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Deus Se hé uma nogio que resume toda a concepcaio de mundo dos homens da Idade Média, éa de Deus. Nao hé ideia mais englobante, mais universal, que essa. Deus compreende, ou melhor, excede todo 0 campo concebivel da experiéncia, tudo o que é observavel na natureza, incluindo os homens, tudo o que é pensavel, a comecar pela prépria ideia de Deus. Ble é todo- ~poderoso, eterno, onipresente. Escapa ao entendimento e a todas as ten- tativas de figuragao. Tais sao os dados fundamentais da crenga em Deus. Ao menos para o crente. Para o historiador, mesmo que ele seja crente, problema € outro: Deus é uma criagdo humana como outras, 0 produto da histéria de uma época, um meio, uma tradigZo cultural, sujeito a mudangas no espago © 0 tempo. Todas as caracteristicas que a Cristandade medieval atribuiu 2 Deus: incluindo 0 préprio nome Deus, sio o resultado de um longo trabalho da hist6ria que comecou muito antes do nascimento do cristianismo e€ PrOS- seguiu ao longo de toda a época medieval. A palavra latina deus, nome 8 nérico de Deus na Idade Média, nao é senio a tradugio do grego theos, que Fem uma taiz indo-europeia muito antiga, deiwes, que quer dizer “o lumi- noso”, ° “celeste”, em Oposicio a natureza “terrestre” do homem (homo, de burns, “a terra”). Se o nome cristo “deus” € de origem indo-curopel?, tuma grande parte das mais importantes caracterfsticas de Deus vem da BI- bliae através dela, do judafsmo antigo e das culturas semiticas do Oriente 338 Deis Médio. E por volta do século XIII antes de nossa era que se estabelece a Alianga entre, de um lado, Moisés e povo hebreu condenado ao fxodo , de outro lado, Iahweh, 0 “Ser”, 0 Inefavel, que se nomeia por estas simples palavras: "Eu sou”. Desse modo nasce o Deus de Israel, o Deus de Abrazo, de Isaac e de Jac6. Os hebreus sabem que para outros povos, na Babilonia ou no Egito, existem outros deuses. Mas, para cles, Iahwch € v tinico, 0 todo-poderoso, 0 infinito, 0 criador de todos os seres e de todas as coisas, ““g mestre da histéria assim como da natureza”, como diz o javista (assim nomeado justamente porque chama Deus de Iahweh), 0 primeiro redator da Biblia, no século IX antes de nossa era. Aos poucos, a concepcio dos hebreus evolui: j4 no mais consideram Iahweh apenas como 0 Deus finico de Israel, fazem-no 0 tinico e verdadeiro Deus de todos os homens, quali- ficando os outros deuses de “falsos deuses” e assimilando o culto que lhes era rendido a idolatria. Nao hd mais lugar para “deuses estrangeiros”. O cristianismo assumiré e mesmo endurecerd a ligao quando transforma em deménios esses “falsos deuses”. Mais ou menos ao mesmo tempo, o Deus ciumento do povo de Israel, que era antes de eudo um poder, um soberano, um chefe de armas, torna-se uma “pessoa” que dialoga com seus profetas. Deus cada vez mais pessoal, ele inscreve no homem, em seu coracio, como diz Jeremias (31,3 1-4), a lei de sua nova alianga. Assim, uma relagao mais afetiva e exaltada se estreita entre o homem e Deus, que o cristianismo sa- beré nao somente preservar, como aprofundar na relagdo de amor entre 0 Filho do Homem, isto 6, 0 Filho de Deus que se faz homem por amor aos homens, ¢ cada set lumano em particular Se as continuidades so evidentes na longa tradicio judaico-crista, as Tuptutas nao o sao menos. Para os cristaos, Jesus realiza a promessa pro- fética da vinda do Messias e poe fim a espera. Nao é um simples. enviado de Deus: é 0 préprio Deus na pessoa de seu Filho. O monoteismo, gra- $28 ao judafsmo antigo, era uma questao resolvida. O que 0 cristianismo afirmou de radicalmente novo foi, de um lado, a representagio complexa © paradoxal de um Deus ao mesmo tempo uno por esséncia e trino pelas Pessoas do Pai, do Filho e do Espirito Santo; e, de outro lado, a alteracao de toda ideia de Histéria pelo fato de que Deus, no tempo, na pessoa de seu Filho, se fez homem. 339 Diciondrio analitico do Ocidente medieval Os Evangelhos, é verdade, nio apresentam uma formulacio tealmente sistemética da Trindade, Mas todos os quatro evocam, a0 menos de mode narrativo, trés atores divinos distintos ¢ indissociaveis quando do batismo. deJesus nas aguas do Jordéo: “Batizado, Jesus subi imediatamence da fgua e logo os Céus se abriram ¢ ele viu o Espirito de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele. Ao mesmo tempo, uma voz vinda dos Céus dizia ‘Este € 0 meu Filho amado™ (Mateus 3,16-7). O prdprio Jesus ordenarg em seguida a seus discfpulos que fossem batizar todas as nagSes “em nome do Pai, do Filho ¢ do Espirito Santo” (Mateus 28,19). De modo mais preciso, o prélogo do Evangelho de Joao afitma a distingio ¢ a unidade do Pai e do Filho: “No prinefpio era o Verbo e o Verbo estava com Deus eo Verbo era Deus” (Jodo 1,1). Mais tarde, Sao Paulo insistira sobre o papel do Espirito como liame entre Pai e o Filho (Epistola aos romanos 1,4, e Atos dos Apéstolos 2,34-6). E com fundamento nesses textos, que jul- gavam revelados, que a Igreja e o primeiro imperador cristio Constantino fixaram o dogma trinitdrio durante © primeiro Concilio de Niceia, em 325. Outra novidade paradoxal do cristianismo: Encarnagio. Deus, eterno e todo-poderoso, criador do universo, nfo se contentou em entrar na his- téria se fazendo homem. Mais escandalosamente ainda, ele quis morrer da pior maneira, no suplicio infamante da cruz, signo de servidao. Enquanwo 9 judaismo, depois da destruigio do Templo, havia abolido os sacrificios, eis que Cristo estabelece, de certo modo, uma nova religiio sacrificial. Mas, nesse sacrificio, a vitima consente e nao é um verdadeiro cordeiro, ela é 0 Filho de Deus “em pessoa”. E tal sacriffcio s6 ocorre uma tinica vez: 03 padres, sucessores dos discfpulos que acompanhavam Jesus na Ceia, si0 encarregados de celebré-lo novamente a cada dia, repetindo as palavras € 0S gestus do Cristo: “Este é meu corpo, este é meu sangue”. Assim, Cristo nao cessa de se oferecer, no sacrificio “sacramento da missa, 4 morte redentora dos pecados dos homens, em prol da salvacio universal. Essa radical novidade do cristianismo explica, durante toda a Idade Média, 2 ambiguidade da Tgeeja em relagio aos judeus. Estes veneram & Tord, que € 0 Antigo Testamento dos cristdos, Mas, segundo estes tiltimos: 08 judeus no podem entend@-la corretamente porque ignoram 0 Novo Te Stamento, que testemunha o cumprimento da promessa de Deus: OS 340 Deus judeus adoram o mesmo Deus que os cristdos, mas de modo cego, porque nfo reconheceram o Mesias. Pior ainda, levaram Jesus a morte, sfo “deici- das”. A acusagio é antiga, mas ela ganha precisao ao longo da Idade Média ea deterioragao das relages entre cristaos ¢ judeus também testemunha a evolugio da representagao crista de Deus. Ahistéria apoderou-se desse Deus novo, transformando, no decorrer dos séculos, as crengas, 08 ritos, as imagens, as instituigdes e o proprio dogma. O Deus do século XV (para nio falar daquele que os cristios ado- ram atualmente) quase no se assemelha Aquele dos primeiros séculos ou ao do ano 1000. Deus na sociedade A denominagio medieval mais frequente de Deus € dominus, “Senhor”, que se pode aplicar indiferentemente a Deus em geral, como a seu Filho em particular. E por meio desse termo, mais do que por deus, ou ainda ascociando-os na expresso Dominus Deus (da qual a Chanson de Roland far em francés antigo Damedex), que os cristaos da Idade Média dirigiam-se 3 divindade nao somente em suas preces e invocag6es, mas também em miil- tiplas ocasiGes da vida covidiana. Por exemplo, quando datavam algo escri- to fazendo mengio ao “ano do Senhor” (anno Domini), em conformidade com 9 estilo da Encarnagio. © emprego generalizado, para nomear Deus, de um termo também co- norado pelas relagées sociais, como o de “senhor”, nao poderia deixar de se prestar, no decorrer do tempo, a perpétuas reinterpretagdes. Esse Deus todo-poderoso foi, de inicio, o deminus da Antiguidade tardia, 0 “senhor” da villa de seus escravos (servi), do qual o titulo pontifical conservard a lem- branca através dos séculos, uma vez que o papa se diz “servo dos servos de Deus” (ervus servorum Dei), 0 mais humilde de todos os homens a servigo de Deus. Nos séculos seguintes, Deus, o senhor por exceléncia, sera pen- Sado e figurado sobrecudo com os tragos do soberano medieval, o imperador uo rei, ainda mais que ambos sao sagrados pela Igreja. Deus € 0 rei dos Tels e, inversamente, os reis terrestres reinam “por graga de Deus” (gracia Dei), como se comega a afirmar a partir da época carolingia. E evidente o 34t Diciondrio analitico do Ocidente medieval paralelo entre os reise Deus nas formas de invocagio (por exemple, ny Chanson de Roland: “Deus glorioso”, "Deus, ei do mundo”, “Deus de mma jestade” etc.) e mais ainda na iconografia, na qual ambos sio entronizados de frente, hierdticos, em majestade, a justaposigio de suas imagens retop. cando o simbolismo real de um ¢ o simbolismo divino do outro. Em sta sagragio, o soberano recebe o dleo previamente benzido pela Igreja e que inclusive, no caso dos reis capetingios, € tido como um 6leo mitaculoso de origem celeste: em sentido préprio, o rei € “Cristo”, 0 “Ungido do Se- hor”. Também os louvores que o glorificam so os mesmas que exaltann a soberania do Cristo, que é dito “rei dos reis, senhor dos senhores” (tex regum dominus dominantium). Por ocasio do adventus solene do rei (como também no do bispo), € ao Cristo que as litanias invocam: “Christus vinci, Christus regnat, Christus imperat”. No mundo carolingio e depois no feudal, Cristo € 0 chefe de armas vitorioso, que triunfa sobre o mal ¢ as milicias do dem6nio. Por outro lado, sendo imperador do mundo, assume todas as fungdes reais, a comegar pela justica, que exercerd no fim dos tempos, no Juizo Final, sobre todos os homens. incluindo os reis rerrestres e os chefes de sua Igreja. E assim que os timpanos romanicos representam o Cristo da Partisia, como juiz supremo, a cabega cingida pela coroa real, entronizado em majestade no centro da cena e assistalando com a mao direita a grande Separacio, por toda a eternidade, entre eleitos ¢ danados. Entretanto, na sociedade crist& medieval, a soberania sagrada é sempre pensada como desdobrando-se em duas, pois se exerce sobre dois planos estreitamente ligados: 0 espiritual ¢ o temporal. Se, de um lado, ela faz eco a0 imperador e ao rei, senhores temporais, embora sagrados, por outro lado Pertence, ¢ ainda mais fortemente, a0 papa ¢ aos bispos, chefes espirituais, mas nao menos presentes no mundo. De Deus, do Cristo, os primeiros tém a potestas, os segundos, a auctoritas, porque sao os sucessores diretos dos apéstolos. Ora, entre os bispos, o de Roma, herdeiro de Sao Pedro, muito cedo adquitiu proeminéncia e no deixou, a0 longo da Idade Média, deimpor cada vez mais sua soberania sobre toda a sociedade crist&: Dess° modo, no fim da Idade Média, 0 “servo dos « fato, os tracos de seu senhor divino, de Deus Pai, ervos de Deus” assumint de i a S Mais precisamente, tomou os traG° anciao soberano, e nio os do Filho, cuja humanidade soffe- GE Z 342 ce Dee dora ¢ humilhada prestava-se bem menos & exaltagio do poder universal. E com Pai, que em tudo encarna a “autoridade", que o papa troca de prefe- réncia seus atributos. Deus é figurado “como papa”: um anciio de barbas ¢ encanecido, com a mio direita benzendo e com a esquerda sustentando o globo imperial, a cabeca coroada pela tiara pontifical cujos trés circulos simbolizam a Trindade ¢ a dominagio do universo. De muitas outras maneiras ainda, Deus € 0 “senhor” por exceléncia da sociedade crista. J4 0 dissemos ao evocar os modos de datagio, que contam os anos a partir da Encarnacio. Deus, com certeza, controla 0 tempo. Ele controla igualmente o espago? A nova toponimia que acompanha, na gran- de fase de expansfo da economia e da sociedade ocidentais, a conquista de novos territérios ea criagio de novos habitats (principalmente nos sécu- los XI-XID), mostram que, ao lado de inumeraveis localidades com nomes de santos, outras fazem referéncia a0 préprio nome de Deus: Dieulefir, Port-Dieu, La Maison-Dieu, Villedieu, Le Mont Dieu. Também sao nu- merosas as localidades chamadas La Trinité (sobretudo na Bretanha). Por out lado, a onoméstica parece excluir a referéncia As pessoas da Trinda- de. As pessoas nao emprestam seus nomes de Deus, mas da multidio de seus santos, que também foram homens e que desempenham para eles 0 papel de patronos singulares. A referncia divina aparece, no entanto, no nome Deodato (Deodatus) atribuido, por exemplo, ao rei da Franga Filipe Augusto, porque esse “filho do milagre” nasceu quando seus pais, pri dos de herdeiro masculino, perdiam a esperanca de poder assegurar a con- tinuidade dindstica. Muitas instituighes também tém o nome de ens, indicando claramente como © poder divino estendia-se a todos os aspectos da vida social: insti- tuigdes religiosas (igrejas ou ordens dedicadas a Trindade; os dominicanos nao se diziam “os cies do Senhor”, Domini cancs?), hospitalares (0 hospi- tal do Espirito Santo), universitarias (os colégios de Corpus Christi e de Trinity em Oxford e em Cambridge) e, sobretudo, politicas. Lembremos, como caso principal, o movimento da “paz de Deus”, langado pelos bis- Pos do sudeste da Franga em fins do século X, inicio do século XI. Pode- se dizer que, por volta do ano 1000, para impor a paz — que € 0 primeiro dever do soberano—, Deus substicuiu o enfraquecido rei. Deus ou aqueles 38 Dicionario analitico do Ocidente medieval que podiam falar em seu nome: os epee (os de Puy, de Limoges, de lem mont), ou 0s grande abades, em primeiro lugar 0 abade de Cluny, Odilos, posto sob autoridade direta do papa. Mais tarde, 0 rei encontrou Pouco a pouco os meios de fazer coincidir seus poderes reais com o prestigio so. brenatural que recebeu pela “graca de Deus” na ungio da sagraciot a partir dos séculos XII e XII, jé nfo so mais Deus € 0s bispos. mas os prebostes os bailios ¢ os senescais que impdem a paz em nome do rei. Como duvidar que a imagem de Deus e as expectativas dos fi¢is tenham sido profunda- mente tausformadas? A pratica do “jufzo de Deus”, também bastante caracteristica da socie- dade feudal, conheceu: um proceso histérico compardvel. Na época feudal, o papel do juiz nfo é 0 de pronunciar o direito, mas 0 de Arbitro entre as partes em conflito. Para que melhor seja proclamada a verdade, denuinciada a fraude, designado 0 culpado, 0 juiz pode, se necessétio, recorrer onis- ciéncia e onipoténcia de Deus, através dos processos rituais do ordélio ¢ do duelo judicial. Deus, nos séculos XI e XII, nao desdenha intervir dire- tamente nesses rituais para manifestar publicamente a verdade. Um século mais tarde, no entanto, a reconstrugio das instituigées publicas que carac- teriza a génese do Estado moderno dispensa o recurso ao poder do Deus Julgador. Os ordélios caem em desuso ou chegam mesmo a ser condena- dos. Os clérigos criticam a ambiguidade dos sinais, pois, apesar de tudo, sao sempre os homens que devem interpretd-los e podem equivocar-se ou forcar o sentido do pretenso julgamento de Deus, sem contar que sempre podem se tornar culpados por tentar a Deus, por querer constrangé-lo. Nao seria rebaivar Deus querer & forga fazé-lu invervir em querelas luumanas? Hi ainda uma outra razio para essas mudangas: na mesma época, uma Progressiva ¢ manifesta divisao de tarefas entre as pessoas da Trindade permitiu ao Cristo, o Filho do Homem, tornar-se cada vez mais familiar aos homens. Mas nfo para substituir os jutzes verresures (“inieu reine 40 E deste mundo”, disse Jesus), e sim para compartilhar a pena dos homens ; para julgé-los, nao aqui, mas apds a morte E sobretudo no instante do traspasse, quando Sat se S ue © anjo bom e Maria tentam defender, Difunde-se soeaGraesPeransa de que o Cristo-Juiz encontre em cada pecador 08 ™E- € consolé-los com seu amo no fim dos tempos. langa sobre a alma 344 Deus titos necessdrios para justificar cua prépriacleintncia. Mais do que nunca expera-se que a miseric6rdia do rei celeste abrande o rigor de sua jusign, Nesse papel, essencial a presenca, a0 lado de Cristo, de sua mie,a Virgem Santa, Santa Maria, Nossa Senhora, Nossa Me, a advogada que guardou g meméria de todos os méritos, de todas as circunstancias atenuantes, a fim de poder nesse instante abrandar o julgamento de seu Filho. Camo nifo pensar, ma vez mais, na evolugio contemporinea das insticuigoes ju diciais, das regras de procedimento, do estatuto e dos papéis respectivos da “‘yente de justiga”, dos juizes, dos advogados e dos escrivaes do fim da Idade Média? A “ciéncia de Deus”: a teologia No cristianismo medieval, Deus nao é somente objeto de crenga, mas também objeto de um discurso articulado, racional. Em sentido proprio, tal discurso éa teologia. A palavra vem da filosofia grega pag, mais pre- cisamenre de Plario (Reptiblica, II, 18, 79a). com o sentido de “discurso sobre os deuses”. Para Aristételes, a teologia € a ‘filosofia primeira”, que trata do divino, Para Plutarco, ela coroa toda a filosofia. Por intermédio dos neoplatOuicus, a uugiv passa pata os Pais da Igreja, gregos ¢ latinos. A dentincia pelos Pais da Igteja e pelos concilios de desvios heterodo- Xos que ameagam a Igreja dos primeiros séculos leva 3 primeira elaboragao da teologia crista. Todas aquelas heresias punham em causa a nova nogie de Neus: o dogma da Trindade, a afirmagio da dupla natureza. divina e humana, do Cristo. O arianismo, por exemplo, é condenado no Concilio de Niceia (325), que define 0 Cristo como sendo da mesma substancia do Pai. Em 45 1, a teologia dé um importante passv quando o Concilio de Efeso atribui a Maria o titulo de Theotokos, “Mie de Deus”, para manifestar que seu Filho é, 20 mesmo tempo, Deus ¢ homem. No século V ainda, na Patte oriental do Império, os monofisitas pretendem reconhecer apenas ‘uma tinica natureza, a humana, no Cristo pregado na eruz. Dessa vez £0 Concilio de Calcedénia (451) que os condena Da sta parte, 0s pelagianos attibuem um tal valor ao livre-arbftrio do homem que este torna-se como que independence de Deus. Santo Agostinho opoe-se a eles sublinhando 345 Diciondrio analitico do Ocidente medieval o pape fundamencal da graca divina, que dé'a0 homem a possibilidade de adquirir, por seus méritos, o direito & salvagio. Ele estabelece também os fundamentos do debate sobre a predestinagio eas obras, que ressurir sobretudo a partir do século XII (Santo Anselmo) e de mancita ainda maig candente no momento da Reforma Protestante. Os Pais da Igreja desenvolveram um discurso teolégico argumentado sistematico ndo somente para refutar as diversas heresias trinitarias, mas também para confrontar os cisméticos. © desacordo teolégico com Bizén. cio concerne, em primeito lugar, 8 questio de saber se o Fspitito procede do Pai edo Filho (Filioque), como pretende a Igreja Romana, ou somente do Pai, como afirma Bizancio, Sao tais conflitos que engendraram, estimularam e permitiram afinar a tcologia crista. No entanto, a palavra theologia quase nao foi utilizada durante os pri- meiros séculos. Os autores, notadamente os autores monisticos, da Alta Idade Média até o século XI, preferem designar por doctrina sacra ou divina ou ainda sacra pagina, um tipo de comentério das Escrituras que pretende ser tanto contemplative quanto racional, uma ascese do Verbo revelada mais do que um trabalho da raz3o humana sobre si propria, nos limices de suas possibilidades légicas. Ora, uma mudanga decisiva intervém nas escolas urhanas do século XII. Abclardo estreve um “tratado de teologia sobre a unidade e a trindade divina”, pela primeira vez usando tal titulo. 6 também 0 primeiro a ser sensivel 4 especializagao “profissional” dos “teé- logos". Pata ele, Santo Agostinho, que qualifica de spiritualis doctor, vem a ser “aautoridade de todas as tedlogos” (ornninin theolagorum auctoritas), algo como 0 patrono de uma nova corporacio. Influenciado pelo pensamentoe pelo idioma gregos do Pseudo-Dioniso, Hugo de Saint-Victor dé no Di- dascalicon uma definigao etimolégica Precisa de “teologia”: um discurso (legos) sobre Deus (thos), Anselmo busca o “argumento ontolégico”, que ele define como “um argumento tinico que, sem exigir outra prova além dele mesmo, seja suficiente para estabelecer que Deus é e é 0 sumo bem, Baise stan dora trad atoms is edoraualiiudoiaimeie eee para sere tudo © que cremos sobre a natureza humana”, Deus sendo verdadeiramente, em nosso espirito, tao conceber nada maior, € preciso concluie, para ser bem, enfim, grande que nao podemos €m seu caso e sé em set caso — 346 Deus pois para qualquer outto ser isso seria absurdo , a necessidade de uma passagem logica “da existéncia ideal que concebemos 8 existéncia real, da ‘deia ao objeto, do ser concebido ao ser existente”. Esse avanco da logica redefine o discurso dominante da época, que vé na grandeza da Criagdo a principal prova da existéncia e da bondade de Deus. Mas Anselmo seré,a seu turno, criticado por Sia Tamss de Aquina e, depois deste, pelos te6- logos nominalistas, que, por definicao, se recusam a induzir da linguagem a realidade dos seres que ela designa. Com Alain de Lille, em fins do século XII, a teologia se especializa como um campo particular de conhecimento. © nascimento da Universidade consagra essa especializacZo, assim como a superioridade do saber tco- Idgico sobre todos os outros: a faculdade de Teologia é posta no topo da hicrarquia universitéria, acima da faculdade de Artes (liberais). Mas a verdadeira ruptura ocorre em meados do século XIII, quando os mestres escoldsticos da Universidade, em primeiro lugar Sao Tomas de Aquino, comegam a aplicar sistematicamente ao discurso sobre Deus o pen- samento de Aristételes, que as tradugées do drabe e do grego rinham per- mitido descobrir de forma mais completa. A teologia é, doravante, pensada como “ciéncia”, um discurso racional utilizando todos os instrumentos da logica argumentativa para tornar intelig(veis, rantv quanco possivel, a na- tureza eas ages de Deus, para demonstrar “cientificamente” sua existéncia ou para compreender como o mal é possivel diante do sumo bem. Buscando o equilibrio entre as tradicGes plat6nica aristotélica, entre a fé “em busca da intcligeucia” ev intelecto que reconhece na fé seu principio, Sao Tomas de Aquino, na sua Suma teoléeica (I, UI, 3), enumera “cinco provas da exis téncia de Deus”, remontando logicamente dos acidentes 4 esséncia do ser. Mas ele proprio levanta as objegdes suscitadas por seu raciocinio: embora mo tempo permanece além de toda afé reclame inteligéncia l6gica, ao mes! demonstragio e nfo podemos pretender provar Pertencendo ao que ¢ finito, como pode aexisténcia de Deus, uma Vez que ignoramos sua natureza. riamos conceber o infinito? Confundir nossa “nocio de Deus” com Deus seria idolatria, E nesse sentido que Tomés recusa 0 argumento ontolégico de Anselmo: mesmo no caso de Deus, e sobretudo no seu caso, nosso es- Pirico criado e finito nfo pode passar da ideia ao sex 347 Diciondrio analitico do Ocidente medieval Tais questdes sobre Deus estao no coragio de todos os grandes debates que agitam 0 pensamento ¢ a instituigao universitdrios nos séculos XII] ¢ XIV, Em 1270, depois mais violentamente em 1277, 0 bispo de Paris, Estévao Tempicn condena uma série de proposigdes defendidas pelos “averroistas” da Universidade de Paris, encabegados por Siger de Braban- te: influenciados pelos comentirios que 0 filésofo arabe Averréis faz de Aristételes, eles negam, entre outros temas, que a Providéncia divina go- verne as agGes humanas ¢ que Deus conhega outra coisa que a si proprio. A crise do averrofsmo € interessante como sintoma das novas potencialidades do pensamento intelectual ¢ das evolugdes em curso: pela primeira vez a erenga em Deus é contestada de maneira fundamental ¢ com argumentos tacivuais. Embora essa cftica tenba permanecid confinada a um estreito circulo cultural, marca muito bem um momento fundamental do agnos- ticismo moderno, Ela mostra também a que ponto a Natureza, colocada sobre um pedestal diante de Deus, é a partir de agora uma aposta cultural de primeira importancia: ela nao é mais necessariamente pensada como obra do Criador, mas adquire uma autonomia que é celebrada, no mesmo momento, pela literatura, em particular pelo Roman de la rose. Por certo, Deus continua sempre af, mas suas prerrogativas sio relativamente diminufdas. No dominio filoséfico propriantente dito, a evoluggo nao menos répida. No século XIY, o nominalismo corta o fio que até ento parecia ligar mis- teriosamente a linguagem humana a esséncia das coisas que ela designa. Assim, por seu turno, a linguagem torna-se um instrumento auténomo do saber intelectual: todo o impulso da ciéucia moderna nao foi possibilitado por tal ruptura? Do lado contrério, impde-se uma outra maneira de falar de Deus € com Deus: a da mistica, em particular feminina, que floresceu nos dois ultimos séculos da Idade Média, Pode-se tomar como exemplo, em meados do século XY, 0 pensamento sobre Deus de Nicolau de Cusa, que, por toda sua formacio, estava ligado aos Irmaos da Vida Comum de Deventer e & devotio moderna, Os escritos do Pscudo-Dioniso exerceram influtncia decisiva sobre sua “‘teologia ne- gativa” e sua consciéncia da irrednsivel diseincia Criador. que separa a criauusa do Seu tratado sobre a Dowta jgnorancia exprime a tensio dramética entre a sede de saber do espirito humano e a Perpétua confissao de seus 348 Deus proprios limites. Em Sebre Deus como nenbum cure, Nicolau de Cusaacumula expresses paradoxais que aprofundam ao maximo a distancia entre Deus rio humana, que tenta desesperadamente apreendero que Ihe escapa cara Deus é““tudo em tudo”, mas também “nada em nada”, é0 “ser da ser”, mas também 0 “nao ser do nfo ser o , pois ele é “um outro nio outro que nao é senio esse outro...”. E significativo que, em Sobre a visio de Deus, 0 tedlogo termine por se abismar na contemplagao de uma imagem material da Santa Face de Cristo, uma “Verénica” que ele venera em sua casa em Coblenca e cujo olhar parece segui-lo quando se move a sua frente. Conclui que ele proprio nfo existe sendo pelo olhar de Deus, a0 qual se dirge nesses ter- mos: “Seu olhar é seu ser. Eu sou, porque me olha. Se desviar seu olhar de mim, deixo de existie”. Se ele permanece fascinado pelo olhar da imagem que parece segui-lo, sabe estar convidado a usar, além dos olhos do corpo, 9s “olhos do espfrito”, mesmo que também eles no possam apreender a divindade em sua esséncia, a qual, “sem limitagao, sem quantidade nem qualidade, nem tempo nem lugar, é a Forma absoluta, a Face das faces”. Crer em Deus Embota Nicolau de Cusa fale como teélogo, a maneira como imagina, m os olhos nele, de- da teologia: a al. Deus nao contemplando a sua Vernica, que o préprio Cristo te corre de uma relagéo com Deus totalmente diversa daquela de uma relacio individual e mesmo pessoal, sensivel e devocion &somente o “senhor” soberano da sociedade medieval e nao € somente 0 objeto inacessivel do discurso racional da teologia. E também esse outro, no entanto semelhante, ao qual co crente se dirige em suas preces ou do qual beija a imagem milagrosa. Ora, a historia nao deixou de moldar também 4 apreensio individual do divino, as maneiras pelas quais cada um cré ou figura Deus e se dirige a ele. Escolhamos, para comecat, dois teste! 4 0s monges Raul Glaber (da primeira metade do século XI) e Guiberto de Nogent (menos de um século mais rarde), pata mostran 2 parilt de seus m relagdo a outros meios S0- munhos da Idade Media central, préprios escritos (o que seria impossivel e . 5 vi s cioculturais) como variaram, num tempo relativamente curto, os modo: 349 Diciondrio analitico do Ocidente medieval de apreensio do divino. O primeiro, um monge da Borgonha, Prdoximo do abade Odilon de Cluny, comesa suas Histérias por uma impressionante apre- sentagio da cruz do Calvério, portanto 0 corpo do Cristo voltado para 0 Ocidente, abragando em seu gesto largo toda a Cristandade, ao passo que, por sua vez, 0 relato da Paixdo resume toda a histéria da salvago desde a Queda até 0 Juizo Final. Esse Deus na cruz nao é 0 Cristo sofredor, mas © rei do mundo. Domina o curso das coisas ¢, aproximaudu-se 0 milénio de sua vinda e de sua morte entre os homens, adverte-os, por meio de si- nais e prodigios maravilhosos ou aterrorizantes, para que se penitenciem ¢ se preparem para comparecer perante ele, Embora invisivel, Deus est4 em todaa parte. E 0 soberano e 0 juiz zeloso e terrivel. Os signos pelos quais manifesta sua presenca avivam 0 medo do iminente apocalipse. Bem diferente € 0 relato autobiogréfico escrito no ocaso de sua vida pelo monge beneditino Guiberto de Nogent, no comeco do século XII, Adota, de imediato, um outro tom dirige-se a Deus de forma mais intima, pata confessar humildemente seus pecados. Seu Deus é fundamentalmen- te “bom”. Déa graga de sua misericérdia aos homens. E também o “bom escultor”, criador consciencioso de toda verdadeira beleza, porque a bele- za fisica dos seres nao € senio o reflexo da beleza moral com que Deus os gratifica. Seu verdadeiro pai é Deus, que, an lado de sua mae, que Guiberto considera uma santa, felizmente substituiu seu pai carnal, morto pouco depois de seu nascimento. Entre Guiberto e Deus, a relacio filial € afetiva e intima, ¢ quanto mais o monge busca conhecer a si pr6prio, mais ele des- cobrea intensidade do amor divino que é sua raza de ser: “Na medida em que conheco a mim mesmo, busco conhecer vocé, mas, quando me regozijo de coultect-Lo, nfo perco por isso a consciéncia que tenho de mim’, dizele, em termos abertamente agostinianos, Pasa Guiberto, esse Deus de amor é, sim, 0 Pai, mas um pai préximo, logo depois, seré aquele de seu Glaber, mas também a0 é ainda Homem da catedral de Amiens. afetuoso, desempenhando um papel que, lho. © Deus de Guiberto nao é 0 de Raul © “Belo Deus” gético, 0 Cristo Filho do Acabamos de comparar a maneiea pela seus prOprios escritos, concebiam Deus, humildes, dos leigos iletrados, que nio qual dois monges, que deixaram Qual terd sido a maneira dos figis nos deixaram nenhum testemu- 350 htt abet ‘ Dus nho? Na maioria das a 36 podemos Nos entregar 4 pura conjectura. O cristao comurn de entio s6 tinlva, em matéria de fe, deveres ou exigén- cias limitados, embora talvez suficientes para fazé-lo encontrar Deus. O minimo de saber requerido de um fiel e suscetivel de ser verificado pelo padre de sua pardquia limita-se, em teoria, ainda no século XII, arecitar 0 Credo, considerado na época uma prece, 0 Pai-Nosso ¢ a Ave-Maria. Pare- ce que; durante muito tempo, a recitagio mectniea de palaveas latinas, em sua grande maioria ininteligiveis, foi considerada pelos clérigos preferivel a uma tradugio em lingua verndcula, sem divida compreensivel para as massas, mas menos digna de exprimir as coisas sagradas. Ainda que repe- tidas em latim de modo s6 mais ou menos fiel, tais palavras jé nao seriam suficientes para familiarizar o cristo com os nomes das trés pessoas da Trindade e para associar a figura de Maria a de seu Filho? O cristao que recita “Pai nosso que est4 no Céu” ou ainda “o pao nosso de cada dia nos dé hoje", habitua-se a falar com Deus como a uma pessoa. Igualmente, 0 sinal da cruz, que pontua de maneira 3s vezes obsessiva a prece € a parti- cipagdo nos rituais religiosos, é, numa sociedade tao atenta aos gestos € 2 seu peso simbélico, uma maneira de ligar-se “de boca € de corpo” @ Trin- dade, marcando sucessivamente sua fronte, 0 coragio ¢ os ombros, sem- pre nomeanda as rrés pessoas divinas. No século XIII, os teélogos falam, a propésito disso, de fé “implicita”, aquela que é, a seus olhos, 0 minimo. requerido dos simples fiéis. Deus é constantemente numeado, invocado, maneira como a Igreja gostaria: as juras € blasfémias testemunham que 0 nome de Deus ao menos nao é ignorado. Sem diivida, na provaga0 é grande. a tentagio de duvidar da bondade de Deus e de sua misericérdia, de barge como a qualquer outro santo, a provar sua ritos embora nem sempre da nh seu apoio e de desafié-lo, onipoténcia. As colegdes de milagres comumente poem em cena espi fortes que pretendem medir-se com Deus (ou com o santo local) e que por isso sio milagrosamente castigados. Quanto as priticas divinatérias As quais eventualmente se entregavam os ptéprios clérigos, embora as condenassem como “supersticiosss quando aerflegas em sua pretensao de antsci- no as controlavam, podem parecer s BIR iB a ti No entanto, nao pretendem Pat © tempo futuro, que sé pertence a Deus. 357 Diciondrio analitico do Ocidente medieval questionar a poténcia transcendente de Deus, quando muito exprimem 9 desejo, dante da desgragae da injustiva, de desveulat um pouco mais seus “segredos” e conhecer sua vontade. £, pois, dificil imaginar que, por trés da imagem incansavelmente repetida e ilustrada pelos clérigos do insensato do Salmo 13 —que, nu, 0 crénio raspado e tendo nas maos 0 bastio dos loucos, “diz 0 insensato no seu coragao ‘Deus nao existe!’” —, tenha realmente ha- vido lugar na Idade Média para o que atualmente chamamos de descrenca, Exceto um punhado de averroistas altamente eruditos dos quais jé falamos (eque,aliés, nfo exclutam Deus) ,nio parece que tenha sido possivel, naque- la €poca, conceber um mundo sem Deus, uma natureza sem Criador e uma humanidade sem Senhor. O principal perigo com que se defronta a Igreja medieval nao é a descrenga, mas 0 excesso de crenga em Deus, a vantade de certos leigos de prescindir da mediacZo dos elérigos para aceder diretamen- tea Deus. E o que pretendem fazer os heréticos, que tém, portanto, todaa tazio em se atribuir 0 nome de “crentes”. . Sao numerosos na Idade Média os heréticos que, recriminando 0 ex- cessivo compromisso da Igreja com a sociedade terrestre, o dinheiro e 0 poder, pretendem falar e agir em nome do Espirito Santo. Querem devol- Ver ao ctistianismo a dimensao carismética que Sio Paulo evocou, mas que colide com o status material e politico da Igreja na sociedade. Em seu ensinamento, a Igreja insiste, por exemplo, sobre os sete dons do Espirito Santo, mas desconfia daqueles que, fora da hierarquia e das ordens ecle- sidsticas. prerendem agir em nome do Espitivw. E 0 caso dos espirituais que formam o ramo dissidente da Ordem Franciscana. Partidérios de uma pobreza evangélica radical, inspiram-se nos escritos do monge calabrés Joaquim de Fiore para exigir do papado e da Igreja que abandone suas ri- quezas nos umbrais da terceira era da histéria universal, a do Espfrito, que Preludia 0 apocalipse. Grupos de leigos sio inflamados, por sua vez, por essas proposigGes radicais. Os Irmios do Livre Espitito so seyeramente condenados pelo Conefliv de Viena de 1311 e impiedosamente reprimi- dos. Simultaneamente, embora os tedlogos dissertem sobre a abundancia do Espirito Santo, a hierarquia sé the consa carequese. © papado exalta a imagem de Deu: e reflexo de seu sonho de autoridade, E é a hy gra um limitado espago na s Pai “como papa”, modelo umanidade sensfvel de Jesus 352 Deus Cristo que se impde no cerne das priticas de devogio ¢ nos modelos de piedade propostos aos fiéis. No comeco do segundo milénio, 05 leigos, mantidos a distancia da lin- guae das sutilezas da cultura dos clérigos, manifestam mais explicitamente sua adesio 4 crenga em Deus. A principal razao é a estabilizagao das estru- turas da sociedade crista, tendo a frente as paréquias. Simultaneamente, Deus se faz mais préximo, mais humano: a figura do Filho do Homem torna-se central em todas as formas de devogao, tanto entre os leigos quan- to entre o clero. A peregrinagao a Jerusalém e, sobretudo, o engajamento nas cruzadas, so para milhares de cavaleiros e de pessoas simples que aspiram visitar — e mais tarde libertar — 0 Sepulcro do Cristo, a expres- sio mais cspetacular dessa transformagio. Os relatos sobre a Terra Santa tornam familiar a geografia maravilhosa palmilhada por Jesus durante sua vida terrestre. Afluem as relfquias do Cristo ou ligadas a ele: 0 prepiicio do Menino Jesus recolhido apés a circuncisio; uma gota do leite da Virgem; pedagos de madeira da Cruz, um cravo da crucificagio; 0 precioso sangue conservado em uma ampola apés a Paixio; a coroa de espinhos, compra~ da por alto prego por Sao Lufs, Sio numerosas as igrejas que reivindicam as mesmas relfquias e assim multiplicam no Ocidente provas tangiveis da Encarnag&o do Filho de Deus. De fato, a tinica “relfquia” verdadeiramente legitima de Jesus € a eu- catistia, o pio € o vinho que, uma vez consagrados pelo padre, devem ser adorados como o corpo eo sangue realmente presentes do Cristu.A consa~ gragio das cancas eepécies aparece exatamente como o momento central da missa. A participacio dos fiéis no oficio culminano instante em que podem ver e adorar a héstia consagrada que o padre ergue com os bracos estendi- dos, Essa “ostensio” do Corpus Christi € suleuizada pela “Festa de Corpus Christi” (1264), durante a qual a héstia é levada em procissao através da paréquia, avivando a fome eucaristica dos fiéis, ainda mais que eles s6 estao autorizados a comungar de maneira excepcional no domingo de Péscoa. assimilé-lo, torna-se 0 sonho e as vezes a mulheres, no fim da Idade Média. + fisica e dolorosamente dos o Francisco, quali- Mas ingerir 0 corpo do Cristo, obsessia das misticos, em particular das Nao se trata somente de crer, mas de participa sofrimentos da Paixdo: 0 exemplo disso foi dado por Sa 353 Ditiondrio analitico do Ocidente medieval ficado de “novo Cristo”, o primeito santo a ter recebido em seu corpo os estigmas da crucificagio (1224). Acentuar a segunda pessoa da Trindade intensifica também o ressentimento contra os judeus “deicidas”. As cru- zadas que partem para lihertar o Santo Sepulcro motivam pogrons contra as comunidades judaicas. O relaco sobrea héstia pretensamente profanada por um judeu e que se poe miraculosamente a sangrar conhece um sucesso duradouro: os pregadores servem-se dela para reforgar a crenga na presen- ga real de Cristo na eucaristia. Mas as multiddes amotinam-se e cometem novos massacres de judeus. As imagens que se multiplicam na segunda parte da Idade Média con- tribuem de maneira decisiva para essa nova percepgao do divino. Hé muito tempo as imagens simbélicas de Deus (a mio direita de Deus saindo das nuvens) e de Cristo (0 cordeiro pascal, o peixe, o bom pastor) tém apenas um papel secundério. Desde o fim do século VI, a legitimidade de uma figuracdo antropomérfica do Cristo é oficialmente admitida por toda a Igreja universal. Desde aproximadamente 0 ano 1000, 0 interdito implici- to que pesava sobre as imagens tridimensionais de culto foi transgredido no Ocidente: 0 corpo do Cristo sobre a cruz, nas igrejas, tem a aparéncia, a densidade, a fisionomia dolorosa de um verdadeiro crucificado, assim como a estitua do Menino Jesus que Nossa Senhora carrega no colo como o faria uma verdadeira mae, Outras imagens do Cristo da Paixao tém cada vez mais um papel central nas novas formas de devocao: o Homo Pictatis emerge de sua tumba com o busto nu, a cabega coroada de espinhos ¢ as mios atadas, mais morro do que ressurrecto. Os Arma Christi convidam & contemplacao de todos os objetos utilizados durante a Paixo e ao encadea- mento de preces repetitivas que, com a difusio do tergo e do rosario, sio saracteristicas da piedade de fins da Idade Média. A Veronica ou Vera icona, a verdadeira imagem da face do Cristo, difunde-se a partir do comego do século XIII nao somente nas pinturas murais das igrejas ou nas miniaturas dos livros de horas, mas logo, no século XV, sobre simples folhas soltas Impressas que se compram ao mesmo tempo que as indulgéncias pelo prec da misericérdia de Deus no Além, Indubitavelmente, o centro de gravidade da representagao de Deus deslocou-se, desde'o Deus juiz.e soberano da primeira Idade Média até 354 Dus Cristo mais humano dos séculos ulteriores, Cristo torna-se central. Maso essencial € que, mais do que no passado, a massa dos cristios tinha acesso, gragas as imagens, a uma representacio global da Trindade. Sobre os mais variados suportes, as imagens trinitdrias tornam sc moeda corrente no fim da Idade Média. A partir do século XII, conhecem sucessivamente diversos tipos (a Trindade triddrica, com as trés Pessoas antropomérficas sentadas sobre um mesmo trono; 0 trono da Graga, com o Pai sustentando o Filho na cruz, a pomba do Espfeito Santo entre os dois}aPiedade de Nosso Senhor, com Deus como anciao tendo sobre os joelhos seu Filho morto ea pomba voando entre ambos). Ao contrétio dos {cones bizantinos, que mantém a alegoria tradicional dos trés anjos visitando Abraao e Sara sob o carvalho de Mambré, cssas.imagens testemunham a busca, pelos artistas ocidentais, de formulas gréficas originais, suscetiveis de exprimir o para- doxo central do dogma. © fato de eles inovarem no escapa aos heréticos, que se escandalizam: os lolardos, no fim do século XIV, consideram “abo- minavel” 0 tipo da Piedade de Nosso Senhor. Tais imagens contribufram, no entanto, para tornar mais familiar e menos abstrata a nocao crista de Deus, assim como a dialética da unidade da natureza divina e da diversida- de das Pessoas que a constituem. Deus, 0 divino e a razao Os cristaos, entretanto, nunca se confrontaram somente com Deus, como se fosse uma entidade isolada, mas com todo um sistema divina eminentemente original e complexo, ndo menos suscetivel de evoluir na histéria, Deus, no sentido préprio do termo, é somente 0 coraga0 desse sistema. Este se define, por um lado, como se viu, por um lado, pela re- lacio interna das pessoas da Trindade, e, por outro, pela relagio externa entre Deus e Sati, o chefe dos anjos decafdos. Uma relagio em principio desigual, mas que nao exclui nem a tivalidade (por exemplo, no julgamen- to da alma), nem uma certa cumplicidade, pois o Diabo age sempre “com a permissio de Deus”, Além disso, a erescente insisténcia na humanidade do Cristo implicou a promogio da Virgem Maria em relagzo aos outros santos. Em algumas imagens, a Virgem Coroada aparece como uma quarta 355 Diciondrio analitico da Ocidente medieval pessoa da Trindade, disponivel para ser, como se preferir, a esposa misti- ca, a mie carnal oua filha espiritual do Cristo, ou tudo ao mesmo tempo, Todas essas relacdes, expressas por textos ¢ imagens, nao sao delirios gra- tuitos da imaginagio religiosa. A escolha de uma relagao em vez de outra & sempre uma questao de estratégia individual ou coletiva. Assim, o lugar que convém atribuir ao Espirito Santo na relagio com as outras pessoas da Trindade (objeto de debate do cisma e também das heresias espirituais do fim da Idade Média) ou ao Diabo na relagio com Deus (que constitui a questao da feiticaria) sempre foi expresso de grandes conflitos ideolé- gicos da sociedade medieval. O fervor religioso, a “democratizagao” de Deus e, de forma mais geral, © sucesso do cristianismo, sem nenhuma diivida devem muito 4 intensi- ficagio de formas sensfveis ¢ afetivas e ao crescente cristocentrismo da crenga em Deus. Mas, além disso, 0 questionamento teolégico do divi- No prepatava, no préprio seio da esfera religiosa, a contestacio radical da crenga em Deus e, em suma, a “morte de Deus”. Tais so, parece-nos, os dois maiores e opostos legados do cristianismo latino medieval 3 histéria ocidental do divino. Jean-Ctaupe Scumrr Tradugao de José Carlos Estévao Ver também Além — Biblia — Diabo — Fé — Imagens —Judeus — Pecado — Rei Orientacao bibliografica BOESPFLUG, Francois. Dieu dans Part Paris: Cerf, 1984, : Dieu en pape: une singularité de lar religieux de la fin du Moyen Age. Revue Mabillon, Ligugé, v.2, tI, p-167-205, 1991. BOTTERO, Jean. Naissance de Dieu: la Bible et Vhistorien, Paris: Gallimard, 1986. BHU AUB artes Gorell Gorre surely ay sec ch PRP RT derts, 1984, 2.ed. Munique: DTV, 1992, P405 ss. 356 Deus MOINGT, Joseph. Polymorphisme du corps du Christ Le impede la Rl ; 1.7, p#7-62, 1986. 4 Temps de la R6flexion, Paris, RUBIN, Mii. Corpus-Christ: the Eucharist in Late Medieval Culture. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. ea 357 Diabo Sob seus diversos nomes e com suas aparéncias multiformes, 0 Diabo— Sata ¢ seus deménios — é seguramente uma das figuras mais importan- tes do universo do Ocidente medieval: encarnacio do mal, oponente das forcas celestes, tentador do justo, inspirador dos impios e dos pecadores, verdugo dos condenados, ele € onipresente e seu terrivel poder se faz sentir em todos os aspectos da vida e das representagées mentais medievais. E 0 “principe deste mundo” (Joo 12,31), aqui “cle faz a festa” (J. Le Goll), © Diabo, e em particular Sata, poténcia parcialmente auténoma e que Concentra 0 conjunto das causalidades maléficas, é uma das criagdes mais inteiessantes e originais do cristianismo, © Antigo Testamento em grande medida 0 ignora, cam excegio de textos tardios, cou v liveo da Sabedo- ria, que pela primeira vez interpreta a serpente tentadora do Eden como uma figura do Diabo (Sabedoria 2,24), Sea literatura apécrifa judaica abre aos deménivs win espago crescente, o Novo Testamento, por sua vez, marca uma etapa decisiva, enfatizando o conflito entre as forgas celestes € aquele que Sdo Paulo chamou de “o deus deste mundo (2 Corintios 4,4): lembrem-se especialmente as tentagdes de Cristo, as pardbolas ou ainda os combates do Apocalipse. Satd congrega a multidio dos espiritos demo- niacos do judafsmo popular e, ao mesmo tempo, procede da dissociagio da figura ambivalente de Tahweh, o deus Veterotestamentério, deus tanto da célerae do castigo quanto benfeitor, Na Antiguidade crist, o Diabo ocupa 358 Diabo um lugar ainda maior, como o testemunham textos tio diversos quanto A vided Santo Anténio, de Atandsio, ou os escritosde Santo Agostinho. Ao que arece, a importancia do Maligno vai se reforgando globalmente durante o curso da Idade Média, Note-se que 0 Diabo esté quase totalmente ausence das imagens ctistas até o século IX. E somente por volta do ano 1000 que encontra uma posigio digna dele, quando se desenvolve uma representacio especifica enfatizando sua monstruosidade e animalidade, e manifestando seu poder hostil de modo cada vez mais insistente. Contudo, mesmo que se tenda a interpretar 0 universo como teatro de uma luta entre Deus ¢ Sata, nao se pode fazer do cristianismo medieval uma vatiante das religides dualistas. Ao contrério, confrontado com as doutri- nas de Mani e depuis as do catarismo, o cristianismo sempre se esforgou por se distinguir do dualismo (que se pode definir por duas ideias essen ciais: 0 prinefpio do mal néo foi criado por Deus e é totalmente indepen- dente dele; o mundo material nZo foi criado por Deus, mas pelo principio do mal). A doutrina cristd sustenta, ao contririo, que Deus é fontee senhor de todas as coisas, enquanto Sata é uma criatura, um anjo decaido, subme- tido a Deus e que nao pode agir sem sua permissao. No encanto, uma forte endéncia centrifuga — uma tentacio politeista? —trabalha os estratos mais profundos do ciistianisino medieval. As incessantes adverténcias da dou- trina nao impediram o desenvolvimento de uma faceta, sem davida vivida de forma muito sensfvel, que dé ao Diabo um vasto campo de autonomia. A. esse tespeito, é significativa a histéria do canone Eptsopt (século TX), que define o ponto de vista que a Igteja conservou porlongo rempo em ques- tio de feiticaria, Longe de propor a perseguigio das feiticeiras, afirma que a ctenga no voo noturno nao tem fundamento e que deve ser denunciada como ilusio: os que creem nisso desviam-se da verdadeira fé, pois “pensam que existe uma outra poténcia divina além do Deus tinico”. Ora, no século XV, eadmitirio a realidade do voo no- denunciados porque acreditavam Desse modo, involuntariamente, os clérigos reincidirdo nessas concepgoes turno. Serio como os heréticos de outrora, na existéncia de uma divindade diabélica. consagrarao a vitéria de Sata. Nio se deve considerar 0 Diabo de modois: levar em conta seu lugar no sistema religioso lado; preciso, a0 contrério, global e, portanto, descrever 359 Diciondrio analitico do Ocidente medieval as redes de relagdes as quais est integrado. Além disso, é preciso explorar 0 Amago da consciéncia, onde a angdstia do Diabo e suas miltiplas ma. nifestagdes mergulham suas rafzes, e, por outro lado, relacionar a figura do Diabo com 0 conjunto das tealidades sociais e politicas, em particular com os conflitos que agitam as sociedades medievais e nos quais 0 Diabo desempenha seu papel. Identidades do Diabo Apresentar a carteira de identidade do Diabo (nome, data de nascimen- to, marcas particulares) é uma tarefa paradoxal, j4 que se trata de um ser inapreensivel, dado & diversitas e as metamorfoses. No Novo Testamento ¢ nos textos medievais, principalmente dois termos de origem grega desig- nam 0 Diabo ou os diabos: Diabolus (“que separa”) e daemon (na origem, 9s espiritos, bons ou maus, intermediarios entre os deuses e os homens). Pode também ser designado por expressdes que lembram que pertence a categoria dos seres espirituais e angélicos (cpiritus maljgnus, “espicito ma- ligno”; spiritus immundus, “espftito imundo”; angelus malignus, “anjo malig- no”...) ou indicando a natureza de suas interveng6es (inimicus, “inimigo”; bostis, udversarius, “adversdrio"; malignus, “maligno’; temptator, entador”...). O termo hebreu ha-sitin (“o acusador") designa, em J6, um anjo da corte celeste encarregado de pér a prova os justos; é somente no Livro do Jubies, um apécrifo do século I antes de nossa era, que 0 termo designa o chefe dos deménios. Tal eniprego, retomado no Apocalipse, € acompanhado por numerosos autores da Idade Média, Mas o termo também pode ser igual- mente utilizado como substantivo, designando um simples diabo (algumas vezes no plural: “os satanases”). Lucifer é0 nome do mais luminoso dos antes de sua queda, mas continuaa ser usado para designd-lo mesmo depois que se tornou o principe do Inferno, Este é © caso, em parcicular, no teatro religioso do fim da Idade Média, no uma exigéncia do género: do Inferno. anjos, qual 0 recurso ao didlogo € Uicifer € 0 senhor, aprisionado nas profundezas enquanto Sar’ é © primciro de seus servidores, seu bode €X- Piatério e encartegado de misses na terra, Enfim, nomes especificos s40 usados algumas vezes (Belzebu, Baal, Beliar, Belfegor, Beemot, Asmodeus 360 Diabo ‘Astaroth, Leviata ), seja para enfatizar a diversidade do mundo infernal, seja, sobretudo no século XV, para designar as poténcias intermediarias anure Litifer e 0s simples dem6nios. Deve-se sobretudo enfatizar a dife- renga semantica entre © chefe (Lucifer, Sata, o Diabo) e a multidao dos demOnios (diaboli, demoni). {A queda dos anjos constitui 0 ato de nascimento do Diabo e marca 0 ingresso do mal no universo. Tal mito, de restrito fundamento escritural (2 Pedro 2,45 Judas 6), provém da literatura apécrifa judaica, em particular do Livro de Henoc (séculu II a.C.), por muito tempo tido como um escrito cannico, no qual se explica a Queda pelo desejo dos deménios, seduzi- dos pela beleza das mulheres e que querem se unir carnalmente a elas. Essa reoria recua apenas a partir do século IV, quando a explicagéo fundada no orgulho de Licifer eem seu desejo de igualar-sea Deus termina por suplan- té-la totalmente, Fm ver de intervir depois da criacao do homem, a Queda torna-se 0 evento inaugural da histéria do universo, de modo que pode ser assimilada, notadamente por Santo Agostinho, & separacio entre a luz eas trevas, Para os tedlogos, a reflexao sobre a queda dos anjos € decisiva ¢ pe em jogo o problema da origem do mal: a fim de se preservar 0 maximo possivel de um desvio dualista, enfatizam que os deménios foram criados bons e que sio maus por vontade e no por natureza (Santo Tomas). Quanto aos anjos maus, derrotados por Sio Miguel e pela milicia celes- te, a ortodoxia enfatiza que sfo exclufdos para sempre, sem esperanca de tedengao. Sio condenados a permanecer sobre a terra, no ar, nas profun- dezas infernais, onde todos serio precipitados apés 0 Juizo Final. Embora decaidos, os diabos mantém a mesita natureza dos anjos. So, portanto, seres incorpéreos, de corpo etéreo, o que nao os impede de se manifestarem aos homens sob as mais diversas aparéncias. Sua propria natureza tende a diversidade e as metamorfoses que os tornam imperceptiveis e perigosos. Qs relatos medicvais estado chcios de manifestagSes do Diabo em forma animal (serpente, dragio, mosca, vespa, passaro negro, gato...) No extremo oposto, o Tentador pode usurpar uma aparéncia totalmente humana, em particular a de uma mulher sedutora ou de um belo jovem, inclusive a de um santo, Nada € impossivel para o Diabo, nem mesmo tomar os tragos do arcanjo Gabriel, da Virgem ou de Cristo. 361 Diciondrio analitico do Ocidente medieval Entre esses dois extremos, situa-se a imagem domiinante da Diabo, aquela que melhor revela sua prdpria SEALE. Nas aparigdes relatadas pelos monges, como Raul Glaber (1048) ou Guiberto de Nogent (111 5), © Diabo assune apareucia humana, inas inquietante: € pequeno e feio, ma. cilento e corcunda, vestido de modo sérdido, as vezes “negro como um etiope”. A partir do século XI, desenvolve-se uma iconografia especifica do Diabo: seu corpo conserva uma silhueta antropomérfica, mas essa forma, feita por Deus “a sua imagem”, é pervertida, tornada monstruosa pela de- formidade e pelo acréscima de caracteristicas animais (Focinho, presas, chifres, orelhas pontudas, asas de morcego, ea partir do século XIII, cauda, corpo peludo, garras de ave... Na sua esséncia prépria, os diabos, como 0s anjos, nfo tém sexo, ou melhor, nio hé mulheres entre eles (¢ os clérigos especificam que eles nfo praticam a homossexualidade entre si). Attibui-se a eles, no entanto, uma intensa atividade sexual. Numerosas crengas folcléricas atribuem-thes in- clusive o poder de procriar: certas personagens histéricas ou lendérias, dentre elas em primeiro lugar Merlin, sao tidas cumo filhos do Diabo, enquanto as mies temem encontrar no bergo, algum dia, em lugar de seu recém-nascido, um “trocado”, um filho do deménio, Quanto aos tedlo- go> — Guilherme de Auvergne ou Sio Tomas de Aquino —, admitem a ve- racidade do testemunho de mulheres que se dizem vitimas de deménios incubos, mas consideram que eles se limitam a transmitir uma semente que no € sua (tenha ela sido produzida Por uma operacio magica ou recolhi- da de-um homens), de modo que, embora os deménios desempenhem um Papel na procriacdo, os seres nascidos dessas uniGes uu si seus filhos. Enfim, os deménios conservam vantagens de sua natureza angélica, em Particular uma poréncia intelectual claramente superior a do homem. A ciéncia diabélica € um dos instrumentos de seu poder sobre o mundo e So re bomen Ne) ettas\condigars! podemiapisiecbexs (oi poset tiais, transformé-los e deslocé-los (So Tomés). Podem conhecer os pensa- ut espirito. Sobretudo, admite-se desde ro © anunci: tenham o dom de profecia como os anjos. um pecado grave toda tentativa de recorrer mentos dos homens e agit sobte se Agostinho, podem prever o futu: -lo aos homens, embora n4o Os tedlogos denunciam como @ essa ciéncia diabélica, o que 362 Diabo acompanha a crescente preocupagio em fins da Idade Média com o desen- yolvimento da magia negra, fundada na captagao do poder dos deménios. O principe deste mundo Na terrivel guerra que se trava entre as forgas do bem eas do mal, desde a queda dos anjos até o desenlace escatolégico anunciado pelo Apocalipse, a tentagio de Adio e Eva marca uma primeira vit6ria de Leicifer: Por causa do Pecado Original, o homem é submetido ao poder do Diabo (Santo Agos- tinho), que possui sobre ele um verdadeiro direito (o ius diabli).. Contu- do, Sata é principe somente dos pecadores, pois Cristo resgatou com seu sacrificio o direito que o Diabo tinha sobre a humantdade. Essa concep- fo domina ao longo de toda a Idade Média, mesmo que se possa sugerir uma distingdo entre um primeiro perfodo, da qual a visio muito sombria da natureza humana prdpria de Santo Agostinho seria emblemética, e um segundo momento que, sem negligenciar 0 peso do pecado e do mal, ser mais seusivel avs efeitos da Encatnagao € a reabilitagdo da Criagio que aquela autoriza. Depois da Encarnagio, 0 homem tem o poder de encon- trar a perdida harmonia com Deus. No entanto, 0 Diabo de modo algum desaparece da cena intelectual e constata-se mesmo, nos tiltimos séculos da Idade Média, um forte desenvolvimento da demonologia erudita. Inumerdveis relatos detalham os atos maléficos do inimigo. E respon- sabilizado por todas as catéstrofes: provoca tempestades e tormentas, cor tompe os frutos da terra, suscita as doengas dos homens ¢ do gado, afunda 98 navios ¢ faz desabar os edificios. Ele obstrui a agio dos justos, como fez 40 se opor A construcio da catedral de York, no século XII, tornando impossivel erguer as pedras. Suas duas armas favoritas sdo a tentagao ea ttapaga. Tenta insinuar no coragao dos homens desejos culpaveis, seja por meio de aparigio, de sonho (suspeito na Idade Média, por ser frequente- mente considerado de origem diabélica), ou somente suscitando maus Pensamentos. As tentagdes da carne, do dinheiro, do poder e das honras so as mais terriveis. 6 para se tornar bispo que Tedfilo sela seu pacto como Diabo, segundo uma lenda oriental conhecida no Ocidente desde o século IX e largamente difundida tanto em textos como na arte. 363 Diciondrio analitico do Ocidente medieval O Maligno pode se insinuar no corpo dos homens, “possui-los” a ponto de perderem toda vontade propria. Ele tamlbém sabe ser mais discseto par inspirar os maus: nas imagens, vemo-lo destilar seus pérfidos conselhos nos ouvidos de maus peincipes, como Saul ou Herodes, ou ainda iusinuar-se na boca de Judas no momento da Ceia. Sabe-se que ele intervém em todas as questées do mundo daqui de baixo. Também nao se hesita em instrumen. taliza-lo, a ponto de, em certos conflitos, um dos lados apregoar que uma carta de Lucifer foi enderegada ao chefe do campo adversério oferecendo- -lhe seus “amigaveis” conselhos. Esse estratagema, utilizado, per exemplo, na época do Grande Cisma nas polémicas entre dois papas tivais, aparecia como um meio eficaz de desacreditar os adversérios. Eufinn, incumbe aos diabos uma outra tarefa: castigar os maus no Além, E porisso que eles se precipitam sobre os moribundos buscando se apossar de suas almas. Algumas vezes, devem disputé-las com os anjos, com maior ou menor sucesso (como no afresco do Triunfo da morte do Camposanto de Pisa). Nos casos mais litigiosos, anjos bons e anjos maus devem recorrer a.um verdadeiro julgamenro da alma. © Diabo exibe scus talentos proces: suais para obter ganho de causa, quando no langa mao de uma técnica mais tude, como pendurar-se a um dos pratos da balanga. No Inferno, e as vezes no Purgatdriv, os diabos fazem as vezes de verdugos. Gestos humanos e poderes celestes: o Diabo sob controle © Diabo, nas suas variadas formas, opGe-se a todas as figuras positivas do cristianismo medieval. Osanjos. Devido & sua natureza comum, logicamente os diabos opdem- ~Se a0s anjos. Os santos. As almas mais santas so objeto de assaltos mais intensos por parte do Maligno. As tentagdes dos santos, tormentos terrfveis, tam= bém so a homenagem do Diabo 3 vire ude deles e a prova necessfria para confirmé-la. Em todos 0s relatos hagiogréficos, o Diabo € 0 oponente que valoriza o triunfo do santo heréi sobre ele, Para os vivos, esses relatos set los assaltos do Diabo. Ademais, em os homens Aqui e no Além vem de exemploe mostram como se livrar d enfatizam 0 poder dos santos que proteg: 364 Diabo ¢ frustram 08 ataques do Maligno. Contra a multidao dos deménios. o exér- cito dos para os hom ‘AVirgem. No decorrer dos séculos, v poder miraculoso ea capacidade de santos é sempre vitorioso e constitui um dos recursos mais eficazes ens que se colocam sob sua protegio. intercessao atribuidos 4 Virgem s6 cresceram. Mais ainda que os santos, ela vema sera protetora suprema, sobretudo quando os simples deménios cedem lugar ao préprio Diabo. Assim, €a Virgem queliberta Te6filo de sew acto com Maligno. Pode-se mesmo perguntar se, nos tiltimos séculos da Idade Média, a dupla Virgem/Sata nao adquire uma importincia determi nante. E 0 que parece indicar o tema do “processo de Sata”, que conhece grande sucesso a partir do século XIV. A despeito de uma dramatizagio crescente das relacdes entre as instancias sobrenaturats, deve-se supor, no interior da dupla Virgem/Sata, um equilibrio interno indispensavel para aseegurar o controle das forcas maléficas. O Cristo. A dupla Cristo/Sata continua, contudo, essencial. O sacrifi- cio do Redentor marca um momento decisivo na histéria do Diabo, uma dspera derrova que reduz singulaimente seus poderes. Bo que mostra 0 fracasso das tr@s tentac6es, a iconografia do Cristo pisoteando o basilis- coea dspide (Salmo 90), e mais ainda o episédio da Descida aos limbos. Segundo esse relato, apécrifo, mas totalmente integrado pela ortodoxia, Cristo desceu aos infernos entre sua morte e ressurreicao a fim de libertar 98 Justos mortos antes da Encarnacio. Sata ¢ ento vencido em seu proprio teino, ea abundante iconografia dessa cena (a partir do século IX) reforga sua humilhagio mostrando-o esmagado sob os pés do Salvador. E 0 fim do poder absolut du “priucipe deste mundo”. Deus, a Trindade. A oposicao entre Deus e Litcifer, posta em jogo princi- palmente pelo relaco da Queda, leva ao problema do dualismo. Embora a teologia se esforce por afasté-lo, numerosos testemunhos, escritos ou figu- rados, aproximamse muito de um verdadeiro dualismo. F a caso de certas imagens mostrando Sati quando da Queda, nao decaido, mas entronizado ho centro de sua esfera como Deus na sua, manifestando assim aamplitude dle seu poder e de sua autonomia: s6 0 enquadramento de seu circulo, na metade inferior da pagina, lembra sua submissao a Deus (Saltério da rainba Maria, comeco do século XIV). Enfim, muitas vezes Sata, qualificado de 365 Diciondrio analitico do Ocidente medieval “momo de Deus” (simia Dei), levaa semelhanga a ponto de se atrogar certas caracteristcas trinitétias. Assim, sua cabeca pode aparecer com tr@s tostos, Na rede de relagées estabelecida pelo cristianismo medieval — um com- plexo monotefsmo —, Sata ocupa wna posigto particular: Ele &, segundo modalidades variaveis ¢ intensidades cambiantes no decorrer da Idade Média, 0 inimigo de todas as outras figuras. Eo Opositor, contra o qual se afirma a coesao das forgas positivas. Assim, ele modera a tendéncia po- litefsta do cristianismo medieval, reduzindo a multiplicidade das figuras a unidade de um tinico combate. O homem medieval nao esta s6 diante dos deménios. Concretamente, dispée de praticas, de gestos e de ritos para se proteger. A Igreja pode ser considerada um baluarte contra o Diabo, em primeiro lugar por meio dos sacramentos que dispensa. O primeiro deles, o batismo, que lava.o homem do Pecado Original, foi por muito tempo concebido como uma forma de exorcismo, O exorcismo propriamente dito permite aos clérigos libertar 0s possuidos; as formulas de béncio protegem do deménio, enquanto 0 tito de dedicacio das igrejas profbe seu acessu aos lugares consagrados. Os objetos sagrados — héstia, relfquias, cruz, mas também amuletos diversos — mantém 0 Maligno a distancia. Os jejuns ¢ as preces também sao armas eficazes. Enfim, se os clérigos enfatizam que o Diabo nada pode contra aqueles que tém fé, hi um gesto de poder infalivel, que salva de todos os perigos: 0 sinal da cruz, O Diabo valoriza as poténcias sobrenaturais que triunfam sobre ele ¢ também valoriza a instituigio eclesidstica por intermédio da qual os fiéis sao convidados a calher os frutos dessa vitGria, Diabo cémico, Diabo do carnaval? Existe também um Diabo que os comentadures moderns cosumam chamar de “grotesco” ou “tidiculo” » usando expresses que podem levar a certa confusao. Longe de sera terr vel personagem sobre a qual triunfam ico, desprovido de todo carter ameaga- Como no fabliax que conta de que forma ©-0em um jogo de dados. O teatro (em 366 ag santos, 0 Diabo pode parecer fra dor, ou, pelo menos, facil de iludir, Sao Pedro rouba-lhe almas vencend, Diabo particular ‘os mistérios da Paixio) comumente pe em cena esse aspecto. © Diabo do teatro é ridiculo quando ignora sua prépria fraqueza, é comi- co quando se vé enredado por causa de sua tolice, ou quando os diabos se atormentam mutuamente, em particular quando Lucifer pune os fracas- sos de Sata. Mas constata-se uma tensio entre os diferentes aspectos da figura diabélica, a0 mesmo tempo vitima e carrasco, temivel e lastimavel, arerrorizante e grotesca. Conhecendo as afinidades entre o medo € 0 riso, 6 ficil afirmar que os tragos cémicos atribufdos a0 Diabo sto um modo de exorcizar 0 temor que ele inspira, Algumas vezes os individuos podem acertar contas diretamente com 0 Diabo, em particular com sua imagem, objeto de frequentes ataques ico- noclastas (miniaturas raspadas, pedras atiradas contra representac6es mo- numentais de Sati). A imagem € assim, as vezes 8 margem das prescrigdes da Igreja, um outro vetor pelo qual o homem tenta acertar contas com a figura ambfgua, a0 mesmo tempo assustadora ¢ odiosa, ameacadora e vul- nervel, de Sata. Havia rambém um Diabo “carnavalesco”, sem nada de assustados, que seria o “alegre e ambivalent porta-voz dos pontos de vista nao oficiais”, o representante de uma légica da inversio que fazia eriunfar 0 “baixo corpo- ral” (M. Bakhtin). A essa concepgao estio relacionadas as miiltiplas facécias, caretas, obscenidades frequentemente escatol6gicas que os diabos tanto Praticam, assim como as fantasias diabélicas do carnaval ou do charivari. Otecurso ao Diabo, mestre dos contravalores, autoriza o desrecalque paré- dico, a expresso de tendéncias ordinariamente reprimidas. Contudo, mais do que uma expressio folclérica autGuomia, deve-se ver no Diabo grotesco uma forma de compromisso que permite reintegrar mecanismos de inversao no seio da prépria cultura dominante. Manifesta-se, assim, a complexidade © ambivaléncia da figura do Diabo, na qual se mesclam poder e debili- dade, terror ¢ comicidade, dominagio social da Igreja e inversio parédica. Diabo e tormentos da consciéncia Outra faceta do Diabo medieval aparece no seio da consciéncia indi- vidual. Quaisquer que sejam as discussoes historiograficas as quais pode Dicionério analitivw do Ocidlente medieval dar lugar a nogio de individuo, essa abordagem legitima-se pela Crenga na existéncia de diabos pessoais (em Cassiano, desde o século V, e em al. guns outros autores medievais, como Pedro Lombardo). Com efeito, a5 anjo da guarda encarregado de velar por cada cristo, faz frente um diabo cuja missio € induzi-lo ao mal. E 0 que mostra uma miniatura do Livro das sentengas, de Pedro Lombardo, na qual o individuo esta colocado entre seu anjo da guarda e seu diabo pessoal. Eis uma representagio antropomérfica fundamental, que faz de cada sera arena em que se defrontam as forcas do bem eas do mal. Embora 0 caréter personalizado dos deménios parega menos desenvol- vido do que o dos anjos da guarda,no deixa de ser verdade que aconscién- cia cist se ve assaltada por seres diabélicos. Enquanto na Alta Idade Média a presenca do dem6nio no individuo ocorre sob a forma de possessio, e de seu complemento ritual, 0 exorcismo, tal tipo de manifestacio tende a recuar depois do ano 1000. Em compensagio, multiplicam-se ento os tes- temunhos relativos 4 obsessio diabélica, em particular no meio monistico. Percebe-se nesses relatos sinais de uma consciéncia aturmentada, per- seguida por forcas hostis. © Diabo exprime tudo o que a consciéncia nfo pode reconhecer como emanando dela propria (e nem de Deus), tudo que cla julga negativo, hostil, e que deve ser rejeitado, colocado para fora de si. Sabe-se que, segundo Freud, os deménios so formas personificadas de maus desejos, recalcados. Sao pulses sexuais angustiances que se mani- festam quando, por exemplo, a mie de Guiberto de Nogent conta que um diabo deitava subre ela Para oprimi-la, ou ainda nos casos de “polugdes no- turnas” que os monges arribuem 3 interyengao du Diabo, Mas este também pode aparecer como porta-voz de pulsées mérbidas: por exemplo, quando manda um peregrino de Sao ‘Tiago se castrar e se matar. O universo diabélico permite a expresso de fantasmas multiformes. As caracteristicas sexuais dos demnios aio com frequéncia enfusizadas, notadamente quando Pprovidos de 6rgaos sexuais desmesurados e agridem os condenados (aftescos da colegiada de San Giminiano). A analidade nao Emenos imporrance: nos grandes aftescos ttalianos do Inferno, a partir de Giotto, © préprio Sata aparece excretando os danados. De maneira ainda Guaeteedies tutu ab clicolepostoisoboisignode uals leader 368 Diabo gustiante, devoradara, © préprio Inferno é geralmente simbolizado pela jmensa goela do Leviata. E sobre a boca contorcida, desmesurada, geral- mente animal do Diabo, que se concentra uma parte importante de seu poder ameagador. Enfim, a multiplicagio de rostos e bocas no corpo dos deménios, 0 que cresce entre os séculos XII ¢ XIV, pode ser considerada como o triunfo dessa oralidade hostil. Assim, 0 mundo diabélico aparece menos como 0 porta-voz do “baixo corporal” do que como lugar de expres- sio de imagens corporais ¢ sexuais particularmente angustiantes. Ao menos durante a Idade Média cenvral, a crenga no Diabo é expresso de uma consciéncia individual necessariamente culp4vel, atormentada e di- vidida. A consciéncia crista encontra em si um mal que é preciso repelir, que ela pode em parte atribuir 3s tentacdes do Diabo e combater como a um inimigo exterior. O Diabo atormenta a consciéncia, mas ao mesmo tempo aajuda a se constituir no interior de um universo dual no qual se opdemo bem eo mal, Deus ¢ Satd, 0 anjo da guarda e o diabo pessoal. Contramodelo e poder maligno © Diabo sempre foi tido como o inspirador dos inimigos da Ipreja e da Cristandade, Assim, para 0s cristios, os deuses adorados pelos pagios nao passavam de deménios. Os judeus, do mesmo modo que mais tarde os mu- culmanos, tamhém sio associados 20 Diabo. O Evangelho fornece quanto 4 isso um argumento, que seré depois largamente ampliado, ao qualificar Os judeus que nao reconhecem Cristo de filhos do Diabo (Joao 8,44) ou ainda de “sinagoga de Sata” (Apocalipse 2,9). Os heréticos também so- fretam, por seu turno, esse processo de diabolizagia. Camecado no século IIL, 0 fendmeno se acentua com as heresias do ano 1000 para se ampliar ainda mais nos séculos seguintes, na luta contra os cataros. Nao somente osheréticos passam por ser inspirados pelo Diabo, como sdo descritos, se Suindo o tratado de Adson sobre o Anticristo (século X), como membros de um corpo cuja cabeca seria Satd, réplica negativa do corpo da Igreja, cuja cabega € Cristo. O parentesco, o corpo: tais s40 os dois grandes modelos ue permitem pensar ndo somente a Igreja como também sua antitese ma- léfica e © confronto que as opdem. Sry, 369 Dicionario analitico do Ocidente medieval Desde entio, intensifica-se a crenca num complé satanico que ameaga a sociedade. A obsessio diabélica invade o Ocidente. Exatamente quando o perigo herético foi jugulado, passa-se a denunciar feiticeiros e feiticeiras, que aos olhos do clero nfo sfo mais vitimas de uma ilusio diabélica, como © quer o canone Episcopi, mas membros da seita diabélica, participantes no sab4 de um verdadeiro rito de adoracao de Sata. Convencidos de que aso ciedade crista é alvo de uma ofensiva sem precedentes lancada por Sati, os poderes eclesidsticos e estatais desencadeiam, a partir do século XV, uma vasta perseguigdo, em escala inédita, contra os que considera seus inimigos mortais. Sat aparece como o Adversdrio contra o qual se funda o poder das instituigées, antes de todas o da Igreja, principalmente na luta contra as heresias, e também 0 dos Estados, engajados na caga as feiticeiras. Sata sempre esteve envolvido na questo do poder. Avesso.do corpo eclesial, ele também € a imagem do mau poder. Na época feudal, com faci- lidade Lécifer € descrito como o vassalo cuja felonia o faz querer igualar seu senhor, em lugar de permanecer submisso a ele. Por outro lado, uma vez punido por essa traicio, ele se conduz, ainda que nos limites do dom{- nio que Deus The concede, como um senhor a quem se rende homenagem, como na lenda de Teéfilo. Tampouco 0 poder real escapa as interferéneias diabélicas. Jé no século XII, Gautier Map, entre outros, satiricamente assi- mila a corte do rei da Inglaterra Henrique II a um inferno, sem, no entanto, chegar a explicitamente associar 0 soberano a Sati. E sobretudo no século XIV que se manifesta a majestade de Sati. As Premissas teolégicas encontram-se em Santo Tomés, que admite a exis- téncia de uma ordem e de um comando no mundo demonfaco. Desde o século X11, Sata aparece como uma figura monitquica, e Dante faz dele Pimperador del regno doloroso”. Algumas vezes desde 0 século XII, mas sobre- tudo nos séculos XIV e XY, desenvolve-ce uma verdadcira iconogeafia da majestade de Sata que destaca sua autoridade por meio de uma estatura gigantesca, de sua posigio frontal ¢ sentada, das insignias do poder (trono, cetro, coroa) eda ordem que impoea corte de deménios, Nos afrescos sobre obomiea matt govetio,pintades por A. Lorenzertiem Siena, porvoltade 1338, o mau principe € retratado com tragos diabdlicos e entronizado em 370 Diabo seus dominios como Sati no Inferno, E precisamence entio, na primeira metade do século XIV, que nasce a reflexZo sobre a tirania, isto 6, sobre as formas de mau poder, do qual a majestade de Sati é a imagem absoluta. Esta aparece como 0 avesso das modernas formas de dominagio politica que entio se constitufam. Assim, a intensa presenga de Sata no decorrer da Idade Média nao pode ser entendida sem ao mesmo tempo considerar os poderes que a contro- lam: figuras divinas ¢ santas, mas tambéni autoridades eclesidsticas e es- tatais que afirmam seu poder no combate vitorioso que travam contra o mal absoluto. Contra uma poténcia que parece cada vez mais terrivel, s0 necessarios protetores cada vez mais eficazes. Desse confronto resulta uma tensfo cada vez mais viva, que parece caracteristica das formas religiosas do fim da Idade Média. O Diabo medieval pode ser definido como uma outra instancia, que funciona em miiltiplos niveis, tanto individuais quanto coletivos. De um lado, os fantasmas diabélicos langam raizes no lugar mais profundo dos seres; a figura do Diabo oferece uma solugao para os conflitos intimos e ajuda a conscigncia a se constituir, a pensar a si mesma. De outro lado, a figura cerrfvel e poderosa do Diabo, unificando contra si todo 0 pantezo ctistio, duplicando negativamente as instituigées, participa da afirmacio das modernas formas de Estado e de sua violéncia necesséria. JexOmt: BascHer Traducao de Jost Carlos Estévao Ver também Além — Anjos — Corpo e alma — Deus — Feitigaria— Heresia — Pecado — Santidade — Sonhos Orientagao bibliografica BASCHET, Jéréme. Les Justices de Pau-dela: les représentation de I'Enfer en France et Tralie (XII-XVE sidcle). Roma: Ecole Frangaise de Rome, 1993 37! Diciondrio analitico do Ocidente medieval RASCHET, Jéréme. Diavolo, In: Enciclopedia dell’arte medievale. Roma: Istituto della Enciclopedia Italiana 1994. t.V. BERLIOZ, Jacques. Pouvoirs et contrdle de la croyance: la question dela procréation démonique chez Guillaume d'Auvergne. Razo. Nice, n.9, p.5-27, 1989, CHIFFOLEAU, Jacques. 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