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PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

© 2014 Lumen Juris.


2017 2ª edição
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N665p
Niebuhr, Pedro
Processo administrativo ambiental / Pedro Niebuhr. 3. ed.– Belo Horizonte : Fórum, 2021.

332 p. E-book

ISBN: 978-85-5518-069-5
1. Direito Administrativo. 2. Direito Ambiental. 3. Licenciamento ambiental. 4. Fiscalização
ambiental. I. Título.

CDD: 341.3
CDU: 342.9

Elaborado por Daniela Lopes Duarte - CRB-6/3500

NIEBUHR, Pedro. Processo administrativo ambiental. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2021. 332 p. E-book. ISBN
978-65-5518-069-5.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
29

VI e VII do artigo 23 da Constituição da República42), e pressupondo que as questões


relacionadas ao ambiente demandam uma abordagem multi e interdisciplinar, recai
sobre a Administração Pública a necessidade de dotar-se de pessoal e equipamentos
adequados a tais demandas. A disponibilidade, pelo ente federado respectivo, de
estrutura e pessoal adequados é, inclusive, prevista na legislação de regência como
pressuposto incontornável para o exercício pleno das competências constitucionais de
proteção ambiental.43
É, em síntese, o que conclui Amado Gomes:

Pesar a incerteza sobre a evolução dos factores de risco, os benefícios aliados à decisão e
as lesões eventuais por ela provocadas, à luz da consideração dos bens jurídicos em jogo,
é uma operação de prognose que só a Administração tem capacidade – e legitimidade
constitucional – para levar a cabo.44

Principalmente pelos motivos elencados, diz-se que o Direito Ambiental encontra


no Direito Administrativo um espaço de atuação destacado.45 Os deveres imputados
à Administração, relacionados à antecipação dos danos e riscos (através de suas mais
diversas formas), que se relacionam com a disponibilização de uma estrutura técnica

funções estatais) o campo de atuação da esfera administrativa em questões ambientais.

tende a transformar em administrativa a maior parte das relações jurídicas ambientais.46

Direito Ambiental seja feito, prioritariamente, sob a perspectiva administrativista, que


se encontra em melhores condições para responder às questões e demandas suscitadas
pelo primeiro.

2.3 O sentido e o papel do processo administrativo. De sua evolução


histórica à perspectiva contemporânea
A atividade administrativa, inclusive e especialmente aquela atinente à proteção
do ambiente, não se concretiza espontaneamente, não surge a partir de um “passe de

42
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...]
VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII
43
Os artigos 5º e 15 da Lei de Competências Ambientais (Lei Complementar nº 140/11) determinam a hipótese
de exercício de competência supletiva por outro ente federado diante da inexistência de órgão ambiental
capacitado ou de conselho de meio ambiente pelo ente titular. Por órgão ambiental capacitado diz-se aquele que
possui técnicos devidamente habilitados e em número compatível com a demanda das ações administrativas
exercidas.
44
GOMES, Carla Amado.
Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 398.
45
Para autores como Maria Alexandra Aragão, José Eduardo Figueiredo Dias e Cláudia Maria Cruz Santos, a proe-
minência do Direito Administrativo na aplicação do Direito Ambiental deve-se a atributos como a imperativida-
de do ato administrativo (ARAGÃO, Maria Alexandra; DIAS, José Eduardo de Oliveira Figueiredo. SANTOS,
Cláudia Maria Cruz. Introdução ao Direito do Ambiente. Lisboa: Universidade Aberta: 1998. p. 115).
46
SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito: lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002. p. 56.
PEDRO NIEBUHR
30 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

mágica”.47 Assim como também não existem decisões “one shot”,48 ou seja, no Estado
de Direito as decisões administrativas “não brotam da cabeça de nenhum déspota
iluminado”,49 como refere Pereira da Silva. Elas se desenvolvem por meio de processos
administrativos (ou procedimentos, segundo a doutrina estrangeira50), imposição que
é justamente a marca distintiva da atuação do Poder Público em comparação com a
atuação privada.51
A imprescindibilidade da atividade administrativa de se desenvolver segundo

o processo administrativo surgiu como uma manifestação de poder do governante de


regulamentar internamente a atividade administrativa desenvolvida por seus subor-
dinados. O processo não era visto, num primeiro momento, como instrumento para
balizar a relação da Administração com os cidadãos.52
A mudança de percepção adveio ora em decorrência do trabalho jurisprudencial
-
lação sobre processo administrativo – Lei nº 21/1925),53 ora com as primeiras legislações
sobre o tema em países como Espanha (Lei de Procedimento Administrativo de 19 de
outubro de 1889 – Lei Azcárate).54 Tanto nos modelos de inspiração jurisprudencial
quanto nos de inspiração legislativa, em comum está o fato de que a atividade da
Administração não se desenvolve livremente, mas sim diante da estreita observância de
procedimento preordenado, postulado que constitui um autêntico princípio de Direito
Administrativo contemporâneo.55
Desde sua institucionalização, um longo caminho foi percorrido, tendo o fenôme-
no da processualização administrativa recebido explicações a partir de diferentes causas.
Enterría e Fernández, por exemplo, enxergam o processo administrativo como
um contraponto aos poderes e privilégios que a ordem jurídica atribui à Administração

47
Segundo a expressão de Bandeira de Mello (MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São
Paulo: Malheiros, 2012. p. 497).
48
A expressão é utilizada por Sabino Cassese: “Toda organización compleja – y no hay duda de que las
Administraciones públicas constituyen las organizaciones más complejas de las sociedades modernas – ordena
one shot: esto es, ninguna decisión se agota en un solo acto”
(CASSESE, Sabino. Las bases del derecho administrativo. Tradução para espanhol: Luis Ortega. Madrid: Instituto
Nacional de Administración Pública, 1999. p. 249).
49
SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito: lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002. p. 124.
50
Tal qual esclarecido na introdução deste estudo, optou-se por utilizar o vocábulo “processo” administrativo no
lugar de “procedimento” por razões práticas e de conveniência. As referências estrangeiras indicadas nesta se-

trabalho, o termo “procedimento” usado nos originais será substituído por “processo”, com a ressalva de que,
ao contrário do que ocorre em nossa realidade, “procedimento” e “processo” no âmbito de sistemas de dupla

51
SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Principios de Derecho Administrativo. Vol. II. 2. ed. Madrid: Editorial
Centro de Estudios Ramón Areces, 2000. p. 56
52
PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido: Las bases
constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la discrecionalidad. Valladolid: Editorial
Lex Nova, 2001. p. 50.
53
LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. O procedimento administrativo
particulares. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 43, 45.
54
PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido: Las bases
constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la discrecionalidad. Valladolid: Editorial
Lex Nova, 2001. p. 54.
55
GIANNINI, Massimo Severo.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
31

Pública. Para a consecução de interesses gerais, a Administração assume uma série de


prerrogativas que não encontram correspondentes no Direito Privado. Especialmente,

unilaterais) e executar suas decisões por procedimentos próprios. Além disso, seu pa-
trimônio goza de estatuto especial.
Junto a esses privilégios, decorrem restrições. A Administração é menos livre
para agir do que o particular: não pode contratar quem quiser, mas deve observar
um procedimento para tanto; sua vontade não pode ser livremente formada; ela não

Administração é obrigada, pela lei, a seguir um processo de formação de vontade cuja


56
Trata-se de um mecanismo

privilégios e garantias.57
Em sentido parecido, Juan Alfonso Santamaría Pastor escreve que a proces-
sualização consubstancia-se numa reação natural do Estado Liberal de Direito face

regime absoluto, consolidou-se a tendência em atribuir o exercício de certas potestades


a autoridades não judiciais, não somente para retirá-las das mãos dos juízes, mas tam-

trâmites processuais judiciais lentos. Era o que se convencionou chamar de autoridades


. Na concepção da teoria da separação de poderes, essas potestades foram
deixadas nas mãos das novas autoridades administrativas, que se submeteram a con-
dições formais muito parecidas com as judiciais, conjugando-se a existência de uma
Administração forte com a garantia dos direitos dos cidadãos, de atuação dos agentes
administrativos em sujeição ao direito.58
Afora as razões de ordem política, a processualização da atividade administrativa
atendia a motivos de natureza prática. Especialmente no século XX, a Administração
experimentou um crescimento orgânico extraordinário, o que implicou a normatização
funcional das organizações, fato indispensável para assegurar o princípio da hierarquia e
racionalizar o funcionamento da Administração. Por meio da sujeição dos subordinados
a fórmulas predeterminadas, tornou-se possível limitar a improvisação e a excessiva
criatividade, garantindo de algum modo o cumprimento das ordens emanadas da
cúpula com maior facilidade. Noutro lado, a atuação conforme ritos predeterminados
passou a ser percebida como requisito da boa ordem interna das organizações, evitando

comportamento e o resultado da atividade.59

56
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Vol. I. 11. ed.
Madrid: Civitas Ediciones, 2002. p. 49-50.
57
Sobre o equilíbrio entre privilégios e garantias, apontam os autores: “lo que se trata es de perseguir y obtener

ciudadanos” (GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo.


Vol. I. 11. ed. Madrid: Civitas Ediciones, 2002. p. 51).
58
SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Principios de Derecho Administrativo. Vol. II. 2. ed. Madrid: Editorial
Centro de Estudios Ramón Areces, 2000. p. 56.
59
SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Principios de Derecho Administrativo. Vol. II. 2. ed. Madrid: Editorial
Centro de Estudios Ramón Areces, 2000. p. 56-57.
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32 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

Santamaría Pastor credita ainda o recurso ao processo administrativo à pressão


da burocracia, diante da criação de rotinas facilmente observáveis. Os processos admi-
nistrativos, ao mesmo tempo conferem aos agentes públicos garantias em face do poder
60

A par de suas multifacetadas causas, o processo administrativo tornou-se uma


realidade que adquiriu relevância destacada dentro do Direito Administrativo e, pelas
relações de interação já expostas, também no Direito Ambiental. À semelhança da
análise que José Joaquim Gomes Canotilho faz em alusão à realidade portuguesa,61 a
investigação do tema decorre da necessidade imposta também pela Constituição da
República brasileira, que prevê o instituto como mecanismo de garantia dos direitos do
cidadão nos incisos LIV e LV do seu artigo 5º. Ademais, subscrevendo as ponderações
de Canotilho, o estudo de processos administrativos faz-se indispensável, no âmbito
da ciência jurídica, em decorrência da posição de proeminência que ele passa a ocupar
-
nistrativo). E, no campo das Ciências da Administração, em atenção à necessidade de

função garantística, assegura que as decisões administrativas vinculem-se à lei e reali-


62

Apesar de tratar-se de pressuposto para a validade de um conjunto vasto de


decisões, além de pautar as relações com terceiros e funcionar como elemento funda-
mental para a obtenção de racionalidade ao atuar da Administração, a importância do
processo administrativo nem sempre foi, como ainda não é, devidamente percebida

instituto, bem como no caótico quadro normativo que o regulamenta.


O processo administrativo costuma ser abordado pelos tratadistas de forma breve,
por vezes desacompanhado de aprofundamento teórico sobre sua natureza jurídica,
-
tários – que inicialmente remetiam à apuração de faltas disciplinares dos servidores
públicos63 para só aos poucos estender-se a toda atividade administrativa – apresentam
característica essencialmente descritiva daquilo que foi positivado no ordenamento bra-
sileiro através da Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/99).64 Dentre as

60
SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Principios de Derecho Administrativo. Vol. II. 2. ed. Madrid: Editorial
Centro de Estudios Ramón Areces, 2000. p. 56-57.
61
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Procedimento adminstrativo e defesa do ambiente.
Jurisprudência, Coimbra, n. 3790-3801, p. 135, 1990/1991.
62
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Procedimento adminstrativo e defesa do ambiente.
Jurisprudência, Coimbra, n. 3790-3801, p. p. 135-169, 1990/1991.
63
Tanto que muitos autores, ao referirem-se a processo administrativo, versam sobre o expediente que baliza a
atividade de sancionamento do agente público em relação ao exercício de suas funções (processo disciplinar).

iniciativas da Administração, que envolvem o servidor público, possibilitando-lhe, porém, a mais ampla defesa,

(CRETELLA JÚNIOR, José. Prática do Processo Administrativo. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 51)
64
Nesta direção parece ser a análise de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 26. ed. São Paulo:
Atlas, 2013. p. 682 e seguintes), José dos Santos Carvalho Filho (Manual de Direito Administrativo. 23. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 1067 e seguintes), Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro. 33. ed.
São Paulo: Malheiros, 2007. p. 685 e seguintes), dentre outros.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
33

exceções, destacam-se, entre outros, os escritos de Odete Medauar (A processualidade


no Direito Administrativo65), Adilson de Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (Processo admi-
nistrativo66) e Carlos Ari Sundfeld (Considerações sobre o processo administrativo67).

como principal efeito a desconsideração de importantes nuances acerca do instituto, ou


até mesmo sua incompreensão. A conceituação que parte relevante da doutrina nacional
faz do processo administrativo – como o conjunto de atos, preordenados e encadeados

68
inapta para explicar o fenômeno
em toda a sua complexidade.

2.3.1 O desenvolvimento histórico da teoria do processo administrativo


-

debate acerca do entendimento que se criou, desenvolveu e consolidou do processo


administrativo. Dentre as diversas contribuições que costumam ser apontadas como
paradigmáticas pela literatura especializada, pelo menos cinco mostram-se essenciais à
compreensão da evolução histórica da teoria do processo administrativo: a posição de
Adolf Merkl, as elaborações de Aldo Sandulli e Feluciano Benvenuti e, recentemente,
os contributos de Massimo Severo Giannini e Mario Nigro.69
A teoria de Merkl, da década de 20 do século XX, preocupa-se com a natureza das
funções desenvolvidas pelo Estado; em especial em revelar os traços de identidade (ou
inexistência de diferenças substanciais) entre as atividades administrativa e jurisdicional.
Merkl atribui relevância até então ímpar aos processos de formação da vontade estatal
ao preceituar que as funções estatais são metas que não se pode alcançar senão por meio
de determinados caminhos. Assim entende que os processos judiciais e administrativos
são caminhos que conduzem à consecução dos atos judiciais e administrativos, metas
das respectivas funções.70
Desse modo é que Merkl chega à seguinte formulação: “no fundo, toda adminis-
tração é procedimento administrativo, e os atos administrativos se apresentam como
mero produto do procedimento administrativo”.71

65
MEDAUAR, Odete. A processualidade no Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 2008.
66
DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Processo Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
67
SUNDFELD, Carlos Ari. Considerações sobre o processo administrativo. Revista de Direito Administrativo, São
Paulo, n. 130, out./dez. 1977.
68
Vide ANTUNES, Luís Filipe Colaço. O procedimento administrativo de avaliação de impacto ambiental. Coimbra:
Almedina, 1998. p. 109-110.
69
João Loureiro, por exemplo, acresce ao rol das principais contribuições doutrinárias no desenvolvimento do

(LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. O procedimento administrativo


particulares. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 44-53). Um elenco muito mais exaustivo e amplo de contributos
ao processo administrativo é oferecido por Pereira da Silva (SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca
do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003. p. 301-442).
70
MERKL, Adolf. Teoría General del Derecho Administrativo. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1935. p. 278.
71
Tradução livre de: “En el fondo, toda administración es procedimiento administrativo, y los actos administrativo
se nos presenteam como mero productos del procedimiento administrativo” (MERKL, Adolf. Teoría General del
Derecho Administrativo. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1935. p. 279).
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34 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

Como Merkl rechaça a diferença material entre as atividades administrativa e


judicial – ambas se referem à aplicação do Direito72 –, reputa que a razão política para a
positivação do Direito Processual administrativo é possibilitar que os sujeitos obtenham
seu direito em cada caso particular, pelas autoridades administrativas, por intermédio
das mesmas garantias de juridicidade, ou recebam a mesma aplicação justa do Direito
Administrativo material, ou, ainda, tenham a mesma segurança das relações jurídicas
que se obtém na via judicial. Merkl conclui que a necessidade de observar certas formas

autoridade, torna mais previsível o resultado desta atuação e concede ao interessado a


73

administrativo nas relações jurídicas das quais a Administração faz parte – por ser o
necessário caminho que deve ser percorrido para alcançar o ato administrativo – como
também, ao equiparar o processo administrativo ao judicial, ressalta a importância
da função de garantia aos indivíduos que o primeiro guarda em face da atuação da
-

A concepção de Merkl gerou intensa discussão teórica acerca da natureza do


processo administrativo, especialmente em países que adotaram o modelo de dupla
jurisdição (uma justiça administrativa ao lado da comum). O que estava em jogo era a
(des)necessidade de aplicar as garantias processuais judiciais ao processo desenvolvido
no âmbito da própria Administração.
A noção que se consolidou e prevaleceu, nos países de dupla jurisdição, acen-
tuou a diferença entre as funções administrativa e judicial. O centro da atenção, diante
disto, passou a ser o exame dos pressupostos necessários ao recurso para os tribunais
administrativos, voltando-se os esforços para a análise do resultado propriamente dito
da atividade administrativa ativa – o ato administrativo. O papel dos tribunais adminis-

Assim é que a doutrina passou a outorgar especial atenção aos atributos do

pela Administração, e, nesta condição, suscetível de causar lesão à esfera jurídica do


-
ratórios são praticamente irrelevantes), a ciência jurídica do período desconsiderou o
papel autônomo do processo administrativo.74 Com base numa noção difundida por
Ugo Forti, o processo administrativo era percebido como sendo um tipo de ato, cujos
momentos eram entendidos como um todo único, reconduzível ao ato administrativo
ar o processo administrativo como um ato-procedimento.75

72
MERKL, Adolf. Teoría General del Derecho Administrativo. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1935. p. 38.
73
MERKL, Adolf. Teoría General del Derecho Administrativo. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1935. p. 283.
74
CASSESE, Sabino. Las bases del derecho administrativo. Tradução para espanhol: Luis Ortega. Madrid: Instituto
Nacional de Administración Pública, 1999. p. 223.
75
Vide LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. O procedimento administrativo
particulares. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 46, e; SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do
acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003. p. 347.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
35

No lugar de encarar o processo administrativo como algo estático – um ato ad-


ministrativo unitário – Sandulli propôs, na década de 40 do século XX, que ele fosse
estudado a partir de uma perspectiva dinâmica. O autor defende a investigação do
procedimento enquanto estrutura de um fenômeno a partir da forma pelo qual ele se
desenvolve. Oferece, assim, uma abordagem formal do processo administrativo, por
meio da qual designa não somente a série de fatos isolados, mas, principalmente, o
modo como eles se sucedem no tempo.76 E, nesta perspectiva, constata que este modo
de desenvolvimento acontece em três fases ou etapas: a preparatória, a constitutiva e
77

Assim a concepção de Sandulli consagra a noção de processo administrativo


78
É essa
a síntese de processo administrativo na qual a mais prestigiada doutrina de Direito

Bandeira de Mello, para quem o processo administrativo corresponde a “uma sucessão

e conclusivo”;79
o “conjunto de atos ordenados, cronologicamente praticados e necessários a produzir
uma decisão sobre certa controvérsia de natureza administrativa”;80 e por Hely Lopes
Meirelles, que o conceitua como “conjunto de atos coordenados para a obtenção de
decisão sobre uma controvérsia no âmbito judicial ou administrativo”.81
Apesar dos préstimos da concepção de Sandulli para a compreensão do fenômeno
– notadamente ao recusar uma noção estática e unitária do processo administrativo e
ressaltar que suas fases eram suscetíveis de serem consideradas autonomamente –, sua

da atuação administrativa.82 Essa perspectiva, ainda reducionista (dos atos praticados

que, aparentemente, não foi da mesma forma percebido pela doutrina nacional (aqui, o
processo administrativo ainda é visto, majoritariamente, como um iter de atos sequen-

Em artigo publicado em 1952, Benvenuti inaugura a abordagem funcional do


processo administrativo ao entendê-lo como a forma da função administrativa.83 84

76
SANDULLI, Aldo M. Il procedimento Administrativo
77
SANDULLI, Aldo M. Il procedimento Administrativo
78
SANDULLI, Aldo M. Il procedimento Administrativo
79
MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 495.
80
GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 1002.
81
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33. ed. Atualizado por Eurico de Andrade Azevedo,
Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 685.
82
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003. p. 348.
83

Feliciano. Fuzione amministrativa, procedimento, processo. , Milão, p. 128,


1952).
84

considera-se o momento de realização da concretização do poder num ato. Do ponto de vista subjetivo, refere-se

ou, ainda, a capacidade do sujeito ou competência do órgão em relação ao ato (BENVENUTI, Feliciano. Fuzione
amministrativa, procedimento, processo. , Milão, p. 122 e 123, 1952).
PEDRO NIEBUHR
36 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

Considerando que o processo administrativo é visto como instrumento pelo qual um


poder abstrato passa para uma situação concreta, em Benvenuti tem-se a função como
o exercício do poder mediante o processo.85
A relação entre o processo e a função administrativa tem o principal mérito de
elevar o primeiro a uma posição ímpar na própria análise do Direito Administrativo.
Ao passo que nas teorias anteriores a relevância do processo administrativo foi só
paulatinamente sendo percebida, com Benvenuti alcança o ápice; o processo adminis-
trativo passa de coadjuvante a protagonista. O estudo da função administrativa (no
qual gravitam, dentre outras, as regras de organização e atuação da Administração
Pública, além da própria atividade de consecução do interesse público) deve, agora,
ser realizado a partir do processo administrativo.
Giannini parte da perspectiva funcional do processo administrativo proposta
por Benvenuti, subscrevendo a tese de que ele constitui a forma da função admi-
nistrativa. Para Giannini, a possibilidade de prática de atos administrativos fora de
processos é apenas excepcional,86
Direito Administrativo. Ademais, Giannini constata que o desenvolvimento da função
administrativa por meio de processos é resultado de um percurso histórico: se no pas-
sado a função administrativa desenvolvia-se de forma liberal ou por regulamentação
pontual, o Estado pluriclasse (e nele o de democracia popular) demanda que a função
se desenvolva inteiramente de forma preordenada pela norma.87
A procedimentalização, anota Giannini, é o modo pelo qual se garante e estabiliza

O procedimento é um modo geral de desenvolvimento da atividade pública, um gênero


que compreende diversas espécies. Assim é que o processo judicial é o procedimento
concernente à atividade do poder jurisdicional, ao passo que o processo administrati-
vo é o procedimento atinente à atividade desenvolvida pelo poder administrativo, é a
forma da atividade administrativa.88
Giannini empreende uma exaustiva teorização e sistematização acerca do insti-
tuto, dedicando quase todo o segundo volume de seu ao tema. À

em função da natureza do ato administrativo perseguido, dividindo-os em processos


-
89
), organizativos (de âmbito
interno), de exercício de potestade de conteúdo preceptivo (regulamentos ou planos
regulatórios), sancionatórios e meramente executivos (de execução a algum ato admi-
90
Para além desses, o autor

85
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Procedimento administrativo e defesa do ambiente.
de Jurisprudência, Coimbra, n. 3790-3801, p. 261, 1990/1991.
86
GIANNINI, Massimo Severo.
87
GIANNINI, Massimo Severo.
88
GIANNINI, Massimo Severo.
89
Os processos administrativos constitutivos distinguem-se em ablatórios (nos quais o sujeito sofre a privação
de um bem), concessivos (produzem um acréscimo de bem em favor do sujeito) e autorizativos (impedem
ou permitem que se faça alguma coisa, segundo o juízo da Administração). Também podem ser simples ou
complexos se resolvem um só interesse público (ex. licença de construção) ou uma pluralidade de interesses (ex.
plano urbanístico).
90
GIANNINI, Massimo Severo.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
37

busca de modo imediato o interesse público, ao passo que o segundo tem como objetivo
outros atos administrativos).91
A sistematização do processo administrativo comporta, em sua visão, uma aná-

contribuições está a análise funcional do processo e a questão dos interesses a serem


ponderados (públicos ou não públicos): o processo é um instrumento para disciplinar a
coexistência dos interesses.92
Em Giannini é de extrema importância a noção do princípio da livre introdução de
interesses. Se no processo administrativo a introdução do interesse primário (que é o
interesse público ao qual a função se relaciona) tem caráter necessário, a decisão admi-
nistrativa não pode prescindir do interesse secundário (que pode ser outro interesse
-
dentemente da capacidade, legitimação etc.).93 Sublinha-se, portanto, a indispensável
necessidade de ponderação dos interesses apresentados.94
Relacionada à introdução de interesses está a análise dos fatos apresentados
no processo. O autor esclarece que quem introduz um interesse no processo traz ao
conhecimento da Administração uma situação fática que existe, que está se tornando
realidade ou que pode vir a se tornar.95 Isso implica a necessidade da autoridade ad-

o fato como ele é apresentado pelo introdutor do interesse (seja o particular ou agente
-
do, traduzido no princípio da máxima aquisição de fatos, impõe a obrigação, à autoridade
competente, de colher o maior número de informações possíveis como condição de

a serem valoradas.96
sentido judicial, por ser uma atividade, no âmbito administrativo, menos rigorosa: um

no processo administrativo pode ser utilizado.97


A construção de Giannini é feita, portanto, a partir da perspectiva dos interesses,
o que ressalta a importância do processo enquanto mecanismo que viabiliza sua
necessária ponderação. Não só o interesse público corporificado na função diretamente
relacionada à autoridade/órgão merece consideração, como também devem ser
ponderados os demais interesses públicos e os interesses privados envolvidos. Esta
tese impõe um papel ativo à autoridade em termos instrutórios, que não pode ater-se
aos elementos trazidos ao processo pelo introdutor de interesse. Tais elementos devem
ser verificados e confirmados, além de buscados outros porventura disponíveis. Em

91
GIANNINI, Massimo Severo.
92

«compresenza degli interessi»” (GIANNINI, Massimo Severo.


Editore, 1993. p. 160).
93
GIANNINI, Massimo Severo.
94
GIANNINI, Massimo Severo.
95
GIANNINI, Massimo Severo.
96
GIANNINI, Massimo Severo.
97
GIANNINI, Massimo Severo.
PEDRO NIEBUHR
38 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

suma, todos os interesses (e, por consequência, todos os fatos e elementos trazidos
pelo introdutor do interesse) devem ser considerados e necessariamente ponderados
na decisão administrativa.
A contribuição de Nigro completa o panorama do desenvolvimento histórico da
teoria do processo administrativo. A partir da constatação das transformações operadas
pela crise do Estado liberal e das mutações na ideia de legalidade (com atribuição de
-
cesso administrativo assume uma nova perspectiva: deixa de ser método de realização
de uma legalidade/legitimidade para ser método de realização de uma legalidade/
justiça. Na atualidade “não se trata mais”, segundo o autor, apenas:

de controlar e assegurar a conformidade da atividade administrativa ao ordenamento


preexistente, mas de dar vida, com a participação e através do confronto de todos os
interesses envolvidos, a um justo e original arranjo de tais interesses.98

Não obstante defender a diferença entre as atividades administrativas e juris-


dicionais, Nigro rechaça, na realidade italiana, a perspectiva que vê o processo admi-
nistrativo como uma alternativa ao processo judicial (na produção de uma decisão
justa), reputando que ambos se relacionam numa perspectiva de complementaridade
e integração.99 Com isso o autor reforça a ideia de que a atividade administrativa não
pode desvincular-se do objetivo de realizar a justiça, para o qual, em alguns aspectos
(como nas possibilidades instrutórias), está em melhores condições de alcançá-lo do
que o Judiciário estaria.
O valor primário do processo administrativo, na teoria de Nigro, repousa no
nível da organização. O processo administrativo pertence ao mundo da organização,
não ao mundo do ato ou da atividade administrativa. Ele não se limita, diz o autor, a

sujeitos e interesses, que é, antes de mais nada, uma trama organizativa. Por tal razão

como se obtém a decisão. O que permite a efetiva comparação de fatos e interesses, e a

os poderes públicos e entre eles e os privados, além da adequada instrução.100


Em síntese, Nigro vê o processo administrativo como uma realidade de natureza
material e não uma mera sucessão de formalidades destinada à composição de interesses
públicos e privados.101 O processo administrativo funciona como estrutura de ligação

98

tutela giurisdizionale contro la pubblica amministrazione (il problema di una legge generalse sul procedimento
amministrativo). , Pavoa, Vol. XXXV, Série II, p. 261-262, 1980).
99
NIGRO, Mario. Procedimento amministrativo e tutela giurisdizionale contro la pubblica amministrazione (il
problema di una legge generalse sul procedimento amministrativo). , Pavoa, Vol.
XXXV, Série II, p. 266, 1980.
100
NIGRO, Mario. Procedimento amministrativo e tutela giurisdizionale contro la pubblica amministrazione (il
problema di una legge generalse sul procedimento amministrativo). , Pavoa, Vol.
XXXV, Série II, p. 273, 1980.
101
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.
p. 353-354.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
39

entre vários sujeitos na realização de uma função, e não como forma de exercício de
um poder.102 Ademais, ele deve realizar a Justiça num senso de integração e comple-
mentaridade ao processo judicial.
Das ideias ora expostas, observa-se que o processo administrativo assumiu, em
seu “nascimento”, uma perspectiva garantística dos direitos dos cidadãos, à seme-
lhança do processo judicial (Merkl). A autonomização do processo administrativo foi
feita através de sua caracterização como um mecanismo formal, de sucessão de atos
-

pelo qual a Administração é capaz de compor os interesses que lhes são apresentados
(Giannini). Só recentemente é que se constata, para além da natureza formal, que o
processo administrativo serve a propósitos materiais, de produção de decisões justas
diante de uma estrutura organizativa que permite o diálogo entre os mais variados
sujeitos e interesses em questão (Nigro).
Nenhum dos posicionamentos ora destacados é isento de críticas. O breve pa-
norama exposto serve, todavia, para demonstrar que o processo administrativo não
é um conceito evidente, pronto e unânime, um instituto supostamente revelado pela
legislação. Pelo contrário, trata-se de uma noção em constante evolução, a ponto de
alcançar, na doutrina estrangeira (notadamente a italiana), posição central no estudo
do próprio Direito Administrativo.
Torna-se essencial ao propósito da presente investigação avaliar como são perce-
bidas, na atualidade, as construções históricas da teoria do processo administrativo para
deduzir e conformar seu escopo. Noutras palavras, entender o que a ciência jurídica
reputa, hoje, como sendo o propósito do processo administrativo.

2.3.2 O escopo do processo administrativo. Perspectivas objetivistas e


subjetivistas
O problema do escopo do processo administrativo, na atualidade, refere-se ao
resultado que se pretende obter a partir da intervenção dos particulares no âmbito da
atividade administrativa. É dado adquirido que o processo administrativo visa permitir
a participação dos interessados no processo decisório. O modo pelo qual a participação
é percebida, assinala Pereira da Silva, distinguirá a perspectiva objetivista – que centra
o processo a serviço principalmente da Administração, enquanto mecanismo destinado
a facilitar e melhorar a decisão administrativa – da perspectiva subjetivista – que encara
a “intervenção dos privados como um instrumento de defesa prévia de suas posições
jurídicas perante a Administração”.103
A perspectiva objetivista não nega alguma nota garantística da posição dos
particulares, assim como a perspectiva subjetivista não descarta que o processo admi-

está em jogo é a maior importância que se atribuiu a uma ou outra função. Se a tônica

102
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.
p. 303.
103
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.
p. 404.
PEDRO NIEBUHR
40 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

for a garantia dos particulares, a abordagem é, para os presentes efeitos, predominan-

própria Administração, a perspectiva é predominantemente objetivista.


A perspectiva subjetivista do processo administrativo adquire especial relevância
dentro de um contexto de Administração agressiva – que intervém unilateral, direta
e rotineiramente na propriedade e liberdade dos particulares. Numa época em que a
ciência jurídica se ocupa, essencialmente, de regras e técnicas de limitação e contenção
dos poderes do Estado em face dos indivíduos (refere-se aqui ao Direito Administrativo
na característica que lhe foi peculiar no século XX), nada mais natural do que se ressaltar
a importância dos institutos que viabilizam a correção prévia, concomitante e posterior
de decisões administrativas à luz das posições jurídicas dos privados.
A percepção de que o processo administrativo deve servir à garantia dos direitos
do cidadão em face do Poder Público pode ser explicada a partir de pelo menos dois
pontos de vista distintos.
Um deles é a já referida teoria de unidade substancial entre o processo judicial
e o processo administrativo (Merkl). Sendo tanto a atividade jurisdicional quanto a
-
ciente para deixar de aplicar à atividade praticada pela Administração ativa as mesmas
garantias que eram disponibilizadas ao particular no processo judicial. O processo
administrativo passou a ser estruturado a partir e à semelhança do processo judicial,
daí seu forte cunho garantístico.
A outra explicação para a consagração de uma perspectiva subjetivista é dada por
Juli Ponce Solé. Segundo o autor, a ideia do processo administrativo como um conjunto
de formalidades aptas a garantir a posição jurídica e os interesses dos particulares surgiu
como um artifício vislumbrado pelos tribunais espanhóis para contornar os óbices que
o princípio da separação de poderes impunha ao exame judicial do ato administrativo.
Ao reconhecer que as regras processuais administrativas criavam ao cidadão um direito
ao trâmite, o Judiciário pôde conhecer e apreciar alegadas lesões a direitos praticadas
por atos administrativos, rompendo com a imunidade dos atos discricionários.104
Independentemente da forma como foi alavancada a perspectiva subjetivista, é de
se ressaltar o fato de que ela vê o processo como um instituto que permite ao particular
defender-se da Administração antes da consolidação de uma situação jurídica suscetível
de lhe ser desfavorável, ou de propor, perante a própria Administração, o reexame dela.
Paradigmáticas, a respeito desse assunto, são as posições de Peter Häberle,
Helmut Goerlich e Canotilho.
Häberle sistematiza os direitos fundamentais no Estado prestacional a partir da
valorização do vínculo existente entre o exercício responsável dos direitos e a partici-
pação nos processos de decisão pública, através de sua sujeição a esquemas processuais
administrativos. A participação, dentro dessa ótica, tem papel central nos processos
administrativos, como fundamento da construção de processos de autodeterminação
e autorrealização pessoais.105

104
PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido: las bases
constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la discrecionalidad. Valladolid: Editorial
Lex Nova, 2001, p. 54. p. 58-60.
105
SCHILLACI, Angelo. Derechos fundamentales y procedimento, entre libertad y seguridad. Revista de Derecho
Constitucional Europeo – ReDCE
REDCE13pdf/08Schillaci.pdf, acesso em: 17 jul. 2012.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
41

Segundo Häberle, frente a rotineiras intromissões do Estado na vida privada


dos particulares, torna-se necessário superar a fórmula de Jellinek do status passivus
subjectionis, por meio de uma reinterpretação da relação entre Estado e cidadão a partir
de uma base cooperativa e comunicativa.
-

participação em procedimentos como instrumento de mediação entre a plena realização


da igualdade e a salvaguarda da liberdade”.106
Häberle então propõe acrescer um novo status à teoria de G. Jellinek, o status ac-
que estabelece uma nova relação entre cidadão e Estado, expressa na
dimensão procedimental das liberdades fundamentais. A autodeterminação passa a ser
o pilar da relação público-privado, orientada à construção de processos de integração.107
-
dagem objetiva do processo administrativo (enquanto instrumento de organização
administrativa), apesar de utilizar técnicas de direitos subjetivos.108 Todavia, não é

especialmente ao realçar o caráter jusfundamental do direito à participação como


uma dimensão defensiva a cargo do cidadão. Angelo Schillaci, em análise da teoria de
Häberle, constata:

A conformação da organização administrativa e de procedimentos de decisão pública


num sentido conforme aos direitos fundamentais implica diretamente a abertura destes
últimos à participação dos titulares dos direitos, e eventualmente das organizações re-
presentativas de seus interesses. […]
A participação no procedimento […] representa assim uma nova forma expressiva da

Häberle, neste sentido, é dizer reconhecendo a centralidade da participação, o momento


defensivo pode assegurar-se completado através do procedimento.109

106

participación en procedimientos como instrumento de mediación entre plena realización de la igualdad y


salvaguardia de la libertad” (SCHILLACI, Angelo. Derechos fundamentales y procedimento, entre libertad y
seguridad. Revista de Derecho Constitucional Europeo – ReDCE, ano 7, n. 13, p. 217-219, jan./jun. 2010. Disponível

107
SCHILLACI, Angelo. Derechos fundamentales y procedimento, entre libertad y seguridad. Revista de Derecho
Constitucional Europeo – ReDCE
REDCE13pdf/08Schillaci.pdf, acesso em: 17 jul. 2012.
108
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.
p. 331.
109
Tradução livre. “[...] La conformación de la organización administrativa y de los procedimientos de decisión
pública en un sentido conforme a los derecho fundamentales implica directamente la apertura de estos últimos
a la participación de los titulares de los derechos, y eventulamente de las organizaciones exponenciales de sus
intereses. [...]
La participación en el procedimiento [...] representa así una nueva forma expresiva de la clásica función defensiva

centralidad de la participación, el momento defensivo puede retenerse completado a través del procedimiento”
(SCHILLACI, Angelo. Derechos fundamentales y procedimento, entre libertad y seguridad. Revista de Derecho
Constitucional Europeo – ReDCE
REDCE13pdf/08Schillaci.pdf, acesso em: 17 jul. 2012. p. 222-223).
PEDRO NIEBUHR
42 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

conteúdo do direito em sede de processos administrativos tem, ademais, o mérito de


transformar o cidadão não em objeto da decisão administrativa, mas valorizá-lo en-
quanto membro pertencente à própria comunidade.110
As contribuições de Häberle, portanto, ressaltam não apenas a dimensão proce-

como também realocam o papel do cidadão no processo de decisão administrativa,


como mecanismo de legitimação democrática desta.
-
tanto, os direitos fundamentais essencialmente como direitos de defesa, sustentando
que o interesse no processo administrativo (e judicial) não radica de sua narratividade
participativa, mas decorre da necessidade dos direitos fundamentais disporem de um
espaço de autorrealização e de liberdade de decisão processualmente garantidos perante
os Poderes Públicos. Os processos administrativo e judicial são próprios instrumentos
de defesa, decorrentes do status de liberdade do indivíduo em face do Estado.111
Em Goerlich, os direitos fundamentais são entendidos como garantias de pro-
cesso: qualquer decisão administrativa que diga respeito ao particular (e que possa
afetar o seu domínio privado constitucionalmente protegido) deve ser tomada no bojo
de um processo administrativo que lhe permita defender-se preventivamente de uma
eventual agressão pela Administração Pública.112
A partir das concepções de Häberle e Goerlich, Canotilho defende a relevância
do processo administrativo em decorrência da presunção de que o “resultado obtido
através da observância do iter procedimental é, com razoável probabilidade e em me-
113

Conforme o autor, os direitos fundamentais dos particulares são suscetíveis de


serem violados tanto por outros particulares (em um plano de horizontalidade) quanto
pelo Estado. Em ambos os casos, o Estado é chamado para protegê-los, seja através de
um dever de proteção de particulares (primeiro caso), seja através dos direitos fundamentais de
defesa, que reclamam um dever de não agressão à esfera jurídica dos cidadãos (segundo
caso). Em ambas as situações, demanda-se do Estado a disponibilização de condições
fáticas para a proteção do direito material através de instrumentos processuais ou
procedimentais adequados à defesa e garantia dos direitos em voga.114
Canotilho constata que em muitos casos ditas prestações fáticas a cargo do Estado,

direito subjetivo do particular – aos processos administrativo e judicial. É dizer: a defesa


dos direitos fundamentais de um particular em face de uma agressão de outro particular

110
SCHILLACI, Angelo. Derechos fundamentales y procedimento, entre libertad y seguridad. Revista de Derecho
Constitucional Europeo – ReDCE
REDCE13pdf/08Schillaci.pdf, acesso em: 17 jul. 2012.
111
GOERLICH apud CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição e décife procedimental. In: Estudos sobre
Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 74.
112
GOERLICH apud SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra:
Almedina, 2003. p. 334.
113
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição e décife procedimental. In: Estudos sobre Direitos Fundamentais.
Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 75.
114
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição e décife procedimental. In: Estudos sobre Direitos Fundamentais.
Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 77.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
43

ou do próprio Estado implica, em favor do primeiro, o reconhecimento do direito a


um processo apropriado, à disponibilização de estrutura, de pessoal e de mecanismos

fundamentais.115
O processo administrativo adquire, por esta via, uma feição abertamente ga-
rantística da posição subjetiva dos particulares. É isto que, em comentário à posição
de Canotilho, anota Pereira da Silva: “é, pois, dos próprios direitos fundamentais que
decorre um direito dos privados à defesa de suas posições de vantagem perante a
Administração, por intermédio de um procedimento”.116
Entre os autores nacionais, a dimensão processual (administrativa e judicial)
dos direitos fundamentais é percebida por Ingo Wolfang Sarlet. Trata-se de direitos
de proteção, vinculados à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que partem
do reconhecimento de que a fruição de diversos direitos fundamentais é enfraquecida
sem que sejam colocadas à disposição prestações estatais de cunho organizacional,
procedimental e coordenatório.117
No âmbito administrativo, é de se destacar a posição de Augustín Gordillo. Apesar
de ressaltar a diferença entre processo judicial e administrativo, o autor sustenta que
diante de uma afetação dos direitos do indivíduo deve aplicar-se os mesmos princípios
e garantias que estão destinados à proteção formal desses direitos no âmbito judicial.
Por isto, esclarece o autor, salientar a diferença entre processo judicial e administra-

administrativa, nem negar que o processo administrativo seja objeto de regulação ju-

indivíduos durante a evolução do processo.118


processo administrativo como “a parte do direito administrativo que estuda as regras
e princípios que regem a intervenção dos interessados na preparação e impugnação
da vontade administrativa”.119
Ao assegurar aos particulares um direito subjetivo ao processo administrativo
como ferramenta hábil a evitar ou reparar lesões jurídicas perpetradas por terceiros ou
pelo próprio Estado, resolvem-se pelo menos três problemas de ordem prática relevantes.
(i) Primeiro, cria-se um contraponto à possibilidade da decisão administrativa ser
executada unilateralmente pela própria Administração (que é ao mesmo tempo parte e
julgadora). Em um sistema em que se dispensa à Administração recorrer ao Judiciário
para fazer valer coercitivamente suas deliberações, convém, como compensação, as-
segurar ao particular a possibilidade de se fazer ouvir antes, bem como de provocar o

115
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição e décife procedimental. In: Estudos sobre Direitos Fundamentais.
Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 78-79.
116
SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003.
p. 408.
117
SARLET, Ingo Wolfang. : uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2009. p. 194 e 196.
118
GORDILLO, Augustín. Tratado de derecho administrativo. Tomo 2. 8. ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho
Administrativo, 2006, p. IX-2 e IX-3.
119
“[…] la parte del derecho administrativo que estudia las reglas y principios que rigen la intervención de los
interesados en la preparación e impgunación de la voluntad administrativa”. (GORDILLO, Augustín. Tratado de
derecho administrativo. Tomo 2. 8. ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 2006. p. IX-7).
PEDRO NIEBUHR
44 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

a subsistência de decisões capazes de violar sua esfera jurídica protegida (garantia im-

onde se presume a maior capacidade e aptidão do órgão administrativo de resolver a


questão do que o Judiciário). A disponibilização e o acesso a processos administrativos

por parte da Administração.


(ii) Segundo, o processo administrativo permite vencer eventuais obstáculos
instrutórios que as partes experimentam em um processo judicial. Os já menciona-
dos princípios da livre introdução de interesses e da completa apreensão dos fatos
(Giannini) ampliam as possibilidades, oferecidas ao particular, de deduzir e dirimir

inclusive a consideração de indícios que não serviriam como elemento probatório no


processo judicial.
Assim, o processo administrativo pode atuar na proteção da situação jurídica

no processo judicial. Trata-se de ponto especialmente sensível em questões ambientais,


que comumente demandam abordagens técnicas multidisciplinares estranhas ao âmbito
jurisdicional.
-
suais administrativas também contornam o problema da intangibilidade judicial do
mérito do ato administrativo.120 Considerando que, por força do princípio da separação
de poderes, o controle judicial do ato administrativo circunscreve-se à questão da legali-
dade, o processo administrativo funciona como o mecanismo que permite ao particular
conformar e suscitar inconformismo quanto ao próprio mérito da decisão (ainda que
com limitações próprias de quem deduz sua pretensão ao julgador que também é parte).
Este efeito, garantidor das posições subjetivas dos particulares atinentes ao mérito
da decisão administrativa, é de extrema relevância e não deve passar despercebido.
Notadamente, em atos administrativos dotados de maior carga discricionária, a ava-
liação da conveniência/oportunidade e o grau de extensão/intensidade das medidas
cogitadas são, em tese, insindicáveis judicialmente.121 O processo administrativo, pelo
menos neste aspecto do ato decisional, funciona como a única (ou melhor) oportunida-
de dos particulares apresentarem argumentos e deduzirem seus pontos de vista como
elementos de potencial ponderação na produção da decisão administrativa.
O raciocínio em questão pode melhor ser ilustrado por dois exemplos. Em um
processo de licenciamento ambiental, ao órgão competente é reservada a prerrogativa
de perquirir a viabilidade ambiental de dada ação ou empreendimento, o que em mui-
tos casos dependerá de um juízo ou avaliação discricionária (ainda que balizada sob
critérios técnico-cien

120
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Vol. II. 8. ed.
Madrid: Civitas Ediciones, 2002. p. 445.
121
Em condições normais de juridicidade, ou seja, pressupondo o ato legal, motivado e proporcional. É de se ressal-
var, entretanto, a posição contrária que admite a sindicabilidade judicial, sob aspectos mais amplos, do mérito
do ato administrativo. Sobre o assunto toma-se, por exemplo, a posição de Freitas (FREITAS, Juarez. O controle
dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009).
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
45

da pert
contexto, o Judiciário não poderia substituir o juízo da autoridade administrativa para
reavaliar a conveniência ou oportunidade de uma dada medida mitigadora estabelecida
pelo órgão ambiental a título de condicionante da licença, é no processo administrativo
que o particular deve apresentar propostas alternativas que possam produzir os efeitos
esperados pelo órgão ambiental com menores sacrifícios a seus interesses. O processo
administrativo é o foro adequado para que o particular deduza suas pretensões de
modo a vê-las cotejadas no próprio mérito do ato administrativo.
O segundo exemplo do funcionamento do processo administrativo como opor-
tunidade ideal de controle do mérito da decisão administrativa é atinente ao exercício
da pretensão punitiva da Administração. Uma das notas características do Direito
Administrativo Sancionador é a ampla discricionariedade atribuída ao administrador
quantum da medida de sanção aplicável em repressão à
conduta ilícita. Também em condições normais de juridicidade do ato sancionatório, seria
de igual forma vedado ao juiz substituir a avaliação da autoridade administrativa para
pretender reexaminar a medida e a intensidade da sanção. É no processo administrativo
– porque a alegação diz respeito ao mérito do ato sancionatório (que, insista-se, só em
situações excepcionais poderia ser sindicável) – que o particular tem a oportunidade
apropriada para pleitear o enquadramento e a revisão do quantum arbitrado a título de
multa à luz das condições e da situação concreta enfrentadas.
Em síntese, na perspectiva subjetivista, o processo administrativo assume impor-
tância porque, além de outros motivos, funciona: (i) como mecanismo para proteção,
prévia e sucessiva, da posição subjetiva do particular diante da possibilidade da decisão
administrativa vir a violar, direta e unilateralmente, sua esfera jurídica protegida; (ii)
como instituto que permite maiores possibilidades instrutórias e aprofundamento da

(iii) como foro e instrumentos adequados à defesa da posição subjetiva do particular no


que toca ao mérito do ato administrativo, que não está sujeito ao reexame do Judiciário
por força do princípio da separação de poderes (em princípio e dentro de balizas). Em
todos os casos, protege-se a posição jurídica dos particulares, ainda mais sensível nas

em termos instrutórios) ou mesmo inviável.


A aceitação que a perspectiva subjetivista do processo administrativo recebeu
no mundo jurídico – toma-se, por exemplo, o inciso LV do artigo 5º da Constituição
da República122 – não impediu que a doutrina ressaltasse a importância que deve ser
atribuída à perspectiva objetivista do instituto.
Do ponto de vista objetivista, assegurar meios de intervenção do(s) particular(es)
na formação da vontade da Administração é, antes de mais nada, uma técnica adminis-

Administração está atrelada. A participação dos cidadãos – ainda que venham a defender
posições jurídicas próprias – permite que a Administração tome conhecimento de mais

122
“Art. 5º [...] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
PEDRO NIEBUHR
46 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

interesses e fatos no processo decisório, o que, em tese, conduziria a uma decisão de

de vista, ignorando outros, é suscetível de desconsiderar soluções potencialmente mais

Ademais, a 123

intervenção dos particulares diminui, presumidamente, sua resistência quando estes

Juli Ponce Solé, em defesa da perspectiva objetivista, relaciona o processo


administrativo como fator de potencialização da obtenção de decisões de qualidade
e, assim, como elemento de legitimação da decisão administrativa.124 Para o autor, o
processo administrativo deve ser estudado a partir do dever de boa administração, que
impõe ao administrador a obrigação de atuar racionalmente (impedindo a interven-
ção ilógica, abusiva e arbitrária) e de modo objetivo (de onde deriva a necessidade da
Administração, antes de decidir, investigar, conhecer e tomar em consideração todos
os dados relevantes).125
Assim é que, para Solé, a participação no processo administrativo é conectada
à qualidade da decisão (em função de sua natureza democrática, legitimatória) e ao
acerto dela em serviço aos interesses gerais.126 Por isso a participação deve, primor-
dialmente, favorecer à boa administração, o que não leva a desconsiderar os interesses
dos afetados.127
Também sob uma perspectiva objetivista, Rui Machete reputa que a intervenção
dos particulares não se reduz à defesa de seus direitos ou interesses, antes possui um
papel propulsivo e criador ao permitir que a Administração conheça interesses que
antes não eram ou não poderiam ser percebidos.128 A participação dos particulares atua

a se considerar.129
Enterría e Fernández relacionam a participação dos interessados a um viés legi-
timador das decisões administrativas que são tomadas, contemporaneamente, em um
quadro de maior liberdade conferida pela lei ao administrador. Segundo os autores,

123
LAFERRIÈRE, Edouard apud PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento
Administrativo Debido: las bases constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la
discrecionalidad. Valladolid: Editorial Lex Nova, 2001. p. 70.
124
PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido: las bases
constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la discrecionalidad. Valladolid: Editorial
Lex Nova, 2001. p. 70.
125
PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido: las bases
constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la discrecionalidad. Valladolid: Editorial
Lex Nova, 2001. p. 213 e ss.
126
PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido: las bases
constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la discrecionalidad. Valladolid: Editorial
Lex Nova, 2001. p. 312.
127
PONCE SOLÉ, Juli. Deber de buena Administración y Derecho al Procedimiento Administrativo Debido: las bases
constitucionales del procedimiento administrativo y del ejercicio de la discrecionalidad. Valladolid: Editorial
Lex Nova, 2001. p. 342.
128
MACHETE, Rui. Lisboa: Editorial Notícias, 1992.
p. 10.
129
MACHETE, Rui. Lisboa: Editorial Notícias, 1992.
p. 11.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
47

no contexto socioeconômico e jurídico-político atual, sem uma associação efetiva dos

predeterminar normativamente o modo como a Administração deve cumprir as tarefas

impossibilidade de administrar “mandando”, notadamente nos setores econômicos e


sociais, onde a colaboração dos administrados para alcançar os objetivos é indispensá-
vel. Assim, Enterría e Fernández concluem que “o procedimento administrativo tende

em uma instituição central do Direito Público de nossos dias”.130


Perceba-se, diante dos pontos de vista colacionados, que a perspectiva objetivis-
ta não se constrói, necessariamente, como manifestação da relação de poder do qual
é titular a Administração em detrimento do particular. Sustentar a visão objetivista
não quer dizer que a intervenção dos particulares seja subalterna à vontade, aleatória
ou autoritária, da Administração. Antes disto, a perspectiva objetivista reconhece o
processo administrativo como arena e oportunidade adequadas para se ponderar e
compor interesses que possam ser, eventualmente, antagônicos, realizando de forma
mais ampla possível o Direito no caso concreto.
Composição de interesses com vistas a um maior acerto da decisão (ou melhor
realização do direito no caso concreto) é pressuposto do desenvolvimento adequado

Direito anglo-saxônico (que assume uma vertente notadamente subjetivista), Peter Cane

da atividade e, por consequência, traduzir-se em elemento de boa administração: atra-


vés do apropriado processo administrativo o cidadão sente que foi tratado de modo
justo, o que aumenta o seu grau de satisfação em relação à atividade administrativa.131
Ou seja, a perspectiva objetivista não descura da posição dos particulares. Ao
contrário, fortalece essa posição, mas essencialmente como elemento decisional para a
tomada de posições que sejam mais acertadas e (também) melhor aceitas pelos destina-
tários. Ela ressalta que, não obstante deva ser garantida a participação dos particulares
no processo administrativo, este ainda serve, precipuamente, para pautar a ação da
Administração, para revelar e construir a solução mais adequada (racional e objetiva)
e legítima ao caso concreto.
Apesar das diferenças nas abordagens, fato é que ambas as perspectivas objeti-
vistas e subjetivistas do processo administrativo oferecem valiosas contribuições para
se compreender o papel e o escopo do processo administrativo dentro do contexto e da
complexidade das relações jurídico-administrativas contemporâneas. Por isso ganha
corpo o movimento de conciliação dos escopos garantísticos e funcionais do processo
administrativo, de sua articulação enquanto instrumento da Administração para tomada

130
Tradução livre de: “el procedimiento administrativo tiende así a convertirse, tanto por razones de legitimidad

ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Vol. II. 8. ed. Madrid:
Civitas Ediciones, 2002. p. 446-447).
131
CANE, Peter. An Introduction to Administrative Law. Oxford: Clarendon Press, 1986. p. 310.
PEDRO NIEBUHR
48 PROCESSO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL

de (melhores) decisões e enquanto mecanismo de defesa dos particulares. De fato, as


perspectivas subjetivistas e objetivistas são complementares, completam-se.
Referida constatação já podia ser encontrada, por exemplo, em Caetano, para

somente na necessidade de assegurar o respeito à legalidade na atividade administra-


tiva, mas também por ao mesmo tempo permitir aos particulares que demonstrem seus
direitos ou façam valer suas razões.132
José Roberto Dromi resgata a própria essência do Direito Administrativo para
-
ca deve buscar o equilíbrio entre autoridade e liberdade, devem ser disponibilizadas
ferramentas processuais que articulam ambas as posições. O processo administrativo,
ao regular a relação jurídico-administrativa, protege tanto o exercício das prerrogati-
vas públicas como as garantias individuais, tornando viável seu exercício e recíproco
respeito, para que direitos se exerçam e deveres se cumpram.133
Jesús Gonzáles Pérez segue, basicamente, as mesmas premissas: o submetimento

interesse público e dos direitos dos particulares. Apesar da garantia dos administrados
ter tradicionalmente aparecido, segundo o autor, como único e fundamental sentido
para o processo administrativo, atualmente faz-se imperativa a preocupação com o in-
teresse público concentrado na legalidade e no acerto das resoluções administrativas.134
É isso que, mais recentemente, escreve João Loureiro. Para o autor o processo
administrativo aparece revalorizado como:

autónomo mecanismo de composição de interesses, de garantia democrática, com funções


legitimatórias, como mecanismo de tutela dos cidadãos, como instrumento de racionali-
zação e optimização das decisões, como operador extremamente relevante na realização
dos direitos fundamentais.135

Entre os autores nacionais, esta realidade é percebida, entre outros, por Dallari
e Ferraz136 e por Bandeira de Mello, que reconhecem o duplo objetivo do instituto:
resguardar os administrados e contribuir para uma atuação administrativa mais clari-
vidente (mais bem informada e responsável).137
Em síntese, o viés objetivo do processo administrativo não substitui nem se so-

quando apresenta, em simultâneo, uma dimensão objetiva (relacionada às suas funções

132
CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do Direito Administrativo. Coimbra, Almedina, 1996. p. 407.
133
DROMI, Jose Roberto. El Procedimiento Administrativo. Madrid: Instituto de Estudios de Administración Local,
1986. p. 20-24.
134
PÉREZ, Jesús González. Comentarios a la Ley de Procedimento Administrativo. 4. ed. Madrid: Editorial Civitas, 1991.
p. 77.
135
LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. O procedimento administrativo
particulares. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 69.
136

[...] do agir estatal e maximizar as garantias do administrado [...] o processo administrativo viabiliza a atuação
administrativa justa, doutra banda facilitando, pela coparticipação, o controle maior da Administração”
(DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Processo Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 31).
137
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 505-506.
CAPITÚLO 2
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO EM MATÉRIA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL
49

legitimadoras, organizatórias e participativas) e subjetiva (garantística dos direitos dos


particulares).138
Essa concepção parece ter sido positivada, pelo menos em parte, na ordem jurídica
nacional. O artigo 1º da Lei de Processos Administrativos Federal (Lei nº 9.784/99), ao

139

É conveniente que não se perceba o mencionado dispositivo legal com otimismo


exagerado. A uma porque a Lei de Processo Administrativo Federal aplica-se somente
às entidades da Administração direta e indireta ligadas à União, além dos Poderes
Legislativo e Judiciário daquele mesmo ente no exercício de atividades administrativas.
Estados, municípios e Distrito Federal podem, em decorrência do princípio da auto-
nomia dos entes federados, editar suas próprias leis e atos regulamentares em matéria
de processo administrativo, organizando-os sob outra lógica capaz de, eventualmente,
ressaltar, de modo exacerbado, uma das perspectivas em detrimento de outra. A duas
por conta da aplicação apenas subsidiária da Lei nº 9.784/99 a processos regulamenta-
140

pontos, o processo administrativo para licenciamento de atividades utilizadoras de

11.105/05141).
Estão dispostas, de todo modo, as bases da investigação proposta no presente
trabalho: a atuação administrativa adquire proeminência quando o assunto é a tutela ambien-

antecipatória à produção de danos e riscos intoleráveis ao ambiente. A atividade administrativa,


em regra e também no que toca à tutela do ambiente,
administrativo predeterminado que possui, para além de natureza formal, dimensão também

Ainda assim, para que realizem as funções que são próprias da atividade admi-
nistrativa à frente da proteção ambiental, o Direito Administrativo e especialmente o
processo administrativo devem superar algumas de suas amarras que lhes impedem
de responder satisfatoriamente às demandas e os problemas contemporaneamente
apresentados.

138
SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito: lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002. p. 126.
139
“Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal
direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos

140

apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”.


141
O autor deste estudo já teve a oportunidade de criticar a previsão de decisões em única instância, a respeito da

contida no inciso III do §1º do artigo 8º da Lei de Biossegurança, e pela deliberação da Comissão Técnica Nacional
de Biossegurança sobre a avaliação de se a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação
ambiental, bem como sobre a necessidade do licenciamento ambiental, prevista no 3º do artigo 16 da mesma lei.
(NIEBUHR, Pedro de Menezes. Aspectos processuais da Lei de Biossegurança. In: FAGÚNDEZ, Paulo Roney
Ávila; LEITE, José Rubes Morato (Org.). : aspectos jurídicos,
técnicos e sociais. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. p. 260 e seguintes).

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