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(...

) são as roupas que nos usam, e não nós que usamos as roupas: podemos
fazê-las tomar o molde do braço ou do peito; porém, modelam nossos
corações, [nosso corpo], nosso cérebro, nossa língua, à sua vontade
(WOOLF, 2003, p. 124).

Corpo objeto teórico, corpo-discurso, corpo-gênero, corpo-sujeito... e tantas outras


nomeações quantas forem possíveis. Que corpo é esse que inscrevemos no interior dos
estudos discursivos foucaultianos?
De início é importante sublinhar que o corpo considerado como unidade discursiva
não é este que vive as práticas diárias e corriqueiras, revelador de questões de ordem física e
anatômica com paixões e humores. Para estarmos diante de um corpo discursivo precisamos
colocar em evidência a sua existência material, dado que ele existe dentro e por meio de um
sistema político; há que se considerar seu status material, o espaço no qual ele se insere,
estabelecer, segundo Milanez (2009, p. 215), “os limites que fazem com que ele apareça ali
naquele momento, naquele lugar e não em outro”, enfim, observar os processos constitutivos
de suas marcas cujos efeitos estão presentes nos modos de sentar-se, de ser, de vestir, de agir.
Se assim fizermos colocamos em evidência o corpo como matéria significante (re)produtora
de sentidos, de outro modo, como prática discursiva, lugar em que o poder vem se alojar.
Nos últimos anos, questões do e sobre o corpo tornou-se cada vez mais presente no
meio acadêmico, sobretudo, no domínio da análise de discurso. Pesquisadores da área, ao
colocarem em evidência enunciados que puderam e que foram efetivamente ditos,
constituindo relações entre corpo e moda, gênero, espaço, mídia, etc, nos mostram como o
complexo jogo da linguagem, amalgamado às práticas discursivas (e não discursivas), modela
cria e recria corpos. Parece, pois, que nos convencemos que o corpo, este que então possui
uma história estética, moral, física, política, ideal e material, passível de ser transformada no
tempo e no espaço, é uma construção social e não uma realidade em si, finita e natural.
Por certo, a atenção ao corpo vem de longa data; porém é no século XX que ele passa
a ser um objeto de estudo histórico. A carne, o inconsciente, a “técnica corporal”
(COURTINE, 2013, p. 8) fazem parte de uma narrativa que abre questões inéditas no campo
da medicina, da psicanálise, no terreno dos costumes sociais e históricos. Assim, estudar o
corpo é considera-lo na sua heterogeneidade. De outro modo, é pensa-lo em diversas
dimensões e diferentes diagramas que o definem e o discorrem nas mais variadas áreas do
conhecimento, e por mais que possa haver possíveis coerências entre as possibilidades de
estudo e reflexões, nas palavras de Corbin, Courtine e Vigarello (2012, p. 11):
(...) é precisamente a experiência mais material que restitui uma história do
corpo, sua densidade, sua ressonância imaginária. A originalidade última
desta experiência é estar no cruzamento do invólucro individualizado com a
experiência social, da referência subjetiva com a norma coletiva.

O corpo é a fronteira entre o dentro e o fora, o individual e o coletivo, por isso centro
de toda a dinâmica cultural. É “ao mesmo tempo receptáculo e ator” (CORBIN; COURTINE;
VIGARELLO, 2012, p. 11), uma vez que participa da legitimação e interiorização das
normas. À luz de Michel Foucault (2008), o corpo é o alvo do poder; superfície em que
distintos e diversos dispositivos podem operar, modelando-o, normatizando-o, corrigindo-o.
Por outro lado, o corpo é também território no qual formas de resistência atuam e reverberam.
Pelo exposto, é a esse corpo acima descrito que dirigimos o nosso estudo. Este que,
sob o viés foucaultiano, se constituiu como lugar de conflitos e disputas pelo saber, ao mesmo
tempo em que se faz lugar estratégico de luta do sujeito. O corpo que converge em si o
subjetivo e o social no jogo entre poder – saber – resistência. O corpo do homem pensado
como resultado do investimento de toda uma história da virilidade e masculinidades,
submetido à objetivação imposta pelos critérios estéticos e comportamentais. De modo
concomitante, o corpo que resisti(u) às ordens discursivas binárias, por isso embaralhando as
concepções de roupas, aparências e gêneros saiu às ruas, subiu nos palcos e enunciou práticas
libertárias possíveis às tecnologias políticas que produzem como efeito de verdade uma
visualidade específica para o homem, tal como para a mulher.
Indo um pouco além, ao reconhecermos o corpo como foco de luta, alvo de poderes e
saberes, é importante que consideremos o encontro entre o discurso e o poder. Na aula A
ordem do discurso (1970 [1996]) Foucault (1996), ao apresentar suas reflexões que versam
sobre as relações entre saber e poder, revela uma preocupação não somente com os
enunciados, mas com os espaços em que eles se distribuem. Observar esses espaços é pois
atentar para os procedimentos de controle, internos e externos, e de delimitação do discurso,
visto que a sua formulação e materialização se encontram em toda sociedade “controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos (FOUCAULT,
1996, p. 8-9). É principalmente em busca de tais procedimentos que a perspectiva genealógica
foucaultiana se desenvolve, quando o corpo passa a ser compreendido como um espaço vital
de estratégias, âmago das relações de saber e poder, não para mutilá-lo, supliciá-lo, mas para
o aprimorar e adestrar.
A partir desse deslocamento teórico, metodológico, mas também político, o discurso
continua presente no trabalho do autor. Se anteriormente ele era analisado na sua estrutura e
relevância na constituição dos saberes, ao considerar que há uma ordem que rege a produção e
circulação dos discursos estes passam a serem observados como lugar de exercício e
manifestação dos poderes. Assim, pode-se dizer que o discurso, aparentemente, seja “bem
pouca coisa, [porém] as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação
com o desejo e o poder” (FOUCAULT, 1996, p. 10).
No entanto, o discurso não se limita ao campo de estratégias ou de luta, ele é o próprio
objeto e instrumento de dominação; é, segundo Foucault (1996, p. 10), “aquilo por que, pelo
que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Portanto, têm-se nesse espaço
beligerante discursivo certos procedimentos de controle e delimitação. Posto isso, se os
discursos estão submetidos a dados princípios, o corpo, por sua vez, está sujeito às
capilaridades do poder; ou seja, o poder tem no e sobre o corpo o apogeu de seu exercício.
Sobre essa relação podemos enumerar a (i) aplicação da vendita soberana sobre o corpo do
condenado na Era Clássica e as (ii) disciplinas – quando o poder se transforma e os corpos já
não são mais propriedades do rei e sim submetidos a uma ortopedia social, tempo de uma
anatomia política associada a uma mecânica do poder para o corpo “fazer não o que se quer,
mas para operar como se quer. É a tecnologia das disciplinas fabricando corpos submissos”
(GREGOLIN, 2003, p. 99).
Outro ponto importante na relação entre poder, corpo e discurso diz respeito ao tipo de
poder que age sobre a espécie humana. Referimo-nos à biopolítica, um tipo de poder que tem
como cerne assegurar a vida do sujeito com bem-estar e saúde. Essa forma de poder que
intervém sobre a vida e promove um investimento político (biopolítica) e orgânica (disciplina
sobre os corpos) não só controla e constringi o corpo como também o incita a resistir,
produzindo, assim, uma experiência limite como potência capaz de replicar o investimento do
poder, como veremos mais à frente. Se antes o corpo, objeto de saberes, submetia-se a
esquemática formal dos discursos, a partir de então ele também se impõem às múltiplas
correlações do poder que regulam o viver.
Pelo exposto até aqui somos levadas a afirmar que o corpo não é algo que preexiste
discursivamente, mas é talhado no e pelos discursos. Refletir o corpo nos estudos discursivos
foucaultiano é observá-lo na rede emaranhada de poder-saber que funciona, como um sistema
estratégico, por meio do discurso, pois é, ele mesmo, um elemento nesse dispositivo. Desse
modo, a formulação teórico-metodológica poder/saber – corpo – discurso, assim representada
por um sinal de hífen para dar visibilidade à ligação semântica existente entre esses
elementos, pode nos auxiliar na análise de discursos, sejam eles verbais, imagéticos e/ou
sincréticos, na medida em que,
considera o corpo como um lugar de conflitos e disputas pelo saber, mas
também como lugar estratégico de luta do sujeito face aos processos de
subjetivação. O saber participa, semanticamente, dessa formulação, uma vez
que os movimentos descontínuos e dispersos na história tomam o enunciado
como um elemento que constitui/ define/ singulariza subjetividades em meio
às relações existentes entre poder, saber e resistência (NAVARRO;
MIRANDA, 2021, p. 162).

Embora Michel Foucault não tenha relacionado seus estudos à Moda e suas práticas,
lidar com a tríade poder/saber – corpo – discurso nos parece ser profícuo para cartografar os
discursos da/sobre a moda e como esses, nas examinar como, na rede discursiva da Moda, as
práticas do vestir atuam na disciplina dos corpos desempenhando um papel vital na marcação
das fronteiras de gênero. Retomando a aula A ordem do discurso, se há em toda a sociedade
procedimentos de controle, seleção, organização e redistribuição de discursos, previamente
selecionados como possibilidade de verdades absolutas, de forma análoga há de se pensar em
uma ordem das roupas e nela as operações que visam normatizar os corpos segundo uma
vontade de verdade para hegemonia de uma sociedade binária e heterossexual na
naturalização do roteiro binário de gênero.
Desse modo, ao pensarmos nas relações de poder/saber que atravessam e constituem o
corpo – discurso faz-se necessário apreender os princípios intrínsecos internos e externos à
rede discursiva. Sob o nexo sequencial proposto por Foucault (1996) em sua obra sobre o
discurso tomemos os mecanismos que se exercem do exterior e que funcionam como sistema
de exclusão a fim de assegurar se o corpo no seu modo de vestir deve ou não ser aceito, a
saber: i) interdição: assim como qualquer um não pode falar de qualquer coisa, sabe-se que
qualquer corpo não pode vestir-se com qualquer roupa. Aqui associamos a palavra proibida a
roupa proibida, ora as roupas devem corresponder as “exigências funcionais do discurso [do
vestir heteronormativo] que deve produzir sua verdade” (FOUCAULT, 1996, p. 77), legitimar
as regras destinadas a cada corpo, a cada performance de gênero, sexualidade e
comportamentos.
No texto jornalístico da figura 1 é possível reconhecermos o caráter de interdição do
vestir fluido que recai sobre o corpo – sujeito homem:
FIGURA 1: Sobre a elegância masculina
FONTE: Biblioteca Nacional Digital Brasileira

Da matéria, publicada pelo periódico carioca Revista da Semana no ano de 1908 –


edição 00427, foram recortados quatro (4) enunciados, enumerados na sequência em que
aparecem nesta tese:

R1 - JANOTAS, SENTIDO!

R2 – Em Londres, que é centro refinado da moda, o que expede os figurinos para Paris,
Berlim, Madrid e outras terras onde se rende culto à elegância, o cavalheiro que se
apresentava com um anel de brilhante ou com um alfinete na gravata, era imediatamente
posto à margem, por falta de linha.

R3 - Mas como tudo muda, a moda acaba de decretar uma terrível transformação da toillete
masculina.

R4 - Mas cuidado com as adaptações, não vá o diabo da moda lembrar-se de decretar que o
homem use... saia e bolero!

R5 - O cavalheiro que se apresentava com um annel de brilhante ou com um alfinete na


gravata, era immediatamente posto à margem, por falta de linha.

Sobre o recorte primeiro (R1) há nele um trabalho de memória operando sobre o atual
que, necessariamente, incide perpendicularmente nos sentidos possíveis, bem como na
construção de um caminho de interpretação para o que aqui nos interessa. O enunciador, no
enunciado que dá título a matéria, pelo léxico SENTIDO (re)atualiza a memória de uma voz
de comando militar que projeta no corpo o parâmetro ideal de conduta.
A noção de memória e de domínio associado nos ajuda a compreender a reatualização
desse dizer. Segundo Foucault (1987, p. 112) a função enunciativa não pode se exercer sem a
existência de um domínio associado, “não há enunciado (...) livre, neutro e independente; mas
sempre um enunciado fazendo parte de uma série (...) desempenhando um papel no meio dos
outros, neles se apoiando e deles se distinguindo”. Nessa perspectiva, os enunciados não são
determinados por aquele que diz, mas sim na relação que estabelece com outros enunciados
no domínio de memória. A partir dessa noção, Courtine (2009) assim constrói o conceito de
memória discursiva e nos diz ser essa a “existência histórica do enunciado no interior de
práticas discursivas” (COURTINE, 2009, p. 105-106).
Desse modo, em um domínio que permite a repetição, o esquecimento e o apagamento
de outros discursos, ao (re)atualizar o enunciado “Pelotão, Sentido!” para “Janotas, Sentido!”
empresta-se da primeira a autoridade de uma voz que prescreve traços somáticos ao corpo.
(livro vigarello - espanhol)
O enunciador, direcionando-se ao homem, pois diz o chic, o podre de chic (...)
consistiu em os homens não usarem a mais pequena jóia, ao operar os marcadores Londres,
centro refinado da moda, outras terras, expressos no recorte (2), assume o tom narrativo
colocando-se na posição de alguém que conhece a dinâmica da moda e a cultura das
aparências, logo, autoriza-se a falar sobre. Na sequência, esse enunciador, ao incorporar o
discurso que circula sobre o campo do saber da moda, assumirá a posição de alguém que
produz gestos de interpretação, porque diz mas cuidado com as adaptações, não vá o diabo
da moda lembrar-se de decretar que o homem use... saia e bolero (R4), sendo assim o
interlocutor deveria acatar sua instrução. Nesse tom interpretativo, esse que enuncia passa a
ocupar o lugar de alguém capaz de compreender que há na e pela Moda uma possibilidade de
disrupção da aparência que tem como base a matiz cisheterossexual. Com isso podemos dizer
que o sintagma Sentido, inscrito no discurso de autoridade, cola-se à expressão cuidado com
as adaptações e edifica o efeito de ordem para o que pode/deve e o que não pode/não deve no
protocolo do vestir masculino. Assim, é no domínio militar, lugar máximo de controle e
disciplina do corpo, que o enunciador ancora o seu dizer, e desse modo o faz para interdição
de uma desordem da aparência, tal como da Moda, a fim de garantir a vontade de verdade às
regras destinadas a cada corpo, a cada performance de gênero, sexualidade e comportamento.
Vestir-se é parte dos atos performativos que reforçam o construto social de gênero.
Dizemos assim, porque na interdição a qual sofre o corpo – sujeito homem há uma afirmação
de gênero que diz ser a saia uma roupa feminina, consequentemente afirma ser a mulher
aquela que a veste, o que implica no seu oposto: não é uma roupa masculina, portanto, não
deve ser usada por homens. Logo, homens vestindo roupas (ditas) femininas desviariam do
que se convencionou por normal, então, correto. Frente a esse movimento, o sujeito do
discurso, então, assume uma posição de repulsa contra a mudança na prática de vestir do
homem, pois a inscreve no campo do terrível dando visibilidade ao traço subversivo (dobra ?)
da moda.
Ainda sobre o recorte R4, observemos a expressão imprecatória diabo da moda. O
substantivo diabo, concebido na história como o profano e o opositor maligno a tudo o que é
sagrado e divino na religião cristã, instaura um efeito de memória por meio da retomada e
atualização de um discurso religioso que diz “ela/ele está tomado pelo diabo”, portanto,
tomado pelo mal. Desse modo, produz-se um sentido de que há na moda uma dualidade entre
o bem (controle/disciplina) e o mal (subversão). Notemos que a moda ao autorizar a presença
de peças ditas femininas na toillete masculina gera um furo na trama de seu dispositivo
reverberando nesse um espaço outro de construção de novas subjetividades para o corpo-
sujeito homem; logo, no movimento de (des)ordem suas ações não mais disciplinam e sim
contaminam e profanam o corpo, por isso não pode fazer e tampouco o bem, apenas o mal e o
ruim. Ora, a presença da moda nessas condições de produção servirá apenas para
desestabilizar noções binárias já cristalizadas no corpo, na medida em que demonstram que
vestir-se com as roupas do sexo oposto intervém não só nas categorias homens e mulheres,
mas que geram, igualmente, uma crise na categorização.
No acontecimento materializado no jornal carioca embora haja, por meio da roupa,
um movimento da moda que enseja a possibilidade de outras visibilidades\enunciações para o
corpo - sujeito homem, uma vontade de verdade que institui uma lógica dicotômica, binária e
limitante (homem-mulher, masculino-feminino, hetero-homo) como normal e necessário
reveste as insubordinações do vestir masculino do tabu do objeto (algo do qual o homem não
se deve vestir, dado o caráter de anormalidade), rejeita-a e a separa das relações sociais,
consequentemente atribuindo aos sujeitos dessa experiência corporal desviante e não
disciplinada um lugar periférico. Um dos enunciados que, também, margeiam essa máxima
encontra-se, no recorte R5: O cavalheiro que se apresentava com um annel de brilhante ou
com um alfinete na gravata, era immediatamente posto à margem, por falta de linha. Essa
premissa nos conduz ao segundo ponto dessa discussão.
De acordo com Foucault (1996), para além da interdição, há também a (ii) a
separação/rejeição - segundo princípio que opera no plano externo como ferramenta de
exclusão. Para explicitar tal instrumento o filósofo a partir da oposição razão/loucura nos
interpela sobre a palavra do louco; esta que em oposição à razão e pelos exercícios de poder
não é passível a verdade, por isso é separada, rejeitada, colocada à margem. Importante grifar
que o louco não seria o louco se um discurso tomado de saberes não o tivesse articulado
dentro de tal perspectiva e/ou se não fossem sustentados por uma série de instituições sociais
que permitiram historicamente o louco não ser o dono do discurso.
Esse processo de classificação dos sujeitos, que estabelece divisões e atribui rótulos
que pretendem fixar as identidades, nos conduz a refletir o exercício do poder/saber no modo
de investimento dos e sobre os corpos. Não teremos, é claro, a oposição razão e loucura, como
exemplifica Michel Foucault (1996) em sua obra, mas o binário das representações
identitárias com base nos critérios estéticos e morais. Diante disso, ousamos dizer que assim
como a loucura, nas sociedades de outrora por meio da figura do louco, fora separa e rejeitada
pela razão, os corpos adornados de modo que não representam a hegemonia, a vontade de
verdade de um tempo histórico, são repelidos, não por possuírem um discurso que rompe a
racionalidade mas por carregarem no corpo marcas de um desordem. À luz dessa hipótese
façamos o nosso guia o recorte extraído da revista A Cigarra, em uma das suas publicações,
no ano de 1956.

Figura 2: Crime homem de saia


Fonte: Biblioteca Nacional Digital Brasileira

R6 - Bôto contava a sua aventura quando se fantasiou de mulher num carnaval em João
Pessoa e o delegado de Polícia deu ordem expressa para raspar a cabeça de todo homem de
saia que fosse encontrado.
Atentos ao movimento analítico anterior, o qual nos mostrou que não se pode vestir o
que se quer e quando se quer, podemos perceber na produção enunciativa da recorte (R6) que
há relações de poder incidindo sobre um eixo comum: uma (des)ordem na política das
aparências.
Segundo Foucault (1987, p. 199), “é sobre uma relação mais geral entre as
formulações, sobre toda uma rede verbal que o efeito de contexto pode ser determinado” e,
sendo assim, o dito do recorte enunciativo transcrito acima (R6), à época, costuraram-se a
uma trama bastante complexa, pois passaram a homologar e reatualizar os dizeres sobre o
corpo masculino e seus modos de vestir, também em outros campos, como no jurídico/militar.
Logo, o elemento (dito feminino) saia torna-se uma regularidade léxica, entrando para a
constituição de enunciados, de forma a produzir o sentido de toda “uma trama complexa”
(FOUCAULT, 1987, p. 119). Como veremos, a complexidade da trama se dá pelo enlace dos
sentidos produzidos pelo léxico saia em um enunciado da formação discursiva sobre o
masculino.
De antemão, consideremos a fórmula linguística homem de saia que põe em jogo o
funcionamento discursivo entre a linguagem e a memória: nesta o termo saia, que retoma já-
ditos constitutivos e constituintes de discursos relacionados ao feminino - isso é de/para
mulher, ao complementar o sintagma homem - cujos sentidos se inscrevem em uma memória
sobre o modo de ser de um corpo que não deve deixar escapar nenhum gesto, nenhuma
atitude, nenhum traço que possa ser definido como feminino de virilidade e
heterossexualidade - por meio da preposição de, constituindo parte do corpo masculino, e não
do feminino, em sua exterioridade, produz uma tensão na ordem das aparências instaurando
um corpo - sujeito homem dissidente, ou seja, em contradição com os corpos autorizados a
circularem. Nesse sentido, se o lexema saia desponta como algo saturado de feminilidade,
poderíamos parafrasear a contraconduta do corpo masculino (homem de saia) com enunciados
do tipo: “homem feminino”; “homem com roupa de mulher”; “homem afeminado”.
Isso nos leva a considerar que no encontro entre a atualidade e uma memória a
formulação irrompe como um acontecimento discursivo. Se pela memória encontramos
discursividades nas quais o homem ideal é formulado a partir de uma visibilidade específica,
não apenas para afirmar sua virilidade como também para distanciar-se do feminino, na
expressão, em pauta de análise, a presença de um elemento dito e visto como feminino em um
corpo masculino rompe com tal discurso possibilitando novas significações para o corpo –
sujeito homem.
Antes de avançarmos, vejamos, a partir do verbete carnaval marcado no enunciado, as
condições para a emergência de dada prática do corpo – sujeito homem (uso de saia) e não
outra em seu lugar.
Constituidor da identidade nacional brasileira e fruto de um processo que tem seus
primórdios ainda na segunda metade do século XIX (GARCIA; SOUZA, 2015), o carnaval
une na mesma folia as mais diversas e distintas identidades. Apagam-se imaginariamente as
diferenças entre classes e gêneros de modo a instalar o efeito de que a circulação dos sentidos
de intolerância e repressão face ao que é diferente estaria contida. No período das marchinhas
o roteiro cada corpo, cada roupa em seu lugar sucumbe e a rua torna-se um espaço onde todos
e tudo cabe. Isso porque é o carnaval, como coloca Garcia e Souza (2015, p. 90) “um ritual de
inversão da ordem cotidiana, um fenômeno que promove a ruptura do continuum da vida
social diária”.
Uma vez por ano o carnaval tem seu tempo e espaço delimitados. Aliás, essa festa
popular atrela-se a duas instituições de poder: a Igreja Católica declara o início da quaresma,
o Estado, partindo do calendário religioso, estipula os dias e locais e, com isso tem-se uma
desordem legítima; é o tempo do carnaval! Esse curto hiato de tempo de uma realidade que
não está aqui nem lá, nem fora nem dentro do tempo e espaço que vivemos e percebemos
como real, constrói as condições que propiciam a emergência para a indocilidade do/no corpo
- sujeito homem, a saber, o jogo entre o masculino (corpo sexuado) e o feminino (uso da saia)
que confunde e embaralha a identificação do gênero do corpo vestido.
Dito isso, embora o espaço-tempo do carnaval construa condições para a
contraconduta do corpo - sujeito homem, há uma vontade de verdade - terceiro e último
princípio de controle externo dos discursos - olhar moral e militar que volta-se para o corpo
envolvido em comportamentos e/ou atividades que perturbam as normas de condutas
impostas pelo dispositivo binário de gênero.
Dado o movimento paráfrastico anterior, a saia, estabilizada como vestimenta de
mulher por um saber pré-construído, ao interseccionar-se ao vestir masculino – um corpo de
homem com roupa de mulher – constrói um efeito de memória do contraponto viril, um falso
homem. Ao recobrarmos o enunciado (R6) a expressão homem de saia, então, costura-se ao
verbo inscrito na ordem policial - raspar a cabeça – instaurando, dados os valores formadores
da sociedade ocidental (a moral, a família, a religião e os bons costumes), sentidos de desvio,
de rompimento com o pacto de bem-estar social. Logo, travestir-se é algo que se encontra no
nível do crime, da contravenção, dando a ver não o verdadeiro, mas o falso homem.
Esse movimento nos permite entrever outro ponto fulcral deste enunciado. O delegado
de polícia ao dar a ordem expressa para raspar a cabeça de todo homem de saia que fosse
encontrado legitima no corpo não só a palavra da autoridade, mas também uma vontade de
verdade que apoia-se sobre um suporte jurídico/militar e edifica-se a partir de uma formação
discursiva na qual imbricam discursos sexistas/dicotômicos sobre os modos de vestir dos
corpos sexuados como masculino. A linha divisória mais latente à ordem do corpo e do olhar
está entre a vestimenta masculina e feminina: calças e saias.
Retomando nosso passado histórico para situar as condições de possibilidade deste
discurso consideramos o Código Penal Republicano de 1890. Nele, o artigo 379 “Do uso de
Nome Supposto, Títulos Indevidos e Outros Disfarces” prevê como criminoso, com pena de
15 a 60 dias de prisão, aquele que “disfarçar o sexo tomando como trajos impróprios de o seu
e trazê-lo publicamente para enganar”. Segundo Green (2000, p. 57-58), “embora a policia
fizesse vista grossa ao [ato de travestir 1] durante o carnaval, no resto do ano ela podia usar
essa prerrogativa legal para prender homossexuais que tinham o hábito de usar roupas do sexo
oposto”. Ainda que o Código Penal brasileiro anos mais tarde tenha passado por
reformulações, na década de 1950 a perseguição policial a homossexuais e travestis era uma
constante; este último era especialmente afetado pela Lei da Vadiagem, tal como a de
Importunação Ofensiva ao Pudor, como ficou conhecido, respectivamente, o Artigo 59 e o
Artigo 61 da Lei das Contravenções Penais de 1941.
Com isso, vemos o Estado constituindo um saber-poder sobre o corpo e determinando
as formas de comportamentos dos sujeitos; o que implica distinguir e separar o normal certo
do anormal errado e fazer com que o corpo-sujeito na incompatibilidade roupa - corpo
sexuado seja impedido de circular nos mesmos espaços que o dos outros sujeitos circulam, os
normais, ou seja, corpos-sujeitos cujas roupas satisfazem ao dispositivo binário de gênero.
Este saber jurídico justifica um poder que, por sua vez, coloca em ação um conjunto de
deveres, de regulamentos, de leis, de práticas e institucionaliza tudo como um regime de
verdade.
A incompatibilidade da roupa tem efeitos colaterais e contundentes. Na narrativa em
análise a projeção da saia em sua espessura histórica, associada ao corpo masculino
desencadeia sentidos, como já mencionado, enquanto sujeito que se deve ser suspenso,
rejeitado. A sanção pela desordem é infligida diretamente no corpo o tornando o próprio
espaço de segregação. No campo da memória em torno do ritual carcereiro (?), Raspar a
1 O autor menciona o termo travestismo, porém, por acreditarmos que este denota sentidos de patologia,
optamos por usar a expressão ato de travestir-se.
cabeça é a marca que separa no conjunto social, que samba e ginga nos labirintos urbanos, o
corpo que rompe por meio da roupa a ordem binária de gênero; que desconstrói e
desestabiliza na aparência as rígidas normas sociais relativas ao verdadeiro do ser homem. Em
outras palavras, é a metáfora do cárcere fundindo corpo e espaço. Isso porque o discurso
jurídico/militar sobre e para o corpo (dito e visto) masculino interpela-o como espaço que
revela lugares sociais, ideológicos e de poder.
Dada a questão de roupa proibida, regularidade que se constrói nos recortes de R1 a
R6, os movimentos analíticos nos permite entrever que a experiência do vestir é uma
experiência do corpo, momento em que a roupa faz incorporar cabalmente à noção de
masculinidade e feminilidade, dado que o corpo está longe de ser um dado material é um
efeito das técnicas do poder. Sob essa premissa, podemos dizer que a roupa, feito um vestido
de seda molhado, cola-se ao corpo e carrega em si mesma uma série de sentidos possíveis.
Esses não podem ser tidos como naturais, parte integrante de sua existência, mas sim
possibilidades oferecidas pelos sistemas discursivos em que se inserem, constituídas por
saberes e poderes que afirmam quem pode, homem ou mulher, como e qual roupa deve por
cada um ser usada. Em suma, as roupas, tal como a moda, é constituída por injunções sócio,
históricas e culturais, estão, pois, imbricadas a uma ordem do discurso, ou seja, ao que a
sociedade faz funcionar como verdade em uma dada atualidade.
Nessa esteira, a interdição e a separação que recai sobre o corpo travestido, e até
mesmo na possibilidade de fratura nos regimes de saber-poder da Moda, não existe de forma
aleatória, ambos procedimentos de controle obedecem a determinadas regras que tem como
objetivo a produção de uma subjetividade masculina hegemônica. Desse modo, a verdade que
circula no espaço social sobre a relação de (in)compatibilidade entre roupa - corpo sexuado -
gênero não é absoluta e universal, mas uma construção discursiva perpassada pela
historicidade que permeia sua produção e, por conseguinte, constitui sujeitos.
Da interdição à vontade de verdade, o poder é sempre presente. Presente no sentido de
destacar a roupa proibida ao masculino (saia) por meio da interdição, de segregar o desviante
homem de saia e de se manifestar coercitivamente por meio da (iii) vontade de verdade -
terceiro e último princípio de controle externo dos discursos.
Sobre a produção da verdade, “em todos os momentos e em todos os lugares do
mundo, e a propósito de toda coisa, pode-se e deve-se colocar a questão da verdade [pois] há
verdade em toda parte e a verdade nos aguarda em toda parte, em todos os lugares e em todos
os tempos” (FOUCAULT, 2006, p. 316), estamos todos atados aos efeitos de verdade que o
poder produz. O ponto basilar acerca do tema em questão é que trata-se de uma verdade
construída na/pela história que muito se distancia da concepção de verdade metafísica e
transcendente. Nesses termos, só nos é possível pensar a verdade e o sujeito em uma relação
constante com a história, dado que o discurso é mutante, varia com o tempo, mas cada tempo
tem seu modo verdadeiro de dizer e fazer que aliena, seduz, condena, informa e,
principalmente, transforma todos nós e cada um de nós em sujeito.
Interrogar-se pela verdade significa não mais apreendê-la em termos de descoberta,
como se ela fosse possível de ser desvelada por métodos exaustivos de conhecimento. Se
antes a questão que se colocava era em que medida a história de uma ciência se aproximou da
verdade, Foucault (2008), sob a égide de Nietzsche, propõe perscrutar os caminhos históricos
implicados na produção de discursos que constroem subjetividades e fixam a(s) verdade(s)
do/sobre o sujeito, constituindo-os.
Ocorre que este deslocamento torna a verdade indissociável do acontecimento. Aquilo
qualificado como verdadeiro não habita um já-aí, antes é produzida como acontecimento em
um espaço e tempo específicos. Espaço na medida em que não pode ser válido em qualquer
lugar, tempo porque algo é verdadeiro na ocasião, oportunidade e momento que
possibilitaram sua aparição. Trata-se de uma verdade descontínua, dispersa, vista como
irrupção de uma singularidade histórica, a qual não pode ser transmitida ou aprendida por
qualquer um mas tem seus agentes específicos. Esses agentes não são definidos por seguirem
métodos ou regras gerais para o conhecimento, como na verdade - demonstração, mas são
aqueles que passam por rituais específicos que os tornam receptivos para que a verdade os
alcance.
Cumpre destacar que em seu curso O poder psiquiátrico, quando se propõe fazer uma
história da verdade, Foucault (2006) relata haver outra posição da verdade a qual encobre, em
parte, a verdade enquanto acontecimento. Concerne a série histórica que ele nomeia como
verdade-demonstração. Nesta tem-se um saber que pressupõe a existência da verdade em toda
parte e em todo tempo, que não tem qualquer descontinuidade, e que é, por isso, da ordem do
universal. Ela está sempre lá, pronta para ser alcançada e mostrada, desde que disponha dos
conhecimentos necessários qualquer um estaria qualificado para dizer esta verdade: verdade
demonstrativa que, em suma, coincide com a prática científica.
As duas séries na história da verdade implica uma da manifestação daquilo que é e
outra da ordem daquilo que acontece. Nesta ela é perseguida, mais produção do que
apofântica, uma verdade que não se dá na pura relação de conhecimento mas provocada por
rituais, captadas por artimanhas, apreendida conforme as ocasiões; naquela, é descoberta,
constante, constituída. Enquanto a verdade-demonstração discute questões de método, a
verdade-acontecimento estabelece estratégias, incorpora-se ao poder.
Logo, de encontro à relação entre história da filosofia e concepções da verdade,
Foucault (2006) integra à seus estudos a concepção acontecimental, de modo a mostrar como
a verdade-demonstração não pode esquivar-se de seus rituais, de ter seus indivíduos
historicamente qualificados de acordo com certo número de modalidades, seus espaços e
tempos propícios. Esses elementos, por sua vez, não são regras universais para o
conhecimento do objeto, mas condições históricas de possibilidade para dados saberes, as
quais dependem não de um progresso da razão, mas das relações de força. Em outras palavras,
a partir do empreendimento arquegenealógico a verdade-demonstração é em si um episódio
na história da verdade-acontecimento.
Quer como demonstração, quer como acontecimento, as verdades se alastram por toda
e qualquer sociedade. No entanto, elas não unívocas, há em cada sociedade, subjacente à suas
práticas, um regime de verdade, uma política geral de verdade, isto é:

(...) tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiro, os
mecanismos e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daquilo que tem o encargo de
dizer que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 2008, p. 10).

A propósito, sobre esse regime de verdade que se institui pela dinâmica de jogo de
regras a proposta foucaultiana Foucault (2008) enumera algumas especificidades. Dentre elas
a ideia de que a cientificidade opera como manto propulsor e protetor da verdade; segundo, a
verdade está constantemente submetida a incitações políticas e econômicas. Ademais, ela é
alvo de debates políticos e de confronto social e sua produção e distribuição se dá de maneira
controlada por aparatos políticos e econômicos como universidades, mídia, igrejas, exército,
etc. Uma outra característica de suma relevância é a de que a verdade é objeto de imensa
difusão e consumo, pois circula nos aparelhos de educação, comunicação e, aqui é possível
acrescentar, a moda. Frente a essas particularidades, é preciso, portanto, se interrogar sobre
quem pode dizer / vestir o que será tomado como verdade e sob quais condições
institucionais. Nos limites dessa pesquisa, sob que jogos de verdade puderam constituir
vontades de saber possíveis que organizam modos de subjetivação para o homem no espaço
da moda?
É nessa direção que, na sua inaugural no Collége de France, ao desenvolver a ideia de
que se tem pelo discurso uma espécie de temor, apesar de sua veneração, gerando como
consequência a produção de sistemas de controle de forma a dominar a proliferação dos
discursos, Foucault (1996) coloca a vontade (histórica) de verdade como medular nas formas
de exclusão discursiva, que têm por finalidade conjurar os poderes e os perigos do discurso.
Essa que vinculada a sistemas institucionais classifica, enquadra e determina a dinâmica
homem e mulher a dados comportamentos-tipo, assim como destina-se a excluir “todos
aqueles que (...) procuraram [contorná-la] e recolocá-la em questão contra a verdade (...)”
(FOUCAULT, 1996, p. 20), como observado na série de enunciados regulares (R1 - R6)
marcados pela desordem da roupa no corpo - sujeito homem. Corpo, roupa e gênero se
entrelaçam numa rede heterogênea de saber e poder na objetivação e subjetivação do sujeito
masculino.
Noutras palavras, o discurso sobre uma heterossexualidade, nos modos de vestir, de
ser e se comportar, qualificado como verdadeiro é aquele se impôs sobre discursos outros que
desestabilizam as políticas determinantes do corpo masculino relegando-os ao terreno do
falso, instaurando assim uma ordem. Essa ordem discursiva que estrutura os papéis sociais de
homens e mulheres é o critério normativo para impor significações, identificar, dizer o que é
verdadeiro e o que é falso, o que é normal e o que é anormal, o que é certo e o que é errado, o
que é masculino e o que é feminino, nada mais que um modo de operar separações , ordenar
as aparências. Homens não usam saia, não choram e não se maquiam…: esse é um
pressuposto de larga crosta histórica que deriva de acúmulo de memórias na constituição do
verdadeiro sobre os papéis de gênero.
Daí entendermos que a roupa funciona como uma engrenagem na máquina do
controle social radar de uma sociedade conservadora. Explicamos: trata-se de uma engenagem
radar, porque ela opera como uma tecnologia política e estetizante do corpo-gênero, na
medida em que é um importante suporte institucional legitimado por uma rede heterogênea de
saber (jurídico/militar, midiático, religioso, dentre tantos outros) para dizer aquilo que
funciona como verdadeiro para o corpo - sujeito homem (FOUCAULT, 1996). A roupa,
elemento que permite o governo de si e dos outros, inscreve, portanto, o corpo-sujeito no
social, o faz falar a norma, o regula, o exerce, o torna (i)legível. A esse respeito, a partir do
movimento analítico empreendido, é lícito afirmar que os discursos midiático e
jurídico/militar, na primeira metade do século XX, apontam para uma contínua fabricação do
sujeito viril na interface com os saberes e as práticas da moda
Assim, somos instigadas a dizer que uma vontade de verdade, associada ao projeto
moral e econômico que precisa conservar suas bases, instaura a norma, uma ordem da roupa,
e esta, por sua vez, sela no corpo uma utopia estética. Essas normas, processo de regulação da
vida dos indivíduos e das populações, se ramificam em classificações de cores, modos de
comportamentos, roupas, entre outras formas de sociabilidade, que se tornam adequadas ou
não conforme os gêneros. Ora, a mensagem principal da roupa refere-se às maneiras pelas
quais “mulheres e homens consideram seus papéis de gênero, ou como se espera que eles os
percebam” (CRANE, 2013, p. 47).
A roupa com sua plástica, formada em uma topologia com um volume que é o do
corpo vestido, constitui-se não só como um arranjo tridimensional de cores, formas, silhuetas,
são, sobretudo, artefatos e como tal apenas suas características físico-químicas é que são
imanentes, seus efeitos de sentido, historicamente partilhados sobre ela, provém das relações
discursivas que existem nos extratos históricos dos saberes. sentidos são construídos e
atribuídos socialmente por uma rede estrategicamente composta por discursos, instituições,
leis, proposições morais, etc. Por conseguinte, mesmo na ausência do corpo físico carregam
significações, tornam-se símbolos identitários, como é o caso das imagens das portas de
banheiros de locais públicos que indicam a qual corpo (generificado) aquele espaço é
reservado; ícones com o desenho de um corpo sem formas diferencia-se apenas pela base de
uma saia, muitas vezes na cor rosa ou vermelho, indicando banheiro feminino, enquanto o
outro corpo aparentemente sem roupas, com regularidade na cor azul ou preto, informa o
espaço destinado àqueles subjetivados como homens.
No âmbito dessa reflexão, vestir o corpo vai muito além da ideia da necessidade de
proteção às intempéries da natureza, o que acaba por emergir é a dimensão histórica e social
da roupa, logo um poder-saber operando sobre o corpo. Dessa relação, a estética, como efeito
de visibilidade e dizibilidade, ultrapassa o corpo e a roupa como espaços separados e se dá
como uma unidade, um só espaço materializado como corpo vestido - longe de ser um dado
material, mas um efeito das relações de forças estrategicamente estabelecidas entre elementos
diversos e distintos.
Em tempos de uma sociedade de controle, e não apenas disciplinar, moda e corpo se
entrelaçam na constituição do indivíduo moderno. Roupas e adornos materializam a moda na
vida cotidiana, (re)criam e (re)atualizam os discursos sobre e para o corpo, este que é espaço
social privilegiado das operações de poder cuja finalidade maior é obter, de um lado, sua
modelação e, de outro, produzir subjetividades. À esteira disso, o saber sobre a prática do
vestir não só é objetivo, mas também objetiva, porque os sujeitos foram e são divididos e
conceituados a partir dela.
Em sua conferência O corpo utópico, Michel Foucault (2013) apresenta o contato do
sujeito com o seu corpo que se renova a cada dia, a cada amanhecer. O autor diz ser o corpo
uma topia desapietada: topia porque ocupa o seu lugar, está posta em si, lugar do qual não
podemos nos desgarrar, invólucro inevitável e irremediável; desapietada, justamente porque é
indiferente ao mundo. Aliás, o mundo para ele é si próprio, restrito às suas entranhas. E é
como lugar que o corpo se torna contrário a qualquer utopia, pois é concreto, corpóreo, ora,
“não posso deslocar-me sem ele; não posso deixá-lo lá onde está para ir-me a outro lugar”
(FOUCAULT, 2013, p. 7).
No entanto, essa topia não é capaz de permanecer esquiva em seu espaço pois o
sujeito, seu ponto de inflexão no mundo, encontra-se sempre em relação com o outro. No
contato com o histórico, o social, o cultural, essa topia passa a ser incitada, provocada,
perturbada, a tal ponto que abre-se “ao lugar fora de todos os lugares”, torna-se corpo
“límpido, transparente, luminoso” (FOUCAULT, 2013, p. 8). Abre-se, assim, aos estratos de
saber e à rede instável de poderes. Torna-se idealizada, utópica, passa a ser discursivizada e a
ser exposta pelas capilaridades do poder; torna-se corpo-poder, corpo-político, corpo-sujeito
homem; transfigura-se.
A medida em que rasura-se o corpo, o transfigura-se, seja por meio de roupas,
maquiagem, acessórios, ele transforma-se em utopia. Ao vestirmos o espaço do corpo
construímos uma série de relações, seja com indivíduos, símbolos, artefatos e experiências;
habitar um corpo, desde a sua nudez até a produção de sua aparência, é carregar consigo uma
série de valores que são modelados pela história de cada tempo. Isso porque “a transfiguração
do corpo, ao contrário de suscitar o limite, submete-o às positividades dos saberes (...) [e] é
em razão dessas positividades que surgem às utopias” (SILVA, 2015, p. 128), no cerne dessa
pesquisa, a utopia estética.
Sob essa ótica, é, então, o discurso que faz com que o corpo saia desse postulado de
topologia para se tornar utopia; a linguagem torna-se o selo corporal que vai caracterizar as
definições do corpo, lhe conferir identidade e, em última análise, a sua materialidade. Os
discursos enunciados pelo corpo criam esse corpo na mesma medida que o dizem, pois antes
dele ser selado com utopias (verdades) ele não é nada, mesmo a sua topia inicial e
supostamente a priori só vai se formar quando um corpo carimbado com definições é
enunciado. Em outras palavras, no espaço do corpo, a partir da posição em que se compreende
a priori lugar e peso (material), se formam imagens, símbolos, gestos, que implicam o corpo
que vem habitar esse corpo lugar e se confundir com ele.
Na ordem da roupa, portanto, utopiza-se o corpo. A utopia, nesse caso, toma a forma
de uma idealização visual e social ordenada do corpo masculino (roupa - corpo biológico -
gênero) sobre o imaginário sócio-histórico de comportamentos e condutas viris de uma
visualidade viril, alicerçados em aspectos e traços cristalizados que se entendem e se leem
socialmente como atribuídos aos homens. Um ideal discursivamente construído por
determinados saberes para a afirmação de práticas, modos e modas que dão vida ao cânone
hegemônico masculino. E a roupa, essa que deposita a linguagem no corpo, selá-lo com
verdades (utopias), é a linha que parece costurar esse (corpo) espaço idealizado ao sujeito, ou
seja, instaura processos de subjetivação.
Calça para o homem, saia para a mulher, assim como vimos quando das análises, a
utopia estética é o norte para onde dispositivos de controle se guiam incansávelmente para
coação e correção do corpo-sujeito homem. Os signos a adornarem o corpo, já nos decretava
Foucault (2013, p. 12), o colocam “em outros espaços,(...), fazem desse corpo um fragmento
de espaço imaginário” no qual a produção de um regime de verdade normatiza e naturaliza a
binaridade de gênero e, de modo consequente, seu cânone visual, como efeito inconteste de
relações de poder sobre as quais se assenta a utopia estética, e porque não conservadora, ao
estipular suas coesões morais e ordens sociais.

https://www.researchgate.net/publication/
314714821_A_potencialidade_das_roupas_na_expressao_politica_e_na_subjetivacao_de_mu
lheres_trans/fulltext/58c5c37e45851538eb8afff7/A-potencialidade-das-roupas-na-expressao-
politica-e-na-subjetivacao-de-mulheres-trans.pdf
Tomando o livro bíblico do Gênesis (referência) o discurso originário sobre os corpos,
nos faz ver que Adão e Eva diante do espanto da diferença vestem os seus corpos. Essa
prática de vestir-se contém uma dúbia indagação: cobrem-se para esconder a diferença, ou
cobrem-se para marcar a diferença?

Se Foucault definia a utopia como um “espaço irreal” (imaterial) que perpassa todos
os outros, promovendo um arranjo harmônico, a heterotopia, por sua vez, seria um espaço
concreto no qual todas as representações se encontrariam presentes, causando contestações,
fragmentações e inversões de regras devido aos seus conflitos

Assim, a utopia carrega a ideia de possibilidade de ordem e organização

https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/85804/200097.pdf?sequence=1

https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2015/02/Ditos-e-escritos-III-Est%C3%A9tica

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Original_Maira_Neves.pdf
Moda: tecendo outras possibilidades na construção das identidades de gênero
Corpo, masculinidade, moda e biopolítica: apontamentos para uma genealogia da saia
1 – como (superfície de experiências (libertárias))
2 – aparência e controle social (utopia estética)
3 – furo no dispositivo (desobediência/análise)

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