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Cesar Candiotto Organizador ETICA abordagens e perspectivas 28 edicdo revista e ampliads Colegao Didatica, 1 cnalibacrur Curitiba 2011 NIETZSCHE E O NIILISMO COMO DIAGNOSTICO DA CRISE DA ETICA Jorge L. Viesenteiner ‘rodu¢do (© século XIX é marcado pela faléncia generalizada das narrativas tedricas que sustentaram a cultura ociden ‘A unidade da razio, que emitia um juizo universal sobre do, a vida e a morte, converte-se em razdo fragmentaria de responder as quesides basilares da vida humana. No da ética, esse colapso é percebido principalmente através ‘esvaziamento de significado das perspectivas ¢ valoragoes is que foram tradicionalmente culivadas ao longo dos sé- ‘Trata-se de um deserédito em relago ao otimismo exa- nas potencialidades da razio humana, bem como da al supressio de um fundamento religioso que garantia a ido da ag3o humana, Aos poucos, a esfera ética vai perden- as condigdes de agregar sentido e valor & existéncia humana, indo aos homens apenas se deparar com o vazio do mundo Podemos compreender a étiea como uma reflexdo tebrica as condigdes que dio sentido as agbes morais e & vidal 1, € que possibilitam ao homem criar uma “relagao de iment” com © mundo em que ele vive. Tratase de um na Jorge Vesentener anseio comum de “um ser que nio apenas vive, mas que pergunta pelo sentido de tudo e, portanto, pelo sentido de sua vida, pela razao de ser de suas agdes” (OLIVEIRA, 2001, p. 5). Mas ai esta nossa questio: a partir do século XIX a esfera da ética que arante sentido as agdes e a vida assiste gradativamente ao e- vaziamento do potencial getador de sentido ao homem. A esse colapso ¢ esvaziamento é que também podemos denominar de crise da ética. Nietzsche (1844-1900) & certamente o filésofo que mais bem analisou as condigbes culturais do século XIX e, por isso, podemos consideri-lo um dos principais médicos da cultura ocidental, na medida em que foi capaz de diagnosticar precisa- ‘mente a derrocada dos valores morais. Neste caso, compreender © século XXI, sobretudo as transformages moras suas con- Figuragdes contempordneas, deve necessariamente remontar a0 diagnostico Feito por Nietzsche da crise da ética, Portanto, com: preender em que consist 0 diagndstico da faléncia dos valores ‘morais significa langar luz 4 nossa propria condicao moral no século XX ‘Vamos compreender em que consiste © diagnéstico da cri- se da ética por meio de um importante conceito nietzschiano: © niilismo, sobretudo em sua dimensio humana ¢ moral que cle recebe em Nietzsche. Essa hipdtese deve nos servir de len- te de aumento para compreender tanto 0 diagnéstico da crise ‘moral, como também para entendermos melhor a nossa época, Se quisermos, pois, entender em que consiste a crise ica con- temporanea, podemos ler a nossa realidade através dessa lente de aumento, Ietzsce e mismo como eognéstco do crise do ética 133, Niilismo: “de onde procede o mais sinistro de todos os héspedes”? Nietzsche nunca chegou a escrever um lio sobre 0 nie lismo. Apesar disso, encontramos o conceito em virios de seus textos ¢ de modo esparso. Embora a nogao de niismo jé se en- contre desde 1880, & por volta de 1888 que Nietzsche anuncia {de modo mais profético o ilismo: “O que eu natro &a hist Fia dos dois proximos séculos. Descrevo 0 que ver, 0 que mio ‘pode mais deixar de vir de outro modo: o advento do nila” (NIETZSCHE, 1980, «13, p. 189) A mais indesejada vista que a cultura ocidental reeebe, 0 nilismo, tz. consigo um gi- gantesco processo de esvaziamento da vida e dos valores. Sob esse ponto de vista, nossa época ainda experimenta a chegada do mais sinistro de todos os hspedes. ‘Grosso modo, nilismo ¢ um processo de faléncia genera lizada do sentido que o homem agrega a sua vida e ao mundo “Aquilo que cada ser humano tinha como valores pessoais € que cle usava para interpretara exsténcia, 0 mundo e sua vida social, ‘no tém mais orga para da alguma respostaa ele. Ness estado, homer se sente como que perdido em meio a uma vida despo: ida de qualquer significado, Trata-se de um estado psicolgico «que nos encontramos sem um “fim” ou “sada razodvel para rincipaisangistias humana: © que antes possuia cor se rorna : @ antes 0 bomem ouvia algo do mundo, agora esse mes- mundo aparece em seu mais absoluto silncio;e se antes ele wa nadando nas Aguas calmas da sua vida, agora nautaga Poon ox gio rcterens& bra de Nita expt nse capitio o os a4 Jorge Vesentener ‘em seu proprio oceano. Em Assim Falos Zaratsin, Nietzsche poe ‘em evidéncia essa condigao vazia do homem, através do didlogo centre © profeta Zaratustra e sua sombra, No texto, diz a sombra ‘eaho, ev, porventura~ainda wma meta? Um porto para ‘© qual ruma a minha vela? Um bom vento? Al, somente {quem sabe pur onde vai sabe, também, que vento € born « fivordvel& sua navegagio, Que me rstou, ainda? Un coragio cansado e atrevid; [..] Onde esti 0 mew la? (NIETZSCHE, 1998, 276). As palavras da sombra, responde Zaratustra: “Perdeste a ‘meta; ai de ti, como irs refazer-te e consolar-te da perda? Com isso ~ perdeste também o caminho!”, "Nessa condicao “nillsta” da existéncia, © homem perde seu Teme e 0 rumo para onde precisa ainda percorrer. No mils ‘mo © homem se encontra desamparado de si mesmo e perdido diante do mundo... e pior: ndo ha mais ninguém para ajudé-lo. [No fundo, nessa condigdo 0 homem padece de seu sentido, ou melhor, ele sfre por nio poder mais criar qualquer sentido. Isso nao significa que o homem tenha negado sentida a0 ‘mundo ou a sua propria vida. Nao se trata de mera negagio. Antes disso, 0 que ocorreu foi apenas um esvaziamento de ser: ‘ido, simplesmente a vida e seus signficadas jé nao dizem mais as mesmas coisas que antes diziam. Uma das definigBes mais di diticas do conceito de nilismo explica justamente a condiglo de falencia de valores: “O mismo é wm estado normal. Nismo: falta 2 ‘meta, falta resposta & pergunta ‘para qué?’, O que significa nis ‘mo? ~ que os nassos sipremos valores se desvalorizam” (NIETZSCHE, 1980, v.12, p. 350), A condiclo de esgotamento de possiblidades de vida ¢ valores de um homem pode representar, ao mesmo tempo, 0s _Metzche eo mili como dagnéstio do rise da étco 115 10s gerais de toda a cultura. Na medida em que cada ser 10 se torna incapaz de agregar valor a vida, ou se ele ainda ce algum valor, esse valor tem valor de “nada’, as condigbes ‘a barrie vao aos poucos tomando forma, Ora, se a vida nto ‘mais sentido ou qualquer valor ~ a ndo ser um valor mercado- =, entao matamos, fazemos holocaustos,tiranizamos, etc ‘condicao nilsta do homem ¢ da cultura é uma versio da barbi- social e uma das ramificagbes da banalizacio da vida. A formu: nietzschiana da desvalorizagio dos nossos supremos valores ser interpretada nesse rigoroso sentido, vale dizer, as condi tedricas que explicavam e forneciam valor ¢ sentido ao ho- cultura perdem sua forea ou se “desvalorizam”, restando Jhomem o esvaziamento da vida num mundo sem significado. Um dos pouquissimos registros sobre o niilsmo feitos por letzsche em obras publicadas se encontra no liv A gaia ciénca, Jalmente no aforismo 125, intitulado “O homem louco”. ta-se de um dos textos mais famosos da histéria da filosofia, significado esclarece um pouco mais essa condigao vazia do em € dos valores ‘Neste polémico texto, Nietzsche descreve um homem que ‘certa manhi foi A praga do mercado, com uma lanterna na grtando incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!" STZSCHE, 2001, p. 147). Diante de todos que ali se encon- , Nietzsche poe as seguintes palavras na boca do homem "Para onde foi Deus’, gritou ee, ‘a thes dire! Nos o ma voots e eu, Somos todos seus assassinos”. Através de vit ‘metiforas, © homem louco questiona sobre como a cultura capaz. de um ato to grandioso, Numa dessas metaforas, 0 sm louco pergunta: “Quem nos dew a esponja para apagar 0 rzonte? Que fizemos nis, ao desatar a terra do seu sol? Para se move ela agora? Para onde nos movemos nbs agora?”. us Jorge. Vesentener [Em cada pergunta esta implicita precisamente a condigao nilista que explicamos anteriormente, Apagae horizonte é re tirar a meta ou a diregio do homem e da cultura; significa que « cultura ja no tem um projeto para a formagio do homem € ‘nem um rumo para onde quer chegar e, por isso, nfo se sabe mais para onde nos movimentamos. Nao por acaso, toda essa ccondicio niilista foi resumida por Nietzsche em uma famosa « polémica frase, também pronunciada pelo homem lowco no ‘mesmo texto: “Deus esté morto!” Essa formula significa que todas as esferas da cultura ~ politica, art, religido e a moral, por cexemplo — perdem sua base de sustentagio ou seu fundamento, Por isso costumamos caracterizar nossa época como a era do vazio. Segundo Nietzsche, 0 esvaziamento de sentido ocorte so- ‘bretudo com trés importantes categorias com as quais a cultura interpretou a existéncia. Num fragmento de novernbro de 1887/ _margo de 1888, Nietzsche aborda o problema de como nossa era se torna vazia ou como ela culmina em niilisma, No texto, o ni lismo se expressa como “estado psicologica” sob trés maneiras [Na primeira delas, 0 nillismo ocorre quando nao se encon- {a mais sentido algum no mundo e, portant seria “o tomar-cons: ciéncia do longo despenticio de forga, 0 tormento do ‘em via’ [..] a vvergonha de si mesmo, como quem se tvesse enganado por dema- siado tempo” (NIETZSCHE, 1999, p. 430) Esta forma de ocor- réncia corresponde ao declinio da categoria de fnalidade wilizada para dat um sentido ao curso de acontecimentos na historia, a pactir do momento em que se concebe que nada mais éalcangado: Comes ase perms compreener melhor 0 pogut de Niaz exe 0p pl de"mésico dn cata Or, mo rata de Ver que Naz maton Be $0 ane, a fomula Deus sth mono” & promi pr outa peony mo ‘iso home loo, Nitanthe apenas 0 “agate” da condi clara ‘desu época_ Em suma: Nctache nto maou Desc apenas meio a dgnosica doeaga no ter ds cura ‘metsche eo nlsme coma dlognésticndocrise doco 317 H{..] eagora se concebe que com 0 viraser nada &alvejado, nada & alcangado... Portanto, a desilusto sobre uma pretensa finale do ‘vira-ser como causa do nilismo”. Na segunda delas, 0 niilismo ‘corre, como estado psicolégico, “quando se tiver colocado uma totalidade, uma sitematizagio, ou mesmo uma organizagde, em todo aacontecer¢ debaixo de todo acontecer”e, por fim, percebese que dd fato nao ha qualquer unidade ou fundamento que retina em si toda a multplicidade. Esta segunda forma correspondente a cate ‘goria de wnidade, quando se supunha uma confortavel seguranga fem virtude da certeza de onde 0 mundo € os homens no mundo festavam assentados, Na tercera eiltima forma, o nilismo ocore ‘quando se condena “este mundo do vir-a-ser como ilusio” a fim de “inventar um mundo que esteja para além dele, como verdadeiro ‘mundo” (NIETZSCHE, 1999, p 430), e finalmente, compreendese que o mundo verdadeiro — antitese do mundo do vir-a-ser ~ so- ‘mente foi inventado “por necessidades psicol6gicas” e que, além. disso, o homem “nao tem absolutamente nenhum direito a ele”. Representando a categoria de verdade, o homem compreende que ‘lo hi oposiglo entre mundo verdadeito e mundo real, uma ver que concebe a inexisténcia deste mundo verdadeiro, encerrando em si a deserenpaem um mundo metafsco”.) Dizer que tudo tem um fim, um fundamento e uma verda. de, significa acreditar que a vida e 0 mundo ainda possuem valor s valores cultivados pelo homem ~o bem, 0 justo, o belo, ete. ~ ppodiam ser interpretados pelas categoria de fim, fundamento No capi “Como ound veri’ ashore trauma Abul” lito Crepaato ds ldo, Ncsache mara, em nevis Pula © Frcs de denalorinnso do mundo tchico ou supomamene“wrdado” | Ticandose com lai, contmado aves do crane e clminando em Kant, clus constrain ei crc com valor “asok#o" de edad eter avs eo mand Pn na medic que 0 muna vedi Peres alo ee se comers em bul, despov de aso igteade us Jorge L. Vesenteiner € verdade, Porem, na medida em que o mais sinistro dos hospe- «des, nilismo, va se espalhando como condigao cultural, as trés categorias perdem valor e, por meio delas, desvalorizam-se tam- bbém todos os valores morais que o homem interpretava e agrega. va sentido a vida. Nas palavras de Nietzsche (1999, p. 431): © que acomteceu, no fundo? © sentimento da anséncia de var fo alcangad [..). Em summa: as eategorias Fim’ “unidade’, ‘ser, com as quaistinhamas imposto ao mut ‘do um valor, foram outra vez tides por nds—e agora o mundo parece som lr. E exatamente essa desvalorizagio da capacidade do ho- ‘mem ¢ da cultura de interpretar a vida que significa “Deus esti ‘morto”; ou ainda, é através da desvalorizagio dos supremos valo- rescom osquaiso homem interpretoua vida que signficanilismo. A formula de Nietesche: “Deus esti morto”, ou “auséncia de valor”, ou no geral “nilismo”, sio todos sindnimos e expresses pelas quais é possivel compreender 0 porque de a ética estar em crise, Sdo lentes de aumento que podemos usar para ler nossa ccondigo moral ~ tanto individual quanto coletiva -, a fim de entender a lenta e gradual escalada da barbarie. Inimetos s30 0s exemplos contemporineos que encontrar 00 no niilismo. Seja a banalizacZo ou instrumentalizagio da vide, nha medida em que ela recebe um valor exclusivamente mercado: logico — pensemos no casalzinho de namorads olhando passivos © indiferentes as vitrines de um shopping, ow ainda saindo absolu- tamente impessoais com sacolas na mao, cujas mercadorias s80 ‘meramente subterfigio és suas incapacidades de suportarem a si proprios, além de gastar 0 resto do dia malhando na academia para jogar fora as porydes de hamburgueres e reftigerantes que consumiram em meio a artificalidade do shopping center. Tudo Ietache oniama como agit docrsedognca 119 Fo shopping & artificial. Tudo & construido para dar uma aparén ‘ia de realidad £ um jogo de fz-de-conta que acitamos joa desde que no nos contem ou nao nos lembrem que é apenas de mentra, Ora, quando a vida nfo tem mais qualquer sen ido, o sopping consti uma vid plena de valor, embora at ial ele a instrumentalzae vende caro a todos, ov se, 0 sentido A vida iterlmente “cust” algo Lembremos ainda como exemplo a atual computsto ‘mana de dominio ténico-ientico sobre a natureza, Nas pala: ‘ras de Nietasche: “Hvis € hoje nossa atitude para com a na tureza, nossa violentasio da nateza com ajuda das maquinas da tao irrefctida inventividade dos engenhetos e tecnicos” (NIETZSCHE, 19988, p. 102) Fybris 0 desdobramento dest tivo de uma condigio tipicamentecontemporsnes de nism; € a consequénciaimediata da nossa incapacidade de agregar valor € cuidado & vd, Cuidado sinitica aqui observincia e garan tia de vida as fturasyerades, Neste caso, vida no € apenas 0 rai” de um individ, mas sim é habilidade de cudar das possibilidades de vida do ainda nto-vvente, daquele que ainda ilo nasceu ou da vida por-vir. Mas ea vida & mera mercadoria desprovida de valor, nossa compulsdo de dominio sobre a nat reza€ apenas 0 sintoma imediatoe a consequécia mais visivel do des-aprendizado humano do saber-cuidar, cuja destruigao re- tanto-a periculosidade da condigio mista da cultura, quan- nossa impotencia em consegir ete a ese svaziamento, Por fim, pensemos também na condigio do homem con rmesmo. Vivenciamos um proceso de exgotamento general idades com a vida, ov anda, afalncia da fencilidade humana em criarnovas estimatva de valor: Peas ra do “Adivinho” em Assim Falou Zarate, Nietzsche des- uit bem o sntoma nista de exgotamento de vida Jorge L Vesenteiner E vi uma grande wisteza descer sobre os homens. Os melhores deles cansaram-se de suas obras, Proclamou- se uma doutrina ‘tudo & vazio, udo ¢ igual, tudo foi [..] Ini (oi todo o trabalho, veneno tornou-se 0 a0 50 vinho, um mav-olhado engelhou e amarelow nossos campos € nossos coragbes. Tornamo-nos todos $e°05;¢, se caissefogo sobre nds, seriamos reduzidos a cinza Todas as fontes se nos enxugaram, também 0 mar reti- rouse. O solo quer fenderse, mas 0 abismo mio nos quer tragar! ‘Ah, onde hi um mar, ainda, no qual possamos fogar-nos?: assim soa o nosso lamento... Em verdade, Ji estamos cansados demais para morrer, agora conti ‘nuames acordados ¢ vivendo ~ em cimaras mortuirias! (NIETZSCHE, 1998a, . 145) Nessa condigao, 0 homem no apenas compra uma vida artificial ou violenta a natureza, mas também banaliza a si mesmo, tornando-se incapaz de resistir e inventar novas formas de vida, Incapazes de construir nossa propria felicidade, preferimos com- pila em capsulas na farmacial Impotentes para eriar n0ssos proprios valores, preferimos a massificagao ditatorial e perversa dos valores com valor de nada! Cada uma dessas condigdes culturais expressa um sintoma de desagregasio, esvaziamento e dewalorizagao de nossasestimati- ‘as de valor: elas sto signos de uma condicao nist “sintomas” de ‘uma cultura que adoece, mas que devem nos ajuda a compreender ‘melhor em que consiste a crise da ética. Contudo, apesar de todos reconhecermos um generalizado mal-estar social, bem como certa desagregagao e fracasso das promessas da razdo, ou sea, apesar de reconhecermos que atravessamos uma crise da éica, ainda precisa- ‘mos perguntar por que nao vivenciamos essa crise enquanto crise. ‘Como explicar que, apesar da faléncia de sentido moral, somos in- ‘capazes de perceber e reconhecer essa crise “como um problema”? ietesche 0 nilsma como dognéstica da crise da dca 121 ‘Segundo Nietesche, grandes acontecimentos carecem de para serem vistos e ouvidos. O diagnéstico do colapso_ valores moras, o nilismo, é de tal modo grandioso que a sompreensio dos homens em relagdo a esse evento € mencio- pelo proprio “homem louco” na prapa do mercado: “Bu venho cedo demas’, disse entio [o homem louco}, iio € ainda meu tempo, Este acontecimento enorme ett 4 camino, ainda anda: nfo chegou ainda 40s ouvidos dos homens. [.] Os ato, mesmo depois de fits, preci ‘sam de tempo para serem visose ouvids. sve ato aind Thes € mas distante que a mais loginqua constelago ~ € taventanto es comsteran (NIETZSCHE, 2001, p. 148) ‘Ao anunciar 0 advento do nillismo, Nietzsche 0 desereve ‘como um “espeticulo em cem atos reservados para os proximos dois séculos” (NIETZSCHE, 1998b, p. 148). Respiramos ainda, pois, a mesma atmosfera profetizada por Nietzsche no século IX. Mais ainda, o nosso tempo experimenta as iltimas conse: {quéncias do colapso e do esfacelamento da moral no Ocidente. ‘A massificagao da condig20 passiva e impotente do ho- ‘mem contemporineo, cujo nilismo esta instrumentalizado no {que Nietzsche denominow de “moral de rebanho”, representa 1s aitimos passos de uma lenta e gradual escalada do niilismo, [esse paulatino avango, os valores cultivados pela tradigao crist® ‘no Ocidente vao retirando uma conelusio apés a outra, até cul- ‘minar no derradeito juizo sobre si mesma, vale dizer, que seus se esvaziaram. Se ainda nio vivenciamos 0 colapso de * Ct ainda Niczate 201, p23) “Mas pods die, mo seca gue 0 cE tein [ovis Devscer orto JIN] é demasiado grand, dante mange Acompreenin dn roi, ara se posta maginar qo a oficial tent sesoe chgado,meros snd ue maton sovbescm jo ue ele sede a Jorge . Vesentener etch eo nitisme como dogndstico do erbe do cco 123 valores como um problema, talvez seja mesmo porque ainda deve- ‘mos terminar de assistir 0 desdobramento da gradativa desvalori- zag e esvaziamento das estimativas de valor. F certo que ainda ro somos capazes de compreender a real dimensio dessa crise, pois somos demasiados covardes para realizar uma profurda in- curso pelo outro de nés mesmos e do mundo, Talvez, apés essa ‘ncursdo pelos rincdes mais longinquos da alma humana, possa- ‘mos experimentar em nés 0 frio do vazio que é sentido apés 0 reconhecimento de uma vida sem qualquer valor, langada num ‘mundo sem significado algum... quem sabe possamos talvez até dizer, assim como falou Nietzsche: “precisamos, doravante, de ‘noves valores” (NIETZSCHE, 1980, v.13, p. 189) Fragmentos “0 homem: louco ~ Nao ouviram falar daquele homem louco que ‘em plena manha acendeu uma lanterna e correu ao mercado, € posse a gitar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!" ~ E como la se encontrassem muitos daqueles que no criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Entio cle esta perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma crianga? Disse um outro, Esta se escondendo? Ele tem medo de ‘nds? Embarcou num navio? Emigrou? ~ grtavam eriam uns para 68 outros. O homem fouco se langou para o meio deles e trespas- 80u-05 com seu olhar, ‘Para onde foi Deus?’, gritou ee,‘ thes direi! Nés 0 matamos — voces ¢ ev. Somos todos seus assassins! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente ‘o-mar? Quem nos deu a esponja para apagar 0 horizonte? Que Fizemos nos, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nés? Para longe de todos os sis? [Nao caimos continuamente? Para tris, para os lados, para a frente, fem todas as diresdes? Existem ainda “em cima” e “embaixo"? [Nao vagamos como que através de um nada infinite? Nao sen- timos na pele 0 sopro do vicuo? Nao se tornou mais trio? Nao anoitece eternamente? Nao temos que acender lanternas pela ‘maha? Nao ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? ‘Nio sentimos o cheiro da putrefagio divina? ~ também os deu- ses apodrecem! Deus esta morto! Deus continua morto! E nés 0 ‘matamos! Como nos consolar, a nds, assassinos entre os assassi- ‘nos? O mais forte ¢ mais sagrado que 0 mundo até entdo possuira sangrou inteiro sob os nossos punhais ~ quem nos limpard este ‘sangue? Com que gua poderiamos nos lavar? Que rites expia- {brios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza des- {$e ato no é demasiado grande para nds? Nao deveriamos nos ‘mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? ‘Nunca houve um ato maior ~ e quem vier depois de nés perten- ‘ceri, por causa desse ato, a uma historia mais elevada que toda historia até entao!” Nesse momento silenciou o homem louco, € -novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em cio, olhando espantados para ele: ‘eu venho cedo demais’, ‘nio € ainda meu tempo. Esse acontecimento enor- esti a caminho, ainda anda: no chegou ainda aos ouvidos homens. O corisco ¢ 0 trovdo precisam de tempo, a luz das las precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, preci- de tempo para serem vistos e ouvidos, Esse ato ainda Ihes € 3s distante que a mais longingua constelagao —e no entant eles ‘cometeram!” — Conta-se também que no mesmo dia © homem ‘rrompeu em varias igrjas, e em cada uma entoou 0 seu diem acternam deo. Levado para fora e intertogado, limitava-se responder: ‘O que sio ainda essasigrejas, se n20 os mausoléus ttimulos de Deus?” (NIETZSCHE, 2001, p. 147), ae Jorge Vesentener “O que eu narro, éa historia dos dois préximos séeulos, Descrevo © que vem, © que no mais pode deixar de vir de outra forma: © advento do nilomo. Esta historia j4 pode ser contada: pois é a necessidade mesma que aqui esti em obra. Este futuro jé fala Por iniimeros sinais, este destino ja se prenuncia por toda parte: Para esta misica do futuro todos os ouvidos esto agucados” (NIETZSCHE, 1980, v.13, p. 189). “1. Onitismo é wm estado normal, [iilisme: falta a meta; falta resposta & perguata ‘para que?” (© que significa nilismo? — Que as supremos valores se desvalo- Ele possui dois siemfcados A) Niilismo como sinal da intensfiagdo de poder do expirto: ni lism atv ta B) Niilismo como diminuio e rtrocesso do poder do esprit: lis ‘mo passive.” (NIETZSCHE, 1980, v 12, p. 350) “Nao se equivoque, pois, a propésito do sentido do tieulo, com 0 {qual pretende ser denominado este evangelho do futuro, A vor ade de poder. Tentativa de uma transvaloragio de todos os vale: res" ~ com esta formula é introduzida a expressio de um contr: movimento, em alusao a principio ¢ tarefa: um movimento que trara espago, mum futuro qualquer, todo niilismo perfeito; po- rém, um movimento que pressupde est niilismo perfeito ldgica € psicologicamente, que pode surgit, defintivamente, apenas dele 4 pantirdele. Por que, pois, © advento do niilismo & daqui em iante necesiri? Pois sio nossos proprios valores de até entio, ‘que extracm de si suas iltimas conseqdéncias; pois o iilismo € Logica final de pensamento dos nossos maiores valores € ideais, pois devemos primeiramente vivenciar o nilismo, a fim etasche 0 nlismo como dagnéstico do crise da étco 125 descobrir qual era, deveras, 0 valor destes ‘valores’. Nés temas cessidade, doravante, de novas valor..." (NIETZSCHE, 1980, 13, p. 190), IETZSCHE, F. W. Samtiche Werke Kite Sadionesgabe, Organiza ‘0 de Giorgio Collie Mazzino Montinari Bein; New York: Walter ‘de Gruyter, 1980. IETZSCHE, F. Asi fo Zaratsra: wm lvto ara todos e pata tine “Tradusio de Mario da Silva, Rio de Janeto: Bernd Beas, 1958, CHE, F. Gonalogia da mona Trad de Paulo César de Souza Paulo: Companhia das Letras, 1998, HE, F Ors ncomplaws. Tad de Rubens Rodrigues Tomes ‘0 Paulo: Nova Cultural, 1999 HE, FA gaia inca. Tradugio de Paulo César de Souza. Sto lo: Compania das Letra, 2001 IVEIRA, M. A. Desofios dices da glabulzagto. Sto Paulo: Paulinas, 7 sstdes para reflexao e debate Caractrize 0 conceito de nilismo. Relacione nism e crise da etic, A partir do nilsmo, expique em que medida nossa época ainda cexperimenta os desdobramentos do esvaziamento de valores, 126 Jorge. vesenteiner 4, Analse © porgué da dificuldade de se criar novos valores em wma Epocanilsa como a nossa {5 O nilismo envolve a esfera ica, mas também a dimensio existen cial de cada pessoa. Explique por que, Sugestées de filmes LLUZ de Inverno, Diego: Ingmar Bergman, Produc: Allan Pkelund, Intérpretes: Gunnar Bjsrstrand, Gunnel Lindblom, Ingsid Thulin, Max Yon Sydow e outros. Roteiro: Ingmar Bergman. Suécia: Verstl, 1963, 1 DVD (78 min), (0 PANTANO. Dites3o: Lucrecia Marte. Producti Lita Stantc. Intér pretes: Mercedes Morin, Graciela Borges, Martin Adjemiin, Leonora alcarce, Silvia Raylé ¢ outros. Rotezo: Lucrecia Martel. Argentina Cuatro Cabezas $A. TS Productions; Code Red; 4k Films, 2001. 1 DVD (103 min), _Sugestdes de leitura NIETZSCHE, FW Crp ds ids, eau de Paula Car Se Souza. to Paulo: Compania ds Leta, 2006 ‘TURGUENIEY, I. Pai ¢ fos, Tadugdo de an Emilianovitch, S80 Paulo: Abril Cultura, 1971 VOLPI, FO Nismo. Traduca de Aldo Vannuchi, Sto Paulo: Loyola, 1999, AGRESSIVIDADE E RELACIONAMENTO SOCIAL —M FREUD Francisco Verardi Bocca Fitima Caropreso Introducio 0 propisito de que © homer seja fz noes conde no plano da Criagio. Essa afirmagao de Freud sintetiza bem a ideia geral de sua obra O malestar na cvlizapio, publicada em 1930 (sers uti- lizada nesse trabalho a traduc0 ao portugues da editora Imago, de 1997), Nela, Freud envereda por uma longa e minuciosarelle- ‘lo sobre a origem da civilizagao, bem como as condigdes de sua ‘possibilidade, tendo em vista esclarecer os motivas que fazem ‘com que certo “mal-estar” sea inevitavel e inerente ao convivio ‘social. Tentemos entender, entdo, por que, segundo Freud, os cestio fadados a serem infelizes ou, a0 menos, a ndo go- zarem de uma felicidade plena, ‘A compreensio de uma obra da importancia de O mal- ; em nosso entendimento, deve comecar por uma referén- a perspectiva tedrica em que foi concebida. Trata-se de uma wentagio e de uma aplicagSo das tess psicanaliticas visando idar questbes de natureza social que ultrapassam as questOes

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