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§ 20º — Crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito

I. — Notas sobre o crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito


Comete o crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito “quem, abusando da possibilidade, conferida
pela posse de cartão de garantia ou de crédito, de levar o emitente a fazer um pagamento, causar prejuízo a
este ou a terceiro” (artigo 225º, nº 1).

1. Generalidades
A incriminação é recente, deve-se à revisão de 1995, naturalmente por se tratar de um
espaço onde era necessário preencher lacunas, uma vez que o abuso, tout court, de cartões
desta natureza não permitia a aplicação do artigo 217º (burla). Justificando a sua proposta,
o Conselheiro Sousa e Brito observou que não existia um claro enquadramento criminal de
certos casos nomeadamente os que se prendem com a utilização não autorizada de cartões
de crédito. “Esta incriminação encontra-se prevista no código alemão, cujo modelo se
seguiu, embora com uma significativa diferença. Aí ele é previsto como um crime próprio
- só o titular do cartão o pode cometer. Aqui, no projecto, o crime pode ser praticado por
qualquer pessoa. Justifica-se a extensão face ao bem jurídico protegido (património da
entidade emissora do cartão) e à forma como se consubstancia a infracção (abuso da
garantia da entidade emissora). Assim, mesmo a utilização de cartão furtado se encontra
abrangida”. O Dr. Lopes Rocha manifestou algumas dúvidas quanto à utilização do cartão
de crédito enquanto instrumento que possibilite o levantamento de moeda através de um
sistema informatizado. Essa função pode já caber de alguma forma na ideia de fraude
informática”. (1)
a) O cartão de garantia (cartão de garantia de cheques: carte-chèque, Checkkarte)
funciona como garantia de pagamento dum cheque até determinado montante. O
eurocheque, por ex., permite retiradas de dinheiro líquido e o pagamento de mercadorias e
serviços.
O cartão de crédito (credit card; carte de crédit; Kreditkarte) integra-se num sistema que
compreende três partes (2), reunindo sucessivamente a entidade emissora (issuer),
geralmente um grupo de bancos, o titular do cartão de crédito (cardholder) e um universo
de comerciantes aderentes (merchants). Quando se faz uma compra, a pessoa legitimada
para usar o cartão (Visa, American Express, MasterCard, entre outros) aceita pagar ao
emitente assinando a factura do comerciante, donde constam os elementos do cartão e a
indicação do quantitativo a pagar. O vendedor tem meios de verificar se o cartão é válido e
se o titular dispõe do crédito suficiente para pagar o preço. Nos meses em que o cartão
tenha sido utilizado é remetida ao titular, para conferência, a nota indicativa das compras
efectuadas, seguindo-se o débito em conta. Para o comércio, uma transacção com cartão de

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Acta da 39ª sessão, p. 450.
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Os cartões de crédito entram no chamado “Three-partner-system”, ao contrário dos simples cartões de
crédito emitidos por certos vendedores ou por empresas de aluguer de automóveis, que se limitam ao
“Two-partner-system”.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 20º (Crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito), Porto,
2008
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crédito é mais segura do que outras formas de pagamento, por ex., o cheque, uma vez que
o banco emissor aceita pagar ao vendedor ou prestador de serviços a factura conferida,
deduzindo o que lhe é devido pelo serviço prestado (discount rate). Ao titular do cartão de
crédito competirá efectuar pontualmente os pagamentos ou conseguir o correspondente
crédito bancário suportando os juros e as despesas. Na falta de cobertura em determinado
prazo, o banco credor pode chegar ao extremo de declarar o débito incobrável, com a
colocação em lista negra (“to be a charge-off”) e as consequentes desvantagens. (3)
b) É conhecido o baixo nível de segurança do sistema, permeável a incontáveis actuações
fraudulentas. Criou-se, sobretudo, um enorme mercado negro de cartões de crédito
subtraídos ilegalmente de que os delinquentes fazem uso antes de a subtracção ou a perda
terem sido comunicadas.
c) O Código, a mais da incriminação prevista no artigo 225º, equipara o cartão de garantia
ou de crédito a moeda (artigo 267º, nº 1, alínea d)), pondo-os em paralelo com os bilhetes
ou fracções da lotaria nacional. Protege-se o cartão tanto da contrafacção como da
falsificação parcial e da sua posterior colocação em circulação, por aplicação dos artigos
262º a 266º. Quando o cartão, apesar de ser “de crédito”, puder servir para outros fins,
nomeadamente para levantamento de quantias de conta provisionada, a respectiva
utilização para subtracção ilegítima de dinheiro não corresponderá a este crime mas ao de
furto ou de burla informática. A utilização ilícita pode também fazer-se por meio de
cartões de crédito falsos nos PoS, abreviatura para “point of sale” ou “point of service”,
que pode ser uma loja num centro comercial ou qualquer outro lugar onde a transacção
ocorra, mas que algumas vezes designa o terminal de pagamentos por sistema electrónico
num restaurante, num hotel, num casino, etc. (4)

2. Os elementos do ilícito
O artigo 225º parece apontar para um crime especial. Dir-se-ia que autor do crime será
apenas o titular do cartão. Não é essa porém a orientação que tem vindo a prevalecer, por
se considerar que o título de posse do cartão é, em princípio, irrelevante, “podendo ser
responsabilizado tanto o titular do cartão, como qualquer pessoa que, legítima ou
ilegitimamente, possua o mesmo”. (5)
Exige a lei que se leve o emitente (em regra, o banco emissor) a um pagamento, causando
prejuízo a este ou a terceiro. O autor, com o seu comportamento, ao abusar da posse,
atinge os interesses pecuniários da entidade emissora, mas se o cartão for utilizado por
outrem o prejudicado pode ser o próprio titular do cartão ou até mesmo o comerciante
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Do cartão de crédito distingue-se o chamado cartão de débito, que permite efectuar pagamentos e
levantar dinheiro no sistema multibanco por débito imediato da conta bancária provisionada, portanto sem
a intervenção ou intermediação de outras entidades. Cf. por ex., Yves Bernard e Jean-Claude Colli,
Dicionário económico e financeiro, 1º vol,, Círculo de Leitores, 1997, p. 122. O Decreto-Lei nº 166/95, de
15 de Julho, aprovou o regime jurídico da emissão e gestão de cartões de crédito. O processo de
estabelecimento das instituições de crédito e sociedades financeiras que podem emitir ou gerir cartões de
crédito, bem como o exercício da respectiva actividade, são regulados pelo Regime Geral das Instituições
de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, com a
redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 201/2002, de 26 de Setembro . De muito interesse é o trabalho de
Maria Raquel Guimarães, As transferências electrónicas de fundos e os cartões de débito, Almedina, 1999.
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Veja-se a Wikipedia, com o apontamento “point of sale” e indicações sobre a respectiva tecnologia.
5
J. M. Damião da Cunha, Conimbricense II, p. 376.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 20º (Crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito), Porto,
2008
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integrado na rede. O crime consuma-se logo que algum deles sofra um prejuízo com o
abuso. Há uma espécie de repartição do risco no caso de utilização abusiva por terceiro,
dependendo das obrigações contratualmente estabelecidas, relevando sobretudo a
comunicação, ou não, de anomalias com a disponibilidade do cartão.
O que conta parece ser, em primeira linha, o cartão, só depois se olha à posição do titular
dele no sistema, onde jamais entraria sem o cartão. Se o prejuízo típico adviesse
unicamente da actividade do titular, o fundamento de punibilidade ou seria a insolvência
ou a conveniência em não solver o equivalente à dívida contraída, com os eventuais
acréscimos.

M. Miguez Garcia. Direito penal.— Parte especial, § 20º (Crime de abuso de cartão de garantia ou de crédito), Porto,
2008

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