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A Culinária e a Negra

Fátima Quintas
Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduação em Antropologia Cultural pelo
Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina (Lisboa – Portugal). Pós-graduação em Museologia pelo Museu das
Janelas Verdes (Lisboa – Portugal). Mestrado em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco.
Coordenadora do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Gilberto Freyre.

“No meio dos graves problemas rigosos ou pecaminosos. Com a devida


sociais cuja solução buscam os reserva, a palavra soada e ressoada no
espíritos investigadores no nosso âmbito da cozinha exerceu importante
século, a publicação de um manual de função libertadora. Freyre alerta: Creio
confeitaria, só pode parecer vulgar a que não há um só diário escrito por
espíritos vulgares; na realidade, é um mulher. Nossas avós tantas delas anal-
fenômeno eminentemente fabetas, mesmo quando baronesas e
significativo. Digamos todo o nosso viscondessas, satisfaziam-se em contar
pensamento: é uma restauração, é a os segredos ao padre confessor e à
restauração do nosso princípio social” mucama de estimação; e a sua tagareli-
Machado de Assis ce dissolveu-se quase toda nas conver-
sas com as pretas boceteiras, nas tardes
de chuva ou nos meios dias quentes,
O espaço reservado à cozinha da morosos (Freyre,1966, p.XLIV).
casa-grande patriarcal agrupou o encon- Pretas velhas, mucamas, sinha-
tro de raças, combinando emoções com zinhas, sinhás-donas, nhonhôs coabita-
temperos, sentimentos com receitas ram os momentos de relaxamento que
culinárias, saudades com cheiro e gos- o forno e o fogão possibilitaram. Entre
to de condimentos. Nesse desvão, apa- receitas, o rastro dos apetites – seja qual
rentemente resguardado, desfilaram as for a sua etiologia, sexual ou palatal –
enormes proezas da convivência do- deixou-se verter em discursos reprimi-
méstica. Oráculo de confissões, de dos. Pamonha, milho assado, pão-de-
fuxicos, de troca de sigilos. Zona de ló, arroz-doce, alfenins, alféloa, empa-
confraternização. Locus de intercâmbio relharam-se à table da casa-grande, em
afetivo. Na “sagrada” cozinha, a con- uma demonstração de hibridismo de
versa mole, os mexericos, os segredos, paladares. As negras, exímias cozinhei-
o disse-me-disse ganharam a moldura ras, redondas de tanto comerem, esme-
da intimidade. Entre o preparo de um raram-se no preparo de “acepipes” para
prato e de outro, muitas narrativas fo- o regalo do menino, da sinhá ou do
ram verbalizadas. Tanto quanto o con- patriarca. Imensos panelões compuse-
fessionário, o suposto esconderijo do ram a paisagem da comensalidade pa-
fabrico das guloseimas, simbolizou o triarcal. Passava-se o dia a beliscar e a
canal catártico por onde escoraram con- provar pratos temperados ao saibo pre-
versações em tom pessoal, segredos re- ferido da próxima refeição ou à blandí-
cônditos, mistérios femininos. Debaixo cia da donzela enfraquecida, a neces-
do manto da solidão, a larga e tosca sitar de cuidados especiais. Do café da
mesa retangular agasalhou os dispen- manhã à ceia noturna, o dedo decisivo
sáveis pudores de mulheres acanhadas. da negra. Do simples caldo de pintainho
Lugar de especial atrativo para o trans- à gordurosa feijoada. Da mesa repleta
bordamento de dizeres porventura pe- de convidados ao almoço trivial. A qual-

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quer hora, a chaminé estimulante. À fumaça do elas próprias elaboravam. Novidades a toda hora.
bueiro, a fruição da comida acalentada pelo “es- Temperos excêntricos vindos de uma África não
tridente” toque africano. Enfatiza Darcy Ribeiro: menos excêntrica. A fortuna aconteceu no brio
Para Gilberto Freyre [o negro ensinou] o brasileiro do paladar e na adequação a um regime tropical-
a explorar todas as possibilidades das papilas da mente sensual. Uma dieta que se adaptava ao calor
língua, bem como os nervos do faro, com a sua excessivo de regiões quentes e úmidas. Ao mes-
magia culinária. ( Ribeiro, 1979, p. 94) mo tempo, refeições buriladas em pimentas e
Quando se pensa numa comida apetitosa, a molhos, o que sugeria aparentes incoerências para
deixar água na boca, tende-se a recordar a ima- um clima de altas temperaturas. As inconexões
gem da preta velha maquinando pratos de requin- demonstraram a versatilidade e a combustão do
tes maquiavélicos. No regime alimentar brasileiro, temperamento africano, intensamente explosivo.
a contribuição africana afirmou-se principalmen- O clima tropical, com certeza, não determinou,
te pela introdução do azeite-de-dendê e da pimen- mas concorreu para a extroversão culinária. O
ta-malagueta, tão característicos da cozinha Nordeste aceitou de muito bom grado as ambrosias
baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso de uma etnia que soube mimetizar origens e
da banana; pela grande variedade na maneira de atavismos com o erudito modo de ser de um Oci-
preparar a galinha e o peixe. Várias comidas por- dente “civilizado”. A mistura deu certo.
tuguesas ou indígenas foram no Brasil modifica- Criou-se um sincretismo culinário, de saibos
das pela condimentação ou pela técnica culinária vivos e alguns até berrantes. Senhora de densos
do negro, alguns dos pratos mais caracteristica- “refogados”, a negra atraiu para si atenções e se-
mente brasileiros são de técnica africana: a farofa, gredos que se anelavam em “armadilhas” capa-
o quibebe, o vatapá (Freyre, 1966, p. 489). zes de ofuscar o brilho da portuguesa. Exerceu,
Os serviços culinários, no período colonial, com uma certa maledicência, o desafio da mesa.
tiveram um prévio escalonamento. As pretalhonas, Há que se render vênia a essa emulação. Quem
as escolhidas, instigaram o âmbria com mãos de duvidará da competência da negra na arte de co-
tecelã. Mas houve negros incapazes de servir no zinhar? Mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas,
eito, com tendências a maricas, que foram canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-
inigualáveis no preparo de quitutes. Homens coco, angus, pão-de-ló-de-arroz, pão-de-ló-de-
efeminados a desejarem manifestar os seus pen- milho, rolete de cana, isto é, rebuçados etc (Freyre,
dores no espaço dedicado à mulher, o da cozi- 1966, p.490). Africano também é o acarajé, prato
nha. Talvez até para provar a capacidade de exe- precioso na Bahia: feito com feijão-fradinho rala-
cutar tarefas de tradição não masculina, do na pedra; como tempero leva cebola e sal; a
capricharam em sutilezas, agudamente “satânicas” massa é aquecida em frigideira de barro onde se
no que tange à expressão de uma gastronomia derrama um bocado de azeite-de-cheiro. Além
sofisticada. Freyre realça: Dentro da extrema es- das receitas genuínas, a africana sobressaiu-se na
pecialização de escravos no serviço doméstico das práxis da adaptação e no apuro dos doces lusita-
casas-grandes, reservaram-se sempre dois, às ve- nos à Terra do pau- Brasil. E quebrando arestas,
zes três indivíduos, aos trabalhos de cozinha. De ajeitando ali ou acolá, os ingredientes foram do-
ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negros sados com a mestria do amálgama cultural. É nos-
incapazes de serviço bruto, mas sem rival no pre- sa opinião que no preparo do próprio arroz-doce,
paro de quitutes e doces. Negros sempre tradicionalmente português, não há como o de
amaricados; uns até usando por baixo da roupa rua, ralo, vendido pelas negras em tigelas gordas
de homem cabeção picado de renda, enfeitado donde o guloso pode sorvê-lo sem precisar de
de fita cor-de-rosa; e ao pescoço tetéias de mu- colher. Como não há tapioca molhada como a do
lher. Foram estes, os grandes mestres da cozinha tabuleiro, vendida à maneira africana, em folha
colonial (Freyre, 1966, p. 489). de bananeira ( Freyre, 1966, p. 490, 491).
Desse modo, a cozinha brasileira Dentre os pratos africanos que se impuseram
africanizava-se, granjeando a inspiração exótica na mesa patriarcal, e firmaram-se até com uma certa
dos seus acepipes. Exuberante. Indiscreta. arrogância, distinguem-se: o caruru e o vatapá. Os
Histriônica. Com donaires agudíssimos. Gordas e eleitos. Os mais apreciados. Os que se fixaram com
alegres, as pretas orgulhavam-se dos pratos que uma autenticidade quase intocada. Sem retoques

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significativos. Puros e absolutamente distintos. En- “preciosismos” da doçaria. A constância, a resig-
sina Freyre: Prepara-se o caruru com quiabo ou fo- nação, a firmeza da africana acentuaram-se na
lha de capeba, taioba, oió, que se deita ao fogo realização das fórmulas prescritas.
com pouca água. Escoa-se depois a água, espreme- Somente a pasmaceira da casa-grande per-
se a massa que novamente se deita na vasilha com mitia operacionalizar o fabrico de doces compli-
cebola, sal, camarão, pimenta-malagueta seca, tudo cadíssimos. Tempo. Horas. Pacatez. O complexo
ralado na pedra de ralar e lambuzado de azeite-de- da cana, com as suas derivações, jamais teria se
cheiro. Junta-se a isto a garoupa ou outro peixe as- validado com tamanha efervescência, não fora a
sado (Freyre, 1966, p. 492) quantidade de escravas, o tédio das horas mornas
Por muito tempo, a mesa do engenho foi afri- e intermináveis, o pausado badalar do relógio, os
cana. Pelo menos, até meados do século XIX. O minutos por consumir, o longo intervalo do nada...
paladar girou em torno das variações da negra, que, Cedo começava o preparo. Receitas demoradas,
habilmente, articulou doses “marotas” de condi- demoradíssimas, só explicadas pelo excesso de
mentos. Arte, acima de tudo arte, subscreveu a ócio. Sinhás-donas gulosas e adictas de glicídios à
mescla das influências, misturando especiarias e espera da catarse alimentar. Houve, no Brasil, uma
retirando-lhes as possíveis indisposições. Graduan- maçonaria do doce, isto é, um poder coeso de
do o alimento com ternura e ofertando-o ao meni- mulheres sobre o sigilo das receitas de bolo de
no ou à menina com gesto maternal. Freyre asse- família. O caderno de receitas – período em que
vera: A ama negra fez muitas vezes com as palavras as mulheres já escreviam – foi repassado de gera-
o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou- ção a geração, através de um inventário sentimen-
lhe as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando tal. Não se banalizou o receituário gastronômico
para a boca do menino branco as sílabas moles. em mãos à-toa. Prevaleceu uma intencional e es-
(...) Palavras que só faltam desmanchar-se na boca merada escolha na descendência dos bolos e do-
da gente (Freyre, 2003, p. 387). ces de família. A doçaria patriarcal, recebeu-a a
Não se pode falar em culinária nacional sem filha/sobrinha eleita, aquela que garantisse a dis-
remeter ao mastro balizador da espaventosa crição do claustro da glutonaria. A história do açú-
glicose. A arte do doce espargiu-se do Nordeste car guarda fortes veios de privacidade. De misté-
para o Brasil afora. A sua expressão sociológica, rios de família. De endogamia culinária.
econômica, sentimental advém da família patriar- O doce e a escravidão combinaram-se em
cal, gorda, extensiva, horizontal, a repousar na prolongados passadios de fartíssimos manjares. Um
imensidão de um monopólio canavieiro, orgulhoso e outro estiveram tão juntos que parece difícil elidi-
de exclusivismos. A escravidão propiciou o culto los. O Padre Antônio Vieira identificava o Brasil
da hipérbole da sacarose. A cana ofertava-se com com o Nordeste, e o Nordeste com o açúcar, ou
largueza, e a mão-de-obra escrava concretizava, mais especificamente, com o negro a serviço do
em dispendiosas e complicadas receitas, o telúrico açúcar. A paisagem dulcificou o desenvolvimento
e o bucólico degustar da invejada especiaria. de requintadas guloseimas, em razão da matéria-
Na gangorra do açúcar, não se mediram es- prima abundante. A cana, o massapê, a escravi-
tímulos para açular o paladar – e já asseverava dão. Subtraindo um desses elementos, com cer-
Eduardo Prado que o paladar corresponde à últi- teza, a doçaria não teria alcançado o paroxismo
ma sensação a desnacionalizar-se no homem. A da culinária brasileira dos tempos de outrora.
escrava foi fundamental na produção do doce. As Há de se particularizar a tipologia das frutas,
intermináveis receitas reivindicavam o ofício da essas dulcíssimas, a aliarem-se à cana na conjuga-
persistência, longas tardes à beira do fogão, a vigi- ção do supinamente melífluo. O paladar ajustou-
ar as panelas em que se preparavam caldas em se, pois, ao que vinha de fora – de Portugal e da
ponto de visgo. Porções estrambóticas entornaram África. O endógeno e o exógeno acasalaram-se.
quilos de açúcar, de rapadura, de mel – o mel de Tudo contribuiu para que na Nova Lusitânia as
abelha indígena que, segundo José de Alencar, receitas com base nos glicídios proliferassem. De
morava nos lábios de Iracema. Ovos e mais ovos Portugal, sobretudo dos mouros, chega-nos uma
esbanjavam dos tachos, borbulhando o creme, que herança singularmente açucarada. Freyre elucida:
se transformaria em refinados postres. Exigiu-se o Note-se do açúcar que se tornou abundante na
máximo de perseverança para levar a termo os cozinha e na doçaria européias, a partir do século

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XVI, que grande parte dele era de engenhos do vam-se em detalhes e mais detalhes: ritmos
Brasil. Tanto que a palavra, de uso tão brasileiro, inventivos, inspirações fantásticas, visando a
mascavo tornou-se, desde então, inglesa. E a mar- embelezar a oferenda do produto. E o princípio
melada e a goiabada brasileira ganharam, desde da gula é, antes de mais nada, plástico, com acen-
velhos dias, apreciadores europeus. Inclusive a tos pictóricos. O olhar antecipa o olfato na “fer-
goiabada apreciadíssima pela gente nordestina.. mentação” do apetite. A estética da ornamenta-
(...) O que é doce, afinal? Dizem os dicioná- ção aprimorou o espetáculo “pirotécnico”.
rios que é aquilo que tem um sabor como o de E a arte fez-se no açúcar e por meio do açú-
açúcar ou de mel; e que, assim sacarino, não é car. Os tabuleiros ficaram famosos pela delicade-
amargo, nem salgado, nem picante; e – ainda – a za do rendilhado e pela coreografia poética. Do-
composição que é temperada com açúcar, mel ou ces produzidos por negras e embelezados por
outro ingrediente sacarino (Freyre, 1987, p. 34, negras. Algumas delas forras, que iam vendê-los
44). A representação do doce no Nordeste se dá na rua, exibindo, assim, dotes físicos e culinários.
com tamanha veemência que aponta para a for- Bolos e doces, coisas de doçaria, de pastelaria e
mulação de uma Sociologia do Doce, eivada de de cozinha, estão entre as que o autor vem consi-
traços de confeitaria, pastelaria, e estética de so- derando mais atraentes do ponto de vista pictóri-
bremesa, o que leva a implicações socioculturais co e não apenas gastronômico; do artístico e não
da maior relevância. apenas do sociológico. (...) Mas o legítimo doce
O açúcar venceu. E venceu com a escravi- ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O
dão. De mãos dadas com o massapê. Na casa- das negras doceiras. Doce feito ou preparado por
grande vicejaram os “torpedos” do doce. E o luxo elas. Por elas próprias enfeitado com flor de papel
da sobremesa, dos doces e das guloseimas de açú- azul ou encarnado. E recortado em forma de co-
car [são] de criação mais pernambucana do que rações, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes,
baiana. (Freyre, 2000, p. 508, 509) de galinhas – às vezes com reminiscência de ve-
O regime escravista não só possibilitou a arte lhos cultos fálicos ou totêmicos. Arrumado por
da sobremesa através do exercício da paciência cima de folhinhas secas de banana. E dentro de
bíblica como aprimorou a estética da sua apre- tabuleiros enormes, quase litúrgicos, forrados de
sentação. Os caprichos foram completos. Em tor- toalhas alvas com pano de missa. Ficara, célebres
no do doce brotou uma ritualística quase mitoló- as “Mães Bentas (Freyre, 1966, p. 490)
gica. O doce exigiu finas devoções: homens, Com a desafricanização da mesa nas primei-
mulheres, crianças à sua volta. A liturgia reivindi- ras décadas do século XIX, o brasileiro perdeu o
cou o máximo de reverência. Crianças adultizadas, hábito de verduras, tão do agrado do negro. Tor-
mulheres subjugadas, patriarcas hipnotizados pelo nou-se um abstêmio de vegetais: Ficou tendo ver-
poder econômico. E a escravidão, a selar a vitória gonha de suas mais características sobremesas – o
do imperialismo açucareiro. Gilberto Freyre afi- mel ou melado com farinha, a canjica temperada
ança: Sem a escravidão não se explica o desenvol- com açúcar e manteiga. Só se salvaria o doce com
vimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma queijo (Freyre, 2000, p.510). O pão surgiu como
técnica de confeitaria, de uma estética de mesa, a grande novidade do século XIX. Antes pontifica-
de sobremesa e de tabuleiro tão cheias de compli- ra o complexo da mandioca, tendo sido o trigo
cações e até de sutilezas e exigindo tanto vagar, abandonado, por força das circunstâncias, pelos
tanto lazer, tanta demora, tanto trabalho no pre- nossos colonizadores. Naturalmente uma mudan-
paro e no enfeite dos doces, dos bolos, dos pra- ça de gosto que custou ao lusitano uma boa dose
tos, das toalhas e das mesas. Só o grande lazer das de sacrifício. Foi a época do beiju de tapioca, ao
sinhás ricas e o trabalho fácil das negras e das almoço, e, ao jantar, a farofa. Ainda: o pirão es-
molecas explicam as exigências de certas receitas caldado ou a massa de farinha de mandioca es-
das antigas famílias das casas-grandes e dos so- palhada no caldo do peixe ou de carne. O feijão
brados; receitas quase impossíveis para os dias de representou o prato do quotidiano – feijoada com
hoje (Freyre, 1987, p. 55, 57,58). carne salgada, cabeça de porco, lingüiça, muito
Os pratos ou tabuleiros nos quais se acomo- tempero africano. Após a Independência, a cozi-
davam as guloseimas eram enfeitados de modo a nha brasileira sofreu a influência direta da france-
alucinar os olhos. As negras recortadoras esmera- sa. Na verdade, neste período, o Brasil aderiu a

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galicismos de toda a ordem. Diz Freyre: Os livros ência destacou-se não somente nos quitutes e nos
franceses de receita e de bom tom começaram o arranjos das travessas, como igualmente na abun-
seu trabalho de sapa.(...) Manteiga francesa, bata- dância e na diversidade da mesa brasileira, cuja
ta-inglesa, chá também à inglesa, gelo – tudo isso variedade de timbres homologa-lhe um caráter
agiu no sentido da desafricanização da mesa bra- peculiar, extralusitano e marcadamente atávico.
sileira, que até os primeiros anos da Independên- Brasil, brasileiro, com gosto e cheiro de
cia estivera sob maior influência da África e dos tropicalidade. Repetindo Carlos Drummond de
frutos indígenas (Freyre, 1966, p. 495). Andrade, no poema A Mesa, concluo: E não gos-
O gelo foi introduzido em 1834, trazido pela tavas de festa.../ Ó velho, que festa grande/ hoje
primeira vez ao Brasil por um navio americano, o te faria a gente./ E teus filhos que não bebem/ e o
Madagascar. A sua chegada avultou em sucesso, que gosta de beber,/ em torno da mesa larga,/ lar-
pois os “novos” brasileiros eram grandes bebedo- gavam as tristes dietas,/ esqueciam seus fricotes,/
res de água em virtude do calor tropical, do ex- e tudo era farra honesta/ acabando em confidên-
cesso da pimenta e da quase libidinal ingestão do cia. (...) Estamos todos vivos./ e mais que vivos,
açúcar. A pimenta, já antiga conhecida dos índios alegres. (Drummond, 2001, p.104)
– foi reforçada pelos negros, apreciadores da
malagueta – a pimenta e o açúcar se dissemina-
ram como produto tanto da gente simples como
da mais sofisticada. BIBLIOGRAFIA
A desafricanização esbarrou diante dos FREYRE, Gilberto. Açúcar – Em torno da Etnografia
purismos da europeização. Mediações foram ne- da História e da Sociologia do Doce no Nordeste
cessárias para que o resultado ocorresse sem con- Canavieiro do Brasil. Recife: Massangana, 1987.
flitos. Os excessos desfilaram entre a cozinha e a FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma-
sala, ou da cozinha para a sala. Do caruru ao doce, ção da Família patriarcal sob o regime de Economia
Patriarcal. 41ª edição. Rio de Janeiro: São Paulo,
o decálogo gastronômico galgou uma imensa ta-
2000.
bela de variações. Pimentas, em demasia; tempe-
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala – Forma-
ros, em estado quase natural; doces, a lembrar ção da Família Brasileira sob o regime de Economia
rapadura... Em resumo: um banquete escandalo- Patriarcal. 14ª edição. Recife: Imprensa Oficial.
samente agressivo, a carecer reparos e alguns FREYRE, Gilberto. A Presença do Açúcar na Formação
abrandamentos. Brasileira. Rio de Janeiro: Divulgação do Instituto de
A exuberância alimentar da culinária negra Açúcar e do Álcool, 1975.
suscitou naturalmente retoques adaptativos. Uma RIBEIRO, Darcy. Ensaios Insólitos. Porto Alegre:
certa parcimônia não lhe cairia mal, face aos L&PM Editores, 1979.
histrionismos de sabores. É interessante ressaltar DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia
esse aspecto por envolver a emocionalidade de Poética. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001.
um povo, o africano, e por testemunhar o caráter
explosivo de uma cultura que não receou doar
seus valores como os recebeu: sem polimento. Em
estado puro. Quase natureza primitiva. Os quitutes
se excederam em agudos sabores. Um roteiro, o
afro-brasileiro, com enorme vocação para os trans-
bordamentos. Gilberto Freyre adiciona: Não ne-
gamos que a influência africana sobre a alimenta-
ção do brasileiro necessitasse de restrições ou de
corretivo no seu exagero de adubos e de condi-
mentos. ( Freyre, 1966, p. 495)
Não há cozinha mais explícita que a africa-
na, como não há canção de ninar mais embaladora
que a da mesma africana. A negra dominou e foi
percuciente no passado de nossas tataravôs.
Polifônica, polissêmica, polivalente. A sua influ-

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