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DOI: 10.1590/1413-81232018236.

04922018 1963

Saúde do trabalhador: aspectos históricos, avanços e desafios

ARTIGO ARTICLE
no Sistema Único de Saúde

A brief history of worker’s health in Brazil’s Unified Health System:


progress and challenges

Carlos Minayo Gomez 1


Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos 1
Jorge Mesquita Huet Machado 2

Abstract This article draws on current under- Resumo Este artigo parte da compreensão atual
standings of workers’ health in Brazil that emerged da Saúde do Trabalhador (ST) no Brasil, conco-
concomitantly with advances in the field of pub- mitante à contribuição advinda dos avanços na
lic health. It describes the institutional trajectory Saúde Coletiva. Apresenta uma trajetória ins-
of the field of workers’ health within the Unified titucional do campo da ST no Sistema Único de
Health System (SUS), emphasizing the challenges Saúde (SUS) com ênfase nos desafios do desen-
faced in developing actions in the sphere of work- volvimento de ações de Vigilância em Saúde do
ers’ health surveillance. It synthesizes the often Trabalhador. Sintetiza o caminho trilhado nos
tortuous path taken over the last 30 years between 30 anos de histórias institucionais, num percurso
multiprofessional training processes, coordination tortuoso entre processos de formação multiprofis-
between different levels of the SUS, interinstitu- sional, esforços de articulação entre instâncias do
tional support, especially from public universities, SUS, apoios interinstitucionais especialmente de
and interaction with participatory processes. It universidades públicas e interação com processos
provides an overview of progress and challenges participativos e instituintes de controle social. Faz
in the face of continuous changes in working con- um breve balanço dos avanços e desafios dian-
ditions and work organization and the limited ef- te das transformações contínuas das condições e
fectiveness of government policies designed to ad- formas de organização do trabalho e da limitada
dress occupational health risks. Finally, it suggest efetividade das políticas de Estado para o enfren-
that progress has come out of the intertwining of tamento das condições de risco à saúde dos tra-
social and academic movements, with the open- balhadores. E, finalmente, aponta perspectivas de
ing up of institutional spaces that transform the que os avanços possíveis advêm de entrelaces dos
SUS, reviving the underlying principles of partic- movimentos sociais e acadêmicos com conquistas
ipation and health promotion in broad vision of de espaços institucionais transformadores do pró-
1
Escola Nacional de state policy. prio SUS, recuperando sua essência participativa
Saúde Pública, Fiocruz. R.
Leopoldo Bulhões 1480, Key words Worker’s health, National worker’s e de promoção de saúde em uma visão ampla de
Manguinhos. 21041-210 health policy, Workers’ health surveillance política de Estado.
Rio de Janeiro RJ Brasil. Palavras-chave Saúde do trabalhador, Política
minayo@terra.com.br
2
Núcleo de Promoção da nacional de saúde do trabalhador, Vigilância em
Saúde, Ambiente e Trabalho, saúde do trabalhador
Diretoria Regional de
Brasília, Fiocruz. Brasília
DF Brasil.
1964
Minayo Gomez C et al.

Introdução econômico, político e cultural - definidor das


relações particulares travadas nos espaços de
O campo da Saúde do Trabalhador (ST) no Bra- trabalho e do perfil de reprodução social dos di-
sil é resultante de um patrimônio acumulado no ferentes grupos humanos - e o referente a deter-
âmbito da Saúde Coletiva, com raízes no movi- minadas características dos processos de trabalho
mento da Medicina Social latino-americana e com potencial de repercussão na saúde9. Entre os
influenciado significativamente pela experiência conceitos e noções extraídos dessas caracterís-
operária italiana. ticas, encontram-se os classificatórios de risco -
O avanço científico da Medicina Preventiva, fundamentalmente associados às propriedades
da Medicina Social e da Saúde Pública, durante materiais e mensuráveis quantitativamente dos
os anos 1960/70, ampliou o quadro interpreta- objetos, meios e ambientes de trabalho - e os de
tivo do processo saúde-doença, inclusive em sua exigências ou requerimentos, que dizem respei-
articulação com o trabalho. Essa nova forma de to a componentes mais qualitativos derivados da
apreender a relação trabalho-saúde e de intervir organização do trabalho.
no mundo do trabalho introduz, na Saúde Pú- Contemporâneo ao Movimento da Reforma
blica, práticas de atenção à saúde dos trabalha- Sanitária, o pensamento novo sobre a ST obteve
dores, no bojo das propostas da Reforma Sanitá- maior repercussão com a realização da VIII Con-
ria Brasileira. Configura-se um novo paradigma ferência Nacional de Saúde, em 1986. Em dezem-
que, com a incorporação de alguns referenciais bro desse mesmo ano, na I Conferência Nacional
das Ciências Sociais - particularmente do pensa- de Saúde do Trabalhador foram divulgadas as
mento marxista - amplia a visão da Medicina do experiências de implantação da Rede de Serviços
Trabalho e da Saúde Ocupacional. Algumas pu- de ST, então em andamento. Essa rede, anterior à
blicações referem essa trajetória1,2, sistematizam promulgação do SUS, já incorporava princípios
determinadas práticas3,4 ou expõem diferenças e diretrizes que depois seriam consagrados pela
conceituais e metodológicas da Saúde do Tra- Constituição de 1988, tais como a universalidade,
balhador com a Medicina do Trabalho e a Saúde a integralidade e o controle social.
Ocupacional5,6. A interlocução com os próprios trabalhado-
A referência central para o estudo dos condi- res - depositários de um saber emanado da expe-
cionantes saúde-doença é o processo de trabalho, riência e sujeitos essenciais quando se visa a uma
conceito recuperado, nos anos 1970, das ideias ação transformadora - é uma premissa metodo-
expostas por Marx, particularmente no Capítulo lógica. Já, em finais dos anos 1970, essa premissa
VI Inédito de O Capital7. A apropriação do con- foi incorporada no “Modelo Operário Italiano”10,
ceito “processo de trabalho” como instrumen- tendo como alvo a mudança e o controle das con-
to de análise possibilita reformular concepções dições de trabalho nas unidades produtivas.
ainda hegemônicas que ao estabelecerem arti- Neste artigo aborda-se inicialmente o pro-
culações simplificadas entre causa e efeito, numa cesso que precedeu à inserção da ST no SUS.
perspectiva uni ou multicausal, desconsideram a Mostram-se alguns dos fatores que influíram
dimensão social e histórica do trabalho e do bi- nesse processo, entre eles, a mobilização pela as-
nômio saúde/doença. Desse modo, indivíduo e sistência à saúde no trabalho por parte de deter-
ambiente são apreendidos na sua exterioridade, minados setores sindicais e o apoio de organiza-
ignorando-se sua historicidade e o contexto que ções internacionais. É analisada, a continuação,
circunstancia as relações de produção materiali- a trajetória seguida na institucionalização de ST
zadas em condições específicas de trabalhar, ge- no SUS, apontando-se os avanços conseguidos
radoras ou não de agravos à saúde. e as várias dificuldades encontradas. Destaca-se
A saúde do trabalhador configura-se como um particularmente a compreensão da Vigilância em
campo de práticas e de conhecimentos estratégi- Saúde do Trabalhador por meio de casos exem-
cos interdisciplinares - técnicos, sociais, políticos, plares que dizem respeito à sua prática. Final-
humanos -, multiprofissionais e interinstitucio- mente, realiza-se uma breve análise da situação
nais, voltados para analisar e intervir nas relações do controle social nesse particular.
de trabalho que provocam doenças e agravos8.
Seus marcos referenciais são os da Saúde Coletiva, Antecedentes da Saúde do Trabalhador
ou seja, a promoção, a prevenção e a vigilância. no Brasil
O tratamento interdisciplinar implica a
tentativa de estabelecer e articular dois planos No caso brasileiro, nos anos de 1970, con-
de análise: o que contempla o contorno social, comitantemente ao acelerado crescimento do
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número de trabalhadores industriais, houve um transcendendo o marco do direito previdenciá-
forte incremento na organização dos trabalhado- rio-trabalhista em que a ação de Estado restrin-
res em torno da regulamentação da jornada de ge-se à regulação da saúde e segurança.
trabalho e em busca de melhores salários. São A própria Lei Orgânica da Saúde determina
também dessa década os primeiros movimentos que as ações de ST devam ser executadas pelo
em defesa da saúde pela melhoria das condições SUS nos âmbitos de assistência, vigilância, in-
de trabalho. Uma iniciativa da assessoria técni- formação, pesquisas e participação dos sindica-
ca do Departamento Intersindical de Estudos e tos. A Lei estabelece também ser competência da
Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho instância federal do SUS participar da definição
– DIESAT, junto ao Sindicato dos Trabalhadores de normas, critérios e padrões para o controle
Químicos e Petroquímicos do ABCD, foi funda- das condições e dos ambientes de trabalho e co-
mental para que o sindicato propusesse à Secre- ordenar a política de ST de forma hierarquiza-
taria de Estado da Saúde (SES), no ano de 1984, o da e descentralizada para estados e municípios.
Programa de Saúde do Trabalhador Químico do A mesma Lei regula também a necessidade de o
ABC. Uma experiência pioneira com efetiva par- Conselho de Saúde estruturar a Comissão Inter-
ticipação sindical em sua gestão11. Posteriormen- setorial de Saúde do Trabalhador - CIST.
te, foram criados Programas de Saúde do Traba-
lhador (PST) semelhantes na SES de São Paulo e A Saúde do Trabalhador no SUS –
em outros Estados, com diversos níveis de parti- Avanços e desafios
cipação dos trabalhadores, inclusive na realização
de ações de vigilância em algumas empresas. O percurso de institucionalização da ST no
O próprio autor salienta que os PST foram SUS não se constituiu em trajetória linear de
influenciados pela posição da OIT e da própria implementação constante e incremental. Com a
OMS, quando, em 1983, a Organização Pan-A- promulgação da Constituição Federal, em 1988,
mericana da Saúde (OPAS) publicou o Programa à medida que se avançava na inclusão mais orgâ-
de Salud de los Trabajadores e patrocinou um se- nica da área de ST no SUS, os desafios para a sua
minário, realizado, em 1984, em Campinas. Nes- consolidação efetiva surgiam, muitas vezes, como
se seminário, discutiu-se a necessidade de se pas- verdadeiros obstáculos para sua viabilização.
sar do conceito de saúde ocupacional para o de No início dos anos 1990, criavam-se novos
saúde dos trabalhadores, com vistas a enfrentar PST em vários estados e municípios, em todo o
a problemática saúde-trabalho como um todo, país, mas nem todos se consolidavam, tendo al-
numa conjugação de fatores econômicos, cultu- guns uma vida efêmera. Nesses primeiros anos,
rais e individuais. os avanços para a consolidação da área depen-
Nos primeiros Programas e nos Centros de diam da superação de vários desafios. Eram mui-
Referência em Saúde do Trabalhador – CRST, tos os fatores combinados, a serem suplantados.
anteriores ao advento do SUS, prevalecia a di- Alguns deles até hoje permanecem desafiadores,
mensão assistencial. O foco principal dessas a despeito dos avanços observados. Destacam-se:
estratégias era diagnosticar, orientar e acompa- a ausência de uma cultura da ST, no âmbito da
nhar as patologias decorrentes do trabalho com saúde pública; a dificuldade de utilização de re-
a perspectiva de criar condições para que a rede cursos, mesmo com rubrica própria; um corpo
pública viesse a se constituir em instância efetiva técnico insuficiente com formação específica de
para assistência à saúde dos trabalhadores. Uma atuação; conflitos de competência com outras
mudança de perspectiva encontra-se no relató- áreas do aparelho de Estado; resistência das vigi-
rio final da VIII Conferência Nacional de Saúde lâncias tradicionais (epidemiológica e, principal-
quando apontava que o trabalho em condições mente, sanitária) a incorporar o binômio saúde/
dignas e o conhecimento e controle dos traba- trabalho em suas práticas; a percepção da popu-
lhadores sobre processos e ambientes de trabalho lação trabalhadora com viés assistencial e auto­
são pré-requisitos para o pleno exercício do aces- excludente como protagonista de suas práticas; a
so à saúde. E a 1ª CNST incorpora a proposta de ausência de metodologias de abordagem condi-
que o SUS deve englobar ações e órgãos de ST, na zentes com a concepção da área de ST; a incon-
perspectiva da saúde como direito. sistência e heterogeneidade de entendimento, da
Em termos do marco político normativo do questão da ST, quando não a ausência, nos dis-
Estado, a ST é situada na perspectiva da saúde positivos normativos nas três esferas de governo.
como direito universal12, conforme definido pela Pouco a pouco, ainda nos anos 1990, avan-
Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 8080/90, çava-se e novos desafios surgiam. Na primeira
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Minayo Gomez C et al.

metade da década, a realização da II Conferência zida que colocava o Brasil até então num ranking
Nacional de Saúde do Trabalhador - II CNST, em inferior de reconhecimento oficial de doenças re-
1994, ratificou a determinação constitucional de lacionadas ao trabalho, frente à maioria dos pa-
municipalização das ações. Essa proposta coin- íses do mundo ocidental. Fortemente ampliada,
cidia com a ruptura com o modelo securitário, a listagem foi exaustivamente detalhada em ma-
ocorrido no ano anterior, com a IX Conferência nual publicado em 2001, tornando-se referência
Nacional de Saúde, que estabelecia um novo mo- para médicos peritos e profissionais de saúde em
delo de gestão do SUS (festejado pelos que defen- geral até hoje. Resta efetuar nova revisão, pois já
diam a Reforma Sanitária). Para a ST a perspec- se passaram 17 anos e o dispositivo legal deter-
tiva era alvissareira, na medida em que as ações mina que a revisão deve ser periódica. Inclusive,
de ST deveriam ser acolhidas e executadas nos as novas tecnologias e a reestruturação produtiva
municípios. O desafio não foi plenamente exito- em permanente marcha produzem novas moda-
so. Ainda hoje, a dificuldade de se municipalizar lidades de agravos não contemplados na listagem
as ações de ST é um entrave para a sua consoli- vigente.
dação no SUS. Muitas das propostas da II CNST Várias outras propostas foram consignadas,
prenunciavam alguns dos avanços que viriam, ainda na década de 1990, com participação da
mas também, os desafios que, por certo, trariam. CIST, tais como o preenchimento de Autoriza-
Uma delas, a de participação paritária das entida- ções de Internação Hospitalar nos casos compa-
des sindicais e organizações populares... na gestão tíveis com acidente de trabalho13 e a Política de
da ST, revelava um avanço coerente não só com o Saúde Ocupacional para o Trabalhador do SUS,
seu marco conceitual, como também com o prin- inserida na NOB/RH-SUS - Princípios e Diretri-
cípio constitucional de democracia participativa zes para a Gestão do Trabalho no SUS, em 200514.
do SUS. A rigor, essa proposta jamais foi imple- O ingresso na década de 2000 inicia com a
mentada, salvo em situações de excepcionalidade área técnica de ST do Ministério da Saúde, for-
em que pouquíssimos Centros de Referência em mulando uma proposta de criação de uma rede
Saúde do Trabalhador – Cerest exercem sua ges- de ST que, dois anos depois, seria oficialmente
tão em articulação com conselhos gestores com normalizada como Rede Nacional de Atenção In-
alguma participação sindical e popular. tegral à Saúde do Trabalhador - Renast.
Naquela primeira metade da década de 1990, Em sua atual formatação institucional, pre-
ocorria também a instituição da CIST, vincula- vista na Portaria nº 2.728, de 11 de novembro de
da ao CNS. Seu surgimento obedecia aos artigos 2009, a Renast deve integrar a rede de serviços
12 e 13 da Lei Orgânica de Saúde. Durante a 2ª do SUS por meio de Centros de Referência em
metade da década, a CIST nacional se consolidou Saúde do Trabalhador (Cerest).
e participou de forma proativa no delineamento Na medida da implantação gradual da Re-
de uma política de ST. De fato, avanços ocorre- nast, com a emissão de três Portarias de 2002 a
ram, todavia, encetando mais desafios para sua 2009 oficializando-a, foi inegável o avanço da
efetiva consolidação. área, com a criação de uma identidade comum.
Alguns exemplos de participação decisiva O balanço dos primeiros 20 anos da ST no SUS
da CIST nesse período são citados, a seguir. Um já denotavam o que se tinha e o que se poderia
deles foi a Instrução Normativa da Vigilância esperar15,16.
em Saúde do Trabalhador - Visat no SUS, no- O desafio que se impôs, e que efetivamente
tável avanço para a área, embora fosse assinada não foi ainda superado, era o padrão identitário
somente três anos depois de formulada (1988). calcado na rubrica orçamentária comum aos Ce-
Acresça-lhe o enorme desafio até hoje, 19 anos rest de todo o Brasil, independentemente de suas
depois de sua promulgação, não ser um instru- localizações e das demandas impostas pelo perfil
mento normativo-metodológico de ação cotidia- sócio-econômico-produtivo. Prevaleceu o viés
na das práticas dos Cerest. Também de 1998, é a orçamentário de caráter mais pragmático, cujo
Norma Operacional de Saúde do Trabalhador - percurso ao longo dos 15 anos, desde sua im-
NOST/SUS, instrumento orientador significativo plantação, acabou por facilitar o surgimento de
da gestão, mas precocemente revogado. soluções de continuidade que, hoje, desafiam os
A publicação da Lista de Doenças Relaciona- profissionais dos Cerest a utilizarem os recursos
das ao Trabalho,em 1999, foi um avanço bem-su- rubricados de ST.
cedido. Por força de um dispositivo da Lei Or- Com a Renast, a área avançou especialmente
gânica de Saúde, em seu artigo 6º (parágrafo 3º, no aspecto formativo de quadros. A renovação
inciso VII), foi revista a listagem obsoleta e redu- permanente de profissionais, embora ocasione
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perdas de técnicos bem formados, mantém um descontinuidade de ações em alguns casos, vale
preponderante ingresso de novos profissionais, lembrar os programas estratégicos de formação
o que demonstra a vitalidade da área. Caracte- -ação realizados em alguns estados, em conso-
rizam-se pela procura constante de cursos de nância com as diretrizes de vigilância para cate-
pós-graduação e também pelos cursos básicos gorias de trabalhadores consideradas prioritárias.
de formação para a Visat, junto aos Cerest das Nessa linha merecem destaque os cursos de for-
mais distintas regiões do Brasil. Um desafio que mação de Multiplicadores de Visat, com apoio
acompanha esse inegável avanço é a aferição da do Ministério da Saúde e da Fiocruz, os cursos
qualidade de algumas modalidades de formação, de pós-graduação lato e stricto sensu, de caráter
especialmente não presenciais, quanto à disso- multiprofissional, e iniciativas distintas e efetivas
ciação da teoria da prática participativa plural de de formação continuada. Possibilitam uma for-
intervenção sobre o mundo do trabalho. Esses di- mação crítica às visões tecnicistas e reducionistas
ferentes cursos precisariam ser avaliados dentro ainda prevalentes na área. Também o surgimento
de uma proposta de implementação da PNSTT, de algumas propostas institucionais que estimu-
indagando-se em que medida seus conteúdos e lam a construção e amadurecimento de equipes
suas abordagens pedagógicas estão em sintonia de pesquisadores de formações diversas tem de-
com as necessidades operacionais das diretrizes monstrado a potencialidade dessa nova perspec-
dessa política. Os processos formativos devem vi- tiva de investigação/ação.
sar resultados objetivos, de modo a transformar a A homologação da Política Nacional de Saú-
realidade mais perene e eficazmente. de do Trabalhador e da Trabalhadora, em 2012,
A estrutura continental do Brasil, sua diversi- constituiu um passo importante para orientar as
dade cultural, a ocupação econômica dos territó- ações e a produção científica na área. Enquanto
rios e a imensa variabilidade de seus equipamen- principal referência normativa de princípios e
tos de saúde agregam desafios na esfera do que já diretrizes da área de ST, a Política efetivamente
é efetivamente considerado como avanço para a pode contribuir, entre muitos outros aspectos,
área de ST. Cabe destacar os êxitos emblemáticos para superar o distanciamento entre a produção
conseguidos nos últimos anos em determinados de conhecimentos de setores da academia e as
territórios por Cerest que atuam em estreita arti- necessidades de fundamentação na prática dos
culação interinstitucional. serviços.
Nesses termos, é importante ressaltar o apor- Um desafio é a aferição do processo de for-
te que o Ministério Público do Trabalho (MPT) mação que se baseie em resultados objetivos, cujo
tem dado ao longo dos últimos anos. Frequen- desfecho do percurso formativo seja a investiga-
temente, o MPT é promotor de articulações in- ção/ação concretizada no mundo real e ombrea-
tersetoriais, tendo os Cerest como foco essencial da com os trabalhadores.
para a formulação de demandas e a adoção de
medidas necessárias para enfrentar problemas Avanços e desafios da Vigilância
em diversos setores produtivos. São muitos os em Saúde do Trabalhador (Visat)
avanços obtidos, a partir de audiências públicas e
de Termos de Ajuste de Conduta (TAC) firmados É na Visat que reside a capacidade de trans-
com empresas. Questiona-se, no entanto, o risco formar a realidade do mundo do trabalho. Com
de judicialização de conflitos sociais, embora seja ela se conhece a realidade da população trabalha-
indiscutível a função que desempenha, sobretu- dora e os fatores determinantes de agravos à sua
do frente às atuais limitações e deficiências de saúde, de modo a intervir sobre eles. O impac-
órgãos públicos de fiscalização e vigilância de ST. to das medidas adotadas subsidia a tomada de
Ainda, na linha intersetorial, o papel das ins- decisões dos órgãos competentes dos governos
tituições acadêmicas, especialmente das universi- e, ainda, aprimora os sistemas de informação
dades públicas, incluídas a Fiocruz e a Fundacen- existentes em ST. A Visat, além disso, enquanto
tro, tem sido relevante na formação de quadros. prática interdisciplinar, multiprofissional, inte-
É necessária, no entanto, uma articulação mais rinstitucional e intersetorial, ao ultrapassar os li-
perene, orgânica e institucionalizada que não se mites do setor saúde, embora subordinada a seus
limite à contribuição de profissionais compro- princípios, amplia o raio de ação do SUS, fazendo
missados na melhoria das condições de trabalho valer sua concepção original de sistema.
e saúde dos trabalhadores. A Visat tem a tarefa de trazer para o contex-
Quanto à Renast, embora exista uma rotati- to dos serviços de saúde a análise da relação da
vidade de profissionais dos Cerest, e que provoca saúde com o processo de trabalho. Faz parte da
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Minayo Gomez C et al.

natureza complexa e conflituosa da sua ação: ex- tradicionais, comunidades ribeirinhas e costeiras,
plicitar, observar e intervir nas situações de risco, pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras,
nas relações de trabalho, e nas formas de resis- mulheres artesãs, trabalhadores em assentamen-
tência e desgaste da saúde dos trabalhadores17,18. tos, entre tantos, configurando uma vigilância de
Dos cerca de 210 Cerest, atualmente habi- base territorial integrada e participativa.
litados, segundo o último Inventário da Renast A medida do avanço da ST se delimita pelo
2015/2016, publicado no Renast Online de 2017, tamanho do desafio. No caso da Visat, é essen-
alguns já têm uma experiência acumulada de cial resolver ou, ao menos, atenuar o “conflito de
atuação em consonância com as premissas da Vi- competências” da vigilância da saúde no mundo
sat. Além disso, observa-se o aumento no registro do trabalho, seja no interior do sistema de saú-
de agravos relacionados ao trabalho, com 1 mi- de, com a vigilância sanitária, seja para fora, com
lhão de casos registrados e 98% dos municípios a fiscalização do trabalho. A insensibilidade de
mostrando capacidade de realizar esse registro. agentes públicos para com a missão do SUS de
São exemplares os casos que dizem respeito proteger, promover a saúde e prevenir os danos à
à vigilância da exposição ao benzeno em postos saúde do trabalhador é um fato incompreensível
de combustíveis; as ações de vigilância à saúde do sob a determinação constitucional do exercício
trabalhador canavieiro; as ações articuladas para o do SUS na Visat.
banimento do amianto (hoje exitosa); ações inte-
rinstitucionais e negociações para vigilância e pre- Avanços e desafios do controle social
venção de acidentes de trabalho. Iniciativas sobre
determinadas situações como o trabalho escravo, Ao avanço representado pela instituição das
o trabalho infantil, trabalho em condição de pre- CIST, como exigência para a habilitação dos Ce-
cariedade extrema no lixo, no carvão e em territó- rest, da mesma forma que em outras instâncias
rios de vulnerabilidade, ainda que focais, devem de participação dos usuários no setor saúde, a re-
ser considerados também como avanços da área, presentação dos trabalhadores nessas comissões
posto que consolidam metodologias de interven- constitui-se em desafio permanente para trans-
ção, apontando para aprimoramentos futuros. formar representação em representatividade. O
Merecem destaque as pneumoconioses, o baixo nível de mobilização das organizações da
câncer relacionado ao trabalho, as intoxicações classe trabalhadora repercute na pouca efetivida-
por agrotóxicos e a saúde mental por reforçarem de das estruturas de controle social para garan-
linhas temáticas nacionais de implantação da tir a priorização de ações de atenção em ST nos
vigilância articulada entre os Cerest e a Atenção planos estaduais e municipais de saúde. Há uma
Básica, dentre outras instâncias. No caso da vigi- tendência de se transferir a responsabilidade da
lância da saúde mental, sua transversalidade em participação para as próprias organizações (sin-
todos os sistemas de trabalho aponta ao desafio dicatos, associações, movimentos). É um desafio
de se transpor a visão exclusiva sobre os riscos mudar esse equívoco de compreensão. Lidando
clássicos nos ambientes de trabalho para passar com um Estado, cujos sucessivos governos lhes
a focalizar também a organização do trabalho. cassam direitos e não lhes dão as respostas ade-
Esses temas recorrentes acenam com a possibili- quadas às suas necessidades, pouco lhes resta
dade de construção de protocolos e ações progra- além da reticência e desconfiança.O desafio se
máticas de formação para a Visat. situa na mudança de estratégia de aproximação,
Todas essas iniciativas guardam a premissa acolhimento e reconquista da confiança.
da intersetorialidade, interdisciplinaridade e da Um desafio adicional é a organização de
participação dos trabalhadores em seu desenvol- CIST, geralmente vinculada ao Cerest Regional
vimento. A vigilância da saúde das populações do do município-sede. Os demais municípios da
campo, floresta e águas, um dos atuais focos de região, que podem variar de unidades a dezenas,
ação de Visat em diversas regiões, traz uma pecu- não possuem representação do controle social.
liaridade bem-vinda para a consolidação da ST. No último Inventário da Renast havia 126 CIST,
O fato de se articular a vigilância ambiental com no Brasil, sendo 27 estaduais e 99 municipais. No
a Visat, muitas vezes em territórios de conflito e levantamento de 2014, dos 209 Cerest habilita-
vulnerabilidade, possibilita o aprimoramento da dos, apenas 34 informaram que houve participa-
pesquisa-ação, marca da Visat. É crescente o mo- ção dos trabalhadores nas ações de Visat. Quanto
vimento de formação no âmbito da pesquisa-a- à participação dos trabalhadores na elaboração
ção, com apoio de grupos acadêmicos envolvidos da Programação Anual de Saúde, somente 74 a
e comprometidos com os movimentos dos povos confirmaram.
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Redimensionar estruturas de representação Todavia, as ações nos cotidianos institucio-
impõe-se como tarefa a ser enfrentada no pla- nais, às vezes marcadas por disputas e preconcei-
nejamento futuro da Renast. Algumas iniciativas tos técnicos institucionais, ocasionam confrontos
recentes adquirem importância, como a criação no campo do fazer, operar21. Resta superar esses
de observatórios das centrais sindicais e os avan- desafios, explicitando possibilidades de análise
ços observados nas reivindicações de atenção à e reflexão sobre os avanços frequentemente in-
saúde dos trabalhadores, especialmente em sin- terrompidos por instabilidades e fragilidades do
dicatos rurais. Outros espaços de articulação Estado, redutoras do grau de direito à saúde dos
como os Fóruns Intersindicais de articulação trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.
entre sindicatos, Cerest e instâncias formadoras O campo de saúde do trabalhador anda para
(acadêmicas) são avanços recentes que reforçam frente, embora por caminhos tortuosos mar-
o papel das CIST, não só por ampliar seu territó- cados pela reestruturação produtiva e em con-
rio de abrangência, como pela possibilidade de fronto com a hegemonia do mercado que tritura
formação qualificada para dirigentes sindicais e relações sociais, como diria Karl Polanyi em seu
trabalhadores em geral19. ‘moinho satânico’.
Embora as práticas sejam implementadas de
forma lenta e com muitas limitações de ordem
Conclusão institucional e de conflitos de concepções, nesses
30 anos de saúde do trabalhador no SUS a cons-
É evidente que o maior avanço da saúde do tatação dos avanços possibilita visualizar melhor
trabalhador no Brasil foi seu reconhecimen- os desafios.
to constitucional como área contida no âmbito Desafios, contudo, que ditam rumos, encetam
da saúde pública. Mas, a despeito das críticas à estratégias, infundem desejos criativos, encenam
sua institucionalização e ao desenvolvimento de novas parcerias, induzem a reposicionamentos
suas ações20, ainda insuficientes para dar conta éticos e fomentam a necessidade de procurar ou-
do cenário dramático do mundo do trabalho em tros conhecimentos ou outras saídas. 30 anos não
matéria de saúde, no Brasil, são incontáveis seus é pouca coisa, mas também não é muita, quando
avanços nesses 30 anos de SUS. se pretende investir na dignidade no trabalho,
pela via da saúde do trabalhador. É só o começo.

Colaboradores

C Minayo Gomez, LCF Vasconcellos e JMH Ma-


chado colaboraram igualmente na elaboração do
artigo.
1970
Minayo Gomez C et al.

Referências

1. Dias EC. A Atenção à Saúde dos Trabalhadores no Se- 15. Santana VS, Silva JM. Os 20 anos da saúde do trabalha-
tor Saúde (SUS) no Brasil: realidade, fantasia ou utopia dor no Sistema Único de Saúde do Brasil: limites, avan-
[tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campi- ços e desafios. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS).
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