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VOZES VERSOS E SENTIDOS NA POESIA DE MARIZE CASTRO1

Anália Luíza de Lima Alcântara Varela2


Alexandre Alves (Orientador)3
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

RESUMO
O estudo compreende adentrar na poética de Marize Castro a fim de discutir o feminino na
contemporaneidade a partir da análise da sua obra. Sendo elemento estruturante o processo de
emancipação da voz feminina, a ocupação do espaço produtivo e como a poesia de Marize é
refletida nesses planos de observação. A metodologia utilizada, fixa no estudo bibliográfico,
para a sustentação teórica e crítica, sendo utilizados estudos de Nelly Novaes Coelho (1991),
Alexandre Alves (2014), Mariana Ianelli (2016), entre outros, buscando ampliar o plano de
compreensão sobre o contexto literário em que Marize se encontra e como isso é externado
em sua obra. Buscando a obtenção prática de conclusões serão analisados dois poemas,
“Inteira”, presente na obra Esperado ouro (2005) e “Se me olham”, retirado do livro Lábios-
espelhos (2009), o primeiro numa perspectiva fotográfica da mulher contemporânea e o
segundo a partir da observação da maturidade adquirida. Diante disso, o estudo nos leva a
representação poética da mulher e as variadas representações do feminino e como emergem
na contemporaneidade com o próprio sentido do tempo, entendendo o ciclo transitório pelo
qual passamos através da literatura, nas sensações produzidas pelos versos femininos, e como
isto nos coloca numa condição privilegiada de percepção agregadora da essência humana.

PALAVRAS-CHAVE: Marize Castro. Poesia. Mulher Contemporânea. Feminino.

ABSTRACT
The study includes entering into the poetics of Marize Castro in order to discuss the feminine
in contemporary times from the analysis of his work. As the structuring element of the
emancipation process of the female voice, the occupation of the productive space and how
Marize's poetry is reflected in these plans of observation. The used methodology, fixed in the
bibliographical study, for the theoretical and critical support, being used studies of Nelly
Novaes Coelho (1991), Alexandre Alves (2014), Mariana Ianelli (2016), among others,
seeking to broaden the understanding plan about the literary context in which Marize finds
herself and how this is expressed in her work. In order to reach practical conclusions, two
poems will be analyzed, “Inteira”, present in the book Esperado ouro (2005) and “Se me
olham”, taken from the book Lábios-espelhos (2009), the first in a photographic perspective
of contemporary women and the second from the observation of acquired maturity. Given
this, the study leads us to the poetic representation of women and the varied representations
of the feminine and how they emerge in contemporary times with the very sense of time,
understanding the transitory cycle through which we pass through literature, the sensations

1
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-
grandenses, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título
de Especialista em Literatura e Cultura do Rio Grande do Norte.
2
E-mail: <analia_jq@hotmail.com>.
3
E-mail: <alexandrealvesuern@gmail.com.>.
produced by feminine verses, and how This places us in a privileged condition of aggregating
perception of the human essence.

KEYWORDS: Marize Castro. Poem. Contemporary Woman. Womanly.


.
INTRODUÇÃO: A POTÊNCIA DA INTIMIDADE FEMININA NO EMANCIPAR DA
SUA VOZ

A discussão em torno do emancipar da voz feminina no mundo ocidental, com as


conquistas civis da mulher no século XX, como o direito ao voto, aliadas ao crescente
empoderamento feminino, muito em função da liberação sexual da década de 1960, é
refletida na produção literária feminina desde então. Dessa forma, o presente artigo se propõe
discutir a perspectiva do feminino nesse cenário de emancipação e empoderamento da
mulher, tomando como referência a produção poética da escritora potiguar Marize Castro.
Diante disso, a sustentação teórica terá como fundamento os escritos de Nelly Novaes Coelho
(1991), Alexandre Alves (2014), Mariana Ianelli (2016), entre outros; ajudando a elucidar o
contexto temporal de produção da escritora, bem como o conteúdo abordado por ela em suas
obras.
Partindo disso, é importante perceber que a mulher do século XXI, diante das
conquistas impulsionadas no século passado, já não aceita recuos e a poesia se apresenta
como um instrumento revelador dessa nova realidade e suas múltiplas vozes, sendo este o
ponto de partida do estudo que segue.
Tendo assim, em sua perspectiva geral, o intuito de analisar a poesia de Marize
Castro, com foco em dois poemas situados temporalmente em sua produção madura, retirados
de obras datadas de 2005 e 2009, Esperado ouro e Lábios-espelhos, respectivamente, como
matéria diagnosticadora do emancipar da voz feminina potiguar no contexto temporal
presente, objetivando compreender como o reconhecimento da intimidade feminina
potencializou a criação poética, estabelecendo um retrato da mulher, refletindo sobre a
complexidade e as contradições que consolidam este tempo.
Posto isso, compreende-se que a história da mulher ao longo do período civilizado da
humanidade é contada pelo escapamento, pelo protagonismo, algumas vezes brigado, muitas
vezes silenciado, escondido em retóricas patriarcais que padronizaram um perfil forjado,
imposto e sistematizado para ser propagado ao longo dos anos em silêncios e lágrimas. E o
caminho percorrido até aqui foi revelador, transformador, um desabrochar de sentidos pelo
confronto entre a manutenção e a necessidade imperante do novo.
Fazendo o recorte sobre o universo literário feminino potiguar, no que tange a poesia,
o grande nome que surge e resiste nesse cenário é o de Auta de Souza (1876-1901), dentro de
um contexto de dor e memória, que como pondera Duarte e Cunha (2013) é muito bem
aproveitado pelos seus irmãos, que na contramão da ordem estabelecida fizeram sua obra
Horto, de 1900 ser vista. Uma poesia estabelecida pelo apego às tradições românticas com
traços simbolistas. Aqui é importante mencionar, que nesse contexto existiram outras vozes
femininas, como a da assuense Anna Lima (1882-1918) que publicou em 19014 a obra
Verbenas, mas que são pouco estudas e passaram a ser revisitadas, com maior impacto, só
agora no século XXI, em trabalhos como o do professor Alexandre Alves (2014).
Seguindo a linha temporal, entre nomes enevoados, o próximo salto poético, com
relevância sentida no estado, é Palmyra Wanderley (1894-1978), que trouxe em sua formação
uma estética tradicional, tendo inclusive publicado em 1918 Esmeraldas, mas sua vida pedia
mais e sua própria postura pioneira indicava isso, tendo um papel precursor no jornalismo
local, comandando a publicação da Revista Via-Láctea ao lado de Carolina Wanderley, “que
circulou em Natal entre 1914 e 1915” (DUARTE; CUNHA, 2013). Já em 1929 publicou
Roseira Brava, que trazia traços de rompimento com o tradicionalismo estabelecido na
poética feminina do estado, propondo conteúdos que inquietavam essa normalidade
estabelecida.
Após mais um lapso temporal, já na década de 1950, a poesia potiguar se revigora
com a escrita de Zila Mamede (1928-1985), segundo Alves (2014), produzindo de forma
inconteste poesia moderna, estando alinha à geração de 45. Nesse sentido, é importante
compreender o contexto em que o mundo, em especial o ocidental, estava inserido, um tempo
de transição para algo diferente, um mundo que passara por duas grandes guerras e parecia
acreditar no seu renascimento. Diante disso, a urgência da voz feminina ser ouvida, dentro do
cenário literário potiguar, ganha cada vez mais força no discurso e nos espaços e os lapsos
temporais passam a ser menores, surgindo novos nomes que vão ocupando lugares diferentes,
seja na produção, na estética, no conteúdo, um caminho sem volta. É nesse cenário que se
destaca Myriam Coeli (1926-1982), com uma poesia íntima e muitas vezes trazendo
referências do universo infantil. Além da literatura, Myriam, também apresentou forte
atuação na educação e jornalismo, como informa Gurgel (2001).
Assim, essa mulher que agora se apresenta, potencialmente amadurecida nesse
processo de emancipação da sua voz, resolve trabalhar suas inconstâncias, suas ditas

4
Informação retirada do blog Literatura Potiguar. Disponível em:
<http://literaturapotiguar.blogspot.com/2010/01/anna-lima.html> Acesso em: 27 Jul. 2019.
“fragilidades”, como um mecanismo de autoconhecimento, e, por conseguinte, tradução do
seu poder, da sua feminilidade, tudo dentro de uma conscientização e criticidade. Uma vez
que, o mundo feminino sempre esteve ditado por uma ordem padrão patriarcal.

Na verdade, em todas as épocas, e das mais variadas maneiras, o mundo feminino


foi apoio e espaço concretizador das ideias, crenças, conquistas ou inovações do
mundo masculino... Assim, nada mais natural que agora também esteja sendo
espaço por excelência onde o “novo” se está forjado, em meio a desencontros,
perplexidades, acertos e desacertos. Com a diferença de que, agora, um dos
elementos-chave da mudança em processo é o próprio mundo feminino, é a própria
condição de mulher que tenta se redescobrir e se reequacionar em sintonia com as
novas forças imperantes. (COELHO, 1991, p. 93-94)

O aflorar dessa transição e da consistência que vai sendo adquirida é notado em


variados aspectos dentro da sociedade, e na poesia, isso ganha formas diversas, não há ícones
em missão solo, o que passa a existir é uma necessidade e a conquista de um espaço para
falar. Mesmo no cenário aparentemente limitador do Rio Grande do Norte, a poesia vem
ganhando novas possibilidades, principalmente a partir da década de 1980 e cada vez mais
nomes surgem sob, contextos e perspectivas diversas, Anchela Monte, Marize Castro, Diva
Cunha, Iracema Macedo e tantas outras.
Sob esta concepção, a poesia de Marize Castro terá sua ambientação inicial na esfera
temporal dos anos 1980, e sua atenção em sentir o seu tempo é vista logo em suas primeiras
construções poéticas, sob a estética da poesia marginal, comprovando-se ao publicar Marrons
Crepons Marfins, em 1984, obra esta que no ano anterior ao seu lançamento foi agraciada em
premiação local5. A consolidação do seu estilo se dará nas obras seguintes. E será a partir da
aliança de sensações, sentidos e intimidades que a sua obra vai sendo desenvolvida desde
então. Tudo é desbravar, autoconhecimento, potência íntima, é lírica forte que mergulha na
intimidade, mas não se desprende do seu tempo, das inquietações que são suas, mas ampara
as histórias de tantas outras mulheres.
Marize coleciona obras poéticas que confirmam sua habilidade de tradução íntima da
mulher contemporânea. Atrelado aos versos, Marize também atua na comunicação e escreve
em outros tons para traduzir outros sentidos à prosa jornalística, sua produção é constante,
intensa, densa, profunda, capaz de perturbar e acalmar com a mesma competência. Entre suas
publicações em versos, estão: Marrons Crepons Marfins (1984), Rito (1993), Poço. Festim.
5
Prêmio da Poesia FJA (1983).
Mosaico. (1996), Esperado Ouro (2005), Lábios-espelhos (2009), Habitar teu nome (2011) e
A mesma fome (2016). Nesse sentido, adentrar na intimidade feminina a partir da obra de
Marize Castro é compreender a carga passada e o porquê da consolidação da voz feminina no
cenário literário atual.

1. Ecoa, Marize: o retrato da mulher contemporânea, sua multiplicidade e solidão

A figura da mulher fragmentada em sua própria história buscando unir suas partes e se
fazer inteira é uma imagem que fundamenta a compreensão de um tempo essencialmente
complexo por quebrar paradigmas e leva ao entendimento do padrão ser disforme, não linear,
que aglutina, agrega, desconstrói para construir. A consolidação desse retrato que faz
oposição aos modelos cânones da figura feminina, como todo padrão, requer tempo,
permanência, variações pontuais e a consolidação de uma maioria. Maioria esta, que ainda
não existe. A poesia de Marize, nesse contexto, reverbera a ideia do não arrependimento no
dizer e no agir, mas do conhecer e talvez errar, para essencialmente entender e enfim se
conhecer como o sujeito que é.
Logo, em sua primeira publicação, Marrons Crepons Marfins, Marize se livra das
amarras, fala como mulher pulsante que tem desejos, que ecoa vozes e que estas se
manifestam a partir das experiências práticas, lúdicas, quaisquer que sejam em seu universo
vivo, “Há paixão, audácia, teatralização trágica em ‘lâminas’, ‘navalhas’, ‘espadas’, ‘setas’ e
fogos frequentes nos versos”6. Uma mulher que não se reprime, que tem na memória o
caminho para a liberdade a partir da consciência sobre o passado.
A poesia de Marize é primordialmente feminina, trabalhando com as constâncias e
inconstância do cotidiano, os detalhes que nos forjam e que acabam por refletir nossos
comportamentos. Tudo isso é material que ferve e se torna elemento poético em sua obra.
Características que condensam uma tradição de nomes potentes e que Marize deixa clara sua
conexão com cada um deles.

[...] há muitas outras vozes que são da família de Marize, não só brasileiras, como
Hilda Hilst e Zila Mamede, como também de outros tempos e lugares, como Safo,
de quem a poeta herda a sensualidade dos ardis de sedução, por sua vez herdados de
Afrodite, ou Emily Dickinson, com quem Marize compartilha, por exemplo, o

6
IANELLI, Mariana. Uma voz sublime e rara. Rascunho. ago. 2016. Disponível em:
<http://rascunho.com.br/uma-voz-sublime-e-rara/>. Acesso em: 04 jul. 2019.
segredo de vulcões domésticos e um jardim de casa com suas leis de botânica e teias
de aranha como signos de tessitura poética, enredo de atração, mortalha. (IANELLI,
2016)7

Desse modo, Marize vai lidando com sua própria construção, em um constante
processo de autoconhecimento, que reverencia quem veio antes e se abre ao mundo a partir
da sua escrita, que entre impulsos explícitos ou sutilezas. Assim, o seu primeiro livro trabalha
a potência feminina, expondo-a como uma dinamite que esmorece paredes sólidas da tradição
poética local, impondo sua singularidade inconteste. Sobre isso, é importante refletir que:

Nesse ponto, é uma poesia descontínua, diferentemente, por exemplo, da de


Diva Cunha, com a qual guarda certa semelhança na regularidade com que
periodicamente se renova.
Nenhum outro poeta norte-rio-grandense cultivou tão intensamente a poética
do eu, o pendor confessional, como motivo poético, como o faz Marize Castro traço
que, pelo seu caráter repetitivo, se contrapõe às escolas poéticas contemporâneas
desde os modernistas de 22, avessos à poesia do si, princípio que prevalece até os
dias de hoje. (PATRIOTA, 2012)

Dessa forma, faz-se necessário observar que o trabalho de construção poética que
coincide com seu autoconhecimento é um ponto de fusão de condições diversas, Marize sente
o seu tempo e traz diante dele todos os sentidos, mas não relega certas tradições, como no
caso do uso do verso livre, apontando referência ao Modernismo, mesmo diante do seu início
como poeta marginal. Essa sua capacidade de lidar com os elementos que estão em processo
de desconstrução aprofunda sua arte e expõe uma ideia de “sagrado” muito particular, como
sendo tudo aquilo que toca sua alma, que a faz sentir.
Em seus escritos seguintes, Rito (1993) e Poço. Festim. Mosaico (1996), os sentidos
se tornam mais aguçados, complexos, íntimos. É um revelar consistente da sua imersão pelo
feminino, em seu próprio exercício de autoconhecimento, em que Marize dialoga consigo, se
pinta, se mostra, emerge em cenários ficcionais e depois se desnuda novamente, pois a base
do seu tempo (a contemporaneidade) é a desconfiança sobre as certezas.
Diante disso, direcionando a análise para a correlação temporal entre a poesia de
Marize e a mulher que se consolida na contemporaneidade, entende-se “à profícua

7
IANELLI, Mariana. Uma voz sublime e rara. Rascunho. ago. 2016. Disponível em:
<http://rascunho.com.br/uma-voz-sublime-e-rara/>. Acesso em: 04 jul. 2019.
desconfiança em relação aos discursos universais e totalizantes.” (ZOLIN, 2009, p. 105),
sendo um referencial motor da nova construção social emergente sobre o feminino. A mulher
sai da sua condição de certeza e entra numa esfera experimental de descobertas e libertações,
mas não consiste numa travessia simples, uma vez que sair de um lugar conhecido, por mais
limitador que este possa ser, para adentrar num plano desconhecido de múltiplas
possibilidades, gera questionamentos e temores.
Posto isso, a forma como cada mulher lida com essas exigências acaba por definir seu
lastro íntimo. Marize Castro em sua poesia concebe esses ideais de forma pessoalíssima, sem
uma cobrança exagerada de chegar a uma definição final. Ela entende o lugar múltiplo da
mulher ao passo que constrói em sua poética um olhar de ressignificação dos símbolos,
dando-os um novo elemento de caracterização, sem necessariamente revogá-los.
Sobre esse lidar com as tradições e os rompimentos é importante compreender que:

Enquanto na literatura, e na arte, de um modo geral, o autor e a construção de


sua persona ainda estejam em foco, também está em ação e subterraneamente se
difunde um poder de descentramento de controle do artista sobre o próprio fazer
criativo, o que faz, na poesia, uma voz ser atravessada por outras vozes, e a matéria
da vida afirmar-se como força motriz de uma pluralidade de valores, relativização
de certezas e liberdade como legado do romantismo muito antes de uma virtude da
contemporaneidade. [...] A poesia da potiguar Marize Castro, dentro do panorama
da poesia brasileira atual, ocupa justamente esse espaço subterrâneo de
descentramento, de humildade perante forças (de mitos, símbolos, ritos) de uma
ancestralidade nem sempre consciente, o que torna sua escrita porosa às vozes de
outras mulheres, que são míticas, modernas e arcanas, numa tessitura de signos e
mistérios nunca inteiramente decifrável. (IANELLI, 2016)

Ao entender onde se encaixa a poesia de Marize, dentro da produção literária


brasileira, e as referências que seus versos possibilitam ao construir o retrato da mulher e suas
variadas versões, que tem consciência da solidão e passa a ver esta como uma aliada rumo a
sua autodefinição, tem-se o explicitar de um diagnóstico comportamental do feminino frente
à contemporaneidade.

Adentrando no estudo poético, de como todo esse sentido é expressado, é fundamental


analisar a forma como a linguagem é utilizada por Marize na construção da sua poesia, uma
vez que em primazia há uma elegância estética, sem que os símbolos sejam expressados de
forma eufêmica. E isso será utilizado com propriedade para discutir o feminino como uma
potência íntima que extrapola os limites do indivíduo, passando a constituir fotografias que
são refletidas na sociedade diante do comportamento feminino contemporâneo e seus
dilemas, numa espécie de linguagem andrógina, como bem estabelece Ianelli (2016).

Diante disso, perceber os estímulos dessa mulher em construção nos versos de


Marize, acaba por ecoar sua obra e seu constante progresso, lidando com as sutilezas, mas
também com o explícito, reverberando características da contracultura, numa “erotização
verbal”8 bem acabada que expõe com sobriedade essa mulher que passa a se reconhecer em
sua totalidade, justamente ao esmiuçar seus fragmentos. Por isso, para exemplificar essa
multiplicidade das vozes e sentidos nos versos de Marize, o presente estudo destaca como
referencial para análise o poema “Inteira”, de sua obra Esperado ouro de 2005.

INTEIRA9

Iluminada por oráculos


alimento anjos com asas quebradas.

Não é de vendaval que eu preciso


mas da língua do amor guardada à beira-mar.

Não entendo de círios


mas de verões e sargaços bailarinos.

Acolhida pela província,


arrisco-me a enlaçar orquídeas em árvores.

Sempre sofri.
Sempre tive febre.
Sempre estive inteira em todos os infernos
Nunca quis ser abandonada.
Mas aprendi a perder.

O naufrágio me ensinou a ternura dos afogados.

A partir da leitura do poema uma série de discussões acerca da forma como o


feminino é trabalhado e exposto na obra de Marize se elucida, o jogo das palavras que
acabam por revelar imagens vívidas de uma feminilidade em processo de emancipação, que

8
IANELLI, Mariana. Uma voz sublime e rara. Rascunho. ago. 2016. Disponível em:
<http://rascunho.com.br/uma-voz-sublime-e-rara/>. Acesso em: 04 jul. 2019.
9
Retirado da Revista Germina. Disponível em: <https://www.germinaliteratura.com.br/marize_castro.htm>.
Acesso em: 04 jul. 2019.
se ressignifica a partir da consciência crítica sobre a sua própria existência, impõe a força que
constitui essa mulher retratada em “Inteira”.

O primeiro plano de conteúdo que emerge dialoga com o sagrado, elemento este,
recorrente no livro ao qual pertence o poema. Mas o divino em Marize vai além das
concepções dogmáticas estabelecidas tradicionalmente na sociedade, “em sua fé, há a crueza
dos místicos, como a de Maria Madalena, que, em seu Evangelho, ao invocar a alma, confere-
lhe o predicado de “assassina”.”10.

Posto isso, logo na primeira estrofe encontramos uma marca do paradoxo em que se
encontra a síntese da construção dessa mulher contemporânea que habita e transita por
diferentes arcos. Uma mulher iluminada pela resposta divina, mas que sua existência acaba
por alimentar os demônios mundanos, aquilo que não é virtuoso dentro da moral sagrada
religiosa, expondo a crise da mulher, iniciada no século XX, e que perdura ainda na
contemporaneidade, bem ponderada por Marías (apud COELHO, 1991, p. 93), ao discutir o
processo em que a mulher passa a olhar para si e perguntar-se a si mesma.

Seguindo essa premissa, na estrofe seguinte, Marize passa a discutir as necessidades


que lhe pertencem, usando elementos simbólicos naturais e de imagens bem definidas,
“vendaval” e “beira-mar”, mais uma vez trabalhando com opostos, contrapondo, o vento
intenso em prenúncio de tempestade e a calmaria, o equilíbrio, ordado pela “língua do amor”
que transfigura a ideia de que o amor só se faz completo quando equilibrado, no ritmo da
água à beira-mar, entretanto, essa imagem de calmaria também pode vir como uma referência
física, carnal e sensual, dando profundidade à construção poética. Essa lírica de símbolos
acaba por ficar mais evidente na terceira estrofe em que o sagrado e o profano são postos em
embate a partir da representação religiosa, “círios”, em alusão ao rito religioso com velas que
ganha forma a partir de uma procissão, e do elemento que remete a liberdade da carne,
“verões e sargaços bailarinos”, em que o referencial imagético nos leva ao cenário praiano, ao
calor, ao exibir corporal.

Assim, Marize permite ao leitor testar a intimidade do eu-lírico, expondo fragmentos


dessa mulher que vai se mostrando, se conhecendo e montando seu próprio quebra-cabeça.
Nessa etapa do poema, ocorre um movimento de fora para dentro, uma reverência ao

10
IANELLI, Mariana. Uma voz sublime e rara. Rascunho. ago. 2016. Disponível em:
<http://rascunho.com.br/uma-voz-sublime-e-rara/>. Acesso em: 04 jul. 2019.
sentimento de reconhecimento, mas que serve para ampliar e consequentemente aprofundar
essa intimidade, como se a acolhida lhe permitisse ir além. Isto fica claro no verso seguinte
(arrisco-me a enlaçar orquídeas em árvores), quando usa como referenciais simbólicos as
orquídeas e seu enlaçar nas árvores, figurando, aqui, uma segurança diante da história, sendo
capaz de correr riscos, adentrar em novos planos criativos e florescer.

Desse modo, as quatro primeiras estrofes do poema se apresentam como um percurso


de autoconhecimento que se concretiza ao tomar consciência que são todos os fragmentos da
sua vivência, o tronco de sustentação da existência deste eu-lírico, fato o mantém inteira. Os
versos da quinta estrofe, nesse sentido, servirão como um desabafo que permite compreender
sobre a resignação sobre o caminho percorrido até então, o resultado do sofrimento, a
intensidade com que vive, a fortaleza que constrói em volta para enfrentar os percalços da
vida, a fuga da solidão e por fim, o amadurecimento.

O verso final (O naufrágio me ensinou a ternura dos afogados), explicita toda a


elegância estética da linguagem de Marize, é intenso e íntimo. E ao compartilhar as
profundezas da alma, acaba por retratar em cores a universalidade do seu percurso interior
que reflete e se replica em várias outras pessoas, mulheres. Alegorizando que a perda, o
afundamento e a sobrevivência promove a sabedoria, pois são as vivências que possibilitam o
amadurecimento.

Sistematizando todos os sentidos trabalhados no ecoar da voz de Marize, fica traçado


que o feminino, tal qual ponderou Coelho (1991), em meio a uma crise comportamental e
social, a partir do rompimento de padrões e valores, propôs uma literatura capaz de penetrar
na intimidade, nas complexidades do íntimo e expor reflexos diante da sociedade.

1.1.1 A sabedoria e inquietude da maturidade em Lábios-espelhos

Discutido o alcance poético de Marize diante da sua fome de reverberar as vozes que
lhe compõe e se estende como um retrato da mulher contemporânea. O estudo adentra neste
último tópico, na análise da obra Lábios-espelhos, com o intuito de trabalhar a maturidade
feminina a partir dos versos de Marize, sob os aspectos, sabedoria e inquietude. Nessa
perspectiva é importante destacar que os versos vão se desenhando a cada poema como uma
expressão do ser essencial de Marize, “Aqui, o motivo preponderante é a Poesia, em sínteses
que nunca são óbvias tampouco artificiosas”11. Desse modo, a escrita de Marize se mostra
dona de um autoconhecimento que extrapola o íntimo e salta para o universal, lidando com
traços estéticos e de conteúdo.

Em ponderações sobre a obra, Moacir Amâncio (2009), fala da precisão na escrita,


limpidez na linguagem, mas que não refuta a densidade dos sentidos que são explicitados.
Esse domínio linguístico, que expõe profundidade e objetividade ao mesmo tempo, se mostra
como um ponto fundamental na composição da maturidade que o livro comporta.

A poesia de Marize Castro em Lábios-espelhos é cortante; desperta suspiros,


alívios, sustos a cada frase ou palavra-síntese. A leitura é tensa, agridoce. A
sensualidade está embutida como toucinho em osso e ameniza a angústia prazerosa
da leitura. A ânsia é pelo desfecho, como quem espera o fim de um suspense de
Hitchcock. E a cada conclusão, um corte navalhado de difícil cicatrização.
(CARLOS, 2009)

Assim, Marize caminha por seus impulsos, suas certeza e dúvidas, trabalha com uma
conexão com o sagrado, por vezes expressa numa divindade externa universal, mas que
atentamente se transfigura em sua própria existência, pois é nesse exercício de autodefinição
que ela se conecta com as questões existenciais, como no poema “Serei ele?” expondo sua
inquietação com o divino. E nesse caso, a existência está intimamente ligada à poesia e seu
trabalho contínuo perante a escrita, a linguagem, tema explicitamente trabalhado em “Se não
escrevo” ([...] destruo-me./Incendeio-me./Murcho./Cego-me.), ou ainda em “A poesia” e em
“Quando a poesia diz sim”.

Se o sagrado é trabalhado de forma íntima e constante na obra em destaque, o profano


não é abandonado e se apresenta como um elemento inerente à existência, o desejo, as
sensações, tudo isso é tratado e consistentemente postos como componentes formadores não
só do seu ser como também essenciais para a construção da consciência que é a própria
liberdade conquistada.

Sob esse aspecto, para compreender em definitivo a maturidade apresentada na obra,


será colocado em análise o poema “Se me olham” (CASTRO, 2009, p.37), agregando os
elementos essenciais debatidos até aqui.

11
IANELLI, Mariana. Uma voz sublime e rara. Rascunho. ago. 2016. Disponível em:
<http://rascunho.com.br/uma-voz-sublime-e-rara/>. Acesso em: 04 jul. 2019.
SE ME OLHAM

Por que quase tudo perdi,


tornei-me sem adereços.
Nada existe que me tire
de mim mesma.
Nem mesmo esses cadáveres
de plástico em seus simulacros
de alabastro.
Se me olham, não me alcançam.
Nem ouvem o que a minha alma diz:
Não quero mais o que jamais quis.

Diante disso, mergulhando na voz íntima do eu-lírico de Marize, já nos deparamos


com os sinais da resiliência inequívoca, a linha tênue entre a inquietude da vida e a calmaria
proporcionada pelo saber, um equilíbrio essencial. No primeiro verso, a sua voz é certeira ao
falar das perdas ao mesmo tempo em que configura responsabilidade sobre sua vivência, no
verso seguinte mostra o resultado disso ao despir-se expondo o que é verdadeiro em seu
íntimo, aqui já não há espaço para máscaras e é confirmado pelo terceiro versos que traz toda
a sobriedade adquirida quanto a sua existência, uma consciência sobre seu eu interior, sobre
sua intimidade.

Nesse sentido, os primeiros quatro versos (Por que quase tudo perdi,/tornei-me sem
adereços./Nada existe que me tire/de mim mesma.) fazem um trabalho de apresentação da
maturidade que lhe orna e que é percebida por aqueles que entram em contato, pois já não se
trata de uma consciência subterrânea do seu ser, mas uma constatação explícita da sua
existência.

Seguindo nos versos do poema em análise, o quinto verso (Nem mesmo esses
cadáveres) expõe um outro elemento fundamental na constituição dessa maturidade, a
resistência. A resistência sobre as lembranças, sobre o passado, e segue demonstrando uma
formação crítica e elucidativa ao indicar a resistência sobre os ídolos descartáveis que
ascendem na instantaneidade a qual estamos submetidos. O eu-lírico expõe as seduções da
vida social, da cultura e também da religião, demonstrando também resistência às
representações divinas. Depois fala de enfrentar as fragilidades com um propósito bem
definido, em que o aprendizado resulta na construção de uma fortaleza frente aos
sentimentos, que apesar de não proteger de todos os percalços da vida, possibilita um
enfrentamento consistente e equilibrado.

Posto isso, os versos finais do poema (Se me olham, não me alcançam./Nem ouvem o
que a minha alma diz:/Não quero mais o que jamais quis.) serão dedicados aos mistérios
inerentes à alma, os segredos inquietantes até para o próprio ser. Nesse ponto, o eu-lírico de
Marize é direto e expõe sem rebuscamento linguístico a natureza indecifrável de que é
formada, é impossível revelar todo o íntimo na aparência, o ser humano é essencialmente
mistério. O alcance é íntimo, secreto, composto de vozes inaudíveis que se prepondera no seu
próprio ser e consciência. Por fim, se fala de maturidade real, autocontrole e defesa frente às
seduções do mundo. Consciência e compreensão do seu ser, das escolhas feitas e do que
almeja no futuro, uma liberdade perene que é deixada à mostra impondo essa autodefinição
não só perante seu íntimo, mas também diante do exterior.

Analisado o poema e as referências trazidas em seus versos, temos a sintetização da


poética de sentidos personalíssimos proposta por Marize e a construção de uma maturidade
que se mostra eficiente no processo de diagnóstico da autopercepção pelo qual a mulher
contemporânea tem passado, é a compreensão da experiência feminina, tanto no que
transcende o terreno como no que enraíza diante da vivência terrena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entender a poética de Marize Castro como elemento de estudo da mulher


contemporânea ao passo que os reflexos personalíssimos inerentes a sua obra são
diagnósticos do processo de construção do feminino na contemporaneidade, mostra a
potência universal, o alcance sem fronteiras que a língua e a escrita podem provocar.
Ao percorrer sua construção literária, suas referências e sua substancial consciência da
singularidade feminina, constatamos que a compreensão do passado como elemento
norteador das perspectivas futuras são fruto da reverência sagrada com a palavra, não apenas
como uma representação simbólica, mas como o próprio sentido do seu exercício literário. E
essa maturidade é resultado de uma busca incansável por uma autodefinição, um
autoconhecimento necessário para manter sua existência inquieta, com fome de fazer mais e
com sabedoria e equilíbrio capazes de potencializar suas vozes em seus versos.
O fundamento para tal estudo se dá pela necessidade de inclinar as problemáticas e
questões contemporâneas da vida social, como a questão de gênero no universo literário, não
apenas como um recorte, mas como composição de um mesmo plano de observação e
construção de conhecimento. A partir de uma vivência local que transcende as fronteiras e
comunica de forma universal, sem impor marcas essenciais do regionalismo, potencializando,
assim, esse lugar contemporâneo fragmentado, mas que comunga, pois são parte de uma
estrutura maior que conecta vozes num processo transitório de formação de uma nova
definição sobre o ser mulher, sobre o feminino, sepultando máximas sociais.

REFERÊNCIAS

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2014.
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2009. Disponível em: <http://substantivoplural.com.br/labios-espelhos-de-marize-castro/>.
Acesso em: 11 jul. 2019.
CASTRO, Marize. Esperado Ouro. Natal (RN): Una, 2005.
CASTRO, Marize. Lábios-espelhos. Natal, (RN): Una, 2009.
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ZOLIN, Lúcia Osana. A literatura de autoria feminina brasileira no contexto da pós-
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