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º 0023202 - FESPSP
Após o término da ditadura militar no Brasil, o processo para a elaboração do novo texto
constitucional foi marcado por sua amplitude temporal e pela multiplicidade de interesses que
buscaram espaço na constituição, decorrente da fragmentação partidária e massiva participação
popular. O debate não se restringiu apenas as regras que deveriam ser contempladas pelo texto
constitucional, mas se estendeu sobre as regras internas para sua elaboração. Esse processo,
conturbado e aberto, impactou o texto promulgado.
1
MELO, Marcus André. (2013) “Mudança constitucional no Brasil: dos debates sobre regras de emendamento à
megapolítica”. Novos Estudos CEBRAP, v. 97, p. 187-206.
2
GOMES, Sandra. O impacto das regras de organização do processo legislativo no comportamento dos
parlamentares: um estudo de caso da Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988). Dados, Rio de Janeiro , v.
49, n. 1, p. 193-224, 2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582006000100008&lng=en&nrm=iso>. acessado em 01/07/2019
3
PRACA, Sérgio; NORONHA, Lincoln. Políticas públicas e a descentralização legislativa da Assembleia
Constituinte Brasileira, 1987-1988. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo , v. 27, n. 78, p. 131-147, fev. 2012 . Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092012000100009&lng=pt&nrm=iso>.
Acessado em 02/07/2019.
4
VIEIRA, Oscar Vilhena; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Do compromisso maximizador à resiliência
constitucional. Novos estud. CEBRAP, São Paulo , v. 37, n. 3, p. 375-393, Dez. 2018 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002018000300375&lng=en&nrm=iso>.
Acessado 30/06/2019
Arthur Gonçalves Spada – RA n.º 0023202 - FESPSP
Não obstante, a eleição indireta resultou na vitória de Tancredo Neves e de José Sarney
como vice, chapa de oposição moderada ao regime. Todavia, a inesperada morte de Tancredo
é a segunda grande frustração da sociedade do período, e que contribui ainda mais para o clima
de incerteza então vigente. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.379-380).
Essa composição não deve, no entanto, passar a impressão de que o pmdb consistia
numa força hegemônica na Constituinte. Além de sua tradicional fragmentação
interna, que sobrevive até hoje, o pmdb havia tido um inchaço artificial de seus
quadros nos anos anteriores, pois políticos oriundos das mais distintas origens
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ideológicas viam na adesão ao partido uma oportunidade para apagar seus vínculos
com o regime militar. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.380-381)
Para a presidência da ANC foi eleito Ulysses Guimarães, responsável pela organização
dos trabalhos e diálogo com todos os setores representados na assembleia. Já a Fernando
Henrique Cardoso, eleito senador, competiu a elaboração do primeiro Regimento Interno da
ANC. Este, previa a divisão dos constituintes em oito comissões temáticas, sendo cada uma
subdividida em três, totalizando 24 subcomissões. Mario Covas, líder do PMDB à época tinha
o poder de indicar os relatores das comissões.
A dispersão das forças conservadoras no início do jogo democrático deu uma posição
vantajosa aos progressistas no momento da elaboração do Regimento Interno10,
reforçada por outro fato. Com os primeiros resultados dos trabalhos constituintes,
tornou-se cada vez mais claro que a Comissão de Sistematização apresentava uma
sobre-representação das forças progressistas quando comparada ao Plenário. E esta
sobre-representação foi conseqüência da escolha estratégica de membros
considerados progressistas para compor a Comissão de Sistematização, pelo líder do
PMDB na Assembléia Nacional Constituinte, senador Mário Covas (Souza,
2001:520; Martínez-Lara, 1996:99; Jobim, 1994:41). (GOMES: 2006, P. 202)
Vieira-Barbosa, Melo e Praça-Noronha destacam que a imprevisibilidade do futuro,
decorrente não só do inerente ante a abertura democrática, mas também pela falta de confiança
da classe política, motivou a tentativa de inclusão de diversos interesses no seio da Constituição.
Assim, “Prevaleceu uma estratégia de garantias no curto prazo, em detrimento da adoção de
uma Constituição mais procedimental, que transferiria ao sistema político e às futuras gerações
o poder de conformar gradualmente a vida política, econômica e social brasileira.” (VIEIRA-
BARBOSA: 2018, p.382)
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Por essa razão, é que se pode afirmar que o trabalho das subcomissões foi influenciado
pela índole progressista de seus relatores, os quais “imaginavam que suas preferências seriam
minoritárias posteriormente, não só ao longo da Constituinte mas também nos anos que a
sucedessem.” (PRAÇA-NORONHA, 2012, p. 139)
O uso estratégico das regras internas pela ala mais à esquerda do PMDB permitiu uma
sobre-representação desses membros na Comissão de Sistematização quando
comparado à sua representação em plenário. Tal sobre-representação se refletiu no
conteúdo substantivo do Primeiro Projeto de Constituição. (GOMES: 2006, P. 217-
218)
Ao caráter progressista dos relatores e das regras do primeiro regimento interno da ANC
pode ser atribuída a abertura do processo constituinte para a sociedade civil, num momento no
qual o debate público ainda não tinha a transparência e a abertura como imperativos. A esse
respeito, Vieira-Barbosa ressalta que
Dado o imenso volume de informações, o trabalho tomou muito mais tempo que o
imaginado originalmente. O primeiro texto produzido pelo relator, batizado de
Frankenstein (Pilatti, 2008, p. 151), tinha nada menos que 501 artigos; foi sucedido
pelo projeto zero, com 496 artigos, ao qual foram apresentadas 20.791 emendas. Esse
período é marcado por uma enorme insatisfação tanto dos membros do plenário, que
se encontravam desinformados e alienados do que ocorria no interior da Comissão de
Sistematização, quanto do governo, que via a derrota sistemática de suas propostas.
Foi também um período de intenso trabalho e negociação na comissão, que gerou, ao
todo, nove projetos. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.384)
Não obstante, houve reação da ala mais conservadora ante o trabalho desempenhado
pelas comissões, a qual entendia que seus interesses não estavam sendo representados e que o
conteúdo do texto era progressista em demasia. Conforme Gomes destaca:
Isso demonstra que o trabalho da constituinte não foi marcado apenas pela disputa dos
interesses a serem encartados no texto constitucional, cuja tarefa já era extensa e conturbada
por si só, mas também houveram disputas e pactos políticos acerca das regras da própria ANC.
Esse novo regimento, representa a tentativa de centralização dos trabalhos em torno do plenário.
substanciais ao que havia sido elaborado no bojo das comissões, de modo que conclui não ter
sido o plenário responsável pelo detalhamento do texto, mas este já emergiu assim do trabalho
produzido pela Comissão de Sistematização a partir dos trabalhos setorizados. Nesse sentido,
O impacto do plenário na maioria dos títulos –ou seja, quanto o plenário acresceu ou
modificou em relação ao projeto da comissão de Sistematização – variou entre 20% e
30%. Os títulos constitucionais mais afetados foram “Da ordem econômica”, “Da
ordem social”, “Das disposições constitucionais gerais” e as disposições transitórias
(ADCT). É importante lembrar que os títulos diferem muito quanto à quantidade de
dispositivos. Enquanto o título I possui 22 dispositivos, o IV possui 537. (PRAÇA-
NORONHA, 2012, p. 135)
Assim, as políticas públicas que passaram a integrar o texto final da constituição são
fruto, em sua maioria, dos trabalhos desenvolvidos ainda na fase de comissões, e, conforme
Praça-Noronha, não foi a dinâmica do trabalho em plenário que motivou esse maior
detalhamento do texto.
A opção por uma constituição detalhada por sua vez era um imperativo da natureza
da fragmentada da barganha política, do alto grau de incertezas no momento dessas
escolhas institucionais e da explosão de demandas geradas em virtude do processo de
democratização e, da extensa participação no processo constituinte. (MELO: 2013, p.
195)
Ou seja, a predileção por cartas constitucionais enxutas demonstrada por parte dos
analistas citados pelos Autores, que resultou em críticas posteriores ao texto elaborado
conforme ressalta Praça-Noronha, deixa de considerar o que era factível naquele momento, ante
a emergência de interesses represados por vinte e um anos de regime militar e que encontraram,
numa ANC de índole decentralizada e notadamente progressista no âmbito das comissões, a
possibilidade de esteio de seus interesses.
Além disso, ainda que os Autores ora estudados sejam silentes a esse respeito, essa
exaltação do texto constitucional exíguo e principiológico, deixa de considerar a tradição
romano germânica na qual o direito brasileiro se faz inserido e no qual o direito positivado
prevalece em face daquele que é fruto das decisões judiciais e dos costumes. A esperança, pois,
de uma constituição sintética, aparenta ser a tentativa de importação de um modelo alheio a
nossa tradição, bem como que correspondesse com as possibilidades fáticas apresentadas.
Arthur Gonçalves Spada – RA n.º 0023202 - FESPSP
De forma mais detida, Melo assenta que a frequência de mudança constitucional não
deve ser vista como um defeito do texto elaborado, mas, além de ter sido antecipada pelos
constituintes, ante o seu agitado processo de elaboração, apenas em dois momentos poderiam
ser observadas mudanças substanciais da carta promulgada originariamente. O primeiro,
concentrado nos anos de 1995-1997 decorre de modificações, através de emendas
constitucionais, quanto o papel do Estado na economia; o segundo, fruto da interpretação da
constituição pelo STF, se concentra em 2008-2012 e está ligado, sobretudo, a aspectos sociais
e aos direitos individuais. (MELO: 2013, p. 199-201)
obstante seja possível consentir que não conduziram a uma ruptura fundamental naquilo que
foi elaborado pelo constituinte originário.
Porém, a análise de Vieira-Barbosa, por parecer estar assentada no fato de que somente
as cláusulas pétreas teriam natureza constitucional verdadeira (VIEIRA-BARBOSA: 2018,
p.389), torna o argumento quanto a inexistência de modificação expressiva do caráter do texto
constitucional original mais frágil, posto ser possível compreender que modificações de ordem
econômica ou referente aos poderes instituídos, por exemplo, afetam, ainda que indiretamente,
os demais capítulos e direitos constantes do núcleo duro da constituição.
Isso permite que a lealdade dos atores sociais a ela seja mantida, ante a frequente
revisitação à Constituição, bem como em razão de possibilidade de adaptação a novos tempos,
cuja proteção conferida ao núcleo duro ainda se apresenta de forma competente para evitar
rupturas democráticas e ambições temerárias momentâneas, e que pôde superar os testes de
risco aos quais esse âmago foi submetido.
Assim, ainda que possa haver debate quanto eventual descaracterização do texto original
e excesso de modificações após a sua promulgação, seja pelos mecanismos formais, ou fruto da
interpretação judicial, certamente aquilo que é basilar para a existência de um regime
democrático e que qualifica uma Constituição – uma declaração de direitos e a separação de
poderes – se encontra preservado em nossa lei fundamental, razão pela qual qualquer pretensão
quanto a uma nova constituinte deve levar em consideração a relevância do texto ora em vigor,
não podendo ser determinada por um anelo ocasional, posto poder resultar numa perda de
qualidade de seu produto final, que abra espaço para convicções desagradáveis.