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Arthur Gonçalves Spada – RA n.

º 0023202 - FESPSP

Políticas públicas constitucionalizadas: os reflexos da abertura do processo constituinte


no texto promulgado

Após o término da ditadura militar no Brasil, o processo para a elaboração do novo texto
constitucional foi marcado por sua amplitude temporal e pela multiplicidade de interesses que
buscaram espaço na constituição, decorrente da fragmentação partidária e massiva participação
popular. O debate não se restringiu apenas as regras que deveriam ser contempladas pelo texto
constitucional, mas se estendeu sobre as regras internas para sua elaboração. Esse processo,
conturbado e aberto, impactou o texto promulgado.

O presente ensaio, a partir dos estudos de Melo1, Gomes2, Praça-Noronha3 e Vieira-


Barbosa4, busca analisar que em razão as peculiaridades do processo constituinte, era inevitável
a promulgação de um texto que não fosse analítico e extenso, o qual contivesse diversas
políticas públicas constitucionalizadas, e que permitisse ainda o desdobramento de um processo
constituinte perene, em função da flexibilidade e inevitabilidade de emendas constitucionais
futuras, além da abertura do texto para a interpretação jurídica.

Os antecedentes do processo constituinte antecipavam a multiplicidade de atores e


interesses que se fariam presentes na discussão constitucional futura, além de denotar a urgência
com a qual estes compareceram para as discussões, diante das sucessivas frustrações
experimentadas ao longo da década de 80. Estes, colocavam em risco a esperança de um futuro
pós autoritário e representativo das demandas sociais.

Conforme destaca Vieira-Barbosa, a oposição ao regime autoritário ganha força no final


da década de 70, em razão da oposição que atores de peso da sociedade civil passaram a exercer

1
MELO, Marcus André. (2013) “Mudança constitucional no Brasil: dos debates sobre regras de emendamento à
megapolítica”. Novos Estudos CEBRAP, v. 97, p. 187-206.
2
GOMES, Sandra. O impacto das regras de organização do processo legislativo no comportamento dos
parlamentares: um estudo de caso da Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988). Dados, Rio de Janeiro , v.
49, n. 1, p. 193-224, 2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582006000100008&lng=en&nrm=iso>. acessado em 01/07/2019
3
PRACA, Sérgio; NORONHA, Lincoln. Políticas públicas e a descentralização legislativa da Assembleia
Constituinte Brasileira, 1987-1988. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo , v. 27, n. 78, p. 131-147, fev. 2012 . Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092012000100009&lng=pt&nrm=iso>.
Acessado em 02/07/2019.
4
VIEIRA, Oscar Vilhena; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Do compromisso maximizador à resiliência
constitucional. Novos estud. CEBRAP, São Paulo , v. 37, n. 3, p. 375-393, Dez. 2018 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002018000300375&lng=en&nrm=iso>.
Acessado 30/06/2019
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contra o regime. Ressaltando o afastamento da Ordem dos Advogados do Brasil e da Igreja


Católica do Regime, bem como a decisão do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de
1.977 em apoiar uma constituinte. Paralelamente, o movimento sindical surgido no ABC se
robustece e elege representantes nas assembleias estaduais. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.
379-378).

Em paralelo, o movimento de “Diretas Já”, para a aprovação da emenda Dante de


Oliveira, a qual possibilitaria a eleição direta para a presidência da república, que mobilizou
diversos setores da sociedade civil – desde os movimentos operários a times de futebol – é a
primeira grande frustração do período, diante da manobra política executada pelo regime
autoritário para sua rejeição.

Não obstante, a eleição indireta resultou na vitória de Tancredo Neves e de José Sarney
como vice, chapa de oposição moderada ao regime. Todavia, a inesperada morte de Tancredo
é a segunda grande frustração da sociedade do período, e que contribui ainda mais para o clima
de incerteza então vigente. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.379-380).

Dessa maneira, a possibilidade de elaboração de uma nova constituição serviu para


centralizar todas as frustrações e interesses da sociedade civil, cujo trabalho se antecede de um
debate sobre a melhor forma de convocação de uma constituinte; uma constituinte exclusiva e
soberana, ou uma assembleia técnica que reformasse a constituição anterior, diante da
pacificidade da transição. O presidente Sarney, em 1.985 encaminhou ao congresso nacional
um processo de emenda, para a instalação de uma constituinte instituída, o que significava a
vitória daqueles que pretendiam a elaboração de uma constituição pelos “juristas da coroa”.

A discussão do projeto encaminhado pelo Executivo, resultou na aprovação do


substitutivo apresentado pelo Deputado Federal Valmor Giavarin, convertido na emenda
constitucional n.º 26 de 1.985, a qual estabeleceu que os congressistas eleitos em 1.986 iriam
compor a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), que se reuniria a partir de 1º de fevereiro
de 1.987.

Conforme esclarece Vieira-Barbosa, o resultado desse pleito eleitoral foi influenciado


pelo plano cruzado que gerou uma rarefeita estabilidade econômica. Assim, o PMDB foi o
partido que conquistou o maior número das cadeiras em disputa. Todavia:

Essa composição não deve, no entanto, passar a impressão de que o pmdb consistia
numa força hegemônica na Constituinte. Além de sua tradicional fragmentação
interna, que sobrevive até hoje, o pmdb havia tido um inchaço artificial de seus
quadros nos anos anteriores, pois políticos oriundos das mais distintas origens
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ideológicas viam na adesão ao partido uma oportunidade para apagar seus vínculos
com o regime militar. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.380-381)
Para a presidência da ANC foi eleito Ulysses Guimarães, responsável pela organização
dos trabalhos e diálogo com todos os setores representados na assembleia. Já a Fernando
Henrique Cardoso, eleito senador, competiu a elaboração do primeiro Regimento Interno da
ANC. Este, previa a divisão dos constituintes em oito comissões temáticas, sendo cada uma
subdividida em três, totalizando 24 subcomissões. Mario Covas, líder do PMDB à época tinha
o poder de indicar os relatores das comissões.

O trabalho desenvolvido por essas comissões, seria encaminhado à Comissão de


sistematização, que seria responsável por organizar e sistematizar o trabalho das comissões e
enviar o projeto final ao plenário. A segunda fase do processo, consistia na votação em plenário,
onde a derrubada de dispositivos do projeto demandaria a votação por maioria absoluta.

A esse respeito, Vieira-Barbosa ressalta que a

Assembleia Constituinte teria assumido um caráter descentralizador na elaboração da


matéria constitucional, mas centralizado nas etapas de sistematização e votação em
plenário (Gomes, 2006, p. 195). Foi essa característica que possibilitou incluir as mais
diversas matérias no primeiro projeto, as quais se mantiveram, em grande medida, no
texto final. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.382)
O caráter descentralizado do procedimento previsto pelo Regimento Interno, com
predomínio das comissões na elaboração do conteúdo constitucional do texto, combina com o
perfil tido como progressista de FHC e Mario Covas, como visto por seus pares à época. Gomes
também ressalta que isso se deu em razão de as forças conservadores se encontrarem dispersas
no início do processo constituinte e a elaboração do regimento interno, assim,

A dispersão das forças conservadoras no início do jogo democrático deu uma posição
vantajosa aos progressistas no momento da elaboração do Regimento Interno10,
reforçada por outro fato. Com os primeiros resultados dos trabalhos constituintes,
tornou-se cada vez mais claro que a Comissão de Sistematização apresentava uma
sobre-representação das forças progressistas quando comparada ao Plenário. E esta
sobre-representação foi conseqüência da escolha estratégica de membros
considerados progressistas para compor a Comissão de Sistematização, pelo líder do
PMDB na Assembléia Nacional Constituinte, senador Mário Covas (Souza,
2001:520; Martínez-Lara, 1996:99; Jobim, 1994:41). (GOMES: 2006, P. 202)
Vieira-Barbosa, Melo e Praça-Noronha destacam que a imprevisibilidade do futuro,
decorrente não só do inerente ante a abertura democrática, mas também pela falta de confiança
da classe política, motivou a tentativa de inclusão de diversos interesses no seio da Constituição.
Assim, “Prevaleceu uma estratégia de garantias no curto prazo, em detrimento da adoção de
uma Constituição mais procedimental, que transferiria ao sistema político e às futuras gerações
o poder de conformar gradualmente a vida política, econômica e social brasileira.” (VIEIRA-
BARBOSA: 2018, p.382)
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Praça-Noronha analisa esse argumento de forma aprofundada, propondo duas hipóteses


acerca da incerteza que imperava na assembleia constituinte. Nesse sentido,

A primeira é que parlamentares especializados em determinados temas estavam mais


propensos a ceder a pressões durante a fase das comissões temáticas, quando era mais
fácil adiantar uma agenda legislativa substantiva, devido ao número reduzido de
atores com os quais negociar, e também à presença de vários atores políticos nas
comissões. Encabeçando esse processo estavam os relatores progressistas que, cientes
de seu status minoritário na Constituinte, procurariam avançar agendas contrárias ao
interesse da maioria em plenário. (PRAÇA-NORONHA, 2012, p. 137)
O argumento é fundamentado a partir da medida ideológica dos constituintes, de acordo
com a classificação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). O
resultado é que “18 dos 24 relatores das subcomissões estavam à esquerda de seus partidos, e
seis dos oito relatores das comissões temáticas eram progressistas em relação aos demais
membros das comissões.” (PRAÇA-NORONHA, 2012, p. 137)

Por essa razão, é que se pode afirmar que o trabalho das subcomissões foi influenciado
pela índole progressista de seus relatores, os quais “imaginavam que suas preferências seriam
minoritárias posteriormente, não só ao longo da Constituinte mas também nos anos que a
sucedessem.” (PRAÇA-NORONHA, 2012, p. 139)

Ao analisar as regras da ANC, Gomes demonstra que a índole progressista da elaboração


do Regimento Interno também prevaleceu em suas regras, sobretudo porque “o comportamento
dos parlamentares não pode ser previsto com base apenas na agregação das preferências
individuais majoritárias” (GOMES: 2006, P. 217) de modo que

O uso estratégico das regras internas pela ala mais à esquerda do PMDB permitiu uma
sobre-representação desses membros na Comissão de Sistematização quando
comparado à sua representação em plenário. Tal sobre-representação se refletiu no
conteúdo substantivo do Primeiro Projeto de Constituição. (GOMES: 2006, P. 217-
218)
Ao caráter progressista dos relatores e das regras do primeiro regimento interno da ANC
pode ser atribuída a abertura do processo constituinte para a sociedade civil, num momento no
qual o debate público ainda não tinha a transparência e a abertura como imperativos. A esse
respeito, Vieira-Barbosa ressalta que

o conteúdo da agenda de discussão constitucional foi sendo definido em meio à


disputa política. Estima‑se que cerca de 9 milhões de pessoas passaram pela
Constituinte entre março e novembro de 1987. Realizaram‑se 182 audiências públicas,
e 11.989 propostas e 6.417 emendas e anteprojetos foram encaminhados (Abreu,
2001). Nessa etapa a Constituinte funcionou como um verdadeiro aspirador de
demandas sociais, por vinte anos reprimidas pela ditatura e pela enorme frustração
com a derrota da campanha das Diretas. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.382)
Com tantos interesses em discussão e o caráter aberto e participativo do processo
constituinte, não seria factível imaginar que o resultado seria um texto enxuto, que apenas se
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propusesse a regular direitos fundamentais e a organização do Estado. Aliás, o extenso trabalho


decorrente desse processo é ressaltado por Vieira-Barbosa, ao destacar que

Dado o imenso volume de informações, o trabalho tomou muito mais tempo que o
imaginado originalmente. O primeiro texto produzido pelo relator, batizado de
Frankenstein (Pilatti, 2008, p. 151), tinha nada menos que 501 artigos; foi sucedido
pelo projeto zero, com 496 artigos, ao qual foram apresentadas 20.791 emendas. Esse
período é marcado por uma enorme insatisfação tanto dos membros do plenário, que
se encontravam desinformados e alienados do que ocorria no interior da Comissão de
Sistematização, quanto do governo, que via a derrota sistemática de suas propostas.
Foi também um período de intenso trabalho e negociação na comissão, que gerou, ao
todo, nove projetos. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.384)
Não obstante, houve reação da ala mais conservadora ante o trabalho desempenhado
pelas comissões, a qual entendia que seus interesses não estavam sendo representados e que o
conteúdo do texto era progressista em demasia. Conforme Gomes destaca:

O que é importante destacar aqui é que esse formato (o tamanho do Projeto de


Constituição) trouxe consigo um problema de conteúdo, já que o Projeto de
Constituição-A parecia muito mais progressista do que a maioria das forças políticas
na Assembléia Nacional Constituinte teria preferido. E o aspecto substantivo do
Projeto-A foi o resultado de uma predominância estratégica das forças progressistas
no começo dos trabalhos constituintes combinado à facilidade de formação de
maiorias nas Comissões e subcomissões e, em especial, na Comissão de
Sistematização. (GOMES: 2006, P. 201)
Esta ala, que se tornou conhecida como “Centrão” – para se diferenciar de uma alegada
predominância da esquerda na constituinte – se articulou para a mudança do regimento interno
da ANC, de modo a possibilitar que tivessem o condão de retirar as comissões o amplo poder,
uma vez que compreendiam estar alijados do processo por não fazer parte destes polos de poder.

Isso demonstra que o trabalho da constituinte não foi marcado apenas pela disputa dos
interesses a serem encartados no texto constitucional, cuja tarefa já era extensa e conturbada
por si só, mas também houveram disputas e pactos políticos acerca das regras da própria ANC.
Esse novo regimento, representa a tentativa de centralização dos trabalhos em torno do plenário.

Para Gomes, essa alteração motivou que o processo constituinte praticamente se


retornasse ao seu ponto de partida, motivo de ainda maior atraso nos trabalhos da ANC
(GOMES: 2006, p. 195). Praça-Noronha discorda dessa perspectiva, pois “Nossa análise
mostra, no entanto, que o impacto da mudança regimental foi bastante desigual nos diversos
assuntos tratados pela Constituição e que o aproveitamento do anteprojeto produzido na
Comissão de Sistematização foi alto.” (PRAÇA-NORONHA, 2012, p. 136)

Essa análise de Praça-Noronha, centralizada no estudo das modificações havidas no


texto da constituição durante a fase de comissões e em comparação com as modificações
havidas em plenário, demonstra por meio de dados que o plenário não trouxe inovações
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substanciais ao que havia sido elaborado no bojo das comissões, de modo que conclui não ter
sido o plenário responsável pelo detalhamento do texto, mas este já emergiu assim do trabalho
produzido pela Comissão de Sistematização a partir dos trabalhos setorizados. Nesse sentido,

O impacto do plenário na maioria dos títulos –ou seja, quanto o plenário acresceu ou
modificou em relação ao projeto da comissão de Sistematização – variou entre 20% e
30%. Os títulos constitucionais mais afetados foram “Da ordem econômica”, “Da
ordem social”, “Das disposições constitucionais gerais” e as disposições transitórias
(ADCT). É importante lembrar que os títulos diferem muito quanto à quantidade de
dispositivos. Enquanto o título I possui 22 dispositivos, o IV possui 537. (PRAÇA-
NORONHA, 2012, p. 135)
Assim, as políticas públicas que passaram a integrar o texto final da constituição são
fruto, em sua maioria, dos trabalhos desenvolvidos ainda na fase de comissões, e, conforme
Praça-Noronha, não foi a dinâmica do trabalho em plenário que motivou esse maior
detalhamento do texto.

A despeito da multiplicidade de interesses que se fizeram presentes no momento da


constituinte, a discussão acerca do tipo de constituição a ser elaborada - se extensa e analítica
ou enxuta e principiológica – também se fez presente. Sem descer a minúcia dos antecedentes
históricos, como fazem Vieira-Barbosa e Praça-Noronha, Melo traz à tona como essa discussão
se deu no interior da ANC, e destaca que embora houvesse a preferência dos constituintes pela
elaboração de um texto enxuto, tal não seria factível ante o quadro que se apresentada, assim,

A opção por uma constituição detalhada por sua vez era um imperativo da natureza
da fragmentada da barganha política, do alto grau de incertezas no momento dessas
escolhas institucionais e da explosão de demandas geradas em virtude do processo de
democratização e, da extensa participação no processo constituinte. (MELO: 2013, p.
195)
Ou seja, a predileção por cartas constitucionais enxutas demonstrada por parte dos
analistas citados pelos Autores, que resultou em críticas posteriores ao texto elaborado
conforme ressalta Praça-Noronha, deixa de considerar o que era factível naquele momento, ante
a emergência de interesses represados por vinte e um anos de regime militar e que encontraram,
numa ANC de índole decentralizada e notadamente progressista no âmbito das comissões, a
possibilidade de esteio de seus interesses.

Além disso, ainda que os Autores ora estudados sejam silentes a esse respeito, essa
exaltação do texto constitucional exíguo e principiológico, deixa de considerar a tradição
romano germânica na qual o direito brasileiro se faz inserido e no qual o direito positivado
prevalece em face daquele que é fruto das decisões judiciais e dos costumes. A esperança, pois,
de uma constituição sintética, aparenta ser a tentativa de importação de um modelo alheio a
nossa tradição, bem como que correspondesse com as possibilidades fáticas apresentadas.
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O que se denota, ao conjugar todos os entendimentos analisados no presente ensaio, a


despeito dos focos pretendidos em cada pesquisa, é que a constituição de 1.988 é resultado de
um amplo processo de participação da sociedade e que aconteceu, sobremaneira, no seio das
comissões temáticas, as quais se abriram para interesses diversos e que souberam penetrar nos
relatórios apresentados. Por outro lado, essa extensa gama de interesses contemplados,
conduziu a discussão a respeito das regras da própria ANC, que todavia, não tiveram maiores
êxitos que o poder de veto das propostas mais progressistas, ante a dissonância interna da ala
mais conservadora.

Se Praça-Noronha ressalta o trabalho desenvolvido na introdução das políticas públicas


no bojo da constituição, Melo, ao buscar analisar as regras de emendamento aprovadas para a
Constituição, demonstra que o resultado foi a promulgação de uma das constituições mais
flexíveis de toda a América Latina, a qual, por outro lado, possui um núcleo político duro, no
qual os direitos individuais, a federação, o voto universal e a separação de poderes são
imutáveis. O que prevaleceu, ainda que não pudessem haver concordância com os demais
interesses, é que o trauma do período autoritária deveria ser evitado, de modo assegurar um
núcleo de organização política e de direitos impossível de ser modificado por anseios futuros.

Nessa linha, Vieira-Barbosa ressalta que em razão desse núcleo imutável, a


Constituição promulgada pôde se acomodar as pressões sofridas ao longo de sua vigência, o
que demonstraria a resiliência do texto constitucional, ao que acrescenta que as mudanças,
através de seu frequente emendamento, não teriam atingido o núcleo político e de direitos, cujo
único abalo aos direitos sociais ocorreu com a emenda n.º 95/2016, que estabeleceu um teto
para gastos públicos. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.387)

De forma mais detida, Melo assenta que a frequência de mudança constitucional não
deve ser vista como um defeito do texto elaborado, mas, além de ter sido antecipada pelos
constituintes, ante o seu agitado processo de elaboração, apenas em dois momentos poderiam
ser observadas mudanças substanciais da carta promulgada originariamente. O primeiro,
concentrado nos anos de 1995-1997 decorre de modificações, através de emendas
constitucionais, quanto o papel do Estado na economia; o segundo, fruto da interpretação da
constituição pelo STF, se concentra em 2008-2012 e está ligado, sobretudo, a aspectos sociais
e aos direitos individuais. (MELO: 2013, p. 199-201)

Ou seja, a resiliência a que alude Vieira-Barbosa talvez não tenha levado em


consideração esses importantes momentos de reforma da constituição citados por Melo, não
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obstante seja possível consentir que não conduziram a uma ruptura fundamental naquilo que
foi elaborado pelo constituinte originário.

Porém, a análise de Vieira-Barbosa, por parecer estar assentada no fato de que somente
as cláusulas pétreas teriam natureza constitucional verdadeira (VIEIRA-BARBOSA: 2018,
p.389), torna o argumento quanto a inexistência de modificação expressiva do caráter do texto
constitucional original mais frágil, posto ser possível compreender que modificações de ordem
econômica ou referente aos poderes instituídos, por exemplo, afetam, ainda que indiretamente,
os demais capítulos e direitos constantes do núcleo duro da constituição.

Vieira-Barbosa ainda argumenta quanto a legitimidade da Constituição, decorrente do


processo de ampla participação e dos setores envolvidos para a sua elaboração, o que garante
certo grau de lealdade constitucional para a sua preservação e que

o processo constituinte nunca se encerrou, ao menos no que se refere a suas clausulas


periféricas. A incompletude do texto manteve os atores políticos em permanente
disputa para determinar o sentido da Constituição, reforçando sua centralidade como
eixo ou agenda a pautar a realização da política. (VIEIRA-BARBOSA: 2018, p.389)
Tal argumento se coaduna com o entendimento proposto por Melo, no sentido de que
as mudanças constitucionais posteriores, e a possibilidade – bem como a forma - de
interpretação do texto pelo Supremo Tribunal Federal, acontece num ambiente de visibilidade
e megapolítica, cuja legitimidade das decisões decorre de estarem assentadas nos valores
adotados pelo texto da Constituição, fruto do debate democrático que cercou a sua elaboração.
Assim,

Se a corte tivesse impingido à nação um conjunto de valores normativos


autorreferidos e descolados da sociedade as decisões do STF seriam vistas como
ilegítimas. Mas claramente este não é o caso. Os valores embutidos nas decisões da
corte foram forjados no marco da transição à democracia no Brasil e constituem, com
raras exceções, um conjunto de crenças partilhadas por setores majoritários da
sociedade. (MELO: 2013, p. 205)
Tem-se, então, que a constituição elaborada em 1.988 é fruto de um extenso debate
político e social, que a despeito de motivar a introdução de diversas políticas públicas no seu
interior, não retirou a legitimidade democrática das discussões posteriores acerca destas, uma
vez que foi dado amplo espaço para a interpretação de suas cláusulas, o que mobiliza o debate
político em torno da atribuição de sentido da Constituição, como também optou-se pela
introdução de regras flexíveis para a aprovação de emendas ao texto, como forma de permitir
mudanças frente as necessidades de adaptação às realidades distintas das previstas quando tais
políticas foram nela introduzidas.
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Isso permite que a lealdade dos atores sociais a ela seja mantida, ante a frequente
revisitação à Constituição, bem como em razão de possibilidade de adaptação a novos tempos,
cuja proteção conferida ao núcleo duro ainda se apresenta de forma competente para evitar
rupturas democráticas e ambições temerárias momentâneas, e que pôde superar os testes de
risco aos quais esse âmago foi submetido.

Assim, ainda que possa haver debate quanto eventual descaracterização do texto original
e excesso de modificações após a sua promulgação, seja pelos mecanismos formais, ou fruto da
interpretação judicial, certamente aquilo que é basilar para a existência de um regime
democrático e que qualifica uma Constituição – uma declaração de direitos e a separação de
poderes – se encontra preservado em nossa lei fundamental, razão pela qual qualquer pretensão
quanto a uma nova constituinte deve levar em consideração a relevância do texto ora em vigor,
não podendo ser determinada por um anelo ocasional, posto poder resultar numa perda de
qualidade de seu produto final, que abra espaço para convicções desagradáveis.

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