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Fátima Quintas
Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduação em Antropologia Cultural pelo
Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina (Lisboa – Portugal). Pós-graduação em Museologia pelo Museu das
Janelas Verdes (Lisboa – Portugal). Mestrado em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco.
Coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre.
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quer hora, a chaminé estimulante. À fumaça do elas próprias elaboravam. Novidades a toda hora.
bueiro, a fruição da comida acalentada pelo “es- Temperos excêntricos vindos de uma África não
tridente” toque africano. Enfatiza Darcy Ribeiro: menos excêntrica. A fortuna aconteceu no brio
Para Gilberto Freyre [o negro ensinou] o brasileiro do paladar e na adequação a um regime tropical-
a explorar todas as possibilidades das papilas da mente sensual. Uma dieta que se adaptava ao calor
língua, bem como os nervos do faro, com a sua excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mes-
magia culinária. ( Ribeiro, 1979, p. 94) mo tempo, refeições buriladas em pimentas e
Quando se pensa numa comida apetitosa, a molhos, o que sugeria aparentes incoerências para
deixar água na boca, tende-se a recordar a ima- um clima de altas temperaturas. As inconexões
gem da preta velha maquinando pratos de requin- demonstraram a versatilidade e a combustão do
tes maquiavélicos. No regime alimentar brasileiro, temperamento africano, intensamente explosivo.
a contribuição africana afirmou-se principalmen- O clima tropical, com certeza, não determinou,
te pela introdução do azeite-de-dendê e da pimen- mas concorreu para a extroversão culinária. O
ta-malagueta, tão característicos da cozinha Nordeste aceitou de muito bom grado as ambrosias
baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso de uma etnia que soube mimetizar origens e
da banana; pela grande variedade na maneira de atavismos com o erudito modo de ser de um Oci-
preparar a galinha e o peixe. Várias comidas por- dente “civilizado”. A mistura deu certo.
tuguesas ou indígenas foram no Brasil modifica- Criou-se um sincretismo culinário, de saibos
das pela condimentação ou pela técnica culinária vivos e alguns até berrantes. Senhora de densos
do negro, alguns dos pratos mais caracteristica- “refogados”, a negra atraiu para si atenções e se-
mente brasileiros são de técnica africana: a farofa, gredos que se anelavam em “armadilhas” capa-
o quibebe, o vatapá (Freyre, 1966, p. 489). zes de ofuscar o brilho da portuguesa. Exerceu,
Os serviços culinários, no período colonial, com uma certa maledicência, o desafio da mesa.
tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, Há que se render vênia a essa emulação. Quem
as escolhidas, instigaram o âmbria com mãos de duvidará da competência da negra na arte de co-
tecelã. Mas houve negros incapazes de servir no zinhar? Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas,
eito, com tendências a maricas, que foram canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-
inigualáveis no preparo de quitutes. Homens coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-
efeminados a desejarem manifestar os seus pen- milho, rolete de cana, isto é, rebuçados etc (Freyre,
dores no espaço dedicado à mulher, o da cozi- 1966, p.490). Africano também é o acarajé, prato
nha. Talvez até para provar a capacidade de exe- precioso na Bahia: feito com feijão-fradinho rala-
cutar tarefas de tradição não masculina, do na pedra; como tempero leva cebola e sal; a
capricharam em sutilezas, agudamente “satânicas” massa é aquecida em frigideira de barro onde se
no que tange à expressão de uma gastronomia derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além
sofisticada. Freyre realça: Dentro da extrema es- das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se na
pecialização de escravos no serviço doméstico das práxis da adaptação e no apuro dos doces lusita-
casas-grandes, reservaram-se sempre dois, às ve- nos à Terra do pau- Brasil. E quebrando arestas,
zes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ajeitando ali ou acolá, os ingredientes foram do-
ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negros sados com a mestria do amálgama cultural. É nos-
incapazes de serviço bruto, mas sem rival no pre- sa opinião que no preparo do próprio arroz-doce,
paro de quitutes e doces. Negros sempre tradicionalmente português, não há como o de
amaricados; uns até usando por baixo da roupa rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas
de homem cabeção picado de renda, enfeitado donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de
de fita cor-de-rosa; e ao pescoço tetéias de mu- colher. Como não há tapioca molhada como a do
lher. Foram estes, os grandes mestres da cozinha tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha
colonial (Freyre, 1966, p. 489). de bananeira ( Freyre, 1966, p. 490, 491).
Desse modo, a cozinha brasileira Dentre os pratos africanos que se impuseram
africanizava-se, granjeando a inspiração exótica na mesa patriarcal, e firmaram-se até com uma certa
dos seus acepipes. Exuberante. Indiscreta. arrogância, distinguem-se: o caruru e o vatapá. Os
Histriônica. Com donaires agudíssimos. Gordas e eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram com
alegres, as pretas orgulhavam-se dos pratos que uma autenticidade quase intocada. Sem retoques