e a g en te se a fo g a ria .- Se a gente
o particular e o total, sem se aperceber da estivesse numa caixa, a gente se afogaria? - Ah,
contradição: toda representação, por mais não!Se a g en te estivesse em b a ix o d a terra sem
especial que seja, fica sem concorrência no ca ix a . - Eu j á vi mortos, eu v i o m a rech alF . -
476 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Por que о colocaram embaixo da terra? - que a gente não enxerga mais?... - A gente
Porque ele estava morto, não serviapara mais ainda respira? - Não. - A gente ainda fica vivo?
nada. - Você serve para alguma coisa? - Ah, - Não. - Então, o que é que a gente vira? - Mais
sim ! Eu sei trabalhar. - Se você não servisse nada. - A gente desaparece? - Desaparece. -
para mais nada colocariam você embaixo da Como? - Não sei. - Quando a gente está morto,
terra? - É (ela ri). - Se a professora escrevesse a gente ainda tem um corpo? - Não. - O que o
no seu boletim “não serve para mais nada”, corpo vira? - Não sei. - Se não existe mais
colocariam você embaixo da terra? - Ah, não! corpo, o que fica? - Nada. - O que a gente faz
Eu ainda estou vivo.” quando alguém morre? - Mais nada. - A gente
fica bem quando morre? - Não. - A gente fica
Após ter traduzido a morte pelo caixão, mal? - Fica.- A gente sente dor? - Não.- A gente
pelo túmulo e pela inatividade, essa criança sofre? - Não. - A gente fica bem ou mal? - Mal.”
parece, como é freqüente, perceber muito
mal as relações de causa a efeito entre essas Para além do aniquilamento total, que ela
três circunstâncias. É a inutilidade que ocasi­ parece capaz de supor, essa criança deixa
ona o ato de colocar no túmulo, mas o caixão subsistir a consciência de algo que não é, na
seria destinado a proteger o morto contra o verdade, um sofrimento, mas um mal-estar.
afogamento, ou seja, ele teria um resto de vida Seria a simples projeção, na própria morte, do
ou, pelo menos, de sensibilidade, e quando a temor que ela inspira? Mas essa mesma cri­
própria criança é posta em causa, seu estado ança não parece consentir na abolição de
de ser vivo é refutado pela possibilidade de todas as lembranças da morte.
ser colocada na terra por ser incapaz de servir.
Aliás, é muito freqüente o fato de que a crian­ “A gente se lembra de alguma coisa
ça raciocine sobre o morto como se ele es­ quando está morto? - Não. - A gente se lembra
tivesse vivo. do nome da gente? - Não. - Se lembra da mãe
da gente? - Não... Lembra. - E do pai da gente?
P...ot6; “O que é que a gente vira quando - Lembra.- A gente se lembra dos amiguinhos?
morre? - Não sei. - A gente fica feliz? - A gente - (Longa hesitação.) Lembra. - Se lembra da
vai para um caixão. - A gente fica contente? professora? - Não. - A gente se lembra que
- A gente fic a lã. - Por que a gente vai para um sabe 1er?- Não.- Se lembra dos passeios? - Não.
caixão? - Porque senão a gente morreria... a - E dos passeios que a gente deu com a
gente teria frio .” mamãe? - Lem bra”

Assim, o caixão teria por finalidade evitar Uma vez admitida a sobrevivência das
que o morto morresse por causa do frio. Essa lembranças para a imagem da mãe, a criança
contradição exprime exatamente a dificuldade, deve, em seguida, fazer, entre as outras, uma
que a criança ultrapassa em graus diversos, escolha que pode parecer bizarra. Há conflito,
para imaginar a supressão, no morto, de tudo provavelmente, entre o sentimento subjetivo
o que constitui o ser vivo. Raramente ela e a lógica.
chega a representar um aniquilamento total.
Mesmo depois que ela pareça tê-lo consen­ R...er 7; “Muitas pessoas já foram colo­
tido em detalhe, ela admite, com freqüência, cadas no buraco? - / 4 . - 0 que elas fazem no
um resto de consciência. buraco? - Nadinha. - Será que elas gostariam
de fazer alguma coisa? - Não. - Elas sabem que
A...on 7;3 “A géhte ainda enxerga quan­ elas não fazem nada? - Não. - Elas se lembram
do está morto? - Não. - Por que a gente não do que fizeram? - Não. - Elas sabem que ainda
enxerga mais?... - Não sei. - Como você sabe têm pessoas que estão vivas? - Não. - Então,
CRESCIMENTO, VIDA E MORTE 477

quando você morrer, não vai saber mais que Em suma, a morte, quando não se resol­
já esteve vivo? - Vou. - Você ainda vai saber? - ve nas circunstâncias marcantes que a acom­
Vou. - Você vai saber que está morto? - Vou. - panham, apresenta-se, à criança, como a
E como você vai saber? - Eu não vou fa ze r negação mais ou menos completa do que lhe
m a is n a d a ? - Você vai querer fazer alguma parece constituir a vida. Por vezes também,
coisa? - Não. - Você vai ficar contente por não ela procura imaginar no que o morto se trans­
fazer nada? - Não. - Você vai saber que não faz forma até seu aniquilamento total.
nada? - Não. - Você vai lembrar do que você
fez? - Não. - Você fica mais contente por estar M...inJ. 7;4 “O que é a morte? - Q uando
vivo do que morto? - Eu gosto m a is de estar a gente não vive mais. - O que quer dizer
vivo? - Por quê? - Porque a gente enxerga.” viver? - Q uando a gente ainda pode se mexer.
- Quando a gente dorme, a gente vive? - Vive.
Quando se trata de outrem, de um morto - A gente se mexe? - Mexe, às vezes a gente
qualquer, da morte em geral, há abolição de pode se mexer. - Se a gente não pudesse mais
toda consciência. Mas, para si mesma, há a se mexer, a gente estaria morto? - Estaria. - O
consciência de ter vivido, a consciência de que acontece quando a gente morre? - Enter­
estar morto. Por um retomo de lógica, con­ ram você. - E depois? - Fazem um túm ulo
tudo, todo desejo, toda lembrança concreta, para você. - O que acontece quando a gente
particular, é abolida. está no túmulo? O que o morto vira? - Ele vira
A dificuldade que sentem para imaginar poeira.”
a abolição da vida na morte faz com que várias M...in R. 7; “O que quer dizer morrer? -
crianças transponham-na para o plano da Quer dizer que a gente está morto. - O que isso
existência e imaginem que a morte não possa quer dizer? - Que a gente não vive mais. -
ser completa no início. Como é que a gente não vive mais? - A gente
fic a com os olhos fechados, não vive mais. -
M...ni 7; "O que quer dizer vivo? - Quer Como isso acontece? - É como se a gente não
dizer que ainda não estão mortos. - O que estivesse m ais aqui. A gente morre. Não pensa
quer dizer morto? - Q ue a gente não come em m ais nada. - O que a gente vira? - A gente
mais, não bebe mais e não anda mais de fic a na terra, não vêem m ais a gente. - O que
moto. - ...E o que acontece depois que a gente a gente vira? - A gente fic a num a caixa. Não
morre? - Jogam a gente no Sena. Colocam a se mexe mais. - O que é que a gente vira? - Não
gente num cemitério. E depois, quando a tem m ais ninguém , porque os bichinhos,
gente está bem morto, vão nos jogar.” depois de racharem a caixa, comem as pes­
soas, e depois não tem m ais nada.”
Talvez essa idéia da morte em dois tem­
pos encontre, aqui, um ponto de apoio no A imaginação da criança é realista. Atêm-
sepultamento em duas etapas, que é, para as se às imagens da experiência cotidiana, sem
pessoas pobres, o ossuário depois do túmulo ser capaz de sublimá-las. É a essas imagens
individual. que ela reduz os mitos propostos pelo adulto.
C a p ítu lo in

C é u , Sol-L ua, V en to
CONFUSÃO DO CÉU ATMOSFÉRICO, SIDERAL, MÍSTICO

O céu é, dos objetos que podem manifes­ - Não. - Como? - Preto. -E o que mais? - Mar­
tar-se para a criança, aquele que está mais rom. - E o que mais? - Violeta. - E o que mais?
essencialmente fora de seu alcance. É aquele - Vermelho-marrom. - Quando ele fica preto?
no qual, por conseqüência, como suas idéias - Chove. - Quando chove, a gente pode vê-lo?
não podem ser o resultado de experiências di­ - Pode, o M enino Jesu sfa z a água c a ir”
retas ou completas, será mais fácil observar os Essas respostas são de um tipo muito
jogos de sua imaginação ou de seu raciocínio. infantil. As primeiras relações são expressas
A respeito desse mesmo nome, aliás, as sob a forma identidade, embora a criança não
oportunidades de confusão serão freqüentes, acredita na identidade dos termos que agru­
pois o adulto desgina, através dele, tanto o pa. Ela confunde o céu místico e o céu meteo­
céu das intempéries, o céu das revoluções rológico por intermédio do artificialismo. Ini-
astrais quanto a morada dos seres místicos ou cialmente, ela limita a cor do céu a uma só, o
divinos. azul, e sua visão a um único dia, o domingo.
Contudo, iniciada a enumeração das cores,
D... in “O que faz o vento?-É o céu. - O céu estas podem ser, sucessivamente, as do céu
e o vento são a mesma coisa? - Não. - O que é em dias escolares comuns. Assim, a noção do
o céu?-É o céu. - Como ele é?... Você já o viu?... objeto não tem nenhuma precisão, nenhuma
O que é que faz o frio? - É o céu. - O frio e o céu fixidez, e varia como os mecanismos repre­
são a mesma coisa? - São. - O que é o céu? - Ê sentativos ou verbais desencadeados.
o M enino Jesus. - É o Menino Jesus? - Não. -
Então, o que é?... Você já o viu? -Já. - Como ele S...itch 6;l/2 “O que é a chuva? - Água. -
é? - Ele é de todas as cores. - De que cor você De onde ela vem? - Do céu. - Onde fica o céu?
gosta mais dele? - A zul. - A gente pode vê-lo - Lá em cima. - Como ele é? - Todo branco. -
todos os dias? - Não. - Hoje a gente o vê? - Não. Como pode ter água no céu? - É quando fa z
- Quando a gente o vê? - N o d o m in g o . - Onde? m au tempo. - De onde vem essa água?... O que
- N a n ossa rua, n u m terreno. - A gente vê o tem no céu com a chuva? - Deus. - O que ele
céu todos os domingos? -V ê .-К gente não vê faz? - Não sei"
o céu quando não é domingo? - Não. -Você o
vê bem quando vem para a escola? -À s vezes. Aqui, as imagens estão menos misturadas.
- Como ele ê?-Eleé branco. - Sempre branco? No céu, a chuva e Deus limitam-se a coexistir.
CÉU, SOL-LUA, VENTO 479

I...as 6; 1/2 “O que é o céu? - São a s está Deus? - N o céu . - No oco? - Não, n o a lto d o
n u vens. - Como pode ter água nas nuvens? - céu !’
N ão sei. - O que é que tem no céu? - N uvens.
- E o que mais? - O M en in o Jesus. - E o que Aqui, ainda, o céu é dado como uma
mais? - N ão sei. - O que é maior, o céu, as abóbada capaz de suportar seus habitantes.
nuvens ou o Menino Jesus? - São a s nuvens. -
O céu é m enor que as nuvens? - N ão sei. - É o M.. .ti 6; “O céu é grande? - É . - Com o que
céu que está nas nuvens ou as nuvens no céu? ele é feito? - É fe ito co m vidro. - Ele pode se
- São a s n u ven s q u e estão n o c é u ” quebrar então?... Ele já se quebrou?... Quando
a chuva cai, ela vem de cima ou de debaixo do
As relações são muito flexíveis: primei­ vidro? - D e c im a "
ro, um a aparente identificação do céu e das
nuvens, simples justaposição local das nu­ Sem pre a idéia d o céu co rp o sólido.
vens e do Menino Jesus, conteúdo (as nuvens)
maior que o continente (o céu). Z...ni 9; “O céu fica longe daqui? Diga-me
o que é? - N ão sei. - Têm pessoas ou não tem
N...et 6 ;l/2 “De onde vem o vento? - Vem nada no céu? - N a d a . - Como ele pode ter
d o céu. - Tem muito vento no céu? - Tem, água?... Ele é grande? Maior que a terra? - É. -
m u ito. - O céu fica longe? - Fica, sim , senhor. Como ele é? É duro? - É d u m . - A gente pode
- O que é o céu? - É o n d e têm p esso a s p e q u e ­ passear pelo céu? - N ão sei."
n a s n o alto. - Quem são essas pessoas peque­
nas no céu? - São a n im a izin h o s. - De que A consistência do céu ainda é dura,
tam anho eles são? - D o ta m a n h o d e u m embora não seja mais habitado. Ele produz a
c a m e irin h o . - Você já os v iu ? -E u já vi n a rua. chuva, mas a criança não sabe dizer por
- Mas então, eles não estavam no céu? - Não. qual mecanismo. Q uando não é mais a sede
- Como você sabe que tem animaizinhos no de visões antropomórficas, sua represen­
céu? - É p a r a d iv e r tir a s c ria n cin h a s qu e vão tação tom a-se muito mais vaga.
p a r a o céu. Um dia, m in h a m ã e com prou
p a r a m im u m m a n jin h o (anjo?). - Quem são M...in R. 7; “O que é o céu? - Ê ar. - É
as criancinhas que vão para o céu?... Você já as grande? - Ê. - Como? - É g ra n d e !’
viu? - Não. - Elas são como você? - N ão sei se M...in J. 7;4 “O que é o vento? - É a r em
elas sã o co m o eu. - Quem lhe disse que têm m ovim en to. - Como é que o ar fica em movi­
crianças no céu? - F oi m eu irm ão. - O que elas mento? - Ele vem d o céu. - De onde vem o
fazem no céu? - Elas m o n ta m em a n im a iz i­ vento do céu?... Como é que ele sai do céu? -
nhos. P asseiam . - A gente pode passear no N ão sei. - O que é o céu? - É u m a g ra n d e
céu? - A s p esso a s p e q u e n a s q u e têm n o céu extensão. - Longe de nós? É . - Grande como
-

p o d e m p a ssea r. - Têm ruas no céu? - Não, o quê? - M a io r q u e to d a s a s coisas d o m u n d o -


senhor. - O nde elas passeiam? - Elas p a sse ia m Onde fica o céu? - No a r.”
n o céu !’
Aqui, o céu parece desmaterializar-se e
Não há ligação entre o céu de onde vem tender para a extensão pura e simples, para a
o vento e o que seria povoado por peque­ extensão limite que ultrapassa a do universo.
nos animais e criancinhas brincando juntos. É o espaço.
O céu seria um a superfície sólida para permitir Mais habitualmente, o céu é assimilado
o passeio. A necessidade de justificar suas ao céu visível onde se fazem e se desfazem as
respostas parece levar a criança a fabular. nuvens.
N...é 6; “Como é o céu? - É oco. - Onde H...in 6 ;l/2 “O que são as nuvens? - O
480 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

céu. - As nuvens e o céu são a mesma coisa7 - noite? - Um a n u vem . - É porque tem uma
Não. - Qual é a diferença? - O céu é maior. - nuvem que passa que fica de noite? - Д sim ,
E o que são as nuvens? - Ospedacinhos. - Os sen h or .”
pedacinhos de quê? - De fo g o ”
A expressão inicialmente é ambígua. Duas
As nuvens são, aqui, os fragmentos do imagens parecem contaminar-ser no "sol que
fogo que enche o céu. Há um agrupam ento passa”: a de seu próprio movimento e a da
sincrético do sol, do firmamento e das nuvens: tela, duas causas de desaparecimento, das
o contraste das nuvens que se fragmentam e quais ele se tom a o suporte único de m anei­
do céu contínuo produz a diferença. ra contraditória. A indispensável dissociação
ocorre apenas posteriormente. É com uma
P...ret “D o que são feitas as nuvens? - São nuvem que a tela é, enfim, identificada. A
de céu. - E o céu é de quê? - É d e fum aça.” dificuldade para dividir os papéis entre os
objetos, para evocar o objeto que um papel
Céu e nuvens parecem ainda estar assi­ supõe, é uma conseqüência freqüente do
milados, sob as espécies substanciais da fu­ pensam ento implícito e sincrético. É dessa
maça. forma que os próprios objetos são, freqüen­
temente misturados, como se a percepção
F. ..er 8; “O que são as nuvens? - É céu.-
deles não fosse distinta.
Sempre existiram as nuvens? - Sempre. - A gen­
te sem pre vê nuvens?... O céu e as nuvens são Da mesma criança “O que faz o sol ficar
a m esm a coisa? - São. - As nuvens se mexem? vermelho? - P orqu e o so lp a ssa p o r c im a e fic a
- Não. - Do que elas são feitas? - Não sei. -Mas verm elho. - Passa por onde? Sobre o quê? -
e quando a gente olha para elas? - São brancas. P elas nuvens. - O que faz o sol ficar verme­
- Qual é a cor do céu? -A zul. - Não é a mesma lho?... O que é o sol? - N ão sei. - Mas é ele que
coisa que as nuvens?... Q uando o céu está faz o calor? - É. - Como ele pode fazer o calor?
azul, onde estão as nuvens? - Elas ficam - P orqu e a s n u ven s sã o qu en tes. - ...São as
escondidas peto céu. - Q uando têm nuvens, nuvens vermelhas ou o sol que dão o calor? -
onde fica o céu? -Fica escondidopelas nuvens!’ É o sol.”

A criança sustenta a identidade do céu e Aqui, ainda, há pensam ento implícito no


das nuvens até o m om ento em que deve início: o objeto sobre o qual passa o sol não é
reconhecer sua diferença de coloração. Se­ expresso e nem, provavelmente, imaginado.
gundo um mecanismo que lhe é familiar, ela Depois, evocadas as nuvens, a ação calorífica
os desdobra, então, em telas que se recobri­ parece inicialmente ficar indivisa entre elas e
riam alternadamente. o sol. Essa indiferenciação inicial de objetos
A imagem da tela dá, freqüentemente, à que têm entre si alguma relação de concomi­
criança, a oportunidade de confundir duas tância ou de afinidade pode tornar-se, por
funções diferentes do céu: a alternância dia- sistematização ideológica, a fonte de assimi­
noite e as intempéries. Com freqüência, é atra­ lações substancialistas.
vés de um m anto de nuvens que ela explica a
noite. IMAGEM FENOMENISTA E A
CONTRASTADA DA LUA E DO SOL
G. ..ain 6; “Como é que fica de noite
quando o sol vai embora? - Porque ele vai N.,.et 8; 1/2 “O que são as estrelas? -
embora para lá. Tem um sol que passa e P edaços d e sol. - O nde elas estão? - No céu. -
depois fic a de noite. - Tem um sol que faz a E o sol? - Em nossos olhos. - Ele está nos meus
CÉU, SOL-LUA, VENTO 481

olhos agora? - No céu. - Quando é que ele fica e o objeto que lhe é a causa, essa redução da
nos meus olhos? - Q uando fa z um dia bonito. impressão que ele produz à impressão do
- Ele não fica mais no céu quando o dia está sujeito, e unicamente dele, indicam uma con­
bonito? - Ele vem para os nossos olhos. - fusão nos limites que são os mais indis­
Quando ele vem para os nossos olhos, ele pensáveis ao conhecimento, entre o mundo a
ainda está no céu? - Está. - Ele pode ficar ao ser conhecido e o sujeito que conhece. Essa
mesmo tempo no céu e nos nossos olhos? - É confusão, evidentemente, só pode ser en­
porque é um raio que vem para os nossos contrada, na criança que já é capaz de ex­
olhos. - Um raio é a mesma coisa que o sol? - pressar-se, a propósito de objetos como o sol,
É. - O sol pode estar ao m esm o tempo em que escapam totalmente de suas manipula­
olhos diferentes? Nos seus, nos meus, nos das ções e cuja ação é tão direta, poderosa, íntima
outras pessoas? - Não, senhor. - Quando ele quanto inatingível.
está nos seus olhos, ele não pode estar nos A espécie de ubiqüidade substancial
meus? - Não. - O sol tem muitos raios? - Tem. atribuída, aqui, ao sol, não impede a mesma
- O que são raios? - Luzes. - Têm muitos raios criança de lhe dar, como dimensões reais,
no sol? - Têm. - Os raios caem todos no mesmo suas dimensões aparentes, prova de sua últi­
lugar ou podem ir para todo lugar? - Elés caem ma submissão aos efeitos puramente sensí­
todos n o m esm o lugar. - Quando um raio de veis que resultam de um determinado objeto.
sol está nos seus olhos, todos os raios estão
nos seus olhos? - Não. - Onde ficam os outros “O que é o sol?Como ele & -Ê redondo?
raios? - Dentro dele. - ...Existem vários sóis? - - Como uma bola? - É. - A gente pode brincar
Não. - Ontem e hoje é o mesmo sol?-É .-Onde com ele? - Não. - Por quê? - Ele é grande de­
fica o sol à noite? - No c é u ” mais. - De que tamanho ele é? - Assim (40cm.
aproximadamente). - Você poderia pegá-lo
A substancialização global do sol acar­ com as mãos? - Não... Ah, sim !- Por que você
reta, aqui, conseqüências que podem parecer poderia pegá-lo com as mãos? - Porque ele
contraditórias. Embora seja único e o mesmo não é bem grande.”
na sucessão dos dias* as estrelas são seus
fragmentos. Por outro lado, ele se confunde O volume atribuído pela criança ao sol
com seus raios, que são, inidalmente, situados, habitualmente pouco se afasta de sua grandeza
como ele mesmo, nos olhos do observador. É aparente.
apenas secundariamente que é restituido ao
céu, mantendo seus raios em si mesmo e G...ain 6; “O sol é grande? - Como a
somente um deles encontrando-se nos olhos lâmpada (projetor de 25cm de diâmetro)."
de um único sujeito. A substância é, ainda A...dre 6; “O sol é grande? - Épequeno. -
aqui, um combinado de subjetivo e de objetivo. Menor que a lua? - (Que é “grande como um
O objetivo é substancialmente partilhado entre prato redondo”)? - Sim.
o lugar subjetivo de sua ação e o lugar objetivo R...eau “O sol é grande?- Sim. - Como?...
a ele atribuído pela percepção. Provavelmente Ele poderia entrar aqui? - Poderia. - Ele é do
isso ocorre devido ao ofuscamento, que du­ tamanho do quadro negro? - Não.”
plica a imagem do sol, assim como uma sen­ D...et 6; “O que é o sol? - É um solgrande.
sação dolorosa pode duplicar uma percepção. - O que é? - È grande. - Grande como o quê?
E é também o que o estado afetivo possui de - Ê grande como um a roda de bicicleta. - A
estritamente pessoal que deve impor, ao su­ gente poderia colocar vários sóis aqui? - Não,
jeito, a crença de que seus olhos são os únicos só pode colocar um, só existe um . - Mas, e se
a receber o raio do sol. Essa justaposição ou existissem vários? - A gente poderia colocar
adição de existência entre a impressão sentida aqui?
482 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Quando diz que o sol é grande, a criança B. ..ère6; “Quando você fica no sol, oque
sente que deve superestimar seu diâmetro você sente? - É quente. - Por quê? - Não sei. - À
aparente. Sua correção praticamente aão ultra­ noite a gente vê o sol? - Não, a lua. - Qual a
passa a que poderia fazer um objeto de seu diferença entre o so le a lua? - A lua ê redonda.
próprio meio. - E o sol? - Não é redondo.”

S...itch 6;l/2 “Você já viu o sol? - Já. - Entre todas as diferenças possíveis, a
Como ele é? - Q uando é de dia. - É grande? - criança escolhe a menos plausível, a forma.
Redondo. - De que tamanho? Ele poderia Sem dúvida, os contornos da lua são, fre­
entrar aquP - Ah, sim ! - Grande como essa qüentemente, mais nítidos. O sol é mais ornado
parede? - Ah, Maior que a parede? - Grande de raios do que redondo. Por esse motivo,
como a parede. - A gente pode ir ver o sol de acentuado por numerosas interpretações grá­
perto? - Porque ele está no céu. - A gente não ficas, a lua acarreta, mais freqüente que o sol,
pode? - Porque é alto demais. - E com um descrições antropomóificas.
avião? - Pode, mas ele não vai tão alto. - Por
que um avião não pode ir lá? - Porque ele não S...itch 6; 1/2 “O que é a lua? - É um
pode ir tão altor boneco. - Esse boneco é grande? - Não m uito
grande. - Você viu as mãos dele? - A cabeça e
Embora coloque o sol a uma distância s<5. - Por que você só viu a cabeça dele? -
inacessível, mesmo para um avião, essa criança Porque elese esconde. - Onde? - No céu. - A lua
chega apenas a uma correção de grandeza é maior que o sol? - Ah, é!- A lua não é a mesma
bem inferior a que pode ter que fazer para coisa que o sol? - Ah, não! - Como a gente
objetos acessíveis. A relação entre a grandeza pode ver a lua? - Ê quando fic a de noite.”
aparente e a grandeza objetiva é muito mais C. ..ier “Como é a lua? - A gente fa z um
um caso de prática do que de raciocínio. círculo, olhos e depois a gente fa z a bola. - A
Nenhuma referência é possível quando o lua é grande? - Ah! Não muito. Ela não ê
objeto está fora de alcance e, aliás, não grande demais. - Ela poderia entrar aqui? - Ah,
apresenta uma mudança visível, quaisquer não! A sjanelas estãofechadas. - Mas, e se as
que sejam os deslocamentos do sujeito. janelas estivessem abertas? - Ah, não! Ela não
poderia. Elafica lá em cim a. Lá no alto. - Ela
M...ti 6; “O sol é grande?... Ele poderia anda? - Ah, anda! - Como? - Porque tem um
entrar aqui? - Ele é maior: - Grande corho pouco de vento, ela anda . - É o vento que a faz
Paris? - Não. - Grande como uma casa? - Não. andar? - É.”
- Como várias casas? - É. - De onde ele vem? -
Do céu. - Quem o fez? - Deus. - Como? -E le o Nas respostas desta última criança, ob­
acende com um fósforo.” serva-se certa discordância. O caráter arti­
ficialista da semelhança entre a lua e o desenho
A dimensão atribuída ao sol, nem uma de uma figura é, no início, nitidamente in­
cidade, nem uma casa, mas um bloco de dicado. Ele contrasta com as condições naturais
casas, coexiste com uma explicação artificia- que vêm em seguida: distanciamento que
lista. Os termos de comparação não são mais impediria a lua de entrar na sala, mesmo se as
puramente perceptivos. A aproximação pro­ janelas estivessem abertas. Contudo, esse rea­
cura seus limites entre espaços que a criança lismo, que impede que se imagine a trans­
seja capaz de imaginar. ferência hipotética da lua para apredar-lhe as
A lua é, muito fréqüentemente, associada dimensões, é da mesma espécie que sua
ou oposta ao sol, devido quer a alternância assimilação pura e simples a alguns traços
deles, quer as diferenças perceptivas. rodeados por um círculo. O objeto ainda não
CÉU, SOL-LUA, VENTO 483

tem qualquer independência com relação a fundo, ou do aparecimento pelo momento ou


suas figuras sucessivas. É identificado a cada pelas circunstâncias em que d a se produz. O
uma delas, sem que estas possam ser incor­ mesmo mecanismo pode explicar a cor azul,
poradas em sua identidade. Assim, ele não é atribuída à lua p d a primeira dessas duas
intelectualmente manipulável, o que apenas crianças: a lua é confundida com o aspecto
o poder de supô-lo sob diferentes aspectos azul que o luar produz no espaço. A aptidão
permitiria. da criança para confundir o objeto com um
Com muito mais freqüência que o sol, a efeito concomitante pode ser vista também no
lua é descrita por sua cor. exemplo seguinte.

C...ni 6;l/2 “O que é a lua? - É um a bola. M. A...é 6; “O que é a lua? - É vermelha,


- Mas de quê? - É feita de azul. - Ela ilumina? fle a no céu. - É grande? - Não, não é grande.
- Não. - Quando a gente a vê? - Às quatro É pequena, pequena. Fica no céu. Ela vai
horas. - A gente a vê de dia?... Ela é quente? - para a água. Os passarinhos também; os
Não. - Fria? - É. - Ela nunca ilumina?... Você já passarinhos morrem. - Como ela vai para a
a viu à noite? - Já. - Como ela é? - Redonda. - água? - Ela vai para a água pelo vento. - A
...Ela foi acesa? - Não. - Quem a colocou no gente pode pegá-la na água? - Não. - Por quê?
céu? - Ela se fe z sozinha. - Antes do sol? - - Porque ela apagaria. - Como o vento faz a
Depois.” lua cair na água? - Q uando os nadadores caem
Face a outras qualidades que são exatas, na água, elesfa zem a lua tremer (sorriso).”
a cor azul, dada como a matéria da lua, pode
surpreender. A representação pode parecer, aqui, bem
heterogênea. A lua é vermelha e fica no céu,
mas, em seguida, é assimilada a seu reflexo na
K...vé 6; “O que é a lua?- 2?escura. - O que água. A criança acredita verdadeiramente em
é?... Você já a viu? - Já. - O que é? - Não sei. - uma mudança de lugar? Parece haver, muito
Como a gente a vê? - Q uando fic a escuro. - mais, um conjuntosincrético, onde as imagens
Mas ela é escura também? -É... não. - Quando aglutinam-se entre si sem relação definida.
você está no seu quarto você vê alua?- Eu vejo Dessa forma, misturam-se o vento, que leva a
lá fora. - Quando tejn lua, o que ela faz no lua para a água, provavelmente ao varrer as
chão? - O vento que fà z ir embora. - O que o nuvens, e os nadadores, que a fazem vacilar,
vento faz ir embora? - As estrelas e a lua.” sem falar dos passarinhos, que também são
atraídos pela água. Contrariamente à criança
Essas respostas são de um tipo muito que acreditava poder colocar a lua num balde,
elementar. As últimas, que apresentam algu­ esta sabe que ela se extinguiría entre os dedos
ma incoerência, parecem devidas à assonância que quisessem segurá-la. Sua descrição é de
no chão-ir embora (). “Eu vejo lá fora” é uma modo fenomenista e, talvez, lúdico também,
réplica a “no seu quarto”: é a oposição do visto que termina com um sorriso. É muito
lugar objetivo à localização do sujeito, como freqüente encontrar, na criança, uma visão
se eles não pudessem coexistir. Quanto à cor impressionista das coisas; pois ela se mantém,
escura da lua, trata-se de um par onde, se­ normalmente, na zona intermediária entre as
gundo o hábito, o contraste inicialmente ex­ imagens imediatas do real e a identificação
prime-se sob a forma da identidade lua-escuro, dos objetos. Assim, a aparência ou a metáfora
como se houvesse confisco do objeto pelo adquirem aspecto de realidade.
A diversidade de forma que a lua assume
( ) N.T. : Em fiancés, há assonância entre "par terre” (no
sucessivamente pode também surpreender
chão) e "partir" (ir embora). certas crianças, embora a maior parte delas
484 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

atenha-se ao esquematismo da lua redonda portanto, qualquer relação com o sentimen­


ou da lua crescente. Pois a criança oscila sem­ to de diferença que a criança pode ter. Ela
pre entre dois contrários: a simplificação con­ obedece muito mais a fórmulas feitas do que
vencional e o eco espontâneo de um aspecto. a sua experiência das coisas, que permanece
confusa. Só sabe justificar os fatos sob forma
M...Ü 6; “Quando a gente vê a lua? - Às tautológica: não se vê o sol à noite porque
vezes, ela ê inteira, e às vezes, só um terço. - fica de noite.
Como isso acontece? - Falta a metade. - Onde É de maneira semelhante que ela pode
fica, então, a outra metade? - Elafic a no céu. se limitar a constatar que o sol e a lua não
- Ela se quebra então? - Ela se quebra.- Quem podem ser vistos ao mesmo tempo.
a conserta? - Não sei. - Quando a gente vê a
lua? - A gente a vê com o sol. - Como com o sol? B...ot 7; “Quando a gente vê a lua?... A
De dia? - Não. - E então? - De noite. - Então, a gente pode vê-la agora? - Não. - Por quê? -
gente a vê à noite? - Às vezes, a gente a vê nas Porque está fa zen d o sol. - Então, quando a
nuvens.” gente pode ver a lua? - De m anhã. - Por que
a gente não pode ver a lua quando tem sol? -
A resposta “inteira... um terço” é devida, Porque e d e dia. - Por que a gente não pode
simultaneamente, à assonância e ao aspecto ver a lua quando é de dia? - O tempo fic a
variável da lua. Mas o aspecto, confundido branco. - Por que a gente não pode ver a lua
com o real, acarreta a contradição de uma lua quando o tempo fica branco?... Como é a lua?
alternadamente fragmentada e completa. De­ - Ela é am arelinha. - Como o sol? - Não. - Qual
pois, surge o par sol-lua: “a gente a vê com o a diferença?... Por que não é igual?...”
sol”. Sincronismo bizarro. A criança demons­
tra, em seguida, que conhece a alternância A lua invisível quando há sol, quando é
dia-noite, sol-lua, mas é comum, aos pares, de dia, quando o céu fica branco, todas essas
colocar, inicialmente, seus dois termos como respostas são correias, mas não ultrapassam
idênticos ou simultâneos. Assim, o testemu­ uma simples constatação de incompatibilida­
nho da criança sobre as coisas é, com fre­ de. Algumas crianças dão-lhe uma expressão
qüência, deformado pelos mecanismos ele­ antropomórfica.
mentares de seu pensamento.
L...de 7; 11Como é que fica de noite? -
P...et “A gente pode vê-los aos mesmo Porque o sol se detta. - Por que a noite vem
tempo? - Não. - Quando a gente vê a lua? - No quando o sol se deita? - Tem a lua que se
domingo. - E no domingo a gente não vê o levanta. - Por que fica de noite quando o sol
sol? - Vê. - A gente pode vê-los ao mesmo se deita? - Porque o sol vai descansar. - Por
tempo? - Não. - A gente vê a lua de dia? - Não. que fica de noite quando o sol vai descansar?
- E o sol à noite? - Não. - A gente vê a lua à - Porque a lua está anim ada. - Por que fica de
noite? - Não. ..é .-A gente vê o sol de dia? - Vê. noite se a lua está animada? - Porque o sol está
- Por que a gente não vê o sol à noite? - Não cansado. - O que anima a lua? - O escuro. - O
sei. - Você não sabe? - Porque fic a de noite.” que quer dizer “a lua está animada”? - Ela não
está m ais cansada. - Por que, quando fica
Ao heterocronismo reconhecido entre o escuro, a lua fica animada? - Porque de dia ela
sol e a lua, essa criança não dá, esponta­ descansa e de noite ela levanta. - É a luz que
neamente, a forma da alternância nicteme- faz a noite? - É. - Como d a pode fazer a noite?
ral.Sua resposta “no domingo” à pergunta - Ela passeia. - Por que, quando ela passeia,
“quando” parece ter algo de automático. Ela fica de noite? - Porque ela enxerga direito de
é dada tanto ao sol quanto à lua, não tendo, noite e de dia ela não enxerga direito. -
CÉU, SOL-LUA, VENTO 485

Como é que ela enxerga direito de noite e não em que acredita permanece infixável. Por­
de dia? - Porque ela está acostumada a en­ tanto, apenas seus procedimentos de ima­
xergar direito noite. - O que é que faz ficar ginação e a maneira pela qual suas crenças se
de noite? - É feito de propósito para a gente formam podem ser determinados e apre­
descansar do dia. - Como a noite chega? - sentam algum interesse para o conhecimento
Porque tem a lua que levanta e não deixa o de sua vida psíquica.
solpassear. - Por que o sol não pode passear
quando a lua levanta? - Porque a lua ocupa REPRESENTAÇÃO INCOERENTE
muito espaço.- O que que é a lua ? - É um E SINCRÉTICA DO VENTO
objeto escuro. - O que quer dizer um objeto
escuro? - Que é um a coisa que não é m uito A mesma falta de coerência e de cons­
quente.” tância é observada nas explicações que se
referem ao céu das intempéries. As nuvens
É evidente que a criança imagina, su­ são ora mais ou menos confundidas com a
cessivamente, os complementos que suas própria substância do céu, ora explicadas
primeiras explicações exigem. Como aconte­ pela fumaça e pelos procedimentos arti-
ce freqüentemente, ela parte de uma expres­ ficiaíistas capazes de produzi-la. Suas rela­
são usual, à qual ela dá uma interpretação ções com a chuva parecem, por vezes, ser
realista: o sol se deita, porque precisa descan­ignoradas ou, então, é a assimilação da chuva
sar. Surge, então, com a noite, seu antagonis­ com a fumaça que se torna difícil. A criança
ta, a lua. Por oposição ao sol cansado, ela é limita-se, com freqüência, a passar de uma
“animada”. As relações da lua com a noite afirmação à outra, como se a alternância das
são, no início, indecisas. Qual delas ocasiona imagens suprimisse o problema. Há as mes­
a outra? Alternadamente, a lua parece pro­ mas oscilações, quando se trata do vento, en­
duzir a noite e ter, por causa dela, a possibi­ tre a localização de suas origens no céu e sua
lidade de passear no céu: essas duas hipó­ explicação mecânica ou artificialista. Seus
teses contrárias chegam a ser doidas como efeitos são sensíveis, mas como sua força pa­
motivos uma da outra. Da mesma forma, as rece invisível, há casos em que a criança não
relações entre a lua e o sol permanecem bem sabe mais através de que impressão a exis­
equivocadas. Ora parecem apresentar ape­ tência do vento pode ser conhecida.
nas uma periodicidade alternada de repouso Esse conjunto de elementos faz do vento
e de atividade, ora parecem constituir um um bom exemplo das incertezas, lacunas,
obstáculo um ao outro: é a lua que impede o confusões, elipses nas quais as explicações
sol de aparecer no céu devido ao lugar que da criança caem constantemente. A associa­
ela nele ocupa e é a claridade ofuscante do ção mais freqüente é a do vento e do frio: por
dia que a impede de nele penetrar. Essas vezes, há identificação completa; quando,
variações, freqüentemente contraditórias sem pelo contrário, há prioridade causal, é habitu­
que a criança pareça aperceber-se disso, almente ao vento que ela é atribuída.
mostram a que ponto sua representação das
coisas permanece facilmente flutuante e pou­ P...ot 6; “Você sabe o que é o vento? -
co coerente. Ela depende de um material on­ Não... Sei, eu sei o que ê: quando a gente sente
de se misturam todas as espécies de ele­ frio. - Isso é o vento? - É. - O que é que faz o
mentos psíquicos, entre os quais as interpre­ vento? - ÉD eus que sopra em algum a coisa.
tações da criança dificilmente conseguem - Com o quê? - Não sei. - Como o vento faz? -
colocar uma coerência, visto que elas pró­ F az frio."
prias são, com freqüência, ambivalentes e re­ P...et? “O que é o vento? - É quando fa z
versíveis. O que a criança imagina ou aquilo frio. - Quando não faz frio, não tem vento? -
'•ff

486 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Não, senhora. - É o frio que faz o vento ou o P...et; “Como você vê que tem vento? -
vento que faz o frio?-É o vento q u e fa z ofrio. Precisa terfrio. - E o que mais? - Q uando os
- Onde está o vento? - Está no céu. - De onde pedaços de papel voam .”
ele vem? - Do céu.” L...out 6; 1/2 “A gente vê o vento? - Não.
Mais raramente, a causalidade é atribuída - A gente vê que ele mexe as árvores e que fa z
ao frio. as folhas voarem.”

A...aud 6; “O que é o vento? - Q uando Assim como, no exemplo anterior, “quan­


fa z frio, tem vento. - E por que tem vento? - do” é um simples sincronismo dos pedaços
Porque é inverno. - O que quer dizer “é de papel que voam quando há vento, aqui,
inverno”? - Porque fa z frio . - E de onde vem o vento mexe as árvores, expressão um pou­
o frio? - Do céu.” co vaga, onde a simples coincidência per­
ceptiva parece prevalecer sobre a relação
Acausalidade é, algumasvezes, marcada causai.
por uma simples diferença de intensidade.
D...ne 6; 1/2 “Como a gente vê que está
N...et 6; 1/2 “Como a gente sabe que tem ventando? - A gente vêpoeira. - E quando não
vento? - É porquefaz frio. - O vento é a mesma tem poeira? - A gente vê o sol. - Mas e à noite?
coisa que o frio? - Não, senhor, é m ais frio. - - Fica de noite, a gente não pode ver mais. -
É o vento que é mais frio ou o frio que é mais A gente não pode ver o vento? - Pode, porque
frio?-É o vento. - O que faz o vento? - E lefaz ele sopra, e depoisfa z frio. - Quando você está
um friogrande. - Não faz outra coisa? A gente dentro de casa, você não pode saber se tem
não pode ver se está ventando quando está vento à noite? - A gente fic a na cam a e fic a
numa sala? - Não, eu não posso ver. - Como coberto, e depois as janelas ficam fechadas. A
você sabe que tem vento? - Q uando a gente gentefecha, não pode saber. - Às vezes eu sei
está na rua, a gente sente frio .” que tem vento à noite. - Q uando a gente está
descoberto. - Como eu posso saber que tem
Como a fonte do frio está no vento e vento quando estou coberto e a janela está
como o vento tem o poder de aumentar o frio, fechada? - Q uando a janela está aberta. - E
ele é mais frio que o próprio frio. Salvo essa quando ela está fechada também? - Às vezes,
diferença, sua ligação parece exclusiva, o quando a gente levanta, depois a gente sente
vento só pode ser conhecido pelo frio, não frio. A gentepçde fic a r doente. - A gente não
tem outro efeito.- É uma causalidade que escuta o vento? - Escuta, às vezes, a gente
ainda está bem próxima da identidade. escuta elesoprar. No m artambém , têm caran­
Contudo, com freqüência, a criança guejos no m ar.”
acrescenta ao frio efeitos mecânicos. A...aud,
6; que explica o vento através do frio e o frio “Ver”, tomado em seu sentido literal, ori­
através do inverno, diz também que o vento enta a criança, no início, unicamente para os
empurra os barcos. P...ot, 6; que atribui, pelo efeitos visíveis do vento, a poeira levantada,
contrário, o frio ao vento, reconhece-lhes e depois, por oposição ao sol. É necessário
também uma ação destrutiva. suprimi-los pela hipótese da noite para que a
criança retorne à associação mais habitual do
“Como o vento faz? - F azfrio. - O vento vento, o frio, e atenha-se a ela até a pergunta
é forte? - Não..., têm vezes que ele quebra específica sobre a possibilidade de escutá-lo.
tudo. - Como ele podoquebrar tudo? - Porque, Então, sobrevêm a digressão sobre o mar e
às vezes, Deus sopra fo rte e, às vezes, ele não os caranguejos. Todo esse conjunto mostra a
sopra.” pouca força evocadora que a representação
CÉU, SOL-LUA, VENTO 487

do vento possui no campo perceptivo, que é, origem ou a natureza do vento. Após tê-lo
contudo, aquele no qual se move espon­ traduzido através de uma simples ação na
taneamente a criança. Porém, as imagens são forma neutra, a criança evoca as árvores, mas
invocadas p o r simples reminiscência e não de maneira alternada, como se o movimento
por em anação em tom o de um mesmo objeto. do vento viesse das árvores ou o das árvores
Dessa forma, o objeto conserva algo de in­ do vento. A palavra que parece responder
completo e de disparatado, sobretudo se é, verdadeiramente ao seu sentimento é “com”.
como o vento, quase impalpável e imaterial. Não há vento se não há árvores, mas a origem
do vento não está nas árvores. Vê-se a difi­
S...itch 6; 1/2 “O que é o vento? - Q uem culdade que o vento tem para libertar-se de
fa z as flores caírem. - Como? - As flores que efeitos sensíveis, de objetos tangíveis, e a
tombam. - Como ele faz? - É quando a flo r é hesitação que suas relações com eles pro­
grande demais, a flo r cai. - Mas e o vento? - vocam.
Não sei. - De onde vem o vento? - Nas velas.
- Por que tem vento nas velas? - Porque fa z A...dre 6; “O que que é o vento? - São
frio. - De onde vem o frio? - No inverno. - Por árvores. - Como você sabe que tem vento? -
que tem frio no inverno? - É quando tem a Pelas árvores. - O que a gente vê? - As folhas.
tempestade. - De onde vem a tempestade, o - O que as folhas fazem? - Elasfa zem vento. -
que é? - É quando chove." Se não existissem árvores, não haveria vento?
- Não.”
Efeitos mecânicos do vento e frio são,
aqui, misturados, mas sem a menor coesão. Aqui, o pensamento é ainda mais elípti­
As imagens sucedem-se, sem ligação mútua e co, menos organizado: no início, há o par
com cada uma delas se completando por si identidade “o vento são as árvores”, depois,
mesma.- as flores tom badas pelo vento, gran­ há a dependência causai do vento face às
des demais para ficarem de pé, as velas que árvores. Na realidade, parece que a criança
ele infla, o frio, o inverno, a tempestade, a apenas introduz uma relação comum entre
chuva. Entre esses termos, entre as perguntas dois termos que se oferecem a ela com­
e as respostas, há locuções vagas ou im­ binados. O vento ainda não é nada, a não ser
próprias. “Quando” substitui a causalidade que esteja acoplado a um objeto ou a um
pela concomitância. “Nas velas”, que respon­ efeito. Essa é a forma mais elementar do
de à pergunta “de onde vem o vento?”, subs­ pensamento sincrético.
titui unde por quo.
D...et 6; “O que é um terremoto? - É a
P...in J. 6; 1/2 “O que é o vento? - Ele terra que se mexe. - Por que ela se mexe? -
sopra. - Como ele pode soprar? - Sopram. - O Porquefa z m uito vento. - É o vento que faz os
que é que sopra assim? - As árvores. - Como terremotos? - É. - Se faz vento, têm terremotos?
as árvores podem soprar? - Com o vento.-É o - Não, é quando fa z m uito vento. - Como o
vento que faz as árvores soprarem ou é o con­ vento faz para que tenha um terremoto? - Vú,
trário? - É o vento que fa z as árvores sopra­ ú, ú .-Como o vento pode fazer a terra tremer?
rem.- De onde vem o vento que faz as árvores - Ele sopra da terra. - ...É só no mar que têm
soprarem?... Se não existem árvores, não tempestades?-Ü.-Ena terra? - Têm terremotos.
existiria vento? - Não. - Onde não têm árvores, Não têm ondas. - O que é que faz os ter­
não tem vento? - Não. - Então, o que faz o ven­ remotos... Como é que acontece um ter-
to?. .. Você não sabe o q u e faz o vento? - Não.” _ .remoto?- Porquef a z m uito vento, m uita chu­
Aqui, ainda, há grande incerteza sobre va, tempestade. Tem m uito na Alem anha.
as relações e, por conseqüência, sobre a Têm casas grandes.”
488 AS ORIGENS DO PEN SA M EN TO NA C R IA N Ç A

Ao contrário do exemplo anterior, o vento to-ar, a criança responde à sugestão do vento


parece ser, aqui, encarado como uma força em movimento através da noção de sua
cujos efeitos são diferentes conforme o objeto ubiqüidade, que traduz, sem dúvida, uma
que ele toca, tempestade no mar e terremoto impressão de expansão e de fluidez, com
no solo. Contudo, as circunstâncias ainda se espaço e força misturados.
encadeiam gradualmente, segundo o modo
sincrético. G...ain 6; “O que é o vento? - £ a r . - E o
Pode produzir-se, enfim, como que uma ar? - É vento. - De onde ele vem? - Vem de
inversão: o vento não é mais constatado, mas longe. - Como é que ele se mexe? - Porque tem
suposto. Ele substitui as experiências reais. algum a coisa que f a z ele vir. - O que é essa
Torna-se um a força cuja existência é afirmada alguma coisa? - É a r mais forte. - Como o ar
unicamente pela necessidade de explicar o pode ser mais forte? - Ele em purra o vento. -
efeito. Como ele pode ser mais forte para empurrar
o vento? - Porque é a r vivo. - De onde vem
G...el 6; “Você já viu o Sena? - Já. - Ele se esse ar vivo? - Vem de um lugarfrio. - Por que
mexe? - Mexe. - Como? - Ê o vento. - Como o ele não fica no lugar frio? - Porque, às vezes;
vento pode fazê-lo se mexer?... Quando não ele vai embora, ele vai para todos os lados.”
tem vento ele se mexe? - Não. - Ele anda? -
Anda. - Sempre para o mesmo lado? - É.” Assim como a criança anterior, esta passa,
do par vento-ar, para a representação de
O vento, dado como causa à corrente, espaço: “vem de longe”. E é através dela que
impõe-lhe sua intermitência. A combinação ela termina a conversa, “ele vai para todos os
deles furta-se ao controle da experiência. lados”, após ter tentado diferenciar o vento
Tem algo de absoluto, como aqueles pares como ar mais forte, vivo, vindo dos lugares
cujos termos só possuem relação um em frios, seqüência de epítetos que a leva, do
relação ao outro. impulso exercido pelo vento, à sua associação
habitual com o frio.
Z...ni 9; “Aágua do Sena se mpxe?-Mexe.
- O que a faz se mexer? - O vento}- O que faz N...é 6; “O que é o vento? - Ar. - E o ar? -
o vento se mexer? -E le se mexe sozinho. - De Vento. - De onde vem o vento? - Do céu. - Ele
onde vem o vento? - Não sei.” vem do céu como a chuva? - É. - O vento é
forte? - É. - Por que você diz que ele é forte? -
Neste caso, ainda, o vento é a força ne­ Porque ele f a z as árvores caírem. - Como é
cessária para explicar a corrente. Explicá-lo, que a gente não o vê? - Porque é fum aça. Faz
seria fazê-lo entrar em uma outra série de cau­ fu m a ça e a fu m a ça sobe até o céu. - Então, o
sas e de efeitos. A criança atém-se a esses dois que é a fumaça? - Vento. - De onde vem a
termos complementares. O par é um sistema fumaça? - Dosfo m o s.”
fechado.
O próprio vento pode ser completado Ainda uma vez, o vento e o ar são ex­
pelo espaço onde se desloca. plicados um pelo outro e o céu parece fazer
as vezes do espaço. É dele que o vento vem,
M...in 7; “O que é o vento? - É ar. - Ar mas, primeiro, este sobe até ele sob a forma
como?... - O vento se mexe? - Mexe. - Como? de fumaça. Há duas contradições aparentes:
- Ele vai para todos os lados. - Como isso o vento oriundo, ao mesmo tempo, do céu e
acontece?...” dos fomos, e sua invisibilidade, expressa
pela fumaça. Contudo, a ambivalência é fre­
Inicialmente presa no par sinônimo ven- qüente na criança: a fumaça empurrada pelo
CÉU» SOL-LUA, V EN TO 489

vento tom a seu movimento sensível e acaba Essa criança não parece nem mesmo
nele se dissolvendo; a dupla corrente do apreender a analogia entre o vento “sopro" e
vento concorda com as fórmulas anterio­ o vento “do céu”. A expressão um pouco
res: “ele vai para todos os lados”. Como no confusa “os outros do lado” parece traduzir
exemplo anterior, ele é dotado de força me­ bem sua impressão de coisas sem relação
cânica. Não há nenhuma tentativa de ligação entre si.
entre esses diferentes traços.
B...re 6; “O que é o vento? - Não sei. -
D...pe 5; “Como você sabe que tem ven­ (Agitamos folhas de papel.) O que é isso? -
to? - Q uando fa z frio . - O que o vento faz, Folhas de papel. - (Recomeçamos.) - É vento.
quando a gente está na rua? - No céu. ” - Onde está o vento? -Lá em cim a. - O que ele
faz? - Elef a z asfolhas, os papéis voarem. - E
Nesta criança muito nova, os temas apre- então, o que é o vento? - É vento. ”
sentam-se sob a forma mais despojada, mais
elíptica: o vento e o frio, o vento e o céu. Aqui, pelo contrário, há uma identifica­
ção completa entre o vento produzido com a
D...ne 6; 1/2 “O que faz o vento se mexer? mão e o vento natural. A criança o coloca
Como ele se mexe? - Ele vem sozinho. - Como imediatamente no céu, embora produzi­
o vento pode vir sozinho? Ele sabe o que do perto de seu rosto e, invertendo as rela­
quer? - Sabe. - Quando não tem v e n to , onde ções, ela parece supor que o papel é agita­
ele fica? - Escondido. - Onde? - No céu. - É do pelo vento, em vez de colocá-lo em mo­
longe? -É.- Ele é grande? -É.- Onde fica?...Só vimento.
tem um céu? - Só. - Onde a gente vê o céu? -
lá . - O vento está lá em cima? - Está. - O que N...et 6;l/2 “Você sabe o que é o vento?
é que faz o vento sair do céu?... Às vezes tem - Équando agente abre aporta e fa z correntes
vento que não sai do céu?... Todo vento que de ar. - Então, onde está o vento? - O vento
existe sai do céu? - Sai. - Você pode fazer está no céu. - Mas você me disse que é
vento?- Não. - E eu? - Não. - Por quê? - A gente quando a gente abre as portas. - Д mas ele
p o d e f a z e r ven to c o m u m leque. ” vem. - Como ele vem? - Ele vem assim. (Gesto
com a mão, para trás eparafrente, p o r cima
O céu é, aqui, o espaço onde o vento da cabeça.) - A gente pode fazer vento
deixa de ser ativo ou de ser percebido. Ele é, (sopramo-lhe nos cabelos)? - Pode, a gente
no início, a sua única origem. Mas a criança pode fa z e r vento. - É a mesma coisa que o
muda de idéia, o vento também pode ser vento do céu? - Ah, não! É m ais frio . - Qual é
produzido com um leque. Por outro lado, ela mais frio? - O vento que vai para o céu. ”
não indica nenhuma ligação nem entre esse
vento artificial e o vento natural, nem entre o É ainda no céu que a criança coloca o
vento “escondido” e o vento efetivo. vento, embora o defina como a corrente de ar
Certas crianças distinguem radicalmente produzida, no apartamento, pela abertura de
o vento artificial do vento atmosférico e, fre­ uma porta. Indiferentemente, o vento “vem
qüentemente atribuem sua origem comum do céu” e “vai” para lá. Direção ambivalente.
ao céu. Só parece importar a associação vento-céu.
M...ti 6; “Como a gente toca uma música? Mais do que uma relação mecânica, é uma
- A gente sopra. - O sopro é vento? - Não. - Não espécie de participação que lhe une os outros
é a mesma coisa? - São os outros do lado. - De ventos. O que sai de sua boca, contudo, é
onde vem o vento de fora? - Do céu. - Tem deles distinguido devido a sua tepidez, dis­
muito vento no céu? - Tem. " tinção puramente qualitativa.
490 A S O R IG EN S D O PEN SA M EN TO N A C R IA N Ç A

D...ne 6; 1/2 “De onde vem o vento que Quaisquer que sejam a origem e^o me­
está nas portas? (corrente de ar). - Vem do canismo do vento, a associação céu-vento
céu. - E o vento do leque? - Porque agente fa z persiste.
assim (gesto de m anejar o leque). F az frió e
tem vento. - Como é que, fazendo assim, vem G...ain 6; “A gente pode fazer vento? -
vento?... Eu posso fazer vento de outro modo? Não... Com um leque a gente pode fa z e r
- Não. - (Sopramos.) É vento? - É. - Como se (gesto de abanar). - Como você sabe? - Me
faz isso? - Porque tem ar, a gente sopra e isso mostraram. - Quem? - Um homem. - Como a
fa z vento. - Onde a gente tem ar? - Na boca. gente faz? - A gente fa z assim. Cada vez que
- Como a gente pode ter ar na boca? - a gente fa z assim, tem vento. F az vento. -
Respirando, e depois a gente sopra. Q uando Quando a gente não faz assim, onde fica o
a gente respira, ò a r desce e depois a gente vento? - Tem assim m esm o, q u a n d o a g e n te
sopra- Onde estava o ar antes de descer? - No não fa z assim. - O nde ele fica? - Ele fo i
céu. - Eu posso procurar o ar no céu? - Não. - embora. - Mas e quando a gente faz assim? -
Então, onde eu posso pegá-lo? - É quando a Q u a n d o a g e n te f a z assim , tem ven to q u e
gente respira, o a r vem. - Mas e antes de vir, volta. ”
onde ele estava? - No céu. - O céu fica longe?
- Fica. - Onde? - Lá em cim a. -... Onde fica Não há indicação local aqui, mas a de
esse vento quando ele já soprou? - No céu. ” uma existência substancial, de certa forma
indefectível, que supõe, necessariamente, â
Exatamente como a criança precedente, migração, para outro lugar, daquilo que de­
esta começa colocando as correntes de ar do saparece. Se o vento não é produzido pelo
apartamento no céu. Quanto ao movimento movimento do leque, se não deixa de subsistir,
do leque, ele lhe faz produzir o frio, que é preciso, então, que, não percebido, tenha
invocaria o vento. Sem dúvida, essa sucessão algum lugar para onde possa se retirar e de
nada tem de mecânico e traduz, muito mais, onde possa ser chamado. Essa é, sem dúvida,
uma concepção sincrética. Para o ar soprado, a utilidade do céu como reservatório. A per­
suas relações com a respiração são nitida­ sistência substancial exige a diversidade dos
mente enunciadas, contudo, a despeito dç lugares.
sua distância, o céu permanece como o lugar Essa persistência em si do vento impõe
de onde vem o vento e onde este se conserva. dificuldades à criança, quando esta não se
Provavelmente, essas inconseqüências são decide a assimilar seu sopro e o ar de origem
devidas ao fato de que o céu já significa es­ externa.
paço, mas conserva seus laços com sua loca­
lização sensível. T...ni 6; 1/2 “(Sopramos com a boca) - De
onde isso vem? - Dos pulm ões. - Como? -
G...y 6; “A gente agita o papel (em sua Soprando. - E quando a gente já soprou o ar
frente). O que é? - Vento... Ele está ali dos pulmões, sempre tem vento? - Tem. - Os
(designando sua direita). - De onde vem pulmões são grandes? - São, eles são m uito
esse vento? - Do papel. - Onde ele está agora? grandes. - Mas como a gente tem ar nos
- Foi embora. - Para onde? - Para o céu. - pulmões? - É a respiração pela boca. - Como
Quando eu faço o vento vir, é do céu? - Ê. - a respiração acontece? - Passa pela boca e
Você quer que eu faça vento sem papel? - pela garganta. - Como? - Assim (ela sopra de
Quero. - Você pode fazer? - Não. - Com o que dentro para fora, ou seja, em sentido inverso
eu vou fazer esse veqp? - Com as mãos. - ao da sucessão “boca-garganta ”). - E quando
(Sopramos e ela própria sopra.) De onde vem não tem ar nos pulmões? - A gente morre. -
esse vento?... Você não sabe?... É do céu? - É ” Nunca pode entrar ar nos pulmões? - Pode,
CÉU, SOL-LUA, VENTO 491

soprando em um balão. - De onde vem o ar como se faz o vento? - Não sei. - Sozinho? - É.
soprado no balão? - Da boca. - Mas pode - (Sopramos.) - De onde vem esse vento? - Ele
entrar ar na boca? - Não. - Nunca? - Não. - voou. - Mas de onde ele vem? - Da boca. -
Quantos balões você poderia encher com o Onde ele estava antes? - Na boca. - Ele sempre
ar dos seus pulmões? - Uma dúzia. - E você esteve na boca? - Sempre. - Como é que a
não teria mais ar nos pulmões? - Ah, sim ! gente não o está sentindo agora? - Ele não está
(sorriso). -E se você enchesse muitos balões voando. -O q u e o fa z voar? - Ele voa sozinho.
com todo o ar dos seus pulmões? - Eu morro. - (Sopramos.) É o vento sozinho ou eu? - Foi
- Como é que você tem ar nos pulmões? - Da você que fe z ele voar. - (Agitamos uma folha
respiração. - Mas onde a gente consegue o ar de papel diante de seu rosto.) - É o vento do
dos pulmões? - No lado de fora. - Por onde papel. - Onde está esse vento? - No papel. -
passa o ar? - Pela boca. - Mas, então, você Mostre onde ele está. - Não sei. - Ele está no
coloca ar nos seus pulmões? - Não. ” papel ou não? - Não está no papel. - Onde ele
está então? - Lãfo ra (ela mostra o outro lado
As contradições são numerosas. A criança da janela). - E agora? (agitamos o papel). -
desdiz suas afirmações formais. Na realidade, Dentro da casa. - E agora? (papel em repouso).
ela parece justapor ou misturar, mas de - Láfora. - Então, eu preciso mexer no papel
maneira estanque, o vai-e-vem respiratório e para fazê-lo voltar? - É. - E de onde ele vem?
o ar que ela sopra. O ar soprado seria ines­ - De fora. - Como ele vem aqui? - Pelo papel.
gotável: persistência substancial; mas quando - Como assim?... E agora, onde está o vento?
os pulmões estão vazios, sem o ar respiratório, - Lá fora. - Como a gente o faz voltar? - Pelo
a gente morre. É soprando em um balão que papel. - Como isso pode acontecer se as
se faz o ar entrar nos pulmões: inversão de janelas estão fechadas? - Não sei. - Você
efeito, como é, aliás, freqüente na criança, e saberia fazer o vento de fora vir aqui? - Saberia,
que é favorecida, aqui, talvez, pela impressão com leques. - E este vento aqui (sopramos),
conjugada de dilatação torácica e de contra- ele vem de fora? - Não. - Eu sempre tenho
pressão oposta pelo ar já insuflado no balão. vento na boca? - Sempre. - O vento que está na
Há contraste entre a possibilidade quase minha boca e o outro são o mesmo, vento? -
indefinida de.repetir o ato de encher o balão São. - Quando ele voa, ele vai embora da
e a capacidade, apesar de tudo, limitada de minha boca? - Vai. - Então ele não fica mais
seus pulmões; donde a redução, a doze, do aqui? - A inda tem. - Mas e se eu soprar todo
número de balões a serem enchidos, mas o vento da minha boca? - Não vai ter mais. -
com sobrevivência de ar nos pulmões. Origem Eu não poderia soprar nunca mais? - Poderia.
externa do ar, mas impossibilidade de in­ - Como? - Com o vento de fora. - O vento da
troduzi-lo nos pulmões. minha boca e o vento de fora são a mesma
coisa? - São. - Para que eu faça o vento ir para
L...our 6; 1/2 “O que faz o vento? - Ele voa. a minha boca, eu preciso abrir a janela? - É. -
- Onde ele está? - Ele está na rua. - Ele vai para E com o papel? - Não. - E com a boca? - Não.
algum lugar? - Em todo lu gar. - Ele vem de Fragmentada, essa seqüência de respostas
algum lugar?... Você não sabe de onde ele poderia servir para demonstrar a existência
vem? - Não. - Sempre tem vento?... De onde o de opiniões diferentes nitidamente expressas.
vento vem quando tem vento? - A gente fic a Após algumas hesitações, a criança enuncia
em casa. - Sim, mas de onde o vento vem? - uma explicação para cada caso particular,
Não sei. - Quando não tem mais vento, onde não parecendo sentir uma necessidade pre­
ele fica? - Ele vai embora para m ais longe. - A mente de unidade. O mesmo objeto dá lu­
gente pode fazer vento? - Não. - Ninguém? - gar, dessa forma, a razões sucessivas, com
Não. - O vento sempre existiu? - Não. - Então, freqüência pouco conciliáveis entre si. Para o
492 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

vento atmosférico, ela admite, sucessivamen­ empréstimo, através da janela fechada, do


te, sua ubiqüidade, seu desaparecimento pelo vento da rua, o que não pode ser explica­
distanciamento ou pela extinção, ou seja, ao do fisicamente, mas substancialmente, por
mesmo tempo, sua persistência e sua não- uma espécie de participação qualitativa ou
persistência substancial, sua geração es­ conceituai. Assim, ela combina ou contraria a
pontânea. Para o vento da boca, ela admite, sobrevivência material, as migrações, a pro­
alternadamente, sua origem substancial no dução autônoma. Espaço, substância, ação
corpo e sua renovação pelo ar exterior. Para ainda são modos de pensamento que se subs­
o vento do papel, sua inclusão no papel, por tituem ou se opõem, em vez de se integrarem
ela rejeitada, aliás, imediatamente, e seu entre si.
CONCLUSOÈS E COMENTAMOS

Um contraste surpreendente no com­ O PROBLEMA DAS ORIGENS E


portamento intelectual da criança é sua fácil SUAS ANTINOMIAS: O TEMPO E O SER
familiarização com a estrutura e o mecanismo
das coisas que pertencem diretamente à sua A atitude antinómica que persiste a res­
esfera de atividade e sua incapacidade para peito do problema das origens é a prova de
realizar a representação coerente do que não que este ainda pertence, para o adulto, ao
pôde ser o objeto de uma experiência quer campo das ultracoisas. Fixismo e transformis­
completa, quer apenas simultânea. Face às mo afrontam-se. O fixismo atém-se às formas
coisas que existem para ela imediata e to­ de existência e de causalidade observáveis
talmente, há, portanto, o que ultrapassa os nos seres tais como são, se produzem ou se
dados sensíveis: são as ultracoisas, que é reproduzem no momento. Procurar a origem
necessário construir segundo os dados do é, portanto, ou remontar indefinidamente do
real, mas de maneira diferente. Há, ainda, semelhante ao semelhante, ou reconhecer o
ultracoisas para o adulto, por exemplo as início absoluto do tipo presente. Fiat incon­
questões de origem. Naturalmente, não se dicional, sob qualquer nome que lhe seja
trata de saber se a criança pode ou não re­ designado o princípio e quaisquer que sejam
solver esses problemas, mas de ver sua ma­ as atenuações aplicadas à suposta fixidez do
neira de reagir a eles. Um outro problema, real. Atitude inversa, o transformismo busca
cujos dados também lhe escapam, é o do resolver a antinomia, não imaginando um
crescimento, da vida e da morte. Certas ultra­ princípio de transformação, uma essência em
coisas que perderam esse caráter para o adulto, potencial, tão miraculoso quanto seria o prin­
conservam-no para a criança. Os astros, por cípio de criação extemporânea, mas admitin­
exemplo, não o são mais para o astrônomo do a mudança nos modos de existência,
munido de suas lunetas e de seus cálculos, assim como na morfología ou nas funções,
nem as intempéries para o físico, para o cul­ uma mudança condicional, que resultaria de
tivador, para o navegador. Contudo, para a certas conjunturas, cujos elementos teriam,
imaginação da criança, o esforço a ser feito todos, sua origem no estado anterior, mas
nesse campo é, de certa forma, incomensu- cujas conseqüências seriam o advento de
rável em relação a suas aptidões. Os contra- estruturas novas, que implicariam ciclos de
sensos ou os absurdos a que a levam as ex­ existência1,tipos de causalidade diferentes da
plicações do adulto atestam esse fato. conjuntura inicial. Não é indispensável, na
494 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

verdade, que o mesmo seja oriundo do mes­ na confusão do tempo e do ser, é fazer com
mo. As formas de existência podem sobrepor- que a função cronológica imponha suas con­
se e, mesmo procedendo das inferiores, cada dições ao ser. Como esta é simples poten­
uma das superiores pode inaugurar um mun­ cial, é preciso que ela nunca pare e que es­
do de causas e efeitos diferentes. tenda o ser para além de todo limite con­
O problema das origens sobrepõem-se cebível. Contudo, essa confusão do potencial
ao do tempo e não pode, naturalmente, ser e do fato é a última a acontecer. O tempo
resolvido antes dele. É dele mesmo que recebe potencial supõe outras etapas, que lhe foram
suas antinomias. Pois no início do pensamen­ necessárias para se liberar dos fatos par­
to, não estando diferenciados o ser e o tem­ ticulares, das durações ligadas a cada exis­
po, não se poderia indagar quando e nem tência; para estabelecer sucessões precisas;
como o ser começou. Seu início é coextensi- para reduzir, entre si, sucessões, séries ini­
vo com sua existência, e sua existência calca­ cialmente distintas e sem medida comum.
se num início sem início. Assim, os ancestrais Eis as dificuldades que se manifestam na his­
do clã são o próprio clã, embora já dele dis­ tória das crenças e na filosofia, mas cujo ves­
tinguido como sua razão de ser e seu fun­ tígio pode ser encontrado também na crian­
damento ocultos. O ser dissolve em sua ima- ça.
nência aquilo que veio após o que existiu e A primeira antinomia é a de sua própria
reduz a anterioridade ao que é e continua a duração e das outras durações. A su aéa única
ser. Ainda não há, na verdade, tempo. É com que ela conhece ¡mediatamente e por meio
a ruptura da imanência que surgem os pri­ da qual as outras lhe são acessíveis. A sua
meiros germes de contradição. Os ancestrais duração ainda não se diferencia de sua exis­
separam-se dos seres atuais; é preciso fazê- tência, que é o único meio através do qual a
los recuar para fora daquilo que é ou se criança participa do real. Confundindo sua
transforma; daí o tempo próprio aos ances­ intuição com os objetos que ela lhe revela, ela
trais, que é um tempo extratemporal. É ape­ considera sua existência e sua duração como
nas quando o tempo consegue distinguir-se a medida do que existe e do que foi ou será.
completamente do ser, quando deixa de estar Ainda está em uma fase de imanência pessoal,
ligado a cada espécie de seres como uma de onde é contrária à idéia de que algo, de que
suas modalidades e quando se torna um meio um ser qualquer tenha podido precedê-la.
onde deve se ordenar a sucessão dos seres, Normalmente, ela se considera anterior a seu
que surge o dilema de uma regressão ilimitada pai. Contudo, ao lado do eu, há o meu. Su­
para um primeiro início, que fatalmente sem­ jeito, a criança considera-se como a autora
pre é ocultado, ou de um início absoluto, que ou a medida de toda existência. Objeto, ela
carregaria consigo a negação do tempo cro­ própria pertence ao que existe e ao que sua
nológico. própria existência supõe antes dela, a casa,
O tempo cronológico nasceu, mas sob a por exemplo, onde nasceu. Essa casa exige
forma de um tempo efetivo, exposto, procu­ um pedreiro e assim por diante. Ela se en­
rando seus limites, os quais, devido ao seu contra, assim, indecisa entre um ponto de
conceito, jamais atingirá especulativamente. vista e outro, entre o início subjetivo e o an­
Pois ele é função, potencial. É a afirmação de tecedente imposto pelo conjunto mental de
que tudo o que existe ou é suscetível de exis­ imagens. A redução lógica dessa contradi­
tir deve nele ordenar-se. Descobrir que coi­ ção exigia que ela estabelecesse uma ordem
sas aconteceram antes de outras é o único de sucessão entre os seres ou fatos e que ela
meio de explorar os lirftites do tempo. Partir mesma aí se ordenasse. Mas essa é, pre­
do próprio tempo, pesquisar se o tempo tem cisamente, uma aptidão que ainda não pos­
ou não limites, é recair, em sentido inverso, sui.
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 495

Ela se limita, portanto, a justapor, entre si, assim, ela acredita evitar a contradição de
as ilhotas de representação: recém-nascido uma atividade humana que seria anterior à
hospital, hospital pedreiro etc. A cada vez, luz, remontando a iluminação elétrica, su­
dois termos complementares, que não ape­ cessivamente, à querosene, ao óleo, à vela,
nas permanecem como que exteriores aos onde acaba se apoiando, assim como se apóia
pares vizinhos, mas que podem parecer, eles no artificialismo em sua explicação dos fatos
próprios, como que fora do tempo. Simples naturais, sem lhes encontrar realmente um
necessidade de pensar um ao mesmo tempo primeiro termo.
que o outro. Ou, se houver sucessão, é ape­
nas o contraste de um antes e de um depois. FRAGMENTAÇÃO EMPÍRICA
Da mesma forma, a duração permanece frag­ E CONFUSÕES LÓGICAS
mentada em durações particulares. Confunde-
se com a existência reconhecida em cada ser Ligada que está a imagens empíricas, ela
ou em cada objeto. As relações da parte como justifica diferentemente as origens, não apenas
o todo ainda não são questionadas; cada para objetos diferentes, mas também para
duração é um todo. As coisas pensadas só o objetos próximos e, por vezes, para o mesmo
são em um único plano. São simples silhuetas objeto, conforme o aborde por um lado ou
sem ligação, e às quais falta uma base que outro de sua representação. Para as plantas,
permitiria ordená-las entre si. ela as explica, com freqüência, pelas sementes
A origem é a existência inserida no tem­ que foram postas na terra, mas, muito mais
po, é seu início no tempo. Mas o tempo e a raramente ela sabe que a semente é extraída
existência permanecem confundidos, é im­ da planta: conhece melhor a semeadura do
possível que uma relação seja estabelecida de que a colheita. Se sabe que o grão está ligado
um a outro. Assim se explicam as contradições à palha, relação puramente estática, não chega
em que a criança cai incessantemente: conflito ao grão-semente. É na loja que é preciso
da duração que toda existência implica e da buscar a semente e, de vendedor em vende­
sucessão que deve explicá-la, conflito da dor, acaba remontando até o fabricante e, por
causa primeira e dos antecedentes ao infini­ vezes, até a substância que serve para a fa­
to, ocasionado pela noção de causa, conflito bricação, por exemplo, a cenoura de que
da identidade própria a todo ser imaginado seriam feitas todas as sementes. Quanto mais
e das condições diferentes dela que deve­ nova a criança, mais freqüente é a origem
riam precedê-la. Para integrar uma duração mercantil ou artificialista, e mais unilateral é
em uma sucessão e a sucessão na duração, também a relação semente-planta.
seria necessário que a criança fosse capaz de O que é surpreendente é a ausência de
extrair o tempo das coisas, constituindo, a generalização. A mesma criança que explica
partir disso, a ordem que deve conter toda a semenete através do fabricante sabe que a
existência real ou possível, porque é estra­ cerejeira pode brotar de um caroço de cereja.
nha a toda existência particular. Para expli­ As sementes, qualquer que seja a planta,
car o início do que existe, seria preciso saber podem ser produzidas indistintamente pelo
integrar as coisas presentes em uma ordem mesmo arbusto, um “sementeiro”. A função
de condições onde elas possam se despojar reprodutiva isola-se, dessa forma, de toda
de tudo o que constitui sua individualidade especificidade, visão parcial bem diferente
efetiva e sensível. Tudo o que a criança po­ da abstração. A própria especificidade pode,
de fazer é repetir sua imagem das coisas aliás, ser reduzida a diferenças de lugar. O
indefinidamente na ordem, quer do tempo, espaço pode, ainda, explicar, por si só, a
quer da causalidade, termo após termo, sem origem, seja porque a profundidade de onde
reduzi-las, todas juntas, àrazão comum delas: surgem as plantas pareça explicar que elas
496 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

saiam do nada, seja porque a ubiqüidade das dor em vendedor, de vizinho em vizinho, do
plantas espalhadas por toda parte permita re­ campo à cidade e vice-versa, sem encontrar,
nunciar à procura do primeiro vendedor que naturalmente, um primeiro termo, mas talvez
tenha podido fornecê-las aos outros vende­ dando a si mesma a ilusão de que o retomo
dores. É uma espécie de evasão em um es­ dos mesmos termos faz-lhe fechar o ciclo. Ela
paço indeterminado, assim como a resposta não sabe, na verdade, elevar-se do sucessivo
“isso sempre existiu ”, que parece peremptória à série, ou seja, à razão do agrupamento, à sua
para alguns, o é no tempo. É também na significação organizada. Um outro meio de
direção de uma pequenez crescente que se se enganar sobre a passagem indefinida do
pode fazer a procura da origem primeira. Na mesmo ao mesmo é multiplicar as imagens, a
semente, encontra-se uma outra menor. Mas do mercado, por exemplo, onde há numero­
a criança pára rapidamente, pois não sabe sas gaiolas onde estão as galinhas, assim
levar para muito longe essa regressão ao como, para as sementes, ela chega a reduzir
infinitamente pequeno, que se furta à sua sua origem derradeira à sua ubiqüidade. As­
imaginação. sim, ela pensa em mergulhar, em uma plurari-
A tendência mais habitual, que parece dade efetiva e vaga, uma seqüência de que
responder mais diretamente aos esquemas sente a impossibilidade de atingir o final, si­
experimentais da criança, é o artificialismo. tuando no espaço o que existe no tempo. Se
Não apenas ela explica com freqüência, a chega à fabricação, isso ocorre através da
origem das plantas unicamente através de chocadeira, mas precisa do ovo, e para o ovo,
sua rega, que é a operação à qual assiste mais da galinha. Sem dúvida, essa alternância recua
freqüentemente, mas também fará sair in­ indefinidamente o problema da primeira ga­
distintamente, da serraria, as árvores e as linha. Pelo menos, ela parece simples. E no
tábuas e, por vezes, dirá que a árvore é feita entanto, um grande número de crianças não
com tábuas ou até mesmo com os fragmentos sabe enunciá-lá. Elas conhecem, por exem­
de uma mesa. Através de uma inversão se­ plo, a ligação galinha-ovo, mas não a do ovo-
melhante, ela dirá que o sal do mar vem das pintinho. Conforme a imagem 'mais familiar
ostras. Chegará até mesmo a sustentar que, para a criança, é a sucessão galinha-ovo ou
para fazer as árvores crescerem, é preciso ovo-galinha que prevalece sobre a outra.
cortá-las e queimá-las. Talvez essa inversão Algumas vezes, as duas coexistem, mas a
seja também o resultado de uma contami­ ligação não é feita: entre o ovo que é botado
nação entre imagens familiares, mas parciais, pela galinha e o ovo chocado, a identificação
esporádias e em desordem: o trabalho dos malogra.
galhos tomado pelo das árvores, a lenha É notável, contudo, que ela pareça
tomada pela madeira que cresceria nova­ mais fácil para os pássaros não domésticos.
mente. Essas confusões mostram o quanto é O ovo é apenas um intermediário entre a
vaga a própria necessidade de encontrar uma mãe e o filhote, não é cindido em dois com­
origem. Se esta se refere, mais freqüente­ plexos de imagens ou de usos. A aderência
mente, à imagem das atividades correntes, ainda forte de suas representações às situa­
pode também transformar-se em qualquer ções globais pesa sobre a aptidão da criança
coisa: uma substância qualquer, como o es­ para ligá-las entre si. A fragmentação resul­
terco, ou lugares indeterminados. tante pode ter um efeito inverso. Se a seme­
Para os animais e, sobretudo, para o lhança do ovo consigo mesmo não o impede
homem, as imagens de que dispõe a criança de ser desdobrado, há casos em que a desse­
são um pouco diferentes. Se se trata das es­ melhança das vacas e dos carneiros também
pécies domésticas, a origem mercantil é a não chega a ser um obstáculo à filiação destes
mais freqüente. A criança remonta de vende­ por aquelas. A mesma criança que se sente
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 497

obrigada a procurar em uma outra espécie a pode ser nem mercantil, nem de fabricação.
origem dos carneiros, acredita no apareci­ O folclore a supre; repolho para os meninos,
mento autônomo, na geração espontânea rosa para as meninas. A criança parece ape­
das vacas. Seu pensamento é como que um nas repetir uma lição aprendida. Ela chega a
alinhavado de noções díspares e, com fre­ justapô-la, freqüentemente, com o que a ex­
qüência, opostas. A criança mistura as im­ periência pôde ensinar-lhe sobre o nasci­
pressões ou conexões empíricas com as mento de um irmãozinho ou de uma irmã-
obrigações lógicas. Falseia umas pelas ou­ zinha. Ou então, faz uma exceção para si
tras, pois ainda é incapaz de coordená-las mesma; deixa a origem vegetal para os outros,
num encadeamento de classe ou de causa. mas se diz nascida de sua mãe. Haveria casos
Por vezes, ela parece até mesmo utilizar, co­ em que ela acrescentaria* à fábula, uma inter­
mo um álibi, a passagem alternativa entre a pretação genital? Em certa resposta em que
ordem natural, que vai do semelhante ao se­ ela associa a árvore ao repolho, poder-se-ia
melhante, e a ordem artificialista, que rompe supor um simbolismo sexual. O fato parece
o círculo, mas que também exige que existam excepcional. Sua raridade, por outro lado,
antecedentes indefinidamente. não permitiria afirmar a ausência de-intuições
Se a criança persegue, desse modo, um genitais na criança. Pois seu comportamento
primeiro termo, isso ocorre, aliás, porque ela de várias facetas, a fragilidade evocadora de
não possui uma idéia bem distinta dele. Para suas representações, sua inércia mental po­
realizar-lhe a noção, seria-lhe necessário ul­ dem deixar transparecer, de seu psiquismo,
trapassar os indivíduos, integrá-los na espécie apenas as reações imediatamente ligadas às
inteira, representar a espécie em sua unidade, condições do interrogatório.
na totalidade de sua existência. Ora, ela só é O problema das origens deve ter, evi­
capaz de imaginar galinhas individuais. A dentemente, menos variedade ao passar dos
primeira galinha torna-se uma galinha per­ seres vivos para as coisas. Mas há sempre a
dida, cansada, vinda de outro lugar e, enfim, mesma justaposição de artificialismo e de
comprada de vendedor em vendedor. A ori­ efeitos naturais, de imagens empíricas e de
gem primeira toma-se, simplesmente, a ori­ noções confusas como que intencionais, de
gem ignorada. Nada poderia mostrar melhor significações realistas e míticas, de elos entre
a tendência da criança para dar os limites de os quais a ordem de sucessão pode inverter-
seu discernimento como limites da existência se, de representações mais ou menos con­
e para confundir limite imperceptível com tíguas que são, alternadamente, misturadas
início. Essa noção inteiramente negativa une- ou opostas. Ostermos da sucessão são unidos,
se à dispersão das sementes no espaço ou à mas sem nada de operatório que indique o
das aves em um mercado. É o refúgio no in­ sentido do processo, sua continuidade, a
distinto. Antes dos oito ou nove anos, a cri­ unidade da série. Assim, sucedem-se os pares
ança sabe reconhecer tão pouco sua igno­ Sena-chuva, chuva-céu, Sena-rio, rio-campo.
rância que pode fazer dela uma explicação A evaporação, que explicaria o ciclo, é rara­
ou, pelo menos, não chega a descobrir os cír­ mente enunciada e, nesse caso, ela mesma se
culos nos quais ela a encerra. Ela parece eva- justapõe ao resto, sem desempenhar um papel
dir-se de um, apenas para cair em um outro. no conjunto: a água do lago evapora, mas a
Ela chega, assim, a romper a alternância ovo- origem da água no céu permanece desconhe­
galinha fazendo com que um galo bote o pri­ cida.
meiro ovo. Mas a mesma dificuldade reapare­ O artificial ismo intervém naturalmente:
ce para o galo, também oriundo de um ovo. a chuva vem dos tonéis que estão no céu;
Com a origem do homem, as possibili­ o Sena flui de um grande tonel que está em
dades de explicação se reduzem. Ela não uma casa; os grupos Sena-rio, rio-água das
498 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

torneiras, água das tomeiras-Iavanderia unfem- seu “quando eu crescer” a propósito de tudo
se uns aos outros. Simples sucessão, sem inte­ o que vê fazer, de tudo o que gostaria de rea­
gração causal. O artifícialismo constitui, aliás, lizar. Contudo, a criança vê seu crescimento
um obstáculo. Ele reduz tudo a procedimen­ subretudo em seus contrastes e não sob forma
tos usuais, enquanto a origem deve ser pro­ dinâmica: os anões e os gigantes de seus con­
curada aquém das aparências presentes. Ele tos demonstram bem como ela fixa, em seres
iria, muito mais, no sentido inverso ao da ex­ distintos de sua própria natureza, o que é
plicação, reduzindo, a práticas correntes, fa­ maior ou menor.
tos que escapam ao alcance humano. O Sena É fora dela mesma que começa a apre­
foi cavado depois do surgimento de Paris. ender o que é o crescimento. Longe de trans­
Quanto a seus autores, eles são declarados, ferir para o mundo exterior a intuição de seu
alternadamente, como mortos ou estando em eu, é primeiro a propósito das coisas e, parti­
repouso em suas casas. cularmente, das plantas, que ela compreende
Essa flutuação entre o atual e o passado que um objeto pode crescer, permanecendo
é acompanhada por um perpétuo cruza­ o mesmo. A assimilação se dá das coisas para
mento entre as séries. Por essa mistura, é em ela, mas não é espontânea. A criança não
parte responsável a pouca coesão das imagens admitirá facilmente que o crescimento seja o
que desfilam no espírito da criança. Não mesmo para si e para as plantas. Freqüente­
apenas as seqüência delas acaba sendo intei­ mente, ela vai querer marcar a diferença em­
ramente disparatada, mas, a propósito do pregando dois nomes distintos: as plantas
mesmo objeto, à medida que este é detalha­ crescem e ela fica grande. Seus cabelos não
do, os traços anteriores ou as operações por crescem no mesmo sentido que as plantas e
que passou parecem ser gradualmente es­ sua progressão contínua é-lhe menos sensível.
quecidas. A criança está totalmente inapta Ela confunde, a propósito deles, tamanho e
para o triplo problema de integração levan­ quantidade. Os cabelos tornam-se grandes
tado pela idéia de origem: integração crono­ porque são muitos. Ou, então, ela opõe os
lógica, integração em uma série de relações cabelos curtos e longos, como se fossem
onde haja alguma equivalência entre os ele­ distintos. O simples contraste e a diferença
mentos sucessivos, integração a condições existencial valem muito mais tempo para eles
de existência diferentes das que conhecemos do que para as plantas. Mesmo para as plan­
através da experiência presente. tas, aliás, o crescimento conserva algo de
descontínuo. A criança liga cada etapa a órgãos
CRITÉRIOS EXTERIORES que acaba aproximando gradualmente, mas
E CONTRADIÇÕES sem apreender o ciclo em seu conjunto: a
semente dá o caule, o caule sai da raiz, a raiz
Casos muito mais simples de mudança da terra, mas, entre semente e raiz, a fusão
são o crescimento e as noções conexas de praticamente não se realiza. A ligação entre
vida e de morte. Referem-se apenas a cronolo­ grão semeado e grão colhido permanece tardia
gias individuais, associadas entre si ou trans­ e, aqui ainda, o crescimento das plantas é
feridas de um para outro. As mudanças são as reduzido à multiplicidade dos grãos.
que podem ser vistas. Nada pode estar mais Se a idéia de crescimento representa
presente na consciência da criança do que o algo para a criança, esse algo é uma simples
crescimento: sua posição entre seus irmãos adição de substância, mas do mesmo ao mes­
mais velhos e mais novos, suas relações com mo: a semente que produz a planta deve ter
seus amigos conformé a categbria de idade, a muitas outras sementes para comer. A própria
sopa que é preciso comer para crescer, as criança precisa de muita carne para crescer.
saias ou calças que se tornam curtas demais, Contudo, o ditado “coma a sua sopa para
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 499

crescer” e suas práticas alimentares tornam- substância que ela invoca como motivo da
na menos rigorosa sobre a natureza das subs­ vida: o que é de madeira não está vivo, o Sena
tâncias que devem acrescentar-se à sua. não está vivo porque é de água, os dentes
Algumas vezes também, concentrando sua porque são de osso e o osso é de madeira, os
atenção no organismo em crescimento, ela pêlos porque são finos. Para o osso e para os
reduz o todo a uma.parte: os dentes fazem pêlos, a mesma criança acrescenta que não
crescer, provavelmente por causa de seu papel estão vivos porque crescem. Provavalmente,
com relação aos alimentos; cresce-se através isso ocorre por assimilação com as plantas e
da pele, evidentemente porque ela é o invólu­ por oposição destas com os animais, segundo
cro corporal cuja extensão é necessária ao sua lógica de identificação e de contrastes em
crescimento. pares.
Quanto à vida e à morte, é também fora Os órgãos, as partes do corpo formam,
de si mesma que a criança, inicialmente, as com freqüência, uma zona intermediária, que
considera. Da vida, aliás, ela tem apenas uma a criança não sabe se é viva ou inanimada,
noção extremamente vaga. É um limite con­ visto que ora os imagina em participação com
fuso que se desloca entre os seres e as coisas o conjunto, ora os considera por si mesmos e
de forma diferente para cada criança e, com funcionalmente incompletos. Por exemplo,
freqüência, para a mesma criança ao longo da as pernas não estão vivas, provavelmente
mesma conversa. Na verdade, como a enu­ porque não poderiam andar sozinhas. Mas a
meração procede por associações globais, o mesma criança, que dissera que tudo o que é
mesmo objeto pode ser, alternadamente, oca­ de carne está vivo, é forçada a concluir que o
sionado por sua proximidade imediata ora pernil está vivo, mas não as pernas. Provavel­
com a categoria da vida e ora com a do inani­ mente, se a carne é, com tanta freqüência,
mado. A criança limita-se, com freqüência, a declarada viva, isso ocorre por causa de suas
definir a vida através da vida, simples consta­ relações com o ato de comer e por confusão
tação ou tautología, mas pode, de maneira entre o passivo e o ativo: o que é comido está
muito precoce, associar, à vida, um outro vivo, porque comer é viver. Assim, uma outra
termo, aliás, variável conforme o objeto: o criança inicialmente diz que as orelhas estão
homem está vivo porque come, as plantas vivas porque comem, e depois porque pro­
porque saem das sementes, a água porque é curam escutar.
corrente. Ao mesmo tempo em que ocorrem Uma outra definição freqüentemente da­
essas associações aos pares, pode entrar em da da vida é o movimento, mas o movimen­
jogo a participação. São duas maneiras de to encarado ora em sua maior generalida­
pensar que parecem contemporâneas. As de de atividade qualquer e ora limitado a uma
partes do corpo estão vivas porque o homem de suas formas mais particulares. Dessa for­
está vivo, o que parece óbvio, embora outras ma, a vida é atribuída ou negada ao sol, por
crianças façam distinções entre órgãos e, uns, porque está em movimento, por ou­
particularmente, entre ossos e carne. Con­ tros, porque não “anda”. Os carros podem
tudo, a torneira de onde flui a água está viva ser declarados vivos, assim como o sol, os
e os peixes estão vivos, p o r q u e a água está cavalos e os cachorros, porque andam. O
vida. simples deslocamento no espaço pode, por­
A aplicação, aos diferentes seres, das tanto, ser sinal de vida, ou seja, o aspecto
razões que a criança dá para a vida, leva-a exterior das coisas e não o sentimento sub­
acontradições, que mostram a que ponto jetivo da ação ou a sensibilidade. Uma cri­
essaé uma noção ainda como que estranha ança primeiramente diz que as pernas estão
a si mesma e como que fragmentada entre mais vivas que as orelhas, depois, reconhece
associações diversas. Freqüentemente, é a que estas também estão vivas porque servem
500 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

para ouvir. Ela invoca muito mais seu-uso do A morte é, sobretudo para ela, um con­
que sua qualidade de órgãos sensíveis. A junto de imagens cujas relações são flutuan­
criança, por vezes, faz aplicações extrava­ tes e reversíveis. Ela se confunde com os
gantes da utilidade como sinal ou razão de funerais: o que constitui a morte é o fato de
vida; exemplos foram dados em um outro ser colocado no caixão, de ser levado ao ce­
capítulo. mitério, de ser enterrado. Certas crianças pa­
Mais ainda que a vida, a idéia da morte recem acreditar que a vida prossegue então,
confunde-se, inicialmente, com circunstância mas sob uma outra forma, por exemplo sob a
exteriores. Ela não parece ser sentida, pela espécie de um bicho que escapa do caixão.
criança, como uma ameaça para seus instin­ Outras falam dos vermes, da carne em putre­
tos de vida. Espontaneamente, a criança ex­ fação, dos ossos que perduram. Uma outra,
clui-se da vida, assim como seus parentes ou ainda, contamina, com o enterro, os afoga­
até mesmo seus interlocutores. A morte é dos, os cachorros mortos, as imundícies do
como que um outro estado; os mortos e os esgoto, e tudo acaba se dissociando na sujeira.
que podem morrer são uma outra categoria Aquelas que falam do inferno, reduzem-no a
de indivíduos. Para admitir que morrerá tam­ objetos familiares, a uma construção em um
bém, é necessário, com freqüência, que a canto miserável da cidade e para onde não
criança tenha passado pela afirmação de que seria aconselhável ir. A imagem não está ape­
todo mundo deve morrer. Isso é o silogismo, nas nas conseqüências ou nas cerimônias da
mas não a convicção da morte. A idéia da morte, está também em suas causas. Donde
morte não é integrada na da vida, ela nada seu caráter constantemente dramático: mor­
tem de universal e de essencial. Representa rer é ser morto, assassinado, envenenado
acidentes, casos individuais. Por mais nu­ ou é perecer por acidente. A necessidade de
merosos que estes possam ser, não são a imagens, e apenas ela, suprime, aqui, o habi­
totalidade: não há um morto em potencial em tual, que é, no tempo normal, morrer em seu
todo ser vivo. O total, assim como o essencial, •leito. A procura, pelo primitivo, do acidente
ultrapassam o entendimento da criança. Se ou do homicida em cada morte possui uma
ela se sente, freqüentemente, indecisa en­ outra origem; está relacionada com uma con­
tre as duas afirmações contrárias da morte cepção mítica da causalidade, com a crença
que se estende a todos ou da morte que em ações e em forças ocultas. Mesmo quando
tem suas vítimas particulares, isso ocorre, a criança define a morte pela imobilidade ou
na realidade, porque ela permanece na zo­ pela insensibilidade, ainda é a imagem que
na do empírico e do particular. Desse for­ ela a reduz: ou ela a explica pelo esmaga-
ma, ela está sempre pronta a fazer exceções, mento do cérebro, ou constata o aparente so­
mesmo quando parece não ter posto em no dos mortos.
dúvida a morte para todos, inclusive a sua. Na realidade, ela não sabe opor a morte
É o que acontece com a criança que não à vida, e tampouco tem, da vida, uma idéia
acredita na morte dos soldados ou dos poli­ estável, coerente ou precisa. Com freqüên­
ciais. Essa idéia só é perturbada pela de cia, ela fala do morto como se ele permane­
seus colegas que poderiam tornar-se poli­ cesse vivo. Se este é colocado no caixão, isso
ciais. Entre as duas categorias que ela opu­ ocorre para protegê-lo contra o afogamento
nha, mortais e polícia, insere-se o possí­ na terra, para preservá-lo do frio, para im­
vel recrutamento de seus colegas, que são pedi-lo de morrer. Ele conserva, pelo menos,
mortais, pela polícia, o que faz que a afir­ um sentimento de mal-estar, a lembrança de
mação quase se invefta, atraVés de uma des­ certas pessoas, de sua mãe, por exemplo, se
ses inversões analógicas, tão habituais na é colocado no túmulo, é por causa de sua
criança. inutilidade. Em suma, a morte só pode ser
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 501

imaginada com a ajuda de circunstâncias deza aparente. Ele está ora no céu, ora nos
mais ou menos espetaculares que, aliás, são olhos de quem o observa, mas nos olhos de
freqüentemente o acompanhamento que os um único sujeito por vez, pois seus outros
vivos lhe dão. Sua representação permanece raios permanecem encerrados nele. As
ligada à da vida, de que está longe de ser a manchas de luz que produz nas paredes não
negação total. É muito mais uma assimilação lhe são relacionadas, parecendo existir por si
atenuada, flutuante ou parcial que prevalece mesmas. Sua ubiqüidade não impede, por­
sobre o contraste. A imaginação da criança é tanto, sua fragmentação no espaço; ele é
realista e positiva, ao mesmo tempo que suas difuso e múltiplo, sem identidade organiza­
representações permanecem confusas e mis­ da. Transforma-se em uma espécie de feno-
turadas. Ela não sabe nem sublimaras imagens menismo perceptivo. Quando a criança sente
da experiência cotidiana para delas fazer os necessidade de corrigir sua grandeza apa­
sinais de uma realidade que as ultrapassa, rente afirmando, por exemplo, que ele está
nem construir significações nitidamente dife­ muito longe e que mesmo um avião jamais
renciadas e coerentes. poderia alcançá-lo, sua correção é ínfima e
não ultrapassa a que a criança faria para um
IDENTIFICAÇÕES objeto do espaço próximo. Seus termos de
VAGAS E CONTRADITÓRIAS comparação só podem pertencer, na verda­
de, ao mundo das coisas que lhe são ime­
Mesmo quando se trata de objetos, mas diatamente acessíveis* Mais freqüentemen­
de objetos fora do alcance de suas explora­ te ainda, ela os substitui por certos arranjos
ções multissensoriais e manuais, constatam- práticos; por exemplo, as dimensões que
se, ao mesmo tempo, a mesma aderência aos ela atribui são as que correspondem a
aspectos das coisas e a mesma confusão entre suas explicações artificialistas.
realidades distintas. Assim, a passagem ocor­ É quase sempre em ligação com o sol
re incessantemente entre o céu sideral, o céu que a criança fala da lua. Ela passa de sua
meteorológico e o céu mítico. Nele estão assimilação pura e simples à sua alternância e
misturados o frio, o vento, a chuva e Deus, o às suas diferenças perceptivas. Ela a conside­
Menino Jesus, toda uma população de crian­ ra, com freqüência, maior, dá-lhe uma forma
cinhas que brincam com animaizinhos. Ele é, mais determinada, apesar de sua passagem
alternadamente, abóbada sólida epura exten­ por formas diferentes. Quando percebe essas
são; é assimilado às nuvens ou delas distin­ variações, interpreta-as, por vezes, como uma
guido; menor, embora as contenha; descrito fragmentação. A lua é redonda; o sol dá uma
através da cor delas, que mudaria conforme impressão mais difusa, mais amorfa, prova­
os dias da semana. É nele que se encobrem, velmente por causa de seus raios. Há também
alternadamente, o sol, a lua e as nuvens para uma diferença de cor: o sol é amarelo, a lua é
produzir o dia e a noite. Não há nada mais branca, preta ou vermelha. Com muito mais
variável evago do que essas identificações ou freqüência que o sol, a lua da lugar a inter­
assimilações sucessivas. pretações antropomórficas: é um rosto que,
Para o so le a lua, acontece o mesmo. Há algumas vezes, é descrito de maneira pu­
casos em que sua identidade substancial, ramente gráfica, como se a criança se visse
morfológica ou local acarreta confusões ou pessoalmente reproduzindo um daqueles
contradições. Embora único e não se mo­ desenhos que lhe-dão aspecto humano. Ela
dificando de uma aparição à outra, é o sol que parece ter uma identidade mais consistente.
produz as estrelas por fragmentação. Em­ Mas também pode permanecer enredada em
bora presente em todo lugar ao mesmo tem­ conjuntos sincréticos, que a tomam presente,
po, suas dimensões não ultrapassam sua gran­ alternada ou simultaneamente, no céu e nos
502 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

efeitos mais próximos do sujeito: ela parece, dessa forma, como que decomposto, no es­
por exemplo, ser completamente assimilada pírito da criança, entre os diferentes pares
a seu reflexo na água, assim como o sol o era que podem aí surgir, conforme a ocasião.
ao ofuscamento do olho. A falta de coesão entre os aspectos físicos
Enquanto as nuvens são com freqüên­ do vento dá, à sua representação, algo de
cia confundidas ao mesmo tempo com a vago e de difuso, que a criança traduz, com
substância do céu e com a fumaça, mas suas freqüência, através de um sentimento de
relações com a chuva não são conhecidas, o ubiqüidade. Ele está, ao mesmo tempo, em
que pode ocasionar diferentes discursos sem todo lugar, o que corresponde também à sua
nexo, o vento também fica dividido entre fluidez: combinação, parece, do espaço onde
assimilações ou origens díspares. Seus efeitos se expande e da força que lhe faz ocupar o
sensíveis não possuem a mesma coerência espaço. O espaço, como a mais pura repre­
que a dos objetos manipuláveis e não podem sentação de vastas extensões vazias, é, para a
evocar-se entre si para lhe dar uma realidade criança, o céu. Mas, ao mesmo tempo, o céu
definida. Sua origem é situada ora no céu, ora é algo de particular, que parece justapor-se
nos procedimentos artificialistas. Sua asso­ ao espaço das coisas. Donde a ambigüidade
ciação mais freqüente é com o frio; vai até em que a criança cai incessantemente. O
a identidade total. Como um é dado como o vento está no céu e vem do céu. Ele vem do
exato equivalente do outro, disso podem re­ céu até mesmo quando é a corrente de ar
sultar conseqüências incompatíveis entre si, produzida pela abertura de uma porta ou o
por exemplo, ao mesmo tempo, ondas de sopro que sai da boca. Parece, assim, que o
gelo. No momento em que a fase identidade céu está, ao mesmo tempo, muito próximo, é
dá lugar à fase causalidade, habitualmente é o meio imediato de coisas ou de seres e é
o vento que produz o frio e a criança dirá, por também aquele lugar recuado onde de­
exemplo, que o vento é mais frio que o frio. sapareceria, para nele conservar-se, tudo o
É excepcional que ela saiba, a propósito do que deixa de ser atual. A criança lhe dá,
vento, passar espontaneamente de um campo simultaneamente, os dois sentidos; é ora
sensorial para outro; que ela saiba evocar, um, ora outro que ela enuncia, conforme a
com o frio, as impressões táteis produzidas pergunta feita. Como o vento efetivo pode
por sua passagem, o ruído que o acompanha, coincidir, ao mesmo tempo, com ambos, a
os movimentos que imprime aos objetos do não ser por uma espécie de unidade que é
campo visual. A criança sabe, contudo, dizer anterior ás relações espaciais ou mecânicas e
que um sopro que toca seu rosto é vento, não que ainda é simples participação? Se fosse
ignora que o vento faz pedaços de papel necessário definir suas relações, o céu poderia
voarem, que ele chega a destruir tudo, que ser considerado como o reservatório onde o
ele empura os barcos. Uma outra prova da vento se conserva nos momentos em que não
frágil ligação que essas diversas manifesta­ é nem percebido, nem ativo. Mas as con­
ções possuem entre si é o caráter vago das taminações entre o céu e os procedimentos
preposições ou conjunções que as unem, artificial istas através dos quais a criança
simples termos de companhia como “com” também explica o vento (fumaça, fogo, forno,
ou “quando”. Correlativamente, a própria chaminé) mostram o quanto, na realidade, o
identidade do vento é extremamente vaci­ céu está longe de responder a essa distinção,
lante. Ele parece tomar-se real unicamente quer local, dos espaços inacessíveis, quer
quando ligado a dada um dos termos dos dinâmica, do vento potencial e do vento efe­
quais, sucessivamefte, é relacionado, por tivo.
exemplo, com as árvores que agita e de onde, Assim como o céu permance aderente a
com freqüência, supõe-se que saia. Ele parece, suas localizações sensíveis, mas já tende para
CONCLUSÕES E COMENTÁRIOS 503

o espaço como campo onde pode subsistir o extensão ilimitada. Ela pode ser tentada, então,
que está fora do alcance da percepção e a inverter o sentido da corrente e a acreditar,
momentaneamente sem ação, a ubiqüidade, por exemplo, que, ao soprar em um balão, ê
por mais perceptiva que ainda pareça sua este que enche de ar seus pulmões. A mesma
origem na criança, dá-lhe a ilusão da conti­ dificuldade é encontrada, mas invertida, quan­
nuidade substancial para o vento, que é um do ela quer explicar substancialmente o vento
objeto essencialmente inconsistente e fugi­ produzido pela agitação de um papel, pois,
dio. Acreditante que ele está em todo lugar ao estando ainda inapta para ver a coisa sob o
mesmo tempo, a criança imagina-о ora aqui e ângulo operatório, ela acredita que o vento
ora ali, segundo seu hábito de esquecer, um existe no próprio papel. Contudo, se o papel
pelo outro, o todo e a parte. Dessa forma, é- é cortado em pequenos pedaços, ela não
Ihe permitido aplicar, ao vento, oúnico gênero sabe dizer se o vento o deixou sem ser sentido
de realidade que lhe é acessível, a do objeto, ou se se conserva nos fragmentos reduzidos
visto que ainda não sabe representar as coisas a nada.
operatoriamente. Considerando a existência de uma coisa
Mas a substancialização do vento, tomada apenas sob a forma da sobrevivência material,
possível pelo equívoco de um espaço ao a criança mistura espaço e substância. Quan­
mesmo tempo coextensivo com ele e capaz to à ação - que ela deve evocar quando ne­
de, alternadamente, assimilá-lo ou manifestá- cessário -, ela sõ sabe considerá-la sob a for­
lo, acarreta muitas contradições. O vento que ma quer da ação espontânea, que nada ex­
sai da boca deve vir dos pulmões. Ele está plica, quer da ação comunicada, que recua
realmente lá, e não é potencial como em um do mesmo ao mesmo indefinidamente. Es­
sopro. Mas como o ato de soprar pode repetir­ paço, substância, ação ainda apenas se subs­
se indefinidamente, a criança percebe, com tituem ou se opõem. Entre eles, não há nem
muito embaraço, que seria necessário atribuir, coordenação exata, nem integração.
aos pulmões, uma capacidade, ou seja, uma
CONCLUSÃO GERAL

Estudar o pensamento da criança em seu Diferenças de pensamento são observa­


desenvolvimento é compará-los, explícita ou das de uma época para outra, entre indiví­
implicitamente, com o do adulto. Essa com­ duos e segundo a idade. Possuem elas, nes­
paração leva a nele reconhecer o jogo de ses diferentes casos, a mesma natureza de
fatores que são de espécie diversa e que o causas? Se nossas idéias ou conhecimentos
mantém em um equilíbrio variável. O próprio fossem uma simples soma que o tempo faz
pensamento do adulto está longe de ser um aumentar (mais lentamente quando se trata
termo fixo, imutável, um limite definitivo, de gerações sucessivas que têm que desco­
como o fariam supor certas definições da brir a verdade; mais rapidamente para o indi­
razão. Não apenas modificou-se com as épo­ víduo que se beneficia com as experiências
cas e as civilizações, mas também continua acumuladas delas), as únicas diferenças seri­
a apresentar flutuações. Assinalando, através am de quantidade ou de proporção. Contu­
dele, as insuficiências, as inconseqüências, do, de uma civilização para outra, o que se
as contradições que se observam nas respos­ encontra são sistemas ou princípios de pen­
tas da criança, foi preciso constatar que ele samento freqüentemente contrários. Etapas
mesmo está longe de ser imediatamente ade­ sem dúvida necessárias na elaboração do
quado às coisas ou de se manifestar em um instrumento intelectual, elas, contudo, apenas
plano único e de oferecer uma estrutura coe­ se adicionam: é sua oposição que marca o
rente. Nele podem ser encontrados, em par­ progresso realizado. Um conflito é o que faz
ticular, sinais de infantilismo, tais como os com que a verdade nova liberte-se da antiga.
que foram evidenciados pela análise do A procura do verdadeiro é uma perpétua
pensamento infantil. Existem confusões, das negação do erro. Cada época possui suas
quais, evidentemente, a criança deve sair verdades, as quais têm seu material de idéias
para pensar com objetividade, e para as quais e de linguagem, e, como suporte, as técnicas
pode-se vê-la regressar. A norma não é um de trabalho, as maneiras de viver, as condi­
dado apriori, é o resijjtado sempre provisório ções de existência que o meio social impõe a
e, por vezes, em recuo, de processos onde se seus membros. Dessa forma, investida, por
afrontam realidades, necessidades; aspirações todos os lados, pela ambiência intelectual,
diversas. moral, material, a criança só pode adotar o
CONCLUSÃO GERAL 505

sistema de pensam entos correspondente. Se que é sua função manifestar. De uma espécie
ela dele se afasta, isso ocorre, portanto, porque para outra, há simples condicionam ento, não
essa ação é contrariada p o r um a ordem di­ semelhança. Mas foi precisam ente a ilusão
ferente de fatos. A primeira oposição que se de sua identidade que desacreditou as ex­
observa em sua evolução intelectual é a das plicações organicistas. Por muito tem po, elas
tarefas que o meio lhe propõe e de suas consistiam em decom por a vida mental se­
aptidões efetivas. gundo o suposto m odelo dos elem entos ner­
Não há atividade, psíquica ou de qual­ vosos e vice-versa. De onde resultava um a
quer outro tipo, cujas manifestações sejam espécie de híbrido, onde as células nervosas
possíveis sem um aparelho correspondente. e suas conexões eram assimiladas a imagens
O pensam ento, assim com o a vida, supõe a ou idéias que entravam em associação mútua,
matéria organizada; pertence a um certo nível e onde justificar o pensam ento era descrevê-
da evolução biológica. Ele não é, contudo, lo sob forma de elementos que entravam em
assim com pletam ente determinado. Sua de­ contato e em ligação através de seus pro­
term inação é dúplice. Tomemos, como exem­ longamentos, ou de qualquer outro meio ma­
plo, a fala, que o exprim e e de que o homem terial.
dispõe, à diferença das outras espécies ani­ Contudo, surgiu uma dificuldade mais
mais: ela cessa de ser possível após lesão de legítima. A diferenciação funcional vista no
certos centros ou das conexões que os unem; cérebro, ou seja, no espaço, apareceu sob a
mas ela não resulta do simples funcionamento forma de localizações cada vez mais precisas,
automático dos centros, com o se houvesse, as quais se pôde dem onstrar que não cor­
entre ambos, unidade de estrutura, senão ela respondiam à flexibilidade, à variabilidade,
seria, invariavelmente, uma certa língua para assim com o à unidade intrínseca da atividade
um certo indivíduo. Ora, a experiência mostra mental. Entre as duas, parece ter surgido uma
que, a despeito das diversidades lingüísticas, oposição de princípio, e o sistema nervoso
não há língua que não possa ser aprendida foi com parado a um simples sistema de postos
por um indivíduo qualquer, desde que seja telegráficos a serviço do pensam ento, que
a do meio em que ele vive sua infância. seria uma força espiritual existindo por si.
Suficientemente jovem, ele pode até mesmo Isso era esquecer que um a diferenciação fun­
esquecer totalm ente a primeira língua por cional jamais se efetua senão em correlação
uma segunda, de um tipo m uito diferente. Ele com uma integração que conserva, da ati­
pode, também, saber várias, qualquer que vidade, sua unidade essencial através da cres­
seja a variedade delas. A aptidão para a fala é, cente diversidade dos procedim entos pelos
portanto, lingüísticamente indiferenciada, quais ela responderá, de maneira mais
em bora exista apenas devido a uma diferen­ discriminativa, a situações mais nuançadas
ciação m uito especializada dos centros nervo­ ou mais numerosas. A toda diferenciação
sos. anatômica corresponde um aparelho de co­
ordenação ou de controle. Sem integração
ESTRUTURAS ORGÂNICAS concomitante, a fanção, ao se diferenciar, dis-
E ESTRUTURAS INTELECTUAIS solver-se-ia. D iferenciação e integração são
DO PENSAMENTO síncronas. Se um a se opera, isso ocorre por­
que a outra existe em potencial. A solida­
Assim com o a linguagem, onde ele en­ riedade dos dois processos é postulado, deter­
contra, aliás, seu instrumento indispensável, minada pela existência e pelo exercício da
o pensam ento fica entre duas espécies de função.
estruturas: as estruturas orgânicas, que lhe Longe de opor diferenciação e unidade,
fornecem sua base biológica, e as estruturas localização específica e totalismo funcional,
506 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

é preciso, portanto, ver neles um único e mal, Lashley mostrou que, para obter certos
mesmo conjunto complementar, algo de in­ déficits, embora bem determinados, a quan­
diviso, mas que se apresenta ora sob urna tidade de substância cerebral amputada im­
face, ora sob outra. Efetivamente, não se porta mais do que o lugar da retirada. Através
pode duvidar que, na prática neurológica, da integração que acompanha a diferenciação,
as localizações existam. A análise das per­ o conjunto pode suprir uma deficiência par­
turbações constatadas permite, com freqüên­ cial. Um exemplo, o dos escotomas devidos a
cia, determinar, com uma precisão geométrica, uma lesão parcial da retina ou de sua projeção
o lugar da lesão. Mas também é verdade que nos centros nervosos, tornará essa constata­
consideráveis perdas de substância cerebral ção mais compreensível. Com muita fre­
foram encontradas, embora o doente apre­ qüência, esses escotomas não são reco­
sentasse apenas problemas vagos e gerais, nhecidos espontaneamente pelo sujeito.
sem qualquer déficit funcional especializa­ Em uma percepção, o que falta é ime­
do. d iatam en te in d u zid o das im p ressõ es
Talvez tal constatação devesse nos fazer existentes. É um todo cujas partes resultam
concluir que nossos meios de exploração e do conjunto, tanto quanto o conjunto depende
de análises psíquica ainda são insuficientes, de todas as partes simultaneamente. O todo
que nossas idéias sobre a natureza e sobre o só pode ser abolido através de um de­
mecanismo da vida mental são grosseiros. saparecimento suficientemente maciço das
Provavelmente também, é preciso distinguir, partes. O que se observa na percepção que,
nos centros nervosos, entre as regiões onde apesar de tudo, permanece intimamente
as lacunas são imediatamente aparentes, por­ ajustável às condições objetivas da excitação,
que criam um lapso nas relações sensoriais encontra-se, a fortiori, em operações cujos
ou motoras com o meio exterior, e as regiões elementos devem ser muito mais trans-
o n d e se estabelecem, de etapa e etapa e de mutáveis entre si, e que já pertencem a um
nívet em nível, as conexões de onde resultarão estágio de elaboração de onde o acon­
as representações menos sensoriais, mais tecimento exterior, o fato estranho, foi eli­
simbólicas, mais ideais do mundo, ou as minado.
cûftdutas mais depuradas de motivações pu­ Da mesma forma, ou melhor, de modo
ramente sensíveis e efetivas. O declínio de inverso, na criança, ao longo de seu de­
tais imagens ou de tais motivos, que con­ senvolvimento, a função só pode consolidar-
servam, necessariamente, com relação ao real se em um conjunto evolutivo cujas condi­
materialmente atestável, algo de virtual, é, ções são orgânicas. Frequentemente, certas
provavelmente também, algo de indetermi- manifestações funcionais aparecem espo­
nável e de fugaz, que só acarreta uma im­ radicamente, para não mais se reproduzirem
pressão indefinível e global. durante semanas ou meses. Elas supõem a
Contudo, essa oposição entre regiões do existência do aparelho correspondente, mas
cérebro ou entre funções liberadas mais ou cujo exercício depende, ainda, de incitações
menos das contingências exteriores oferece, fortuitas. Falta-lhes pertencer a um sistema
ainda, algo de artificial. Ela divide o que per­ suficientemente extenso e coerente, onde a
manece, apesar de tudo, solidário. De fato, é incitação direta possa ser suprida pela in­
bem verdade que, em qualquer ocasião, o fluência de um conjunto, em cada reação
cérebro e o organismo devem funcionar em particular seja regulada pelas exigências da
seu conjunto, que o pensamento conserva situação real ou mental. Não há, na criança,
uma espécie de individualidade com, é lógi­ apenas inaptidão para certos atos; estes estão,
co, repartições energéticas, polarizações psí­ quando surgem, inicialmente dissociados. Sua
quicas diversas. Em experiências sobre o ani­ integração funcional está ligada à maturação
CONCLUSÃO GERAL 507

gradual do cérebro, que, de todos os órgãos, nifestações posteriores, mas cuja significa­
é o que está mais longe de sua estrutura ção e papel podem ser uma novidade no
definitiva no momento do nascimento. Não comportamento do indivíduo ou da espécie.
mais que as outras evoluções funcionais, a É então que é preciso procurar, no campo das
evolução psíquica não pode ocorrer antes estruturas biológicas, a novidade que as
das estruturas orgânicas. É a essa dependência tomou possíveis. Aliás, esse condicionamen­
que está ligada a impossibilidade de desen­ to não as impede, uma vez existentes, de
volver na criança, por simples exercício, ap­ pertencer a um mundo de causas e de efeitos
tidões que ainda não chegaram à matura­ que não são mais imediatamente de nature­
ção. za orgânica, como, por exemplo, o das re­
Atualmente, a maior parte dos psicólogos lações humanas em cada época e de geração
reconhece, na maturação, o regulador fun­ em geração.
damental do crescimento mental na criança. Entre esses dois sistemas de condições,
Nem todos extraíram dessa constatação todas em que um apresenta, na espécie, uma grande
as conseqüências que ela comporta. Muitos constância, a despeito das diversidades in­
vêem nisso apenas um atraso, imposto, à dividuais e das variações devidas à idade, e o
edificação das estruturas psíquicas, pelo atra­ outro transforma-se com a sociedade e com
so das estruturas orgânicas. Dessa forma, eles a história, uma margem fica aberta à ativida­
se aliam praticamente aos que não atribuem de de todos e de cada um, onde as com­
qualquer papel à maturação e que querem binações de objetivos e de aptidões, de
explicar todas as formações psíquicas atra­ reações recíprocas, de incidências em série
vés de elementos, como sensações ou es­ são suscetíveis de todos os graus, entre o con­
quemas motores, que seriam dados desde o formismo e o polimorfimo, entre a pressão e
início, e através de suas combinações pro­ a liberdade. É uma parte que existe para cada
gressivas sob o estímulo e sob o controle da um, através de trocas com o outro e de acordo
experiência. O tempo e a ocasião seriam, os conflitos com o meio. Uma ação onde
assim, a medida comum do desenvolvimento estão, em perpétua repercussão mútua, as
psíquico nas diferentes idades. Reconstrução disposições naturais e o ambiente material e
puramente ideológica, arbitrárias, cujas espiritual.
insuficiências flagrantes incitam, por vezes,
a supor, por trás dessas combinações, ino­ ESTRUTURAS MENTAIS
perantes, um princípio que as tomaria inúteis, E ESTRUTURAS DAS COISAS
porque ele próprio é uma explicação absoluta
e a priori de tudo o que pode ser vida Uma outra oposição, que é também uma
espiritual. fonte de operações incessantemente mo-
Na realidade, as duas soluções são sim­ dificáveis conforme as exigências do resul­
ples demais. Elas não dão lugar à observa­ tado, é a das estruturas mentais em suas re­
ção. Cada etapa funcional da criança deve lações com a estrutura das coisas. A atividade
ser, inicialmente, descrita por si mesma e no intelectual não é uma simples receptividade
conjunto completo de suas condições efeti­ amorfa; seu plano também não é calcado a
vas. Antes de ser considerada como um priori no dos objetos. Ela possui seus pró­
simples elo, deve ser questionada sobre o prios procedimentos, que sobrepõem, às im­
que possui de específico. Assim, poder-se-á pressões sensíveis, um certo poder de orga­
reconhcer o advento sucessivo de manifes­ nizá-las à sua maneira, fornecendo-lhes os
tações que não têm, necessariamente, seu equivalentes necessários. Tampouco ela lhes
protótipo em manifestações anteriores e é assimilável, assim como a vida, uma vez
não são, forçosamente, o protótipo de ma­ surgida, não o é às puras reações físico-quí-
508 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

micas do mundo inorgânico. Ela possui, possuam uma existência independente da


doravante, uma natureza que lhe é própria e sua, modalidades que não variem com suas
meios autônomos. Estes devem existir por si próprias variações subjetivas, uma duração
mesmos antes de poder adaptar-se ao objeto. que não esteja ligada à de suas percepções
É evidente que, sem um acordo mínimo, a presentes. Para representá-las, ela deve re­
inteligência seria sufocada pelas exigências duzir, gradualmente, sua união com elas.
da experiência. Mas, se deve a elas ajustar Esse afastamento tem seus níveis, que po­
suas fórmulas, estas resultam apenas de sua deriam ser comparados aos que foram des­
própria espontaneidade. Não há, provavel­ critos, em sua vida afetiva, com relação à si
mente, essências intelectuais, como o su­ mesma e aos seres que pertencem, de maneira
punham os racionalistas. Não há nada de mais ou menos próxima, à sua intimidade.
imutável e nem de eterno na razão. Não há Há, nos dois casos, muitas fixações qüe lhe é
inteligibilidade universal e em si. Mas sim preciso ultrapassar sucessivamente e para as
uma atividade que, tendo suas estruturas e quais pode ser que ela regrida. Assim como o
suas leis, deve fazê-las seguir a imagem do primeiro objeto de sua libido é seu próprio
mundo, fazê-las construir um mundo de eu, o de suas primeiras representações per­
causas e d e efeitos, cujas conseqüências con­ manece misturado e como que assimilado ao
cordam com os dados e as respostas da ex­ que elas possuem de mais subjetivo. Depois,
periência. sucedem-se objetos, pessoas ou coisas, à
As próprias coisas são, aliás, em certo existência dos quais é preciso que a sua se
sentido, um resultado da atividade intelectual. torne cada vez mais estranha. Dessa forma,
A experiência inicial não é feita de suas sobrepõem-se os planos que a levam, do
imagens claras e distintas. O que se oferece, puro intuicionismo, à imagem do outro ou do
inicialmente, à representação, a ela se opondo, real.
é uma experiência vivida, cujas impressões Essas são etapas que correspondem ao
mantêm, misturados, a atitude ou o movi­ progresso de suas aptidões intelectuais, as­
mento com a excitação e o desejo-repulsa sim como corresponderam, na história d o
correspondentes; é um campo sensorimotor pensamento, ao do instrumento intelectual.
onde os gestos formam, com as posições do Entre a representação voluntarista e mágica
espaço e o objetivo, uma espécie de unidade do mundo, que se observa nas civilizações
dinâmica; é o objeto reduzido à experiência ditas primitivas, e a que se exprime pelas leis
momentânea feita pelo sujeito e que se dilui impessoais e necessárias da física moderna,
naquilo que lhe é simultâneo. Esse é o bloco foi preciso que surgisse uma elaboração
mutável e lábil onde a representação inte­ ideológica que, em todos os campos do co­
lectual deve talhar as coisas. Provavelmente, nhecimento, despojasse gradualmente as no­
elas já assumiram sua individualidade na ida­ ções e os símbolos de sua subjetividade ini­
de em que a criança pode ser questionada cial. Se a criança não é inicialmente capaz de
sobre elas. Se ela sabe o nome delas e discute conferir-lhe a objetividade que implicam, o
suas relações, isso ocorre porque as identificou adulto, às vezes, também não sabe mantê-la.
distintamente. Contudo, suas respostas de­ Na sensibilidade de cada um, persiste o con­
monstram que, no plano mais abstrato da fusionismo primitivo e é através de uma ten­
explicação, subsistem muitas confusões, que são constante do esforço intelectual que são
parecem repetir as que ela teve que resolver mantidas as distinções que nos opõem as
no plano dos conhecimentos práticos. coisas como realidades independentes. O
Misturada às coisâs através de seus atos, que se poderia chamar, com J anet, de a função
sua sensibilidade, seus desejos, a criança deve do real, está sujeito a submeter-se a influên­
aprender a opô-las a si como pbjetos que cias afetivas, quer ligadas a flutuações da sen-
CONCLUSÃO GERAL 509

sibilidade individual, quer relacionadas com não poderia existir. Ela sente dificuldade até
certa categoria de objetos ou de circunstâncias. mesmo para conceber, com o anteriores a si
Nesse caso, pode-se ver a explicação regredir mesma, aqueles de quem procede sua exis­
para m odos infantis ou míticos. Essa regres­ tência, com o seu pai e sua mãe. Ela oscila
são pode até mesmo tom ar-se coletiva. Por entre a necessidade de dar pais, um a casa
exem plo, nos períodos de incerteza e de etc., ao recém-nascido e sua incapacidade
dissociação sociais, quando a inteligência para desfazer o vínculo das coisas com sua
afasta-se para o cam po do passado, da in­ própria sensibilidade. Sem sua capacidade
quietude e tende a renunciar a si mesma. Em de sentir-lhes a presença, elas não existiriam
vez do impulso realista, que se observa nas para ela, não existiriam, portanto, p o r si
épocas de civilização ascensional e de con­ mesmas. Pois ela ainda não sabe dissociar a
fiança pública, florecem metafísicas que realidade objetiva, e nem se colocar entre as
subordinam , ao subjetivismo confusional da coisas, no mesm o tem po em que se sente a
experiência bruta, os resultados mais au­ consciência de todas. Com esses dois pontos
tênticos do conhecim ento científico. A razão de vista ainda unidos, ela age com o se se con­
p o d e ser, assim, rebaixada até as formas mais siderasse aquele que faz existir as coisas na
elem entares da sensibilidade imediata e pes­ m edida em que está presente para sentí-las
soal. Entre esses retornos do pensam ento ou pensá-las. Demiurgo de um m undo que
que duvida de si mesmo e os progressos que não existiria sem a sua presença intuitiva. É
a inteligência da criança deve realizar, o pa­ claro que, em com pensação, sua própria exis­
ralelismo é surpreendente. Só há uma di­ tência perm anece nele diluída e ela mal sabe
ferença: a inocência ideológica da criança e a individualizá-la. O solip sísm o é a manifesta­
sutileza com a qual um filósofo é capaz de ção mais primitiva, mais elem entar da sub­
defender posições infantis. jetividade que im pregna e é im pregnada por
todas as coisas. Mesmo progressivamente re­
A EXISTÊNCIA SUBJETIVA duzida, seu espectro praticam ente não deixa­
E A DAS COISAS rá de perseguir o esforço do conhecim en­
to.
É fácil evidenciar, até os sete ou oito O que, sem dúvida, conta apenas para o
anos, a dificuldade que a criança sente para animal é a sucessão das im pressões e reações
dissociar com pletam ente as coisas da expe­ através das quais suas necessidades são satis­
riência pessoal que delas possui. Sem dúvida, feitas e sua vida é preservada. Suas condutas
ela já sabe, há muito tem po, que elas não são essencialmente subjetivas e só retêm, das
podem ser abolidas ao mesmo tem po que coisas, a maneira de delas se servir. Elas só
suas percepções, que, tendo desaparecido, poderão encontrar contrapeso objetivo na
elas poderão ser percebidas novamente, que representação do real, a qual supõe todo um
cada um a delas tem, por conseqüência, uma aparelho de figurações, de símbolos e de
existência independente das impressões que signos, cujo advento, no curso da evolução,
a presença delas lhe dá. Contudo, global­ parece esperar o aparecim ento da espécie
m ente, ela admite com dificuldade que tenha humana. Contudo, a própria representação,
podido existir algo de anterior à sua própria embora fazendo a síntese durável dos atribu­
consciência. Toda existência parece, dessa tos e do objeto e opondo-a, dessa forma, às
forma, inscrever-se na sua. Seguramente, po­ impressões eventuais e variáveis do sujeito,
de existir algo de que não tenha atualmente inicialmente é mais o ato do autor q u e a
consciência ou até mesm o algo de que jamais imagem da coisa. Pelo menos, ela perm anece
tenha tido consciência. Contudo, sem a cena como um intermediário indissolúvel esem pre
que seu próprio eu oferece ao m undo, este sentido entre ele e a coisa.
510 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Embora reduzindo o universo à pessoa, realidade a que a criança se limita a se sujeitar.


o solipsismo nada tem de um ato criador. Ele Há uma ambivalência constante entre o sub­
não denota a força excessiva do sujeito às jetivismo e o objetivismo brutos, no período
custas das coisas que lhe dão oportunidade em que, por falta de diferenciação, tudo
de se manifestar. Pelo contrário, a realidade permanece indiviso entre o eu e o mundo
do objeto e a energia da consciência decres- exterior. A existência é o que é percebido. Ela
cem ao mesmo tempo. Na verdade, há um confunde-se exatamente com a seqüência
encontro da imensidão e da negação. É quan­ das impressões, das imagens, da descrição,
do a consciência pessoal não possui mais do relato. Ela nada possui que os ultrapasse
limites no tempo ou no espaço, quando o em constância, em generalidade, em profun­
doente tem idéias de grandeza e de imortali­ didade. Não possui nem meios, nem fatores
dade que, no mesmo instante, ele duvida de diferentes das aparências. Ela está presente,
sua própria realidade, sente que não mais inteiramente, naquilo que é experimentado.
existe e tem idéias de negação. De maneira Esse fenom enism o pode ser explicado
mais fugidia, é nesses momentos de aniqui­ pelo simplismo embrionário da idéia que, na
lamento que a consciência tem a ilusão de criança, ainda adere à impressão, por falta,
ser, nas coisas sucessivamente percebidas sem dúvida, da permeabilidade necessária
ou imaginadas, a força que as faz emergir do entre centros diferentes e diferenciadores,
nada. A energia psíquica chegou a um nível por falta, em todo caso, da aptidão para so­
baixo demais para manter implicitamente, brepor entre si e coordenar os sistemas de
nas coisas, uma existência independente. A imagens ou de símbolos de que a represen­
realidade delas cresce e decresce como o tô- tação sistemática e analítica das coisas de­
nus intelectual daquele que as conhece. Ela é pende. Ele é também uma posição de recuo
menor para a criança, apesar da aparente nas épocas em que o pensamento científico
vivacidade de suas impressões e a despeito, quer duvidar de si mesmo e salvaguardar
ou melhor, devido a sua exuberância afetiva; certos objetos em que se declara incapaz de
donde suas inconseqüências com relação a tocar, com medo que sua audácia acabe
elas e a maneira através da qual ela as substi­ destruindo alguns ídolos, cuja ruína ameaçaria
tui ou contamina entre si. todo um sistema de vida, de crenças ou de
Contudo, o solipsismo é uma atitude por instituições julgadas indispensáveis. Então, a
demais contrária às obrigações da atividade existência é dada como impenetrável em si e,
cotidiana, assim como, aliás, à função essen­ ao mesmo tempo, reduzida aos dados mais
cial das representações, para ser habitual­ imediatos da intuição sensível ou da expe­
mente aparente na criança. É preciso obrigá- riência concreta.
la a um esforço especulativo que lhe faça Uma maneira muito semelhante de pen­
ultrapassar as simples exigências de seus sar é o flnalism o. Na criança, ele se limita,
contatos diários com seu meio para levá-la a parece, a uma constatação de acompanha­
constatar que sua própria existência parece- mento mútuo e de afinidade habitual entre
lhe a condição de todas as outras. Enquanto objetos ou circunstâncias. Ele não implica um
não for impelida a essa confrontação entre si objetivo, uma intenção realizados ou que
mesma e o universo, sua crença permanece estão se realizando, ele ainda não ultrapassa
inversa, embora, na realidade, seja comple­ o plano dos simples dados empíricos. Não
mentar. As coisas, tais como ela as sente que o intencional não exista na infância,
ou enuncia, parecem-lhe explicar-se por si muito pelo contrário. Mas ele permanece
mesmas. É ainda sua sénsibilidade ou sua sujeito aos desejos imediatos e pessoais. Ele
imaginação do momento que lhes sustentam não é um construtor de combinações sem
a existência, mas elas lhe parecem ser uma relação direta com o sujeito. Ele não pode
CONCLUSÃO GERAL 511

alienar-se no objeto. O finalismo do adulto, eficaz, devia invocar em suas relações com o
pelo contrário, ultrapassa sua simples des­ meio das coisas. A possessão delas seguia
crição, que é a única, contudo, a apresentar suas manifestações de desejo. Contudo, ao
um valor positivo. Ele lhe atribui uma razão mesmo tempo, essa confusão da própria coisa
de existir que é, pura e simplesmente, sua com sua representação corresponde a uma
réplica no plano da eficiência. Solução sim­ fase em que a subjetividade persiste em pre­
ples, de fato a de relacionar os efeitos valecer sobre a realidade em si dos objetos.
constatados a uma virtude correspondente, ins­ Essa é apenas uma subjetividade mais ou
tinto ou consciência criadora? Sob esse ver­ menos despersonalizada e mediatizada, que
balismo mágico ou místico encontra-se, con­ se tomou mais intelectual que afetiva. O su­
tudo, a intuição subjetiva. Mas, ao contrário jeito eclipsa-se atrás de suas representações,
do solipsismo, que fazia dela a medida única mas estas são o essencial da coisa. Essa ati­
de tudo o que existe, o finalismo multiplica- tude pode ser chamada de idealista. Ela não
a dentro de toda a existência. Em vez de um ocorre sem ambigüidade na criança, cuja ati­
sujeito suportando a realidade do mundo, o vidade sempre teve algo de ambivalente, por
que existe é um mundo realizado pelas cons­ insuficiência de diferenciação: nesse caso,
ciências orgânicas ou funcionais, esses em­ por contaminação incessantemente repetida
briões de sujeitos de onde resultaria a estrutura entre o sensível e o formal, entre a impressão
do ser. e as noções ou nomes que é preciso a ela
Que o finalismo seja um limite imposto, a aplicar.
todo custo, às curiosidades da investigação, O idealismo filosófico apresentou muitos
ele o diz claramente ao se declarar face a níveis. Ora respondeu ao conflito da idéia
princípios que não poderiam ser ultrapassa­ com a sensibilidade, cujas manifestações oca­
dos e que são, em si mesmos, impenetráveis. sionais era preciso enquadrar, cuja variabili­
Ele também é, portanto, o indício de uma dade subjetiva era necessário reduzir e cujos
renúncia científica, mas acrescido do sen­ objetos era preciso fixar através de uma de­
timento de vida que se une às experiências de finição que se referisse à natureza constante
cada um e que, com o conteúdo mais bem e específica deles: o ser não está nas coisas
objetivado delas reprimido, tende a refluir percebidas, mas na idéia delas ou no mundo
sob forma explicativa. Há uma contaminação inteligível. Ora foi a preponderância dada
persistente do objeto pelo sujeito. O fato da ao aparelho especulativo sobre a realidade
sensibilidade pessoal, embora efêmero como empírica. A experiência reduzida ao conhe­
as impressões que ela acompanha, quer ser cimento e este a seus princípios, assim como
novamente essencial dentro das coisas. a sua norma incondicional: a análise deve
A um nível já mais elevado de diferen­ encontrar sempre e unicamente elementos
ciação intelectual, opera-se o desdobramento de conhecimento e o idealismo é a única
entre os objetos e a representação. Surge, solução possível. Mas há petição de princí­
inicialmente, a crença em sua identidade ou pio. A conseqüência é fácil de imaginar: su­
melhor, em uma participação que os faz pressão total da coisa e idealismo absoluto,
depender dela. Ela faz parte da natureza ou, então, impossibilidade de justificar o acor­
deles, mas também é dela que eles a recebem. do entre o conhecimento e o mundo. Com
Sob uma forma ainda elementar, votiva e seu rigor habitual, Kant concluiu que a ex­
voluntarista, isso é o que se chamou de perío­ periência limita-se a aparências e não se refere
do mágico da mentalidade infantil. Este é ex­ à realidade em si das coisas. Ao mesmo tem­
plicado, além disso, pelos intermediários, no po, excluiu a possibilidade, para o sujeito, de
início inteiramente humanos, que a criança, conhecer a si mesmo, ou seja, relegou, entre
por muito tempo desprovida de atividade as aparências ou fenômenos, os dados da
512 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

sensibilidade subjetiva, cuja mistura à subs­ jam por ela ignoradas. Mas essa diferencia­
tância das coisas é tão espontânea. Contudo, ção gradual, entre o que se refere ao objeto e
ele forneceu o meio de mudar essa elimina­ o fato, para cada um, de sentir por si mesmo
ção ao identificar o dever, sentido como in­ a existência do objeto, deixa um resíduo, que
condicional e categórico, com a pessoa moral pode, subjetivamente, parecer o essencial,
e esta com o eu em si. Através disso, tudo o visto que, abolidas a sensibilidade e a ex­
que a moralidade podia atrair para si de sen­ periência pessoais, seria como se o mundo
sibilidade afetiva e ideologia metafísica tor­ não existisse. O fundamento de sua existência
nava-se suscetível de ser reintegrado no cam­ reconhecido e atestável é, portanto, o poder
po da especulação, sempre confundido com que o sujeito tem de sustentá-lo através de
o do ser. sua própria vida. De fato, ele dá a impressão
Esse refugio em direção ao conhecimento de irrealidade àquele cujo tônus vital dimi­
e essa fuga diante do real podem muito bem nui.
assinalar um desvio profissional de espe­
culativos puros. Contudo, o fato de louvar o Mas a reação às coisas, quer ela seja
sistema já constituído da razão ou sua ex­ afetiva, sensível ou motora, pertence ao ser
trapolação, à exclusão do real e das virtua­ vivo como tal e não comporta nada que deva
lidades novas que ele ainda poderia possuir ultrapassar os limites de sua vida. É, normal­
em potencial, é também como que uma pre­ mente, algo que recebe uma ação ou é senti­
caução conservadora. Quando essas virtua­ do, quer nas realidades cotidianas da existên­
lidades chegam, no entanto, a se impor, é a cia, quer, também, de maneira mais eletiva e
atividade racional como tal que parece tomar­ mais livre, por meio das atividades lúdicas ou
se ineficaz ou ilegítima. Nada impede, então, estéticas. O jogo, as artes, embora também
que a regressão se tom e cada vez mais pro­ suscetíveis de serem reduzidos a fórmulas
funda. Pois a razão desqualificada desapare­ objetivas, como qualquer outra manifesta­
ce diante do retomo â primazia da subjeti­ ção, inclusive as mais subjetivas, são o campo
vidade, sob suas formas, por vezes, mais onde o resíduo, deixado pela representação
primitivas, mais grosseiras ou mais brutais. rigorosamente realista das coisas, pode ex­
Toda licença é dada, contra as construções in­ primir-se, sob forma de objetos imaginários
telectuais, às intuições da sensibilidade vital, que possam saturar as necessidades da sensi­
contra o edifício das relações civilizadas, às bilidade fisiológica ou intelectual. Poder-se-
pulsões e aos mitos mais elementares dos de­ ia medir em que grau esse resíduo permanece
sejos biológicos. A época atual demonstrou- misturado, na criança, a sua imagem e a sua
nos isso de maneira cruel. explicação das coisas segundo o caráter lúdi­
O conhecimento exige representações co de sua atividade. Ainda não é suficiente a
totalmente relativas ao objeto e de onde seja diferenciação entre as necessidades objetivas
excluída a sensibilidade pessoal, fonte, no e as veleidades subjetivas. Porém, no adulto,
entanto, da experiência para cada indivíduo. essa diferenciação pode não impedir o sub­
A história das idéias mostra segundo qual jetivo de ser retido no plano da especulação
progressão essa eliminação realizou-se de intelectual. Reprimido sucessivamente das
objeto em objeto, desde a natureza inanimada categorias onde o real assume o aspecto de
até as formas de vida que parecem mais objetos estritamente determinados, ele tende
dotadas de espontaneidade. O próprio sujei­ a constituir como que uma sobrecategoria, a
to toma-se objeto para a psicologia, cujos do indeterminável, do inefável. Esse negativo
progressos são os da aptidão para encontrar é, então, dado como uma espécie de existên­
as fórmulas que expliquem a pessôa e seu cia suprema. Não seria ele insuflado pelo
comportamento, embora, frequentemente, se­ sentimento que cada um tem de seu ser, visto
CONCLUSÃO GERAL 513

que o individual é, então, levado ao univer­ estão à disposição do ser vivo, ele é feito de
sal, o efêmero é considerado como eterno? reações específicas, mas em relação essencial
de apropriação ou de acomodação com o que
DIALÉTICA DO ESPÍRITO E DA MATÉRIA constitui o meio delas. Entre elas e esse meio,
existe uma solidariedade indispensável, mas
As relações entre sujeito e objeto, assim que está se realizando perpetuamente. Não
como as relações entre real e conhecimento há, portanto, nem identidade preestabeleci-
ou entre psiquismo e organismo, ocasionam, da, nem redução total de um a outro, nem
portanto, confusões ou identificações viciosas, exterioridade radical, mas uma série de ações
cuja contrapartida é, com freqüência aliás, e de reações que mostram o esforço da idéia
uma oposição de certa forma amorfa. Em vez para envolver ou modificar a coisa e a resis­
de a diferenciação do sujeito e do objeto levar tência da coisa, que obriga a própria idéia a se
a relações onde cada um seja a condição do modificar. Esse duelo prossegue em todos os
outro, mas em planos diferentes, o sujeito níveis, quer da ação prática, quer da doutrina
como consciência das coisas, o objeto como e da experimentação científica. Sem esses
o lugar onde deve estar situada a existência conflitos, haveria uma estagnação do co­
de todos os seres, inclusive o sujeito, surgem nhecimento. É através deles que suas estru­
contaminações, ora do universo assimilado turas, inicialmente elementares, tomam-se
na pessoa de quem o percebe ou o pensa, mais precisas e organizam-se em sistemas cu­
solipsimo da criança, ora das coisas, cuja jo plano vai de complicações em simplifi­
existência eclipsa-se na das idéias que lhes cações alternantes, de modo a apreender, do
dão forma pensável, ora do próprio ser, assi­ real, tanto o detalhe exato quanto conjuntos
milado, para além de seus aspectos ob­ cada vez mais amplos.
serváveis e mensuráveis, ao resíduo subjetivo Entre o psiquismo e o organismo, são
que é, para cada um, apenas o sabor de sua cometidas as mesmas confusões. Ora há uma
própria vida. Na falta dessa mistura, os dois diferença essencial de natureza e ora há re­
termos permanecem face a face, sem outras dução de uma à outra. Em vez de comparar,
relações a não ser uma eventual oscilação de na série das espécies, a diversidade de com­
um para outro. portamentos e de morfologías corporais, suas
Assim, entre o real e sua representação, modificações simultâneas, suas correlações,
a única alternativa considerada é, freqüen­ suas influências recíprocas, há substituição
temente, apenas a de ver, nestas, o decalque dos próprios seres vivos, do homem e dos
das coisas ou, pelo contrário, o que impõe animais, por entidades vagas, como a cons­
suas estruturas e suas leis às coisas. Há sem­ ciência oposta à matéria. Onde começa uma,
pre o retomo ao idêntico, em vez de uma onde termina á outra? A matéria, sede aparen­
diferenciação baseada em atividades recí­ te da sensibilidade, pode ser dotada de
procas. A experiência mostra, contudo, os sensibilidade e, dentro da sensibilidade, em
choques perpétuos das idéias com a reali­ uma simples sensação, já existe ou não
dade, com seu acordo consecutivo ofere­ consciência ou inteligência? Simples defi­
cendo uma significação sobre a qual se deve nições que é lícito tornar, alternadamente,
meditar. O pensamento tem condições, um impermeáveis entre si ou comunicantes. Con­
material, estruturas que lhe são próprias e tudo, a única coisa que se deveria levar em
cujas manifestações espontâneas não têm conta é a descrição e a análise diferencial dos
nenhuma razão para coincidir, a partir de seu órgãos e das condutas.
aparecimento, com os objetos aos quãis é sua As coisas são sempre reduzidas a essên­
função estender-se. Ele é uma conduta nova cias correspondentes, em vez de serem es­
que se sobrepõe às outras. Como todas as que tudadas em suas relações. O ponto de vista da
514 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

eternidade substitui o da evolução. Supõe-se jas transformações são sempre suscetíveis de


que a criação seja anterior ao conjunto do serem reduzidas à situação inicial. Na ausência
real, em vez de proceder dele, etapa por eta­ dessa possibilidade, as mudanças perma­
pa. Há uma pretensa necessidade de reduzir neceriam como que irredutíveis entre si, sem
as coisas a uma causa imánente, sem con­ ordem determinada, e sem medida ou ele­
siderar conjunturas de onde podem surgir, mentos comuns. Seria uma espécie de re­
com um tipo novo de organização, mani­ novação absoluta, à qual a inteligência poderia
festações novas, tais como a vida ou o pen­ muito bem assistir, mas cujo mecanismo
samento. Toda vez que uma delas é consi­ escaparia à sua compreensão. Sua maneira
derada, só parece ser explicável com a con­ de realizar o que são as coisas é equacioná-
dição de prolongar suas origens até algo que las, ou seja, fazer com que o resultado seja a
já seria ela. Ò mesmo deve ser oriundo do soma das partes, dos fatores em jogo, da
mesmo. Espontaneamente, a inteligência en­ energia dispendida e que a passagem de um
cerra em seus próprios conceitos o objeto a outro seja sempre possível por análise ou
que eles definem; ela repugna à hetero- síntese. Essas são possibilidades intelectuais
geneidade aparente da causa e do efeito. Suas que por muito tempo fazem falta à criança.
representações são estáticas. Mas o real é As circunstâncias encadeiam-se em sua ima­
movimento e transformação. ginação, os objetos acrescentam-se entre si,
devido, evidentemente, a- certas afinidades
EVOLUÇÃO E REINOS quer qualitativas, quer ocasionais, mas que
HIERARQUIZADOS DO REAL permanecem indeterminadas e que são sus­
cetíveis de variar a cada momento, de tal
Aqui, ainda, surgem oposições, conflitos. modo que o resultado não é nem uma série,
Apesar de suas diferenças, as estruturas do nem uma enumeração e nem mesmo um
pensamento devem esforçar-se para atingir relato bem condicionado, mas uma simples
as das coisas. É uma dualidade de fato que sucessão, onde o encadeamento de um termo
ocasiona a dialética do espírito e da matéria. a outro tem razões particulares que tomam
Descartes já opusera os dois termos: o pen­ impossível atribuir-lhes um lugar no conjun­
samento e a extensão. Chegou mesmo a es­ to e reduzir o conjunto a um tema definido.
boçar, no Tratado das Paixões da Alm a em A passagem dessa etapa àquela que a segue
especial, uma tentativa de mostrar-lhes as é exatamente a do empirismo bruto ao
relações. Contudo, ainda prisioneiro do mun­ conhecimento. Contudo, a possibilidade ad­
do das essências, fê-los coextensivos. Em vez quirida, a partir de então, de percorrer a série
de procurar-lhes as relações genéticas, ele os em ambos os sentidos, do acontecimento
declarou como paralelos e simplesmente à inicial a suas conseqüências ou das con­
imagem um do outro ou como obedecendo seqüências ao acontecimento inicial, das
às mesmas leis. Isso é, portanto, ainda simples partes ao todo, das condições ao efeito, das
semelhança, nostalgia do idêntico. Pelo con­ forças em ação ao resultado, do primeiro ao
trário, o acordo do pensamento, se este for último sistema de posição ou vice-versa,
uma exigência do conhecimento, com as coi­ não pode abolir, se a ultrapassa ou a delimi -
sas não é um dado primordial, e sempre há, ta, a irreversibilidade que pode existir nas
entre os dois, uma distância de certa forma coisas.
essencial, que deve incitar o pensamento a Para medir essa irreversibilidade, a física
novas sistematizações. moderna descobriu a noção de entropia. Mas
Piaget pôde definir o ato intelectual atra­ a irreversibilidade não é encontrada apenas
vés da reversibilidade de suas operações. Ele em sistemas ou configurações com elementos
lhe deu, como protótipo, o grupo, sistema cu­ que permanecem semelhantes. Ela pode ser
CONCLUSÃO GERAL 515

inovadora, ascensional. Esse traço já aparece manifesta. O desenvolvimento do psiquismo


em certas maneiras de representar o real. só pode ser estudado em relação com o am­
Quando os adeptos da Gestalt declaram que biente complementar e específico que res­
há mais no conjunto do que na soma das ponde a cada uma de suas formas. O único
partes e que as partes recebem sua significação problema útil é o de questionar, face a cada
do conjunto, eles não suprimem a existência comportamento, as condições de base que o
das partes como tais, mas integram-nas em tomam possível e que relações ele toma possí­
uma forma superior de existência, onde elas veis, e depois a influência dessas relações
mantêm seu papel de elementos, mas de on­ sobre a situação subjetiva e objetiva, sobre o
de recebem uma organização de que a própria indivíduo e sobre o meio. Por exemplo, no
estrutura delas é apenas o instrumento que se homem, a influência recíproca de sua cons­
tornou como que anônimo. Essas relações tituição funcionale da civilização; na criança,
unilaterais apenas transpõem, para os es­ as relações de sua maturação fisiológica e do
quemas do conhecimento, um fato que se re­ ambiente social.
pete nas coisas em cada novo nível de exis­ Dizer que a irreversibilidade está nas
tência. coisas, enquanto a missão da inteligência é
A vida não é, evidentemente, redutível traduzi-las em fórmulas reversíveis, não é
às simples condições físicas cujo concurso é atribuir, ao pensamento, um objetivo que ele
necessário ao seu desenvolvimento. Ela inau­ jamais atingirá e perder a esperança de, através
gura leis de existência, que não possuem, dele, conhecer a estrutura do mundo. Muito
manifestamente, seu equivalente ao nível pelo contrário, os limites da reversibilidade e
precedente, mas nas quais conjunturas fa­ da irreversibilidade não são fixos, mas recuam
voráveis fizeram detectar um mundo ainda incessantemente, fazendo cair, no campo do
inerte, portanto inexistente, de causas e de conhecimento, territórios inteiros do real. Na
efeitos possíveis. A molécula viva é como que verdade, se, partindo de condições ante­
uma antena em um meio que ela desperta riormente existentes, julga-se que o fato novo
para o ser, embora só podendo existir através é inexplicável, isso ocorre porque seu próprio
dele. Em todas as etapas da vida, fatos se­ aparecimento implica um ciclo de causas e de
melhantes se reproduzem. O meio vital toma­ efeitos precedentemente inexistente e do qual
se um melo vivo, que também se modifica à ele é, simultaneamente, a causa e o produto.
medida que a vida nele se desenvolve e que O homem não é totalmente explicável através
espécies novas nele proliferam ou são dele da fisiología, pois seu comportamento e suas
eliminadas, ora criando, para outras, pos­ aptidões específicas têm, como complemento
sibilidades de existência e ora encontrando e como condição essencial, a sociedade, com
concorrências que limitam ou extinguem, tudo o que esta comporta, em cada época, de
com sua própria existência, sua influência técnicas e de relações em que se amoldam a
sobre outras existências. Assim, podem sur­ vida e as condutas diversas de cada um. É
gir, através dessas transformações do meio, muito difícil imaginar indivíduos inicialmente
condições favoráveis para novas formas de isolados, nos quais contatos mais ou menos
vida. ocasionais teriam suscitado as aptidões
Ocorre o mesmo para o psiquismo. Para necessárias à existência em comum. Assim
que se perguntar se ele começou ou não que surge o homem, o grupo e o indivíduo
com a vida? Ele também não é redutível às parecem ser indissoluvelmente solidários.
reações fisiológicas que o precedem e que o Porém, para citar um exemplo menos com­
condicionam. Seus diferentes níveis assi­ plexo, a célula viva só é possível quando
nalam, na vida, o advento de atividades que encontra imediatamente, no universo, o con­
modificam ou amplificam o meio onde ela se junto de circunstâncias necessárias às relações
516 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

vitais, novo império cujo real ela enriquece. nessa análise, eles atribuíram com o que uma
O m esm o ocorre, em seguida, para cada realidade ou um a virtude em si a um e a outro,
espécie viva, que molda, no universo, um opondo-os, um , com o o m undo exterior, a
meio para si própria, revelando, aí, um a ordem matéria, o mecanismo puros, o outro, como
de relações ou de virtualidades até então sem o atributo exclusivo da vida interior e da es­
manifestações nem realidade, por exemplo, piritualidade. Na realidade , sua separação é
as condutas relacionadas com atividades um artifício intelectual, cujas modalidades
sensoriais diferenciadas. Porém, revelar é habituais podem ser revisáveis conforme as
um a expressão insignificante, pois o meio é exigências da explicação científica. Para o
modificado por cada espécie, tanto para si que pertence à experiência imediata, não há
mesma quanto para outras, um as já presentes duração que não seja um ato ou um m o­
e outras cuja presença ou existência tornam- vimento que im plique o espaço; o reco­
se possíveis. Equilíbrio novo, que pode quer lhimento na “duração pu ra” é apenas um
se estabilizar, quer se rom per novam ente desejo; a inibição suspende, mas não suprime.
para se abrir, talvez, a novas formas de vida. E além disso, na explicação das coisas, não há
É evidente que, para cada nível dessas ações sistema sem móveis, cujos deslocam entos
e reações, pode repetir-se o ato intelectual impliquem o tempo. O próprio espaço é sen­
de equacionam ento, cuja conseqüência será, tido como dinâmico, é o espaço motor, o das
finalmente, m edir o limiar, de um reino para coisas a serem perseguidas ou evitadas, o das
outro, ultrapassado pela realidade através dè distâncias possíveis ou impossíveis. Mas, num
possibilidades favoráveis. segundo tem po, a representação intelectual
Assim, três m om entos opõem -se no co­ faz dele o espaço com intervalos mensuráveis,
nhecimento. Irreversibilidade absoluta do em­ cujas partes devem ser fixas, que é preciso
pirismo bruto, ou seja, simples sucessão de decom por em posições estáveis e simultâ­
impressões ou de imagens que um a coin­ neas, o espaço inerte. Contudo, esse espaço
cidência ou afinidades particulares unem in­ estático precisa ser com pletado p o r um espaço
dividualmente. Reversibilidade total do ato operatório, que é o poder de modificar de­
intelectual. Necessidade de integrar, alterna­ terminadas posições ou de realizá-las segundo
dam ente, um a na outra, a reversibilidade e a instruções. Este supõe a imagem de trajetórias,
irreversibilidade, para traduzir, ao mesmo mas que não são mais apenas subjetivas e
tem po, o que há de constância e de evolução gestuais, com o as do espaço sensorimotor,
nas coisas. E além disso, eventualm ente, re­ mas sim as de objetos em um cam po, dora­
dução de um irreversível em reversível, por vante, orientado e demarcado: é o terceiro
descoberta ou reprodução da conjuntura que tempo. Conforme as dificuldades da prova,
pôde fazer um a forma de existência passar esse poder de realização espacial pode
para um a outra. mostrar-se por mais ou m enos tem po defi­
Esses m om entos são encontrados du­ ciente na criança, para quem as indicações,
rante qualquer esforço, mesm o ainda ele­ mesmo dadas concretam ente, por exem plo,
mentar, para fazer a experiência sensível de cima para baixo, direita-esquerda, na
passar para o plano da representação inte­ frente-atrás, em cima-embaixo etc., podem
lectual. No m ovimento que se executa, por causar sérios embaraços.
exemplo, amplitude e ritmo estão dissociados; Um outro exem plo é o da causalidade,
a unidade deles tem algo de qualitativamente cuja noção intelectual é de desenvolvimento
irredutível a qualquer outro movimento. Ele mais tardio. A criança dem ora m uito para
é, contudo, mensuráv%l, reduzido a duas co­ poder ultrapassar a primeira fase, a da im­
ordenadas distintas, espaço e tem po. Certos pressão subjetiva e do fenomenismo, o n d e a
metafísicos chegaram até mesm o a se enganar impressão e o acontecim ento são con-
CONCLUSÃO GERAL 517

siderados como sua própria causa. Ela vive, tivemos oportunidade de observar nas res­
assim, na contingência e ainda não tem postas, nas primeiras operações mentais da
qualquer idéia da necessidade, que é a causa criança.
reduzida a constantes e equacionada. Mas, A existência de moléculas intelectuais
quando a necessidade surge, na pré-ado- como elementos primitivos do conhecimento
lescência, inicialmente ela tem uma rigidez está longe de justificar a concepção dita ato­
estereotipada, que toma sua aplicação fre­ mística da vida psíquica, e até mesmo a con­
qüentemente difícil e arbitrária. Será preciso tradiz. Nesta, a união se dá entre imagens ou
que ela se tom e capaz de se integrar ao curso idéias individualizadas e que já existem por si
diverso e mutável dos acontecimentos e mesmas. Aliás, ater-se estritamente à teoria é
constituir, dessa forma séries independentes. torná-la inconcebível. Pois, se é a simples
Não é impossível, vimos, que estas, através contigüidade que une as imagens, é preciso,
de seu encontro, possam explicar conjuntu­ portanto, que elas sejam simultâneas ou
ras únicas, situações, por vezes, sem retomo, sucessivas na sensibilidade que delas rece­
mas suscetíveis de imprimir, às coisas, um be a impressão, e da qual elas são apenas
impulso novo, de nelas fazer surgir uma ordem modalidades, cujas leis elas simplesmente
diferente das anteriores. traduzem. Se é a semelhança que une as ima­
gens, é preciso o conhecimento dessa seme­
O PENSAMENTO MOLECULAR lhança, que já supõe a atividade intelectual, e
através da qual encontra-se reintroduzido,
O ato do conhecimento supõe, ao mesmo sob sua forma de certo modo acabada, o que
tempo, unidade e diversidade: diversidade devia ser explicado.
das coisas sob a unidade das fórmulas. É de Os pares são formações ainda indi­
uma ou de outra que partiram aqueles que ferenciadas e como que indivisas. Unem dois
construíram a teoria delas. Com Hume e os termos, mas que ainda não são distintos.
empiristas, prevalece o ponto de vista das Além disso, entre a unidade do par e o dua­
coisas. O retomo delas criaria hábitos que lismo de seús termos, há confusão. A ex­
colocariam ordem na diversidade e a redu­ pressão espontânea do par é a identificação
ziriam a unidades conceituais. É preciso, dos dois termos, mesmo quando sua ver­
ainda, pressupor o poder de integração con­ dadeira relação é de oposição. A função que
ceituai, que não pode resultar automa­ parece inicialmente prevalecer é a da unidade,
ticamente da diversidade. Outros deram prio­ pois a dissociação dos termos unidos e o ato
ridade ao espírito, a seus princípios de uni­ de relacioná-los ocorrem apenas em segundo
dade. Mas como fazer nele entrara diversidade lugar. Há, portanto, unidade amorfa entre
das coisas? Nas duas hipóteses, isso é querer elementos que ainda estão sem indepen­
fazer os dois sistemas absorverem um ao dência mútua, sem realidade própria: só
outro, cada um tomado em seu conjunto e, existem no par relacionados um ao outro.
inicialmente, considerados como mutua­ Fora do par, evidentemente, no plano da vi­
mente opostos ou como constituídos cada da prática ou da linguagem, eles já possuem
um por si. Na realidade, há reação de um sua individualidade, sua identidade; mas,
sobre o outro em todos os níveis. Nos seus no plano propriamente intelectual, eles ini­
primórdios, o conhecimento possui apenas cialmente a perdem. Eles não são dois obje­
estruturas muito elementares. Assim como as tos, um objeto e uma qualidade; são o que
da vida, que se limitam, no início, a moléculas resulta da aproximação, ou melhor, o que a
de matéria viva, elas são moleculares. Um em aproximação acarreta. São a apreensão simul­
dois, dois em um, nada mais simples, e essa é tânea dos dois, sob o signo da estrutura em
a fórmula do par, cujo papel fundamental que encontram e que eles motivam. Algo de
518 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

análogo pode ser observado no plano da categoria define em seu conjunto. Mas a
sensibilidade, onde as diferenças de luz e diferença com o simples par é essencial. Pois
sombra, de nuanças, de cores, são percebidas eles são um term o na multidão dos possíveis,
antes do grau de claro ou de escuro, antes das e possuem, aí, seu lugar fixo e determ inado
próprias nuanças ou cores, de forma que a entre todos os outros.
mesma nuança pode ser dada como aquela Enquanto o vermelho for o do morango,
que lhe era oposta, se ela for, em seguida, a criança os considerará como tão equivalentes
aproxim ada de urna outra que tem, com ela, que apenas o m orango pode ser vermelho e
a mesma relação que ela tinha com a pre­ que o vermelho do m orango é o único que é
cedente. vermelho. Se, um instante depois, é seu pião
Nos pares intelectuais da criança, é que ela chama de vermelho, ela não mais
tam bém o contraste que, mais freqüente­ admitirá que esse vermelho permita aproxi­
mente, é a razão deles, em bora expresso, no mar o pião e o morango. Cada um a de suas
início, através de uma fórmula de assimilação. representações perm anece global e fechada.
Q ualquer outra estrutura pode, aliás, intervir, Para que ela admita que morangos possam
contanto que seja própria para surgir entre não ser vermelhos e que o verm elho possa
dois term os e tomá-los, dessa forma, per­ ser. a cor de quaisquer objetos, será preciso
ceptíveis ou inteligíveis. Pode até mesmo que ela duplique a percepção das coisas, ou
acontecer que a simples contigüidade pareça melhor, as imagens delas, em séries de certa
estar em causa, como em certas provas de forma ideais, onde cada uma delas, cada uma
memória, onde a aquisição se dá, na criança, de suas qualidades possa ser ordenada. Pois,
por pares sucessivos. Contudo, a formação é claro, não se trata, nesse caso, da coisa
de pares distintos em um a série contínua percebida, mas da coisa pensada, a qual é
mostra exatam ente que, à pura contigüidade, muito mais tardia no curso da evolução m en­
devem se sobrepor outras relações, as que tal.
dão existência a pares determinados.
Se os term os de um par, no início, não O REAL OBJETIVADO PELO
entram nele por si mesmos, mas apenas em PENSAMENTO DO VIRTUAL
função um do outro, disso deve resultar uma
conseqüência que, na verdade, é um traço O par, essa molécula inteléctual, está
freqüentem ente assinalado na atividade psí­ longe, portanto, de ser suficiente para a edi­
quica da criança, sua descontinuidade. Pois a ficação do conhecimento. Devido a sua es­
atração dos dois termos entre si é tão exclusiva, trutura exclusiva e fechada, ele lhe seria muito
a perda de sua identidade individual é tão mais um obstáculo. Ele é, contudo, indis­
total, que não lhes resta nenhum a dispo­ pensável a esse edifício. Ele já possui, em si,
nibilidade para qualquer uma das outras a dupla condição do saber, o único e o diverso,
relações particulares a cada um. Observamos, uma relação e termos a serem unidos, mas em
com freqüência, entre os pensam entos da estado ainda implícito, de forma que o fato a
criança, um a justaposição ou uma transdução ser explicado não existe mais: como se dá o
pura e simples. Isso resulta dos sistemas acordo entre dois term os inicialm ente
fechados nos quais a estrita dependência dos distintos. É, pelo contrário, uma diferenciação
term os entre si os encerra. Para ultrapassá- interna que justificará, ao mesmo tem po, a
los, para conquistar uma individualidade, forma e o conteúdo, com um a correspon­
seria-lhes necessário fundir-se em um a ca­ dendo ao ato intelectual e o outro à sua
tegoria ou distribuir-Se entre várias. Nova­ matéria. Aptidão e oportunidade para ela de
mente, o estado deles seria, nesse caso, o de se exercer são, ambas, intimamente com­
um entre outros termos, entre os que a plementares.
CONCLUSÃO GERAL 519

Essa diferenciação é a conseqüência possibilidades. O real só assume objetividade


daquela que se opera, no próprio conteúdo ao se tomar a expressão condicionada do
do par, entre os dois termos da estrutura que virtual. Ele só é pensável sob forma potencial.
nele se exprime. Eles não podem indi­ Se sobrevive aos conteúdos passageiros da
vidualizar-se sem que se individualize, tam­ consciência, às impressões ou às imagens,
bém, a razão de sua aproximação ou de sua isso ocorre porque possui sua medida em
oposição. Assim, surge a atividade do espírito outro lugar: em séries onde ele se classifica
face às coisas. Contudo, as coisas ainda têm segundo suas qualidades e os graus de suas
apenas uma realidade inteiramente relativa. qualidades. Não é necessário supor que os
Podem, sucessivamente, entrar, conforme as outros termos da série estejam realizados ou
circunstâncias, em estruturas diversas, aí se devam sê-lo. Basta uma série em potencial
alienando totalmente. Elas têm que conquistar para fundar a realidade atual da coisa e a
sua independência, sua existência por si. possibilidade de suas variações em outras
Uma solução radical, ainda arcaica aliás, é conjunturas ou para outros indivíduos. A mes­
subtrair essa existência das contingências, ma porque, eventualmente, diferente; dife­
onde elas estão praticamente sempre mis­ rente, embora, essencialmente, a mesma.
turadas, situando-a em um arquétipo, na Idéia Objetivar o real é pensá-lo em potencial,
platônica de cada coisa. A definição depurada ou sob forma catégorial, ou seja, em sua di­
delas toma-se não apenas sua verdade, mas versidade eventual, o que tem o duplo efeito
sua existência, e essa existência degrada-se, de tomar possíveis o controle das coisas e o
tornando-se mais ilusória à medida que as ajuste gradual do pensantento à realidade
imagens das coisas encontram-se combinadas. delas. Sem esse poder, que o pensamento
Essa é uma solução que reflete exatamente a tem, de considerá-las, através do que elas efe­
necessidade, observável também na criança, tivamente são, como um caso ou como um
de resolver as primeiras estruturas nas quais resultado que possuem seu lugar em séries
se encontra engajada a representação inte­ virtuais, a apreensão intelectual delas não ul­
lectual das coisas, para dar, delas, uma re­ trapassaria o simples empirismo. Não lhe é
presentação objetiva. Mas |ela ainda confunde, possível modelar-se segundo o real para dele
devido a essa fase do pensamento o real e sua fornecer uma representação estável e fiel,
imagem. Uma solução oposta é a que resta­ senão com a condição de possuir uma espé­
belece a união do real e da experiência par­ cie de iniciativa, a de supô-lo em sua produ­
ticular, da coisa individual, mas enquadrando- tividade.
a, com a ajuda de uma definição, na espécie Esse caráter potencial que se une à
ou no gênero de onde ela procede. Concepção representação catégorial é devido, aparen­
ainda ambígua, como o demonstrou a querela temente, à simples transferência, para o plano
dos universais, com a existência sendo situada intelectual, daquilo que já pertence a ativi­
ora no individual e ora no geral. dades subjacentes e anteriores, mas com as
Mas essa relação também pode ser en­ conseqüências particulares que estão ligadas
carada sob forma operatória. É como resultado à natureza das representações. Uma aptidão
da atividade intelectual que se realiza a opo­ motora, por exemplo, embora demonstrada
sição entre a coisa particular e a ordem onde apenas pelos gestos correspondentes, é, no
ela se classifica entre as coisas. Ela deixa de animal, um potencial que a oportunidade ou
ser a experiência subjetiva, momentânea, o jogo lhe revelam, mas que não é por eles
metamórfica que as respostas da criança ainda criada. Não é, necessariamente, uma expe­
fazem surgir, na medida em que se torna um riência anterior que lhe ensina o ato oportu­
caso que se une, através do indivíduo e de no, e cada situação particular é apenas um
circunstâncias particulares, ao mundo das episódio ao longo de sua atividade, cujas
520 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

possibilidades ela está longe de esgotar. A resulta do potencial representativo que toma
espontaneidade funcional precede e ul­ ele próprio como objeto, ou seja, como o uni­
trapassa todos os resultados considerados verso, e que quer se realizar nele, imediata e
individualmente. Sua soma, sem dúvida, em­ efetivamente? Resíduo metafísico do sincre­
bora inumerável, é limitada, ou melhor, será tismo que, na criança ou no pensamento pri­
limitada de fato, como deve sê-lo a existência mitivo, confunde a coisa e sua formulação
do animal e como o é sua energia. Mas esse mental.
limite é imprevisível e, enquanto não for
atingido, a aptidão permanecerá como um TRANSFERÊNCIAS FUNCIONAIS
poder anterior ao fato. Enquanto instância, a E SIMBOLISMO OPERATÓRIO
aptidão não tem limite. Limites só podem ser-
lhe atribuídos em extensão e em sucessão As transferências funcionais têm sua ima­
pela experiência. Contudo, o sujeito não dá a gem na evolução do sistema nervoso, onde a
esse potencial indefinido uma representação função ocular, por exemplo, começa com
infinita. Ele não lhe dá a representação, a não simples conexões ganglionares, depois emi­
ser que caia nas idéias de grandeza, e limita­ gra, de nível em nível, à medida que se de­
se a se sentir disposto. Salvo algum problema senvolvem novos focos de conexões fun­
mental, o campo da ação e o da representação cionais, atingindo, assim, até o córtex cerebral,
permanecem estanques. onde possui sua zona de projeção. A razão
Mas, no plano da representação, o ato desse escalonamento é manifesta. A cada
em potencial é suscetível de criar certas ilu­ vez, o fato visual integra-se em um novo sis­
sões. Se ele tem uma necessidade evidente de tema de reações, ao qual os precedentes são,
fazê-la liberar-se do atual e do indivíduo e doravante, mais ou menos intimamente su­
para dar-lhe um lugar em séries impessoais e bordinados. Pertencendo, no início, apenas a
permanentes, ele pode, também, deixar-se atividades reflexas, ele se torna participante
captar por ela e procurar, para si mesmo, uma das operações propriamente intelectuais, às
representação. Ele é o poder indefinido de quais deve fornecer imagens ou esquemas
imaginar, por exemplo, uma extensão ou óticos de que elas precisam. Essas integrações
uma distância após uma outra, contanto que sucessivas liberam, por etapas, a função de
a ocasião o queira ou por jogo. Contudo, co­ suas condições exteriores, sua primeira razão
mo o jogo considera-se a própria realidade, o de ser. Elas desenvolvem a espontaneidade
poder indefinido toma-se a extensão infinita, que parece pertencer-lhe no plano intelectual.
donde a antinomia, bem conhecida, do uni­ Contudo, a supressão de sua substância
verso que persegue limites que se esquivam sensorimotora exige substitutos, que são todo
incessantemente. Ouniverso, quedeveriaser o conjunto dos símbolos sobre os quais re­
unicamente objeto de experiência e ter apenas pousam as operações mentais. Sem dúvida,
a extensão exigida por ela, é, nesse caso, eles também possuem sua estrutura e suas
confundido com as virtualidades do ato leis, visíveis em todos os sistemas de lin­
intelectual. Isso é querer realizar, imediata­ guagem, desde os mais correntes e concretos
mente, sob forma representativa, o campo até os mais especiais. Sob essa condição, eles
inteiro e indeterminado do possível. Repre­ são facilmente combináveis entre si. Podem,
sentação impossível. O pensamento, ao subs­ dessa forma, ultrapassar os limites da expe­
tituir as coisas por sua própria atividade, riência, precedê-la eventualmente, mas tam­
toma-as impensáveis^ No plano sensorimo­ bém dela afastar-se ou falseá-la. É dessa forma
tor, o potencial é apenas potencial, e cabe que tomam fácil a construção de séries intei­
somente à experiência naostrar-lhe os limites ramente formais, que é lícito, em seguida,
no tempo e no espaço. Aqui, a antinomia opor-lhe como antinomias.
CONCLUSÃO GERAL 521

Os símbolos ou os signos são substitutos sofrem as condições desse meio que tomaram
e, exatamente por causa disso, instrumentos possível. Se ele ainda é primitivo, elas o são
de evocação. Por seu intermédio, atualizam- assim como ele, ou seja, ainda ligadas às
se, no espírito, na medida exigida pelo ato práticas e às figurações mais concretas. Então
mental, as noções ou as imagens que ele há, como também na criança, confusão do
implica. Esse poder evocador tem seus graus. gesto, do simulacro ou da palavra com a
Ele é muito mais eficaz quando o símbolo coisa. Elas disso se libertam à medida que as
torna-se menos aderente à coisa. A confusão relações da sociedade tomam-se mais sutis e
dos dois pode fazer com que se atribua, ao o pensamento mais especulativo. O instru­
objeto, o que é puro jogo de símbolos, mas, mento refina-se dessa maneira. Mas, sob essa
inversamente também, pode encadear-lhe a forma, ele não pode ser utilizado imedia­
imagem e o pensamento. Essas duas con­ tamente pela criança, pois as transposições
seqüências são observáveis na criança: ela correspondentes do concreto para o abstrato,
trata as coisas como se fossem conforme âs do empírico para o virtual, exigem espaços
fantasias de sua imaginação ou de sua lin­ cerebrais que só se permeabilizarão com­
guagem, por vezes, até mesmo transform áveis pletamente com a idade.
por elas; e insiste na descrição delas, em Assim, o desenvolvimento intelectual da
digressões, ao mesmo tempo, realistas e criança evidencia as coordenadas essenciais
subjetivas. Ela atesta, assim, um sincretismo e da evolução mental. As funções possuem,
uma inércia mental que opõem seu pensamento todas, um ponto inicial, a partir do qual o
ao lado do adulto, e podem dar-lhe um aspecto exercício poderá diferenciá-las, em ligação
de arcaísmo. com as situações às quais elas dão acesso.
Isso ocorre porque, na verdade, as fun­ Mas o próprio ponto inicial marca q instante
ções simbólicas e intelectuais não possuem em que a função toma-se possível através de
apenas subestruturas orgânicas, elas devem estruturas subjacentes. É à série desses pontos
desenvolver-se por si mesmas, no meio novo iniciais que conduz o estudo das origens do
que elas abrem à atividade do homem. Elas pensamento na criança.
INDICE DOS ASSUNTOS
Páginas

Introdução........................................... V

Duas explicações da inteligência. - Instinto e inteligência. - Inteligência


prática e pensamento. - As teorias do conhecimento. - O interrogatório e a criança.

LIVRO PRIMEIRO
OS MEIOS INTELECTUAIS

PRIMEIRA PARTE
A IDEAÇÃO ELEMENTAR

C apítulo prim eiro. - Os o b stá c u lo s................................................................................ 3


I a Mau contrato entre as crianças e seu interlocutor:
Reações de oposição. - Atitudes sistemáticas de ignorância ou de negação.
- Respostas de contorno.
2a Inércia intelectual da criança:
Atraso, descontinuidade, persistência de respostas.

Capítulo II. - As in su fic iên cias....................................................................................... 16


I a Caráter elíptico do pensam ento na criança. - Elipses de linguagem.
- Elipses de circunstâncias. - Elipses de imagens.
2a O pensam ento em ilhotas. - Condutas distintas e atividade dissociada.
-Dissociações devidas ao objeto. - Experiências fragmentárias e pensam ento
dissociado. - Inaptidão integrativa e contradições.

Capítulo III. - As e s tru tu ra s elem en tares, os “ p a re s ” ......................................... 30


A “fuga das idéias”. - O pensam ento molecular. - Primeiros procedim entos para
ultrapassar o par. - Pares por identificação ou pseudo-identificação perceptivas. -
Pares por assonância. - Automatismos de significação.- Frágil individualização e
ambivalência dos termos em pares. - Freqüência dos pares-contrates ou - oposições.
- Não-diferenciação dos termos complementares; reciprocidade.

Capítulo IV. - In te ra ç ã o dos p a r e s ................................................................................ 53


Exclusão mútua. - Fragmentação do termo comum. - Interferência de um
terceiro par. - Alógica dos pares: a elisâo. - Pares alótropos. - Transferência de relação
entre pares. - Modos e erros de ajustamento entre os pares e os fatos de experiência.
- Indeterminação das relações de realidade entre os termos dos pares. - Encadeamento
fabulatório dos pares. - Reviviscência do par no pensam ento patológico.
524 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Conclusões e comentários............................................................................................. 74
O comportamento intelectual da criança. - O comportamento ídeo-verbal. - As
descontinuidades do pensamento infantil. - As estruturas elementares. - Natureza
dos pares. - Papel intelectual dos pares. - Interações dos pares. - O par na evolução
mental. - Os pares e o pensamento de relação. - Dos pares às séries.

SEGUNDA PARTE

CONTRADIÇÕES E ANTINOMIAS

Capítulo primeiro. - As origens diversas do conhecim ento................................. 95


Ignorância subjetiva das origens. - Experiência pessoal e tradição:
a) o realismo perceptivo; b) a interpretação da linguagem: a interferência da
linguagem e das imagens perceptivas; c) os conhecimentos.

Capítulo II. - Ausência de planos distintos no pensam ento da c ria n ç a ........... 106
Desacordos do empirismo e do mito. - O mito e a experiência rotineira. -
Incapacidade da criança de dissociar o plano das causas do plano das coisas.

Capítulo III. - As dificuldades da coordenação m en tal....................................... 115


A indivisão do sujeito e do objeto. - Ambivalência ativo-passivo. - Mistura ou
troca de papéis entre agente e paciente. - Efeitos inversos de uma mesma causa.
Causa inversa de efeitos semelhates. - Flutuação dos atributos. - As antinomias na
criança. - A ordem da percepção e a da existência.

Conclusões e comentários........................................................................................ 131


Contradições entre as fontes de informação. - Não-diferenciação dos planos
intelectuais e incoerência das representações. - Flutuações e contradições. -
Antinomias. - Integração e diferenciação funcionais.

TERCEIRA PARTE

O SINCRETISMO NA CRIANÇA

Capítulo primeiro. - Insuficiência de organização m en tal................................... 149


Ausência de poder discriminative na criança. - Mutabilidade da base conceituai.
- Desvios e falsos trajetos.

Capítulo II. - Contaminações e digressões....................................................... 155


As contaminações do pensamento na criança.
Iе Contaminações de palavras. - Contaminações de motivos ou de temas. -
Resistência incoercível de um tema.
2“ As digressões: A inteligência função discriminativa.
Capítulo Ш. - Fabulaçáo e tautología............... 169
1° Fabulação: Relaxamento da ideação. - Necessidade de justificação e
desordem das idéias. - Extravagância e incoerência.
ÍNDICE DOS ASSUNTOS 525

2a Primeiros esforços em direção à coerência intelectual: a tautología. - Da


tautología à explicação circular.

Capítulo IV. - As confusões s in c ré tic a s. . ................................................................... 185


Confusão e substituição mútuas das qualidades simultâneas. - Assimilação
mútua entre categorias diversas. - Indeterminação entre modalidades do real.

Conclusões e com entários................................................................................................... 194


A representação global ou sincrética. - O pensável e o existencial. - O complexo
e o correlativo. - Pensamento de relação indiferenciada e mutabilidade do objeto
intelectual. - Contaminações e digressões. - Insuficiência de discriminação intelectual:
aglutinação e difluência. - Coerência e diversidade: a tautología e a fabulação. -
Tautología e pensamento de relação.

LIVRO SEGUNDO

AS TAREFAS INTELECTUAIS

Preâmbulo 211

PRIMEIRA PARTE

A REPRESENTAÇÃO DAS COISAS

Capítulo primeiro. - O in v e n tá rio .............................................................................. 217


I й O pensamento descritivo: A descrição gestual. - Do esquema ao individual.
- Descrição narrativa.
2a A enumeração: A enumeração de origem perceptiva e sensorimotora. -
Inconsistência do tema enumerativo. - Da analogia ao conceito.

Capítulo II. - A com paração............................................... 230


Contamináção mútua dos termos a serem comparados. - Mutabilidade das
imagens. - Preponderância absoluta ou alternante de um termo sobre outro. -
Conflitos entre as diversas qualidades dos objétos comparados. - Deslocamento ou
contaminação de uma mesma qualidade que pertence a objetos diferentes. - Recorte
dos objetos comparados um sobre o outro.

Capítulo III. - A identificação do O bjeto. O Q u alitativ o .............................. 244


Ia A identificação do objeto: A dispersão primitiva do objeto. - A confusão
dos objetos. - Substituições mútuas das qualidades. Substâncias, lugares. - A
qualidade específica e os graus na qualidade. - Discordâncias entre sistemas de
imagens. - O realismo qualitativo. - A não-permanência do objeto.
2a O qualitativo: Confusões e conflitos entre efeitos e qualidades.
3e Do particular aos variáveis: Imagens particulares, grandezas
incomensuráveis. - Contingência; ausência de proporcionalidade. - Contradições
entre a dedução e a observação.
526 AS ORIGENS DO PENSAMENTO NA CRIANÇA

Capítulo IV. - A definição........................................................................................... 272


Oposição da representação estática e da realidade móvel. - O idêntico no
diverso. - A simples concomitância. - Sucessão desordenada. - Identificação e
descrição do objeto. - Ativismo subjetivo e ordem objetiva das coisas. - Dedução e
observação. - Contrastes variáveis com o objeto. - A qualidade identificada ao objeto.
- Indeterminação do conteúdo qualitativo. - Sincretismo e formalismo. - Relação
diferencial substituindo a qualidade. - Ajustamento circular entre qualidade e objeto.
- Discordancias eventuais entre qualidades, substância, objeto. - Confusões de
sentidos intra e interqualitativos.

Conclusões e comentários............................................................................................. 314


Nascimento da representação. - Da impressão subjetiva à imagem. - Da imagem
à linguagem. - Interferências da comparação na representação. - A primeira etapa da
comparação. - A identidade do objeto. - O “mesmo” e suas significações. - Identidade-
assimilação e identidades de troca. - O objeto reduzido a suas propriedades. -
Propriedade percebida e propriedade integrativa ou catégorial. - O caráter normativo
do conhecimento. Suas dificuldades para a criança. - Unidade e diversidade. -
Definições qualitativas. - Intuição sincrética e pensamento formal. - O período pré-
categorial.

SEGUNDA PARTE

A EXPLICAÇÃO DO REAL

Capítulo primeiro. - As relações “ sensíveis” ........................................................ 347


Ie Noção de lugar: Confusão entre o lugar e a coisa. - O espaço qualidade.
- O espaço causalidade. - Indeterminação topográfica.
2® Noções de tempo: Indeterminação das noções de tempo. - O tempo-
qualidade. - Caráter vago e ambigüidade das fórmulas de tempo.
3° Movimento: Movimentos relativos, movimentos circulares, movimentos
recíprocos. - Movimento autônomo e movimento comunicado.

Capítulo II. - A causalidade........................................... 373


A prática da causalidade e sua representação. - Confusão dos termos e confusão
das relações. - Concomitância ou encadeamento. - Variabilidade fortuita das causas.
- Causalidade polimorfa. - Os pares e a causalidade. - Inversão causai, causalidade
circular. - Tipos combinados de causalidade. - Providencialismo-artificialismo. -
Finalismo. - Animismo. - Mecanismo instrumental. - Mecanismo e movimento. - As
dificuldades da explicação mecanicista. - Causa e substância. - Causa e qualidade. -
Contradições e oposições qualitativas. - Causalidade e tautologia.

,Conclusões e comentários................................................... 419


Extensão concreta e espaço meio. - Espaço sensível e espaço pensável. -Tempo
vivido e tempo objet^/o. - Tempos individuais. - O eventual. - Movimento real e
movimento-relação. - Eficiência sincrética e causalidade. - Empirismo e estruturas
intelectuais. - Mitos e realidade familiar. - Dificuldade da causalidade-relação. -
Condições intelectuais da causalidade.
ÍNDICE DOS ASSUNTOS 527

TERCEIRA PARTE

AS ULTRACOISAS

Capítulo primeiro. - O problem a das origens............................................... 446


Início absoluto e cronologia. - Recuo indefinido do ato criador. - Origem
heterogênea ou alternante. - Diversidade de origem conforme o objeto. - Ausência
de série integrativa. - Séries justapostas e reversíveis.

Capítulo II. - C rescim ento, vida e m o rte ................................................................. 467


Crescimento e contrastes estáticos. - Critérios variáveis da vida conforme o
objeto. - A morte, simples coleção de casos ou de aspectos particulares.

Capítulo III. - Céu, sol-lua, vento......................................................................... . 478


Confusão do céu atmosférico, sideral, místico. - Imagem fenomenista e
contrastada da lua e do sol. - Representação incoerente e sincrética do vento.

Conclusões e comentários............................................................................................. 493


O problema das origens e suas antinomias: o tempo e o ser. - Fragmentação
empírica e confusões lógicas. - Critérios exteriores e contradições. - Identificações
vagas e contraditórias.

Conclusão geral............................................................................................................ 504


Estruturas orgânicas e estruturas intelectuais do pensamento. - Estruturas
mentais e estrutura das coisas. - A Existência subjetiva e as das coisas. - Dialética do
espírito e da matéria. - Evolução e reinos hierarquizados do reaL - O pensamento
molecular. - O real objetivado pelo pensamento do virtual. -Transferências funcionais
e simbolismo operatório.

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