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a Narciso
Organizadoras
Regina Herzog
Fernanda Pacheco-Ferreira
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S664
De Édipo a Narciso – a clínica e seus dispositivos / organizadores, HERZOG, Regina
e PACHECO-FERREIRA, Fernanda – Rio de Janeiro: Cia de Freud: UFRJ; Brasília, DF:
CAPES PRODOC, 2014.
220 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7724-116-3
1. Édipo. 2. Narcisismo. 3. Psicanálise I. Herzog, Regina e Pacheco-Ferreira, Fernanda
II. Brasil. Coordenação de Amparo à Pesquisa de Nível Superior. Programa de Apoio a Pro-
jetos Institucionais com a Participação de Recém-doutores. III. Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica.
12-2800 CDD: 155.2
CDU: 159.923
30.04.14 09.05.14 035187
Instituições de Apoio
Prefácio .......................................................................................................9
Para introduzir o narcisismo... cem anos depois
Regina Herzog & Fernanda Pacheco-Ferreira
Artigos
De Édipo a Narciso: a técnica em questão ................................................. 23
Fernanda Pacheco-Ferreira & Regina Herzog
Jô Gondar
Aquilo que tem sido atualmente designado como sofrimento narcísico não é
uma entidade psicopatológica definida, mas uma forma de considerar alguns
modos contemporâneos de padecimento para os quais se buscam alternati-
vas teóricas e clínicas. Designá-los assim implica uma hipótese sobre o tipo
de sofrimento que acomete esses sujeitos: considera-se que há modos de ser e
de sofrer que se caracterizam por uma ausência de coesão subjetiva. São mo-
dos subjetivos que remetem a uma fragilidade na constituição do narcisismo
em consequência de vivências traumáticas muito primitivas. Existe nesses
sujeitos algum contorno, alguma unificação do corpo, mas essa unificação
não tem muita consistência; o contorno egoico é frágil e pode se desvanecer
com facilidade. É justamente essa inconsistência ou tendência ao desvaneci-
mento que está sendo apontada como característica do sofrimento narcísico.
É possível, e nada incomum, encarar essa modalidade de sofrimento a
partir de sua dimensão negativa, isto é, definindo ou patologizando o sujeito
que assim sofre pela distância que ele apresenta em relação a um modelo
positivo de subjetividade. A esses sujeitos faltaria algo – um contorno, uma
identidade, uma unidade – e devido a isso eles padecem. Trata-se de uma for-
ma possível de pensar e existem trabalhos importantes que a desenvolvem.
Também existem outras. Gostaríamos de desenvolver uma hipótese sobre
1
Ver por exemplo Figueiredo, L. C. O caso-limite e as sabotagens do prazer in Elementos para
a clínica contemporânea.
acontece com eles e com o entorno. Nesse aspecto eles são bastante sensíveis
(são muito hábeis para “sentir com”) e perspicazes.
Em suma, existem momentos em que o outro é visto como uma espécie
de ideal e, nesse sentido, um semelhante – mesmo se idealizado –; enquanto
que em outros o sujeito se sente sem semelhante algum, num mundo sem
outrem. (É importante dizer que esses momentos não são tão “puros”, e que
nem sempre essas características se mostram tão claramente. Mas, de qual-
quer modo, suas características paradoxais se mantêm). Poderíamos resumir
as duas tendências, em suma, como um movimento de expansão inconsis-
tente (no estilo de um gigante com pés de barro) e um movimento de retra-
ção e isolamento. A ideia proposta por Green de que as angústias fundamen-
tais dos borderline – a angústia de abandono e a angústia de invasão – podem
se combinar bem com essa proposta. Nos sujeitos borderline – e os pacientes
narcísicos se encaixam bem aqui – a questão é sempre a da boa distância.
Problema que acaba desembocando num paradoxo de resolução impossível,
já que uma invasão também constitui um abandono, e um abandono não
deixa de ser uma invasão.
De qualquer modo, não me parece que os sofrimentos narcísicos devam
ser situados de um lado ou de outro de uma báscula; é clinicamente mais
rico – além de mais fiel ao que empiricamente observamos nos tratamentos
analíticos – situá-los na própria báscula, no movimento pendular incessante,
capaz de promover um equilíbrio metainstável como o de um funâmbulo na
corda bamba, sustentando-se a partir do próprio desequilíbrio. Isso significa
pensar que o paciente narcísico não se caracteriza por um delineamento, por
um tipo de contorno e nem tampouco pela falta dele; o que marca esses sujei-
tos é um certo modo de circulação – de energia, afetos, padrões relacionais,
humores. Esse modo de circulação não é avesso à produção de contornos ou
formas; a questão é que essas formas seriam temporárias, formas em trân-
sito. Ao invés de se situar em um ou outro polo, as subjetividades narcísicas
permaneceriam no entre, constituindo uma lógica paradoxal.
É importante deixar claro que, em um paradoxo, o entre não constitui um
lugar do meio, e nem mesmo um novo lugar. Não se trata de, entre preto e
branco, estabelecer um cinza – o que implicaria uma síntese entre os polos
–, e sim de levar em conta os inúmeros matizes que existem entre preto e
Quando estão em jogo experiências psíquicas que se situam para além das
vivências neuróticas, é preciso usar um modo de pensamento ou uma ló-
gica que também as ultrapasse. Caso contrário, seríamos levados sempre a
pensar nos sofrimentos narcísicos como neuroses mal acabadas, instituin-
do a neurose como modelo universal da subjetividade e definindo as outras
modalidades subjetivas em relação a ela. Teresa Pinheiro (2007) menciona,
a esse respeito, as pesquisas sobre autismo realizadas por Paulina Rocha e
Ana Elizabeth Cavalcanti. Houve um momento em que, ao invés de definir
as crianças autistas pelo déficit – por sua ausência de desejo ou fantasia, por
sua dificuldade na relação com o mundo e com a vida –, elas se perguntaram:
mas o que, afinal, essas crianças têm?2. De que maneira elas poderiam ser po-
sitivamente definidas? Como descrever seu modo próprio de subjetivar-se?
Poderíamos fazer a mesma pergunta em relação aos pacientes narcísicos: o
que é que eles têm? Como é que positivamente funcionam?
O que pode ser dito, de saída, é que a dinâmica do sofrimento narcísico é
paradoxal. Não é isso ou aquilo (oposição que caracteriza uma lógica binária);
na verdade é isso e aquilo ao mesmo tempo (tensão que caracteriza o parado-
xo). Se tentarmos entender o sofrimento narcísico a partir de uma lógica
binária – bom/mau, fora/dentro, positivo/negativo, esperança/desespero –
só vamos apreendê-lo enquanto deficitário, pois vamos pautá-lo no modo
de funcionamento que mais conhecemos; esse sujeito então será visto pelo
negativo, como um neurótico mal acabado – aquele que não simboliza, não
representa, não integra, não recalca e não tem fronteiras. Ou, ao menos, que
realiza tudo isso de forma muito precária.
2
A este respeito ver Pinheiro, T. Prefácio a Cavalcanti, A. e Rocha, P., Autismo: construções e
desconstruções.
o que o limiar faz não é simplesmente separar dois territórios (como faz a
fronteira): ele permite a transição. Benjamin o aproxima da ideia de onda. E
não é por acaso que escreve sobre o limiar num caderno sobre prostituição: o
limiar é uma zona. Lembra viagens, fluxos e contrafluxos. “Não significa sim-
plesmente separação, como a fronteira, mas aponta para um lugar e um tem-
po intermediários e, nesse sentido, indeterminados [...]” (Gagnebin, 2010,
p. 15). É aquilo que se situa “entre” duas categorias, essa zona intermediária
à qual se costuma opor tanta resistência, pois na maioria das vezes se prefere
as oposições demarcadas e claras (masculino/feminino, público/privado, eu/
outro), mesmo que se procure, em seguida, dialetizar essas dicotomias.
Mas de que maneira a noção de limiar poderia contribuir para o desenvol-
vimento de nossa questão? Seria possível se construir um modelo de funcio-
namento psíquico a partir de uma dinâmica pautada por limiares?
E o lugar do analista?
Referências bibliográficas