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TEXTOS Angustia e identificagao Piera Aulagnier Examinando 0 destino da anguistia e sua relagdo com a identificacao nas varias modalidades de organizacdo psiquica, esta conferéncia ilumina de modo original as diferengas e semelhancas entre elas. vando das tltimas jornadas regionais, diver- sas intervengdes voltaram-se para a questo de saber se cabe definir diferentes tipos de angdistia. Assim, questionou-se por exemplo, se convitia conceder um estatuto particular & angiistia psicética. Digo de imediato que tenho uma visio um pouco diferente: quer a angistia apareca no sujeito dito normal, no neurético ou no psicético, ela me parece responder a uma situagao especifica e idéntica do ego, € 6 exatamente nisso que a meu ver consiste um de seus tragos caracteristicos. Afeto, angistia e palavra Quanto ao que se poderia chamar a posigaio do sujeito diante da angiistia, por exemplo na psicose, pOde-se ver que, se nao procurarmos definir melhor as relagdes entre afeto e verbalizagao, podemos chegar a um tipo de paradoxo que se manifestaria da seguinte maneira: de um lado, © psicético seria alguém patticu- larmente sujeito a angiistia - uma das principais di- ficuldades do seu tratamento estaria exatamente na resposta “em espelho" por ele suscitada no analista; por outro lado, foi-nos dito que o psicético seria ineapaz de reconhecer sua angiistia, que ele a manteria & distancia, + que se alienaria dela. Enuncia-se assim uma posicio que se torna in- sustentavel, se no tentarmos ir um pouco além, De fato, sta canterdci, india em portegus, fli no semindrio de Lacan ‘Sobis‘Aldenifeceaa’ om 2cemaio de 052 Enconasa, em ferets, nas plginas 021 a wanscigso datogratada dete corindri, Uma vereagtalana sal na vista Spanmentate al Frenatna e “Meaicra Legale delle Alena! Meal 9:1, p. 1390, 1965 euro sgyadece a Profs Dra, Mara Luca V Viera, da PUCISP, a Indeagio a ado dest tec precio, Colaboraram na acuieSo| Meri Galiano Hebnes¢ Rerato Mezan, 5 Percarso at 14 1/1995 TEXTOS © que poderia significar “reconhe- cera angistia’? Ela no espera eno tem necessidade de ser nomeada para submergir 0 ego, € no com- preendo o que buscarfamos expres- sar dizendo que 0 sujeito est an- gustiado sem saber disso, Pode-se mesmo perguntar se o cardter préprio da angtistia nao reside jus- tamente no fato de ser impossivel defini-la enquanto a vivemos: o di- agnéstico, 0 nome, 86 pode vir do lado do Outro, daquele frente a quem a angiistia aparece. O sujeito € 0 afeto-angiistia; ele a vive de modo total, ¢ esta impreg- Ragio, esta captura do ego que se dissolve na angistia, € propria- mente o que impede’ a mediaga0 peta palavra. Podemos, neste nivel, fazer um primeiro paralelo entre dois estados que, embora diferentes, parecem- ‘me representar duas posicSes extre- mas do ego, opostas € a0 mesmo complementares: refiro-me 2 angistia € ao orgasmo. Neste segundo caso, ha a mesma incom: patibilidade profunda entre a possi- bilidade de vivé-lo ¢ a possibilidade de tomar a distincia necesséria para reconhecé-lo defin-lo no aqui agora da situacio desencadeada Dizer que se esti angustiado indica, or este proprio fato, j4 ter podido tomar uma certa distancia em relagao a vivéneia afetiva, o que mostra que © ego jd adquiriu um certo dominio ‘¢ uma certa objetividade frente a um afeto do qual, a partir deste mo- mento, pode-se duvidar que mereca ainda 0 nome de angiistia. Nao é necessirio aqui lembrar o papel metaforico e mediador da palavra, nem a distncia existente entre uma vivencia afetiva e sua traducao verbal. A partir do momento no qual 0 homem coloca em palavras seus afetos, ele justamente transforma-os em outra coisa: pela palavra, ele os torna um meio dle comunicacio, os faz entrar no dominio da relagao e da intencionalidade; transforma em comunicivel aquilo que foi vivido no nivel do corpo, € que, como tal, permanece em dhtima andlise na ordem nao-verbal. Todos sabemos que dizer que amamos alguém nao A angistia responde a um tem nome, “esta figura misteriosa, este “lugar de onde surge um desejo que nao se pode mais aprender’; ‘no qual se produz para © sujeito uma telesco- pagem entre fantasma realidade. O simbélico se esvanece para deixar lugar ao fantasma en- quanto tal, 0 ego se dis- solve nele, e € esta dis- solugaio que chamamos angistia. momento em que a chave da palavra j4 nao abre coisa alguma. ‘guarda mais do que relacdes longin- quas com aquilo que, em fungio deste mesmo amor, é sentido no nivel do corpo. Dizer a alguém que ‘odesejamos, lembrava-nos Lacan, € incluf-lo no nosso fantasma funda- mental; € também, sem diivida, torni-lo testemunha do nosso proprio significante, Diga-se o que se disser sobre este assunto, ele nos mostra sempre a distincia entre 0 afeto enquanto emoclo corporal, interiorizada, algo que tira sua fonte mais profunda daquilo que por de- finigo, no se pode expressar em palavras, ou seja, o fantasma - a distancia que existe entre isto © a palavra, que nos aparece assim em toda a sua funcio de metifora. Sea palavra é a chave magica e indispensivel, a tinica que pode per- mitir-nos entrar no mundo da sim- bolizaglo, penso que justamente a angtistia tesponde a um momento no qual esta chave mio abre mais porta alguma, no qual o ego tem de enfrentar 0 que esté atras ou & frente de qualquer simbolizacio; ‘no qual o que aparece € 0 que no 6 A angistia na andlise © psicético segura- mente nio espera a andlise para conhecer a angiistia. Também certo que para qualquer pes- 50a a relagio analitica 6, neste dominio, um ter- reno privilegiado. Nada 1d de espantoso nisso, se admitirmos que a angdstia tem as mais estreitas re- lagdes com a identificagao, Ora, se a identificagao tem a ver com algo que se passa no nivel do desejo, desejo do sujeito em relagio 20 desejo do Outro, torna-se evidente que a principal fonte da angiistia na andlise vai se encontrar no que € a prOpria essencia desta tiltima: 0 fato de que 0 Outro é, neste caso, alguém cujo desejo mais fundamental € no dlsejar, alguém que por isso mesmo, a0 permitir todas as projegdes possiveis, desvenda-as igualmente em sua subjetividade fantasmatica e obriga o sujeito a se perguntar pe- riodicamente qual é 0 desejo do analista, desejo sempre presumido, jamais definido, e que por isso mesmo pode a qualquer instante tomar-se 0 lugar do Outro de onde surge a anglistia para o analisando. ‘Mas antes de tentar definir os pardmetros da situacao ansiogénica, ardmetros que s6 se podem delinear a partir dos problemas préprios 4 identificagio, pode-se colocar uma primeira questio de ordem mais descritiva, a saber: o que en- tendemos quando falamos de anguistia oral, angistia de castragao, angtistia de morte? E impossivel dis- criminar estes termos diferentes no nivel de uma classificagio quantita- tiva; no existe um angustiémetro, no se est4 pouco ou muito an- eee angustia assinala o desmoronamento momentanio das referéncias identificatorias. gustiado: ou se est ou nao se esti angustiado. A tinica via de resposta neste nivel € nos colocarmos no lugar que nos convém: 0 de alguém que 56 pode definir a angiistia do sujeito a partir do que esta angtistia Ihe suscita. Se é verdade, como foi ‘observado por Lacan, que € muito dificil falar de angustia enquanto sinal no nivel do sujeito, parece-me certo que stia apaticao assinala o Outro como fonte, como lugar de onde ela surgiu. Nao é talver. iniitil lembrar a este respeito que ndo existe afeto pior de suportarmos no outro do que angtistia, que nao ha afeto frente a0 qual corramos mais 0 risco de responder de modo paralelo. O sadismo ou a agressividade podem, por exemplo, suscitar no parceiro luma reagio inversa, masoquista ou passiva; a angiistia 56 pode provo- car ou a fuga ou a angtistia, H4 aqui uma reciprocidade de resposta que nao deixa de suscitar uma questo. Lacan protestou contra a tenta- tiva, feita por muitos, de pesquisar uum “contetido da angtstia”. Isto me Iembra o que ele havia dito a res- peito de um outro assunto: por exemplo, para tirar um coelho de dentro de uma cartola, seria preciso primeiro té-lo colo- cado dentro dela. Eu me pergunto se a angiistia nao aparece justamente no ape- nas quando 0 Coelho saiu, ‘mas também quando fugiu: quando a cartola no re- presenta apenas alguma coisa que lembra uma tora, mas algo que circunda um lugar escuro do qual se evaporou todo contetido nomevel, diante do qual o ego nao tem mais qualquer ponto de referéncia, pois a primeira coisa que se pode dizer da angistia é que seu aparecimento é sinal do desmoronamento. momen- taneo de qualquer referén- cia identificatsria possivel Somente partindo daqui poderemos, talvez, responder a pergunta que me fazia ha pouco quanto as diferentes denominagoes a dar angtistia; e nao no nivel da definigio de um contetido, pois o proprio do sujeito angustiado, poder-se-ia dizer, € ter perdido o seu contetido, Em outros termos, nao me parece que se possa tratar da angtistia enquanto tal. Fazer isto parece-me tio erréneo quanto, por exemplo, querer definir um sintoma obsessivo permanecendo no nivel do. movimento automético que o pode representar. A angiistia s6 pode ensinar-nos alguma coisa sobre sua natureza se a considerarmos como conseqiiéncia, como resultado de ‘um impasse no qual se encontra 0 ego, sinal para nés de um obstéculo surgido entre estas duas linhas paralelas ¢ fundamentais cujas re- lagdes formam a dobradica de toda estrutura humana: a identificagao e acastracio. E.a partir da relacio entre estes dois pivs estruturantes nos diferentes sujeitos que vou procurar esbocar uma definicio do que é a angustia, daquilo de que, segundo & caso, ela nos da um testemunho. Do lado da castracio: 0 gozo Lacan, no seminario de 4 de abril, a0 qual me refiro a0 longo desta exposic20, disse-nos que a castragio poderia ser concebida como uma “passagem transicional centre o que est no sujeito enquanto suporte natural do desejo, € esta habilitacao pela lei, gracas 4 qual ele vai tomar-se a senha através da qual cle, sujeito, vai se designar no lugar onde deve se manifestar como de- sejo. Esta passagem transicional é 0 que deve permitir atingir a equivaléncia pénis-falo. Isto signi- fica que aquilo que, como suporte natural, era o lugar onde se mani- festa 0 desejo enquanto afeto, en- quanto emogio corporal, deve ceder espago para um significante. Pois é somente a partir do sujeito, € jamais a partir de um objeto parcial, pénis ou outro qualquer, que a palavra desejo pode ganhar um sen- tido. O sujeito cemanda e 0 falo deseja - dizia Lacan - 0 falo, mas nunca o pénis, O pénis € apenas um instrumento a servico do signifi- cante falo, € pode ser um instru- mento muito indécil justamente porque, enquanto falo, € 0 sujeito que ele esti designando. Para que a coisas funcionem, é preciso que ‘© Outro justamente o reconhega, 0 escolha, nao em funcdo deste “su- porte natural", mas na medida em que ele é, enquanto sujeito, 0 signi- ficante que 0 Outro reconhece de seu proprio lugar de significante. © que, no plano do goz0, diferencia 0 ato masturbatorio do coito, diferenca eviderite mas im- possivel de explicar fisiologi- camente, € 0 seguinte. Na medida TEXTOS em que os dois parceiros tenham odido, na sua hist6ria, assumir sua castra¢do, 0 coito faz com que, no momento do orgasmo, o sujeito reencontre, no como dizem al- guns, um tipo de fusio primitiva - pois, afinal, nada exige que o m: profundo gozo de que o homem é capaz deva forgosamente estar H- gado a uma regressio também total = mas, ao contrario, 0 coito faz com ee sua resposta, 0 Outro confere ao grito de necessidade a dimensao de um desejo. que 0 sujeito rencontre este mo- ‘mento privilegiado, no qual por um instante atinge esta identificacao sempre procurada ¢ sempre fugaz, onde ele é, 0 sujeito, reconhecido pelo outro como objeto de seu mais profundo desejo, mas onde, a0 mesmo tempo, gragas a0 gozo do outro, ele pode reconhecé-lo como aquele que o constitui enquanto significante falico. Neste instante Yinico, durante um momento fugidio, demanda e desejo podem coincidir, € isto € 0 que dé a0 ego este desabrochar identificatério do qual o gozo tira sua fonte. © que nao se pode esquecer € que, se neste instante demanda € desejo coincidem, 0 gozo em si mesmo traz no entanto a mais pro- funda fonte de insatisfacaio. Pois, se © desejo € antes de tudo desejo de continuidade, 0 gozo & por de- finicio algo instantineo: € aquilo que faz, com que imediatamente se restabeleca a distancia entre desejo ¢ demanda, que se restabeleca igualmente a insatisfagio, a qual € também prova da perenidade da demanda. Mas se existem simulacros de angiistia, ha mais simulacros ainda de gozo: pois, para que seja possivel esta situacio iden- tificatéria, fonte do ver- dadeiro goz0, é preciso que 08 dois parceiros tenbam evitado 0 obsticulo maior que os espreita. Este obs- taculo € que um dos dois ou ambos tenham per- manecido fixados no ob- jeto parcial. Ou seja, uma telagio dual onde eles, en- quanto sujeitos, no tém lugar. Tuco 0 que esti i gado A castragio mostra- nos que, longe de expres- sar o temor da separacio (mesmo se € assim que 0 sujeito 0 pode verbalizar), nna castraglo 0 temor 6 que Ihe deixem o pénis ¢ Ihe cortem todo o testo: isto é, que se queira 0 seu pénis ou © objeto parcial, suporte € fonte de prazer, e que ele seja negado © desconhecido enquanto sujeito. £ por isso que no somente 2 angiistia tem relages estreitissimas com © gozo, mas que uma das si- tuagdes mais facilmente ansiégenas é aquela na qual 0 syeto e 0 Outro tém que se enfrentar no plano do gozo. Objeto parcial ¢ identificacao: ‘© modelo oral ‘Vamos agora tentar ver quais so 05 obsticulos que 0 sujeito pode encontrar neste plano: eles representam exatamente as fontes de toda angéstia. Para isto, vamos nos reportar 20 que chamamos as 8 relagdes de objeto pré-genitais, a esta época mais do que todas deter- minante para o destino do sujeito, onde a mediagio entre o sujeito eo Outro, entre demanda e desejo, fa2- se a0 redor deste objeto cujo lugar € cuja definicdo permanecem muito ambiguos, ¢ que € chamado de objeto parcial. A relagio entre 0 sujeito e este objeto parcial nao € outra coisa seniio a relacio do sujeito com seu proprio corpo, e é a partir desta relacdo, que permanece fundamen- tal para todo humano, que se origina e se modela toda 2 gama do que est incluido no termo “relagaio de objeto”, Quer nos detenhamos na fase oral, na fase anal ou na filica, en- contramos as mesmas coordenadas. Se escolho a fase oral, € simples- mente porque, para 0 psicético, do qual falaremos em seguida, cla me Parece ser 0 momento fecundo do que, em outra ocasizio, chamei de abertura da psicose. Pelo que podemos defini-la? Por uma demanda que, desde o inicio, € demanda de outra coisa; também por uma resposta que nio apenas ¢ de modo evidente é res- posta a outra coisa, mas - © este € uum ponto que me parece muito importante - que confere a1 um grito, talvez a um apelo, 0 sentido de demanda ¢ de desejo. Quando a mie responde aos gritos da crianca, ela os reconhece e os constitui como demanda; mas o mais grave é que ela os interpreta no plano do desejo - desejo da erianca de t@-la por perto, desejo de Ihe tomar al- guma coisa, desejo de agredi-la, pouco importa, © certo € que, por sua resposta, o Outro vai dar dimen- sto de desejo ao grito de necessi- dade; ¢ este desejo do qual crianga € investida € sempre, no inicio, re- sultado de uma interpretagio sub- jetiva, Fungo apenas do desejo ma- temo, do pr6prio fantasma da mie. sujeito faz sua entrada no mundo do desejo pelo viés do in- consciente do Outro; a partir disto, seu proprio desejo precisa consti- tuir-se como resposta - como acei taco ou como recusa de assumir 0 lugar que o inconsciente do Outro Ihe designa, Parece-me que o primeiro tempo do mecanismo- chave da relacio oral, que é a identificacao projetiva, parte da mie: h4 uma primeira projecio no plano do desejo que vem dela, A crianga terd que se iden- tificar a esta projecio ou a com- ater, negando uma identifi- cacao passivel de ser sentida como determinante, Neste primeiro estigio da evolucio humana, esté também a resposta que poder propor- cionar ao sujeito a descoberta do que sua demanda esconde Apartir deste momento, 0 goz0, que nao espera a organizacio filica para entrar em jogo, g2- nharé este aspecto de revelacio que conserva para sempre. Pois se a frustraco € o que significa a0 sujeito a distancia que existe entre necessidade e desejo, 0 020, pelo caminho inverso, € respondendo a isto que no estava formulado, revelalhe © que esta além da demanda, isto é, 0 desejo. (Ora, 0 que vemos na relacio oral? Antes de mais nada, que demanda € resposta significam-se para os dois parceiros em torno da relagio par- cial boca-seio. Este nivel, podemos chamé-lo de significado: a resposta vai provocar no nivel da cavidade oral uma atividade de absorcdo, fonte de prazer; um objeto ex- temo, o leite, vai tornar-se subs- tancia propria, corporal; é dai que a absorgao tira sua importincia ce sua significagio, A partir desta primeira res- posta, € a procura desta atividade de absorgio, fonte de prazer, que vai se tomar o alvo da demanda. Quanto ao desejo, sera preciso pro- curé-lo em outro lugar, embora seja a partir desta mesma resposta, desta mesma experiéncia de satisfacto da necessidade, que ele vai se consti- tuir, Com efeito, se a relagio boca- scio ea atividade absorgao-nutrigao sto 0 numerador da equacao que representa a telacio oral, ha tam- bém um denominador: 0 que coloca em causa a relagio crianca- mie, E é af que se pode situar 0 el ede uar gue significado se engendra na frustragao - distancia entre _. demanda ¢ desejo. desejo. Penso que a atividade de amamentar - em fungao do investi- mento reciproco do qual ela é ob- jeto, por causa do contato e das experiéncias no nivel do corpo em sentido amplo, € devido a sua propria repeticdo - permite a cri- anca viver a fase fundamental € essencial do estigio oral. £ preciso lembrar que este € 0 caso mais visivel da veracidade do provérbio que diz: "a maneira de dar vale mais do que 0 que se da”, Gracas a esta maneira de dar, em fungi do que la the revelard do desejo materno, a.criana vai captara diferenga entre dom de alimento edom de amor. Paralelamente & absorco. do alimento, veremos se organizar no denominador de nossa equagio a absorgdo, ou melhor, a introjecdo de um significante relacional. Isto é, paralelamente a absorcao nutritiva, hhaverd introjegio de uma relagio fantasmatica, na qual a crianca € 0 outro serio representados por seus 9 desejos inconscientes. Ora, seo nu- merador pode facilmente ser inves- tido de um sinal + [positivol, o denominador pode, no mesmo mo- mento, ser investido do sinal - [ne- gativol. E esta diferenca de sinal que dé ao seio seu lugar de signifi- cante, porque € exatamente desta distancia entre demanda e desejo, a partir deste lugar de onde surge a frustragio, que se engendra todo e qualquer sig- nificante. A partir desta equago, que mutatis mutandis poder-se-ia reconstituir para as diferentes fases da evolucio do sujeito, quatro eventualidades sto pos- siveis: elas resultam naquilo a que se chama a normalidade, a neu- rose, a perversio € a psicose. Tentarei esquematizé-las, € claro que as simplificando de modo um pouco caricatural, para discernir a5 relagdes exis- tentes em cada caso entre iden- tificagio ¢ anguistia. Normalidade/neurose A primeira destas vias é, sem diivida, a mais ut6pica: imaginemos que a crianga possa encontrar no dom do alimento 0 dom de amor desejado. O seio e a resposta ma- tetna poderdo entdo tornar-se sim- bolos de outra coisa; a crianca en- trard no mundo simbélico, poder aceitar 0 desfiladeiro da cadeia significante. A relacdo oral, enquan- to atividade de absorcio, podera ser abandonada e 0 sujeito evoluirs namo a uma solucao normativa. Mas para que a crianca possa assumir esta castracao, para que possa renunciar a0 prazer que Ihe € oferecido pelo seio em fungao deste pequeno bilhete, deste contrato aleat6rio so- bre o futuro, é necessfrio que a mie tenha podido assumir sua propria castragio. E preciso que desde este momento, desde esta relacio dita TEXTOS dual, o terceiro termo, © pai, esteja presente enquanto referéncia ma- tera, Somente neste caso 0 que ela vai buscar na crianga mio seri uma satisfacao no nivel da erogeneidade corporal, o que tornaria esta crianga um equivalente félico, mas sim uma relaco que, em constituindo-a como mie, reconhece-a na mesma medida, como mulher do pai O dom de alimento sera entio, para ela, o puro simbolo de um dom de amor. E justamente porque este dom de amor nao seri o dom filico desejado pelo sujeito, a crianga poder manter sua relaglio com a demanda, Iré procurar 0 falo em ‘outro lugar, e entraré no complexo de castragio, tnico capaz de Ihe permitir identificar-se com outra coisa que nao um $. A segunda eventualidade é aquela em que, para a propria mac, na castracao, algo permaneceu mal assumido. Entio, qualquer objeto capaz de ser para 0 outro fonte de prazer ¢ alvo de demanda corre 0 risco de se tomar para a mie 0 equivalente filico que ela deseja, Mas, na medida em que o seio S6 tem existéncia privilegiada em fungio daquela para quem ele, seio, € indispensavel (ou seja, a crianca), vemos se formar a equivaléncia crianga/falo, que esti no centro da sgénese da maior parte das estruturas neuréticas. No decorrer de sua evolugio, © sujeito iri defrontar-se constantemente como dilema “ser ou ter 0 objeto” corporal, seio, pénis, falo, que se toma portanto 0 suporte filico. Ele iri identificar-se com aquele que 0 tem, mas, por nao ter podido ultrapassar 0 estigio do su- porte natural e ndo ter podido chegar 0 simbélico, o fer significari sempre para ele um ter castrado 0 Outro. Ou eentio, o sujeito renunciard a té-lo; se identificari ao falo enquanto objeto do desejo do outro, mas terd entio gue renunciat a ser, ele, 0 sujeito do desejo. Este conflito identificatério entre sero agente da castracdo ou 0 sujetto que a sofreé o que define esta altemancia continua, esta questio sempre presente no nivel da identi- ficagao, que clinicamente se chama ‘uma neurose. Perversio A terceira eventualidade Queria dizer mais uma palavra sobfe a perversdo em geral. Nao penso que seja possivel defini-la se ficarmos no plano que se poderia. chamar, entre aspas, ‘sexual’, em- bora seja a isto que nos parecem conduzit as visoes classicas sobre 0 €aquela que encontramosna perverso. Esta tiltima foi de- finida como 0 negativo da neurose; nds encontramos esta posicao estrutural no nivel da identificagao. O per- verso é aquele que eliminou © conflito identificatério; no plano que escolhemos, o oral, diremos que na per- Versio 0 sujeito se constitui como se a atividade de ab- soreao tivesse como nico fim fazer dele 0 objeto que permite a0 Outro um goz0 falico, © perverso mio tem e nao € 0 falo: ele € este objeto ambiguo que serve a um de- sejo que mio 0 seu. Pode tirar seu goz0 unicamente desta situacio estranha, na qual a tinica identificagio que lhe resta € aquela que o faz iden- tificar-se, nem com o Outro nem com o falo, mas com este objeto cuja atividade permite o gozo a um falo do qual, em definitivo, ele nora a quem pertence. Poder-se-ia se dizer que 0 desejo do perverso é responder 4 demanda filica, Para tomar um exemplo banal, diria que © goz0 do sidico necessita, para surgi de um Outro para quem, em se fazendo chicote, © prazer possa ‘manifestar-se Falei de demands filica, o que um jogo de palavras, porque para © perverso 0 outro tem existéncia apenas enquanto suporte quase andnimo de um falo para o qual ele cumpre seus ritos sacrificiais. A res- posta perversa traz sempre consigo uma negagto do outro enquanto sujeito; a identificagio perversa se faz sempre em funcao do objeto fonte de gozo para um falo to poderoso quanto fantasmatico. 10 A telacao entre o ego e “sua identificacdo € 0 que marca.a normalidade, a neurose ou a _perversao. assunto. A perversio € - € nisso parece-me que permaneco muito préxima das opinides de Freud - uma perversio no nivel do gozo, pouco importando a parte do corpo acionada para obté-lo. Par tilho da desconfianga de Lacan so- bre o que se chama a genitalidade: € muito perigoso fazer andlise anatomica. O coito anatomi- camente mais normal pode ser tao neurético ou tio perverso quanto co que se chama pulsao pré-genital: © que marca a normalidade, a Reurose ou a perversio s6 pode ser visto no nivel da relagio entre © ego e sua identificacao, a qual permite ou nao 0 goz0. Se quisermos restringir o diag- néstico de perversio somente aos perversos sexuais, no somente nao chegaremosa coisa alguna - pois um diagnéstico puramente sintomatico nunca quis dizer nada - mas ainda seremos obrigados a reconhecer que hd bem poucos neursticos que escapario a tal diagnéstico. A solucato tampouco pode ser encon- trada no nivel de uma culpabilidade da qual o perverso estaria isento: nao ha, ao menos segundo meu conhecimento, ser humano feliz o bastante para ignorar o que € a culpabilidade. A nica maneira de se aproximar da perversio € tentar defini-la onde ela estd, ou seja, no N, psicose, a ctianga é testemunha de que o seio é 0 falo. nivel de um comportamento re- lacional. O obsessivo esti longe de poder sempre desconhecer ou man- ter disténcia o sadismo: 0 que este significa para 0 obsessivo € bem a persisténcia do que se chama uma relagio anal, ou seja, uma relacio onde se trata de possuir ou de ser possuido, uma relacio onde o amor que se expetimenta ou do qual se € objeto s6 pode ser significado para o sujeito em funcao desta pos- sesso, que pode justamente ir até a destrui¢ao do objeto. O obsessivo, poder-se-ia dizer, é aquele que ver- dadeiramente castiga bem porque ama bem; ele € aquele para quem a palmada do pai conservou a marca privilegiada de seu amor, e que procura sempre alguém a quem a dar ou de quem a receber. Mas, tendo recebido ou dado, estando, seguro que alguém 0 ama, é num outro tipo de relago com 0 mesmo objeto que ele buscard o gozo; e quer esta relagio se faga oral, anal ou vaginalmente, ele nio serd perverso no sentido que estou caracterizando, © que me parece 0 tinico capaz de evitar que se coloque a etiqueta “perverso” num grande ntimero de neuréticos ou num grande nimero de nossos semelhantes. © sadismo torna-se uma perversio quando a palmada nto é mais bus- cada ou dada como sinal de amor, mas quando, en- quanto tal, ela é assimilada pelo sujeito a tinica possi- bilidade existente de fazer gozar um falo; e a vista deste gozo torna-se a tinica via oferecida ao perverso para seu préprio gozo. Tem-se falado muito da agressividade da qual Proviria 0 exibicionismo: ‘mostra-se 0 sexo para agre- dir © outro, sem duvida, mas é preciso no esquecer que 0 exibicionista esta convencido de que esta agressio é uma fonte de goz0 para_o Outro. Quando 0 obsessivo vive uma tendéncia exibicionista, pode- se dizer que tenta seduzir 0 outro: mostra o que ele pensa que 0 outro no tem e cobica. Mostra, de fato, algo que para ele tem as relagdes mais estreitas com a agressividade. Pensem no que se passa com 0 Homem dos Ratos: © goz0 do pai morto é a tiltima de suas preocu- pagdes. Mas mostrar ao pai morto aquilo que 0 Homem dos Ratos pensa que este pai morto iria dese- jar arrancar-lhe fantasmaticamente, eis algo que se chama agressivi- dade. Desta agressividade 0 obses- sivo tira seu goz0. Somente através de um gozo alheio € que o perverso encontra 0 seu. A perversiio é justamente isto: esta caminhada em: zigue-zague, u este rodeio que faz com que seu ego esteja sempre, 0 que quer que faga, a servigo de um poder félico anénimo; pouco Ihe importa quem 0 objeto. Basta que este seja capaz de gozar, que possa funcionar como, suporte deste falo face a quem ele se identificard; identificacao, é claro, com 0 objeto imaginado ‘como capaz de proporcionar 0 g0z0 a este falo, Por isso, contrariamente a0 que se vé na neurose, a identifi- cago perversa - com seu tipo de relacio de objeto - € algo que im- pressiona pela estabilidade e pela unidade. Chegamos agora, a quarta eventualidade, a mais dificil de compreender: a psicose. Psicose O psicético € um sujeito cuja demanda jamais foi simbolizada pelo Outro. Para ele, real e sim- bélico, fantasma € realidade, jamais, puderam ser delimitados, porque ele mio péde aceder a esta terceira dimensao, a tinica que permite esta diferenciacao indispensavel entre 08 dois niveis, ou seja, o imaginario. Mas aqui, mesmo tentando simplifi- car a0 maximo as coisas, somos obrigados a situar-nos bem no inicio da hist6ria do sujeito, antes da relagio oral, isto é, no momento da concepcio. A primeira amputagio softida pelo psicético passa-se antes de seu nascimento: ele é, para sua mae, objeto do préprio metabolismo dela; a participagao paterna, inaceitavel, € negada por ela. Ele 6, 2 partir deste momento e durante toda a gestagao, o objeto parcial que veio preencher uma falta fantas- mitica no nivel do corpo matemo. E, desde o nascimento da crianga, 0 papel que a mae The designa seri o de prova da negagio de sua cas- tragio. A crianga, contrariamente a0 que se diz. com freqtiéncia, nao € o falo da mie; é 0 testemunho que 0 seio € 0 falo, 0 que nao é a mesma TEXTOS ‘coisa, B, para que o seio seja 0 falo, ¢ um falo todo-poderoso, é preciso que a resposta que ele traz seja perfeita e total. A demanda da cri- anga nao poderd ser reconhecida como nada além da demanda de alimento. A dimensio “desejo”, no nivel do sujeito, deve ser negada; ¢ © que caracteriza a mae do psicético €2 interdigao total feita & crianga de ser 0 sujeito de qualquer desejo. Vé-se, a partir deste momento, ‘como vai se constituir para 0 psicético sua relagio par- ticular com a palavra,como, desde 0 inicio, Ihe sera im- possivel manter sua relacio coma demanda. Com efeito, : ee anguistia é isto: uma imagem sea resposta jamais se dirige a ele exceto enquanto boca ® @ nutris, enquanto objeto parcial, compreende-se que para ele a demanda, no mo- ‘mento mesmo de sua formu lacao, traga consigo a morte do desejo. Por nao ter sido simbolizado pelo Outro, 0 sujeito faré coincidir, na res- posta, 0 simbdlico € 0 real. Uma vez que o que ele de- ‘manda € 0 alimento que Ihe €dado, oalimento enquanto tal se tornard para ele 0 sig- nificante-chave. O sim- bolico, a partir deste mo- ‘mento, fard irrupcao no real; em vez de o donde alimento encontrar seu equivalente simbolizado no dom de amor, para ele qualquer dom de amor 56 poderd ser significado por ‘uma absorcio oral. Amar 0 outro ou ser amado por ele se traduziré para este sujeito em termos de oralidade: absorver ou ser absorvido. Haverd para ele sempre uma contradicao fundamental entre demanda ¢ de- sejo: pois, ou bem ele mantém sua demanda, ¢ essa demanda o destréi enquanto sujeito de um desejo, de- vendo ele alienar-se enquanto su- jeito para se fazer boca, objeto a nutrir; ou bem ele procurara consti- tuir-se enquanto sujeito, como pu- der, e ser entio obrigado a alienar a parte corporal dele mesmo que € fonte de prazer e lugar de uma res- posta incompativel, para ele, com qualquer veleidade de autonomia. © psicético esté sempre obri- gado a alienar 0 corpo enquanto suporte de seu ego, ou a alienar uma parte corporal enquanto su- porte de uma possibilidade de 4g0z0. Se no emprego aqui o temo identificacao, € que justamente acredito que, na psicose, ele no é aplicivel: a identificagio, na minha que ja nao tem significado identificavel. 6ptica, implica a possibilidade de uma relacdo de objeto na qual o desejo do sujeito € 0 desejo do Outro estejam em situacio conflitu- sa, mas existentes enquanto dois pélos constitutivos da relagio. Na psicose, € no nivel da re- lagio fantasmatica do sujeito com seu proprio corpo que seria preciso definir 0 Outro € 0 seu desejo, Nao © farei aqui; isto nos afastaria do ‘nosso assunto, que é a angistia Contrariamente 20 que se poderia crer, € dela que tenho falado 20 longo de toda esta exposicio. Como disse no inicio, é somente a partir dos parimetros da identificagae que me parece possivel atingi-la. (Ora, 0 que vimos? Que seja no sujeito dito normal, no neurbtico ou no perverso, qualquer tentativa de 2 identificacao pode-se fazer somente a partir do que ele imagina (tanto faz se € verdadciro ou falso) sobre © desejo do Outro. Quer se tome o sujeito dito normal, © neurdtico ou © perverso, voces viram que se trata sempre de se identificar em fungao do que ou contra 0 que ele pensa ser 0 desejo do Outro, Contanto que este desejo possa ser imaginado, fantasmado, 0 sujeito vai encontrar nele as referencias necessérias para se definir a si préprio en- quanto objeto do desejo do Outro, ou enquanto objeto que se recusa a este papel. Nos dois casos, o sujeito € alguém que pode se de- finir, se orientar. ‘Masa partir do. mo- ‘mento em que o desejo do Outro se torna algo miste- rioso, indefinivel, © que se revela ao sujeito € que jus- tamente esse desejo do Ou- tro era aquilo que o consti- tuitia enquanto sujeito. O que ele encontraré, o que se revelaré neste momento frente a este vazio, € seu fantasma fundamental: ser © objeto do desejo do Ou- tro nto é uma situagio sustentivel, a menos que possamos nomear este de- sejo © modelé-lo em funcio de nosso préprio desejo. Tornarmo-nos objeto de um desejo a0 qual nio podemos mais dar nome, porém, é tomarmo-nos és mesmos um objeto sem nome, que perdeu toda identidade possivel. E tornarmo-nos um objeto eujas insignias nao tém mais sentido, j que sao indecifréveis para 0 Outro; este momento preciso no qual 0 €go se reflete num espelho, mas este lhe reenvia uma imagem que jé nao tem significado identificivel - a angistia € isto. Chamando-a oral, anal ou filica, nao fazemos mais do que ten- tar definir quais eram as insignias ‘com que o ego se paramentava para se fazer reconhecer, Se somente 1n6s, analistas, enquanto aquele que aparece no espelho, podemos fazer este reconhecimento, é que somos 98 Uinicos a poder ver de que tipo sto estas insignias que nos acusam de no mais reconhecer. Iso porque, como dizia no inicio, a angtistia € 0 afeto que mais facilmente pro- yoca uma resposta reciproca: € exatamente a partir deste momento que nos tomamos part o Outro aquele cujas insignias sao também N, angutistia, 0 Outro - como. suporte identificatério - também. se dissolve. misteriosas, também nao-humanas, Na angiistia, nao € somente 0 ego que se dissolve: é também 0 Outro enquanto suporte identificatério. Neste mesmo sentido, localizo minha posicio afirmando “que o goz0 € a angtistia sio as duas osigdes extremas onde 0 ego pode se situar. Na primeira, 0 ego € 0 Outro, por um instante, trocam suas insignias, reconhecem-se como dois significantes, cujo goz0 parti- Thado assegura durante um. ins- tante a identidade dos desejos. Na angistia, 0 ego € 0 Outro dis- solvem-se; so anulados numa si tuagZo na qual o desejo se perde por nao poder ser nomeado. Se agora, para conctuir, passar- ‘mos psicose, veremos que as coisas slo um pouco diferentes. Cer tamente, aqui também a angtstia & simplesmente o sinal da perda para © 0 de toda referencia possivel. Mas a fonte de onde nasce a angtistia € aqui endégena: o lugar de onde pode surgir 0 desejo do sujeito, e para 0 psicdtico, seu desejo é a fonte privilegiada de toda angtistia © Outro nos constitu nos re- conhecendo como objeto de de- sejo; sua resposta € que nos faz tomar consciéncia da distancia exis- tente entre de- manda e desejo, e 6 por esta brecha que entramos no mundo dos signifi- cantes. Para o psicético. contudo, este Outro é aquele gue sempre o signi- ficou como outra coisa, um buraco, um vazio bem no centro de seu ser. A jar que the foi im- posta fez com que sua resposta Ihe fizesse apreender nao uma distincia, mas uma antinomia fundamental entre demanda e desejo. E nesta distancia, que mio € uma brecha mas um abismo, 0 que surge nao € o signifi cante, mas 0 fantasma, é isto que provoca a telescopagem entre sim Dolico e real a que chamamos psicose. Para o psicético - e peco des- caulpas por ater-mea meras formulas = 0 Outro € introjetado no nivel de seu proprio corpo, no nivel de tudo © que envolve esta abertura primeira, a tnica que o designa enquanto sujeito. A angtstia esté para ele ligada a estes momentos especificos nos quais, a partir desta abertura, aparece alguma coisa que poderia se chamar desejo. Pois, para que o possa assumir, & preciso que o sujeito aceite situar-se no tinico lugarde onde pode dizer “eu”; isto €, que ele se identifique com esta B abertura que, em fungao da inter- digo do Outro, é 0 tinico lugar onde ele € reconhecido como su- jeito. Qualquer desejo s6 pode re- meté-lo a uma negacio dele mesmo ‘ou a uma negagio do Outro. Mas, na medida em que o Ou- tto tiver sido introjetado no nivel de seu proprio corpo, esta introjegao é a tinica coisa que Ihe permite viver. Disse em outro momento que, para © psicotico, a tinica possibilidade de se identificar a um compo imaginario unificado seria a de se identificar a sombra que, diante dele, projetaria um corpo que nao o seu. Toda negago do Outro sera para ele 0 ‘equivalente de uma auto-mutilagio, que em qualquer circunstincia 0 remeteré ao seu proprio drama fun- damental. No neurético, € a partir de nosso siléncio que podemos achar as fontes desencadeadoras de sua angtistia; no psicético, a partir de nossa palavra, de nossa presenga. Tudo o que puder the fazer perder a consciéncia de que existimos como diferentes dele, enquanto su- jeltos auténomos, ¢ que por isso mesmo podemos reconhecé-lo como suieito, torna-se capaz de de- sencadear sua angiistia. Enquanto (fala, ele s6 repete um monélogo ‘que nos situa no nivel deste Outro introjetado que 0 constitui. Mas se conseguir falar conosco, se puder- mos enquanto objeto tornarmo-nos © lugar onde ele pode reconhecer seur desejo, entio veremos desen- cadear-se sua angtstia. Pois desejar é ter se constituido como sujeito, € para ele, 0 tinico lugar onde pode fazer isto € o que 0 joga novamente em seu abismo. Em conclusio Em conclusio, vocés veem que € possivel dizer que 2 angustia aparece no momento em que o desejo faz do sujeito algo que uma falta de ser, uma falta de se nomear. Hé um ponto do qual nao tratei € TEXTOS ‘que lamento ter que deixar de lado: ele € fundamental para mim e eu apreciaria ter podido falar dele. In- felizmente, para que eu pudesse inclui-lo, seria necessério ter maior dominio sobre o tema que tentei abordar. Refiro-me ao fantasma, Ble também est4 intimamente ligado & identificagio © 2 angiistia, a tal ponto que se poderia dizer que a angtstia aparece no momento no qual 0 objeto real no pode mais ser apreendido, a nao ser na sua significagao fan- tasmatica, Isto porque, a partir deste momento, dis- solve-se toda identificacao possivel do ego: af aparece @ angistia Se é a mesma hist6ria, nao € 0 mesmo discurso, pot hoje, pararei por aqui. Mas, antes de conchuir este discurso, gostaria de trazer um exemplo clinico muito curto sobre as fontes da angiistia no psicético. Nao direi nada da hist6ria, exceto que se trata de um grande esqui- zofrénico, delirante, inter- nado diversas vezes. As primeiras sessdes sto uma ex- posigao de seu delirio, delitio bas- tante classico: € o que ele chama “problema do homem-robo". Depois, numa sesso na qual como por acaso se trata do problema do contato e da fala, ele explica-me que © que mio pode suportar € a “forma da demanda’, que 0 “aperto de mio € um progresso sobre as civilizagbes de saudagio verbal, onde a palavra falseia a5 coisas, im- pede a correspondéncia, onde a palavra é como uma roda que gira € onde cada um veria uma parte da roda em momentos diferentes, € en- 0, quando alguém tenta se comu- nicar, isto fica totalmente falso, ha sempre um didlogo’. Nesta mesma sessio, no_mo- ‘mento no qual aborda © problema da fala da mulher, ele me diz de repente: “o que me inquieta €0 que me disseram sobre os amputados: que eles sentiriam coisas através do membro que jf no tm mais’. E, neste momento, este homem - cujo discurso guarda na sua forma deli- rante uma precisto e uma exatidio ‘matematicas - comega a procurar a3 A imagem no espelho pode sero do vazio que torna impossivel 0 reconhecimento reciproco. palavras, a se confundir. Diz que iio pode mais acompanhar seus pensamentos; ¢ finalmente, pro- nuncia esta frase que acho ver dadeiramente forte quanto ao que 6, para 0 psicético, sua imagem do corpo: “um fantasma seria um homem sem membros e sem corpo que, com sua inteligéncia apenas, perceberia sensagdes falsas de um corpo que no tem. Isto, isto me preocupa tremendamente”. “"Perceberia sensacdes falsas de lum corpo que nao tem": esta frase vai encontrar seu sentido na sesso seguinte, quando 0 paciente vem me ver para dizer que quer inter- romper as sesses, que nio era mais, suportivel, que era malsio e perigoso. E 0 que é malsio e perigoso, o que suscita uma angistia que durante toda esta sesso se fari fortemente sentir, € “que eu me dei 4 conta que vocé quer me seduzir, e que voc® conseguitia”. Aquilo de que ele se deu conta é que, a partir destas “sensagdes falsas de um corpo que ele niio tem’, poderia surgir seu desejo, E entio, ele iria reconhecer, assumir esta falta que € seu corpo; iria ver aquilo que, nao tendo podido ser simboli- zado, mio é suportével para ‘© homem: a castracao en- quanto tal. Ainda nesta mesma sesso, diré methor do que eu jamais poderia fazé-lo, conde esta para ele a fonte da angistia: “Voce tem medo de olhar num espelho, pois 0 espelho muda segundo os olhos que o olham. Nao se sabe muito o que se vai ver Se voce comprar um espelhio dourado é melhor..."Tem-se a impressio de que ele quer se assegurar de que as ‘mudangas sejam do espetbo. Vocés véem: a angtistia aparece no mo- mento no qual ele teme que eu possa tornar-me um objeto de desejo. Pois, a partir deste mo- mento, 0 surgimento de seu desejo implicaria, para ele, a necessidade de assumir 0 que chameia falta fundamental que 0 constitui ‘A partir deste momento, a angiistia surge: sua posicio de fan- tasma, de rob6, no € mais susten- tivel. Ele corre o risco de nao mais, poder negar suas "sensagdes falsas de um corpo que nao pode reco- nhecer”. © que provoca sua angdstia € exatamente 0 momento preciso no qual, face a irupgao de seu desejo, ele se pergunta qual imagem dele proprio 0 espelho vai Ihe devolver. Sabe que esta ima- gem pode muito bem ser a da falta, a do vazio, daquilo que torna im- possivel qualquer reconhecimento recfproco. NOs, espectadores e atores involuntérios do drama, chamamos esta imagem: angdistia.

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