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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Faculdade de Formação de Professores


Programa de Pós-graduação em História Social

O pacto com o demônio na Lisboa do séc. XVIII: uma análise da figura do


diabo através do processo de Maria de Jesus (1735)

São Gonçalo
2021
TEMA E PROBLEMA

Este trabalho propõe uma análise da figura simbólica do demônio cristão, através da
ótica de uma africana alforriada em Lisboa, no ano de 1735, tendo como ponto de partida o
estudo do processo inquisitorial de Maria de Jesus, no qual a mesma confessa ter realizado o
pacto com o diabo.
A maior parte dos estudos sobre a Inquisição portuguesa apontam que em muitos dos
processos contra mulheres no império português, não constava a acusação de bruxaria, ao
contrário da inquisição alemã, muito marcada pela escrita do Malleus Maleficarum- um
manual de instruções escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger no ano de
1484- que ajudou a suscitar uma verdadeira caça às bruxas na Europa da Idade Moderna. Na
maior parte dos processos inquisitoriais do Império português, portanto, constam acusações
de pacto com o demônio, o que não necessariamente significava bruxaria (PAIVA, 1997). Este
é o caso do processo de Maria de Jesus, que por recomendação de um capelão a quem esta
revela seu suposto pacto, acaba procurando o Santo ofício para confessar o delito.

O processo de Maria de Jesus

Maria de Jesus tinha 25 anos na data de sua confissão ao Santo ofício. A mesma foi
vendida em Luanda ainda criança e transportada para Portugal, onde trabalhou para sua
senhora na condição de escravizada, até a data de sua morte. Já criança, Maria afirma ter sido
batizada e iniciada na fé católica, e assídua frequentadora das missas.
Durante sua confissão, Maria descreve então seu primeiro contato com a ideia de pacto
com o diabo. Diz a mesma que uma conhecida de sua senhora, mulher chamada Maria
Bernarda, havia lhe recomendado que vendesse sua alma aos 12 anos em troca de benesses, e
que a mesma o havia feito e obtido vantagens com o suposto pacto (Arquivo Nacional Torre
do Tombo, Processo Nº 2279.) Este contato se dá logo após seu segundo sacramento: a
crisma, o que explicita que pouco após a vinda de Maria de Jesus a Lisboa, a mesma começa a
ter um contato mais intenso com os principais santos e entidades da mitologia judaico-cristã:
Deus e o diabo, tanto através da sua crisma, quanto da possibilidade do pacto através de Maria
Bernarda.
Pouco tempo após a conversa com Maria Bernarda, Maria de Jesus, segundo a sua
confissão ao tribunal, resolve começar a se relacionar com a entidade demoníaca. A mesma
evoca o demônio, que lhe aparece em forma de camelo, e que em outros momentos também
aparece em forma de cavalo. Em dado momento, lhe é oferecido pelo demônio que, através de
rituais mágicos, a mesma pudesse se ver livre de sua senhora, e com isso acabar com a sua
condição de escravizada. Passado um mês deste primeiro contato, Maria e o demônio
resolvem firmar um pacto de sangue, no qual Maria fura seu dedo com um pequeno alfinete.
De acordo com Didier Lahon:

Na maioria dos casos, o acusado entrava no molde que lhe era imposto, quer por
medo, tivesse sido ou não torturado, quer por compreender que era do seu
interesse. Aqui, como em outros lugares da Europa, sob a tortura ou para
satisfazer os inquisidores, os acusados confessaram fatos e eventos
materialmente impossíveis, prestando-se mais ou menos conscientemente aos
quadros teológicos da demonologia (LAHON, 2004).

Apesar de muitos destes réus confessarem a realização de um pacto demoníaco sob tortura à
inquisição, este não parece ser o caso de Maria de Jesus. É sabido que estes tratados de
demonologia acabaram caindo no imaginário popular, os quais podem ter sido assimilados por
Maria de Jesus, após sua chegada em Lisboa, onde houve um maior contato com o
cristianismo.
Após a realização do pacto de sangue, Maria então começa a cultuar a figura do
demônio no mesmo oratório que esta cultuava a figura de Jesus Cristo. E o mesmo demônio,
durante suas orações no altar, segundo suas confissões, a dizia para jejuar e também para lhe
ter por Deus (Arquivo Nacional Torre do Tombo, Processo Nº 2279).
Em outro momento de sua confissão, Maria diz que recebe alguns elementos mágicos
da entidade, que esta descreve como sendo uma tigelinha branca, um vidro de óleo e um
unguento branco. Maria foi instruída para que usasse este óleo em todo o seio e corpo, e
segundo esta, quanto mais ela os usava, os itens iam sendo repostos de maneira mágica.
De acordo com as instruções do demônio, a mesma deveria utilizar estes elementos
ritualísticos ao se deitar, por volta das 22h. Após o uso destes, Maria confessa que na
companhia desta entidade, ela conseguia sair de casa mesmo com as portas fechadas,
descrevendo uma espécie de projeção astral. Em outro momento, ela confessa que:
Disse mais que depois de untada por toda a parte dianteira do seu corpo como
tem dito, e beber a gota do óleo sem levar o novelo que o Diabo lhe tinha dado
passava o mar, riacho e sitio e campo que o demônio dizia era a Mouta e
também a uma Quinta ali perto que tinha hortas e ali estavam esperando cinco
ou seis Demônios em figura de homens e outras tantas mulheres, e todos se
punham a bailar com castanholas e abraçavam e beijavam as mulheres [...]
(Arquivo Nacional Torre do Tombo, Processo Nº 2279)

É interessante observar que o ritual que Maria de Jesus descreve, se assemelha a um Sabá,
ritual coletivo praticado por feiticeiras na Europa e que chegou até a América portuguesa
através do tráfico transatlântico 1
No desfecho de seu processo, Maria confessa supostamente ter adorado e feito pacto
com o diabo durante o período de 12 anos, igual período no qual viveu na condição de escrava
de sua senhora em Lisboa. É sabido que as penas para quem confessava um crime ao tribunal
da Inquisição eram muito mais brandas do que as imputadas aos denunciados por terceiros,
que variavam de degredo, tortura, prisão, até a pena última de morte na fogueira. Por ter
confessado seu pacto, Maria de Jesus não é excomungada nem presa, e recebe apenas algumas
penitências espirituais.

DELIMITAÇÃO ESPAÇO-TEMPO

O recorte temporal deste tema é a primeira metade do séc. XVIII, especificamente o


ano de 1735, tendo como foco a Idade Moderna, período no qual a Inquisição portuguesa foi
bastante ativa, tanto na metrópole, quanto em outras partes do Império português (mesmo que
em menor proporção). Aproximadamente 50 anos depois, após as reformas pombalinas e o
advento do iluminismo, a Inquisição vai aos poucos saindo de atividade e perdendo poder, até
ficar quase que completamente inativa já na primeira metade do século XIX. É importante
notar também que a primeira metade do século XVIII é o recorte temporal no qual
conseguimos observar uma quantidade maior de processos inquisitórios contra negros de
origem africana acusados de feitiçaria, curandeirismo e pacto com o demônio, devido a este
período ser o de maior circulação de pessoas escravizadas na rota do tráfico transatlântico no
Império português.

1 Ver : ROCHA, Carolina Silva: O Sabá do Sertão. Feiticeiras, Demônios e Jesuítas no Piauí Colonial (1750-
1758). UFF, Niterói, 2013.
A escolha do espaço geográfico da cidade de Lisboa é interessante para compreender
como este tribunal incidia sobre os africanos no centro do Império português, e como se dava
essa circulação de crenças mágicas dentro da metrópole.

Justificativa

Alguns dos principais autores que dialogam com esse tema são: Didier Lahon, Laura
de Mello, o português José Pedro Paiva e o antropólogo Luis Mott.
O historiador português José Pedro Paiva é essencial para a compreensão dos
mecanismos jurídicos de poder que a Inquisição portuguesa exerce na Europa Moderna e nas
colônias do Império, fazendo um levantamento seguido de uma análise quantitativa e
qualitativa de muitos processos inquisitoriais desde o século XV. Baseado no estudo dos
tratados de demonologia da época, o historiador tenta desvendar as principais razões que
levavam inquisidores a perseguir tantos réus e condenar tantos a penitências, degredo, tortura,
e também à fogueira.
Já o antropólogo Luis Mott é um dos primeiros estudiosos a levantar esses documentos
escondidos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e foi uma das vanguardas
que permitiu abrir os caminhos para que historiadores pudessem ter acesso a processos de
réus acusados de feitiçaria, curanderismo e pacto com o diabo, aqui no Brasil. Luis Mott
também se ocupa de estudar alguns processos de pacto com o diabo, porém tendo como o
foco o estudo da relação entre o diabo e a sexualidade dentro também de um contexto
religioso.
Laura de Mello e Souza (em “O diabo e a terra de Santa Cruz”) é uma das primeiras
historiadoras a estudar esse tema no Brasil. O livro debate principalmente sobre a utilização
da Inquisição como um instrumento de poder e dominação dentro do sistema de colonização e
também das estruturas da escravidão. Ressalta especialmente a visão negativa dos
colonizadores sobre as manifestações religiosas populares das colônias, projetando a figura do
diabo em qualquer forma de religiosidade dos colonos na América portuguesa, mesmo o
catolicismo popular. Desta forma, Laura destaca o processo de demonização das religiões
indígenas e africanas pela Inquisição portuguesa em terras brasileiras.
Dialogando com alguns dos autores já citados, especialmente com Laura de Mello e
José Pedro Paiva, há um consenso historiográfico de que na grande maioria dos processos
inquisitoriais referentes à acusações de pacto com o diabo, os réus muitas vezes confessavam
o pacto após sessões de tortura ou o faziam apenas para se verem livres do cárcere. Dentro
desse contexto, os réus falavam o que os Inquisidores esperavam ouvir, o que na maioria das
vezes incluía a confissão de pacto com o demônio, mesmo que este não houvesse ocorrido de
fato. Muitas das confissões feitas pelos réus incluíam relatos que acordavam com os tratados
de demonologia da época. Muitas das vezes o contato com o diabo apresentava um caráter
lascivo, e a maior parte dos réus relata ter tido relações sexuais com esta entidade. Alguns
relatam tê-lo visto em forma de animal, ou em forma humana, ora feio, ora bonito, às vezes
em formato de mulher, às vezes homem.
Entretanto a escolha de estudar o processo de Maria de Jesus, se dá exatamente pela
peculiaridade deste. A começar pelo fato de que a mesma não confessa a realização do pacto
sob tortura ou sob coerção da própria Inquisição. Maria de Jesus confessa por recomendação
do Capelão do Hospital de São Francisco. Portanto, pode-se considerar a possibilidade da
mesma ter ou acreditar ter tido de fato algum tipo de contato ou pacto com esta entidade da
religiosidade judaico-cristã.
A escolha deste tema se dá pelo fato de que a maioria dos estudos sobre o pacto com o
demônio acaba não dando tanto destaque às visões dos réus (africanos penitenciados pela
inquisição) e a forma como estes ressignificaram a figura do demônio através de suas próprias
lentes. O foco deste estudo será, portanto, tentar compreender que tipo de representação o
diabo figura no imaginário popular dos africanos no império português.
Este estudo se insere no campo da história da cultura, ou da nova história cultural,
utilizando um recorte micro-historiográfico. O diálogo que este projeto tem com a linha de
pesquisa “Território, Identidades e Representações” se dá na reflexão que este propõe dentro
do conceito de identidade e cultura, a partir da compreensão – com base nos estudos do
antropólogo Stuart Hall e do filósofo Homi Bhabha - de que o deslocamento fomentado pelo
tráfico transatlântico foi essencial para a formação de uma nova identidade e cultura
afrodiaspórica com características próprias. A partir do processo de hibridação cultural
fomentado pelo deslocamento - e pela troca de conhecimentos dentro do império português -
os africanos escravizados vão tentar construir ferramentas culturais que os auxilie em sua
vivência e sobrevivência dentro das relações de poder próprias do sistema escravista.

OBJETIVOS
Objetivo geral:
 Compreender de que forma a figura do demônio cristão foi ressignificada por
africanos escravizados no Império português, tendo como ponto de partida o estudo do
processo inquisitorial de Maria de Jesus
Objetivos específicos
 Caracterizar alguns dos movimentos de hibridação cultural entre africanos e
portugueses que ocorreram no séc. XVIII através da diáspora, com foco na construção
de uma afro religiosidade.
 Analisar de que forma este fenômeno cultural impactou na vivência cotidiana dos
africanos escravizados e em sua resistência dentro do sistema escravista no Império
português
 Debater historiograficamente questões referentes ao protagonismo dos indivíduos na
construção histórica das sociedades

REFERENCIAL TEÓRICO

O principal referencial teórico utilizado será o dos estudos culturais, ou também


chamados teóricos pós-colonialistas. Como já citado anteriormente, um dos autores que dará a
base teórica deste estudo será o sociólogo Stuart Hall. Dialogando com Stuart Hall, também
será utilizado como base o indiano Homi Bhabha. Um dos conceitos que ambos autores
trabalham e que será essencial para a orientação deste projeto será o conceito de Hibridismo
cultural.
Ambos autores trabalham dentro de uma lógica não-binária de cultura e identidade, na
qual o sujeito diante de uma situação de deslocamento territorial, (como foi o caso da diáspora
africana) vê sua identidade fragmentada, tendo seus laços familiares e sua cultura
desmembrados como consequência deste processo. Dando exemplo do caso da angolana
estudada: Maria de Jesus saiu da África antes mesmo da puberdade e foi rebatizada com outro
nome, a mesma relata ao tribunal que não sabia o nome de seu pai e de sua mãe, tendo
perdido toda sua linhagem familiar durante este deslocamento. É interessante perceber que o
próprio nome desta é mudado com seu batismo no cristianismo já em Angola, ou seja uma
outra identidade lhe é forjada a partir de seu batismo. Maria vai formando então, uma nova
identidade que foi sendo reconfigurada a partir deste processo de deslocamento territorial. Ao
sair de Angola, Maria passa também pela Bahia, onde possivelmente entrou em contato com a
religiosidade afro-brasileira, e após sua passagem por lá, Maria é encaminhada a Lisboa, onde
esta é introduzida ao cristianismo através do sacramento da crisma. Neste processo de
mudança territorial ocorre esse hibridismo, fomentado por essa troca de culturas que ocorreu a
partir de sua viagem. Maria então, passa a enxergar o mundo através dos códigos cristãos, ao
mesmo tempo em que preserva a sua religiosidade e visão de mundo da cosmogonia africana.
É interessante destacar que essa capacidade de assimilação de novas culturas e
religiosidade, já faz parte da cosmovisão de origem bantu, povos originários da região do
Congo e da Angola, que em sua maioria foram traficados como escravos para as colônias do
Império português, etnia da qual Maria faz parte. A filosofia destes povos consegue enxergar
o mundo de forma não binária (numa visão não cartesiana de mundo), contribuindo para que
esta hibridação ocorra. Estas culturas são consideradas por antropólogos como xenofílicas, ou
seja, faz parte da própria ontologia destes povos a assimilação cultural do outro, e não a
aversão ao estrangeiro, ao diferente, como a cultura ocidental europeia vai se apresentar.

O caráter subversivo da cultura

A partir de uma perspectiva de resistência, Homi Bahabha, em seu livro “O local da


cultura” coloca esta no centro de uma disputa dentro da narrativa do que é o nacional.
Introduzindo o já citado conceito de hibridismo cultural, o autor vai valorizar o lugar da
fronteira, ou o que ele chama de “não-lugar”. Pelo caráter maleável e híbrido da cultura, este
vai valorizar a questão da diferença como sendo crucial na disputa narrativa pelo nacional.
Este conceito vai surgir em contraposição a uma ideologia de identidade nacional dominante,
que não se enxerga como construída historicamente, e sim com uma identidade fechada e
estátil. Essa visão filosófica essencializante de mundo, logicamente exclui quem está à
margem da sociedade e que não entraria nesta narrativa de nação: os imigrantes.
O autor vai valorizar também as narrativas dos sujeitos excluídos da história, os
homossexuais, as mulheres, e os negros. Partindo do princípio de que a cultura não é algo
estático e sim historicamente construído, seu relativismo vai embasar estratégias de emersão
de sujeitos socialmente excluídos. Seu conceito de hibridismo cultural coloca a cultura num
lugar de constante negociação e disputa, sua fluidez a permite assimilar a filosofia
hegemônica do dominador, simultaneamente sendo capaz de fazer emergir uma nova forma de
pensar, não-excludente, assimilando a cultura hegemônica enquanto introduz uma nova forma
de pensar (o autor introduz o conceito de “Mimetismo”2). A partir de sua perspectiva, também
serão rediscutidas as categorias de sujeito e identidade, que serão valorizadas também nos
estudos relacionados a questões de gênero.

2 Ver BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed UFMG, 1998 (pág.267-270)
Dialogando com as ideias de Homi Bhabha, Michel de Certeau em seu livro “a
invenção do cotidiano”, vai apresentar esta característica híbrida da cultura, utilizando como
exemplo um caso ocorrido no Brasil, em Pernambuco (CERTEAU, 2012, p 76-77). O
nordeste brasileiro possui um histórico interessante de veneração a santos católicos que, de
acordo com estes fiéis, operaram milagres neste território. Certeau vai usar o exemplo dos
supostos milagres feitos por Frei Damião, de acordo com relatos de lavradores do município
de Juazeiro. Nestes relatos constam que esse santo castigava os inimigos deste grupo social,
historicamente oprimido, em favor deste mesmo grupo. Certeau observa que dentro de um
histórico de opressão social no qual estes homens viviam, era improvável que houvesse
alguma reviravolta em termos de inversão destes papéis sociais, principalmente numa
sociedade extremamente desigual como a do sertão nordestino brasileiro. Entretanto, era no
espaço da cultura (e do discurso) que ocorreria essa reviravolta, dentro da campo da
religiosidade, no qual Frei Damião castigava os opressores operando milagres em favor dos
lavradores dessa região.
Neste sentido, Certeau observa o uso popular da religião como um lugar de subversão
da ordem pré-estabelecida. O espaço da cultura se torna então um lugar (mesmo que fictício)
de utopia, onde a ordem do sistema se inverte, e os poderosos são castigados pela santidade.
Importante observar a utilização da religiosidade católica como forma de subversão da ordem,
religião esta que foi imposta pelos missionários desde a colonização, e normalmente
considerada mantenedora da ordem e dos poderes estabelecidos (diferentemente da
religiosidade afro-brasileira de origem yorubá ou bantu, o catolicismo é a religião monoteísta
europeia e colonizadora por excelência). Esta subversão da ordem a partir de uma perspectiva
religiosa não seria possível sem o caráter híbrido da cultura popular brasileira, que conseguiu
se utilizar de uma religião cristã para inverter a ordem social, mesmo que no discurso,
estratégia esta de micro resistência e ao mesmo tempo de denúncia de uma ordem repressora
vigente. Nesse sentido, a cultura pode evidenciar uma não aceitação natural da ordem
histórica das estruturas da sociedade.
Desta forma, Michel de Certeau, assim como Homi Bhabha, dialogam com o
problema deste projeto pois ambos se preocupam em tornar possíveis as narrativas dos
subalternos, a partir dessa perspectiva da maleabilidade da cultura e do conceito de fronteira.
Portanto, no campo discursivo, seria possível dar voz a grupos de indivíduos marginalizados
cultural e economicamente dentro de um território.

HIPÓTESES
A partir de uma breve análise da fonte e da literatura sobre o tema, podemos fazer
algumas suposições sobre o objeto de estudo, dentre elas a de que:

1 o demônio pode ter sido reinterpretado e identificado pelos africanos escravizados


como um elemento de subversão da ordem (moral, sexual, econômica, etc) na qual
essas pessoas estavam inseridas.
2 Maria possa realmente ter acreditado que fez um pacto consciente com o diabo, com a
expectativa de obter alguns benefícios (alguns estudos argumentam que Maria possa
ter cultuado uma divindade africana, a qual o inquisidor identificou como sendo o
demônio cristão no processo)3.
3 por conta de sua visão não binária de mundo, era possível que Maria estivesse
cultuando tanto Jesus Cristo, quanto o diabo, sem que isso lhe representasse qualquer
contradição moral.

DOCUMENTAÇÃO

A principal fonte utilizada neste estudo, é o processo inquisitorial de nº 2279, da preta


forra Maria de Jesus. Este se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.
Este processo está digitalizado, assim como a maioria dos processos da Inquisição de Lisboa.
O acesso pode ser feito através da página: https://antt.dglab.gov.pt/
Algumas fontes deste mesmo acervo podem vir a ser utilizadas para finalidade de
comparação e esclarecimento de algumas questões referentes a este estudo. Dentre elas está o
processo de nº 6286 de Catarina Maria, negra e escrava e o processo de nº 437, de Florinda
Maria de São José, também escrava, ambas naturais de Angola. Assim como a documentação
de Maria de Jesus, os processos citados anteriormente também se encontram digitalizados e
disponibilizados na página do ANTT.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada para o desenvolvimento deste estudo será a análise micro-


historiográfica das fontes. A escala de observação que a micro-história utiliza será essencial
3 Ver : QUEIROZ, ANDRADE, NASCIMENTO: Ídolo, feitiço e pacto: a Inquisição portuguesa e a
religiosidade centro-africana em Lisboa no século XVIII: o caso de Maria de Jesus. Revista de Estudos da
Religião, v. 19, n. 1, jan/abr 2019.
para o estudo do processo de Maria de Jesus, e este método já vem sendo muito utilizado por
historiadores que pesquisam com fontes da Inquisição.
Na perspectiva de Carlo Ginzburg, a micro história poderia ser uma redução de escala
da própria macro história, fazendo com que algumas das estruturas e o contexto histórico
social e econômico pudesse ser identificado, compreendido e analisado também através de um
evento micro. A análise micro historiográfica seria, metaforicamente, como o uso de uma
lupa.
A micro história se atém às particularidades da documentação e, como destaca Carlo
Ginzburg, fazendo oposição à história seriada, ela contribui para a identificação dos
indivíduos com o papel que representam como atores econômicos ou socioculturais
(GINZBURG, 2007). Dentro dessa perspectiva, a micro história dialoga diretamente com o
referencial teórico da história dos subalternos. De acordo com Homi Bhabha, dentro dessa
perspectiva: “sobreviventes políticos tornam-se as melhores testemunhas históricas”
(BHABHA, 1998).
De acordo com Ginzburg, a micro-história propõe um foco na anomalia, e não na
analogia. Ou seja, a micro-história se ocupa exatamente de uma documentação discrepante
(que por alguma razão se destaca das outras) e não de uma documentação semelhante. E a
análise crítica das fontes da micro-história pode nos permitir um maior aprofundamento nos
detalhes de um evento, induzindo a uma forma de observação e estudo mais cuidadosas e
detalhistas. Desta forma, este método será essencial para o estudo do processo de Maria de
Jesus, pois este se destacada justamente por algumas características peculiares a este em
relação a outras fontes, como já citado anteriormente.
Outra característica importante deste método é o de que o historiador, através das
lentes dos Inquisidores, pode se ver no trabalho de um antropólogo, através do que Ginzburg
chama de “atitude antropológica”, na qual o historiador se propõe a uma perspectiva dialógica
com a fonte, tentando entender os códigos culturais de mundo de um determinado objeto de
estudo (no caso deste projeto, há uma tentativa de se compreender através de um processo, a
perspectiva de mundo afrodiaspórica). É importante ressaltar que esta tentativa de trabalho
antropológico do historiador da inquisição possui um limite claro: seu objeto só pode ser
apreendido através das lentes do Inquisidor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros. SP: Cia das Letras, 2007.

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QUEIROZ, ANDRADE, NASCIMENTO: Ídolo, feitiço e pacto: a Inquisição portuguesa e a
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Este trabalho propõe uma análise da figura simbólica do demônio, através da ótica de uma
africana alforriada em Lisboa, tendo como ponto de partida o estudo do processo inquisitorial
de Maria de Jesus, onde esta confessa ter realizado o pacto com o diabo.
A maior parte dos estudos sobre a Inquisição portuguesa apontam que em muitos dos
processos contra mulheres no império português, não constava a acusação de bruxaria, ao
contrário da inquisição alemã, muito marcada pelo Malleus Maleficarum. Na maior parte dos
processos inquisitoriais do Império português, portanto, constam acusações de pacto com o
demônio, o que não necessariamente significaria bruxaria. Este é o caso do processo de Maria
de Jesus que será apresentado neste trabalho.

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