Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
olhar e o pensâmento sobre o corpo sào bases de assimilacào e inrrençào cle si mesmo,
ligadas à cultura e à história. Já sabemos isso, ao menos, desde N{arcci NIauss (2003), que -se
cledicou, e1n scus estr"tdos antrcipolóeicos cle meados do sécr.rlo XX, às "técnicas do corpo", pensaclas por
ele corlc.r "[...] ot rlaneiras pelas quais r,rs homcns, de sociedacle cm socieclade, de uma lorma tradicional,
sabern senir-se de ser-r corpo" (NfAUSS,2003, p..tr01). NIauss realtza uma discussão importante acercâ
dos n-roclos pelos quais os mais banais de nossos gestos, posturâs c atitudcs corporais sào diretamente
conectados aos hábitos de deterrninado grupo social.
N{as a possibilidade de falarmos cm algo como o "meu" ou o "seu" corpo vem de antes: a noçào
mqrderna de corpo nasce, inegavelmente, r,itrcr.rlada à de indivícluo. Por outro 1a<1o, ela também cstá
associada a um conjunto de saberes médicos e clinicos que, sobretndo a partir clo sécu1o XVIII,
'.rprofundaraln unta perspectiva cada vez mais fisiológica, anatômica e epidemiológica do corpo, visro,
-qrrbtettrclo, comoum organismo. .\natomizacào c indir.iclualizacàct, portanro, sào processos históricgs
ciue inciclem fortemente sobre um modo de concebeL o corpo que condiciolla nossos olhares sobre cle,
até os dias de hoje; "forte até demais!", talvez dissessem alguns autores rnrportantr.s Íro pensamenlo
contemporâneo sobre a questào. Seria possível, entào, pensâr o corpo para a1ém desse organismcl
rr-rdir-iclual que r,'iabiliza a própria rnodernidade?
,\ pnmeira vista, entào, a ideia de corpo pode nos levar raprdafirenre a clefinilo em telmos clc
slstL'1ras cle órgàos, pele, fluidos c exctecões. Ntas há muito m:ris cm joeo cluando \râmos alérn clos
, rllrare s indir-idualizantes e orgauicistas jâ naturaltzados entre nos.
O corpo nzio existe e nem poclc ser
rrrertctlciado tbra de um coniunto de elemcntos sociais (tohucas. encontros. scnsibihdades etc.) cpc o
--:'. iillâ1]l e o ulttapassâm; ao mesmo tempo, ele depende de certos n-rotlos cle r-ivenciar os limites clc seu
:r :-.r.a' r :t,ti-:t ser expcrimentado.
80
',t\(.1 Il()SI.(.\1il(l()ltl \.,\lrl'\l).\\II:\'I\lSl)()r\:i\()L)l \\lll()p()L()(;t-\
.F
ü
' ...-r- r:r .1,.- ,1..r.l.1trtr-t.',' curf,,çrt .,.- tr.' .. ..
' .' r ...-,.r.ios cia área, do olhar sobre as areccocs t ,: .,1:
- . - 11. p. 2r. cxplica:
- - '.., ciciir,s t1c um col1ro .'cobre ctutLcr no esPaÇoi os afetos s: ' .: -
:.-. ; ,11-.,1 5lirrt urna cltit:rçào f...]. Àieto cortcspondc ao modo colll ' I
.
j:,, c.: .tir'cc.ho /'agr-l1o Lloc () corpo alrsorve n() cncí)lltfo c()rn i)Lltr()s cl)ra .-
-::t pensâI 1to colpo da dançarina que batalha com o "passinho" na periferia do fuo
- : , professor clue chega à sala de aula (ou aos encontros remotos de uma cultr.tra
. -.: .:.:andenria da Coi.,id-l9); no corpo transexual que, em si, traz mensagens que
--..:ào corporal a partir do sexo bioiógico. Em cada uma dessas existências, se
. ..* r:iIlcos.
r..:.:lto. o ponto de junção de elementos históricos, culturais e tamtrém afetir.os na
. -;-- ; ,\Ias essa exper'iência, por se dar enctar.ada na socieclade, é scmpre url coabitat,
-, sse clo coryo sempre problemática. No fim das contâs, de quem ó o meu coryo,
.. .:^-. u tomâ parr si?
81
L i rlil\: I | \l)\\ll \l \lSl)() Íl\SI\()l)l \\ili|l"
!
' :- cc col?o sociâl testemunha, no pensamento cle N{ary Douglas, uma relaçâo
_ __- .1....ss. eilrre corpo e cultura:
.l,ni:r:::'r.i:::;
: r; iLri ;'-".*:,:*;lxtr:,l;*lls',:. r iüffif ti: jrí
'.:.: :-- ri
'ls pos-sibiliclades de pensâmento sobre o corpo se abrem quancloJohn Blacking, nos anos
' '::-r'r:ll.ilta em favor de estuclos antropológicos que incluam os sentimerltos e os âfetos não
-::'' '''-'''rs elr suâs anz'rlises (BIÁC,KING, 1977). Essa perspectiva afetiva cle análise, quc moclifica <r
..' ': ' '5:e o cor?o Pâra que possamos pensá-lo pelas interações sensíveis
que ele estabelece no munclo,
J::- --:ll ererto importânte na Àntropologia.
Jeanne Far,-ter-Saada (2005), por exemplo, narra a forca
:r:s'l: relacões sensívcis quc concctâln ()s
coÍpos em seus estudos sobre feitiçaria. À panir dos ritr:ais
-r -r: quals ela sc r'ê enYoh-ida, a pcscluisadol:a fala de seu corpo senclo
afctado, ou seja,..[...] bornbarcieado
:-r: intensidacles específicas [...] que geralmenre nào são significáveis,' (Ir-A\,.RF]T-S,\ÀI.)Â,
2005, p. 159).
\Ias o tortalecimento de tais intensidades aÍ-etivas, nas análises sobre o corpo,
dentro e p^r^aiém da
lluopologia, coloca cluesta)es importantes sobre os limites e as frontciras de nossa corporei<iade. o
.str-rdo das culturas amcríndias, pctr exemplo, nos pctmite pensâr
nas modificações ctr corpo de seu líder
tspiritual, o ramà' Vestido de animal durante cis rituais c1e cuÍa, o corpo dr., xamà é redeÍjnido
em suâs
capacidades e e1e passa a ter a habilidade de transitar entre dois mundos,
o da humanidade e o da
:r'rimalidade. Il,ssa "metâmorfbse colporal" (CÀSTRO, 2t)13),ql1e ocoÍÍe cle fato
na cultura clesses po\ros
orisinários, reveste a uocào de corpo de uma matetialidade peculiar, aberta a essa
espécie cle simbiose
que une corporeidades e as transforma.
Há, portanto, ulrl longo caminho de estudos, em constante construçào, que conecta
a ideia clo
corpo como teprcsentacàcl social àcluela de sua constituicào como plataforma de forças
e afetos no
Pensâmento ocidental. Tais reflexões nos colocam perguntas valiosas sobre a materialic1ade e â
hisroricidade corporal' Se penszrrmos em nossa condicão social, tah.ez cheguemos
à conclusào 4e que
nào dcvc-mos abrir mào desse corpo que é também organismo, com seus processos
fisiológrcos e
cleiimitações estruturais. N[as nào resta dúr,icla cle que, sob análises diversas no
campo antropológico,
tâilt() a objetividade anatômica quanto o isolamento inclir.iclual do corpcr precisam set
colocaclos em
\€rcllle, em fãr'or de espacos e espesslrras corporais difercntes daqueles costLrmeiros,
que nos permitarn
pensar em outros modos de compreender aquilo que somos.
de cotpo adotacla e apÍeserltada neste textr.r pocle ser resumida <Ja seguintc
cr)nccituâÇà(>
A\rnatlcitâ: ()
-l- corpo humano é et-eito de processos históricos, sociais e afetil.os. N.{ais do que
':Lirrico e individual, o co4)o é visto pela r\ntropologia em sua existência no munclo, com e a partir de
:"'ls e\perriêtrcias e clas relacôes qr.re estabelece. Â tatuagem exempliÍica essa perspecti\râ: a prática cle
:rr'ricrr- o c()ÍPo hutnano com descnhos c símbol os faz parte cla história cla hLrmanida6e descle seus
-r-:'nórdios. é cercada cle reptesentações sociais e possr-ri signiiicaclos afetivos" ,\
tatuagem é tào antiga e
-l-:'lldlcia Por tantos povos que nào é possível atribr-rir ao seu sr.rrgimento uma data ou local específicos.
--"::1
c lr-PO tâtuâdo tem significados variados depenclenclo de seu
contexto, do tempo e clo espaco nos
- -' r- j :rilnsita. Tatuar-sc pocle significar um rito de passâgem, um có<1igo, um evento mâÍcânte
que nào
': ---'cr -s.lllecer, unlzr homenâgem, uma declaracào de amor, um interesse estético, um âto impensadr:>
.., . ..üsuro c1e "estar 1ra modâ,,, entre múltiplas possibiliclade s:
88
CO\CE]'IOS E CÀTEGORiÂS FUNDAMEN'IA]S DO ENSINO DE ÂNTROPOLOGIÂ
I
. :. . . l. . L, .- r.ri,i ,, ..,,. . ..rr_,. .l i. .
: :---.:. .l , l...r, elrtre 20lll) c -l0ll0 a.C. \ào -se sabe a.) acr: i :-r.: : -:.-
,111)
--::'. .:.r11 .i Li1) trl1lL.1ní) 't:tu" oLr 'tatau', clue sigr-rilica 'fericla, descr-I1,, .,..- . ,l
:l-. :'itr rcl:1ci()1l1rda ao som produzido pelr instrument() utilized.r l.:t.r . ::
' ' l ('"l/'
. ,a,1 1lijs lTrOStrâ- que O COrpO Se in,qcreve na ordem da cultura, sendo sú,-j
---.,,:]ertc impactados. Ljm excmplo da reiaçào entre os coÍpos e as práücâs
- rr,-)s e c1âdo por Pierre clastres (2003). c) autor obsen-e que enre os índio,s
- .<--ir. o rituai de iniciaçào consiste em verdâdeiras torturas intligidas sobre o corpo dos
- :. .luc der-em ser suportaclas em silêflcio. ,\ tese defendida nessa obra re\rela que tais cerimônias
-..-s rcsponsáveis pot deixat cicatrizes e tatuâgens nos corpos dos iniciaclos sào: a) provas de
-:':Icncia e corâgem para selecionât os guel'reiros mais aptos a defenclerem a sociedâde; b) formas de
-i;rlÚ[caçào, em termos do pertencimento âo grupo; c) memóda criada pela dor exffema provocada; e
- pl-ova de aceitação, r,isíl'el pela não extetnalizacào dessa dor por rneio de gritos ou gemrdos.
FIá não muito temPo atÍás, nas ciclades brasileiras dos anos 1980/i990, um corpo târuâdo erâ
' :rlbolo de rnarginalidacle, transgressào e rebeldia. 'I'ais expressàes artísticas na pele só eram comuns em
:.rarinheiros, presidiários, pacientes psiquiátricos, punks, rockeiros e hippies. De marca de mor-imentos
-lissidentes e marginaLizados, as tâtuagens mais rccentefi]rflre passareil-r A csr.rr plesenres r-rào só nos
:olpos de joYe'ns, mas de seÉlxrrentos mais amplos cla socreclade. das crasst: cpril:rie.::,re ..rr.r1stàs c
--elebtidades. Corn tais alteracôes no estâtuto dcssas irârces. rnuciam iainbénr os .orl-r:.ls c;e.is recebcn.
.cia pelos novos sentidos neles impressos, seja pelo q,-re sào capazes de p.re1-616,11 eÊr Jrli:): ci )r:l.rs..:.
partir das lnensagens que caÍregam. Isso só ocoÍre por ser o corpo essa resulranre ateriva. hrsr,.rricl e
social tão valiosa parâ que possâmos continuar pensando a nós mesmos.
§,eferência§
3L\CKING,John. 'I'orvards an mr.hÍopology of the irocly. Izr CRIIDO, T'omás. Tettagínari.r: /t ton.çtnrr;tiin ticntca de /a.ç
BL \CKING, Jt',hn. The anilLr@okgt of. i/te ltady. London: r'. 2. -\IacLicl: ÀIBII.,2008, p. 1 35.
enlagítt.r /.ttrrtrutt:tr,
\caclernic Press, 1977, p. 1-28.
I-\I\)UR, llmno. Comri falar. clo corpo? ,\ clirnensào
C-\STRO, Eduar-c1o Vivetos d.e..4 incontÍâacia da ahu se/mgent e nr;nrr..rtira dos estulos soLre a ciôr'rcr-a. 1n. NLJIIES,
Joào
ttr/tn.ç en.ratos rte anÍrtpohgia. São Paulo: Cosac Naifi-,2013. .lrnscaclo; R(lQUir, Rrcardo. C)ltfetros uzptros: experiênchs ern
(]L.-\STIIES, Pterte. esti-rc1os sollre a ciência. Lisboa: .\frrxumeoto,2008, p. 39-62.
A soLiedade nntnr o E.çtttda. Sâo pauio:
Cosac Naifv, 2003. I-ISE, ÀIichel1e I-. 7,. eí I T'atuagem: perirl e discr_rrso clc
D(IUGLÀS, \Ían'. Na/um/ pess()as com inscriçào de marcas no c()qro. In: Anajs
t.yrubol.r: explorarions in
Brai/eiro.ç dc I)ennatolaga, r,. 85, n. 5, 2010.
cosmolog,'. London: Rr-rtietlge, 1996.
I;Â\-RET-SÀ-\D'\, Jeanne. Set afetado. I{-\USS, N{arcel. .\'aialogla e ;1tth-opo/oga. São Pai_úo: Cosac
Carlerna.ç r/e cantpo,
n. 13, 2005, p. 155-161. & Naifr, 2003.
I I
I \
í.& Dicas de leitura
i. :r -r;r .i,' llt't,i]rililt e rr lrIlNlrlt, Illract'. O /t//,/1 la irlf)a ü/Ír.) 0.t .\'0r(ili/t't//r. l)isp 'rrn.
r - !), .;a111it74 rio I.ltito tlt cm: l"rtqrs:,,'lisxrirkr+.úp2l)15.tl'ss-r)fl1pts*úim/21115./(i{/irrrttrü.l -
--
- - :r-. S, rcir r\, rgiri. 2020. ü lqx rs(xf( r\l'{ir lç( ih p.rp\i
r r, - -:.: i1,1. ct,tlrtis íiltllâLl()s 1:l()
:. : - i) .cti, (-ot.lro l(r,1,;.r/,r (.olt/ir.,,t,
:
Dica ôe aüiviüade
+
\ /:..r.1r.rs conlinuâÍ perlsâ1r(lo nâ tatuagefir e em suâs relaçôes com protiucào
â do corpo? ()bscfi'c
\ c c.1rr-cr:L co1-n cilco homeÍts c cinco mr,rlheres tatilaclos. ;\pírs anotar o nome c a icladc: drls
-:r.r-.r-jstrrclos, colctc as segLlintels inti>nrraçôes: pâfie do corpo foi(rarn) feita(s) e('
e) em c1uâl
..-,i,eqcr-r-i(1s)i; b) cl,reis desenhos ou palar.ras cstào tatr-raclos?; c) cluais foram as lnotiYaci>es cl'Lle âs
i.spiralam a str st-tittneteÍefil âo ploceclimento cle lrm'.r mâICa deflnitirta em scli próprio corpo?
Locil das
Motiv ação paffi tatlfat- e
trr'1lt'l'' r Idade Tipo de tatuagem s
tatuagens
_t.-. i..rr)it:ti co1tl 11,§ ClO'. demais colegas. Façam um gfande quadrr) c()m âs
t.J ... :_-.1: :.f
homcns e
,,-- ::- ,-- ., .1. . -l . .l-, :-':::l:' lltill il c rL'-'PollJ'l P,r t\crito sobte as scgr'rintcs cluestties:
têm a ÍCÍ
:::-- t-:.- :.: a,1, .,: tt^.c:tt--;: ...-..-.Jr-:1:l l). iirc:ils 6nC1e aS tâtr.LXgcnS Sài.' retliZaClAS
C()111 O
sào âs fix)tivaÇ(les
*rrrU: : i:.--... -.::: ...-r:'.. -L-r--,:r rr.;- ,-- c-,it,--:ri.ie it.o Cessas tatuagefls? Quais
:L)j|.-.1s .,.-.::.,.a.'.: ;l--.. 1': ll:1 ,: -.:.i-.r.rl 'rl ( ) ilr-1q esscs cletletltos r-lizcnl â rcspeito da noçào cle corpo
.io bra:rictr,-r ri, r :ú.'-rirl \\l: llor Pe sq.r1:11