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SORORIDADE

Adaptação de ideia original de


Kalina Maurer e Thais Oliveira

Roteiro de
Petterson Costa

2º tratamento

Novembro 2021
1 INT. APARTAMENTOS DE CINTIA e ANA, SIMULTANEAMENTE (SPLIT
SCREEN) – FIM DE TARDE

Duas jovens, cada uma em sua própria casa. Cintia se apronta


calmamente para um compromisso enquanto dança ao som de uma
canção animada. Ana ouve a mesma música, mas ocupada demais com
tarefas domésticas para dançar. Ela confere o relógio de tempos
em tempos, demonstrando apreensão. O apartamento de Cintia
parece refletir sua personalidade, contendo fotos dela
acompanhada por pessoas queridas, livros sobre Feminismo e
Política, pôsteres de filmes, muitas plantas e um gato gordo
sonolento. O apartamento onde Ana se encontra possui decoração
bem menos pessoal, exceto por alguns signos masculinos, como
objetos temáticos de Futebol e carrinhos em miniatura,
espalhados pelo ambiente. Nada ali tem ligação pessoal com Ana.
Após colocar pra lavar as roupas de trabalho de Lucas, seu
namorado (e dono da casa), ela retira a camisa de Futebol e
outras peças de roupa dele da secadora. Ela encara o relógio
mais uma vez e, tensa, retoma suas tarefas com pressa, antes
que ele chegue em casa e reclame de sua demora em arrumar as
coisas.
Cintia recebe mensagens de suas amigas sobre o compromisso de
logo mais.

GIGI ALVES no grupo F•R•I•E•N•D•A•S, 17:40:


Hoje tem happy hour, né? PELO AMOR DE DEUS, não
me deixem em casa hoje!

ROSE MARTINS no grupo F•R•I•E•N•D•A•S, 17:40:


Amiga, respira. Vai dar bom! ✨

Cintia digita uma mensagem no celular.

CINTIA FERREIRA no grupo F•R•I•E•N•D•A•S, 17:41:


Eu passo na casa da Rose às 7 e depois busco as
outras no terminal, ok? Não surta, Gigi.

GIGI ALVES no grupo F•R•I•E•N•D•A•S, 17:41:


Eu não prometo nada.

O celular de Ana apita. Ela suspira, desanimada, e desbloqueia


o aparelho. Surgem mensagens não-lidas de seu namorado, algumas
ignoradas durante a tarde.

LUCAS AMOR, 14:03:


Ainda tá de bico pra mim?

LUCAS AMOR, 15:38:


NÃO VAI FALAR COMIGO, NÃO? Beleza. Você que sabe.

LUCAS AMOR, 17:43:


Vida, fui otário com você. Desculpa, sou um
bosta. Fala comigo!
ANA RODRIGUES, 17:43:
Tudo bem, vida. Eu não devia ter reagido tão mal.
A culpa foi minha.

LUCAS AMOR, 17:44:


Você sabe que eu só perco a cabeça desse jeito
porque eu te amo, né? Bora sair hoje pra esquecer
isso? Tem tempo que não vamos naquele bar onde a
gente se conheceu.

Ana digita as palavras “ainda não terminei de arrumar a casa”,


mas rapidamente apaga e as substitui por outras mais “seguras”.

ANA RODRIGUES, 17:45:


Claro, vida. Você me busca em casa?

LUCAS AMOR, 17:45:


Aham. Vai com aquele vestido bonito que eu gosto,
o fechado.

As duas cenas terminam ao mesmo tempo, com Cintia fechando a


porta do apartamento enquanto Lucas abre a porta de sua casa.
Ana, neste momento está sentada no sofá, pronta, esperando seu
namorado chegar. Antes de se sentar, Ana desliga a música.

2 INT. BAR – NOITE

Cintia e suas amigas, sentadas à mesa num semicírculo,


conversam e pedem suas bebidas. Todas pedem cerveja ou drinks
alcoólicos, exceto Cintia, que, por ser a motorista da rodada,
pede um refrigerante.
Ana e Lucas chegam ao bar e procuram uma mesa para se sentarem.
Ela veste um vestido reservado e feminino enquanto ele veste
uma camisa de Futebol recém-saída da secadora. Ao reconhecer
dois amigos ocupando uma das mesas, Lucas conduz Ana pela mão e
ruma em direção aos rapazes. Ana se senta à mesa, demonstrando
visível insatisfação.
Pouco depois, os amigos de Lucas se ausentam, à procura do
garçom para reclamar da demora de seus pedidos.

ANA
(quase sussurando)
A gente realmente vai ficar aqui na mesa dos teus amigos?! Eu
pensei que...

LUCAS
(exaltado)
Pensou O QUÊ?

Num rompante explosivo, Lucas golpeia a mesa com o punho


fechado. Há ira em seu olhar. Sua atitude agressiva chama
atenção de várias pessoas no bar, inclusive a de Cintia. Ana
encolhe- se, assustada.

Cintia faz menção de levantar da mesa e intervir, mas é


dissuadida por suas amigas.
ROSE
Amiga, calma. O bar tá cheio, esse cara não é
doido de fazer nada com ela na frente de todo
mundo.

Cintia fica sentada, mas seu olhar permanece em Lucas.

CINTIA
Tô de olho nesse macho escroto.

De volta à mesa de Ana, Lucas ri e bebe com seus amigos


enquanto Ana observa apática, reprimindo seus sentimentos.

ANA
(novamente quase sussurrando)
Eu quero ir embora.

LUCAS
Mas por que, vida? Agora que a coisa tá ficando boa!

ANA
Não estou me sentindo à vontade.

LUCAS
(irônico)
Ué, mas você não aceitou sair hoje? A gente saiu! Pronto!

ANA
Mas era pra ser uma noite nossa!

Lucas agarra o braço da namorada com violência e se aproxima de


seu rosto.

LUCAS
(ameaçador, em tom de voz baixo)
Olha, você larga de escândalo! Não vai me fazer passar
vergonha, não!

Ana se levanta da mesa com lágrimas nos olhos e ruma até o


banheiro num ritmo mecânico de quem já passou por isso antes.
Cintia a acompanha com seus olhos, bebe o último gole de vodca
do copo de uma das amigas pra tomar coragem e resolve ir falar
com Ana. Na mesa de Lucas e seus amigos, eles riem um pouco
desconfortáveis e ouve-se um comentário de Lucas sobre o
episódio: “Mulher é foda”.

3 INT. BANHEIRO DO BAR – NOITE

Cintia entra no banheiro e ouve Ana chorando em um dos boxes.


Ana logo sai, ignorando a presença de Cintia junto à porta, e
vai até a pia para lavar seu rosto inchado de choro. Ela se
olha no espelho, triste por julgar que fez uma “cena”.
CINTIA
Você tá bem?

Ana dirige seu olhar para a mulher parada junto à pia que lhe
oferece papeis para secar o rosto. Ana aceita o gesto da mulher
desconhecida e responde uma pergunta diferente à que lhe foi
feita.

ANA
(resignada)
Acontece.

Pensando nas palavras certas a dizer, Cintia desvia seu olhar


do rosto de Ana por um segundo e percebe um hematoma no braço
dela, mesmo braço que Lucas havia segurado violentamente
minutos antes. Não era um machucado de agora. Ana,
constrangida, abaixa a manga do vestido rapidamente.

CINTIA
Você quer sair daqui?

ANA
Do... banheiro?

CINTIA
Do bar. Ir embora. Você quer?

O semblante de Ana é de confusão.

CINTIA
Eu te dou uma carona, se você quiser. Pra casa.

ANA
(aterrorizada)
PRA CASA, NÃO!

CINTIA
Tudo bem, tudo bem! Pra casa, não. Mas tem algum outro lugar
aonde você quer que te leve? Algum lugar onde você se sinta...
segura?

ANA
(apática)
Não. Não tem ninguém.

CINTIA
Mas você quer ir embora, certo?

Ana confirma com a cabeça, mas seu olhar distante sugere que
sua mente está em outro lugar. Ou em outra pessoa.

ANA
(quase sussurrando)
Mas ele... ele vai…
CINTIA
Ele não importa agora. Você importa.

Cintia estende sua mão a Ana, num sinal de solidariedade. Ana


retribui o gesto e aperta a mão de Cintia. Ambas sorriem,
embora o sorriso de Ana carregue melancolia.

CINTIA
Vamo embora daqui.

ANA
Mas pra onde?

CINTIA
Qualquer lugar. Bora se divertir em outro lugar.

As duas saem de mãos dadas do banheiro. Ana hesita por um


momento e olha na direção da mesa de Lucas e seus amigos, que
riem como se nada tivesse acabado de acontecer. Cintia percebe
a relutância de Ana e a conduz gentilmente em direção a uma
saída discreta, para que não sejam vistas.

No estacionamento, Cintia percebe que Ana continua olhando para


trás, como se temesse estar sendo seguida.

CINTIA
Relaxa. A gente já tá longe.

Ana não diz nada. A expressão em seu rosto é de tensão.

Cintia destrava as portas de seu carro, um veículo antigo muito


bem conservado e personalizado. Ambas entram no carro e sentam-
se. Ana continua olhando para trás.

CINTIA
Ele ainda não percebeu. Você está segura.

Ana dirige seu olhar para Cintia, um pouco mais calma. Mas nada
diz.

Silêncio.

CINTIA
Você... quer falar sobre o que aconteceu?

ANA
Não. Não sei se consigo.

CINTIA
Tudo bem. Não precisa falar nada, se não quiser.

Silêncio.

ANA
Aonde vamos agora?
CINTIA
Não sei, acho que rodar por aí um pouco. O que você acha?

ANA
Não sei. Eu só não quero... ficar aqui.

CINTIA
Beleza. Eu acho que tenho uma ideia.

Cintia coloca seu cinto de segurança e Ana faz o mesmo. Ana


olha pra trás pela última vez. Cintia dá partida no carro e Ana
respira fundo, com um misto de alívio e culpa.

Silêncio.

A ausência de palavras é substituída pelo ronco do motor.


Cintia liga o rádio do carro e uma canção agradável começa a
tocar ao fundo.

Ana sente o vento da janela batendo em seu rosto e fecha os


olhos, como que para potencializar a sensação de frescor e
liberdade. Sem que ela perceba, um sorriso tímido surge em seu
rosto.

4 EXT. DOG DA IGREJINHA – NOITE

Ana e Cintia comem cachorro-quente, sentadas à mesinha dobrável


de uma lanchonete móvel. Ana dá uma boa mordida em seu
sanduíche, faminta. Ela mastiga com calma e, após engolir,
dirige seu olhar para Cintia.

ANA
Obrigada.

CINTIA
(sorrindo)
Não precisa agradecer. Como você está?

ANA
(suspirando)
Meio confusa.

CINTIA
Confusa?

ANA
É... complicado.

CINTIA
(irônica)
Será mesmo?

Ana sorri da provocação. Silêncio.


ANA
(também irônica)
Você tem o costume de sequestrar as pessoas desse jeito?

CINTIA
Você é minha primeira vítima, na verdade. Qual a sensação?

Ambas riem.

ANA
Bom, definitivamente não é o que eu tinha planejado pra minha
noite.

CINTIA
E o que você tinha planejado?

ANA
(encabulada)
Na verdade, eu não planejei nada. Sair hoje foi ideia... dele.
Do... Lucas.

Silêncio

CINTIA
Me fala um pouco de você. Qual o seu nome? O que você gosta de
fazer? A sua família tem dinheiro pra pagar o seu resgate?

ANA
Caramba, eu nem me apresentei! Desculpa! Meu nome é Ana.

CINTIA
Eu sou a Cintia.

ANA
Respondendo às tuas perguntas: a minha família não tem muito
dinheiro, desculpa.

CINTIA
(rindo)
Poxa, meu plano já era.

ANA (cont.)
E quanto ao que eu gosto de fazer... bom, eu gosto de ler, de
sair com as minhas amigas... e principalmente de dançar. Mas
tem um bom tempo que eu não faço nada disso.

CINTIA
Ué, por que não?

Ana, então, fica paralisada ao ouvir seu celular vibrando


dentro de sua bolsa.

Silêncio.

Outra notificação de mensagem. E outra. Ana confere a tela.


Lucas. Sem reação, ela apenas deixa o aparelho na mesa.
Instantes depois, uma ligação de Lucas é recebida no celular,
que vibra estrondosamente sobre a superfície metálica da mesa.

CINTIA
Você vai atender?

ANA
Não.

Os resmungos vibratórios do celular cessam apenas quando a


chamada cai.

ANA
Eu não devia ter feito isso.

CINTIA
Feito o quê? Você não fez nada, eu que te levei de lá.

ANA
Mas ele...

A fala de Ana é interrompida por uma nova ligação de Lucas.


Todos os sons do mundo parecem ser silenciados, restando apenas
a vibração do celular. O barulho parece ensurdecedor dentro da
cabeça de Ana, à beira de uma crise de ansiedade.

Cintia toma a liberdade de deslizar o dedo sobre a tela e


rejeitar a chamada.

O olhar inconsolável de Ana encontra o de Cintia.

CINTIA
Você quer desligar o celular? Pelo menos por enquanto?

Ana não parece muito capaz de tomar alguma decisão.

CINTIA
Você quer que eu desligue o teu celular?

Ana assente com a cabeça, incapaz de confirmar verbalmente.


Cintia desliga o dispositivo.

Silêncio.

ANA
Ele não é assim o tempo todo. Ou pelo menos não costumava ser.

CINTIA
“Assim” como?

Ana pensa por um momento, tomando coragem pra responder.

ANA
(diminuindo o tom de voz a cada palavra)
Controlador, mandão... agressivo...
Após a tentativa de contato de Lucas, Ana abandona o que sobrou
de seu sanduíche na bandeja da lanchonete.

CINTIA
Eu vou pagar a conta e a gente sai daqui, tá bom?

ANA
Tá bom.

Novamente a bordo do carro de Cintia, as luzes da cidade passam


pelo rosto de Ana. Sua expressão é de preocupação.
Elas não trocam palavra durante a viagem, mas ouve-se suas
vozes falando entre si, como uma narração em off. É o som da
conversa delas em sua próxima parada, sendo ouvido antes do fim
da cena anterior, que mostra as duas dentro do veículo,
conforme Cintia dirige pela noite.

5 EXT. PARQUE – NOITE

ANA (v.o.)
Por que às vezes a gente ama quem faz a gente sentir que não
merece ser amada? Eu não entendo, sabe?

CINTIA
Talvez isso não seja sobre amor. Acho que é sobre poder. Esse
tipo de atitude violenta fala mais sobre ele do que sobre você.

ANA (suspirando)
Às vezes eu me sinto meio impotente perto dele. Como se não
tivesse escolha. Mas nem sempre é assim. Ele pode ser muito
carinhoso quando quer. Mas parece que ele quer cada vez menos.

CINTIA
Você já conversou sobre isso com alguém? Alguém de confiança?

ANA
É complicado. Minhas amigas se incomodavam com algumas atitudes
dele, a forma como ele me tratava. Como ele me controlava.

CINTIA
Deve ser difícil pra elas, verem uma pessoa que gostam passando
por algo assim.

ANA.
É. O problema é que eu contei pra ele. Eu tinha resolvido
terminar o namoro e usei isso como argumento.

CINTIA
Mas... e aí?

ANA
E aí ele riu. Me chamou de influenciável. Disse que elas
estavam me manipulando pra terminar com ele, porque tinham
inveja do que ele e eu temos.
CINTIA
Isso nem faz sentido!

ANA
Não, não faz. Mas fez pra mim, na época. Eu acabei me afastando
delas, porque pensei que ele queria me proteger. Porque elas
realmente podiam ser meio intrigueiras, às vezes.

CINTIA
Mas se preocupam com você.

ANA
(triste)
Se preocupavam. Depois de um tempo sem respostas minhas, elas
pararam de me procurar. Era como se, entre elas e ele, eu
tivesse escolhido ele. E, bom, foi isso mesmo que eu fiz, né?

Silêncio.

CINTIA
E você não tem mais ninguém com quem conversar sobre isso? Sua
mãe, uma irmã ou prima...?

Ana fica em silêncio por um momento, parecendo perdida em


pensamentos.

ANA
Eu e a minha mãe não nos falamos direito.

Ana fica em silêncio por um instante, como que esperando por


alguma outra pergunta de Cintia. Quando Cintia demonstra sua
curiosidade apenas com o olhar, Ana continua.

ANA (cont.)
Quando eu era criança, minha mãe começou a namorar um cara. Ele
era legal, atencioso, me enchia de presentes. Mas também era
super ciumento e possessivo com a minha mãe. Quando ele foi
morar com a gente, começou a querer controlar tudo na vida da
minha mãe. Quando ela demorava pra chegar do trabalho, ele
acusava ela de estar sendo infiel, mesmo sabendo que ela sempre
pegava engarrafamento. Nessas situações, ele gritava,
maltratava ela. Até que a violência se tornou física. Não sei
quando começou, mas foi piorando, até que virou algo... normal.
(Ana diz a última palavra com dificuldade)

ANA (cont.)
Eu ficava aterrorizada, sem saber o que fazer. Mas ela não
revidava, não fazia NADA. Só ficava... lá.

CINTIA
Era uma situação muito delicada pra ela, né?

ANA
Era! Ela não tinha mais ninguém, se afastou da família INTEIRA
por causa dele! Minha avó tentou intervir, mas ele conseguiu
jogar minha mãe contra ela. Ele achava que todo mundo queria o
dinheiro dele, dizia que tinham inveja da gente...

Ana fica sem palavras por um instante, refletindo sobre o


quanto se identifica com a história vivida por sua mãe. O olhar
de Cintia sugere que ela também percebeu um padrão entre o
relato e o namoro de Ana e Lucas.

Ana (cont.)
Enfim... ver minha mãe passando por aquilo me destruía por
dentro! Eu tentava mostrar pra ela que ele não era bom pra ela,
mas ela não me ouvia. Isso mudou a nossa relação. Nós
costumávamos ser melhores amigas, mas passei a vê-la como uma
pessoa egoísta. Ela não via o quanto aquilo me afetava?!

Silêncio.
ANA (cont.)
Mas, no fundo, acho que ela fazia isso por mim. Ela não tinha
condições de me oferecer uma vida muito confortável, e largar
do meu padrasto significava abrir mão da pouca estabilidade
financeira que a gente tinha. Hoje eu entendo isso. Mas na
época eu só conseguia sentir... RAIVA. Tanto dele quanto dela.
Lá pelos meus 16 anos, me mudei pra casa da minha madrinha.
Minha mãe ficou devastada. Eu também. Mas, se ela queria
aceitar aquela vida, eu não queria. (suspiros) Ela aparecia pra
me visitar de vez em quando, me implorava pra voltar, mas nunca
voltei. É isso.

CINTIA
Sua mãe ainda é casada com ele?

ANA
Não. Uma vizinha logo percebeu o que acontecia e chamou a
polícia. Eu soube que minha mãe tentou defender ele na
delegacia, mas o exame de corpo de delito mostrou que ela tinha
vários hematomas, até um dedo quebrado! Descobriram que ele
tinha outras acusações por violência doméstica. Nessa época, eu
não morava mais com a minha tia, então minha mãe e ela acabaram
indo morar juntas. Nunca mais ouvimos falar dele.

CINTIA
E a sua mãe?

ANA
A gente se fala vez ou outra, mas geralmente é ela quem me
procura. Eu nunca me perdoei por ter ido embora, por ter
abandonado ela.

CINTIA
Não foi culpa sua, tu era uma CRIANÇA! Não podia fazer muita
coisa pra resolver, então escolheu salvar a si mesma. Ninguém
te julgaria por isso, aposto que nem ela.

ANA
Eu fui tão injusta com ela! E, no fim das contas...
Silêncio

CINTIA
Eu namorei um cara faz um tempo. Ele parecia um sonho. Um
idealista, falava coisas lindas, dizia que queria mudar o
mundo. Era atencioso, engajado politicamente, se dizia anti-
machista. Mas aí, eu percebi que, no fundo, ele se sentia
intimidado por mim.

ANA
Como assim?

CINTIA
Parecia que ele só gostava de mim quando eu ficava à sombra
dele, quando eu me diminuía. Como eu não aceitava essa posição,
ele aos poucos começou a tentar me colocar pra baixo. Criticava
minhas opiniões, minhas amizades... encontrava defeito até nos
projetos que eu participava! Era como se ele nunca ficasse
feliz com a minha felicidade, só se fosse algo envolvendo ele.
Uma vez, a gente brigou feio por causa de uma bobagem e ele me
deu um tapa na cara. Como se fosse nada, apenas uma forma de me
fazer parar de falar. Eu fiquei chocada, né, fui pra casa e
passei uma semana sem falar com ele, nem conseguia levantar da
cama direito. Mas aí conversamos e ele implorou que eu o
perdoasse, disse que aquele não era ele, que eu o conhecia e
sabia que ele não era uma má pessoa. E eu o perdoei. Mas nada
nunca mais foi do mesmo jeito, porque aquele tapa, pra mim, foi
a concretização das atitudes que ele sempre teve, de me
diminuir, questionar tudo que eu fazia. Então eu terminei com
ele, antes que acontecesse de novo.

ANA
Acho que fez bem. Se ele não consegue te respeitar ou te tratar
bem, ele não devia estar com você.

CINTIA
Que bom que nós duas concordamos a respeito disso.

Ambas riem.

ANA
Eu acho que preciso fazer uma ligação, rapidinho.

CINTIA
Certeza?

ANA
Eh, eu preciso.

CINTIA
Tudo bem, então. Vou aproveitar pra falar com as minhas amigas.

Ana é vista a alguma distância, falando ao celular. Cintia a


observa de longe. Por entre as nuvens, os primeiros sinais do
amanhecer surgem.
Ambas entram no carro de Cintia e fecham a porta.

CINTIA
E aí, aonde vamos agora?

ANA
Pra casa da minha mãe.

Cintia dá um expressivo e sincero sorriso para Ana.

CINTIA
Aposto que vocês duas têm muito pra conversar.

ANA
Acho que tenho algumas questões pra resolver com ela. E comigo
mesma.

CINTIA
Vai te fazer bem.

Ambas põem o cinto de segurança e Cintia da partida no carro.

6 EXT. CASA DA MÃE DA ANA – MANHÃ

Cintia finalmente chega à última parada de sua noite com Ana.

CINTIA
Como você está?

ANA
Como se fosse adolescente de novo. Mas bem.

CINTIA
Espero que você encontre... seja lá que estiver procurando.

Elas trocam um abraço caloroso.

ANA
(sorrindo com lágrimas nos olhos)
Obrigado por me sequestrar.

CINTIA
(sorrindo)
Foi um prazer.

Ana abre a porta do carro e sai devagar, como se repensasse sua


escolha. A porta da frente da casa se abre, de onde sai uma
mulher de aparência preocupada, uma versão de Ana com cinquenta
anos.

Ana olha novamente para Cintia, insegura.

CINTIA
Boa sorte.
Ana fecha a porta do carro e caminha em direção à casa. Ela e
sua mãe se encontram ao portão de aparência antiga e trocam um
longo abraço de reencontro.

Cintia observa ao longe até ambas entrarem em casa. Depois, dá


partida no motor de seu carro e vai embora.

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