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Estudando: Introdução à Educação

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Sobre a Educação do Olhar na Escola


1: A recepção muda tudo: Sobre a Educação do Olhar na Escola
 
1.1  . Lições sobre o “Olhar”
 
(Obra de Giuseppe Arcimboldo[1])

“Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão.”

Edgar Morin

Ao iniciar este texto, apresentamos um desafio. Olhando para o quadro acima, podemos afirmar que o que
pensamos que vemos é realmente o que vemos? É possível afirmar que não há erro ou ilusão na
interpretação do nosso olhar? O que vemos no quadro acima? Será um recipiente de ferro (ou de outro
material) contendo legumes e hortaliças? Têm certeza? Por favor, ponham esta página de ponta-cabeça e
observem novamente a figura. E então?
Como vocês puderam observar, o quadro acima reproduz um recipiente com legumes e hortaliças, mas
também reproduz a figura de um homem – depende do ângulo de onde observamos a figura, depende do
ponto de vista do nosso olhar.
Se olharmos mais uma vez para a figura, agora sabendo que há a imagem de um homem, nosso olhar
será imediatamente atraído para os dois pontos que representam os olhos, e deixaremos de ver os
legumes e hortaliças ou de apenas vê-los como parte de um conjunto de alimentos. Eles serão, a partir
desse novo olhar, partes constituintes de uma figura de homem. Tudo isto porque o nosso olhar focaliza
um ponto especial – os olhos. Os legumes continuam ali, expostos ao nosso olhar, mas não os
registramos mais conscientemente.

Após as observações acima, é possível supor que:

 nem tudo o que pensamos ver, realmente vemos;


 nem sempre temos a consciência da visão de tudo o que olhamos;
 nem sempre vemos a totalidade do que é objeto do nosso olhar;

 nem sempre esgotamos nossas possibilidades de olhar um objeto para criar conceitos
sobre ele;

 nem sempre refletimos sobre o nosso ato de olhar.

Com esta constatação, concluímos que olhar é um ato nada banal, na verdade, bastante complexo e, por
isso mesmo, necessitando ser analisado com profundidade. Especialmente, se colocamos a questão no
âmbito educacional e, mais especificamente, no âmbito escolar.

Refletir sobre o olhar é a proposta que trazemos para este momento. E dentro desta proposta, queremos
considerar os vários significados do olhar. Entre eles, os que apresentamos a seguir:

Eu vi
o cheiro do boi.
Eu vi
cheiro de pasto
maduro, crestado, amarelado.
 

Trecho do poema “Evém boiada!”, de Cora Coralina[1]


  
De uma praia do Atlântico

 
 Se o olhar visse curvo,
como se diz que é o espaço,
olhando a sudoeste
de meu atual terraço, (...)
                                   João Cabral de Melo Neto[2]  
 

Assim como os poetas citados, entendemos o olhar como um modo de ver que vai além do olhar primário,
do olhar que só alcança as coisas imediatas e próximas. Entendemos que o ato de olhar envolve também
o resgate de lembranças sinestésicas que estão guardadas em nosso interior. Assim, olhar é também usar
os olhos da alma, do desejo, do sonho, da fantasia, da sensibilidade, porque olhar é ver com o “corpo
todo”. Assim pensamos porque acreditamos, como Lorca[3], que “nos olhos se abrem / infinitas veredas”.
Mas que em momento algum se pense que estamos defendendo a idéia de um olhar romântico, ingênuo, acrítico, pois se
acreditamos no ato de olhar que se volta para o interior, é porque consideramos que isto vai nos ajudar a olhar criticamente para o
exterior. Com um múltiplo olhar – enriquecido pelos nossos diferentes sentidos – poderemos refletir melhor sobre as coisas que
nos são mostradas, poderemos observá-las sob vários ângulos e, com isto, identificar as intenções que subjazem nas exposições
que ocorrem nos espaços sociais.
Mas como alcançar esta competência? Como desenvolver a habilidade de ver criticamente e também com
emoção? Só há uma forma: educando o olhar. E para educá-lo, precisamos, inicialmente, pensar sobre
algumas questões, a saber:

1.  Como se realiza, cientificamente, o ato de olhar?

2.  Como identificar, nas interações sociais, as intenções implícitas no aparentemente inocente ato de
expor imagens ao nosso olhar?

3.  Como relacionar, ao ato de olhar, as questões referentes à estética e à ética?

4.  Como desenvolver a capacidade de olhar?

5.  Como levar todas estas reflexões para o cotidiano da escola?

[1] CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais.  4ª. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1991,
p. 91.
[2] MELO NETO, João Cabral de. Museu de tudo e depois  (1967 – 1987). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1988, p. 264.
[3] LORCA, Federico García. Os olhos. In: Obra poética completa. 3ª. ed. Brasília, DF: Editora Universidade
de Brasília, 1996, p. 591.

[1] Pintor italiano do séc. XVI (1527 – 1593).


 

1.2 . A Arte de Educar o Olhar


 

Como educar o olhar? Como torná-lo capaz de perceber significados e construir relações? Como
desenvolver a capacidade de ver estética e eticamente as imagens que nos circundam? Cultivando a arte
de ver.

Pensemos, primeiramente, em desenvolver nossa “visão divergente” que, em Pedagogia, conforme nos
informa Yunes e Agostini[1], “representa uma visão múltipla das coisas, uma visão não bitolada ou
enquadrada”. Uma visão que nos capacita a usufruir esteticamente as imagens e a usar a criatividade nas
diferentes situações da vida.
Segundo os autores citados acima, a escola não estimula nem desenvolve nas crianças a visão
divergente.

Pelo contrário, leva-as para a ‘visão convergente’, a visão domesticada, centrada, unilateral e massificada,
típica do adulto ‘normal’, ‘bem-adaptado’, conformista, conservador, sem brilho, sem cor e sem caráter.
(Yunes Agostine, 1998)
Embora não pretendamos, agora, discutir a relação olhar crítico X escola, fica registrada a observação
acima para posterior retomada neste trabalho.
Pensemos agora sobre o nosso “olhar divergente”. Até que ponto nós o temos cultivado? Até que ponto
temos permitido que nossos olhos se abram para “infinitas veredas”?

Ainda segundo Yunes e Agostini,

o ser humano é múltiplo, dispõe de várias maneiras de perceber o real ou a vida. Os aspectos afetivos não
estão dissociados do intelecto e da inteligência (...)”. Uma das formas de educar o olhar, portanto, é permitir que
nossas emoções participem da nossa visão cotidiana das coisas, ou seja, exercitando cada vez mais a nossa
“visão divergente.
 
E, para tanto, podemos nos valer das artes: literatura, pintura, escultura, música, fotografia, dança,
dramatização e todas as outras artes que com elas se entrelaçam.

Segundo Costa[2], a arte penetra em nós através da porta da sensibilidade, mantendo aberto esse canal
com nossa natureza mais instintiva e – por que não? – animal. A cada emoção ou prazer que resulta do
contato com o belo, nossos sentidos se renovam e se apuram num processo infindável de aprofundamento
e recriação. A cada momento de arte, nos tornamos mais aptos à captação da beleza do mundo e de seus
significados.
A arte se opõe ao mergulho no individualismo egoísta. Trabalha o incrível paradoxo de, tendo suas raízes na
subjetividade e na interioridade, só se realizar em comunicação com o outro e com o mundo. Exige eco e
comunicação, exige diálogo e controvérsia. Assim, mantém livres nossos canais de comunicação com o outro,
ao mesmo tempo em que aprimora a consciência que temos de nós mesmos. É fonte inesgotável de
interpretação e sentido. Por mais que nos detenhamos em sua observação, decifração e entendimento, mais
nos confrontaremos com novas aparências e significações. E mesmo mantendo laços estreitos com seu tempo
e seu espaço, a arte atravessa a história e se apresenta virgem a novas interpretações. (Costa, 1999)
Segundo De Masi[3] (2000), um dos momentos que assinalaram a passagem da nossa condição de animal
a homem foi aquele em que, no nosso processo evolutivo, pudemos conceituar o belo. Desde os primeiros
desenhos nas cavernas, o homem utilizou a capacidade estética para registrar as suas impressões do
mundo, diferenciando-se dos outros animais, conquistando a sua condição humana e a felicidade. Isto
porque, segundo o autor, “entre todas as formas de expressão humana, a estética é aquela que, mais do
que qualquer outra, é responsável pela nossa felicidade”. (De Masi, 2000)
Associando as idéias de Costa (1999) e de De Masi (2000), entendemos que a arte nos humaniza e, ao
mesmo tempo, nos proporciona uma sensibilidade tão intensa que pode despertar nossas emoções mais
selvagens, criando um feedback para múltiplas renovações do homem. Educando o nosso olhar através da
arte, estaremos sempre ratificando a nossa condição humana.
Nosso olhar, entretanto, não é apenas estimulado por imagens que produzem prazer estético ou só prazer
estético. Conforme já foi observado neste texto, vivemos um tempo de saturação de imagens.

Somos, a todo momento, levados a enfrentar novos desafios, que nos exigem uma visão mais crítica e
abrangente dos recursos que nos cercam, imprimindo uma nova ordem ao tempo e ao espaço em que vivemos.
(Caboclo[4], 1995).
São muitas as mídias que veiculam imagens e mensagens. Precisamos aprender a olhá-las em suas
especificidades, interpretá-las criticamente e usufruir dos seus benefícios.
Segundo Kellner[5], precisamos desenvolver um alfabetismo crítico em relação à mídia e construir
competências para a leitura crítica de imagens. Para ele,
Ler imagens criticamente implica aprender como apreciar, decodificar e interpretar imagens, analisando tanto a
forma como elas são construídas e operam em nossas vidas quanto o conteúdo que elas comunicam em
situações concretas.  (Kellner, 1995)   
Analisando as imagens e mensagens veiculadas pela publicidade, Kellner considera que esta exerce uma
ação pedagógica sobre as pessoas, ensinando-lhes o que precisam e devem desejar, pensar e fazer para
alcançar o prazer e a felicidade. Para ele, a publicidade veicula e inculca nos indivíduos uma visão de
mundo, uma ideologia de vida, valores e comportamentos que aparentemente trazem satisfação imediata.

Para neutralizar a influência ideológica da publicidade e escapar dos apelos do consumo precisamos,
segundo o autor, desenvolver “competências emancipatórias”. Precisamos, ainda, “compreender como os
textos culturais funcionam, como eles influenciam e moldam” nossos comportamentos.

É importante frisar que não consideramos os indivíduos totalmente desarmados para o “ataque” da mídia.
Sabemos que é grande o poder de influência das imagens e mensagens veiculadas pela publicidade e
pelos diferentes veículos de comunicação, mas também acreditamos, como Certeau [6] (1995), que é difícil
estabelecer o grau de influência que elas exercem sobre os indivíduos, uma vez que não sabemos ao
certo as maneiras de uso adotadas pelos consumidores em relação aos produtos culturais oferecidos.
Estes conhecimentos, contudo, não nos isentam de incentivar a reflexão e a conscientização acerca da
influência da mídia e das estratégias que podemos articular para neutralizar essa influência.
Também é importante observar que vivemos em uma sociedade do espetáculo, e que nessa sociedade
todos os assuntos são apresentados como se fizessem parte de um show. Já não é fácil discernir o real do
ficcional. Amor, morte, guerra, futebol, tragédia, comédia, tudo faz parte de um espetáculo cotidiano que
não tem trégua. E nesse espetáculo, muitas vezes perdemos a capacidade de discernir criticamente os
fatos. As coisas, segundo Chiavenato[7] (1998), “passam a ser o que aparentam. E aparentam ser pela
imagem que transmitem”.
Muitas são as imagens e elas nos transmitem a ideologia da mercadoria: tudo é consumível e deve ser
consumido. Segundo Lefebvre[8] (1991), essa ideologia “substitui o que foi filosofia, moral, religião,
estética”. Nada mais importa a não ser realizar os desejos despertados pelas mensagens de consumo.
Consumo de objetos, de drogas, de sexo, de ilusões e de vidas.
Como olhar para essas mercadorias, como assistir ao grande espetáculo da sociedade (e participar dele!)
e como usufruir dos bens culturais sem perder a capacidade de fazer leituras críticas sobre os fatos e, a
partir delas, realizar intervenções éticas?

Acreditamos que um caminho é não acreditar sempre no que nos mostra o nosso olhar, seja sob que
ângulo estejamos “olhando” os fatos. É preciso sempre criar outros ângulos, refletir sobre as imagens que
observamos a partir desses novos ângulos e entender que nada pode ser olhado maniqueisticamente: o
bem e o mal (e o que é bem para uns nem sempre o é para todos) estão em todas as coisas e precisamos
saber usufruir de cada coisa aquilo que ela apresenta de construtivo. Nesse sentido, o que primeiro
precisamos fazer é  procurar conhecer tudo o que nos cerca, desvendar seus mistérios, penetrar em suas
fortalezas, derrubar seus muros.

Começamos, neste trabalho, recordando o mecanismo do olhar. Verificamos como esse mecanismo é
aproveitado e explorado pela propaganda e pela mídia. Refletimos sobre a importância das Artes e da
consciência crítica em nossas vidas. Compreendemos que são múltiplos os meios de veicular  imagens e
que, por isso, múltiplas devem ser nossas estratégias de interpretação.
Não podemos esquecer, também, da importância que se deve dar à observação dos diferentes modos de
veicular ideologias, valores, estética e ética utilizados pelo cinema, pelo teatro, pelo rádio, pela televisão,
pela internet, pelos jornais, pelas revistas, pelas músicas, pelas crônicas, pelos romances, pelos poemas,
pelas charges, pelos quadrinhos, pelos comerciais, pelas comidas, pelos livros didáticos, pelos mapas e
atlas, pelas disciplinas escolares, e ainda pelos pregadores religiosos, pelos artistas, pelos educadores,
pelos políticos. Somente olhando-os de forma crítica é que poderemos identificar o lugar onde eles se
colocam para veicular suas mensagens e que relação esses lugares e essas mensagens estabelecem
com os nossos conceitos de gênero, raça, cidadania.

Por fim, precisamos descobrir as formas de desconstrução das estratégias usadas por esses veículos e
indivíduos, para que possamos, quando necessário, enfraquecer seus discursos e fortalecer discursos
mais compatíveis com um pensamento planetário de solidariedade e de valorização humana.

1. 3. Como Promover e Praticar a Educação do Olhar e do Pensar na Escola?


 

Segundo Coutinho[9] (1998),  
 
Cada lugar tem a sua maneira própria de ser, de se constituir, de apresentar e de se representar. A escola é um
lugar como outro qualquer e também tem suas feições. Mas uma de suas características básicas é a de poder
metamorfosear-se numa porção de outros lugares. Assim, a sala de aula pode vir a ser um palco de teatro ou
uma sala de cinema. Tudo fica a depender da capacidade criadora de professores e alunos.
 

A escola pode ser ainda outros lugares. O lugar da utilização e da produção de vídeos; o lugar da leitura,
análise e produção de jornais, revistas, poemas, charges. A escola é o espaço privilegiado para a
reconstrução dos discursos e das imagens veiculadas nos diferentes espaços sociais.

E mais. A escola é o lugar privilegiado para promover a educação. E não podemos confundir educação
com repasse de informações. As informações estão em todos os lugares e são tantas que a escola nem
pode ter a pretensão de transmiti-las.  Não pode, principalmente, desperdiçar o tempo e o espaço de que
dispõe para educar. E educar, para nós, corresponde ao conceito adotado por  Morin[10] (1999):
Educar é estar mais atento às possibilidades do que aos limites. Estimular o desejo de aprender, de ampliar as
formas de perceber, de sentir, de compreender, de comunicar-se. Apoiar o estado de prontidão para aprender
dentro e fora da escola, em todos os espaços do nosso cotidiano, em todas as dimensões da vida,. estar atento
a tudo, relacionando tudo, integrando tudo. Conectar sempre o ensino com a pessoa do aluno, com a vida do
aluno, com a sua experiência.
Educar é procurar chegar ao aluno por todos os caminhos possíveis: pela experiência, pela imagem, pelo som,
pela representação (dramatizações, simulações), pela multimídia. É partir de onde o aluno está, ajudando-o a ir
do concreto ao abstrato, do imediato para o contexto, do vivencial para o intelectual, integrando o sensorial, o
emocional e o racional. O emocional é um componente fundamental da compreensão e do ensino. (Morin,
1999)
 
Tendo como suporte as falas de Coutinho e Morin, pretendemos enfatizar a importância da escola no
processo da educação do olhar, que – como já deve ter ficado evidente – foi, em alguns momentos, a
metáfora que usamos para falar de uma educação escolar crítica, atenta, interligada aos outros espaços
educacionais, dispondo de professores aptos a “utilizar pedagogicamente as tecnologias na formação de
cidadãos que deverão produzir e interpretar as novas linguagens do mundo atual e futuro”[11].
Como última sugestão para desenvolver um novo olhar sobre a educação, trazemos a contribuição de
Gadotti[12] , que propõe a ecopedagogia:
 

A ecopedagogia pretende desenvolver um novo olhar sobre a educação, um olhar global, uma nova maneira
de ser e de estar no mundo, um jeito de pensar a partir da vida cotidiana, que busca sentido a cada momento,
em cada ato, que ‘pensa a prática’(Paulo Freire), em cada instante de nossas vidas, evitando a burocratização
do olhar e do comportamento.
(Gadotti, 2000)

Não podemos nos conformar em ser ou em educar pessoas para se tornarem indivíduos “bem-adaptados”,
passivos, manobráveis, burocratizados. Precisamos cultivar e incentivar nossos alunos a cultivar não
apenas a visão divergente, como também, e principalmente, o espírito divergente.

Não podemos também, e isto é fundamental, fazer o discurso do olhar divergente e praticar o olhar
convergente, conformista, conservador e sem brilho, durante as nossas ações cotidianas na escola.
Precisamos mudar os ângulos do nosso olhar em relação aos nossos colegas, aos nossos alunos e ao
nosso trabalho. Focalizar as fóveas não apenas nos anjos ou apenas nos demônios, mas atentar para o
que fica relegado a uma visão periférica.

Talvez refletindo mais sobre a arte de ver e procurando exercitá-la a todo o momento, não soframos mais
aquela dor sem explicação, aquela sensação de fracasso que muitas vezes acompanham o nosso
trabalho. Dor e sensação que talvez sejam provocadas pelo registro inconsciente que fazemos da
decepção estampada nos rostos dos nossos alunos. Um registro que as nossas fóveas não vêem, mas
que os nossos bastonetes conduzem para as profundezas da nossa mente. 

Para encerrar, plagiando Che Guevara, diríamos que é necessário divergir, mas sem jamais perder a
ternura. Que, sem perder o prazer estético de produzir e admirar o belo, sejamos sempre praticantes e
defensores da ética em todas as situações de interação com os homens e com a natureza.

 
 
1.4 . O que é Pensar?
 

Um texto que consideramos excelente para compreender a importância de se pensar nos é o oferecido por
Rubem Alves e se intitula “As Receitas”(2000).

Quando eu era menino, na escola, as professoras nos ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro
grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas
semelhantes. Ensinaram errado. O que me disseram equivale a predizer que um homem será grande pintor por
ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as idéias que moram na cabeça do
pintor. São as idéias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançarem sobre a tela...
Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?”. Disse-me que esta era a pergunta que o professor de
Filosofia havia proposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro, por ter ido diretamente à questão
essencial. Segundo, por ter tido sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque se tivesse dado a
resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é como a águia que só pode alçar vôo
nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para
o pensamento do que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as
respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente
as perguntas permitem entrar pelo mar do desconhecido.
E, no entanto, não podemos viver sem respostas. As asas, para o impulso inicial do vôo, dependem de pés
apoiados na terra firme. Os pássaros, antes de saberem voar, têm que aprender a caminhar sobre a terra firme.
Terra firme: as milhares de perguntas para as quais as gerações passadas já descobriram as respostas. O
primeiro momento da educação é a transmissão deste saber. Nas palavras de Roland Barthes: “Há um
momento em que se ensina o que se sabe...”. E o mais curioso é que este aprendizado é justamente para nos
poupar da necessidade de pensar.”(...) Aperto a tecla moqueca. A receita aparecerá no meu vídeo cerebral:
panela de barro, azeite, peixe, tomate, cebola, coentro, cheiro verde, urucum, sal, pimenta, seguidos de uma
série de instruções sobre o que fazer. Não é coisa que eu tenha inventado. Foi-me ensinado. Não precisei
pensar. Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental desse computador que vive no corpo humano:
só vai para a memória aquilo que é objeto do desejo. A tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que
ele deseje e, desejando, aprenda. E o saber fica memorizado de cor – etimologicamente, no coração – à espera
de que o teclado desejo de novo o chame do seu lugar de esquecimento.
Memória: um saber que o passado sedimentou. Indispensável para se repetir as receitas que os mortos nos
legaram. E elas são boas. Tão boas que nos fazem esquecer que é preciso voar. Permitem que andemos pelas
trilhas batidas. Mas nada têm a dizer sobre mares desconhecidos. Muitas pessoas, de tanto repetir as receitas,
metamorfosearam-se de águias em tartarugas. E não são poucas as tartarugas que possuem diplomas
universitários. Aqui se encontra o perigo das escolas: de tanto ensinar o que o passado legou – e ensinar bem –
fazem os alunos se esquecer de que o seu destino não é o passado critalizado em saber, mas um futuro que se
abre como vazio, um não saber que somente pode ser explorado com as asas do pensamento. Compreende-
se, então, que Barthes tenha dito que, seguindo-se ao tempo em que se ensina o que se sabe, deve chegar o
tempo quando se ensina o que não se sabe. (Alves, R., 2000: 77)
 

Ousando conversar com o texto, logo de início, Alves nos mostra quão simplista e equivocado pode ser o
discurso da escola quando omite a importância do processo de construção e prevê sucesso sem
laboração. O processo de pensar requer um exercício constante de investigação e análise, portanto, que
não está pronto, concretizado a priori. Ele enfoca, também, a contradição do discurso que acaba por nos
induzir a erro de interpretação, quando nos fala que
não é por ser dono de uma casa que vende tintas que nos tornaremos pintores, mas, sim, quando as idéias
dançantes na cabeça do pintor derem forma à tela, através da utilização das tintas para expressá-las  (Alves,
R., 2000: 77)
levando-nos a perceber que nem sempre o óbvio é ou está óbvio, pois, assim como acontece com as
tintas, o mesmo se dá em relação às demais idéias que compõem o imaginário social, político, econômico,
educacional..., pois são  as  idéias – o bem mais precioso produzido pelos indivíduos - que constroem o
mundo que temos e, ainda, o que queremos ter. Einstein já dizia que o importante não é dar boas
respostas, mas, sim, fazer grandes perguntas. A partir desse pressuposto, cabe-nos pensar se estamos
oferecendo situações que levem o sujeito a pensar e expressar suas idéias e conjecturas sobre os fatos e
os dados apresentados, no seu cotidiano, aprendendo a lê-lo criticamente, questionando e propondo
situações de superação de suas problemáticas existenciais.

A seguir, nos propõe a crucial pergunta:

O que é pensar?”, dizendo que o professor de filosofia teve a genial sensibilidade de não respondê-la, pois se o
fizesse, teria cortado as asas do pensamento, não permitindo que alçasse vôo sobre os mares do
desconhecido, exercitando o pensamento (Alves, R., 2000: 78).
Cabe-nos perguntar, se estamos possibilitando o pensar sobre as coisas, os objetos, os fatos e as
situações ou se estamos apenas propondo reproduções, transmitindo informações já elaboradas,
destituídas de sentido, implicando, inclusive, a perda do significado original.

Se, por um lado, pensar requer que tenhamos conhecimentos construídos anteriormente para nos dar
sustentação para caminhar, esses saberes não nos podem aprisionar constituindo-se em verdades
absolutas. Ao contrário, eles devem propiciar que possamos reelaborar permanentemente nossos pontos
de vista, acompanhando a “história do presente”, mas sem perder a dimensão do olhar prospectivo (visão
de futuro).

Por outro lado, pensamos por cadeia de idéias e associações múltiplas, tentando estabelecer conexões de
sentido, usando alguns referenciais mais ou menos estáveis, aos quais recorremos, de memória, para
conhecer mais e melhor. Daí a relevância do exemplo da moqueca do texto de Rubem Alves que enfatiza
a memória de “longa duração”, termo usado pela professora pesquisadora Elvira Souza Lima para definir
aquela memória que, plena de sentido, é inesquecível, em nada se confundindo com a memória de curta
duração ou memorização.

A “memória de sentido”, como decidimos denominá-la, não se esgota em si mesma, servindo como base
para a redimensão do próprio pensamento.

Isto nos leva a afirmar que não é a quantidade de informações “memorizadas” que determina a
constituição do conhecimento, mas a forma como lidamos com estas informações – sendo águias ou
tartarugas – como sugere Rubem Alves.

Ainda bem que a história não pode parar o curso do tempo e no tempo tudo pode se transformar,
possibilitando a existência de uma nova ordem, muitas das vezes mais produtiva e que exige mais que
perfeição milimétrica; mas que acaba por proporcionar situações que nos permitem privilegiar a
criatividade, o talento, através da capacidade ética de relacionamento interpessoal satisfatório,
contribuindo para a construção de um mundo melhor para se viver.

Isto nos remete à música cantada pela cantora Simone, intitulada “Como Será o Amanhã?”, de
Gonzaguinha, que nos mostra a possibilidade de construir um espaço-tempo, voltado para a superação
das relações adversas existentes no hoje, conhecendo, entendendo, pensando, refletindo e avaliando as
mesmas, buscando as razões que lhe deram sustentação de existência no passado, para poder
compreender suas causas e efeitos, podendo sempre propor novos caminhos, a serem trilhados por quem
acredita no amanhã, sabendo que estão sujeitas à transitoriedade dos fatos, dos valores, das práticas.

Quando se acredita que o ser humano é capaz de sentir felicidade e de demonstrá-la ao fazer as
atividades mais simples da vida, fica registrado, de modo inequívoco, que possui um coração simples,
puro e receptivo às coisas que lhe possibilitam alçar vôos de imaginação, criar fantasias e quem sabe, um
dia, transformar seus sonhos, sua utopia, em algo concreto, a partir de suas crenças em torná-los
realidade.

Em contrapartida, se fizermos como nos sugere a fábula do elefantinho, que visão de homem e de mundo
estaremos querendo formar? Cabe-nos, aqui, pensar sobre a sua mensagem.

Um treinador de circo consegue manter um elefante aprisionado, porque usa um truque muito simples: quando
o animal ainda é ‘criança’, ele amarra uma de suas patas em um tronco muito forte. Por mais que tente, o
elefantinho não consegue soltar-se. Aos poucos, vai se acostumando com a idéia que o tronco é mais poderoso
que ele. Quando adulto, e dono de uma força descomunal, basta colocar uma corda no pé do elefante e
amarrá-la em um graveto que ele nem tenta libertar-se, porque se lembra que já tentou muitas vezes e não
conseguiu. Assim como, desde criança, nos acostumamos com o poder daquele tronco, não ousamos fazer
nada. Sem saber que basta um simples gesto de coragem para descobrir toda a nossa liberdade.
                                                                       (Paulo Coelho)

 
Será educar sinônimo de adestrar? Será educar sinônimo de treinar? Ou de condicionar? Ou de subjugar?
Algumas práticas pedagógicas parecem acreditar que sim. Mas a Pedagogia para o Amanhã insiste que
não. Por ela apostar, radicalmente, na ampliação permanente do olhar, define educar como o processo
dinâmico, contínuo, dialógico e dialético de construção de conhecimentos pertinentes, plenos de
significado e sentidos, em constante transformação, no tempo-espaço-histórico-social, em busca sempre
do aperfeiçoamento da existência humana.

Não é necessário que haja, apenas, uma grande quantidade de informações para se fazer um indivíduo
apto a desenvolver sua própria aprendizagem. Não será, também, trazendo-o preso a amarras, mesmo
que já não se façam fisicamente presentes, que vamos garantir sua melhor performance. É indispensável
que se comprometa consigo mesmo, avaliando suas funções sociais e, com seriedade, busque defender
conceitos que lhe dêem condição de exercer sua cidadania, comprometendo-se, íntegro e cônscio da
necessidade de sua participação social, frente à formação de outros cidadãos.

Comungamos com Paulo Freire, quando nos afirma que o que mais o seduz é a beleza da pessoa humana
brigando para ficar melhor.

Urge que nos conscientizemos da importância de sermos docentes, mas não apenas docentes, mas
principalmente seres humanos, pois só assim poderemos facilitar a aproximação dos demais,
identificando-nos com eles, ajudando-os a descobrir sua singularidade, oferecendo situações de
aprendizagem que superem a simples transmissão de conhecimentos.

... É preciso reaprender a linguagem do amor, das coisas belas e das coisas boas, para que o corpo se levante
e se disponha a lutar. Porque o corpo não luta pela verdade pura, mas está sempre pronto a viver e a morrer
pelas coisas que ele ama. Na sabedoria do corpo, a verdade é apenas um instrumento, um brinquedo do
desejo.
(Rubem Alves)

 
Devemos, pois, oferecer atividades em que possam falar e ouvir a respeito das realidades próprias,
próximas e distantes, podendo lê-las e relê-las, através de suas falas e silenciamentos, ou seja, da
polifonia produzida pelos diferentes parceiros que se inter-relacionam, de forma direta ou indireta, lidando
e criando saberes, em suas trocas de experiências, em suas reflexões, compondo e propondo novas
questões que os levem a perceber a necessidade de estar sempre presentes no processo dinâmico da
construção do conhecimento, pois sabemos que

O futuro não é uma coisa escondida na esquina.


O futuro a gente constrói no presente.”
(Paulo Freire)

Assim, o professor precisa ter:

a)        humildade para estar aberto às questões do hoje (de cunho os mais variados), às mudanças e
novas propostas que permitam entender o “aqui e agora”, através da certeza do seu inacabamento e de
suas possibilidades para propor e tecer novos paradigmas, que ajudem a compor soluções plausíveis,
melhorando a qualidade de vida em sociedade e criando, assim, um novo amanhã;

b)        respeito por seu pares, nas relações ética e estética, pelas descobertas científicas e tecnológicas
(que compõem o patrimônio da humanidade), bem como pelas diferentes culturas, hábitos, costumes,
valores, modos de se relacionar, atitudes diferenciadas (nem melhores, nem piores umas das outras), mas
reconhecendo que são apenas diferentes entre si e satisfatórias para aqueles que delas participam;

c)        confiança na potencialidade de todo ser humano de construir o seu próprio conhecimento, sabendo-
se num processo dinâmico de construção de saberes das mais diferentes ordens,  desde as pessoais até
as coletivas, por se entender um ser histórico, capaz de fazer história, uma história que o antecede e que
lhe vai suceder, crendo no seu processo de aprendizagem desde o seu nascimento até o momento de sua
morte.

Portanto, deve ser e estar consciente da importância e da necessidade de sua atuação para compor um
novo amanhã, comprometendo-se e fazendo parceria na construção de uma sociedade mais justa e
eqüânime de oportunidades de realização a todos que nela convivem, indagando-se, a cada momento,

Por que nossa educação é tão embrutecedora e cega, se nossas crianças são tão ricas?
Por que a humanidade teme tanto a espontaneidade, se a atitude espontânea conduz tão rapidamente ao
crescimento responsável?
Por que nos falta confiança no futuro, se forças sociais intensas e construtivas podem ser liberadas no
indivíduo através da aceitação de alguns poucos princípios básicos? (Carl R. Rogers)

 
Realmente, precisamos saber exercitar o pensamento. Pensar e incentivar a pensar para poder contribuir
para a transformação e a libertação, pois cremos que alguns pontos, assinalados por grandes teóricos da
atualidade, poderão iluminar nossas visões para compreender as práticas vivenciadas na realidade da
escola. Neste sentido, talvez seja possível romper com os valores proclamados e propor uma práxis
pedagógica transformadora a partir dos valores reais, ciente das lições deixadas por Perrenoud, Freire e
Toffler: “A vontade de aceitar desafio é uma questão de sentido” (Perrenoud , 2000: 48).
 
... o futuro não é ‘conhecível’ no sentido de uma predição exata. A vida está cheia de surpresas
surrealistas... A mudança acelerante... fica sujeita à obsolescência... As estatísticas se aceleram. Novas
tecnologias suplantam outras mais velhas. Líderes políticos sobem e caem. Apesar de tudo, à medida que
avançamos para a terra desconhecida do amanhã, é melhor ter um mapa geral e incompleto, sujeito a
revisões e correções do que não ter mapa algum...(Toffler, 1990: 20)

...São necessárias novas maneiras de pensar sobre as mudanças que vêm alterando a face de nossa
civilização ao longo das últimas décadas, delineando assim um perfil mais abrangente da nova sociedade
que emerge das transformações [sociais, econômicas, históricas, políticas], ou seja, de uma sociedade
radicalmente diferente, movida por um novo sistema de criação de riqueza que transforma o trabalho [e as
relações ética e estéticas dentro da macro e micros sociedades].

                                                               (Toffler, 1990: 33)

Ela seria tanto mais necessária porque é, como veremos, a própria organização do trabalho pedagógico
que produz o fracasso escolar....                          (Perrenoud, 2000: 17)

...O apoio pedagógico deveria evitar ou atenuar a reprovação, fosse prevenindo suas dificuldades e
fracassos, fosse acompanhando alunos autorizados a progredir na formação sem ter todos os
conhecimentos requeridos. A idéia de base era, então, romper com a indiferença às diferenças,
instaurando uma pedagogia que ainda não se chamava ‘diferenciada’, mas que se considerava como uma
forma de discriminação positiva ou de educação compensatória.

                                                             (Perrenoud, 2000: 35)

Ensinar é uma especificidade humana.


Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade.
Ensinar exige comprometimento.
Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo.

Ensinar exige liberdade e autoridade.

Ensinar exige tomada consciente de decisões.

Ensinar exige saber escutar.

Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica.

Ensinar exige disponibilidade para o diálogo.

Ensinar exige querer bem aos educandos.

(Freire,1999: 8/9)
 

A questão da formação dos professores é, inevitavelmente, levantada. A seu respeito, pode-se arriscar
pelo menos uma hipótese: se não incorpora a preparação à transferência em seus próprios dispositivos,
como poderia pretender favorecer, nos futuros professores, as práticas pedagógicas ‘transferogênicas’? 
(Perrenoud, 2000: 70)

A substituição do trabalho bruto pela informação ou pelo conhecimento, na realidade, é o que está por trás
dos problemas atuais... Portanto, o conhecimento é a chave do crescimento humano no século
XXI.             (Toffler 1990: 33)

 
O choque do futuro olha para o processo de mudança – a maneira pela qual a mudança afeta as pessoas
e as organizações. A quebra do paradigma existente deverá se concentrar nas direções destas mudanças
que ainda virão para saber quem irá formá-las e como.(Toffler, 1990: 19)
 

O choque do futuro, como definição, baseia-se na desorientação e tensão provocada ao se tentar lidar
com um número demasiado de mudanças num tempo demasiado curto – argumentando que a aceleração
da história leva a conseqüências próprias, independentes das reais direções da mudança. A simples
aceleração dos eventos e das fases de reação produz seus próprios efeitos, quer as mudanças sejam
consideradas boas, quer más.    (Toffler, 1990: 19)
 

Afirmava, também, que os indivíduos, as organizações e até as nações podem ficar sobrecarregadas de
mudanças demasiado cedo, levando à desorientação e a um colapso em sua capacidade de tomar
decisões de adaptação inteligentes. Podiam, em suma, sofrer do choque do futuro. (Toffler, 1990: 19)

 
 
1.5 - Para Pensar a Escola
 

Escola é... o lugar onde se faz amigos. Não se trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários,
conceitos... Escola é, sobretudo, gente, gente que trabalha, gente que estuda, gente que se alegra, se conhece,
se estima. O diretor é gente, o professor é gente, o aluno é gente, cada funcionário é gente. E a escola será
cada vez melhor, na medida em que cada ser se comporta como colega, como amigo. Nada de ilha cercada de
gente por todos os lados. Nada de ser como tijolo que forma parede indiferente, frio, só. Importantante na
escola não é só estudar, é também criar laços de amizade, é criar ambiente de camaradagem, é conviver, é se
amarrar nela. Ora, é lógico... em uma assim vai ser fácil estudar, crescer, fazer amigos, educar e ser
feliz.   (Paulo Freire, 1999)
 

Não é o espaço escolar, mas o espaço da vida, onde nos lembra Brandão (1981) o “viver o fazer faz o
saber”.  Da mesma forma, Iván Illich (1974) ao se questionar sobre a serventia da escola na América
Latina, fazia questão de assinalar a existência de “processos educativos no interior dos processos políticos e
sociais” (Illich, I., 1974: 12), não sendo estes, portanto, uma primazia da escola.Todavia, podemos dizer
que é através da escola que a humanidade começou a desenvolver uma teoria da educação, ou seja, uma
“pedagogia”, à qual o ato de educar deve estar sujeito. É possível afirmar, assim, que com a chegada da
pedagogia e da chamada “educação formal”, vieram as regras, a organização do conhecimento, as
divisões do saber e os métodos tradicionais de ensino; entretanto, é indiscutível também, que através da
mesma, a educação passou a ser, como nunca antes na história da humanidade, objeto de estudo e
reflexão. Desse modo, a escola foi criada com a promessa de sistematizar o ensino e favorecer a
transmissão cultural. O antagonismo que a acompanha desde o seu nascimento, no entanto, é o de
constituir-se de um lado “num espaço de democratização e formação individual e ao mesmo tempo de
transmissão de valores coletivos e consciência social”  (Puiggrós, A., 1998: 10). Todavia, esta contradição, ao
oposto de diminuir-lhe a importância, apenas ampliou a necessidade de que a educação escolarizada
fosse encarada como um direito universal. Análise da escola - sede da educação formal - não apenas,
enquanto, um espaço de produção e divulgação de saber, mas também, enquanto um espaço de troca e
intercâmbio de relações, isto é, de aprendizagem social. Embora a face relacional da escola seja um tanto
esquecida, quando refletimos sobre o que seja a mesma, não há como priorizar um lado em relação ao
outro. A valorização das relações interpessoais e de um clima emocional positivo, em termos de respeito e
liberdade, são tão fundamentais quanto os conteúdos trabalhados em sala de aula, para o
desenvolvimento do educando.  O entendimento de que o conhecimento é, simultaneamente, processo e
produto de uma construção cognitiva, social e emocional nos possibilita entender a importância do
ambiente escolar, já que o mesmo pode ser favorecido ou desencorajado, dependendo dos pressupostos
sociopedagógicos adotados no próprio projeto pedagógico da instituição escolar e a forma como são
postos em prática pelos profissionais competentes.Como esclarece Soares (1999), a escola pode ser
considerada como
 

um texto escrito por várias mãos e sua leitura pressupõe a compreensão não apenas de suas conexões
com a sociedade, mas também das suas relações internas, ou seja, da rede de relações desenvolvidas
entre os alunos, pais, professores e comunidade escolar em geral.   (Soares, K., 1999: 6)

Nesse sentido, não há como ignorar os conflitos e tensões resultantes do relacionamento entre os
diferentes membros da escola. De um lado, temos os alunos que  reclamam das obrigações, das normas
rígidas, dos controles, da alienação da escola em relação ao seu mundo; de outro, temos os professores
que reclamam dos salários, da inquietude dos alunos, da falta de infra-estrutura; de um outro lado, ainda,
os demais funcionários da escola, que também têm suas demandas e reclamações, principalmente, no
que se refere às questões de ordem política e salarial; e, por fim, os pais dos alunos, cujas preocupações
e insatisfações, na maioria das vezes negligenciadas, também influenciam nesse processo. Boa parte dos
conflitos em jogo na instituição escolar dizem respeito ao conflito entre as diferentes culturas envolvidas.

1.6 - Uma Reflexão Final


 
Harvey (1993), ao analisar as características da pós-modernidade, aponta para o caráter fragmentário e
instável das verdades e dos discursos produzidos na sociedade (que se baseia na produção e na
exploração de espetáculos e imagens da mídia que globalizam a cultura e a economia). Entender os
efeitos dessa globalização e o modo como ela interfere no cotidiano da sociedade é um caminho para
entender os descaminhos da escola.

Chiavenato (1998) considera que:

A globalização é um processo que age sobre o homem. As suas conseqüências sociais e econômicas
estão transformando o modo de vida da humanidade. Valores éticos e morais, conceitos políticos e
sociais, o uso da ciência e das artes, enfim, a cultura criada pela humanidade em milênios está sendo
modificada, substituída e, de alguma forma, afetada radicalmente. (Chiaveneto, 1998)

Os reflexos dessa modificação estão presentes nas relações sociais, no modo como o homem interage
com o ambiente, com seus semelhantes e consigo mesmo, promovendo desigualdades sociais,
intolerâncias raciais, de gênero e de crenças, assim como uma devastação planetária.

Por isso, segundo Gadotti (2000), é preciso pensar em outra forma de globalização, “uma globalização da
solidariedade, um mundialismo sustentado na unidade política de um mundo considerado como uma
comunidade humana única, uma ética de governabilidade mundial”. Para tanto, é preciso pensar em
planetaridade e em uma educação para o futuro que privilegie a solidariedade planetária e o respeito ao
homem em sua totalidade.

Uma educação que, para ser autêntica, deve respeitar a CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE [13].
Essa carta, em quinze artigos, traça um caminho novo para o homem e para a Terra, e em seu artigo 11
torna claro o pensamento que norteia este trabalho:
 

Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar,
concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da
sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos. (Gadotti,2000)

 
A última frase desse artigo é particularmente esclarecedora quanto à importância de conhecermos a  teoria
das inteligências múltiplas e de as aplicarmos nas relações educativas desenvolvidas na escola.
Continuando nossa reflexão, não poderíamos deixar de recorrer a Morin (2000), para dizer, com suas
palavras, como deve ser visto o homem, ou seja:

O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. (...)traz em si multiplicidades interiores,


personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no
imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto, balbucios
embrionários em suas cavidades e profundezas insondáveis. Cada qual contém em si galáxias de sonhos
e de fantasmas, impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, imensidões de
indiferença gélida, queimações de astro em fogo, acessos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez,
tormentas dementes...

         (Morin, 2000)


 

Contudo, parecendo desconhecer tais características humanas, os pais e a escola, segundo Korczak
(1997), apropriam-se de um paradigma social de inteligência e “lutam contra todas as formas não habituais
de inteligência”. Sobre as crianças, perguntam se são ou não inteligentes , quando a pergunta correta
deveria ser como, de que modo são inteligentes.
Retornando ao texto de Saramago, valemo-nos de outro trecho para concluir esta reflexão inicial.

Assim como seus personagens, podemos travar o diálogo[14] que se segue:


 

Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que
penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo,
não vêem.

 
Porém, enquanto educadores, é nosso dever articular estratégias de superação dessa “cegueira”. É tempo
de ver. E, para tanto, vamos recorrer a Howard Gardner (1994) através de sua Teoria sobre as Múltiplas
Inteligências para olhar os nossos alunos e, vendo-os, vermo-nos também como seres capazes de
reverter o quadro que o cartunista espanhol Quino, através de suas personagens, apresenta sobre a
escola:

Cabe a que perguntar: a que escola Mafalda está se referindo?. E Felipe? Tantas caras e bocas nos levam
a ter que refletir sobre a construção existentes no imaginário social sobre a escola que se tem e a que se
quer: a educação que se tem e a que se quer, pois a composição desse quadro de referência irá nos
possibilitar olhar para a realidade, usando os olhos de ver, de perscrutar, de teorizar sobre a própria
realidade vivida.

Mas sejamos rápidos nessa mudança de olhar, sejamos rápidos na transformação, pois, segundo
Bartolomeu Campos Queirós[1],
 

O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai devorando tudo, sem
piedade. O tempo não tem pena. Mastiga rios, árvores, crepúsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a lua,
as estrelas. Ele é o dono de tudo. Pacientemente, ele engole todas as coisas, degustando nuvens, chuvas,
terras, lavouras. Ele consome as histórias e saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo. As
madrugadas, os sonhos, as decisões duram pouco na boca do tempo. Sua garganta traga as estações, os
milênios, o ocidente, o oriente, tudo sem retorno.
 
E isso nos vem apontar a própria provisoridade das verdades absolutas que, ao sabor do passar do
tempo, novos quadros nos apresenta, em sua constituição, em suas relações, em suas manifestações e
animações, devendo ter em mente a sua capacidade de mutação processual, dinâmica, cotidiana,
devendo nos colocar frente aos acontecimentos do nosso tempo, buscando olhar com olhos de ver.

[1] QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Por parte de pai. Belo Horizonte: RHJ, 1995. pp. 71-72.

[1] YUNES, Márcio Jabur e AGOSTINI, João Carlos. Técnica ou poética, eis a questão!  São Paulo:
Moderna, 1998.
[2] COSTA, Cristina. Questões de arte: a natureza do belo, da percepção e do prazer estético . São Paulo:
Moderna, 1999. (Coleção polêmica).
[3] DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
[4] CABOCLO, Eliana T. de A. Freitas e TRINDADE, Maria de Lourdes de Araújo. Multiplicidade: cada
identidade uma constelação. In: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA. Salto para o
futuro: Reflexões sobre a educação no próximo milênio . Brasília, DF: Ministério da Educação e do Desporto,
SEED, 1998. 
[5] KELLNER, Douglas. Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pós-moderna. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da.(org.) Alienígenas na sala de aula. Petrópolis,  RJ: Vozes, 1995. pp. 104-131.
[6] CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 1995. (Coleção Travessia do século).
[7] CHIAVENATO, Júlio José. Ética globalizada e sociedade de consumo . São Paulo: Moderna, 1998.
(Coleção Polêmica).
[8] LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
[9] COUTINHO, Laura. Sala de aula/sala de cinema. In: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A
DISTÂNCIA. Salto para o futuro: TV e informática na educação . Brasília, DF: Ministério da Educação e do
Desporto, SEED, 1998.
[10] MORIN, José Manoel. Mudar a forma de aprender e ensinar com a internet. In: op. cit.
[11] SAMPAIO, Marisa Narciso e LEITE, Lígia Silva. Alfabetização tecnológica do professor . Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.
[12] GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. São Paulo: Petrópolis, 2000.
[13] Adotada no I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade , Convento de Arrábida, Portugal, 2 a 6 de
novembro de 1994, e transcrita no livro “Pedagogia da Terra”, de Moacir Gadotti, de onde retiramos o
artigo comentado.
[14] É interessante observar o modo peculiar como Saramago pontua seus textos,  especialmente a forma
como constrói diálogos. Diferentemente das regras gramaticais vigentes na língua portuguesa, o autor
marca as falas das personagens apenas pelo uso de vírgulas e de letras maiúsculas.
 

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