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O gol da memória: a ditadura militar e o futebol na Argentina e no Brasil

Joelma Sampaio Evangelista

RESUMO: A partir da leitura do romance Duas Vezes Junho, de Martín Kohan e do filme O ano em que meus
pais saíram de férias, pretende-se estabelecer uma análise sobre as relações entre o futebol e a ditadura militar na
Argentina e no Brasil nos anos 70, de modo a investigar como os anos violentos do regime foram encobertos
(insuficientemente) pelo espetáculo esportivo.

Palavras-chave: Futebol; Ditadura; América Latina; Literatura; Cinema.

“De fato não vejo perto


as coisas que antes via.
_ O eu teria eu tanto visto
ou de tão grave descoberto
que levando-me a retina
me deixasse o gasto espanto
nos olhos boquiabertos?”
(Affonso Romano de Sant’Anna- Mal de
vista)

I- LEMBRANÇAS DOS ANOS 70


As constantes reflexões sobre a violência sofrida na ditadura militar não se esgotam,
ainda que hoje, segundo Andreas Huyssen, em seu conhecido livro Seduzidos pela memória
(2000), nós vivamos um mal-estar oriundo do excesso de memórias de informação e de
percepção. A profusão de monumentos, documentários, imagens, testemunhos e até mesmo
obras de ficção nos impõe a necessidade de remexer o passado, não tanto para recuperá-lo
(tarefa impossível), mas para invocá-lo no presente. Assim, os crimes cometidos nos anos de
repressão política pelas ditaduras militares nos lembram, ainda na contemporaneidade, as
lacunas que a modernidade não pôde preencher e que atormentam nosso presente. A pergunta
que se faz é: de que maneira são lembrados os reflexos da violência e da ideologia propagada
pelos governos militares dos anos 70?

Doutoranda em Estudos Literários – Universidade Federal de Juiz de Fora

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O objetivo deste artigo é estabelecer uma breve análise comparativa sobre a ditadura
militar na Argentina e no Brasil, de modo a investigar como os anos violentos vividos no
regime foram encobertos (insuficientemente) pelo espetáculo do futebol, esporte
nacionalmente ainda hoje consagrado nos dois países. Para isso, parto de uma leitura de duas
produções artísticas recentes, uma literária e outra cinematográfica, que abordam a questão: o
romance Duas vezes junho do escritor argentino Martín Kohan e o premiado filme brasileiro
O ano em que meus pais saíram de férias, dirigido por Cao Hamburger.
Tanto o romance quanto o filme tentam mostrar, a partir das lembranças dos
respectivos narradores, como o futebol serviu, na década de 70, em ambas as nações, para o
encobrimento da violência imposta pelos governos militares. Parto da hipótese de que os
respectivos protagonistas se colocam como narradores enviesados, o que significa que, em
uma narrativa de enfoque memorialista, trabalham uma narrativa periférica dos
acontecimentos, de maneira a revelar a perplexidade1 diante da experiência no passado. Uma
narração enviesada da memória não pressupõe a revivificação das experiências passadas, mas
sim uma tentativa de distanciamento (talvez também frustrada) para o necessário ato de
reflexão sobre o efeito de tais experiências passadas no tempo presente. Neste sentido, o
futebol, que sempre se configurou como a representação do distanciamento político da
população, serve, nas narrativas de Duas vezes junho e O ano em que meus pais saíram de
férias, como um gatilho que aciona uma verdade política velada e ainda incômoda.
O romance de Martín Kohan se inicia a partir de um caderno de anotações no qual
consta escrita uma incômoda pergunta, tanto por seu conteúdo explícito chocante quanto pelo
insistente desvio ortográfico: “A partir de que idade se pode comesar a torturar uma
criança?”, pergunta esta que remete à tortura de crianças como forma de chantagear os pais
presos pelo regime militar. O narrador, um recruta da polícia argentina, precisa encontrar seu
superior- o torturador Doutor Mesiano- a fim de que ele responda à questão, mas o chefe saíra
para assistir ao jogo entre Argentina e Itália – final da primeira fase de grupos da Copa do
Mundo de 1978, partida na qual a seleção argentina, até então invicta, é derrotada por 1 a 0. É
evidente, então, que a derrota inesperada desmascara a pátria monumentalizada pelo futebol,

1
É relevante entender a etimologia da palavra em questão: “perplexo” (do lat. perplexu, “emaranhado”) e
“plexo” (do lat. tard. plexu, “enlaçamento”).

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deixando expostas feridas do regime político. A angustiante busca pelo médico nos revela
ainda um fato perturbador, que irá se ramificar pelo resto da narrativa: a pergunta em questão
referia-se a uma presa que acabara de dar à luz e que, pelas inúmeras torturas sofridas,
encontrava-se à beira da morte. Quatro anos mais tarde, em outra Copa do Mundo, a seleção
argentina vai novamente a final e o recruta, que naquele momento tornara-se um estudante de
Medicina, procura o Doutor Mesiano para prestar-lhe pêsames pelo filho, morto em combate
na Guerra das Malvinas. Encontra então, na casa do amigo, o bebê da torturada, agora, uma
aparente criança feliz adotada pelo médico e sua esposa.
A respeito do erro ortográfico da pergunta no caderno de anotações e de sua possível
correção, convém ressaltar que o próprio narrador admite a impossibilidade de “apagar uma
letra ou meia letra, sem deixar marcas na folha do caderno”(KOHAN; 2005, p. 15). É
importante notar que, no início do livro, o soldado se incomoda mais com o erro ortográfico
do que com o conteúdo do bilhete. Por isso, resolve corrigir a escrita, sem se ater à
mensagem. Neste episódio, é inevitável ressaltar que também as marcas deixadas pela
ditadura militar nas inúmeras tentativas de apagamento de documentos e de corpos serviram
mais para produzir rastros da violência do que consertos ideológicos.
Já o narrador de O ano em que meus pais saíram de férias é o menino Mauro, que,
durante a Copa de 1970, época auge da ditadura militar no Brasil, se vê inesperadamente
separado dos pais, perseguidos pela repressão e mandado à casa do avô, no tranqüilo bairro de
Bom Retiro, em São Paulo. Entretanto, antes de sua chegada, o avô falece e o menino fica aos
cuidados temporários do velho judeu Shlomo que, enquanto empreende uma busca pelos pais
do garoto, trava com ele uma luta simbólica entre gerações, cultura e religião diferentes.
Paralelamente ao convívio com moradores tão diversificados no bairro, Mauro torce pela
vitória da seleção brasileira (que se sagraria campeã naquele ano) e aguarda ansiosamente um
telefonema dos pais.
Os fatos no filme não são desencadeados por um erro, mas por uma inverdade. Por
terem que justificar sua ausência ao menino, os pais, perseguidos pelo regime, o consolam
com o argumento de que sairiam de férias. Se a princípio Mauro acredita nessa história, à
medida que o tempo passa, sem o esperado telefonema, a verdade vai se revelando
paulatinamente, transformando a inocência em dura realidade. As duas cenas em que Mauro

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telefona para sua casa em Belo Horizonte, na tentativa de falar com os pais, chamam a
atenção: no primeiro telefonema, a câmera corta para um telefone tocando insistentemente e
um plano de fundo que mostra uma casa vazia, com alguns móveis e uma janela aberta.
Depois de meses de espera, quando o menino telefona pela segunda vez, o espectador vê o
mesmo telefone tocando, mas o plano de fundo deixa perceber móveis revirados e quebrados
pelo chão, numa sugestão explícita da perseguição do regime militar.

II- NARRAÇÕES DO PASSADO


Duas vezes Junho e O ano em que meus pais saíram de férias inovam a narração da
memória pós-ditatorial na medida em que não recorrem a caminhos diretos para tratar do luto.
Ao contrário, se servem de histórias periféricas para mostrar o enfrentamento (ou sua falta) da
repressão política. São histórias de pessoas comuns que vivenciaram os fatos e por isso, se
diferenciam das narrativas pedagógicas da nação, promovendo assim um desvio interessante
na representação da História. Além disso, se tratam obras ficcionais, de cunho memorialista.
Walter Benjamin, ao afirmar que o primeiro ato de narrar configura o intercâmbio de
experiências, traz a tona um interessante paralelo: narrador e ouvinte se necessitam. Ora, tanto
no livro quanto no filme, o interlocutor da narração aparece de forma fantasmática, já que não
se sabe ao certo a quem os fatos devem ser contados (as obras são ficções de memória),
sugerindo, talvez, que as histórias ali relatadas ainda estão abertas ao intercâmbio Nem o
soldado argentino nem o menino Mauro conseguem fechar o fio narrativo, pois, no final, a
descoberta de um crime de seqüestro, no livro, ou a imposição do exílio no filme, prenunciam
novas experiências ainda não narráveis. Neste sentido, a violência provocada pelo jogo da
ditadura instaura-se como um arquivo a ser desvendado, no sentido proposto por Derrida, para
quem o conteúdo do arquivável depende de sua relação com o futuro, uma vez que o
arquivamento registra os eventos, mas também os produz. (DERRIDA; 2001, pp.28-29)
Os arquivos da ditadura militar na Argentina e no Brasil não podem ser vistos,
portanto, somente como acumulação de bens materiais ou testemunhais do passado. Os
acervos daquela época se constituem insistentes em nosso presente, uma vez que o desejo de
lembrar seleciona antecipadamente o que nos diz respeito. Por essa razão Beatriz Sarlo

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explica que “os discursos da memória, tão impregnados de ideologias como os da história,
não se submetem, como os da disciplina histórica, a um controle que ocorra numa esfera
pública separada da subjetividade”.(SARLO; 2007, p.67). É essa perspectiva de
subjetividade do arquivável que faz com que o futebol, tão propalado pelas ditaduras como
tour de force de uma possível estabilidade política, seja ainda hoje parte do imaginário da
nação vencedora.
Outro ponto importante apontado por Benjamin é a caracterização de dois tipos de
narrador, ou melhor, de dois momentos da história do narrador: o primeiro, do narrador
clássico, em que o intercâmbio de experiências é preponderante, já que o narrador mais
experiente quer passar sua sabedoria ao menos experiente. Já o segundo, o narrador do
romance, não pode falar mais de sua experiência, tornando-se incapaz de exercer a função
conselheira em virtude de seu isolamento. No livro e no filme, o processo de narrativa da
memória se dá por auxílio do distanciamento temporal. O soldado que relata os fatos vividos
em 1978 e 1982 não é mais o soldado que os presenciou, nem Mauro-narrador, representado
por uma voz in off no filme é o mesmo garoto que esteve no Bom Retiro.
Chegamos, a partir dessa observação, ao que Silviano Santiago chama de narrador
memorialista, contemporâneo, porém diferente do narrador pós-moderno, que transmite uma
“sabedoria” derivada de experiências extrínsecas a ele. Já o narrador memorialista,
considerando-se mais experiente, “fala de si mesmo enquanto personagem menos experiente,
extraindo da defasagem temporal e mesmo sentimental [...] a possibilidade de um bom
conselho em cima dos equívocos cometidos por ele mesmo quando jovem.” (SANTIAGO:
2002, p. 55- grifo do autor)
Ora, nem no livro nem no filme os narradores se colocam neste papel, abstendo-se de
julgar os fatos vividos. O que ocorre é a ação de narradores que tentam posicionar-se de forma
neutra quanto ao comprometimento com a ideologia do regime, e portanto, não tentam
recuperar as vivências passadas para entendê-las ou aprisioná-las. Sabem que a fratura da
narrativa se impõe a partir do instante em que resolvem recolher os restos do passado, o que
despreza a relação intrínseca entre experiência e narração. A este narrador, chamamos de
narrador enviesado da memória. Por ser enviesada, sua narração serve-se de outros acervos,

grifo do autor.

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periféricos a sua experiência, e que se compõem de histórias de costumes de um cotidiano
coletivo amortecido pelos anos. São acervos desprezados pela narrativa pedagógica da nação,
ainda que tenham força para registrar os efeitos do passado e sua relação com o presente.

III- FUTEBOL E POLÍTICA


Embora sejam narrativas pós-ditatoriais, Duas vezes Junho e O ano em que meus pais
saíram de férias não trabalham a questão da violência dos regimes militares a partir de
testemunhos ou de registros da mídia. É o futebol, enquanto simbologia estrategista que
permite a seus autores construir um panorama diverso do que foram os anos 70 para aquelas
duas nações latino-americanas. No caso dos protagonistas, pode-se perceber, por exemplo,
que tanto Mauro como o recruta, no início das respectivas narrativas, se colocam em posição
de defesa em meio à violência daqueles anos. Mauro, pela própria inocência infantil, inicia o
filme persistindo (até certo ponto acreditando) na idéia de que os pais haviam saído de férias e
que logo retornariam. Da mesma maneira, o soldado passa boa parte do livro venerando a
honra do Doutor Mesiano, a quem se considera quase amigo.
O futebol entra em cena primeiramente como máscara pacificadora da ditadura militar.
Patrocinado indiretamente pelos governos tanto no Brasil como na Argentina, o esporte
passaria a servir, nos anos 70, à proliferação da ideologia de nação monumentalizada e
homogênea. A aparente harmonia é veiculada na metáfora povo/time, como exemplifica o
comentário de Mauro na primeira partida da seleção brasileira, quando o narrador comenta
que “no dia três de junho de 1970 o Brasil inteiro parou”.
No caso brasileiro, é a vitória da seleção, em 1970, que funciona como intensificador
da anestesia da realidade, proporcionando um esquecimento, ainda que momentâneo, da
repressão política. É interessante observar, no filme, a integração dos moradores do Bom
Retiro diante da televisão para assistir aos jogos, pois a vitória no futebol era uma imagem
que todos queriam ver, ao contrário da imagem da denúncia da violência, explicitada nos
muros pichados, por exemplo. A realidade parecia mesmo ficar do lado de fora ainda que a
polícia persistisse em invadir faculdades, teatros e até casas.
Para nossos vizinhos, o futebol teve semelhante papel. Em 1978, sediando a Copa e
acabando por chegar à final, a Argentina acreditava na certeza de vitória. O oposto, portanto,

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significava ter que se desligar do estado onírico em que se encontravam, como conjetura o
recruta, no livro de Kohan, enquanto espera o jogo contra a Itália terminar:

Durante duas horas, enquanto durasse a partida, sabíamos que nada ia acontecer. Se
a Argentina ganhasse, até podia ser que a noite inteira passasse sem novidade. Era
melhor não imaginar o que podia acontecer se perdesse. Mas isso nunca tinha
ocorrido e não tinha porque acontecer. (KOHAN: 2005, p.47)

Ganhar ou perder a partida de futebol passa a ter dimensões simbólicas importantes no


terreno da política, que se instaura como um jogo a ser disputado. Neste, o inimigo não é
visível ou móvel – pode estar encoberto pelas mínimas ações. Não é à toa que Martin Kohan
insere, na narração do recruta, a descrição de táticas esportivas, que podem ser lidas no
contexto futebolístico ou bélico (táticas de tortura ou de combate ao inimigo, por exemplo), o
que explicita a dubiedade do Mundial naqueles anos. Ilustrando essa idéia, cito o seguinte
trecho do livro: “Quando o contrário apresenta uma defesa fechada, convém não ensaiar
ataques aéreos frontais, porque são fáceis de neutralizar e terminam por desmoralizar o lado
atacante”( KOHAN; 2005, p.53). Vale lembrar que o principal centro de tortura argentina, a
ESMA (Escola Mecânica da Armada) ficava a poucos metros do monumental estádio de
Nuñez. Parece improvável, naqueles anos, separar o futebol da política, ainda que esta
quisesse se apropriar do esporte para fortalecer seu aparato ideológico. Pensar em um ataque
no gramado não era muito diferente de pensar um ataque de resistência à ditadura. O espaço
pode ser visto, então, não só como um ponto geográfico, mas como uma localidade cultural,
na qual se produzem discursos diversos e até paradoxais. Na verdade, não havia a
possibilidade um discurso convincente que sustentasse para a nação a invencibilidade no
esporte ou na política e a tendência de incorporar o discurso do futebol e do governo produz
um novo tipo de discurso, no qual a fragmentação mostra-se mais eloqüente do que a palavra.
A narração fragmentada em ambas as obras se mescla a comentários futebolísticos e
divagações pessoais. Quanto a este aspecto, Beatriz Sarlo explica que a fragmentação é
intrínseca no próprio discurso de memória:

O aspecto fragmentário de toda memória é evidente. Ou se deseja dizer algo mais


que isso, ou simplesmente se está jogando sobre a pós-memória aquilo que se aceita
universalmente desde o momento em que entraram em crise as grandes sínteses e as

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grandes totalizações: desde meados do século XX tudo é fragmentário. (SARLO;
2007, p.98)

Entretanto, é o mesmo futebol que induz à percepção da realidade, diferente da


estampada pelas partidas do Mundial. Diante dos próprios conflitos e dúvidas pessoais, torcer
já não podia significar somente acompanhar, mas torcer no sentido de desviar o olhar. Mauro,
que já no primeiro jogo se incomodava com os inusitados acontecimentos, percebe isso
quando, ao ser questionado sobre a possível vitória do Brasil, lembra, através do narrador in
off: “Mas tava tudo tão esquisito, que até eu comecei a duvidar...”. A expressão “até eu”,
sugere que não há isento no espetáculo da violência ditatorial. Da mesma maneira, o soldado
de Duas Vezes Junho, se mostra perturbado diante da cena dos torcedores derrotados saindo
do estádio e percebe que a coesão do time/povo poderia ser apenas uma fantasia do futebol:
“Ao vê-los sair abrumados, abatidos do estádio, pensei que estranhamente tinham, ao mesmo
tempo, a aparência dos inocentes e a aparência dos que não são tão inocentes.” (KOHAN;
2005, p.61). Este comentário, aparentemente relativo aos torcedores esportivos, sugere que a
História das ditaduras militares se serviu também do silêncio daqueles que a testemunharam
indiretamente.
A defensiva diante dos acontecimentos é amparada na passividade, já que nenhum dos
dois narradores/protagonistas assume uma postura inconformada diante dos fatos. Se pautam
apenas pela perplexidade. Diante das próprias dúvidas pessoais como a volta dos pais ou a
carreira no exército, os personagens se encontram limitados para agir e se amparam em uma
falseada idéia de neutralidade que, entretanto, não permite uma fuga plena. Um abrandamento
deste conflito é a progressiva humanização pela qual passam Mauro e o recruta argentino. Tal
humanização ocorre por meio do encontro com personagens paralelos a sua própria dor:
respectivamente, Shlomo e a mulher torturada.
Shlomo representa, no universo infantil de Mauro, a descoberta de um outro mundo,
de crenças, hábitos e modos de pensar totalmente diferentes do seu. O personagem é idoso,
judeu, mora sozinho e o convívio entre os dois se dá inicialmente pelo confronto de atitudes.
Com o decorrer da trama, entretanto, a solidariedade, que surge através da espera, vai
aproximando os dois: assim como Mauro passa os meses esperando os pais, o judaísmo de
Shlomo se fundamenta na espera de um messias. É pela espera, portanto, que a angústia busca

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resposta na humanização em relação ao outro. Antes, se colocava despreocupadamente
ocupado com o futebol, tempos depois Mauro encontra amparo familiar no velho judeu do
Bom Retiro.
Em Duas vezes Junho, o encontro do recruta com a mulher torturada é o ponto chave
para uma tímida mudança de atitude do personagem. Durante uma visita com o Dr. Mesiano
ao centro de tortura, para resolver a questão do referido bilhete do início do livro, em um
momento em que se encontrava sozinho, o protagonista é abordado pela mulher através de
uma fresta na parede. Ela lhe pede socorro e insiste que ele não era como os outros. Esse
encontro, quase clandestino, provoca então, no rapaz, uma relutante percepção da violência do
regime, como se percebe no trecho em que ele comenta sobre o centro de torturas, após ter
saído de lá:
Passou o trem e eu senti. Durante a noite não tinha passado nenhum. Ou talvez tinha
passado algum, sem que eu me desse conta. A gente se mete nesse tipo de lugar e
perde de vista tudo aquilo que existe ao redor. Por isso, seus quartos não têm janela
e, se as têm, nunca se abrem. (KOHAN; 2005, p.114)

O convívio com a alteridade faz cair por terra a idéia de homogeneidade e harmonia de
povo/time metaforizada pelo futebol. O olhar forçoso sobre a individualidade do sujeito, não
mais da coletividade, pode não responder às questões suprimidas pela censura e pelo medo,
mas faz com que se tornem (e até retornem) memorizáveis no futuro. As fraturas da memória
não são arquiváveis, mas a subjetividade de que se compõem injeta um estranhamento
necessário à consciência de incompletude. Ou seja, se por um lado, o lembrar os fatos vividos
provoca uma impressão de poder organizá-los, por outro, esses surgem como imagens ligadas
não somente ao passado, mas também ao ato em si de lembrar, no presente. A memória então
deixa de ser individualmente centrada. Ao contrário, ramifica-se infinitamente com outras
memórias individuais. É interessante apontar, no romance de Kohan, o trecho em que o
soldado, quatro anos depois, lê o jornal: “Volto às páginas de esportes. Noto que, com a
escassa exceção de apenas dois integrantes, a formação da Argentina se conservou idêntica à
da vez anterior, como se os anos não tivessem passado.”(KOHAN; 2005, p.124). Se o tempo
parece estático, o mesmo não ocorre com ele, sujeito testemunhal, pois sua leitura passa,
então, a percorrer também os crimes de tortura noticiados. A cumplicidade passiva não
oferece mais garantias de sobrevivência.

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IV- CONCLUSÃO
A leitura do romance Duas vezes Junho e do filme O ano em que meus pais saíram de
férias nos permite elaborar, a partir de discursos contemporâneos, literários e fílmicos,
reflexões importantes sobre a violência da opressão ditatorial dos governos militares na
Argentina e no Brasil, nos anos 70 e que ainda ecoam no presente.
As obras em questão são inovadoras ao apresentarem o que chamamos de um narrador
enviesado da memória, que é diferente do memorialista tradicional, especialmente por sua ida
a acervos periféricos para compor seu arquivo. Descartando o que lhe oferecem os arquivos
testemunhais, o narrador enviesado da memória procura outras vias de narração do passado,
que lhe permitam investigar memórias cuja visibilidade foi apagada ou rasurada pela História.
Nas obras em questão, é o futebol, tema aparentemente distanciado do engajamento político,
que serve de ponte para os narradores – um soldado e um menino - elaborarem uma
possibilidade de reflexão sobre a experiência dos fatos vividos nos anos dos regimes militares.
Era o esporte que interferia (e talvez o faça ainda hoje) no cotidiano das pessoas comuns mais
incisivamente do que a violência da opressão política e por isso mesmo, atuava como uma
espécie de suporte para o enfrentamento ou a passividade nos acontecimentos.
Os eventos dos Mundiais na Argentina e no Brasil, naquela época, trazem à tona duas
representações: primeiro, o futebol como mascaramento promovido pelos regimes ditatoriais
militares e segundo, de modo paradoxal, como possibilidade de suscitar um sentimento de
estranhamento da realidade. Notemos, contudo, que a primeira representação é dirigida ao
coletivo, já que se baseia nos conceitos de homogeneidade e harmonia. Já a segunda, depende
da constituição do sujeito em relação ao Outro e, portanto, de sua predisposição a um
envolvimento não neutro com os fatos.
A condição de subalternidade dos protagonistas analisados – a criança e o soldado-
permite uma articulação política da escrita da memória através de caminhos diversos da
monumentalização ou do testemunho afiançados pela sociedade. Escreve-se sobre a opressão
do regime militar dos anos 70 através dos eventos do cotidiano, subvertendo a seleção do que
é memorável, ou seja, não somente das lembranças coletivas, mas das individuais (e por isso,
mais subjetivas). Daí, a passagem de um estado de passividade a um estado de perplexidade

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diante do passado. Não é possível, depois da experiência vivida, ver a nação da mesma
maneira e os arquivos da experiência do passado se obrigam a serem abertos, revirados e
transformados em novos arquivos presentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENJAMIN. Walter. O narrador.Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e
Técnica, Arte e Política. 4 ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. pp.
197-221.

Clube de leituras -comentários sobre Duas vezes Junho. In: O BISCOITO FINO E A
MASSA, 8 de junho de 2006, http://www.idelberavelar.com/

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo. Uma impressão Freudiana. Trad. Cláudia de Moraes
Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

DICIONÁRIO AURÉLIO ELETRÔNICO – SÉCULO XXI, versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.

HUYSSEN, Andréas. Passados presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela
memória. Arquitetura, Monumentos, Mídia. Trad. Sérgio Alcides. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.

KOHAN, Martín. Duas vezes junho. Trad. Marcelo Barbão. São Paulo: Amauta Editorial,
2005.
------------ entrevista a Idelber Avelar. In:O BISCOITO FINO E A MASSA, 9 de junho de
2006, In: O BISCOITO FINO E A MASSA, http://www.idelberavelar.com/

O ano em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburguer. Brasil: Buena Vista
International, 2006, dvd (110min.), son., color.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa
Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: Nas malhas da letra. Rio de Janeiro,
Rocco, 2002, pp.44-60.

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