Você está na página 1de 168

TEOLOGIA

SISTEMÁTICA I
Programa de Formação Ministerial/Teologia

Por
Carlos Abejer
TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 2
TEOLOGIA
SISTEMÁTICA I
Programa de Formação Ministerial/Teologia

STNB

Por
Carlos Abejer

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 3
PALAVRAS DE BOAS-VINDAS

Olá caro(a) estudante! Você está iniciando uma disciplina que faz parte do eixo
teológico que o STNB oferece no seu Programa de Formação Ministerial/Teologia. Os
conteúdos oferecidos nessa apostila apresentam uma linguagem dialógico-reflexiva e
encontram-se integrados à proposta pedagógica do STNB, contribuindo no processo
educacional, complementando sua formação acadêmica, desenvolvendo competências e
habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de maneira a inseri-
lo(a) mais adequadamente no ambiente de serviço cristão (Aplicação das 4C’s).

Este material tem como principal objetivo viabilizar o desenvolvimento da


autonomia em busca dos conhecimentos necessários para a sua formação pessoal e
ministerial. Portanto, utilize os diversos recursos que a Modalidade Semipresencial lhe
possibilita acessando regularmente o ambiente virtual de aprendizagem Moodle, assista
as vídeo-aulas, interaja nos fóruns, participe das aulas presenciais, contribua com as suas
opiniões nas discussões e realize as tarefas propostas semanalmente.

Além disso, lembre-se que existe uma equipe de facilitadores que se encontra
disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendizagem,
possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e segurança sua trajetória acadêmica.

Oramos para que o Senhor continue a usá-lo(a) no ambiente ministerial onde atua
para edificação do seu Reino. Esperamos que este material seja útil no cumprimento desta
tarefa especial.

Rev. Natanael Cardoso Dr. Carlos Abejer


Reitor do STNB Vice-Reitor Acadêmico do STNB

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 4
PRESENTAÇÃO
AP

Estimado(a) estudante, é com grande prazer que apresento o material que você deve
utilizar para o estudo da disciplina Teologia Sistemática I. Há alguns anos tenho me
dedicado ao estudo das ênfases teológicas e divido com você aquilo que há de mais atual
e academicamente relevante sobre tal disciplina.

Tendo por convicção que a força motriz que estimula o labor teológico é o desejo de
se criar espaço acessível à fé, a partir da autocompreensão que o ser humano tem de si
mesmo e da sua compreensão de totalidade do ser nas diversas situações históricas de sua
vida, minha reflexão considera duas dimensões existenciais fundantes que, ao mesmo
tempo em que sintetizam, extrapolam as referidas posições teológicas, a saber: a
horizontalidade, referente às capacidades cognitivas que o ser humano possui para o
conhecimento do mundo empírico, e a verticalidade, alusiva às condições a priori que
antecedem e ultrapassam as estruturas do entendimento.

No gesto de estruturar esse conteúdo, assumo aquilo que a teologia sempre afirmou:
“a missão da igreja e todo o seu instrumental institucional não se esgota na compreensão
da fé”. Diante disso, penso que é justamente essa condição que mantém em permanente
construção o itinerário teológico que viabiliza um melhor posicionamento diante do
mistério insondável. Assim, entendo que é tarefa da teologia abrir espaços ao diálogo e
providenciar um tipo de investigação que possibilite, preferencialmente, a expressão das
intuições e as alegações de todos os lados envolvidos nessa reflexão.

Das principais dimensões constituintes que fazem parte do pilar central do


pensamento nazareno, vistas por este conteúdo como marcas da autenticidade da herança
wesleyana, que mais se evidenciam e corroboram para os objetivos propostos, quatro
passam a ser discutidos e analisados a partir desse momento: (1) O que cremos em relação
a teologia cristã; (2) o que acreditamos acerca das Sagradas Escrituras; (3) o que
pensamos em torno da pessoa de Deus e do conceito de Trindade; e, (4) qual é o nosso
axioma acerca do ser humano. Cada um desses elementos foi analisado, seguindo-se um
roteiro pedagógico que teve a finalidade de melhor situá-lo dentro de um panorama mais
amplo da teologia cristã. Ao mesmo tempo, todas essas abordagens estão atreladas ao
interesse principal: “como cremos teologicamente enquanto nazarenos”. O fio condutor

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 5
deste trabalho é o levantamento de aspectos que, possivelmente, estão presentes, em
maior ou menor grau, na compreensão daqueles que estão inseridos nesse percurso
curricular proposto pelo STNB. Por outro lado, este material refere-se a uma investigação
acadêmica, a qual privilegia o enfoque bíblico, enfatizando uma sinergia entre teoria e
prática, no sentido de potencializar nosso entendimento no intuito de forjar ferramentas
metodológicas que sirvam à reflexão epistemológica e auxiliem na compreensão das
múltiplas abordagens teológicas.

Importa mencionar também que este estudo constitui-se em uma pesquisa inclusiva
onde as fundamentações conceituais sobre a temática abordada foram buscadas,
principalmente, junto a três fontes bibliográficas que explicitam a nossa identidade
teológica, a saber: (1) a excelente obra do Dr. Ray Dunning, Graça, fé e santidade. Uma
teologia sistemática wesleyana; (2) a clássica obra de teologia sistemática do Dr. H. Orton
Wiley, intitulada Introdução a teologia cristã; e, (3) o livro Viver a graça de Deus de
Walter Klaiber e Manfred Marquardt; fontes estas as quais, conjuntamente, contribuem e
sustentam as discussões estabelecidas. Foram integradas também fontes bibliográficas
secundárias que muito enriqueceram esse árduo processo de reflexão e escrita.

À luz das distinções analíticas feitas acima, concluo dizendo que creio firmemente
que pensar teologicamente alivia a existência. A tarefa teológica ajuda a desvelar a beleza
divina que na curva dos acontecimentos se abriga e convida à redenção que dela se
desprende. E quando a existência humana a percebe, sente-se traduzida, e por isso
acompanhada. O labor teológico tem essa incumbência, a de nos revelar esse horizonte
carregado de redenção onde as maiores e mais profundas inquietações encontram
respostas. E é nas respostas vindas dessa Fonte inesgotável que nossa vida se aperfeiçoa,
se liberta dos excessos e se santifica no Sim e no Amém do nosso Amado Redentor, Jesus
Cristo de Nazaré.

Carlos Abejer - DMin


Professor Titular do STNB

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 6
UNIDADE I
Prolegômenos da Teologia Cristã

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 7
TEOLOGIA EM PAUTA

A teologia é uma tentativa de providenciar uma formulação


racional das nossas crenças cristãs. A voz dos acadêmicos é
unânime ao dizer que fazer teologia é tão importante para a vida da
igreja quanto inevitável. Ray Dunning (2019) destaca que as
decisões de uma comunidade de fé devem ser tomadas com base na
compreensão teológica, em vez de fundamentadas em
pragmatismos ou em valores seculares vigentes (p. 9). As
proclamações da igreja por meio do seu ministério necessitam ser
o mais teologicamente sólidas possíveis.

Este fato inclui também a compreensão que muitos estudiosos


defendem de que o verdadeiro cristão deve ser, e de fato é, um
teólogo. Sendo assim, é necessário que conheça minimamente algo
sobre a riqueza da verdade revelada nas Escrituras. E deve conhecer
com suficiente clareza para declarar e defender o que disse, “porque
o que o homem crê também se relaciona diretamente com a
influência exercida sobre outros” (Wiley, 1990, p. 18). Por isso,
Paulo aconselhou Timóteo: “Procura apresentar-te a Deus,
aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que
maneja bem a palavra de verdade” (II Timóteo 2.15). Advertiu-o
também, dizendo: “Medita estas coisas, nelas sê diligente, para que
o teu progresso a todos seja manifesto. Tem cuidado de ti mesmo e
da doutrina. Continua nestes deveres; porque, fazendo assim,
salvarás tanto a ti mesmo como aos teus ouvintes” (I Timóteo 4.15-
16).

Wiley introduz essa ideia no pensamento teológico dele ao


dizer que “o estudo da doutrina cristã é obrigatório para todo cristão.
Não é algo separado da vida nem é assunto que deve ser tratado com
descuido, indiferença ou vã especulação, já que o conhecimento de
dogmas e doutrinas influi no desenvolvimento da salvação pessoal,
juntamente com a formação de um caráter são, sob influência santa.
Cabe ao indivíduo, dentro dos limites da sua capacidade e
oportunidade, descobrir e aceitar a doutrina cristã (p. 18).
Destacamos, no entanto, que diante da inclusão dessa designação a
toda a comunidade de fé, o labor teológico aqui apresentado estará
em continua relação com a dimensão acadêmica.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 15
Por outro lado, a reflexão teológica tem necessidade de
conhecer o mundo em que essa tarefa acontece. A abertura à
realidade é uma dimensão básica do pensar teológico, na medida
em que ela deseja articular com responsabilidade uma reflexão
capaz de ajudar no discernimento do caminho a ser percorrido e de
promover um agir transformador da realidade, em conformidade
com o projeto salvífico de Deus, conforme comenta Millard
Erickson (1997), a teologia é elaborada no contexto da cultura
humana, por que o caráter dinâmico da história, a natureza fluída
da linguagem e as mudanças no cenário cultural, bem como o
desenvolvimento do pensamento filosófico tornam imperativo que
cada geração procure lidar com o significado contemporâneo da sua
fé (p. 16). Sobre isso, Purkiser (1991) vai dizer que “a constante
tarefa da igreja é interpretar sua fé no mundo contemporâneo” (p.
14). Essa relação também é descrita por Karl Barth ao afirmar que
“no campo da teologia a igreja chega às suas conclusões de acordo
com o estado do seu conhecimento nas diferentes épocas” (1960, p.
11).

A esse respeito, o doutor Henry B. Smith fez a seguinte


declaração da realidade que forma o fundamento da teologia cristã:
"Tendo-se o devido cuidado com a expressão, será conveniente
dizer-se que há um realismo cristão absolutamente fundamental na
teologia cristã. Isto é, há uma grande série de fatos que constituem
a própria vida do sistema cristão, que têm valor e realidade objetiva
e sem os quais toda a teologia cristã será, em princípio, reduzida a
mero sistema filosófico” (1973, p. 22).

Na esteira disso, Pedro Savage (1985), afirma que o teólogo é


alguém chamado por Deus para escutá-lo a partir das exigências da
vida diária e das experiências com Deus na vida da igreja local. Seu
trabalho é feito a serviço da igreja, por meio de uma atividade
pedagógica, profética e querigmática (p. 54). Cabe-lhe falar à igreja
e ao mundo a partir da vivência pastoral e comunitária, em diálogo
com o Espírito Santo, que o ilumina em suas ideias e intuições. Ele
faz isto comparando dois contextos: o contexto de hoje e aquele da
Bíblia, procurando discernir, por meio desta, a missão da igreja
local ao seu contexto atual.

Juan Stam (2005) acrescenta que, para esta tarefa, o teólogo


não pode ter apenas o domínio da dimensão bíblica e histórica da

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 16
teologia. Ele deve também dominar a problemática do seu próprio
contexto, consciente tanto dos desafios filosóficos, históricos,
políticos, sociais e econômicos, quanto dos morais e éticos, e,
sobretudo, os culturais colocados pelas artes: pintura, escultura,
cinema, dança e música, poesia, entre outros. Isto implica na
inclusão das Ciências Humanas como parceiras em sua atividade
interpretativa do próprio contexto (p. 127).

Isso significa que pensar teologicamente, exige situar-se


contextualmente. E uma forma organizada de considerar o contexto
é lançando mão da teoria da contextualização, que em perspectiva
teológica, se apoia no seguinte tripé: (1) o contexto; (2) a igreja
local; e, (3) o teólogo. O contexto requer um texto: a Bíblia e a
tradição teológica conforme recebida de outro contexto através da
evangelização. Este texto requer a interpretação por parte da igreja
local a partir do seu próprio contexto. Esta interpretação exige uma
atitude crítica dirigida tanto ao contexto de origem quanto ao
próprio contexto da igreja local. Duas instâncias críticas se impõem
nesta atividade: a Bíblia e o senso de missão da igreja local para
com seu contexto. O papel do teólogo é apontar para a igreja local
a necessidade de realizar esta atividade hermenêutica; orientá-la
pastoralmente na maneira de fazê-la; e auxiliá-la na avaliação e
juízo dos seus resultados em termos da obediência às Escrituras
quanto ao cumprimento de sua missão no próprio contexto. Para
realizar esse trabalho, não basta ao teólogo ampla formação bíblica
e histórico-teológica, mas, também sólida formação pastoral e
comunitária, isto é, envolvimento com a igreja local, e uma
profunda formação cultural, isto é, conhecimento do seu próprio
contexto.

Para Dunning, “somente quando esse procedimento é seguido,


pode-se evitar o atrofiamento teológico e a possibilidade de que os
pressupostos teológicos se transformem em preconceitos,
resultando em uma perda significativa de vitalidade ou de
credibilidade” (p. 11-12).

Herman Brandt (1999) nos recorda que a teologia elaborada


desde e para o contexto da igreja local, tornou-se preocupação no
universo teológico a partir dos anos 60 (p. 167-185); e para ele, o
que justifica a tarefa de pensar teologicamente é alcançar relevância
e eficácia naquilo que a igreja faz enquanto representante de Deus

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 17
no lugar onde se encontra. Desse modo, povo e contexto se definem
e se condicionam mutuamente. Desde essa época, o termo contexto
foi crucial para distinguir traços característicos do trabalho e do
produto final do teólogo, no intuito de que este representasse as
características culturais, sociais, políticas, econômicas e religiosas
do lugar desde o qual e para o qual ele elaborava a sua reflexão
teológica. A maneira de avaliar uma teologia passou a considerar
em que medida ela representava legitimamente o seu lugar. René
Padilla, um dos expoentes deste interesse, advogou, nos anos 70,
uma proposta de contextualização do Evangelho. Pedro Savage, foi
outro pensador que nos anos 80, desenvolveu um programa para
uma teologia contextual evangélica para a América Latina. Quem
discutiu amplamente a questão da contextualização da teologia no
início deste século, foi o conhecido Juan Stam (Sanches, 2009, p.
1-2).

Etimologicamente, a palavra contexto, tem sua origem no


Latim. O verbo latino é contēxo ou contexēre; o advérbio: contēxtē;
e o substantivo: contēxtus. O uso do verbo indica a “ação de formar
algo tecendo, entrelaçando”. Seu sentido é derivado de outro verbo
texēre, tecer. Diferentemente deste, a acepção de contexēre tem por
objeto a obra concluída, na medida em que ela representa as
diversas partes reunidas ou tecidas e que contribuíram para o
resultado final, chamada “tessitura, contextura ou contexto”. O
advérbio contextual ou contextualmente aponta para o
encadeamento, a sequência, a concatenação entre as partes tecidas.
“Observar o contextual ou contextualizar é perceber o
entrelaçamento ou a ligação entre as diversas partes do contexto, é
perceber como uma parte contribui para o sentido de outra parte, de
modo que o significado de qualquer uma delas sempre será
contextual, isto é, remetido a todas as demais partes” (Abbagnano,
2000, p. 199-200). Harvie Cohnn (1990) justifica a
contextualização como a busca de relevância e aplicabilidade da
mensagem do Evangelho em uma cultura específica, o que requer
que se observe o seu contexto (p. 63).

A contextualização não pode ser mera transferência de


conceitos, mas se trata de uma questão hermenêutica de
compreensão ou entendimento de um contexto totalmente diferente
entre quem comunica e quem recebe a mensagem do Evangelho.
Trata-se de como refletir teologicamente não desde posições já

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 18
fixadas, mas de fazê-lo enquanto a caminho com aqueles com quem
se deseja comunicar o Evangelho. Isto significa ouvir o que os
teólogos têm dito quanto à necessidade de que suas igrejas de
origem os ouçam e prestem atenção em seus contextos a fim de lidar
corretamente com eles.

Segundo Cohnn, a tarefa teológica contextualizada, em sua


proposta primaria, se dirige ao contexto humano particular e aprecia
as condições sociais, culturais e históricas como determinantes do
contexto a fim de teologizar para elas. Esse gesto de contextualizar
possibilita uma orientação da teologia para a missão mais
intencional, reconhecendo em seu contexto aqueles aos quais dirigir
a mensagem do Evangelho (p. 7).

Se a teologia pretende falar a partir da presença e missão da


igreja no meio das pessoas, considerando sempre o seu contexto,
então, é preciso verificar a relação entre a igreja e o contexto desde
uma autoanálise bastante crítica, inclusive da teologia já recebida.
Cabe a esta, também, dizer quem serão aqueles a produzir a sua
teologia. Deve sinalizar também se a teologia produzida para ela
está de acordo com a sua maneira de perceber seu contexto. Do
contrário, seria um equívoco pensar que seja possível ser tão
absolutamente contextual que torne desnecessária a produção de
teologia realizada em outros contextos, mesmo os historicamente
situados. Se faz necessário pensar em como é possível elaborar uma
teologia contextual de Jesus Cristo, da salvação ou da igreja sem
considerar as teologias produzidas em outros contextos. A esse
respeito, a teologia que considera a ambiência social parece mais
indicar para o que pode ser aproveitado, o que pode ser adaptado e
o que deve ser reelaborado a partir do cenário ao qual deseja
comunicar-se (Sanches, p. 9).

Conforme mencionado até aqui, o labor teológico acentua a


importância do ambiente social como dimensão fundamental do
método teológico, indicando que ao contexto compete informar a
reflexão do teólogo, levando-o a fazer teologia em e para um
determinado contexto. A discussão da teoria e método da
contextualização, ou a resposta à pergunta: como contextualizar a
teologia? acrescenta informações valiosas, que por sua importância,
será tratada com certa extensão nessa seção e de forma separada.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 19
De início é preciso uma teoria para analisar o contexto. Para
Cervera Conte (2006), contexto sugere quatro possibilidades: (1) as
características comuns de um agrupamento humano, como língua,
geografia, história, que geram uma forma comum de viver a vida,
por exemplo, o contexto rural em oposição ao urbano; (2) as
questões sociais, econômicas, políticas não integradas ou
contraditórias quanto à forma comum de viver a vida, por exemplo,
o contexto de mulheres ou de idosos; (3) cada etapa da vida e seus
sentidos adequados, como o contexto infantil ou adolescente; e, (4)
a situação total da existência humana, o contexto humano (p. 152-
154).

Delimitado o contexto, é preciso estabelecer o diálogo com ele.


Toda teologia nasce da experiência de fé e compromisso com Jesus
Cristo em uma realidade concreta na qual a igreja se encontra no
mundo. O diálogo entre ambos requer de pelo menos duas
condições: (1) nova postura para com a teologia, na qual se adota
um modelo narrativo que possibilita o diálogo com a cultura; e, (2)
novo entendimento da comunidade cristã, no qual se abandona a
sua particularidade que possibilita o diálogo com a comunidade
humana total.

Para Miguez Bonino (1997), para que o diálogo ocorra é


necessário o encontro entre duas culturas, e o reconhecimento da
igualdade de ambos os parceiros do diálogo. Para que a igualdade
seja possível é necessário, em primeiro lugar, que o teólogo auxilie
a igreja a perceber os próprios condicionamentos culturais de sua
teologia, na medida em que “elas mesmas são resultado de
encontros anteriores, de condições mutantes, de transculturações e
inculturações, e que estão sendo constantemente modificadas por
esses mesmos fatores” (p. 93). Em segundo lugar, deve-se
compreender a maneira como uma igreja local lida com a sua
própria cultura, vivendo-a e interpretando-a, e em que medida essa
cultura tem se modificado ao longo dos influxos e dinâmica do
tempo.

Com isso, trata-se de perceber como texto e contexto, Escritura


e tradição, de um lado, e a cultura da comunidade, de outro,
dialogam continuamente e se influenciam mutuamente. Essa
atividade dialógica é, por natureza, hermenêutica, ao identificar o
processo de interpretação que acontece de um contexto para outro

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 20
(Padilla, 1978, p. 18). Esta exige a rejeição pela igreja local da
simples reprodução da teologia recebida de outro contexto e o
esforço para interpretar esta teologia em seu próprio contexto. Isto
implica em que a própria comunidade de crentes assuma a
preeminência no processo de interpretação, no qual perceberá que
cada cultura torna possível uma certa abordagem ao Evangelho que
destaca certos aspectos salientes que em outras culturas
permanecem menos visíveis ou até ocultas. Visto desta perspectiva,
as mesmas diferenças culturais que encobrem a comunicação
intercultural podem servir para afirmar o entendimento da
pluralidade da sabedoria de Deus; eles servem como canais de
expressão de aspectos da verdade do Evangelho, aspectos que a
teologia ligada a uma cultura particular dificilmente consegue
abranger (p. 6).

A atividade dialógica hermenêutica deve ser também crítica do


próprio contexto. É o que propõe o antropólogo Paul Hiebert
(1999), em sua teoria da contextualização crítica. Os contextos
culturais são sistemas completos e complexos que as pessoas
utilizam para atender necessidades essenciais, inclusive crenças
filosóficas e religiosas, que dão condições de viver humanamente e
também de responder às questões mais profundas da vida. A
contextualização nesse sentido é efetuada quando a comunidade de
fé local investiga sua própria cultura e a avalia à luz das normas
bíblicas (p. 99).

Definido e entendido o papel e a importância da teoria no ato


de contextualizar o labor teológico, prosseguimos na busca de uma
maior assimilação quanto as implicações dos métodos na
contextualização.

Uma teoria da contextualização requer uma prática para aplicá-


la. Neste aspecto, a variedade é imensa, e cedo foi sentida a
necessidade de classificá-las e agrupá-las em modelos. Usando-os
acriticamente, corre-se o risco de imaginar que a atividade de
contextualização é mecânica, bastando simples aplicação de
modelos. Desconhece-se, no entanto, que ela é muito mais dinâmica
e existencial, pois acontece em todo o tempo em que uma igreja
local interage com seu próprio contexto toda vez que se dirige a ele
em missão. Para Dunning, o trabalho teológico é feito primeiro e
depois é identificado o método que emerge desse trabalho.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 21
Contudo, como é lógico, o método vem primeiro e não faz parte da
própria teologia, embora esteja implícito (p. 56).

Por outro lado, os modelos não são apenas métodos para


realizar a contextualização da teologia, mas envolvem princípios e
interesses que estão por trás do empreendimento, mostrando como
a atividade acontece e permitindo a análise e avaliação dos
procedimentos. Normalmente, os modelos funcionam a partir de
dois polos: o polo do texto, que varia entre as Escrituras, a tradição
e a mensagem cristã, e o polo do contexto, comumente definido
como a cultura local. A distribuição dos modelos se dá conforme a
predominância da abordagem de um polo sobre o outro (Sanches,
p. 12).

Um dos esforços mais antigos de selecionar e ordenar as


práticas em modelos coube a Stephen Bevans, nos anos 80. Ele
demonstrou como certa prática de contextualização se concentra no
texto, procurando reproduzi-lo no contexto, como por exemplo, os
modelos de tradução. Para Schreiter (1985), estes buscam a
correspondência entre os elementos culturais do texto com
elementos culturais, sociais, simbólicos e imaginários locais. Sua
atividade consiste em dois passos: libertar a mensagem cristã dos
seus acréscimos culturais e traduzi-la no novo contexto cultural.
Schreiter os avalia muito úteis para as questões pastorais, como a
liturgia, o discipulado, a tradução da Bíblia, de textos e de termos
teológicos.

Uma forma mais sutil consiste em permitir que, ao longo do


tempo, formas contextuais locais modifiquem e substituam os
sistemas teológicos estrangeiros. Outras práticas de
contextualização se concentram no contexto, procurando
transformar o contexto por meio do texto, como os modelos da
práxis, que buscam pelos elementos de mudança do texto que
possibilitem a transformação das condições sociais, políticas e
econômicas locais. De acordo com Schreiter, a atividade consiste
em efetuar a reflexão desde e a partir do contexto no qual se insere
a igreja local (p. 6-16).

Para Sanches, existem dois tipos de modelos em função do qual


conjunto de fatores são considerados determinantes para o
contexto. Um deles objetiva as mudanças culturais às quais as

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 22
pessoas estão sujeitas por meio de alterações significativas em seu
contexto. Outro tem por alvo as mudanças sociais e econômicas que
sujeitam as pessoas a condições precárias de vida em função das
alterações em andamento. O primeiro tipo se concentra em questões
de identidade e continuidade cultural. O segundo se concentra em
questões de mudança e descontinuidade social. Isoladamente,
ambos os tipos possuem fraquezas que são superadas com a união
dos dois em um único modelo de contextualização (p. 13-15).

Quanto aos modelos antropológicos, Cortez (2005) entende


que eles são apenas parcialmente contextuais, pois correm o risco
de forçar o sistema teológico à situação local, ou de alterar o
sistema teológico conforme a situação local, correndo o risco deste
processo jamais se consolidar realmente, não se realizando a tarefa
de contextualização. Quanto aos “modelos de práxis”, ele os julga
como as verdadeiras práticas de contextualização, pois envolve a
igreja local que reflete sobre o texto desde as mudanças que
ocorrem em sua situação, permitindo que ela direcione sua ação em
seu contexto conforme a reflexão efetuada (p. 85-102).

Tendo em vista isso, fica claro que a contextualização se torna


cada vez mais valorizada diante do momento histórico,
multicultural e intercultural, que afeta diretamente o cristianismo.
Contudo, e talvez pela própria natureza da contextualização, ela
permanece uma tarefa inacabada, mal interpretada ou mal
conduzida ao longo do seu percurso até o momento.

Essa breve descrição, relacionada à natureza da igreja,


evidencia o desafio que enfrentamos, diante do qual o labor
teológico não deve desviar a atenção de sua tarefa primordial que é
a de tornar a mensagem de fé cristã objeto de reflexão, examinar
sua lógica interna e manter concordância como os seus
fundamentos da Palavra revelada de Deus.

TERMINOLOGIA

Ray Dunning, vai dizer que a teologia é um termo neutro, no


sentido em que ela pode ser islâmica, judaica ou sobre qualquer
outra religião. Contudo, nosso estudo concentra-se na teologia
cristã. O desdobramento disso, revela que é um estudo do Deus cujo

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 23
caráter tem sido definido de forma decisiva pela sua atuação em
Jesus Cristo (p. 32). Essa verdade tem de ser levada a sério, uma
vez que é esta ênfase teocêntrica, com um caráter Cristo-normativo,
que mantêm a unidade da disciplina que aqui estamos
desenvolvendo.

Uma exposição completa da doutrina cristã pode constar sobe


o titulo Teologia Sistemática. Em função disso, e sabendo que a
doutrina cristã é definida sob uma categoria mais abrangente
(teologia cristã ou, em termos técnicos, como dogmática cristã),
Wiley se refere a ela como “o estudo analítico daquela porção da
verdade que facilita o material da teologia, geralmente conhecido
com o nome de fé cristã” (p. 19).

Para se chegar a uma melhor assimilação dessa terminologia,


comumente se faz uma distinção entre doutrina e dogma. Doutrina é
o ensino sistematizado das Escrituras sobre qualquer assunto
teológico. Erickson acrescenta a esse conceito a seguinte ideia: “a
doutrina cristã constitui-se da declaração das crenças mais
fundamentais do cristão. Crenças sobre a natureza de Deus; sobre
sua ação, sobre nós, que somos suas criaturas; e sobre o que Deus
fez para nos trazer à comunhão com Ele. Longe de serem áridas ou
abstratas, as doutrinas são a espécie mais importante de verdades.
São declarações sobre as questões fundamentais da vida, ou seja:
quem sou eu? Qual é o sentido último do universo? Para onde vou?
A doutrina cristã, portanto constitui-se das respostas que o cristão
dá àquelas perguntas que todas as pessoas fazem” (p. 16). Erickson
destaca o sentido da doutrina por causa da ligação entre a verdade
e a experiência, e para ele, compreender corretamente a doutrina é
de vital importância porque hoje há muitos sistemas de
pensamentos religiosos e seculares que disputam nossa devoção.
Para Grudem (1999) é imperativo reconhecer que a doutrina é o que
a Bíblia, como um todo, nos ensina acerca de um determinado
assunto (p.4).

O dogma, por sua vez, “é a forma que a doutrina assume como


fruto do seu desenvolvimento. São os dogmas que têm dado lugar à
teologia dogmática, por exemplo, marcando assim muitas
diferenças nas várias vertentes da igreja cristã” (Wiley, p. 21).
Tecnicamente, a palavra grega dogma pode significar tanto a
opinião subjetiva, distinta do saber abalizado, quanto a opinião de
caráter compulsório (Pannenberg, 2009, p. 34). Como opinião

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 24
compulsória também deve ser compreendida a aplicação da palavra
dogma à tradição doutrinária cristã em Inácio de Antioquia, quando
se refere aos dogmas do Senhor e dos apóstolos. Em termos de
conteúdo, deve-se pensar em instruções éticas.

O termo teologia deriva-se de duas palavras gregas: theos


(Deus) e logos (discurso ou tratado). Originalmente se referia a um
discurso acerca de Deus. Os antigos gregos usavameste termo em seu
sentido literal, daí tem-se aplicado a palavra theologoi ou teólogos,
aos que escreviam a história dos deuses e suas façanhas. Portanto,
em seu sentido geral, o termo teologia pode aplicar-se às
investigações científicas sobre pessoas sagradas, coisas ou relações,
sejam reais ou imaginárias. Mesmo que o conteúdo de tais tratados
não seja totalmente verdadeiro, o uso permite chamá-lo de teologia,
se a matéria de estudo de que se trata se considera sagrada. Por esta
elasticidade na definição do termo teologia, devemos adotar a
expressão teologia cristã (Wiley, p. 21-22).

DEFINIÇÕES DE TEOLOGIA

Uma das definições mais simples de teologia é: “A teologia


cristã é a apresentação sistemática das doutrinas da fé cristã”. O
Doutor Samuel Wakefield define a teologia como aquela ciência que
trata da existência, do caráter e dos atributos de Deus; suas leis e
governo; as doutrinas em que temos de crer; a mudança moral que
devemos experimentar e os deveres que temos que cumprir”.
Charles Hodge a define da seguinte maneira: “Teologia é a exibição
dos fatos da Escritura, em sua própria ordem e relação com os
princípios ou verdades gerais, envolvidos nos próprios atos que
formam e harmonizam o todo”. Mas uma definição bem clara é a do
eminente teólogo metodista William Burton Pope, que disse: “A
teologia é a ciência de Deus e das coisas divinas, baseadas na
revelação feita ao ser humano, por meio de Jesus Cristo, e
sistematizada em vários aspectos dentro da igreja cristã” (Wiley, p.
22-23).

A palavra teologia, por outro lado, tem múltiplos significados.


O uso linguístico hodierno entende sob o termo uma disciplina
acadêmica, em todo caso um esforço humano para adquirir
conhecimento. Em sua origem platónica, todavia, o termo designa

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 25
o Logos que traz noticias a respeito da divindade em discurso e
canto dos poetas (A Republica 379 a 5s). Não se trata aí da análise
reflexiva pelo filósofo. No entanto, já Socrates chamou uma das
três disciplinas da filosofia teórica de teologia (Met. 1026a 19 e
1064b 3), e a posteriori chamada de metafísica, por que teria por
objetivo o divino como o princípio de todo ente, que abrange e
fundamenta a todo o mais. Depois os estóicos distinguiram uma
teologia dos filósofos adequada à natureza da divindade da teologia
mítica dos poetas, e da teologia política dos cultos estatais: aqui
teologia já não é mais somente objeto de análise filosófica, e, sim,
é ela mesma (Pannenberg, p. 25-26).

No mesmo sentido é de significado múltiplo o uso linguístico


cristão, surgido no século II, que se apoiava no uso linguístico
filosófico. Se Clemente de Alexandria contrapõe à mitologia de
Dionísio a teologia do Logos eterno (Strom I, 13,57,6), isso não se
refere apenas a uma doutrina sobre o Logos, e, sim, à própria
proclamação de Deus pelo Logos. Em termos técnicos, o teólogo é
o proclamador da verdade divina e inspirado por Deus, e a teologia
é a proclamação. Isso permaneceu vivo ainda no uso linguístico
posterior dos cristãos. Neste sentido, os autores bíblicos puderam
ser chamados em conjunto de teológos. Isso vale para os profetas
veterotestamentários e para o evangelista João, que é chamado de
teológo da deidade de Jesus; mais tarde, doutores da igreja como
Gregório Nazianza com seus 380 discursos sobre a Trindade, e mais
tarde ainda Simeão, é chamado de novo teólogo. Teologia nesse
contexto não é concebida apenas, e em primeiro lugar, como
produto da atividade humana, mas designa a notícia de Deus
própria do Logos divino e revelada por Ele. Ao homem ela se torna
acessível somente como contemplação da verdade divina concedida
pelo próprio Deus, portanto por meio de inspiração reveladora. É
digno de nota que a consciência da relação constitutiva da teologia
com a revelação ficou preservada nas discussões da alta escolástica
latina sobre o caráter científico da teologia, inclusive nos teólogos
de cunho mais aristotélico, independentemente de outros contrastes
entre concepções platônico-agostinianas e aristotélicas. A
viabilização de conhecimento de Deus pelo próprio Deus, portanto
por meio de revelação, já é uma das condições fundamentais do
conceito de teologia como tal. O fato de a dependência do
conhecimento de Deus e da revelação divina ser constitutiva para o
conceito de teologia se expressa de modo mais claro e é plausível
em medida máxima se Deus é tomado como o verdadeiro e

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 26
abrangente protagonista da teologia. Dessa forma, e conforme
Pannenberg afirma, Deus é o ponto de referência unificador de
todos os temas que são tratados na teologia (p. 30).

Augustus Strong considera a teologia a ciência das ciências,


não no sentido de incluir todas estas, mas no de empregar os seus
resultados e mostrar a sua base subjacente. Só quando
consideramos as relações das coisas finitas com Deus é que o
estudo delas fornece material para a teologia. A antropologia, por
exemplo, é uma parte da teologia porque a natureza do ser humano
é obra de Deus e porque a forma de Deus tratar a humanidade lança
luz sobre o seu caráter. Deus é conhecido através das suas obras e
das suas atividades. Por isso a teologia dá conta destas obras e
atividades na medida que estas acompanham o nosso conhecimento
(2002, p. 21). Strong, afirma ainda, que o fato de considerar a
teologia uma ciência, isso indica o seu alvo. “A ciência não cria, ela
descobre. A teologia responde a esta descrição da ciência. Descobre
fatos e relações, mas não os cria” (p. 22). Além disso, ciência não
é apenas observação, registro, verificação e formulação de fatos
objetivos; é também o reconhecimento e explicação das relações
entre estes fatos e a síntese tanto dos fatos como dos princípios
racionais que os unem em um sistema abrangente, corretamente
proporcional e orgânico.

Embora o termo teologia às vezes seja empregado em escritos


dogmáticos para designar um simples departamento da ciência que
trata da natureza e atributos divinos, o uso prevalece, desde
Abelardo (1079-1142 A.D.), que intitulou seu tratado geral
Theologia Christiana, o qual abrange sob este termo, todo o acervo
da doutrina cristã. Por isso, a teologia trata, não só de Deus, mas
das relações entre Deus e o universo.

Marianne Micks definiu teologia como “o raciocínio


disciplinado sobre Deus” (1967, p. xii). Por outro lado, ele amplia
essa concepção argumentando que a teologia não envolve somente
palavras sobre Deus, mas também palavras sobre o ser humano em
relação a Deus. Esse enfoque foi particularmente destacado nas
obras teológicas de Martinho Lutero e João Calvino, os
Reformadores Protestantes, que nos seus escritos insistiam na
existência de um sujeito duplo na teologia: Deus e o ser humano.
Como a teologia trata de fatos objetivos e suas relações, assim a
disposição destes fatos não é opcional, mas determinada pela

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 27
natureza da matéria de que ela trata. A verdadeira teologia repensa
os pensamentos de Deus e os põe na disposição de Deus, como os
construtores do templo de Salomão.

Em face de tais argumentações, o grande Léxico de Bolso de


Meyers, define teologia como “a reflexão sistemática desenvolvida
sobre pressupostos de fé religiosa” (1992, p. 75). Dizer isso, é
afirmar que a teologia tem seu ponto de partida na verdade da
própria tradição religiosa e exercita suas reflexões sobre o
fenômeno religião, partindo de uma convicção prévia, a fé. Por
conseguinte, para Meyers, a teologia cristã é descrita nestes termos:
“Reflexão metódica e sistemática, bem como exposição da fé em
Deus, baseada em Jesus. Na fé, é pressuposta a verdade da
mensagem cristã, tal como foi revelada e é feita objeto de reflexão
para o crente e defendida frente às diferentes ciências” (p. 77).
Diante dessa definição, se faz necessário distinguir três conceitos
(fé – religião – teologia) que estão contidos nessa declaração e que
estão sempre presentes no universo teológico.

O primeiro esclarecimento diz respeito a distinção que deve ser


feito entre teologia e religião, embora não haja uma separação
completa entre as duas. Segundo Dunning “a religião é
primeiramente existencial e a teologia é primeiramente intelectual,
mas o intelecto não está ausente da experiência religiosa ou vice-
versa. A religião inclui elementos emocionais, volitivos e
intelectuais” (p. 30). O segundo esclarecimento sugere uma
distinção entre teologia e a fé. “A teologia não é fé. A fé é a entrega
confiante e total da pessoa a Cristo. A teologia é o nosso raciocínio
ordenado sobre a revelação, nas Ecrituras, do Deus em quem temos
fé. A teologia e a fé andam juntas. Não podemos realmente ter uma
sem a outra. Mas cada uma desempenha um papel distinto. A fé é
primordial. A teologia é o passo seguinte necessário” (Roger, 1979,
p. 60).

ALCANCE DA TEOLOGIA

A teologia cristã abrange em seu escopo um círculo amplo de


investigação, com ênfase particular sobre certas esferas bem
definidas do pensamento. As matérias de estudo que abrange são:
(1) Deus: a matéria, fonte e fim de toda a teologia; (2) Religião:

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 28
dando a consciência básica do sobrenatural, sem a qual o ser
humano estaria incapacitado de receber as revelações da verdade
divina; (3) Revelação: como a fonte primária dos fatos sobre os
quais se estrutura a teologia sistemática; (4) Jesus Cristo: o Verbo
Pessoal e Eterno, no qual toda a verdade encontra o seu centro e
circunferência; (5) A Igreja: em que a verdade tem sido
sistematizada e desenvolvida sob a assistência e direção do Espírito
Santo.

Strong refere-se ao alcance da teologia, como possibilidade da


mesma. Para ele, a teologia têm uma tríplice base: (1) Na existência
de um Deus que se relaciona com o universo; (2) Na capacidade da
mente humana de conhecer Deus e algumas de tais relações; (3) Na
provisão de meios pelos quais Deus se põe em real contato com a
mente ou, em outras palavras, na provisão de uma revelação.
Qualquer ciência em particular só se torna possível quando
combina três condições, a saber, a verdadeira existência do objeto
de que ela trata, a capacidade subjetiva da mente humana conhecer
tal objeto, e a provisão de meios definidos pelos quais os objetos
entram em contato com a mente.

REQUISITOS QUALITATIVOS PARA


O ESTUDO DA TEOLOGIA

Wiley ao citar Henry B. Smith apresenta excelentes


considerações a respeito do espírito que deve animar o verdadeiro
estudante de teologia. A primeira qualidade necessária na vida
daquele que faz teologia é inclinação espiritual. Isto não quer dizer
mero conhecimento abstrato acerca das coisas espirituais, nem
mero sentimento geral de boa vontade, mas disposição espiritual
que, na sua natureza mais íntima, é uma expressão da realidade do
reino de Deus centralizada na pessoa e obra de Jesus Cristo. E uma
inclinação espiritual resultante do contato pessoal e vital com Deus.

A segunda qualidade que deve perpassar a vida de alguém que


faz teologia, é ter espírito de humildade reverente. Tal humildade,
diz Smith, não deve confundir-se com a subserviência ao
dogmatismo; isto não é sinal de espírito humilde, mas de
acomodação. A humildade requerida aqui é aquela oposta à
suficiência própria. Não pode ser verdadeiro estudioso de teologia

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 29
quem não seja possuído de humildade e reverência, quem não seja
um investigador humilde diante dos mistérios da encarnação e da
expiação, quem não sinta e saiba que, nestes grandes fatos, há
alguma coisa que o compele a tirar as sandálias do seu coração,
porque está pisando território santo.

A terceira qualidade requerida é amor sincero à verdade. O que


se diz da virtude, diga-se também, da verdade; ambas são boas em
si e por si, devendo ser amadas e buscadas por seu próprio mérito.
Muitos amam a verdade por causa do seu interesse, outros por causa
da igreja; a maior parte da humanidade, talvez, por ambição
pessoal; outros porque não podem ou não querem renunciar ao que
aprenderam; mas o teólogo deve amar e anunciar a verdade porque
é a verdade.

Uma quarta qualidade que o teólogo deve possuir é o espírito


de confiança. Isto é, a crença de que, sob a iluminação da bendita
pessoa do Espírito Santo, pode encontrar-se a verdade, que é a
substância da teologia. E como a iluminação desse Espírito é
prometida e concedida a todos os que se entregam à Sua direção,
devem ter confiança de que chegarão a saber, se são fiéis, tudo o
que for preciso para que possam realizar a obra do seu Mestre aqui
na terra.

Outra qualidade que deve acompanhar a tarefa teológica, é o


zelo profissional pelo seu trabalho. O teólogo deve sentir e viver,
dia após dia, semana após semana, como se a teologia fosse o seu
próprio e mais precioso trabalho, dando-lhe o melhor do seu tempo,
e do seu labor paciente, das suas faculdades.

Aos requisitos acima mencionados, tão habilmente


apresentados pelo doutor Smith, podem ser acrescentados os
seguintes: (1) Conhecimento adequado da Bíblia, a Palavra de
Deus. A exegese precede a teologia e a obra da teologia sistemática
deve ser precedida pelo estudo da teologia bíblica, ou o estudo
sistemático dos conteúdos doutrinais da Bíblia. Nada pode
substituir o conhecimento adequado e pessoal do que a própria
Escritura ensina com relação à doutrina. (2) Compreensão
multidisciplinar de outros conhecimentos acadêmicos. (3) Mente
disciplinada. Referindo-se a esta classe de mente Strong diz: "Só
uma mente como esta pode reunir pacientemente os fatos, deduzir

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 30
os princípios que os· ligam por meio do raciocínio contínuo e deter
o juízo até que as suas conclusões sejam provadas pela Escritura e
pela experiência (p. 38). Esse tipo de mente distingue-se pela
firmeza e decisão em rejeitar preconceitos quando a sua verdadeira
natureza se toma evidente. Prova todas as coisas e retém o que é
bom; abraça as verdades intuitivas assim como as que se adquirem
pela lógica e pela razão. É uma mente que não está escravizada ao
processo racional, mas que possui intuição espiritual assim como
entendimento cognitivo.

PRINCIPAIS DIVISÕES DA TEOLOGIA

Os eruditos organizaram e sistematizaram de várias maneiras


os elementos da teologia para facilitar-lhe o estudo.
Mencionaremos aqui apenas alguns dos principais termos usados
para designar as diversas categorias dentro do universo teológico.

Teologia Natural

Este ramo da teologia trata da existência, dos atributos e da


vontade de Deus tal como se revelam nos diferentes fenómenos da
natureza: Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento
anuncia as obras das suas mãos. No grandioso livro da natureza
encontramos evidência respeitante à existência de Deus, ao Seu
poder e propósitos. No universo material e na constituição do ser
humano Deus revela-se numa forma um tanto velado, mas
certíssima. Cabe à teologia natural coligir e sistematizar esta
evidência.

Teologia Exegética

Este é um estudo cuidadoso e analítico das Escrituras,


classificado de acordo com as doutrinas. Compreende um extenso
campo de investigação que inclui a época, a origem, o conteúdo e
o caráter dos escritos sagrados; a integridade do texto original; a
autenticidade dos diferentes livros; e os princípios da interpretação,
exposição e aplicação bíblicas.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 31
Teologia Bíblica

A tarefa dessa teologia é explicar, pelos próprios termos, a


teologia que vem expressa no texto bíblico (Ebeling, 1963, p. 81-
86). Muito frequentemente o termo é usado para designar a teologia
com um caráter ostensivamente bíblico, mas isso é usar o termo de
forma adjetiva em vez de nominal. “A teologia bíblica focaliza
também o entendimento que os autores bíblicos e seus primeiros
ouvintes tinham de cada doutrina” (Grudem, p. 2). A teologia
bíblica como disciplina é um fenômeno relativamente recente, mas
as suas raízes estão profundamente ligadas à Reforma Protestante.
Nas suas formas mais antigas, a teologia bíblica era concebida
como o uso de textos de prova, textos tirados indiscriminadamente
de ambos os Testamentos, para apoiar os sistemas tradicionais da
doutrina dos primórdios da ortodoxia protestante. Para Dunning “a
teologia bíblica é essencialmente descritiva, indutiva, sintética em
abordagem, a qual na base de um estudo histórico-gramatical do
texto bíblico procura expor, nos seus próprios termos e na sua
unidade estrutural, a teologia expressa na Bíblia” (p. 35).

Teologia Histórica

Trata do desenvolvimento histórico da doutrina. Contém duas


partes principais: o estudo do desenvolvimento progressivo das
doutrinas da Bíblia e o exame do desenvolvimento histórico da
doutrina da igreja. Destaca a importância da história secular, bíblica
e eclesiástica, dada a contribuição que podem oferecer à
compreensão do desenvolvimento doutrinário. Tal como a teologia
bíblica, também é uma disciplina descritiva, mas difere dela por
traçar o desenvolvimento do pensamento teológico através dos
séculos, após o encerramento do cânon do Novo Testamento. Essa
história é um fenômeno complexo, com muitas e variadas tradições
entrelaçadas no tronco principal do pensamento cristão.

Teologia Prática

Esta divisão da teologia relaciona-se com a aplicação prática


dos resultados da investigação teológica, particularmente no que se
refere à obra do ministério cristão. São incluídos neste estudo
tópicos como a homilética, que trata da composição e apresentação
dos sermões; o discipulado, que trata da instrução dos membros da
igreja; e a litúrgica, estudo das formas de adoração e devoção.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 32
Teologia Sistemática

A teologia sistemática é uma disciplina específica, com


características próprias e únicas, e deve ser diferenciada das outras
áreas do estudo teológico. É uma análise construtiva da estrutura e
da terminologia. A definição a seguir vai para além desta na sua
abrangência e representa uma compreensão mais adequada: “A
teologia sistemática diz respeito às crenças (de Deus e crenças
relacionadas) em uma exposição ordenada e na sua relação com o
pensamento e vida contemporâneos. A tarefa da teologia tem de ser
feita continuamente, à medida que o panorama intelectual e, até o
significado das palavras, sofrem mudanças” (Line, 1945, p. 147).

Essa afirmação mais completa destaca três elementos


essenciais para a teologia sistemática. O primeiro deles, refere-se à
contemporaneidade. Diferentemente da teologia bíblica ou
histórica, a teologia sistemática não é unicamente uma abordagem
histórica já que a sua tarefa é colocar a fé cristã em contato com a
situação atual. Isso implica que a teologia sistemática seja um
compreendimento construtivo e não um mero ensaio acrítico da
tradição. A sua função é interpretar as crenças cristãs de forma
holística, sendo fiel tanto à tradição como à geração presente
(Dunning, p. 36).

Esse aspecto da teologia sistemática exige que cada geração


faça teologia por si mesma, declarando o que a fé significa em e
para o seu próprio contexto histórico. É também a razão pela qual
a tarefa teológica nunca pode estar concluída. Essa característica
coloca-nos perante um certo dilema, uma vez que sugere que a
teologia sistemática deve operar entre dois polos. existe o polo da
situação e o polo, que pode ser categorizado de tradição ou norma
histórica.

Os teólogos têm tendência para gravitar em um desses polos,


mas o que a teologia sistemática corretamente faz, é manter uma
tensão dinâmica entre os dois. Se sucumbirmos às pressões de um
ou de outro lado, o resultado seria uma aguda distorção. Se nos
movermos em direção ao polo da situação, com o objetivo de nos
tornarmos relevantes, perdemos contato com a norma histórica,
tornamo-nos simplesmente relativos. Se, por outro lado,
desenvolvermos uma fixação por determinada expressão histórica

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 33
da norma e perdemos o contato com a situação, tornamo-nos
irrelevantes. O que nas palavras de Helmur Thielicke, seria
“proteger as cinzas em vez da chama” (1974, p. 54). Thielicke fala
dessa mesma tensão ao usar os termos atualização. O autor afirma
que a Palavra de Deus deve dirigir-se ao ser humano onde se
encontra. Tem de ser atual na situação presente. Usando as
categorias que se tornaram proeminentes, as quais sugerem que
uma nova situação histórica apresenta um desafio ao qual a teologia
tem de dar resposta. Isso quer dizer que a teologia sistemática
procura responder às questões que são levantadas em cada época e,
por meio da Palavra de Deus, influenciar o ethos dessa geração. Isso
é o que Thielicke entende por atualização, trazer a Palavra para o
cenário presente. A verdade em si, permanece intacta. Significa que
o ouvinte é convocado e chamado pelo seu próprio nome e na sua
situação particular (Dunning. 36-37).

O segundo elemento que se destaca na afirmação de Line diz


respeito a elucidação ordenada. Isso está especificamente implícito
no termo sistemática e pode ser citado como coerência. É muito
mais que um arranjo ordenado de doutrinas ou argumentos de
doutrina em conformidade com qualquer perspectiva específica.
Em uma teologia sistemática autêntica, há uma correlação que
caracteriza cada doutrina em particular, de modo que cada uma
requer todas as outras. Não importa por onde se comece, chega-se
logicamente a todos os outros aspectos do sistema; de fato, todos
são exigidos para uma completa expressão do sistema. As doutrinas
coexistem sem qualquer contradição. Nesse sentido, o que se crê
sobre a criação influencia a doutrina da Encarnação; e o que se crê,
sobre estas duas, influencia a doutrina do homem.

Quando vistos em conjunto, esses dois aspectos revelam um


terceiro elemento importante da teologia sistemática, o qual pode
ser identificado como abrangência. Com isso, o que se pretende
sugerir não é que a teologia sistemática lida com todo tipo de
problemas ou assuntos possíveis, mas sim que se preocupa com
algo mais abrangente do que os interesses soteriológicos. A
teologia sistemática também se preocupa em desenvolver e
esclarecer, por exemplo, os aspectos ontológicos e epistemológicos
da fé cristã. Para Paul Tillich, o caráter pessoal da fé cristã leva a
uma explicação ontológica (p. 90).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 34
Para além disso, devemos concordar com Gustav Aulén (1961)
quando argumenta que essas características da teologia sistemática
não implicam que esta seja um sistema racionalmente completo (p.
6). Com isso, o autor pretende afirmar que a unidade da teologia
não está no fato dela ser um sistema fechado de raciocínio, mas
antes uma unidade caracterizada por uma tensão interna. Isto é,
embora não existam nela contradições lógicas, possui elementos
paradoxais que não podem ser reduzidos a um compromisso
racional. Esse elemento paradoxal está presente porque a teologia
trata do Deus vivo e não de um objeto finito (Dunning, p. 41).

Não obstante, esse paradoxo implica que a teologia sistemática


é, também, um empreendimento racional. A abordagem crítica do
teólogo é essencial à produção desse tipo de resultado. Por essa
razão, H. Orton Wiley apresenta a filosofia como uma das
disciplinas exigidas no estudo da teologia. É possível identificar a
presença de três tipos de racionalidade, todos dependentes do
raciocínio filosófico.

O primeiro tipo, é a racionalidade semântica. Relaciona-se


com as palavras e envolve a exigência que todas as conotações de
uma palavra devem estar conscientemente relacionadas umas às
outras e centradas em torno de um significado principal. Os termos
devem ser usados com significados consistentes e o comunicador
não deve se equivocar nos seus argumentos; o que não implica uma
superficialidade rígida, uma vez que, em contextos diferentes, as
palavras podem, de forma legitima, adquirir nuances diferentes de
significado. É sempre importante manter a coerência semântica que
evita equívocos lógicos.

O segundo tipo, é a racionalidade lógica. Não se espera que a


teologia aceite uma combinação de palavras sem sentido, isso seria
um verdadeiro contra-senso. A confusão surge quando os
paradoxos são trazidos para o nível das verdadeiras contradições
lógicas fazendo com que as pessoas sacrifiquem a razão a favor de
uma combinação de palavras sem sentido, como se fossem
sabedoria divina.

O terceiro tipo, é a racionalidade metodológica. Esta implica


que a teologia segue determinado rumo na indicação e na expressão

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 35
das suas proposições. Exige que o autor indique a metodologia que
pretende seguir e que a respeite, ponto por ponto.

As exigências da tarefa teológica são espantosas. Em último


análise só Deus pode ser um teólogo sistemático completamente
competente. Os seres humanos, condicionados pela sua própria
existência, devem contentar-se com perspectivas parciais. Nesse
aspecto se destaca a afirmação de Gordon Kaufman quando diz que
“é importante distinguir entre perspectiva que informa uma teologia
sistemática e a análise detalhada das doutrinas teológicas. A
perspectiva do teólogo afeta a forma como este formula as questões,
bem como as respostas que lhes dá; ela molda o seu discernimento
mais básico acerca daquilo que é teologicamente importante, bem
como a sua forma de resolver os problemas, ela trabalha em todos
os níveis do seu raciocínio (1968, p. 159).

A TEOLOGIA COMO CIÊNCIA

A teologia cristã é uma ciência de fé, efetuada à luz da fé e


também uma reflexão crítica da fé compreendida em sua totalidade
histórica. Como ciência, a teologia é organizada e sistematizada de
forma metódica e possui um rigor que lhe confere credibilidade
teórica. Como reflexão crítica, ela não prescinde da experiência
histórica do ser humano. Nesse sentido, a teologia jamais poderá
deixar de ser contemporânea de um determinado período histórico,
conforme comentado anteriormente, devendo constituir-se sempre
em uma palavra de vida, cortante e eficaz. Por isso, o centro da
teologia cristã, por excelência, é a revelação de Deus realizada
plenamente na pessoa de Jesus Cristo, transmitida pela igreja e
efetivada por outros canais históricos que, de alguma maneira, dão
continuidade à revelação cristã (Gonçalves, 2005, p. 18).

Para que se constituísse como ciência e como reflexão crítica,


a teologia necessitou de métodos capazes de lhe dar consistência
epistemológica. Pannenberg nos adverte que a necessidade de uma
episteme para a teologia não é nova. O pensamento cristão e os
esforços de construção de uma doutrina cristã, desde os seus
primórdios, assistiram a uma constante busca de base
epistemológica para tal empreitada.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 36
Gonçalves sugere ainda que apesar de lançar mão de diferentes
modelos históricos para a produção teológica, jamais pode a
teologia prescindir de dois elementos fundamentais em sua
constituição: o auditus fidei e o intellectus fidei. O primeiro
pressupõe que o ser humano seja um ouvinte da Palavra, capaz de
experimentar a revelação em função de seu potencial também
transcendental que o possibilita encontrar-se com Deus. Por isso, a
fé é escuta e abertura à revelação do próprio Deus que se auto-
comunica, revelação testemunhada na Escritura e que tem sua
continuidade formal na tradição cristã e nas diferentes
manifestações históricas de Deus. Trata-se, então, de manusear os
dados objetivos colhidos pelo teólogo com o auxílio de recursos
metódicos sempre com a finalidade de objetivar o dado revelado,
corrigindo especulações apressadas, imprecisas e sem
fundamentação, mantendo-se fiel à Escritura (p. 18-19).

Ao levantar os dados objetivos, surgem novas questões e


novos problemas, exigindo do teólogo, corrigir afirmações
anteriores, relativizar determinadas posições e, acima de tudo,
retornar às fontes da teologia, efetuando uma releitura que dê
consistência ao dado revelado. O exercício do auditus fidei propicia
estudar um tema teológico cuidadosamente: a Escritura, os Pais da
Igreja do Ocidente e do Oriente, a história do desenvolvimento da
doutrina em relação à história da igreja, etc, para, ao final,
sistematizar os elementos teológicos de tudo que foi examinado.

Apesar da objetividade deste elemento epistemológico interno


à teologia, determinados limites estão presentes, tais como: o
dinamismo das categorias filosóficas e das ciências com as quais a
teologia deve dialogar. O intellectus fidei corresponde à articulação
entre fé e razão. De fato, a teologia explicita o exercício da razão
sobre a fé à luz da fé, objetivando a relação da ratio fidei com a
lumen fidei. Este elemento explica, ordena e organiza os dados
revelados pelo elemento anterior, por meio da disposição de
instrumentos filosóficos e científicos, tomados como empréstimo
para levar a cabo o processo de aprofundamento e de
inteligibilidade da fé. Corporifica-se este processo pela criação de
sistemas teológicos, cujos dados são analisados criticamente e
reinterpretados em novos esquemas e matizes. Dessa maneira, a
revelação é constantemente atualizada, dado que sua expressão é
histórica e passível de mutação no que se refere à sua forma. Por
isso, este elemento se desenvolve mediante uma linguagem

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 37
acessível historicamente capaz de explicitar raciocínios, deduções,
reflexões teóricas convincentes e plausíveis à atualidade histórica.
Os dados da fé e o pensamento humano são articulados, havendo
uma coerência intrínseca do discurso da fé que se pretende ser
constantemente atual, útil e necessário ao ser humano concebido
em sua totalidade histórica. Essa coerência enfatiza as funções de
especulação, explicitação e atualização do intellectus fidei (p. 21).

A articulação entre auditus fidei e intellectus fidei denota a


dialética epistemológica da teologia: escutar a fé com base na
história compreendida na perspectiva de um lugar cognitivo
concreto e assimilá-la, teorizando a sua experiência em forma de
teologia é o que se propôs a teologia a partir do uso da ciência.

MÉTODOS DE ORGANIZAÇÃO E
APRESENTAÇÃO DA TEOLOGIA

Há numerosos argumentos válidos em favor da organização


sistemática das verdades bíblicas. É por meio desta organização que
o sentido mais profundo das doutrinas cristãs revela sua evidência.
Ao delinear suas interrelações, as verdades adquirem maior
significado. Para Wiley a apresentação coerente e ordenada da
doutrina elaborada desta maneira não só apela à constituição da
mente, retém, com firmeza e o resultado será um caráter cristão
forte (p. 33-34).

Com tão válidas razões em favor da sistematização da doutrina


bíblica não é de surpreender-se que se tenham utilizado numerosos
métodos na organização da teologia cristã. Alguns deles são:

Método Trinitariano

Este método era proeminente na história primitiva da igreja.


Apresenta as doutrinas em sua relação com o Pai, o Filho e o Espírito
Santo.

Método Federal

A ideia de dois pactos, o da Lei e o da Graça, constitui o fator


central na organização deste método. A forma padrão pela qual se

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 38
organiza essa abordagem considera a história do relacionamento de
Deus com a humanidade, desde a criação, a queda até a redenção
para a consumação, sob o marco de três abrangentes alianças
teológicas: Aliança das Obras, Aliança da Graça e Aliança da
Redenção.

Método Cristocêntrico

Cristo e sua obra redentora formam o coração do pensamento


nesta abordagem teológica.

Método Sintético

Talvez seja o método mais comumente utilizado. Começa com o


conceito mais alto: Deus; segue com o ser humano, continua com
Cristo, a redenção, e por último, o fim de todas as coisas. O princípio
básico de organização é sua ordem lógica de causa e efeito. Este
método tem sido usado com efetividade por notáveis teólogos.
Apesar de seu uso frequente, nunca perdeu sua atração e novidade.

AS FONTES DA TEOLOGIA

Deus não escolhe se comunicar com o ser humano por meio de


um sistema de dogmas, constituídos por declarações finais a
respeito de todos os âmbitos da verdade cristã, precisando, apenas,
que sejam memorizadas. Deus vai até o ser humano como uma
Presença redentora e como Ator Divino, no palco da história.

Os diversos veículos que medeiam entre o conhecimento dessa


atividade e as suas implicações para a vida humana fornecem ao
intelecto humano a matéria-prima a partir da qual ele pode pensar
teologicamente.

Tradicionalmente, às várias fontes da teologia têm sido


divididas em dois grandes grupos: (1) a fonte de autoridade que é a
Bíblia; e, (2) as fontes secundárias, que incluem tradição,
experiência e razão. Há sabedoria neste tipo de classificação, na
medida em que as Escrituras são a principal fonte da teologia.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 39
FONTE PRIMÁRIA

A Bíblia

O conhecimento contemporâneo alcançou um elevado grau de


unanimidade ao falar da Bíblia como “o Livro dos Atos de Deus”
(Purkiser, p. 54). Embora existam algumas vozes dissonantes
acerca da exclusividade dessa forma de ver as Escrituras, poucos
são aqueles que questionarão a natureza histórica da revelação
bíblica. Assim, a Bíblia [...] é a fonte basilar da teologia sistemática
porque é o documento original acerca dos eventos em que a igreja
cristã está fundada (Tillich, 1984, I:35). Objetivamente, todo
discurso cristão sobre Deus, tanto na pregação como na teologia,
tem seu fundamento na auto-revelação de Deus. Segundo Klaiber e
Marquardt, “esta revelação é testemunhada com segurança na
Sagrada Escritura [...] portanto, é ela que constitui o fundamento de
qualquer teologia cristã” (1999, p. 39).

Outros teólogos, igualmente comprometidos com a autoridade


final das Escrituras para a fé e a vida, como Wiley afirmam que a
teologia cristã baseia-se nos arquivos documentais da revelação de
Deus em Jesus Cristo, de modo que a Bíblia é a única regra divina de
fé e prática, e a única fonte primária de autoridade da teologia cristã.
As Sagradas Escrituras constituem a base de onde se originam as
verdades gloriosas utilizadas na construção do edifício da doutrina
cristã (p. 33).

Ao afirmar que a Bíblia é fonte primária da doutrina cristã,


postula-se com isso, um pressuposto fundamental para nossa
teologia: as Escrituras são o crivo de autenticidade para toda a
verdade. Toda sabedoria humana e toda literatura só ganham
relevância teológica desde que possam ser confirmadas pelas
Escrituras. Elas apontam o caminho para o céu e mais do que isto,
a Bíblia é o livro de Deus, daí a primeira razão para ter as Escrituras
como fonte de autoridade. Para John Wesley, por exemplo, “a
Bíblia é uma transmissão verdadeira e confiável do que Deus quis
dizer, porque, em última instancia, Deus é o autor das Escrituras”
(Reily, 1994, p. 17); pois seus escritores foram divinamente
inspirados. Na linguagem dos escritos sagrados, podemos observar
a maior profundidade, em conjunto com a maior simplicidade.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 40
Todas as elegâncias das composições humanas nada são em relação
a ela. Deus fala, não como um homem, mas como Deus. Seus
pensamentos são muito profundos, e daí que suas palavras sejam de
inexaurível virtude. E a linguagem dos seus mensageiros, também
são de alto nível porque as palavras dadas a eles são respostas
exatas da impressão feita em suas mentes. As Escrituras são de
autoria de Deus, que inspiradas pelo Espírito Santo, gerou as
impressões da sua vontade na mente dos escritores. Os escritos não
são ideias sujeitas as distorções ou influências que a mente humana
possa sofrer. Ainda que se trate de um livro de fé, ao usar o termo
impressão, queremos colocar as Sagradas Escrituras acima da
categoria da crença, fugindo, portanto, da relativização proposta
por alguns teólogos.

A Bíblia é, portanto, a fala de Deus, daí sua autoridade central


e decisiva para qualquer assunto da fé. A consequência natural
deste primeiro pressuposto, é que a Escritura é também infalível e,
portanto, portadora de uma inquestionável verdade. Nesse sentido,
a pessoa, a igreja, a sociedade devem-se conformar aos princípios,
doutrinas e a vontade de Deus expressas na Bíblia. Infalibilidade
aqui deve ser entendida dentro de um critério de autoridade, que
não pode ser comprometida, mesmo assumindo a existência de
erros periféricos, ou relatos históricos incongruentes, apesar de que
mesmo crendo na infalibilidade. Esta postura não pode ser
confundida com fundamentalismo ou superficialidade bíblica, ao
contrário, afirmar a autoridade central das Escrituras, faz de um
estudioso sério das Escrituras estabelecer um relacionamento
constante com outras fontes de verdade, todas submetidas à
primeira, como veremos na próxima seção.

Este conceito da Bíblia como fundamento e centro da teologia


cristã é um dos elementos básicos e matéria de ênfase no
Protestantismo. Sem dúvida, num sentido mais profundo, Jesus
Cristo, é, em si mesmo, a revelação plena de Deus. Ele é o Verbo
de Deus. O pensamento exteriorizado e expresso do Eterno. Assim,
pois, ainda que honremos as Sagradas Escrituras, dando-lhes um
lugar central no pensamento e elaboração teológica, não se
questiona, em hipótese nenhuma, que Cristo, o Verbo vivo, deve
ser visto sempre em adequada relação com a Bíblia, a revelação
escrita. Para que esta seja vital e dinâmica importa estarmos
sempre, através da bendita pessoa do Espírito Santo, sintonizados

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 41
com o Senhor vivo, cujas palavras excelsas, cujas obras
incomparáveis e cuja morte por nós constituem o grande tema do
Livro dos Livros.

A partir deste pressuposto, duas regras importantes devem ser


consideradas para uma correta interpretação. A primeira delas é
tratar a Bíblia como um conjunto coeso, no qual Antigo e Novo
Testamento são interdependentes e igualmente importantes para a
salvação. Em segundo lugar, na esteira dos reformadores, que o
sentido literal do texto é o que deve ser primeiramente buscado;
localizando-o em seu contexto literário, para melhor compreensão
do mesmo.

FONTES SECUNDÁRIAS DA TEOLOGIA

1ª Fonte secundária: A tradição

A tradição é dificil de ser definida e muitas vezes transporta


consigo algumas connotações desfavoráveis. Devemos tentar
alcançar um claro entendimento da sua natureza teológica para que
possamos compreender corretamente sua função. Tradição deriva
da palavra grega paradosis, o que sugere algo que se entrega, e da
palavra latina traditio, que significa o que é transmitido. Uma
pesquisa sobre a forma como a tradição tem funcionado na fé
hebraico-cristã revela que ambas as dimensões, pela sua
importância, devem ser incluídas na definição (Dunning, p. 77).

Para se definir corretamente tradição, é necessário ter em


mente a natureza da revelação. Ela acontece principalmente
(embora não exclusivamente) por meio de eventos históricos que
devem ser interpretados. Assim, tanto os registros dos eventos (os
fatos) como a sua interpretação (significado) necessitam ser
transmitidos e, uma vez que o evento e a sua interpretação são
inseparáveis, sugere-se que o complexo definido como tradição seja
referido, na sua fase preliminar, como o evento/interpretação que é
transmitido.

Da tradição oral à escrita

Para Hendrikus Berkhof (1980), quando a tradição é entendida


dessa forma torna-se claro que as Escrituras, tanto o Antigo

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 42
Testamento como o Novo são tradições fixas. Muito antes da
tradição (que é lida com a auto-revelação de Deus e suas promessas
a Abraão, Isaque e Jacó) ser escrita, ela foi transmitida de geração
em geração na forma de tradição oral. Certamente o mesmo foi
verdade para a revelação do Novo Testamento em, e através de,
Jesus Cristo. Aqueles a quem foi dada a revelação original
(testemunhas oculares) transmitiram-na a outros na forma a que os
primeiros Pais da Igreja denominaram de tradição apostólica. Com
o tempo foi transformada em documentos que, mais tarde,
acabaram por ser as Escrituras. O processo de selação dos
documentos comprovativos de autoridade foi acelerado pelo cânon
de Marcião que refletia uma tradição diferente da sustentada pela
fé cristã clássica (Dunning, p. 78).

Antes da fixação na forma de Escrituras, essa tradição


apostólica foi passada de diferentes formas. É possível identificar,
com um certo grau de certeza, pelo menos quatro: (1) instrução
catequética, que pode estar refletida no kerigma da Igreja Primitiva,
incorporada, por exemplo, nos sermões dos Atos. Paulo faz
referência explícita a ela em 1 Coríntios 15. 1-3; (2) hinos, dos quais
Filipenses 2. 6-11 e 1 Timoteo 3. 16 parecem ser dois exemplos;
(3) liturgia, e (4) sacramento. Na correspondência aos Coríntios,
Paulo parece usar a frase “do Senhor”, como um termo técnico para
se referir à tradição proveniente do próprio Jesus. Em 1 Coríntios
7, quando a tradição não oferece uma palavra específica para um
novo conjunto de problemas, o apóstolo sente necessidade de
complementar essa tradição com uma da sua própria autoria
baseada na sua autoridade apostólica.

A tradição como texto interpretado

Duning, com muita clareza, comenta que quando a tradição


oral foi passada para um documento escrito, de certa forma a
natureza da tradição alterou-se. Em vez de ser a transmissão do
complexo evento/interpretação, torna-se uma tradição
interpretativa em relação ao texto transcrito. A presença de várias
tradições no tempo de Jesus testifica a realidade desse processo. A
Lei, por exemplo, foi aceita como verdadeira; mas a necessidade da
sua interpretação fez com que surgissem diversas escolas de
pensamento. Para além dos fariseus e saduceus, existiam as escolas
rabínicas de Shammai e Hillel, interpretando a Lei com diferentes
graus de exigências. Jesus condenou o judaísmo do seu tempo por

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 43
este perverter a religião pura do Antigo Testamento, com as
tradições dos anciãos. Tal não implica, necessariamente, que toda a
tradição seja má, mas antes que pode ter uma função corrompida
(p. 79).

Muito cedo na história do pensamento cristão, os Pais da Igreja


falaram da tradição apostólica como o fator que deu catolicidade à
igreja cristã, referindo os ensinamentos defendidos por toda a igreja
no mundo. O aparecimento dessa tradição, de uma interpretação
com autoridade das Escrituras escritas (Novo Testamento), surgiu
como resposta à ameaça do gnosticismo. Irineu, em particular,
apelou para a tradição apostólica como única interpretação com
autoridade, qualquer outra estava fora dos limites do autêntico
ensino cristão. O apelo dos gnósticos a uma suposta tradição secreta
forçou Irineu a destacar a superioridade da tradição pública da
igreja. Em uma pesquisa detalhada da literatura do quarto século,
J.N.D. Kelly demonstra que a ideia da tradição apostólica retinha a
prioridade das Escrituras (1978, p. 49).

A tradição como credo

Os credos da igreja podem ser vistos como a cristalização da


doutrina cristã no que diz respeito a certas doutrinas e para as quais
as Escrituras providenciam a matéria-prima, mas que nao são
abordadas de uma maneira teológica formal. São tentativas de
expressar as implicações teológicas (por vezes ontológicas) da
mensagem bíblica, ou, no mínimo, evitar interpretações que não
reflitam verdadeiramente a fé bíblica. Sendo assim, os credos
clássicos são um aspecto da tradição que segue o mesmo padrão
presente nos primeiros anos como sendo interpretação da Bíblia. Os
credos mais importantes podem ser identificados como: O Credo
Apostólico, o Credo Niceno, o Credo de Atanásio e o Credo da
Calcedônia.

A força desses credos está, principalmente, no seu caráter


negativo. Surgiram no meio de controversias e foram formulados,
prioritariamente, para rejeitar certos ensinamentos heréticos,
portanto, a sua precisão residia exatamente nesse ponto. No entanto,
em muitas ocasiões providenciaram uma formulação positiva da
doutrina sob a discussão, e servem como diretrizes para o que
constitui uma interpretação válida. Servem de “postes de
sinalização, apontando os perigos para a mensagem cristã que

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 44
foram ultrapassadas por tais decisões” (Tillich, 1:52). Indicam
ainda, os compromissos teológicos da comunidade de fé.

No entanto, a controvérsia com o gnosticismo preparou o


caminho para uma perversão posterior da função da tradição. Em
oposição ao apelo gnóstico de uma tradição secreta, os Pais da
Igreja apelaram à universal da igreja. Contudo, surgiram certas
práticas que não podiam ser defendidas com base no princípio
interpretativo (como os sete sacramentos), então a Igreja Católica,
no final da Idade Média, voltou-se para a posição gnóstica anterior
e reivindicou uma tradição oral separada, entregue aos apóstolos
que, por sua vez, a passaram aos seus sucessores (Dunning, p. 80).
A sucessão apostólica garantiu a validade da segunda (agora
separada) fonte de doutrina. Agora existem duas fontes, estando a
segunda contida “na tradição não escrita que os apóstolos
receberam do próprio Cristo, ou que foi passada, como se fosse de
mão em mão, pelos apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo, e
assim chegou até nós” (Berkhof, 1980, p. 98). O Primeiro Concílio
do Vaticano (1870) declarou que o conteúdo dessa tradição oral
podia ser definido infalível apenas pelo papa.

Lutero e os outros Reformadores Protestantes rejeitaram essa


fonte independente de doutrina com o princípio da sola scriptura.
É nessa base que a teologia protestante mantém, da mesma forma,
a possibilidade dos Pais da Igreja, os concílios e os credos terem
caído em erro, com a mesma firmeza com que a igreja romana
defende exatamente o oposto com a sua doutrina da infalibilidade
papal. No entanto, isso não impede a contribuição positiva da
tradição na sua função interpertativa.

A importância da tradição

Nesse ponto, a importância da tradição é reforçada por três


considerações principais: (1) a Bíblia, ainda que reconhecida como
a autoridade documental para a teologia crsitã, tem necessidade de
ser interpretada. A experiência da Igreja Primitiva na sua luta contra
a heresia atesta isso mesmo. Para além disso, os problemas
hermenêuticos contemporâneos do fundamentalismo evangélico
acentuam essa necessidade. (2) A impossibilidade de uma leitura
bíblica sem algumas ideias pré-concebidas acerca dela. Tillich
expressa essa verdade de forma correta e incisiva ao dizer que
“ninguém consegue passar por cima de dois mil anos de história da

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 45
igreja e ser contemporâneo com os autores do Novo Testamento,
exceto no sentido espiritual da aceitação de Jesus como o Cristo.
Qualquer pessoa que encontre o texto bíblico é guiada na sua
compreensão religiosa pelo entendimento desenvolvido por todas
as geraações precedentes; e, (3) a natureza da teologia cristã. Como
comentado anteriormente, uma das características essenciais da
teologia é interpretar a fé em termos contemporâneos, já que “o que
está envolvido não é a mera reprodução da mensagem bíblica,
assim, a teologia nao pode agir como se existisse um vácuo entre as
Escrituras e os nossos dias (Aulén, 1960, p. 69). A história dessa
tarefa contemporânea é chamada, por Aulén, de “testemunho vivo
da igreja” (p. 71). Desse modo, a tradição é compreendida, não
como algo separado das Escrituras, mas como uma tarefa contínua
de reinterpretação da mensagem bíblica e pode mesmo ser
reconhecida como a atividade contínua do Espírito Santo. Assim
compreendida, a tradição, “mantém a guarda contra as
interpretações irresponsáveis da Bíblia” (p. 72).

2ª Fonte secundária: A razão

Dunning vai dizer que quando observado na sua relação com o


mundo criado, a singularidade do ser humano está no seu poder de
raciocínio (p. 81). Mas além de ser uma pessoa racional, também é
um ser religioso e, esses dois aspectos da sua essência (visto de duas
perspectivas diferentes), não podem ser mantidos em
compartimentos separados. A sua relação é mais evidente na tarefa
da teologização, visto que este é um empreendimento racional que
se apoia nas crenças religiosas pessoais. A questão, que aqui será
explorada, é a função da razão como mais uma fonte da teologia.

As limitações da razão

Em primeiro lugar, é preciso afirmar que para a teologia a razão


não pode funcionar como uma fonte independente. Rejeitamos,
assim, a abordagem teológica que teve a sua expressão clássica em
Tomás de Aquino e seguida pela maioria das teologias sistemáticas
desde esse tempo até ao século XIX. A razão, segundo esta
metodologia, era vista como aquela que providenciava uma base
racional ou um ponto de partida, por meio da qual era construída
uma super-estrutura de teologia revelada. Essa base incluía uma
seção que englobava provas da existência de Deus. Ao demonstrar
a existência de Deus com base em uma argumentação racional, essa

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 46
abordagem teológica dava lugar à revelação, a qual então,
formulava a natureza de Deus, impossível de ser descortinada pelo
uso independente da razão humana (p. 81).

É reconhecido, de forma generalizada, desde o tempo de David


Hume e Emmanuel Kant, que essa abordagem é inadequada. Tanto
Hume como Kant, ao analisar as capacidades epistemológicas da
mente finita, descobriram que, no que diz respeito ao conhecimento
científico, esta limita-se à experiência. John Wesley argumenta no
mesmo sentido, dizendo que os sentidos naturais são totalmente
incapazes de disccernir objetos de índole espiritual. Como Deus não
é um objeto, sujeito à experiência empírica, a teologia natural é pura
contradição. Além disso, para demonstrar as verdades do
cristianismo, a razão precisa mostrar que são verdades necessárias.
Por definição, as verdades necessárias estão limitadas a proposições
que envolvem construções artificiais, tais como as tautologias ou as
fórmulas matemáticas. No entanto, a razão pode ser capaz de
demontrar que as verdades religiosas são intelegíveis e, assim,
contribuir para a sua compreensão. Apesar da fé proceder a
compreensão, o movimento da fé para a compreesão “evita que o
crente se submeta a uma fé, que nada mais é, que a aceitação de
uma autoridade direta e opaca” (Smith, p. 8).

Isso não exlcui a possibilidade de a razão ter algumas funções


preliminares que levem à fé. É quase impossível crer em algo,
sobre o qual não se tem qualquer compreensão. Um motivo
adicional pelo qual a razão não pode ser uma fonte independente de
teologia é a natureza da revelação. Se Deus se dá a conhecer por
meio de eventos históricos, tais meios não estão abertos ao
escrutinio da razão. Contrariamente a filosofia clássica, que
acredita que o conhecimento é possível apenas quando se trata de
questões universais, a fé cristã afirma que a verdade, a derradeira
Verdade, chega ao ser humano por meio de ações particulares e
específicas na história. “E o Logos se fez carne e habitou entre nós”
(João 1.14).

A função da razão

De um outro ângulo, a razão tem uma função estrutural e


interpretativa. Williams Colin (2003) resume este aspecto em
relação ao anterior ao dizer que “a importância da razão não está
em providenciar uma outra fonte de revelação, mas no fato de ser

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 47
uma faculdade lógica que nos permite ordenar as evidências da
revelação e, juntamente da tradição, fornecer os subsídios
necessários para nos defendermos contra os perigos de uma
interpretação descontrolada das Escrituras. É o papel estrutural da
razão enfatizado por Wiley: “A sua reivindicação como uma fonte
subsidiária de teologia reside, unicamente, no fato de ter o poder de
sistematizar e racionalizar a verdade, de modo que seja apresentada
à mente, de maneira apropriada à sua assimilação” (p. 89). Em
suma, isso é lógica. John Wesley usava a lógica para apresentar os
argumentos dos seus próprios raciocínios e a defendia como uma
disciplina indispensável no treino para o ministério, sendo apenas
ultrapassada em importância, pelo estudo da Bíblia.

Tillich entendia que para além das suas funções interpretativas


estruturais, a razão providencia os veículos conceituais por meio
dos quais as ideias teológicas são expressas. Isso não significa
necessáriamente, que um teológo precise estar comprometido com
uma determinada filosofia sistemática, embora tenha acontecido
muitas vezes. Agostinho fez um uso extensivo do neoplatonismo e
Tomás de Aquino usou a filosofia de Aristóteles como base da sua
famosa síntese medieval. Alguns teólogos contemporâneos têm
tentado apropriar-se da filosofia processual de Alfred North
Whiteheard como veículo para expressar de modo conceitual a fé
cristã.

Vários têm tentado fazer o mesmo com o pensamento de Martin


Heidegger ou com outras versões da filosofia existencialista. Nesse
caso, um dos maiores problemas seria encontrar uma filosofia
abrangente que explicasse, de forma adequada, todas as facetas da
realidade. A própria natureza da teologia sistemática requer que a
filosofia seja usada, uma vez que a linguagem filosófica dá uma
maior exatidão de expressão. É óbvio que para satisfazer os
requisitos da contemporaneidade, deve-se usar uma linguagem
filosófica atual. Essa é a razão pela qual a tarefa teológica nunca
está completa. O teólogo está, constantemente, a procura de formas
de expressão mais adequadas; com o aumento da precisão do
pensamento e da expressão, sobre assuntos relacionados com a
teologia, tira vantagem da nova terminologia e das categorias para
cumprir, de forma mais adequada, o seu papel de esclarecer a
linguagem da fé sobre Deus .

Admitimos que existe sempre a possibilidade iminente de

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 48
distorção, no entanto, apesar desse perigo, nenhum teólogo
expressou, ou poderá alguma vez expressar, a fé cristã por meio de
um conjunto de ideias apenas com origem bíblica, completamente
livre de conteúdo, derivado não apenas da filosofia, mas também
de outras formas de pensamento secular capazes de contribuir com
essa tarefa (Thiselton, 1980, p. 9). Inclusive a história valida a
solidez dessa afirmação. Todos os credos e confissões utilizam
conceitos filosóficos predominantes, no sentido de abordar os
assuntos específicos em debate (Aulén, p. 74).

3ª Fonte secundária: A experiência

Wiley apresenta a experiência como uma fonte da teologia, no


sentido de ser considerada como uma infusão de vida espiritual por
meio da verdade fortificada pelo Espírito Santo (p. 38). A partir da
experiência de Deus a pessoa delineia a sua vida, reconfigurando-a a
partir deste encontro e em vista do encontro definitivo com Ele. Toda
a realidade humana não é somente interpretada mas também
experimentada a partir de Deus. Deus torna-se o decisivo e aquele
que dá o sentido para a vida humana. Em Cristo encontramos a
verdadeira vida e o sentido verdadeiro desta. Por isso, quando se
estuda teologia cristã, não podemos nos esquecer de que a
verdadeira experiência de fé implica uma relação vital, íntima e
pessoal entre Deus e o ser humano (p. 37). A teologia, nessa
perspectiva, pauta-se na experiência de Deus. Deus se
autocomunica, fazendo-se acessível ao ser humano. Este ser
humano é um ser transcendental, que se realiza na abertura a este
Outro. Da tentativa de exprimir esta experiência surge a teologia. Ela
é uma palavra sobre o Criador que se autocomunicou a nós, e é ao
mesmo tempo um esforço em dizer algo sobre aquilo que é
inexprimível e inesgotável.

Aquilo que consideramos como formulações doutrinárias


tratam-se da experiência de Deus realizada pela igreja e expressa
nas diferentes épocas e contextos. Estas devem possuir sempre o
seu aspecto de meio e não fim. Tais formulações são meio de tornar
a experiência salvífica acessível em cada momento histórico. Para
tal devem ser expressas de modo inteligível em cada momento
histórico com o contexto que lhe é próprio, não caindo na tentação
de se aprisionar em expressões que no passado tiveram a sua razão
de ser mas que nos dias atuais não conseguem mais comunicar,
muito menos tornar acessível a experiência. “Formulações de fé

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 49
deveriam neste sentido ter o caráter mistagógico, não limitando a
refletir a expressão correta da verdade salvífica (ortodoxia), mas
também provindo de e conduzindo a mesma verdade vivida
(ortopraxia) na comunidade eclesial (Miranda, 2001, p. 74).

Alguns pensadores, no entanto, questionam sobre o acesso a


verdade na experiência, refletem até que ponto uma experiência traz
consigo a verdade do experimentado, até que ponto ela não é
proveniente do próprio sujeito, da história, de ideologias, da
linguagem. É claro que tais afirmações não invalidam radicalmente
a realidade da verdade da experiência mas nos fazem perceber que
toda experiência humana é mediada, ou seja se serve da história, da
linguagem e de outras experiências realizadas. Sempre pressupõe
um quadro de interpretação que a determina (Schillebeeckx, 2003,
p. 34-44). Trata-se do horizonte apreendido pelo ser humano a partir
de suas diversas experiências anteriores e ainda do horizonte maior
no qual ele se apresenta inserido. O sujeito que faz a experiência, a
realiza trazendo toda a sua existência, sua cultura, linguagem e
experiências realizadas por ele. Para Dunning, a experiência pode,
também, servir como veículo para a compreensão. Aquilo que não
tem qualquer ponto de contato com a nossa experiência, não
significa absoltamente nada para nós (p. 91).

A experiência em perspectiva teológica

Na origem da teologia cristã, a experiência com o Deus


revelado em Jesus Cristo e a comunicação da mesma foi
fundamental. O Novo Testamento carrega experiências de fé das
primeiras comunidades cristãs. Experiências refletidas e escritas
para que pudessem despertar novos corações apaixonados por
Deus. Experiências que tem um fundo comum que é a experiência
com o Cristo ressuscitado, mas, que realizadas em diferentes
contextos e por pessoas e comunidades diversas, enriquece a igreja
com diversas abordagens teológicas já no seu começo. Há no Novo
Testamento teologias suscitadas pela revelação divina manifesta
nas mais diversas situações de vida nas quais a mensagem de
salvação foi acolhida e transmitida. A teologia parte da experiência
de Deus realizada no cotidiano através da fé genuina. A teologia
parte dessa fé celebrada e vivida.

Na linha do tempo, percebe-se que a unidade entre teologia e


experiência é rompida com o período posterior aos Pais da Igreja, a

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 50
escolástica. Nesta época apresenta-se fortemente o desejo de
transmitir de maneira fiel o dado recebido. Se acresce neste período
a utilização do instrumental da lógica aristotélica que determinou a
metodologia teológica nesse momento. A teologia se desenvolveu
segundo os padrões acadêmicos afastando-se da vida e problemas
reais das pessoas, perdendo-se em disputas de linguagem acessíveis
apenas a um pequeno grupo de intelectuais. Neste período acontece
a separação entre Oriente e Ocidente no qual o Oriente ainda integra
o mistério revelado, celebrado e vivido enquanto no Ocidente esta
unidade é perdida. Embora se perceba grandiosas obras elaboradas
neste período como também o esforço de trazer a experiência da fé
à intelectualidade e ainda o de se preservar o tesouro da Sagrada
Escritura e dos Pais da Igreja, neste tempo a experiência da fé foi
cristalizada. Este tipo de teologia gerou, por um lado, uma reflexão
áspera que não encantava nem suscitava a fé, e por outro, gerou
uma piedade intimista e até mesmo alheios a fé.

Desta forma verifica-se que a questão da experiência está


presente e na base de todos os momentos do cristianismo embora
não tematizada. A teologia necessariamente está ancorada na
experiencia que o ser humano faz de Deus, caso contrário poderia
cair no risco de imaginá-lo erradamente, apresentar um Deus fruto
da imaginação e desejo (Miranda, p. 73).

O cotidiano como lugar da experiência

Todos os cristãos são chamados a um encontro pessoal com


Cristo e convocados por Ele a tornarem-se no mundo mensageiros e
propiciadores de novos encontros com o Deus vivo. A cada um a
experiência salvífica torna-se acessível no cotidiano de sua
existência, e desta forma a vida humana é trazida novamente para o
seio da teologia. A redescoberta da índole escatológica da
comunidade de fé a faz perceber-se no tempo não como detentora de
um conhecimento absoluto de Deus, mas antes percebe-se como
serva, como instrumento da ação de Deus no mundo, possibilitando
a cada um, na sua existência, relacionar-se com a bendita Trindade
da qual ela é proveniente, na qual vive e para a qual se encaminha.
Percebe-se como peregrina e compreende que não pode de maneira
alguma dar uma palavra sobre Deus de modo a aprisioná-lo em
conceitos.

Se evidencia neste sentido que o tornar-se cristão não se dá a

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 51
partir de uma reflexão intelectual mas a partir de um verdadeiro
encontro que envolve a totalidade da existência, de uma experiência
realizada com Cristo que dá ao ser humano o sentido de sua
existência, a visão e a valoração de seu mundo e neste sentido todas
as decisões da vida (Coreth, 2009, p. 388). Trata-se da atitude de fé,
de abertura a presença de Deus em Jesus Cristo através da pessoa do
Espírito Santo.

A experiência de Deus necessita da fé. O ser humano não reduz


Deus a fé, no entanto só realiza a experiência de Deus mediante ela.
A experiência que o ser humano faz de Deus no seu cotidiano é
experiência de redenção. Encontro com o Deus gracioso que não é
fruto de nossa subjetividade, mas algo que se esbarra a nós, dotado
de autonomia, que nos surpreende e inquieta (Miranda, p. 63). A
experiência de Deus é acolhida da autocomunicação de Deus, da
livre e amorosa vontade e iniciativa dEle de se relacionar conosco.
Neste encontro amoroso com Deus, o ser humano faz experiência
daquilo que Deus é em si mesmo, pois se encontra com o próprio
Deus, Aquele que não dá algo, mas dá-se a si mesmo ao ser humano
(Rahner, 2004, p. 147).

Neste sentido o mistério insondável que é Deus não é algo


estranho ao ser humano mas a “experiência de que este mistério
santo é proximidade acolhedora, a intimidade que perdoa e é
permanente abrigo” (Rahner, p. 163). Teologicamente, viver e
fomentar a espiritualidade neste sentido não está reduzida a alguns
momentos convencionalmente tidos como religiosos, mas trata-se
do acolhimento do divino realizado no cotidiano da vida,
experimentado sem ritualismos ou formalidades, sem com isto
negar a possibilidade da experiência no rito.

Devemos ter presente contudo que a autocomunicação divina


não se permite ser apreendida pelo ser humano como uma realidade
categorial (Rahner, p. 181). O que chamamos de experiência de
Deus é mais propriamente uma experiência de sua ação graciosa.

A experiencia para além da religião

John Smith vai enriquecer esta relação entre teologia e


experiência, já que para ele, a experiência pode ser vista também
como um encontro multi-dimensional entre uma pessoa, em
concreto, e aquilo que há para ser encontrado, abrangendo uma
variedades de níveis de experiência, incluindo dimensões morais,

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 52
estéticas, científicas e religiosas (p. 33). Ao usar essa definição
mais ampla, Dunning vai sugerir um papel mais preponderante para
a experiencia que não se reduz apenas ao aspecto espiritual (p. 87).
A esse respeito Miranda vai dizer que a experiência não trata apenas
da dinâmica de uma parte do ser humano mas refere-se ao ser
humano por inteiro, com toda sua inteligência, vontade,
sentimentos, imaginação, corporeidade (p. 67). Experiência que
envolve, neste sentido, toda a existência do ser humano e não
apenas uma dimensão deste.

DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA
TEOLOGIA CRISTÃ

Queremos agora apresentar o comportamento da teologia no


decorrer do tempo pós-apostólico, ou seja, da teologia patrística à
moderna. Embora seja extremamente necessário apresentar alguns
detalhes relacionados a essas épocas, por uma questão de
extensividade, nos limitaremos apenas a pontuar fatos que
permitam elucidar esse percurso histórico.

Revisitar a história da teologia revela a diversidade das formas


da produção teológica através dos séculos. Brevemente podemos
sintetizar essa história na Antiguidade, onde assistimos o
nascimento de uma teologia prática e originante, que vai, aos
poucos, sendo sistematizada, denominada como teologia
patrística; depois na Idade Média, a teologia segue seu caminho se
fazendo ontológica, histórica e personalista, também denominada
de teologia escolástica; depois assistimos a irrupção das teologias
da Reforma e da Contra-reforma. Séculos depois, vislumbramos
teologias filosóficas da modernidade.

A teologia originante

O Novo Testamento é o conjunto dos escritos que


testemunham o grande esforço da primeira comunidade cristã para
dizer Quem é Jesus para a humanidade e quem é a humanidade a
partir de Jesus. Esta fala foi tornada livro, Escritura Sagrada, fonte
primeira da teologia. É o resultado da experiência que esta
comunidade fez acerca de Jesus, a revelação definitiva de Deus. No
Filho, a Palavra encarnada de Deus, está o centro, tanto do processo

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 53
de reinterpretação das Escrituras e das tradições judaicas, quanto da
adesão dos gentios. O testemunho de fé registrado no Novo
Testamento foi feito teologia originante, fontal ou paradigmática,
estimuladora de toda teologia posterior. Sua base se tornou
irrenunciável para todo futuro exercício teológico. Indiretamente, a
afirmação doutrinária da primeira comunidade cristã se fez dogma,
registrado, por exemplo, nas fórmulas cristológicas (Gonçalves, p.
23).

Assim, na Bíblia, encontramos também os fundamentos


básicos acerca do conhecimento de Deus feito pela primeira
comunidade cristã. Nela, a fé é sempre descrita como um
conhecimento que comporta um elemento informativo, intelectual,
pessoal e prático. Crer em Deus, conhecê-lo, é reconhecer que Ele
é Deus Único e Criador de todas as coisas. É crer também que Jesus
é o Filho de Deus enviado ao mundo para salvação. A fé cristã é
algo íntimo, pessoal, mas comunitário, vivida no Cristo. Ela é
resposta de amor, de adoração e de serviço.

Mas se a fé é tudo isso, não é limitada por isso. A fé é


conhecimento de Deus, mas é também uma busca sempre mais
profunda do Mistério. A fé deseja conhecer, sempre mais, e esta é
a sua essência, e não a sua existência (Barth, p. 21-79). Mas é
necessário ainda dizer que a fé não é ato natural, positivo, é resposta
à graça preveniente. Os Antigo e Novo Testamentos, ambos
afirmam que a fé é iluminação pela graça divina. O homem não a
alcança por sua inteligência racional. A fé não cria uma nova razão
no homem, ela lhe abre os olhos, como também a inteligência. Ela
produz a transformação do ser humano por inteiro, faz dele uma
criatura renovada segundo a imagem do Cristo. A fé humaniza a
pessoa, tornando-a verdadeiramente humana. Essa verdadeira
humanidade é humana, na história, possibilitando ao homem sua
verdadeira vocação, que é a manifestação da glória de Deus, a
glória do Cristo, a vida em permanente amor com o Criador.

Em Paulo está sistematizado esse processo de conhecimento.


Primeiramente, no Antigo Testamento está a promessa de salvação,
ainda escondida. Em segundo lugar, no Novo Testamento o
verdadeiro conhecimento se dá com a fé em Jesus Cristo, plena
revelação de Deus. Nosso conhecimento aqui é ainda imperfeito e
indireto. O terceiro momento é o acontecimento último da
revelação de Deus, no futuro, na plenitude de sua glória e do seu

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 54
amor, onde Deus será tudo em todos, e o conhecimento de Deus
será total e completo.

Juan Luis Segundo (2000) defende a tese de que o dogma em


sua relação com a revelação bíblica possui um caráter educativo e
verdadeiro. O dogma é um componente essencial no processo de
continuidade da experiência da revelação de Deus e tem sua
importância para tornar explícita tal experiência (p. 131). Já estão
presentes na Bíblia, em forma de narrações, credos e fórmulas. A
formulação dogmática pela primeira comunidade cristã, como
também pelas comunidades vétero-testamentárias, foi uma
experiência dinâmica, resultado de sua experiência de Deus, mas
logo seria capturado por um processo que tornaria essa experiência
viva em algo fechado e acabado.

Os desafios da fé na Igreja Apostólica

O problema da perda da vitalidade da doutrina mostra, ainda


que de forma tênue, já o seu início na igreja apostólica. Ali o dogma
passa a ter sua estrutura modificada. É definido aos limites da
igreja. Define a pertença a ela. A fé e a doutrina vão perdendo seu
sentido de experiência viva do conhecimento de Deus. A fé é
transformada em uma espécie de trampolim de salvação. A
mensagem do reino é tornada salvação fora da história.
Afastamento do mundo. Neste contexto, o dogma vira algo para
apenas determinar o lugar cristão na comunidade dos crentes
(Gonçalves, p. 22-23).

Paulo luta contra isso e elabora uma teologia para resgatar o


valor histórico da experiência salvífica. Somente quando a história
está no centro da vida cristã, o Evangelho torna-se libertador,
resgatando a força da doutrina. No contato da igreja com a cultura
helênica e suas religiões mágicas, a igreja não tardaria a ter alterada
suas noções de verdade e sentido. No início buscou se defender
disso, mas posteriormente, no quarto século, ao se tornar religião
oficial do Império Romano, não pôde mais lhe resistir. Foi a partir
da morte dos apóstolos que aconteceu o afastamento da
compreensão inicial e original da fé e da doutrina. Com a ausência
dos apóstolos, os presbíteros ganharam força e se destacaram em
relação aos profetas e doutores da igreja. Os presbíteros foram
encarregados do depósito da fé, de proteger a apostolicidade. A
preocupação da igreja recaiu sobre a guarda da fé, e não sobre sua

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 55
experiência (p. 23).

A teologia patrística

Abarca o período dos seis primeiros séculos, compreendendo


desde a geração imediatamente posterior aos apóstolos até a dos
que preparam a teologia medieval. Inicialmente o cristianismo vê-
se às voltas com o imenso desafio de traduzir para a cultura helênica
sua boa nova. A comunidade de fé vive um período de criatividade
e expansão. Abre espaço dentro de um mundo altamente civilizado
e dotado de grande cultura intelectual. À medida que a igreja em
Roma se tornava cada vez mais poderosa, surgiram tensões entre a
liderança cristã em Roma e em Constantinopla, pressagiando o
cisma posterior entre as igrejas ocidental e oriental,
respectivamente concentradas nesses centros de poder. Nesse
processo de expansão surgiram diversas regiões que se tornaram
importantes centros de debate teológico. Três delas podem ser
apontadas como detentoras de importância especial, das quais as
duas primeiras falavam o grego e a terceira, o latim (Pannenberg, p.
474).

A cidade de Alexandria, no Egito atual, se destacou como um


centro de educação teológica cristã. Um estilo teológico
característico veio a ser associado a essa cidade, o qual retrata sua
antiga associação com a tradição platônica. A segunda região é a
cidade de Antioquia e a região vizinha da Capadócia, a atual
Turquia. Em uma primeira fase, uma forte presença cristã veio a
consolidar-se nessa região norte do Mediterrâneo Oriental.
Algumas das viagens missionárias de Paulo o levaram até lá. A
Antioquia se destaca de maneira significativa em vários pontos da
história da igreja primitiva, conforme registrado nos Atos dos
Apóstolos. A própria cidade de Antioquia logo se tornou um
importante centro do pensamento cristão. Como Alexandria, foi
associada a abordagens específicas com respeito à cristologia e à
interpretação bíblica. O termo antioqueno é frequentemente
utilizado para designar este estilo teológico característico. Os pais
capadócios também tiveram uma importante presença nessa região,
em termos de teologia no século IV, especialmente notável por sua
contribuição à doutrina da Trindade. O norte da África Ocidental,
especialmente a área da atual Argélia é a terceira região. Nesse
local, ao final do período clássico, ficava Cartago, importante
cidade mediterrânea e, em certo momento, adversária política de

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 56
Roma, pois ambas disputavam o domínio da região. No período em
que o cristianismo se espalhou por essa área, essa cidade era uma
colônia romana. Entre os importantes escritores da região estão
Tertuliano, Cipriano de Cartago e Santo Agostinho. Isso não
significa que outras cidades do Mediterrâneo não tinham
importância. Roma, Constantinopla, Milão e Jerusalém também
eram importantes centros teológicos (p. 475).

O termo patrístico vem da palavra latina pater, pai, e tanto


designa o período referente aos Pais da Igreja quanto às idéias
características que se desenvolveram ao longo desse período.
Representa um dos mais importantes e criativos períodos da história
do pensamento cristão. Os historiadores consideram o período
patrístico como um marco decisivo na evolução da doutrina cristã,
pois foi preponderante para o esclarecimento das maiores
controvérsias doutrinárias.

No princípio, uma das tarefas fundamentais era delimitar a


relação existente entre cristianismo e judaísmo. Porém, havia outras
questões de grande importância, como no século II, a apologética,
a defesa argumentativa e a justificação da fé cristã perante seus
críticos. Ao longo do primeiro período da história cristã, a igreja foi
frequentemente perseguida pelo estado. Sua agenda era sobreviver.
Havia espaço limitado para debates teológicos, quando a própria
existência da igreja cristã não poderia ser considerada um fato
consumado. Essa observação nos ajuda a entender, por meio de
escritores como Justino Mártir (100 – 165 d.C.), preocupados em
explicar e em defender as verdades do cristianismo a um público
pagão hostil, porque a apologética tornou-se uma questão de
tamanha importância para a igreja primitiva (Pannenberg, p. 475-
476).

Em 311, o imperador romano Galerius, ordenou a cessação da


perseguição oficial aos cristãos. Esta fora um fracasso e somente
havia exacerbado a decisão dos cristãos em resistir à nova
imposição da clássica religião pagã dos romanos. Galerius proferiu
um edito que permitia aos cristãos levar uma vida normal e realizar
suas assembléias religiosas desde que não perturbassem a ordem
pública. O edito identificava, de forma explícita, o cristianismo
como uma religião e lhe oferecia pleno amparo legal. O status legal
do cristianismo fora estabelecido. A igreja não teria mais que lutar
por sua sobrevivência. O cristianismo era agora uma religião legal,

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 57
uma dentre tantas outras, lutando por influência no mundo romano.
A conversão do imperador Constantino ocasionou uma mudança
completa na situação do cristianismo em todo o Império. Ele
aproximou igreja e estado, operando uma expressiva mudança na
mentalidade de sua época. Em 321, decretou que os domingos
deveriam se tornar feriados. A igreja agora contava com o apoio do
estado. Assim, a teologia saiu do círculo dos encontros cristãos para
se tornar uma questão de interesse e preocupação públicos.
Progressivamente, os debates doutrinários tornaram-se uma
questão de importância também política. O desejo de Constantino
era ter uma igreja unificada em todo seu império. Preocupava-se
com o fato de que as diferenças doutrinárias deveriam ser debatidas
e conciliadas como uma questão prioritária (Gonçalves, p. 24).

O período patrístico posterior (cerca de 310 a 451), em


conseqüência disso, pode ser considerado como um tempo de
grandes mudanças na estrutura da doutrina cristã. Nessa época, os
teólogos dispunham de liberdade para trabalhar e, por isso, foram
capazes de tratar dos assuntos que interessavam para a consolidação
do consenso teológico no Império. A comunidade cristã percebeu
que teria que chegar a um consenso doutrinário.

Um expoente que se destacou foi Justino Mártir (100 – 165),


ele talvez seja o maior dos apologistas. Em sua obra, Primeira
Apologia, defendeu que podem ser encontrados sinais da verdade
cristã em grandes escritores pagãos. Sua doutrina da palavra
geradora permitiu-lhe afirmar que Deus havia preparado o
caminho para sua revelação final em Cristo por intermédio dos
indícios de sua verdade, que estavam presentes na filosofia clássica.
Justino nos fornece um exemplo preciso acerca da tentativa de um
teólogo em relacionar o evangelho à perspectiva da filosofia grega
(Pannenberg, p. 476).

Outro icone foi Irineu de Lion (130 – 200), nascido


provavelmente em Esmirna se estabeleceu posteriormente em
Roma. Por volta de 178, tornou-se Bispo de Lion, posição que
ocupou durante duas décadas até sua morte. Irineu é especialmente
notável por sua defesa veemente da ortodoxia cristã em face da
objeção apresentada pelo gnosticismo. Sua obra mais importante,
Contra Heresias, representa uma defesa importante da
compreensão cristã a respeito da salvação e do papel da tradição em
se manter fiel ao testemunho apostólico diante de interpretações

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 58
não-cristãs (Pannenberg, p. 477).

Na segunda metade do século II foi aberta em Alexandria uma


escola de teologia cristã. Os membros dessa escola tinham como
objetivo desenvolver um sistema teológico baseado no uso da
filosofia. Esse sistema deveria ser capaz de permitir uma exposição
sistemática do cristianismo. Como eram educados na literatura e na
filosofia clássicas, buscaram usá-las na formulação da teologia
cristã. De lá advém Clemente de Alexandria (155 – 225), homem
que já havia estudado filosofia em suas muitas viagens com vários
mestres até encontrar-se com Panteno, primeiro diretor da escola de
Alexandria. Segundo ele a filosofia grega deveria se aproximar do
cristianismo a fim de que se compreendesse que o cristianismo era
a filosofia superior e definitiva (Gonçalves, p. 24).

Orígenes (185 – 254), um dos mais importantes defensores do


cristianismo do século III, forneceu extraordinária base para o
desenvolvimento do pensamento cristão oriental. Estima-se que
tenha publicado mais de seis mil pergaminhos. Tal era a sua
competência que em 203, com apenas 18 anos, foi escolhido para
suceder Clemente. Suas contribuições mais relevantes para o
desenvolvimento da teologia cristã podem ser vistas no campo da
interpretação bíblica. Ele articulou a noção de interpretação
alegórica, argumentando que se deveria fazer uma distinção entre o
sentido superficial das Escrituras e seu sentido espiritual mais
profundo (p. 25).

Tertuliano (160-225), outro teólogo que ganhou destaque


nessa época, foi um pagão originário da cidade de Cartago, no norte
da África, que se converteu ao cristianismo quando tinha cerca de
trinta anos. Ele, com freqüência é considerado o pai da teologia
latina em razão do grande impacto que teve sobre a igreja no
ocidente. Defendeu a unidade do Antigo e do Novo Testamento
contra Marcião, que argumentava que ambos se relacionavam a
deuses distintos e não a um mesmo e único Deus. Ao fazer isso,
Tertuliano lançou as bases para a doutrina da Trindade. Ele se
opunha intensamente ao fato de a teologia ou a apologética cristãs
tornarem-se dependentes de fontes estranhas às Escrituras. Ele está
entre os primeiros representantes mais influentes que defenderam o
princípio da suficiência das Escrituras, o qual condenava aqueles
que recorriam à filosofia para alcançar o conhecimento de Deus

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 59
(Gonçalves, p. 25).

Outra figura importantíssima é Atanásio (296 – 373). A


importância de Atanásio está relacionada, principalmente, a temas
da cristologia que se tornaram relevantes ao longo do século IV.
Por volta dos vinte anos de idade escreveu o tratado A Encarnação
do Verbo, defesa rigorosa da idéia de que Deus assumira a natureza
humana na pessoa de Jesus Cristo. Esse tema mostrou-se de
importância crucial na controvérsia ariana, à qual Atanásio deu
grande contribuição. Ele ressaltou que se Cristo não fosse
plenamente Deus, como alegava Ário, desse fato resultava uma
série de implicações. Primeiro, era impossível para Deus salvar a
humanidade, pois nenhuma criatura poderia redimir a outra. Em
segundo lugar, havia o fato da igreja cristã ser culpada pela prática
de idolatria, uma vez que os cristãos regularmente louvavam e
oravam a Cristo. Por fim, esses e outros argumentos venceram o
arianismo (Pannenberg, p. 482)

Mas para Gonçalves, a figura máxima da Patrística é


Agostinho de Hipona (354 – 430). Aurélius Augustinus certamente
foi a mente mais brilhante e influente da igreja cristã por toda a sua
longa história. Santo Agostinho, atraído ao cristianismo pela
pregação do Bispo Ambrósio de Milão, vivenciou uma dramática
experiência de conversão. Aos 32 anos não havia ainda satisfeito
seu ardente desejo de conhecer a verdade, encontrava-se em um
jardim de Milão, debatendo-se com as importantes questões sobre
a natureza e o destino humano, quando teve a impressão de ouvir,
próximo dali, algumas crianças cantando Tolle, lege. Interpretou
esse fato como orientação divina e tendo à mão a carta de Paulo aos
Romanos leu as palavras que diziam: “Revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo” (Romanos 13.14). Para ele, cujo paganismo havia se
tornado cada vez mais difícil de ser mantido, esse momento foi
decisivo para sua adesão ao cristianismo. A partir daí dedicou sua
imensa capacidade intelectual à defesa e à consolidação da fé cristã.
Posteriormente Agostinho deixou a Itália e retornou ao norte da
África, onde, em 395, se tornou Bispo de Hipona. Em seus trinta e
cinco anos restantes, ele testemunhou numerosas controvérsias de
importância fundamental para o futuro da igreja no ocidente e sua
contribuição foi decisiva para a solução de cada uma delas. Sua
meticulosa exegese do Novo Testamento, em especial das cartas de
Paulo, concedeu-lhe grandiosa reputação. Com o término da Idade
Antiga, sua substancial produção teológica constituiria, na Europa

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 60
Ocidental, a base de um grandioso projeto teológico. Uma parte
fundamental da sua contribuição é o desenvolvimento da teologia
como uma disciplina acadêmica (p. 25).

A maior contribuição de Santo Agostinho foi no sentido de


alcançar uma síntese do pensamento cristão, sobretudo em seu
grande tratado A cidade de Deus. À medida que defendeu o
cristianismo de muitas acusações, proporcionou uma apresentação
sistemática das principais linhas da fé cristã. Além de tudo isso,
pode-se ainda afirmar que Agostinho contribuiu de maneira
fundamental em relação a três grandes áreas da teologia cristã: a
doutrina da igreja e doutrina da graça que surgiu a partir da
controvérsia pelagianista e a doutrina da Trindade.

Na verdade, não se pode dizer que a igreja primitiva tenha


desenvolvido qualquer forma de teologia sistemática. A
preocupação fundamental da comunidade de fé nascente era
defender o cristianismo das críticas que lhe eram feitas, como se
pode perceber claramente nas obras apologéticas de Justino Mártir,
bem como esclarecer os aspectos centrais do pensamento cristão,
para combater a heresia, como vemos na obra de Irineu contra o
gnosticismo. Contudo, ao longo dos quatro primeiros séculos, um
substancial desenvolvimento doutrinário ocorreu particularmente
em relação às doutrinas da pessoa de Cristo e da Trindade.

A idade média e a teologia escolástica

O período patrístico concentrou-se em torno do mundo


mediterrâneo e de centros de poder como Roma e Constantinopla.
A queda de Roma, ocasionada pela ação de tropas invasoras vindas
do norte, lançou o mundo mediterrâneo ocidental em um completo
caos. O início do Medievo é marcado como um tempo de grande
instabilidade que se estendeu por toda a região. Embora o debate
teológico tenha prosseguido na igreja ocidental, ao longo desse
período, enfrentava um contexto em que imperava uma
mentalidade de sobrevivência. No mundo mediterrâneo oriental
também surgiu uma certa instabilidade, à medida em que o
islamismo começou a difundir-se por toda a região.

Ao longo desse período da história européia, o centro do


pensamento teológico cristão deslocou-se do mundo mediterrâneo
para a Europa Ocidental. A expansão do islamismo pelo mundo
mediterrâneo, no século VII, provocou uma instabilidade política

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 61
generalizada e posteriores mudanças estruturais na região. Somente
a partir do século XI um certo grau de estabilidade foi estabelecido
nessa área. Surgiram três grandes sistemas de poder em substituição
ao antigo Império Romano. O Império Bizantino, cujo centro era a
cidade de Constantinopla. A forma de cristianismo predominante
nesta região baseava-se na língua grega e era profundamente ligada
aos escritos dos estudiosos patrísticos da região do mediterrâneo
oriental, como Atanásio, por exemplo. A Cristandade Ocidental,
principalmente em regiões como a França, a Alemanha, os Países
Baixos e o norte da Itália. A forma de cristianismo que veio a
predominar nessa região tinha como centro a cidade de Roma e seu
bispo era a figura máxima da igreja no ocidente. E por fim, o Islã,
região que compreende grande parte do Extremo Oriente e do sul
do Mediterrâneo (Gonçalvez, p. 26).

Um fato de importância fundamental para a história da igreja


ocorreu nesse período. Por uma série de motivos, as relações entre
a igreja oriental e a igreja ocidental tornaram-se cada vez mais
hostis ao longo dos séculos IX e X. O crescente desentendimento,
em torno da cláusula filioque, no Credo Niceno, teve grande
contribuição para essa atmosfera cada vez mais difícil. Outros
fatores também contribuíram, incluindo a rivalidade política entre
Roma e Constantinopla. Um dos maiores resultados dessa tensão
foi o fato de haver uma reduzida interação teológica entre oriente e
ocidente. Embora teólogos ocidentais, como Tomás de Aquino,
tenham se sentido à vontade para se inspirar nos escritos dos pais
gregos, estas obras tendem a preceder esse período. As obras de
teólogos ortodoxos posteriores, como do notável escritor Gregório
Palamas, atraíram pouca atenção no ocidente. Pode-se dizer que
somente no século XX a teologia ocidental começaria a redescobrir
as riquezas da tradição ortodoxa.

Na Europa, ao fim da Baixa Idade Média, estava preparado o


cenário para o desenvolvimento europeu, e principalmente o
desenvolvimento intelectual. Na França, ao final do século XI, a
recuperação da estabilidade política estimulou o ressurgimento da
Universidade de Paris, que rapidamente se tornou conhecida como
o centro intelectual da Europa. Em Paris, uma série de escolas
teológicas foram abertas. Uma dessas escolas foi o Collège de la
Sorbonne. Já no século XVI, Paris era amplamente reconhecida
como um avançado centro de estudos teológicos e filosóficos,
possuindo entre seus estudantes indivíduos famosos como Erasmo

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 62
de Rotterdam e João Calvino. Outros centros de estudos
semelhantes foram logo criados em outras partes da Europa.
Instaurou-se um novo programa de desenvolvimento teológico
voltado para a consolidação dos aspectos intelectuais, legais e
espirituais da vida da igreja cristã (Gonçalves, p. 26).

A fase inicial do médio período é dominada pelos progressos


feitos na França. Vários monastérios produziram brilhantes autores
e intelectuais cristãos como, por exemplo, Lanfranc (1010 – 1089)
e Anselmo (1033 – 1109), ambos oriundos do monastério de Bec,
na Normandia. Rapidamente, a Universidade de Paris consolidou-
se como um avançado centro de investigação teológica com
estudiosos como Pedro Abelardo (1079 – 1142), Alberto, o Magno
(1200-1280), Tomás de Aquino (1225 - 1274) e Boaventura (1217
– 1274). Os séculos XIV e XV assistiram a uma considerável
expansão do setor universitário na Europa Ocidental com a criação
de importantes universidades na Alemanha e em outros locais.

Um elemento crucial para o novo interesse medieval pela


teologia também está associado à Paris. Pouco antes de 1140, Pedro
Lombardo chegou à universidade para dar aulas. Uma de suas
principais preocupações era fazer com que seus estudantes se
empenhassem para dominar temas difíceis da teologia. Como forma
de contribuir para isso, ele escreveu a obra Quatro livros de
sentenças, que era uma combinação de citações da Bíblia e de
autores patrísticos organizada por tópicos. A tarefa que ele dava a
seus estudantes era simples: encontrar o sentido das citações e
compreendê-las. O livro mostrou-se de grande relevância para o
avanço do legado de Agostinho, pois os estudantes eram forçados
a se empenhar para compreender as idéias do grande teólogo e para
conciliar textos aparentemente contraditórios por meio da
elaboração de explicações teológicas adequadas sobre suas
incongruências. Já em 1215, a obra havia se firmado como o livro-
texto mais importante da época. O estudo e o comentário da obra de
Pedro Lombardo tornaram-se obrigatórios para os teólogos. O
trabalho, conhecido como comentários sobre as sentenças, tornou-
se um dos mais conhecidos gêneros literários da teologia na Alta
Idade Média. Entre notáveis exemplos incluem-se os comentários
de Tomás de Aquino, Boaventura e Duns Scotus (Gonçalves, p. 27).

Nesse contexto surge a Escolástica, que foi um dos


movimentos intelectuais mais desprezados na história da

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 63
humanidade. Seu nome é derivado das grandes escolas medievais,
nas quais se debatiam questões de teologia e filosofia,
freqüentemente com tamanha complexidade, e têm surpreendido os
historiadores contemporâneos, como Le Goff. A Escolástica era
considerada pela maioria das pessoas, especialmente os
humanistas, no início do século XVI, como uma inútil e árida
especulação intelectual a respeito de trivialidades. O termo
escolasticismo foi inventado por escritores que ansiavam por
desacreditar o movimento por ela representado. A expressão Idade
Média foi, em grande parte, uma criação humanista, cunhada por
escritores humanistas, do século XVI, em referência pejorativa a
um insípido período de estagnação, situado entre a Antigüidade (o
período clássico) e a modernidade (o Renascimento). A Idade
Média é vista como nada mais do que um tempo intermediário entre
o esplendor cultural da Antigüidade e seu ressurgimento, no
Renascimento. Da mesma forma, o termo escolástico era
empregado pelos humanistas em referência, igualmente pejorativa,
às idéias da Idade Média (Pannenberg, p. 483).

Da mesma forma que ocorre com muitos outros termos


culturais importantes como Humanismo e Iluminismo, é difícil
oferecer uma definição exata que faça justiça a todas as distintas
posições das maiores escolas ao longo da Alta Idade Média e Idade
Média Tardia. Todavia, não seria errado afirmar que a Escolástica
é o movimento filosófico e teológico, surgido entre os séculos XIII
e XVI, que enfatizou a justificação racional da crença religiosa bem
como a apresentação dessas crenças de forma sistemática. Logo, o
termo Escolástica não se refere a um sistema específico de crenças,
mas a um modo particular de se produzir e sistematizar a teologia
cristã, ou seja, um método altamente desenvolvido de apresentação
de conteúdos por meio de diferenciações lógicas, com pretensões
claras de forjar um novo método racional para a teologia
(Gonçalves, p. 27).

A Escolástica trouxe contribuições importantes para áreas


fundamentais da teologia cristã, especialmente em relação à
discussão sobre o papel da razão e da lógica na teologia. Os escritos
de Tomás de Aquino, Duns Scotus e Guilherme de Occam,
freqüentemente destacados como os três mais influentes autores
escolásticos, contribuíram de forma impressionante para o
desenvolvimento da Teologia, sendo, desde essa época,
considerados como marcos de um movimento que deu à teologia o

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 64
status de ciência.

A teologia na época renacentista

O termo, derivado da palavra francesa renaissance, é hoje


empregado universalmente para designar o avivamento literário e
artístico que ocorreu na Itália dos séculos XIV e XV. Paolo Giovio,
em 1546, referiu-se ao século XIV como um afortunado século em
que as letras latinas renasceram. Muitos historiadores alegam que o
Renascimento deu origem à Idade Moderna. Foi neste período que
o ser humano começou a pensar sobre si mesmo como indivíduo.
Algo de novo e empolgante ocorreu na Itália renascentista que se
mostrou capaz de exercer um grande fascínio sobre várias gerações
de intelectuais. Não fica inteiramente claro o motivo pelo qual a
Itália veio a tornar-se o berço desse novo e brilhante movimento na
história das idéias.

Diversos fatores podem ser identificados como detentores de


certa influência nesta questão. Primeiro, a teologia escolástica
jamais teve particular influência na Itália. Embora muitos famosos
teólogos fossem italianos (inclusive Tomás de Aquino e Gregório
de Rimini), estes viviam e trabalhavam no norte da Europa.
Portanto, havia um vácuo intelectual na Itália ao longo do século
XIV. Espaços vazios tendem a serem ocupados, e o humanismo
renascentista empenhou-se para ocupar essa brecha em particular.
Depois, a Itália estava repleta de visíveis e tangíveis resquícios de
grandeza da Antigüidade. As ruínas de antigos monumentos e
construções romanas espalhavam-se por todo o país e parecem
haver despertado, na época do Renascimento, o interesse pela
antiga civilização romana, atuando como estímulo para que seus
intelectuais resgatassem a vitalidade da cultura clássico-romana,
em uma época que era culturalmente árida e estéril. Por fim, à
medida que teve início a decadência do Império Bizantino,
Constantinopla caiu em 1453, ocorreu um “êxodo” de intelectuais
de fala grega em direção ao ocidente. A Itália, por mero acaso,
ficava convenientemente perto de Constantinopla, resultando no
fato de que muitos desses imigrantes estabeleceram-se em cidades
da Itália. Um avivamento da língua grega foi, portanto, inevitável
e, juntamente com ele, uma retomada do interesse pelos clássicos
gregos (Gonçalves, p. 27).

Um componente central da cosmovisão do Renascimento

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 65
italiano é um retorno ao esplendor cultural da Antigüidade e uma
marginalização das conquistas intelectuais da Idade Média.
Escritores renascentistas tinham pouco respeito em relação a estas
conquistas, considerando que as grandes conquistas da
Antiguidade eram superiores às da Idade Média. O Renascimento
pode ser parcialmente visto como uma reação contra o tipo de
abordagem progressivamente associado às faculdades de
humanidades e teologia, das universidades do norte da Europa.
Irritados pela natureza técnica da linguagem e dos debates
escolásticos, os escritores do Renascimento os deixaram totalmente
de lado. No caso da teologia cristã, a chave para o futuro
encontrava-se em um engajamento direto com o texto das
Escrituras e com os escritos do período Patrístico.

O Caminho da Racionalização da Teologia

Certamente a tese da racionalização da teologia encontra neste


período da história maior justificativa. A teologia cristã encontra
aqui uma descaracterização mais acentuada. Isto acontece pela
suplantação do que ainda restava de sapiencial na “teologia oficial”
por uma racionalidade de tipo fechada.

Para Tillich (1999) a teologia da Reforma suscitou um


problema educacional próprio que a levou para o racionalismo. Ele
afirma que na Reforma todas as pessoas precisavam ter um mesmo
ensinamento básico das doutrinas fundamentais da fé. Ao tornar o
ensino teológico extremamente simples para isso, promoveu-se
uma simplificação generalizada que se tornou cada vez mais uma
racionalização. Passou-se a ensinar o que poderia ser entendido pela
razão. Em conseqüência dessa necessidade, as doutrinas tiveram
que se tornar mais razoáveis a fim de serem entendidas. Dessa
forma, a educação religiosa colaborou, juntamente com outras
práticas, para o advento do iluminismo. Em geral, as pessoas que
viviam na época do iluminismo pensavam que apenas preservavam
a tradição religiosa. Mas diziam: precisamos fazê-lo de modo
razoável para que as pessoas entendam a religião (p. 50).

A articulação teológica, que já tinha sido afetada no processo


de platonização do cristianismo, sofreu um retrocesso muito grande
no cenário do novo mundo não mais romano. A queda do império
e a entrada dos novos povos, chamados bárbaros (francos,
lombardos, visigodos), significaram um grande desafio para a

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 66
teologia nesta nova estrutura.

O Império Romano cai por uma gama de fatores que não


apenas a força dos bárbaros. Estes povos do norte da Europa
tomaram aos poucos, e muitas vezes de forma até pacífica, grande
parte do império, fragilizado por sua luta com o oriente.

O império caiu, mas a religião cristã permaneceu. E


evangelizar estes povos significou um desafio muito grande para a
igreja. É aí que se desencadearam de vez os maiores problemas
com relação à teologia. A pedagogia usada para a evangelização
desses povos foi o que Juan Luis Segundo chamou de pedagogia
apressada (p. 263).

Foi mencionado já a importância da participação das


comunidades na formação de uma teologia viva e dos dogmas como
processo vitalizador. Como vimos, nos primórdios do cristianismo,
a teologia brotou de perguntas suscitadas pelas comunidades
cristãs. A revelação foi sempre captada em consonância com a
realidade da vida. Não eram fórmulas desconexas da história das
comunidades. A pergunta que surge diante disso é: como
evangelizar a nova estrutura sem lhe dar tempo para maturar e
aprender a aprender a fé? Juan Luis Segundo afirma que “na
cristandade a evangelização dos bárbaros aconteceu na forma de
respostas antes mesmo que as perguntas fossem naturalmente
formuladas” (p. 272). Para ele, a igreja dessa época não respeitou o
caminho natural da formação da consciência e de uma mente
genuinamente cristã, conforme proposta pelo apostolo Paulo. O
problema aparece de forma tênue e quase imperceptível. A verdade
não é fruto da experiência histórica, mas é algo imposto e já dado.
A verdade não é buscada, está pronta. Passa a ser algo exterior, e
não mais resultado da experiência vivida. Nesse sentido, a doutrina
torna-se algo exterior ao ser humano, uma verdade obedecida, e não
mais uma verdade experienciada como uma boa novidade em sua
vida (p. 275).

A primeira geração de alguns povos bárbaros tornados cristãos


recebe, imediatamente, uma informação teológica que, no processo
veterotestamentário, a pedagogia divina gastou oito séculos para
preparar. O preço dessa rapidez ou apressamento foi uma certa
dose de extrinsecismo que afetava a doutrina assim recebida. Um
povo que recebeu uma teologia pronta reproduzirá esse mesmo tipo

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 67
de teologia, acrescentando-lhe ainda uma gama de dados que em
nada tem a ver com a primeira teologia originante.

É sabido que a teologia das primeiras comunidades,


principalmente por força de Paulo, é uma teologia aberta, madura,
porque é resultado das verdadeiras questões da vida. A teologia
conforme a ênfase paulina é uma teologia para a maturidade da fé.
O grande problema da teologia medieval, neste sentido racionalista,
como mencionou J. L. Segundo, uma teologia técnica, é não mais
levar em conta a fé como um exercício da liberdade que revele uma
maturidade para os desafios da vida. Os bárbaros tornados cristãos
da noite para o dia, e que receberam uma estrututa teológica pronta,
não formularam suas questões existenciais, mas receberam prontas
as respostas. Por conseqüência disto, a fé foi para bem distante do
que pensava Paulo. O resultado dessa teologia foi uma fé
mergulhada em ritos vazios, resposta pela ansiedade com relação à
magia. A partir daí, durante toda a Idade Média, e por que não falar
até a Pós- Modernidade, passou-se ao desenvolvimento de uma fé
de tipo mágica, a- histórica, descomprometida com a vida
comunitária, de mãos dadas com o individualismo (p. 285).

Vários estudiosos categorizam esse fenômeno como


esquizofrenia entre teologia e experiência; já que uma teologia
recebida de forma pronta pouco pode auxiliar na solução dos
problemas mais fundamentais da vida. Não participa no processo
de humanização de uma cultura. A inculturação do cristianismo na
mentalidade dos povos bárbaros que se instalaram nos antigos
territórios ocidentais do Império Romano obriga, por mais
inconsciente que seja o peso dessa obrigação, a voltar a uma
concepção moral nitidamente pré-paulina (p. 276).

Isso evidencia que na Idade Média, a teologia deixou de lado


a experiência para se tornar cada vez mais exercícios de uma
racionalidade fechada com pretensões de dizer o mistério. A
teologia continuou como objeto dos especialistas, mantendo o
laicato como mero receptor de articulações teológicas que se
tornaram imutáveis e inflexíveis. O custo da uniformização da fé
imposto foi alto demais. Por conta disso, o cristianismo, se não
sofreu um regresso, sofreu um grande atraso em sua missão.

A teologia na modernidade

A modernidade, como é do nosso conhecimento, começou por

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 68
volta do século XVI da era cristã, na parte ocidental da Europa.
Seus germes foram a Renascença e a Reforma Protestante, tendo
como fundamentos filosóficos e políticos nos séculos XVII e XVIII
o empirismo e o posterior positivismo científico.

A burguesia foi a classe que levou adiante o mundo moderno,


ela é também um fenômeno novo, advinda do poder do comércio
nascente após a queda do feudalismo e o nascimento das cidades.
Este modelo de civilização alcançou seu ápice no século XVIII com
a revolução industrial e a irrupção das democracias. A modernidade
inaugurou a era da subjetividade, tempo presumido como novo
lugar onde a pessoa esclarecida pela razão alcançaria a autonomia
moral e ética, política, econômica e social e até mesmo, no campo
da religião, uma iluminação também natural, desvinculada das
formas de até então (Gonçalves, p. 28).

A modernidade se comprometeu com a emancipação da


pessoa, com o progresso da sociedade, com a libertação dos grupos
e de determinadas classes, sendo por isso, também, um grande
processo ideológico. Nela nasceram os mitos do progresso, da
ciência, da técnica e da democracia. A ideologia do progresso vai
aos poucos se fortalecendo nos séculos modernos (de XVII a XX),
definida por uma estrutura que podemos nomear como a busca de
uma racionalidade formal, pela lógica e pela afirmação do
indivíduo e da sua subjetividade. Três conceitos básicos modernos
corroboram tal pensamento, são eles: o conceito científico objetivo
e técnico, o conceito político e o conceito psicológico. (1) O
conceito científico e tecnológico é marcado pelo desenvolvimento
de uma racionalidade matemática e instrumental e também pelo
desenvolvimento industrial. (2) O conceito político é marcado pelo
desenvolvimento das democracias e dos Estados-Nações. (3) O
conceito psicológico é marcado pela irrupção da consciência
individual e do individualismo (p. 28).

Mas a ideologia moderna não conseguiu se manter intacta no


século XX. Contradições em seu próprio centro se mostraram
insuperáveis e lançaram a modernidade numa crise sem
precedentes na história. Criada para libertar o indivíduo, a
modernidade revela, de certa forma a inconsistência dos seus
conceitos. A ciência e a tecnologia submetem as pessoas aos
comandos da divisão racional do trabalho e da produtividade. A
política moderna tornou o cidadão refém da burocracia social. A

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 69
subjetividade moderna acabou por afugentar a pessoa em um
mundo destituído de solidariedade. A ideologia modernista se
mostra insuficiente e por isso está em crise. Esta crise da
modernidade é a crise do sujeito moderno.

Outro fenômeno social que foi central nesse período, é o


processo da secularização. Esta tese defendida por muitos
estudiosos afirma que a burguesia buscou destronar a igreja e sua
teologia para dar lugar a nova concepção de mundo burguês. “A
secularização é exigência para o processo de autonomia do sujeito,
da ciência e das instituições modernas, por isso a crítica à religião,
à igreja e à teologia foi sempre muito forte” (Gonçalves, p. 28).

Foi necessária, para a construção do sujeito e das instituições


autônomas, a ruptura com os antigos modelos de pensamento e de
organizações sociais, e isso significa a emancipação progressiva do
domínio da religião cristã ocidental nos diferentes níveis culturais
do mundo de então: a política, a economia, a antropologia, a
educação, a arte, a ciência e a própria religião. Por outro lado, a
modernidade se impõe no mundo sem lançar mão de quaisquer
fundamentos metafísicos ou teológicos tradicionais. Ela utiliza a
própria ideologia de sua ciência como base teórica para o progresso
técnico e sua relação entre sucesso e felicidade. A partir daí, a
felicidade não mais esteve vinculada à religião, mas ao bem-estar
proporcionado pela ideologia do progresso. Mas ironicamente essa
ideologia de salvação terrena se mostra um enorme paradoxo. Já
em seus primórdios a modernidade percebeu os seus limites, se
revelando como um contra-senso incapaz de oferecer sentido para
a existência humana (p. 28-29).

Diante disso, o labor teológico também foi afetado. Na


modernidade, o ser humano ganha status até então não visto,
sobretudo em sua dimensão corpórea e histórica. Mas católicos e
protestantes lhe resistiram, dando ênfase em valores como a alma,
a eternidade, o céu, etc. Não houve, da parte da igreja, intenção de
encontrar uma síntese entre os valores tradicionais do cristianismo
e os novos valores que emergiam com o moderno. Ao contrário,
vemos se tornar sempre mais ortodoxo um tipo de cristianismo cada
vez mais espiritualizado, a-histórico e individualista.

Mas se por um lado a igreja se fecha ao mundo, por outro sua


teologia racional serviu muito bem aos interesses daqueles que

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 70
patrocinavam a nova sociedade. Fechadas sobre si mesmas, as
igrejas cristãs na defesa de suas ortodoxias viveram pleiteando
favores dos príncipes. Isso aconteceu principalmente junto aos
burgueses. O cristianismo, conforme a crítica weberiana ao
calvinismo, se adequou perfeitamente e se tornou estrategicamente
aproveitável aos interesses da nova classe. Dividido e sectário,
perdeu a oportunidade de caminhar na direção da história de forma
consciente e dialogal (p. 27-28). Já no século XVIII, quando do
contexto da Revolução Francesa e da luta por uma nova ordem
social, a igreja se constituiu uma força contra-revolucionária.
Iniciou uma ofensiva contra os ditos erros modernos, o socialismo
e o liberalismo. No catolicismo, a reação culminou com o Syllabus
(Pio IX, 1864) e o Vaticano I (1869-1870) perdurando até o
Vaticano II. Já no protestantismo, o conservadorismo fez nascer o
fundamentalismo.

Podemos apontar dois caminhos para descrever a teologia na


modernidade. O primeiro, é o da teologia anti-moderna. Uma
teologia que se torna fechada, e que só poderia se apresentar como
uma estrutura contra o mundo. Esta é a primeira característica da
teologia na modernidade, representada pelo conservadorismo ou
pela ortodoxia, seja ela de cunho católico ou protestante. A segunda
corrente é a teologia liberal, de cunho também racionalista. Ela
aparece mais cedo no protestantismo e tardiamente no catolicismo.
O racionalismo proclamou como evidência verdadeira somente
aquilo que recebe do rigor de uma razão estritamente dedutiva. Tal
pensamento influenciaria também a teologia, que teve seus
expoentes leigos, como Locke. Nenhum tipo de alerta contra uma
razão que vai crescendo e suplantando o antigo modelo que oferece
coerência ao mundo encontra apoio como, por exemplo, os
discursos de Pascal contra o cartesianismo. Na verdade, as
ortodoxias protestante primeiramente e católica posteriormente,
que partilhavam com a racionalidade escolástica, vão aderir ao
racionalismo dedutivo. A teologia natural abraçou os argumentos
dos filósofos deístas que defendiam a existência de Deus e de uma
teodicéia fruto da aliança entre a ortodoxia e o racionalismo
(Gonçalves, p. 29).

Mais tarde nasceram as obras teológicas modernas com


Lessing que foi a tentativa de conciliação da razão e da história. Seu
tratado acerca da Educação da Raça Humana de 1780, propõe uma
aproximação indutiva das religiões positivas e da revelação bíblica.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 71
No ano seguinte Kant publicou sua Crítica da Razão Pura, que é o
resultado de uma teologia fundada sobre os princípios de uma razão
puramente dedutiva e especulativa. Depois de Kant vemos
Schleiermacher construir uma teologia a partir do novo ideal
científico, apresentando-nos uma teologia positiva. Assim, vemos
o racionalismo se desenvolvendo dentro da teologia: a escola alemã
de Ritschl e Troeltsch, a escola simbólico-fideísta na França, a
escola católica de Tubinga, todos se consagraram pelo uso do
método histórico experimental e indutivo em detrimento do antigo
método escolástico racional e dedutivo que suplantou o método
agostiniano (Pannenberg, p. 486).

Diante disso, não é difícil entender porque a teologia entra em


crise no século XX. No campo protestante, e por que não dizer
também católico, a teologia de Karl Barth, a princípio, parece ser o
antídoto contra essa crise que domina a teologia. Barth propõe
repensar a teologia em sua episteme, em seu método, em suas
condições de exercício. Inaugurou-se uma tentativa de retornar a
teologia aos fundamentos da Palavra, tendo a revelação concebida
como uma Palavra-Evento que não pode deixar de interpelar uma
nova vida ao ser humano.

Barth, propõe na verdade um retorno à concepção fides


quaerens intellectum. É necessário que a teologia retorne à lógica
da fé, desprendida dos entraves escolásticos, racionalistas ou
cientificistas. A razão teológica deve voltar à iluminação. Ele
acreditou que uma vez liberta dos entraves estrangeiros que lhe
dominavam, a teologia pudesse se descobrir ela mesma espiritual e
retornar as suas tradições bíblica e patrística (p. 26).

Libertar-se das influências do racionalismo, coisa


aparentemente simples, para a teologia, mostrou-se como algo não
tão fácil assim. Como romper com séculos de um condicionamento
que domina toda a história? Os condicionantes do racionalismo são
tão fortes que a própria teologia da revelação de Karl Barth, como
também a maioria das teologias do século XX, acabaram recaindo
também num tipo de racionalismo teológico insipiente, ou seja, se
tornaram, por vezes, mais tributárias ainda de uma mentalidade
tradicional que utiliza conceitos e categorias do racionalismo. As
muitas teologias do século XX, esforços legítimos de comunicação
teológica, inclusive interdisciplinares, quando não caem no
anacronismo teológico, se exprimindo por categorias culturais

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 72
incapazes de interpelar o homem de hoje, muitas vezes não
conseguem se desamarrar das lógicas do racionalismo ocidental.
Por isso também se revelam, muitas vezes, definitivamente
incapazes de sentido para o mundo atual (p. 29).

A teologia toma consciência da episteme moderna que insiste


sobre a ruptura de sua própria compreensão. O caminho de uma
nova episteme, de uma nova razão para a teologia, ainda está por se
definir. As tentativas de construção de uma linguagem diferenciada
se deu, junto à crítica marxista ou freudiana, à antropologia ou à
sociologia, ao estruturalismo ou junto das filosofias existencialistas
e da alteridade. A teologia do século XX se beneficiou dos variados
pontos de vista privilegiados que lhe permitiram dizer e exprimir a
realidade. A consciência não pode mais ser considerada como o
simples reflexo de um mundo ideal, nem mesmo como a pura visão
criadora e constitutiva do sentido. A descoberta da complexidade
obriga-nos a refletir e corrigir constantemente as convicções mais
fundamentais acerca da vida e do mundo. No final do século XX,
nasceu, juntamente com a crise da racionalidade ocidental, a busca
por uma nova razão, que não fosse redutora. Uma razão que
pudesse reestruturar o mundo, a vida, a ciência, a religião, e por que
não dizer, a própria teologia (Gonçalves, p. 29).

Ao considerar as diferentes formulações da teologia, afirma-se


a necessária contemporaneidade do discurso teológico. Assim, a
teologia deverá sempre buscar atender aos sinais dos tempos por
objetivar demonstrar com eficiência do conteúdo revelado. Isso
significa a reflexão epistemológica da produção teológica na Pós-
modernidade.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 73
UNIDADE II
O que cremos acerca das Escrituras Sagradas

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 74
AS ESCRITURAS SAGRADAS

Klaiber e Marquardt vão dizer que para a fé cristã, os livros


bíblicos são o documento escrito da automanifestação de Deus, na
sua ação na história de Israel e na vida de Jesus de Nazaré (p. 39).
Na realidade, este documento nunca foi considerado apenas como
uma valiosa fonte histórica, guardada nos escaninhos de uma
biblioteca. Ao contrário, a Bíblia é lida diariamente, exposta
dominicalmente e assim vive na comunidade cristã. Sua mensagem
demonstrou ser, através dos séculos, salvadora, auxiliadora e
consoladora, desencadeou revoluções e forneceu aos homens as
bases para a vida. A Bíblia e seus livros, desde a sua origem, foram,
sempre de novo, copiados e inúmeras vezes impressos. É bem
verdade que não possuímos nenhum manuscrito original de
qualquer livro bíblico, mas, através de vasta e antiga transmissão
escrita, estamos em condições de reconstruir o texto original com
maior segurança do que a de qualquer outro livro antigo.
A história viva da Bíblia corresponde ao seu conteúdo e a sua
história. É narração do falar e do agir de Deus. Cada um desses
escritos tem a sua história própria; a Bíblia não afirma ter caído
pronta do céu como revelação, ou ter sido ditada de uma vez só. Ela
oferece informações sobre suas origens, de modo que o observador
atento é capaz de reconstruir sua história (p. 39).

A ORIGEM DO ANTIGO TESTAMENTO

A primeira parte da Bíblia é constituída pelos livros da Velha


Aliança (= Antigo Testamento), admitidos tanto por cristãos como
por judeus. O surgimento das primeiras coleções canônicas desses
escritos ascende aos tempos após o exílio (século VI a.C.). A
profunda ruptura, que a destruição do templo, a perda da
independência nacional e a expatriação violenta de grandes
contingentes das camadas, fez com que não mais fosse automático
o funcionamento das instituições e a tradução oral. Começou-se
assim, a compilar num todo maior as diferentes coleções de leis e
de narrativas sobre as origens do povo, que já anteriormente tinham
sido fixadas por escrito. Surgiu assim uma obra em cinco volumes
(ou rolos), que os judeus designam pelo termo Torá (ensino, lei) e
que hoje conhecemos pelo nome de Pentateuco ou Os Cinco Livros

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 75
de Moisés. Não sabemos se, já na leitura da lei por Esdras (cerca de
450 a.C.), essa obra tinha a atual extensão. Entretanto, deve ter sido
fixada em sua forma final, o mais tardar, no século IV a.C., já que
os samaritanos, que pelo fim desse período se separaram da
comunidade jerusalemitana, o receberam na mesma forma literária
(Klaiber e Marquardt, p. 39).

As palavras dos profetas já tinham sido, parcialmente,


colecionadas e postas por escrito ao tempo de sua atividade. A partir
do Exílio, sob o impacto da realização de suas mensagens sobre o
julgamento de Deus, começaram a receber autoridade decisiva,
foram colecionadas e, onde pareceu necessário, também
atualizadas. Igualmente a história do povo até o exílio foi
literalmente elaborada, na base de narrativas mais antigas e antigos
informes, e tornada compreensível, em seu conteúdo teológico,
como história de apostasia e juízo divino, mas também como
conversão e auxílio divino. Por causa de sua contextura teológica,
os livros históricos, bem como os escritos proféticos foram
reunidos sob o título Profetas. Estas duas partes do Antigo
Testamento já eram, ao tempo de Jesus e dos apóstolos, partes
seguras da Sagrada Escritura do povo judeu, como demonstram
numerosas referências à Lei e aos Profetas no Novo Testamento
(Mateus 7.12).

Também os restantes livros do Antigo Testamento, reunidos


sob o título Escritos, já eram tidos em alta consideração, sobretudo,
naturalmente, os Salmos e Jó, bem como Daniel. Contudo, a
delimitação exata dessa parte da Bíblia ainda estava em aberto, o
que é também provado pelas descobertas das grutas de Qumran. De
fato, até hoje, a extensão do Antigo Testamento não é totalmente
unívoca. As antigas comunidades cristãs, que utilizavam quase que
exclusivamente a tradução grega do Antigo Testamento, a assim
chamada Septuaginta, se apegaram à seleção aí encontrada, a qual
continha também os livros do Eclesiástico, dos Macabeus, de Judite
e de Tobias, bem como os acréscimos aos livros de Ester e Daniel,
cuja aceitação, em particular ainda não estava bem fixada (p. 41).

Contudo, os judeus de fala aramaica da palestina limitaram,


depois da destruição de Jerusalém, o seu cânon aos livros
transmitidos em hebraico, excluíram os escritos excedentes da
Septuaginta, bem como outros altamente valorizados livros

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 76
apocalípticos, mas mantiveram os livros igualmente contestados de
Cântico dos Cânticos e Ester. Enquanto a Igreja Ortodoxa Grega e
a Igreja Católica Romana conservaram o cânon amplo da tradição
grega, respectivamente latina, os reformadores consideraram o
cânon hebraico como original. Lutero, em sua tradução da Bíblia,
colocou os restantes escritos como apócrifos entre o Antigo e o
Novo Testamento. Atualmente também se fala de escritos
deuterocanônicos ou tardios do Antigo Testamento.

A ORIGEM DO NOVO TESTAMENTO

Quando Jesus e a comunidade primitiva se referem às Sagradas


Escrituras, tinham em mente o Antigo Testamento; os seus escritos
foram a Bíblia do cristianismo primitivo. Neles se encontravam
preditos a vida de Jesus e o seu significado. Quanto ao resto, havia
a certeza de que o Espírito de Jesus mostraria o caminho reto à sua
comunidade.

Os apóstolos deveriam, como testemunhas da ressurreição e


com o anúncio do Evangelho, prover o surgimento de homens de
confiança para a continuidade e a conservação fiel do Evangelho de
Jesus Cristo. Entretanto, não deixaram de aparecer diferenças de
opiniões, e Paulo se viu obrigado a cuidar da pureza da mensagem
através de cartas, que de certa forma deveriam substituir a sua
presença apostólica. Inicialmente, não se pensou na possibilidade
de que essas cartas se tornariam parte dos escritos do Novo
Testamento; isso não parecia necessário e carecia de sentido (1
Coríntios 3.3-6).

As coisas mudaram depois da morte dos apóstolos e de seus


discípulos. O que deveria, ao lado dos escritos do Antigo
Testamento, constituir o fundamento e o critério para a pregação
cristã? Como resposta a essa questão surgiu, num processo que
durou uns duzentos e cinquenta anos, o cânon do Novo Testamento.
Tal processo se desenvolveu em três etapas, claramente
reconhecíveis: (1) Até a metade do segundo século d.C., ao lado do
Antigo Testamento, as palavras do Senhor gozam da máxima
autoridade ; são palavras que se encontram nos Evangelhos, mas
que ainda são citadas livremente, e não conforme o teor literal de
algum escrito evangélico. Acompanhava a autoridade dos

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 77
apóstolos, a qual é formulada, de fato, sempre com palavras de
Paulo. É certo que suas cartas desde cedo são colecionadas e lidas
(1 Pedro 3.15) e se tornam o próprio conteúdo da autoridade
apostólica. (2) Pelo fim do século II, a situação se modificaria
radicalmente, talvez sob a pressão do movimento de Marcião, o
qual rejeitou o Antigo Testamento e o tinha substituído por uma
escrita cristã.

Os escritos do Antigo Testamento são mantidos pela igreja,


mas ao seu lado entra agora uma segunda parte na Bíblia cristã (os
quatro Evangelhos, as quatorze cartas de Paulo, os Atos dos
apóstolos e as duas primeiras cartas de Pedro e João. Assim surgiu
o núcleo do cânon do Novo Testamento, na realidade sem fixação
extrínseca pela hierarquia da igreja, e serviu de base nas
controvérsias com a gnose, que surgia sempre mais ameaçadora.
Sobre se a este cânon pertenciam ainda outros escritos não há
maiores informações, nem discussões.

Algumas discussões teológicas sobre o cânon iriam durar o


próximo século inteiro. Existem escritos, tais como a Carta de
Bernabé, a Doutrina dos Apóstolos, ou o Pastor de Hermas, que
são muito valorizados por grande número de cristãos e que até
mesmo se encontram em antigos manuscritos bíblicos. Mas, no fim
das contas, não são aceitos, não que neles não se tenha a Palavra de
Deus, mas porque não eram contados entre os que continham a
mensagem original e fundamental dos apóstolos. (3) A decisão final
se deu em razão e um pretexto bastante secundário: o bispo de
Alexandria, Atanásio, altamente conceituado em toda a igreja no
ano 367, em sua 39ª epístola pascal, estabeleceu para as
comunidades do Egito o conteúdo fixo do cânon bíblico; para o
Novo Testamento enumerou 27 livros, incluídas a Carta aos
Hebreus e o Apocalipse, e assim lhe deu o atual rol, geralmente
reconhecido. Evidentemente, estava maduro o tempo para tal
decisão, pois, sem quaisquer decisões conciliares especiais foi
seguido por toda a igreja do Império. Só em regiões limítrofes,
como a Síria e a Etiópia, houve uma fixação divergente do cânon
(Klaiber e Marquardt, p. 42).

É difícil supervalorizar a significação e a importância da


coleção dos livros bíblicos para a igreja cristã e a sua fé. Com ela,
a igreja recebeu uma base e um critério para a sua pregação e sua

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 78
ação. Não é à toa que a palavra grega kanon, significando medida,
critério, se tornou um conceito técnico para Bíblia. Visto que esse
fato foi diferentemente valorizado durante a história, queremos
chamar a atenção para três aspectos do processo de fixação do
mesmo.

QUEM CRIOU O CÂNON DA BÍBLIA?

A coleção dos escritos bíblicos se deu no âmbito da


comunidade judaica, respectivamente cristã. Contudo, seria falso
afirmar que a igreja criou o cânon. Em seu conteúdo fundamental,
o cânon nasceu e cresceu na igreja, surgido da lembrança e da
vivência consciente de palavras de Deus, proferidas no passado e
reconhecidas como fundamentais para a própria existência diante
de Deus. Não foi tomada nenhuma definição prévia, com o auxílio
da qual se pusesse à prova o que deveria ser canônico, o que não.
Aconteceu justamente o contrário; antes de mais nada foi
simplesmente reconhecido aquilo que se mostrava como
testemunho normativo para a vida da igreja e, a partir daí, foram
estabelecidos os critérios com quais, nos poucos casos duvidosos,
se podia chegar a uma decisão sobre os limites do cânon. Para o
julgamento da fé nesse processo, cujo lado humano é claramente
reconhecível e descritível, esteve presente a ação do Espírito Santo,
através do qual Deus deu à igreja o fundamento e toda a norma à
futura pregação e doutrina da mesma.

Na medida em que a igreja permitiu que houvesse esse


processo e o levou a bom termo, ela se sujeitou a um importante ato
de prudência, modéstia e autolimitação; reconheceu, consciente ou
inconscientemente, com isso que necessitava de algo que a
confrontasse, pelo qual devia se orientar e pelo qual também
pudesse ser medida e julgada. Naturalmente, o confronto decisivo
da igreja se dá com Jesus Cristo, como seu Senhor exaltado. Mas,
como ele chega à Palavra e fala na vida da igreja, e onde a sua
vontade atual e concreta deve ser ouvida?
Com a criação do cânon e com o reconhecimento de sua
autoridade, fica basicamente estabelecido (embora isso não fosse
reconhecido com toda a clareza, logo desde o início) que não
somente o poder do magistério episcopal, não somente a voz da
profecia contemporânea e nem mesmo a evolução ulterior de uma

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 79
tradição viva são suficientes para fazer valer a Palavra do Senhor
da igreja. São imprescindíveis, antes de mais nada, as palavras,
claramente delimitadas, das promessas do Antigo Testamento e do
testemunho original de Jesus Cristo, para que se verifique de novo
a Palavra viva de Deus.

OS CRITÉRIOS NA FIXAÇÃO DO CÂNON

Para estabelecer a coleção dos escritos bíblicos, a igreja estava


diante de duas tarefas: negativamente, era preciso eliminar do uso
eclesiástico todos os escritos caracterizados por heresias e falsas
doutrinas, por exemplo, os evangelhos gnósticos tardios;
positivamente, era preciso decidir quais livros deveriam pertencer
ao núcleo dos livros que seriam normativos para a Igreja, o que
significava, na prática, os livros que iriam e deveriam ser lidos no
culto da comunidade. Ao lado deles, havia ainda um grande número
de escritos que costumavam ser lidos, úteis para o uso particular,
mas que não eram tidos como apropriados para uso no culto. Por
conseguinte, na fixação do cânon não se tratava de uma rígida
distinção entre Palavra de Deus e palavras dos homens.

Na Igreja Antiga, era universalmente sabido que Deus fala, na


Bíblia, através de homens, e que, posteriormente, também fala nas
palavras de doutores da igreja. O que estava em jogo era a
delimitação da mensagem original, fundadora da igreja, da primeira
cristandade. Para o Novo Testamento, isso levou ao critério da
apostolicidade (origem e autoridade apostólica) de um escrito, o
que não significa que se reconheciam somente livros que foram
pessoalmente redigidos por um apóstolo. Os Evangelhos de Marcos
e de Lucas já se tinham firmado cedo no uso da comunidade cristã,
e mesmo a Carta aos Hebreus eram aceitos como apostólicos, no
sentido de que se representavam um importante aspecto da
mensagem cristã primitiva. Não são os dados históricos de um
escrito bíblico que são, por conseguinte, decisivos para a sua
inclusão no cânon, mas a autenticidade, isto é, a originalidade e a
imediatidade de seu testemunho crístico (Klaiber e Marquardt, p.
44).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 80
A CONSERVAÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO

Um importante impulso externo para a fixação do conteúdo da


Bíblia cristã foi dado no século II, por um cristão de nome Marcião,
que rejeitava o Antigo Testamento, porque afirmava encontrar nele
um Deus diferente daquele que vem ao nosso encontro como Pai de
Jesus Cristo. Depois de pesadas lutas internas, a igreja conseguiu
manter o Antigo Testamento.

Contudo, foi importante que a igreja tenha tomado essa


decisão. A conservação do Antigo Testamento significa que ela se
atém a Deus como Criador e não se aliena do mundo, mas busca
viver nele de forma responsável, pois ele é obra de Deus. Significa,
além disso, que ela se conserva fiel ao Deus da história, o qual não
deve ser adorado como uma ideia transcendente, mas que se deve
ter em consideração a sua ação na história. Com isso, se admite
também a atuação de Deus em Israel e é preciso admitir como um
fato a relação especial de Deus para com o povo eleito, por mais
dramática e trágica que se tenha tornado a história dessa relação.
Enquanto se mantinha firmemente o Antigo Testamento, se
preservavam também determinados traços básicos da mensagem
neotestamentária, tais como o tema do julgamento, do perigo de
serem negados, ou eliminados por uma interpretação unilateral
(Klaiber e Marquardt, p. 45).

Naturalmente, sempre será tarefa muito tensa da exegese cristã


da Bíblia esclarecer o que no Antigo Testamento é velho, portanto,
abolido por Jesus Cristo, e o que foi cumprido em Jesus Cristo, e
por isso é permanentemente válido.

A SIGNIFICAÇÃO DA BÍBLIA NA
HISTÓRIA DA IGREJA

A Bíblia e sua interpretação tiveram, desde a fixação do cânon,


uma longa história. Quem quiser determinar a nossa hodierna
relação com esse livro deve também saber alguma coisa sobre essa
história; quem seguir o seu desenrolar descobrirá que a Bíblia

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 81
sempre gozou de grande consideração dentro da igreja; nunca foi
esquecida, embora sua mensagem estivesse sempre em perigo de
ser apropriada e sufocada pela doutrina eclesiástica dominante.
Justamente nesse ponto, a Bíblia exerceu sua função crítica, e dela
partiram os impulsos para reformas e os apelos para a
reconversão da igreja ao seu princípio em Jesus Cristo.

O período até a Reforma

A Igreja Antiga vivia da Bíblia e com a Bíblia. É verdade que


os dogmas da Trindade e das duas naturezas de Cristo
ultrapassaram o teor literal das afirmações bíblicas, pois
pretendiam, com o auxílio de conceitos gregos e do pensamento
latino, descrever a realidade do Deus que é descrito nos
testemunhos bíblicos. A interpretação dos livros bíblicos, na
pregação e em comentários eruditos, foram, por isso, importantes
sinais da vida e da doutrina cristã.

Como princípio, isso vale até mesmo para a Idade Média.


Durante esse período a Bíblia foi copiada, difundida e zelosamente
utilizada. É verdade que se deram alguns desenvolvimentos
problemáticos, que mais e mais impediram a eficácia da mensagem
bíblica. O forte interesse da filosofia, sobretudo de Aristóteles,
acabou por transformar as afirmações bíblicas em material de
construção de sistemas teológicos edificados segundo planos e
tendências muito diferentes daqueles da Bíblia. A sempre crescente
institucionalização da igreja papal levou a que a Escritura fosse
utilizada para justificar a posição de poder na igreja, e não mais para
o julgamento dela própria. A interpretação alegorizante, que
predominava, tornava fácil distorcer o sentido literal das afirmações
bíblicas em qualquer sentido arbitrário (Klaiber e Marquardt, p. 45-
46).

Já que as massas populares não compreendiam o grego e o


latim e a instrução e formação escolar era privilégio de poucos,
diminuiu muito o conhecimento da Bíblia entre o povo. Tornaram-
se imprescindíveis traduções para a língua popular, as quais
certamente foram empreendidas, mas não estimuladas do lado
eclesiástico, antes foram impedidas e, até mesmo, ocasionalmente
proibidas. De fato, quase todos os movimentos reformadores antes
da Reforma, sobretudo as que se originavam entre os leigos,
apelavam para a Bíblia. Lembramos tão somente Francisco de

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 82
Assis, os valdenses, John Wycliff ou John Huss (Klaiber e
Marquardt, p. 46).

A compreensão bíblica da Reforma

Para os autores da reforma, a precedência da Bíblia, sobre


qualquer outra autoridade espiritual, se constitui num dos
fundamentos mais essenciais de sua nova posição teológica.
Entretanto, diferentemente dos diversos movimentos anteriores e
contemporâneos a ela, não se tratava de biblicismo legalista,
exigindo que todas as formas da vida cristã e eclesiástica deviam
ser reformuladas, mesmo no seu aspecto exterior, segundo o
modelo das regras e usos bíblicos. Sobretudo em Lutero, a
mensagem da Bíblia foi mantida em seu autêntico valor, a partir de
seu centro, o Evangelho da justificação somente pela fé. O princípio
formal da teologia dos reformadores sola scriptura foi explicado
pelo princípio fundamental, solo Christo. Unicamente devia ser
valorizado o que estava baseado na Escritura; mas dentre os
numerosos e diversificados testemunhos da Bíblia, se devia escutar
aquilo que leva a Cristo.

A partir daí, pôde Lutero, no prefácio à primeira edição do


Novo Testamento traduzido para o alemão (1522), expressar fortes
dúvidas quanto à apostolicidade de alguns escritos neo-
testamentários (sobretudo da Carta aos Hebreus, das Cartas de
Tiago e de Judas, do Apocalipse de João, todos colocados
propositadamente no fim do cânon), crítica essa que era
fundamentada menos do ponto de vista histórico como teológico.
Em todo o caso, não era sua intenção abalar em suas bases a
autoridade desses escritos. Lutero queria unicamente manter o
equilíbrio correto dentro da Bíblia (Klaiber e Marquardt, p. 47).

A evolução na época pós-reforma

Se, em Lutero, a autoridade da Escritura estava fundamentada


em seu conteúdo, isto é, na mensagem que ela proclamava,
posteriormente os teólogos da ortodoxia luterana e reformada
tentaram assegurá-la também formalmente. Pela doutrina da
inspiração verbal quiseram estabelecer firmemente que cada
palavra, até mesmo cada letra, dos livros bíblicos tinha sido soprada
pelo Espírito de Deus. Como consequência dessa concepção, se
chegou ao ponto de apontar como inspirados, até mesmo, os sinais

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 83
vocálicos hebraicos, embora esses tenham sido acrescentados
somente nos séculos IX e X d.C., isto é, muito tempo após a
conclusão do cânon. Mas, não somente nesses casos extremos, e
que foram muito além do escopo visado, a posição literalista se
revelou como inútil e prejudicial. Pela doutrina da inspiração
baseada a apoiada na palavra isolada, o peso diferente das
diferentes afirmações bíblicas foi nivelado por baixo e assim foi
perdida a dinâmica da mensagem bíblica, descoberta por Lutero. A
Bíblia se tornou uma coleção de verdades isoladas de fé e à força
inseridas dentro de um sistema doutrinário, com o qual a ortodoxia
da Igreja devia ser afirmada. Por mais meritório que possa ter sido
o labor especulativo, nela contido, ele tirava da mensagem da
Escritura o seu caráter de palavra e diálogo vivo, que, a partir de
uma situação bem determinada, é dirigida ao ouvinte leitor (Klaiber
e Marquardt, p. 47).

Deste mesmo ponto, partiu a crítica feita pelo Pietismo, que


partilha com a ortodoxia da confiança na firmeza e verdade da
Bíblia, mas, nela não procura provas apodíticas em favor do próprio
sistema teológico, mas a Palavra viva de Deus, que fala ao coração
do ser humano, o torna seguro de sua fé e pode orientá-lo em sua
vida pessoal. Por isso, as horas de edificação dos pietistas são horas
de estudo comum da Bíblia no qual homens, tocados e movidos pela
mensagem bíblica, se ajudam mutuamente na compreensão da
Bíblia.

Com esse fundo histórico, no início do século XX, se verificou


uma abertura para as exigências da interpretação histórico-crítica
da Bíblia, a qual, entretanto, aqui, diferentemente das igrejas
luteranas e reformada, não levou, em nível oficial-eclesiástico, a
grandes controvérsias, ou, até mesmo, a divisões nas questões da
Escritura, mesmo quando em discussões teológicas, entre
particulares e em comunidades, a exata compreensão da Escritura
chegou a desempenhar um papel crucial e sujeito a grande
conflitos.

O desafio da exegese histórico-crítica

A tarefa de uma interpretação histórico-crítica da Bíblia é filha


da era moderna, mais exatamente, do Iluminismo. O seu ponto, de
partida foi absolutamente positivo: libertar a mensagem original
dos escritos bíblicos da camada dogmática de sistemas doutrinários

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 84
posteriores e assim trazê-la novamente à plena luz. Por conseguinte,
sua crítica não se dirigia contra a Bíblia, mas contra a ortodoxia
que, em sua opinião, se constituía num doutrinarismo que sufocava
a voz da Bíblia. Entretanto, bem cedo os instrumentos da pesquisa
histórica se transformaram em críticas das verdades bíblicas, e em
arma para amplas críticas à fé cristã, como foi no caso dos
estudiosos S. Reimarus e David Friedrich Strauss. Doutrinas
fundamentais das confissões de fé, como a da ressurreição de
Cristo, são postas em dúvida em nome da racionalidade histórica,
ou explicadas por meio de elucubrações aventureiras, racionalistas,
para se tornarem conformes à razão.

De outro lado, numerosos estudiosos, que trabalhavam com


método histórico-crítico, desempenharam um trabalho
extraordinariamente frutuoso na exposição dos livros bíblicos,
investigando os textos com exatidão, sem preconceitos, e com
grande competência linguística e doutrinária. É-lhes devida uma
enorme quantidade de importantes novos conhecimentos sobre a
Bíblia e o seu ambiente histórico.

Naturalmente, esses autores foram frequentemente vítimas de


seus métodos, colocando à margem as formas concretas dos textos
bíblicos, condicionadas pelo tempo, como pouco significativas para
a fé, ou buscam nelas um núcleo atemporal de verdades racionais e
eternas. O abandono dessa tendência foi oportunizado somente pela
assim chamada Teologia Querigmática, cujo principal
representante, para o Antigo Testamento, foi Gerhard von Rad e,
para o Novo Testamento, Rudolf Bultmann. Estes, e seus
discípulos, reconheceram que as narrativas bíblicas queriam ser,
antes de mais nada, testemunhos de fé, e por isso devem ser
explicadas precisamente em seu condicionamento e especificidade
histórica. Isso levou a que esses teólogos, apesar de sua profunda
racionalidade histórica, fossem capazes de ouvir, nas palavras da
Bíblia, a Deus como interlocutor. Isto levou a que a interpretação
histórico-crítica da Bíblia superasse o nível da Teologia liberal
tradicional obtendo amplo acesso ao pensamento eclesiástico
oficial, por exemplo, dentro do metodismo de língua alemã (Klaiber
e Marquardt, p. 50).

A reflexão metodológica, entretanto, continuou o seu caminho.


Atualmente pode-se falar, um pouco simplificadamente, de duas

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 85
formas de interpretação histórico-crítica: (1) O método histórico-
crítico, em sentido estrito, trabalha com as três categorias que o
filósofo e teólogo Ernst Troeltsch designou como normativas para
qualquer trabalho histórico: (a) a crítica, como dúvida metódica:
realmente foi assim como as narrativas descrevem?, (b) a
correlação, como condição fundamental dos eventos históricos:
cada fato está dentro de um contexto natural de causa e efeito,
devendo haver nexo entre eles; e, (c) analogia, como derradeiro
critério para a avaliação dos processos históricos: conhecimentos e
explicações históricas proporcionam juízos de probabilidade sobre
acontecimentos passados sobre a base de sua analogia para com
experiências humanas universais. É fácil de ver que aqui está
pressuposta uma imagem fechada do mundo, em que não há lugar
para intervenções de Deus, ou para acontecimentos sem analogia,
como a ressurreição de Cristo.

Naturalmente, não se exclui que também para aquele que


trabalha com este método, Deus está em ação nos nexos causais
históricos pesquisáveis, e que se possa ver, nas narrativas não
aceitas como históricas, antigas formas de expressão de convicções
de fé permanentemente válidas. (2) O método histórico-crítico em
sentido amplo trabalha igualmente com uma plenitude de métodos
históricos e filosóficos específicos (como: crítica textual, história
das formas, história literária, etc.) sem, entretanto, tomá-los como
um sistema fechado, ou lançar juízos de valor sobre acontecimentos
passados, como um todo. Seu momento crítico se dirige para a
diferença específica das narrativas bíblicas e suas doutrinas, que
estão a serviço de ensinamentos teológicos, nelas contidos. Os
questionamentos críticos, feitos aos fatos narrados, não partem da
pergunta é possível? mas da comparação com textos paralelos
(comparando, por exemplo, a ressurreição da filha de Jairo em
Marcos 5.21-43 e Mateus 9.18-26) (Klaiber e Marquardt, p. 51).

De modo geral, hoje em dia, mais e mais, se reconhece que o


questionamento crítico é imprescindível para a interpretação da
Bíblia, porque ela fala de acontecimentos históricos, mas que, ao
mesmo tempo, qualquer método histórico está ameaçado de
distanciar os textos do ouvinte de hoje, pois são explicados como
meros acontecidos no passado. Por conseguinte, esse método deve
ser completado por recursos que estimulam a relação pessoal entre
a Palavra bíblica e seus atuais leitores e ouvintes. Aqui métodos

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 86
meditativos são de grande auxílio; métodos de exegese concreta,
que promovem a identificação pessoal do leitor com o evento e as
pessoas bíblicas, mas, sobretudo o diálogo intenso com outros sobre
o significado dos textos.

Para todos os métodos destinados à apropriação dos textos


bíblicos, vale o princípio de que eles não devem encobrir nem
apagar a distância entre eles e nós, por meio de tácitos pressupostos
de nossa interpretação. Essa distância permanece válida para que a
Bíblia possa proferir a sua própria Palavra.

MODELOS DE ENTENDIMENTO
BÍBLICO ATUAL

O observador atento à atual discussão sobre o correto


entendimento da Bíblia, pode notar três modelos básicos, que são
opostos entre si:

A compreensão fundamentalista

Este modelo, que parte da seguinte convicção básica: A Bíblia


é a Palavra falada por Deus, e se baseia na inspiração verbal de toda
a Sagrada Escritura e na sua total inerrância, em todas as coisas que
ela expressamente afirma. Apela, com certo direito, à ampla
concordância da doutrina cristã sobre este ponto, até os tempos
modernos. Entretanto, quando, hoje em dia, as afirmações bíblicas
– em acordo total com a cosmovisão superada do mundo antigo,
são aduzidas como claramente concorrentes com os modernos
conhecimentos das ciências naturais adquiridas a partir de fontes
totalmente diversas, então, a exegese bíblica recebe um caráter e
um acento totalmente estranho à finalidade da mesma.

O fundamentalismo, em suas afirmações sobre a Bíblia, não


parte do texto concreto e de sua história, mas da convicção de como
a Palavra de Deus deve ser, na sua essência, e é obrigado, no
trabalho prático com os textos, a relativizar muita coisa e recorrer,
muito mais frequentemente que a interpretação histórico-crítica, a
significados não verbais das afirmações bíblicas, para evitar
contrassensos. Certas linhas de orientação da história salvífica
podem ajudar a coordenar entre si afirmativas teológicas

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 87
divergentes e assim chegar ao necessário trabalho crítico de
discernimento.

O fundamentalismo bem que queria cumprir, com seriedade


respeitável, a vontade de Deus, como é atestada na Bíblia;
entretanto, não está livre – em vista de sua forte identificação com
a situação social norte-americana de tratar seletivamente os
mandamentos bíblicos. Assim, a significação permanente da
doutrina social e sexual da Bíblia é geralmente avaliada de forma
bem diferenciada e com sutis distinções. O fundamentalismo
oferece a seus seguidores uma alta medida de certeza, mas está
ameaçado de perverter o Evangelho num legalismo doutrinário.

O entendimento liberal

Este modelo parte da convicção de que a Bíblia, como qualquer


outro documento religioso, contém afirmações de homens sobre
Deus e seu modo de agir. Na medida em que isso estão relacionados
acontecimentos históricos, estes devem ser avaliados criticamente,
e neste ponto o método histórico-crítico é aplicado em seu sentido
estrito. Apesar dessa posição fundamentalmente cética, o adepto
desse método pode certamente chegar à visão de que dentre todos
os escritos religiosos da humanidade, é a Bíblia que, de forma mais
impressionante e valiosa, manifesta a natureza de Deus. Também o
mandamento do amor como norma básica do comportamento
humano, ele o pode aceitar; entretanto reservará o critério decisivo
à compreensão crítica da situação, para o agir responsável em
concreto e em casos particulares.

Como o anterior, também este modelo é falho pela sua


estreiteza de compreensão. Oferece a seus seguidores muita
liberdade pessoal de decisão, mas não satisfaz as exigências da
Bíblia.

O entendimento querigmático

Esse modelo parte da convicção básica de que Deus falou


através das testemunhas bíblicas e ainda hoje quer falar por meio
das mesmas, e vê sua tarefa principal em trazer à fala esta
mensagem (Kerygma) na interpretação. São aceitas certas
abordagens dos reformadores, sobretudo de Lutero. Esta forma de
entendimento escriturístico toma a sério o conteúdo histórico da

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 88
Bíblia e trabalha com o método histórico-crítico, sobretudo em sua
forma aberta, ampla. Essencial não é a harmonia com as ciências
naturais ou com as particularidades históricas, mas o poder interno
da mensagem que vem de Deus, que criou o mundo e salvou os
homens através de Jesus Cristo. Mandamento básico para o
comportamento do ser humano é o mandamento do amor, a partir
do qual, naturalmente, também os mandamentos específicos da
Bíblia podem receber significado como concreções do amor, sem
serem entendidos como leis. Deste ponto de vista possível,
analogamente ao modo de agir de Lutero, fazer críticas objetivas a
algumas passagens bíblicas, o que, entretanto, nunca leva a um
questionamento dos fundamentos da mesma (Klaiber e Marquardt,
p. 53).

Se, no meio do grande número de opiniões, se busca uma


orientação segura, podem ser propostos os seguintes critérios para
a compreensão escriturística fiel à Bíblia: (1) O propósito dos
escritos bíblicos, de narrar a respeito do agir e do falar de Deus para
a salvação de seu povo e de todo o mundo, deve ser tomado a sério
e constituir o fio condutor da interpretação. (2) A visão humana do
cânon e de seus livros e o condicionamento histórico de suas
informações devem ser tomados em consideração; e, (3) O sentido
dos textos não se esgota em sua mensagem para a situação original;
devem e podem ser relacionados à situação do homem de hoje.

A interpretação querigmática da Bíblia, sem dúvida, se


aproxima muito mais desse ideal de compreensão escriturística fiel
à Bíblia. Isso, entretanto, não significa rejeição radical dos outros
modelos. Mesmo que o modelo fundamentalista corra o risco de
acorrentar o Evangelho num legalismo formalístico, e o liberal de
dissolver a mensagem da Escritura na insignificância de um antigo
documento religioso, também expositores que trabalham com esses
métodos podem compreender e valorizar a mensagem do
Evangelho e anunciá-lo. A mensagem é mais forte que nossos
modelos para entendê-la.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 89
A BÍBLIA: PALAVRA DE DEUS EM PALAVRAS
HUMANAS

Na base das considerações anteriores, será esboçada uma


compreensão da Bíblia que esteja à altura e faça justiça ao seu
testemunho e à sua forma, e que incorpore as contribuições da
Reforma e de nossa herança enquanto Nazarenos, que mantenha em
nosso campo de visão a situação concreta, à qual hoje a Escritura
fala.

A autodemonstração da mensagem bíblica

Para compreender o sentido e a força da mensagem bíblica, são


necessárias a vontade e a atenção de ouvi-la, a abertura mental para
deixar-se interrogar pelas palavras das testemunhas bíblicas. Mas,
não é necessário, como condição prévia, possuir de antemão
determinada compreensão da Bíblia. A convicção de que nas
palavras da Bíblia Deus mesmo nos dirige a palavra não é um
obséquio prévio nosso, mas dom de Deus. Ela surge do poder do
evento que nos encontra nas palavras da Sagrada Escritura, ao falar
da atividade salvadora e julgadora de Deus com seu povo e da obra
salvífica e redentora na vida, morte e ressurreição de Jesus de
Nazaré. Esta disposição é dada graciosamente pela ação do Espírito
Santo, através do qual Deus move os leitores e ouvinte da Palavra
bíblica, no seu íntimo, e lhes faz conhecer e saber que ela, ainda
hoje, tem poder sobre eles.

O falar de Deus na Palavra da Bíblia

Quando o Espírito Santo abre o ouvido e o coração para a sua


Palavra, aquele que é tocado pelo poder da pessoa de Jesus e de sua
mensagem, entende e aceita, nas palavras das testemunhas bíblicas,
a voz de Deus; isto produz de imediato uma relação pessoal muito
íntima entre os textos bíblicos e o ser humano concreto,
independentemente de qualquer teoria sobre a relação entre Palavra
de Deus e palavras de homens nos escritos da Bíblia. Além disso,
esta relação pessoal leva à constatação fundamental que sua origem
não se encontra na capacidade mental do leitor, mas se baseia na
natureza da Bíblia como Palavra de Deus. Assim, torna-se claro que
a tarefa de resumir a relação da Palavra de Deus e dos homens, nos
textos bíblicos, numa fórmula curta e precisa, não é nada fácil. A

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 90
frase a Bíblia é a Palavra de Deus, por exemplo, descreve com
exatidão que a Bíblia inteira quer ser testemunho do agir e do falar
de Deus. Mas encobre o fato de que esse falar é formulado de
modos muito diferentes e que seus testemunhos também abrangem,
mui conscientemente, afirmações humanas, a resposta da fé, bem
como o não da infidelidade; as vozes de queixas, lamentações e
desespero, da mesma forma como o canto de gratidão e louvor.

Por outro lado, a Bíblia contém a Palavra de Deus pode levar


à opinião de que essa palavra nas afirmações bíblicas pode ser
tirada e deduzida por meio de operações críticas, ou, simplesmente,
pela identificação do que é fala literal de Deus em meio às palavras
humanas. Tal visão é por demais estática para o dinamismo da
Palavra de Deus. Mesmo aquilo que nos é apresentado como
Palavra de Deus literal, nós o conhecemos pela boca dos homens.

A BÍBLIA E A REVELAÇÃO

O cristianismo é uma religião revelada e a revelação na


teologia cristã é entendida como a manifestação divina para o
conhecimento humano, como compreende Gerald O’Collins (1991,
p. 72). Mas essa afirmação sozinha não pode resolver questões
importantes sobre a revelação, como por exemplo: como um ser
humano historicamente situado, condicionado por uma cultura e
limitado por uma linguagem pode ter acesso a revelação? Como
essa manifestação divina que vem de um outro que não sou eu, pode
chegar até mim como uma revelação? Como o ser humano finito
sob as condições da existência pode conhecer essa revelação? Para
Ricoeur (2004) esses questionamentos se desdobram em questões
epistemológicas e hermenêuticas (p. 45).

No centro da revelação há uma Escritura, por isso o


cristianismo é conhecido como uma das religiões do livro. Uma
revelação que chega até seus ouvintes (Rahner, p. 87), através de
uma palavra, que mostra, segundo Karl Barth, que Deus é o
primeiro parceiro de uma aliança, cujo propósito é revelar a si
mesmo. Mas nesta palavra, Deus também “revela o ser humano
como filho e servo, como amado por ele e, portanto, como segundo
parceiro da aliança; em síntese: revela o ser humano como ser
humano de Deus” (p. 19). Para Barth a revelação contém essa dupla

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 91
revelação, “a aliança, e, portanto: Deus como Deus do ser humano
e o ser humano como ser humano de Deus, essa história, essa obra
como tal é o enunciado da Palavra de Deus, que a distingue de
qualquer outra palavra” (p. 19-20).

A revelação se encontra na ordem do Sagrado, pois é Deus


quem se revela e não um ídolo que pode ser manipulado e esgotado
pelo conhecimento humano. Entretanto, uma realidade só pode se
tornar significativa para o ser humano se for compreendida e
percebida por ele. Essa percepção, no entanto, sempre acontece na
finitude, na história, condicionada por uma linguagem (Tillich, p.
125).

A importância da revelação

A ideia de revelação sempre teve um lugar central no trabalho


teológico, contudo, nem sempre foi compreendida de forma
uniforme. Existe uma história da revelação da mesma forma que
existe uma história da teologia. Em parte, para responder ao
contexto cultural e intelectual de cada época, os teólogos têm
formulado, de várias formas, a sua compreensão de como a
revelação ocorre. Novas descobertas, juntamente de um
entendimento mais profundo da própria fé, incitaram tentativas no
sentido de providenciar formas mais adequadas de abordagem da
revelação.

Na opinião do teólogo, Emil Brunner, alguns teólogos


entendem a revelação como doutrina, sendo assim, tudo o que se
faz em relação a ela é num sentido formal com propósitos de
instrução. Mas, para Brunner, a revelação não é apenas uma
verdade doutrinal, e sim uma pessoa. A Palavra de Deus é uma
Pessoa, uma existência humana, um homem em quem o próprio
Deus nos encontra” (2004, 31-47) .

Por outro lado, sobre esse assunto, Gerald O‘Collins explica


que durante muito tempo a revelação foi compreendida como uma
manifestação sobrenatural inacessível à razão que deveria ser aceita
por critérios de autoridade (p. 73). Neste sentido a fé cristã se
refugiava numa ortodoxia estéril e a revelação era apresentada pelo
ponto de vista de proposição, o que implicava em verdades
doutrinais aceitas, pois falavam a respeito de Deus. Em outro
momento a teologia, tanto católica quanto protestante, via essa

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 92
autocomunicação divina como uma manifestação da graça que
convidava o ser humano a entrar num relacionamento pessoal com
Deus (p. 74).

Quando buscamos a informação correspondente, encontramos


que Deus se revelou de três maneiras principais: Deus se revelou a
si mesmo na história, uma revelação proveniente do Pai; revelou-se
em Cristo, uma revelação pelo Filho; e revelou-se nas Escrituras,
uma revelação pelo Espírito Santo. A unidade dentro desta trindade
da revelação é a supremacia da revelação em Cristo, porque é para
Ele que assinala a revelação na história, e é dele que dá testemunho
o Espírito nas Escrituras (João 15.26).

A revelação de Deus nas Escrituras

Deus quer falar. Essa é a convicção básica a que nossas


tentativas de falar de Deus levam. Não há dúvida de que a posição
preferencial que a palavra tem no ato da revelação é
particularmente apropriada para descrever revelação como
encontro. Não ficamos no mero evento histórico, ou na
contemplação de uma poderosa epifania, pois Deus, em sua
atividade reveladora se dirige ao ser humano e espera a sua resposta
(= palavra e ação de volta). Sobre a Palavra reveladora de Deus, se
fala, na Bíblia, de maneiras muito diferentes.

O ponto central é a afirmação de que Jesus Cristo é a Palavra


de Deus encarnada. Com isso, não só se retoma o conceito bíblico
de Deus que acontece (Gênesis 1.3; Salmo 33.6; Isaias 55.10) e, por
assim dizer, vem em pessoa, mas também, através do conceito
grego logos, interroga pelo derradeiro fundamento do ser e da
cognoscibilidade de Deus (Klaiber e Marquardt, p. 14).

Um círculo ainda mais amplo do conceito Palavra se abre


quando Paulo, ao lado do ato reconciliador de Deus na morte de
Jesus Cristo na cruz, é inseparavelmente ligado a ele, mas a ser
distinguido do mesmo, coloca a concessão da palavra da
reconciliação a nós (2 Coríntios 5.18), a saber, o poder da palavra
da cruz (1 Coríntios 1.18), o Evangelho, a mensagem de
reconciliação, é o instrumento pelo qual a ação salvadora de Deus
continua a agir, a justiça salvadora de Deus, a qual se tornou, de
uma vez para sempre, manifesta na morte expiadora de Cristo
(Romanos 3.21), se revela na pregação do Evangelho, todos os dias

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 93
de novo, e leva homens à fé que salva (Romanos 1.16). Deus
mesmo se dirige ao ser humano pela mensagem dos apóstolos (2
Coríntios 5.20) e na palavra daqueles que levam adiante esta
mensagem. Por conseguinte, a ação reveladora de Deus se orienta
para diante, aberta a todos os ouvintes futuros!

Para trás, a saber, com vistas à Palavra de Deus no Antigo


Testamento, conforme 2 Coríntios 1.20, vale o fato de que, em
Jesus Cristo, foi falado o sim a todas as promessas de Deus. O fato
de que Deus nos últimos dias falou por seu Filho, não invalida que
ele tenha falado “muitas vezes, e de diferentes maneiras, aos pais
pelos profetas” (Hebreus 1.1), antes o confirma e o cumpre na sua
validade. Seja como for, nos casos particulares, que isso tenha sido
exegeticamente aplicado, permanece basicamente válido, para a
comunidade cristã, quanto ao Antigo Testamento, o que diz o
salmista: “A Palavra do Senhor é verdadeira, e o que ele afirma,
isso ele mantém” (Salmo 33.4).

Temos a nossa disposição a Palavra do Senhor, seja na sua


versão vétero ou neotestamentária, somente sob a forma da Bíblia
escrita e através dos testemunhos que nos foram transmitidos.

Karl Barth deu ao complexo fenômeno Palavra de Deus,


através de sua caracterização como tripla Palavra de Deus, uma
estruturação conceitualmente muito rica. Ele distingue entre: (1) a
palavra anunciada de Deus, em que Deus, pela pregação e nos
sacramentos, fala ao homem; (2) a palavra escrita de Deus, a
Sagrada Escritura, como memória as revelações acontecidas; e
finalmente, (3) a palavra revelada de Deus, o evento mesmo da
revelação, o qual é descrito da maneira mais radical possível pela
frase: “A Palavra de Deus se tornou carne” (p. 89-128). Nessa
tríplice forma de sua Palavra, Deus nos fala, e é importante
apreender a profunda unidade e a mútua dependência dessas três
formas do falar de Deus: conhecemos a Palavra revelada de Deus
unicamente pela escrita e a Palavra escrita se nos manifestou na
pregação concreta e atual. Inversamente, a Palavra anunciada tira
suas raízes da Escritura e a Palavra escrita recebe sua autoridade da
revelação de Deus que a testemunha (p. 124).

A essas formulações básicas é preciso acrescentar ainda


algumas explicações. (1) Palavra de Deus, em sentido definitivo e

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 94
próprio, é a Palavra eterna e feita carne, que Ele nos falou em Jesus
Cristo e na qual Ele se revelou na profundidade do seu ser, isto é,
no seu inquebrantável amor. Esta Palavra é a base e a causa para
qualquer testemunho humano sobre a Palavra de Deus, à qual o
procede e lhe dá poder. (2) Da Palavra revelada de Deus só sabemos
pelas palavras atestadas na Sagrada Escritura, que são as palavras
das testemunhas vétero-testamentárias, que, oculta ou
explicitamente, apontam, em ousada antecipação e com distância
histórica-salvífica, para a revelação em Jesus Cristo; bem como as
palavras dos apóstolos e pregadores do Novo Testamento, que nos
descrevem a ação de Deus na vida e obra de Jesus, e o manifestam
a nós como o Cristo de Deus (Klaiber e Mardquardt, p. 16).

Tal pressuposto nos leva a afirmar que a Sagrada Escritura do


Antigo e Novo Testamento é o testemunho fundamental de profetas
e apóstolos sobre a revelação salvadora de Deus em Jesus Cristo,
que o Espírito Santo ensina a entender como Palavra de Deus e
como diretiva de fé e vida. Por tanto, para a relação entre revelação
e Bíblia valem os seguintes princípios: (1) a revelação de Deus
precede a Sagrada Escritura; a Escritura é testemunho da revelação
acontecida. A revelação acontecida é narrada na Bíblia, atestada,
guardada e transmitida, pois ela quer tornar-se novamente
revelação. (2) O traço característico da revelação é ser revelação da
salvação. Por conseguinte, não é qualquer coisa. E como revelação
de Deus, ela quer simplesmente levar-nos ao conhecimento de Deus
e de nós mesmos, bem como da relação de tudo e de todos com
Deus. (3) Revelação e Sagrada Escritura não são idênticas, mas
também não podem ser separadas uma da outra. Quem quer fazer
afirmações verdadeiras sobre Deus, sem cotejá-las com o
testemunho da Bíblia, corre o risco de cair vítima de graves
enganos. E quem quer compreender a Bíblia deve abrir-se e
procurar nela ouvir a Deus falando. Os Escritos Sagrados, com
documentos da revelação acontecida, dão testemunho do agir de
Deus, sobretudo, da derradeira revelação válida, que se deu em
Jesus Cristo. Por isso, tanto Escrituras como revelação devem ser
relacionadas entre si e nesse relacionamento recíproco são fonte e
norma básica da teologia, para ensino e pregação da igreja. A Bíblia
sem a revelação precedente é letra morta (2 Coríntios 3.6), assim
como revelação sem Sagrada Escritura é possivelmente enganadora
(auto-) ilusão; na conexão estreita entre si, elas são cânon, linha
diretriz para a nossa atividade teológica e ministerial. Para a

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 95
revelação de Deus, através das palavras da Sagrada Escritura,
também vale o princípio: ela quer ser recebida com fé. Somente
assim, de palavras de tempos passados, nascem palavras atuais e
válidas para o leitor que vive hoje e para os ouvintes da Palavra. (4)
Também a Palavra anunciada hoje por testemunhas cristãs, é
Palavra de Deus, pela qual Deus se dirige aos homens e neles
produz a fé. Somente porque isto é verdade, temos esperança
fundamentada de que nosso testemunho atinge as pessoas no seu
mais íntimo e que através de fracas palavras humanas, eles se
encontram com o Deus salvador e vivificante (p. 16-17).

A BÍBLIA E A INSPIRAÇÃO

Aproximar-se do conceito de inspiração sempre foi um desafio


para a teologia de todas as épocas. Mesmo tendo consciência da
dificuldade da tarefa, a teologia tem presente o fato da inspiração,
pois é Deus mesmo que se revela, no decorrer do processo histórico,
ao ser humano em linguagens acessíveis a esse homem, enquanto
ouvinte da Palavra. E essa relação que se forma entre Deus e o
homem, fruto da revelação divina, é escrita num processo de
transmissão para que chegue a todos, em todas as épocas.

Para Mendes e Santos (2007), essa origem fontal da Escritura


baseada em Deus e, de alguma forma, mediada pela figura do
hagiógrafo, ou escritor sagrado, comumente é chamada de
inspiração. Claro que ela tem que ser mais bem compreendida por
aqueles que são os destinatários da revelação, ou seja, as pessoas e
as comunidades. Compreender melhor como isso ocorre é de
fundamental importância. A Bíblia é considerada sagrada
exatamente porque as pessoas concebem que ela é Palavra de Deus,
inspirada pelo Espírito Santo e como tal guarda a mensagem de
Deus ao seu povo (p. 537).

O que mais interessa é buscar alguns contornos daquilo que


podemos compreender como sendo a noção básica de inspiração,
evitando-se qualquer hermetismo conceitual. Assim será possível
estabelecer suas conexões com o conceito da revelação e então
vislumbrar os limites e as possibilidades de diálogo entre distintas
compreensões de inspiração.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 96
No geral é aceito o fato de que a Bíblia é inspirada por Deus.
Em 2 Timóteo 3.16-17, há uma afirmação de que toda a Escritura
inspirada por Deus tem utilidade singular para a vida do ser
humano, a fim de que este, recebendo a comunicação de Deus, seja
mais fiel a ele e assim possa ser melhor em sua própria vida. Este
valor prático da Escritura deriva-se do poder que ela tem em si
mesma.

Enquanto a exegese antiga e medieval pensava, com


naturalidade, que todas as verdades de fé e de costume na igreja se
encontravam, no mínimo, de maneira implícita, nas Sagradas
Escrituras, o iluminismo trouxe controvérsias e discussões sobre o
tema da inspiração bíblica. O racionalismo liberal e o humanismo
impulsionaram a busca da verdade, por meio de explicações
pretensamente científicas e racionais, ao abordar o estudo da Bíblia.
Houve mesmo radicais afirmações, no sentido de negar a inspiração
de Deus no conteúdo bíblico, ao dizer que o ser humano pode
encontrar Deus unicamente através de suas capacidades e de
estudos científicos das Escrituras. Houve mesmo uma tendência de
separar o que era considerado Palavra de Deus e o que era palavra
humana, a partir de um processo de desmitologização dos textos
bíblicos, fazendo-se, para isso, um uso ostensivo da ciência
(Mendes e Santos, p. 539).

Afirma-se, no entanto, que “a revelação que a Sagrada


Escritura contém e oferece foi escrita sob a inspiração do Espírito
Santo” (Arenas, 1995, p. 233), assim quer-se buscar uma
elucidação maior do significado dessa inspiração na Bíblia. Para
realizar esse intento, serão abordadas sucintamente pelo menos três
tendências teóricas vigentes sobre o tema (Cuyatti, 2003, p. 14-15).
A primeira concebe a Bíblia como sendo totalmente divina. Afirma
que Deus interveio diretamente no ato da inspiração bíblica. Esta
seria literalmente ditada ao escritor, e seu resultado estaria livre da
contribuição humana. Baseia-se no pressuposto de que uma
intervenção direta e sobrenatural de Deus se encontra em ação,
enquanto o ser humano atua de maneira mecânica com pouca, ou
mesmo sem consciência reflexiva daquilo que está fazendo.

A segunda tendência vê a Bíblia como produto somente da


pessoa humana. A influência do liberalismo radical vê e trata o
texto bíblico como produto exclusivamente humano e sem

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 97
participação da sobrenaturalidade no processo histórico de
confecção da narrativa bíblica. A terceira tendência vê a Bíblia
como resultado da ação divina e humana. A Bíblia ocorre como
resultado de uma sinergia entre as ações divina e humana. Deus
acontece na historicidade humana e é em meio a esse processo que
Ele se manifesta, mesmo com todas as contingências humanas, a
partir do modo humano de compreender a Deus. Logo, concebe o
texto bíblico como produto da simultaneidade entre o divino e o
humano. É uma abordagem conjuntiva e não disjuntiva.

A Bíblia como totalmente divina

Conceber a Bíblia como totalmente divina, ou portadora da


palavra de Deus em estado puro, é algo ainda presente e visível em
alguns ambientes teológicos. É o chamado literalismo ou
fundamentalismo bíblico, o qual parte do pressuposto de que a
Bíblia, por ser a palavra de Deus e inspirada por Ele, é isenta de
todo e qualquer erro e que como tal deve ser lida e interpretada. Não
leva em consideração a história e os métodos de interpretação que
exigem esforços críticos, tanto científicos quanto literários na
interpretação das Sagradas Escrituras.

O fundamentalismo surgiu em ambiência protestante e católica


como uma reação contra a exegese liberal. Grupos de cristãos
conservadores chamaram a si próprios de fundamentalistas, quando
publicaram uma série de textos com edição maior que três milhões
de exemplares chamados “Os fundamentais, um testemunho em
favor da verdade”.

Diante da crítica bíblica desenvolvida por uma teologia


orientada pelo método histórico-crítico, os fundamentalistas
afirmavam que os conteúdos da fé, da maneira como eles os
concebiam, deviam estar protegidos e “imunes à ciência e à
relativização por meio do método histórico-crítico” (Dreher, 2006,
p. 153). Nesse caso, de acordo com Martin Dreher, a visão de
história do Fundamentalismo olha para o tempo em que se vivia de
acordo com a vontade de Deus, mira o futuro escatológico e
apocalíptico e apresenta uma possibilidade de interpretação e
absorção do presente (p. 154). Desse modo, pode-se dizer que para
a tendência fundamentalista de interpretação da Bíblia, existe a
convicção de que a verdadeira interpretação é a exercida pelos

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 98
próprios fundamentalistas, ao passo que as distintas interpretações
estão erradas (Mendes e Santos, p. 541).

Por julgar ter o auxílio do Espírito Santo na confecção e


interpretação das Escrituras, estas simplesmente não erram ao
pronunciar seu juízo sobre qualquer assunto. Para Hans Kung, essa
compreensão de inspiração faz o autor dos livros bíblicos se
converter em uma espécie de estereótipo a-histórico, por meio do
qual o Espírito Santo pode ditar diretamente tudo. Nessa
abordagem, cada palavra, portanto, é perfeição e inerrância do
próprio Deus. Exclui-se o erro e a imperfeição dos autores humanos
(1999, p. 72). Diante disso, Mannucci (1997) vai dizer que a ideia
do ditado é uma fórmula que, com frequência, se converte em
monofisismo bíblico (p. 139).

A Bíblia como totalmente humana

Considerar a Bíblia como algo total e exclusivamente humano


que foi uma das tendências do racionalismo do século XIX, ao
desconsiderar a importância de Deus e do Espírito Santo no enredo
bíblico. Para Mannucci, esse racionalismo radical parece existir
como consequência lógica da tendência anterior, de muitas vezes a
Bíblia ter sido tratada como produto divino em detrimento do
humano (p. 140).

A tendência racionalista de interpretação bíblica tem raízes


anteriores ao século XIX, embora ali encontre seu apogeu. Surge
no século XVII e busca procurar o sentido literário original do
texto, valendo-se dos mecanismos ao alcance da razão e, muitas
vezes, diminuindo ou até ignorando a questão da inspiração na
Escritura. Essa tendência racionalista de interpretação da Bíblia é
como um grande rio por onde navegaram, ao longo da história mais
recente do Ocidente, muitos nomes ilustres e que tem como
característica fundamental afirmar a primazia da razão em
detrimento da fé. Desses podemos destacar o judeu Baruch Spinosa
(Tratado Teológico Político, 1670); o católico Richard Simon
(História Crítica do Antigo Testamento, 1678); Jean Turrettini
(1671-1737, Tratado Sobre o Método de Interpretação da Sagrada
Escritura); Immanuel Kant (1724-1804); Considerado um dos pais
do Método Histórico Crítico é Johan Semler (Instituição de uma
Maneira mais Liberal de Aprendizado da Doutrina Cristã, 1774);
Samuel Reimarus (1694-1768); Gotthold Lessing (A Educação da

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 99
Raça Humana); Wilhelm Friedrich Hegel (1870-1831); Ferdinand
Christian Baur (1792-1860); David Friedrich Strauss (Vida de
Jesus, 1835). No enciclopedismo francês destacam-se Denis
Diderot e Jean D’Alembert (Encyclopédia); JeanJacques Rousseau
(Emílio e Contrato Social); Johan Pestalozzi (Como Gertrudes
Ensina seus Filhos); J. G. Eichhorn (Introdução ao Antigo
Testamento); J. Astruc (Prolegômenos à História de Israel); Julius
Wellhausen (1844-1918); Notáveis são também nomes como
Albrecht Ritschl (1822-1889); Adolf von Harnack (1851-1930) e
Ernst Troeltsch (1865-1923).

Para Caro (1997), são três as características hermenêuticas que


definem a exegese liberal: “Confiança na razão e nos métodos de
análise literária; aceitação do sistema filosófico e científico do
momento (idealismo hegeliano, evolucionismo, positivismo,
historicismo) bastante acriticamente, e inevitável separação de
exegese e teologia” (p. 256). Assim fica evidente que há uma
tendência de não só minimizar a participação do influxo do Espírito
Santo na inspiração dos hagiógrafos, mas até mesmo de considerar
a Escritura como uma literatura religiosa entre outras (Arenas, p.
242), sendo passível de crítica, muitas vezes descomprometida de
qualquer compromisso com a eclesialidade, lugar de onde a
Escritura brotou (Artola, p. 209).

A esse respeito, Mendes e Santos vão dizer que o trabalho


intelectual do exegeta deve contemplar a vida espiritual e, sem esse
fundamento, a própria investigação exegética permanece
incompleta, perdendo de vista sua finalidade principal e limitando-
se a tarefas secundárias. O estudo científico apenas dos aspectos
humanos do texto bíblico pode fazer a pessoa esquecer que a
Palavra de Deus convida cada um a sair de si para viver uma vida
aberta ao amor e à caridade. Nesse sentido, o estudo não deve ficar
unicamente no próprio estudo como mera curiosidade intelectual.

Diante disso, podemos dizer que, a partir do ambiente crítico,


advindo da exegese racionalista liberal, a própria comunidade de fé
é constantemente desafiada a oferecer uma resposta qualificada
também em nível crítico. Essa tensão estimula o pensamento e faz
compreender a necessidade de um estudo mais aprofundado do
próprio cristianismo na história (Levie,1963, p. 37).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 100


A fé não prescinde da razão nem a diminui, mas, antes, a
ilumina. Assim, ela é assumida positivamente e leva o crente a uma
maior comunhão consigo mesmo e com a fonte de sua fé, Deus.

A Bíblia como produto divino e humano

A última tendência que se quer apresentar é aquela que concebe


a conjugação entre o divino e o humano, no processo de formação
das Escrituras. Nisso há um caráter de simultaneidade presente na
Escritura, enquanto produto do humano e do divino como
verdadeiros autores. Essa tendência, a de buscar associar o humano
e o divino, coincide com a posição de muitos teólogos sérios e
comprometidos. Para eles, o carisma da inspiração divina está em
função de algo. Esse algo é a própria encarnação de Deus na pessoa
de Jesus Cristo. Deus encarna-se na vida humana na pessoa de
Jesus, com todas as implicações e discussões advindas desse
mistério da fé cristã e, de maneira análoga, pode-se dizer, que a
Palavra se faz Livro.

Certamente essa simultaneidade presente no ato de dizer que a


Bíblia é, ao mesmo tempo, palavra humana e divina levanta uma
série de questões que se tornam desafio perene para a teologia
cristã. Pode-se questionar sobre o grau de compreensão que existe,
quer do humano, quer do divino, para precipitadamente optar, como
por vezes ocorre, por excluir uma dessas dimensões, conforme
descrito nos modelos anteriores. Nos atentamos, nesse sentido, ao
que diz Brakemeier: A dificuldade de dar resposta simples reside
no que poderíamos chamar de dupla natureza da Bíblia: Ela é um
livro histórico e normativo. Ela é Bíblia e Sagrada Escritura. Ela é
simultaneamente palavra de pessoas humanas e palavra de Deus. Se
a Bíblia nada mais fosse do que uma interessante coleção de textos
religiosos do passado, ela perderia sua normatividade. Iria
submergir na grande quantidade de outros livros sagrados,
produzidos ao longo da história. Isso a reduziria a apenas um
exemplar, embora ilustre, dessa categoria. Se, inversamente, a
Bíblia for um livro especial, em tudo desigual de outra literatura,
passaria a ser um livro miraculoso, ímpar, não permitindo
aproximação com os métodos comuns (2003, p. 15-16).

Brakemeier fala de simultaneidade, de normatividade e aponta


para a discussão que vem sendo tratada aqui: as tendências de optar

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 101


por uma das dimensões, humana ou divina, em detrimento da outra.
Parece que o autor consegue aduzir, com clareza e precisão, o
estatuto da questão em uma verdadeira convergência em relação à
posição de alguns teólogos que nesse assunto devem buscar uma
verdadeira síntese no equilíbrio e moderação.

Para Mendes e Santos, essa abordagem oferece boas luzes a


esse desafio de compreensão. Ao valorizar o estudo das línguas
bíblicas e de outros idiomas orientais, a fim de permitir e favorecer
os esforços humanos de compreensão do texto bíblico, por meios
humanos, como a ciência literária, valoriza, na exegese, a história,
a arqueologia, a filologia e outras disciplinas semelhantes, ao
mesmo tempo que incentiva a busca pelo sentido literal e espiritual
dos textos. É um método que afirma que o hagiógrafo, mesmo
sendo instrumento do Espírito Santo, o é vivo e racionalmente. Que
este escreve, a partir de sua própria situação social, e que, para
compreender o texto, deve-se mesmo estudar a índole do
hagiógrafo. Ninguém que tenha um conceito justo da inspiração
bíblica poderá estranhar que também nos autores sagrados se
encontrem certos modos de expor e contar, certos aspectos próprios
especialmente das línguas semíticas, certas expressões
aproximativas ou hiperbólicas e talvez paradoxais, que servem para
gravar as coisas mais firmemente na memória. Isso significa que,
apesar dos limites da linguagem humana, é exatamente nesta e por
esta que Deus fala. Isso não deve causar estranheza para quem tem
um conceito equilibrado, da inspiração de Deus (p. 550).

O grande fato da revelação divina é que Deus falou aos homens


(Hebreus 1.1-3). Ele não só falou aos homens, mas falou em termos
compreensíveis. A verdade da inspiração é que esta revelação é
preservada e protegida como a própria Palavra de Deus escrita. A
inspiração é a influência sobrenatural exercida sobre os escritores
sagrados pelo Espírito de Deus, em virtude da qual os seus escritos
são a própria Palavra de Deus. Assim, a inspiração divina se estende
aos próprios escritos. Qualquer visão de inspiração, que não se
refira ao verdadeiro texto como inspirado, é tanto inadequada
quanto defeituosa. A inspiração é desta forma tanto verbal (estende-
se às verdadeiras palavras, e, portanto, às nuances de gramática e
sintaxe nas línguas originais) quanto plena (completa ou igual em
todo).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 102


A possibilidade da inspiração

Purkiser encontra na inspiração três fatores que evidenciam sua


possibilidade, no caso de alguém duvidar que um Deus infinito
pudesse encontrar maneiras de dar a conhecer, com exatidão, sua
vontade às mentes humanas: (1) a superintendência, mediante a qual
o Espírito Santo oferece um guia tal que os escritos de certos seres
humanos escolhidos fiquem livres de erro. (2) A elevação, mediante
a qual aquelas mentes escolhidas para receber a revelação seriam
beneficiadas com uma ampliação de sua capacidade de
entendimento e a refinação de suas concepções; e (3) a sugestão,
mediante a qual o escritor recebe diretamente do Espírito Santo a
comunicação de pensamentos e ainda de palavras.

Nas Escrituras teremos a união do divino e do humano. Foram


santos seres humanos de Deus que falaram tal como o Espírito Santo
os inspirava (2 Pedro 1.21; 1 Tessalonicenses 2.13) (p. 76).

Teoria da inspiração parcial

De acordo com esta teoria a Bíblia contém a Palavra de Deus, e


algumas de suas partes podem chegar a converter-se em Palavra de
Deus, e, isto acontece quando o Espírito de Deus fala ao indivíduo
mediante a leitura ou a pregação das Escrituras. Apesar disso, dizer
que a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas que a contém, priva-a
imediatamente de sua autoridade sobre a vida e o pensamento humano.
Quem pode dizer quais partes são a Palavra de Deus, e quais não são?
(p. 81-82).

Teoria da inspiração plenária

Consiste na afirmação de que a Bíblia, em sua totalidade


orgânica, é a Palavra de Deus. A palavra plenária em seu
significado mais simples, significa cheia ou completa. Uma
afirmação inequívoca da inspiração plenária, que ao mesmo tempo
fixa e limita o significado desta doutrina, é a que encontramos no
IV Artigo de Fé da nossa denominação: “Cremos na inspiração
plena das Sagradas Escrituras, pelas quais entendemos os sessenta e
seis livros do Antigo e Novo Testamentos, dados por inspiração
divina, revelando infalivelmente a vontade de Deus com respeito a
nós em tudo o que é necessário para nossa salvação, de maneira que
nenhuma coisa que não os contenha, há de impor-se como artigo de

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 103


fé” (Manual da Igreja do Nazareno, Constituição da Igreja, Artigos
de fé, IV: As Escrituras Sagradas, p. 27).

Evidência escriturística interna da inspiração

“Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para


ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para
que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para
toda boa obra” (2 Timóteo 3.16-17).

Visto que no tempo em que isto foi escrito, ainda não houve
nenhum Novo Testamento, devemos concluir que o autor fez esta
declaração sobre o Antigo Testamento, aparentemente a
Septuaginta que era a versão da Bíblia usada pela igreja primitiva
helenística onde Paulo e Timóteo trabalharam. É interessante notar
que a Septuaginta contém os chamados livros Apócrifos, mas, visto
que o autor desta carta não está falando aqui sobre os limites do
cânon (o conceito que ainda não foi discutido na igreja), talvez seja
melhor não concluir necessariamente que ele teria aceito os livros
apócrifos como possuindo a mesma autoridade dos outros, isto é,
os livros incluídos na Bíblia Hebraica dos judeus.

De qualquer forma, o termo que nos interessa agora é


θεόπνευστος (theópneustos), que é traduzido acima com
divinamente inspirado. Este vocábulo, que aparece somente aqui no
Novo Testamento, vem da combinação de θεός (Deus) com πνέω
(soprar). Ele é um adjetivo verbal e, consequentemente, pode ter
um sentido ativo (soprando ou respirando Deus) ou um sentido
passivo (inspirado por Deus). O contexto não esclarece seu sentido
exato, mas, mesmo assim, é costumeiro dizer que é passivo
(inspirado por Deus). Contudo, mesmo tendo essas duas
possibilidades de interpretação, o que o autor está querendo dizer
com esta metáfora que fala sobre Deus soprando num escrito. Nesse
sentido, é inegável que o autor tenha a convicção de que Deus foi
intimamente envolvido na redação dos livros do Antigo
Testamento, sua Bíblia. Esta é, sem dúvida, uma convicção muito
significante, mas é importante notar que ela não é uma teoria sobre
a inspiração, isto é, não é uma explicação racional que visa mostrar
explicitamente como Deus teria sido envolvido na redação das
escrituras. Tais explicações só vêm séculos depois.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 104


A BÍBLIA E A SALVAÇÃO

“A Bíblia contém tudo que necessitamos saber acerca da


salvação” (Connor, 1989, p. 15). Nada que não se encontra na
Bíblia pode-se requerer para que uma pessoa seja salva. A Palavra
de Deus afirma que, se confessamos com nossa boca que Jesus é o
Senhor e crermos em nosso coração que Deus o levantou dos
mortos, seremos salvos (Romanos 10.9). Para ser salvo não há outros
requisitos para a salvação além de crer em Jesus (Atos 4.12; João
11.25-26).

O Antigo e o Novo Testamento

O Antigo Testamento é a primeira parte geral da Bíblia que se


complementa com a segunda chamada Novo Testamento. No Antigo
Testamento encontramos alguns aspectos importantes que devem
ser considerados: (1) Os ritos da Lei do Antigo Testamento, que não
têm que ser cumpridos pelos cristãos de hoje; e, (2) Os mandatos
morais desse Testamento que requerem obediência cristã.

Quando dizemos que os cristãos não têm que observar os ritos,


nos referimos à lei do Antigo Testamento. Hebreus 10.1 nos fala da
Lei. Os sacrifícios eram parte dos ritos, mas o autor do livro aos
Hebreus diz que eles eram somente uma sombra dos bens vindouros.
A lei, que é somente uma sombra, encontra-se no Antigo Testamento
e se relaciona especialmente ao tabernáculo e aos ritos do pacto de
Moisés (Hebreus 8.4b-6). Esses ritos eram parte da lei e já não se
requer dos cristãos. Cristo cumpriu os ritos da lei, quando ele veio
como nosso Salvador e morreu como nosso sacrifício pelo pecado
(Colossenses 2.17).

Quando Jesus Cristo morreu na cruz, cumpriu uma vez por


todas e para sempre os ritos da lei do Antigo Testamento,
(Colossenses 2.14, Romanos 10.4). Quando Jesus cumpriu tais ritos
o fez perfeitamente. Hebreus 10.3 declara que tinham que oferecer
os sacrifícios cada ano, porque tais ritos não eram perfeitos. Cristo
foi o sacrifício perfeito (Hebreus 10.12, 14 e 18). Além disso, Jesus
Cristo foi o sacerdote perfeito. O Senhor foi o sacerdote e o sacrifício
perfeito e o único meio completo de perdão de pecados. Os
requisitos de Levíticos 1.2-9 não se exigem dos cristãos, porque são
parte da Bíblia cumprida em Cristo. Por outro lado, existem pessoas

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 105


que pensam que, pelo fato de os ritos da lei do Antigo Testamento
não serem requeridos dos cristãos, nenhuma parte desse
Testamento tem a ver com a vida deles. Entretanto, os
mandamentos morais do Antigo Testamento continuam vigentes
para a igreja de Cristo e devem ser obedecidos (Connor, p. 26-27).

Os mandamentos morais

A palavra moral significa o maior bem ou o bem essencial.


Muitos dos mandamentos do Antigo Testamento são morais, não
simplesmente rituais, e portanto, devem ser vividos. O cristão
verdadeiro deve guardar todos os mandamentos morais da Bíblia. O
Novo Testamento repete e reforça tais mandamentos. Jesus em
Mateus 5.27-28 reforça o mandamento moral de Êxodo 20.14.
Paulo, em Efésios 4.28 reforça o mandamento moral de Êxodo
20.15. Os mandatos como não furtarás, não cometerás adultério,
não mentirás, não cobiçaras, não terás outros deuses diante de mim,
e honrarás o teu pai e a tua mãe são mandatos morais que requerem
obediência cristã em todo tempo, mesmo que estejam escritos nas
páginas do Antigo Testamento.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 106


UNIDADE III
O que cremos acerca de Deus e da Trindade
A NATUREZA E OS ATRIBUTOS DE DEUS

Segundo a nossa definição de teologia, a globalidade da


disciplina diz respeito à doutrina de Deus. No entanto, essa doutrina
tem, mesmo assim, que ser tratada de forma cuidadosa. Já
discutimos as várias facetas da teologia, nesse sentido particular,
ligada à análise do nosso conhecimento de Deus, mas existem
muitas outras verdades habitualmente agrupadas sob a rubrica da
doutrina do Pai, ou de Deus, o Soberano.

A importância central da doutrina

A. S. Whale conta bem a conhecida história do jovem pároco


que ligou a William Stubbs, o bispo de Oxford, para lhe pedir
conselhos sobre a pregação. O grande homem ficou silencioso por
um momento e depois respondeu: “Pregue sobre Deus, e pregue
cerca de 20 minutos”. Essa afirmação identifica corretamente não
só a substância da mensagem cristã, mas também o princípio central
da doutrina cristã. A forma tradicional de destacar esse aspecto é
afirmar que a doutrina de Deus é a primeira na ordo essendi das
doutrinas. Todas as outras verdades estão, em última análise,
fundadas em um correto entendimento do Ser Divino. Como H. F.
Rall afirma: “Deus não é uma das nossas crenças religiosas, Ele é a
crença. Ele não é uma doutrina, Ele é o centro de toda a doutrina”
(Dunning, p. 179).

Todas as heresias, antigas ou modernas, derivam de um


entendimento deficiente de Deus. Cada uma das heresias resulta de
uma perspectiva não bíblica da natureza divina. Apesar de sua
importância, nenhuma outra doutrina experimentou, durante as
últimas décadas, mais dificuldades nas mãos dos teólogos e
filósofos. O desenvolvimento da teologia, da filosofia e da cultura
tornaram a crença em Deus problemática para muitos. A
tempestuosa controvérsia que surgiu com a publicação de Honesto
para Deus do Bispo John A. T. Robinson, em 1963, foi sintomática
desses desenvolvimentos, os quais podem ser resumidos como
secularismo. A expressão mais extrema foi a chamada teologia da
Morte de Deus, de onde surgiram várias tentativas para formular
um cristianismo ateu. É interessante que muito desse fenômeno
resultou do trabalho do Karl Barth, cuja ênfase na transcendência
radical pareceu lançar os fundamentos para a negação de Deus (p.
180).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 108


Wiley sublinha que é impossível definir Deus uma vez que ao
fazê-lo Lhe colocamos limites (p. 217). Esse princípio apropria-se,
de forma adequada, da prática real do pensamento bíblico, como
aparentemente acontece no Antigo Testamento, uma vez que este
não faz qualquer esforço em dar uma definição abstrata e formal de
Deus. A abordagem mais próxima de uma definição encontra-se nas
palavras: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito,
da casa da servidão” (Êxodo 20.2). Em outras palavras, o Deus de
Israel é identificado como o Agente e, um evento histórico que
informa a existência e o destino de Israel.

Otto J. Baab (1949) concorda ao enfatizar um aspecto


diferente. “Talvez a palavra mais típica para identificar o Deus do
Antigo Testamento seja a palavra vivo... isso significa o Deus que
age na história, que efetua atos poderosos de libertação e que
manifesta o seu poder entre os homens” (p. 24-25). Essa verdade é
apresentada de forma incisiva em Jeremias 10.10 em que o contexto
desenvolve um contraste entre o Deus vivo que fala e age e os ídolos
que não fazem nenhuma dessas coisas. O termo é usado pelo menos
60 vezes em afirmações formais ligado ao nome pessoal do Deus
dos Hebreus (Yahweh). Portanto, Deus no Antigo Testamento não
é simplesmente uma ideia, mas uma realidade experimentada
agindo na e através da vida humana. Deus não está confinado e não
pode ser restringido a uma definição verbal ou a um conceito
abstrato, mas é o Deus vivo que liberta Israel.

Além de vivo como designação bíblica, a santidade está


também ligada ao Deus do Antigo Testamento. A palavra hebraica
qodesh, traduzida como santidade, é derivada de uma palavra cuja
raiz significa à parte ou independência. É a santidade que transmite
a ideia de transcendência, já a palavra vivo ou o Deus que age,
implica imanência (Dunning, p. 183). A santidade é a característica
essencial da Deidade que coloca Deus em uma categoria
completamente única e O distingui nitidamente do humano e
naturalista. Isaias 6 dá-nos uma visão do entendimento bíblico
sobre a natureza da santidade de Deus. Ela não tomou a forma de
poder absoluto e paralisante, mas revelou-se nos propósitos
redentores. Ela providenciou um autoconhecimento genuíno
baseado na própria natureza e vontade de Deus. A reação ética e
pessoal de Isaias dificilmente poderia ter ocorrido, se a santidade
envolvida na natureza divina aparecesse, simplesmente, como
poder supernatural e indiferenciado.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 109


Outra ênfase central da teologia do Antigo Testamento é a
unidade de Deus: Há um só Deus. O texto dourado da fé hebraica
afirma: “Ouve, Israel, o senhor, nosso Deus, é o único Senhor”
(Deuteronômio 6.4).

Estas três principais afirmações teológicas, de que Deus está


vivo, é santo e Uno, fornecem a base bíblica para a afirmação de
que o Transcendente (santo) é, ao mesmo tempo, o Imanente (vivo)
porque Ele é Um. Embora haja, assim, elementos paradoxais
injetados na nossa compreensão de Deus, a fé bíblica vive ambos
como essenciais ao seu objeto. É essa convicção que informa a
decisão da Igreja Primitiva ao se opor ao dualismo de Marcião e a
incorporar essa rejeição no Credo Apostólico: “Creio em Deus Pai
Todo-Poderoso, Criador dos céus e da terra”. Agostinho deu
expressão clássica ao movimento paradoxal do nosso entendimento
levantado pela imagem bíblica de Deus quando experienciado na
vida humana: “Tu, meu Deus, és supremo, extremo em bondade,
fortíssimo e todo-poderoso, totalmente misericordioso e justo. Tu
és o mais escondido de nós e, no entanto, o mais presente entre nós,
o mais bonito e, no entanto, o mais forte, sempre paciente e, no
entanto, não te podemos compreender. Tu és imutável e, no entanto,
mudas todas as coisas. Nunca és novo, nunca és velho e, no entanto,
todas as coisas têm vida em Ti. Tu és o poder invisível que traz a
queda do orgulhoso. Estás sempre ativo e, no entanto, sempre
descansando. Tu juntas todas as coisas para Ti mesmo, apesar de
não sofreres necessidade (Confessions 1.4).

Surge então a questão: qual é o caráter ou natureza deste Deus


Uno de quem o Antigo Testamento dá testemunho? Para uma
resposta decididamente cristã a esta questão, voltamo-nos para o
Novo Testamento, onde vemos o caráter de Deus retratado na
pessoa e no ensinamento de Jesus e elaborado nas epístolas.

Aqui aprendemos que a afirmação cristã central acerca deste


Deus é que o seu nome e natureza é amor. O ensino de Jesus sobre
Deus contrasta em maior grau com o Judaísmo do primeiro século
do que com o Antigo Testamento, mas contrasta com ambos ao
colocar a sua ênfase central na natureza de Deus como amor
(Dunning, p. 186). Dale Moody, corretamente declara: “Da mesma
forma que a santidade é o ponto de partida, assim o amor é o ponto
alto do desenrolar bíblico da natureza de Deus” (1981, p. 104).

Muitos acadêmicos concordam que a única característica nova


de Deus, introduzida por Jesus, é a Paternidade de Deus. Mas
TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 110
mesmo esta não é totalmente nova, visto que a ideia aparece no
Antigo Testamento (no livro de Oséias). Contudo, a profundidade
total do seu significado não é trazida à luz. O significado desse
símbolo deve ser retirado do seu uso nos dias de Jesus e não de
implicações contemporâneas, uma vez que estas podem ser bastante
diferentes. No tempo de Jesus o mundo dava predominância aos
homens. O pai, nesses dias, era o poder absoluto no lar. Ele era o
patriarca que dispensava tanto a justiça quanto o amor. Assim,
quando Jesus usou a palavra Pai os seus ouvintes compreendiam
que Ele estava falando de pelo menos dois aspectos da natureza de
Deus: que Deus é igualmente justo e amoroso (Spurrier, 1952, p.
91).

O amor torna-se, assim, no fator unificador que junta em uma


tensão criativa os elementos paradoxais da nossa experiência de
Deus. Todas as afirmações da fé cristã sobre Deus estão agrupadas
ao redor da ideia central do ágape de Deus. A afirmação Joanina é
definitiva: “Deus é amor [ágape]” (1 João 4.8). A base para essa
afirmação é que o caráter de Deus é decisivamente definido por
Jesus e a sua obra (Dunning, p. 186).

SANTIDADE, AMOR E ATRIBUIÇÃO

À luz da afirmação de que a natureza essencial de Deus é o


amor santo, podemos agora abordar a tradicional questão dos
atributos de Deus. Antes de mais nada, essa discussão deve levar
em conta o modo como a santidade de Deus informa a tentativa de
imputar atributos a Deus. Existem três teorias oferecidas pelos
teólogos: (1) a santidade é um atributo entre outros; (2) a santidade
é a soma total de todos os atributos; ou (3) a santidade é o pano de
fundo para todos os atributos. A nossa análise anterior do
significado de santidade rapidamente elimina a primeira dessas
opções. A adoção da segunda esvaziaria a santidade de Deus de
qualquer relevância decisiva. Portanto, a terceira opção é a que
melhor nos ajuda teologicamente. Nesse sentido, é imperativo, ao
interpretar a santidade como pano de fundo dos outros atributos,
reconhecer que a raiz do significado de santidade como
independência é entendida na teologia bíblica como diferenciação
em vez de distanciamento. Assim, a metáfora espacial de
transcendência é transformada em uma categoria religiosa em vez
de, unicamente, metafísica.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 111


É imperativo manter essa relevância religiosa da santidade de
Deus para evitar apagar a distinção entre o humano e o divino
(Dunning, p. 188). Aulén vai dizer que isso “garante que toda
afirmação sobre Deus retenha o seu caráter puramente religioso”
(p. 104), em contraste com um caráter metafísico. “Ao manter-se o
caráter religioso da santidade também se posiciona como a
sentinela contra todas as interpretações eudomonistas e
antropocêntricas de religião” (p. 105). “A santidade de Deus serve
como barreira à redução da teologia à antropologia” (Dunning, p.
189).

À luz disso, torna-se aparente que todos os atributos usados


para Deus terão que ser prefaciados pela qualificação da santidade
de Deus. Foi mencionado anteriormente que o caráter único de
Deus na teologia cristã é o amor. Mas o amor é suscetível de ser
reduzido ao sentimentalismo humano. Portanto, até mesmo a
declaração central da fé cristã sobre Deus deve ser qualificada como
amor santo (Ladd, 1956, p. 445). Com o amor qualificado dessa
forma, podemos agora, a partir dessa perspectiva, virar-nos para a
análise da natureza de Deus e, finalmente observar como o modo
tradicional de atribuição ganha forma quando o conceito teológico
de Deus como amor santo serve de controle, em vez de qualquer
versão de ontologia grega, como tem sido muitas vezes o caso na
história da teologia cristã.

Amor e passividade

A identificação do caráter decisivo de Deus como ágape fala


diretamente à antiga discussão sobre a passividade de Deus. Sob
influência do pensamento grego, os Pais da Igreja retrocederam na
ideia de que Deus pudesse sofrer, e assim, duplicaram uma das mais
antigas heresias cristológicas, o Patripassianismo. Mostrar que uma
interpretação particular levava logicamente à conclusão que Deus
sofreria era o suficiente para a condenar. Esse medo de levar a sério
a ideia de amor com todas as suas implicações foi refletido nos
Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, que definiu Deus
como “sem [...] paixões” (Wiley, p. 218). A esse respeito Geddes
McGregor faz a seguinte colocação: “Amar é sofrer e, portanto,
dizer que o amor é essencial ao Ser de Deus é dizer que, de uma
maneira ou outra, o sofrimento é essencial à sua natureza” (1975,
p. 4).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 112


Amor e vontade

Uma consideração importante para a teologia cristã é a relação


do amor de Deus com a sua vontade. Essa questão não está
desligada da que foi debatida na Idade Média entre os
intelectualistas e os voluntaristas. Em termos humanos, uma
questão válida a considerar é se a motivação primária do
comportamento é a vontade ou o intelecto. Será que agimos de
forma volitiva, baseados nos ditames do conhecimento, ou será que
a vontade é incapaz de escolher o que sabe ser bom, a não ser por
meio de uma cura divina, como Agostinho insiste. Quando a
discussão foi transferida para Deus, a questão passou a ser: será que
uma ação é boa porque Deus quer, ou será que Ele quer porque a
ação é boa? O que vem primeiro, a sua vontade ou a sua natureza?
Os voluntaristas defenderam a primeira, os intelectualistas, a
segunda. Wesley, no entanto, num golpe de mestre, destacou a
futilidade de todo o debate ao dizer: “parece, então, que toda a
dificuldade surge ao considerar a vontade de Deus como distinta de
Deus: de outra forma desaparece. Porque ninguém pode duvidar
que Deus é a causa da lei de Deus. Mas a vontade de Deus é o
próprio Deus. É considerado Deus, seja a sua vontade esta ou
aquela. Consequentemente, dizer que a vontade de Deus, ou que o
próprio Deus, é a causa da lei, é uma e é a mesma coisa” (1961,
2:50).

Ainda assim, a forma tradicional de colocar a questão ajuda a


destacar uma perspectiva teologicamente significativa, quando a
questão do amor de Deus é posta nesses termos. É o amor uma
manifestação da sua natureza ou da sua vontade? Os calvinistas
veem-no como uma expressão da sua vontade; já a teologia
wesleyana, como uma manifestação da sua natureza (Gould, 1959,
p. 71). A posição de que o amor é uma expressão da vontade de
Deus, é compatível com o ensino da predestinação particular.
Podendo afirmar, sem reservas, como sendo literalmente verdade,
declarações como “Amei a Jacó, mas rejeitei a Esaú (Romanos
9.13). Nenhum problema teológico é colocado, porque Deus pode
estender o seu amor livremente ou retirá-lo a quem quiser
(Dunning, p. 192).

Os wesleyanos defendem que o amor de Deus é uma


manifestação da sua natureza e, consequentemente, é universal em
vez de seletivo. Deus estende o seu braço em misericórdia e
reconciliação a todos sem distinção. Ninguém é excluído, porque
isso implicaria a violação da própria natureza de Deus. Deus, sendo
TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 113
quem Ele é, “ama cada um de nós, como se houvesse apenas um de
nós para amar” (Agostinho). É esse aspecto da doutrina de Deus,
que fornece a base teológica para a doutrina da graça preveniente,
que enquanto nazarenos acreditamos, que esse amor é amor santo
e que guarda essa verdade fundamental contra uma perversão que
leve a um universalismo real, em vez de potencial (Dunning, p.
192).

Wiley, ao discutir o caráter unificador de Deus, que permite a


harmonia entre os atributos, afirma: “Se Deus é Pai, o amor santo
deve ser supremo e central. Na verdade, o amor é tão central que os
outros atributos de personalidade podem ser vistos como a energia
do amor em determinadas direções [...]. O amor santo deve ocupar
o lugar central do nosso conhecimento de Deus (p. 324).

CLASSIFICAÇÃO DOS ATRIBUTOS

Em geral, o entendimento bíblico da santidade de Deus


questiona a distinção tradicional entre chamados atributos naturais
e morais de Deus. O Bispo Aulén insiste que, embora, tal distinção
possa servir uma ideia racionalmente construída de Deus
(metafísica racional), esta é, “totalmente inapropriada para um
conceito cristão de Deus” (p. 104). De fato, os ditos atributos
naturais de Deus são também denominados, por alguns, como
metafísicos. A explicação das duas categorias de atributos, dada por
Wesley e Culbertson, serve adequadamente para descrever o
significado das designações, bem como para destacar a sua
imperfeição: “Os atributos naturais são aqueles considerados
essenciais à sua natureza e que não envolvem o exercício da sua
vontade [...]. Os atributos morais são qualidades do seu caráter e
envolvem o exercício da sua vontade [...]. A fraqueza desta
classificação é o fato de que reúne em um grupo os atributos
relativos de Deus em sua relação com a criação e aqueles que se
aplicam a Ele além da sua relação com o mundo” (Wiley, p. 89).

Dito isso, afirmamos que não podemos conhecer Deus como


Ele é, em si mesmo, mas somente como Ele se dá a conhecer.

Portanto, mesmo que a distinção psicológica, entre a sua


natureza e a sua vontade, seja permitida é evidente que falar de
atributos naturais, na forma acima descrita, é logicamente
contraditório. Ao não permitir tal distinção de funções psicológicas

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 114


dentro de Deus, a base para a distinção desaparece. Faz-se
necessário, então, que interpretemos os chamados atributos naturais
em termos da natureza de Deus, como amor santo.

Soberania e amor

Os atributos naturais são, geralmente, entendidos como


expressões da soberania de Deus e introduzem a questão do poder
de Deus. Se a natureza de Deus é revelada como amor, há uma
tensão que se cria de imediato. A história do pensamento cristão
registra numerosas tentativas de resolver o problema de forma
racional, com um polo a anular outro, normalmente. A teologia
nominalista de Scotus e Occam, que tornaram a vontade de Deus
indefinível, caprichosa e déspota, obscurece o amor a favor do
poder. Marcião, ao rejeitar o Deus Criador do Antigo Testamento
em favor do Deus de amor do Novo Testamento, dissolveu a tensão
de forma igualmente insatisfatória. O problema é intensificado
quando visto em termos do problema do mal. Desde o tempo de
Epicureu que os polos do amor e do poder têm sido apresentados
como as antenas de um dilema com o qual a fé luta. As várias
propostas de um Deus finito desistem da reivindicação do poder, no
sentido de reterem o caráter do amor de Deus.

Uma doutrina da criação que evita o idealismo absoluto e


afirma a realidade do ser criado, inevitavelmente, levanta
problemas à ideia da soberania absoluta. Nels F. S. Ferré 91979)
coloca o dilema da seguinte forma: “Se Deus é poder e se há algum
poder além dEle, Ele não pode ser todo-poderoso. Se, pelo
contrário, não há poder algum além dEle, não temos qualquer
realidade na história ou na natureza; e a teologia cristã é uma
ilusão” (p. 99). Muitos teólogos contemporâneos procuraram
resolver essas questões ao identificarem a soberania de Deus com a
soberania do amor. Karl Barth escreve: Este poder, Deus, é o poder
do seu livre amor em Jesus Cristo, ativado e revelado nEle [...]. O
poder de Deus não é um poder incaracterizado; e, portanto, todas as
questões infantis, de se Deus pode fazer com que dois mais dois
sejam cinco e outras semelhanças, não têm sentido, porque atrás
dessas questões está um conceito abstrato de capacidade” (p. 49).
Barth chama, ainda, a atenção para o fato de o Credo Apostólico
juntar os termos Pai e Todo-Poderoso, um definindo o outro,
qualificando, assim, o conceito de poder com o caráter da
paternidade, com todas as suas implicações.
Gustav Aulén afirma o mesmo compromisso face às tentativas
de separar o poder e o amor. Em contradição com tal divisão, diz:
TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 115
“A fé cristã defende que o poder divino nada mais é do que o poder
do amor. O poder de Deus não é um fado (fatalidade ou destino)
obscuro e inerte ou uma vontade caprichosa e indefinível do
exercício do poder, mas é única e exclusivamente o poder do amor”
(p. 123).

Asseidade

Este termo é derivado do Latim e significa de si mesmo e é


usado para sugerir que Deus é a fonte do seu próprio ser. Não há
realidade além dEle à qual Ele deve a sua existência, mas Ele é o
próprio ser. Quando reinterpretado como asseidade do amor, diz-
nos que o amor de Deus é espontâneo. O que implica que a sua
causa está contida em si mesma e em nada mais. Não é chamado à
existência por causas externas, mas surge por si mesmo. Tornando-
se, assim, uma outra expressão da ideia da graça preveniente de
Deus. O amor de Deus é sempre preveniente. A sua causa não se
encontra fora de Deus, mas no próprio Deus e na sua natureza. Para
a pergunta, por que é que Deus ama? Há somente uma resposta
apropriada: porque essa é a forma de Deus agir e, portanto, é a
forma de ser de Deus. O que exemplifica perfeitamente o
significado do termo ágape utilizado pelos escritores do Novo
Testamento para demonstrarem a natureza de Deus (Dunning, p.
196).

Eternidade

Nas categorias metafísicas, a proposta deste atributo pretendia


transmitir a ideia de intemporalidade em relação ao tempo. Isso
levanta a questão da relação de Deus com o tempo em termos da
pergunta: “Será que o tempo é real para Deus?”. Embora essa
pergunta deva ser abordada em outra ligação (presciência),
podemos, simplesmente, observar aqui que a imagem bíblica de
Deus parece, muito claramente, sugerir que o tempo é,
verdadeiramente real para Deus. Vindo, assim, aliviar o dilema
levantado por tais interpretações metafísicas, ao afirmarmos que a
eternidade é a soberania do amor de Deus em relação ao tempo. Ou
seja, “o amor de Deus não é transitório nem mutável como todo o
resto que pertence ao tempo” (Aulén, p. 127).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 116


Onipotência

Talvez seja este o atributo mais abrangente dos chamados


atributos metafísicos e aquele que parece ser o mais religioso para
atribuir a Deus. Mas uma reflexão apurada revela que, aplicar esta
ideia sem qualificação, pode conduzir a questões ridículas e
insignificantes tais como. Em resume, o atributo da onipotência
levanta a questão das possibilidades de Deus. As Escrituras
afirmam, por exemplo, que é “impossível para Deus mentir”
(Hebreus 6.18; Tito 1.2; 2 Timóteo 2.13). Por qué? Porque isso
seria contrário a sua fidelidade. Se a natureza essencial de Deus é o
amor, então, a questão das possibilidades de Deus é uma questão
das possibilidades do amor divino. Deus faz e não quer mais
daquilo em que o amor divino se realiza. Deus pode fazer qualquer
coisa que o amor pode fazer (Dunning, p. 196).

Onipresença

Esta sub-qualidade da onipotência conduz a dilemas


surpreendentes quando interpretada de forma metafisica. Se Deus
está igualmente presente em toda a parte, então, Ele está tão
presente no coração do pecador quanto no do santo. Ou as orações
que invocam a presença de Deus são um conjunto de palavras sem
sentido. Mas se a onipresença de Deus for entendida do ponto de
vista da soberania do amor divino, essas anomalias desaparecem.
Não é a questão se Deus enche todos os espaços. Significa que não
há nenhum lugar fechado ao poder soberano de Deus como amor
santo.

Onisciência

Muitos problemas emergem com este outro aspecto da


onipotência, ou seja, a afirmação da onipotência de Deus na esfera
do conhecimento. Mas, do ponto de vista do que estamos
explorando, resulta em algo totalmente diferente da ideia abstrata
da sua presciência. Em vez disso, expressa a infalível certeza do
juízo de Deus. Ele é a visão absoluta do amor que vê tudo de forma
cristalina. Qualquer tentativa de esconder algo deste olhar que tudo
vê está condenada ao fracasso.

Imutabilidade

Esta é uma característica tradicionalmente atribuída a Deus


tanto pela piedade popular quanto pela teologia clássica. O suporte

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 117


bíblico para esta qualidade, no entanto, dá-nos uma imagem
ambígua. Há um forte movimento na direção positiva, por exemplo:
"Porque eu, o Senhor, não mudo” (Malaquias 3.6). Mas existem
tendências de estabilização em outra direção. Frequentemente,
Deus é retratado como tendo mudado de ideia, em resposta ao
arrependimento humano ou outro comportamento, ou seja, como
dinâmico em caráter. Identificar a natureza essencial de Deus como
amor santo proporciona-nos uma forma de sustentar ambas as
ênfases bíblicas. O amor de Deus, a sua intenção para o bem, nunca
mudam apesar da sua reação ser uma interação com a liberdade
humana. Uma forma, talvez mais satisfatória, de descrever este
atributo é em termos de fidelidade, a fidelidade do amor a
promessas feitas (Dunning, p. 197).

Deus como pessoal

Poucas características atribuídas a Deus têm sido mais


vigorosamente discutidas do que esta. Muito do debate centra-se no
significado contemporâneo do termo e, se Deus pode ou não ser,
apropriadamente, chamado de pessoa. Essa linguagem, aplicada a
Deus, surgiu muito tarde na história da teologia cristã. Foi desde
cedo usada para as pessoas da Trindade, mas não para o próprio
Deus. A ideia parece estar presente primeiro na doutrina trinitária
de Agostinho. A objeção principal ao seu uso por parte de muitos
teólogos, é que implica, no uso moderno, uma limitação que não
parece ser adequada a impor a Deus como Derradeira Realidade.
Portanto, parece mais saudável referimo-nos a Deus como pessoal,
ou seja, capaz de relações pessoais que envolvem a vontade e a
liberdade. A imagem bíblica de Deus certamente apoia esse caráter.

Além disso, se a natureza de Deus é amor, então, é da própria


natureza do amor estabelecer relações pessoais. Paul Tillich fornece
um forte argumento ontológico à retenção do símbolo pessoal para
nos referirmos a Deus. Se Deus é a Fonte do ser, então, certamente,
Ele tem que ser a Fonte do pessoal e não pode ser menos que
pessoal em si mesmo. Ele é o poder ontológico da personalidade
(p. 244).

H. H. Farmer argumenta, a favor da natureza pessoal de Deus,


a partir das evidências bíblicas: “Cada categoria, frase, doutrina ou
movimento de pensamento (do Novo Testamento), pressupõe e
implica a possibilidade [...] de um relacionamento pessoal com um
Deus pessoal. “Deus é amor e aquele que permanece em amor
permanece em Deus e Deus nele". "Se Deus nos amou de tal forma,
TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 118
devemos também amarmos uns aos outros". Essas afirmações não
têm qualquer significado sério, se Deus não for visto de forma
pessoal, estabelecendo com os homens, em última análise, uma
ordem de relações pessoais" (1963, p. 9).

A dimensão pessoal da natureza de Deus é fundamental a um


entendimento adequado de muitas outras doutrinas teológicas. Se
Deus for visto de forma impessoal, como é o caso de muitas das
construções filosóficas (por exemplo, Aristóteles, neoplatonismo),
torna-se impossível formular, satisfatoriamente, muitos dos
compromissos cristãos nas categorias resultantes (Dunning, p.
198).

ATRIBUTOS BÍBLICOS

Escolhemos falar de atributos bíblicos, em vez de atributos


morais, para assim enfatizar a natureza da revelação bíblica. Deus
é apresentado na revelação em relação ao ser humano, mais do que
como Ele é, em si mesmo, ou em termos de qualquer metafísica
racionalista. Para Dunning, é esse tipo de atribuição que os
dogmáticos têm tradicionalmente denominado de moral. Incluímos
aqui as qualidades retidão, misericórdia e verdade. O aspecto
fascinante aqui é que os atos de Deus na história definem o
significado desses atributos e, frequentemente, revelam-se bastante
diferentes da típica conotação grega de termos. Uma singularidade
adicional dessas qualidades é que elas devem ser reproduzidas na
vida do povo de Deus. Essa é a razão pela qual alguns teólogos se
referem a elas como atributos comunicáveis. Na verdade, elas vêm
informar o conteúdo ético da santidade de Deus de maneira a
providenciar uma definição parcial do que significa ser um povo
santo (p. 199).

Verdade

A palavra hebraica emeth, traduzida como verdade, é usada


para descrever o caráter dos atos de Deus. Significa que Deus não
é arbitrário, mas que podemos confiar nEle. A palavra designa algo
que é firme, sólido ou fidedigno. Portanto, Deus é absolutamente
verdade, no sentido de ser digno de confiança. Ele é fiel às suas
promessas. Isso significa que há um elemento ético na verdade em
contraste com a perspectiva dominante grega ou intelectualista.
Aqui, a verdade é a correspondência de uma ideia ou palavra com

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 119


a sua realidade. Para o racionalista, o conhecimento da verdade é,
então, uma atividade mental, enquanto que para o entendimento
bíblico ele envolve obediência e fé. Fé é a resposta adequada à
fidelidade. Para Ladd, o quarto Evangelho faz um uso central desse
conceito e o uso que o autor faz dele “não indica tanto uma
apreensão intelectual da verdade teológica, como uma apreensão
pessoal da presença salvadora de Deus que veio aos homens em
Jesus” (p. 268).

Retidão

Dunning vai afirmar que esse atributo de Deus é a base para


todo apelo consistente das Escrituras, para a retidão entre os
homens. Como caráter de Deus, compreendido a partir dos seus atos
na história, a sua retidão foi, originalmente, manifestada na
libertação da escravidão no Egito. Portanto, o significado primário
e salvífico, efere-sre a disposição de Deus de retificar as coisas e,
portanto, é quase equivalente à justiça. Em particular, Deus
demonstrou essa retidão ao chegar em poder salvífico àqueles que
estavam necessitados e impotentes. O apóstolo Paulo fez uso da
ideia da retidão de Deus para se referir à sua atividade justificativa
para com aqueles que não a merecem, preservando assim, a
essencialidade da ligação salvífica à ideia vinda do Antigo
Testamento.

Misericórdia

No Antigo Testamento, esta palavra é a tradução principal da


palavra chesed, um dos termos mais ricos do vocabulário teológico
hebraico. É traduzido de várias formas, como benignidade,
benevolência ou simplesmente como misericórdia. Essa é uma
palavra de aliança e refere-se à fidelidade para com os
compromissos da aliança. Nesse sentido, está bem perto da ideia de
verdade. A chesed de Deus é vista em contraste com a infidelidade
de Israel. Deus deu a sua palavra e comprometeu-se e não falhou ao
viver em conformidade com a sua palavra. Tudo o que Ele
prometeu cumpriu-se. Pelo contrário, Israel quebrou as suas
promessas e voltou-se para outros amantes. O livro de Oséias é
provavelmente a mais vívida exposição dessas verdades. Ao falar
do paradoxo que surge quando consideramos os atributos do amor
e da onipotência em série, John Macquarrie diz: “O paradoxo
fundamental encontra expressão no símbolo cristão da cruz, onde o
poder e o sofrimento, a exaltação e a humilhação se apresentam
juntos” (1967, p. 127) . H. Orton Wiley uma vez abordou a questão:

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 120


O que aconteceria se todos os atributos de Deus fossem trazidos à
superfície por um momento? A resposta: a cruz de Cristo. E citou o
Salmo 85:10: "A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça
e a paz se beijaram” (Dunning, p. 201).

A TRINDADE

O entendimento cristão de Deus inclui a convicção de que há


uma triplicidade na natureza divina. De fato, tem sido argumentado
que o entendimento cristão de Deus é a sua fé na Trindade
(Pittenger, 1977, p. 97-99). Por um lado, esse compromisso
encontra-se entre rígida crença unitária e o politeísmo, embora a
dificuldade em articular essa doutrina em termos racionais tenha
resultado, com frequência, na queda para uma ou outra dessas
perversões. Mas a posição cristã clássica está firmemente
comprometida com um monoteismo que se manifesta em um modo
de ser trinitário. A questão Trinitária é, em grande parte, uma
questão do desenvolvimento dogmático. Certos elementos no
Antigo Testamento podem ser vistos, em retrospectiva, como
compatíveis com um entendimento trinitário de Deus, mas é
anacrônico falar da Trindade no Antigo Testamento (Purkiser e
Taylor, 1972, p. 3-33). O Novo Testamento providencia os dados,
mas não afirma explicitamente a doutrina da Trindade. No entanto,
as claras afirmações sobre a divindade do Filho, tornam necessário
o desenvolvimento dessa doutrina (Whale, p. 91). Assim, desde
muito cedo, ela tem sido objeto de discussão no universo teológico.

A esse respeito, Wesley sugere três qualificações importantes


sobre esse assunto. Primeiro, recusa-se a insistir com alguém na
adoção de uma explicação específica da doutrina, apesar de
reconhecer que a melhor que conhece é expressa pelo Credo
Atanasiano. As suas reservas são, obviamente, baseadas no
reconhecimento de que estamos tratando de formulações
dogmáticas e não de ensinamento bíblico explícito. Wesley não irá
impor, como absolutamente essencial para a fé cristã, o uso de
termos como Trindade ou Pessoa, uma vez que estes não se
encontram nas Escrituras. Embora não tenha qualquer dificuldade
em utilizá-los, afirma: "Se algum homem tem escrúpulos quanto ao
seu uso, quem o poderá forçar a usa-los? Eu não posso". Essa
posição sugere não que Wesley não teria interesse em discussões
ontológicas, mas que estas deveriam ser sempre reconhecidas como
opiniões que não podem ser santificadas com autoridade divina

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 121


(Dunning, p. 204). Essa atitude reflete uma tomada de posição
sobre as afirmações de fé a qual Paul Tillich chama de Princípio
Protestante (p. 29). Dessa forma, a teologia cristã pode examinar
com mente aberta, qualquer proposta ontológica, não a rejeitando
apenas devido ao meio filosófico em que emergia, mas sem nunca
se comprometer claramente com qualquer delas. No entanto,
alicerça a rejeição de qualquer explicação proposta no fato de não
ser compatível com o testemunho bíblico. Essa foi, na verdade, a
força dos credos mais antigos: o seu poder estava na rejeição de
desvios e não em formulações positivas.

Segundo, e relacionado de perto com o primeiro, Wesley


insiste em um reconhecimento da distinção entre a substância da
doutrina e as explicações filosóficas desta. Em termos de distinção
podemos colocar a primeira ênfase de forma diferente: a fé cristã
está comprometida com a substância, mas não com a explicação da
substância. Um fato importante sobre a natureza da teologia surge
nesse ponto. As ferramentas conceituais do trabalho teológico são
derivadas da filosofia. Quando vamos além da linguagem e das
formulações bíblicas (e, até certo ponto, mesmo quando não se vai),
não temos outra opção senão usar a linguagem da filosofia (p. 10).
Os esforços feitos na busca da exatidão das afirmações levam o
teólogo a escolher a ferramenta mais correta ao seu dispor, mas
reconhecendo sempre que está temporalmente condicionada como,
de certa forma, inadequada para o assunto. Agostinho fala
provavelmente por todos os teólogos reconhecendo a profundidade
da matéria: “Quando se questiona o três, a linguagem humana luta
com uma grande pobreza de vocabulário. Contudo, a resposta é
dada, três pessoas, não para que possa ser (completamente) falada,
mas para que não seja (totalmente) silenciada” (p. 10).

Wesley faz esta distinção de forma diferente ao referir-se ao


fato e ao modo. É o fato que tem sido revelado, não o modo. É no
primeiro que somos chamados a acreditar. Consequentemente, não
nos é pedido que acreditemos no que não compreendemos. Isso,
sem dúvida, reflete a crença de Wesley, compartilhada com seus
contemporâneos do século XVIII, de que a fé e a razão são
totalmente compatíveis. Ele chegou a afirmar que: “A Bíblia apenas
requer que acreditemos em tais fatos, não no seu modo. O mistério
não está no fato, mas no modo".

Poderíamos retorquir que é impossível distinguir entre a


substância e a explicação. Contudo, a terceira ênfase de Wesley
aborda esse assunto e leva-nos ao que poderá ser, talvez, o aspecto
TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 122
mais distintivo de uma abordagem exclusivamente wesleyana. A
substância não é ontológica, mas soteriológica. Uma vez que a
palavra fundamental é demasiadamente ambígua, Wesley hesita em
declarar quais são as verdades fundamentais, mas defende que a
doutrina do Pai, do Filho e do Espírito é uma das que devemos
conhecer, pois tem uma ligação íntima com a religião vital. Afirma,
ainda, que não existe sabedoria em rejeitar o que Deus tem revelado
(o fato), “especialmente quando consideramos aquilo que Deus
aprouve revelar sobre esta cabeça, longe de ser um ponto de
indiferença, é uma verdade da maior importância, que penetra no
próprio coração do cristianismo: ela jaz na raiz de toda a religião
vital” (Dunning, p. 205).

O Manual da Igreja de Nazareno é informado por essa mesma


perspectiva. A Declaração de Fé Convencionada é prefaciada pela
condição de que requeremos somente uma declaração de fé inerente
à experiencia cristã (§20, Manual 2017-2021). O mesmo não é dizer
que acreditar em tais declarações torna alguém cristão, mas antes
que tais verdades devem estar presentes, se a experiência cristã for,
de fato, uma realidade. A primeira de tais afirmações diz: “Cremos
que há um só Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo" (§20.1). Isso
leva-nos de volta às questões ontológicas e salienta o fato de que,
apesar de termos de nos apegar a explicações específicas com
cautela, há dimensões ontológicas neste assunto as quais podemos
e devemos legitimamente dar atenção (Dunning, p. 206). J. S.
Whale sublinha-o da seguinte forma: "Se Jesus é realmente o Verbo
de Deus Encarnado, os problemas da Soteriologia envolvem, em
última análise, os problemas insolúveis da Trindade e da
Encarnação que nenhum teólogo que se preze alguma vez
minimizou ou negligenciou" (p. 91).

Por isso, nas próximas páginas, propomo-nos apresentar as


dimensões principais da discussão Trinitária, tanto histórica como
contemporânea, com a intensão de destacar a substância
soteriológica dessas discussões e conclusões onde aparecem. Não
pretendemos ser exaustivos, devido a limitações de tempo e espaço,
procuraremos que seja representativo. Contudo, um levantamento
dessa natureza não pode deixar de tocar nos aspectos filosóficos e
ontológicos da questão.

A caminho de Nicéia

O período desde o final do Novo Testamento até ao Concilio


de Nicéia, em 325 d.C., pode ser denominado como o período
TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 123
decisivo do desenvolvimento doutrinário da Trindade. A questão
sobre a qual o debate se concentrou foi o relacionamento do Logos
(que se encarnou em Jesus de Nazaré) com Deus. Apesar da
discussão ter implicações cristológicas, era uma questão
fundamentalmente Trinitária. Com a instituição plena da divindade
de Cristo, a questão Trinitária ficou praticamente assente. Num
sínodo convocado por Atanásio, na Alexandria, em 362 d.C., a
igreja Oriental considerou que aquilo que era verdade para o Filho
deveria ser, também, verdade para o Espírito. A
consubstancialidade do Espírito, assim como a do Filho, foi
reconhecida pelo Concílio Ecumênico de Constantinopla em 381
(Dunning, p. 207). Com essas conclusões, a expressão da doutrina
da Trindade ficou completa (Kelly, p. 263)

Foram três os compromissos básicos da Igreja Primitiva que


entraram na discussão. Estes existiam em tensão entre si e, de fato,
pareciam excluir-se mutuamente.

O primeiro era o monoteismo, derivado tanto da fé hebraica


como da filosofia helênica dominante. A doutrina de um Deus, o
Pai e Criador, concebeu o pano de fundo e a premissa indiscutível
da fé da igreja. O segundo compromisso era a fé na divindade de
Cristo, como testemunhada no Novo Testamento. O terceiro era a
experiência de que Deus é Espírito, "imanente em toda a criação
como os hebreus o tinham conhecido, mas, agora, experimentado e
entendido de uma nova forma como o Espírito Santo de Deus e o
Pai do Senhor Jesus Cristo" (Whale, p. 108). No processo de
procurar produzir formulações doutrinárias adequadas e que
fizessem justiça a todos esses compromissos, a Igreja resistiu a três
desvios trinitários básicos: o Sabelianismo (Modalismo), o
Subordinacionismo e o Triteísmo (Fortman, 1972, p. 61). De fato,
foram esses desvios que levaram a igreja a formulações dogmáticas
adequadas. Como Wiley afirma: “Durante os períodos apostólico e
sub-apostólico, a doutrina da Trindade era guardada de forma não
dogmática. Não havia qualquer expressão científica ou técnica
desta, nem sequer havia necessidade disso, até que as heresias
surgiram, exigindo a proteção e a exatidão de tais afirmações” (p.
405).

Triteísmo

Este termo refere-se a uma interpretação que considera o Pai,


o Filho, e o Espírito como três deuses e enfatiza a distinção das
Pessoas de tal forma que obscurece a unidade de Deus. É o

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 124


compromisso com o monoteísmo que impede tal desagregação. Nas
primeiras tentativas de explicar a triplicidade de Deus, foi quase
inevitável que fossem utilizadas formas de expressão que viessem
a ser interpretadas, pelo menos por alguns, como o colapso da
Monarquia. Esse foi o caso do trabalho de Orígenes, em que
procurou justificar a vida tripla de Deus. Escolheu o termo
hypostasis para identificar os Três e utilizou-o com o significado de
subsistência individual ou existência individual. Em uma tentativa
de contrariar o Modalismo, um ensino que não distinguia os Três;
procurou delinear mais claramente as distinções. Portanto, há uma
forte tendência pluralista no seu Trinitarianismo. Os Três, nas suas
analogias, são eterna e realmente distintos; são hipóstases
separadas, ou até mesmo, na sua linguagem mais rude, coisas
(Kelly, p. 129-131).

Não nos surpreende que o Papa Dionísio ficasse incomodado


com o que pensou ser triteísmo e, em uma carta pública, falasse
contra os que pregavam "três deuses diferentes, visto que estavam
dividindo a sagrada unidade em três hipóstases completamente
separadas umas das outras” (Fortman, p. 134). Esse encontro
salienta algumas considerações importantes no desenvolvimento do
entendimento trinitário, a maior das quais, o fato de os teólogos do
Leste colocarem a ênfase na pluralidade divina, enquanto que os do
Ocidente enfatizavam a unidade divina.

Modalismo

Um ensinamento popular e muito disseminado, aparentemente


dominante no Ocidente devido à ênfase colocada na unidade divina,
foi o Monarquianismo Modalista. Essa interpretação negava
qualquer distinção real entre Deus e Cristo. Afirmava que o Pai, o
Filho e o Espírito eram somente modos, ou fases sucessivas do
Deus uno. O homem cujo nome tem sido, tradicionalmente, ligado
a essa perspectiva é Sabélio, que lhe deu uma expressão mais
filosófica, tentando evitar alguma rudeza e ingenuidade do
Modalismo, nos seus primórdios: “Sabélio, dizem-nos, considerou
a divindade como uma Mónade [...] que se expressava em três
intervenções. Usou a analogia do sol, um único objeto que irradia
luz e calor; o Pai seria, nessa analogia, a forma ou essência, e o
Filho e o Espírito os seus modos de autoexpressão. Logo, a única
divindade considerada como Criador e Legislador era o Pai; para a
redenção projetava-se como o raio do sol e depois retirado; em
terceiro lugar, a mesma divindade atuava como Espírito para
inspirar e conferir graça” (Kelly, p. 122).

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 125


Outro desenvolvimento fascinante a partir do Modalismo
surgiu do seu aparente corolário lógico, que seria o Pai que sofre na
Cruz, morre e é enterrado. Embora haja enigmas lógicos que podem
ser imaginados a partir daqui o fator abominável para muitos era a
implicação de um Deus sofredor. E, assim, Cipriano apelidou esse
ensinamento de Patripassianismo. Isso torna evidente a influência
da perspectiva helênica, sobre a Derradeira Realidade, no
Cristianismo primitivo. Hoje em dia, com um entendimento mais
bíblico, muitos teólogos contemporâneos abraçam de bom grado a
heresia do Patripassianismo na sua implicação de que Deus entra
empaticamente na situação humana, não nas suas implicações
ontológicas. (Dunning, p. 209).

Subordinacionismo

De muitas e variadas formas, este foi o mais profundo e


disseminado desvio, de todas as tentativas pré-Nicenas falhadas,
para explicar a relação entre o Pai e o Filho. O auge da sua
expressão, que levou à sua rejeição pelo Concilio de Nicéia (325) e
subsequentemente pelos Concílios de Constantinopla (381) e
Calcedônia (451), foi o Arianismo, mas houve várias formas pré-
arianas que suscitaram reações menos críticas, mas que ainda
assim, foram rejeitadas implicitamente pela declaração de Nicena.
O Monarquianismo Dinâmico (Adocionismo), apesar de não ser o
mais antigo, era uma versão popular do subordinacionismo, embora
não tivesse exercido uma influência significativa no
desenvolvimento doutrinário. É no compromisso monoteista do
cristianismo primitivo que se criam, obviamente, tensões ao
entendimento Trinitário (Kelly, p. 115-116). Deus é entendido
como o Monarca (termo de Tertuliano) que escolhe o homem
comum. Jesus de Nazaré, como veículo de redenção. Paulo de
Samósata foi o mais famoso defensor desse entendimento que
podemos classificar como um bordinacionismo mundano para o
distinguir das suas formas posteriores: a relação singular entre o Pai
e o Filho iniciou-se na esfera mundana da existência.

Por trás dessa solução está uma doutrina de Deus pouco cristã.
O Adocionismo não concebia um Deus que pudesse tomar a
iniciativa na salvação humana, mas antes tinha que esperar que um
homem bom surgisse. Por isso, a igreja rejeitou essa doutrina,
porque colocava Deus no meio do processo e não no início da obra
redentora. Embora pudesse ser intelectualmente satisfatória para

TEOLOGIA SISTEMÁTICA I 126


certos pressupostos racionais, era em perspectiva soteriológica,
inaceitável.

Arianismo

Ário começa com uma visão pagã de Deus como


incognoscível, impassível, imutável e inalcançável, e, portanto, não
pode conceber a encarnação de tal ser” (Richardson, p. 52). Assim,
tal como os apologistas, visionou que só o Logos podia ter
encarnação; mas, ao contrário dos apologistas, Ário declarou-o
como criatura, afirmando que houve uma altura em que este não
existia (Wiley, p. 415).

A conclusão da premissa ariana é que adorar a Cristo é adorar


uma criatura, portanto, idolatria. Para apoiar a sua posição Ário
recorreu a várias passagens bíblicas que apontavam para uma