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Psicologia & Sociedade; 16 (3): 7-16; set/dez.

2004

A APRENDIZAGEM DA ATENÇÃO
NA COGNIÇÃO INVENTIVA
Virgínia Kastrup
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: O artigo aborda o problema da aprendizagem da atenção, tomando como base a noção de
cognição como invenção (KASTRUP, 1999). Para o estudo da atenção examina trabalhos onde, no
contexto das ciências cognitivas contemporâneas, esta é concebida como fundo de variação da cognição,
ultrapassando sua manifestação como ato de prestar atenção. Analisa a relação entre atenção e aprendi-
zagem na prática do devir-consciente proposta por Depraz, Varela e Vermersch (2003), onde se destaca a
suspensão da atitude natural, a atenção a si e uma mudança na qualidade da atenção, que passa de um
ato de busca de informações para um ato de encontro com a dimensão de virtualidade do si. A aprendi-
zagem da atenção é examinada em sua lógica circular, temporal e coletiva. As diferenças entre distração
e dispersão, bem como entre concentração e focalização são discutidas no que diz respeito a seu papel na
cognição inventiva.
PALAVRAS-CHAVE: atenção – aprendizagem – devir-consciente

THE LEARNING OF ATTENTION IN INVENTIVE COGNITION IS THE PROBLEM OF THIS ARTICLE.

ABSTRACT: The learning of attention is the problem this article is concerned with, assuming the notion
of cognition as invention (KASTRUP, 1999). Within the context of contemporary cognitive sciences, we
examine the investigations in which attention is conceived as the background of variation of cognition,
rather than its manifestation as an act of paying attention. We analyze the relationship between attention
and learning in the practice of becoming aware, as proposed by Depraz, Varela and Vermersch (2003),
which includes the suspension of natural attitude, the redirection of attention to oneself, and modification
in the quality of attention, which then, becomes an act of finding the virtual self, instead of an act of
searching for information. The learning of attention is analyzed through a logic that is circular, temporal
and collective. The differences between distraction and dispersiveness, and between concentration and
focusing are discussed in relation to their role in inventive cognition.
KEY-WORDS: attention – learning – becoming aware

O problema da aprendizagem da atenção ponível uma avalanche de informações, atraves-


tem tido lugar de destaque na atualidade. Um dos sando grandes distâncias em alguns segundos. Por
motivos é que o funcionamento da atenção no sua vez, os celulares são também fatores importan-
mundo contemporâneo vem assumindo uma ca- tes, atravessando sem cessar o fluxo da vida coti-
racterística marcante. É possível observar que a diana. Observa-se que há neste quadro de coisas
atenção desliza incessantemente entre fatos e si- algo que é da ordem da quantidade. Há na socie-
tuações, transparecendo uma certa dificuldade de dade contemporânea um excesso de informação e
concentração. Numa busca acelerada de novidade uma velocidade acelerada que convoca uma mu-
a atenção é passageira, muda constantemente de dança constante do foco da atenção, em função
foco e é sujeita ao esgotamento em frações de se- dos apelos que se multiplicam sem cessar.
gundos. Quando se procura descrever como a aten- Os problemas de atenção comparecem hoje
ção funciona nos dias atuais, o primeiro aspecto em dia na escola, na clínica, nos ambientes de
que sobressai é uma acentuada dispersão, que re- trabalho e nas famílias. É cada vez mais freqüente
sulta da mudança constante do foco da atenção. o diagnóstico de TDA – transtorno de déficit de
Não é difícil perceber que alguns fatores partici- atenção - que tem como sintomas baixo rendimen-
pam da produção desse tipo de subjetividade. As to na realização de tarefas, dificuldade de seguir
imagens e textos constantemente veiculados pela regras e desenvolver projetos de longo prazo, e a
mídia, bem como a explosão recente das tecnologias cujo quadro pode estar associado a hiperatividade
da informação, como é o caso Internet, torna dis- e à impulsividade. No contexto escolar o problema
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Kastrup, V. “A aprendizagem da atenção na cognição inventiva”

é diretamente colocado como incidindo sobre a tos fora de lugar, percepções sem finalidade, remi-
atenção que é requerida no processo de aprendiza- niscências vagas, objetos desfocados e idéias flui-
gem. Considera-se que a criança não aprende por- das, que advêm do mundo interior ou exterior, mas
que não presta atenção. Esse funcionamento da que têm em comum o fato de serem refratárias ao
atenção na subjetividade contemporânea não é tra- apelo da tarefa em questão. É curioso notar que o
tado como um problema de ordem moral, sendo distraído é alguém extremamente concentrado, que
antes tomado como um transtorno que exige tra- não é meramente desatento, mas cuja atenção se
tamento (CRARY, 2001). Muitas crianças são en- encontra em outro lugar. Vale notar que ao res-
caminhadas para terapias de enfoque cognitivo- tringir a atenção ao ato de prestar atenção, identi-
comportamental, que têm em vista aumentar a ca- fica-se o processo de concentração ao de
pacidade de atenção para a realização de tarefas. focalização, que como veremos não se sobrepõem,
O que prevalece nesse domínio é o entendimento pois pode haver focalização sem concentração e
da cognição como processo de solução de proble- também concentração sem foco. A primeira preva-
mas e, no que diz respeito à atenção, a ênfase re- lece no regime cognitivo que é hegemônico na sub-
cai sobre seu papel no controle do comportamento jetividade contemporânea, enquanto a segunda
e na realização de tarefas. Ela é a condição para revelar-se-á fundamental no processo de invenção.
que se dê o processo de aprendizagem, a solução Cabe ainda sublinhar que, ainda que diversos au-
de problemas e o desempenho de tarefas cognitivas. tores considerem que o TDA seja em parte causado
Tomada como uma espécie de processo subsidiá- pelas características da sociedade atual (além da
rio à aprendizagem e estando a seu serviço, sua predisposição genética), ele é tratado como um
análise é restrita à atenção voltada para objetos e problema individual, aliando técnicas
estímulos do mundo externo, ou seja, para a cap- comportamentais e medicamentos como a ritalina
tação e busca de informações. A falha no trato com (metilfenidato).
as informações externas é sinal de pouca atenção Neste artigo procuraremos argumentar que
e baixa capacidade de concentração. Tendo em estudos recentes sobre atenção que são desenvol-
vista que a noção de cognição é restrita à solução vidos no campo das ciências cognitivas contem-
de problemas e que a proposta clínica é porâneas promovem uma discussão detalhada so-
declaradamente adaptativa, a questão é como res- bre o tema, que ainda precisa ser assimilada pelas
tabelecer a capacidade de prestar atenção, ou seja, abordagens psicológicas da cognição, tanto teóri-
como promover a aprendizagem de uma atenção cas quanto clínicas. É patente que o problema da
que é necessária à realização de tarefas. atenção exige uma discussão mais fina quando tra-
A noção de déficit indica que subjaz aí um balhamos com uma noção de cognição ampliada,
entendimento da atenção como marcada por um que extrapola o processo de solução de problemas,
funcionamento binário: 0-1, atenção-desatenção. mas se define como invenção de si e do mundo
Tudo aquilo que escapa ao ato de prestar atenção (KASTRUP, 1999). Do ponto de vista da invenção,
fica alocado na rubrica do negativo, da falta, do a cognição não se limita a um funcionamento re-
déficit. Ao procurar fazer frente ao funcionamento gido por leis e princípios invariantes que ocorreri-
da atenção que foge da tarefa, são igualmente con- am entre um sujeito e um objeto pré-existentes,
sideradas indesejáveis a dispersão e a distração. entre o eu e o mundo. Ela é uma prática de inven-
No entanto, os fenômenos são distintos. A disper- ção de regimes cognitivos diversos, co-engendran-
são consiste num repetido deslocamento do foco do, ao mesmo tempo, o si e o mundo, que passam
atencional, que impossibilita a concentração, a à condição de produtos do processo de invenção.
duração e a consistência da experiência. Um exem- Cabe ressaltar que a idéia de co-engendramento
plo é a pessoa que tenta assistir televisão, mas pas- encontra apoio na noção de causalidade circular
sa a noite inteira zapeando os canais, agarrada ao proposta por Francisco Varela (VARELA, S/D;
controle remoto que a conduz de um programa a DUPUY E VARELA, 1995) e retornaremos a ela pos-
outro. Ao final da noite ela sabe quais os progra- teriormente. Com Varela (1995) afirmamos que a
mas que passaram na TV, embora de fato não te- cognição inclui a invenção de problemas. A apren-
nha assistido a nenhum deles. Uma certa avidez dizagem inventiva inclui a experiência de
de novidade impede a espessura temporal e a con- problematização, que se revela através de
sistência da experiência. Já a distração é um fun- breakdowns, que constituem rupturas no fluxo
cionamento onde a atenção vagueia, experimenta cognitivo habitual. Problema e solução são as duas
uma errância, fugindo do foco da tarefa para a faces do processo da aprendizagem inventiva.
qual é solicitado prestar atenção e indo na direção Desta perspectiva, cabe investigar qual o
de um campo mais amplo, habitado por pensamen- estatuto e o papel da atenção na cognição inventi-
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va. Frente a este modo de colocar o problema, que de mal entendidos são gerados pela suposta cor-
introduz a dimensão temporal e coletiva da respondência entre a consciência e o foco da aten-
cognição, surge uma série de perguntas: Seria a ção. Discordando da posição defendida por G.
atenção um processo único e homogêneo, varian- Strawson (1997), afirma que seria absurdo acredi-
do apenas na proporção do investimento do eu so- tar que a consciência pode “sair de férias”. Recor-
bre os objetos e tarefas? Haveria um funcionamen- rendo à abordagem fenomenológica de Aron
to cognitivo onde a atenção estaria ausente, po- Gurwitsch, Arvidson afirma que a consciência não
dendo ser denominado estado de desatenção? Tra- se reduz ao foco da atenção, mas possui uma or-
ta-se da mesma atenção quando estamos frente a ganização tridimensional, comportando tema,
uma obra de arte e quando buscamos a solução de campo temático e margem. O tema corresponde
um problema matemático? É a mesma atenção que ao foco da atenção, àquilo que é dotado de inte-
é mobilizada quando lemos um texto literário e resse; o campo temático diz respeito àquilo que
quando assistimos a um programa de TV? Como está relacionado ao tema e que se encontra ligado
colocar o problema da relação entre atenção e a ele numa unidade de relevância; a margem é
aprendizagem? Seria a atenção condição ou efeito formada por tudo aquilo que se apresenta como
da aprendizagem? Neste artigo procuraremos de- irrelevante para o tema em questão. Segundo
monstrar que, perspectivado pela noção de Arvidson, a atenção desliza entre os três níveis,
cognição inventiva, o problema da aprendizagem num movimento de vaivém. Neste caso, a consci-
da atenção envolve, em primeiro lugar, uma am- ência não nos abandona em determinados momen-
pliação do conceito de atenção em relação ao ato tos, mas permanece sempre presente, ainda que a
de prestar atenção a tarefas e de buscar informa- atenção não incida sobre um foco específico. O
ções. Em segundo lugar, modifica-se o modo de que surge então é uma concepção não-egóica da
colocar o problema da relação entre atenção e consciência. Por sua continuidade temporal, é cer-
aprendizagem. O problema de atenção que é to que a consciência vem a produzir o senso de
requerida para que um processo de aprendizagem um eu contínuo, mas este não é o fundamento da
tenha lugar é substituído pelo problema da pró- consciência. Ele possui uma continuidade fraca,
pria aprendizagem da atenção. Com esta nova se comparada à visão do eu como centro e fonte
inflexão, o objetivo é discutir a lógica temporal de de toda atividade consciente. Varela, Thompson e
tal aprendizagem, bem como sua dimensão coleti- Rosch (2003) afirmam que o eu é uma formação
va. O que está em jogo é o entendimento de que a que emerge e desaparece a partir de um fundo
atenção nem sempre é um processo pilotado por processual da cognição que é pré-egóico, compos-
um eu, fonte e centro do processo de conhecimen- to de redes sub-simbólicas e elementos não
to. A questão da aprendizagem da atenção desdo- representacionais. A idéia de um eu como entida-
bra-se então em duas outras: a da amplitude do de permanente e substancial é da ordem da cren-
funcionamento da atenção e a do mecanismo que ça. Inspirados na prática budista, afirmam que nas
liga aprendizagem e atenção. tradições orientais as práticas de meditação vi-
sam a expansão do campo da atenção, tornando-
EXPLORANDO O FUNCIONAMENTO DA ATENÇÃO a mais sensível e aberta através do abandono de
No cenário atual das ciências cognitivas, padrões habituais e do próprio eu. Argumentam
o tema da atenção tem sido investigado no âmbi- que agir em conformidade com a vontade do eu é
to dos estudos da consciência, que ganham des- uma atitude menos livre, presa ao passado por his-
taque na década de 90. Tais estudos, que haviam tórias de condicionamento que resultam na repe-
sido abandonados com a hegemonia do tição de padrões habituais no futuro. A proposta
behaviorismo, são então retomados e o desafio das práticas de meditação budistas não é afastar
agora é não apenas a investigação da mente, que o sujeito do mundo, mas, ao contrário, capacitar
já havia sido resgatada na década de 60, mas da a atenção e a consciência a estarem totalmente
cognição em sua dimensão de experiência. Tais presentes na experiência. O tema da atenção ao
investigações, que rompem com o veto positivista presente surge como uma abertura da consciência
de uma ciência da experiência, visam transformar para uma experiência que não é recoberta pela
o que era considerado um mistério num problema história passada e que está associada ao fato de
(SEARLE, 1998). Dentre os inúmeros trabalhos que ser destituída de um eu. Diversos autores também
surgiram nessa direção, destacam-se alguns que têm questionado a teoria de J. Broadbent do ca-
contribuem para o entendimento da atenção do nal único da atenção, que a restringe a um pro-
ponto de vista da cognição inventiva. cesso de seleção de informações, a serem proces-
Arvidson (2000) considera que uma série sadas de modo linear, através de seqüências de
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inputs e outputs. Os críticos têm enfatizado que a texto da teoria do fluxo da consciência, pois ela
atenção não é como um tubo, mas possui uma responde pelo movimento da consciência. James
estrutura folheada, comportando a coexistência aponta que o funcionamento da atenção voluntá-
de processos cognitivos paralelos e simultâneos ria opera por puxões, por sacudidelas que buscam
(CAMUS, 1996; MIALET, 1999; VERMERSCH, recolocar repetidamente no foco uma atenção cuja
2002a; 2002b). Tais trabalhos constituem referên- tendência é escapar a todo momento. Ou seja, a
cias importantes para dar conta da complexidade seleção operada pela vontade e pelo eu encontra
do problema da atenção e da consciência na atu- resistência para sua efetivação, demandando um
alidade. esforço reiterado para manter-se no foco. E. Husserl
Pierre Vermersch (2002a, p.27) afirma que afirma que se experimentarmos fixar a percepção
a atenção e consciência são um mesmo objeto, num único objeto, podemos ter a medida da osci-
encarado de dois pontos de vista diferentes. Esco- lação a que somos acometidos, independentemen-
lher o ponto de vista da atenção significa apreen- te do esforço da vontade consciente. A percepção
der a consciência em suas propriedades funcio- vagueia e escapa do objeto visado e somos então
nais e em suas transformações dinâmicas. O estu- capazes de flagrar a presença da atenção
do da atenção revela, não o aspecto de (VERMERSCH, 2002b). H. Bergson (1934/1962)
intencionalidade da consciência, mas sua dimen- tem como importante contribuição apontar a exis-
são de variação e modulação. A idéia central é tência de uma atenção à duração, que é como
que a modulação modifica a estrutura intencio- uma atenção suplementar, que não se confunde
nal da consciência. O conceito de com aquela voltada para a vida prática e para os
intencionalidade, proposto por Brentano, visa a imperativos da ação. A atenção à vida prática está
apontar que a consciência se define por sua aber- envolvida nas atividades ordinárias da vida coti-
tura para o mundo, que a consciência é sempre diana, sendo portanto utilitária. Já a atenção su-
consciência de algo. Sem afastar-se da plementar caracteriza um mergulho na duração,
fenomenologia, Vermersch sublinha, entretanto, sendo evidenciada sobretudo na arte e na filoso-
que o funcionamento da atenção atesta que este fia. Na mesma época, embora num outro contex-
voltar-se para o mundo é sujeito a modulações, to, Freud (1912/1969) estabelece o conceito de
que fazem com que a consciência varie em clareza atenção flutuante, destacando-a como aquela a
e distinção. Em sua minuciosa investigação, ser exercida pelo analista no setting clínico, posto
Vermersch ressalta que a atenção não é um pro- que necessária à escuta sintonizada com as asso-
cesso específico, mas que vem sempre acoplado a ciações inconscientes trazidas pelo paciente. Sem
outros, como a percepção e a memória, possuindo pretender entrar no exame detalhado e na análise
um funcionamento transversal. A atenção não tem dos desdobramentos e limites de cada uma dessas
uma atualização específica como a percepção tem contribuições, parece-nos pertinente apontar a exis-
o percepto e a memória a lembrança, e aí parece tência de um arco ligando o final do século XIX e
encontrar-se a fonte dos mal entendidos que aca- o final do século XX. Nas duas extremidades deste
bam por fazer dela um processo subsidiário. En- arco, encontramos o problema da atenção em sua
tretanto, este caráter transversal faz da atenção complexidade e amplitude, para além do ato de
um processo especial a partir do momento em que prestar atenção que é mobilizado na realização de
ele é entendido como fundo de variação da tarefas.
cognição. Como teremos ocasião de demonstrar, Depraz, Varela e Vermersch (2002; 2003)
este caráter de modulação da intencionalidade propõem uma contribuição original ao estudo da
será importante para o entendimento do papel da atenção a partir do conceito de devir-consciente.
atenção na cognição inventiva. O desafio dos autores é investigar a experiência
As pesquisas levadas à frente no fim do humana em ato, e não apenas os conteúdos da
século XX promovem uma retomada dos estudos experiência. O devir-consciente é o ato de tornar
desenvolvidos pela psicologia e filosofia da segun- explícito, claro e intuitivo algo que nos habitava
da metade do século XIX, que também dão teste- de modo pré-reflexivo, opaco e afectivo. Trata-se
munho de que a atenção não se restringe ao ato de conhecer a experiência humana em seu caráter
de prestar atenção. A distinção proposta por W. de atividade, de prática, ressaltando seu caráter
James (1890/1945) entre foco e margem da cons- mutável e fluido. A proposta do livro On becoming
ciência indica o caráter seletivo, mas também fluido aware (2003) é desenvolver uma metodologia para
da atenção. Segundo Arvidson (2000), mais do sua investigação, para a qual sugerem o aprendi-
que o problema da seleção, o importante na abor- zado de uma atitude cognitiva que implica direta-
dagem jamesiana é o exame da atenção no con- mente no problema do aprendizado da atenção.
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A inspiração de Depraz, Varela e Vermersch esforçamos para ver uma figura em 3D emergir de
é o método da époché ou método da redução um fundo de formas indefinidas. Para que a emer-
fenomenológica, formulado por E. Husserl. Os au- gência da figura ocorra é preciso olhar sem ver.
tores sublinham que agentes cognitivos concretos Poderia tratar-se também de escutar sem ouvir,
encontram sempre dificuldades em efetivar a re- mas sempre de deixar vir algo que não é visado
dução, que envolve a suspensão da atitude natu- pela consciência intencional. A emergência intui-
ral que consiste em realizar juízos sobre o mundo. tiva, explícita e clara finaliza o processo de devir-
Cabe ressaltar que a questão das dificuldades e consciente. Cabe notar que esta concentração sem
obstáculos da redução não havia sido colocada focalização, embora compareça na vida cotidia-
por Husserl, que falava no método da redução na, não está em geral envolvida na realização de
como colocação entre parênteses do juízo por par- tarefas. Vale ressaltar que os três gestos acima não
te do sujeito transcendental. Procurando torná-lo seguem uma ordem linear e sequencial. Cada ges-
um método concreto, os autores propõem o que to ultrapassa, ao mesmo tempo que conserva o
denominam uma pragmática fenomenológica. Nes- anterior. Sendo assim, eles devem ser entendidos
ta direção, o ciclo básico da redução é desdobra- como fazendo parte de um ciclo, se entrelaçando
do em três gestos ou atos: suspensão, redireção e e operando um movimento circular.
deixar vir. A suspensão da atitude natural, ou seja, A questão é como cultivar o ato do devir-
a suspensão da atitude cognitiva de juízo, pode consciente que é composto desses três gestos, atra-
ser desencadeada por um acontecimento especial, vés de práticas concretas. As práticas propostas
que interrompe o fluxo cognitivo habitual. Um dos são diversas: a meditação budista, a entrevista de
exemplos mais reveladores é a surpresa estética. O explicitação, a reza do coração, a clínica, a sessão
acontecimento estético tem a propriedade de ge- de escrita, o aprendizado da filosofia e a própria
rar uma experiência não antecipável, uma surpre- visão estereoscópica, reconhecendo os autores que
sa, que desativa a atitude recognitiva e instala esta não é uma lista exaustiva e fechada. Estes
um estado de exceção. A suspensão pode ser en- exemplos revelam que as práticas de aprendiza-
tendida tanto como uma interrupção do fluxo gem da atenção que estão em jogo aqui não se
cognitivo quanto como suspensão no tempo. Os esgotam enquanto prática de pesquisa, assumin-
dois outros atos do ciclo básico tocam diretamen- do diversas vezes a feição de práticas de transfor-
te no problema da atenção. Com o ato de suspen- mação de si e de relação consigo. Por outro lado,
são, a atenção é redirecionada do exterior - para há uma notável modificação do problema da aten-
onde ela é habitualmente voltada - para o interi- ção quando a cognição é colocada em suspensão.
or. A atenção a si é então o segundo ato do ciclo Redirecionada para o interior, a atenção não acessa
básico. Tomando como base a experiência estéti- representações e não funciona no registro do eu:
ca, pode-se dizer então que a relação com a obra eu penso, eu sei etc. Na ausência de preenchimen-
de arte instala uma relação consigo já marcada to imediato, a atenção atravessa um vazio, um
pela suspensão da tendência recognitiva. Quando intervalo temporal que se revela como espera. Esta
a atenção sofre essa dobra do exterior para o inte- espera é considerada como o maior obstáculo para
rior, não aciona um processo de consciência de si que a redução se cumpra, pois é necessário que a
nem de reflexão. Tendo em vista que o ato ocorre atenção aberta seja sustentada para acolher aqui-
sob suspensão, a relação consigo não dá lugar a lo que, vindo de si, revela a dimensão de
lembranças, pensamentos ou preocupações. Ao virtualidade do si. Por sua vez, se o acolhimento
contrário, o recolhimento pode ser dito um movi- de algo desta natureza se dá, a atenção coloca-
mento de saída de si. Detecta-se então um tercei- nos em contato com uma distância íntima, algo
ro gesto cognitivo, que transforma a qualidade da que nos habita, mas que não é do conhecimento
atenção. Ele é nomeado em inglês letting-go, em nem está sob o controle do eu. Neste caso, tais
francês lâcher-prise e pode ser traduzido em por- práticas de aprendizagem da atenção são práticas
tuguês como deixar vir. A atenção que busca é de presença a si onde a atenção acessa o fundo
transmutada numa atenção que encontra, que processual e inventivo da cognição.
acolhe elementos opacos e afectivos que nos habi-
tavam num plano pré-egóico ou pré-reflexivo. Esta A LÓGICA TEMPORAL DO APRENDIZADO
segunda qualidade da atenção caracteriza uma O devir-consciente é uma prática e sua
concentração aberta, destituída de intenciona- efetuação não pode ser aprendida nos livros, não
lidade e de foco. Um exemplo desta atenção ao se prestando a uma aprendizagem teórica ou sim-
mesmo tempo concentrada e sem foco é aquela bólica. Usando uma distinção proposta por John
mobilizada na visão estereoscópica, quando nos Dewey, trata-se antes de saber fazer (know how)
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Kastrup, V. “A aprendizagem da atenção na cognição inventiva”

do que de saber algo (know that). Aprende-se fa- produz rachaduras, que chamamos, com Deleuze
zendo, ou melhor, aprende-se no trabalho atento e Guattari (1993), de afectos impessoais, que não
(learning on the job), e não através do exercício se confundem com sentimentos e emoções subjeti-
mecânico. É a atenção que é treinada. Numa cer- vas. O encontro com o texto é ocasião para o en-
ta medida, a aprendizagem é como a de uma ha- contro consigo mesmo, com as forças de alteridade
bilidade, no sentido em que, num trabalho de lon- que habitam o próprio leitor. Conforme pode ser
go prazo, ocorre um processo de estabilização da observado, a surpresa estética produz tanto um
épochè que faz com que ela apareça como um ges- corte que introduz um estado de exceção na sub-
to espontâneo e sem esforço. Por outro lado, o jetividade, quanto uma desaceleração do tempo.
exemplo que é evocado é o da habilidade musical. Ambos são acolhidos e se tornam gradativamente
Como em outros momentos da obra de Varela, a mais consistentes no decorrer do processo de
aprendizagem da música é tomada como aprendizagem inventiva que ocorre na oficina lite-
paradigmática (VARELA, THOMPSON E ROSCH, rária.
2003). Como sublinhamos em outra ocasião A novidade e a surpresa configuram uma
(KASTRUP, 1999) a aprendizagem de tocar um das faces da dupla temporalidade da aprendiza-
instrumento revela uma dimensão que ultrapassa gem. A segunda face de sua temporalidade é a
aquela de solução de problemas e de adaptação a sedimentação e o enraizamento. A sedimentação
um mundo pré-existente, indicando a invenção do aprendizado ocorre através do treino, que se
recíproca e indissociável de si e do mundo, como apresenta como um conjunto de sessões consecu-
no caso, do músico e da música. Aprender resta tivas e regulares. Trata-se de um aprendizado pas-
sendo antes uma questão de invenção do que de so a passo, mas que nem por isso pode ser dito
adaptação. Varela, Depraz e Vermersch (2003) seqüencial ou quantificável. No processo de treino
abordam novamente a aprendizagem tomando a utilizam-se rotinas e algumas regras básicas. O
arte como caso exemplar. Neste momento, a refe- sentido do treino é criar um campo estável de se-
rência à experiência estética serve para revelar o dimentação e acolhimento de experiências afectivas
exercício de uma atenção distinta daquela envol- inesperadas, que fogem ao controle do eu. A regu-
vida na realização de tarefas. A arte mobiliza e laridade das sessões tem como efeito a criação de
desenvolve, em sua aprendizagem, uma atitude uma familiaridade com tais experiências e, enfim,
atencional ao mesmo tempo concentrada e aber- o desenvolvimento de uma atitude distinta da ati-
ta. Os autores ressaltam que esta envolve não tude natural. Cabe também destacar que o tempo
apenas tocar, reger e compor, mas também o tor- do aprendizado ultrapassa a unidade da sessão,
nar-se mais sensível em ouvir música, deixando- incluindo o antes e o depois, ou seja, o movimen-
se tocar por ela em toda sua força (p.99). Fica to de engajamento no processo de treino e os pós-
claro aqui que a habilidade musical não é mera- efeitos da sessão. São identificados dois movimen-
mente técnica, nem visa um adestramento apenas tos, um mais difícil e que envolve esforço, que é
muscular e mecânico. Está envolvida aí uma apren- dito rio acima (upstream) e outro mais fácil, feito
dizagem da sensibilidade, o que significa a apren- com menos esforço, denominado rio abaixo,
dizagem de uma atenção especial que encontra a (downstream). Esses dois movimentos imprimem
música, deixando-se afetar por ela e acolhendo ritmo ao processo, cujo mecanismo é circular.
seus efeitos sobre si. Os autores destacam na mú- Depraz, Varela e Vermersch (2003) colo-
sica a sua dimensão de força afectiva, que deve- cam que “a redução não é apenas a aprendizagem
mos interpretar como sua dimensão não de uma habilidade (apesar de ser isso também),
recognitiva. É enquanto força que a música surge mas o cultivo da habilidade consciente de mudar
como novidade, produzindo surpresa e instalan- em relação à atitude natural” (p.99). O processo
do um estado de exceção e produzindo a suspen- começa com uma atividade consciente e intencio-
são do tempo, que se revela como desaceleração e nal que se torna, com a prática, espontânea e
espera. Numa direção semelhante, examinamos o inintencional. Com a noção de cultivo os autores
caso das oficinas de leitura, que propiciam a ex- procuram ressaltar que a aprendizagem resulta no
periência com a arte em situação de aprendiza- aumento da força e da potência de uma atitude
gem (KASTRUP, 2000; 2002a; 2002b; 2003). Na atencional que que já está existe na cognição.
experiência literária, o encontro do leitor com o Colocam então que, num aprendizado, importa
texto se dá num plano de forças. O texto, em sua identificar os gestos cognitivos que são relevantes
dimensão de alteridade, aciona no leitor experi- e exercitá-los assiduamente. Afirmam: “Cantores
ências de estranhamento e problematização que não precisam criar seu aparato vocal, mas sim,
ocorrem no plano pré-egóico de afectos. A leitura sobre a base deste aparato, um instrumento perito
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Psicologia & Sociedade; 16 (3): 7-16; set/dez.2004

que os permite cantar (p.100). “Pianistas não pre- blema do tempo do treino é relevante aí, tanto no
cisam construir mãos para tocar, mas levam anos sentido do aumento da potência gesto cognitivo
e anos criando mãos de pianistas: fortes, destras, quanto no sentido da produção de um sentido de
calibradas no espaço, com uma extraordinária pre- apropriação deste gesto, do fazê-lo seu. O novo e
cisão” (ibidem). Com o intuito de ressaltar a ques- o antigo, o que surge e o que já estava lá, não são
tão do enraizamento da aprendizagem, a idéia de pares antinômicos, mas se ligam por uma linha de
que o aprendizado se faz sobre o corpo, afirmam diferenciação e de invenção1 .
que “não envolve invenção”. Constata-se então que A cognição inventiva não é o mesmo que
a noção de invenção da qual procuram se demar- cognição espontânea. Pode-se dizer que a cognição
car é a invenção ex-nihilo, que cria o novo a partir espontânea é aquela que funciona de acordo com
do nada (KASTRUP, 1999). Entretanto, quando a atitude natural. Embora falemos de uma inven-
falamos em invenção recorremos a sua etimologia ção que não é privilégio de grandes artistas ou
latina - invenire – que significa compor com restos cientistas, mas que é distribuída por todos e por
arqueológicos. Inventar é garimpar o que restava cada um, ela depende de cultivo. A invenção não
escondido, oculto, mas que, ao serem removidas vai por si. Envolve treino aplicado e uma dose de
as camadas históricas que o encobriam, revela-se disciplina. Este aprendizado depende, de saída,
como já estando lá. As mãos do pianista não se da suspensão da atitude natural, que é aquela da
definem nem por seu aparato biológico, nem pela atitude recognitiva e da consciência intencional.
invenção ex-nihilo, mas pela destreza, firmeza, Com ela vem a aprendizagem da atenção, dos dois
precisão e perícia no movimento dos dedos. A ca- gestos de redireção e de deixar vir. Começando
pacidade de desenvolver movimentos tão finos e por mobilizar uma intenção consciente, torna-se
precisos existia como virtualidade, mas precisou aos poucos inintencional. Depraz, Varela e
ser cultivado através de uma prática repetida e Vermersch apontam que, a longo prazo, uma se-
por um treino disciplinado, para que então pudes- gunda espontaneidade tem lugar. Esta é definida
se ser criada. O corpo biológico surge como esta com a curiosa formulação de um esforço sem es-
reserva de virtualidade, o mesmo valendo para as forço, que supera tanto a dicotomia ativo/passivo
qualidades da atenção. quanto a dicotomia voluntário/involuntário. A
A noção de cultivo embaralha a lógica li- atenção nesta segunda espontaneidade não é ati-
near do aprendizado, pautando-se na idéia de que va, pilotada por um eu, nem passiva, lançada re-
“sempre se está à frente de si mesmo”. É interes- flexa ou mecanicamente ao sabor dos estímulos
sante notar que esta formulação paradoxal cons- do ambiente externo. Partindo da suspensão, o
titui uma superação tanto da noção de aprendiza- aprendizado estabiliza um tônus atencional sin-
gem por acúmulo de novas habilidades, quanto gular que envolve a ativação de uma atenção a si
da noção de aprendizagem por perdas. Na noção e de uma atenção aberta ao encontro de experiên-
tradicional de aprendizagem considera-se cada cias pré-egóicas. Estas duas espécies de atenção
nova habilidade acrescenta-se às anteriores, às encontram-se até certo ponto desativadas, sendo
quais se associa de modo cumulativo. Na noção pouco investidas na contemporaneidade. Aumen-
de aprendizagem por perdas, a habilidade é con- tar sua potência e trabalhar sua estabilização atra-
siderada a realização de uma dentre um conjunto vés de práticas de transformação de si é atualizar
de possibilidades inatas (MEHLER,1978). Cada uma virtualidade através da aliança da surpresa
realização deste conjunto de possíveis reduz a pos- com a regularidade.
sibilidade de realização de outras. A noção de Cada sessão, como de resto todo o apren-
aprendizagem por perdas tem o mérito de apontar dizado, assume a forma de um círculo. Os três
que a aprendizagem não é unidimensional, que a gestos constituem um ciclo onde o movimento é
aquisição de habilidades está sujeita a fenômenos de reincidir, retornar, renovar, reinventar, reite-
de interdependência que exigem explicação. To- rar, recomeçar. Em última análise, a lógica circu-
davia, no quadro dessa teoria as condições de pos- lar do aprender aponta para o inacabamento do
sibilidade constituem um campo fechado. No pro- processo, pois não há solução definitiva para o
cesso de realização de possíveis o problema é de problema da atenção. O aprendizado jamais é con-
seleção e o que se realiza é durante a aprendiza- cluído e cada sessão abre para um novo aprendi-
gem é semelhante ao que já estava lá. Já o apren- zado. Ele é contínuo e permanente, não se fechan-
dizado por cultivo é um processo de atualização do numa solução e não se totalizando em sua atu-
de uma virtualidade, ganhando o sentido de dife- alização, precisando por isso ser sempre reativado.
renciação. Trata-se de ativar gestos, aumentando O tratamento do problema da aprendiza-
sua força através do exercício e do treino. O pro- gem da atenção na cognição inventiva não con-
13
Kastrup, V. “A aprendizagem da atenção na cognição inventiva”

duz a uma nova teoria da aprendizagem. Não há ção que caracteriza as formas cognitivas predomi-
uma aprendizagem em geral, mas aprendizados nantes nos dias atuais parece requerer estratégias
concretos que podem ser muito diversos. Os apren- metodológicas mais concretas. Nesta direção, o
dizados consistem em atualizações concretas do método da redução, do qual examinamos o ciclo
aprender. O que eles possuem em comum é o fato básico composto de suspensão, redireção e deixar
de ocorrerem sempre no seio de uma tradição. A vir, aponta para uma interessante aprendizagem
meditação budista, a psicoterapia, a entrevista de da atenção do ponto de vista da cognição inventi-
explicitação, a formação em filosofia, etc ocorrem va. A suspensão prepara uma mudança da aten-
através de práticas corporificadas socialmente. Isto ção no que diz respeito à sua direção e à sua qua-
significa que, ainda que tendo lugar num indiví- lidade. A experiência com a arte em situação de
duo, a aprendizagem não pode ser dissociada de aprendizagem parece indicar um caminho para atu-
um contexto social específico, de instituições e alizações distintas do prestar atenção a tarefas pré-
dispositivos para sua efetivação. Nessa perspecti- definidas.
va não cabe a oposição entre aprendizagem indi- Para a invenção, a questão é antes de con-
vidual e aprendizagem social. Não se trata de al- centração que de focalização. A subjetividade con-
ternativa, mas de duas dimensões indissociáveis. temporânea não sofre de falta de foco, mas antes
Trata-se de uma experiência individual com di- de excesso de focalização. Mas a focalização, por
mensão e enraizamento coletivo. Diferente do que si só, é estéril para a invenção. Por isto a disper-
propõe a teoria da aprendizagem social de A. são é um problema. Uma atenção dispersa e ávida
Bandura, os indivíduos não podem abrir mão da de novidade responde automaticamente às infor-
própria experiência, baseando seu aprendizado na mações externas que se proliferam e que convo-
experiência de outros. Como as práticas individu- cam uma atenção sempre focada e ao mesmo tem-
ais e as práticas sociais não são independentes, a po fugaz. A informação é consumida rapidamente
aprendizagem da atenção configura um problema numa busca sem encontro, pois tudo é rapidamente
de cognição coletiva, reunindo tanto o nível pré- descartado. As práticas de redução, em seu meca-
egóico, que é aquém do indivíduo, quanto o nível nismo circular, podem atualizar um ritmo da aten-
social, que se situa além do indivíduo e o ultra- ção que o regime da dispersão atencional, em sua
passa (MELO, 2004). linearidade monótona e homogênea, acaba por
encobrir. Trata-se então de recompor, reativar,
A APRENDIZAGEM DA ATENÇÃO E reinventar um regime de ritmo atencional, que fun-
AS PRÁTICAS DE SUSPENSÃO ciona como o ritmo da respiração, alternando ten-
O exame cuidadoso e atualizado do funcio- são e distensão. O método proposto através das
namento da atenção revela que esta não é um pro- práticas de redução exercita o mecanismo circu-
cesso único e homogêneo. O prestar atenção é ape- lar que está na base da cognição inventiva. Por
nas um dos atos de um processo complexo, que outro lado, ele fornece pistas da participação da
inclui modulações da cognição e da própria atenção neste processo, além de fornecer indica-
intencionalidade da consciência. Do ponto de vis- dores do trabalho sobre a atenção que parece ne-
ta da invenção, verifica-se que uma parte impor- cessário na contemporaneidade. A suspensão que,
tante do processo ocorre fora de foco, inclui expe- como dissemos, pode ser desencadeada pela expe-
riências pré-egóicas, opacas e não recognitivas, e riência com a arte, prepara a atenção para o en-
não tem no sujeito o centro ou fonte desse proces- contro com a virtualidade que nos habita, que é
so. Desse ponto de vista, a aprendizagem da aten- fundamental para a bifurcação dos regimes
ção envolve a concentração necessária à consis- cognitivos existentes e sua reinvenção. Sob sus-
tência de tais experiências. Enquanto atenção con- pensão, e passando por este tipo de atenção a si, a
centrada, a distração pode ter um papel positivo cognição opera num nível zero de intencionalidade,
no processo de aprendizagem inventiva, não sen- acionando uma concentração sem foco e aberta
do mera desatenção e encarnando, em certa me- ao presente. O ritmo atencional revela aí sua di-
dida, o funcionamento da atenção como modula- mensão paradoxal: tensionar para soltar, fechar
ção da intencionalidade da consciência. Repre- para abrir, concentrar para deixar vir. Em situa-
sentando um afastamento das tarefas pré-defini- ção de aprendizagem inventiva, a experiência con-
das e das informações externas, o funcionamento tinuada com a arte exercita este ritmo da aten-
errante da atenção pode dar lugar a experiências ção, cultivando uma outra atitude cognitiva. O
de problematização. No entanto, pelo caminho da mecanismo circular da aprendizagem aponta que
distração a questão da aprendizagem da atenção a atenção é ao mesmo tempo condição e efeito de
resta sem horizonte. A dificuldade de concentra- um processo de aprendizagem. Entretanto, mais
14
Psicologia & Sociedade; 16 (3): 7-16; set/dez.2004

importante do que o problema da atenção que par- tivos: para compreensão das origens”. In: PAUL
ticipa de um processo de aprendizagem é o pro- WATZLAWICK E PETER KRIEG (Orgs) O olhar do
blema do aprendizado da própria atenção, tanto observador. Campinas: Editorial Psy II, 1995.
em seu caráter de modulação do foco quanto de
concentração aberta. MELO, L. E. (2004) O coletivo como plano de co-
A aprendizagem da atenção é tão necessá- engendramento do indivíduo e da sociedade. Tese
ria à cognição inventiva quanto a aprendizagem de doutorado. Programa de Pós-Graduação em
da sensibilidade para o músico. Trata-se de afinar Psicologia da UFRJ, 2004.
o instrumento para, ao tocar, extrair o som mais
puro e mais cristalino de um campo sonoro que FREUD, S. Recomendações aos médicos que exer-
existia ainda sem atualização. O papel especial cem a psicanálise. In: O caso Schreber, Artigos
da atenção na preparação da ação sensório-motora sobre técnica e outros trabalhos. Obras Completas
explica certamente o grande interesse que este de Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1912/
tema desperta nos dias atuais. É por ocupar este 1969.
lugar privilegiado que a atenção é tão visada pela
mídia, pela propaganda e pelo mercado. Mas é JAMES, W. Principios de Psicologia. Buenos Aires:
também exatamente por este motivo que é tão ur- Corrientes,1890/1945.
gente desvendar seu papel na cognição inventiva
e apontar caminhos a serem trilhados através de KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma
práticas comprometidas em reativar outras aten- introdução do tempo e do coletivo no estudo da
ções que, fazendo parte de um funcionamento cognição. Campinas: Papirus,1999.
complexo, constituem vias de resistência ao ex-
cesso de focalização que nos asfixia no tarefismo KASTRUP, V. Sobre livros e leitura: algumas ques-
fatigante dos dias atuais. tões sobre aprendizagem em oficinas literárias.
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Virgínia Kastrup é Professora do Programa de Pós-


Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. O endereço eletrônico
do autora é: vkastrup@terra.com.br
Informação complementar. O artigo é resultado
de projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq.

Virgínia Kastrup
A aprendizagem da atenção
na cognição inventiva.
Recebido: 1/07/2004
1ª revisão: 6/10/2004
Aceite final: 30/11/2004

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