Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-900551-0-1
1. Psicanálise. 2. Histeria. 3. Psicologia. 4. Sexo. 5. Sexualidade
6. Lacan, Jacques, 1901-1981. I. Título.
CDD: 150.1952
CDU: 159.964.2
Além disso, é interessante não esquecer que a peça encena em 1976 o tra-
tamento de uma paciente histérica que Freud atendeu por volta de 1900;
portanto, no momento da encenação da peça quase oitenta anos da presença
da psicanálise no campo do discurso e da civilização já se passaram. Isso é
importante para que não percamos de vista o que eram a intervenção e a
presença do analista na relação com as histéricas em meados dos anos 1900,
momento inaugural da psicanálise.
Eis alguns dos diálogos que nos apresentam Dora e Freud, tal como retrata-
dos por Cixous:
Dora: Quando eu quis me fechar no quarto à tarde para descansar, não tinha
mais chave lá. Eu tenho certeza que foi o Sr. K. que a retirou de lá.
Freud: Naturalmente, a gente não pode desconhecer se uma moça está
“aberta” ou “fechada”. É obvio qual chave seria usada para “abrir” em tal caso.
Dora: Eu tinha “certeza” que você diria isto! (CIXOUS, 1975/2004, p. 46.
Tradução minha.)
Temos aqui uma primeira interpretação que leva em conta o falo e que produz
efeitos de significação alusivos ao sexual. Que a frase “Eu tinha ‘certeza’ que
você diria isto!” insista ao longo da peça é interessante, pois nos diz de um
modo de recepção da psicanálise na cultura, ou seja, espera-se de um analista
que ele faça interpretações alusivas ao sexual, obviamente. Dora interpela
Freud várias vezes nesse sentido:
Freud: Se é a sua bolsa que você está procurando, ela está aí no seu colo. Você
não parou de brincar com ela na última meia hora. Por falar nisso, ela é bem
bonita.
Dora: [Com um tom de suspeita] É a primeira vez que você a notou?
Freud: É a primeira que vejo você com ela. Aqui, de qualquer modo.
Dora: Eu levo minha bolsa comigo para todo lugar que vou. Sempre.
[angustiada] A bolsa está muito presa, olhe aqui. Eu estava brincando com
ela porque eu não conseguia abri-la. Aqui: olhe como o fecho está apertado.
É impossível abri-la.
Freud: Você não acha que as suas palavras podem estar se referindo a alguma
outra coisa que não a sua bolsa?
Dora [com ódio]: Sim, se você quer assim. Isso é o que os homens gostam de
pensar.
Freud: Aquele cuja língua é silenciosa, fala com seus dedos. Palavras ambí-
guas são como agulhas no espaço da associação livre.
Freud: O segredo está com a sua mãe. Qual papel sua mãe desempenha aqui?
Ela foi, em um certo momento, sua rival em relação ao amor do seu pai.
Dora: Eu “sabia” que “vocês” iriam dizer isso.
Dora: Diga-me doutor, por que exatamente esta doença me atingiu, por que
eu particularmente?
Freud: Qual doença? Você não está...
Dora: [interrompendo] É uma doença que vem do meu pai. Ele já estava
doente antes do seu casamento, por causa de sua vida dissoluta. É um veneno
que pode ser transmitido. Ele o deu a mamãe. E eu tenho a doença tanto
quanto ela.
Freud: Qual doença?
Dora: Aquela que a mamãe teve, quando tivemos que ir para Franzensbad
para que mamãe se tratasse. Ela tinha hemorragias e cólicas abdominais.
Freud: Você acha que você tem uma doença venérea? [Silêncio] Desde
quando? [Silêncio] Você sabe por que você tosse? (CIXOUS, 1975/2004, p.
50. Tradução minha.).
Freud: Veja. A “doença” vem de seu pai, mas os sintomas afetam a parte de
baixo do corpo ou a parte de cima, dependendo se é você ou a sua mãe que
está doente. Pela tosse você mostra a responsabilidade do seu pai por aquilo
que você chama de “doença”.
Dora: Mas eu realmente tusso.
Freud: Sim.
Dora: Eu estava me vestindo rapidamente. Eu tinha medo que ele me
surpreendesse enquanto eu estava me vestindo. Então eu me vesti muito
rapidamente. [sussurando]. Eu me vesti rapidamente. [ofegante] Assim que eu
saí eu acordei, encharcada de suor. O cheiro de cigarro me acordou.
Freud: Você se vestiu rapidamente. Para manter o seu segredo?
Dora: Mas eu nunca disse nada desse tipo.
Freud: Aquele cuja língua é silenciosa.
Dora: Sim, sim, eu já sei. E aquele que fala com seus dedos? Por que você gira
a sua caneta sete vezes nas mãos antes de falar comigo? Por que?
Freud: Você deve respeitar as regras!
Dora [imitando Freud] Você deve respeitar as regras!
[ela atravessa a largura e o comprimento da sala] Onde estão os seus cigarros?
[Som de um isqueiro]
Freud: Bom. Você pode ir. Na próxima terça?
Dora: Próxima terça? [ela explode em risos] (CIXOUS, 1975/2004, p. 50-51.
Tradução minha.).
parede de modo a lhe mostrar que ele não está isento do efeito daquilo que
ele imputa a ela!
nada é rígido, a não ser pelo fato de se manter sozinho, unido, ou seja, de
ser um modo do sujeito em que não há necessidade de uma rodinha suple-
mentar, o Nome-do-Pai, e esta é toda a questão. A histeria apresentada por
Cixous é uma histeria sem este interpretante que é o Nome-do-Pai, é uma
histeria que se mantém inteiramente sozinha. (...) Como reescrita dos Estu-
dos sobre a Histeria baseada em Joyce, é o mínimo, mas essencial. Passa-se
do sistema falante ao sintoma como escrita. (...) É isso que é reformulado
nas escritas da chamada cadeia rígida, aquela que se mantém inteiramente
sozinha. Trata-se de uma cadeia tal que nela há uma apreensão do gozo e do
sentido sem necessidade de passar pelo Nome-do-Pai, pelo amor ao pai, pela
identificação ao pai (LAURENT, 2012/2013, s.p.).
ancorada neste ponto, o qual arrimaria o sujeito e faria a amarração dos três
registros. Esse traço geraria uma repetição do real do gozo e não portaria e
nem demandaria sentido algum. Enfim, a Dora retratada por Cixous iria sem
o Outro e se sustentaria sozinha na iteração de seu traço de gozo oral. Nessa
posição, ela se diferenciaria da histeria dita incompleta, a qual não vai sem o
Outro, a quem demanda interpretação.
infelizmente sou eu! É surpreendente, pois temos ali uma ficção construída a
partir de algo que se passa no registro do real. O corpo do texto é a produção
de semblantes, de ficções onde ela trata essa emergência do real; essas ficções
servem ao propósito de mostrar que ela – a personagem que escreve ou a
escritora enquanto personagem? – não é tão má assim! Para tal, traz provas
evidentes de que adora os animais, traz histórias deliciosas da sua relação com
eles, para, ao final, confessar que havia matado os três peixinhos que seu filho
deixara para ela cuidar, enquanto saiu de férias. Como estava muito ocupada,
escrevendo para os adultos, se esqueceu de alimentá-los e eles morreram de
fome. Temos, pois, uma ficção construída a partir do real: ela não vai na
direção do real, ela parte do real e produz algo ficcional.
Com alguma liberdade, podemos ler aí uma queda do falocentrismo. A equa-
ção mulher = falta fálica = filho mostra-se falaciosa, isto é, um argumento
inconsistente, enganoso, ou melhor, enganado. A centralização no falo e na
mística edipiana, ditada a Freud pelas histéricas do início do século passado,
vacila e mostra seus furos. Com isso, algumas frases regidas pela sintaxe edi-
piana se esburacam, frases tais como ‘o pai que protege e a mãe que alimenta’
(FREUD, 1914/1974, p. 107). O pai nem sempre protege, ou protege, mas
não contra tudo; a mãe nem sempre alimenta, tal como a cozinheira – às
vezes ela esquece a panela no fogo. Portanto, ao prometer equivalências e
substitutos, o falo não deixa de nos permitir vislumbrar um oco. Posto assim,
ele mostra-se como um argumento inconsistente que, paradoxalmente, atesta
o furo do real, bem como o real da língua.
Já em A hora da estrela, na qual novamente a escritora é ela própria uma
personagem, temos o último livro publicado por Lispector em 1977, ano de
sua morte. Aí ela parte do ficcional para encontrar o real; mais do que isso,
ela nos coloca diante de uma concepção de inconsciente que, deixando para
trás a história, aponta o registro da lalangue e evoca o isso fala, isso goza, e
nada sabe! Surge a personagem Macabéia, uma jovem nortista que se muda
para o Rio de Janeiro. Desde então, seu maior prazer não vem do sexo, do
amor ou de coisas assim, mas da Rádio Relógio, uma estação de rádio na
qual ela escuta “os pingos dos minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic-tac”
(LISPECTOR, 1977, p. 50), mas também ‘cultura’ e ‘anúncios comerciais’.
Porém, “o que quer dizer cultura?”, pergunta ela, entre curiosa e perplexa,
ao seu namorado nordestino, Olímpico. – “Cultura é cultura”, responde ele
emburrado, e acrescenta: “você vive me encostando na parede!”. – “É que
muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer ‘renda per capita?’”, con-
tinua ela. A isso ele responde: – “Ora, é fácil, é coisa de médico (ibid., p. 50).
– “Na Rádio Relógio disseram uma palavra que achei meio esquisita: mime-
tismo”. Nesse momento, Olímpico olhou-a meio desconfiado: – “Isso é lá coisa
para moça virgem falar? E para que serve saber demais? O mangue está cheio
de raparigas que fizeram perguntas demais.” – “Mangue é um bairro?”, insiste
ela. – “É lugar ruim, só pra homem ir. Você não vai entender, mas eu vou lhe
dizer uma coisa: ainda se encontra mulher barata. Você me custou pouco, um
cafezinho. Não vou gastar mais nada com você, está bem?” (ibid., p. 50).
Encontramos assim Macabéia (ou a própria Clarice?) e seus ocos, suas
palavras sem memória, sua perplexidade. Declinado o falo como portador
de significação, não é difícil perceber na sua conversa com o namorado Olím-
pico – este sim, operando no registro da significação fálica! – que, embora
gerada a partir de uma perplexidade, a escritura dá lugar a uma poética com
efeitos de chiste. As palavras sem memória, palavras desconhecidas para
Macabéia, ao deixarem de lado a significação conferida pelo Outro, geram
“um divertimento – sério – com características auto-eróticas” (HARARI,
2002, p. 239). Esvaziada de significação, ou melhor, de história, a escritura se
serve dessas palavras (“cultura”, “renda per capita”, “mimetismo”, “mangue”
etc.) fazendo delas um uso fonético, isto é, elas são registradas e encantam
pela sua sonoridade. Esse uso fonético da língua leva Lacan a introduzir uma
outra ética na qual o fonético torna-se “faunético” (LACAN, 1975-1976, p.
162). Ele soletra a palavra fauno, f.a.u.n.o, para afirmar que “o faunesco da
coisa repousa inteiramente sobre a letra” (LACAN, 1975-1976, p. 162). Por-
tanto, ancorada no uso fonético da língua, a função fálica esburaca o sentido
e a significação das frases, gerando algo novo, algo que opera a partir da
“emissão desiderativa de sons capazes de criar novos seres” (HARARI, 2002,
p. 238-239).
Com o uso fonético da língua, com a função phi lida e operando como uma
faunética, a literatura apresenta-se como uma prática disruptiva; a partir de
pedaços de real, de pedaços de frases (gerados pelo esburacamento da sintaxe
produzido pela lalíngua), ela inventa práticas heréticas. E por quê? Aonde
residiria a heresia dos escritores? Digamos que, ao ultrapassar o princípio da
realidade e esvaziar as significações produzidas pelo Outro, a literatura gera
equivocação, non-sense e mostra-se impulsionada por algo opaco. Com isso,
esbarramos naquilo que Michel Leiris (1939/1969) nomeou como “palavras
sem memória”, palavras às quais Jacques-Alain Miller (1995/2012) se referiu
pelo termo “futilidades sonoras” (p. 71). Lacan se referiu a elas ao falar da
lalíngua, ao falar de um gozo da língua – de uma erótica, portanto! –, fora de
qualquer sentido, fora da sintaxe!
Enfim, se nos anos setenta Lacan operou uma passagem do sistema falante ao
sintoma como escrita, podemos localizar aí algumas das histéricas freudianas
em sua writing cure, Anna O., Bertha Pappenheim, por exemplo. Já com
Clarice Lispector, e sua amarração sinthomática pela letra, temos uma outra
versão do que poderia ser uma writing cure. Embora encontremos nelas usos
distintos do recurso à escritura, Bertha Pappenheim e Clarice Lispector têm
em comum o fato de terem publicado seus escritos e de terem feito nome
como escritoras.
repete e que não apenas amarra os três registros, como faz a sustentação desse
sujeito que segue tout seul depois de recusar o Outro enquanto interpretante.
Para ela, embora ocasionalmente acontecesse, a relação sexual corporal
provocava nojo, repulsa, não era desejável. O binóculo, um objeto entre o
corpo do sujeito e o corpo do outro, parece funcionar aí como uma espécie
de véu que desloca o exercício sexual carnal para o simples prazer de olhar.
Isto que é aqui possibilitado pelo binóculo parece ter se apresentado no caso
do Homem dos Lobos através da posição de um sujeito entrincheirado,
impermeável ao Outro enquanto interpretante. Em ambos os casos, Freud
se referiu a isso como a uma resistência do sujeito ao trabalho analítico. No
caso do Homem dos Lobos, o forçamento freudiano para des-intrincheirá-lo
produziu o desencadeamento tardio da psicose. Já a Jovem Homossexual
manteve-se na trincheira, ou seja, continuou vendo através do seu binóculo
até o fim de sua vida. Quanto a isso, parece-nos interessante o seguinte trecho
da sua biografia:
A sua vida amorosa ficou marcada por uma infinidade de encontros que
não ultrapassavam o momento inicial; quando, depois de cortejar durante
muito tempo uma mulher, ela a conseguia, perdia o interesse, não conseguia
levar em frente e a coisa acabava. No fim de sua vida, ao lançar um olhar
retrospectivo sobre esses acontecimentos, ela formula uma pergunta, aquela
que não fez quando da análise com Freud, sobre o que teria acontecido para
que ela “ficasse assim”. “Fiquei assim por causa da minha mãe”, concluiu sem
rodeios. “Qualquer mulher era para ela uma inimiga. Só quando percebeu
que alguma coisa em mim não estava normal ficou mais simpática. Amorosa,
de fato, foi apenas no final, quando tomou comprimidos; até me disse que
tinha olhos bonitos” (RIEDER; VOIGT, 2000/2008, p. 415).
Pelo que parece, temos aí uma dificuldade de simbolização da castração,
manifesta em uma espécie de repulsa que incide sobre os órgãos sexuais ( ) e
a confissão do traço de gozo escópico ( ) que, ao se repetir, ao reiterar fora da
cadeia significante, dá ao véu imaginário da beleza uma função importante,
a de estabilização de uma imagem de si, ( ), e de possibilitar o enlaçamento
à outra, a qual provavelmente ocupava o lugar de uma semelhante: “Sem-
pre fui apaixonada pela beleza. Uma bela mulher é sempre um prazer para
mim, e será assim até o fim da minha vida”, confessou ela às suas biógrafas
(RIEDER; VOIGT, 2000/2008, p. 416). Temos, de modo muito preciso e
claro, a localização do sujeito no campo do gozo – embora ela se desloque
metonimicamente, há um traço de gozo, um , que reitera: esteta, ela goza
com o belo, goza na contemplação de belas mulheres, gozo através do qual
estabiliza a imagem de si-mesma enquanto uma bela mulher.
Enfim, partimos do equacionamento das questões da Jovem Czonka em rela-
ção à falta fálica ou à promessa de algo mais-além e acabamos encontrando
um sujeito cujo traço de gozo fundamental, posto que há-um, se localiza no
olhar. Ao ler o caso tendo no horizonte a histeria rígida, concluímos que este
,
que insiste através do gozo escópico, lhe garante estabilidade e mantém
juntos os três registros: há, portanto, uma rigidez materializada em um traço
que está sempre lá. Com isso chegamos às suas atividades de pintura, posto
que ela foi retratista. Com as pinceladas, ela parece ir além do sistema falante
até o sintoma. Estaria aí o seu modo de escrita?!
Ao comentar o caso, Marie-Hélène Brousse a insere entre as escolhas
decididas pela homossexualidade, para as quais as coisas não se passam do
mesmo modo que nas novas virilidades histéricas. Nesse caso, a questão
do sujeito não concerne ao enigma da feminilidade corporal; se é que há aí
uma divisão subjetiva, ela não incide sobre a sexualidade feminina. Como
hipótese, Brousse propõe que esse tipo de escolha de objeto homossexual
retiraria do objeto todo valor de troca fálica, comportando um ideal de fusão
ou de desaparecimento. No primeiro plano viria a letra, eventualmente fora
do discurso, não fora da escritura, mas fora-do-significante e da linguagem.
Portanto, temos aí uma complexificação, temos uma escolha de gozo deci-
dida que permite ao sujeito mulher se apreender a ela-mesma como mulher.
o sintoma é aquilo que pode ser traduzido no inconsciente por uma letra. Se
o significante é da ordem da fala e abre a possibilidade de uma equivocação
que produz gozo – gozo da decifração, gozo do sentido –, a letra introduz a
ordem do escrito e os exclui. Portanto, ( ) é aquilo que do inconsciente pode
ser traduzido por uma letra, a qual gera uma identidade de si a si, isolada de
qualquer qualidade (BROUSSE, 1997). Formulado nesses termos, o sintoma
possibilita ao sujeito escrever sua identidade mais-além do deslizamento
significante e das significações que surgem daí. Essa identidade de si a si
é tributária, não mais do Outro e do simbólico, mas do Um. Em lugar de
um encadeamento, surge uma espécie de opacidade, de solidificação do ser,
à qual Lacan se refere como o estreitamento de um nó, e não como uma
circulação e deslocamento de sentido. Trata-se de um Um que fixa o sujeito
como idêntico a si-mesmo. Nos termos de Brousse, “a letra escreve o Um do
inconsciente, isto é, o Um do significante o qual, transformado em letra, tem
um efeito condensador de gozo o qual não é um gozo do deciframento, mas
um gozo da fixidez” (1997, s.p.). A questão não gira mais em torno do cifrar/
decifrar, mas de algo que emerge no real. Lacan faz essa reformulação do
sintoma – que ele renomeara com a grafia antiga sinthoma –, nos anos 1970,
a partir da psicose de Joyce, abrindo aí uma clínica das suplências. Com essa
reformulação do sintoma, estamos no avesso dos estudos freudianos sobre a
histeria, fundados sobre a vertente metafórica do sintoma.
A reformulação da definição de sintoma terá suas consequências também na
neurose, na medida em que nem tudo aí pode ser reduzido a uma resposta ao
Outro, a um código de ciframento/deciframento com suas leis próprias, ao
qual denominamos inconsciente. Se no primeiro tempo do ensino de Lacan
a neurose se articula à resposta produzida pelo Outro sobre as questões da
sexualidade ou da existência que lhe são endereçadas pelo sujeito, nos anos
1970 é possível reduzir o sintoma histérico o qual, até aí, permanece arti-
culado ao pai e à significação fálica, o que lhe confere a possibilidade de
equivocação. Ao tratar o sintoma histérico com o sintoma redefinido a partir
da psicose de Joyce, torna-se possível constatar que ele é não-todo resposta ao
Outro, uma parte desse sintoma elide o Outro e constitui uma resposta do
real (BROUSSE, 1997, s.p.).
Enfim, teríamos um sintoma como metáfora e um sintoma como resposta do
real. A isso, é importante acrescer o fato de que em sua conferência publicada
sob o título “A terceira”, tal como o destaca Brousse (1997), Lacan propõe
falarmos de castração no plural, levando em conta os três registros. Com isso,
localizamos uma castração que fica entre o simbólico e o imaginário – tal
Uma vez nascida, sua mãe, uma enfermeira psiquiátrica, padecera de uma
grave depressão pós-parto, o que justificara a ausência dos cuidados maternos
à criança. Essa, por sua vez, recusara o seio materno e fora ‘levada morta’ ao
hospital, nos termos da lenda familiar. Do choque inicial da linguagem com o
corpo, presentificado pelo significante ‘morta’, surgiu um risco real de morte,
mas a urgência da vida respondeu à altura. Conectada ao Outro primordial, à
mãe impedida, mas também à avó materna, a menina cresceu vivendo no seu
canto, discretamente. “Bancar a morta” foi a estratégia subjetiva e fantasmá-
tica construída com o intuito de escapar à ira materna, Outro cujo desejo a
posição fantasmática se encarregava de responder: “ela quer a minha morte”.
Assim, tornou-se discreta para não despertar a loucura materna.
Entre outros sintomas ligados à relação com o corpo, sintomas desmancha-
dos pela análise, aquele de comprar sapatos pequenos demais, com os quais
impunha um limite a uma menina fervilhante que precisava passar desper-
cebida da mãe e do pai, mas que experimentava os prazeres da existência na
mercearia da avó.
No trabalho de final de análise, dois outros acontecimentos de corpo se
fizeram presentes. Um deles consistiu em um pigarro ouvido, vindo de trás
do sujeito quando abria as persianas de seu consultório, antes de atender.
Tratado como uma manifestação do objeto voz de modo quase alucinatório,
a propósito Doucet diz: “um pigarro é uma voz que não diz nada, é uma
conexão entre o Um e o outro que se estabelece” (2017, p. 136). Junto ao
pigarro, acontecimento vivido sem angústia, surgia uma espécie de descarga
elétrica no corpo, “misto de angústia e de vivificação” (ibid., p. 137). Por-
tanto, advertências de vida, dando consistência de ser.
O final de análise traz um ganho de vida inesperado: o sinthoma enlaça o
parceiro sexual amoroso e a psicanálise. Os sintomas de deslocamento cedem,
mantendo um gosto pela mobilidade; um traço de rebeldia permanece, mas
com a liberdade de não ter mais medo; ela, que antes bancava a morta, se
inclina a falar.
2011. p. 71-103.
___. (1973) O aturdito. In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003. p. 448-497.
___. (1974) Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia. Milão: La Sala-
mandra, 1978. p. 32-55.
___. (1974) La tercera. Actas de La Escuela Freudiana de Paris. Madrid: Edicio-
nes Petrel, 1980. p. 159-186.
___. (1974) Prefácio a O despertar da primavera. In: ___. Outros escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 557-559.
___. (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
___. (1975) Joyce, o Sintoma. In: ___. O seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 157-165.
___. (1976) Nomina non sunt consequentia rerum. Opção Lacaniana. Revista
Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 28, p. 6-11, jul. 2000.
___. (1979) Joyce, o Sintoma. In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003. p. 560-569.
___. (1977) Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: ___. Outros escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567-569.
___. (1977) Propos sur l’hysterie. Intervention de Jacques Lacan à Bruxelles.
Quarto, 1981, n. 2. (Considerações sobre a histeria. Opção Lacaniana. Revista
Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 50, p.17-22, dez. 2007. //
Propos sur l’hysterie. Pas-tout Lacan. Disponível em: <http://www.ecole-laca-
nienne.net/>. Acesso em: 05 jan. 2019.)
___. (1978) 9e Congrès de L’École Freudienne de Paris sur “La transmission”.
Pas-tout Lacan. Disponível em: <http://www.ecole-lacanienne.net/>. Acesso
em: 03 jan. 2019. (Parues dans les Lettres de L’École, v. II, n. 25, p. 219-220,
1979.)
LANCE, F. (2018) Soy hija de un aviador de los vuelos de la muerte. Disponível
em: <www.elcohetealaluna.com>. Acesso em: 10 jan. 2019.
LAURENT, E. Lacan, herético. Correio. Revista da Escola Brasileira de Psica-
nálise, São Paulo, n. 70, p. 43-55, dez. 2011.
___. (2012) Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. In: Textos do VI Ena-
pol, p. 10-20, 2013. Disponível em: <www.enapol.com/pt/Textos.pdf>. Acesso
em: 12 jan. 2019.
___. Les homosexualités féminines au-delà de L’OEdipe. In: HARRISON, S.
Elles ont choisi: Les homosexualités féminines. Paris: Editions Michèle, 2013.
p. 7-19.
___. (2014) Conferencia “El Sinthome”. Consecuencias, Revista Digital de
Psicoanalisis, Arte y Pensamiento, Buenos Aires, n. 13-14, nov. 2014. Dispo-
nível em: http://www.revconsecuencias.com.ar/ediciones/014/template.php?fi-
202 “Por onde andarão as histéricas de outrora?”
le=arts/Derivaciones/Conferencia-El-Sinthome.html. Acesso em: 8 jan. 2019.
___. (2015) “L’inconscient, c’est la politique”, aujourd’hui. Lacan Quotidien.
Publicação Virtual de L’École de la Cause Freudienne, 518. Disponível em: www.
lacanquotidien.fr/. Acesso em: 7 jan. 2019.
___. (2017) Gênero e gozo. Curinga. Revista Escola Brasileira de Psicanálise-
-Seção Minas, n. 44, p .18-33, jul./dez. 2017.
___. (2018) Éric Laurent: Sobre a queda do falocentrismo. Disponível em:
<https://m.youtube.com>. Acesso em: 10 jan. 2019.
LAURENT, É.; ANSERMET, F. Deuxième partie: Éric Laurent commente
le Séminaire XXIII “Le Sinthome” de Jacques Lacan. 2012. Disponível em:
<https://lecturesfreudiennes.wordpress.com/2013/03/24/transcription-eric-lau-
rent-et- francois-ansermet-séance-du-07-juillet-2012-du-sinthome-second-par-
tie>. Acesso em: 11 jan. 2019.
LEAGUE OF JEWISH WOMEN (Germany). Wikipedia. Acesso em: 13 jan.
2019.
LEIRIS, M. (1939) Glossaire, j’y serre mes gloises. In: ___. Mots sans mémorie.
Paris: Gallimard, 1969. p. 37-131.
LE MONDE. Nous défendons une liberté d’importuner, indispensable à la
liberte sexuelle. Publiée 09 jan. 2018. Disponível em: <https://www.lemonde.
fr/idees/article/2018/01/09/nous-defendons-une-liberte-d-importuner-indis-
pensable-a-la-liberte-sexuelle_5239134_3232.html>. Acesso em: 6 jan. 2019.
LISPECTOR, C. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
___. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1977.
MAGAZINE LITTÉRAIRE, (Le Nouveau). Numéro Special: D’Antigone à
#MeToo. n. 2. Fév. 2018.
MALEVAL, J.-C. (1981) Locuras histéricas y psicosis disociativas. Buenos Aires:
Paidós, 2005.
MANNONI, O. Ya lo sé, pero aun así... In: ___. La outra escena. Claves de lo
imaginário. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1969. p. 9-27.
MARTORANO, J.T. The psychopharmacological treatment of Anna O.
In: ROSENBAUM, M.; MUROFF, M. Anna O. Fourteen Contemporary
Reinterpretations. New York: Macmillan, Inc & London: Collier Macmillan
Publishers, 1984. p. 85-100.
MATUSEVICH, J.E.; MAESO, G.L.L.; MOLINA, O.G. Conversaciones
sobre El ser y el Uno. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2016.
MAZZUCA, R. (2012) Los excesos de la histeria. In: SCHEJTMAN, F. Ela-
boraciones lacanianas sobre la neurosis. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2014.
p. 97-105.
MEIRELLES, C.E.F. Sintoma social e a emergência do PCC. Stylus. Revista
de Psicanálise, Rio de Janeiro, n, 31, p. 145-158, out. 2015. Disponível em:
“Por onde andarão as histéricas de outrora?” 203
Márcia Rosa
<http://thesource.com/2018/01/08/times-oprah-recognizes-mother-metoo-
-movement-recy-taylor-golden-globes/>. Acesso em: 5 jan. 2019.
FAJNWAKS, F. Lacan et les théories queer: malentendu et méconnaissances.
In: FAJNWAKS, F.; LEGUIL, C. Subversion lacanienne des théories du genre.
Paris: Editions Michèle, 2015. p. 19-45.
FREUD, S. (1895/1900) O método de interpretar sonhos: uma análise de
um sonho modelo. In: A interpretação de sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
p. 103-130. (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud, 4.)
FUENTES, M.J. (2012) As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. Belo
Horizonte: Scriptum, 2012.
MILLER, J.-A. Intuições milanesas. Opção Lacaniana on-line nova série, São
Paulo, ano 2, n. 5, jul. 2011a. Disponível em: <http://opcaolacaniana.com.br/
pdf/numero_5/Intui%C3%A7%C3%B5es_milanesas.pdf>.
___. Intuições milanesas II. Opção Lacaniana on-line nova série, São Paulo,
ano 2, n. 6, nov. 2011b. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.
br/pdf/numero_6/Intuicoes_Milanesas_II.pdf>.
LACADÉE, P. Extirper sa libido du coin ou elle s’est tapie. In: HARRISON,
S. Elles ont choisi: les homosexualités féminines. Paris: Editions Michèle,
2013. p. 175-192.
LACAN, J. (1954-1955) O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na
técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
___. (1962-1963) O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2005.
___. (1975) Joyce le symptôme. In: ___. Le Séminaire de Jacques Lacan. Livre
XXIII, Le sinthome. Seuil: Paris, 2005. p. 161-169.
LAURENT, E. (2016) O que faz sintoma para um corpo. In: ___. O avesso
da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
p. 43-64.
MILLER, J.-A. (2014) O inconsciente e o corpo falante. In: ___. O osso de
uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2015. p. 115-138.
MILNER, J.C. (1983) Os nomes indistintos. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 2006.
PARNES, A.M. (2014) Los nombres del diagnóstico: Jacques Lacan, Jacques-
-Alain Miller y el problema de los universales. Buenos Aires: Letra Viva, 2014.
PORTILLO, R. Fantasma e sexualidade feminina. Opção Lacaniana, Revista
Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 9, p. 61-64, jan./mar.
1994.
SANTIAGO, J. O inconsciente e a diferença sexual: o que há de novo?