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FLUSSER, Vilém.

 O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São


Paulo; Coimbra: Annablume; Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. (recomendo o
livro completo, ou pelo menos os primeiros capítulos: 0. Advertência - 4. Imaginar).
DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1129-7  [open access]

0. Advertência*

Partindo das imagens técnicas atuais, podemos reconhecer nelas duas tendências básicas
diferentes. Uma indica o rumo da sociedade totalitária, centralmente programada, dos
receptores das imagens e dos funcionários das imagens; a outra indica o rumo para a
sociedade telemática dialogante dos criadores das imagens e dos colecionadores das imagens.

1. Abstrair

Um dos sintomas dessa revolução é a emergência das imagens técnicas em nosso torno.
Fotografias, filmes, imagens de TV, de vídeo e dos terminais de computador assumem o papel
de portadores de informação outrora desempenhado por textos lineares.

Não mais vivenciamos, conhecemos e valorizamos o mundo graças a linhas escritas, mas agora
graças a superfícies imaginadas.

O mundo não se apresenta mais enquanto linha, processo, acontecimento, mas enquanto
plano, cena, contexto - como era o caso na pré-história e como ainda é o caso para iletrados.

Nossa tese: as novas imagens não ocupam o mesmo nível ontológico das imagens tradicionais,
porque são fenômenos sem paralelo no passado. As imagens tradicionais são superfícies
abstraídas de volumes, enquanto as imagens técnicas são superfícies construídas com pontos.

O homem, ao contrário do animal, possui mãos com as quais pode segurar os volumes, pode
fazer com que parem. Por essa “manipulação” o homem abstrai o tempo e destarte
transforma o mundo em “circunstância”. Os objetos abstratos que surgem em torno do
homem podem ser modificados, “resolvidos” (“objeto” e “problema” são sinónimos). A
circunstância abstrata, objetiva, problemática, pode ser “informada” e resultará em Vénus de
Nillendorf, em faca de sílex, em “cultura”.

a conceituação é o terceiro gesto abstraidor (abstrai a largura da superfície); graças a ele o


homem transforma a si próprio em homem histórico, em ator que concebe o imaginado.

o pensamento pré-histórico imaginava conforme a estrutura das suas imagens. Essa


conscientização, recente, faz com que se perca a confiança nos fios condutores. As pedrinhas
dos colares se põem a rolar, soltas dos fios tornados podres, e a formar amontoados caóticos
de partículas, de quanta, de bits, de pontos zero-dimensionais. Tais pedrinhas soltas não são
manipuláveis (não são acessíveis às mãos) nem imagináveis (não são acessíveis aos olhos) e
nem concebíveis (não são acessíveis aos dedos). Mas são calculáveis (de calculus — pedrinha),
portanto tateáveis VlLÉM FLUSSER 19 pelas pontas de dedos munidas de teclas.

o relato proposto é inaceitável, e o é sobretudo por sua linearidade: “mão-olho-dedo-ponta de


dedo”. Ou: “objetivação do mundo e subjetização do homem” - “imaginação do mundo e
ritualização do ato” - “historicização do mundo e autoconsciência do homem” - “desintegração
do mundo e existencialização da consciência humana”. Ou ainda:
“tridimensionalidade/bidimensionalidade/unidimensionalidade/zerodimensionalidade”.

O propósito de toda abstração é o de tomar distância do concreto para poder agarrá-lo


melhor.

De maneira que a história da cultura não é série de progressos, mas dança em torno do
concreto.

A imagem tradicional é produzida por gesto que abstrai a profundidade da circunstância, isto
é, por gesto que vai do concreto rumo ao abstrato. A tecno-imagem é produzida por gesto que
reagrupa pontos para formarem superfícies, isto é, por gesto que vai do abstrato rumo ao
concreto.

E como o gesto produtor confere significado à imagem, o modelo sugere que o significado das
imagens tradicionais é o oposto do significado das tecno-imagens.

a circunstância não é mais palpável: a mão não a alcança mais. Deixa de ser “manifesta”. É
agora apenas aparente.

Devemos nos contentar com a elucidação do input e do output da imaginação, deixando a


própria imaginação como “caixa preta”. Do lado input podemos observar que o gesto produtor
de imagens não se nutre apenas com as visões que o produtor tem da circunstância, mas
igualmente com a visão que o produtor tem de imagens feitas anteriormente.

toda imagem produzida se insere necessariamente na correnteza das imagens de determinada


sociedade, porque toda imagem é resultado de codificação simbólica fundada sobre código
estabelecido.

ESte fato é observável do lado output. As novas imagens não são apenas modelos para futuros
produtores de 24 O universo das imagens técnicas imagens, mas são, mais significativamente,
modelos para a futura experiência, para a valoração, para o conhecimento e para a ação da
sociedade.

Por certo, os produtores de imagens sabem perfeitamente que toda visão é subjetiva e
privada, e que suas imagens diferem das precedentes, mas assumem que tal subjetividade é
privacidade e, ela própria, resultado do código de mitos, o qual, por sua vez, assumem
imutável e eterno.
2. Concretizar

E, ao termos seguido tais fios até o núcleo do nosso pensamento conceituai, teríamos
descoberto que as cadeias do discurso lógico se desintegram em bits, em proposições
calculáveis.

De fato, o salto é ousado. Porque a desintegração das ondas em gotas, dos juízos em bits e das
ações em actomas desvenda o abismo do nada.

A hipótese aqui avançada é que as imagens técnicas são uma das respostas ao problema.

O importante para a compreensão da produção das imagens técnicas é que se processa no


campo das virtualidades. Os elementos pontuais não são, em si, “algo”, mas apenas o chão no
qual algo pode surgir acidentalmente. O “material” do qual o universo emergente se compõe é
a virtualidade.

E não apenas o universo, também nós somos feitos de virtualidade.

E não apenas a ontológica, mas igualmente a ética e a estética: nada adianta perguntar se as
imagens técnicas são fictícias, mas apenas o quanto são prováveis. E quanto menos prováveis
são, tanto mais se mostram informativas.

Os aparelhos são programados para transformar possibilidades invisíveis em improbabilidade


visíveis. Em outros termos: os aparelhos contêm programas que se opõem à tendência
universal rumo à entropia.

O homem é ente que, desde que estendeu a sua mão contra o mundo, procura preservar as
informações herdadas e adquiridas, e ainda criar informações novas. Esta é a sua resposta à
“morte térmica”, ou, mais exatamente, à morte. “Informar!” é a resposta que o homem lança
contra a morte.

O propósito dos aparelhos é o de criar, preservar e transmitir informações. Nesse sentido, as


imagens técnicas são represas de informação a serviço da nossa imortalidade.

Toda imagem técnica é produto de acaso, de junção de elementos. Toda imagem técnica é
“acidente programado”.

Todas as imagens que o fotógrafo produz são, em tese, futuráveis para quem calculou o
programa do aparelho. São imagens “prováveis

É, pois, preciso utilizar os aparelhos contra seus programas. E preciso lutar contra a sua
automaticidade.

O gesto produtor de imagens técnicas se revela, então, como gesto composto de duas fases.
Na primeira fase são inventados e programados aparelhos. Na segunda, os aparelhos são
invertidos contra o seu programa.

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