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04922018 1963
ARTIGO ARTICLE
no Sistema Único de Saúde
Abstract This article draws on current under- Resumo Este artigo parte da compreensão atual
standings of workers’ health in Brazil that emerged da Saúde do Trabalhador (ST) no Brasil, conco-
concomitantly with advances in the field of pub- mitante à contribuição advinda dos avanços na
lic health. It describes the institutional trajectory Saúde Coletiva. Apresenta uma trajetória ins-
of the field of workers’ health within the Unified titucional do campo da ST no Sistema Único de
Health System (SUS), emphasizing the challenges Saúde (SUS) com ênfase nos desafios do desen-
faced in developing actions in the sphere of work- volvimento de ações de Vigilância em Saúde do
ers’ health surveillance. It synthesizes the often Trabalhador. Sintetiza o caminho trilhado nos
tortuous path taken over the last 30 years between 30 anos de histórias institucionais, num percurso
multiprofessional training processes, coordination tortuoso entre processos de formação multiprofis-
between different levels of the SUS, interinstitu- sional, esforços de articulação entre instâncias do
tional support, especially from public universities, SUS, apoios interinstitucionais especialmente de
and interaction with participatory processes. It universidades públicas e interação com processos
provides an overview of progress and challenges participativos e instituintes de controle social. Faz
in the face of continuous changes in working con- um breve balanço dos avanços e desafios dian-
ditions and work organization and the limited ef- te das transformações contínuas das condições e
fectiveness of government policies designed to ad- formas de organização do trabalho e da limitada
dress occupational health risks. Finally, it suggest efetividade das políticas de Estado para o enfren-
that progress has come out of the intertwining of tamento das condições de risco à saúde dos tra-
social and academic movements, with the open- balhadores. E, finalmente, aponta perspectivas de
ing up of institutional spaces that transform the que os avanços possíveis advêm de entrelaces dos
SUS, reviving the underlying principles of partic- movimentos sociais e acadêmicos com conquistas
ipation and health promotion in broad vision of de espaços institucionais transformadores do pró-
1
Escola Nacional de state policy. prio SUS, recuperando sua essência participativa
Saúde Pública, Fiocruz. R.
Leopoldo Bulhões 1480, Key words Worker’s health, National worker’s e de promoção de saúde em uma visão ampla de
Manguinhos. 21041-210 health policy, Workers’ health surveillance política de Estado.
Rio de Janeiro RJ Brasil. Palavras-chave Saúde do trabalhador, Política
minayo@terra.com.br
2
Núcleo de Promoção da nacional de saúde do trabalhador, Vigilância em
Saúde, Ambiente e Trabalho, saúde do trabalhador
Diretoria Regional de
Brasília, Fiocruz. Brasília
DF Brasil.
1964
Minayo Gomez C et al.
metade da década, a realização da II Conferência zida que colocava o Brasil até então num ranking
Nacional de Saúde do Trabalhador - II CNST, em inferior de reconhecimento oficial de doenças re-
1994, ratificou a determinação constitucional de lacionadas ao trabalho, frente à maioria dos pa-
municipalização das ações. Essa proposta coin- íses do mundo ocidental. Fortemente ampliada,
cidia com a ruptura com o modelo securitário, a listagem foi exaustivamente detalhada em ma-
ocorrido no ano anterior, com a IX Conferência nual publicado em 2001, tornando-se referência
Nacional de Saúde, que estabelecia um novo mo- para médicos peritos e profissionais de saúde em
delo de gestão do SUS (festejado pelos que defen- geral até hoje. Resta efetuar nova revisão, pois já
diam a Reforma Sanitária). Para a ST a perspec- se passaram 17 anos e o dispositivo legal deter-
tiva era alvissareira, na medida em que as ações mina que a revisão deve ser periódica. Inclusive,
de ST deveriam ser acolhidas e executadas nos as novas tecnologias e a reestruturação produtiva
municípios. O desafio não foi plenamente exito- em permanente marcha produzem novas moda-
so. Ainda hoje, a dificuldade de se municipalizar lidades de agravos não contemplados na listagem
as ações de ST é um entrave para a sua consoli- vigente.
dação no SUS. Muitas das propostas da II CNST Várias outras propostas foram consignadas,
prenunciavam alguns dos avanços que viriam, ainda na década de 1990, com participação da
mas também, os desafios que, por certo, trariam. CIST, tais como o preenchimento de Autoriza-
Uma delas, a de participação paritária das entida- ções de Internação Hospitalar nos casos compa-
des sindicais e organizações populares... na gestão tíveis com acidente de trabalho13 e a Política de
da ST, revelava um avanço coerente não só com o Saúde Ocupacional para o Trabalhador do SUS,
seu marco conceitual, como também com o prin- inserida na NOB/RH-SUS - Princípios e Diretri-
cípio constitucional de democracia participativa zes para a Gestão do Trabalho no SUS, em 200514.
do SUS. A rigor, essa proposta jamais foi imple- O ingresso na década de 2000 inicia com a
mentada, salvo em situações de excepcionalidade área técnica de ST do Ministério da Saúde, for-
em que pouquíssimos Centros de Referência em mulando uma proposta de criação de uma rede
Saúde do Trabalhador – Cerest exercem sua ges- de ST que, dois anos depois, seria oficialmente
tão em articulação com conselhos gestores com normalizada como Rede Nacional de Atenção In-
alguma participação sindical e popular. tegral à Saúde do Trabalhador - Renast.
Naquela primeira metade da década de 1990, Em sua atual formatação institucional, pre-
ocorria também a instituição da CIST, vincula- vista na Portaria nº 2.728, de 11 de novembro de
da ao CNS. Seu surgimento obedecia aos artigos 2009, a Renast deve integrar a rede de serviços
12 e 13 da Lei Orgânica de Saúde. Durante a 2ª do SUS por meio de Centros de Referência em
metade da década, a CIST nacional se consolidou Saúde do Trabalhador (Cerest).
e participou de forma proativa no delineamento Na medida da implantação gradual da Re-
de uma política de ST. De fato, avanços ocorre- nast, com a emissão de três Portarias de 2002 a
ram, todavia, encetando mais desafios para sua 2009 oficializando-a, foi inegável o avanço da
efetiva consolidação. área, com a criação de uma identidade comum.
Alguns exemplos de participação decisiva O balanço dos primeiros 20 anos da ST no SUS
da CIST nesse período são citados, a seguir. Um já denotavam o que se tinha e o que se poderia
deles foi a Instrução Normativa da Vigilância esperar15,16.
em Saúde do Trabalhador - Visat no SUS, no- O desafio que se impôs, e que efetivamente
tável avanço para a área, embora fosse assinada não foi ainda superado, era o padrão identitário
somente três anos depois de formulada (1988). calcado na rubrica orçamentária comum aos Ce-
Acresça-lhe o enorme desafio até hoje, 19 anos rest de todo o Brasil, independentemente de suas
depois de sua promulgação, não ser um instru- localizações e das demandas impostas pelo perfil
mento normativo-metodológico de ação cotidia- sócio-econômico-produtivo. Prevaleceu o viés
na das práticas dos Cerest. Também de 1998, é a orçamentário de caráter mais pragmático, cujo
Norma Operacional de Saúde do Trabalhador - percurso ao longo dos 15 anos, desde sua im-
NOST/SUS, instrumento orientador significativo plantação, acabou por facilitar o surgimento de
da gestão, mas precocemente revogado. soluções de continuidade que, hoje, desafiam os
A publicação da Lista de Doenças Relaciona- profissionais dos Cerest a utilizarem os recursos
das ao Trabalho,em 1999, foi um avanço bem-su- rubricados de ST.
cedido. Por força de um dispositivo da Lei Or- Com a Renast, a área avançou especialmente
gânica de Saúde, em seu artigo 6º (parágrafo 3º, no aspecto formativo de quadros. A renovação
inciso VII), foi revista a listagem obsoleta e redu- permanente de profissionais, embora ocasione
1967
natureza complexa e conflituosa da sua ação: ex- tradicionais, comunidades ribeirinhas e costeiras,
plicitar, observar e intervir nas situações de risco, pescadores e pescadoras artesanais, marisqueiras,
nas relações de trabalho, e nas formas de resis- mulheres artesãs, trabalhadores em assentamen-
tência e desgaste da saúde dos trabalhadores17,18. tos, entre tantos, configurando uma vigilância de
Dos cerca de 210 Cerest, atualmente habi- base territorial integrada e participativa.
litados, segundo o último Inventário da Renast A medida do avanço da ST se delimita pelo
2015/2016, publicado no Renast Online de 2017, tamanho do desafio. No caso da Visat, é essen-
alguns já têm uma experiência acumulada de cial resolver ou, ao menos, atenuar o “conflito de
atuação em consonância com as premissas da Vi- competências” da vigilância da saúde no mundo
sat. Além disso, observa-se o aumento no registro do trabalho, seja no interior do sistema de saú-
de agravos relacionados ao trabalho, com 1 mi- de, com a vigilância sanitária, seja para fora, com
lhão de casos registrados e 98% dos municípios a fiscalização do trabalho. A insensibilidade de
mostrando capacidade de realizar esse registro. agentes públicos para com a missão do SUS de
São exemplares os casos que dizem respeito proteger, promover a saúde e prevenir os danos à
à vigilância da exposição ao benzeno em postos saúde do trabalhador é um fato incompreensível
de combustíveis; as ações de vigilância à saúde do sob a determinação constitucional do exercício
trabalhador canavieiro; as ações articuladas para o do SUS na Visat.
banimento do amianto (hoje exitosa); ações inte-
rinstitucionais e negociações para vigilância e pre- Avanços e desafios do controle social
venção de acidentes de trabalho. Iniciativas sobre
determinadas situações como o trabalho escravo, Ao avanço representado pela instituição das
o trabalho infantil, trabalho em condição de pre- CIST, como exigência para a habilitação dos Ce-
cariedade extrema no lixo, no carvão e em territó- rest, da mesma forma que em outras instâncias
rios de vulnerabilidade, ainda que focais, devem de participação dos usuários no setor saúde, a re-
ser considerados também como avanços da área, presentação dos trabalhadores nessas comissões
posto que consolidam metodologias de interven- constitui-se em desafio permanente para trans-
ção, apontando para aprimoramentos futuros. formar representação em representatividade. O
Merecem destaque as pneumoconioses, o baixo nível de mobilização das organizações da
câncer relacionado ao trabalho, as intoxicações classe trabalhadora repercute na pouca efetivida-
por agrotóxicos e a saúde mental por reforçarem de das estruturas de controle social para garan-
linhas temáticas nacionais de implantação da tir a priorização de ações de atenção em ST nos
vigilância articulada entre os Cerest e a Atenção planos estaduais e municipais de saúde. Há uma
Básica, dentre outras instâncias. No caso da vigi- tendência de se transferir a responsabilidade da
lância da saúde mental, sua transversalidade em participação para as próprias organizações (sin-
todos os sistemas de trabalho aponta ao desafio dicatos, associações, movimentos). É um desafio
de se transpor a visão exclusiva sobre os riscos mudar esse equívoco de compreensão. Lidando
clássicos nos ambientes de trabalho para passar com um Estado, cujos sucessivos governos lhes
a focalizar também a organização do trabalho. cassam direitos e não lhes dão as respostas ade-
Esses temas recorrentes acenam com a possibili- quadas às suas necessidades, pouco lhes resta
dade de construção de protocolos e ações progra- além da reticência e desconfiança.O desafio se
máticas de formação para a Visat. situa na mudança de estratégia de aproximação,
Todas essas iniciativas guardam a premissa acolhimento e reconquista da confiança.
da intersetorialidade, interdisciplinaridade e da Um desafio adicional é a organização de
participação dos trabalhadores em seu desenvol- CIST, geralmente vinculada ao Cerest Regional
vimento. A vigilância da saúde das populações do do município-sede. Os demais municípios da
campo, floresta e águas, um dos atuais focos de região, que podem variar de unidades a dezenas,
ação de Visat em diversas regiões, traz uma pecu- não possuem representação do controle social.
liaridade bem-vinda para a consolidação da ST. No último Inventário da Renast havia 126 CIST,
O fato de se articular a vigilância ambiental com no Brasil, sendo 27 estaduais e 99 municipais. No
a Visat, muitas vezes em territórios de conflito e levantamento de 2014, dos 209 Cerest habilita-
vulnerabilidade, possibilita o aprimoramento da dos, apenas 34 informaram que houve participa-
pesquisa-ação, marca da Visat. É crescente o mo- ção dos trabalhadores nas ações de Visat. Quanto
vimento de formação no âmbito da pesquisa-a- à participação dos trabalhadores na elaboração
ção, com apoio de grupos acadêmicos envolvidos da Programação Anual de Saúde, somente 74 a
e comprometidos com os movimentos dos povos confirmaram.
1969
Colaboradores
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