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28. PERIGO E VIRTUDE DO MACULADO A mécula, contrariamente & opiniio mais comum, niio é a expressio de um temor; nio esti fundamentalmente ligada ao medo; esta ligada & ordem. Auimpu- reza ¢ a sujeita sio nogdes muito relativas. As coisas nunca so sujas em si; tor. nam-se sujas na medida em que, nos quadros de uma organizagio social ¢ intelectual definida, ocupam um lugar que contradiz o sistema de classificagao proprio de uma cultura. E sujo 0 que sé pode ser pensado como anomalia, aquilo cujo estatuto aparece como ambiguo, marginal, ¢ que questiona, por no poder ser integrado, a ordem da qual o grupo social é solidario e cuja perpetuagio deseja garantir. Toda pesquisa sobre a sujeira implica entio uma reflexdo sobre as relagdes entre ordem e desordem, entre forma e auséncia de forma, entre vida ¢ morte. As civilizagdes que claboraram fortemente as nogies de impuro ¢ de sujo, e que thes conferiram em seu sistema religioso um lugar importante, desenvolveram, como pano de fun- do, esses temas profundos, Assim, a andlise das regras de pureza constitui uma das vias de acesso privilegiadas para o estudo comparado das religides. Se 0 sujo € essencialmente uma ofensa contra a ordem, nio poderiamos acei- tar 0 ponto de vista dos antropdlogos que véem na confusio entre sagrado © ma- culado, entre puro e sujo, uma das caracteristicas do pensamento primitivo. Seria preciso partir, a0 contrério, de sua clara distingo para colocar corretamente © pro- blema dos valores positivos que objetos ou seres ligados & categaria do sujo ou do impuro podem contudo adquirir em certos casos. Para ilustrar esta orientagdo de pesquisa, Mary Dougla desenvolve a expo- sigdo de seu livro, De la souillure (Sobre a Mécula) (1971), em diversos planos. Digitalizado com CamScanner ENTRE MITO E POLITICA Trata-se primeiro de uma anilise estrutural dos interditos alimentares do Levit co € do Deuterondmio. Qual é o principio que preside & distingao entre animais puros, comestiveis, € animais impuros, que seria abomindvel consumir? Os pre- ceitos stio precedidos pela injungao “sede santos”. Em que consiste esta santida- de que deve ser atingida por uma alimentago correta? Trata-se, para cada coisa ou ser, de um estado de integralidade que supde uma inteira separagiio com 0 que no € igual a si mesmo. A santidade esti ligada a uma ordem que exclui toda confusio, em que cada realidade 6, em seu lugar certo, exatamente conforme & sua prépria natureza. O abomindvel, entre as espécies animais, sio os hibridos, as misturas. Para um povo de pastores como os hebreus, a carne é por exceléncia a carne do gado, formado por ruminantes ungulados com pés divididos. $6 se comerio, na carne de caga, os animais que entram na mesma ordem de classi cagac ra: trata-se de um ruminante, mas nio tem pés divididos; da mesma forma, o porco € 0 camelo: tém pés divididos mas nao ruminam. Devido a uma ou outra caracte~ ristica, esses animais permanecem 3 margem da classificago modelo conforme & ordem da criagdo. Todo animal nao equipado para 0 modo de locomogiio que Ihe foi atribuido por seu elemento natural — ter asas e duas patas se vive no ar, escamas € nadadeiras se ele se deslocar na Agua, quatro patas para saltar ou an- dar sobre a terra — aparecerd como contrério & santidade, ou seja, por fim, a uma separacio conforme & ordem. Segundo plano: os perigos da desordem que corre 0 risco de destruir os agenciamentos existentes, mas que, pelas potencialidades que ela contém, tam- bém possui determinados poderes de que os ritos podem tirar proveito. O autor esboca um quadro geral das correlages que poderfamos estabelecer entre estru- turas de um sistema social, formas mais ou menos explicitas de autoridade, tipos de poderes espirituais mais ou menos controlados. A feitigaria seria definida como ‘a manifestagiio de um poder psiquico anti-social que emana de pessoas que se si- tuam nos setores relativamente no controlados da sociedade, em seus intersti- cios. Os poderes que Ihes so atribufdos simbolizariam seu estatuto ambiguo ¢ mal articulado. Esses poderes informais préprios aos marginais se oporiam aos poderes formais exercidos em nome e para a estrutura social por aqueles que a representam oficialmente. A poluigio poderia ser considerada como um terceiro intflopes, cabras e carneiros selvagens. A lebre serd excluida como impu- tipo de poder, inerente a estrutura social em si, e que viria sancionar toda infra- Ho as regras de conjungao ou de separacao das formas. Em um capitulo intitulado: “Fronteiras Exteriores”, M. Douglas coloca a questiio de saber de onde vem o papel dos excrementos, da sujeira corporal em certos ritos maléficos. Por que atribuir poderes perigosos as partes “marginais” 282 Digitalizado com CamScanner PERIGO E VIRTUDE DO MACULADO do corpo humano? Sera preciso aceitar as explicagdes dos psicanalistas que véem nisto o reflexo de fantasias da sexualidade infantil, como se 0 homem arcaico conservasse “durante a vida inteira 0 corpo magico do beb&"? A autora demons- tra, apoiando-se no sistema de castas na india, com sua preocupagio com a po- luigdo, que_o corpo humano assume valores simbélicos, que € um modo de expressio que serve para representar o corpo social em seu conjunto, com suas” internas, os perigos que o ameagam de fora e de dentro. Se a sujeira desempenha um papel positive em certas condigdes, € porque a ausén- cia de forma possui um poder criador. A sujeira, a loucura, a morte, logo, tudo 0 que é, com relagiio a um sistema, 0 negativo e o outro deve ser enfrentado e inte- grado Aquilo que o exclui. fronteiras externas 283 Digitalizado com CamScanner Copyright © 1996 by Editions du Seuil I edigio 2001 2 edigio 2002 ‘Titulo do original em francés: Entre mythe et politique Dados Interacionais de Caalogagio na Publiagio (CIP) (Ciara Brasileira do Livo, SP, Brasil) ‘Vernat, Jean-Piene nize Mito Pllca Jean-Pierre Vernant; waduio de Cristina ‘Muracheo.~2€4.~ Sue Paulo: Editora da Universidade de $30 Paulo, ‘2002. ‘Thul oiginal: Ene mytheet plisque ISBN 85-314-0502-5 |. Civtangbogrega2. Mitologia 3. Miélogos~ Franga 4. Poltica 5. Religto. Tia. 98-1250 cpp-3048 {Indice para cattlogo sstestco: 1. Mitlogos:Biografi € obra 291.13092 Dis tos em lingua portuguesa reservados 8 Edusp ~ Eaitora da Universidade de Sto Paulo ‘Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6" andar ~ Ed, da Antiga Reitoria ~ Cidade Usiverstiria (05508-900 ~ Sao Paulo ~ SP ~ Brasil ~ Fax (Oxx!1) 3091-4151 Tel. (Oxx11) 3091-4008 / 3091-4150 www.uspbrfedusp ~ e-mal: edusp@edu.usp.br Printed in Brazil 2002 Foi feito 0 dep6sito legal Digitalizado com CamScanner Nota da edigao . Apresentagao Preficio . FRAGMENTOS DE UM ITINERARIO 1, Tecer a Amizade 27 2. As Etapas de um Percurso . 39 3. Pesquisador no CNRS .. 47 4, A Grécia, Ontem e Hoje . 53 5. Do Outro ao Mesmo . 59 6. A Fabricagio de Si 63 7. A Morte nos Olhos : 7 8. A Religitio, Objeto de Ciéncia? . 87 9. Questdes de Método ... 95 PSICOLOGIA E ANTROPOLOGIA HISTORICAS 10. Ler Meyerson ae ae 121 11. Psicologia Hist6rica e Experiéneia Social 139 12. Aspectos do Individuo na Obra de Jules Renard 153 13. Sobre a Antropologia da Grécia Antiga 157 14. Os Gregos sem Milagre de Louis Gernet 163 15. O Homem Grego ...... : 169 Digitalizado com CamScanner

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