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cee LEVY ALVARO MACHADO Te ree : A SABEDORIA DOS ANIMAIS VIAGENS XAMANICAS E MITOLOGIAS 5) CARMINHA LEVY ALVARO MACHADO A SABEDORIA DOS ANIMAIS Viagens xamAnicas e mitologias Hustragées de Angela Leite FPR Copyright © 1995 Opera Prima Editorial Cultural Nenhum trecho ou ilustragiio deste livro pode ser reproduzido sem expressa autorizagao dos autores e da editora, salvo para fins de divulgagio Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) (Cimara Brasileira do Livro) Levy, Carminha A sabedoria dos animais : viagens xamanicas ¢ logias / Carminha Levy & Alvaro Machado ; | ilustragdes de Angela Leite|,— Sio Paulo: Opera Prima, 1995. Bibliogeafia 1. Ficgiio brasileira 1. Machado, Alvaro, 1956+ L. Titulo 95-1429 CDD-869.935 fndices para catlogo sistem: 1. Ficgao : Século 20 : Literatura brasileira 869.935 2, Século 20 : Ficgao : Literatura brasileira 869.935 ISBN 85-85871-01-6 Capa: Wladimir Senise, sobre desenho de Angela Leite 1995 Todos os direitos desta edigdo reservados a OPERA PRIMA EDITORIAL E CULTURAL LTDA. Ay, Dr. Vieira de Carvalho, 197 - Cj, 8C. 01210-010 - Sao Paulo - SP Tel/Fax: (011) 230-7862 “A vos, aves ligeiras, Ledes, cervos ¢ gamos saltadores Montes, vales, ribeiras, Aguas, ventos, ardentes chamas, E, das noites, 0s medos veladores: Pelas amenas liras E cantos de sereias, vos conjuro.” (So Joao da Cruz, Cangdes entre a Alma e 0 Esposo, 1584) “Em minha obra todos falam, até mesmo os peixes: O que dizem se aplica a todos n6s, sem excegai Eu me sirvo dos animais para instruir os homens,” (Jean de la Fontaine, Fabutas, Livro I, 1668) “O encontro com o ‘totalmente outro’, perceba-se ou nao, desencadeia uma experiéncia de estrutura religiosa. Nao esté excluida a possibilidade de nossa época passar para a posteridade como a primeira a redescobrir as ‘experiéncias religiosas difusas’, abolidas pelo triunfo do cristianismo. Nao esta exclufda a possibilidade de que a atragao exercida pelas atividades do Inconsciente, que o interesse pelos mitos e pelos simbolos, que o entusiasmo pelo exotico, pelo primitivo, pelo arcaico, que os encontros com os ‘Outros’, com todos os sentimentos ambivalentes que eles implicam — nao est4 excluida a possibilidade de que tudo isso seja visto um dia como um novo tipo de religiosidade. (...) Por enquanto, se pressente que todos esses elementos estio preparando o surgimento de um novo humanismo, que niio seré a réplica do antigo.” (Mircea Eliade, Mefistéfeles e 0 Andrégino, 1960) Laroié! Ao meu Leto Negro, que me levou & Madona Negra, ¢ a0 Oceano Pacifico, que me deu o mantra “Peace of Peace”. CL. Ao lobo das estepes russas, € ao anjo que um dia sustentou-me com mio firme. A.M. SUMARIO PREFACIO de Carminha Levy: Breve Hist6ria do Kamanismo PREFACIO de Alvaro Machado: Um Novo Bestiario PROLOGO: E os Animais Voltam a Falar ASABEDORIA DOS ANIMAIS CAPITULOS DAGUIA Emblema Solar, Consciéncia, Pai do Xam (2yTOURO Emblema Lunar, Fertilizador da Mae-Terra, Dimensao Sagrada da Natureza 3, MACACO Comunicagdo, Inteligéncia, Agilidade, Arte da Imitagiio e do Humor 4. BALEIA Memoria da Mae-Terra, Gestagao do Herdi 5. LEAO Lideranga, Justiga, Transmutagao do Ego 6, TARTARUGA Senhora das Hierarquias, Sustentagéio da Mae-Terra, Emblema de Longevidade 21 27 33 35 47 61 7S 83 95 a 7. PAVAO Beleza, Harmonia, Gléria Incorruptivel 8. SERPENTE. Regeneragao, Medicina, Unido dos Opostos, Morte e Renascimento “9)LOBO O Professor, Perseguidor do Caminho, Stalker 10. CABRA Nutriz do Corpo e da Alma, Emblema de Iniciago, Transe Mistico 11. GOLFINHO Mensageiro dos Mares, Salvador, Portador do Amor 12. VEADO Emblema de Luz, Embiema Cristico Fecundidade, Renovagio 13. BORBOLETA Transformagao, Transcendéncia Visio do microcosmo 14, COELHO O Chamador do Medo, Magico, Trapaceiro, Deceptor 15. GALO Anunciador da Luz, Profeta do Dia, Organizador do Caos ‘18 RAPOSA ~~" Asticia, Adaptagio, Dupla Natureza de Todas as Coisas 105 113 129 139 147 153 163 171 193 17. CORUJA Senhora da Iniciagao, Guardia do Outro Mundo 18. CAVALO- Filho do Vento, Emblema de Forga e Liberdade RSO Mestre da Floresta, Mestre do Tempo 20. JAGUAR © Grande Cagador, Coragao da Montanha Senhor da Floresta Americana 21, PREGUIGA Contemplaciio, Longevidade 22. JACARE Resisténcia, Instinto de Sobrevivencia 23. TATU Guia Subterréneo, Couraga da Mae-Terra 24. URUBU Transmutagao da Sombra 25. BEJA-FLOR Conjurador do Amor, Medicina da Beleza e da Leveza, Integrag&o Masculino-Feminino 26. POMBA Portadora da Paz. INDICE DE ILUSTRACOES BIBLIOGRAFIA BKOPRLO 201 211 219 227 237 249 257 265 273 281 287 289 PREFACIO de Carminha Levy BREVE HISTORIA DO XAMANISMO- ‘Na aurora do Tempo, quando o Ser Humano dormitava no Eden € constitufa com o mundo um Unico plano indiferenciado, alguns homens e mulheres descobriram o poder de “despertar”. Destacando- se do est4gio primeiro, arcaico, no qual encontravam-se unidos & Natureza em estado ourobérico, esses seres especiais, detentores da faculdade de sair do corpo fisico, penetraram a Grande Corrente dos Seres e atingiram o plano da alma, onde repousam os arquétipos. Ao retornarem a Terra, trouxeram consigo a visio do Arquétipo da Di- vindade. Por essa faganha extraordinaria, esses homens e mulheres, os pri- meiros xamas, foram denominados “herdis da consciéncia” por Erich Newmann em seu livro Histéria da Origem da Consciéncia. O inicio da Consciéncia é definido, portanto, pelo “despertar” do xama, e por seu primeiro contato com o arquétipo do Divino: Deusa, Deus, Tudo o que E. Essa grande viagem no plano do arquétipo — também chamado “xamanistico” por Ken Wilber, no livro Up from Eden — data de pelo menos dois milhdes de anos antes do tempo presente, ¢ representou um tremendo passo na evolugdo humana. Antes dela, era como se a Humanidade tomasse parte com os elementos num continuum que se alimentava de si proprio: sob a regéncia da Grande Mae Terra, ofere- cia-se sangue — especialmente sangue humano — para a perpetuagao da vida. O ato extremo visava atender as terriveis exigéncias da Gran- de Mie, interpretadas pelo homem a partir da observagao do ciclo dos nascimentos. Conforme testemunhavam os olhos daquele homem arcaico, a mulher engravidava do sangue menstrual — e da Lua, que 13 A SABEDORIA O08 ANIMALS , rege a periodicidade desse sangue. Por conseguinte, a Terra necessi- taria de continuos sacrificios de sangue para multiplicar os bens que oferece aos homens, seus alimentos. A punigo pela negacdo dessa oferenda era identificada 4 aridez do solo, supremo castigo para po- vos coletores, Nesse plano “magico”, pré-racional, 0 homem ainda nio é re- conhecido como co-criador, e o sangue era, “comprovadamente”, © grande detentor da vida (pela suspensdo do ciclo menstrual) e da morte (a abundancia do sangue esvaindo-se nos ferimentos). Além de sustentar essa crenga, os sacrfficios de sangue também eram pratica- dos para aplacar uma culpa difusa pelo inicio do “despertar”, pela saida do Eden. Entretanto, j4 de posse da consciéncia — pelo conhecimento da divindade —-, os xamis comegaram a reverter o fluxo sanguinolento que por milhGes de anos regeu a Terra, trocando o sacrificio de sangue pelo auto-sacrificio, ou seja, pela renncia ao estado de beatitude paradisfaca. Além de passar a suportar a culpa por tornar-se cada vez mais consciente, por saber que € um self separado da Mae-Terra e da totalidade adormecida, esse heréi preparava-se, ainda, para um feito maior: levar a Humanidade como um todo a essa Consciéncia, a esse despertar. E justamente a culpa pela separacao inevitavel que leva os primei- ros xamis a praticar os rituais do re-ligare com o Divino. Dessa forma, cles entram em contato com a Mie Divina, que com sua misericérdia rejeita os sacrificios de sangue e presenteia os humanos com seus atributos de Compaix4o, Justiga, Liberdade, Alegria, Colaboragao e Concérdia. A Terra vive entao o verdadeiro paraiso, a chamada Idade do Ouro, com os seres humanos desenvolvendo o amor fraterno, nascido da pratica das qualidades da Grande Deusa, a Mae Divina. Os rituais de auto-sacrificio dos xamis salientam o herofsmo ¢ 0 arrependimento, a experiéncia do prestigio e poder (Amor-Eros), que faz do homem um her6i, e a experiéncia da expiagio (Morte-Tanatos), que o libera da culpa de ser humano. O inicio da consciéncia e o adven- to do auto-sacrificio vao sempre pertencer ao ciclo da Grande Deusa. Falamos de um tempo em que nao hé registro escrito, e o que temos de mais concreto sao pinturas rupestres de animais. Essas repre- 14 HREVE HISTORIA DO XAMANISMO sentagdes mostram bisGes, cavalos, ursos, veados e dezenas de outros animais. So centrais nos rituais da caga, expressando agradecimento aos animais sagrados que constituem poderosa fonte de vida, a propria energia vital de quem o ingere. Nesse est4gio, eram frequentes tam- bém representagées da Grande Deusa como Senhora dos Animais (com seus animais sagrados), como Deusa-Mie coruja, ou como Madona com seu filho ao colo. Essas imagens simbolizavam tanto a morte (a coruja, por exemplo) como a eclosdo de uma nova vida (0 filho). As vezes os dois simbolismos encontravam-se unidos numa mesma representagao. Por exemplo, nas notaveis ruinas de Catal Huyuk _ (na antiga Anatélia), em cuja “quadra sacerdotal” vamos encontrar paredes cobertas de seios de argila, dentro dos quais repousam esqueletos de abutres. Aquela que detém a vida, detém também amor- te, e as idéias de vida e da morte sao, nesse tempo, dadivas da Deusa. Dela provém todos os seres, € a cla todos retornam. Oculto 4 Grande Deusa, muito anterior a palavra escrita, manifes- ta-se em arcaicas esculturas de argila, as “V6énus esteatopigias”, mu- lheres com seios e nddegas avantajadas. Ao longo dos tempos, esse culto foi praticado por todos os povos. Na Grécia arcaica, venerava-se “ a imagem da Grande Mae Animal, que alimentava o pequeno Zeus> como cobra, porca ou vaca. Na Suméria, a Grande Deusa € Inana, no Egito é Neith, a mais velha ¢ mais sabia das deusas, andrégino primogénito, virgem que fertiliza a si propria. Isthar na Babilénia, Isis no Egito e Astarté entre os hebreus: todas so manifestagdes da Gran- de Mae, nossa futura Madona Negra. Para os romanos, ela é Réia- Cibele — sentada num trono e ladeada de animais. Em um passado mais recente, o poder tremendo da Grande Deusa se dilui, por forga do patriarcado, nas diversas deusas dos pantedes grego e romano. Com 0 advento do cristianismo, o culto & Grande Deusa passa 4 clandes- tinidade, s6 retornando com os templarios, que trazem para suas pa- trias representagdes de pequenas deusas negras pagas, que eles ves- tem com o manto de Maria e nome cristdo: séo as Virgens Negras, ou Madonas Negras. Como sempre, a Deusa reaparece acompanhada de seus animais sagrados, pretos ¢ dourados. Até o presente momento, falamos do nascimento do xamanismo no contexto do matriarcado. Vejamos agora 0 que se apresenta no con- is texto histérico posterior, do patriarcado. Também entre os primitivos cagadores desse estégio da Humanidade vamos encontrar a constante “xamé, consciéncia, auto-sacrificio, sacralidade dos animais”. Os buriates e iacutes da Sibéria, por exemplo, tornaram muito conhecido © mito do surgimento do primeiro xama, que teria sido gerado pela guia (simbolo da consciéncia) e por uma mulher humana (identifi- cada a liberdade), No classico O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Extase, Mir- cea Eliade, 0 maior estudioso do xamanismo. patriarcal, explica que a palavra “xam&” nos chega do dialeto tungue, da palavra saman, a- Parentada ao termo sdnscrito sramana e ao pali samana, que significam “homem inspirado pelos espiritos”. Daf a idéia primitiva do mand, que Moisés faz aparecer no deserto, evocando um campo de forga, e- nergia sobrenatural inerente a determinados individuos e objetos que mantém relagdo com o sagrado. Jung reconhece 0 arquétipo do xama, © qual chama “personalidade mand”. Ainda para Eliade, 0 xamanismo, como pratica que visa adquirir a “fora mana” e assegurar por meio de rituais e sacrificios a aprovacao do Sagrado, nao deve ser considerado como uma etapa pré-religiosa, pois ela se desenvolve paralelamente a consciéncia religiosa e fortifica-se através dela. Algumas técnicas distinguem claramente o xamanismo de outros métodos de re-ligagdo com o divino. O xama atua sempre em éxtase, no qual realiza seu vo magico (jornada ou viagem xamnica). Visita 0 Ser Supremo e os espiritos, viaja em busca de cura, leva as almas dos mortos ao mundo profundo (0 psicopompo), fala linguagens se- cretas s6 conhecidas pelos espiritos e pelos animais, e na volta a Terra encena dramaticamente todas as peripécias e perigos encontrados na viagem. Estas caracteristicas fazem do xama, para Eliade, o her6i da civilizagao. Deve-se aele a descoberta da arte de curar, a geografia do mundo dos mortos, a origem da poesia épica (com os trovadores) e do teatro. Eliade chega a conjeturar que as diferengas de linguas entre os povos devem-se ao idioma secreto do xama. Arquétipo vivo, o xama até hoje traz aos seres humanos a certeza de que eles nao esto sds. Alguém, préximo a eles e & sua precariedade humana, transita entre o céu e a terra e os protege. Eis que, tantos milénios passados, apresenta-se a nés atualmente 16 BREVE HISTORIA DO XAMANISMO situagdo que nos remete ao caos primordial que assistiu ao nascimen- to do arquétipo do xama. Guerras fratricidas, uso de agentes quimicos, crimes ecolégicos, extingdo de varias espécies animais, violéncia elevada 4 categoria de arte através da midia, pandemias como a Aids, destruigao das Aguas, efeito estufa, derretimento das calotas polares, tudo configura uma hecatombe final. Neste quadro terrifico, surge do Inconsciente Coletivo a forga do arquétipo correspondente, do xama curador. O caos atual ativa, enfim, o arquétipo do xama primordial, que retorna para “acordar” a humanidade e curar a sua Grande Deusa, a Mie-Terra. Despertam, em varias partes do mundo, os “novos xamas”. Em versao urbana e high-tech, surgem como os novos cons- cientizadores, curadores e criadores, buscando solugdes através da intui¢ao, propondo o desenvolvimento do lado direito do cérebro. Des- de os trabalhos pioneiros de Carlos Castafieda, a comunidade cient{- fica e os leigos voltam-se para este fendmeno. Inicialmente as descobertas sao vistas com descrédito, porém gradativamente vio ganhando seu real significado como forga de transformacio, novo paradigma. Em 1960, 0 antropdlogo norte-americano Michael Harner inic’ se como xami nos Andes equatorianos, através da ayuasca e sob a protegao de um xami jivaro. A experiéncia, extremamente impactan- te para um cientista ateu, leva-o a perceber a poderosa forca de mudan- ga que poderia ser o xamanismo entre os homens civilizados, Harner tem 0 ousado insight de ensinar as técnicas xamanicas gravando em fita cassete 0 som do tambor (“o cavalo do xam&” entre os povos da Sibéria, da Europa do Norte, bem como entre os indios das Américas). Em estado alterado de consciéncia, ele descarta o uso das chamadas “plantas de poder” e torna acessiveis a empedernidos cidadaos urbanos viver experiéncias xamAnicas, que se encontram armazenadas em seus psiquismos e em suas células (na forma de cadeias de DNA). A técnica do som do tambor gravado é usada por Harner com 0 homem comum que busca uma ampliagao de consciéncia, e também por seus discipulos no mundo académico. Hoje, 35 anos passados do inicio dessa divulgagio, xamas urbanos distribuem-se pelo mundo to- do, promovendo, além de seu desenvolvimento pessoal, a revaloriza- 7 ' A SABEDORIA DOS ANIMALS go de culturas indigenas e atitudes de preservagao do ecossistema. Um longo trabalho de organizagio do caos ¢ de cura da Mae-Terra vem sendo feito por “novos xamas” das mais diversas procedéncias. Entre eles estao integrantes da seita Santo Daime, Unido do Vegetal, usuarios de Don Pedrito (Peru) e estudiosos do xamanismo dos indios brasileiros e norte-americanos, bem como das antigas técnicas incas e maias. Minha contribui¢ao a esse esforgo filia-se ao xamanismo ma- triarcal, ao culto da Grande Deusa, a Mae-Terra, a Madona Negra, ¢ ao cultivo de seus atributos de Compaixdo, Misericérdia, Justia, Li- berdade, Colaboragio, Alegria e Concérdia. Acompanhou-se, neste breve histérico do xamanismo, o papel cru- cial do animal. No plano inicial, arcaico, animal e ser humano nio se diferenciavam, eram como um tinica entidade. Isto pode ser constata- do através de pinturas rupestres como as da caverna de Trois Fréres, na Franga (25.000 a.C.). Nesse local, pode-se ver um xamii vestido com a pele e a cabega de um cervo, a cauda do animal passando-lhe entre as pernas. As intimeras representagdes da Grande Deusa, Senho- rados Animais, e a lenda do primeiro xam§, vém selar essa comunhio entre o homem e 0 animal. Posteriormente, a forga dos animais passou a ser expressa na companhia frequente que fizeram as deusas e deuses dos mais diversos pantedes, até as inimeras lendas em que o heréi s¢ faz acompanhar e proteger por um animal de Poder, seu Aliado. Por exemplo, Belerofonte ¢ 0 cavalo Pégaso. Os animais sdio nossas en- tidades-guias, parceiros da Criagao. Nos mitos indigenas amerindios, nos doaram o fogo, os instrumentos musicais, ferramentas ¢ armas. Est&o sempre no interior de cada ser humano, agindo sem que este 0 saiba, ¢ sua heranga nos pertence. O animal é, na Sibéria, o Espirito Tutelar ou Protetor, no México ¢ Guatemala, o Nagual, na Australia, 0 Aliado Totem; ele é 0 companheiro de estrada daquele que age em plena consciéncia, Como um fiel escudeiro, ele dé ao xami a energia vital, a forga e a sabedoria. Nada mais préprio, nesta época de caos, que ele venha nos trazer sua sabedoria ancestral. A idéia deste livro nasceu da percepgio dessa sabedoria, que se revelava todas as vezes em que os xamas que colaboram comigo na 18 BREVE HISTORIA DO XAMANISMO Paz Géia, Instituto de Pesquisas Xaménicas, entraram em contato com eles, Através do som do tambor, os animais vinham até os xamis que se encontravam em estado alterado de consciéncia € os ensinavam tanto “ecologia interna” — 0 harmonioso funcionamento do psiquismo —, quanto “ecologia externa”, nossa relagdo com a Mae-Terra. Ao ouvir a fala do animal, cada xami do grupo vivia todas as peripécias que os antigos xamis nos relatavam. Resolveu-se ent&o tornar ptiblica esta sabedoria, com a esperanga de que ela possa vir a ser instrumento de conscientizagao do homem em relacdo a seus pares e a Mie-Terra. Alvaro Machado, que vivenciou to- do 0 processo, gravou e posteriormente editou esse material, conservando a esséncia da viagem e toda a poética da fala que nasce do inconsciente coletivo. Nestas paginas, o tom de narrativa épica, que desafia tempo e espago, vem comprovar a tese de Mircea Eliade, que considerava 0 xama 0 criador da poesia, nas vozes dos antigos trovadores. Este livro sé foi possivel gragas aos animais e aos xamas que emprestaram suas vozes a cles, aos quais fraternalmente agradeco: Alice Tachibana, Cectlia Schmidt Oliveira, César Augusto Sartorelli, César Roberto Scheurich, Ione Campos Cirilo, Paschoal Jacomo Jr, Tania Barone Lobo e Vania de Lara Crelier. 19 PREFACIO de Alvaro Machado UM NOVO BESTIARIO Ao final da extensa viagem que me propés Carminha Levy, a qual realizei_impulsionado pelos ventos do xamanismo, imito Dédalo e recolho minhas asas de cera — elas jamais sao definitivas, como ficou sabendo {caro ao despencar no mar cor de vinho —-, permitindo-me um olhar sobre o caminho percorrido. No aspecto formal, ao longo de sua confeccao este livro foi-se tornan- do bastante préximo de um bestidrio, género literério popular na An- tiguidade e na Idade Média, praticado com frequéncia no mundo inteiro até o final do século 17. Assim como nos bestidrios antigos, couberam a- qui histdrias, fabulas e mitologias sobre animais, bem como descrigdes e ilustrages. Quanto ao contetido desta obra, creio que muitas vezes se ultrapas- sou 0 terreno dito da coincidéncia — de imagens, vis6es e simbolismos — para se penetrar um plano superior, 0 da evidéncia ou manifestagdo de uma inteligéncia. A parte continuo maravilhamento que essa am- pliagdo de fronteiras me proporcionou, apés as “jornadas xamanicas” empreendidas neste livro algumas certezas se fortaleceram em mim. Entre elas, a convicgao de que toda criatura viva na face da terra, todas as» ragas e todas as culturas devem merecer sempre o respeito de cada um de nds. Nenhum individuo, nenhuma coletividade, por mais autoridade que mostre, tem o direito de promover, conscientemente ou ndo, 0 ex- terminio de qualquer forma de vida, ou de qualquer tradigdo, por mais “diferente” que ela the parega. Nenhum conceito de desenvolvimento pode justificar tal ato. A~ No entanto, é espantoso ouvir ainda hoje perguntas com o seguinte teor de cinismo: “Para que serve a girafa? Para que servem o mico-leio- dourado, o macaco-aranha?” (Gostaria de ter inventado tais perguntas, mas elas foram formuladas na midia, por personalidades puiblicas). 2 A SABEDORIA DOS ANIMAIS De acordo com as atitudes mais frequentes em relagao aos animais selvagens em nosso pais, essas criaturas servem principalmente como caga. Para engordar a receita de contrabandistas e ajudar a alimentar populagées miserdveis no Norte, Nordeste e Centro-Sul do Brasil. “Por que 0 mico-ledo ¢ a baleia deveriam merecer atengio igual @ destinada aos seres humanos carentes?”, indagam. Assim, devemos crer que a ex- tingdo de nossa fauna, originalmente de uma variedade esplendorosa, contribuird para a solugao do problema social. Estranho raciocinio. E preciso recordar ent&o o mais ébvio, o que se aprende no colégio. Lembrar que todas as espécies animais, seja qual for o seu tamanho e 0 seu modus vivendi, desempenham um papel no ecossistema em que es- tao distribuidas, e os seres humanos também tém seus destinos, sua sati- de, ligados a tais ecossistemas. Mais do que isso, poupemo-nos da ver- gonha e da desgraga de saber a que esta ou aquela criatura se prestava somente apés seu total desaparecimento. Podemos suprimir ou modifi- car radicalmente ecossistemas, colocando em seu lugar nossas maqui- nas reluzentes de orgulho? A prépria Terra tem se encarregado de nos dar respostas tremendas. Toda forma de vida € matriz de beleza e sabedoria, manifestagao da vitalidade da Mie-Terra. Algumas espécies animais ja existiam na forma como as conhecemos hoje muito antes do surgimento dos primeiros homo sapiens. _ Os povos antigos amaram e respeitaram os animais que partilharam com eles a Casa do Mundo. Observaram-nos com ateng4o, procurando * conhecer sua oculta sabedoria, ¢ com eles aprenderam muitas coisas. Assim fizeram tanto os povos que legaram a base cultural de nosso Esta- do — gregos, latinos etc.—, quanto nag6es t&o ou mais antigas, porém menos conhecidas, ante as quais as sociedades dominantes exibem falso respcito, desmascarado pela afirmag’o comum e desenvolta de que “es- tio condenadas a desaparecer”: povos indigenas, tribos subérticas, os chamados aborfgenes, cerca de trezentos milhées de individuos tratados como gente de segunda classe. Embora plasmados com base no instrumental cultural destes dltimos, nas primitivas técnicas do xamanismo, os textos aqui reunidos incorpo- ram simbolismos de dezenas de religides, que por sua vez embeberam suas raizes na antiga religiao natural dos povos cagadores, ou seja, no préprio xamanismo. Afinal, os “xamfs urbanos” que contribuiram para 22 UM NOVO BESTIARIO a realizagao deste livro so também herdeiros diretos da cultura ociden- tal acumulada nos tiltimos dois mil anos — do ritual de carne e sangue cristo 4 espada laser de Lucky Skywalker. A primeira parte de cada capitulo, a viagem do xama urbano em bus- ca da sabedoria do animal, foi escrita a partir de material de um grupo desses “novos xamas”, que trabalharam em estado alterado de consciéncia. Elaborado literariamente por mim, esse material passou ainda pela supervisio técnica de Carminha Levy. Jé a segunda parte de cada capitu- lo, sob o nome Mitologia, retine os simbolismos mais significativos so- bre cada animal em culturas de todos os tempos, em todo o planeta. Incluiram-se também, numa terceira parte chamada Zoologia, descrigdes cientificas, bem como informagées sobre o estado atual de preservagao dos animais ameacados de exting’o (dados relativos ao segundo semes- tre de 1994). A parte dois nobres representantes do Hemisfério Norte e do Con- tinente Africano — respectivamente, a Aguia e o leio —, os outros 24 animais reunidos nesta primeira selegio de sabedorias estdo distribui- dos pela América do Sul. Um aviso: o simbolismo dos animais aqui enfeixados nao coincide necessariamente com o dos signos do zodiaco ou do hordscopo chinés. No entanto, o simbolismo zodiacal, to entranhado em nosso inconscien- te, ecoa de alguma forma na sequéncia dos doze primeiros animais des- te volume, ainda que em clave diversa. Assim, pode-se eventualmente estabelecer correspondéncias entre a sequéncia astrolégica tradicional (“Carneiro-Touro-Gémeos etc.) ea sequéncia xamAnica deste livro (“A- guia-Touro-Macaco etc.). Para o xamanismo, uma rede universal de poder anima todas as coisas e as liga: minerais, vegetais, animais, a chuva, as nuvens, os rios, as montanhas etc. Na visdo do xam, nada morre: os seres atravessam con- tinuamente um fino limiar entre nascimento e morte, de um lado para outro, como através de um véu. Relacionar-se com cada uma das coisas de poder deste mundo, compreender 0 ciclo dos renascimentos, tecer a imagem de uma rede espiritual que abraga todo 0 Cosmos: essa € a + verdadeira fonte das acdes bem-sucedidas. Recuperar os clos do parentesco ancestral entre homens e animais é 23 A SABLDORIA BOS ANIMAIS uma das sabedorias mais valiosas do xami, talvez sua maior fonte de poder. E, assim como o feiticeiro associa-se a personalidade de um ani- mal-guia, inspirando-se em sua forga ¢ em seu instinto para cumprir sua tarefa heréica, o leitor pode comegar a identificar seu “animal de poder” nas pdginas deste bestidrio. Com excegao do galo, cujo canto soa tanto no terreiro como na mata fechada, os animais domesticados nfo cons- tam deste volume. O cao ¢ o gato, por exemplo. Para o xami, esses bichos tiveram de renunciar 4 maior parte de sua sabedoria original no momen- to em que seus destinos ligaram-se aos do homem (ainda que 0 gato tenha guardado caracteristicas que o tornaram o “animal da feiticeira”). Num projetado segundo volume desta Sabedoria dos Animais, poderio ser encontradas outras 27 viagens xam@nicas: mico-ledo; anta; bifalo; lagarto; gamba; quati; papagaio; tamandué4; sapo; jabuti; ariranha; ema; esquilo; gato-do-mato; cachorro-do-mato; boto; gavido; vaca; aranha; e morcego; além dos “estrangeiros” elefante, tigre, javali, coiote e corvo; ¢ dos fantdsticos dragao e unicérnio. A cultura indfgena brasileira — o que resta dela, dezenas de nagdes dizimadas ao longo de apenas trés séculos — é a legitima detentora da “sabedoria dos animais” entre nés. De modo geral, as técnicas xamani- cas do indio brasileiro nao diferem muito daquelas observadas entre os nativos norte-americanos, bem como dos procedimentos de povos artico- americanos, 4rtico-asidticos (os uralo-altaicos, as varias nagdes si- berianas), australianos, tribos do Caribe ¢ da Polinésia e algumas outras antigas ragas de cagadores. Segundo o maior pesquisador das religides que ja se conheceu, Mircea Eliade, essa técnica se desenrola do seguinte modo, incluindo-se todos os passos provaveis: através da batida do tam- bor (ou da maraca sul-americana), e do subsequente éxtase inicidtico e deslocamento para o mundo mitico, encontram-se figuras divinas que conduzem aos guias animais, os quais operam como génios tutelares. Estes podem falar diretamente pela boca do xam ou ainda conduzi-lo a lugares de iluminagao: o Centro do Mundo, a Montanha Césmica, o Jardim do Paraiso, a Arvore do Mundo etc. Para a maioria dos povos acima nomeados, o xama é revelado por sua estirpe, bem como por um obrigatério conjunto de provas iniciati- cas — as muitas ligdes de um mestre, proibigdes, periodos de isolamen- 10, jejum, ingestéo de drogas alucinégenas etc. —, durante as quais mui- 24 UM NOVO BESTIARIO tas vezes chega-se as frontciras da morte. Dessa forma, o individuo consagrado A pajelanga passa a possuir a faculdade zoomorfa de se transformar em algum animal, porém invisfvel aos individuos comuns. Somente um outro feiticeiro é capaz de enxerga-lo nesse estado alterado de consciéncia. As viagens do xama sao de valor inestimével tanto para a comunida- de indgena como para o homem urbano, pois é fato reconhecido que ha muito os fndios passaram a “sonhar” o destino do homem branco junto ao seu (sinal inequivoco de sua grande sabedoria). Enquanto as lendas biblicas, babil6nicas, egipcias, gregas etc. chegam até nds através de registros desbotados, as lendas indigenas nos s4o contadas de viva voz, em toda sua exuberdnncia e verdade arquetipica. Esses mitos nos conec- tam com o fundo de nossa alma e sacodem ordens de idéias esgotadas, que j4 nao servem para nada. Os mitos indigenas pertencem, enfim, a uma ordem ontol6gica que alia a qualidade da permanéncia a um poten- cial revoluciondrio. Finalmente, apresentou-se nesta obra a feliz oportunidade de home- nagear o autor do bestidrio mais lido e apreciado de todos os tempos: em 1995, so lembrados em todo o mundo os 300 anos da morte do maior poeta classico da Franga, Jean de la Fontaine (1621-1695). O rico simbo- lismo animal de suas Fdbulas — herdado em parte dos antigos gregos (Fedro e Esopo), ¢ até do indiano Pilpay —, constitui manancial de sa- bedoria que este livro nao poderia ignorar. Assim, ao finat do segmento dedicado as mitologias universais em cada capitulo desta obra, acres- centou-se uma compilacio das principais mengdes de La Fontaine ao animal correspondente, com a moral predominante em cada caso. Se a humanizaciio de seus animais pode parecer as vezes excessiva, é preciso lembrar que La Fontaine, cuja primeira profisso foi a de “mes- tre das Aguas e das florestas”, foi um soberbo observador dos bichos, capturando com maestria seus movimentos € seu temperamento. As peregrinagdes pelas matas francesas foram de importancia capital para a formagiio do escritor. Apés um longo periodo de tramas passadas quase exclusivamente entre os faustos da corte, La Fontaine algou a Natureza a condigao de protagonista, pintando-a com toda a sua forga e criando, com ela € seus animais, versos de uma sabedoria perene, que deixaram sua marca na Histéria da Literatura. 25 PROLOGO E OS ANIMAIS VOLTAM A FALAR Sinto o chamado, preciso voltar as minhas origens pri- mevas. Eu, xam urbano, na qualidade de andrégino deixarei minha roupagem masculina de executivo e meu duplo papel feminino, de “mulher do lar” e tecedeira do mundo. A Mie-Terra, a Madona Negra, me chama. Sinto a inquietagdo, este repentino e insuportavel sentimen- to de vergonha pelo que nés homens estamos fazendo ao corpo da Mae-Terra, que nos da vida, alimento e abrigo. Como novo xama, devo sair a servigo da humanidade. Minha sa- ga comegou muito antes de mim, quando meus avés desligaram-se do estado ourobdrico e encontraram o Arquétipo da Divindade, tornando- se assim Heréis da Consciéncia. Ecoa dentro de mim 0 momento mé- gico da gestagao primordial, no qual o pai guia — a Consciéncia—e a mae humana —- a Liberdade — deram origem ao primeiro xama, 0 xam4 mitico, que veio para organizar o caos. Desde entdo os homens nao esto mais sozinhos em sua precariedade humana; alguém igual a eles pode compactuar com o divino. As batidas de meu coracgéo acompanham o bater de asas de meu pai 4guia co rufo do tambor xaminico, ¢ esses ritmos conjugados in- citam-me a percorrer o Caminho. Minha mie Liberdade ilumina meu horizonte. Ela é meu ponto de chegada. Anseio por uma safda. Como posso, xam urbano, entrar em conta- to com a forga tremenda daquele xama mitico, mestre da Natureza, e tentar reorganizar 0 caos? Como posso trazer de volta ao homem a Consciéncia e a Liberdade? Como religar em seu interior a percepgao de todas as forgas vivas que concorrem para que cle se mantenha e evolua? Ja conhego parte da resposta: somente sendo livre de suas paixGes de poder o homem pode voltar a honrar a sua velha Mae- Terra. 27 A SABEDORIA DOS ANIMAIS Porém, afastando de mim a ansiedade ¢ a angustia, sou capaz de perceber que os sinais sincrénicos est&o vindo, anunciando que algo fundamentalmente magico esta para acontecer. E preciso ter fé ¢ estar atento para a leitura dos fatos. O que significa a pena do falco pe- regrino, que todo ano emigra dos EUA em busca do calor de nossa terra, ter cafdo justo aos meus pés, quando eu atravessava a esquina da avenida Ipiranga com a Sao Joao? Como interpretar o episédio inusita- do ocorrido numa cabana encravada em certa praia selvagem da Mata Atlantica? Acordo de madrugada, sentindo um forte impulso de abrir aporta. Surpreendo-me com uma suguarana, a on¢a parda, que parada me observa. O temeroso animal humano fala alto dentro de mim, e seu primeiro impulso é sair correndo, mas meu lado xami tranquiliza e firma minha visao, fazendo-me aguardar. Talvez tfo assustada quanto eu, a suguarana vem em minha diregdo e na metade do caminho pula para a direita. O animal sobe um barranco, e antes de desaparecer na escuriddo permite-me ver a grande barriga que carrega. Tudo me diz que hé um chamado, e que minha tarefa sera coroada pela fertilidade dos frutos daquela barriga prenhe. Até que um dia veio o Grande Sonho, finalmente! Investido de minha roupa xaménica, estou no topo da mitica Arvo- re da Vida. O momento é grandioso, e sinto que algo numinoso esta prestes a acontecer. Surge meu animal de poder, o ledo, meu aliado, Troco com ele afetuosos cumprimentos, sinto o calor amoroso de seu pélo e a protegao que vem de sua forga. Ele diz: — E chegado o momento! N6s animais, e vocé xama, temos de trazer de volta para o homem a Consciéncia e a Liberdade. O caos pri- mordial se repete, os tempos sao chegados, é hora de despertar! A M§e-Terra, a Madona Negra, nao mais aceita a indignidade que vem sofrendo. Seu ventre é violado nas profundezas com testes nucleares; montanhas ¢ florestas so riscadas do mapa, devastadas pela agdo predadora do bicho homem, que na sua gan4ncia de poder nao respeita a mais elementar lei ecolégica. No seu sangue, seus rios, contamina- dos pelos poluentes, nao mais corre o liquido puro que revitaliza 0 homem. Até a chuva que cai é 4cida e polui ainda mais os frutos da terra, j4 envenenados pelos agrotéxicos. Finalmente, seus mares tornam-se depésitos de lixo atémico. Triste tratamento dado 8 Mae 28 PROLOGO. generosa que de tudo nos prové! As consequéncias esto ai, muito evidentes. Os terremotos, as nevascas, os vulcdes, as enchentes, as secas, a paradoxal mudanga do clima, e o mais terrivel, a pandemia da Aids. Porém, o homem nao tem olhos para ver. Nao se trata de revide da Mie-Terra, ou de aplicagaio da Lei de Jeova, da pena de tal “Olho por olho, dente por dente”. A Grande Deusa Terra é uma mae misericordiosa e compassiva, transformando-se na mie terrivel somen- te quando a lei ecolégica, o equilibrio, é violado. Por tudo isso, xama, estas sendo convocado a reverter essa apocaliptica situacdo. Os homens podem deter a marcha dos acontecimentos unindo sua Consciéncia e sua Luz, tornando-se pontos de luz e pedagos de paz — finalizou o animal. Nesse momento, aparece 4 minha frente um majestoso ledo negro, que me diz: — Segue-me! A Madona Negra ouviu teu clamor e te espera. Imediatamente comecamos a descer pela cratera de um vulcao de- sativado. Sigo atras do ledo negro, extasiado com a forga, beleza e mistério daquele animal nunca visto. O magma brilhante j4 comega a aflorar do fundo fumarento, quan- do na borda do vulcao surge a imensa e imponente figura do minotau- ro, 0 ser meio-homem, meio-touro, ¢ ele nos interrompe: — Como ousas chegar até aqui, vil mortal? Somente os seres ct6- nicos divinos, do séquito da Madona Negra, tém permisséo para ul- trapassar este umbral — diz o monstro. — Este é um dos nossos — intervém o ledo negro. — Este € 0 xami cujo pai organizou o primeiro caos. Ele esté sendo chamado hoje pela Madona Negra para fazer 0 mesmo nesta hora de confusao. Ele possui o sinal da Madona, faz 0 Caminho do Coracao e sua meta € a Liberdade. Eu sou seu guia até ela. O minotauro desce de sua prepoténcia, faz uma reveréncia € nos deixa passar. Um temor sagrado — tremendus — apossa-se de mim quando chego a um portal ladeado por dois gigantescos galos ¢ aden- tro a galeria dos doze antigos sdbios. Vejo-os solenemente sentados, com 0 pensamento concentrado, tentando controlar a loucura dos ho- mens, desde antes da Lemtiria e da Atlantida. Penetro numa grande caverna, cujas paredes, o teto e o chao sdo de ouro macigo. A luz vem 29 A SABEDORIA DOS ANIMAIS do centro, e € tao intensa que me cega. Deito-me no ch4o, numa atitu- de de suprema entrega, e ougo a Voz: — Sé bem vindo, Xami! Tens o direito de estar aqui. Nao temas. Como heréi da consciéncia e guerreiro impecavel, percorres 0 Cami- nho do Coracdo, cuja meta é a suprema Liberdade do Homem e sua Tluminagao. Por isso mandei chamar-te. Levanta-te! Mas até te acostumares com minha luz, olha-me com os olhos de twa alma. Ainda com os olhos fechados, comego a enxergar aquele fantés- tico ambiente. Vestida de ouro, a caverna, tal qual um grande titero, transmite harmonia e completude. Uma paz ocednica perpassa todo 0 meu ser, ¢ vejo-me transformado em corpo de luz. Belissimos anjos negros, de roupagem dourada, sobrevoam a Madona Negra. A misi- ca das esferas impregna o ar e, surpresa das surpresas, posso ver, rodeando a divindade, um séquito de todos os animais que habitam a terra, incrivelmente negros. — Vés agora de onde provenho — fala-me o ledo negro, com muita majestade. — Este é 0 negro da forga da condensacdo da luz, tal qual ocorre num buraco negro entre as galdxias. Vinda da Madona Negra, esta energia do Centro da Terra est4 a nossa disposigao — com- pleta o animal. Alumbrado com tanto brilho ¢ revelacdo, ougo mais uma vez o leao negro: — Este € 0 ouro da transmutagao das almas. O ouro alquimico buscado tao gananciosamente pelos homens e jamais alcangado, pois a palavra magica para sua obtencdo é entrega. Ainda prostrado no solo, comego a erguer a cabega, e a Madona Negra vai-se metamorfoseando em suas diversas faces. Aparece pri- meiro como Senhora dos Animais, a grande mae animal, com seu fi- lho ao colo. Depois como Inana (senhora das batalhas e deusa da fer- tilidade), como Neith (a mais velha e sabia das deusas do antigo Egito), como Isthar (da Babilénia), como Astarté (entre os hebreus), ¢ tam- bém na figura da grande e poderosa [sis. Ela é a mulher coberta de seios venerada no periodo paleolitico, e que se difunde depois como a deusa grega Diana, como Oxum, a belissima orixd, mae da alegria, e por meio de todas as outras manifestagdes da Madona Negra. Ela me aparece sucessivamente como Virgem de Guadalupe, Nossa Senhora 30 PROLOGO de Copacabana, Virgem de Monte Serrat, e finalmente como Nossa Senhora de Aparecida. Esta me fala: — Olha-me, xam, com teus olhos humanos! Como padroeira de tua terra, estou bem perto de tua humanidade, e assim poderds ver-me. Abro os olhos lentamente, ¢ sinto em meu coracgao toda a dogura, compaixao e misericérdia da Mie-Terra nas suas diversas faces. Ela continua a falar: — Ojha-me com tua dignidade de ser humano, e também com a centelha de divindade que, come homem, também carregas. Recebe de meu corago a missdo que vou te dar. Com a forga da Madona Ne- gra e de seus ledes sagrados, vai em busca da sabedoria dos animais e leva-a aos homens. Os animais voltam a falar, e os homens precisam r de seu pedestal de “principal animal do Criador” para ouvir 0 que seus irmaos animais tém a ensinar pela cura da Mae-Terra. Tua tarefa €ardua, mas contas com a energia de todos os xamas, com minha bén- ¢do, e com mais dois animais protetores que, junto aos dois ledes que jase mostraram a ti, irao te outorgar o poder de cura e a criatividade da Madona Negra. Imediatamente aparece-me de um lado um leo todo dourado € coroado, e de outro um leao alado. A Virgem Negra fala-me novamente: — Com esses quatro animais, estas pronto para tua tarefa. O teu ledo protetor, teu aliado, € teu ego, tua energia vital, que zela por ti como teu anjo da guarda. Teu leao negro é teu guia até mim e a todos os segredos da energia negra, positiva ou negativa. O teu ledo dourado e coroado é teu poder e tua responsabilidade de ser, com a dignidade do rei, conscientizador dos homens. Finalmente, 0 ledo alado é teu ego transmutado, teu instinto divinizado. Com esses quatro animais sagrados estds pronto para tua tarefa. Vai! — despede-se a Madona Negra. Ladeado pelos quatro ledes, acordo com a sensagéo do Grande Sonho. O sonho que o xami deve contar a sua tribo, e que nao é para ser interpretado, mas vivido. Posso agora iniciar minha missdo, com o poder da Madona Negra, dos quatro ledes sagrados e minha res- ponsabilidade de xama urbano, a servico da cura da Mae-Terra. Em estado alterado de consciéncia, alcangado com o toque do tambor, percorrerei os quatro cantos do mundo, através do tinel 31 A SABEDORIA DOS ANIMAIS xamanico, em busca dos animais, que virao partilhar sua sabedoria com os homens. Minha tarefa é Ardua e enfrentarei perigos e fadigas, mas também viverei grandes aventuras. Entrarei em redemoinhos formados por ondas gigantescas, em cujas paredes se véem peixes, algas, corais, a flora e a fauna marinha em todo o seu luminoso es- plendor. Velhos vulcées extintos, minas abandonadas por gnomos ou mesmo tineis de reluzentes cristais e pedras preciosas me levarao a outras dimensGes da Terra. Flutuarei, ainda, em macios corredores aéreos, sentindo o perfume das flores e 0 cheiro da mata apés a chuva, na companhia de silfides e de anjos, ao lado do Velho do Vento e do arco-iris. Minha tarefa € ardua, repito. Mas sei que conto com meus quatro leGes sagrados e com a forca da Madona Negra. Conto também com a Intengao Clara, o propdésito de cura da Mae-Terra, e com a forga infali- vel da imaginagao, que me faz, através da arte de xamanizar, deixar de ser um amador do viver para ser um mestre na arte de amar a hu- manidade, — : - 32 A SABEDORIA DOS ANIMAIS AGUIA Emblema solar Conseiéncia Pai do xamaé Minha missao se iniciou no umbral da manha, quando o Sol comecava a transformar em pérolas o orvalho das ramas e fazia o espiri- to das 4guas erguer-se em brumas que se derramavam nos vales ¢ acumulavam-se ao pé das montanhas, abragando amorosamente o corpo da Mae-Terra. Investido das forcas dos quatro elementos e com a protegao da Madona Negra, preparei-me para sair em busca da Aguia, o primeiro dos animais que encontraria em minha longa séric de jornadas. Escutei o som ritmado do tambor, fechei os olhos, ¢ no fundo negro de minha mente desenhou-se um circulo luminoso de fogo, do qual saltaram os quatro leGes sagrados que me acompanhariam em todas as minhas viagens, mesmo invisivelmente. O primeiro a surgir foi meu grande leo protetor, que zclaria por mim ante qualquer perigo, como um anjo da guarda. Depois apresentaram-se 0 ledo negro — meu condutor até o lado oculto da sabedoria; 0 Jed’o dourado e coroado — emblema da dignidade de minha missao; ¢ 0 ledo alado — instinto divinizado e trans- cendéncia. Os quatro ledes conduziram-me & entrada do tunel xaminico, que por sua vez me levaria ao mundo profundo e 4 dguia, e deixaram que cu avangasse alguns passos. Quando voltei-me nao os vi mais; haviam desaparecido as minhas costas. Desse momento em diante segui sozi- nho, porém seguro de meus passos: meus animais protetores velariam por mim em minhas andangas, ainda que eu nao pudesse enxergé-los. 35 A SABEDORIA DOS ANIMAIS. O binel iniciou-se estreito e plano. Porém, 4 medida que eu avanca- va, alargou-se ¢ tomou-se cada vez mais inclinado, até que a terra retirou a sustentagao para meus pés e encontrei-me em queda livre por um amplo. poco, cujas paredes, iluminadas de dentro para fora, eram forradas de um pouco de cada uma das substncias deste mundo, vegetal ¢ mineral. E dessas coisas de todas as cores e formatos, brilhantes ou opacas, des- prendiam-se sons diversos, fazendo ecoar uma miisica jamais ouvida. Por muito tempo caf naquele pogo sem fim, até ter a impressdo de atravessar o Centro da Terra. Entio passei a ter a sensagdo de “cair de baixo para cima”, como numa queda filmada ¢ depois projetada de tras para diante na tela. Por fim, meu corpo escapou daquele abismo en- cantando para chocar-se com violéncia contra a superficie de um lago subterraneo, escuro € gelado. Apés esse banho purificador, nadei até uma passagem para a parte do lago que se estendia a céu aberto. Aparentemente eu estava do outro lado do mundo, em clima e paisagem muito diferentes. O lago espelhava o perfil majestoso das montanhas & sua volta, culminadas de neve, ¢ refletia também um céu da cor do jade azul. Continuei nadando até uma praia desse lago ¢ fiquei secando ao sol, até que soprou uma brisa cdlida, e nas asas do vento percebi um homem vindo em minha diregdo, como se montasse um ca- valo invisivel para mim, trotando pelos ares. Antes que eu me desse con- ta de toda sua movimentagao, 0 desconhecido j4 estava a meu lado. O homem fez uma reveréncia: como se descobrisse 0 rosto de um véu invisivel, passou a mao direita de baixo para cima sobre o rosto, parou-a acima da testa, baixou-a até a altura do peito e disse: — Salve estrangeiro! Sou um dos filhos diretos do primeiro xama desta Terra, gerado pela guia que procuras. — Conta-me tua histéria — pedi. Ele consentiu e comegou: — Um dia os homens, em sua impoténcia contra a enfermidade e a morte que se abateram sobre eles, pediram ao Ser Supremo que lhes enviasse socorro. Entdo o Ser Supremo nomeou a Aguia como sua re- presentante ¢ mandou-a a Terra. A Aguia foi escolhida sobretudo porque. poderia dar aos homens consciéncia ¢ visio claras para dominar 0 comba- te. Porém, os homens nao reconheceram no animal essa qualidade: uma simples ave, por mais bela e altiva que fosse, no lhes inspirava confianga; eles nfo se esforgaram para entender sua linguagem e nao Ihe deram atengao. Entdo a dguia retornou ao Ser Supremo e pediu que Ihe fosse 36 AGUIA conferido 0 dom da palavra, ou que fosse enviado a Terra um homem com poder para ajudar seus semelhantes. Mas o Grande Espirito desejava justamente mostrar a0 homem a sabedoria dos outros animais da Cria- g4o e a importéncia da convivéncia entre todas as espécies, ¢ por isso mandou a propria 4guia de volta a Terra, com a ordem de outorgar o dom xamianico A primeira pessoa que encontrasse no mundo. Essa pessoa era uma mulher, adormecida 4 sombra de uma Arvore. A dguia envolveu-a em suas asas poderosas ¢ teve com ela uma relagao intima. Tempos depois, a mulher deu a luz um filho, o xama primordial, fruto da consciéncia da guia divina e da seiva fecundante, criadora ¢ libertaria da mulher da Terra. Esse homem, meu pai, foi também o primeiro a compreender ple- namente a linguagem da 4guia e dos outros animais. Depois de contar-me fatos tio recuados no tempo, o xama que chega- ra nas asas do vento aconselhou-me que continuasse a procurar a 4guia sua ancestral. Entio contornei a margem do lago, e na encosta de uma montanha encontrei um novo tinel, pelo qual desci ¢ subi, até que a temperatura se elevou consideravelmente. J4 me sentia sufocar quando topei com uma (ida ao ar livre, no alto de uma colina que dominava uma larga planicie. LA embaixo marchavam milhares de soldados cobertos com armaduras antigas, sujos da terra ¢ do sangue de muitos povos. Ao lado de carros atrelados a animais esqudlidos, formavam infindavel coluna serpentean- do sob o sol a pino. Cornetas gritavam, tambores ribombavam e 0 passo das legies levantava nuvens de poeira. Acima da massa elevavam-se centenas de estandartes coroados pela guia de metal com as asas abertas, emblema da dominagio universal e triunfo da Roma imperial. Com a mente atordoada pelo alvorogo daquele exército, fechei os olhos por alguns instantes. Quando os abri novamente, j4 me encontra- va em outro lugar, numa outra época. Desde uma tribuna construfda no ponto mais alto de um gigantesco estadio, eu assistia aos movimentos de milhares de homens em uniformes negros. Suas evolugées formavam desenhos simétricos, recortados por imensas bandeiras com a cruz ariana e com a Aguia, simbolos do nazismo pintados em negro sobre fundo vermelho. Uma corrente de eletricidade percorria meu corpo e capturava um pedac¢o de minha alma a cada saudagao esmagadora: “Heil!” Entao levantei os olhos e percebi no céu o vulto de uma verdadeira Aguia, voando em circulos sobre o lugar no qual eu me encontrava. Das 37 A SABEDORIA DOS ANIMALS garras do pdssaro pendia uma corda que avangava em minha diregdo. Quando essa corda passou a meu lado, pendurei-me nela com firmeza. O passaro subiu a grandes altitudes, e 0 frio entorpeceu os meu sentidos, porém mantive minha posicao, sempre agarrado a corda. Durante um tempo que nao sei precisar, a tinica coisa que podia perceber era a voz. do vento, soprando mantras de neve em meus ouvidos. Quando pude abrir os olhos novamente, vi que a aguia me levava através de um desfiladeiro de picos escarpados. Tive entio a certeza de me encontrar em terras novas, pois a luz e o céu eram caracteristicos da América. A 4guia depositou-me ao lado de uma imensa drvore no alto de um penhasco e pousou tranquila a meu lado. Inclinei a testa frente ao nobre animal, € ouvi a sua voz: — Salve novo xama, que sob minhas asas deste a volta ao mundo. inteiro! Fica sabendo que ha milhares de anos eu trouxe muito poder para esta Terra. Porém, que triste uso os homens fizeram desse presen- te... Minha clara visio nem sempre foi usada com sabedoria, e meu poder de cura e conscientizagdo, que a todos pertence, foi transformado muitas vezes em magia negra de sectérios, devoradora de almas, promotora do terror. O olho que ilumina 0 caos manchou-se de carnificina e instinto de morte sem controle. E a Mae-Terra ferida pediu que eu voltasse para 0 tempo da cura. Em boa hora, o galo cantard no vale para anunciar 0 meu retorno, € a serpente cavard um buraco tao fundo quanto a prépria Terra, Entio mergulharei meu bico nas entranhas desse abismo e tornarei certo 0 que é avesso; 0 que sufoca no escuro abrird seu peito; € o que esté no interior se estenderd ao sol. Resgatarei dos confins a imagem da Madona Negra, forga da Mae-Terra, e a elevarei em seu santudrio de puro ouro. Nem bem terminou de dizer isto, o passaro avangou inesperadamen- te para mim, e com seu bico extremamente afiado fez um corte longitudi- nal em minha cabeca, da testa até o topo. Enquanto assim procedia, a 4guia me disse: — Prepara-te para abandonar tua familia, teus amigos, teus perten- ces e abragar o caminho do xamé. Aprende comigo a invocar os deuses, os espiritos € os segredos de teu officio. Nada temas. Com esta operagao dinamizo teu terceiro olho e te inicio na longa jornada através do reino animal, conforme a Madona Negra te ordenou. Ao final dessa pere- gtinago, terés reunido um conhecimento de que 0 homem muito esté 38 neces ciénci itado, pois mente continuamente a si mesmo, classificando como benéfica intimeras agressdes ao mundo que o ampara e alimenta — considerou a Aguia, cravando ao mesmo tempo em mim seu olho penetrante. — Quando sentires perder o rumo em tuas viagens de xami, repete Os passos que te mostrarei agora. Observa a imensidado da monta- nha, da cordilheira, da Mae-Terra e do Universo. Estas inserido nessa imensidio, mas, num determinado ponto, aqui e agora, és Unico e tens uma missdo que é s6 tua. Mesmo que ela as vezes te parega contradits- ria, impossivel, tu perseguirds e realizards essa miss’o, para que uma nova consciéncia e uma nova realidade se libertem, para que tua espécie evolua e a Mae-Terra expresse sua melodia no concerto das esferas. Entdo, como se tivessem safdo do coragdo da montanha, aproxima- ram-se 4 minha esquerda nove mulheres vestidas com belas roupas indigenas e muitos colares, portando jarros d'égua e instrumentos musi- cais; e 4 minha direita surgiram nove guerreiros, alinhados com suas ar- mas. Algumas mulheres comegaram a bater tambores, € entio todos entoaram um cAntico, cujas palavras ficaram gravadas em minha cons- ciéncia profunda. Porém, quando findou o canto, essas testemunhas de: minha iniciagdo desapareceram de minha vista. A dguia de penas doura- das me disse ainda: — Agora és xama completo, mas como todo homem sobre a Terra deve fazer, apressa-te a encontrar o teu destino, caso contrério tua existéncia neste Mundo NiO tera valido a pena. Quem és tu? Somente saberas procurando conhecer aquilo que tua alma deseja em sev mais intimo: és aquilo que tua missio te tornar. Sabe, e entio fixa um ponto: a tua meta. Vai direto a ela, sem hesitagio. Nao importa a velocidade, mas a determinagao. Alcanga 0 que € teu, sabe que ndo possivel que aquilo que elegeste pertenga a outro. Toma o que é teu e depois aprende a su- portar a privacdo do outro. Nao hé raz4o para lamentar tal fato: a Mae- Terra é generosa, e quando se faz uma escotha, abandona-se ao mesmo tempo milhares de outras possibilidades. Apesar do vento frio, meu corpo estava banhado de suor. A dguia tomou um pouco de palha de seu ninho e costurou com seu bico a fenda que abrira em minha cabega. Eu estava pronto, enfim, para minha mis- sao de percorrer terras, rios e mares e ouvir a palavra dos animais. Entdo, daquela rocha nas alturas, a 4guia langou-se aos céus como uma flecha, até sumir de minha vista. Alcangou essas correntes do ar 39 A SABLEDORIA DOS ANIMAIS superior que fazem a Mae-Terra girar em sua 6rbita e passou a voar com grande yelocidade na diregio contréria ao vento e a rotacao do planeta, para ajudar o homem a reverter os males que obscurecem sua conscién- cia e a limpar 0 lixo e as radiagdes que poluem ares, 4guas e terras. No olho do passaro o cfrculo da iris tornou-se azul, espelhando 0 corpo intei- ro do planeta. Mitologia A “rainha das aves” é um dos mais importantes simbolos das mitologias de todas as civilizagdes, acompanhando de perto os princi- pais herdis e deuses solares. Mesmo nos mitos indigenas da América do Sul, onde a dguia verdadeira nio se fixou, seu nome é lembrado. Porta- dor do fogo celeste, é 0 passaro que pode contemplar o sol sem queimar os olhos. Através dos tempos, teve sua imagem associada a Zeus (Jtipi- ter), Cristo, César ¢ Napoledo, tornando-se emblema imperial dos dois Ultimos. A guia associam-se universalmente os simbolismos do Pai ¢ da paternidade. Para os indios norte-americanos, a 4guia ¢ 0 poder do Grande Es- Pirito, a conexdo com o Divino. Ela representa a habilidade de se viver no reino espiritual e ao mesmo tempo permanecer em conexao e equilf- brio com o reino terrestre. Para as tribos amerindias, a pena da 4guia & uma das mais sagradas ferramentas de cura (depois de recolhidas algu- mas penas, a ave € deixada livre ¢ sem ferimentos), bem como 0 apito feito de seu osso, Nessas culturas, a ave representa um estado de graga obtido com trabalho duro, estudo e um conjunto de provas de iniciagio que resultam na obtengao de um poder xaminico. Entre esses rituais de iniciagao, é bastante lembrada a “prova da danga que olha 0 sol”. Por outro lado, ainda na América do Norte, a forca e realeza do pas- saro prestaram-se a evocar aspectos de Justiga e deram origem a uma série de mitos onde a cura ou a ordenagdo do caos sao realizadas de maneira abrupta ou severa. Um mito iroqués relata, por exemplo, que “A Aguia é tao terrivel que suas asas escondem 0 sol e, quando ela pou- sa, Cava com suas garras grandes sulcos no solo, deixando barrancos A 40 AGUIA, sua passagem” (cf. W. N. Fenton, The Iroquois Eagle Dance). Também a tribo pawnee possui mitos que se referem ao “lado escuro” do animal. Na roda de poder cosmolégico tragada pelos indios zuni, a Aguia é colo- cada no quinto ponto cardeal, isto é, no zénite, eixo do mundo. Na América do Norte, a admiragdo pelo passaro parece ter passado de nativos a colonizadores sem prejuizo, j4 que 0 grupo de magons que idealizou as leis e sim- bolos dos BUA elegeu a or- gulhosa dguia-de-cabeca- branca (ou 4guia-americana) como representante de seu pais. As culturas amerindias e norte-asidticas se interpe- netram com relagdo ao sim- bolismo da dguia. Ela é, nos es dois continentes, 0 passaro iniciador que arrasta consigo a alma do xamé através de espagos invistveis. O pesquisador das religiées Mircea Eliade relata que a dguia era a ave solar entre os antigos povos siberianos: ela teria criado o pri- meiro xama. Conforme esse estudioso, “o xamé danga durante longo tem- po, cai por terra, inconsciente, e sua alma é levada ao céu num barco puxado por dguias”. A imagem do pdssaro representa, para os siberianos, 0 Ser Supreme, ou substitui diretamente o Sol. Sua aparigdo em sonhos € sinal de vocagdo xamfnica. Nessas regides subérticas, a 4guia est4 frequentemente associada a uma Arvore sagrada, muitas vezes um alamo (choupo-branco). Ainda entre os povos antigos, a religido hindu instituiu o animal co- mo um dos simbolos de Vishnu, o conservador. Entre os grandes periodos césmicos, esse deus repousa adormecido sobre uma serpente. Quando em atividade, transforma-se na 4guia Garuda, passaro solar, “brilhante como 0 fogo”, capaz de limitar o poder de trevas da serpente quando es- ta se excede em sua fungio. Qs caldeus fizeram a dguia acompanhar as imagens de seus reis. Sirios ¢ babilénios lhe atribuiam o poder de conduzir as almas humanas apés a morte, entre os astros e deuses celestes (a fungdo do psicopompo), e lhe davam status de animal solar, assim como os egipcios. Estes re- 41 A SABEDORIA DOS ANIMAIS presentaram frequentemente o Sol como um disco provido de duas gran- des asas aquilinas estendidas. Os gregos tomaram emprestado o simbolismo dos sirios, e a dguia tornou-se animal sagrado de Zeus. Entre outras faganhas mitolégicas, a ave rapta 0 jovem Ganimedes e o leva até o Deus Supremo. Sua qualida- de de animal psicopompo também era bastante ressaltada entre esse povo, ea imagem da Aguia foi gravada na tumba de Plato, para bem conduzi- lo as regides celestiais. Na antiga Pérsia, uma 4guia dourada figurava no estandarte aqueménida, simbolo derivado da nogao mazdeista de varana, poder divino e luz de gloria. A aguia esta entre os seres viventes centrais do simbolismo cristéio: € um dos animais mais referidos, ao lado do homem, do ledo e do touro. Simbolizando o coroamento dos estados espirituais superiores — e, portanto, dos anjos —, o passaro é representado ao lado desses trés ani- mais ou é fundido com eles sob a forma de um ser estranho e desconcertante. Esses sio os quatro animais celestes de que falaram 0 profeta Ezequiel, no final do século 7 a.C., bem como 0 evangelista Joo nos primeiros anos da Igreja, em seus relatos extraordindrios e perturbadores (v. Ezequiel, I, 1-14 e Apocalipse de Jodo, H, 6-8). Con- jugados, esses animais constituem o que a arte sacra nomeou Tetramorfo, isto é, “Quatro-formas”. Figura mandélica semeihante 4 imagem do ledo. guardiao alado assirio, o Tetramorfo representa, entre outras coisas, os quatro pontos cardeais, os quatro evangelistas, quatro dos signos do Zodiaco e, essencialmente, 0 conjunto espago-tempo. Ové6o soberbo do passaro e sua capacidade de atingir grandes altitu- ‘ des fizeram dele um dos emblemas mais frequentes do Cristo enquanto ‘ condutor das almas até Deus. Assim como os povos antigos, os cristdos creditaram & guia — apenas a ela e ao falcdo (em outras latitudes, 0 gavido e 0 urubu, aves igualmente falconiformes) —, o poder de fixar por tempo indeterminado a luz do Sol e de afastar as trevas e o mal. Ainda que a guia nao seja, na mitologia crista, tao popular quanto o cordeiro, 0 veado, o peixe e o pelicano, ela é um de seus simbolos mais ricos de sentidos — emblema da vida, do crente, do Cristo Combatente, da Ressurreigo, da Graga Divina e da Justiga —, ¢ também aquele que mais perfeitamente engendra a ligagiio entre as antigas religides e 0 cristianismo. 42 AGIA Simbolo do intelecto claro e da contemplagao (porque seus olhos podem fixar a luz solar), 0 passaro foi escolhido como simbolo de Sao Joao ¢ de seu Evangelho. Na Idade Média, a dguia foi diretamente associada 4 visao de Deus, pois a oragdo seria como as asas da dguia, que se clevam irresistivel- mente na diregao da luz. O condor e a harpia (ou gavido: vezes identificados como Aguias na mitologia dos indiogsul-americanos. Embora se diga do con- dor que é “a guia dos Andes”, Nae-exd ‘as definitivas da existén- cia de guias verdadeiras na América do Sul em tempos remotos, € tal denominacio é zoologicamente incorreta. Mesmo assim, na maioria dos casos em que os mitos sul-americanos citam expressamente a guia, o simbolismo do passaro participa perfeitamente das qualidades solares identificadas pelas culturas européias, asidticas norte-americanas, En- tre outros, um mito shipaia sobre a origem fogo menciona a dguia como sabedora do local onde a chama primordial estaria escondida. Entre os astecas, 0 coragio dos guerreiros sacrificados servia de alimento para a Aguia solar. Eles eram chamados “homens da guia”. No fabuldrio de Fedro, Esopo e La Fontaine, so ressaltados os tragos de forga e nobreza do pdssaro. Como ave de rapina tao poderosa que chegaria a pertencer & estirpe dos deuses, 0 convivio dos outros ani- mais com ela torna-se dificil (A Aguia e a Pega). Porém, vez por outra 0 passaro é levemente punido por sua soberba e falta de misericérdia (em A Aguia e o Escaravelho, por exemplo). Zoologia Aguia. Ave de rapina da ordem dos falconiformes, notével por seu tamanho e vigor, inexistente na fauna brasileira. As verdadeiras iguias, do género Aquila L., nao ocorrem na América do Sul. Aguia-cinzenta (Harpyhalietus coronatus). Ave falconiforme do Brasil meridional e ocidental, paises vizinho e Chile. E um gaviio agigantado (cerca de 85 cm. de comprimento), coloragao cinzenta, pe- nas em penacho no alto da cabega. Alimenta-se de outras aves ¢ de pequenos mamfferos. 43 A SABEDORIA DOS ANIMALS A Aguia-cinzenta é listada na Portaria n° 1.522, de 19/02/89, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Re- novaveis (Ibama), como espécie ameagada de extingdo. Aguia-americana (Haliaetus leucocephalus). O animal que figura nas armas dos Estados Unidos. A cabega, 0 alto do pescogo e a cauda sio recobertos por uma plumagem branca que contrasta com 0 marrom do corpo. Atinge de 70 a 90 cm de comprimento e cerca de 2 m de en- vergadura alar. Habita a América do Norte, do Alasca a Flérida, e o nordeste da Sibéria, em margens de rios e de lagos, onde encontra seu alimento. Os pesticidas téxicos vitimaram centenas de exemplares, levando a espécie a ser classificada como “em perigo de extingio”. O avango da ocupagao urbana sobre seus habitats também contribui para tal fato. Existem leis americanas de protegio da espécie e todo um sistema de rastreamento de exemplares que tem alcancado bons resultados. Aguia-real-européia. Ave falconiforme, da familia dos falconideos (Aquila Chrysaetus (L.)), das regides paleartica e neértica, com pluma- gem pardo-escura, penas do pescogo mais claras, cauda cinza-clara. Nidifica em rochas, usando 0 mesmo ninho anos seguidos. E o maior dos rapineiros utilizados em falcoaria na caga de animais de grande porte, como antilopes e cabras selvagens. Aguia-chilena (Geranoeatus melanoleucus). Ave falconiforme dis- tribuida desde a Argentina até o Brasil meridional, de coloragio preta, coberteiras das asas cinzentas cobertas por barras negras, cauda com ponta branca. Aguia-pega-macaco (Pithecophaga jefferyi). Ave descoberta no arquipélago das Filipinas em 1894. Os macacos das ilhas constituem a base de sua alimentagao. Porém, investe as vezes contra animais domésticos. J4 habitou varias ilhas filipinas, mas hoje seu habitat encon- tra-se restrito as ilhas de Mindanao ¢ de Luzon. Segundo 0 Livro Vermelho dos Animais, em meados da década de 1960, nao existiam mais que uma centena de casais de dguias-comedoras de-macacos. Entre as causas do declinio da espécie esto a baixa na- 44 AGUIA talidade e a captura para venda para zool6gicos ou para empalhamento, um velho habito das populagdes locais. Em meados da década de 1970, a Unido Internacional para a Con- servagao da Natureza langou um apelo aos diretores de zoolégicos para nfo mais adquirirem exemplares em liberdade. Também passou a ser tentado um programa de troca de exemplares entre Zoos, para a reprodu- ¢4o em cativeiro. 45 2 TOURO Emblema lunar Fertilizador da Mde-Terra Dimensdo sagrada da Natureza O tunel xamanico obrigou-me a rastejar por uma passagem estreita que se abriu depois em altas grutas no ventre da terra escura. Uma tocha ardia sobre uma pedra cuja forma lembrava um altar, e eu me servi do fog para avancar naquele labirinto. Caminhei quilémetros no interior da rocha, até uma sequéncia de largos saldes, cujas paredes estavam repletas de grandes pinturas de animais. Nao era dificil perceber que aquela caverna constituia, na verdade, uma imensa catedral pré-hist6rica, consagrada em pedra viva. Suas imagens santas cram centenas de lobos, veados galhados, ursos, cavalos € touros desenhados diretamente nas paredes, com seus movimentos e galopes sabiamente sugeridos pelos proprios relevos minerais. A expresso simples € a0 mesmo tempo poderosa daqueles icones teve 0 poder de transportar os meus sentidos até uma época muito remota. Meu ouvido interior distinguiu cantos, e quando cerrei os olhos uma imagem se projetou em minha mente: um grupo de homens ¢ mulheres realizava uma danga circular, cujo eixo era a figura de um grande touro saltando, pintado em vermelho sanguineo no teto central daquele tem- plo subterraneo. As roupas de peles dessa tribo estavam longe de ser toscas: em padres que nunca se repetiam, enfeitavam com belas formas os corpos vigorosos. Os pés eram protegidos até os tornozelos por a7 mocassins de pele fina. Mascando um pigmento negro e cuspindo-o de- pois em suas maos, um xama paramentado com colares de dentes ani- mais desenhava a figura de um rinoceronte lanudo numa parede ainda nua, enquanto a tribo dangava. ‘Lentamente aquela imagem apagou-se de minha consciéncia, e entio prossegui pela caverna até uma de suas saidas, na vertente de uma montanha encravada num campo cultivado de olivais. Entio segui por uma estrada de terra até encontrar toda uma antiga cidade, com suas casas de pedra clara e seus habitantes de cabelos negros, bronzeados de sol e metidos em chapéus de couro e vestes estranhas para mim. Nin- guém naquele lugar me deu muita atengdo, pois mulheres, homens ¢ criangas pareciam ter em mente algum objetivo muito especial e seguiam todos numa mesma diregao em alegre algazarra, levando flores e ramos odorantes de arruda, artemisia e absinto. Acompanhando a multiddo, cheguei a um amplo teatro circular escavado em granito a céu aberto, com milhares de lugares, La embai- x0, na arena recoberta de terra vermelha, uma adolescente envolvida em tinica longa ¢ alva tragou com seus passos um circulo completo. A pequena sacerdotisa exibia 4 multidao silenciosa o sacrificio de sua fe- cundidade, revelado pelos cabelos inteiramente raspados. Em suas maos, uma urna com brasas e mirra deixava exalar fumaga branca e perfuma- da. Entao a jovem se retirou e foram soltos na arena doze grandes touros negros enfeitados com fitas coloridas e guirlandas de flores. O povo recebeu com entusiasmo os magnificos animais, grandes e fortes como eu jamais havia visto, seu pélo curto escovado com algum 6leo que os tornava reluzentes sob 0 sol da tarde. Depois dessa apresentagAo, os touros foram tocados de volta para seus cercados, restando apenas um animal livre, e a arena foi invadida por jovens atletas seminus — seis homens ¢ seis mulheres de membros longos e esguios. Sem saber qual desafiante perseguir, 0 touro mostrou- se atordoado. Essa foi a oportunidade para os rapazes e mogas passarem a saltar sobre o animal, usando seu dorso negro para langarem-se de pon- ta-cabega no ar, tocando os chifres pontiagudes com suas mos durante 0 vo, Depois dessa faganha, sob as ovagbes do povo, os ginastas cafam em pé a frente dos touros e comegavam uma danga tio eletrizante que os animais nao esbogavam qualquer movimento, fascinados com a magia daqueles pés e maos imantados. A danga sob a mira do touro Parecia ser 48 uma suprema prova de coragem, na qual os acrobatas concentravam to- do o seu instinto. A multidao acompanhava as evolugdes com palmas e cantava refrdes em coro, apontando para baixo e para cima com gestos dangantes, Dizi- am as palavras ritmadas das mulheres: “Sagrado € 0 sangue do touro, fonte de vida, que corte nos veios da terra. Terra, concebei! A drvore com seus frutos, a vinha com seus cachos”. Os homens respondiam: “Chuva, afastai as pedras de édio do granizo! Derramai sobre nés a bén- gdo prateada”. Eu nfo me cansava de admirar os movimentos dos acrobatas, es- pantando-me sobretudo com a energia ¢ agilidade das mulheres, que nao pareciam despender mais esforgo que os rapazes para realizar seus saltos sobre 0 touro, Elas vestiam corpetes feitos de longas tiras de couro, que lhes cingiam fortemente a cintura e sustentavam pela base o busto nu e virginal. Seus brilhantes ¢ longos cabelos eram passados em trangas amarradas com fios de ouro puro. Um a um 05 touros foram soltos na arena, arremetendo As vezes impetuosamente contra os atletas, 0 que gerava debandadas gerais e nuvens de poeira. Apés os saltos mais perfeitos, nos quais os acrobatas pareciam sustentados no ar por maos invisiveis, um sacerdote paramen- tado com colares de ouro cravejados de gemas azuis e vermelhas amar- rava barbas posti¢as ao rosto das mulheres ¢ aplicava trangas falsas aos cabelos dos homens, prémios que provocavam sonoras gargalhadas do teatro inteiro. Em certo momento, uma das acrobatas puxou o rabo de um touro, enquanto um rapaz ensaiava uma cambalhota sobre ele. Po- rém, 0 animal virou-se e seus chifres rasgaram a coxa do atleta, que ime- diatamente foi carregado para fora. A multidéo saudou 0 touro como um auténtico vencedor, ¢ choveram flores brancas e vermelhas sobre ele. O ritual estendeu-se por horas, sempre entrecortado por cantos e misica de flautas, tambores e instrumentos metdlicos de percussio em forma de cornos e de serpentes. Entio, quando o sol completava de vi- nho a taga dourada do céu, os participantes daquele culto-festival entoaram um hino inspirado e se dispersaram pelas pracas e ruas vizinhas a arena. Formavam-se aglomeragoes festivas em torno das campeiis de sorriso perolado. Os dangarinos-atletas de ombros largos, cintura delgada e cabelos coroados por bandas bordadas em ouro haviam ganho a aparéncia de figuras pintadas em terracota, pois o pé rubro da arena grudara-se a0 49 suor de seus corpos. Todos queriam tocé-los, e as mogas de peito arfante. manchavam, em seus abragos ardentes, as brancas tiinicas de fino algo- dio. A noite cafa suavemente, e um intenso perfume de flores de laranjei- ra vindo do campo préximo invadia as ruas. Todos serviam-se de vinho e iguarias colocadas sobre estrados de madeira. Atraido por uma bela anfo- rae um catix de ceramica, provei um vinho novo, rubidceo, perfumado de madeira e frutas. A alma da bebida penetrou em mim, afinando imediatamente meu humor, e me fez experimentar meu préprio corpo de uma maneira inédita e prazerosa, como se a partir daquele momento mi- nha consciéncia passasse a residir, com perfcitas comodidade e seguran- a, no edificio de meus ossos. Eu podia perceber a forga da gravidade da terra sob meus pés, sua sutil atracdo, bem como as diferentes texturas do solo. Provei, deleitado, pastéis de nata recheados de queijos delicados minuciosos bolos com a forma do touro e da mulher nua, feitos com me) e frutas, servidos ainda quentes sobre folhas verdes. Havia também ma- gas pendentes dos ramos. Todo esse alimento me fez sentir revigorado, a ponto de desejar caminhar novamente. Lentamente, todos se dirigiam aos pomares exteriores da cidade, on- de uma brisa fresca amenizava o calor mediterréneo. Entdo, caminhan- do & beira de um trigal de espigas douradas, vi o signo triplo do arco com as pontas para cima: desenhava-se uma primeira vez na lua em fino crescente prateado, outra vez logo abaixo, no perfil das montanhas ao longe, ¢ uma tltima vez nos chifres imponentes de um fantastico touro branco, que se encontrava parado bem no meio do campo. Reyelava-se ali por trés vezes, para mim, o signo da Grande Deusa da Terra. Cheio de admiragao e reveréncia, dirigi-me ao forte animal 4 minha frente. Ele me recebeu com as seguintes palavras: — Salve, viajante! Apreciaste a festa da taurocapsia na cidade e a iniciagdo do herdi, saltando sobre seu ego. Viste o ritual sagrado e a arte que a humanidade acabou transformando em touradas sanguinolentas e sddicas farras de bois. Aqui, quando sou sacrificado, trata-se da carne do rei que € imolada 4 grande deusa da Terra. Nao se esfola o meu couro sem respeito ¢ necessidade. Eu ofere¢o meu suor para arar 0 campo e meu sémen para a fertilizagao da Mae-Terra. Sou 0 seu supremo consorte. — Oritual de tua celebragao € muito alegre — observei eu. — Por que deveria ser triste? — perguntou o touro branco. —- Sa- 50 grado! Tudo na natureza & sagrado € deve ser celebrado com alegria. Sagrado € 0 mundo em que vives, que te dé cores, aromas € sabores em abundancia, sagradas também as vozes melodiosas de homens e animais, ocalor do sol, a caricia da Agua e mais incontdveis prazeres da carne e do espirito, j4 nomeados ou ainda por classificar. Sagrado € 0 prazer que 0 homem retira de todas essas coisas sagradas. Diz a teus pares que culti- vem © prazer, atento: © que existe nele de sagrado. Entéo 0 seu prazer se multiplicaré, de forma a abragar as estrelas. Observa-lhes que deve haver alguma coisa errada num mundo em que o sagrado se ausen- tou da natureza e das coisas simples, ficando confinado a complicadas cdmaras mortudrias e a um mundo de sombras ¢ proibigdes. Entao curvei-me frente ao majestoso animal e pedi sua protegao pa- ra a Terra queimada e envenenada de meus contemporaneos. O céu co- briu com seu manto de estrelas a face dos campos, e eu tratei de procu- rar meu caminho de volta no tempo e no espaco. Mitologia Desde os rituais mais primitivos de celebragao da renovacao perié- dica da vegetagao ¢ da agricultura, 0 homem associou ao touro as qualidades de grande fertilizador, masculino da Deusa da Terra. O° mamifero tornou-se emblema de fonte de vida, da qual brotam todas as L plantas e ervas da terra e as sementes de todos os animais, e sua imagem foi identificada também aos deuses dos oceanos € dos rios, os grandes | agentes de fecundidade da Mae-Terra. Muito antes disso, porém, ainda no periodo Paleolitico Superior (40.000 mil anos antes do tempo presente), quando o homem chegou ao continente europeu e sua atividade de subsisténcia nao era a agricultura, mas a caga nas grandes pradarias, ha indicios de que o touro selvagem ja era honrado como um grande deus. Nos dias atuais, resta pouca ou ne- nhuma divida de que, mais que refiigio, as cavernas desse periodo serviram as grandes tribos de cagadores primitivos como auténticos templos subterraneos. E nas paredes de todas essas “catedrais” en- contravam-se as imagens do touro e do bisio, ao lado de outros animais: cavalos, veados, ursos, rinocerontes. Mesmo a coruja, a hiena, 0 leopar- do, o macaco ¢ outros animais cram pintados pelo artista-xama da Era St Glacial. Junto ao cavalo ¢ ao bisdo, 0 touro aparece em cerca de 50% das. imagens registradas em cavernas pré-histéricas de toda a Europa, No conjunto de pinturas de Lascaux, na Franga, é notdvel a imagem de um touro saltando, no teto central de um dos mais recuados e inacessiveis saldes de uma das cavernas, espécie de altar interior. Existe também, na mesma caverna, uma rara pintura de um xami-passaro — emblema so- lar —, erguendo-se vitorioso ante a imagem de um grande touro sacrificado. . O touro, ligado ainda reiteradamente ao ciclo de “mortes ¢ renascimentos” da lua — inclusive por seus chifres em forma de crescen- te —, é claramente animal primordial na historia do homem, objeto preferencial dos sacrificios de sangue paraa glorificagao da divindade da terra. Foi algado inimeras vezes 4 condigao de deus-touro, rei_de fer- tilidade (ao lado da também frequente representagao da deusa-vaca), senhor masculino do ciclo do titer, das chuvas e do orvalho. Sua imola- ¢4o equilibrava as forgas cténicas, subterraneas — frequentemente iden- tificadas a serpente —e as béngdos celestes das chuvas e do tempo benig- no — associadas aos passaros e & dguia. Daf o simbolismo do animal ter incorporado, ao longo dos milénios, tanto elementos associados a terrae suas profundezas quanto caracteristicas que o ligam a esfera celeste. Ri- tual comum a culturas muito distantes entre si, 0 sangue do touro foi aspergido nos campos do mundo inteiro, sua carne enterrada junto as raizes para propiciar uma rica colheita. Pelas amostras que a arqueologia colheu do perfodo neolftico basal (c. 5.500-4500 a.C.), no Oriente préximo, a grande deusa da terra e da ") agricultura, primeira veneragao antropomorf de que se tem noticia, era ; cultuada por meio de estatuetas em que ela aparece nua, sentada num i robusto boi (as vezes entre seus chifres), ou em Tepresentagdes em que | ela surge com cabega de vaca, carregando uma crianca com cabega de \ tour, Mil anos depois, na civilizacao suméria que floresceu junto aos tio Tigre e Eufrates, eram frequentes as cerdmicas e decoragGes funerd- rias com a cabega do touro com grandes chifres arqueados. Por exem- plo, nas tumbas dos reis da cidade-estado de Ur. Os cultos da deusa-mie e do rei-touro e suas representagGes surgiram ainda um milénio mais tarde em Creta, dai espalhando-se para o Norte, até o limite das [has Britanicas, e para 0 Sul, até o delta do Nilo, a Nigéria e o Congo. As culturas mesopotamicas agropastoris representaram o mistério da existéncia na imagem trina touro-vaca-bezerro. Veneraram uma 52 constelagado de deuses-touros — o culto lunar de Sin, entre os mais im- Pportantes — e de deusas-miies que as vezes assumiam a forma da vaca, tal como Inanna, senhora da fertilidade. No Alto Egito, 0 touro era um dos emblemas sob os quais o deus ; supremo Amon cra adorado em Tebas. O touro-celeste Amon era encammado na terra pelos touros Apis (de Ménfis) e Mnévis (de Heliépolis). O touro morto era ligado ao culto de Osiris, e chamado Oserdpis, ou se- ja, Osiris-Apis. Em certas pinturas, esse touro negro carrega o cadaver de Osiris em seu dorso. O culto de Osiris-Apis confundiria-se mais tar- de com 0 culto do deus de curas Serdpis, introduzido j4 no Egito he- lenistico. Os serapeuns, templos consagrados a Serapis, possufam enor- mes sarc6fagos de touros em suas galerias subterraneas, tais como os descobertos em Ménfis. Osiris nao presidia apenas o mundo dos mortos, mas era também o deus da vegetagdo, que morre e volta a vida a cada ano. Existia, portanto, uma clara ligagao entre os mortos, enterrados no solo, e a vegetagZo que dele brota. Assim, Osiris era representado As vezes com uma pele verde. Por sua associagio & idéia de fecundidade, e pela semelhanga de seus chifres com o crescente lunar, a cabega do touro tinha lugar a parte nos sactificios egipcios e era gravada em amuletos de ouro. O touro também 53 Nera uma das personificagdes do deus Pt, forga divina da vida renovan- do-se continuamente na natureza e de Ihy, filho da deusa Hator, re- presentada com cabega de vaca. Ihy nascia a cada dia do ventre de sua mie, como o sol novo, ¢ se autoproclamava o “Touro da Confusao”, 0 primeiro macho a emergir do caos das aguas. O touroe a vaca sagrados da India foram assimilados da Mesopotamia como correspondentes dos lingam, pedras rituais em forma de falo, signo masculino que indica fonte de vida, ¢ das yoni, rocha circular com buraco no meio, representando o feminino. O touro se integra, na cultura india- na, principalmente aos aspectos do culto solar (que normalmente sucede um ciclo lunar). Segundo os textos védicos, animal € a propria imagem da vida e do sacrificio, de forga e arrebatamento, qualidades personifica- das no deus-touro solar Suria. Jé o sémen abundante do feroz touro Rudra fertiliza a terra, Enquanto forga calorosa e fertilizante, o animal também € emblema, na fndia, dos deuses Indra (do Céu, da chuva e do raio) e Shiva (0 terrivel consorte da Deusa da Terra). Junto a Indra ¢ Shiva, 0 Couro representa ardor césmico e energia sexual, mas quando é montado por Shiva (na forma do touro Nandi) simboliza a energia sexual trans- mnutada em espiritualidade. A India assimilou crengas paleo-orientais de que 0 touro negro Tepresentaria 0 céu inferior, isto é, a morte. Em Java e em Bali sob a influéncia hindu era costume incinerar os corpos dos principes em sarc6fagos com a forma do touro. A imagem do touro ou a sua imolagio integravam os célebres misté- Tios de Eléusis, os antigos rituais gregos de propiciagio da vida, dos pomares e das plantagdes, realizados em honra de Deméter, a deusa »* eretense da agricultura (seus nomes em culturas proximas: Ceres Cibele, esta a Magna Mater Deum dos latinos), bem como de sua filha Perséfone (em alguns lugares, Prosérpina), Deméter era nomeada “mie dos grios”, enquanto Perséfone era “a virgem dos grios”, Simbolicamente, as duas deusas realizam — e com elas 0 touro —, 0 ponto de apaziguamento en- tre as energias negras da terrae o raio de luz e chuvas celestiais. A primeira forga, cténica) aparece frequentemente sob a forma de serpentes safdas dos subterraneos e das aguas profundas, armazenadas nos infernos de Hades (Plutio) ¢ nos dominios abissais de Poseidon (Netuno). A segun- 54 da forga, representada muitas vezes através do olhar luminoso e do véo da aguia, é liberada segundo a vontade de Zeus (Jupiter), irmao, alids, dos citados deuses das profundezas aquaticas e infernais. Deméter e sua filha Perséfone ligam esses opostos vitais com 0 sangue e o sémen do touro, de forma a permitir que o mundo floresga, literalmente. A imagem da deusa da terra acompanhada de seu rei-touro fertili- zador — reservado para o sacrificio — constitui manancial basico do qual os povos egeus, os gregos ¢ tantas outros retiraram alguns de seus simbolos centrais. Ao longo dos séculos, a relagio deusa-rei sacrificado foi transposta para as divindades {shtar e Tammuz, {sis e Osiris, Europa Zeus, Vénus e Adénis, Artemis ¢ Hipélito, Maria e Jesus... Todos esses mitos ou cultos remetem as ceriménias de morte do touro e de sua ressurrei¢do — promessa de eternidade. Na Grécia, 0 touro chegou a ser o animal mais frequentemente li- gado ao sacrificio ritual, em touradas sagradas chamadas taurocapsias, depois transportadas profanamente para a Espanha, onde até hoje se assis- te em arenas & matanga de magnificos touros negros (ligados, nas an gas culturas, ao simbolismo da morte)} Para os gregos, animal sim. bolizava ainda a violéncia sem freiosy e por isso era sacrificado fre- quentemente a algumas de suas principais — e sempre impetuosas — divindades, Costumava-se oferecé-lo a Zeus, senhor celeste langador de raios, a seu irmao Poscidon, deus dos oceanos e tempestades, ao embriagado Dioniso das Vinhas (Baco), ¢ também a Artemis (Diana), “A Turbulenta” (nome que lhe da //fada), cagadora, deusa selvagem da natureza, lunar, como indica 0 crescente na forma de um chifre taurino que enfeita sua cabega. A Diana dos bosques é herdeira direta dos cultos asiaticos e egeus da Grande Mae. Curiosamente, pela interpenetracao de simbolismos, 0 touro causa um problema a Diana em certa passagem mitolégica, obrigando-a a ressuscitar do mundo dos mortos Hipélito, seu amante humano, vitimado por um touro enfurecido que, a mando de Poseidon, saltara das ondas do mar sobre os cavalos de sua carruagem. Os touros eram as nobres vitimas sacrificiais da Atlantida, o reino arquitetado e protegido por Poseidon, conforme registraram varios auto- res classicos, entre eles Platao. Conta o Critias ptaténico que os dez reis de Atlantida reuniam-se em datas determinadas e imolavam ao deus do oceano um touro capturado por um deles com auxilio apenas de porretes de madeira e de redes. Depois os reis consagravam o animal, aspergi- 5S am-se com seu sangue, bebiam dele, envolviam-se em mantos de um profundo azul-celeste, sentavam-se sobre as cinzas dos animais sacrificados e proferiam seus julgamentos uns sobre os outros, essa critica constituindo a base da admiravel organizacao politica e social da ilha. Ainda entre as lendas gregas, Hércules recebia as vezes 0 titulo “Taur6fono”, porque tinha a capacidade de matar e devorar sozinho um touro inteiro. O monstro taurocéfalo (com cabega de touro) assumiu papel muito importante com o Minotauro da culturacretense, A mitologia egéiaconta que Minos, rei de Creta, filho de Zeus e Europa, negligenciou seus deveres para com Poseidon. O deus do oceano puniu entdo o soberano, fazendo com que sua mulher, Pasifae, se apaixonasse pelo touro que deveria ter sido sacrificado em sua honra, Dessa estranha uniao, nasceu a gigantesca criatura taurocéfala; e para encerré-la e escondé-la, Minos mandou construir o labirinto. Ao monstro eram sacrificados periodicamente sete Tapazes € sete mo¢as trazidos de Atenas. Teseu, com a ajuda do novelo de fios e da coroa luminosa de sua amada Ariadne — simbolizando a ' feliz unitio dos poderes masculino e feminino ea forga do amor —, venceu _0 Minotauro ¢ livrou Creta de seu flagelo. Na Grécia, Egito helenistico ¢ em toda a Asia Menor, os batismos purificadores com o sangue do touro tiveram papel importante por volta do século 7 a.C., nos cultos do orfismo e do mitrafsmo. O culto persa de Mitra, muito popular entre as legides de soldados até a época do Império Romano, exaltava a forga de Mitra tauréctone (matador de touros). Algumas representagdes mostram espigas douradas jorrando do sangue do animal abatido pelo deus. Para o batismo de sangue desses cultos construiam-se fossos especiais recobertos de um teto cheio de orificios, onde o devoto era colocado nu, para banhar-se intetramente no sangue ainda quente do animal. Acreditava-se que esse ritual, chama taurobolia, purificava as maculas da vida e Preparava para uma nov: existéncia. Na religiio persa zorodstrica lugar especial era reservado ao touro de Ormuzd, 0 animal primitivo que contém os principios da vida dos homens, dos animais e das plantas. O primeiro homem teria saido de seu ombro direito, ¢ a vida de todos os animais de seu ombro esquerdo. Simbolo privilegiado da forga, 0 touro aparece em varias culturas 56 TOURO mesopotamicas ¢ na {ndia, bem como em lendas altaicas, turco-tarta- rase tradicées iskimicas, como um dos sustentdculos do mundo. O motivo reaparece entre nagdes norte-americanas, como a dos sioux, e dezenas de outras. Sw . Nas mitologias de assirios ¢ caldeus, o touro era animal celeste. Sio bem conhecidas as suas representagdes androcéfalas com asas de aguia — € esses touros com cabegas humanas ostentavam grandes barbas e tiaras repletas de pedras preciosas. As mesmas figuras reaparecem nos kerubs, 08 querubins babilénicos, postos a velar 4 porta de templos e paldcios\O touro era também emblema do deus Adad, senhor do fogo celeste e das tempestades\E havia ainda uma espécie de minotauro infer- nal chamado Eabani. Palestinos e outros povos antigos cultuaram por milénios o deus-touro El, até que 0 culto foi proscrito por Moisés. A contraparte diabélica do touro sagrado se verifica em diversas culturas antigas. Os caldeus veneravam o deus taurocéfalo Bel, confundido as vezes com o Eabani babilénico; sfrio-fenfcios e outros povos semitas adoravam Baal, celebrando nesse deus as forgas mais clementares da sexualidade e da fecundidade. Sob a mesma forma — deus elemental com corpo humano e cabega taurina —, amonitas, moabitas, cananeus e tribos vizinhas sacrificavam criangas a Moloch (em outra grafta, Melcom). Pos- teriormente, esse culto se verificou entre os hebreus, conforme regis- tra um texto do Levitico: “Tu nao entregaras nenhu- ma de tuas cri- angas para fazé- las queimar em honra de Moloch” (XVII, 21). E foi pela admissao desse deus em seu pantedo que 57 e

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