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Roteiro de
Petterson Costa
2º tratamento
Novembro 2021
1 INT. APARTAMENTOS DE CINTIA e ANA, SIMULTANEAMENTE (SPLIT
SCREEN) – FIM DE TARDE
ANA
(quase sussurando)
A gente realmente vai ficar aqui na mesa dos teus amigos?! Eu
pensei que...
LUCAS
(exaltado)
Pensou O QUÊ?
CINTIA
Tô de olho nesse macho escroto.
ANA
(novamente quase sussurrando)
Eu quero ir embora.
LUCAS
Mas por que, vida? Agora que a coisa tá ficando boa!
ANA
Não estou me sentindo à vontade.
LUCAS
(irônico)
Ué, mas você não aceitou sair hoje? A gente saiu! Pronto!
ANA
Mas era pra ser uma noite nossa!
LUCAS
(ameaçador, em tom de voz baixo)
Olha, você larga de escândalo! Não vai me fazer passar
vergonha, não!
Ana dirige seu olhar para a mulher parada junto à pia que lhe
oferece papeis para secar o rosto. Ana aceita o gesto da mulher
desconhecida e responde uma pergunta diferente à que lhe foi
feita.
ANA
(resignada)
Acontece.
CINTIA
Você quer sair daqui?
ANA
Do... banheiro?
CINTIA
Do bar. Ir embora. Você quer?
CINTIA
Eu te dou uma carona, se você quiser. Pra casa.
ANA
(aterrorizada)
PRA CASA, NÃO!
CINTIA
Tudo bem, tudo bem! Pra casa, não. Mas tem algum outro lugar
aonde você quer que te leve? Algum lugar onde você se sinta...
segura?
ANA
(apática)
Não. Não tem ninguém.
CINTIA
Mas você quer ir embora, certo?
Ana confirma com a cabeça, mas seu olhar distante sugere que
sua mente está em outro lugar. Ou em outra pessoa.
ANA
(quase sussurrando)
Mas ele... ele vai…
CINTIA
Ele não importa agora. Você importa.
CINTIA
Vamo embora daqui.
ANA
Mas pra onde?
CINTIA
Qualquer lugar. Bora se divertir em outro lugar.
CINTIA
Relaxa. A gente já tá longe.
CINTIA
Ele ainda não percebeu. Você está segura.
Ana dirige seu olhar para Cintia, um pouco mais calma. Mas nada
diz.
Silêncio.
CINTIA
Você... quer falar sobre o que aconteceu?
ANA
Não. Não sei se consigo.
CINTIA
Tudo bem. Não precisa falar nada, se não quiser.
Silêncio.
ANA
Aonde vamos agora?
CINTIA
Não sei, acho que rodar por aí um pouco. O que você acha?
ANA
Não sei. Eu só não quero... ficar aqui.
CINTIA
Beleza. Eu acho que tenho uma ideia.
Silêncio.
ANA
Obrigada.
CINTIA
(sorrindo)
Não precisa agradecer. Como você está?
ANA
(suspirando)
Meio confusa.
CINTIA
Confusa?
ANA
É... complicado.
CINTIA
(irônica)
Será mesmo?
CINTIA
Você é minha primeira vítima, na verdade. Qual a sensação?
Ambas riem.
ANA
Bom, definitivamente não é o que eu tinha planejado pra minha
noite.
CINTIA
E o que você tinha planejado?
ANA
(encabulada)
Na verdade, eu não planejei nada. Sair hoje foi ideia... dele.
Do... Lucas.
Silêncio
CINTIA
Me fala um pouco de você. Qual o seu nome? O que você gosta de
fazer? A sua família tem dinheiro pra pagar o seu resgate?
ANA
Caramba, eu nem me apresentei! Desculpa! Meu nome é Ana.
CINTIA
Eu sou a Cintia.
ANA
Respondendo às tuas perguntas: a minha família não tem muito
dinheiro, desculpa.
CINTIA
(rindo)
Poxa, meu plano já era.
ANA (cont.)
E quanto ao que eu gosto de fazer... bom, eu gosto de ler, de
sair com as minhas amigas... e principalmente de dançar. Mas
tem um bom tempo que eu não faço nada disso.
CINTIA
Ué, por que não?
Silêncio.
CINTIA
Você vai atender?
ANA
Não.
ANA
Eu não devia ter feito isso.
CINTIA
Feito o quê? Você não fez nada, eu que te levei de lá.
ANA
Mas ele...
CINTIA
Você quer desligar o celular? Pelo menos por enquanto?
CINTIA
Você quer que eu desligue o teu celular?
Silêncio.
ANA
Ele não é assim o tempo todo. Ou pelo menos não costumava ser.
CINTIA
“Assim” como?
ANA
(diminuindo o tom de voz a cada palavra)
Controlador, mandão... agressivo...
Após a tentativa de contato de Lucas, Ana abandona o que sobrou
de seu sanduíche na bandeja da lanchonete.
CINTIA
Eu vou pagar a conta e a gente sai daqui, tá bom?
ANA
Tá bom.
ANA (v.o.)
Por que às vezes a gente ama quem faz a gente sentir que não
merece ser amada? Eu não entendo, sabe?
CINTIA
Talvez isso não seja sobre amor. Acho que é sobre poder. Esse
tipo de atitude violenta fala mais sobre ele do que sobre você.
ANA (suspirando)
Às vezes eu me sinto meio impotente perto dele. Como se não
tivesse escolha. Mas nem sempre é assim. Ele pode ser muito
carinhoso quando quer. Mas parece que ele quer cada vez menos.
CINTIA
Você já conversou sobre isso com alguém? Alguém de confiança?
ANA
É complicado. Minhas amigas se incomodavam com algumas atitudes
dele, a forma como ele me tratava. Como ele me controlava.
CINTIA
Deve ser difícil pra elas, verem uma pessoa que gostam passando
por algo assim.
ANA.
É. O problema é que eu contei pra ele. Eu tinha resolvido
terminar o namoro e usei isso como argumento.
CINTIA
Mas... e aí?
ANA
E aí ele riu. Me chamou de influenciável. Disse que elas
estavam me manipulando pra terminar com ele, porque tinham
inveja do que ele e eu temos.
CINTIA
Isso nem faz sentido!
ANA
Não, não faz. Mas fez pra mim, na época. Eu acabei me afastando
delas, porque pensei que ele queria me proteger. Porque elas
realmente podiam ser meio intrigueiras, às vezes.
CINTIA
Mas se preocupam com você.
ANA
(triste)
Se preocupavam. Depois de um tempo sem respostas minhas, elas
pararam de me procurar. Era como se, entre elas e ele, eu
tivesse escolhido ele. E, bom, foi isso mesmo que eu fiz, né?
Silêncio.
CINTIA
E você não tem mais ninguém com quem conversar sobre isso? Sua
mãe, uma irmã ou prima...?
ANA
Eu e a minha mãe não nos falamos direito.
ANA (cont.)
Quando eu era criança, minha mãe começou a namorar um cara. Ele
era legal, atencioso, me enchia de presentes. Mas também era
super ciumento e possessivo com a minha mãe. Quando ele foi
morar com a gente, começou a querer controlar tudo na vida da
minha mãe. Quando ela demorava pra chegar do trabalho, ele
acusava ela de estar sendo infiel, mesmo sabendo que ela sempre
pegava engarrafamento. Nessas situações, ele gritava,
maltratava ela. Até que a violência se tornou física. Não sei
quando começou, mas foi piorando, até que virou algo... normal.
(Ana diz a última palavra com dificuldade)
ANA (cont.)
Eu ficava aterrorizada, sem saber o que fazer. Mas ela não
revidava, não fazia NADA. Só ficava... lá.
CINTIA
Era uma situação muito delicada pra ela, né?
ANA
Era! Ela não tinha mais ninguém, se afastou da família INTEIRA
por causa dele! Minha avó tentou intervir, mas ele conseguiu
jogar minha mãe contra ela. Ele achava que todo mundo queria o
dinheiro dele, dizia que tinham inveja da gente...
Ana (cont.)
Enfim... ver minha mãe passando por aquilo me destruía por
dentro! Eu tentava mostrar pra ela que ele não era bom pra ela,
mas ela não me ouvia. Isso mudou a nossa relação. Nós
costumávamos ser melhores amigas, mas passei a vê-la como uma
pessoa egoísta. Ela não via o quanto aquilo me afetava?!
Silêncio.
ANA (cont.)
Mas, no fundo, acho que ela fazia isso por mim. Ela não tinha
condições de me oferecer uma vida muito confortável, e largar
do meu padrasto significava abrir mão da pouca estabilidade
financeira que a gente tinha. Hoje eu entendo isso. Mas na
época eu só conseguia sentir... RAIVA. Tanto dele quanto dela.
Lá pelos meus 16 anos, me mudei pra casa da minha madrinha.
Minha mãe ficou devastada. Eu também. Mas, se ela queria
aceitar aquela vida, eu não queria. (suspiros) Ela aparecia pra
me visitar de vez em quando, me implorava pra voltar, mas nunca
voltei. É isso.
CINTIA
Sua mãe ainda é casada com ele?
ANA
Não. Uma vizinha logo percebeu o que acontecia e chamou a
polícia. Eu soube que minha mãe tentou defender ele na
delegacia, mas o exame de corpo de delito mostrou que ela tinha
vários hematomas, até um dedo quebrado! Descobriram que ele
tinha outras acusações por violência doméstica. Nessa época, eu
não morava mais com a minha tia, então minha mãe e ela acabaram
indo morar juntas. Nunca mais ouvimos falar dele.
CINTIA
E a sua mãe?
ANA
A gente se fala vez ou outra, mas geralmente é ela quem me
procura. Eu nunca me perdoei por ter ido embora, por ter
abandonado ela.
CINTIA
Não foi culpa sua, tu era uma CRIANÇA! Não podia fazer muita
coisa pra resolver, então escolheu salvar a si mesma. Ninguém
te julgaria por isso, aposto que nem ela.
ANA
Eu fui tão injusta com ela! E, no fim das contas...
Silêncio
CINTIA
Eu namorei um cara faz um tempo. Ele parecia um sonho. Um
idealista, falava coisas lindas, dizia que queria mudar o
mundo. Era atencioso, engajado politicamente, se dizia anti-
machista. Mas aí, eu percebi que, no fundo, ele se sentia
intimidado por mim.
ANA
Como assim?
CINTIA
Parecia que ele só gostava de mim quando eu ficava à sombra
dele, quando eu me diminuía. Como eu não aceitava essa posição,
ele aos poucos começou a tentar me colocar pra baixo. Criticava
minhas opiniões, minhas amizades... encontrava defeito até nos
projetos que eu participava! Era como se ele nunca ficasse
feliz com a minha felicidade, só se fosse algo envolvendo ele.
Uma vez, a gente brigou feio por causa de uma bobagem e ele me
deu um tapa na cara. Como se fosse nada, apenas uma forma de me
fazer parar de falar. Eu fiquei chocada, né, fui pra casa e
passei uma semana sem falar com ele, nem conseguia levantar da
cama direito. Mas aí conversamos e ele implorou que eu o
perdoasse, disse que aquele não era ele, que eu o conhecia e
sabia que ele não era uma má pessoa. E eu o perdoei. Mas nada
nunca mais foi do mesmo jeito, porque aquele tapa, pra mim, foi
a concretização das atitudes que ele sempre teve, de me
diminuir, questionar tudo que eu fazia. Então eu terminei com
ele, antes que acontecesse de novo.
ANA
Acho que fez bem. Se ele não consegue te respeitar ou te tratar
bem, ele não devia estar com você.
CINTIA
Que bom que nós duas concordamos a respeito disso.
Ambas riem.
ANA
Eu acho que preciso fazer uma ligação, rapidinho.
CINTIA
Certeza?
ANA
Eh, eu preciso.
CINTIA
Tudo bem, então. Vou aproveitar pra falar com as minhas amigas.
CINTIA
E aí, aonde vamos agora?
ANA
Pra casa da minha mãe.
CINTIA
Aposto que vocês duas têm muito pra conversar.
ANA
Acho que tenho algumas questões pra resolver com ela. E comigo
mesma.
CINTIA
Vai te fazer bem.
CINTIA
Como você está?
ANA
Como se fosse adolescente de novo. Mas bem.
CINTIA
Espero que você encontre... seja lá que estiver procurando.
ANA
(sorrindo com lágrimas nos olhos)
Obrigado por me sequestrar.
CINTIA
(sorrindo)
Foi um prazer.
CINTIA
Boa sorte.
Ana fecha a porta do carro e caminha em direção à casa. Ela e
sua mãe se encontram ao portão de aparência antiga e trocam um
longo abraço de reencontro.