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Jair Messias Bolsonaro

Presidente da República

Milton Ribeiro
Ministro da Educação

Antônio Ricardo Accioly Campos


Presidente da Fundação Joaquim Nabuco

Mário Hélio Gomes de Lima


Diretor de Memória, Educação, Cultura e Arte (DIMECA)

Elizabeth Mattos
Coordenadora de Gerenciamento de Projetos e Processos

Alexandrina Sobreira de Moura


Editora da Revista Ciência & Trópico Diretoria de Pesquisas Sociais

Antonio Laurentino
Setor de Serviços Editoriais Editora Massangana – Fundaj

Luis Henrique Lopes da Silva


Editor Assistente da Revista Ciência & Trópico

CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA CIÊNCIA & TRÓPICO

Cátia Lubambo
Fundação Joaquim Nabuco
Pedro Hespanha
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

José Paulo Chahad


Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo

Maria Cecília MacDowel Santos


Universidade de São Franscisco, Califórnia
e Centro de Pesquisas Sociais da Universidade de Coimbra

Marion Aubrée
Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain (CRBC)
et no Centre d'Etudes Interdisciplinaires des Falts Religieux (CEIFR)
da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS – Paris)

Maria do Carmo de Lima Bezerra


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília

Silvina Carrizo
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET)

Juan Carlos Lerda


Universidade do Chile

Denilson Bandeira Coêlho


Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)
© 2020, Fundação Joaquim Nabuco
© 2018, Fundação Joaquim Nabuco

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E-mail: pesquisa@fundaj.gov.br
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Pede-se permuta
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On demande l’ échange
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We ask for exchange
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Pidese permuta
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Si richiede lo scambio
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Man bittet um Austausch
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Intershangho dezirata
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Revisão linguística e tradução: Luis Henrique Lopes da Silva e Solange Carlos de Carvalho
Diagramação: Malorgio Studio
Revisão linguística e tradução: Luis Henrique Lopes da Silva e Rosane Medeiros de Souza
Projeto da capa: Antonio Laurentino | Editora Massangana
Diagramação: Patricia Okamoto e Robson Santos | Tikinet
Ilustração da capa: Trabalho gráfico executado sobre ilustração em rótulo de cachaça, impresso
Projeto da capa: Antonio Laurentino | Editora Massangana
à época em Xilogravura, pela Indústria e Comércio Tito Silva S.A. Coleção Iconográfica Tito
Ilustração da capa: Trabalho gráfico executado sobre obra do Artista Plástico Plínio Palhano.
Silva – Acervo da Fundação Joaquim Nabuco.
“Da Série Noronha”, óleo sobre tela, 1987. Acervo da Fundação Joaquim Nabuco.

Ciência & Trópico/ Fundação Joaquim Nabuco. - Vol. 1, no.1.(1973) – Recife:


Editora Massangana, 1973 –
v.: il.

Semestral.
Textos em português, inglês, francês e espanhol.
Continuação de: Boletim do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais
(jan. 1952 - out. 1972).
A partir de 1980 o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais passou a ser
denominado de Fundação Joaquim Nabuco.
A partir de 2012 a revista passou a contar com uma versão on-line.
ISSN 0304-2685/ ISSN Eletrônico 2526-9372.

1. Ciências Socais. 2. Ciências Humanas 3. Interdisciplinaridade.


I. Boletim do Instituto Joaquim Nabuco. II. Periódicos FUNDAJ.
C
CDU 3:061.6(05)
Sumário

Alexandrina Sobreira de Moura


7-9 Nota Editorial
Luis Henrique Lopes da Silva

Saulo di Tarso Begliomini de Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos


11-35
Araújo bens culturais

Estevão Eduardo Cavalcante Construção de identidades nacionais no


37-58
Carmo teatro de Joaquim Cardozo

Formações imaginárias: a imagem de si e do


Luiz Carlos Carvalho de Castro 59-71 outro em torcidas organizadas de futebol em
redes sociais na internet
Cristina Maria Correia de Melo Relação entre Política urbana e habitacional:
Maria do Carmo de Lima 73-99 instrumentos urbanísticos em apoio ao
Bezerra provimento da habitação social sustentável
Rafaela Silva de Faria Gestão ecológica das águas: uma comparação
101-117
Claudia Padovesi-Fonseca das diretrizes do Brasil e da Europa

Micaella Raíssa Falcão de Moura


Francine Modesto dos Santos
Segurança e vulnerabilidade hídrica:
Carlos de Oliveira Galvão
119-141 evoluções conceituais à luz da Gestão
Suzana Maria Gico Lima
Integrada e Sustentável
Montenegro
Simone Rosa da Silva

A mídia impressa e a construção narrativa


Fábio Ronaldo Silva
143-162 sobre a AIDS no Brasil no final do século
Raquel da Silva Guedes
XX: Uma relação perigosa
Marina de Sá Costa Lima
Gilberto Gonçalves Rodrigues Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e
163-189
Sonia Maria Pessoas Pereira trajetória da Rede ATER NE/Brasil
Bergamasco

Gabriela Araújo Tabosa de


A importância democrática dos partidos
Vasconcelos
191-216 políticos brasileiros e o comportamento do
José Mário Wanderley Gomes
STF frente às ADIs (1989-2017)
Neto

ISSN 0304-2685
ISSN eletrônico 2526-9372

Ciência & trópico Recife v. 44 n. 1 p. 01-256 jul. - dez 2020


Débora Coelho Moura
Marcela de Souza Silva Alves
Usos medicinais de plantas no Cariri
Erimágna de Morais Rodrigues 217-233
paraibano: um estudo de caso
Antonio James Oliveira Silva
Aureliana Santos Gomes
Sensoriamento remoto de alta resolução
temporal para uma observação dinâmica dos
Laurent Polidori 235-255
ambientes tropicais
Nota Editorial

Em um período em que a ciência deve ser cada vez mais prestigiada, a


Revista Ciência & Trópico publica seu volume 44, número 1 de 2020. Este núme-
ro reforça a intercisciplinaridade, característica determinante do periódico, abor-
dando conteúdos que vão de Artes visuais a urbanismo; Sociologia a Geografia;
Linguística a democracia.
O Artista Plástico Saulo di Tarso Begliomini de Araújo inicia este número
investigando a formação de uma nova paisagem cultural que emerge com o declínio
da economia cafeeira e a ascensão da cana-de-açúcar no nordeste do estado de São
Paulo, refletindo sobre as relações entre a paisagem cultural pernambucana e pau-
lista. Com o artigo Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais , O
autor traçou um panorama histórico, artístico e cultural do Brasil, buscando com-
preender as transformações e os novos valores culturais que surgem desse processo,
evidenciando o entrelaçamento entre arte e pioneirismo econômico
Estevão Eduardo Cavalcante Carmo, com o artigo Construção de identida-
des nacionais no teatro de Joaquim Cardozo, prossegue investigando o processo de
construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo, mais especifi-
camente na peça O coronel de Macambira. As expressões nominais anafóricas que
referenciam as personagens que constituem a peça O coronel de Macambira foram
analisadas a fim de observar a construção de identidades nacionais no drama de
Joaquim Cardozo. O autor conclui que as personagens constituem grupos fragmen-
tados e antagônicos, que representam conflitos socioeconômicos incrustados na so-
ciedade brasileira.
Por sua vez, Luiz Carlos Carvalho de Castro discute o conceito de forma-
ções imaginárias, em Formações imaginárias: a imagem de si e do outro em torcidas
organizadas de futebol em redes sociais na internet , com o objetivo de analisar a
construção identitária de torcedores organizados. Os resultados obtidos pelo autor
apontam para a heterogeneidade da identidade do torcedor organizado, uma vez
que a identidade perpassa pelas representações que cada um tem de si e do outro,
pelo discurso transverso e pelo deslocamento da posição-sujeito. O autor conclui,
portanto, que a construção da identidade vai além das representações imaginárias,
devido à pertinência dos elementos constitutivos do processo discursivo.
Abrindo espaço para discussões sobre urbanismo, Cristina Maria Correia
de Melo e Maria do Carmo de Lima Bezerra afirmam que o acesso à habitação é
condição básica para a conquista do direito à cidade sustentável no artigo inti-
tulado Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos.
O estudo trazido pelas autoras visa a verificar o grau de sinergia entre as deci-
sões de política urbana e política habitacional para alcance da cidade sustentável.
Sugeriram, como resultado, que o grau de integração entre instrumentos de po-
lítica urbana e política habitacional são muito baixos, e que as decisões de provi-
mento da habitação visam apenas a dados quantitativos, não estando em pauta a
estruturação sustentável do tecido urbano.

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Em Gestão ecológica das águas: uma comparação das diretrizes do Brasil e
da Europa, Rafaela Silva de Faria e Claudia Padovesi-Fonseca traçam paralelos de
enquadramento das águas nas diretivas brasileira e europeia, além de agregar as
diretrizes europeia em abastecimentos de água no Brasil. As autoras afirmam que
há contrastes entre as realidades brasileira e europeia, com adaptações necessárias
quando aplicadas. Finalizam afirmando que a Política das Águas brasileira apresenta
medidas promissoras, com potencial alcance em preservação, mas muito deve ser
feito na sua gestão hídrica.
Dando continuidade à discussão sobre recursos hídricos, Micaella Raíssa Falc
ão de Moura, Francine Modesto dos Santos, Carlos de Oliveira Galvão, Suzana Maria
Gico Lima Montenegro e Simone Rosa da Silva apresentam um Mapa Conceitual para
compreensão de evoluções conceituais relativas à segurança e à vulnerabilidade hídri-
ca na perspectiva da Sustentabilidade Global. Realizam, pois, com o artigo Segurança e
vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais à luz da Gestão Integrada e Sustentável,
uma revisão de literatura para o desenvolvimento de uma estrutura teórica que rela-
ciona conceitos-chave fundamentais para análise e discussão interdisciplinar do ge-
renciamento sustentável da água. Os autores afirmam que o Mapa Conceitual mos-
trou que há múltiplos focos no conceito e no estudo da Segurança Hídrica, de modo
que a pesquisa manteve o foco na Vulnerabilidade e na Sustentabilidade, entendendo
que eles são elementos relevantes para consolidar a prática da Gestão Integrada de
Recursos Hídricos em prol da garantia da Segurança Hídrica.
Fábio Ronaldo Silva e Raquel da Silva Guedes ressaltam a ampla diversidade
e a heterogeneidade da população brasileira para retratar a realidade da visão sobre
portadores de HIV com o artigo A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa. Os autores analisaram as
reportagens que veicularam notícias sobre o HIV e a AIDS em revistas de circulação
nacional, pontuando a construção discursiva problemática que ocasionou a deflagra-
ção das diferenças e impulsionou o preconceito para com os soropositivos comparan-
do ao pensamento atual repercutido pelas autoridades do governo.
O artigo Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória da Rede ATER
NE/Brasil, escrito por Marina de Sá Costa Lima, Gilberto Gonçalves Rodrigues e
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco, analisa o neoinstitucionalismo, em uma
abordagem de redes, visando compreender a implementação da Política Nacional de
Assistência Técnica e Extensão Rural-PNATER, por meio dos percursos e formação
da Rede ATER Nordeste. Os autores afirmam que o debate da abordagem neoinsti-
tucionalista ajuda a situar a atual análise sobre as instituições formais e informais,
que se articulam em rede para os propósitos de implementação dessas Políticas, e
finalizam com o enfoque da análise neoinstitucionalista de redes, refletido diante
das condições e potencialidades frente à PNATER, por meio da recente experiência
da Rede ATER NE no Brasil.
A democracia vem sendo cada vez mais reforçada a partir da promulgação
da Constituição Federal de 1988. Com vistas a valorizar tal feito, Gabriela Araújo

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Tabosa de Vasconcelos e José Mário Wanderley Gomes Neto, no artigo A impor-
tância democrática dos partidos políticos brasileiros e o comportamento do STF
frente às ADIs (1989-2017) desenvolveram uma pesquisa quantitativa que fez uso de
regressão binária para melhor explicar a forma como o Supremo Tribunal Federal
responde as ADIs impetradas pelos partidos e como isso afeta diretamente a legiti-
midade do nosso Estado democrático de direito, evidenciando a grande perda de
objeto nessas situações, em especial os partidos pequenos e os de oposição.
Um estudo pioneiro sobre o estudo de uso de plantas medicinais é trazido
nesta edição por Débora Coelho Moura, Marcela de Souza Silva Alves, Erimágna
de Morais Rodrigues e Antonio James Oliveira Silva. O artigo Usos medicinais de
plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso busca levantar o histórico etnobo-
tânico das plantas medicinais, que é comum em diversas comunidades humanas.
O estudo teve por objetivo resgatar e sistematizar as informações populares sobre
as plantas medicinais utilizadas na cidade. Os autores atestaram que a população
possui um grande conhecimento acerca das plantas medicinais e suas proprieda-
des terapêuticas.
Por fim, Laurent Polidori propõe uma discussão sobre a noção de resolução
temporal e apresenta vantagens e limitações dos sistemas de observação de alta re-
solução temporal. Por meio do artigo Sensoriamento remoto de alta resolução tem-
poral para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais , o autor demonstra
que esses sistemas permitem acompanhar fenômenos ambientais dinâmicos assim
como melhorar a qualidade da interpretação das imagens em geral. Como forma de
ilustrar as possibilidades oferecidas pelos sistemas espaciais de alta resolução tem-
poral, o autor apresenta exemplos em áreas tropicais, onde fenômenos temporais,
tanto naturais quanto antrópicos, são estudados a partir de séries de imagens com
alta resolução temporal.
A Ciência & Trópico garante continuamente o compartilhamento de produ-
ções intelectuais e reitera o processo de consolidação de um espaço multidisciplinar
em âmbito nacional e internacional, ratificando o objetivo de promover o debate e a
circulação de conhecimento em diversas áreas e disseminando pesquisas e estudos
que adotam abordagens metodológicas, filosóficas, culturais e comparativas.

Alexandrina Sobreira de Moura


Editora Chefe

Luis Henrique Lopes da Silva


Editor assistente

9
Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais
Infinite landscape: from sugar engine to cultural goods
Paisaje infinito: del ingenio azucarero a los bienes culturales

Saulo di Tarso Begliomini de Araújo1

Resumo
ARAÚJO, S. di. T. B. de. Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais. Rev. C&Trópi-
co, v. 44, n. 1, p. 11-35, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art1
O presente artigo investiga a formação de uma nova paisagem cultural que
emerge com o declínio da economia cafeeira e a ascensão da cana-de-açúcar
no nordeste do estado de São Paulo, refletindo sobre as relações entre a paisa-
gem cultural pernambucana e paulista. A pesquisa tem como foco e objeto de
estudo o Engenho Central, inaugurado em 1906 na região de Ribeirão Preto,
hoje, Museu da Cana. Traçando um panorama histórico, artístico e cultural do
Brasil, busca-se compreender as transformações e os novos valores culturais
que surgem desse processo, evidenciando o entrelaçamento entre arte e pio-
neirismo econômico. A história da criação do Museu da Cana cruzou os cami-
nhos dos maiores pioneiros modernos brasileiros em matéria de arte e cultura,
como Aloisio Magalhães, Acácio e Janete Borsoi, Clarival do Prado Valadares,
Cicero Dias, Burle Marx, Alexandre Wollner. Por fim, o artigo analisa o papel
e a importância estratégica da economia empresarial aliada à arte, design e os
museus, da memória, da economia da cultura, do capital cultural e dos bens
culturais para a emancipação social, científico-tecnológica, econômica, bem
como para um desenvolvimento autônomo do país.
Palavras-chave: Paisagem cultural. Museu da Cana. Memória. Bens culturais. Economia da
cultura. Design e arte brasileira.

Abstract
ARAÚJO, S. di. T. B. de Infinite landscape: from sugar engine to cultural goods. Rev. C&Trópico,
v. 44, n. 1, p. 11-35, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art1
This article investigates the formation of a new cultural landscape that emerged
with the decline of the coffee economy and the rise of the sugar cane industry in
the northeast of the state of São Paulo. It reflects on the relationships between
the cultural landscapes of the states of Pernambuco and São Paulo. The resear-
ch focuses on the “Engenho Central” (Central Mill) inaugurated in 1906 near
Ribeirão Preto, São Paulo and has since become the Sugarcane Museum (“Museu
1
Artista visual e curador. Em 2018 fundou a Tangram Museologia. Atualmente é ligado à Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) e ao Conselho Internacional de Museus (ICOM Brasil). E-mail: saulo@
criptext.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5316-2412

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.11-35, 2020 11


Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

da Cana”). My intent is to facilitate the understanding of transformations and


new cultural values by tracing a historical, artistic and cultural panorama of
Brazil demonstrating the interweaving of art and the pioneering spirit of the time.
The paths of many of the greatest modern Brazilian pioneers in the field of art
and culture crossed in the course of the creation of the Museu da Cana. Names in-
clude; Aloísio Magalhães, Acácio and Janete Borsoi, Clarival do Prado Valadares,
Cícero Dias, Burle Marx and Alexandre Wollner. Lastly, the article analyzes the
role and strategic importance of the business economy in league with art, design
and the museums, cultural economics, cultural capital and cultural assets for
social, scientific-technological, economic emancipation, as well as for the autono-
mous development of the country.
Keywords: Cultural landscape. Cana Museum. Memory. Cultural goods. Culture economics.
Brazilian design and art.

Resumen
ARAÚJO, S. di. T. B. de. Paisaje infinito: del ingenio azucarero a los bienes culturales. Rev. C&Tró-
pico, v. 44, n. 1, p. 11-35, 2020. DOI:https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020) art1

Este artículo investiga la formación de un nuevo paisaje cultural que surge con
el declive de la economía cafetera y el aumento de la caña de azúcar en el noreste
del estado de São Paulo, reflexionando sobre las relaciones entre el paisaje cul-
tural de Pernambuco y São Paulo. La investigación tiene como foco y objeto de
estudio el Engenho Central, inaugurado en 1906 en la región de Ribeirão Preto,
hoy, Museu da Cana. Rastreando un panorama histórico, artístico y cultural de
Brasil, buscamos comprender las transformaciones y los nuevos valores culturales
que surgen de este proceso, mostrando el entrelazamiento entre el arte y el pionero
económico. La historia de la creación del Museu da Cana se cruzó en el camino
de los grandes pioneros brasileños modernos en el campo del arte y la cultura,
como Aloisio Magalhães, Acácio y Janete Borsoi, Clarival do Prado Valadares,
Cicero Dias, Burle Marx, Alexandre Wollner. Finalmente, el artículo analiza el
papel y la importancia estratégica de la economía empresarial combinada con
el arte, el diseño y los museos, la memoria, la economía de la cultura, el capital
cultural y los activos culturales para la emancipación económica social, científica
y tecnológica, así como para el desarrollo autónomo del país.
Palabras clave: Paisaje cultural. Museo de Cana. Memoria. Bienes culturales. Economía de la
cultura. Diseño y arte brasileño.

Data de submissão: 02/05/2020


Data de aceite: 08/06/2020

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

1. Introdução

O Engenho Central foi uma tipo de viveiro de empresários, onde se prolife-


rou muita energia positiva. Foi um lugar muito saudável; muitas iniciativas nasceram
ou se inspiraram no Engenho. Algo muito positivo. “Na época da Zanini (1970)
pensei em outro museu, da história do açúcar, mas moderno, em outro local, que
seria em Sertãozinho. Tive contato sobre a ideia com o arquiteto Borsoi, de Recife,
Pernambuco, mas não prosperou (BIAGIL, 2003)”.

[...] No processo de evolução de uma cultura, nada existe pro-


priamente de ‘novo’. O ‘novo’ é apenas uma forma transfor-
mada do passado, enriquecida na continuidade do processo,
ou novamente revelada, de um repertório latente. Na verdade,
os elementos são sempre os mesmos: apenas a visão pode ser
enriquecida, por novas incidências de luz, nas diversas faces
do mesmo cristal. (MAGALHÃES; LEITE, 2017, p. 258)

[...] A política paternalista de dizer que o artesanato deve


permanecer como tal é uma política errada; culturalmente
é impositiva porque somos nós, de um nível cultural, que
apreciamos aquele objeto pelas suas características, gosta-
ríamos que ele ficasse ali. Então, é uma coisa insuportável,
errada e de certo modo totalitária, você impor a uma co-
letividade, a um grupo, que permaneça naquele ponto. O
remédio, a coisa que se oferece, é a ideia de que ele repita
mais. Que passe a ter mais benefício através da repetição
reiterada e monótona daquele momento da trajetória. E isso
é inadequado porque você corta o fio da trajetória, o fio da
invenção, da evolução da invenção, para que ele permaneça
parado no tempo. O caminho, a meu ver, não é esse; o cami-
nho é identificar isso, ver o nível de complexidade em que
está, qual é o desenho do próximo passo e dar o estímulo
para que ele dê esse passo. (MAGALHÃES; LEITE, 2017)

Só através das artes as civilizações sobrevivem. São elas, e somente elas, que
escrevem a vida de um povo, de um homem (DIAS, 2011).

2. Revolução das artes

A coluna infinita de Constantin Brancusi é uma revolução. Não só no sentido


da Arte Moderna, mas como corolário de uma fase humana que se torna futura e
originária ao mesmo tempo. É uma rocha que atinge o alto sem nenhum flerte com

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.11-35, 2020 13


Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

a investigação de materiais modernos para escultura e, assim, contempla a silenciosa


história da arte da escultura.
Pode-se dizer que a obra representa a história da linguagem da escultura em
diversas dimensões do espaço e do tempo e da linguagem escultórica. Nova e antiga,
ela revoluciona a modernidade da escultura moderna sem nenhum traço de renovação
técnica com relação à era da escultura clássica. Simplesmente, Coluna Infinita avança
para o alto, de modo incomum a relação peso-equilíbrio, qualidade que define, por
excelência, a linguagem da escultura. Um patrimônio material e altamente imaterial,
ao mesmo tempo, resgatando os séculos anteriores da arte de esculpir, torna-se mo-
derno apenas por avançar o limite da escultura clássica para a modernidade, dife-
rindo a plástica da emoção, por exemplo, de Rodin e toda a emoção representativa.
Diferente, Constantin Brancusi vai no cerne da afetividade humana e a sintetiza de
todos os rebuscamentos.

Figura 1: A coluna infinita de Brancusi.

Fonte: Autor desconhecido2.

Nesta complexidade, encontra-se a escultura da escultura. Vê-se com clareza


que o modo como o escultor trabalhou, ao mesmo tempo, representa toda a história
do trabalho dos escultores no Ocidente. Representa, além da escultura, a história do
esculpir. Dos cânones a minimização da linguagem da escultura ao mínimo da lingua-
gem escultórica. Brancusi é para a escultura moderna o que a Arte Concreta é para a

2
Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/coluna-escultura-brancusi-sem-fim-87553/.

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

pintura que chegou mais tarde no Minimalismo. Curiosa escala, remete à simplici-
dade e ao vazio da passagem bíblica que narra o sopro divino no corpo de barro do
homem esculpido por Deus. Brancusi não é o autor do David de Michelangelo, tam-
pouco Rodin, autor de Burgueses de Calais. Não é um anônimo escultor de pirâmides
egípcias, monumentos incas e entidade líticas misteriosas como os corpos da Ilha de
Páscoa ou monumentos abissais como Partenon e Stonehenge. Mas é em sua grandeza
escalar a límpida tradução dos sentimentos humanos mais afinados à essência huma-
na. A linguagem de Brancusi é dotada da qualidade de vanguarda que cria as obras
singulares de um tempo e que, no caso da Coluna Infinita, traz um mistério revelado
pela paisagem constante que se vê em torno da obra, como parte da obra escultórica.
Céu, terra e ar. Rocha esculpida para o alto e do chão para seu limite extremo em altu-
ra, desafia as leis do equilíbrio e aponta o céu sendo tocada pelo ar em movimento, a
constância das massas de ar que criam a tradução constante da paisagem, em torno de
sua grandeza escalar, revelando o cosmos que se guarda na paisagem terrena, que se
traduz no vento que venta em torno de sua obra estática no meio da paisagem.
A Coluna Infinita, portanto, se traduz pelo silêncio do espaço e o enalte-
cimento do tempo se observada desta forma. O tempo e todo o seu movimen-
to, visto através da escultura, passam a pertencer ao corpo da obra. O espaço
emudece na simplicidade de triangulações para o alto. Não é um apelo sensorial
como a massa ruidosa de um Antoine Bourdelle, ou sentimentos finos e sensuais
que tangem a espiritualidade de um Bernini. Tudo no espaço é silêncio. Silêncio
material e simbólico, criando a atmosfera através da qual o tempo grita o silêncio
em torno da Coluna Infinita. 
Assim, Brancusi, ao exaltar a matéria escultórica pelo mínimo, torna máxima a
escala do tempo na linguagem da escultura. Torna o tempo mais importante, na estéti-
ca do século XX, do que a própria música moderna o fará em dois séculos. Pode-se até
dizer que o silêncio da matéria de Brancusi expõe valores etéreos de modo estrondoso
e minimiza o silêncio da forma radicalmente, como fará o músico norte-americano,
John Cage, mais tarde na peça 4,33. Mas há uma diferença inversamente proporcional
entre as duas obras: a música em silêncio de Cage é para ser ouvida em silêncio nas
salas de concerto, ao passo que, a Coluna Infinita de Brancusi jamais poderia ser vista
dentro do interior de um museu que não fosse a céu aberto. Logo, ela é a consagração
de um lugar, uma paisagem, ao mesmo tempo que um ponto de mutação da linguagem
da escultura. Diferente de um monumento pensado para o espaço ao redor, como a
célebre Fontana di Trevi, a Coluna Infinita se serve da paisagem e a coloca no mesmo
silêncio definitivo que a pintura moderna a colocou.
Lembramos assim que a arte imita a vida e que a vida pode imitar a arte nas
suas diversas dimensões. Em torno da escultura a vida percorre.
Simbolicamente, como a altitude de Brancusi, na coluna infinita, existem ar-
ranha-céus. E assim como arranha-céus, existem as chaminés, para que escapassem
os vapores da Revolução Industrial. Uma vez silenciadas pelo fim da produção que as
alimenta, por vezes passam a ser consideradas monumentos.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.11-35, 2020 15


Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

Assim como as chaminés e esculturas que resultam do trabalho humano, todo


ser humano é potencialmente escultor, já que o corpo humano se traduz da escultura
na sua sacralidade Ocidental. Corpo cuja ação do pensamento modela a paisagem.
Vista desse modo, a escultura não é apenas uma linguagem da arte, mas
uma arte que, a todo momento, simboliza a gênese humana e a capacidade humana
de traduzir o humano ao esculpir o mundo. Logo, a escultura é um ato de vida,
o que torna a ideia da escultura semelhante à noção do trabalho, das relações, da
forma como a intensão humana cria sua realidade no mundo e das diversas for-
mas do trabalho humano, fatores diversos e multiplicados da vida. Além disso, as
diversas formas do trabalho humano são fatores diversos e multiplicados da vida.
Sem dúvida é na arte, na filosofia, na religiosidade, na ciência e na tecnologia que
se encontram as formas mais elevadas do trabalho e da dedicação da vida humana
à sua existência. Ocorre que não há humanidade e nem elevação sem o conjunto da
humanidade. Ou seja, indivíduo e coletividade são um. Da coletividade se nasce e
para a coletividade social se retorna.
A natureza de um expoente humano é sempre resultante de uma imensa cole-
tividade, de linhagens e percepções múltiplas que décadas a mais ou a menos se pola-
rizam da percepção de sujeitos dotados da força de sintetizar a vida humana através
da arte, da ciência, da cultura, da noção primordial da sociedade que traduz o modo
de vida desde a religiosidade até as formas mais sofisticadas da economia e das redes
de comunicação. 
Surge assim, da aglomeração humana, o indivíduo que se destaca por razões
até hoje desconhecidas. Exemplos, no Brasil, como Manoel de Barros, Gilberto Freire,
Cícero Dias, Mário Pedrosa, Alfredo Volpi, Candido Portinari, Pelé, Mário Schenberg
e a interminável lista célebre, dentre os quais, Celso Furtado, Mario de Andrade,
Álvaro Vieira Pinto, Capanema, Rangel Pestana e tantos outros que nunca tendo se
tornado célebres foram igualmente grandes humanistas. 
Das raízes de um povo diverso e anônimo, remonta a história dos Engenhos
no Brasil. Com ela, a história do Novo Mundo e da distribuição do açúcar pe-
los quatro cantos do mundo, ninguém jamais saberá quantos corpos foram ali-
mentados pelos dons da nossa terra. Fundados em Pernambuco e São Vicente, os
primeiros engenhos do Brasil jamais deixaram de ser a rota de entrada de tantos
povos que ergueram a nação desde tempos primordiais até a porta da era Global.
Passadas as tentativas malsucedidas de escravizarem-se os indígenas e o período
da escravidão, o Brasil encontra a modernidade e com as contradições do sub-
desenvolvimento que ainda persiste em nosso modelo político. A mitologia do
Brasil Moderno é repleta de pioneiros que, sem sucessão, acabam com as ideias
e ações soterradas depois de sua morte. Entre fios e fios de gente que tecem a
história, assim, acaba por se perder o tecido da vida, a não ser pela força daqueles
que, imbuídos da própria consciência, lutam pela memória de seus antepassados e
pela escala de valores por eles erigida. Riqueza no Brasil, por este motivo, sempre
anda em alto contraste com a miséria humana. No legado sucessivo de séculos de

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

exploração, a história cai enquanto as fortunas se fazem e trocam de mãos ao mes-


mo tempo que as nações do Velho Mundo que nos colonizaram detêm as maiores
riquezas que daqui foram suprimidas contendo registros históricos mais apurados
que os nossos próprios, existentes em instituições que são pequenas para abarcar a
nossa grandeza, ou que padecem de recursos para manterem a sua vocação, exem-
plos como a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional recém incendiado, ou mesmo
a miríade de museus que surgem sem sair do lugar.
E a pergunta fundamental que devemos nos fazer hoje é: entre tantos célebres,
quem são os anônimos que perfazem as histórias das fortunas e da existência huma-
na em máximo grau? E, continuando: quem são estes poetas que, como Manoel de
Barros, identificam o artista nascendo da ontologia da decadência social? Quem são
estas figuras como a doceira e genial poetisa Cora Coralina? O que trazem os corpos
para a matéria da nossa máxima capacidade e multiplicação das capacidades humanas?
Quem somos nós e quem nós queremos ser entre variadas eras do Capital, em tempos
de capital humano, capital cultural e bens culturais? Vamos reproduzir a República de
Platão, sem poetas, e, no entanto, erigindo a beleza grega de modo contínuo a partir de
calabouços de escuridão que servem como base subterrânea de monumentos expostos
de beleza? Qual é a sociedade que queremos em si e entre semelhantes? Será a utopia
de bem-estar uma utopia em tempos que a tecnologia faculta a velocidade de criação,
multiplicação e distribuição das riquezas? Qual é o papel do capital cultural e da me-
mória entre gerações, onde entram os museus, as instituições, as grandes empresas, as
nações? Quais fronteiras precisam ser eliminadas, além das geográficas, para que os
degraus se planifiquem entre o topo e a base da existência humana? Quando de fato
nascerá a Engenharia social neste nível de eficácia? 
Já era hora de rompermos os limites da Casa Grande e Senzala não apenas na
realidade real, mas também na nossa imaginação. Aliás a Imigração no Brasil esti-
lhaçou as mitologias de Casa Grande e Senzala. O modo de trabalho trazido pelos
imigrantes faz essa transformação definitivamente, ainda que persista o modelo ar-
caico de trabalho no Brasil que não se livrará da injustiça e terá dentro dos canaviais
a histórica greve de Guariba. Em tempo, as revoluções culturais das décadas de 1920
e 30 já nos demonstram que, embora brilhantes como mentalidade, somos altamen-
te falíveis como ação social. O Brasil é um país onde somos dotados da capacidade
de construir e igualmente da capacidade de destruir. E se destrói com eficácia, pela
negação, pelo abandono, pelo esquecimento, pela diferença de gerações ou pelos
métodos propositais. É raro o fenômeno onde ocorre o oposto: afirmação, autono-
mia, memória consciente, diálogo sucessivo entre geração. No entanto, as gerações
de imigrantes, politizadas e dotadas do senso de justiça material, mudam as relações
de trabalho no Brasil. Aos poucos, nomes pioneiros vão surgindo em toda paisagem
social brasileira do século XX.
Na Modernidade, o Brasil esboçou rápidas mudanças que, no entanto,
não foram suficientemente fortes para concluir a verdadeira transição do Brasil
para a Modernidade. A Semana de 22 é um fruto artístico nitidamente oriundo

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da sociedade cafeeira. Antes deles, o apogeu de Pernambuco na história cultural


brasileira é inegável. Num dos lugares mais ricos do mundo, foi o açúcar que fi-
nanciou a memória cultural brasileira e seu grande legado nos primeiros séculos.
De Joaquim Nabuco a Aloísio Magalhães, a herança cultural é indiscutível. Esta
narrativa só começa a mudar quando o engenheiro Euclides da Cunha escreve os
Sertões, Mário de Andrade cria a Missão e as pontes do mapa cultural brasileiro
começam a materializar seus cruzamentos. E como tal, a modernidade do passado
está fadada, na contemporaneidade, a cruzar os seus eixos. Rio e São Paulo antes
de se tornarem capitais eram sertões da costa atlântica entrecortadas pelo cerrado
em suas fronteiras. Com relação a Pernambuco, em nada se compara ao legado de
séculos interagindo a cultura e a arte populares a chamada arte e cultura clássicas,
feita por sujeitos eruditos. Quando a Escravidão termina, o estado de Pernambuco
entra em festa. Desta festa sem fim de onde vem os Maracatus. O Rio é a capital
da Monarquia e São Paulo nem mesmo capital irá se tornar a não ser da econo-
mia. Em moldes bem mais diretos é a capital do fluxo estrangeiro moderno tanto
quanto o Rio de Janeiro foi a terra tropical daqueles que almejavam ser livres das
amarras do velho mundo. Sem mais, sem esquecer Aurélio Buarque de Holanda
que em seu dicionário edificou um Brasil de múltiplos mares que pensa em di-
versas línguas, mas fala português. A influência hispânica inegavelmente galega
do interior de Pernambuco traz um fenômeno pouco estudado para nós: galegos
de origem que continuaram pensando e entonando a língua galega que falam em
português. Xeixos de pedra. Pedras de açúcar dissolvidas em cal. E foi este Brasil
do futuro, como mencionou Stefan Zweig, uma pátria permitida pela economia
do açúcar. E por séculos, o apogeu pernambucano foi mantido e mantendo-se até
quando a decadência deste ciclo inicia na década de 1930 como narra o pintor
pernambucano Cícero Dias: 

Como as árvores e suas raízes, a natureza tinha seu tempo.


Matemática divina que só Deus conta na vida do homem.
As meninas, já moças, e os meninos, já rapazes. E a realida-
de da vida, cruel, muito cruel, nos mostrava outras coisas.
Exemplo: desaparecia Noruega, Jundiá aos pedaços, só ca-
navial resistia. Resistia o verde das águas que Deus nos deu
como suprema consolação. Desses colégios e escolas dos
engenhos não mais partiriam para Paris ou para a Europa
muitos mocinhos como Mario Pedrosa, Manuel Bandeira
(este por motivo de doença), Heitor Maia e tantos outros
como André Dias, Manuel Dias e sim para o Rio de Janeiro.
A coincidência foi grande. Outra paisagem social surgia: a
usina de açúcar. O homem do eito desaparecera, e com ele
toda a vida dos engenhos. (DIAS, 2011, p. 47)

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

Figura 2: O pintor Cícero Dias em seu ateliê.

Fonte: Página do Gravura Contemporânea.3

Cícero Dias se tornou um dos maiores artistas brasileiros com vocação de van-
guarda como Mario Pedrosa, o maior crítico brasileiro. Os dois da cepa pernambucana
e filhos dos engenhos de Pernambuco. Enquanto Cícero Dias narra a decadência das
casas de engenho, surge em São Paulo, a partir de 1906, o Engenho Central pela visão
de Francisco Schmidt. Pouco tempo depois, Pernambuco deixará de ser a maior região
produtora de cana-de-açúcar do Brasil. Do nordeste brasileiro para o nordeste do estado
de São Paulo, se estende o eixo invisível de novos canaviais plantados para a produção do
açúcar entre plenos cafezais. A vigorosa paisagem cultural pernambucana encontra, pelo
fluxo econômico, a paisagem cultural da economia do Café. Do declínio dos engenhos
de Pernambuco e da sua tradição secular nasce a nova força da cana-de-açúcar no Brasil
sobre a terra roxa. Décadas de câmbio na lavoura suprimem cafezais e silenciam a paisa-
gem cultural do café, criando uma nova paisagem e novos valores que mais tarde serão
refletidos na nova cultura que surge desse silenciamento não proposital.
O que torna os homens pioneiros é o seu olhar sobre a paisagem. Neste ponto,
existe uma semelhança entre a Coluna Infinita de Brancusi e a chaminé do Engenho
Central. Uma chaminé, no entanto, chama a atenção por ser um elemento que dispersa
os vapores e lembra sempre a Revolução Industrial, a força de trabalho de milhares
de homens e mulheres que naquela localização comprometem toda a sua energia em
nome da vida. Simboliza o avanço da produção industrial e estabelece eixos de cres-
cimento da urbanização, criadas em torno das cidades e metrópoles modernas. No
campo, as chaminés se verticalizam de maneira monumental. Diferente da obstinação
de um único artista, são milhares de seres humanos guiados pelo estado de arte e não
pela arte, no caso do engenho, a moverem toneladas de cana e milhares de sacas de
açúcar pelo mundo, fazendo a fortuna de um pouco mais do que uma dezena de donos
de engenho. A história social, no entanto, não os equivale. A riqueza distinta entre
minoria e maiorias não é necessariamente equilibrada e universal.

3
Disponível em: https://3.bp.blogspot.com/-yPKx9oQSsdc/U9SnWFf3uhI/AAAAAAAACsw/kmWcKldODi8/
s1600/cicero_dias_galeria_de_gravura.jpg Acesso em: 11 maio 2020.

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Figura 3: Chaminé do Engenho Central.

Fonte: Acervo do Museu da Cana.

A paisagem, que é local, se amplia. Eras de engenharia para moer a cana e


processar o açúcar desde a sua origem. Mais uma vez, a arte e a vida se permeiam
na sobrevivência humana. Milhares produzem a cana, milhões ingerem açúcar made
in Brazil ao redor do mundo. O grão de sacarose é esculpido. O açúcar é esculpido
pelo processo industrial da alimentação e esculpe os corpos humanos pela via da
cultura alimentar. Como na pintura de Franz Post em que o gesto retrata o engenho,
luz, pigmentos e imagem metabolizam o lugar que produz o alimento indispensável
ao planeta, química e física estruturam a pintura e o açúcar. Menos mítico que o
café, o açúcar traça a vida entre os corpos de modo invisível. Ele complementa a
alimentação, a imaginação e o gosto do paladar diverso dos povos da terra. Alimento
básico, o sal doce já era manejado pela perícia de engenho e mercado dos italianos
no Século XV. Século do Descobrimento. Porém, é Portugal que domina o mercado
do açúcar nesse período e são os pernambucanos, entre os homens mais ricos do
mundo, que o farão até a década de 1930. Mistérios à parte, a Itália, coadjuvante do
século XV, dominará a cena econômica quinto século do Brasil. E consigo, desde o
Engenho dos Erasmos ao Engenho Central, o Porto de Santos será a porta de entrada
da história sendo revertida cinco séculos depois, no Brasil, onde a Veneza mercante
dos mercadores do açúcar daria lugar aos italianos que seriam por fim os donos dos
Engenhos firmados na paisagem paulista.  

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

3. Paisagem infinita

[...] Quando se visita um país que não se conhece, não deve-


mos fazê-lo com a passividade de meros espectadores. A pai-
sagem não deve roçar displicentemente pelos nossos olhos.
Nossos olhos e um pouco da nossa alma é que devem penetrar
a paisagem para adivinhar-lhe toda a beleza oculta. Devemos
reintegrar o nosso eu na alma do povo visitado, saborear-lhe a
linguagem e os costumes, absorver-lhe a resultante psicológica,
relacionar o homem com o ambiente; gravar o colorido vital da
massa coletiva e conversar com o “Genius-loci”. Todas as coisas
e seres têm vibrações e sentimentos de beleza, necessitamos de
alma sensível para os compreender. Anexo vai um artigo-pa-
radigma de quem sabe viajar com inteligência. (FURLAN JÚ-
NIOR, 1947.)4

O Engenho Central de Sertãozinho é nascido para as relações da museolo-


gia social, pois não é somente no patrimônio das máquinas que está a sua riqueza.
Fundado na década de 1906 por duas famílias centrais da história do café, cambia para
a produção do açúcar pelas mãos de Francisco Schmidt. Na paisagem cafeeira paulis-
ta, surge a ponta da tecnologia mais sofisticada da época. Sem economizar esforços,
Schmidt inicia para São Paulo o que seria uma das economias mais profícuas por déca-
das em sucessão, trocando de mãos a propriedade do Engenho Central com a família
Biagi que o fez chegar ainda produtivo, na década de 80, limiar do Proálcool. Histórias
de gente vinda do exterior e do interior do Brasil. De diversos estados brasileiros e da
Itália, desde Castelnuovo de Garfagnana, famílias trabalham em canaviais que expan-
dem continuamente a paisagem da cana, devastando as terras, a história e a memória
da sociedade cafeeira paulista. Se o café embalou a vida em exemplos da arte que vêm
desde a Cantata do Café de Johann Sebastian Bach até o oratório cênico de Mario de
Andrade, a paisagem canavieira irá silenciar a paisagem cultural erigida pelo período
do café. Café que financiou a invenção da aviação, gerou inteligência cardeal e diame-
tral no país, financiou a Semana de 22 e representou os ideais de uma elite brasileira
que trouxe o Brasil para a modernidade. Povoando a imaginação de gerações. Bem di-
ferente da cultura do Café, a sociedade da cana minimiza aspectos da cultura artística
e, ao mesmo tempo implanta o vazio cultural sobre as cidades da terra roxa. O legado
da Semana de XX cresce para dentro do Rio e de São Paulo. E uma vez decaído o ciclo
do Café, o ciclo da Cana paulista irá criar o apogeu econômico, social e tecnológico
nunca antes visto da economia brasileira. Se por um lado os engenhos de Pernambuco
dependiam da tecnologia europeia, em São Paulo irá se promover a emancipação tec-
nológica dos engenhos brasileiros. A mudança de mentalidade, finalmente, dizendo a

4
Dr. Antônio Furlan Junior, médico da comunidade de Sertãozinho. FURLAN JÚNIOR, Antônio. [Correspon-
dência]. Destinatário: Marina Furlan, 1947.

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que veio, mudará a economia da cana no Brasil, tornando o estado de São Paulo líder
das áreas mais produtivas da cana-de-açúcar quando Maurílio Biagi resolve criar a
Zanini metalúrgica para atender a demanda dos Engenhos da região de Sertãozinho. 
E do mesmo modo como a Semana de 22 se opôs à Monarquia e seu legado in-
telectual e artístico, a Semana de 22 será demolida pelo Movimento de Arte Moderna
instaurado no Brasil, a partir das Bienais, momento em que a sociedade canavieira
encontraria seus pares depois de ter lançado seus filhos para o mundo. Se por um lado
o Brasil é altamente dependente na indústria automobilística e mantendo-se como for-
necedor de matéria prima, a cana brasileira será exemplo de autonomia, assim como
a nova fase da arte brasileira. E da percepção dos fenômenos estéticos da sociedade
moderna que ficarão muito além da arte e das linguagens de arte. A Paulicéia desvai-
rada, o Manifesto Antropofágico e o manifesto Pau-brasil ficarão definitivamente no
passado. São Paulo vai erigir o Movimento de Arte Concreta. 
Fica definitivamente alterada a noção de arte e patrimônios culturais no Brasil.
A arte não será mais referente ao indivíduo como na obra de Brancusi. Passará cada
dia mais a valer esteticamente para os fenômenos coletivos da sociedade e é neste sen-
tido que o Engenho e a Escultura voltam a se comunicar: nos centros urbanos, a força
da tecnologia, do urbanismo, da aviação, das comunicações da arte passa a validar a
beleza da obra de arte e do voo de um avião da mesma maneira. A percepção muda
silenciosamente da contemplação para a interação. A técnica ganhará, na percepção
inerente das pessoas comuns, o status da arte enquanto fenômeno estético, além dos
visionários Schimdt e Maurilio Biagi, a pontauense Judith Lauand.

Figura 4: Judith Lauand, representante do concretismo brasileiro.

Fonte: Página da Galeria de Arte Trópica.5

5
Disponível em : https://galeriatropica.com.br/wp-content/uploads/2016/01/foto-perfil-crop-1.jpg Acesso em 11
maio 2020.

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E é justamente na arte de Judith Lauand, a dama do concretismo brasileiro, que


vamos encontrar alusão ao que havia pronunciado o Flávio de Carvalho (1947), no seu
extraordinário artigo, “o silêncio da grande altitude”, justamente, quando ele se refere
ao silêncio dos altiplanos. Tal invocação da palavra evidentemente recorda não ape-
nas altiplanos da paisagem dos Canaviais em Sertãozinho, como os planos delineados
sem desejo na geometria concreta criada por Judith Lauand. Ela que pode ser, como
artista, considerada a mais nobre filha da transição entre o ápice da cultura do café,
que teve como ponto culminante a Semana de 22 e a grande pausa gerada a partir de
então pela transformação da paisagem de cafezais a canaviais que, com a mesma força
plana, persistente e constante de uma infinidade de verdes e de trabalhos humanos de
extrema lavra, lavra esta que causou a interrupção de uma realidade cultural transfor-
mando-a em um silêncio sociológico posterior à cultura do café e que posteriormente,
na década de 50, responde à realidade e à arte brasileira com um dos mais originais e,
ao mesmo tempo, universais movimentos da história da arte brasileira.
A arte concreta criada pelo grupo ruptura, da qual participa Judith Lauand
como a única mulher integrante, causa uma verdadeira revolução na cena da arte bra-
sileira. Vinda da informatização, da necessidade da simplificação da vida cotidiana nas
grandes cidades, a estética de simplificação dos elementos da pintura moderna ganha
no Brasil a tão sonhada força em sucessivas gerações para ocupar o cenário da arte
internacional com artistas de grandeza e originalidade, conscientes do papel que a arte
brasileira teria entre os movimentos da arte internacional. E é justamente desta força
da Arte Moderna brasileira que nasce o paralelo que agora deve ser percebido com a
mentalidade de um pioneiro como Maurílio Biagi. Um dos desafios da modernidade
era justamente a autonomia.

Figura 5: Instalações da Zanini S.A, fundada por Maurílio Biagi.

Fonte: Acervo do Museu da Cana.

E esta autonomia buscada pelos artistas foi a mesma buscada por Maurílio
Biagi quando ele toma a decisão de fundar a Zanini, com intuito de criar tecnologia
local para os engenhos de açúcar, rompendo com a dependência da tecnologia dos
países de fora. Esta modernidade ainda não foi alcançada pelo Brasil em 2019. Esta

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modernidade foi interrompida. Porém, o exemplo do entrelaçamento entre a arte e


o pioneirismo econômico neste caso se amplia. Outro exemplo da escultura para re-
flexão sobre a importância do Museu da Cana vem dos pares de Judith Lauand. O
primeiro é Luis Sacilotto, considerado pelo contemporâneo Waldemar Cordeiro como
a viga-mestra do concretismo brasileiro. Sacilotto, até hoje, mesmo após a sua morte,
não teve um conjunto edificado das suas esculturas em metal, pois faltava a ele
tecnologia suficiente para cortar e dobrar metal em grandes dimensões.
No entanto, não faltou a Luis Sacilotto o mesmo aspecto visionário que
compõem a trajetória dos  Biagi. Aqui uma pausa para aspectos da museologia
social. Note-se que ao ser questionado pelo neto Luiz Biagi sobre como havia feito
fortuna, seu avô, Pedro Biagi, responde-lhe o seguinte: “a pobreza tem uma histó-
ria muito curta e feia. Eu te conto tudo em três frases: a pobreza é bruta, cheia de
sacrifícios e muito, ma molto lavoro. E basta!” (BIAGI, P., 2015).
O que devemos considerar é que não apenas Pedro Biagi, como Volpi,
Sacilotto, muitos dos membros da família Matarazzo, enfrentaram a mesma poveri-
tá. E mesmo assim, todos eles se tornaram pioneiros. Ficamos com este trecho para
refletir sobre o que é a importância da museologia social. Na própria história da
criação do Museu da Cana encontramos nos arquivos da Zanini registros da viagem
de Cristina Prata na qual está inserida menção a outras personalidades brasileiras,
também pioneiras, porém, egressas da cultura canavieira de Pernambuco, entre elas,
o fundamental designer e pensador brasileiro, pioneiro da conceituação e da termi-
nologia de bens culturais no Brasil, Aloísio Magalhães. Na década de 70, já imbuí-
dos de transformar o Engenho Central em museu, tal como sentiu Maurílio Biagi,
Luiz Biagi e Cristina Prata, encontram no Recife não só com Aloísio Magalhães,
como também Burle Marx, Acácio e Janete Borsoi, Clarival do Prado Valadares e,
entre outros, havia sugestão de que se entrevistasse Cícero Dias e, surpreendente-
mente, como o primeiro nome da lista dos presentes na reunião, também partici-
pante do grupo ruptura, artista concreto e pioneiro do design brasileiro Alexandre
Wollner. Esta reunião teria sido realizada no dia 11 de novembro de 1974.
Pode parecer uma realidade muito abstrata e intangível, mas verdade é que,
desde a noção que Maurílio Biagi teve de conservar o Engenho Central para que
dele nascesse um museu, a história desta criação cruzou os caminhos dos maiores
pioneiros modernos brasileiros em matéria de arte, cultura, design e bens cultu-
rais. E, aquilo que poderíamos tratar rudimentarmente como um ato visionário de
Francisco Schmidt ao implantar o Engenho Central no Nordeste de São Paulo seria
uma simples resposta ao declínio da economia do café ou uma simples transição
da produção de cana-de-açúcar de seu eixo hegemônico secular de Pernambuco
para São Paulo tornou-se, no tempo, e na verdade entre gerações, um polo predes-
tinado a inaugurar a nova economia cultural brasileira. Aloísio Magalhães foi tão
profundo na conceituação da cultura que cunhou para os brasileiros e da nação
brasileira para o mundo o conceito de bens culturais. Maurílio Biagi não só lutou
pela emancipação tecnológica que acabou transformando o solo paulista no mais

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

produtivo solo de cana-de-açúcar do país como teve a sensibilidade de, ao olhar


para o moinho projetado por Schmidt, perceber que ali naquelas engrenagens que
iluminaram a mentalidade universal de uma então menina de Sertãozinho, cha-
mada Marina Furlan, tinha um potencial de transformar a visão de uma era tec-
nológica secular em um museu para gerações futuras. Ocorre que, justamente este
Museu, está fadado igualmente ao pioneirismo. Permitam-me aqui um pequeno
ato em primeira pessoa: quero registrar que desde que pisei no Engenho Central
senti a ligação desta terra à meridianos bem maiores do que o ponto em que o
Engenho se georreferencia. Aqui senti vivamente a necessidade de trazer ao tra-
balho proposto trechos da autobiografia de Cícero Dias e a benção a outro filho
dos engenhos pernambucanos, maior crítico de arte brasileira, Mário Pedrosa; este
que foi não só o defensor da Arte Moderna como aquele que se envolveu na vida
política brasileira a ponto de transformar a arte amplamente em atividade social.
Uma das afirmações mais importantes de Mário Pedrosa é de que a arte é
um direito universal do homem seja ele equilibrado ou desequilibrado, Papua ou
cafuzo, letrado ou iletrado. Pioneiros são pioneiros. Dessa forma, Maurílio Biagi
ao fundar a Zanini criou o ponto de mutação, a perna da emancipação tecnológica
que possibilitou a emancipação econômica da cana-de-açúcar a ponto de que par-
ticipamos do engenho de açúcar até chegar no Proálcool e na produção do etanol.
Tecnologia também é direito da humanidade. E nas chaminés que hoje não vertem
mais fumaça, pois até mesmo a fumaça é transformada em energia. Energia que,
embora venha de uma cultura que agride o solo, é altamente significativa em pro-
teger a atmosfera da emissão de carbono.
Deste lugar, a arte, o pioneirismo econômico e a vocação maior de homens
que não só mudam a realidade de seu tempo, mas que compreendem a impor-
tância daquilo que é cultura como bem essencial da humanidade, tangenciamos
os desafios sociais e ambientais. Lembro aqui que Alexandre Wollner, um artis-
ta cuja pintura tinha extrema importância deixou de pintar porque ambicionava
fazer arte  para milhões e não para centenas de pessoas. Aqui a ambição criati-
va de Wollner encontra a capacidade visionária e pregressa de Santos Dumont,
Francisco Schmidt e Maurílio Biagi. E os desafios continuam, pois, colocar
a arte em ampla escala na vida humana ainda é um desafio. A museologia so-
cial será uma das maiores ferramentas para auxiliar nas tendências a tarefa. E a
história do Museu da Cana entrelaça pioneiros. Esta é uma verdade da qual todos
que vislumbram este museu e a importância que ele tem para o desenvolvimento
local e nacional não poderão se furtar. E a história mesmo em tempos pós-histó-
ricos deve ser ambicionada e construída de modo verídico. E o modo verídico da
sociedade atual é aquele que equivale à comunidade como a grande guardiã da
cultura, como sentiram Mário de Andrade e Aloísio Magalhães. É a nossa vocação
emancipar não apenas a tecnologia, mas a arte, a ciência, a educação, a filosofia
e a noção de economia cultural da qual não poderão se furtar as bases de criação
institucional deste museu.

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Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

O Museu da Cana, diga-se bem, é por excelência um fato da museologia


social brasileira se levado a cabo. Pois, não é somente a história de Maurílio Biagi o
cerne deste museu. Vamos deixar a metáfora entre as chaminés e a Coluna Infinita
de Constantin Brancusi para trás e pensar que o silêncio da grande altitude está no
desafio da paisagem infinita, que trouxe para os trópicos populações que carrega-
vam os Alpes gelados da Itália dentro de si, e que o confrontamento das paisagens
interiores e externas dos povos que habitavam o entorno do Museu da Cana e estes
canaviais é múltiplo. O multiétnico e desafiador, como previu Euclides da Cunha
em Os Sertões, torna-se multicultural como bem descreve Mario de Andrade em
Café (o romance). Para este museu, se visto na expansão do tempo, contam não
apenas os aspectos visionários de Maurílio Biagi como a capacidade de seus her-
deiros de preservar a sua intenção originária de transformar o Engenho Central
em um museu. Conta, além disso, a persistência de homens comuns que habita-
ram e mulheres como dona Edilah, dona Nair e dona Vanda e tantas outras vidas
anônimas dedicadas ao trabalho na usina de açúcar. Este lugar não é um lugar
comum. É um lugar cuja energia e o senso de preservação por alguma razão se
deu entre classes sociais, povos de culturas diferentes e gente com e sem os dons
do pioneirismo. Não é muito, já que a ciência contemporânea se desafia a crer em
Deus, projetar ao espectro da museologia social que aqui se aplica que do ponto
de vista sociológico esta noção de Cultura presente no espaço do Engenho Central
tenha como força motriz e criadora a força do amor. Amor não só com afeto, mas
também com a consciência do valor das vidas aqui vividas.
Diz a lógica que, numa região rica em todos os sentidos, o cruzamento de
pioneiros pernambucanos, ítalo-brasileiros, mineiros, brancos, caboclos, gente da
terra, gente pobre que aqui chegou e cumpriu seus destinos e nem todos com a
grande sorte de enriquecer, a força harmônica entre as classes sociais certamen-
te não é baseada em mais-valia e sim no amor que fornece uma certa noção de
desobediência civil, pois as pessoas que contêm o amor dentro de si são capazes
de perceber e persistir pelos valores humanos com uma força incomum e quase
sobrenatural e, quando não sobrenatural, baseada na profunda religiosidade. No
caso da paisagem religiosa do Museu da Cana, uma religião e religiosidade sincre-
tistas, onde a força de um João Baiano equivale a força do catolicismo aqui presen-
te em festas consagradas a São Sebastião, Santo Antônio, São Gonçalo, São Pedro
e Santa Luzia. Riqueza esta que na contemporaneidade só pode ser sintetizada
por artistas como Jorge Mautner. Artistas que superaram o desejo antropofágico,
o expressionismo moderno de Anita Malfatti e Flávio de Carvalho e a planifica-
ção Concreta e Neoconcreta e tropicalista. De canções como Maracatu Atômico,
inspirada nos maracatus de Solano Trindade à Ruth Rainha Cigana, canção numa
história de amor, se encontra a tradução da realidade multicultural, multiétnica e
sincretista e afro-religiosa, essencialmente baseada no catolicismo que mantém as
festas populares presentes no Engenho Central e que hoje são parte do patrimônio
imaterial do Museu da Cana. Diz Mautner na sua canção:

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

O fim sem fim da doçura do amor 


Supera tudo que seja lá o que for 
Até mesmo o terror da dor que emana 
Da fúria de um açoite 
 
Ó Ruth, rainha cigana, estrela da noite
Somos casados há 50 anos
Deus nos deu a maravilha
Rainha da graça divina
Que vinha com o nascimento da Amora nossa filha
e o nascimento da Júlia, nossa netinha
 
Nossos amores, nosso axé, por isso vou cantando
Agradecendo e rezando pra Jesus de Nazaré
Ao som dos tambores do candomblé
Ao som dos tambores do candomblé
Ao som dos tambores do candomblé
Ao som dos tambores do candomblé
 
No evangelho de São João uma voz em júbilo anuncia: –
Uma criança nasceu entre nós!
Jesus de Nazaré também disse: –
Mais vale aquela ovelha que se separou do rebanho
E depois voltou para ele
Do que aquela que sempre pertenceu ao rebanho
 
E como disse São Paulo
– De que adiantaria se eu soubesse
todas as línguas e ciências e não tivesse caridade?
E também
– mesmo quando não houver mais nem fé, nem esperança
o amor continuará a resplandecer no universo
 
O fim sem fim da doçura do amor (...)
Ao som dos tambores do candomblé 6

Célebre, Jorge Mautner, na fase atual da sua vida fala de amor. Do tipo de
amor profundo do qual nenhum de nós, seres humanos, nos livramos de refletir
em algum momento da vida. Fortes como as paisagens infinitas são os homens e
mulheres que nem sempre artistas visionários ou pioneiros se comunicam entre si
pelo estado de arte. E o que é o estado de arte senão o profundo estado de atenção

6
MAUTNER. Ruth Rainha Cigana, 2019.

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Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

para o qual a nossa concentração nos leva quando atingimos estados conscientes
da nossa existência?
Nesse sentido, o Museu da Cana cruza fronteiras. Fronteiras de gente que aqui
foi visionária, vislumbrou, viveu, trabalhou, amou e, através dessa força, transferiu
suas próprias paisagens internas para as paisagens internas das gerações que sucede-
ram. A missão da paisagem infinita é esta: superar confrontos, contradições, diferen-
ças, e justamente alcançar as semelhanças que unem os seres humanos para transfor-
mar a humanidade.
Do coração que é terra onde ninguém anda, surgem as universalidades percebi-
das na canção na qual Mautner homenageia o amor. Assim, há uma paisagem infinita
também que expande as terras do coração, pois, embora ninguém ande nelas, é nos
nossos corações que sentimos a presença do outro e, como bem lembra Dona Nair, “o
amor é uma força que brota do fundo do coração”. 7
E das profundezas da terra, a força de imigrantes e migrantes que migra-
ram apenas com a força que brota dos corações para cruzar oceanos e refundar o
Brasil. Muito ilustres e não só anônimos, migrantes surgem na visagem do filho
célebre da imigração italiana no Brasil, um dos maiores pintores modernos. No
quadro Retirantes, da autoria de Candido Portinari, talvez, não seja agradável
apreciar a vida morta dos retirantes. Por outro lado, não se pode aceitar que
aquela paisagem dos retirantes continue congelada na realidade social brasileira.
É, portanto, um grande mérito de relações tecidas sobre as terras do Engenho
Central ter havido um equilíbrio que da pobreza trouxe a superação da pobreza,
que, para alguns, foi a origem da riqueza material e para outros foi a sorte de
encontrar o respeito pelo trabalho, pela fé, pelo ambiente onde foram criados os
filhos nem tão nobres da cultura dos canaviais. Mas foram eles, os filhos anô-
nimos dos canaviais junto aos seus filhos notórios, que trouxeram o horizonte
cultural da vida até o ponto em que um engenho, ao invés de ser demolido, pu-
desse se tornar o início daquele que poderá ser um museu inovador, humanista,
corajoso no sentido de edificar a cultura da liberdade como ponto de partida
para o Brasil, que merece usufruir do pioneirismo de tantos pioneiros que foram
consultados na origem do projeto desse museu, na década de 70, e que persistem
na memória daqueles que percebem a vida como estado essencial da arte e a arte
como estado essencial da vida. Sendo assim, não é demais sonhar que obras,
imagens, acervos materiais e imateriais sejam projetados do Engenho Central
para o mundo buscando a superação das contradições ambientais, sociais, cultu-
rais e econômicas que fizeram parte do passado dos canaviais e fazem parte do
presente dos museus brasileiros.
Ninguém quer mais encontrar as cenas vivas de retirantes congeladas na atual
realidade brasileira dos dias de hoje. Aqui, o amor se transcende para a consciência.

7
Nair é antiga moradora da colônia do Engenho Central. Conversa informal em visita /pesquisa no Museu da
Cana em agosto de 2019.

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

Figura 6: Família Biagi.

Fonte: Página do 100 Nonni.8

Um pêndulo desigual de memória entre Maurílio Biagi, que transita na instala-


ção de um engenho de bangue, e um senhor Otacílio, que guardou na sua solidão, por
décadas, a porta de entrada de um Engenho Central, é hoje museu que pode guardar
e difundir os bens, as relações, a materialidade e a sensibilidade tangível de tantas
percepções diferentes que trouxeram o Brasil secular ao Brasil presente. Da canção de
Jorge Mautner, faço vivas as palavras de Luiz Biagi, as mesmas que unem a todos nós
em ideais comuns de criação: não apenas o Engenho Central foi um viveiro de empre-
sários mas, além de ele ter sido no passado viveiro de empresários, continuará vivo no
presente, sendo o Museu da cana um viveiro de novos empresários da economia cultu-
ral, em que artistas e designers sociais de uma nova realidade social incluam bens cul-
turais e criativos no panorama desta diversidade. Ele mesmo ressalta a importância de

homenagear todas as imigrações importantes que vieram para


o Brasil, através de uma música geografia que possa contar a
história de forma visual, voltada para crianças e explicar a et-
nia e a cultura que nós somos, que o Brasil é e o estado de
São Paulo é, contados detalhes, em números, algo bem feito,
explicar de onde vieram do Japão, Itália, Alemanha, quantos
vieram para as regiões, para onde foram, o biotipo das pes-
soas, os cruzamentos, mostrar a cara de quem com quem [...]
(BIAGI, L., 2003).
8
Disponível em : https://lh3.googleusercontent.com/proxy/VyLZt8NuLOI8yNoSo9AGh2p8EcKuKvXEyU34q0X
lsTs19d1uWOfB0Tb5xnfLIfoCfVP28aQLarjfpdC-AgvS8KsIzU4xAvvcG6s7_8zBLxGaC419scApoMhu Acesso
em 11 maio 2020.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.11-35, 2020 29


Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

Entre gerações passadas, presentes, futuras, se trabalhado com absoluta co-


ragem, ainda, este museu poderá alavancar para o futuro a memória do IAA e do
Próalcool, tornando-se parte fundamental do complexo museológico do estado de São
Paulo. Um centro de tecnologias inclusive culturais. Um lugar onde a consciência atin-
ge níveis de ação e racionalidade capazes de unir a coragem, o coração, a consciência
e a vocação de migrar a história do presente para o futuro. E este museu é uma saga
do futuro. Como a força do amor e a força de quem ama e é por esta força capaz de
transformar a si e o Outro e lutar até o fim por aquilo que acredita. Capaz a ponto de
tornar o amor quase uma desobediência civil. O amor que é a energia motriz da cria-
tividade humana. A raiz das relações sociais e seu equilíbrio. De repente, o olhar que
une os sentidos exemplificados entre gerações. Uma vez mais, a força humana se une
de modo quântico para multiplicar potenciais infinitos. E nasce uma primeira leitura
da predestinação coletiva de um museu que pertence ao futuro e não ao passado.

Figura 7: Formas pão de açúcar e engrenagem de Engenho de Bangue adquiridas em


Pernambuco, hoje no Museu da Cana.

Fonte: Acervo do Museu da Cana.

Misteriosa correspondente diminutiva da palavra Sertão, Sertãozinho, lo-


calizada no Nordeste de São Paulo, torna-se um ponto de ligação com a cultura de
Pernambuco. Por ser um dos maiores bens culturais do Estado, o Engenho Central,
lugar de origem do Museu da Cana, traça o destino, na década de 1970, olhando o
passado para premonitoriamente caminhar para o futuro. Nordeste paulista ligado a
Pernambuco por um eixo imaginário no espaço e no tempo, torna-se uma das ligações
culturais mais importantes da contemporaneidade, pelo viés de Aloísio Magalhães,
que desenhou o Museu do Açúcar, em 1965, lugar onde Cristina Duarte Prata foi bus-
car o engenho de bangue, que integra hoje o conjunto do Engenho Central.

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

No ano de 1974, Cristina Duarte Prata, então coordenadora do Museu de


Sertãozinho, financiada pela Zanini, inicia uma série de viagens na região dos
Engenhos dos Estados do Norte e Nordeste. Precisamente, no dia 3 de março de 1975,
em relatório semanal, após narrar um encontro com o delegado do IAA, e com o soci-
ólogo Gilberto Freyre, viajando com Zé Santeiro pelo Estado da Paraíba, em diversos
encontros em busca de peças para a formação do museu idealizado inicialmente, ela
descreve a pessoa de Aloísio Magalhães em carta a Luiz Biagi, no seguinte contexto:

Quem me deu uma grande força nas transações foi o Aloísio


Magalhães que veio passar o mês de fevereiro aqui. Ele me su-
geriu ainda que procurasse entrevistar Ariano Suassuna, Capiba
e Cícero Dias. Aloísio se interessou muito pelo museu e é super
por dentro de várias transações (tem escritório de Programação
visual, foi ele que desenhou as cédulas de dinheiro atualmente e
está se empenhando em criar em Brasília  “centro de referência
cultural”, seria um centro que reuniria todos os dados e infor-
mações sobre a cultura do Brasil. É um cara dinâmico, entusias-
mado, cheio dos contatos. Fiquei de mandar para ele uma cópia
do projeto do Dr. Clarival. Ficou bastante interessado no proje-
to do museu e queria até falar com você. Dei a ele os telefones
do escritório (PRATA, 1975).

Hoje, o Engenho Central de Sertãozinho tornou-se um lugar de preservação


da história, como anteviu Maurílio Biagi, filho do imigrante italiano Pedro Biagi. E
mais que mudar a geografia econômica do açúcar e da cana, o museu intersecciona a
história à memória italiana no Brasil de um modo completamente inusitado que liga
o fluxo imigratório ao trajeto de Aloísio Magalhães, talvez o mais alto representante
da cultura pernambucana. Do ponto de vista da história do museu, existe um elo fun-
damental entre Brasil e Itália que amplia a concepção do museu e pode ser entendido
pela condição de vida dos italianos, da maneira como nos descreve Luiz Biagi (2003)
nos trechos da sua memória sobre a criação do museu: “Eu sempre quis preservar o
Engenho Central, por sua importância histórica. A primeira Safra, foi em 1906, na
substituição do café. A preservação foi fácil, meu pai (Maurílio Biagi) determinou que
preservássemos o local”. Referindo-se à colônia do Engenho, Luiz Biagi cita a presença
de Attilio Balbo no período em que o patriarca Geremia Lunardelli trabalhou com
Schmidt. E continua, comentando que:

Na época  da Zanini (1970) pensei em outro museu, da história


da indústria do açúcar, mas moderno, em outro local, que seria
em Sertãozinho. Tive contato sobre ideia com o arquiteto Bor-
soi, de Recife, Pernambuco, mas não prosperou. Estive com Os-
car Niemeyer, no Rio, porque tive vontade de fazer o Museu do

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.11-35, 2020 31


Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

Imigrante. Esse seria na Rodovia Anhanguera, para homenagear


todas as imigrações importantes que vieram para o Brasil, contar
essa história de forma visual, voltada para as crianças e explicar a
raça e a cultura que nós somos, que o Brasil é e o Estado de São
Paulo é, contar nos detalhes, em números, algo bem feito, expli-
car de onde vieram do Japão, Itália, Alemanha, Quantos vieram,
para as regiões, para onde foram, o biotipo das pessoas, os cru-
zamentos, mostrar a cara de quem com quem... Seria um museu 
muito interativo, como o da Língua Portuguesa, mas com caras,
informações de pessoas, de genealogia. Não deu certo, Niemeyer
não levou adiante, não apresentou o trabalho. A ideia do museu
no Engenho Central estava totalmente desativada, mas em 2006,
eu reativei o projeto no Ministério da Cultura. A ideia de fazer,
olhando o meu avô, meu pai, e me olhando, a vontade de fazer
alguma coisa, não de ser dono, de ter, ou de enriquecer, mas fazer,
mesmo que passasse depois para outras mãos. Enfim, todas as
empresas constituídas são operativas hoje, no horizonte de 100
anos, todas estão funcionando, nenhuma fechou. Talvez o mérito
maior da família tenha sido a vontade de empreender, que vem
do sangue italiano e da extrema pobreza de que eles vieram da
Itália. (BIAGI, L., 2015)

Figura 8: Aloisio Magalhães.

Fonte: Página da Wikipedia9.

9
Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/pt/5/5b/Aloisio-em-seu-escrit%C3%B3rio.jpg Acesso
em 11 maio 2020.

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

E como uma premonição da realidade cultural brasileira esta mesma Itália de


onde vieram estes italianos em extrema pobreza, de um modo quase dramático e edi-
ficante das predestinações e das leis do destino,  encerra de modo súbito a vida de
Aloísio Magalhães, um dos maiores artistas, designer, político-cultural e visionários
da cultura brasileira, que a partir da observação da nossa sociedade e do olhar de
Mário de Andrade, percebeu e cunhou de modo pioneiro o termo  bens culturais.
Na mesma Itália onde se passa o episódio da morte de Aloísio Magalhães, onde há
hoje um Ministério de bens culturais, exemplo que o Brasil ainda não conseguiu, nem
mesmo para valorizar o sentimento e a presença de espírito no olhar de homens como
Maurílio Biagi, que além de uma fortuna feita pelo talento de empreender, percebeu
a importância do Engenho Central de Sertãozinho como um bem cultural brasileiro.

No dia 9 de junho de 1982, Aloísio Magalhães viaja para a


Europa a fim de participar de reuniões de órgãos interna-
cionais de Cultura. Leva consigo 11 litografias em que fixou
a sua visão pessoal de Olinda, imagens que o artista gráfico
pretende usar no diálogo com os membros do Comitê do Pa-
trimônio Mundial da Unesco. A viagem começa por Veneza,
onde participa da reunião de ministros da cultura dos países
de língua latina, como representante do Ministro da Educa-
ção e Cultura, Rubem Ludwig. Na sessão de abertura, Aloísio
faz um pronunciamento -  uma defesa apaixonada e vêemen-
te das questões prementes da nossa sociedade em oposição
àqueles habituados a tratar a cultura exclusivamente por sua
vertente culta. Logo após sua fala, é eleito presidente do en-
contro. Após o almoço, na retomada dos trabalhos, não se
sentiu bem e, logo após dar a palavra ao representante da
França, Aloísio é internado numa clínica, onde sofre, num
espaço de duas horas, duas hemorragias cerebrais. Transferi-
do para o centro de reanimação do hospital Civil de Pádua,
ali vem a falecer no dia 13 de junho, aos 55 anos comple-
tos. (MAGALHÃES; LEITE, 2017, p.522)

Trinta e um anos após a sua morte, é inaugurada a primeira etapa do Museu


Nacional da Cana-de-Açúcar nas antigas instalações do Engenho Central de
Sertãozinho. Um museu feito para a contemporaneidade e não para manter apenas o
passado. Um museu que possui a força de ter criado sinergia entre história, memória
e alcançar o sentido da museologia social como fundamento, uma vez que a simples
preservação do maquinário do Engenho Central seria insuficiente para transformar o
espaço em museu. Dos italianos que vieram reinventar a própria saga e a economia do
açúcar, criando a continuação do fim sem fim como não sabia Cícero Dias, autor de
obras que encontram a maestria de Judith Lauand com a mesma geometria que inovou

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.11-35, 2020 33


Saulo di Tarso Begliomini de Araújo

a arte do século XX, passando por milhares de trabalhadores que sustentaram as for-
tunas erigidas por mais de 100 anos, até a morte regressa de um artista de vanguarda,
como Aloísio Magalhães, na Itália, na mesma proporção há uma história do presente.
Aqui se cruzam os destinos dessa saga a nova era de capitais humanos e cul-
turais, capitais intelectuais e históricos e tecnológicos que serão os únicos capitais
plausíveis para que o Brasil reescreva sua economia na Era do Capital Cultural com a
mesma autonomia e a coragem como que Maurílio Biagi teve para tornar São Paulo
independente da tecnologia externa. Quem sabe, seguindo seu exemplo, possamos
tornar Sertãozinho no epicentro de um complexo cultural tão inovador quanto foi
o projeto que a Zanini representou. Não é todo museu que atrai séculos de cultu-
ra, como atraiu Pernambuco e que, em seu capital histórico, possui juntos, Maurílio
Biagi, Cristina Prata, Aloísio Magalhães, Burle Marx - este, lembrando os desafios am-
bientais do Museu da Cana, Clarival do Prado Valadares, Alexandre Wollner, Marcelo
Ferraz e, indiretamente, a memória obrigatória de Judith Lauand. Como diria Dona
Edilah Lacerda, “nada é por acaso”. E não sendo um simples roçar na retina, certa-
mente, se verá a magnitude da paisagem cultural infinita e predestinada ao significado
revolucionário dos bens culturais, o destino e a missão desse museu que tem absolu-
tamente tudo para ser a grande referência do homem que é de lá e cá, não sendo mais
o imigrante ou o brasileiro e sim o homem que representa a cultura do Atlântico e
que possui a dimensão do açúcar produzido no Brasil e consumido, há séculos, pelo
Mundo. Ou seja, o Museu da Cana tem a globalidade do açúcar como fronteira de sua
cultura imaterial. Nasceu para a museologia social, os bens culturais, a preservação da
memória do IAA, do Proálcool e o futuro de uma mentalidade em que o conceito de
tecnologia estará ligado à biodiversidade e não confinado às redes digitais. Buscando
assim o equilíbrio cultural, ambiental, espiritual, econômico e criador, como se dese-
nhou, na origem coletiva da concepção do museu, e a exemplo da capacidade ética
individual desses que são os nossos pioneiros.

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Paisagem infinita: do engenho de açúcar aos bens culturais

Referências

BIAGI, Luiz. [Entrevista]. 2003 e 2015. Arquivo Museu da Cana.


BIAGI, Edilah Lacerda; HASSE, Geraldo; HECK, Leila Engenho Central e Fazenda
Vassoural. Pontal: Editora Elza Luli Miyasaka, 2014.
BIAGI, Luiz Lacerda. A família Biagi, os primeiros cem anos. Ribeirão Preto:
Laserprint Editorial, 1988.
CARVALHO, Flávio de. O silêncio da grande altitude. O Estado de S. Paulo. São
Paulo. s/p. 14 de dez. de 1947. Fundo FC/CEDAE.
DIAS, Cicero. Eu vi o mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
DORETTO, Maria Lucia. O estilo Luiz Biagi de criar negócios. Ribeirão Preto: Editora
Gente, 2015.
FURLAN JÚNIOR, Antônio. [Correspondência]. Destinatário: Marina Furlan, filha
de Furlan Júnior, acervo de família, 1947.
HASSE, Geraldo. Maurílio Biagi- o semeador do sertão. Sertãozinho: Editora Céu e
Terra, 2003.
MAGALHÃES, Aloisio; LEITE, João de Souza (org.). Bens Culturais do Brasil: um
desenho projetivo para a nação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.
PRATA, Cristina Duarte [Correspondência]. Destinatário: Luiz Biagi. 3 mar. 1975.
Arquivo Museu da Cana.

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Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo
Construction of national identities at Joaquim Cardozo play
Construcción de identidades nacionales en el teatro de Joaquim Cardozo
Estevão Eduardo Cavalcante Carmo1

Resumo
CARMO, E. C. C. Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo. Rev. C&Tró-
pico, v. 44, n. 1, p. 37-58, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art2

A proposta geral deste trabalho é investigar o processo de construção de identida-


des nacionais no teatro de Joaquim Cardozo, mais especificamente na peça O co-
ronel de Macambira. Para tanto, utilizamos o conceito de identidade proposto por
Hall (1993), bem como os estudos sobre o processo de referenciação desenvolvidos
por Mondada e Dubois (2005 [1995]), Marcuschi (2007) e Koch (2015 [2002]).
Além disso, dialogamos ainda com reflexões provenientes da sociologia e da an-
tropologia, tais como as investigações elaboradas por Ribeiro (2006 [1995]), Prado
Jr. (2011 [1942]) e Schwarcz (2019) sobre a formação sócio-histórica do Brasil.
Analisamos as expressões nominais anafóricas que referenciam as personagens
que constituem a peça O coronel de Macambira, a fim de observar a construção de
identidades nacionais no drama de Joaquim Cardozo. Embora sejam múltiplas as
identidades que atravessam a peça, notamos que as personagens constituem gru-
pos fragmentados e antagônicos, que representam, por sua vez, conflitos socioeco-
nômicos incrustados na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Identidade. Referenciação. Joaquim Cardozo. Teatro.

Abstract
CARMO, E. C. C. Construction of national identities at Joaquim Cardozo play. Rev. C&Trópico, v.
44, n. 1, p. 37-58, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art2
The general purpose of this work is to investigate the process building of na-
tional identities in Joaquim Cardozo’s play, more specifically in O coronel de
Macambira. For that, we used the concept of identity proposed by Hall (1993), as
well as the studies on the referencing process developed by Mondada and Dubois
(2005 [1995]), Marcuschi (2007) and Koch (2015 [2002]). In addition, we also
dialogue with reflections from sociology and anthropology, such as the investiga-
tions carried out by Ribeiro (2006 [1995]), Prado Jr. (2011 [1942]) and Schwarcz
(2019) on the socio-historical formation of Brazil. We analyzed the anaphoric
nominal expressions that refer to the characters that make up the play O coronel
de Macambira, in order to observe the construction of national identities in the

1
Mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, atua como pro-
fessor de Língua Portuguesa em escolas de rede privada da Região Metropolitana do Recife. E-mail: estevao.
eduardo.cavalcante@gmail.com.Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8880-389X

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 37


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

drama of Joaquim Cardozo. Although there are multiple identities that cross the
play, we note that the characters are fragmented and antagonistic groups, which
in turn represent socio-economic conflicts embedded in Brazilian society.
Keywords: Identity. Imaginary formations. Organized fan. Discourse.

Resumen
CARMO, E. C. C. Construcción de identidades nacionales en el teatro de Joaquim Cardozo. Rev.
C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 37-58, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art2
La propuesta general de este trabajo es investigar el proceso de construcción de
identidades nacionales en el teatro de Joaquim Cardozo, más específicamente en la
obra de teatro O coronel de Macambira. Para eso, utilizamos el concepto de iden-
tidad propuesto por Hall (1993), así como los estudios sobre el proceso de referen-
cia desarrollado por Mondada y Dubois (2005 [1995]), Marcuschi (2007) y Koch
(2015 [2002]). Además, también dialogamos con reflexiones de la sociología y la
antropología, como las investigaciones realizadas por Ribeiro (2006 [1995]), Prado
Jr. (2011 [1942]) y Schwarcz (2019) sobre la formación sociohistórica de Brasil.
Analizamos las expresiones anafóricas nominales que se refieren a los personajes
que componen la obra O coronel de Macambira, para observar la construcción de
identidades nacionales en el drama de Joaquim Cardozo. Aunque hay múltiples
identidades que cruzan la obra, notamos que los personajes son grupos fragmenta-
dos y antagónicos, que a su vez representan conflictos socioeconómicos arraigados
en la sociedad brasileña.
Palabras clave: Identidad. Formaciones imaginarias. Partidario organizado. Habla.

Data de submissão: 09/04/2020


Data de aceite: 28/04/2020

1. Introdução

O coronel de Macambira é uma das cinco peças escritas por Joaquim Cardozo
(1897-1978), autor pernambucano. O drama é elaborado em formato de bumba meu
boi, manifestação cultural que, embora não tenha se originado no Brasil, se popula-
rizou em todo território nacional. No posfácio do texto, Cardozo assinala ter se fun-
damentado nas versões do boi reunidas por Ascenso Ferreira e publicadas, em 1944,
na revista Arquivos, da Prefeitura do Recife. Não obstante ser uma manifestação cul-
tural associada continuamente às regiões Norte e Nordeste, seria ingenuidade limitar
a abrangência do bumba meu boi somente a essas duas localidades. Diversas leituras e
representações do boi se espalharam por todo o Brasil tão logo sua chegada em terri-
tório nacional. Por esse motivo, Leite (2017, p. 9) afirma que “o boi se manifestou e se
manifesta em todo o Brasil, não é típico de uma região e possui características próprias
de acordo com o chão que germina”.

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Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

Partindo desse pressuposto, entendemos que o texto de Cardozo não se trata de


um drama do – e sobre – o Nordeste unicamente. Como ainda salienta Leite (2017),
seria uma leitura rasa circunscrever o teatro de Joaquim Cardozo a uma ou duas regi-
ões apenas, quando, ao lermos sua obra teatral, percebemos diversas referências – de
metáforas a alegorias – sobre o Brasil.
Além disso, é preciso salientar ainda o aspecto crítico do teatro de Joaquim
Cardozo e, mais especificamente, da peça analisada. O coronel de Macambira é um tex-
to marcado profundamente pelas diferenças sociais das personagens que o compõem.
Trata-se daquilo que Leite (2017, p. 11) denomina de “campo de forças contrárias”,
constituído, de um lado, por uma elite salvacionista, composta por coronéis, padres e
profissionais liberais, e, de outro, por uma população pobre, sofrida e explorada con-
tinuamente pela elite. No entanto, na peça de Cardozo, os desvalidos econômica e
socialmente não são representados passivamente, mas como agentes de seu próprio
discurso e, portanto, de suas histórias e representações.
Esses dois grupos, presentes na peça, longe de limitarem as diversas comuni-
dades econômicas, sociais e culturais que constituem o Brasil, ratificam dois princí-
pios históricos já revisados extensamente na literatura sobre o assunto. O primeiro é
o de que há uma profunda desigualdade social no país, fruto de um desenvolvimento
histórico marcado, sobretudo, pela diferença e pela exploração de alguns poucos
sobre muitos. E o segundo princípio consiste no aparente interesse dos grupos mais
favorecidos socioeconomicamente em manter seu status quo, operando, portanto,
na manutenção das relações desiguais de poder e acesso a bens coletivos e universais
(SCHWARCZ, 2019).
Desse modo, entendemos que O coronel de Macambira consiste num drama
que contribui para a compreensão não só das relações sociais que se firmaram ao lon-
go da história do Brasil, mas também das identidades nacionais, representadas através
de seus personagens. É esse último ponto que nos interessa sobremaneira, e sobre ele
concentramos nossos esforços investigativos.
Salientamos a escolha do texto em análise sob a justificativa de se tratar do
drama mais popular dentre as cinco peças escritas por Joaquim Cardozo. Além disso, a
obra poética de Cardozo constitui um conjunto de escritos mais conhecido e discutido
frente ao seu teatro, de modo que a presente análise visa, também, a contribuir com a
divulgação de suas peças.
O artigo está dividido em sete tópicos. No primeiro, introduz-se temática, ob-
jetivos e justificativa; no segundo, discute-se sobre o conceito de identidade nacional
adotado neste trabalho; no terceiro tópico, abordamos o processo de referenciação
e suas implicações na construção de sentidos no discurso; o quarto tópico faz um
breve resumo sobre a peça analisada; no quinto tópico, estão os aspectos metodoló-
gicos; no sexto, realiza-se a análise do texto; e, por fim, no sétimo, estão arroladas as
considerações finais.

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Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

2. Identidade nacional enquanto construção discursiva

Em nossa análise, adotamos as reflexões de Hall (1993) sobre identidade.


Segundo o autor, há três concepções de identidade, a saber:

a) a do sujeito do Iluminismo;
b) a do sujeito sociológico;
c) a do sujeito pós-moderno.

Hall (1993) afirma que o sujeito do Iluminismo possuía uma concepção de


identidade essencialista e inata na medida em que a identidade era um fenômeno que
precedia a existência do sujeito e o acompanhava ao longo de sua vida, cedendo pouco
ou nenhum espaço para mudanças ou reconfigurações. O conceito de sujeito socio-
lógico, por sua vez, forjado à luz do desenvolvimento da Sociologia, dispõe também
de uma identidade essencialista, porém mutável conforme as diversas interações nas
quais os sujeitos estivessem inseridos. Por fim, o sujeito pós-moderno oferece uma
concepção de identidade completamente móvel, cambiante, mutável e plural. Assim,
a identidade não seria mais um fenômeno inato e essencialista, mas uma construção
contínua do sujeito ao longo de sua vida, a partir de suas relações sociais e de seus
diferentes papéis exercidos nas muitas comunidades das quais ele faz parte. Não cabe,
portanto, referir-se à identidade, mas às identidades, pois cada sujeito desenvolve va-
riadas representações de si mesmo (HALL, 1993).
É essa última concepção de identidade com a qual trabalhamos em nossa aná-
lise. Hall (1993) atribui essa identidade flutuante do sujeito pós-moderno ao desenvol-
vimento da modernidade, que proporcionou um deslocamento duplo de identidade
dos sujeitos: primeiro, porque possibilitou a criação de novas identidades para um
mesmo sujeito a partir de suas funções em diferentes grupos, e, em segundo, porque
proporcionou aos indivíduos novos olhares e, portanto, novas construções sobre si.
Em seus estudos, Giddens (1991) assinala o aspecto disruptivo da modernida-
de, que se contrapôs a todo um modelo de sociedade tradicional e organizado estru-
turalmente. Se antes o sujeito estava circunscrito quase que por completo às funções
familiares, com a modernidade, ele precisou desenvolver uma série de identidades de-
mandadas pelas muitas comunidades sociais e culturais que surgiram continuamente.
A modernidade trouxe consigo também a ideia de Estado-nação, conceito
formulado a partir dos desdobramentos da Revolução Francesa, no século XVIII. Na
esteira desses acontecimentos, emergiram igualmente discursos patrióticos, de fun-
do demasiadamente nacionalista. Tais discursos motivaram o assomo de identida-
des nacionais, profundamente associadas a questões políticas, culturais e linguísticas
(FARACO, 2016).
Sobre esse fenômeno, Hall (1993) salienta que identidades nacionais consistem
basicamente em comunidades imaginadas, uma vez que tais identidades não são con-
ceitos inatos e imutáveis, mas construções discursivas forjadas ao longo da história e

40 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020


Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

assentadas no imaginário popular de uma nação. Em outros termos, “uma cultura na-
cional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto
nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL, 1993, p. 50).
Ao partir, então, desses pressupostos, entendemos identidades nacionais
como construções discursivas, passíveis de reconfigurações. Portanto, mutáveis,
dado que elaboradas no discurso. Hall (1993) adverte, no entanto, sobre a compreen-
são de identidades nacionais como modelos homogêneos e harmoniosos. Segundo
o autor, as nações modernas são compostas por diversas comunidades e sujeitos
diferentes entre si, de modo que seria impossível falar de uma identidade única e
coesa para uma nação. Por esse motivo, as identidades nacionais são plurais (em
classe, gênero, raça e etnia, por exemplo), ainda que continuem a ser representadas
discursivamente como unificadas.
Analisando esse fenômeno no cenário brasileiro, Schwarcz (2019) admite que,
desde o Brasil Colônia, há sucessivas tentativas no sentido de produzir um discurso
homogeneizante e padronizado sobre o país, o que solapa e encobre uma profunda
desigualdade estruturada historicamente em território nacional. A autora aponta que
diversas representações sobre o Brasil e o brasileiro, elaboradas sobretudo entre o final
do século XIX e início do século XX, apresentam um modelo de colonização e misci-
genação democrático e uniforme, fato que ignora, por sua vez, anos de escravização e
de exploração socioeconômica (SCHWARCZ, 2019).
Em uma de suas maiores obras, Ribeiro (2006 [1995]) também salienta o ce-
nário conflituoso e heterogêneo sobre o qual se consolidou a sociedade brasileira.
Conforme o antropólogo, a estratificação social no Brasil é composta por quatro gru-
pos, a saber: i) no topo e, em menor número, a classe dominante, composta pelos
setores empresariais, políticos e eclesiásticos, entre outros; ii) em seguida, os setores
intermediários, representados por profissionais liberais, empregados e pequenos em-
presários; iii) logo após, as classes subalternas, constituídas pelo campesinato e opera-
riado; iv) e, por fim, na base e em maior número, as classes oprimidas, compostas por
empregados domésticos, biscateiros, moradores de rua, dentre outros marginalizados
historicamente pela sociedade.
Alinhando-se também a tais reflexões, Prado Jr. (2011 [1942]) atribui a organi-
zação social desigual no Brasil à escravidão que se perpetuou no país por quase qua-
tro séculos e que, conforme o autor, ainda engendra repercussões na estrutura social
contemporânea. De acordo com o historiador, a nítida diferença que existia, no Brasil
Colônia, entre os senhores e os escravos faz-se presente, ainda hoje, no racismo que
atravessa os costumes, os discursos e as diversas desigualdades atuais2.
Prado Jr. (2011 [1942]), no entanto, também indica que, entre os senhores
e os escravos, havia ainda, na Colônia, um grupo numeroso de homens livres,
profissionais liberais ou mesmo marginais, formando uma comunidade interme-
diária que, se não integrava a classe dos escravizados, tampouco figurava entre
os senhores. Ainda nos termos do autor, “uma parte desta subcategoria colonial

2
Nesse sentido, uma perspectiva semelhante pode ser encontrada nas reflexões elaboradas por Souza (2017).

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 41


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

é composta daqueles que vegetam miseravelmente nalgum canto mais ou menos


remoto e apartado da civilização, mantendo-se ao deus-dará, embrutecidos e mo-
ralmente degradados” (PRAD JR, 2011 [1942], p. 299). Conforme o autor, esses
sujeitos formarão uma classe sobre a qual, na contemporaneidade, recaem precon-
ceito e marginalização social profundos.
Tendo em vista tais reflexões, entendemos que o Brasil – compreendido,
aqui, enquanto nação – é composto por diversos grupos e comunidades plurais e
diferentes entre si. Não cabe, portanto, assumir um modelo de representação ho-
mogêneo, inclusive porque muitas das classes que constituem a organização social
brasileira estão em conflito contínuo. Desse modo, afastamo-nos de concepções
teóricas que preconizam a identidade nacional como um grupo coerente e har-
monioso, e passamos a observar como as identidades – no plural – são elaboradas
discursivamente, mais especificamente na peça em estudo. Para tanto, faz-se ne-
cessário, antes, entender como os sujeitos constroem representações dos fatos do
mundo no – e pelo – discurso.

3. O processo de referenciação: construindo sentidos no discurso

É antiga a discussão sobre como os sujeitos empregam a linguagem para referir


as coisas. Muitas são as teorias que tentam explicar a relação de representação entre
a linguagem e o mundo. Em nossa análise, adotamos uma concepção sociocognitiva
e discursiva sobre a referência, alinhando-nos, portanto, a uma tradição sociodiscur-
siva dos estudos linguísticos, cuja premissa fundamental é a de que a língua é um
fenômeno situado histórica, cultural e socialmente (GUEIROS, 2019). Para além dis-
so, entendemos que a língua se manifesta também conforme determinados processos
cognitivos que operam, por exemplo, sobre registros fonológicos, escolhas lexicais e
construções sintáticas (FAUCONNIER, 1997).
Partindo de tais pressupostos, concordamos com Mondada e Dubois (2005
[1995]) quando as autoras substituem a terminologia referência por referenciação, de-
nominação que assinala o aspecto processual e situado desse fenômeno. Marcuschi
(2007) também aponta para a referenciação como uma atividade discursiva que de-
pende fundamentalmente dos sujeitos para a construção de sentidos no discurso.
Nessa concepção, para o autor, a categorização linguística3 se trata de um processo
intersubjetivo, isto é, elaborado conforme as crenças compartilhadas pelos interlo-
cutores acerca de um determinado fato do mundo. Em outros termos, “as pessoas
concordam intersubjetivamente porque classificam e organizam o mundo de forma
parecida quando vivem na mesma cultura” (MARCUSCHI, 2007, p. 131).
De acordo com Marcuschi (2007), as categorizações linguísticas tendem a
ser estabilizadas pelos próprios interlocutores. No entanto, dado o aspecto situado
3
Adotamos a terminologia categorização linguística para referirmo-nos ao processo de categorização na lingua-
gem ou referenciação. Conforme Lakoff (1987), ambos são processos imbricados, mas de natureza distinta,
uma vez que a categorização pode ocorrer somente a nível cognitivo, enquanto a referenciação é uma atividade
essencialmente discursiva.

42 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020


Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

da linguagem, as categorias podem ser alteradas tanto sincrônica quando diacro-


nicamente. Nesse sentido, Mondada e Dubois (2005 [1995], p. 25) afirmam que “a
variação e a concorrência categorial emergem notadamente quando uma cena é vista
de diferentes perspectivas, que implicam diferentes categorizações da situação, dos
atores e dos fatos”.
A título de exemplificação, Marcuschi (2007) retoma o caso histórico de
Joaquim José da Silva Xavier – conhecido popularmente, no Brasil, como Tiradentes
–, personagem ora categorizado como “herói” ora como “traidor”, a depender das
crenças que subjazem às categorizações empregadas pelos interlocutores. Dado que as
categorias são situadas e flutuantes, não cabe, portanto, afirmar que as categorias lin-
guísticas nomeiam objetos ou fatos do mundo, numa relação de correspondência um
a um, mas que a categorização opera sobre objetos de discurso (MARCUSCHI, 2007;
MONDADA; DUBOIS, 2005 [1995])
Em seus estudos sobre referenciação, Koch (2014; 2015 [2002]; 2017
[2004]), se debruçou sobre uma gama variada de textos a fim de observar os me-
canismos que constituem o processo de categorização e recategorização na lingua-
gem. Segundo a autora, a progressão referencial se realiza mediante uma série de
fenômenos linguístico-textuais empregados pelos interlocutores para dar conti-
nuidade e sentido ao texto.
Koch (2015 [2002]) assinala que a retomada de um objeto de discurso pode ser
realizada através de expressões nominais definidas e indefinidas, expressões pronomi-
nais, ou mesmo elipses. Em nossa investigação, observamos as expressões nominais
definidas e indefinidas empregadas para categorizar as personagens na peça. Tendo
em vista o aporte teórico-metodológico citado, faz-se imperativo compreender a fun-
ção da anáfora.
A anáfora consiste num mecanismo linguístico-textual responsável por susten-
tar um ou mais objetos de discurso ao longo de um texto (APÓTHELOZ, 2005 [1995]).
Tomemos como exemplo o trecho seguinte da peça O coronel de Macambira: “Mas é
seu Tenório/ Bicheiro da vila/ Com o seu criatório / Esperto e finório / Trazendo seus
bichos” (CARDOZO, 2017, p. 71).
Observamos que um determinado personagem é introduzido e categoriza-
do como “seu Tenório”. Logo em seguida, no próximo verso, o mesmo personagem
– ou referente – é recategorizado como “Bicheiro da vila”. Mais à frente, duas ex-
pressões adjetivas retomam o mesmo referente, recategorizando-o como “Esperto”
e “Finório”. As expressões nominais “Bicheiro da vila”, “Esperto” e “Finório” são
anáforas diretas – ou correferenciais – pois retomam um mesmo referente ou obje-
to de discurso já introduzido, no caso “seu Tenório”. Há ainda outros tipos de aná-
fora4, todavia, em nossa investigação, analisamos somente as expressões nominais
que funcionam como anáfora direta, conforme exemplificado.
Koch (2014; 2015 [2002]) salienta que, mais do que apenas retomar um referen-
te anteriormente introduzido em um texto, as anáforas diretas lançam também sobre o

4
Para um estudo mais aprofundado sobre os tipos de anáfora, ver Cavalcante (2003) e Koch e Marcuschi (1998).

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 43


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

referente uma posição, um ponto de vista do interlocutor, manifestando, desse modo,


as crenças que subjazem às categorizações empregadas pelos interlocutores. Assim,
conforme insiste a autora, as expressões (co) referencias “contribuem para elaborar o
sentido, indicando pontos de vista, assinalando direções argumentativas, sinalizando
dificuldades de acesso ao referente e recategorizando os objetos presentes na memória
discursiva” (KOCH, 2015 [2002], p. 129).
Além disso, Koch (2014) observa que as expressões (co) referenciais estão an-
coradas em conhecimentos e pressupostos implícitos esquematizados em modelos ou
esquemas cognitivos. Conforme a autora, o emprego de determinados itens lexicais
na (re) categorização de um objeto de discurso contribuem para a elaboração de um
modelo de compreensão sobre os elementos e os fatos do mundo. Tais modelos – de
natureza sociocognitiva e intersubjetiva – operam fundamentalmente sobre a compre-
ensão que os interlocutores têm acerca do mundo (KOCH, 2014; VAN DIJK, 2010).
Em consonância com tais reflexões, assumimos, portanto, que as expressões
nominais empregadas na (re)categorização de um determinado objeto de discurso re-
velam pontos de vista, colaborando, por conseguinte, com processos argumentativos
implicados no discurso. Desse modo, conforme já mencionado, analisamos as expres-
sões lexicais nominais utilizadas para categorizar e r(e)categorizar as personagens da
peça O coronel de Macambira, entendendo que tais (re)categorizações revelam posi-
ções e perspectivas dos personagens sobre si mesmos e sobre as demais personalidades
que compõem o drama, contribuindo, desse modo, com a construção de identidades
diferentes e conflitantes.
Antes de considerarmos os aspectos metodológicos, façamos um resumo sobre
a peça aqui analisada.

4. Um breve resumo da peça O Coronel de Macambira

Como já assinalado na introdução, O coronel de Macambira é uma peça es-


crita em formato de bumba meu boi, e constitui juntamente com outras duas peças
– De uma noite de festa e Marechal, boi de carro – a trilogia de “bois” elaborada por
Joaquim Cardozo.
No posfácio de O coronel de Macambira, o autor ressalta que sua peça é com-
pletamente original no texto, mas que obedece, no entanto, às “características desse
drama falado, dançado e cantado – espécie de autopastoril quinhentista, de onde,
certamente, proveio” (CARDOZO, 2017, p. 129). Além disso, o texto apresenta a
configuração estilística de um poema, organizado, portanto, em versos e estrofes,
fato que justifica as designações de alguns teóricos ao referirem a peça como um
“drama-poético” (VAN JAFA, 1967a) ou como uma “produção poético-dramatúrgi-
ca” (LEITE, 2017).
O enredo da peça abrange a jornada empreendida pelo quarteto de persona-
gens Capitão, Mateus, Catirina e Bastião a fim de salvarem um boi, propósito recor-
rente em dramas cujo formato seja o do bumba meu boi. Dividido em dois quadros, o

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Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

texto introduz, ainda, diversos personagens, como o fazendeiro Zé Pequeno, humilde


proprietário de terra, e o coronel Nonô, dono da fazenda Macambira. Cumpre ressal-
tar, também, a presença das Cantadeiras, espécie de Coro, responsável por contextua-
lizar fatos do drama, introduzindo personagens, eventos e locais.
No 1° quadro, Cardozo apresenta uma série de tipos que atravessam a nar-
rativa e que, regularmente, entram em confronto discursivo com outros persona-
gens, sobretudo com Mateus, Catirina e Bastião, representantes de uma população
mais pobre e marginalizada econômica e socialmente. No 2° quadro, dando conti-
nuidade a jornada, o quarteto de personagens referido anteriormente vai à fazenda
Macambira com o intuito de impedir a morte do boi. Lá, encontram outros tipos,
com quem ora entram em conflito ora se identificam. Embora o drama termine
com o boi morto, acompanhado por um cortejo fúnebre, a peça lança as bases
para uma esperança quando, nos instantes finais, a aparição de dois personagens
mortos surpreende a todos, sinalizando “um futuro que há de vir” (CARDOZO,
2017, p. 128).
Relatado o enredo, passemos aos aspectos metodológicos que nortearam
a investigação.

5. Aspectos metodológicos

A princípio, salientamos que foge ao escopo deste trabalho abordar questões


históricas relacionadas ao bumba meu boi, tampouco consiste em nosso objetivo de-
talhar ou examinar aspectos estruturais concernentes ao texto de Joaquim Cardozo.
As classificações empregadas nos quadros5 deste tópico são de natureza didática e
metodológica. Além disso, a investigação aqui empreendida consiste numa análise
qualitativa, interessando-nos, sobretudo, como os sujeitos operam na construção de
identidades através do discurso.
O coronel de macambira é uma peça composta por dois quadros e diversos per-
sonagens. Alguns personagens atravessam os dois quadros, outros apenas figuram em
um destes. Desse modo, em nossa análise, dividimos os personagens em dois grupos:
os fixos e os transitórios. Ressaltamos que os dois grupos são formados apenas por
personagens cujo discurso é representado na peça, ou seja, que falam.
Definimos como personagens fixos aqueles que, não só estão presentes nos
dois quadros do drama, mas também ao longo de cada quadro, ausentando-se even-
tualmente. Por outro lado, nomeamos personagens transitórios aqueles que despon-
tam em apenas um dos quadros ou que, ainda que apareçam em ambos os quadros,
ausentam-se com frequência. Para melhor visualizarmos essa divisão, observemos o
esquema a seguir:

5
Seguindo as orientações da ABNT, utilizamos a terminologia “quadro” em detrimento da designação “tabela”,
entendendo que a principal informação de uma tabela é o dado numérico, o que não coaduna com nossas ca-
tegorias analítico-metodológicas. No entanto, para que não se confunda “quadro” de análise e “quadro” da peça
analisada, quando nos referirmos ao quadro de análise, empregaremos o termo em itálico.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 45


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

Quadro 1: classificação dos personagens.

Quadros Personagens transitórios Personagens fixos

Valentão
Fazendeiro Zé Pequeno
Produtor
Economista
Propagandista
1° Padre
Bicheiro
Aviador Capitão
Aeromoça Mateus
Soldado Catirina
Bastião
Cantadeiras

Engenheiro
Fazendeiro Zé Pequeno
Coronel Nonô

Retirante
Doutor
Ambrosino (Enfermeiro)

Fonte: Elaboração própria.

Salientamos, ainda, que, de modo geral, os personagens transitórios não per-


manecem durante todo um quadro. Eles são introduzidos e, em seguida, saem, dando
lugar a outro personagem transitório na trama.
Como o texto da peça é dividido em dois quadros apenas, decidimos subdi-
vidir os quadros em cenas, facilitando, portanto, a análise. Entendemos cena confor-
me a definição de Teixeira (2005), para quem cena implica presença no palco. Assim,
compreendemos que cada entrada/saída de personagens transitórios em um quadro
constitui uma cena.
Observamos, inclusive, que, no geral, cada entrada/saída de determinados per-
sonagens transitórios representava um enfoque numa temática específica dentro da
peça. Ademais, notamos que tais enfoques revelavam conflitos entre personagens –
fixos e transitórios – na trama. Novamente elaboramos um quadro para melhor com-
preensão desses fatos. A letra x representa o conceito de versus.

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Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

Quadro 2: relação dos quadros, cenas e conflitos na peça6.

Quadros Cenas Conflitos

Valentão
1ª x
Fazendeiro Zé Pequeno

Economista, Produtor e Propagandista


2ª x
População

Padre
3ª x
Mateus e Catirina
1° quadro
Bicheiro
4ª x
Mateus e Catirina

5ª -

Político e Padre
6ª x
População

7ª -

Capitão, Mateus, Catirina e Bastião


1ª x
Espíritos da fazenda

2ª -

2° quadro Grupo de Zé Pequeno


3ª x
Grupo do Coronel Nonô

4ª -

5ª -

Fonte: Elaboração própria.

6
Os dados do Quadro 2 são de importância fundamental para a análise a seguir.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 47


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

6. Análise do texto

Ao longo da análise, identificamos diversos conflitos entre os personagens.


Notamos que os confrontos – todos eles discursivos – ocorrem entre grupos sociais
distintos. Como já mencionado, tal fato coaduna com Leite (2017, p. 11) quando ob-
serva que a peça é constituída por um “campo de forças contrárias”, composto, por
sua vez, por classes sociais antagônicas. De um lado, observamos personagens que re-
presentam o que o autor denomina de “elite salvacionista”; do outro, personagens que
representam a camada mais popular e desassistida da sociedade. É possível notar que
o modo como tais personagens são categorizados também é diferente, inclusive entre
personagens de um mesmo grupo.
Para uma melhor compreensão desse fenômeno, elaboramos os Quadros 3 e
4, que apresentam as expressões nominais empregadas para referenciar os persona-
gens da peça. Comecemos, a princípio, observando o Quadro 3, no qual analisamos o
1° quadro do drama. Salientamos que dividimos os personagens em grupos opostos.
Portanto, em uma coluna, listamos as expressões nominais utilizadas para categorizar
a “elite”; em outra coluna, catalogamos as expressões nominais utilizadas para catego-
rizar os personagens desfavorecidos social e economicamente. Importante ressaltar
que a divisão referida não implica uma compreensão homogênea entre os integrantes
de um grupo.
Entre parênteses, estão os nomes dos personagens na peça e, abaixo deles, os
itens lexicais que os recategorizam no decorrer do texto. Nas cenas em que não aparecem
expressões listadas nas tabelas, não ocorreu nenhum outro vocábulo ou item lexical para
categorizar as personagens senão apenas o nome próprio ou função profissional.

Quadro 3: Expressões nominais que (re)categorizam os personagens do 1° quadro.

Expressões nominais que (re) Expressões nominais que (re)categorizam os


Cenas
categorizam os personagens da elite personagens desfavorecidos

(Valentão)
“forte”
“perverso”
“frio” (Zé Pequeno)
“armado” “afrontado”
“homem do cangaço” “desgraçado”

“fulô venenosa” “atrapalhado”
“jagunço”
“bandido”
“filho de Pernambuco”
“mucufa”

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Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

(Produtor)
“grande produtor”
“produtor de rapadura”
“grande fornecedor”
“malandrão”
“aquele que produz”

(Economista)
“economista formado”
“doutor em finas finanças” (População)

“doutor em leis matemáticas” “furtados”

(Propagandista)
“sagaz propagandista”
“bom propagandista”

“justiceiros”
“produtores da abundância”
“coveiros”
“sambaquantes”
3ª - -
(Bicheiro)
“camafonge”
“esperto” (Mateus e Catirina)

“finório” “um par de simplórios”
“bicheiro besta”
“afoito”

(Aeromoça)
“forma constelada”
“filha da lua nova”
5ª - “irmã da estrela d’Alva”
“pastora”
“baliza”
“farol”

(Padre)
6ª -
“gordo”

(Soldado)
“raso”
“simples candango”
“defunto sem missa”
7ª -
(População)
“pobres”
“vagabundos”
“gente pobre”

Fonte: Elaboração própria.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 49


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

Observamos que o modo como os personagens são categorizados difere bas-


tante, sobretudo quando analisamos as expressões utilizadas para referenciar os mais
pobres ou desfavorecidos, com itens lexicais como “desgraçado”, “atrapalhado” e “po-
bres”. Conforme Koch (2015 [2002]), a recorrência de determinadas expressões para
referenciar um objeto de discurso contribui para a construção de um modelo de com-
preensão específico sobre fatos, eventos ou atores sociais. Em nosso estudo, entende-
mos que o emprego regular de itens lexicais como os observados para categorizar as
classes mais pobres colabora para a construção de uma identidade socialmente caren-
te, frágil e desassistida.
Em contrapartida, as expressões utilizadas para (re)categorizar os personagens
mais favorecidos revelam, de modo geral, a relevância social e profissional destes.
Primeiro, é preciso salientar que tais personagens quando não são nomeados somente
pela profissão, são designados pelo nome próprio precedido de sua função. Alguns
exemplos são Economista, Propagandista, Produtor, Padre e Bicheiro. Compreendemos
que ocorre nesses casos um processo metonímico de substituição de nome próprio
por função profissional. Lakoff e Johnson (2003 [1984]) advertem que a metonímia
consiste em um fenômeno no qual se põe um conceito em evidência em detrimento
de outro. Em outros termos, entendemos que, ao substituir o nome próprio dos per-
sonagens por sua profissão, ressalta-se, por conseguinte, a função social e profissional
privilegiada destes.
Além disso, o modo como são categorizados os personagens mudam conforme
a fala de quem se expressa. Desse modo, quando os personagens que simbolizam a
elite discorrem sobre si, as expressões nominais têm uma carga semântica positiva.
Por outro lado, quando são os personagens mais desfavorecidos categorizando a elite,
observa-se uma referenciação com itens lexicais semanticamente negativos, revelando,
portanto, um conflito no processo categorial.
Observemos, por exemplo, o que ocorre na segunda cena. As expressões usadas
pelo Economista, Produtor e Propagandista para designar a si mesmos são, em geral,
formadas por um nome que indica a profissão deles, precedido ou antecedido por
um qualificativo, como é possível notar em “bom propagandista”, “grande produtor”
e “economista formado”. No entanto, quando são os personagens mais desfavorecidos
a categorizar estes profissionais, as expressões são bem diferentes, como fica evidente
nos trechos a seguir. Para aperfeiçoar a análise, em cada trecho, indicamos com itálico
as expressões usadas para introduzir o(s) objeto(s) de discurso, e sublinhamos as aná-
foras utilizadas para retomar – ou recategorizar – os objetos já introduzidos.

(1)
CANTADEIRAS
Vem na frente o produtor
Logo após o economista
Mais atrás com o seu tambor
O sagaz propagandista

50 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020


Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

Dizem que são justiceiros


Produtores da abundância
Na verdade são coveiros
No cemitério da infância
(CARDOZO, 2017, p. 60)

(2)
PRODUTOR
Sou o grande produtor
De farinha e de algodão
Produtor de rapadura
De manteiga e requeijão
Sou o grande fornecedor
De carne seca e feijão
[...]

MATEUS
Ah! Bem se atina e se vê
Bem se vê que é malandrão
(CARDOZO, 2017, p. 61)

No primeiro trecho, percebemos que as Cantadeiras introduzem três persona-


gens, “o produtor”, “o economista” e “o sagaz propagandista” e, em seguida, retomam
esses três objetos discursivos, recategorizando-os com os termos “justiceiros”, “produ-
tores da abundância” e “coveiros”. Importante salientar que as anáforas “justiceiros” e
“produtores da abundância” são atribuídas à fala de outras pessoas, que podem ser os
próprios profissionais ou a população em geral. As Cantadeiras, todavia, apontam que
tais profissionais “na verdade são coveiros”. Ou seja, é possível notar que, na segunda
estrofe, há uma sucessão de anáforas utilizadas, na tentativa de manifestar as crenças
que circulam sobre tais profissionais entre as classes menos favorecidas.
Fenômeno semelhante ocorre no segundo trecho, no qual, após se apresentar
como “grande produtor”, “produtor de rapadura” e “grande fornecedor”, o Produtor é
recategorizado, na fala de Mateus, como um “malandrão”. Entendemos que essa di-
vergência de categorizações decorre dos conflitos de perspectiva que emergem entre
grupos sociais antagônicos.
Mondada e Dubois (2005 [1995], p. 33) afirmam que “uma categoria lexical
impõe um ponto de vista, um domínio semântico de referência, a concorrer com ou-
tras categorias sugeridas, e produzindo sentido a partir do contraste com as prece-
dentes”. Assim, as diferentes expressões nominais anafóricas usadas para recategorizar

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 51


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

um mesmo referente revelam posições sociais e crenças discordantes, o que indica a


construção de identidades distintas para um mesmo personagem.
Outro ponto a ser destacado no 1° quadro é o personagem Valentão.
Personagem que trabalha a mando do coronel Nonô, o Valentão é enviado para
matar o boi malhado do fazendeiro Zé Pequeno, que, embora seja fazendeiro, é
vítima constante das investidas de outros personagens mais abastados, como o
coronel. Sobre o Valentão, salienta-se que seu nome próprio não é revelado na
peça. No lugar deste, emprega-se um qualificativo que se torna nome próprio em
virtude de um processo de derivação imprópria, fenômeno que evidencia um traço
característico de sua personalidade.
Ao se apresentar, Valentão emprega expressões nominais que salientam carac-
terísticas como coragem, violência e perversão, construindo sobre si um modelo de
homem forte e impiedoso. Sobre tipos como o dele, Prado Jr (2011 [1942]) aponta que
são homens que surgiram em maior número durante o período colonial brasileiro, e
que representavam o poder físico – muitas vezes, violento – dos senhores que os con-
tratavam. Nesse sentido, afirma o autor que

É entre estes desclassificados que se recrutam os bandos turbulen-


tos que infesta os sertões, e ao abrigo de uma autoridade pública
distante ou fraca hostilizam e depredam as populações sedentá-
rias e pacatas; ou pondo-se a serviço de poderosos e mandões lo-
cais, servem os seus caprichos e ambições nas lutas de campaná-
rio que eles sustentam entre si (PRADO JR, 2011 [1942], p. 301).

Assim, entendemos que, por representar a mão executora de uma autoridade


local – o coronel Nonô –, o Valentão figura também dentro do grupo da elite, enten-
dendo, no entanto, que ele não goza de demais vantagens tais como os outros persona-
gens que constituem o mesmo grupo.
Passemos agora ao Quadro 4, na qual observamos as expressões nominais em-
pregadas no processo de (re) categorização dos personagens que atravessam o 2° qua-
dro da peça.

Quadro 4: expressões nominais que (re)categorizam os personagens do 2° quadro.

Expressões nominais que (re) Expressões nominais que (re)categorizam os


Cenas
categorizam os personagens da elite personagens desfavorecidos

1ª - -
2ª - -

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Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

(Engenheiro)
“mais que feiticeiro”
3ª “gamela” -
“engenheiro diplomado”
“técnico especializado”

(Retirante)
“figura andrajosa”
“figura intemporal”
“figura constituída de gestos”
“acabado”
“largado”
“velho amigo”
“meu irmão”

“os senhores da vida” “reduzido a pouco”
“sombra sem corpo”
“rosto sem pessoa”
“vento sem ar soprando”
“um canto”
“uma loa”
“pavio apagado”
“sozinho”

(Doutor)
“show de Doutor”
5ª -
“cirurgião de mão leve”
“vendedor de miúdos”

Fonte: Elaboração própria.

No 2° quadro, notamos a emergência de três personagens transitórios, o


Retirante, o Engenheiro e o Doutor, estes dois últimos sendo profissionais liberais
que, em meio aos conflitos em que se inserem na trama, agem de modo a beneficiar
proprietários de terra, representados no drama, por sua vez, pelo coronel Nonô e
pelo fazendeiro Zé Pequeno. Observamos que ocorre com o Engenheiro processo
parecido com aquele que constatamos nos trechos (1) e (2). Vejamos no trecho (3),
abaixo, uma passagem na qual o processo de categorização de um mesmo persona-
gem ocorre de modo distinto.

(3)
CORONEL
[investindo sobre o engenheiro]
Que grande patifaria!
Que grande trampolinagem!
Não estivesse eu alerta

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 53


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

Cairia na esparrela:
Isto é coisa, isto é serviço
Que se faça, seu gamela?

ENGENHEIRO
Alto lá! Gamela não!
Engenheiro diplomado,
E, em marcações de divisas,
Técnico especializado
[...]
(CARDOZO, 2017, p. 102)

No trecho (3), o coronel Nonô repreende o Engenheiro num dos momentos em


que este demarca as terras em benefício do fazendeiro Zé Pequeno, diminuindo, des-
se modo, a abrangência territorial da fazenda do coronel. Ao censurar o Engenheiro,
o coronel o categoriza com o termo “gamela”, nome dado a uma espécie de vasilha
dentro da qual se despeja comida para porcos. Em seguida, o Engenheiro responde,
negando a expressão “gamela” e designando a si próprio com “engenheiro diplomado”
e “técnico especializado”.
O trecho (3) revela que, mesmo entre os personagens que constituem o grupo
da elite, há confrontos e embates discursivos, fenômeno que evidencia o traço conflitu-
oso também entre classes que gozam de determinados privilégios. Nesse sentido, mes-
mo colocando-os em um mesmo grupo, entendemos que figuras como o Engenheiro
e o Doutor constituem classes distintas das demais, auxiliando ou confrontando os
outros personagens conforme lhes convém.
Outra figura relevante a ser analisada é a do Retirante, personagem que atraves-
sa a trama representando um recorte social muito específico. Sem lugar para morar, o
Retirante vaga pelo país, mimetizando uma vida que lhe foi continuamente subtraída.
Imagina ser acompanhado por uma família que existe apenas em sua memória e para
quem olha e acena, à espera de uma reposta. Enganado por líderes e crenças religiosas,
à pobreza soma-se o desamparo divino.
O Retirante é, na peça de Cardozo, o representante fictício de uma série de pes-
soas que, no Brasil, carecem de assistência de todos os tipos e de quem é escamoteada,
mesmo antes do nascimento, a possibilidade de uma vida digna. Não por acaso, as
expressões lexicais utilizadas para (re)categorizar esse personagem evidenciam não só
sua pobreza e convalescência, mas o aspecto atemporal de sua condição. Observemos
o trecho (4), a seguir:

(4)
MATEUS
Como é que vens acabado
Velho amigo, meu irmão

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Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

Há tanto tempo largado


Pelas sendas do sertão.

RETIRANTE
[...]
Sou uma sombra sem corpo,
Sou um rosto sem pessoa,
Um vento sem ar soprando,
Sem som, um canto, uma loa.
(CADORZO, 2017, p. 106)

No trecho (4), notamos que Mateus categoriza o Retirante com um predicativo,


“acabado”, retomando-o, posteriormente, com as anáforas “velho amigo”, meu irmão”
e “largado”. Na fala do Retirante, por sua vez, o personagem emprega uma série de
expressões para recategorizar a si próprio: “uma sombra sem corpo”, “um rosto sem
pessoa”, “um vento sem ar soprando”, “um canto”, uma loa”. Interessante pontuar que
essas anáforas ressaltam o aspecto acrônico do personagem, indicando, portanto, não
se tratar de um caso específico, mas do representante de um grupo cujos integrantes
há muito existem no Brasil.

7. Considerações finais

Empreender uma análise textual-discursiva da peça O coronel de Macambira


nos limites de um artigo consiste num projeto complexo e arriscado, em virtude dos
muitos elementos e aspectos linguístico-textuais e sociodiscursivos que constituem o
drama escrito por Joaquim Cardozo. Neste artigo, no entanto, propomos um recorte
teórico-metodológico, a fim de investigar, na peça, a construção discursiva de identi-
dades nacionais através de marcas linguísticas. Mais especificamente, analisamos as
expressões nominais utilizadas ao longo do texto para categorizar e recategorizar os
personagens da trama.
Identificamos personagens que constituem grupos sociais contrários e que
protagonizam embates discursivos – entre grupos e entre personagens dentro de um
mesmo grupo, o que revela uma formação heterogênea das personalidades que com-
põe o drama de modo geral. Notamos que o processo de categorização linguística das
personagens ocorre também num embate discursivo entre vozes, na maioria das vezes,
antagônicas. Entendemos que as expressões nominais empregadas na (re)categoriza-
ção dos personagens ratificam a organização social conflituosa e desigual sobre a qual
se assentou o desenvolvimento do país e sobre a qual ainda vivemos.
Desse modo, as expressões categorias apontam, por exemplo, a reafirmação
de identidades nacionais múltiplas, como as dos profissionais liberais que, ao serem
explorados pela elite, exploram, também e, ao mesmo tempo, as classes mais pobres
(RIBEIRO, 2006 [1995]); as dos executores da política local, representando o “braço”

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020 55


Estevão Eduardo Cavalcante Carmo

operante de uma classe empresarial ou proprietária de terra (PRADO JR, 2011 [1942]);
as das elites locais ou regionais, que simbolizam o “coronelismo”, fenômeno constitu-
tivo da sociedade brasileira e que ecoa até os dias atuais (IGLÉSIAS, 1993); e, por
fim, as da população desassistida e esquecida, que sofre o resultado das desigualdades
sociais, sobretudo quando somamos a essa diferença o recorte racial (SCHWARCZ,
2019; SOUZA, 2017).
Longe de encerrar a discussão, esperamos que a análise aqui elaborada possa
contribuir com reflexões que atravessem e ponham em diálogo estudos linguístico-
-discursivos, história e literatura, na tentativa de compreender a organização social
brasileira e de como ela é representada em diversos domínios.

56 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.37-58, 2020


Construção de identidades nacionais no teatro de Joaquim Cardozo

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Formações imaginárias: a imagem de si e do outro
em torcidas organizadas de futebol em redes sociais na internet
Imaginary formations: the image of itself and of the other
among soccer organized twist in social networks on the internet
Formaciones imaginarias: la imagen de usted y de otros
en fanáticos de fútbol organizados en redes sociales en internet

Luiz Carlos Carvalho de Castro1

Resumo
CASTRO, L. C. C. de. Formações imaginárias: a imagem de si e do outro em torcidas organizadas
de futebol em redes sociais na internet. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 59-71, 2020. DOI: https://doi.
org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art3
Neste artigo2, discute-se o conceito de formações imaginárias, introduzido por
Pêcheux (AAD-69), com o objetivo de analisar a construção identitária de tor-
cedores organizados. Usa-se o conceito de formações imaginárias por designar
o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, isto é, a imagem que eles
fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro, acrescido do conceito de iden-
tidade na perspectiva da AD francesa. Na metodologia, realiza-se uma pesquisa
exploratória de abordagem qualitativa a partir de sequências discursivas extraí-
das de sites de torcidas organizadas. Os resultados apontam para a heterogenei-
dade da identidade do torcedor organizado, uma vez que a identidade perpassa
pelas representações que cada um tem de si e do outro, pelo discurso transverso e
pelo deslocamento da posição-sujeito. Conclui-se que a construção da identida-
de vai além das representações imaginárias, devido à pertinência dos elementos
constitutivos do processo discursivo.
Palavras-chave: Identidade. Formações imaginárias. Torcedor organizado. Discurso.

Abstract
CASTRO, L. C. C. de. Imaginary formations: the image of itself and of the other among soccer
organized twist in social networks on the internet. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 59-71, 2020. DOI:
https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art3
In this paper, it was discussed about the concept of imaginary formations intro-
duced by Pecheux (AAD-69), with the objective of analyzing the identity cons-
truction of organized supporters. We use the concept of imaginary formations to
1
Especialista em Leitura, Compreensão e Produção Textual pela UFPE (2004) e Mestre em Linguística pela UFPB
(2009). Atualmente é professor de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino do Estado de Pernambuco.
Pesquisador do Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação (NEHTE). E-mail: luladecastro@
gmail.com https://orcid.org/0000-0002-9940-0631
2
Este artigo completo é o desenvolvimento de uma comunicação apresentada na 25ª Jornada Nacional de Estudos
Linguísticos do Nordeste, realizado no período de 01 a 04 de outubro de 2014, na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, campus de Natal.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.59-71, 2020 59


Luiz Carlos Carvalho de Castro

designate the place where A and B are assigned to each other and to each other,
i.e, the image that they make their own place and the place of the other, plus the
concept of identity from the perspective of French AD. In the methodology, we
conducted an exploratory qualitative study from extracted discursive sequences
of organized fan sites. The results pointed to the heterogeneity of the identity of
organized fan since the identity permeates the representations that each one has
of oneself and the other, the transverse displacement of the discourse and sub-
ject position. It was concluded that the construction of identity goes beyond the
imaginary representations, due to the relevance of the elements (mechanisms)
constituting the discursive process.
Keywords: Identity. Imaginary formations. Organized fan. Discourse.

Resumen
CASTRO, L. C. C. de. Formaciones imaginarias: la imagen de usted y de otros en fanáticos de fútbol
organizados en redes sociales en internet. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 59-71, 2020. DOI: https://
doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art3
Este artículo analiza el concepto de formaciones imaginarias, presentado por
Pêcheux (AAD-69), para analizar la construcción de identidad de los fanáti-
cos organizados. El concepto de formaciones imaginarias se usa para designar
el lugar que A y B se asignan entre sí y entre sí, es decir, la imagen que hacen de
su propio lugar y el lugar del otro, más el concepto de identidad en Perspectiva
francesa AD. En la metodología, se lleva a cabo una investigación exploratoria
con un enfoque cualitativo basado en secuencias discursivas extraídas de sitios
de fans organizados. Los resultados apuntan a la heterogeneidad de la identidad
del aficionado organizado, ya que la identidad atraviesa las representaciones que
cada uno tiene de sí mismo y del otro, por el discurso transversal y por el despla-
zamiento de la posición del sujeto. Se concluye que la construcción de la identi-
dad va más allá de las representaciones imaginarias, debido a la pertinencia de
los elementos constitutivos del proceso discursivo.
Palabras clave: Identidad. Formaciones imaginarias. Partidario organizado. Habla.

Data de submissão: 27/02/2020


Data de aceite: 07/06/2020

1. Torcida organizada para além do seu discurso

Há décadas, as mídias vêm fomentando o discurso do futebol como a pai-


xão nacional, alcançando a maior parte dos jovens que elegem o futebol seu esporte
preferido devido à popularidade desse evento. A partir da década de 1970, houve no
Brasil uma tendência à formação de torcidas organizadas com o objetivo de animarem
as partidas de futebol. Segundo Máximo Pimenta (2003), a partir dos anos 1980, o

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Formações imaginárias: a imagem de si e do outro
em torcidas organizadas de futebol em redes sociais na internet

comportamento do torcedor nos estádios de futebol mudou consideravelmente. Essa


mudança deveu-se ao surgimento de uma nova categoria de torcedor: o torcedor or-
ganizado. Com o advento massivo de torcidas organizadas, surgem, em Pernambuco,
nas décadas de 1980/90, as torcidas organizadas: do Náutico (Torcida Organizada
Jovem Fanáutico - 1984) cujo lema é “Atitude e Disciplina”; do Santa Cruz (Torcida
Organizada Inferno Coral - TOIC - 1992) que traz como lema “União e Força”; e do
Sport (Torcida Jovem do Sport - TJS - 1995) que tem como lema, “Com o Sport pro
que der e vier”. Essas torcidas organizadas emergiram pela necessidade dos jovens ocu-
parem um lugar social, por uma questão de identidade que caracteriza essa geração de
torcedores organizados.
Vemos em noticiários de TV, revistas e jornais que esses torcedores em seus
lemas e discursos nutrem sentimentos de paixão, lealdade e fidelidade por seus times.
Na mídia digital, na internet, tem-se percebido no discurso dos torcedores
organizados que as torcidas existem com a finalidade de incentivar o clube de seu
time, animar as partidas de futebol e promover a paz nos estádios; no entanto, para
o outro, aqui representado pelos jornalistas de futebol e torcedores não organizados,
doravante, torcedores, o discurso tem sido diferente. Nos estádios, a promoção da
paz e do amor tem sido trocada por atitudes de violência, gerando certo desconforto
para os torcedores e a sociedade em geral, tal qual registram as mídias de comunica-
ção de massa, especificamente nas mídias que circulam na Internet.
Neste estudo, a partir de sequências discursivas, extraídas de sites de torcidas
organizadas, entre outros disponíveis na Internet, destacaremos o discurso dos tor-
cedores organizados e o discurso do outro (jornalistas, torcedores), com o objetivo
de analisar a construção identitária de membros de torcidas organizadas, conceben-
do o sujeito descentrado, heterogêneo, perpassado por vozes que provocam identifi-
cações de toda a sorte (CORACINI, 2003). Identificações que se projetam a partir da
imagem que cada um tem de si e do outro. Para tanto, usaremos o conceito de forma-
ções imaginárias, por designar o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro,
isto é, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro, acrescido
do conceito de identidade na perspectiva da Análise do Discurso pecheutiana.

2. A rede das formações na constituição da identidade

As formações ideológicas são constituídas por um conjunto complexo de


atitudes e representações que não são individuais nem universais, mas se relacio-
nam por meio das posições de classes em conflito umas com as outras (PÊCHEUX;
FUCKS, 1975). Tais formações não constituem a maneira de ser dos indivíduos, mas
se organizam mantendo entre si relações antagônicas, de alianças ou de dominação.
Essas formações caracterizam-se como um elemento de intervenção, como
uma força de confronto com outras forças que, de maneira desigual, coloca em jogo
práticas associadas a lugares ou relações de lugares que remetem a relações de clas-
ses quer econômica, quer não econômica. Essas reproduções das relações de classes

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.59-71, 2020 61


Luiz Carlos Carvalho de Castro

são asseguradas pela existência de realidades complexas, denominadas por Althusser


como “aparelhos ideológicos de Estado” (PÊCHEUX; FUCKS, 1975, p.166). A ideolo-
gia em Althusser é entendida como uma relação imaginária que os homens mantêm
com as suas condições reais de existência. Nessa relação de confronto e força entre
sujeitos e sociedade, podem-se inserir, no mecanismo de formação ideológica, os
Aparelhos Ideológicos de Estado - o religioso, o escolar, o familiar, o jurídico, o político,
o sindical, o de informação, o de entretenimento, o de clube de futebol, etc. Esses apa-
relhos ideológicos asseguram a difusão da ideologia da classe dominante, interpelam
o indivíduo em sujeito e o colocam em uma determinada posição.
As formações imaginárias são mecanismos discursivos decorrentes das rela-
ções de força, de confrontamento entre as classes que surgem no interior de uma for-
mação ideológica.
O conceito dessas formações foi previsto por Pêcheux (1975) ao definir na
AAD-69 os diferentes elementos estruturais das condições de produção do discurso.
Pêcheux determinou de início que os elementos estruturais A e B designam algo di-
ferente de presença física, ou seja, diferente de indivíduos empíricos. Tais elementos
designam lugares determinados na estrutura de uma formação social, porém para a
Análise do Discurso nos processos discursivos, o que funciona é uma série de forma-
ções imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro,
a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. No discurso das
torcidas organizadas, esses lugares, são representados pelos discursos dos torcedores
organizados, dos torcedores comuns, da sociedade e dos jornalistas. Diz respeito a
um jogo de imagens: dos interlocutores entre si, dos interlocutores com os lugares
que ocupam na formação social e dos discursos já-ditos com os possíveis e imagina-
dos. Sobre o exposto, Grigoletto (2005) afirma que “as condições de produção de um
discurso envolvem não só as formas imaginárias, mas todo processo sócio-histórico e
ideológico no qual um discurso é produzido, a partir de determinados lugares sociais”.
Assim, compreendemos que as formações imaginárias definem as posições
que o sujeito pode ou deve ocupar no discurso, desde que seu discurso esteja inscrito
numa certa formação discursiva, uma vez que uma formação discursiva é a mani-
festação, no discurso, de uma determinada formação ideológica. Essas posições são
definidas a partir das posições, lugares que os sujeitos ocupam no contexto social,
inscrita numa certa formação ideológica, como forma de antecipação, das relações de
forças e sentido.
A antecipação é um elemento constitutivo das formações imaginárias que me-
rece destaque, pois antecipadamente, o locutor “A” projeta uma representação imagi-
nária de seu interlocutor “B” e vice-versa, logo, a partir das imagens pré-construídas,
as estratégias discursivas vão sendo estabelecidas e os efeitos de sentido constituídos.
Grigoletto (2005), em sua tese, observa a importância do mecanismo de ante-
cipação proposto pelas formações imaginárias, na constituição do sentido, tendo em
vista que elas irão direcionar as posições que os interlocutores ocuparão no discurso.
Esse mecanismo regula a argumentação, de modo que o sujeito discursiviza de um

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Formações imaginárias: a imagem de si e do outro
em torcidas organizadas de futebol em redes sociais na internet

modo ou de outro, segundo o efeito de sentido que o locutor pensa produzir em seu
interlocutor (ORLANDI, 1999).
Nesse sentido, a antecipação funciona como elemento de regulação dos efeitos
de sentido no processo discursivo, em uma formação discursiva. Certamente que os
membros de torcidas organizadas projetam imagens de si e do outro, aqui representa-
do pelo adversário, torcedor comum, um cidadão, um jornalista.
A partir do reconhecimento do lugar social que o outro ocupa numa certa for-
mação social, emergem as relações de força, outro elemento crucial para a constituição
das formações imaginárias; tão importante quanto as antecipações, esse elemento in-
tervém no processo de formações imaginárias, assim como na constituição do sentido
(GRIGOLETTO, 2005). Desse modo, quando um torcedor organizado fala com outro
torcedor organizado do seu clube, ele fala diferente, de que se falasse com um torcedor
organizado do clube adversário, a depender do grau de confrontamento do discurso.
Portanto, é nessas relações de força, constituída a partir das posições, dos lu-
gares, que se instaura o discurso, produzindo-se os efeitos de sentido numa relação
interdiscursiva. Lembro que o sujeito é interpelado ideologicamente, assumindo, sem
se dar conta, uma posição-sujeito a partir de sua inscrição em uma dada formação
discursiva. No caso em estudo, na formação discursiva da torcida organizada.
Acrescente-se ainda outro elemento de igual importância para as formações
imaginárias, as relações de sentido. Elas pressupõem uma relação interdiscursiva, tan-
to para já-ditos como para os dizeres futuros (GRIGOLETTO, 2005). Não há ponto
inicial, nem ponto final para o discurso. O discurso mantém sempre relação com ou-
tros discursos realizados, imaginados e possíveis (ORLANDI,1999).
Dessa feita, compreendemos que é na rede das formações imaginárias que a
identidade do sujeito se constitui.

3. Sujeito e identidade

Na Análise do Discurso (AD), a forma sujeito do discurso é ideológica, é efeito


das formações discursivas, é resultante da relação língua e história; não é empírico,
não é psicológico, não é fonte única do sentido, tampouco elemento em que se origina
o discurso. Logo, o sujeito é assujeitado pela ideologia, pois ocupa um lugar a partir
de uma dada formação ideológica e tem seu discurso constituído por meio de uma ou
várias formações discursivas. Vimos no tópico anterior, que é na rede das formações
imaginarias que o sujeito discursivo é pensado como posição, pois é a partir da posi-
ção que ocupa que se constitui sujeito de seu discurso. “Podemos agora precisar que a
interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do
sujeito) com a formação discursiva que o domina” (PÊCHEUX, 1997, p. 163).
Para se falar em identidade na perspectiva da AD, deve-se salientar que esse
conceito é afetado pela dimensão ideológica e histórica do dizer, que se constrói na lín-
gua e através dela. Assim, por ser a língua flexível e em constante processo de evolução,
não se pode conceber uma identidade fixa do sujeito (GRIGOLETTO, 2005 p. 126).

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Luiz Carlos Carvalho de Castro

Pêcheux (1997), em Semântica e Discurso, ao tratar da forma-sujeito, a partir


da relação de desdobramento do sujeito do enunciado (responsável pelo dito) e do
sujeito universal (saber da ciência), estabelece as diferentes modalidades que definem
a posição sujeito na formação discursiva que o domina. A partir desses movimentos
de identificação com a formação discursiva é que se pode na AD pensar a constituição
da identidade.
A primeira modalidade (identificação) consiste em uma superposição entre o
sujeito da enunciação e o sujeito universal, isto é, uma livre aceitação do sujeito do
discurso com a forma-sujeito da Formação Discursiva (FD). Afirma Indursky (2000,
p.73): “trata-se de uma identificação plena do sujeito do discurso com a forma-sujeito
da FD que afeta o sujeito”.
Nesse sentido, a “tomada de posição” do sujeito realiza seu assujeitamento sob
a forma do “livre consentido”, ou seja, de livre e espontânea vontade, caracterizando o
discurso do “bom sujeito” que vai ao encontro da formação discursiva que o domina
(PÊCHEUX, 1997, p. 215).
A segunda modalidade (contraidentificação) consiste em uma divisão que pro-
duz distanciamento, dúvida, questionamento, contestação e revolta contra o pensa-
mento do sujeito universal (PÊCHEUX, 1997). Representa o discurso do “mau sujeito”
pelo fato do sujeito se voltar contra o sujeito da FD por meio de uma “tomada de po-
sição”. Enfim, esse sujeito, “mau sujeito”, “mau espírito” se contraidentifica com a FD
que lhe é imposta, mesmo não rompendo com essa FD.
A terceira modalidade (desidentificação) surge em contrapartida às duas pri-
meiras modalidades subjetivas da forma-sujeito por meio dos movimentos de identi-
ficação e contra-identificação do sujeito com a FD que o domina. Nessa modalidade
de desidentificação do sujeito com a FD, há assim um rompimento do sujeito com a
FD que lhe foi imposta. Segundo Pêcheux (1997, p. 217), “o funcionamento dessa mo-
dalidade constitui um trabalho (transformação-deslocamento) da forma sujeito e não
sua pura e simples anulação”.
A partir desses desdobramentos e deslocamentos a forma-sujeito não pode
mais ser vista pelo viés da unicidade, os movimentos de identificação, contraidenti-
ficação e desidentificação, a forma-sujeito passa a ser percebida como heterogênea
(GRIGOLETO, 2005, p.130).
Assim, entendemos que esses movimentos são constitutivos da identidade que
vai constituindo-se de forma heterogênea a partir de uma FD que domina o sujeito.

4. Da teoria à prática: análise da constituição da identidade de


torcedores organizados

Nossa análise parte de sequências discursivas (SDS) extraídas de site de torci-


das organizadas3 disponíveis na Internet. Parte-se do pressuposto de que os torcedores
organizados pensam ser criadores de seus discursos, fonte de origem dos sentidos,

3
TOIC - Torcida organizada Inferno Coral – Disponível em: https://www.facebook.com/grtoicoficial acessada
em: 18/mai/2014.

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Formações imaginárias: a imagem de si e do outro
em torcidas organizadas de futebol em redes sociais na internet

não se dando conta de que, ao produzirem tais discursos, estão assujeitados a uma ou
várias Formações Discursivas (FDs). É no interior das FDs que os sujeitos interpelados
ideologicamente inscrevem seu discurso, ocupando determinadas posições, lugares na
conjuntura social. Esses lugares, essas posições que nos remetem a relações de classe
(poder) se caracterizam pelo afrontamento de posições políticas e ideológicas, organi-
zados em formações que mantêm entre si, relações de antagonismo, de aliança ou de
dominação (PÊCHEUX; FUCHS, 1975).
Pêcheux parte da hipótese de que esses lugares estão representados nos proces-
sos discursivos em que são colocados em jogo, não como feixe de traços objetivos, mas
sim transformados, como representações imaginárias. Essa hipótese o leva a concluir
que “o que funciona nos processos discursivos (formações discursivas) é uma série
de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si
e ao outro, a imagem que eles se fazem seu de próprio lugar e do lugar do outro”(PE-
CHEUX, 1997, p. 82).
Para esse autor, o discurso é “efeito de sentido entre os pontos A e B”, em que
os pontos A e B diferentemente de sujeitos empíricos, representam lugares, posições
sociais que estabelecem relações entre interlocutores.
A análise será guiada à luz de um dos fatores das condições de produção do
discurso: o jogo de imagens. Tomarei como modelo o esboço sugerido por Pêcheux
(1997, p. 83) para analisar como a posição (as imagens de si e do outro) dos membros
de torcidas organizadas interfere na constituição da identidade.

Tabela 1: Formações discursivas dos torcedores organizados e comuns.

Expressão que Questão implícita cuja


designa as formações Significação da expressão “resposta” subentende a formação
imaginárias Imaginária correspondente

Imagem do lugar de A para o


“Quem sou eu para lhe falar assim?”
I
A(A) sujeito colocado em A

Imagem do lugar de B para o “Quem é ele para que eu lhe fale


I
A(B)
sujeito colocado em A assim?”

Imagem do lugar de B para o “Quem sou eu para que ele me fale


I
B(B)
sujeito colocado em B assim?”

Imagem do lugar de A para o


I
B(A) “Quem é ele para que me fale assim?”
sujeito colocado em B

Fonte: Elaboração própria.


Nota: A – o torcedor organizado.
B – o outro (torcedor comum, jornalista, cidadão).

Sabemos que os discursos são enunciados a partir de uma ou várias formações


discursivas, as quais determinam “o que pode e o que deve ser dito a partir de uma

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Luiz Carlos Carvalho de Castro

dada posição”. Essas posições, das quais dependerá o sentindo das palavras, estabele-
cem relações de poder assimétricas, de acordo com a posição de onde se fala.
Neste artigo, concebe-se o discurso como efeito de sentido entre os inter-
locutores aqui representados pelos torcedores organizados e o outro torcedor co-
mum, jornalista.

4.1. O torcedor organizado: a imagem que tem de si

SD1 - É tudo nosso! A maior, a mais apaixonada! Somos supe-


rior.. ___T___

SD2 - a maior do nordeste tudo nosso... ♥ ‘.

SD3 - Queria q voltasse a ser a mesma TOIC de antes. Sem


bairrismo, falta de respeito entre componentes. Cadastramen-
to é importante, sempre bati nesta tecla. Ainda tenho minha
carteirinha de sócia componente daí, bons tempos que não me
arrependo. Já q o poder público não resolve, vamos tentar or-
ganizar a casa.

SD4 - Inferno vamos se inteligente chama os reporteres da uma


coletiva dizendo que a inferno coral não aceita esse tipo de ati-
tude e expulsa os 3 vandalos.

A partir dos movimentos de identificação e contraidentificação com a for-


mação discursiva é que se pode, na AD, pensar a constituição da identidade. As
Sequências Discursivas (SDs) 1 e 2 mostram a constituição da identidade dos tor-
cedores organizados por meio do movimento de identificação que ambos têm com
a formação discursiva que os domina: Torcida Organizada, como movimento de
jovens torcedores, cujo discurso é de superioridade e superestima. Já nas SDs. 3 e
4, o movimento é de contraidentificação, pois a TOIC já não é como antes, devido
à rivalidade entre as torcidas e à falta de respeito entre seus próprios membros e a
violência. Esses movimentos colocam em “xeque” a quebra da unicidade tanto do
discurso quanto da identidade devido ao deslocamento da posição-sujeito do tor-
cedor organizado. Confirmando assim, o que já observara Grigoletto (2005), que
“na trama das formações imaginárias, tomada sob uma perspectiva discursiva, há
lugar para diferentes e, algumas vezes, até contraditórias representações”.

SD5 - Queremos ver todos os componentes nessa ação social, todos


estão convidados.

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Formações imaginárias: a imagem de si e do outro
em torcidas organizadas de futebol em redes sociais na internet

Figura 1: Cartaz da Campanha “Doação de Sangue da TOIC”.

Fonte: https://www.facebook.com/grtoicoficial.

SD6 - Vamos lá, todos os membros são solidários, Inferno Coral


fazendo o bem sem olhar a quem!

Figura 2: Cartaz da Ação Social de Inverno.

Fonte: https://www.facebook.com/grtoicoficial.

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Luiz Carlos Carvalho de Castro

SD7 - Nem todos nós temos o mesmo tempo / Doe vida -


Doe Sangue

Figura 3: Cartaz da Campanha Doe Vida - Doe Sangue.

Fonte: https://www.facebook.com/fanautico.com.br.

As SDs. 5, 6 e 7 apresentam o discurso assistencialista, atravessado por discursos


de outras FDs, tais como o discurso religioso “fazei bem aos que vos odeiam” (LUCAS
6, p. 27); e do dito popular “fazei o bem sem olhar a quem”. Esses interdiscursos são
constitutivos do discurso, onde todos os dizeres/saberes circulam (GRIGOLETTO,
2005). É notório do discurso do torcedor organizado que o fazer o bem pode calar
a boca de outros que os descrevem como pessoas do mal, pelo simples fato de ser
membro de uma torcida organizada. O discurso solidário segue com a torcida da
FANAUTICO na SD7.

SD8 - Nas torcidas organizadas tem muito pra ser mostrado,


como campanhas de doação de sangue, de alimentos, de aga-
salhos; Pessoas que largam tudo para se dedicar somente a sua
torcida, para fazer ela ficar cada vez melhor, torcedores brancos,
negros, adolescentes, jovens , idosos, homens, mulheres, brasi-
leiros ou não que se reunem em prol de todos sem nenhum tipo
de preconceito por credo, raça ou cor. Mas isso a “globo” não
mostra, ela só quer mostrar o lado ruim para botar todos contra
nós integrantes de torcida organizada.

Na SD8, o torcedor organizado em seu discurso fala do sujeito do bem que o


membro de uma torcida organizada é aquele que também pratica ações sociais, mas
que a mídia não mostra, antes, só mostra o lado ruim, com a finalidade de promover a
discórdia entre os torcedores organizados e o resto da população.

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Formações imaginárias: a imagem de si e do outro
em torcidas organizadas de futebol em redes sociais na internet

4.2. O torcedor organizado: a imagem que o outro tem dele

O torcedor organizado constrói de si mesmo uma imagem e, além disso, cons-


trói a imagem que o outro tem dele, antes mesmo da enunciação, mas é na prática
discursiva que essas projeções se constituem produzindo efeitos de sentido. Essas pro-
jeções, denominamos de antecipação, elemento constitutivo das formações imaginá-
rias que leva o locutor a projetar uma representação imaginária de seu interlocutor e
ainda a imagem que ele pensa representar para seu interlocutor. Tendo em vista que
as antecipações direcionarão as posições que os interlocutores ocuparão no discurso
(GRIGOLETTO, 2005).

SD94 - Sabemos que somos mal vistos, que somos vistos


como margionais, bandidos e desocupados, só que muita
gente não sabe o trabalho de uma organizada, não sabem
de nossa realidade e assim como em todo meio onde há a
convivência entre pessoas existem pessoas de má indole e
desonestas, mais existem também aquelas pessoas que
lutam pela sua sobrevivência e seu reconhecimento através
de seu trabalho [...].

SD105 - Essas porcarias de “torcidas” organizadas não acrescen-


tam nada aos seus respectivos clubes. Aliás é um monte de va-
gabundo que vive faturando dinheiro com a venda de materiais,
explorando o nome e a imagem do clube. Tá na hora de nós,
torcedores do bem, acabarmos com esses vermes.

Pelo mecanismo de antecipação, o torcedor organizado descreve a si mesmo a


partir do que ele imagina representar para o outro, com a finalidade de contra-argu-
mentar o discurso do outro. A partir da projeção da imagem do bom sujeito que luta
para sobreviver e trabalha (SD-9), pois, é assim que o torcedor organizado também
pode ser visto. Na (SD-10) o torcedor comum, representa a si e aos outros torcedores
comuns como “torcedores do bem” capazes de dar fim à violência.
Desse modo, o torcedor organizado na SD-9, e o torcedor comum na SD-10
regulam seu argumento, discursivizando, de um modo ou de outro, segundo o efeito
de sentido que o locutor pensa produzir em seu interlocutor, a fim de produzir efei-
tos de sentido que projetem o torcedor do bem para seus interlocutores (ORLANDI,
1999). Além disso, atente-se para os deslocamentos feitos inconscientemente pelos
torcedores que ora assumem o discurso do outro, contraidentificando-se com a FD
que os domina, ora identificam-se projetando o torcedor do bem que luta pela me-
lhoria do seu clube.
4
http://www.organizadasbrasil.com/papo-reto.
5
Fonte: http://blogs.diariodepernambuco.com.br/esportes/2014/02/22/o-dia-em-que-a-organizada-foi-
-vaiada-pela-verdadeira-torcida-do-sport/.

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Luiz Carlos Carvalho de Castro

É por meio dos deslocamentos que vão sendo projetadas as imagens do bom
e mau torcedor, constitutivas do torcedor organizado que, inconscientemente, en-
contra-se interpelado ideologicamente e inscreve-se como sujeito em uma formação
discursiva que o domina, ora identificando-se com ela, ora contraidentificando-se,
constituindo, assim, a identidade do torcedor organizado

5. Considerações finais

Este trabalho tratou das formações imaginárias na perspectiva pecheutiana


com o objetivo de investigar as construções identitárias de torcidas organizadas, a par-
tir de sequências discursivas extraídas da internet. As sequências discursivas (SDS)
analisadas desvendaram a complexidade da constituição da identidade dos torcedores
organizados que se inicia com as formações imaginárias, ponto de partida neste estu-
do. Nas SDS. (1, 2, 3 e 4), a identidade dos torcedores organizados foi pensada a partir
do movimento de identificação e contraidentificação a partir das diferentes posições-
-sujeito do torcedor organizado, confirmando a heterogeneidade constitutiva do sujei-
to. Na continuidade das análises, as SDS. (5, 6, 7 e 8) apontaram para uma identidade
constituída a partir do atravessamento dos discursos de outras Formações Discursivas.
Os argumentos para projetar a imagem do torcedor do bem passaram pelos discursos
assistencialista e religioso com a finalidade de produzir um efeito de sentido no inter-
locutor que passa a visualizar a torcida organizada por uma ótica diferente daquela
apresentada pela mídia, que só projeta o “torcedor do mal”.
Já nas SD 9 e 10, as representações imaginárias assumem a responsabilidade
total a partir da imagem que o outro tem do torcedor organizado e a imagem que o
torcedor organizado pensa representar para o seu interlocutor, ativando o mecanismo
de antecipação que não só é constitutiva da identificação, como também da produção
do sentido, gerando efeitos de sentidos entre os interlocutores.
Assim, tecemos a trama da construção da identidade de torcedores organiza-
dos, seguindo uma trajetória que vai desde as formações imaginárias, passando pelo
discurso transverso e pelo deslocamento da posição-sujeito, ratificando a heterogenei-
dade na construção identitária.

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Formações imaginárias: a imagem de si e do outro
em torcidas organizadas de futebol em redes sociais na internet

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ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campi-
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Relação entre Política urbana e habitacional:
instrumentos urbanísticos em apoio ao provimento
da habitação social sustentável
Relationship between urban and housing policy: urbanistic instruments
in order to support the provision of sustainable social housing
Relación entre política urbana y política de vivienda: instrumentos
urbanos para apoyar la provisión de vivienda social sostenible

Cristina Maria Correia de Melo1


Maria do Carmo de Lima Bezerra2

Resumo
MELO, C. M. C. de.; BEZERRA, M. do C. de L. Relação entre Política urbana e habitacional:
instrumentos urbanísticos em apoio ao provimento da habitação social sustentável. Rev. C&Trópico,
v. 44, n. 1, p. 73-99, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art4
O acesso à habitação é condição básica para a conquista do direito à cidade sus-
tentável, disposto no Estatuto da Cidade, norma balizadora dos Planos Diretores
Urbanos no país. O tema tem ocupado pouco espaço na literatura urbanística so-
bre sustentabilidade, dando a entender que o provimento de moradia, seja em que
condição ocorra, já constituiria um atributo de sustentabilidade da cidade. O es-
tudo visa verificar o grau de sinergia entre as decisões de política urbana e política
habitacional para alcance da cidade sustentável. Utiliza como método a identifica-
ção dos atributos espaciais do modelo de cidade resiliente e cidade compacta para
verificar, entre os instrumentos do Estatuto da Cidade, quais apoiariam decisões
de localização de habitação na estrutura urbana, de modo que tais atributos fossem
alcançados. Como estudo empírico se tomou a aplicação dos instrumentos: Zonas
Especiais de Interesse Social - ZEIS de vazio; Operações Urbanas Consorciadas -
OUC e Outorga Onerosa do Direito de Construir – OODC para verificar como
eles dialogaram com o provimento de habitação de interesse social. Os resultados
sugerem que o grau de integração entre instrumentos de política urbana e política
habitacional são muito baixos e que as decisões de provimento da habitação visam
apenas dados quantitativos não estando em pauta a estruturação sustentável do
tecido urbano.
Palavras-chave: Habitação de Interesse Social. Habitação sustentável. Cidade sustentável.

1
Doutoranda no Programa de Pós Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
Brasília, área Projeto e Planejamento. Analista de Planejamento Urbano e Infraestrutura da Secretaria de Estado
de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Distrito Federal. E-mail: cristina.mello.cmc@gmail.com Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-1153-9899
2
Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas (USP). Professora Associada IV da Universidade de Brasília atuan-
do no Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade de Brasília. E-mail: mdclbezerra@gmail.com Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-7736-5265

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Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

Abstract
MELO, C. M. C. de.; BEZERRA, M. do C. de L. Relationship between urban and housing policy:
urbanistic instruments in order to support the provision of sustainable social housing. Rev. C&-
Trópico, v. 44, n. 1, p. 73-99, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art4
The access to housing is a basic condition for the achievement of the right to a sus-
tainable city, and is laid down in the “Estatuto da Cidade” (city statute), a guide-
line for Urban Master Plans in the country. The theme has occupied little space in
the urban literature on sustainability, suggesting that the provision of housing, in
whatever condition occurs, would already constitute an attribute of sustainability
in the city. The study aims to verify the degree of synergy between urban policy
and housing policy decisions to reach a sustainable city. It uses as a method the
identification of the spatial attributes of the model of resilient city and compact
city to verify, among the instruments of the “Estatuto da Cidade”, which would
support decisions of housing location in the urban structure, so that such attri-
butes were achieved. As an empirical study, the application of the instruments
was taken: Special Areas of Social Interest (ZEIS de vazios); Consortium Urban
Operations (OUC) and Onerous Grant of the Right to Build (OODC) to verify
how they dialogued with the provision of social housing. As a result, it was found
that the degree of integration between urban policy and housing policy instru-
ments is very low and that decisions to provide housing are aimed only at quanti-
tative data, and the sustainable structuring of the urban city is not on the agenda.
Keywords: Interest Housing. Sustainable housing. Sustainable city.

Resumen
MELO, C. M. C. de.; BEZERRA, M. do C. de L. Relación entre política urbana y política de vivienda:
instrumentos urbanos para apoyar la provisión de vivienda social sostenible. Rev. C&Trópico, v. 44,
n. 1, p. 73-99, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art4
El acceso a la vivienda es una condición básica para lograr el derecho a una ciudad
sostenible, como se establece en el Estatuto de la Ciudad, una norma rectora para
los Planes Maestros Urbanos en el país. El tema ha ocupado poco espacio en la
literatura urbana sobre sostenibilidad, lo que sugiere que la provisión de vivienda,
cualquiera que sea la condición, ya constituiría un atributo de sostenibilidad en la
ciudad. El estudio tiene como objetivo verificar el grado de sinergia entre la política
urbana y las decisiones de política de vivienda para llegar a una ciudad sostenible.
Utiliza como método la identificación de los atributos espaciales del modelo de ciu-
dad resiliente y ciudad compacta para verificar, entre los instrumentos del Estatuto
de la Ciudad, lo que respaldaría las decisiones de ubicación de la vivienda en la
estructura urbana, para que dichos atributos se lograran. Como estudio empírico,
se tomó la aplicación de los instrumentos: Zonas especiales de interés social - ZEIS
de vacío; Operaciones urbanas del consorcio - OUC y Onerous Grant of the Right to
Build - OODC para verificar cómo dialogaron con la provisión de viviendas socia-
les. Los resultados sugieren que el grado de integración entre la política urbana y los

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Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

instrumentos de política de vivienda es muy bajo y que las decisiones de proporcio-


nar vivienda apuntan solo a datos cuantitativos y que la estructuración sostenible
del tejido urbano no está en la agenda.
Palabras clave: Vivienda de Interés Social. Vivienda sostenible. Ciudad sostenible.

Data de submissão: 07/02/2020


Data de aceite: 24/04/2020

1. Introdução

A concepção de desenvolvimento urbano esteve vinculada, desde sua origem,


à promoção da melhoria da vida dos habitantes da cidade, entendida como o aces-
so a serviços que garantissem sua saúde e promoção social e econômica. A ideia de
proteção ambiental e a qualidade do espaço urbano produzido, para fazer frente a
integração social, ganhou maior relevância a partir da década de 1980, quando o con-
ceito de sustentabilidade passou a fazer parte das discussões sobre o urbano. Nesse
contexto, se passa a discutir os atributos da cidade sustentável associando a aprego-
ada qualidade de vida da população à qualidade ambiental, demandando práticas de
planejamento urbano que articulem a funcionalidade da cidade, antes determinante,
com a integração social e preservação do meio ambiente. (RUEDA, 2000; ROGERS;
GUMUCHDJIAN, 2001).
O acesso à habitação, um dos componentes da estrutura urbana, é condição
básica para a conquista do direito à cidade, conceito que é valido tanto no modelo de
planejamento tradicional quanto no sustentável. Entretanto, direito à cidade possui
conotação diferente nos dois modelos, um se refere à propriedade da terra e o outro
ao acesso à moradia que promova condições de acessibilidade aos serviços e oportu-
nidade que a urbanidade pode conferir a seus habitantes. O tema, assim colocado, tem
ocupado pouco espaço na vasta literatura urbanística sobre sustentabilidade, o que
tem levado à manutenção das antigas práticas de provimento da habitação, mesmo por
agentes técnicos e institucionais que propagam como orientação a sustentabilidade das
políticas públicas urbanas.
Observa-se que, na maioria das cidades, a política habitacional é tratada de
forma dissociada da política urbana, sem o estabelecimento de uma relação entre os
instrumentos de gestão da cidade e sua capacidade de facilitar ou dificultar a localiza-
ção habitacional dotada de atributos que propiciam melhor qualidade de vida e am-
biental às cidades. A política habitacional promovida pelos programas governamentais
é entendida como uma edificação em sua condição de abrigo, sem discussão sobre sua
inserção urbana.
A visualização dessa contradição se encontra nas recentes experiências de pro-
gramas habitacionais no Brasil3, onde se reproduz a prática já vivenciada na década

3
Atualmente no Brasil a habitação social é provida por meio do Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV
do Governo Federal, que vem sendo implantado desde 2009 de acordo com a Lei n° 11.977/2009.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 75


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

de 1970, com a construção de conjuntos habitacionais segregados da estrutura urbana


consolidada, gerando um tecido urbano fragmentado, disperso, com exclusão social
da população de baixa renda.
É certo que a habitação pode ser discutida a partir de vários pontos de vista: da
participação social com garantias de que contextos culturais distintos sejam preserva-
dos; dos meios de financiamento que promovam equidade social; dos sistemas cons-
trutivos para atribuir salubridade e segurança, mas a abordagem que aqui se coloca
é o da estruturação urbana que proporcione vivências de urbanidade e de qualidade
ambiental ao conjunto da cidade, ou em outras palavras, uma abordagem com a visão
do ordenamento territorial urbano que possui na localização habitacional sua mais
forte manifestação. Assim, dentro dessa perspectiva, a discussão aqui procedida se dá
sobre a forma de provimento da habitação de interesse social e sua contribuição para
promover a cidade sustentável4.
A leitura a ser realizada considera as características de cidade resiliente e
compacta como aquelas que sintetizam um conjunto de atributos espaciais que cor-
roboram a ideia de sustentabilidade por meio de instrumentos urbanísticos que nos
apresenta o Estatuto da Cidade. Esses podem ser adotados pelos Planos Diretores de
Ordenamento Territorial em favor de uma estrutura urbana com as qualificações es-
paciais que permitam o provimento de uma moradia sustentável pelos programas ha-
bitacionais. Por fim, visa verificar até que ponto está ocorrendo uma articulação entre
política urbana e política habitacional se colocando a moradia como estruturante do
espaço urbano.

2. Metodologia (material e método)

Para enfrentar o tema, parte-se do estudo sobre alguns conceitos que definem
as características das cidades sustentáveis, com o intuito de identificar as recorrências
de atributos no que se refere à estrutura espacial da cidade. A revisão bibliográfica
destacou as características dos modelos de cidades resilientes e de cidades compactas
como os que melhor expressam a espacialidade da ideia de sustentabilidade e viabi-
lizam um diálogo com as ações de natureza próprias do planejamento urbano. Nas
cidades, respondem aos aspectos necessários para o alcance da qualidade de vida e
ambiental, considerando como base da pesquisa bibliográfica autores como Bezerra
(2018); Ribas (2003); Rogers e Gumuchdjian (2001); Sachs (2002); Santos e Hardt
(2013); e Tudela (1997).
Em seguida, foram estudados os instrumentos urbanísticos do Estatuto da
Cidade com o objetivo de identificar as correlações, entre o que possibilita em termos
de estruturação urbana, para alcance dos atributos antes identificados. Essas corres-
pondências foram capazes de auxiliar na obtenção de uma localização para a habitação
de interesse social que responda a sustentabilidade da cidade e da habitação. As infor-
mações encontradas foram sistematizadas em quadros de análise com o intuito de,

4
Estatuto da Cidade - Lei n° 10.257/2001, Art. 2°, inciso I e Lei n° 11.124/2005, Art.2°, inciso I.

76 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020


Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

tanto apoiar a avaliação, quanto subsidiar novas configurações urbanas promotoras de


moradia sustentável.
De posse do resultado dessa base teórica, se procedeu a uma leitura da estra-
tégia de promoção de habitação social, verificando se os instrumentos urbanísticos
adotados foram capazes de viabilizar a moradia e a estrutura urbana desejável. Os
estudos se referem a casos de adoção de diferentes instrumentos, dentre os identifica-
dos, em diferentes contextos urbanos, que são apresentados com o intuito de exempli-
ficar as possibilidades e dificuldades de articular política urbana com a habitacional.
Foram utilizados como exemplos os instrumentos ZEIS de vazio, Operação Urbana
Consorciada e Outorga Onerosa do Direito de Construir.

3. Referências conceituais e analíticas

A associação da noção de sustentabilidade ao debate sobre desenvolvimento


das cidades tem origem nas rearticulações políticas de atores envolvidos na produ-
ção do espaço urbano. Nesse contexto, desenvolvem-se várias linhas de abordagem
da sustentabilidade urbana, algumas de cunho social e ecológico, as quais visavam a
responder às iniquidades que fizeram o planejamento ser desacreditado, dado o déficit
socioambiental da urbanização.
As marcas da ênfase do planejamento tradicional se encontram nas ações pro-
postas e, também, no que impediu de ser feito em função do modelo de conceber ci-
dades, idealizado e rígido em suas origens funcionalistas. As consequências podem ser
visualizadas na dispersão urbana que gera impactos sobre a base de recursos naturais,
amplia os custos de urbanização e de sua manutenção e gera espaços sem urbanidade.
No caso dos países de urbanização desigual, que não podem pagar por esses custos,
gerou cidades constituídas por periferias, sem infraestrutura e serviços, formadas por
assentamentos irregulares e/ou conjuntos habitacionais de baixa renda promovidos
pelo Estado.

3.1. Atributos da cidade e da habitação sustentável

A concepção de cidade sustentável, do ponto de vista do ordenamento territo-


rial, inclui a busca por uma forma urbana que possua um conjunto de características
que possa ser facilitadora da integração social e capaz de gerar menor pressão sobre
os recursos naturais e financeiros da sociedade. Tudo associado à participação social e
adequações das soluções às especificidades dos lugares.
Dentro dessa perspectiva, cabe discutir as qualificações que uma habitação sus-
tentável deve possuir para que se alcancem cidades sustentáveis, uma vez que esse é o
componente da estrutura urbana que ocupa mais de 70% da cidade. Até o momento,
pelo que foi apontado, parece que a visão predominante tem sido de que, prover mo-
radia, seja em que condições ocorram, já atenderia a necessidade habitacional e, por
decorrência, os objetivos de sustentabilidade estariam sendo alcançados.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 77


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

Os estudos teóricos sobre sustentabilidade indicam que as características ne-


cessárias para a criação de habitações mais sustentáveis, ou seja, aquela que conside-
ra a inserção da habitação no seu espaço urbano, deve levar em consideração novos
arranjos de uso e ocupação do solo urbano. As diferentes correntes apontam para o
desenvolvimento de diferentes formas urbanas. Newton (2000) apresenta cinco tipos
de configurações: fringe cities, corridor cities, edge cities, compact e dispersed cities5.
Porém, de acordo com Costa (2007), é em torno da generalização dos termos cidade
compacta e cidade dispersa que a discussão ganhou relevância na década de 1980,
quando começaram a se estabelecer relações entre a morfologia urbana e qualidade
de vida e ambiental. Do ponto de vista da pressão da urbanização sobre a base de
recursos naturais, desponta a concepção da cidade resiliente como aquela que arti-
cula a ocupação do solo urbano aos condicionantes do meio, como forma de reduzir
impactos socioambientais.
Nesse sentido, vale destacar os parâmetros relativos a cidades resilientes e com-
pactas6, que apontam para o provimento da moradia em um contexto de diversidade
social e de usos do solo, evitando a segregação e proporcionando um espaço dotado de
serviços, equipamentos sociais e atividades econômicas, que seja facilitador do acesso
da população a toda a cidade.
Em ambos os casos, o tema da compactação urbana está presente e associado à
forma urbana sustentável. Rueda (2002) define a cidade compacta como sendo aquela
que possui características mediterrâneas, densa e que pode ser percorrida a pé7, sendo
a cidade do pedestre e não do automóvel. É um modelo que permite conceber uma
vida social coesa, com plataforma econômica competitiva, ao mesmo tempo em que se
preservam as áreas naturais. A proximidade dos elementos faz com que haja redução
do consumo de energia, tempo e solo, propiciando mecanismos de regulação e contro-
le. Na visão dele, compacidade e diversidade são elementos importantes para manter
a complexidade das trocas.
Jenks et al.; (1996) consideram que a cidade compacta possui atributos menos
nocivos ao meio ambiente, já que são densamente construídas e fazem um uso mais

5
Newton (2000) define as categorias da seguinte maneira – Fringe cities: cidades cujo desenvolvimento ocorre
predominantemente na orla urbana; Corridor cities: cidades cujo desenvolvimento ocorre predominantemente
ao longo de um corredor linear a partir do núcleo central da cidade, fortemente suportado pelo desenvolvimen-
to do sistema de transportes públicos; Edge cities: cidades que se caracterizam pela ocorrência de crescimento
populacional, do emprego e da densidade residencial em nós bem definidos da cidade e simultaneamente pelo
desenvolvimento de núcleos de comércio e serviços no exterior da cidade, suportados pelo desenvolvimento da
rede viária; Dispersed cities: desenvolvimento contínuo de baixa densidade populacional, com infraestrutura
dominada pelo transporte rodoviário; Compact cities: desenvolvimento com altas densidades, possibilidade de
melhor estrutura para transporte público.
6
Os atributos espaciais da cidade sustentável devem ser destacados em sua relação com a habitação para obter-
mos uma caracterização do que é uma habitação sustentável. Pelos estudos teóricos sobre sustentabilidade, se
chegou à conclusão de que os atributos das cidades resilientes e compactas são os responsáveis por estas carac-
terísticas necessárias.
7
Rueda (2002) descreve o modelo de cidade compacta e suas características mais importantes. Todavia, sabe-se
que nenhuma metrópole pode ser percorrida totalmente a pé. Há ainda, um outro viés que deve ser analisado
nessa premissa: ao se promoverem elementos estruturadores da forma compacta em uma metrópole, abre-se a
possibilidade de favorecer este tipo de deslocamento.

78 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020


Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

eficiente do solo urbano, evitando o espalhamento da cidade. Jacobs (2009), ao ela-


borar uma análise crítica sobre as políticas de planejamento modernistas, atacou a
tendência herdada da cidade jardim e sugeriu quatro condições necessárias para per-
mitir a diversidade e renovação urbana: (1) uso misto; (2) pequenos blocos ou quadras
curtas; (3) combinação de edifícios com estado de conservação variado; e (4) neces-
sidade de concentração, densificação. Esses atributos mencionados remetem à ideia,
portanto, da cidade compacta.
Para Leite e Awad (2012), a cidade compacta é um modelo de desenvolvimento
urbano que promove altas densidades de modo qualificado, com adequado planeja-
mento de uso misto do solo urbano, misturando funções urbanas. Gomes (2009) defi-
ne que a cidade compacta tem como base duas características fundamentais: densida-
des elevadas e uso de solo diversificado. Juntas, essas duas características traduzem em
uma intensificação de uso do solo que poupa área urbanizada, buscando resolver os
problemas dentro dos seus próprios limites, evitando a expansão desordenada.
A cidade resiliente, por sua vez, é sempre definida como aquela que possui alta
capacidade de resistir, absorver, adaptar-se e recuperar-se da exposição às ameaças,
produzindo efeitos de maneira oportuna e eficiente, o que inclui a preservação e res-
tauração de suas estruturas e funções básicas, estando vinculada ainda aos conceitos
dinâmicos de desenvolvimento e crescimento urbano. Para assegurar a resiliência de
uma comunidade é fundamental atender uma abordagem de envolvimento, de união,
de partilha de informação e de implementação dos diversos níveis do conhecimento.
(CARVALHO et al., 2013).
Transpondo esse entendimento para o alcance da habitação sustentável, essa
deve considerar a prevenção de condições que possam ameaçá-la de exercer suas múl-
tiplas funções como, também, a capacidade de se adaptar a mudanças que ocorram na
estrutura urbana onde está inserida. Essa condição só se alcança mediante um plane-
jamento urbano que antecipe e promova as condições de sua inserção multifuncional,
como de uma gestão urbana dinâmica, que administre os ajustes necessários para o
bom funcionamento da cidade.
As habitações presentes num contexto citadino de miscigenação de funções
e de culturas, com várias centralidades, geram um menor consumo de solo urbano,
favorecendo a diminuição dos custos com infraestrutura e com meios de transportes
motorizados, promovendo os deslocamentos como os de bicicleta e a pé, reduzindo
assim, o tráfego nas cidades e viabilizando o transporte público.
Do ponto de vista social, as densidades mais elevadas poderão ajudar a tornar
economicamente viável o fornecimento de estruturas de serviços e de lazer, aumen-
tando também a sustentabilidade social. Busca-se uma habitação de interesse social
com qualidade de vida para todos, harmonizando o ambiente construído e o ambiente
natural. No quadro 1, foram compilados, a partir dos princípios de resiliência e com-
pacidade presentes nos estudos de carvalho et. al. (2013); Costa (2013); ONS (2012);
Ribas (2003); Rueda (2000); Sachs (2002); Silva (2000) e Tudela (1997), atributos ne-
cessários para o alcance da habitação sustentável.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 79


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

Quadro 1: Princípios para alcance de habitação sustentável.


Características para alcance de habitações sustentáveis

Fomento à coordenação intersetorial e à liderança para redução de riscos e desastres, com


base na participação de grupos de cidadãos e da sociedade civil.

Construção de capacidades institucionais e alocar recursos, com a definição de um


orçamento para a redução do risco de desastres.

Regulamentação do desenvolvimento urbano e local com base em princípios de redução


de riscos, com a atualização permanente de todos os dados sobre os riscos e
vulnerabilidades existentes.

Gestão de risco com base no compromisso com os ecossistemas como forma de mitigar
inundações, tempestades e outros perigos a que a cidade possa estar vulnerável.

Compromisso com a redução da contaminação, melhoria na gestão de resíduos e redução


na emissão dos gases que provocam o efeito estufa.
(Princípios para uma cidade resiliente)

Atividades econômicas locais diversificadas e implantação de medidas para redução


CIDADE RESILIENTE

da pobreza.

Plano para continuidade dos negócios, para evitar a interrupção em caso de desastres.

Criação de incentivos e penalidades para ampliar a resiliência e melhorar o cumprimento das


normas de segurança.

A aplicação e o reforço dos regulamentos de segurança nos processos construtivos com o


objetivo de reduzir os riscos nas infraestruturas.

A existência de programas de educação/formação/sensibilização sobre a redução do risco de


desastres nas escolas.

O desenvolvimento de um sistema de alerta precoce e de gestão de emergência eficaz. É


igualmente importante a realização de exercícios para testar as capacidades das diversas
entidades e da própria comunidade.

Garantia a todos de acesso a serviços básicos e garantia de uma rede de proteção social após
o desastre.

Reserva de áreas seguras para atividades estratégicas e para alojamentos.

Motivação para participação de diversos públicos de interesse em todos os estágios e o


fortalecimento das redes e alianças sociais.

80 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020


Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

Adensamento e otimização das áreas urbanas, criando espaços eficientes e de uso múltiplo.

Limitação da expansão territorial, com eficiência quanto aos usos dos recursos naturais.

Otimização dos sistemas de infraestrutura urbana.

Várias centralidades na cidade, com multifunções, com criação de empregos, equipamentos


(Princípios para uma cidade compacta)

públicos e serviços distribuídos pelos diversos bairros da cidade.


CIDADE COMPACTA

Diversidade cultural e social: integração de pessoas no espaço urbano, com a inclusão


socioespacial.

Maior mobilidade e maior Incentivo ao transporte alternativo ( bicicleta, pedestres).

Deve possuir políticas habitacionais no centro.

Criação de corredores de vegetação que conectem parques e áreas verdes urbanas, evitando
ilhas de calor.

Proteção das áreas agrícolas rural-urbanas.

Concentração dos portadores de informação (membros do governo) e participação popular


nas decisões.
Redução do número de viagens de transportes e consequente redução da emissão de
poluentes.
Fonte: elaboração própria.

Desses atributos, alguns se referem ao ordenamento espacial da cidade, sendo


importante para seu alcance, encontrar nos instrumentos urbanísticos amparo para
sua obtenção, quais sejam:

• Garantia de acesso a serviços básicos;

• Reservas de áreas seguras para atividades estratégicas dentro da cidade;

• Adensamento e otimização das áreas urbanas, criando espaços eficientes e de


uso múltiplo;

• Limitação da expansão territorial, com eficiência quanto aos usos dos recursos
naturais;

• Otimização dos sistemas de infraestrutura urbana;

• Criação de várias centralidades multifuncionais na cidade (empregos, equipa-


mentos públicos e serviços distribuídos pelos diversos bairros da cidade);

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 81


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

• Diversidade cultural e social: integração de pessoas no espaço urbano, com a


inclusão socioespacial;

• Maior mobilidade com uso integrado de transportes públicos, bicicletas e


pedestres;

• Atividades habitacionais nos centros urbanos;

• Corredores de vegetação que conectam parques e áreas verdes urbanas;

Assim, seguindo o intuito do estudo, a discussão evolui para verificar como os


programas habitacionais têm respondido a esses atributos da habitação sustentável e
quais instrumentos urbanísticos podem apoiá-los.

3.2. Bases normativas da política urbana e da política habitacional

O que dizer sobre a integração entre política habitacional e urbana? Desde


2001, com a instituição do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, regulamentando o
artigo 182 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988)
que trata da política de desenvolvimento urbano, foram instituídas as diretrizes gerais
de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana, garan-
tindo, entre outros aspectos, a gestão democrática, o combate à irregularidade fundiá-
ria e o combate à especulação imobiliária, onde, para cada problema foram definidos
instrumentos para tentar combatê-los (ROLNIK, 2001).
O texto do Estatuto reforça a importância do Plano Diretor8 (proposto pela
CF 1988), definindo que ele é parte integrante do processo do planejamento mu-
nicipal (art. 40, § 1º) e detalhando a definição de critérios para a obrigatoriedade
de elaboração de planos diretores participativos para alguns municípios (art. 41).
Obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes, o Plano Diretor deve as-
segurar o atendimento das necessidades do cidadão quanto à qualidade de vida, à
justiça social e ao desenvolvimento de atividades econômicas. Ele é o instrumento
básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, que garante a gestão
democrática da cidade.
Quanto à Política Nacional de Habitação (PNH), esta foi instituída pelo
Ministério das Cidades em 2004, tendo como objetivo principal garantir à popula-
ção, principalmente para a de baixa renda, o acesso à habitação digna, sendo para
tal, indispensável a integração entre a política habitacional e a política nacional de
desenvolvimento urbano. A PNH conta com um conjunto de instrumentos criados
por meio da Lei n°11.124/2005, pelos quais se viabiliza a sua implementação, sen-
do eles: o Sistema Nacional de Habitação – SNH, o Desenvolvimento Institucional, o
8
O Plano Diretor é um instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, pa-
rágrafo 1°), o qual deve definir princípios, estratégias e instrumentos de ordenamento da cidade, de modo a
garantir o cumprimento da função social da propriedade.

82 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020


Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

Sistema de Informação, Avaliação e Monitoramento da Habitação e o Plano Nacional


de Habitação, que possuem como foco a mobilização de recursos para a viabilização
da habitação de interesse social.
Assim, de acordo com a PNH, que buscou integrar a política habitacional com
a urbana, o Plano de Habitação do município deve seguir os preceitos definidos no
Plano Diretor do município e utilizar os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade
de forma que consiga atender seus objetivos. Diante do avanço da concepção de sus-
tentabilidade e de sua inserção como objetivo das políticas públicas urbanas era de
se esperar mudanças na forma de provimento habitacional. Entretanto, o processo
histórico da habitação social brasileira nos remete à produção da moradia no mode-
lo de grandes conjuntos habitacionais, onde, o Estado, por meio de parcerias com a
iniciativa privada ou não, os construiu fora da malha urbana consolidada da cidade,
na maioria das vezes sem infraestrutura e serviços, cercados de espaços vazios e/ou
subutilizados, sem miscigenação de funções, de renda ou culturas (CNM, 2010), o que
denota que o objetivo era prover uma edificação.
A título de exemplo de como se mantém essa visão, observa-se que, mesmo
após anos de críticas às antigas experiências, o programa habitacional implementa-
do desde 2009 e ainda vigente (Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida –
PMCMV), se coloca à frente contra os preceitos da Política Nacional de Habitação9
– PNH, que visa a promoção de habitação adequada e regular, com acesso a serviços
públicos, reduzindo a desigualdade social e promovendo a ocupação urbana planejada`.
Significa, assim, um retorno de vários paradigmas existentes nos governos populistas
do Estado Novo e do Período Militar, com a era do Banco Nacional de Habitação –
BNH. Essa contradição expõe o fato de não poder negar o desconhecimento ao tema,
já que suas mazelas estão expostas nas cidades brasileiras.
Alguns problemas foram visualizados na utilização da legislação habitacional e
urbana de vários municípios brasileiros, dificultado o diálogo entre os dois Planos, den-
tre os quais destacam-se:

(i) Apenas os instrumentos que se referem de forma clara à habitação são previstos nos
Planos Diretores, muitas vezes sem aplicação e sem entender a interpelação entre a
configuração urbana como um todo no provimento de condições de habitabilidade. De
acordo com Pesquisas de Avaliação dos Novos Planos Diretores produzidos, coordena-
das pelo sistema CONFEA/CREAs e pelo IPPUR/UFRJ, em parceria com o Ministério
das Cidades, estima-se que cerca de 80% dos Planos Diretores contemplaram a criação
de ZEIS, depois de aprovado o Estatuto da Cidade, embora apenas 30% dos planos
regulamentem ZEIS de vazio (Ministério das Cidades, 2009);

(ii) Muitos Planos Diretores e de Política Municipal de Habitação não utilizam


os mecanismos de participação da população, o que leva a desconsideração

9
Instituída em 2004 pelo Ministério das Cidades. A PNH considera fundamental para atingir seus objetivos a
integração entre a política habitacional e a política nacional de desenvolvimento urbano.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 83


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

das demandas sociais de habitação que representam o conjunto de necessida-


des do dia a dia da população (CYMBALISTA, 2007);

(iii) Em várias municipalidades o Planejamento Habitacional é atribuído a um


órgão (muitas vezes de orientação a assistência social) e a Política urbana a
outro, gerando a não integração entre instrumentos e as demandas urbanas;

(iv) A atribuição da elaboração dos Planos de forma exclusiva à contratação de


consultorias externas tende a gerar Planos Diretores que não refletem a cidade
real, dificultando a explicitação dentro das necessidades da população e sua
implementação pelo poder público (ROLNIK, 2001);

(v) As discrepâncias temporais na elaboração dos Planos de Habitação e


Urbano associadas às constantes práticas de prever instrumentos para uma
posterior regulamentação;

(vi) Alguns aspectos inerentes à dinâmica urbana que, se não bem conduzidos
pela gestão pública, podem comprometer qualquer política bem elaborada
tecnicamente, como: os conflitos de interesse dos agentes envolvidos - poder
público, população, movimentos populares e empresários. (SOUSA, 2010).

Fatores como esses, favorecem a desarticulação entre a política habitacional e a


política urbana, contribuindo para a criação de unidades habitacionais localizadas nas
franjas das cidades com as mazelas já referidas.
No sentido de identificar as convergências, foi procedida uma leitura das dire-
trizes e dos instrumentos que trazem o Estatuto, exposta no quadro 2, para posterior
observância em alguns planos diretores e em sua implementação, de modo a verificar
sua pertinência em promover a habitação de interesse social.

Quadro 2: Comparação entre as diretrizes gerais e os instrumentos propostos pelo


Estatuto da Cidade.
Instrumentos propostos aplicáveis
Diretrizes gerais
à realização da diretriz
IPTU1; incentivos e benefícios fiscais e financeiros1;
desapropriação2; instituição de zonas especiais de
I.Garantia do direito a cidades sustentáveis:
interesse social; concessão de direito real de uso;
direito à terra urbana, à moradia, ao
concessão de uso especial para fins de moradia;
saneamento ambiental, à infra-estrutura
usucapião especial de imóvel urbano; regularização
urbana, ao transporte e aos serviços públicos,
fundiária; assistência técnica e jurídica gratuita para
ao trabalho e ao lazer.
as comunidades e grupos sociais menos favorecidos;
instituição de unidades de conservação2.
II. Gestão democrática participativa. refendo popular e plebiscito.

84 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020


Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

III. Cooperação (governos, a iniciativa privada


e sociedade).

Plano diretor2; disciplina do parcelamento, do uso e


IV. Planejamento do desenvolvimento das
da ocupação do solo2; zoneamento ambiental; EIA
ciudades.
e EIV2.

Plano diretor; disciplina do parcelamento, do uso e


V. Oferta de equipamentos urbanos e
da ocupação do solo; desapropriação; instituição de
comunitários, transporte e serviços públicos.
unidades de conservação.

VI. Ordenação e controle do uso do solo, de


forma a evitar:
a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
a proximidade de usos incompatíveis ou
inconvenientes; o parcelamento do solo, a
Plano diretor2; disciplina do parcelamento, do uso
edificação ou o uso excessivos ou inadequados
e da ocupação do solo2; zoneamento ambiental2;
em relação à infra-estrutura urbana;
desapropriação1; tombamento de imóveis ou de
a instalação de empreendimentos ou
mobiliário urbano; parcelamento, edificação ou
atividades que possam funcionar como pólos
utilização compulsórios; direito de preempção;
geradores de tráfego, sem a previsão da infra-
operações urbanas consorciadas; EIA2 e EIV.
estrutura correspondente;
a retenção especulativa de imóvel urbano, que
resulte na sua subutilização ou não utilização;
a deterioração das áreas urbanizadas;
a poluição e a degradação ambiental.

VII – Integração e complementaridade entre Plano diretor; disciplina do parcelamento, do uso e


as atividades urbanas e rurais. da ocupação do solo.

Plano plurianual; diretrizes orçamentárias e


orçamento anual; gestão orçamentária participativa;
planos de desenvolvimento econômico e social;
IPTU; contribuição de melhoria; incentivos e
benefícios fiscais e financeiros;
IX – Justa distribuição dos benefícios e ônus
instituição de zonas especiais de interesse social;
decorrentes do processo de urbanização.
concessão de direito real de uso; concessão de uso
especial para fins de moradia; usucapião especial
de imóvel urbano; direito de superfície; outorga
onerosa do direito de construir e de alteração de uso;
regularização fundiária.

X – Adequação dos instrumentos de política


econômica, tributária e financeira e dos gastos Plano plurianual; diretrizes orçamentárias e
públicos aos objetivos do desenvolvimento orçamento anual; gestão orçamentária participativa;
urbano, de modo a privilegiar os planos de desenvolvimento econômico e social;
investimentos geradores de bem-estar geral e IPTU; contribuição de melhoria; incentivos e
a fruição dos bens pelos diferentes segmentos benefícios fiscais e financeiros.
sociais.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 85


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

Plano plurianual; diretrizes orçamentárias e


orçamento anual; gestão orçamentária participativa;
XI – Recuperação dos investimentos do Poder planos de desenvolvimento econômico e social;
Público de que tenha resultado a valorização IPTU; contribuição de melhoria.
de imóveis urbanos. Direito de preempção; outorga onerosa do direito de
construir e de alteração de uso; operações urbanas
consorciadas.
Plano diretor2; disciplina do parcelamento, do uso
XII – Proteção, preservação e recuperação e da ocupação do solo2; zoneamento ambiental2;
do meio ambiente natural e construído, do incentivos e benefícios fiscais e financeiros1.
patrimônio cultural, histórico, artístico, Tombamento de imóveis ou de mobiliário
paisagístico e arqueológico. urbano; instituição de unidades de conservação2;
transferência do direito de construir; EIA2 e EIV2.

XIII – Audiência do Poder Público municipal


e da população interessada nos processos
Plano plurianual; diretrizes orçamentárias e
de implantação de empreendimentos ou
orçamento anual; gestão orçamentária participativa;
atividades com efeitos potencialmente
planos de desenvolvimento econômico e social;
negativos sobre o meio ambiente natural ou
referendo popular e plebiscito.
construído, o conforto ou a segurança da
população.

Plano diretor; disciplina do parcelamento, do uso e


XIV – Regularização fundiária e urbanização
da ocupação do solo.
de áreas ocupadas por população de baixa
Desapropriação; instituição de zonas especiais de
renda mediante o e estabelecimento de
interesse social; concessão de direito real de uso;
normas especiais de urbanização, uso e
concessão de uso especial para fins de moradia;
ocupação do solo e edificação, consideradas
usucapião especial de imóvel urbano; regularização
a situação socioeconômica da população e as
fundiária; assistência técnica e jurídica gratuita para
normas ambientais.
as comunidades e grupos sociais menos favorecidos.

XV – Simplificação da legislação de
parcelamento, uso e ocupação do solo e das
Plano diretor; disciplina do parcelamento, do uso e
normas edilícias, com vistas a permitir a
da ocupação do solo;
redução dos custos e o aumento da oferta dos
lotes e unidades habitacionais.

XVI – Isonomia de condições para os Plano diretor; disciplina do parcelamento, do uso


agentes públicos e privados na promoção de e da ocupação do solo; IPTU; contribuição de
empreendimentos e atividades relativos ao melhoria; incentivos e benefícios fiscais e financeiros;
processo de urbanização, atendido o interesse direito de superfície; transferência do direito de
social. construir; operações urbanas consorciadas.

Fonte: Elaboração própria.


Nota:
(1) – Instrumentos propostos que têm potencial de aplicação para o controle do uso e ocupação do solo visando a
proteção ambiental, mas que efetivamente não são utilizados pelos municípios para a gestão ambiental urbana.
(2) - Instrumentos propostos que são plenamente aplicáveis ao controle do uso e ocupação do solo visando a
proteção ambiental.

86 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020


Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

3.3. Instrumentos urbanísticos previstos na política urbana e suas relações com o


provimento da habitação sustentável

Os instrumentos que contemplam o Estatuto da Cidade auxiliam na re-


gulamentação urbana para alcance das várias dimensões que o conceito de sustenta-
bilidade suscita. Assim, pode-se inferir que, ao introduzir o direito à moradia em seu
Art. 2°, não estaria falando apenas do exclusivo acesso à casa própria, mas sim, que
a moradia seja um dos elementos indispensáveis para o direito à cidade sustentável,
asseguradas as necessidades das pessoas referenciadas na qualidade de vida e na jus-
tiça social (RAMOS, 2011). É certo que essa visão significa um grande avanço sobre o
que se considerava antes a cidade, mas deve levar em conta que no Estatuto a visão de
sustentabilidade ambiental ainda é reduzida, dado que sua ênfase está na sustentabili-
dade social (BEZERRA e RIBAS, 2004). Existe, assim, um processo de aprimoramento
rumo à sustentabilidade socioambiental.
A aplicabilidade desses instrumentos pode ser encontrada em vários estudos
elaborados no sentido de divulgar, analisar e/ou criticar sua adoção dos quais, fo-
ram utilizados: Cymbalista (2007); Ribas (2003); e Ministério das Cidades (2005). O
Ministério das Cidades também desenvolveu vários manuais sobre os instrumentos,
disponíveis em seu sítio, para apoio aos municípios na elaboração de Planos Diretores.
Tendo em conta essa base de informações e com apoio na experiência com alguns pla-
nos diretores foi possível realizar um exercício de correlacionar os atributos espaciais
que favorecem a habitação sustentável (constantes do item 3) e os instrumentos acima
referidos, para identificar aqueles que podem ser qualificados como promotores de
uma habitação sustentável. Ver quadro 3.

Quadro 3: Relação entre atributos e instrumentos para promoção de habitações sustentáveis.

Relação entre atributos e instrumentos para promoção


de moradias sustentáveis

Atributos Instrumentos
Plano de desenvolvimento
Garantia a todos de acesso a serviços básicos.
econômico e social.

Reserva de áreas seguras para atividades estratégicas dentro


LUOS, ZEE.
da cidade.
Limitação da expansão territorial, com eficiência quanto aos
usos dos recursos naturais.
Criação de corredores de vegetação que conectam parques e
áreas verdes urbanas. ZEE, LUOS, PDOT
Adensamento e otimização das áreas urbanas, criando espaços
eficientes e de uso múltiplo.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 87


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

Diversidade cultural e social: Integração de pessoas no espaço LUOS, ZEIS, Desapropriação, Direi-
urbano, com a inclusão socioespacial to de Preempção.

Maior mobilidade com uso integrado de transportes públicos,


EIV, ZEIS, OUC.
bicicletas e pedestres.

Atividades habitacionais nos centros urbanos.


Criação de várias centralidades multifuncionais na cidade Operações Urbanas Consorciadas,
(empregos, equipamentos públicos e serviços distribuídos ZEIS, Direito de Preempção, IPTU
pelos diversos bairros da cidade). progressivo, ODIR.
Otimização dos sistemas de infraestrutura urbana.

Fonte: Elaboração própria.

Quanto à concepção e possibilidade de uso de três desses instrumentos,


podem-se identificar casos particulares de sua adoção com vistas ao provimento
da habitação. Eles vêm como uma tentativa de articular diretrizes de política ur-
bana para tomada de decisões de política habitacional. Os instrumentos estudados
são: (i) Zona Especial de Interesse social – ZEIS de vazio; (ii) Operação Urbana
Consorciada; e (iii) Outorga Onerosa do Direito de Construir, para fins de promo-
ção de programas habitacionais.
As ZEIS de vazio são capazes de permitir habitações sociais em áreas mais
centrais e melhor localizadas na cidade, dotadas de infraestrutura urbana essen-
cial para a população. Permite uma antecipação de reserva de área evitando que no
futuro sua ocupação se torne proibitiva do ponto de vista econômico; já as OUC
trabalham com a possibilidade de modificação de índices e características do uso e
ocupação do solo, com alterações edilícias e a concessão de incentivos para as opera-
ções que visem a constituição de um tecido urbano de mix social e a redução de im-
pactos ambientais; e as OODC visam estabelecer áreas para aumento do coeficiente
de aproveitamento básico, mediante contrapartida do beneficiário, considerando a
infraestrutura da área e o aumento da densidade esperada, possibilitando incentivos
para a habitação social. A questão, porém, é: como aplicar esses instrumentos de
forma eficiente para a cidade?
Esses instrumentos possuem suas características em separado, mas podem ser
utilizados em conjunto, potencializando os atributos nas áreas onde serão alocados
programas habitacionais. A título de exemplo de como esses instrumentos melhor po-
deriam ser utilizados para gerar atributos de sustentabilidade na estrutura urbana, se
apontam alguns critérios, como:
• (1) ZEIS de vazio: (a) as áreas devem dispor de infraestrutura e equipamentos
públicos adequados; (b) as áreas devem ser de fácil integração ao sistema viário
de seu entorno e possuírem certa centralidade dentro da estrutura urbana; (c)
devem possuir segurança geológica e geotécnica e evitar impactos em áreas am-
bientais sensíveis; (d) garantir diversidade de usos, com variedade nas formas e

88 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020


Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

dimensões do parcelamento que possibilitem um mix social; (e) estar conectada


ao sistema de transporte púbico; (f) possuir flexibilidade na determinação de
regras de parcelamento, uso e ocupação do solo; e (g) estabelecer porcentagem
mínima destinada à habitação de interesse social – HIS, variando de 70 a 80%.

Para maior efetividade esses critérios podem ser objeto de prévia avaliação,
utilizando alguns métodos e/ou indicadores para sua avaliação, quais sejam:
(i) Índice de qualidade de vida urbana – IQVU, composto por indicadores que
qualificam o território em termos de acesso à serviços, meio ambiente, infra-
estrutura, equipamentos e segurança; (ii) avaliação da inserção urbana; e (iii)
distribuição de equipamentos públicos e de lazer.

• (2) No caso da OUC, existem outros aspectos a serem avaliados para sua ado-
ção, de modo a obter o êxito de integrar a habitação a uma área de requalifica-
ção urbana, como: (a) definição clara do polígono de sua aplicação, bem como
as transformações requeridas pela dinâmica urbana, de modo que, o projeto
da área seja assertivo em ocupar o novo espaço com as melhorias socioam-
bientais necessárias; (b) definição de mecanismos urbanísticos que orientem a
ação do mercado produtor imobiliário na direção do desenvolvimento urbano
pretendido; (c) definir estoque de potencial adicional de construção reservado
e vinculado à unidade habitacional de interesse social; (d) novos padrões ur-
banísticos em consonância com a previsão do mix de rendas a ser atendido; e
(e) aumento do potencial construtivo do lote, coeficiente de aproveitamento e/
ou mudanças de uso de seus terrenos de modo a viabilizar os capitais privados
e atender aos objetivos do planejamento.

Ao considerar que podem ser utilizados para todas as atividades urbanas,


destaca-se que, em relação às áreas de habitações, se deve ter em conta os
atributos já referidos para habitação sustentável, como: (i) prever a proximi-
dade das redes de transportes, centros de compras e serviços, equipamentos
educacionais e de lazer e locais com concentração de empregos; (ii) aplicação
da cota máxima de coeficiente, que pode vir acompanhado de uma diversifi-
cação das dimensões das unidades, resultando numa variedade de produtos
formatados para diferentes públicos; e (iii) adensamento populacional com
diversidade de renda.

O sucesso da operação é dado pelo volume de recursos que ela gera e pela
quantidade de infraestrutura que ela é capaz de implantar com os recursos ob-
tidos por meio da venda de Certificados de Potencial Adicional de Construção
– CEPAC. Esses por sua vez decorrem das exceções à Lei de Uso e Ocupação
do Solo- LUOS, concedidas pelo poder municipal, que deve utilizar essa arre-
cadação para investir em ações de estruturação, configuração, qualificação e

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 89


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

melhoria urbana das áreas definidas para atuação da OUC, segundo um pla-
nejamento previamente aprovado.

Como uma parceria público-privada, sua gestão deve se pautar por alguns
critérios como: (i) fugir da armadilha arrecadatória e da lógica tributarista
e/ou especulativa que muitas vezes acabam se sobrepondo às decisões e
interesses públicos; (ii) garantir a recuperação e distribuição da mais-valia
gerada pelo próprio investimento público e, assim, regular distorções de
valorização fundiária e/ou imobiliária geradas por esses mesmos investi-
mentos; e (iii) promover, sob controle social, formas de ocupação mais
intensa, qualificada e inclusiva do espaço urbano, articuladas à medida que
racionalizem e democratizem a utilização das redes de infraestrutura e o
acesso a equipamentos sociais, inclusive solo urbanizado, habitação e meio
ambiente.

• (3) As OODC adotadas nos Planos Diretores podem ser voltadas à promo-
ção da habitação sustentável desde que considere alguns aspectos, como:
(a) lei de zoneamento, indicando as zonas que poderão ser aplicados o
uso acima do coeficiente único, considerando a infraestrutura existente;
(b) possibilidade de o particular transferir o seu direito de construir não
utilizado até o limite do coeficiente único; e (c) a manutenção da propor-
ção entre os solos públicos e privados, constituindo na concessão onerosa
acima do coeficiente único por meio de doação de áreas ao poder público
ou do equivalente em dinheiro.

O instrumento visa o controle do adensamento pelo poder público e que esse,


quando ocorra, se dê nos termos do interesse coletivo e com a restauração do
equilíbrio entre imóveis de uso público e uso privado. A outorga não precisa,
necessariamente, ser aplicada na zona objeto da própria outorga e, nesse sen-
tido, a sua onerosidade possibilita a redistribuição das mais valias do processo
de urbanização das cidades, permite a recomposição do equilíbrio de áreas
de uso público e particular, possibilita a sustentabilidade das cidades, o con-
trole da densidade construtiva, promove a redistribuição das oportunidades
imobiliárias na cidade e contribui para o combate da especulação imobiliária.
(OLIVEIRA, 2015).

Para a adoção de qualquer um desses instrumentos, é necessário que eles es-


tejam definidos no Plano Diretor do Município, que é o direcionador da política de
desenvolvimento urbano a ser adotada, no qual serão definidos os parâmetros indis-
pensáveis à sua aplicação.

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Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

4. Discussão e resultados

Para cada um dos instrumentos destacado foi estudado um exemplo de


sua aplicação com o intuito de observar a eficiência de seu emprego no que tange
ao objetivo de propiciar uma localização habitacional que atenda aos atributos
de sustentabilidade urbana. Para as ZEIS de vazio, foi utilizado o caso do Distrito
Federal, para a OUC foi empregado o caso de São Paulo e para as OODC foi
analisado o exemplo de Palmas.

4.1. Adoção da ZEIS de vazio no Distrito Federal.

No Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) do DF, foram selecio-


nadas 13 áreas10 ainda não ocupadas, distribuídas por diferentes regiões do Distrito
Federal, com capacidade para atendimento de aproximadamente 105 mil famílias,
conforme Figura 1 (SEGETH, 2017).

Figura 1: Mapa com as áreas definidas para Regularização Fundiária (PDOT) e Oferta
de Áreas Habitacionais no DF.

Legenda:
Oferta de áreas habitacionais aaaaaaaa
Oferta de áreas habitacionais estudadas
Fonte: PDOT. 2009.

10
As áreas selecionadas no Caderno de ZEIS da SEGETH são: Áreas Livres QNJ Taguatinga (RAIII); Áreas Livres
Água Quente (RA XV); Áreas Livres Nova Colina (RA V); Área DER (RA V); Áreas Livres Mestre D´armas –
Grotão (RA VI); Cana do Reino I (RA XXX); Cana do Reino II ( RA XXX); Quadras 9, 11, 13 e 15 (RA XVII);
Vargem da Benção Qd. 117 e 118 ( RAXV); QNR 06 (RA IX); Etapa 3 Riacho Fundo II (RAXXI); Vargem da
Benção (RAXVI) e Setor Meireles (RAXIII).

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 91


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

As diferentes poligonais destinadas à habitação pelo PDOT foram avalia-


das segundo os atributos identificados como propícios à localização habitacional
sustentável, como: (i) proximidade com o tecido urbano já existente; (ii) presença
de infraestrutura; e (iii) proximidade de centralidades urbanas, ou seja, que te-
nham acesso a empregos e serviços. Utilizou-se um mapeamento de conectividade
para essa avaliação onde foi observado que, das 13 áreas estudadas, apenas uma
delas possui os atributos acima citados e será denominada de área “integrada à
estrutura urbana consolidada”. Três outras áreas podem ser consideradas signi-
ficativamente integradas, 5 áreas são significativamente segregadas e 6 áreas são
segregadas (SEGETH, 2017). De acordo com a Figura 2, observa como exemplo as
áreas: Cana do Reino I (Região Administrativa - RA Vicente Pires), Crixá (RA São
Sebastião), Etapa 4 do Riacho Fundo (RA Riacho Fundo II) e Áreas Livres QNJ de
Taguatinga (RA Taguatinga).

Figura 2: Mapa de conectividade de alguns exemplos das áreas estudadas para habitação
de interesse social.

Cana do Reino 1 – RA XXX – Vicente Pires Crixá – RA XIV São Sebastião


(segregada) (significativamente segregada)

Etapa 4 Riacho Fundo II – RA XXI Riacho Fundo II Áreas Livres QNJ – RA III Taguatinga
(significativamente integrada) (integrada)
Fonte: Caderno ZEIS SEGETH, 2017.

O conjunto das 13 áreas resultou de pouca efetividade para utilização na alocação


dos programas habitacionais devido a evidente falta de aptidão de muitas delas. Novos
estudos para demarcação de ZEIS vazias foram procedidos pelo Governo do Distrito

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Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

Federal - GDF. Assim, quando da definição de áreas para o Programa Habitacional -


Habita Brasília, foram selecionadas mais 8 áreas11, visualizadas na Figura 3. Utilizando
os mesmos critérios de avaliação anteriores pode-se afirmar que dessas, 5 áreas são
integradas e 3 áreas relativamente integradas. Vale destacar que, como o Distrito
Federal possui muitas áreas de fragilidade ambiental, essas áreas consideraram para
sua definição as diretrizes do Zoneamento Econômico Ecológico – ZEE, ponderando
tanto a diversificação produtiva quanto os condicionantes ambientais (Figura 3).

Figura 3: Mapa de conectividade. Exemplo das áreas do Habita Brasília para criação
de ZEIS de vazios.

QNL Taguatinga – RAIII Taguatinga Subcentro Recanto das Emas -


(CONECTADA) RA XV Recanto das Emas
(CONECTADA)

Quadras 100 ímpares – RA XII Samambaia Residencial Pipiripau – RA VI Planaltina


(CONECTADA) (CONECTADA)

Subcentro Recanto das Emas - Vargem da Benção – RA XV Recanto das Emas


RA XV Recanto das Emas (SIGNIFICATIVAMENTE CONECTADA)
(CONECTADA)

11
Áreas do Habita Brasília selecionadas no Caderno de ZEIS da SEGETH são: QNL Taguatinga – RAIII; Vargem
da Benção – RA XV; Quadras ímpares – RA XII; Residencial Pipiripau – RA VI; Centro Urbano Recanto das
Emas – RA XV e Quadras 19 e 20 de Sobradinho – RA V.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 93


Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

Bonsucesso – RA XIV São Sebastião Quadras 19 e 20 de Sobradinho – RA V Sobradinho


(SIGNIFICATIVAMENTE CONECTADA) (SIGNIFICATIVAMENTE CONECTADA)

Fonte: Caderno ZEIS SEGETH, 2017.

A preocupação quanto à conectividade das áreas é essencial para o combate à


exclusão social. A falta de integração ao tecido urbano constituído dificulta o acesso a
serviços básicos para a população, como infraestrutura de transporte e abastecimento
e rede de serviços públicos essenciais.
Mesmo no caso daquelas que foram consideradas conectadas, elas o são ao
observar as cidades já existentes, mas em relação ao emprego que se concentra no
Plano Piloto e ao mix social, isso não ocorre, devido a uma característica marcante do
Distrito Federal que é a segregação sócio espacial. Assim, apesar da tentativa de me-
lhoria da conectividade, buscando áreas mais centralizadas, o caso de criação de ZEIS
de vazio no DF esbarra com o problema do espraiamento das cidades e a blindagem
do Plano Piloto para com as camadas mais pobres da população. Sendo assim, a busca
da habitação mais sustentável, no caso do DF, exige um repensar de seu processo de
concentração de empregos e não será uma tarefa exclusiva de um instrumento de or-
denamento territorial.

4.2. Operações Urbanas Consorciadas (OUC) no município de São Paulo

Em São Paulo, foi estudado o caso da Operação Urbana Centro que ti-
nha o objetivo de repovoar e requalificar o centro por meio do adensamento
habitacional, com a transformação dos imóveis abandonados ou subutilizados,
ao mesmo tempo em que seria introduzido melhoria na mobilidade urbana e
criação de uma rede de espaços públicos adequados a moradores locais. Para
tal, previu uma alteração de 10% a mais no coeficiente de aproveitamento aos
empreendimentos resultantes de remembramento de terrenos, em determinadas
áreas, de forma a gerar recursos para adequações voltadas à habitação. Essa de-
cisão acabou favorecendo a demolição e a intervenção das edificações ao invés
da requalificação e da conservação das características existentes na ocupação
urbana, gerando o aumento do valor dos imóveis da região e a expulsão dos
poucos moradores da área.
Assim, apesar do exemplo da OUC em São Paulo ter adotado alguns dos
critérios necessários para que se alcance localização habitacional considerada

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Relação entre Política urbana e habitacional: instrumentos urbanísticos
em apoio ao provimento da habitação social sustentável

sustentável, outros critérios não foram observados, como: (i) ausência de pro-
dutos formatados para públicos de várias classes sociais; (ii) associação entre
o projeto urbano e a gestão; e (iii) otimização do uso das redes de transporte
coletivo. Esses fatores interferiram no êxito do objetivo de atendimento dos in-
teresses sociais.
Verifica-se que a requalificação não garante a inclusão social, mesmo que
apresente alguns de seus objetivos. Apesar de tornar a inclusão no processo mais
provável. É necessário, para tal, um procedimento de gestão permanente, focado
nos objetivos inicias.

4.3. Exemplo de Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) em Palmas

Em Palmas, de acordo com o Plano Diretor - LC n°155/2007, foi estabeleci-


do a OODC com a possibilidade de: (i) utilizar um coeficiente de aproveitamento
maior, variável conforme a zona de uso, mediante contrapartida financeira; e (ii)
definir um estoque de potencial construtivo para cada setor com base na infraes-
trutura existente e no aumento da densidade. A contrapartida financeira pode ser
empregada em qualquer região da cidade, desde que utilizada para projetos de regu-
larização fundiária, habitação de interesse social, reserva de terras, áreas de interesse
ambiental, dentre outras, ou ser revertida por meio de bens ou serviços (Ministério
das Cidades, 2005).
Entretanto, a avaliação constatou que, por várias omissões da legislação da
OODC de Palmas, a definição dos estoques não segue nenhuma relação com a in-
fraestrutura existente nas áreas, mas sim, a delimitação dos limites máximos permi-
tidos para os lotes constante na legislação. Isso leva à possibilidade do uso indiscri-
minado do instrumento que, ao não ser controlado pelo poder público, tem levado
a problemas de infraestrutura, de mobilidade e de falta de equipamentos urbanos,
afetando assim, a qualidade de vida da população (PAZ, 2017).
É importante levar em consideração que Palmas, sendo uma cidade ainda
com bastante área disponível para construção, talvez esse instrumento não seja o
mais apropriado, pois, ao invés de ser utilizado em terrenos subutilizados para aden-
samento de áreas centrais, apenas resulta na verticalização dos edifícios, provocando
sobrecarga para a infraestrutura da cidade e manutenção dos vazios urbanos, que
podem se tornar ainda objeto de especulação imobiliária (PAZ, 2017). O que ocor-
reu de fato foi que a OODC gerou um resultado contrário, favorecendo a especu-
lação imobiliária em detrimento do adensamento populacional, trazendo impactos
territoriais consideráveis e influenciando na busca da sustentabilidade.
Observa-se que algumas condições necessárias para utilização da OODC
não foram adotadas, dentre elas: (i) a fixação de um coeficiente de aproveitamento
único; (ii) a indicação das zonas que poderão trabalhar acima do coeficiente úni-
co, considerando a infraestrutura existente; (iii) a transferência do seu direito de
construir não utilizado; e (iv) a manutenção da proporção entre o solo público e

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Cristina Maria Correia de Melo; Maria do Carmo de Lima Bezerra

privado, constituindo na concessão onerosa acima do coeficiente único, resultando


em futuros problemas com a especulação imobiliária e com a infraestrutura devido
ao adensamento em determinados locais.

5. Considerações finais
A discussão sobre as características e condições de provimento de habitação
sustentável visa corrigir algumas práticas dos programas habitacionais no país que le-
vou à segregação socioespacial nas cidades. A sustentabilidade da habitação estabelece
uma relação entre atributos da cidade que condicionam a moradia, como: densidades
de média a alta; diversidade de usos nas diferentes zonas urbanas; proximidade casa/
trabalho; localização e provimento dos equipamentos públicos de serviço e de lazer e
políticas que priorize os transportes públicos e ativos e outros atributos estudados no
artigo. Assim, como se vê, é uma questão de planejamento urbano e remete à necessá-
ria integração entre política urbana e política habitacional.
A habitação sustentável tem na localização dentro da estrutura urbana um dos
mais relevantes atributos para seu alcance, o que leva à necessária articulação entre
política urbana e seus instrumentos de gestão e as decisões de política habitacional.
O estudo de instrumentos previstos no Estatuto da Cidade indica que muitos deles
podem ser utilizados nesse sentido, com ênfase para aqueles de caráter negocial ou
estratégicos, que vão além dos tradicionais zoneamentos de uso e ocupação do solo.
Aliás, esse foi o avanço do Estatuto, dispor de instrumentos de coordenação/ articula-
ção para fins de gestão urbana, antes restritos ao controle.
Os estudos de três desses instrumentos: ZEIS de vazio, a OUC e a OODC in-
dicaram que esses podem levar à constituição e/ou correção de tecidos urbanos mais
sustentáveis desde que atendidos os critérios identificados. Entretanto, os estudos pro-
cedidos para analisar como esses instrumentos estão sendo adotados no país, tomando
como amostra três cidades: Brasília, São Paulo e Palmas, mostrou um quadro preocu-
pante onde, em nenhuma das situações, os objetivos pretendidos foram alcançados.
Nos casos da OUC e OODC o estudo mostrou que, pelo contrário, sua aplicação vem
favorecendo a especulação imobiliária e não a sustentabilidade que se pretende alcançar.
No caso do Distrito Federal é possível que os critérios definidos para o estabelecimento de
ZEIS de vazio não tenha obtido o êxito esperado devido ao contexto estrutural da própria
formação do DF.
Por fim, fica evidente no estudo que há caminhos e instrumentos para “mudar
a cidade”, mas faz-se imprescindível o controle social qualificado com as devidas infor-
mações técnicas sobre as ações de planejamento e a gestão urbana.

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Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.73-99, 2020 99


Gestão ecológica das águas:
uma comparação das diretrizes do Brasil e da Europa
Ecological water management:
a comparison between Brazilian and European guidelines
Gestión ecológica del agua:
una comparación de las pautas de Brasil y Europa1

Rafaela Silva de Faria2


Claudia Padovesi-Fonseca3

Resumo
FARIA, R. S. de; PADOVESI-FONSECA, C. Gestão ecológica das águas: uma comparação das
diretrizes do Brasil e da Europa. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 101-117, 2020. DOI: https://doi.
org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art5
A política hídrica deve conter diretrizes compatíveis para uma gestão integrada
da sociedade, e assumir a proteção das águas e seu uso sustentável. Neste artigo,
traçamos paralelos de enquadramento das águas nas diretivas brasileira e europeia,
além de agregar as diretrizes europeia em abastecimentos de água no Brasil. As po-
líticas elencam a bacia hidrográfica como unidade de planejamento, e prevê o en-
quadramento das águas como instrumento de integração para usos humanos. No
Brasil, as águas são classificadas de acordo com condições ambientais e associadas
aos usos. Das especiais, quando não alteradas por atividades humanas; adequa-
das para abastecimento; e até somente usadas para navegação. A diretiva europeia
tem como objetivo alcançar o bom estado ecológico para as águas. Destacam-se
três aspectos nas configurações entre as diretivas brasileira e europeia. A diretiva
europeia prevê metas progressivas para determinados períodos, que garante um
acompanhamento efetivo do processo de avaliação e resposta. A comunidade é
atuante nas diretrizes da gestão europeia, em contraste com a do Brasil, que é mais
genérica. A diretiva europeia é mais ampla no âmbito da União Europeia. Há con-
trastes entre as realidades brasileira e europeia, com adaptações necessárias quan-
do aplicadas aqui. O gerenciamento de recursos hídricos é complexo, cuja análise
necessita de instrumentos técnicos robustos e ao mesmo tempo adaptáveis, que

1
Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Nível Superior (CAPES), ao Programa de Mes-
trado Profissional em Rede Nacional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos ( ProfÁgua) Projeto CAPES/
ANA AUAXPE nº 2717/2015 e à Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) – Edital 05/2018.
2
Bacharel em Engenharia Florestal pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, Cruz das Almas (BA);
Mestranda em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos – ProfÁgua na Universidade de Brasília – UnB, Planaltina
(DF). rafaela_fariia@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6160-5116.
3
Professora associada da Universidade de Brasília (UnB), Líder do Núcleo de Estudos Limnológicos (NEL)-
CNPq, Mestre e Doutora em área de Limnologia pela Universidade de São Paulo (USP), realizou Pós Doutorado
na Universidade de Paris Pierre e Marie Curie, Paris, França e na Universidade de Granada, Granada, Espanha.
padovesif@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7915-3496.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020 101


Rafaela Silva de Faria; Claudia Padovesi-Fonseca

devem seguir diretrizes de legislação ambiental, com produção de cenários conso-


lidados para o enquadramento das águas. A Política das Águas brasileira apresenta
medidas promissoras, com potencial alcance em preservação, mas muito deve ser
feito na sua gestão hídrica.
Palavras-chave: Enquadramento das águas. Monitoramento ambiental. Gestão de reser-
vatórios. Diretiva Quadro da Água Europeia.

Abstract
FARIA, R. S. de; PADOVESI-FONSECA, C. Ecological water management: a comparison between
Brazilian and European guidelines. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 101-117, 2020. DOI: https://doi.
org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art5
The water policy must be based on guidelines directed to society integrated mana-
gement, and it assumes the water protection from the sustainable development pers-
pective. This study aimed to draw parallels for water quality guidelines applied in
Brazil and Europe, and further use of the European one here. The two water policies
consider the watershed as a planning unit and provide the different use classes of
waters a tool for the integrating system. Brazilian waters are classified according to
environmental conditions and they are associated with uses. Special class refers to
water not altered by human activities; an intermediate environmental condition is
suitable for supply; and even only used for navigation. The objective of the European
directive is to achieve good ecological status for water-bodies. Three aspects stand
out in the configurations between Brazilian and European directives. The European
proposes progressive targets for certain periods, which guarantees effective monitoring
by evaluation and response process. There is effective participation of the community
in the European guidelines, in contrast to Brazil, which is more generic. The inte-
grative organizational structure of the European directive is more broadly with the
European Union. There are contrasts between Brazilian and European realities, and
adaptations are necessaries when applied in Brazil. Water management resources are
complex, within analysis by viable and adapted technical instruments, which must
follow environmental laws, with future scenarios for water classing. Water Policy in
Brazil presents effective measures, which can achieve preservation, but much can still
be done to improve its water resource management.
Keywords: Water framework. Environmental monitoring. Reservoir management. European
Water Framework Directive.

Resumen
FARIA, R. S. de; PADOVESI-FONSECA, C. Gestión ecológica del agua: una comparación de
las pautas de Brasil y Europa. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 101-117, 2020. DOI: https://doi.
org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art5
La gestión de los recursos hídricos supone pautas compatibles e integradas a la
sociedad. Este artículo compara algunos aspectos de dos realidades distintas:
la europea y la brasileña, enmarcando sus directivas y agregando las directri-
ces europeas y el suministro de agua en Brasil. La cuenca hidrográfica es una

102 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020


Gestão ecológica das águas:
uma comparação das diretrizes do Brasil e da Europa

unidad de planificación, según las políticas, y el enmarcado de las aguas es una


herramienta de integración para los usos humanos. Brasil clasifica sus aguas
según las condiciones ambientales y se asocian con los usos. Hay las que no
sufren con las actividades humanas. Las de suministro. Las que se usan solo
para la navegación. El objetivo de la directiva europea es lograr un buen estado
ecológico para sus aguas. Subrayamos algunos aspectos de las directivas. En
Europa hay objetivos progresivos para ciertos períodos, garantizando así un
monitoreo efectivo del proceso de evaluación y respuesta. La comunidad es más
activa en las directrices de gestión, contrastando con Brasil, que presenta una
gestión más genérica. La directiva europea es más amplia dentro de la Unión
Europea. Además de lo antes informado, hay otros contrastes y diferencias entre
las realidades brasileña y europea. La gestión de los recursos hídricos es algo
complejo y su análisis requiere instrumentos potentes y adaptables, que deben
seguir las pautas de la legislación ambiental, con la producción de escenarios
consolidados para el enmarcado de las aguas. La Política Brasileña del Agua
presenta medidas prometedoras, con potencial para la preservación, pero queda
mucho por hacer en su gestión del agua.
Palabras clave: Marco de agua. Monitoreo ambiental. Gestión de embalses. Directiva Marco
del Agua Europea.

Data de submissão: 19/03/2020


Data de aceite: 08/06/2020

1. Introdução

A gestão dos recursos hídricos é um tema recorrente na atualidade, visto que


a disponibilidade de água, sobretudo para fins como o abastecimento humano, tem
sofrido reduções expressivas em função do comprometimento de seus aspectos de
qualidade e quantidade.
Neste âmbito, uma boa gestão dos recursos hídricos necessita de políticas de
planejamento adequadas e, consequentemente, de instrumentos que garantam a ges-
tão sustentável e integrada em todos os setores que abrangem a proteção dos recursos
compatível com o desenvolvimento da sociedade humana.
A Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH, instituída pela Lei Federal
nº 9.433, de 08 de janeiro de 1997, representa um marco na gestão dos recursos hí-
dricos no Brasil. Elenca a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e prevê
o enquadramento dos corpos d’água como principal instrumento de integração da
qualidade e quantidade de água. Este enquadramento deve ser parte do processo de
planejamento descentralizado e de gestão participativa, e a água como um bem dotado
de valor econômico (BRASIL, 1997).
A PNRH atribui o enquadramento dos corpos hídricos em classes com a fina-
lidade de assegurar às águas qualidade compatível com os usos mais exigentes a que

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020 103


Rafaela Silva de Faria; Claudia Padovesi-Fonseca

forem destinadas. Além disso, pretende diminuir os custos de combate à poluição das
águas, mediante ações preventivas (BRASIL, op. cit.). O enquadramento indica o nível
de classe da água a ser alcançado ou mantido ao longo do tempo.
Para que o enquadramento seja aplicado é necessário que se avaliem os usos,
que são feitos e os que se pretende fazer, das águas na bacia hidrográfica na qual o cor-
po d’água está inserido e, posteriormente, executar políticas públicas para que as metas
sejam alcançadas (CARDOSO-SILVA et al., 2015). No Brasil, a categorização dos cor-
pos d’água foi definida pela Resolução CONAMA nº 357/2005, onde são estabelecidas
as diretrizes para a classificação dos corpos hídricos em classes de uso, bem como os
padrões de qualidade e para o lançamento de efluentes (BRASIL, 2005).
Por sua vez, a Diretiva Quadro da Água – DQA, implementada no início do
século XXI como uma nova estratégia de planejamento e gestão dos recursos hídricos
na União Europeia, tem como base uma abordagem ecológica e possui como objeti-
vo principal alcançar o bom estado ecológico para os corpos hídricos dos Estados-
Membros da UE (SARAIVA, 2010).
Neste sentido, o objetivo central deste artigo é traçar paralelos de análise de
enquadramento das águas para as diretivas de qualidade aplicadas no Brasil e na União
Europeia, com a perspectiva de uso agregador do enquadramento europeu em siste-
mas de abastecimento de água humano no Brasil.

2. A busca da real qualidade das águas

A medição da qualidade ambiental das águas superficiais dos continentes


requer diretrizes para geração e análise de dados acuradas. Uma das ferramentas
muito útil é o monitoramento da qualidade da água de um determinado ambiente,
tanto ao longo do tempo como também espacialmente. O desenho amostral repe-
tido nessas duas séries permite o acompanhamento das condições ambientais e
biológicas, e a partir das informações obtidas, realizar o enquadramento das águas
de acordo com as diretivas utilizadas.
A qualidade de um corpo hídrico pode ser representada por meio da aná-
lise dos diversos elementos presentes na água, esses, por sua vez, demonstram as
características físicas, químicas e biológicas do ambiente aquático. Além disso, a
qualidade de água é condicionada por variáveis naturais ligadas ao regime de chu-
vas, escoamento superficial, geologia e cobertura vegetal, e por impactos antrópi-
cos, como o lançamento de efluentes, manejo dos solos, entre outros.
Dessa forma, o monitoramento ambiental é de grande importância para o
conhecimento das tendências de evolução da qualidade das águas, especialmente a
longo prazo, pois permite a quantificação das variáveis físicas, químicas e biológi-
cas, e desse modo, viabiliza o diagnóstico ambiental daquela água.
Esse diagnóstico propicia a avaliação dos ambientes aquáticos em resposta
aos impactos antrópicos na área de drenagem ou de influência, em termos es-
paciais e temporais. Contudo, os programas de monitoramento margeiam-se a
apresentar uma grande quantidade de dados sem, no entanto, sistematizá-los de

104 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020


Gestão ecológica das águas:
uma comparação das diretrizes do Brasil e da Europa

maneira que possam orientar planos de gestão da qualidade da água e de gerencia-


mento dos recursos hídricos (CUNHA & CALIJURI, 2010).
Protocolos de avaliação rápida de rios são amplamente utilizados em monito-
ramentos de qualidade de água, e desde 1980 (EPA, 1987) operam como um método
viável e de fácil execução. Padovesi-Fonseca et al., (2010) obtiveram resultados bem
demarcados na sub-bacia do ribeirão Mestre d’Armas, Distrito Federal, quando com-
parados entre áreas protegida, de transição e urbana. As diferenças foram decorrentes
da presença e tipo de impacto antropogênico. Neste sentido, este método proporciona
medidas comparativas em rotinas de gerenciamento ambiental e de recursos hídricos
de uma região.
Muitos pesquisadores têm utilizado técnicas de aprimoramento nas redes de
monitoramento, como a utilização de ferramentas de estatística multivariada para di-
minuir os custos referentes à busca de dados realizados em campo. De acordo com
NONATO et al., (2007), os métodos estatísticos possibilitam otimizar a rede de amos-
tragem proposta, a frequência de amostragem e o número de parâmetros analisados.
Outras iniciativas foram inseridas na questão de aperfeiçoamento do enqua-
dramento de corpos hídricos com metas progressivas. Nessa perspectiva, tem-se a
proposta de estabelecimento de uma relação entre vazão de entrada no corpo d’água
e concentrações de variáveis sensíveis às alterações de condições ambientais. Como
exemplo, Brites (2010) propôs simulações de qualidade de água entre vazões e a de-
manda bioquímica de oxigênio (DBO) como um sensor de monitoramento viável e
preciso de qualidade de água. Segundo a autora, essa ferramenta se constituiu uma
alternativa viável para o enquadramento das águas, além de subsidiar as medidas ne-
cessárias para sua despoluição.
Dificuldades na gestão da qualidade dos recursos hídricos são originadas de
deficiências em termos de monitoramento e fiscalização e, em consequência, corpos
hídricos já enquadrados podem ficar em desacordo com a classe de qualidade desig-
nada, como discutido por Bradão et al., (2006) e Diniz et al., (2006).
Importante destacar que a ausência de registros históricos, principalmente em
pequenas bacias, a imaturidade das políticas públicas e a variação nas taxas de erosão
em uma mesma localidade são problemas que podem dificultar os estudos relacio-
nados à degradação ambiental gerada pela ocupação e uso do solo desordenados no
Brasil (COUCEIRO; PADOVESI-FONSECA, 2009).
O uso de monitoramento em estudos de impactos ambientais tem a pre-
missa de realizar um diagnóstico desencadeador na avaliação da qualidade am-
biental e de suas águas. Inclui, para esse propósito, necessidades e medidas mi-
tigadoras ou compensatórias dos impactos em um ambiente e a partir disso,
proposição de melhores formas de gerenciamento desses ambientes afetados,
com a finalidade de garantir o uso sustentável dos recursos naturais. Em virtude
disso, os cientistas têm sido pressionados a desenvolver métodos de avaliação
que sejam eficientes, tanto em nível da própria avaliação, quanto auxiliares nas
tomadas de decisões nos processos de gerenciamento ambiental (RODRIGUES
et al., 2008b), e o efetivo enquadramento de suas águas.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020 105


Rafaela Silva de Faria; Claudia Padovesi-Fonseca

O monitoramento da qualidade da água é essencial para indicar tendências e


áreas prioritárias para o controle da poluição hídrica, como enfatiza a Agência Nacional
de Águas (ANA), autarquia federal responsável pela implementação da gestão dos re-
cursos hídricos brasileiros. Destaca que o monitoramento propicia a efetividade destas
ações e instrumentos de gestão, como o enquadramento de corpos hídricos em classes
de qualidade (ANA, 2019).
Diante das dificuldades econômicas e de logística existentes na maioria dos mu-
nicípios do Brasil, é imperativo a busca de alternativas para o monitoramento e avalia-
ção da qualidade de água a serem inseridos na aplicação das diretivas. RODRIGUES et
al., (2008a) ressaltam a importância do uso de métodos de diagnóstico e de avaliação
com menores custos e de fácil aplicação, por estes gerarem respostas mais rápidas para
serem utilizadas em gestões ambientais e hídricas.
Por fim, é salutar que os gestores, junto com o governo brasileiro, aumentem a
rede de monitoramento com a finalidade de subsidiar a falta de informações e, desta
forma, concentrar esforços em áreas críticas, procurando preencher as lacunas técni-
cas fundamentais para o planejamento e a gestão dos recursos hídricos.

3. A qualidade e seus quadros em águas doces

A água é um bem natural e essencial para a existência e permanência da vida,


e com o desenvolvimento das sociedades humanas, é utilizada para diversos fins, e
assim considerada como um dos principais recursos ambientais. Com vistas a ga-
rantir atendimento aos seus diversos usos e o acesso a todos, as nações aplicam ins-
trumentos de gestão de suas águas para delinear as atividades humanas de forma a
garantir a preservação e o modo contínuo da qualidade das águas.
O enquadramento dos corpos d’água é um dos instrumentos aplicados
para o gerenciamento dos recursos hídricos. No Brasil esta diretriz rege de acordo
com a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) nº 357
(BRASIL, 2005), que estabelece classes de qualidade hídrica em função dos usos
preponderantes da água. Com isso, visa assegurar qualidade das águas compatíveis
com os seus usos mais exigentes e, por consequência, diminuir os custos de com-
bate à sua deterioração.
O enquadramento é obtido a partir de uma série de parâmetros de qualidade
de água e são estabelecidas cinco classes. Da Classe Especial, que representa os usos
mais exigentes e de elevada qualidade da água, como a proteção e a preservação da
vida aquática, até a Classe 4, que expressa os usos menos exigentes, como a navega-
ção e a harmonia paisagística (Figura 1).
O uso da água para abastecimento humano requer tratamento específico de
acordo com o enquadramento (Figura 1). Em águas classificadas especiais, podem
ser consumidas após desinfecção. Para as classes de 1 a 3, por sua vez, podem ser
consumidas após tratamento da água, e de forma progressiva de acordo com o en-
quadramento, desde tratamentos mais simplificados até os mais avançados.

106 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020


Gestão ecológica das águas:
uma comparação das diretrizes do Brasil e da Europa

Figura 1: Classes de enquadramento e níveis de exigência de usos a que se destinam


as águas doces.
Classe de enquadramento dos corpos d’água

Uso das águas


Especial 1 2 3 4
doces

Preservação do Mandatório
equilíbrio natural em UC de
das comunidades Proteção
aquáticas Integral

Proteção das Mandatório


comunidades em terras
aquáticas indígenas

Recreação de
contato primário

Agricultura

Após
Abastecimento Após Após
Após tratamento
para consumo tratamento tratamento
desinfecção convencional
humano simplificado convencional
ou avançado

Recreação
de contato
secundário

Pesca
Hortaliças,
Hortaliças
frutíferas, Culturas
consumidas
parques, arbóreas,
Irrigação cruas e frutas
jardins, cerealíferas e
ingeridas com
campos de forrageiras
película
esporte

Dessedentação de
animais

Navegação

Harmonia
paisagística

Fonte: Adaptado de SigRH (2019).

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020 107


Rafaela Silva de Faria; Claudia Padovesi-Fonseca

A Resolução nº 91 de 05 de novembro de 2005, estabelecida pelo Conselho


Nacional de Recursos Hídricos, regulamenta os procedimentos gerais para o enqua-
dramento dos corpos de água no Brasil. Essa resolução determina que o enquadra-
mento deve ser desenvolvido de preferência no decorrer da elaboração do Plano de
Recursos Hídricos da bacia hidrográfica em questão. Deve também conter um pro-
grama para efetivação dos objetivos, metas, planos de investimentos e compromissos
(BRASIL, 2008) (Figura 2).

Figura 2: Diagrama do processo de enquadramento segundo a Resolução nº 91 de 05 de


novembro de 2005.

Fonte: SigRH (2019).

Machado et al., (2019) comentam que há uma certa arbitrariedade na elabora-


ção de diagnósticos, na definição dos parâmetros-base e na configuração de cenários
para obtenção do enquadramento de corpos d’água. Este argumento serve de alerta
por ser um dos instrumentos de gestão hídrica diretamente ligado com a questão da
qualidade e quantidade da água, sendo de grande importância para a concessão de
outorgas e licenças ambientais.
Mesmo conhecendo os benefícios do enquadramento dos corpos hídricos, a
sua implementação é considerada um desafio para o sistema de gerenciamento de

108 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020


Gestão ecológica das águas:
uma comparação das diretrizes do Brasil e da Europa

recursos hídricos no Brasil, visto que são poucas as experiências de aplicação desse
instrumento de gestão. A falta de conhecimento sobre o instrumento, dificuldades
metodológicas para sua aplicação e insuficiência de ações de gestão e de recursos fun-
damentais para sua efetivação são alguns dos entraves relacionados (MACHADO op.
cit., 2019 e referências).
Cabe salientar que o enquadramento de um corpo hídrico não indica, neces-
sariamente, a qualidade atual, mas sim uma possível estratégia de planejamento para
atendimento às metas de médio e longo prazos estabelecidas nas diretrizes de gestores
de tomada de decisão de uma determinada região ou bacia hidrográfica. Estabelecer a
qualidade de água pretendida supõe uma avaliação da condição atual do corpo hídrico
– o rio que temos – e a verificação com as partes interessadas da qualidade desejada
para aquele curso d’água – o rio que queremos. Além disso, é necessário definir as
metas com todos envolvidos, considerando os aspectos técnicos e econômicos para al-
cançá-las – o rio que podemos ter (SILVA, 2017). Cardoso-Silva et al., (2015) ratificam
esses aspectos e argumenta que, no caso dos padrões de qualidade estabelecidos
não sejam atendidos, as classes nas quais os corpos hídricos são enquadrados de-
vem ser entendidas como metas a serem alcançadas.
Otomo et al., (2015) realçam aspectos falhos na efetivação do enquadramen-
to devido a flexibilidade na adequação das metas atingidas. Em especial, elencam a
falta de estabelecimento de prazos para atingir as metas estabelecidas pela Resolução
Conama e, dessa forma, muitos corpos hídricos tendem a permanecer degradados.
Podem ser acrescentados a não efetivação do enquadramento, a ausência de planos de
gestão de bacias hidrográficas, de planos sem consolidação, que não apresentam ações
consolidadas para que o enquadramento seja atingido, além da falta de conhecimento
da população a respeito do instrumento, bem como de um sistema de monitoramento
abrangente dos corpos hídricos (FOLETO, 2018).
As diretrizes da gestão de recursos hídricos no Brasil ainda devem ser con-
textualizadas para posições que discriminem com clareza as classes das águas e seu
enquadramento. Os padrões de categorias devem refletir particularidades regionais,
além de inserir, como prioridade, a proteção dos ecossistemas aquáticos e seus ma-
nanciais, como salientado por diversos pesquisadores (YASSUDA, 1993; CARDOSO-
SILVA et al., 2015; OTOMO et al., 2015).

4. Pares e alelos das diretivas no enquadramento Brasil e Europa

As políticas de água adotadas por governos, tanto do Brasil quanto da União


Europeia, são detalhadas em diretrizes e programas, em função da natureza de bem co-
mum da água e dos múltiplos usuários e interesses envolvidos. Exercem grande impor-
tância sobre a qualidade e quantidade dos recursos hídricos (CE, 2000; BRASIL, 2005).
A Resolução Conama nº 357/2005, que se refere à classificação dos corpos hí-
dricos quanto ao uso no Brasil, possui um ordenamento de gestão de recursos hídricos
bem delineados e com uma série de parâmetros de qualidade de água. Entretanto,

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020 109


Rafaela Silva de Faria; Claudia Padovesi-Fonseca

a Diretiva Quadro da Água Europeia (DQAE) apresenta outros parâmetros, como a


hidromorfologia e a biota aquática dos corpos d’água e, com isso, uma ampliação na
perspectiva de obtenção da real classificação da água (SOBRAL et al., 2008).
O uso da biota aquática na classificação das águas e em programas de moni-
toramento tem pretensão de acessar a estrutura e função das comunidades, e com
isso avaliar com mais precisão sua qualidade. O uso de organismos aquáticos, como
o zooplâncton, como indicadores de qualidade de água se mostrou bem promissor
para ambientes aquáticos sujeitos à poluição. Em estudo realizado no reservatório
Paranoá situado no Distrito Federal, o zooplâncton foi a comunidade biológica es-
colhida como sensor na proposta da DQAE. A inclusão deste grupo biológico como
elemento de qualidade produziu dois diferentes cenários referentes ao nível de po-
luição. No período mais poluído dominaram espécies pequenas e detritívoras; ao
passo que no período em que o reservatório ficou menos poluído as espécies maio-
res e filtradoras foram dominantes (PADOVESI-FONSECA, 2020).
Vale salientar que o zooplâncton não foi inserido na implementação da DQA
na Europa, apesar de ser considerado um componente chave para bioindicação
(CARONI & IRVINE, 2010; DAVIDSON et al., 2011; EJSMONT-KARABIN, 2012).
A inclusão deste grupo biológico, bem como de sua avaliação em águas de abaste-
cimento humano no Brasil, configuram elementos essenciais na gestão e enquadra-
mento das águas.
A Diretiva Quadro da Água (DQA) da União Europeia aparece como uma al-
ternativa promissora no gerenciamento dos recursos hídricos brasileiro, pois possui
como objetivo alcançar o bom estado ecológico do corpo d’água (EC, 2012), diferen-
temente do modelo de gestão de recursos hídricos do Brasil, que tem como foco da
gestão o uso que se faz da água (BRASIL 2005). Com isso, a inclusão da DQAE no
Brasil, e em especial, em sistemas de abastecimento humano, fornece subsídios para
consolidar a proteção dos meios hídricos à comunidade, pois estabelece em suas
diretrizes a promoção do uso sustentável da água, além da proteção de ecossistemas
aquáticos e seus mananciais.
Ademais da abordagem ecológica e de efetiva proteção de mananciais, a di-
retiva quadro da água na Europa apresenta um planejamento integrado entre os
tomadores de decisão e a participação da comunidade, por meio de instrumentos
legais e divulgação participativa comunitária (APAMBIENTE, 2020). Neste sentido,
a participação da comunidade representa um dos pilares para a implementação da
DQA na União Europeia. Junto com diagnóstico e prognóstico, estabelece um marco
comunitário nas diretrizes para gestão de recursos hídricos e seu enquadramento
(RABELO, 2012).
A estrutura da DQAE é bastante complexa e apresenta interfaces com o en-
quadramento das águas. Os objetivos serão cumpridos por meio de programas de
medidas (Art. 11º) que por sua vez, devem ser incluídos nos Planos de Gestão de
Bacias Hidrográficas (Art. 13º) (Figura 3).

110 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020


Gestão ecológica das águas:
uma comparação das diretrizes do Brasil e da Europa

Figura 3: Estrutura organizacional da Diretiva Quadro da Água.

Fonte: APAMBIENTE (2020).

Uma das características peculiares da DQAE, em contraste à Política Nacional


de Recursos Hídricos (PNRH) do Brasil, consiste em estabelecer metas progressivas
em determinadas datas para garantir um acompanhamento mais efetivo do processo
de avaliação e resposta. Também define programas de medidas para atingir os ob-
jetivos de qualidade da água do ecossistema de referência, de forma integrada dos
recursos hídricos no âmbito das bacias hidrográficas, independentemente dos limites
territoriais da região avaliada (SOBRAL et al., 2008).
Outra marca diferente da Diretiva-Quadro da União Europeia é designar o
conceito de qualidade ecológica das massas d’água. Este conceito está vinculado às
exigências dos setores de comunidades europeias, e com viés sustentável para garantir
as necessidades humanas futuras. Desse modo, como argumenta CORREIA (2005),
afasta-se dos conceitos tradicionais baseados somente em parâmetros de qualidade de
água, como visto na concepção da legislação brasileira (BRASIL, 2005).
A implementação da Diretiva-Quadro representa um avanço na gestão dos re-
cursos hídricos, pois agrega todos os estados-membros da União Europeia. Com isso,
exige uma ação coerente e cooperação nos diferentes níveis da sociedade, do local, do
regional, do comunitário em comum com os estados-membros (RABELO, 2012). Esta

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020 111


Rafaela Silva de Faria; Claudia Padovesi-Fonseca

mudança de paradigma efetivou a cobrança da sociedade bem como de pesquisadores


e especialistas para a implementação e desenvolvimento das diretrizes no âmbito da
União Europeia (SARAIVA, 2010). De acordo com as diretrizes da DQA Europeia,
a Tabela 1 apresenta as definições dos diferentes estados de qualidade hídrica, bem
como o que representa o bom estado, para as águas continentais.

Tabela 1: Classificação do estado dos recursos hídricos de acordo com a Diretiva


2000/60/CE. Diretriz do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 2000/60/CE, de 23
de outubro de 2000.
Estado Definição O bom estado
Para os recursos hídricos de superfície:
Presença de substâncias químicas que em con- Águas de superfície:
dições naturais, não estariam presentes, e que Corresponde ou à ausência
são susceptíveis de causar danos significativos dessas substâncias nas águas, ou
para saúde humana e para flora e fauna, pelas a presença com concentrações
suas características de persistência, toxicida- inferiores às normas
de, bioacumulação (substâncias perigosas – de qualidade estabelecidas a
Diretiva 76/464/CEE) nível comunitário.
Químico
Os critérios de seleção das substâncias Águas subterrâneas:
prioritárias a serem eliminadas baseiam-se na Concentrações de poluentes não
combinação entre o grau de periculosidade apresentem salinidade ou outro
das próprias substâncias e a exposição am- poluente que provoquem danos
biental a essas mesmas substâncias. Diretiva- significativos aos ecossistemas
-Quadro estabelece estratégias para a redução terrestres que dependam desses
ou eliminação progressiva das descargas, recursos hídricos.
emissões e perdas dessas substâncias, para as
águas superficiais.

Relaciona-se à qualidade estrutural e funcional


dos ecossistemas aquáticos associados às águas
de superfície. Este conceito, cuja definição é es-
pecificada os diferentes tipos de água, engloba
diversos parâmetros relativos à natureza físico-
-química da água, às características hidrodinâ- Águas de superfície:
micas e à estrutura física dos meios hídricos. Mesmo que sujeitas à influência
São definidos 3 grupos de parâmetros: bióticos, significativa das atividades
hidromorfológicos e físico-químicos. humanas, que se traduz por um
Ecológico
desvio relativamente à “situação
O “estado ecológico” é expresso relativamente de referência”, constitui, ainda
a uma “situação de referência”, que é a situação assim, um ecossistema rico,
dos ecossistemas aquáticos na ausência de diversificado e sustentável.
qualquer influência antrópica significativa, ou
seja, o fim de toda a influência antrópica sobre
os recursos hídricos, com todas as medidas
para restaurar as condições hidromorfológicas,
físico-químicas e bióticas originais, aplicadas.

112 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020


Gestão ecológica das águas:
uma comparação das diretrizes do Brasil e da Europa

Águas subterrâneas:
Quando no sistema aquífero o
balanço entre as extrações e as
descargas de água, por um lado,
É o estado hidrodinâmico dos recursos e as alterações da recarga natural,
hídricos subterrâneos sujeito a extrações e por outro, é sustentável a longo
Quantitativo a descargas de água, diretas e indiretas, e a prazo, e não provoca à degrada-
alterações da recarga natural devido às ações ção da qualidade ecológica das
antrópicas. águas de superfície hidraulica-
mente conectadas com o sistema
aquífero, nem afetam a qualidade
dos ecossistemas terrestres e das
zonas úmidas associadas.

O conceito de “estado ecológico” só é aplicá-


vel aos recursos hídricos de superfície cujas
condições hidromorfológicas sejam aproxi-
madamente idênticas às que corresponderiam Águas superficiais:
às condições naturais respectivas. A atividade Os recursos hídricos podem ser
humana apenas provoca alterações significa- designados como artificiais ou
tivas nas condições físico-químicas e bióticas fortemente modificados, quando
desses recursos hídricos, e com a cessação de não seja possível modificar as
todas as ações antrópicas, essas águas retorna- condições hidromorfológicas
riam às condições naturais que correspondem necessárias para a reconstituição
Potencial à “situação de referência”. do “bom estado ecológico”, por
ecológico serem modificações tecnica-
Os recursos hídricos cujas características mente ou economicamente
hidromorfológicas tenham sido alterados inviáveis ou quando as modi-
pelas atividades humanas de tal forma que ficações exigíveis possam ser
tenham resultado numa mudança substancial adversas para o ambiente ou
relativamente ao tipo de recurso hídrico de quando avaliadas num contexto
referência, como é o caso de canais e dos socioeconômico em função
portos, designados como recursos hídricos do uso múltiplo das águas.
artificiais ou fortemente modificados,
o conceito de “bom estado ecológico” é
substituído pelo de “bom potencial ecológico”.

Fonte: Sobral et al., 2008.

Em resumo, três aspectos podem ser destacados para análise da inserção da


Diretiva-Quadro da UE em sistemas de abastecimento humano no Brasil. O pri-
meiro aspecto a ser destacado é a inclusão de parâmetros hidromorfológicos dos
corpos hídricos bem como de sua biota aquática prevista na DQAE. As dimensões
morfométricas de rios, lagos e reservatórios, por exemplo, bem como de seus flu-
xos e vazões, exercem influência na qualidade de suas águas, como foi evidenciado
em estudos de avaliação rápida de rios (PADOVESI-FONSECA et al., 2010). A
inclusão da biota aquática para avaliação da qualidade de água foi evidenciada na
seção 4 deste artigo.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020 113


Rafaela Silva de Faria; Claudia Padovesi-Fonseca

O segundo item se refere à necessidade de estimular a participação da co-


munidade na garantia e visibilidade da sociedade de forma democrática. A so-
ciedade participa em tomadas de decisão e mecanismos de informação e comu-
nicação, e consequente na gestão participativa da política de recursos hídricos
(RABELO, 2012). A legislação brasileira é bastante genérica nesse aspecto, mais
centrada nas necessidades de ordem técnica do que de mobilização social.
O terceiro item integra a estrutura organizacional da DQA de forma mais
ampla, em estados-membros. Talvez este não seja mais adequado à realidade bra-
sileira. Os comitês de bacia hidrográfica têm independência nas decisões relativas
ao gerenciamento de suas bacias.
Entretanto, ao mesmo tempo que as diretrizes pautadas pela DQA na União
Europeia possibilitem ampliar a visibilidade e o interesse da participação da socie-
dade, de outro lado pode inibir iniciativas originais ou adequadas à realidade de
cada lugar, ou mesmo ao gerenciamento de determinada bacia hidrográfica.

5. Conclusões

Ficou notório que o gerenciamento adequado de recursos hídricos é bastante


complexo, e engloba desenhos de análise por instrumentos técnicos viáveis e comple-
mentares, e que seguem diretrizes de legislação ambiental na medida de produção de
cenários mais consolidados para o seu enquadramento.
Apesar da legislação brasileira sobre recursos hídricos apresentar grande avan-
ço com o passar dos anos, constata-se que ainda é precária a situação em que se en-
contram muitos corpos hídricos no Brasil. A Política das Águas apresenta uma série
de medidas promissoras, que provavelmente alcançarão resultados eficazes na preser-
vação das águas, mas muito ainda pode ser feito no sentido de aprimorar a gestão dos
recursos hídricos no país.

114 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.101-117, 2020


Gestão ecológica das águas:
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Segurança e vulnerabilidade hídrica:
evoluções conceituais à luz da gestão Integrada e Sustentável
Water Security and Vulnerability:
conceptual evolution in the Integrated and Sustainable Management
Seguridad y vulnerabilidad del Agua:
evolución conceptual a la Luz de la Gestión Integrada y Sostenible

Micaella Raíssa Falc ão de Moura 1


Francine Modesto dos Santos 2
Carlos de Oliveira Galvão3
Suzana Maria Gico Lima Montenegro4
Simone Rosa da Silva5

Resumo
MOURA, M. R. F. de; SANTOS, F. M. dos; GALVÃO, C. de O.; MONTENEGRO, S. M. G. L.; SIL-
VA, S. R. da. Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais à luz da Gestão Integrada
e Sustentável. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 119-141, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropi-
cov44n1(2020)art6
O gerenciamento integrado da água, com premissas baseadas na Sócio-hidrologia,
direciona os sistemas socioecológicos à sustentabilidade. O presente artigo apre-
sentou um Mapa Conceitual para compreensão de evoluções conceituais relativas
à segurança e à vulnerabilidade hídrica na perspectiva da Sustentabilidade Global.
Para isso, realizou-se uma revisão de literatura para o desenvolvimento de uma es-
trutura teórica que relaciona conceitos-chave fundamentais para análise e discus-
são interdisciplinar do gerenciamento sustentável da água. Observa-se que existem
evoluções conceituais no campo dos recursos hídricos que passaram a contem-
plar abordagens interdisciplinares que, por muito tempo, foram negligenciadas. O
Mapa Conceitual mostrou ainda que há múltiplos focos no conceito e no estudo da
Segurança Hídrica, de modo que esta pesquisa manteve o foco na Vulnerabilidade

1
Doutora em Recursos Hídricos no Programa de Pós-graduação em Eng. Civil e Ambiental do Centro de Tecno-
logias e Geociências UFPE- (PPGEC-CTG-UFPE). Docente do Centro Universitário Estácio do Recife. E-mail:
micaellaraissa@hotmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8710-3429
2
Mestre e Doutora em Demografia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realizou pós-douto-
rado na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) como bolsista do INCT Mudanças Climáticas - Fase
II (2018-2020). E-mail: franmodesto@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5249-1230
3
Professor Titular da Universidade Federal de Campina Grande. Doutor em Recursos Hídricos e Saneamento
Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999). E-mail: carlos.o.galvao@gmail.com Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-0800-7085
4
Professora Titular, membro permanente do Programa de Pós- Graduação em Engenharia Civil da UFPE (Mes-
trado e Doutorado) e do Programa de Pós- Graduação em Engenharia Agrícola e Ambiental da Universidade Fe-
deral Rural de Pernambuco. E-mail: suzanam.ufpe@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2520-5761
5
Professora Associada da Escola Politécnica da Universidade de Pernambuco, docente permanente do Mestrado
em Engenharia Civil e docente colaboradora do Mestrado em Tecnologia Ambiental do ITEP - Instituto de Tec-
nologia de Pernambuco (ITEP-OS). E-mail: simonerosa@poli.br Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7138-7546

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020 119


Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

e na Sustentabilidade, entendendo que estes são elementos relevantes para conso-


lidar a prática da Gestão Integrada de Recursos Hídricos em prol da garantia da
Segurança Hídrica.
Palavras-chave: Segurança Hídrica. Gestão Integrada de Recursos Hídricos. Vulnerabi-
lidade Hídrica. Sus-tentabilidade.

Abstract
MOURA, M. R. F. de; SANTOS, F. M. dos; GALVÃO, C. de O.; MONTENEGRO, S. M. G. L.; SILVA,
S. R. da. Water Security and Vulnerability: Conceptual Evolution in the Integrated and Sustainable
Management. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 119-141, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetro-
picov44n1(2020)art6
Integrated water management based on Socio-hydrology premises leads socio-eco-
logical systems to sustainability. This article presented a Conceptual Map for un-
derstanding conceptual developments related to water security and vulnerability
from the perspective of Global Sustainability. To reach this goal, a literature review
was carried out to develop a theoretical framework that lists key concepts that are
fundamental for the interdisciplinary analysis and discussion of sustainable water
management. It was observed that there are conceptual evolutions in the field of
water resources that started to contemplate interdisciplinary approaches that, for
a long time, were neglected. The Conceptual Map also showed the multiple focu-
ses on the definition and study of Water Security. This research kept the focus on
Vulnerability and Sustainability, understanding that they are relevant elements to
consolidate the Integrated Water Resources Management practice in favor of gua-
rantee Water Security.
Keywords: Water Security. Integrated Water Resources Management. Water Vulnerability.
Sustainability.

Resumen
MOURA, M. R. F. de; SANTOS, F. M. dos; GALVÃO, C. de O.; MONTENEGRO, S. M. G. L.; SILVA,
S. R. da. Seguridad y vulnerabilidad del Agua: Evolución Conceptual a la Luz de la Gestión Inte-
grada y Sostenible. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 119-141, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/
cetropicov44n1(2020)art6
La gestión integrada del agua con fundamentos basados en la Sociohidrología di-
rige los sistemas socioecológicos hacia la sostenibilidad. Este artículo presenta un
Mapa Conceptual para comprender los desarrollos conceptuales relacionados con
la seguridad y vulnerabilidad del agua en la perspectiva de la sostenibilidad glo-
bal. Con este fin, se realizó una revisión exhaustiva de la literatura para desar-
rollar un marco teórico que enumera los conceptos clave que son fundamentales
para el análisis interdisciplinario y la discusión de la gestión sostenible del agua.
Se observó que hay evoluciones conceptuales en el campo de los recursos hídricos
que comenzaron a contemplar enfoques interdisciplinarios que, durante mucho
tiempo, fueron descuidados. El Mapa Conceptual también muestra que existen

120 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020


Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais
à luz da Gestão Integrada e Sustentável

múltiples enfoques en la definición y el estudio de la Seguridad del Agua. Esta


investigación mantuvo el enfoque en Vulnerabilidad y Sostenibilidad, entendien-
do que estos son elementos relevantes para consolidar la práctica de la Gestión
Integrada de los Recursos Hídricos a favor La garantía de Seguridad del Agua.
Palabras clave: Seguridad del agua. Gestión integrada de recursos hídricos. Vulnerabilidad
del agua. Sostenibilidad.

Data de submissão: 18/04/2020


Data de aceite: 08/06/2020

1. Introdução

O reconhecimento da água como direito humano fundamental é ainda recente


e a proteção deste direito exige que modelos de gestão essencialmente pragmáticos
e higienistas deem lugar a abordagens interdisciplinares fundamentadas na ciên-
cia Sócio-hidrológica. Um grande diferencial desta ciência, quando comparada
às demais ciências interdisciplinares que lidam com a água, é a inclusão direta
e bidirecional de feedbacks entre os sistemas hídrico e humano. Nesse sentido, a
Sócio-hidrologia dá suporte à prática da chamada Gestão Integrada de Recursos
Hídricos (GIRH) (SIVAPALAN et al., 2012; 2014).
Segundo Cook e Bakker (2012), tanto a GIRH quanto a Segurança Hídrica
(SH) podem ser consideradas paradigmas complementares, pois implicam a neces-
sidade de integrar quantidade e qualidade da água, considerando aspectos sociais
e ecossistêmicos. Beek e Arriens (2014) reforçam que a SH pode ser compreendida
como o objetivo principal da Gestão Integrada. Tais conceitos, porém, abrigam
intensa complexidade quanto à sua aplicação prática, tendo em vista que os múlti-
plos usos e demandas por água desafiam a capacidade dos sistemas de governança
em oferecer respostas (RIBEIRO; FORMIGA-JOHNSSON, 2018).
Apesar dos esforços para consolidar a prática da GIRH em prol da garantia
da SH, observam-se entraves à operacionalização desses conceitos. O mesmo pro-
blema pode ser notado com relação ao conceito de Vulnerabilidade Hídrica (VH).
Nesse sentido, Grosbois e Plummer (2015) afirmam que a avaliação da VH con-
tribui para uma sinalização mais direta acerca das insuficiências, das ausências ou
das fragilidades relacionadas aos recursos hídricos e à sua correlação com outros
sistemas em uma determinada região.
No âmbito hidrológico brasileiro, as noções de vulnerabilidade permeiam
ordenamentos jurídicos diversos (e.g. Plano Nacional de Segurança Hídrica –
PNSH – 2019). Contudo, em razão de fatores como a não efetividade de dispo-
sitivos expressos na própria Lei das Águas 9433/97 (BRASIL, 1997), o cenário de
vulnerabilidade hídrica tem sido atestado em relatórios da Agência Nacional de
Águas (ANA) e em pesquisas científicas. Os documentos da ANA caracterizam

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020 121


Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

o quadro nacional de Insegurança Hídrica (IH), seja pela falta do recurso hídri-
co (cenário de secas) ou por seu excesso (cenário de cheias) (DAMACENA, 2015;
BOLSON; HAONAT, 2016).
No cenário de secas, o quadro nacional de IH tem sido abordado principal-
mente na região do semiárido. As previsões de intensos extremos climáticos e a de-
gradação dos solos aumentam as incertezas nos processos administrativos da água,
colaborando para uma maior suscetibilidade aos danos causados por secas mais in-
tensas e prolongadas (MARENGO, 2008; MARENGO et al., 2011). Destacam-se as
particularidades fisioclimáticas desta região, que, aliadas a políticas públicas equivo-
cadas, culminaram para acentuar esta conjuntura crítica de elevada vulnerabilidade
(CIRILO, 2008; CIRILO; MONTENEGRO; CAMPOS, 2017).
Dessa forma, faz-se necessário que as complexidades e os conceitos intrín-
secos aos processos de gerenciamento das águas sejam analisados com clareza, pois
permitem trazer à tona obstáculos à consolidação de políticas públicas, por exem-
plo, possibilitando ainda encontrar oportunidades à reestruturação do sistema e ao
fortalecimento de medidas adaptativas (CARVALHO; CURI, 2016; LOPEZ PORRAS;
STRINGER; QUINN, 2019).
Diante do exposto, este artigo desenvolve uma estrutura teórica (Mapa
Conceitual) para compreensão de evoluções conceituais relativas à segurança e à vul-
nerabilidade hídrica na perspectiva da sustentabilidade, além de realizar uma análise
na esfera estadual, sendo identificados marcos político-institucionais responsáveis por
introduzir formalmente o conceito de segurança hídrica no estado de Pernambuco,
localizado na região Nordeste do Brasil.
O primeiro passo para alcançar o objetivo proposto consistiu em uma revisão
abrangente da literatura para a formulação do embasamento teórico em acordo com a
temática relacionada a: a) Sustentabilidade Global (e.g. UN, 2015); b) Sócio-hidrologia
(e.g. SIVAPALAN et al., 2014; MAO et al., 2017); c) Gestão Integrada de Recursos
Hídricos - GIRH (e.g. SAVENIJE; VAN DER ZAAG, 2008; GWP-C, 2015); d) SH (e.g.
GWP, 2000; OECD, 2013)); e e) Vulnerabilidade (e.g. ADGER, 2006; SULLIVAN,
2011; PLUMMER; de LOË; ARMITAGE, 2012). Para tanto, foram reunidos e cata-
logados para análise artigos científicos, instrumentos jurídicos e outros documentos
nacionais e internacionais.
Esses conceitos-chave possibilitam um melhor entendimento das discussões
interdisciplinares apontadas como fundamentais para analisar a segurança e a vul-
nerabilidade da água. A partir da revisão da literatura, foi desenvolvida a estrutura
teórica (Mapa conceitual da SH e da VH na perspectiva da Sustentabilidade Global).

2. Segurança Hídrica (SH)

Devido às perdas progressivas e generalizadas de serviços ecológicos, al-


cançar a segurança hídrica a partir de uma perspectiva de desenvolvimento sus-
tentável requer um compromisso global significativo para redirecionar a trajetória

122 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020


Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais
à luz da Gestão Integrada e Sustentável

descendente dos ecossistemas e promover níveis coletivos de gerenciamento de re-


cursos naturais. Até o início dos anos 90, o conceito de SH estava significativamente
focado em infraestruturas hidráulicas para conciliar demandas e disponibilidade de
água, contando com soluções de engenharia centralizadas e sem considerar ou prio-
rizar medidas de prevenção com boa relação custo-benefício (VÖRÖSMARTY et al.,
2018; GLEICK, 1993, 2002).
Nesse sentido, Gleick (2002, p.373) traz o conceito de caminhos rígidos ou
“hard paths” e caminhos flexíveis da água ou “soft water paths”: o primeiro depende
quase que exclusivamente da infraestrutura centralizada para captar, tratar e forne-
cer suprimentos de água, enquanto o segundo complementa o primeiro, investindo
em instalações descentralizadas, tecnologias, políticas eficientes e capital humano
Esse conceito de SH, no entanto, evoluiu substancialmente, passando a consi-
derar análises multifatoriais que vão de encontro às visões tradicionalistas, nas quais
as relações interdisciplinares e transdisciplinares costumavam ser negligenciadas
(COOK; BAKER, 2012; JAMES; SHAFIEE-JOOD, 2017; BOGARDI et al., 2012).
As mudanças crescentes no clima e no uso e ocupação do solo tornaram a gestão
da água uma tarefa difícil, acrescentando variabilidade hidrológica e incerteza aos
processos de tomada de decisão (UNESCO, 2013). Nesse contexto, o conceito de
SH também está evoluindo para acompanhar as complexas interações entre seres
humanos e o meio ambiente.
Consequentemente, os desafios para alcançar a segurança da água assumi-
ram uma dimensão global entre os governos, considerando fundamentalmente a
sustentabilidade das nações. Esse fato contribuiu para o surgimento de novas estru-
turas conceituais que abordam a natureza inter-relacionada dos recursos globais, e
exemplo do nexo água-energia-alimento. Esses três eixos estão sob pressão cons-
tante, considerando sua importância em sustentar a existência e a sobrevivência da
vida humana, conforme apontado por Pasqual, Bollmann e Scott (2016), Pasqual,
Lardizabal e Herrera (2015) e Rasul e Sharma (2014).
Os conceitos de segurança hídrica formulados por organizações internacio-
nais incluem a importância da água para atender às demandas humanas essenciais
de subsistência. Além da ONU, organizações como World Water Council, Global
Water Partnership e WaterAid exploram abordagens quantitativas e qualitativas da
disponibilidade de água para as necessidades humanas básicas, destacando o papel
de proteção do ecossistema e sua relevância na melhoria da vida das sociedades
(UN WATER, 2013; WWC, 2012; GWP, 2014; WATERAID, 2012). A abordagem
baseada no risco da água é contemplada pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), que também considera os riscos responsá-
veis pelo enfraquecimento da resiliência dos sistemas de água doce (OECD, 2013).
Enquadramentos de múltiplas perspectivas para a SH, em ampla revisão de
literatura, são apresentados por Hoekstra, Buurman e Van Ginkel (2018), sublinhan-
do-se que diferentes contextos contribuem para diferentes interpretações do termo.
Destaca-se a atenção especial que tem sido dada às questões de segurança hídrica

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020 123


Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

urbana (SHU), com estruturas integradas para abordagens quantitativas aplicáveis


às cidades em todo o mundo (KRUEGER; RAO; BORCHARDT, 2019), modelos de
avaliação da SHU baseados na teoria de catástrofes (YANG et al., 2012) e méto-
dos de seleção de indicadores para medir a SHU de cidades ao longo do tempo
(JENSEN; WU, 2018).
No que se refere a índices de segurança hídrica, muitos têm sido diretamente
relacionados ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da água (ODS-6). Gain,
Giupponi e Wada (2016) usam uma estrutura de análise espacial de múltiplos crité-
rios para fornecer uma primeira compreensão do status global de segurança hídrica.
Os autores apresentam como meta monitorar o progresso em direção aos ODS em
diferentes países (e.g. China, Índia, Austrália e Brasil), levando em consideração três
dimensões principais (física, socioeconômica e governança) e agregando os indica-
dores de quatro critérios principais: ‘disponibilidade’, ‘acessibilidade aos serviços’,
‘segurança e qualidade’ e ‘gestão’. 
Métricas de SH baseadas em ODS também foram propostas por Van Noordwijk
et al., (2016). Por meio de um estudo de caso na Indonésia, os autores afirmam que
os ciclos de aprendizado adaptável provavelmente direcionam o progresso em di-
reção aos ODS, supondo que a maneira como as pessoas e os ecossistemas possam
adaptar-se às mudanças climáticas seja a chave do conceito de segurança. O Quadro
1 apresenta um resumo dos conceitos de segurança hídrica abordados por órgãos
internacionais e pela Agência Nacional de Águas (ANA).

Quadro 1: Principais conceitos de segurança hídrica.


Fonte Conceito de Segurança Hídrica
O acesso confiável à água em quantidade suficiente e de qualidade para as neces-
WaterAid sidades básicas humanas, em pequena escala, garantia dos meios de subsistência e
(2012) dos serviços dos ecossistemas locais, juntamente a uma adequada gestão dos riscos
inerentes aos desastres relacionados com a água.
A capacidade de uma população de salvaguardar o acesso sustentável a quanti-
dades adequadas de água de qualidade para garantir meios de sobrevivência, o
ONU (2013) bem-estar humano, o desenvolvimento socioeconômico; para assegurar proteção
contra poluição e desastres relacionados à água, e para preservação de ecossistemas
em um clima de paz e estabilidade política.

Gerir riscos associados à água, incluindo riscos de armazenamento


OECD
de água, excesso, poluição e riscos de enfraquecer ou debilitar
(2013)
a resiliência dos sistemas de água doce.

Consiste, inicialmente, na garantia de necessidades essenciais do dia a dia, como


saúde e alimento: água para produzir produtos alimentícios e melhorar rendimentos
agrícolas; água limpa e segura para ajudar a reduzir doenças de veiculação hídrica-
World Water
que continuam a ser uma das principais causas de morte. Consiste ainda na garantia
Council
de segurança econômica e social para produção de bens e serviços necessários ao
(2013)
desenvolvimento e aumento da qualidade de vida. Também abrange a segurança
ecológica para retornar à natureza o papel essencial da água para preservação da
biodiversidade e manutenção de ecossistemas.

124 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020


Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais
à luz da Gestão Integrada e Sustentável

A essência da segurança hídrica é que o interesse pelo recurso base está acompa-
nhado do interesse ao serviço que explora ou utiliza o recurso base, como o uso
humano, agricultura, atividades econômicas e proteção ambiental. Ambos aspectos
Global Water
de qualidade e quantidade de água devem ser considerados uma vez que a qualida-
Partnership –
de afeta o valor da água e o impacto ao meio ambiente. Segurança hídrica significa
GWP (2014)
aproveitar o potencial hídrico e combater os efeitos destrutivos da água; ou seja, os
danos causados por inundações, secas, deslizamentos de terra, erosão, poluição e
transmissão de doenças.
O objetivo da segurança hídrica é aproveitar as oportunidades e gerenciar os ris-
OECD|GWP
cos associados à água e, ao fazê-lo, promover o crescimento sustentável e maior
(2015)
bem-estar.
Condição que visa garantir quantidade e qualidade aceitável de água para abas-
tecimento, alimentação, preservação de ecossistemas e demais usos, associados a
ANA (2015)
um nível aceitável de riscos relacionados com a água para as pessoas, economias
e meio ambiente.
Fonte: Adaptado de Melo e Formiga-Johnsson (2017).

Na escala nacional, observa-se, por meio do exposto no Quadro 1, que a ANA


segue os moldes e as tendências das organizações internacionais ao consolidar uma
abordagem conceitual relativa à segurança hídrica no quadro da gestão dos recursos
hídricos brasileiros. Porém, embora os objetivos de assegurar a quantidade e a melho-
ria da qualidade de água tenham sido contemplados na Política Nacional de Recursos
Hídricos, o conceito de segurança da água é recente e carece ainda de legitimidade.
Nesse sentido, coloca-se em evidência o Projeto de Lei nº 65, de 2017, do Senado
Federal, que propôs incluir a SH como um dos pilares da Lei das Águas e incluir os
Planos de Segurança Hídrica entre os instrumentos da Política Nacional de Recursos
Hídricos (BRASIL, 2017a).
Ainda na esfera nacional, faz-se importante destacar o papel do Plano Nacional
de Segurança Hídrica (PNSH), lançado em 2019, fruto de parceria entre a ANA e o
Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). O PNSH se configura como inicia-
tiva inédita no país e se alinha com os conceitos internacionais de SH, visando, entre
outros, assegurar “um planejamento integrado e consistente de infraestrutura hídrica
com natureza estratégica e relevância regional, até o horizonte de 2035, para redução
dos impactos de secas e cheias” (ANA, 2019a, p.17).
O PNSH concebeu o Índice de Segurança Hídrica (ISH), com o intuito de “re-
tratar, com simplicidade e clareza, as diferentes dimensões da segurança hídrica, in-
corporando o conceito de risco aos usos da água” (ANA, 2019a, p.20). Assim como
o ISH, indicadores compostos relacionados à SH têm sido eficazes ao utilizar parâ-
metros técnicos que permitem traçar panoramas da segurança dos recursos hídricos,
especialmente em áreas urbanas e em bacias hidrográficas em geral (e.g. RIBEIRO;
PIZZO, 2011; TUCCI, 2017; DUTRA, 2017; WANG; LI; LI, 2018; MACHADO, 2018).
Partindo para uma abordagem da esfera estadual, em Pernambuco, nordeste
do Brasil, pode-se verificar, por meio de uma análise contextual histórica, que hou-
ve uma consolidação de marcos político-institucionais responsáveis por introduzir

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020 125


Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

formalmente o conceito de segurança hídrica. A preocupação em expandir os serviços


de abastecimento de água e esgotamento sanitário passou a agregar fatores relativos à
melhoria da eficiência desses serviços e da gestão institucional, especialmente a partir
do ano de 2010. No que se refere à legislação, o Quadro 2 reúne os principais instru-
mentos legais de Pernambuco que guardam relação com o tema.

Quadro 2: Instrumentos legais de Pernambuco relacionados à temática de segurança hídrica


Instrumento Legal
Ano Descrição da matéria
PE
Lei Estadual 6.307 Autoriza o Poder Executivo a constituir a Companhia Pernam-
1971
29 de julho de 1971 bucana de Saneamento (COMPESA) e dá outras providências.
Aprova o Regulamento Geral do Fornecimento de Água e da
Decreto nº 18.251
1994 Coleta de Esgotos, realizadas pela Companhia Pernambucana
21 de dez de 1994
de Saneamento - COMPESA.
Dispõe sobre a Política e o Plano Estadual de Recursos Hídri-
Lei no 11.426
cos, institui o Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos
17 janeiro de 1997
Hídricos e dá outras providências.
Lei nº 11.427 Dispõe sobre a conservação e a proteção das águas subterrâneas
1997 17 de janeiro de 1997 no Estado de Pernambuco e dá outras providências.
Regulamenta a Lei 11426/1997 que dispõe sobre a Política
Decreto nº 20.269
Estadual de Recursos Hídricos e o Plano Estadual de Recursos
24 de dez de 1997
Hídricos e institui o SIGRH.

Decreto nº 20.423 Regulamenta a Lei nº 11.427 de 17 de janeiro de 1997 que dispõe


26 de março de 1998 sobre a conservação e a proteção das águas subterrâneas no Estado.
1998
Aprova o Regulamento do Código Sanitário do Estado de
Decreto nº 20.786
Pernambuco. Realiza a execução da política governamental de
10 de agosto de 1998.
abastecimento de água e esgotamento sanitário.

Dispõe sobre a estrutura organizacional do Poder Executivo Es-


tadual, cria e extingue cargos e dá outras providências. Criação
Lei nº 11.629
1999 Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), extinta pela Lei comple-
28 de janeiro de 1999
mentar nº49 de 31 de janeiro de 2003 e novamente criada pela
Lei 13.205, de 19 de janeiro de 2007.

Estabelece distância mínima entre poços tubulares nas Bacias


Portaria SRH nº 2506
2000 Sedimentares Costeiras de Pernambuco, define critérios e limi-
de junho de 2000
tes para captação de água subterrânea.
Cria o Quadro de Servidores e Empregados da Agência Estadu-
Lei nº 12.505
2003 al de Meio Ambiente e Recursos Hídricos - CPRH, e dá outras
16 de dez de 2003
providências.
Dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos e o Sis-
Lei nº 12.984
2005 tema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos, e dá
30 de dez de 2005
outras providências.
Dispõe sobre aprovação de Projetos de conservação, proteção e
Resolução CRH nº recuperação dos Recursos Hídricos pelos Comitês de Bacias Hi-
2009
005/2009 – drográficas/COBHS e Conselhos Gestores de Açudes/CONSUS
no Estado de Pernambuco e dá outras providências.

126 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020


Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais
à luz da Gestão Integrada e Sustentável

Cria a Agência Pernambucana de Águas e Clima – APAC, para


Lei nº 14.028
complementar o SIGRH e fortalecer o planejamento e regulação
26 de março de 2010
dos usos múltiplos dos recursos hídricos e dá outras providências.

Institui a Política Estadual de Enfrentamento às Mudanças


Lei nº 14.090
Climáticas de Pernambuco, e dá outras providências. * Plano
17 de junho de 2010
Estadual de Mudanças Climáticas (2011).
2010
Institui a Política Estadual de Combate à Desertificação e Miti-
Lei nº 14.091
gação dos Efeitos da Seca, e das outras providências. * Progra-
17 de junho de 2010
ma Estadual de Combate à Desertificação e Mitigação
Institui a Política Estadual de Gerenciamento Costeiro, e dá ou-
Lei nº 14.258 tras providências. Tem por objetivo geral disciplinar e orientar a
23 de dez de 2010 utilização dos recursos naturais da Zona Costeira do Estado de
Pernambuco.
Estabelece os procedimentos para realização de aquisições e
Decreto nº 38.147de 4 contratação de obras e serviços necessários à execução das
de maio de 2012 ações emergenciais de combate aos efeitos da estiagem no âmbi-
to do Estado de Pernambuco nos anos de 2011 e 2012.
Resolução CRH nº
2012 Cria e nomeia Grupo de Trabalho para normatização de explora-
05 17 de outubro de
ção de areia em leito seco de rios intermitentes em Pernambuco.
2012
Estabelece procedimentos administrativos de fiscalização do
Decreto nº 38.752
uso de recursos hídricos no Estado de Pernambuco, e dá outras
22 de Out de 2012
providências.
Lei nº 14.922 Institui a Política Estadual de Convivência com o Semiárido.
2013
18 de março de 2013 *Plano Estadual de Convivência com o Semiárido*
Estabelece normas e procedimentos para obtenção de outorgas
Resolução CRH nº02 do direito de uso dos recursos hídricos em aluviões localizadas
03 de maio de 2017 em rios intermitentes no Estado de Pernambuco, tendo em vista
2017 a exploração de areias.
Portaria Conjunta Estabelecem condições e procedimentos para obtenção da
APAC/CPRH nº Licença Ambiental e da Outorga do Uso dos Recursos Hídricos
001/2017 nos mananciais de domínio do Estado de Pernambuco.
Fonte: Elaboração dos autores.

3. Vulnerabilidade Hídrica (VH)

O conceito de vulnerabilidade pode ser considerado como uma ferramenta


analítica eficiente para descrever estado de vulnerabilidade ao dano, prejuízo e impo-
tência de sistemas socioecológicos (ADGER, 2006).
De acordo com Rotava (2014), muitos são os obstáculos e as implicações no
que diz respeito à obtenção de um conceito geral para a vulnerabilidade. Embora al-
guns autores (CUTTER, 1996; HOGAN e MARANDOLA JR., 2006; ROTAVA, 2014)
se esforcem para mostrar a multidimensionalidade da vulnerabilidade e a evolução
do conceito ao longo do tempo, ainda há um grande desafio, primeiro a) conceitual

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020 127


Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

em apreender a multidimensionalidade deste conceito polissêmico e multivariado e,


segundo, b) consensual para conceituar vulnerabilidade e, consequentemente, a sua
operacionalização (ALMEIDA, 2012).
Marandola Jr. e D´antona (2014) problematizam o conceito de vulnerabilidade
apontando os principais entraves para a sua operacionalização e potenciais aplicações,
especialmente em políticas públicas. Os autores destacam a importância dos estudos
sobre vulnerabilidade, seja na tradição dos estudos ambientais, seja nos estudos sobre
saúde ou nos estudos sobre pobreza, para a compreensão e o enfrentamento de ques-
tões relacionadas à segurança humana e a sustentabilidade.
O termo vulnerabilidade, muitas vezes, se confunde “com definições anteriores
de risco, e da mesma forma, parece ter problema na conexão entre o nível teórico e
o operacional” (ROTAVA, 2014, p.32). Esse problema de relação teórico-operacional
é também apontado por Berrouet, Machado e Villegas-Palacio (2018), que sinalizam
ainda que, diante das degradações e perdas dos serviços ecossistêmicos, uma crescente
atenção tem sido dada à análise da vulnerabilidade dos sistemas socioecológicos.
Em se tratando especificamente da vulnerabilidade hídrica, Perveen e James
(2011, p.321) conceituam o termo como a “vulnerabilidade de uma região resultan-
te da disponibilidade limitada de recursos hídricos e uso intensivo da água”. Nesse
aspecto, Plummer, De Loë e Armitage (2012) realizaram uma síntese das ferramen-
tas de avaliação de vulnerabilidade hídrica existentes, de maneira a facilitar o uso e a
adaptação de tais ferramentas a contextos particulares. Os autores identificaram 710
indicadores de VH, categorizados em 22 subdimensões e cinco dimensões (recursos
hídricos; outros ambientes físicos; economia; instituições e social).
Da pesquisa dos autores acima citados, a GIRH surge chamando a atenção para
uma gama diversificada de valores associados à água e a discussão ilustra até que ponto
as ferramentas de avaliação da VH analisadas refletem uma abordagem holística. Esta
discussão é também contemplada por Sullivan (2011), que realizou a identificação do
estado atual da vulnerabilidade hídrica em escala municipal na África do Sul, e por
Hurd et al., (1999), que apresentaram um conjunto de indicadores de vulnerabilidade
regional dos usos da água em bacias hidrográficas nos Estados Unidos.
Ainda no país norte-americano, observa-se um crescente interesse pelos estu-
dos de VH a partir da década de 90. Gleick (1990, apud HURD et al., 1999, p.1400)
examinou “cinco medidas de vulnerabilidade às mudanças climáticas e as aplicou
a cada uma das 18 principais regiões de recursos hídricos dos EUA”. No México,
Mendoza, Villanueva e Adem (1997) desenvolveram uma avaliação similar em regiões
hidrológicas do país. No Brasil, também no início da década de 90, o IPEA adotou cin-
co estimadores da vulnerabilidade dos sistemas hídricos regionais, realizando ainda
análises de vulnerabilidade às secas em cenários de mudanças climáticas (IPEA, 1995).
Essas análises foram desenvolvidas por meio de indicadores compostos de
vulnerabilidade no contexto dos recursos hídricos, ferramentas que têm se mostrado
úteis para medir o desempenho e a saúde das bacias hidrográficas e sistemas de água.
Nessa perspectiva, Gleick (2015, p. 2) afirma que “qualquer esforço para avaliar as

128 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020


Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais
à luz da Gestão Integrada e Sustentável

vulnerabilidades dos recursos hídricos será limitado pela escolha de indicadores, pela
qualidade e disponibilidade dos dados e por detalhes específicos da região”. O autor
reforça, desta maneira, a importância em “desenvolver definições, ferramentas e mé-
tricas claras que ofereçam maneiras consistentes de categorizar vulnerabilidades rela-
cionadas à água, a fim de identificar pontos de acesso ou riscos regionais e as melhores
estratégias para reduzi-los” (GLEICK, 2015, p.2).
Chamando a atenção novamente para o Brasil, salienta-se a relevância de ava-
liações de VH especificamente desenhadas para as realidades locais, principalmente
de regiões críticas. Apesar de o país apresentar bons índices quando comparado no ce-
nário mundial (Figura 1), as atuais conjunturas reafirmam disparidades históricas em
termos da segurança hídrica dos sistemas brasileiros. No ano de 2015, 9% das cidades
brasileiras necessitavam de novas fontes hídricas, e aproximadamente 50% apresenta-
vam vulnerabilidades associadas à produção de água (ANA, 2019b).

Figura 1: Estresse hídrico no Brasil e no mundo.

Fonte: ANA (2019b).

3.1. Mapa conceitual e linha do tempo

A Figura 2 mostra a estrutura teórica desenvolvida para dar suporte ao Mapa


Conceitual relativo à SH e à VH na perspectiva da sustentabilidade global.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.119-141, 2020 129


Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

Figura 2: Base teórica do mapa conceitual: SH e VH na perspectiva da sustentabili-


dade global.

Fonte: Elaboração dos autores.

Baseando-se no conteúdo da Figura 2, destaca-se que o conceito de desenvolvi-


mento sustentável surgiu na década de 1970, chamando atenção para o gerenciamento
de recursos naturais do mundo de modo a manter as condições de vida na Terra. No
contexto dos recursos hídricos, Marques, Da Cruz e Pires (2015) apontam que os usos
desse conceito nos serviços urbanos de água têm aumentado, principalmente aqueles
inspirados nas perspectivas do tripé da sustentabilidade, ou Triple Bottom Line (TBL).
Conforme Liner e Demonsabert (2011, p.335),

com o tripé da sustentabilidade, os esforços integrados de pla-


nejamento de recursos hídricos devem analisar alternativas
para abordar as metas potencialmente conflitantes de economia
(financeira), ambiental (saúde humana e ecológica) e questões
sociais (benefício à humanidade).

Com relação ao cenário atual de sustentabilidade global, abordando especi-


ficamente a Agenda 2030 e seus ODS, nota-se, a partir do ODS-6 e de suas metas
relacionadas, que a Gestão Integrada de Recursos Hídricos está inserida neste cená-
rio. Segundo Nshimbi (2019), os princípios da Gestão Integrada de Recursos Hídricos
visam aumentar a segurança da água por meio da implementação coordenada da
gestão. Nesse sentido, estudos recentes têm usado ferramentas e métodos diversos
para investigar os impactos da implementação da GIRH para melhorar os benefícios

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Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais
à luz da Gestão Integrada e Sustentável

econômicos e ambientais em diferentes bacias hidrográficas (AL-JAWAD et al., 2019).


Tundisi (2008) reforça a inovação de sistemas de gestão diante do posicionamento
central da água, considerando o panorama da sustentabilidade e das mudanças glo-
bais, conforme a figura 3 abaixo:

Figura 3: Inovação de Sistemas de Gestão dos recursos hídricos considerando a


posição central da água em relação a processos.

Fonte: Tundisi (2008).

Faz-se importante ainda para esta discussão enfatizar as diferenças entre a


GIRH e o conceito de Sócio-hidrologia. Massuel (2018, p. 2510) afirma que “a Sócio-
hidrologia avançou no campo da hidrologia considerando os seres humanos e suas
atividades como parte do ciclo da água, e não como fatores externos”. Essa ciência
interdisciplinar tem um grande papel no gerenciamento sustentável da água, pois tem
o estudo da coevolução dos seres humanos e da água na paisagem como sua essên-
cia. Portanto, a prática da GIRH é fundamentalmente apoiada pela ciência da Sócio-
hidrologia (SIVAPALAN et al., 2014).
Na mesma dimensão complexa, a segurança hídrica é conceituada por
Srinivasan, Konar e Sivapalan (2017, p.12) como um

problema multifacetado, indo além do mero equilíbrio de oferta


e demanda. As primeiras tentativas de quantificar a segurança
dos recursos hídricos basearam-se em abordagens estáticas
pautadas em índices que falharam em reconhecer que a ação
humana é intrínseca ao ciclo da água.

Ainda no tocante à Figura 3, Plummer, De Loë e Armitage (2012) afirmam


que as avaliações de vulnerabilidade hídrica precisam ser holísticas, de maneira a se-
rem, assim, úteis para os atores e formuladores de políticas de água. Essa afirmação
corrobora o disposto na literatura a qual sugere que as práticas de gestão centraliza-
da de cunho fundamentalmente higienista contribuem para que os sistemas estejam
mais suscetíveis a danos em função da exposição a forças externas relacionadas à água.
As concepções higienistas de gerenciamento hídrico trazem problemas intrínsecos: à

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Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

medida que o foco recai nas consequências da urbanização, inicia-se uma espiral de
demandas na qual são aceitos volumes de escoamento cada vez maiores (MIGUEZ;
GREGORIO; VEROL, 2017).
Essa disposição administrativa de caráter centralizador teve como alicerce
predominante um conhecimento científico unifocal essencialmente pragmático, que,
opondo-se às premissas da Sócio-hidrologia, por exemplo, negligenciava a interdis-
ciplinaridade característica da ciência hidrológica (TUCCI, 1993). Salienta-se aqui o
disposto por Dooge (1988, p. 64), de que

o desenvolvimento dos recursos hídricos não é simplesmente a


aplicação do conhecimento hidrológico a um problema de pro-
jeto na engenharia hidráulica. A alocação eficiente e racional de
recursos do desenvolvimento da água deve se preocupar tam-
bém com recursos financeiros e humanos.

No caso brasileiro, os caminhos em destino à insegurança hídrica vinham sen-


do fortalecidos pelas práticas de gestão centralizadora, nas quais os governos estaduais
e federal definiam suas políticas sem que houvesse a participação da sociedade civil,
dos usuários de água e dos governos locais (ABERS; JORGE, 2005). Esses tipos de
práticas tendem a ser desatentas aos aspectos de justiça social, fator que favorece a
propensão para conjunturas de estresse hídrico (WADE, 2018). “O estresse hídrico é o
resultado da escassez de água e pode-se manifestar como insegurança na água potável,
acesso deficiente, saúde precária, conflito sobre os recursos hídricos, falha na colheita,
insegurança alimentar e / ou insegurança energética” (WATERAID, 2012, p.9).
De acordo com Campos e Fracalanza (2010), a descentralização do sistema
brasileiro de gestão hídrica seguiu a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e
foi inspirada nos aspectos do modelo francês de gestão participativa, considerando a
criação de agências e comitês de bacia. Em termos de políticas públicas para alcance
da SH, Passador et al., (2007) configuram uma linha do tempo com três períodos, a
saber (Figura 4):

Figura 4: Linha do tempo de Políticas Públicas brasileiras para garantia da SH.

Fonte: Os autores a partir de Passador et al., (2007).

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Segurança e vulnerabilidade hídrica: evoluções conceituais
à luz da Gestão Integrada e Sustentável

Considerando-se o exposto, a Figura 5 sintetiza as discussões apresentadas


neste artigo e apresenta o Mapa Conceitual para elucidar as abordagens de SH e de
VH na perspectiva da sustentabilidade global.

Figura 5: Mapa conceitual da SH e da VH na perspectiva da sustentabilidade global.

Fonte: Elaboração dos autores, a partir de Hoekstra, Buurman e van Ginkel (2018), Tundisi (2008) e Garrick
e Hall (2014).

Segundo Hoekstra, Buurman e Van Ginkel (2018), existem focos distintos na


definição e no estudo da segurança hídrica: (i) focos no desenvolvimento e (ii) focos
no risco. O (i) foco na sustentabilidade foi o utilizado nesta pesquisa. Nesse sentido,
baseando-se em Lew et al., (2016), este estudo concorda que um entendimento prá-
tico da perspectiva da sustentabilidade é em termos de seus objetivos principais, que
visam, entre outros, a proteção e a manutenção (segurança) dos recursos naturais (e.g.
água), enfrentando e mitigando mudanças indesejáveis. 
No que se refere aos focos no risco (ii), a abordagem analisada foi a da vul-
nerabilidade. De acordo com Garrick e Hall (2014), o risco não é diretamente ob-
servável, devendo, portanto, ser avaliado em função de suas componentes perigo,
exposição e vulnerabilidade, às quais se conceituam da seguinte forma (GARRICK;
HALL, 2014, p.619):

• Perigo – Fenômenos com potencial de causar danos ou prejuízos: secas, inun-


dações, abastecimento/saneamento inadequado, qualidade prejudicial da
água;

• Exposição – Pessoas, meios de subsistência, infraestrutura e ativos socioeco-


nômicos que podem sofrer danos causados por eventos perigosos; e

• Vulnerabilidade – Propensão a sofrer danos.

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Micaella Raíssa Falcão de Moura; Francine Modesto dos Santos; Carlos de Oliveira Galvão;
Suzana Maria Gico Lima Montenegro; Simone Rosa da Silva

Conforme Varis, Keskinen e Kummu (2017), quando se trata de segurança


hídrica, o tema de vulnerabilidade deve ser considerado, pois pode fornecer enqua-
dramentos e elementos úteis para aprimorar os vínculos entre SH e desenvolvimento
sustentável. Nesse sentido, nota-se a relevância dos conceitos de SH e VH para o pro-
gresso da prática da GIRH em muitos países. Nota-se ainda que o novo paradigma da
gestão de recursos hídricos pressupõe que a chamada estrutura de governança, ou ins-
titucional, seja analisada como reflexo da cultura, do regime político e organizacional
de um país (OECD, 2015).

4. Considerações finais

Diante do exposto, observa-se que as evoluções conceituais no campo dos re-


cursos hídricos passaram a contemplar abordagens interdisciplinares com análises
socioambientais que, por muito tempo, foram negligenciadas. Especialmente após a
eclosão do modelo de GIRH, faz-se cada vez mais necessário compreender as novas
concepções no contexto da sustentabilidade e das mudanças globais. Isso se torna re-
levante não apenas por fornecer as bases para análises mais precisas, mas para que
os conceitos possam ser operacionalizados e introduzidos nos projetos de sistemas
hídricos e nos processos de governança da água em geral.
O presente artigo apresentou as evoluções conceituais relativas à segurança
e à vulnerabilidade hídrica na perspectiva da sustentabilidade, bem como identifica
marcos político-institucionais do estado de Pernambuco que guardam relação com o
conceito de segurança hídrica. A partir do Mapa Conceitual desenvolvido, conclui-se
que há múltiplos focos no conceito e no estudo da SH, sendo aqui analisados os focos
na Sustentabilidade e na Vulnerabilidade.
Perante o atual cenário de intensas mudanças globais, a busca pela aplicabilidade
prática das premissas do desenvolvimento sustentável se faz cada vez mais primordial
e, no contexto da governança hídrica, a natureza inter-relacionada prevista pela Gestão
Integrada se mostra coerente com as aspirações em torno da segurança dos recursos hídri-
cos. Dessa forma, nota-se a relevância das discussões expostas neste trabalho para trazer
reflexões e orientações sobre questões a serem melhoradas na implementação da GIRH.

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A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa
Printed media and the narrative construction on
HIV in Brazil at the end of the 20th century: a dangerous relationship
Medios impressos y la construción narrativa de la
sida en el Brasil a fines del siglo XX: Uma relación peligrosa

Fábio Ronaldo Silva1


Raquel da Silva Guedes2

Resumo
SILVA, F. R.; GUEDES, R. da S. A mídia impressa e a construção narrativa sobre a AIDS no Brasil
no final do século XX: Uma relação perigosa. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 143-162, 2020. DOI:
https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art7
O Brasil é caracterizado como um país de ampla diversidade e com uma população
heterogênea. Diariamente, as pessoas tidas como diferentes são desrespeitadas em
casa, no trabalho, nas escolas, nos espaços de sociabilidade e, nos últimos anos,
pelo governo federal. No dia 5 de fevereiro de 2020, a falta de empatia foi com
portadores do vírus HIV, tidos meramente como despesa para a sociedade e para
o governo. O discurso não só desrespeitou os Direitos Humanos e dos Cidadãos
como reforçou uma construção discursiva implantada no início da década de 1980,
quando associava-se os infectados a doentes e a enfermidade a homossexualidade.
Essas notícias eram veiculadas pela grande mídia do país e construíam uma identi-
dade errônea da doença, causavam a desinformação e, principalmente, dissemina-
vam o preconceito, as diferenças e a morte através de suicídios. Dessa forma, nosso
objetivo é analisar as reportagens que veicularam notícias sobre o HIV e a AIDS
em revistas de circulação nacional, pontuando a construção discursiva problemá-
tica que ocasionou a deflagração das diferenças e impulsionou o preconceito para
com os soropositivos comparando ao pensamento atual repercutido pelas autori-
dades do governo.
Palavras-chave: Mídia. Preconceito. AIDS. Brasil.

1
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atua nas áreas de Gênero, Homossexualidades,
Velhices, Mídia Impressa, Ciência e Tecnologia. E-mail: fabiocg@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-6004-7340
2
Mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Atua nas áreas de Gênero, Ciência e Tecno-
logia. E-mail: raquel.silva.guedes@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3946-2750

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 143


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

Abstract
SILVA, F. R.; GUEDES, R. da S. Printed media and the narrative construction on HIV in Brazil at
the end of the 20th century: a dangerous relationship. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 143-162, 2020.
DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art7
Brazil is characterized as a country of wide diversity and with a heterogeneous
population. Every day people who are considered different are disrespected at
home, at work, in schools, in public places and more recently by the federal
government. On February 5th, 2020, a speech by the president did not show
any empathy for people with the HIV virus which he stated to be merely “a
cost for both society and for the government.” This reasoning not only disres-
pects Human and Citizens’ Rights, but also reinforces a premise constructed
and implemented in the early 1980s, when those infected were associated with
a disease of homosexuality. This news was carried by mainstream media in the
country and built an erroneous identity of the disease. It caused misinforma-
tion and most importantly spread prejudice, brought division and resulted in
deaths by suicide. So, we aim to analyze the reports that were carried in the
news about HIV and AIDS in nationally circulated printed press, punctuating
discursive constructions which caused increased division and boosted prejudice
towards seropositive people, and which are now seen to have parallels in the
thinking demonstrated by the authorities in today’s government.
Keywords: Media. Prejudice. AIDS. Brazil.

Resumen
SILVA, F. R.; GUEDES, R. da S. Medios impressos y la construción narrativa de la sida en el Brasil
a fines del siglo XX: Uma relación peligrosa. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 143-162, 2020. DOI:
https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art7
El Brasil se caracteriza por ser un país de gran diversidad y con una población
heterogénea. Todos los días, las personas consideradas diferentes no son respe-
tadas en el hogar, en el trabajo, en las escuelas, en los espacios de sociabilidad
y, en los últimos años, por el gobierno federal. El 5 de febrero de 2020, la falta
de empatía fue con los portadores del HIV, considerado simplemente como un
gasto para la sociedad y el gobierno. El discurso no solo no respetó los Derechos
Humanos y de los Ciudadanos, sino que reforzó una construcción discursiva
implementada a principios de la década de 1980, donde los infectados se aso-
ciaron con los enfermos y la enfermedad con la homosexualidad. Estas noticias
fueron transmitidas por los principales medios de comunicación del país y cons-
truyeron una identidad errónea de la enfermedad, causaron desinformación y,
principalmente, difundieron prejuicios, diferencias y muerte a través de sui-
cidios. Por lo tanto, haremos un análisis de los informes que publicaron noti-
cias sobre el HIV y el SIDA en revistas nacionales, puntuando la problemática
construcción discursiva que causó la construcción de diferencias y aumentó el

144 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020


A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

prejuicio hacia el seropositivo en comparación con el pensamiento actual refle-


jado por las autoridades del gobierno.
Palabras clave: Medios de comunicación. Prejuicio. SIDA. Brasil.

Data de submissão: 08/05/2020


Data de aceite: 08/06/2020

1. Introdução

Eventualmente, escutamos a grande mídia falar sobre a Síndrome da


Imunodeficiência Adquirida, conhecida pela sigla AIDS. Geralmente, próximo a fes-
tividades que movimentem o âmbito nacional e/ou regional, como o Carnaval, por
exemplo. Isso porque, erroneamente, festividades estão ligadas ao aumento da ativi-
dade sexual e, consequentemente, de possíveis Doenças Sexualmente Transmissíveis
(DST). Mas o que seria a AIDS?
A AIDS é uma doença do sistema imunológico humano resultante da infec-
ção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana – HIV. De acordo com o Ministério da
Saúde3, o vírus ataca o sistema imunológico, esse que é responsável por defender o
organismo de doenças. As células mais atingidas são os linfócitos T CD4+4. E é alte-
rando o DNA dessa célula que o HIV faz cópias de si mesmo, multiplicando-se pos-
teriormente e rompendo os linfócitos em busca de outros para continuar a infecção.
A DST responsabiliza-se pelo enfraquecimento do sistema imunológico do
corpo, deixando o organismo mais vulnerável ao aparecimento de doenças oportunis-
tas que vão de um simples resfriado a infecções mais graves, como a tuberculose ou o
câncer. Nesse entendimento, o tratamento fica prejudicado com a presença do vírus
HIV no organismo, uma vez que, o mesmo altera as células de defesa do organismo,
infectando e se reproduzindo viralmente. O contágio, por sua vez, dá-se por meio
do contato sanguíneo, seja em transfusões, objetos cortantes ou seringas, no contato
sexual sem preservativo e de mães infectadas para os filhos, no processo de gestação,
parto e amamentação.
Vale salientar que ter o HIV não é a mesma coisa que ter AIDS. Há muitos soropo-
sitivos que vivem anos sem apresentar sintomas e sem desenvolver a doença, mas podem
transmitir o vírus a outras pessoas quando não tomam as devidas medidas de prevenção.
Por se tratar de uma DST forte, de difícil tratamento e que ainda não tem cura,
a AIDS trouxe muitas dúvidas a comunidade. Falar sobre doenças transmitidas por
meio do ato sexual é difícil para a sociedade por tocar no patriarcado, na educação
religiosa de restrições sexuais e no preconceito. Por isso, historicamente, as DST eram

3
http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/o-que-e-hiv. Acesso em: 15/03/2020.
4
Linfócito T auxiliar, célula T colaboradora, LT helper (LTh) ou LT CD4+ é um leucócito que atua ativando e es-
timulando outros leucócitos a se multiplicarem e atacarem antígenos. Assim, coordenam a resposta imune pela
liberação de citocinas. Os linfócitos T helper garantem a diferenciação dos linfócitos B em plasmócitos, sendo,
portanto, importantes para a produção de anticorpos. Os linfócitos T supressores finalizam a resposta humoral,
ou seja, a produção de anticorpos. Já os linfócitos citotóxicos garantem a morte das células estranhas.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 145


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

tratadas como doenças de rua, castigos divinos, qualidade e/ou atributo de pessoas
imorais. Porém, a AIDS, em especial, foi caracterizada como a “doença dos homosse-
xuais”, de forma que tal pensamento preconceituoso atrapalhou as pesquisas sobre a
doença, a profilaxia e o tratamento, além de despertar, através do preconceito, medo,
violência, segregação, desrespeito, morte e abandono, disfarçados em discursos de
proteção a população e a saúde, já que se tratava de uma situação nova que assustava
socialmente e ainda não tinha maiores esclarecimentos. Segregar era visto como uma
forma de proteger e como uma desculpa para limitar as diferenças, já que, o primeiro
caso registrado de AIDS no mundo data de 19775, década em que a população homos-
sexual tentava adquirir liberdade e direitos.
Recentemente, o assunto AIDS veio ser destaque midiático no Brasil. Dessa
vez, não com uma campanha de prevenção ou informativa, mas em um discur-
so presidencial reverberado no dia 5 de fevereiro do ano de 2020, em que o então
Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, mencionou que pessoas portado-
ras do vírus HIV “são uma despesa para o Brasil, além de um problema sério para
elas”6. A fala foi veiculada quando o mesmo defendia a ideia da Ministra da Mulher,
Família e Direitos Humanos, Damares Alves, de usar como forma de método con-
traceptivo a abstinência sexual.
A menção feita pelo presidente foi repercutida internacionalmente e levantou
a polêmica sobre o preconceito com que se trata portadores do vírus HIV no mundo.
Em resposta, a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) afirmou que a
fala reforça o estigma, o preconceito e a discriminação contra as pessoas que vivem
com HIV/Aids. Sustentou, ainda, que políticas de abstinência sexual não reduzem as
taxas de infecção pelo HIV e que, ao dizer que as pessoas vivendo com HIV causam
prejuízo à sociedade, o presidente autoriza tacitamente o estigma, a discriminação
e a violação dos Direitos Humanos7, uma vez que, no artigo 196 da Constituição
Federal de 1988 consta que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”8.
A fala desrespeitosa e preconceituosa do presidente é reflexo de uma construção
cultural preconceituosa e desinformada sobre a AIDS, as DST e a Homossexualidade.
Essa última, mencionada aqui, por ter sido colocada outrora como veiculadora da do-
ença. Questiona-se então, como esses discursos surgiram e se comportaram no Brasil?

5
O primeiro caso de AIDS registrado no mundo foi no início da década de 1980. A Síndrome da Imunodeficiên-
cia Adquirida, contudo, foi descrita em 1981. A primeira vítima da doença foi a médica e pesquisadora dinamar-
quesa Margrethe P. Rask, que faleceu em 12 de dezembro de 1977 de uma doença que a deteriorou rapidamente.
Rask esteve na África, estudando sobre o Ebola, e quando começou a apresentar diversos sintomas estranhos
para a sua idade. A autopsia do seu corpo revelou que os pulmões estavam repletos de microorganismos os quais
ocasionaram um tipo de pneumonia e vieram a asfixia-la. Contudo, a pergunta que pairava era: ninguém morria
em função disso, o que estaria acontecendo? Historicamente, talvez esse seja o primeiro caso descrito de morte
por decorrência da AIDS.
6
Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/pessoa-com-hiv-uma-despesa-para-todos-diz-bolsona-
ro-24231125. Acesso em: 15 mar. 2020.
7
Cf. SILVA, F. R.; GUEDES, R. da S. disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/bolso-
naro-e-o-discurso-terrivelmente-anticristao-sobre-o-hiv-aids/. Acesso em 15 mar. 2020.
8 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:15 mar. 2020.

146 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020


A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

2. A mídia e a construção narrativa sobre a AIDS no final do século XX

Falar, estudar e tentar entender a AIDS era uma realidade nova para a dé-
cada de 1980. Muitos não sabiam lidar, a desinformação era comum, ainda não
se conseguia mapear de maneira clara a doença. Esse momento coincide com as
datas com o aumento da visibilidade homossexual e como alguns homens foram
diagnosticados soropositivos, logo a mídia associou a doença à homossexualida-
de. Questiona-se, dessa forma, os motivos que impulsionaram os veículos midiá-
ticos a tais informações, e logo, obtemos a resposta de que, o período informado,
corresponde a uma reorganização política no Brasil, em que o Regime Militar
estava se desfazendo e a imprensa voltava a poder atuar, porém com restrições
e sem intencionalidade de ir de encontro as ideologias sociopolíticas da época.
Os principais veículos de notícia na época eram o Jornal do Brasil, Folha
de São Paulo e revistas como a Veja e a Istoé, que circulavam entre os brasileiros
informando as novidades no país. Tais veículos tinham um tratamento antié-
tico ao falar da AIDS – apresentados e trabalhados em seguida – e que foram
rebatidos por Organizações Não Governamentais (ONGs) que foram criadas
para tentar informar e ajudar o portador de HIV com campanhas informativas
e atendimentos.
É importante lembrar que, nas sociedades pós-industriais que estão em
um estágio desenvolvido do processo de midiatização, o campo midiático vai
cumprir, de acordo com Esteves (2004, p.168), a “função da mediação simbólica
das relações sociais”. Assim, é possível afirmar que boa parte das experiências
das pessoas com os fatos sociais que acontecem no mundo ocorrem através da
mídia. O jornalismo vai contribuir para a percepção do mundo, sendo parte do
cotidiano na construção das ideias e opiniões sobre determinados temas e as-
suntos. A visibilidade midiática que o fazer jornalístico possibilita aos fatos im-
plica levar em consideração essa prática como parte desse fenômeno midiático
em conferir uma existência social aos mesmos. Por isso, a produção jornalística
(quase sempre noticiada) pode ser percebida como um lugar de disputa em que
querem se fazer presentes as vozes públicas, por existir o reconhecimento social
de que a mídia é a esfera da visibilidade pública no mundo contemporâneo, é o
lugar “onde a realidade se estrutura como referência (FAUSTO NETO, 1999, p.
9). O espaço público é um lugar mediador de sentidos, sendo nele que a socie-
dade civil enfrenta as tensões de variados olhares sobre os problemas públicos,
olhares que pleiteiam a definição de sentidos.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 147


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

2.1. Meu prazer agora é risco de vida

O jornal francês Le Figaro publicava, em 30 de outubro de 1985, matéria que


afirmava ser a “Aids a primeira doença da mídia” demonstrando a grande difusão de
notícias pela mídia sobre o assunto e chamava a atenção do público para um novo
fenômeno social: a Aids-notícia, pois os veículos de comunicação seriam responsá-
veis pela construção e circulação das notícias referentes a essa doença, um fenômeno
biomédico cuja rede de sentidos não se limitou apenas aos consultórios médicos ou
hospitais, pelo contrário, a Aids tornou-se um produto midiático. Veremos então,
como esse novo “produto” teria sido mostrado na grande imprensa brasileira.
Em agosto de 1981, no Caderno B, página 6 do Jornal do Brasil, entre a pro-
gramação teatral daquela semana9 e a notícia de um raro documento doado pelo
México ao Brasil, encontramos a seguinte matéria:10 “Câncer em homossexuais é
pesquisado nos EUA” e informa ao leitor que uma equipe médica, composta por
vinte especialistas em doenças viróticas, parasitárias, venéreas e em várias for-
mas de câncer, foi montada pelos Centros Nacionais para Controle de Doenças,
nos Estados Unidos, para investigar o surgimento de tipos raros, mas mortais, de
pneumonia e câncer que estavam acometendo “principalmente os homossexuais
masculinos”. Segundo a notícia, a enfermidade já havia sido detectada em 10 esta-
dos americanos com 108 casos registrados, nos quais a morte havia sido apontada
em 40% dos afetados. O câncer é sempre encarado como doença, doença grave,
diga-se de passagem, mas uma enfermidade que não será vista como uma punição
ou uma epidemia. Mesmo sob o ponto de vista médico ou da medicina, a doença
passava a ganhar visibilidade no país, não era nenhum câncer, mas sobre a Aids
que a matéria estava falando.
Essa reportagem sobre a Aids trazida no Jornal do Brasil corrobora com Galvão
(2000) que nos informa que as notícias sobre essa achaque chega ao país antes dos
primeiros casos identificados. No Brasil, os veículos que publicavam essas reportagens
tinham como principal fonte as agências norte-americanas de notícias, o que faz com
que a forma como a doença era abordada pela mídia americana exercesse influência
nos noticiários nacionais e, consequentemente, no imaginário social relacionado à do-
ença. Principalmente em questões sobre homossexualidade, comportamento e grupos
de risco. Isso porque a maioria dos casos notificados de Aids era de pessoas identifica-
das como homossexuais sustentou a ideia de que estar com HIV era sinônimo de ser
homossexual. Não se dizia que tal doença poderia atingir qualquer pessoa, indepen-
dente de idade, gênero ou prática sexual11.
9
Cf. jornal do Brasil, 1980, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_10&
pasta=ano%20198&pesq= Acesso em 19 mar. 2020.
10
Acredita-se que a disseminação do HIV pelo mundo ocorrera na década de 1970. Quando o periódico Jornal do
Brasil publica em 1981 a matéria sobre o caso nos EUA, 20 países já haviam identificando pessoas infectadas pelo
HIV, conforme pode ser visto em MANN, Jonathan, TARANTOLA, Daniel J. M. NETTER, Thomas W. (orgs). A
Aids no mundo. Rio de Janeiro. Relume – Dumará/Abia/IMS – UERJ, 1993.
11
No início dos anos 90 o diretor do Programa Global sobre AIDS, da OMS fez um pronunciamento informando
que o maior índice de pessoas infectadas em todas as regiões do mundo era heterossexual.

148 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020


A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

Como nos chama atenção Galvão (2000, p. 26):

[...] no Brasil na década de 80, que marca o início do processo de


redemocratização do país, a mídia tem um papel fundamental. Na-
quele momento, a AIDS, então denominada na mídia por nomes
como “doença dos homossexuais” e “câncer gay”, era a perfeita no-
tícia para a abertura política do país: remetia à década de 70 no que
havia de mais “escandaloso” – sexo e drogas -, sem fazer menção ao
contexto político. Nesta leitura da AIDS feita por boa parte da mí-
dia brasileira, um dos principais legados da década de 70 tinha sido
um vírus, transmitido por um determinado comportamento, so-
bretudo sexual. Eram comuns matérias que mencionavam o “des-
bunde” dos anos 70, a liberalização dos costumes, e como a AIDS
foi um “banho de água fria” nas teorias libertárias dos anos 70.

A mídia, mediadora entre as fontes de informação e o leitor, também pode ser


percebida como um dispositivo12 de enunciação, ao noticiar os casos de Aids13 no país e
no mundo, fará com que a sexualidade abandone os espaços íntimos e privados tornan-
do-se cada vez mais pública, deixando de ser algo estritamente sexual se tornando uma
questão da biopolítica, de interesse dos médicos, dos epidemiológicos, dos sanitaristas,
dos psicólogos, etc., que a pensarão de forma discursiva e esses discursos serão explicita-
dos pelo dispositivo midiático que fará a doença existir para a sociedade, como dizia um
antigo slogan de uma revista nacional, “aconteceu virou manchete”.
Ao considerar a mídia como dispositivo, estamos coadunando com a ideia de
Agamben (2014) que, ao dialogar com um conceito foucaultiano, nomeará dispositivo
qualquer coisa que tenha, de algum modo, a capacidade de capturar, orientar, deter-
minar, controlar os gastos, condutas, discursos e opiniões das pessoas. Assim, não será
apenas o manicômio, a escola, a prisão, a fábrica, a confissão cuja conexão com o poder
é evidente, mas também “a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o ci-
garro, a navegação, os computadores, os telefones celulares [...] teve a inconsciência de se
deixar capturar” (p. 39 – 40). Então, a mídia que dará visibilidade a essa nova doença será
também a responsável em transformá-la em uma peste sendo necessária uma “guerra”
para poder derrotá-la.
Sontag (1988) enfatiza o quanto às metáforas são geralmente utilizadas em
campanhas de saúde que, na maioria das vezes, tratará a doença como algo que invade
a sociedade, sendo necessária travar lutas ou iniciar uma guerra na tentativa de reduzir
a mortalidade causada na batalha.
12
Como afirma Foucault (2009), o dispositivo é um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam
certos tipos de saber e por eles são condicionados (p.300)
13
Muitos pesquisadores no Brasil produziram trabalhos sobre a dizibilidade da aids pela mídia no país a exemplo
de Fortes et al (1992), Galvão (1992), Cortes et al (1994), Biancarelli (1997), Simões (1997), Ruon (2001), Spink
et al (2001), França (2001) e Soares (2001) que trabalharão especificamente com os jornais impressos, Castro
(2005), que analisa as revistas e Barata (2006), que analisa a construção e a dizibilidade sobre a aids na televisão,
especificamente no Fantástico.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 149


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

Ao contrário de outras doenças que causam vergonha, o paciente geralmente


não expõe para a família que está doente, mas a Aids fará o corpo do portador do vírus
falar, mesmo sem o soropositivo desejar, vai expor a identidade sexual do sujeito que,
até então, estava oculta da família, dos amigos, dos vizinhos, dos colegas de trabalho.
Quando a doença surgiu e passou a ser diagnosticada pelos médicos e noticiada pela
mídia, ela trazia à tona essa identidade, até então trancada dentro de “armários”, e clas-
sificava o indivíduo como pertencente a um grupo de risco.
No imaginário social, inicialmente, foi denominada de “doença gay”, fazendo
surgir expressões carregadas de preconceito como “câncer gay” ou “peste gay”, a enfer-
midade foi, muito lentamente, sendo reconhecida como uma doença capaz de atingir
todo e qualquer grupo social. No início da descoberta da síndrome, todavia, os ho-
mossexuais serão considerados os principais “culpados” pela existência da mesma e a
mídia será uma das principais responsáveis em propagar essa ideia.
Na edição 723 da revista Veja, publicada em 14 de julho de 1982, podemos
encontrar uma matéria não assinada sobre a “peste gay” intitulada “Mal particular”
na qual o médico e professor da Universidade Federal da Bahia, Elsimar Coutinho,
alega que “a epidemia da imunodeficiência em questão é causada pelo consumo exa-
gerado de hormônios estrógenos14” (p.74). A pesquisa foi primeiramente publicada
em uma revista especializada de Londres chamada The Lancet e foi relativamente bem
aceita pelos pares. O que Coutinho não levou em consideração é que apenas um gru-
po específico que deseja tomar hormônios, e eles não são homossexuais mas, como
chamavam na época, travestis. As mulheres tomam anticoncepcionais, que possui
hormônios e, mesmo assim, não desenvolvem o sarcoma de Kaposi15. A matéria fina-
liza apresentando outras possíveis possibilidades da ocorrência da “peste”, sendo uma
delas “o desgaste do organismo dos homossexuais – minado pela enorme quantidade
de infecções a que estão expostos, em razão da natureza promíscua de sua atividade
sexual” (p.74). Os saberes médicos vão buscando ligações entre órgãos ou aparelhos
vitais com práticas específicas as quais os praticantes serão convidados a abandonar.
Conforme Pereira (2004, pp. 56-57),

O que estas formulações discursivas não pareciam levar em


consideração era o intenso processo de transformação por que
categorias como “promiscuidade” e tantas outras haviam passa-
do em função da revolução cultural dos anos 60/70. O caráter
problemático da troca maior ou menor de parceiros sexuais já
havia há muito superado e parecia um verdadeiro pesadelo que
questões como essa pudessem voltar à tona. De alguma forma,
fazia-se tábula rasa de boa parte das ideias da ‘revolução sexu-
al’ que havia animado o debate cultural e as práticas compor-
tamentais de boa parte do mundo ocidental desde os anos 60.

14
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx Acesso em 19/03/2020.
15
Câncer raro que se desenvolve geralmente em idosos.

150 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020


A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

A culpabilização dos saberes médicos, religiosos e da própria sociedade pelos


gays não seguirem os padrões heteronormativos será uma constante nas notícias sobre
o assunto mas, mais interessante é que, de acordo com os jornalistas que escrevem as
matérias, bem como boa parte dos médicos que terão a legitimidade para falar sobre a
doença, a promiscuidade é uma característica apenas dos gays.
Antes da doença, aqueles que se diziam entendidos, homossexual ou gay muitas
vezes não eram bem vistos por assim o ser, agora se associa a infame ideia de que, se
é gay é aidético, pois se acreditava que o HIV era passado apenas na relação sexual
entre homossexuais, e não uma doença que poderia acometer qualquer ser humano,
independente do gênero ou orientação sexual. A mídia no Brasil só passaria a trazer
mais notícias sobre a doença em 1983, quando da morte do estilista Marcos Vinicius
Resende Gonçalves, o Markito, sendo essa a primeira vítima famosa que morreria em
decorrência da Aids no país.
Nascido em Uberaba, em 1953, Marcos Vinicius Resende Gonçalves, desde a es-
cola primária, já gostava de desenhar, enchendo os cadernos com croquis de roupas
femininas. A contragosto, cursou Engenharia em Belo Horizonte para agradar os pais,
mas não chegou a se formar, pois não se identificava com o curso. Quando falou para os
parentes que queria ser costureiro e morar em São Paulo, muitos não concordaram. A
família de Marcos morava em uma grande fazenda, herança do avô paterno, onde existia
espaço suficiente para morar 15 tios e 100 primos. Após pensarem sobre o assunto, os
pais de Marcos resolveram levá-lo a um de 1973, já com 18 anos de idade, Markito foi
morar em São Paulo e passou a fazer roupas e vendê-las na famosa Rua Augusta. Foi em
uma longa viagem para Nova York que Markito decidiu fazer trajes para a noite.
Na volta para o Brasil, vai trabalhar com alta-costura e o prêt-à-porter tendo
como proposta pensar modelos de roupas para determinadas mulheres, aos poucos, ia
se tornando um dos estilistas mais importantes do país, vestindo socialites, atrizes, Pat
Cliveland, Zezé Mota, cantores e cantoras como Ney Matogrosso, Diana Ross, Simone,
Gal Costa e Fafá de Belém. Os trabalhos de Markito eram notícias nos periódicos
Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e revistas como Veja e Istoé. E seriam essas publi-
cações que noticiariam a sua morte.
No domingo de 5 de junho de 1983, o Jornal do Brasil, na página 28 do caderno
1, seção “Falecimentos” noticiava a morte de

Marcos Vinicius Resende Gonçalves, o Markito, 30, de doença


diagnosticada como câncer gay. Em hospital de Nova Iorque,
mineiro, de Uberaba, era costureiro e figurinista dos mais fa-
mosos do Brasil, chegando a ser chamado de costureiro das
estrelas. [...] Vivia há 10 anos em São Paulo e há seis meses co-
meçou a ter sintomas da doença. Inicialmente foi tratado pelo
médico Paulo Mesquita e depois, aconselhado por outro médi-
co, Jorge Bastos Garcia, a ir se tratar nos Estados Unidos16. [...]

16
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=0&Pesq= Acesso em 21/03/2020.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 151


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

A morte do estilista serviu para a mídia contribuir na construção de uma


epidemia que estava associada aos homossexuais masculinos que acabavam asso-
ciados, sem nenhuma distinção, à promiscuidade sendo estes ainda os portadores
do novo “mal do século” e por essa prática de vida “irregular” estavam sendo pu-
nidos por terem um comportamento perigoso através de atos sexuais considera-
dos divergentes. A transmissão sexual desta doença, tida pela maioria como uma
calamidade e a própria vítima é culpada, será mais censurada do que a de outras, isto
porque a Aids seria causada pelos excessos e “perversão” e “depravação”. Doença infec-
ciosa, na qual a principal forma de transmissão é a sexual, vai expor ao perigo aquelas
pessoas sexualmente mais ativas, fazendo com que tal atividade passasse a ser vista
como uma punição, um castigo, pois não será perigosa apenas como prática sexual,
mas determinado comportamento e desejo sexual não serão considerados “naturais”
(SONTAG, 1988).
Outro fator decisivo para os media direcionar os holofotes para essa doença foi
que, durante a década de 1980 e começo da década de 1990, personalidades famosas
como Lauro Corona, Rock Hudson, Flávio Império, Cazuza e Renato Russo, pessoas que
haviam “saído do armário” ou que, pelas enunciações jornalísticas, foram ditas homos-
sexuais ou postas em dúvida, quanto à orientação sexual, eram portadoras do HIV. A
partir da morte de Markito, a doença passa a ter, no Brasil, a a visibilidade que, mesmo
existindo clinicamente, até então não havia recebido. Quando o Jornal do Brasil, a Folha
de São Paulo ou os telejornais falavam sobre o assunto era como se a doença fosse um
problema dos outros, seria um “mal de folhetim” conforme Galvão (2000), pois as no-
tícias publicadas geralmente eram sobre os casos que surgiam nos Estados Unidos, país
que já havia registrado mais de 500 mortes em decorrência da Aids.
De acordo com Daniel (1991), a mídia brasileira aguardava, ansiosamente, pelo
nome da primeira vítima da doença no país para publicar uma manchete já preparada
de antemão. E a manchete chegaria em 1983, ano em que teve oficialmente notificados
41 casos de pessoas com Aids, sendo 40 homens e uma mulher.
A edição 771 da revista Veja, publicada em 15 de junho de 1983, também
noticiou a morte de Markito. A matéria, de quatro páginas, intitulada “O enigma que
mata17” trazia o seguinte subtítulo: “a terrível síndrome de deficiência imunológica
adquirida (AIDS) avança nos Estados Unidos e faz sua primeira vítima no Brasil”.
Junto à matéria, vemos a foto do estilista em um cavalo e ao lado, a capa no New York
Post, publicado no dia 6 daquele mesmo mês que trazia como manchete principal
“Top designer dies of Aids18”. Além de informar sobre a morte do estilista, primeira
vítima popularmente conhecida no Brasil a morrer em decorrência da Aids, a maté-
ria que não está assinada, conta a história dos primeiros casos identificados nos EUA
pontuando que a doença “ela ataca principalmente homossexuais, como Markito”
(p.74). Mas no decorrer da reportagem, afirma que a Aids não é uma doença ex-
clusiva dos gays, aparecendo outros personagens: usuários de drogas, haitianos e

17
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx Acesso em 19/03/2020.
18
“Estilista morre de Aids”.

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A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

hemofílicos. O texto é bastante enfático ao afirmar que a Aids tem como principal
alvo homossexuais promíscuos.

O Centro de Controle de Doenças de Atlanta chegou a con-


clusão de que a AIDS não se caracteriza apenas por preferir
homossexuais mas, entre estes, ataca principalmente os ho-
mossexuais promíscuos, aqueles que trocam frequentemente
de parceiros e se permitem outros excessos [...].

Apesar da “promiscuidade” ser a grande causa da infecção, o médico


Moacyr de Pádua Vilela, — o qual aparece no texto dando suas impressões sobre a
doença, assim como o médico americano Alvin Friedman-Kie, o primeiro a fazer a
relação entre as manchas no corpo dos infectados, as bolhas do sarcoma de Kaposi
com a Aids, e a médica Valéria Petri, que além de Markito, identificou mais duas
outras pessoas infectadas pelo vírus no Brasil –, incomodava-se porque não conse-
guia explicar o motivo de pessoas heterossexuais, que não eram promíscuas, serem
portadoras do vírus e mulheres prostitutas não se tornarem vítimas da doença.
Na matéria, há ainda depoimentos de pesquisadores querendo saber de
onde veio essa nova praga, sendo os países menos desenvolvidos os principais al-
vos. No texto, são citados Haiti, Cuba e a África. A grande matéria se encerra com
a reflexão do pintor e ex-colaborador do periódico Lampião da Esquina19, Darcy
Penteado que alertava os gays para não se tornarem vítimas de uma regressão mo-
ralista que estigmatiza os homossexuais como principais causadores da doença.
A questão da “peste” que vem de fora, especificamente dos continentes africano
e asiático, é algo presente na reportagem, sendo percebido o preconceito que os
americanos e europeus terão com relação aos países subdesenvolvidos sendo re-
forçado o estereótipo de que negros são seres “primitivos e portadores de doenças
mortais” que acometeria todo o globo.

A peste é invariavelmente encarada como uma condenação


da sociedade, e quando metaforização da AIDS a transfor-
ma numa condenação, as pessoas acostuma-se à ideia de
que a doença inevitavelmente se espalhará por todo o mun-
do. Essa é a utilização tradicional das doenças sexualmente
transmissíveis: apresentá-la como castigos impostos não
apenas a indivíduos, mas também a todo um grupo (SON-
TAG, 1988, p. 64).

Logo abaixo da matéria publicada na revista Veja, no final da página, há um


box cor de rosa que fala sobre Markito e uma foto do estilista, sorridente e deitado

19
O Lampião da Esquina foi um jornal voltado para o público homossexual brasileiro que circulou durante os anos
de 1978 e 1981. Nasceu dentro do contexto de imprensa alternativa na época da abertura política de 1970.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 153


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

numa cama. O texto afirma que Marcos era um paciente bastante difícil de lidar,
pois não cumpria as determinações médicas, sendo construída assim, a imagem de
uma pessoa que não conseguia seguir regras, nem mesmo aquelas que garantiriam
alguns anos de vida a mais por conta do vírus. O estilista viajou para Nova York no
intuito de fazer o tratamento da doença. A mãe, Maria Resende foi junto. Segundo
relatos, quando chegou à cidade, ele não foi para o hospital da Universidade de
Cornell como estava programado. Teriam passado o dia passeando de limusine,
no outro dia foram fazer compras e jantar com amigas da mãe. Markito só foi para
o hospital porque a situação piorou e, após uma semana de passeios e compras ao
lado da mãe, o estilista veio a óbito. De acordo com um amigo, José Vitor Oliva,
dono da boate Gallery em São Paulo, “Markito não foi para Nova York para se
tratar, foi lá para morrer na cidade que mais amava20” (p.79). Ou seja, ele preferiu
viver os últimos dias de vida na cidade mais populosa dos Estados Unidos, propor-
cionando grandes e inesquecíveis momentos para a mãe.
Trevisan (1999, p. 429) relembra que,

A partir daí, essa doença, considerada predominantemente


americana e rica, invade com sensacionalismo os meios de co-
municação e o quotidiano dos homossexuais brasileiros. Os
jornais especulam sobre o “câncer guei” (por causa do sarcoma
de Kaposi) ou, simplesmente, “peste gay” já que a doença vem
atacando sobretudo homossexuais, no mundo todo.

As discussões trazidas pela mídia a respeito da Aids contribuiriam para


construir, entre os brasileiros, uma imagem de que a doença vitimava apenas ho-
mossexuais ricos e promíscuos que frequentavam grandes metrópoles como Rio
de Janeiro, São Paulo21, Paris ou Nova York. De acordo com Parker (1994) tal ima-
gem nunca foi questionada nem mesmo pelos especialistas da área médica tam-
pouco pelas autoridades da área de saúde pública, ou seja, os médicos acabaram
legitimando o discurso trazido pela mídia e assumindo-o como uma verdade.
Sete dias após a notícia sobre o falecimento de Markito, o Jornal do
Brasil traria matéria na qual seriam relatados os dois primeiros casos de
“câncer gay” registrados no país. No texto, há relatos de Valéria Petri, pro-
fessora-adjunta da Escola Paulista de Medicina e mestre em imunologia,
que identificou e estava tratando dos dois homossexuais infectados pelo ví-
rus, os quais seriam encaminhados para os Estados Unidos para fazer o tra-
tamento da doença. A médica comenta sobre o pânico entre as pessoas em
relação à Aids. E diz que estava recebendo telefonemas de vários Estados
do país de pessoas cismadas de estarem contaminadas, fazendo confissões
20
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx Acesso em 19/03/2020.
21
No ano de 1983 São Paulo foi o primeiro estado a criar um programa governamental destinado a casos de Aids.
A notificação dos casos da doença só passou a ser compulsória três anos depois, ano também no qual o progra-
ma de Aids de abrangência nacional começa a ser executado pelo governo federal.

154 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020


A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

das práticas sexuais para a médica com o objetivo de saber se eram ou não
portadoras do vírus. Petri alerta sobre a necessidade de respeitar os dois
brasileiros infectados, e afirmara que “eles não estão com a síndrome só
porque são homossexuais. Lembro que não são só os homossexuais que
podem contrair esse vírus, mas qualquer pessoa que tenha uma resistência
de imunologia diminuída, independe da opção sexual 22 ”. Petri diz ainda que
não vê a Aids como uma “punição” nem como uma “praga gay”.
Na segunda parte da matéria, temos a fala do imunopatologista e as-
sessor estadual do Secretário de Saúde do Rio de Janeiro, Gilberto Soares. Ele
afirma que a Aids não preocupa as autoridades e tal doença não é uma prio-
ridade para o governo. Os males que interessavam ao governo tratar eram
doença de Chagas, a tuberculose e os parasitas intestinais, enfermidades que
não existiam em países mais desenvolvidos, mas que, no Brasil, ainda con-
tinuavam acometendo centenas de pessoas. O assessor afirmou ainda ser os
custos para desenvolver pesquisas sobre a Aids bastante altos sendo algo im-
pensável naquele momento, pois até mesmo os Estados Unidos só passaram
a investir em pesquisas sobre a doença quando ela se alastrou pelo país. O
próprio ministro da Saúde Carlos Sant’Anna afirmaria, em matéria publica-
da na revista Veja em 14 de agosto de 1985, que a Aids no Brasil “trata-se
de uma doença preocupante, mas não prioritária 23”, pois existiam no país,
naquele momento, 6 milhões de portadores da doença de Chagas, 8 milhões
de pessoas com esquistossomose e quase um milhão de tuberculosos. Assim,
não era uma das prioridades do ministério uma atenção especial para a Aids,
pois existiam no Brasil apenas 384 casos da doença confirmados. Logo, era
uma tolice a população entrar em pânico pois, existia apenas um “verdadeiro
lobby” da doença no país, conforme o ministro.
É importante lembrarmos que o surgimento dos primeiros casos de Aids
no “país tropical” coincidiu com o crescimento de crises social, econômica e
política. Neste período, o Brasil tentava voltar à democracia e tudo isso afetaria
na estrutura do sistema de saúde pública sendo limitada a capacidade de ação
do governo para responder a demanda de casos de Aids que passaram a surgir
de forma exponencial. No ano de 1982, de acordo com dados do Ministério da
Saúde, Programa Nacional de DST/Aids, foram identificados 7 casos da do-
ença. O número de pessoas soropositivas chegaria a 4.898 no final da década.
Quase cinco mil pessoas que, além da doença, conviviam com o preconceito e
a discriminação tanto do próprio governo, que muitas vezes demorava para to-
mar atitudes que pudessem contribuir em ações para minimizar o sofrimento
dos soropositivos quanto da própria sociedade nutridas por informações equi-
vocadas, muitas vezes trazidas pela mídia, que não deixava claro as formas de
contágio do vírus e até mesmo o sintoma de garganta inflamada era sinônimo

22
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&PagFis=0&Pesq= Acesso em 21/03/2020.
23
http://veja.abril.com.br/acervo/home.aspx Acesso em 19/03/2020.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 155


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

de Aids. E encontraremos, em várias matérias, relatos de pessoas afirmando


ter deixado de visitar determinados amigos por conta do medo de ser contami-
nado. Ana, sem sobrenome na matéria, cuidou alguns meses do escultor Paulo
Lima de Araújo falecido em decorrência da Aids, e afirmou a Veja na edição
publicada em 14 de agosto de 1985 que, ao levar Paulo para o hospital ele foi
colocado em uma cadeira de rodas e, na enfermaria as freiras se afastavam
com medo de contrair o vírus. Ela mesma afirma que tinha receio de tocar em
objetos cujo uso era pessoal.
Algumas vezes, pelo que foi noticiado pela mídia, dito pelos médicos, ou
por preconceito por ser homossexual ou por não suportar vivenciar o precon-
ceito por ser portador do vírus da Aids, pelo medo da degeneração física ou
até mesmo por vergonha, muitos soropositivos acabaram cometendo suicídio.
Apenas em São Paulo, entre os seis primeiros meses de 1985 foram notificados
seis casos de suicídio entre pessoas que contraíram a doença. O que mostra que
o preconceito e o poder discursivo tem ampla influência no estado psicológico
das pessoas em geral e, em especial, daquelas já vulnerabilizadas em decorrên-
cia de um enfrentamento pessoal, social e de saúde. O ato do suicídio nesses
casos, demonstra que para muitos pacientes era mais difícil conviver com o
preconceito disseminado pela sociedade do que com a própria doença.

2.2. Um pouco de humanidade

Se o Governo Federal naquele momento não idealizava ações que tor-


nassem a Aids assunto prioritário do Ministério da Saúde, parte da sociedade
civil, com toda a solidariedade possível, passou a realizar ações com objeti-
vo de que, no mínimo, as pessoas tivessem mais informações e orientações
sobre doenças sexuais transmissíveis (DST) e a AIDS. Assim, Organizações
Não-Governamentais (ONGs) com atividades em HIV/Aids desenvolveram
projetos de intervenção e assessoria, pesquisa e aconselhamento, trabalhos
com crianças e adultos, além de desenvolverem ações em empresas e escolas
(KLEIN, 1994).
De acordo com Teixeira (1997) apud Galvão (2000), no ano de 1983
um grupo de militantes do movimento pelos direitos dos homossexuais foi à
Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo pedir uma posição daquele órgão
diante dos casos de Aids que a mídia estava noticiando, sendo então consti-
tuído um grupo de trabalho composto por militantes e técnicos de diferentes
áreas de atuação.
A criação do programa de Aids do Estado de São Paulo, segundo Teixeira
(1997) apud Galvão (2000), foi uma boa combinação entre um governo democrá-
tico e a crescente mobilização de setores da sociedade civil através de ativistas dos

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A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

grupos SOMOS24 e o Outra Coisa25. Juntos, eles produziram e distribuíram pan-


fletos de advertência em várias ruas da “Paulicéia desvairada”. Apesar de serem os
primeiros a contribuírem para chamar a atenção do poder público para a doença,
os dois grupos tiveram vida curta por conta das dificuldades financeiras, e encer-
ram as atividades entre os anos de 1983 e 1984, respectivamente.
As ações mais contundentes da sociedade civil se deram em 1985, quando
foi criado em São Paulo o Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS26 (GAPA) sen-
do a primeira ONG/Aids brasileira sendo por ela responsável a advogada Áurea
Abbade, redatora do documento que deu origem à Lei 7.660 de 1989 a qual possi-
bilitou a soropositivos sacar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)
e o PIS/PASEP para usá-lo no tratamento da doença. Esse será o ano também em
que o trabalho de informação e prevenção começa a ser posto de forma sistemáti-
ca, ganhando dimensão nacional, fazendo o Governo Federal dar atenção a “Aids
Brasileira” (GALVÃO, 2000). A criação dessa ONG foi fundamental para articular,
um outro tipo de discurso, diferente do que era produzido pela grande mídia e
pelo Ministério da Saúde frente à Aids. Além da informação e conscientização,
essa ONG teve como principal característica o trabalho relacionado à não-discri-
minação das pessoas soropositivas, criando um serviço de assessoria jurídica para
pessoas com Aids o qual serviu de modelo para outras entidades.
No ano seguinte, no Rio de Janeiro, era criada a Associação Brasileira
Interdisciplinar de AIDS (ABIA) que, desde a sua criação, busca articulação com
as políticas de AIDS internacionais, bem como a elaboração de análises sobre po-
líticas públicas de saúde relacionadas à doença. Foi a primeira instituição que teve
como fundador e presidente uma pessoa assumidamente soropositiva, o sociólogo
Herbert José de Sousa, conhecido como Betinho, e o escritor Herbert Eustáquio de
Carvalho, conhecido como Herbert Daniel. A ABIA possuía, entre os conselheiros,
Dom Mauro Moreli (Bispo de Duque de Caxias), Rubem César Fernandes (que
na época era secretário-executivo do Instituto Superior de Estudos Religiosos),
Bernardo Galvão (um dos pesquisadores que isolaram o HIV no país). Isso con-
tribuiu para que essa ONG tivesse um “caráter interdisciplinar com uma visão que
integrava intervenção cultural e produção de conhecimento, ação política local e
atuação no cenário internacional” (GALVÃO, 2000, p. 72).

24
O Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, mais conhecido como apenas Somos, foi um grupo em defesa
dos direitos LGBT, fundado em 1978, considerado o primeiro grupo brasileiro em defesa desses direitos. O gru-
po foi formado a partir da publicação do periódico O Lampião da Esquina, chamando-se inicialmente Núcleo de
Ação pelos Direitos dos Homossexuais. 
25
De acordo com Facchini (2003) por questões de discordância de ideias e propostas, em 1980 o SOMOS passou
por um “racha” sendo dividido em três grupos: SOMOS, Grupo Lésbico-Feminista que depois passou a ser Gru-
po de Ação Lésbico-Feminista (GALF) e o Grupo de Ação Homossexualista que posteriormente passou a usar
o nome Outra Coisa. Ainda no mesmo ano, o Outra Coisa se une aos grupos Eros e Libertos formando assim, o
Movimento Homossexual Autônomo.
26
O GAPA tinha como principais articuladores Paulo Roberto Teixeira (um dos criadores do programa de Aids
de São Paulo), Paulo Roberto Bonfim (militante de esquerda e técnico em patologia clínica do Hospital do Ser-
vidor), Edward MacRae (antropólogo), Áurea Abbade (advogada) e Jean-Claude Bernardet (cineasta, escritor,
professor, e um dos articulistas do Lampião da Esquina)

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 157


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

Em contrapartida, as revistas de circulação nacional direta e indiretamente con-


tribuíam para a população a praticar atos bárbaros contra gays e portadores de HIV. No
jornal O Dia, em 20 de novembro de 1984 encontramos a matéria “Povo de Sidnei caça
os gays por causa da Aids” que explanava sobre a “caça aos gays” tidos como os princi-
pais causadores da doença e pelo fato do único Banco de Sangue do país ter informado
que foi identificado sangue contaminado no estoque, sendo um homem gay de 27 anos
de idade o principal “suspeito” de ter “contaminado o Banco de Sangue administrado
pela Cruz Vermelha”. Devido a esse fato, os setores mais conservadores da população,
de acordo com a matéria, estavam se vingando. Um dia antes, o mesmo jornal publicou
a matéria “Abatido o 3º gay – Estão matando os travestis a tiros” relatando casos de tra-
vestis que foram assassinadas na cidade de Recife-PE. E isso não será um fato isolado,
em 4 de setembro de 1985, a Veja publicava, na seção “Comportamento”, matéria que
tinha como título “A primeira vítima” falando que, por suspeita de Aids a população
de Araguari, em Minas Gerais, expulsa o cabeleireiro Evaldo Marques da cidade. Por
existir a hipótese de que Evaldo estivesse doente, mesmo não tendo o resultado do exa-
me de sangue, ele foi preso, levado para um hospital e depois banido da cidade. “Se ele
aparecer lá vai ser queimado vivo como Joana D’Arc” ameaçava o delegado regional de
Uberlândia, Paulo Celso Lucas da Silva. O discurso de ódio construído para expulsar
Evaldo foi tão forte que, de acordo com a matéria, os moradores de Araguari diziam que,
para se vingar da cidade, o cabeleireiro lambeu as frutas das feiras para contaminá-las,
outros diziam que ele nadou na piscina de um clube e experimentou roupas em várias
boutiques com a intenção de propagar a doença. Evaldo Marques não se matou, mas os
moradores da cidade o mataram simbolicamente.
É importante perceber que o dispositivo midiático é também uma maquinaria
de produção de subjetividades. As matérias citadas até aqui, e muitas outras que foram
divulgadas e exibidas pela imprensa, contribuíram para a construção de subjetividades
que tinham os homossexuais como pessoas perigosas para a sociedade por trazer deter-
minados tipos de doenças. A partir do século XVIII isso já começava a ser feito, mas pela
biopolítica, pelos saberes médicos que diziam a homossexualidade como doença. No
século XX aos medias não os mostrarão mais como doentes, mas como os causadores do
“câncer gay”. E essa produção não foi localizada, foi uma produção em escala internacio-
nal e essas subjetividades construídas mudará o olhar das pessoas para com os gays. Se é
gay é aidético e também retardará, especificamente no Brasil, para a tomada de decisões
dos poderes públicos quanto à doença.
O governo brasileiro demorou para tomar atitudes. A inércia foi justificada por
outros problemas na área da saúde que ainda não tinham sido resolvidos, como a malária,
a tuberculose, a meningite, dentre outras doenças. Foi utilizada, também como justifica-
tiva, as restrições financeiras causadas pela crise econômica, limitando a disponibilida-
de de recursos para pesquisas, programas educacionais além de cuidados e tratamentos
para os pacientes da Aids. Apenas em maio de 1985, foi criado o Programa Nacional
de AIDS pela Divisão Nacional de Controle de Doenças Sexualmente Transmissíveis e
AIDS, junto ao Ministério da Saúde, ficando esta unidade responsável por desenvolver

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A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

um plano quinquenal para a questão da doença. Aquele período foi marcado por uma
abordagem pragmática e técnica sobre a doença na esfera governamental. Utilizando
como modelo as iniciativas estaduais e municipais já existentes para desenvolver um pla-
no nacional de prevenção e controle da Aids, à medida que prosseguia a implementação
do Programa Nacional de Aids.
O Governo Federal foi tardio, passou muito tempo sem dar importância a exis-
tência de portadores de HIV no Brasil, convivendo como se os fatos não existissem,
depois resolveu lidar através de uma negação, dentro de um discurso do “não ter o que
fazer com os fatos”. Consequentemente, veio a fase da divisão por hierarquia e/ou impor-
tância, quando os representantes da federação afirmam que há problemas mais urgentes
a serem resolvidos no país, seguiram, então, negligenciando atendimento na arguição do
não poder financiar pesquisas. Por último e ao mesmo tempo concomitante às ações ci-
tadas acima, vieram o apoio ao discurso preconceituoso reverberado pela mídia comum
e a negação de informações concretadas para a população.
Só então, a federação não viu mais como sustentar tal postura mediante os au-
mentos nos números de casos e a cobrança populacional. A partir de então, como men-
cionado acima, o Governo Federal precisou fazer um plano e esse teve que ser copiado
dos governos estaduais que, sob a falta de ajuda federal, já havia lançado um plano de
ação. Em seguida, o Brasil veio a financiar pesquisas e laboratórios, contratar profis-
sionais criando O Programa Nacional de Combate à AIDS. Tal assessoria, repaginada
e ressignificada, funciona até a atualidade no país. Desde o discurso mencionado pelo
presidente Jair Bolsonaro, o Programa corre riscos, podendo, essa conjuntura, mapear
um quadro de retrocesso.

3. Não retroceder

O Brasil foi considerado referência nos estudos sobre o HIV e sobre a AIDS
quando abriu portas para que outros países estudassem seus casos, quando os infecta-
dos concordaram em colaborar com as pesquisas servindo de voluntários para análises
científicas, quando cantores e atores famosos foram infectados e levaram seu estado de
saúde a público mesmo diante do preconceito para encabeçar campanhas, conscientizar
os fãs e o público em geral.
Tão logo, grupos assistenciais foram se formando, ONGs foram sendo patroci-
nadas e o assunto que, inicialmente, foi tratado com o amplo preconceito já descrito,
passou a ser desconstruído. A saúde, o tratamento e a acolhimento de um soropositivo
passou a ser garantido por lei, a grande mídia precisou modificar a linha editorial e exe-
cutar campanhas de acolhimento e informações veiculadas pelo Ministério da Saúde e,
por fim, o entendimento do que é uma doença viral veio a tentar informar que o HIV
nada tem a ver com a homossexualidade.
Trata-se uma luta de informações, testes e pesquisas científicas de quase cinquen-
ta anos que não anularam por completo as dificuldades e o preconceito, mas tentaram
o controlar juntamente com a disseminação do vírus. Um caso de saúde pública que foi

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 159


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

desmerecido em trinta segundos de um discurso mal pensado e muito repercutido. A


afirmação presidencial mostrou que, em pleno século XXI, a população ainda encon-
tra-se desinformada, incentivou o preconceito, demonstrou a falta de colaboração do
governo, colocou em risco o tratamento e a prevenção do HIV, bem como, desmereceu
a porcentagem da população soropositiva do país.
A fala presidencial fere com os Direitos Humanos e dos Cidadãos, impulsiona
mortes por falta de tratamento e/ou aumento dos casos de depressão, bem como a se-
gregação dos portadores do vírus HIV. O discurso presidencial, por último, rememora
e reconstrói uma fase de desinformação e de preconceito videnciada na década de 1970,
demonstrando o retrocesso, anulando os avanços até o presente momento, desmerecen-
do anos de pesquisas e de empenho por conquistas de espaços e direitos.
Associar os soropositivos a um gasto é desrespeitar o ser humano, a saúde pú-
blica e desmentir os dados econômicos brasileiros que comprovam que o percentual
de gastos para com os portadores de HIV não ultrapassam seis por cento da cota bra-
sileira. Afirmar que o portador de HIV é um problema para si não é apenas falta de
empatia, mas, acima de tudo de humanidade e pode desencadear problemas como
depressão e consequências como o suicídio. As doenças virais são contingências mun-
diais, problema é desencadear preconceito, impulsionar segregação, negar tratamento
e profilaxia correta à população.
Respostas ao HIV e à AIDS vêm surgindo ao longo dessas duas décadas do século
XXI, se ampliando as opções disponíveis de métodos preventivos para evitar a transmis-
são a pessoas em risco, bem como novos métodos para pessoas que vivem com o vírus.
Os novos métodos de prevenção, além do uso de preservativo por homens e mulheres,
incluem um grande leque de abordagens biomédicas, a exemplo das profilaxias pré-ex-
posição (PrEP27) e pós-exposição (PEP28). A utilização eficaz de distintas abordagens
preventivas depende do acesso a informação que os indivíduos e comunidades terão
sobre os métodos disponíveis, além da conscientização sobre formas mais eficazes à luz
de suas situações específicas e do empoderamento para tomar decisões sobre as possibi-
lidades preventivas que mais tem sentido para suas vidas. Assim, ativistas de HIV/AIDS
desenvolveram o conceito pedagogia do tratamento29 para ajudar as pessoas a tornar real
a promessa de tratamento. De acordo com Gavigan et al., (2016) a Organização Mundial
da Saúde (OMS) percebe essa pedagogia como uma forma de “empoderamento” defini-
do como participação significativa nas decisões sobre os cuidados.
A ampliação do tratamento tem grande relação com a questão da prevenção. O
que foi vivenciado no passado, no Brasil e em outros países, deve servir como referên-
cia para que a pedagogia da prevenção seja percebida com a mesma urgência quanto
a pedagogia do tratamento para que seja ampliado o empoderamento não apenas dos
que vivenciam o HIV/Aids, mas também aqueles que correm o risco de adquirir o

27
Consiste em um comprimido antiviral por dia tomado antes da exposição ao HIV. Inclui acompanhamento
laboratorial de rotina e acompanhamento clínico regular.
28
Após a exposição e durante trinta dias, o indivíduo toma um comprimido por dia com acompanhamento médi-
co por noventa dias.
29
Conceito desenvolvido no final da segunda década do século XX complementando a “pedagogia da prevenção”.

160 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020


A mídia impressa e a construção narrativa sobre a
AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa

vírus. Entretanto, a verdadeira pedagogia da prevenção só ocorre quando existe um


sistema de saúde que realmente responda e atenda às necessidades da população. As
Organizações Não Governamentais citadas no texto apresentam plataformas on-line
que visam a informar a população sobre tal assunto, uma vez que, muitas pessoas
ainda desconhecem o método utilizado na Pedagogia da Prevenção. É mantido tam-
bém um endereço eletrônico para tirar possíveis dúvidas sobre a pré-exposição e a
pós-exposição. O acesso e conhecimento de tais informações não só pode ajudar como
também salvar e/ou acelerar o tratamento de pacientes, além de auxiliar na prevenção
de maneira didática, empática e compromissada.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020 161


Fábio Ronaldo Silva; Raquel da Silva Guedes

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162 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.143-162, 2020


Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória da
Rede ATER NE/Brasil1
Network Neoinstitucioalism: precursors and trajectory of the
ATER NE Network/Brazil
Neoinstitucioalismo de red: precursores y ruta de la Red ATER NE/Brasil

Marina de Sá Costa Lima2


Gilberto Gonçalves Rodrigues3
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco4

Resumo
LIMA, M. de S. C.; RODRIGUES, G. G.; BERGAMASCO, S. M. P. P. Neoinstitucioalismo de Redes:
precursores e trajetória da Rede ATER NE/Brasil. Rev. C&Trópico, v. 44, n.1, p. 163-189, 2020. DOI:
https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art8
As Políticas Públicas para a Agricultura Familiar, por meio de estudos que en-
volvem a ação do Estado e a atuação de instituições de Assistência Técnica e
Extensão Rural – ATER, juntamente com organizações não governamentais e
de agricultores familiares, foram respaldadas pelo histórico de organizações
da sociedade civil, pela democratização do país. O presente artigo tem como
objetivo analisar o neoinstitucionalismo, em uma abordagem de redes, visando
compreender a implementação da Política Nacional de Assistência Técnica e
Extensão Rural-PNATER, por meio dos percursos e formação da Rede ATER
Nordeste. Inicialmente, o debate da abordagem neoinstitucionalista ajuda a si-
tuar a atual análise sobre as instituições formais e informais, que se articulam
em rede para os propósitos de implementação destas Políticas. Para finalizar,
o enfoque da análise neoinstitucionalista de redes é refletido diante das condi-
ções e potencialidades frente à PNATER, por meio da recente experiência da
Rede ATER NE no Brasil.
Palavras-Chave: Políticas Públicas. Assistência Técnica e Extensão Rural. Neoinstitucionalis-
mo de Redes.

1
Agradecemos à Capes, por possibilitar a realização desta pesquisa; aos Professores Marcos Antônio Bezerra
Figueiredo e Jorge Roberto Tavares de Lima; ao Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, em especial,
aos gestores Alexandre Henrique Pires e Maria Aureliano de Melo.
2
Doutora em Engenharia Agrícola - Planejamento e Desenvolvimento Rural Sustentável, Universidade Estadual
de Campinas. Laboratório ARRE Água, Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: marina.scl@gmail.com.
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7497-5463.
3
Professor Doutor - Lab. ARRE Água, Centro de Biociências, Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: gil-
bertorodrigues.ufpe@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4262-2903
4
Professora Titular da Faculdade de Engenharia Agrícola, Universidade Estadual de Campinas. E-mail:
sonberg80@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9101-8278.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020 163


Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

Abstract
LIMA, M. de S. C.; RODRIGUES, G. G.; BERGAMASCO, S. M. P. P. Network Neoinstitucioalism:
precursors and trajectory of the ATER NE Network/Brazil. Rev. C&Trópico, v. 44, n.1, p. 163-189,
2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art8
The Public Policies for Family Agriculture through studies involving State action and
the work of institutions of Technical Assistance and Rural Extension - ATER, toge-
ther with non-governmental organizations and family farmers, were supported by
the history of civil society organizations, by the democratization of the country. This
article aims to analyze the neoinstitutionalism in a networks approach, aiming un-
derstand of the implementation of the National Policy of Technical Assistance and
Rural Extension - PNATER throughpathways and formation of the ATER Northeast
Network. Initially, the debate on the neoinstitutionalist approach helps to situate the
current analysis on formal and informal institutions, which are articulated in a ne-
twork for the purposes of implementing these Policies. To conclude, the focus of the
network neoinstitutionalist analysis is reflected in the conditions and potentialities
front the PNATER, through the recent experience of the ATER Northeast Network.
Keywords: Public Policies. Technical Assistance and Rural Extension. Networks Neoinstitu-
tional-ism.

Resumen
LIMA, M. de S. C.; RODRIGUES, G. G.; BERGAMASCO, S. M. P. P Neoinstitucioalismo de red:
precursores y ruta de la Red ATER NE/Brasil. Rev. C&Trópico, v. 44, n.1, p. 163-189, 2020. DOI:
https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art8
Las políticas públicas para la agricultura familiar, a través de estudios que involu-
cran la acción del Estado y el desempeño de las instituciones de Asistencia Técnica
y Extensión Rural - ATER, junto con organizaciones no gubernamentales y de agri-
cultores familiares, fueron respaldados por la historia de las organizaciones de la
sociedad civil, para la democratización del país. Este artículo tiene como objetivo
analizar el neoinstitucionalismo, en un enfoque de red, pretendiendo compren-
der la implementación de la Política Nacional de Asistencia Técnica y Extensión
Rural-PNATER, a través de los caminos y la formación de la Red ATER Nordeste.
Inicialmente, el debate sobre el enfoque neoinstitucionalista ayuda a situar el aná-
lisis actual sobre las instituciones formales e informales, que se articulan en una red
con el propósito de implementación estas Políticas. Finalmente, el análisis neoins-
titucionalista de las redes se refleja frente a las condiciones y el potencial que en-
frenta PNATER, a través de la experiencia reciente de la Red ATER NE en Brasil.
Palabras clave: Políticas públicas, Asistencia Técnica y Extensión Rural, Neoinstitucionalismo
de Redes.

Data de submissão: 20/04/2020


Data de aceite: 08/05/2020

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Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

1. Considerações iniciais

Na reflexão sobre a ação do Estado ou dos governos, a expressão “neoinstitu-


cionalismo” tem-se destacado desde a década de 1970 em países norte-americanos e
europeus, como um tema de grande importância nas ciências agrárias e sociais (FREY,
2000; MARCH; OLSEN, 2008). Seu entendimento é essencial para a análise das políti-
cas públicas, da forma como estas são implementadas e executadas pelas instituições.
Em especial, a implementação de Políticas Públicas para a Agricultura Familiar veio
conquistando uma efetividade no Brasil, nas duas últimas décadas, pela atuação em
rede de instituições de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), articuladas às or-
ganizações de agricultores familiares (ÁVILA et al., 2011; SABOURIN, 2014; GRISA;
SCHNNEIDER, 2015).
Os debates sobre instituições, em como as ideias (valores) regem a construção
de regras e normas, vêm influindo na formulação, gestão e implementação das políti-
cas públicas (STEINMO, 2008). Muito se deve às mudanças e reforma na democrati-
zação do Estado em vários países, especialmente na América Latina (BERGAMASCO;
NORDER, 2003). No Brasil, o processo de grande mobilização de diversos âmbitos da
sociedade civil e da redemocratização, após a época ditatorial do Golpe de 1964, cul-
minou em um importante marco: a promulgação da Constituição Brasileira de 1988,
mudando o cenário político institucional (BERGAMASCO; NORDER, 2003; GRISA;
SCHNNEIDER, 2015).
Vale salientar, como afirma Favareto (2010), que esse processo ocorreu de-
vido ao fortalecimento da democracia, com um relativo grau de participação popu-
lar, enquanto base para as mais significativas mudanças no meio rural. Entre estas,
a redução da pobreza e vulnerabilidade da população, com a inédita redução da de-
sigualdade social e redução da fome, com mais segurança alimentar e soberania no
campo. Uma experiência de crescimento econômico continuado para a agricultura
familiar, com redistribuição de renda (direito constitucional ao amparo) e investimen-
to político-institucional.
Por outro lado, Petersen e Almeida (2006) ainda reforçam a relevância das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) para o movimento agroecológico brasileiro.
As CEBs, junto às organizações camponesas, impulsionaram a formação e atuação
de diversas ONGs e diferentes instituições que, por sua vez, influenciaram redes de
organizações, algumas das quais constituintes da Rede ATER NE. Muitas das práti-
cas alternativas referenciadas na agroecologia são oriundas desses agricultores de base
familiar e foram promovidas pelas CEBs. Nesse contexto, o neoinstitucionalismo de
redes pode ser uma alternativa à compreensão exclusivamente das ações dos indivídu-
os e suas manifestações de interesses para outra concepção de instituições que gerem
benefícios a ser compartilhados por todos (ou pela maioria) da comunidade. De acor-
do com Lima et al. (2011), as redes sociais, formais ou informais, representam uma
categoria que pode influir diretamente na distribuição de poder, no fortalecimento de
identidades e na defesa de interesses comuns resultantes das relações entre os atores.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020 165


Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

No caso da Rede ATER NE, foco desta pesquisa, Paranhos et al., (2007)
reforçam o sentido de rede social entendida por um diálogo estabelecido entre
o governo brasileiro junto a ONGs e movimentos sociais do campo, com ênfase
na agricultura familiar e na concepção da agroecologia (princípio que rege sua
identidade), reconhecendo o trabalho e acúmulos históricos dessas entidades. No
entanto, questiona-se em que medida a formação de uma rede de extensão rural
(formal ou informal) é necessária para a implementação da Política Nacional de
Assistência Técnica e Extensão Rural – PNATER. Ao mesmo tempo, há uma in-
terdependência entre instituições políticas e as demandas da sociedade civil, até
mesmo entre as instituições políticas e socioeconômicas relativamente autônomas.
A Rede ATER NE foi constituída no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, em
2004, como uma estratégia de ação da PNATER (2004). Atualmente, essa rede pos-
sui 13 entidades que assumem, como identidade de articulação, a perspectiva da
agroecologia com ênfase no protagonismo do agricultor familiar. Em Pernambuco,
a entidade responsável pela Rede ATER NE é o Centro de Desenvolvimento
Agroecológico Sabiá, sujeito desta pesquisa, com 27 anos de fundação trabalhando
os processos de construção coletiva de forma crítica à extensão rural convencional
e se destacando na implementação de uma nova política de extensão rural agroe-
cológica, adaptada ao Nordeste brasileiro. A agroecologia surge nas instituições de
ATER como um marco, ao causar uma ruptura em diferentes modelos de atuação
extensionista, predominando um enfoque na produção agrícola convencional ou,
mais recentemente, valorizando uma produção agroecológica, mais adaptada ao
ambiente e sensível ao processo de inclusão social da agricultura familiar para o
bem comum (MUSSOI, 1985; CAPORAL, 2009; PETTAN, 2010).
Na valorização de um processo de bem estar coletivo, March e Olsen (2008)
afirmam que considerar a importância do contexto social e histórico da política e
dos motivos dos atores individuais faz do “novo institucionalismo” uma aborda-
gem mais autônoma e descentralizada para as instituições. Diante dessa nova con-
figuração, o presente trabalho tem o propósito de analisar o neoinstitucionalismo,
em uma perspectiva de redes, visando proporcionar subsídios para a compreensão
da implementação da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural-
PNATER, por meio dos precursores (1950 a 2003) e da trajetória (2004 a 2016) de
reconhecimento das ONGs que compõem a Rede ATER NE.
Todavia, determinar um período temporal específico para os precursores
desta Rede é sempre complexo por se tratar de processos sociais, com rupturas
e continuidades. Assim, uma atenção será dada ao modo como estes referenciais
precursores foram construídos, em alguns momentos chaves, nas suas relações
com a dinâmica social e entre o Estado. Para elucidar as questões e o propósito
enunciados, as perspectivas de análise estão inseridas em uma abordagem mul-
tidimensional de construção de uma análise da PNATE. Os principais conceitos
utilizados foram o neoinstitucionalismo de redes e as redes sociais (STEINMO,
2008; ELIAS, 1994).

166 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020


Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

Para tanto, a pesquisa baseou-se na análise exploratória de um estudo de


caso, realizado com cinco extensionistas e gestores do Centro de Desenvolvimento
Agroecológico Sabiá (criado em 1993, um dos primeiros constituintes da Rede ATER
NE), situado no município de Rio Formoso e na cidade de Recife, em Pernambuco.
Previamente aprovada, a pesquisa está registrada no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP),
da Universidade Estadual de Campinas, a partir do CAAE 80667317.2.0000.5404
O Centro Sabiá foi selecionado para a pesquisa, representando a Rede ATER
NE, devido aos seguintes critérios: ter boa representatividade em número de famílias
beneficiadas de Pernambuco, cerca de 3.000 famílias; atuar em diferentes regiões da
zona da mata, agreste e sertão, abrangendo 53 municípios; trabalhar com os biomas
diferenciados, a Mata Atlântica e a Caatinga; incluir um público beneficiário bastante
heterogêneo da agricultura familiar (assentados, quilombolas, pescadores, ribeirinhos,
comunidades rurais). Para além das ações e atividades desenvolvidas, o Centro Sabiá
foi um dos primeiros componentes da Rede ATER NE.
Os extensionistas foram abordados por meio de entrevistas informais e pos-
teriormente, semiestruturada, entre os anos de 2016 e 2018, com um formulário de
questões e roteiros dirigidos sobre a estrutura, gestão e atuação do Centro Sabiá, en-
quanto instituição e enquanto componente da Rede ATER NE, servindo à análise do
processo de formação e consolidação dessa Rede. Complementarmente, uma análise
mais complexa foi realizada no sentido de aprofundar os anseios dos extensionistas
diante de sua realidade em constantes mudanças e adaptações por meio de relatos de
suas trajetórias e do Centro Sabiá (MINAYO, 2017).
A primeira parte da pesquisa apresenta uma problematização, trazendo refe-
renciais do neoinstitucionalismo de redes. A seguinte parte aborda um aprofunda-
mento da importância da noção de redes sociais para a geração de políticas de exten-
são rural para a agricultura familiar. Na terceira seção, o percurso de articulação de
redes sociais das ONGs e a incidência na Política Nacional de Assistência Técnica e
Extensão Rural (PNATER) expressa a construção de novas potencialidades de atua-
ção das Políticas Públicas. A pesquisa é finalizada com algumas considerações sobre
a pertinência desses referenciais e as formas de relações estabelecidas entre sociedade
civil e Estado.

2. Neoinstitucionalismo de rede

A compreensão do “Neointitucionalismo”, como uma perspectiva teórica, não


pode ser baseada em uma abordagem científica única ou unificada, especialmente por
se referir às diferenças de contextos, de questionamentos e problemas que o norteiam,
bem como a análise metodológica (HALL; TAYLOR, 2003).
Segundo Lima et al., (2011), a inclusão do conceito de redes na abordagem
Neoinstitucionalista se deu em consequência do entendimento das redes enquanto
instituições, apresentando modelos frequentes de interações e trocas entre as pessoas
e suas organizações, formais ou informais. Nesta linha de pensamento, mantém-se

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020 167


Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

a forte influência do Institucionalismo histórico, acumulando, assim, a categoria de


redes enquanto um fator que influi diretamente na distribuição de poder, no fortaleci-
mento de identidades e na defesa de interesses resultantes das relações entre os atores.
As redes constituem uma velha forma de organização social que remete a ou-
tros tipos de sociedades ou de sociabilidades, sistemas de trocas, comunicação, de or-
ganização da produção e do comércio (CASTELLS, 2000). Esse autor reforça que a
característica principal das redes se dá nos fluxos de pessoas, objetos, informações,
símbolos, em diversos contextos sociais, tempos e espaços diferenciados, como tam-
bém nas formas de organização de determinados grupos humanos.
Os estudos neoinstitucionalista de redes envolvem linhas de pensamento que
vão desde um enfoque relacional das ações políticas e socioeconômicas até a complexa
rede de interações que compreendem os indivíduos, os grupos e as organizações so-
ciais. Mais ainda, as redes possibilitam a análise de um processo dinâmico intrínseco,
ao mobilizar informações, recursos, conhecimentos e saberes.
A partir do momento em que as entidades representativas se assemelham em
suas trajetórias, elas vão tornando-se cada vez mais interrelacionadas em redes e, desta
forma, o neoinstitucionalismo de redes pode proporcionar subsídios para uma melhor
compreensão das relações complexas entre organizações, inseridas em um determi-
nado contexto sociopolítico, cultural, econômico e ambiental. As principais pesquisas
nesta área abrangem diferentes perspectivas, dentre elas: relação entre diversos grupos
sociais; redes públicas; dinâmicas de mercado; movimentos sociais; e implementação
de Políticas Públicas (SCHERER-WARREN, 2006; LIMA et al., 2011).
Na presente pesquisa, as contribuições do neoinstitucionalismo de redes
vão fornecer elementos importantes para as análises de Políticas para a Agricultura
Familiar. Entre eles, a noção da relação entre as novas redes instituídas e suas relações
com a organização social dos agricultores, que contribuem para fortalecer a sua atua-
ção na implementação das Políticas Públicas para a Agricultura Familiar.

3. O papel das Redes Sociais

Os estudos sobre redes sociais envolvem a emancipação da sociedade civil, a


gestão social solidária, a economia solidária e a democracia participativa (MARTINS,
2004). Gramisci (2001) nos fornece elementos para compreender a emancipação da
sociedade civil, na relação com o Estado. A aprendizagem de uma socialização da po-
lítica, com a ampliação e abertura institucional, constitui uma “sociedade regulada”
com a transformação dos interesses privados para a constituição de uma dimensão
pública que expressa a vontade coletiva na construção de um projeto de sociedade,
para um Estado social do trabalho e da solidariedade.
Neste sentido, Singer (2002a) entende a economia solidária como uma forma
antagônica de organização da economia em relação aos modelos de mercantilização
de acumulação do capital. De acordo com o autor, a economia solidária reflete outro
modo de produção, baseados nas tomadas de decisões coletivas (organização social),

168 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020


Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

mantendo o direito à liberdade individual, refletindo numa redistribuição solidária da


renda que necessita de mecanismos estatais.
Através da gestão social solidária, a emancipação humana é alcançada, no pro-
cesso democrático deliberativo (tomadas de decisões coletivas) e dialógico, basean-
do no entendimento, na argumentação e não na negociação estritamente utilitária do
termo. Com a participação efetiva no processo de tomada de decisão, a democracia
participativa possibilita o crescimento e amadurecimento para os atores envolvidos
(FREIRE, 1997).
Na presente pesquisa, a análise da Rede ATER NE visa a compreender não ape-
nas os fatores formais que propiciaram a sua constituição, enquanto parte das metas da
PNATER, mas, sobretudo, como e o que levou essas organizações a se juntarem para
formar uma rede de extensão rural, a qual atua articuladamente com outras redes de
entidades da agricultura familiar e outras organizações não governamentais.
Algumas pesquisas tendem a reproduzir, de certa forma, um aspecto comum,
ao considerar a rede social como algo simples, ou seja, uma relação estabelecida entre
diversos elementos através de conexões que trocam informações entre si, podendo
multiplicar-se em novos elementos (MANCE, 2001; MARTINS, 2004). Para um maior
aprofundamento teórico, faz-se necessário incluir as dimensões históricas, culturais e
simbólicas no estudo, como bem apontam Bourdieu (1999) e Latour (2005).
De modo geral, há os estudos que utilizam a noção de redes para descrever as
novas mobilizações sociais e práticas cotidianas (DAVILA, 1992; MANCE, 2001); os
antigos e os novos arranjos de poder (MACÍAS, 2002); e as mudanças no mundo do
trabalho (MOLINA, 1995). Outros estudos vão além de aplicar uma ideia simplista
de rede, buscando aprofundar o contexto para teorizar, com o propósito de intervir
na realidade social (BOURDIER, 1999; LATOUR, 2005). A compreensão de redes so-
ciais passa a ser concebida como sistemas complexos que funcionam articulados por
agências humanas e indivíduos. Neste cenário, destacam-se os estudos sobre as redes
sociotécnicas (CALLON, 1989; CASTELLS, 2000; LATOUR, 2005).
No caso brasileiro, há um enfoque e uma aplicação dos estudos de redes pelas
políticas públicas e por novas formas de gestão do Estado. Alguns autores aplicam o
conceito de redes sociais com o propósito de planejamento e intervenção na agricultu-
ra (ABRAMOVAY, 2000) e nas políticas de saúde (FLEURY; DUVERNEY, 2007; LIMA
et al., 2011). Na área da saúde, as políticas públicas receberam uma nova designação
por Fleury e Duverney (2007), com o termo de “redes de políticas”, que representam os
novos arranjos organizacionais policêntricos que decorrem dos processos de descen-
tralização da área de saúde no Brasil.
Em nível mundial, Martins (2004) demonstra como a sociedade civil exige cada
vez mais respostas das políticas locais para a conquista e o usufruto dos direitos da
cidadania, com mais agilidade e eficácia. A redefinição de ideia de “direitos”, partindo
da concepção de “um direito a ter direitos”, inclui a invenção de novos direitos, emer-
gentes de lutas específicas e de suas práticas concretas. É o caso do direito à cidadania
que requer a constituição de sujeitos sociais ativos, os agentes políticos, determinando

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020 169


Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

o que consideram ser seus direitos (não pelo viés da classe dominante) e seu reconhe-
cimento enquanto tais (uma estratégia dos não-cidadãos) (DAGNINO, 2004).
Neste âmbito, os anseios da sociedade civil e governamental, com intelectuais
e técnicos, inserem-se no debate sobre redes sociais ao envolver a construção de po-
líticas que enfatizem a participação social e as ações de descentralização dos serviços
públicos, incluindo os serviços de ATER, saúde, educação, acesso à terra, uso susten-
tável dos recursos naturais, dentre outros (BERGAMASCO, 1993; CAPORAL, 2009).
Há diversos significados que podem ser reconhecidos no conceito de redes sociais.
Para Castells (2000), as redes constituem uma velha forma de organização social que
remete a outros tipos de sociedades ou de sociabilidades, sistemas de trocas, comuni-
cação, de organização da produção e do comércio. Há concepções de redes sociais que
dão ênfase às estratégias individuais dos atores sociais na construção de laços sociais
fortes, ainda que parcialmente influenciado pela estrutura (ELIAS, 1994). Estes laços
possuem um papel fundamental para resistir a situações sociais adversas, tais como a
seca, o desemprego, a falta de pagamento, em relação ao peso que teria alguns fatores
estruturais e coletivos (GRANOVETTER, 1983).
A presente pesquisa considera o conceito de redes sociais de Nobert Elias
(1994), o qual propõe a noção de uma rede em constante movimento, como um con-
ceito para explicar a dinâmica de relações humanas, a qual não é reduzida à liberda-
de individual, nem ao constrangimento coletivo. A rede em movimento se refere a
um “tecer e destecer” ininterrupto das relações, como bem descreve o mesmo autor:
“Assim, efetivamente cresce o indivíduo, partindo de uma rede de pessoas que exis-
tiam antes dele, para uma rede que ele ajuda a formar” (ELIAS, 1994, p. 34).
A noção de rede social ainda é carregada de uma série de debates, apesar do
reconhecimento teórico e metodológico, trazendo à tona alguns questionamentos, re-
lacionados à proposta deste artigo, qual seja,no debate contemporâneo das ciências
sociais e agrárias que entende o novo institucionalismo como uma perspectiva histó-
rica e atuação em rede sociais, de forma que a importância das instituições se revela
nas normas sociais que governam cotidianamente a vida e as interações sociais. Desta
forma, a implementação de uma política pública deve ser explicada pela sua capacida-
de de inserção cultural no decorrer do tempo, ao levar em conta o potencial endógeno
– de baixo para cima, “botton up”, dos sujeitos da pesquisa.

4. Precursores e a trajetória da Rede ATER NE

Nesta seção, serão analisados os antecedentes e os percursos das organiza-


ções que propiciaram a formação das organizações que recentemente constituem a
Rede ATER NE, com uma especial atenção ao Centro Sabiá. À princípio, algumas
organizações iniciais serão tratadas, dentre elas, as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs), associações de trabalhadores rurais, a Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional (FASE), o Projeto Tecnologias Alternativas (PTA), a Rede PTA,
a Assessoria e Serviços a PTA (AS-PTA), o Movimento de Agricultura Alternativa

170 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020


Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

(MAA), os Centros de Tecnologias Alternativas (CTAs). Em seguida, algumas entida-


des da trajetória da Rede ATER NE serão abordadas, com especial atenção ao Centro
de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, enquanto componente desta rede.
No Brasil, o histórico das redes de extensão rural, de base agroecológica, ti-
veram suas raízes nas associações de trabalhadores rurais, ainda na década de 1940
(FERNANDES, 2000; LIMA, 2018), e nas atuações das Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) (PETERSEN; ALMEIDA, 2006). De acordo com Fernandes (2000) as asso-
ciações posteriormente conhecidas como “ligas camponesas”, surgiram pontualmen-
te em diferentes regiões, mas foi bastante expressiva no estado de Pernambuco, em
1955, com a criação da Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco
(SAPPP). A mobilização pelo direito à terra, autoconsumo e a reprodução social con-
tribuiu na expansão para outras regiões do Brasil, sendo referência pela luta por me-
lhores condições de vida.
Ao longo da década de 1960, a FASE (fundada em 1961) atuou fortemente, com
associativismo e cooperativismo, contando com um grande apoio das CEBs, a qual
tinha sede em praticamente todos os estados do Brasil. Trabalho este surpreendido
pelo Golpe de 1964, passando a atuar na resistência à ditadura e na formação dos
movimentos comunitários de base e das frentes sindicais (FASE, 2013). Neste período
(1960-1970), a FASE foi reduzindo as áreas atendidas com os frequentes cortes orça-
mentários e restrições sofridas. Ainda hoje, a sua atuação e desempenho na defesa dos
diretos territoriais dos povos tradicionais, como as populações indígenas e os rema-
nescentes de quilombo tem uma grande repercussão (LIMA, 2018).
Após as perseguições dos trabalhadores rurais na Ditadura Militar, os movimen-
tos sociais se reorganizaram e fundaram a Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura – CONTAG, em 1963, agregando os sindicatos rurais. Frente às atro-
cidades no campo, o movimento passou a ter respaldo da igreja católica, representada
pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e pela Comissão Pastoral
da Terra – CPT.
Em meados da década de 1970, diante da miséria, expulsão e migração de mi-
lhares de camponeses, as atuações das CEBs emergiram aderindo às reivindicações
das famílias de agricultores por reforma agrária e direito à vida no campo, diante das
consequências socioambientais, da concentração de terras, Revolução Verde, desma-
tamento acelerado e do controle repressivo do Estado (BERGAMASCO; NORDER,
2003; MONTEIRO; LONDRES, 2017).
Petersen e Almeida (2006) demonstram o papel das Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs) como um dos maiores precursores para o movimento agroecológico
brasileiro. No final da década de 1970, haviam cerca de 80 mil Comunidades Eclesiais
de Base (BETTO, 1985). Em 1975, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) surge e se
estabelece num processo de mobilização junto aos camponeses em vários estados
(MONTEIRO; LONDRES, 2017).
Uma forte participação da sociedade civil organizada foi, igualmente, fun-
damental na construção dessa nova visão da Assistência Técnica e Extensão Rural

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020 171


Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

(ATER) (PETTAN, 2010). A atuação da Federação Nacional dos Trabalhadores


da Assistência Técnica e do Setor Público Agrícola (FASER), da CONTAG, do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de associações e coopera-
tivas de trabalhadores rurais, dentre outros movimentos sociais do campo, como o
Grito da Terra e integrantes das universidades que focavam ações para a agricultu-
ra familiar, na abordagem do humanismo crítico, educação popular e agroecologia
(PICOLOTTO, 2009; LIMA, 2018;).
Com a redemocratização, na década de 1980, as organizações dessas fa-
mílias e as CEBs passaram a formar articulações, agregando sinergias às mobi-
lizações, com fortes críticas à expropriação camponesa no Brasil (MONTEIRO;
LONDRES, 2017), às propostas de mercantilização dos bens comuns e da natureza
(FASE, 2013), o uso exacerbado de fertilizantes químicos e agrotóxicos, a perda da
diversidade biológica (PETERSEN; ALMEIDA, 2017). Período este que viabilizou
a formação e consolidação de diversas redes de entidades de assessoria a esses
agricultores, bem como a reorganização dos movimentos populares, em nível na-
cional (BERGAMASCO et al., 2015).
Entre 1970 e 1980, com a problemática ambiental ganhando visibilidade, di-
versas iniciativas de tecnologias alternativas à agricultura industrial passam a ganhar
forma, financiadas pela cooperação internacional. Nesse bojo, inicia-se a época da
“agricultura alternativa”, a qual deu origem a diferentes correntes de pensamento.
Um dos projetos iniciais foi a criação do Projeto Tecnologias Alternativas (PTA), em
1983, conquistando experiências agrícolas, mais adaptadas ao ambiente, com parti-
cipação comunitária e a parceria institucional da FASE (PTA/FASE) (MONTEIRO;
LONDRES, 2017). Posteriormente, essas experiências serviram para consolidar a Rede
PTA, no ano de 1988.
Ao trazer um histórico do movimento agroecológico no Brasil, Costa et al.,
(2015) também revelam o início da trajetória da Rede PTA da Fase, relatando abaixo:

Em 1983 se constituía o Projeto de Tecnologias Alternativas da


Federação de Órgãos para a Assistência Social e Econômica -
PTA/FASE, que posteriormente viria dar origem à Assessoria e
Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa AS-PTA. Orga-
nizado por profissionais que retornavam do exílio na Europa, o
PTA passou a atuar junto a movimentos sociais do campo, em
distintas regiões do país. Significativos aportes foram dados pela
AS-PTA nos campos da informação e capacitação de recursos
humanos, na articulação interna do Movimento de Agricultura
Alternativa – MAA e com movimentos afins da América Latina
e Europa, na mediação para e, ou, viabilização de recursos de
agências financiadoras e filantrópicas européias para as ONGs
do setor, na internalização da discussão do padrão tecnológico
e da agricultura alternativa nos movimentos sociais do campo

172 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020


Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

que, até então, se pautavam pelas lutas e reivindicações nas es-


feras das políticas agrária e agrícola, e de apoio à produção em
moldes convencionais (COSTA et al., 2015).

Segundo o autor, o MAA surge através de estudantes e profissionais de agrono-


mia, ciências agrárias, para incentivar a formação de grupos de agricultura alternativa,
contando com o apoio e articulação da AS-PTA. Esta última também passa a fazer
assessorias metodológicas para os Centros de Tecnologias Alternativas (CTAs), dos
quais surgiram diversas ONGs autônomas, tais como: o CTA, de Ouricuri/PE; o PTA-
Bahia; e o CTA Montes Claros.
Para situar este momento, o Movimento de Agricultura Alternativa (MAA),
com o aprofundamento da crise socioambiental no padrão de modelo agrícola bra-
sileiro, passou a internalizar os princípios e as ideias da agroecologia principalmente
após a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia (uma associação de direito civil
sem fins lucrativos) lançar, em 1989, o livro, traduzido do inglês “Agroecologia: As
Bases Científicas da Agricultura Alternativa” de Miguel Altieri (publicado original-
mente nos EUA em 1983) (COSTA et al., 2015).
Mais adiante, alguns CTAs deram origem a outras organizações não-governa-
mentais, de forma que: o CTA de Ouricuri/PE passou a ser Centro de Assessoria e
Apoio aos Trabalhadores e Instituições não Governamentais Alternativas (Caatinga); o
PTA/Bahia formou o Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop); e
o CTA Montes Claros, o Centro de Agricultura Alternativa (CAA) do Norte de Minas
Gerais (MONTEIRO; LONDRES, 2017).
Para Costa et al., (2015), as linhas de trabalho dos CTAs eram baseadas na
demonstração, avaliação e sistematização de experiências, com atividades de edito-
ração e difusão dos conhecimentos apreendidos e experiências dos (e para) técnicos,
agricultores e suas organizações. Dentre os CTAs, dois deles atualmente são enti-
dades que compõem a Rede ATER NE, a Caatinga e o Sasop. A Rede ATER NE é
constituída pelas seguintes entidades abaixo, da Tabela 1:

Tabela 1: Entidades que constituem a Rede ATER NE.


Estados Nº previsto Nº de
Entidades Territórios de abrangência
de atuação de famílias municípios
Centro
PE 800 10 Sertão do Pajeú e Mata Sul
Sabiá
Sertão do Pajeú (PE) e Apodi
Diaconia PE e RN 1.500 4
(RN)

MOC BA 2.250 10 Sisal


Bacia do Jacuípe, Paraguassu,
Ascoob BA 900 8
Litoral Norte e Recôncavo
Apaeb -
BA 900 16 Sisal e Bacia do Jacuípe
Valente

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Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

Caatinga PE 1.000 9 Sertão de Araripe

Patac PB 995 11 Cariri e Seridó

AS-PTA PB 1.500 13 Borborema

Cepac PI 720 6 Carnaubais

Baixo Sul e Sertão do


Sasop BA 840 7
São Francisco

Cetra CE 800 4 Itapipoca

Sertão Central, Sobral e


Esplar CE 800 7
Inhamuns
Apodi (RN), Cariri e Mata (PB),
SE, AL, PE,
Mata Sul e Agreste Meridional
Assocene PB, RN, 845 14
(PE), Sertão Central (AL),
NA, PI
Sertão Ocidental (SE)

Totais 9 3.850 120 29

Fonte: Paranhos et al., (2007).

Segundo Lima (2018), outra ONG antiga de referência, em Pernambuco, é o


Centro Josué de Castro (1979) que emergiu nos percursos dos CTAs. Criada por pes-
quisadores pernambucanos de Universidades, o Centro Josué de Castro adotou como
referência a influência do humanismo vinculado a uma perspectiva ativista, crítica e
comprometida com a transformação da realidade, contra as causas que geram a fome
e a pobreza no mundo.
As estratégias dos PTAs representam uma importante iniciativa que se sub-
mete a processos de avaliação por cooperações internacionais. Algumas experiên-
cias se baseavam em conhecer as áreas de manejo dos agricultores, a diversidade de
plantas, a variedade de animais criados, bancos de sementes, associações com espé-
cies arbóreas (agrofloresta de caráter tradicional), mutirões, acessando o potencial
endógeno da região, com experiências que potencializam a transição agroecológica.
Como essa abordagem requer uma atuação profunda, baseada em processos dialógi-
cos com as comunidades locais, na prática, os PTAs não tiveram apoio institucional
necessário para ampliar essas experiências em termos quantitativos (LIMA, 2018;
CENTRO SABIÁ, 2018).
A diversificação de práticas de manejo e diversidade agrícola foram realiza-
das nas propriedades com os agricultores familiares, tais como construir sistemas
agroflorestais, tecnologias de captação de água, manejo ecológico, micro-irrigação
e construção de barreiro trincheira. Em meados da década de 1980 à década de
1990, a cooperação internacional impulsionou a ideia e práticas de intercâmbios
entre grupos de técnicos e agricultores, do Brasil para a Nicarágua (CENTRO
SABIÁ, 2018).

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Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

No decorrer da década de 1990, com as fronteiras agrícolas de commodities se


expandiam e continuaram causando recorrentes expropriações de pequenos agricul-
tores e o desmatamento acelerado nos biomas do Brasil. Uma problemática que só
aumentou a dimensão ética e crítica de enfrentamento a esse modelo hegemônico na
agricultura. Segundo Bergamasco e Norder (2003), um período fortemente influencia-
do pelo processo de redemocratização do país que, após vinte anos da ditadura militar,
volta a buscar outros tipos de desenvolvimento, que incluíssem os povos do campo
e fossem ambientalmente mais duráveis (PETERSEN; ALMEIDA, 2006; CAPORAL,
2009; LIMA, 2018).
Dentre os movimentos sociais, a década de 1990 ainda foi marcada por for-
te mobilização pela terra, liderada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), pelos movimentos sindicais dos trabalhadores rurais - a Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape) e por outras tantas
organizações existentes no estado (SIGAUD et al., 2008). Diante da crise sucroalcoo-
leira na zona da mata pernambucana, essas organizações acabavam fazendo “o papel
do Estado” em garantir o acesso à terra aos trabalhadores do campo, realizando acam-
pamentos em latifúndios, passíveis de desapropriação pelo o Estatuto da Terra (1964).
Nesse contexto de forte dimensão política, mais precisamente entre o final de
1980 e o início de 1993, a ideia de criação do Centro Sabiá ganha força, por meio de
um grupo de pessoas envolvidas com pesquisa e universidade. Quando, em 9 de julho
de 1993, é fundado o Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, como muitas
organizações na sociedade civil neste início de década, segundo Gonçalves e Santos
(2018). Uma análise mais detalhada acerca desta ong será realizada no tópico seguinte.
O Centro Sabiá é uma organização não governamental, cuja sede principal está
localizada em Recife, Pernambuco, no Nordeste do Brasil. O seu princípio maior é de
promover a agricultura familiar, sob as bases da agroecologia. Como “missão institu-
cional”, o Cento Sabiá declara “plantar mais vida para um mundo melhor, desenvol-
vendo a agricultura familiar agroecológica e a cidadania” (CENTRO SABIÁ, 2018).
O desafio desta missão é gerar vínculos com os diferentes setores da sociedade civil,
resgatando experiências e saberes locais ao desenvolver tecnologias inovadoras, in-
cluindo o potencial endógeno do núcleo familiar, das comunidades e territórios.
Nos países da América Central, Nicarágua, Honduras e Guatemala, as pesqui-
sas realizadas, com base em centros especializados da experiência “campesino a cam-
pesino”, método sociotécnico inovador e diferenciado que se propaga rapidamente,
inspirou o Centro Sabiá a iniciar os seus trabalhos, como o caso da abordagem de agri-
cultor difusor e, de outras organizações, o de agricultor experimentador (CENTRO
SABIÁ, 2018). Segundo um Gestor do Centro Sabiá:

Bom, e aí o próprio trabalho do Centro Sabiá também nasce


dessa perspectiva, que é o que a gente chamava de agricultor
difusor. Também reproduzindo a ideia de difusão tecnológica,
da agricultura convencional, da assistência técnica convencio-

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020 175


Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

nal que outras organizações chamam de agricultores experi-


mentadores. Mas essa experiência está baseada na concepção
do campesino a campesino, que é dos agricultores compreen-
derem, entenderem, vivenciar e praticar e a partir disso poder
disseminar esses conhecimentos com outros agricultores. Não
desenvolvendo um papel técnico, de assistência técnica, que não
deixa de ser... (GESTOR DO CENTRO SABIÁ, 2017).

No mesmo ano de fundação, o Centro Sabiá participa de um encontro em Tauá,


no Ceará, a convite do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e da Esplar (ONG que atua
no semiárido cearense) e atualmente é componente da Rede ATER NE. O encontro fa-
zia parte da capacitação de Ernest Gotsch, agricultor e pesquisador suíço reconhecido
pela agricultura sintrópica e agrofloresta (CENTRO SABIÁ, 2018). Quando a equi-
pe do Centro Sabiá retorna da capacitação em sistemas agroflorestais, seus membros
resolvem realizar imediatamente o manejo recém aprendido. O fato foi retratado na
seguinte entrevista:

Já nesse ano, no final de noventa e três, participa um grupo de


pessoas da equipe e de agricultores com quem o grupo Sabiá
trabalhava, participa, em Tauá no Ceará, a convite do Sindica-
to dos Trabalhadores Rurais, de uma capacitação com Ernest
Gotsch, que era o suíço agricultor, que tinha toda a técnica da
agrofloresta. Então o grupo vai pra lá, quando volta, volta com
a cabeça doida de alegria dizendo que o Centro Sabiá tinha que
trabalhar com sistema agroflorestal (GESTOR DO CENTRO
SABIÁ, 2017).

Uma etapa especial nesse percurso foi a internalização do conceito de


“agroecologia”, uma vez que ainda não era um tema amplamente conhecido e as-
similado por algumas organizações sociais no Nordeste, mesmo as mais conso-
lidadas (CENTRO SABIÁ, 2018). Embora muito de suas atuações já seguissem
passos fundamentais de bases agroecológicas, sem denomina-las dessa forma.
Fundamental para esta compreensão da concepção da agroecologia foi a participa-
ção de organizações da Rede PTA no Consórcio Latinoamericano de Agroecologia
e Desenvolvimento Sustentável (Clades), no início dos anos de 1990, mudando
efetivamente seus enfoques de trabalho (GONÇALVES; SANTOS, 2018, CENTRO
SABIÁ, 2018).
Nesta pesquisa, a agroecologia é compreendida como uma ciência que propõe
compreender a complexidade dos agroecossistemas, por meio de: um olhar crítico aos
métodos difusionistas de tecnologia (agrotóxicos, fertilizantes, transgênicos); enten-
der a organização e manejo de agroecossistemas que se constituem, partindo dos “sis-
temas agrícolas tradicionais”, ao reconhecer saberes tradicionalmente construído por

176 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020


Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

esses mantenedores dos agroecossistemas (agricultores e comunidades tradicionais);


criando um diálogo de saberes com os fundamentos e métodos científicos construídos
nas instituições de ensino, pesquisa e extensão; contribuindo na transformação so-
cial, com o protagonismo e direito desses agricultores (PETERSEN; ALMEIDA 2006;
TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008).
Tida como uma ciência pós-normal emergente, a agroecologia para Toledo
e Barrera-Bassols (2008) possui três pilares indissolúveis – numa “trilogia sagra-
da”, sendo definida como: 1. uma ciência que tem como premissa básica o diálogo
de saberes na construção do conhecimento agroecológico, integrando o conheci-
mento acadêmico (interdisciplinar) e os saberes-práticas dos povos e comunida-
des camponesas/tradicionais; 2. um hábito, prática ou modo de vida dessas po-
pulações que praticam uma agricultura diversificada, de base familiar; 3. como
um movimento social, incluindo as demandas dos povos do campo, promovendo
justiça e equidade social.
Portanto, o papel da Rede PTA e seus programas de desenvolvimento local emer-
gem formando redes locais (formais e informais) de agroecologia ao abranger sindica-
tos, associações comunitárias, grupos de mulheres, grupos da igreja (GONÇALVES;
SANTOS, 2018). Segundo os autores, estas redes e articulações de experiências locais
de agroecologia precisavam urgentemente de um espaço de concertação nacional que
reconhecesse a diversidade de estratégias das atuações agroecológicas para catalisar o
diálogo com frentes governamentais.
Consequentemente, ainda na década de 1990, no intuito de fortalecer a ur-
gência de uma articulação em âmbito nacional, a AS-PTA e a Embrapa Agrobiologia
organizaram o “I Encontro Nacional de Pesquisa em Agroecologia”, em 1999. Por
outro lado, no mesmo ano, o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para
o Meio Ambiente e Desenvolvimento e o Fórum Nacional de Reforma Agrária re-
alizaram o “Seminário sobre Reforma Agrária e Meio Ambiente”. Esses encontros
possibilitaram reforçar a proposta de um evento maior, no Brasil, capaz de reunir
as experiências das organizações sociais atuantes na agroecologia (GONÇALVES;
SANTOS, 2018).
Em decorrência dessas demandas, representantes de diversas redes locais, re-
gionais e nacionais, de intuições governamentais e lideranças de movimentos sociais
realizaram o I Encontro Nacional de Agroecologia (I ENA), em 2002. Os desdobra-
mentos deste encontro concretizou um amplo vínculo das redes estaduais e regio-
nais de agroecologia, bem como deu origem à Articulação Nacional de Agroecologia
(ANA) (GONÇALVES; SANTOS, 2018). Em seguida, este fato implicou em re-
correntes debates preparatórios sobre agroecologia, para a realização de diversos se-
minários, fóruns em todo o Brasil (PETERSEN; ALMEIDA, 2017). A busca pela supe-
ração de problemas e gargalos na concepção e implementação das políticas públicas
para agricultura familiar é tema de debate frequente, não apenas neste espaço político,
mas também fazem parte das articulações das organizações locais, onde as políticas
são implementadas.

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Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

5. A trajetória da Rede ATER NE (2004 a 2018)

Antes de adentrar nos caminhos da Rede ATER NE, faz-se necessário esclare-
cer o debate institucional que envolveu a proposta de concretizar uma nova política de
ATER, pública e universal.
O ponto inicial, para Bergamasco et al., (2015), ocorreu durante o “Seminário
Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural - Uma nova extensão para a agri-
cultura familiar”, organizado pela FASER, CONTAG e a Associação Brasileira de
Entidades Estaduais de Assistência Técnica e Extensão Rural (ASBRAER), em Brasília
no ano de 1997. Nesta ocasião, vieram à tona a retomada dos debates que envolvem
o papel da ATER pública, fundamentada no humanismo e movimento agroecológico
enquanto bases para sua operacionalização. Contudo, o evento que se destacou, no
mesmo ano – “Workshop Uma Nova Assistência Técnica e Extensão Rural Centrada
na Agricultura Familiar”, foi organizado pela FASER, CONTAG, ASBRAER, MAA e
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Este evento propor-
cionou um modelo de ATER direcionado, exclusivamente, à agricultura familiar, que
fosse disponibilizado de forma gratuita aos beneficiários, financiado com recursos pú-
blicos, mas que fosse permitido a prestação dos serviços de ATER por ONGs, como
associações e cooperativas de agricultores, mantendo as empresas ou instituições pú-
blicas (BERGAMASCO et al., 2015).
Ainda, em 2002, houve uma série de ciclos de seminários regionais, organi-
zados pela FASER e a CONTAG para discutir a PNATER (BERGAMASCO et al.,
2015). Por outro lado, havia fundamentalmente a pressão das atividades inovadoras
das ONGs, algumas trazendo experiências dos antigos Conselhos Eclesiais de Base
(CEBs), atuação dos movimentos sociais e integrantes das universidades que manti-
nham suas ações prioritariamente para a agricultura familiar, em uma perspectiva da
agroecologia (COSTA et al., 2015).
O intuito era construir princípios que aderissem ao pluralismo na prestação
serviços, para poder incluir as especificidades das populações tradicionais, como as
indígenas e quilombolas. Com amplos seminários organizados, a finalidade era de
promover políticas que focassem na agricultura familiar, abrangendo ações de base
agroecológica, com questões de gênero, etnia e juventude, ou seja, um serviço de qua-
lidade a ser prestado de forma gratuita, universal e continuada.
Por fim, em 2004, o Governo Federal cria a PNATER representando uma con-
quista de espaço institucional, decorrente destes fóruns, seminários e debates da socie-
dade civil organizada, organizações locais e instituições governamentais, após a histó-
rica pressão desses movimentos na realidade do meio rural no Brasileiro (PETTAN,
2010; BERGAMASCO et al., 2015). Oficialmente, os princípios e diretrizes que regem
a ATER no Brasil estão fundamentados em três pilares centrais: a exclusividade da
agricultura familiar como público beneficiário; atuar mediante processos educacionais
dialéticos, com metodologias participativas; e a ênfase na abordagem agroecológica
(LIMA, 2018).

178 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.163-189, 2020


Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

A PNATER foi o fator que impulsionou a criação institucional da Rede ATER


NE, ainda em 2004, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sob a res-
ponsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a PNATER traz
princípios e diretrizes que visam a orientar os serviços de ATER para garantir o for-
talecimento da agricultura familiar, enquanto setor público no Brasil. Pela primeira
vez, um governo brasileiro cria um aparato institucional para a construção de uma
extensão rural voltada unicamente a um público historicamente excluído, o agricul-
tor familiar, traçando influências na constituição de abordagens dialéticas e práticas
participativas, trabalhando o reconhecimento de diferentes grupos de populações
tradicionais e suas diferentes culturas e etnias, trazendo igualmente a visibilidade
do papel da mulher nessas comunidades (CNM, 2015). Essa é a trajetória inicial da
constituição da PNATER, a promessa de um espaço institucional para dar suporte
as atuações inovadoras em redes de extensão rural, principalmente no âmbito das
Ongs, como bem relata um Gestor do Centro Sabiá:

Com a PNATER e a presença de algumas pessoas que eram das


organizações sociais, dentro do Governo Federal, do MDA,
especificamente, se viu que havia uma possibilidade de, com a
PNATER, que as organizações pudessem acessar recursos des-
sa política nacional de ações técnicas e extensão rural. Mesmo
que ela não tivesse se transformado, naquele momento, em lei,
que só acontece em 2010. Então essa história da PNATER foi a
grande motivação. Nós juntamos, com um grupo de organiza-
ções. Inicialmente Centro Sabiá, Diaconia, MOC, Patac e Cetra
(GESTOR DO CENTRO SABIÁ, 2017).

Para traçar planos para uma nova política de ATER, cada organização passou a
expor um pouco sobre suas experiências, acúmulo de conhecimentos, linhas de atuação,
concepções envolvendo extensão rural e agroecologia para discutir as propostas, tanto
individual como coletivamente das ações, numa etapa preliminar da formação da Rede
ATER NE (LIMA, 2018).
O espaço institucional de concertação envolvendo o governo e as ONGs
já vinha sendo construído e reconhecido em outras ocasiões de ações de ATER,
em rede, na área rural com os agricultores familiares. É o caso de organizações
como a Diaconia, o Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá, o Caatinga,
o Movimento de Organização Comunitária (MOC), o Programa de Aplicação de
Tecnologia Apropriada às Comunidades (Patac) e o Centro de Estudos do Trabalho
e de Assessoria ao Trabalhador (Cetra) (PIRES, 2011; CENTRO SABIÁ, 2018).
Anteriormente, o Centro Sabiá já havia participado de outras reuniões com
essas organizações, em Recife, para discutir a elaboração de uma proposta de projeto
sobre assistência técnica e extensão rural articulada ao Governo. Essa articulação foi
consolidada para elaborar estratégias de extensão rural de formação e capacitação,

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Marina de Sá Costa Lima; Gilberto Gonçalves Rodrigues;
Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

de fundos solidários e de construção de tecnologias sociais, via acesso ao recurso da


Sudene. O Cetra, no Ceará, é um exemplo de organização que promoveu o acesso ao
recurso e contou com a parceria das outras organizações do Nordeste para a gestão
desse recurso (LIMA, 2018).
A trajetória em conjunto dessas ongs facilitou a constituição das organizações
que iriam participar, mais adiante, da Rede ATER NE. Portanto, em 2004, essas or-
ganizações são chamadas, agora por meio da PNATER, para diálogo e acordos que
desencadearam na origem da Rede. Um outro aspecto relevante é que essas organiza-
ções, incluindo o Centro Sabiá, já faziam parte da Articulação do Semiárido (ASA),
um processo conhecido como “redes de redes”: articulações entre redes, de acordo
com Castells (2000).
Como a ASA, o Centro Sabiá é uma ampla rede que abrange diversas outras
redes, convergindo em atuações na convivência com o semiárido (foco específico da
ASA), nas práticas de Sistemas Agroflorestais (SAFs), na adaptação aos biomas da
Mata Atlântica e Caatinga, ou seja, linhas que estão inseridas e atuam em uma base
agroecológica. Desse conjunto de redes atuais, somam-se os caminhos já percorri-
dos da Rede PTA, que gerou a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), da qual
algumas das organizações da Rede ATER NE também fazem parte nos dias de hoje
(CENTRO SABIÁ, 2018; COSTA et al., 2015). Atualmente, O Centro Sabiá, enquanto
ONG, faz parte da ASA, da ANA, do Processo de Articulação e Diálogo (PAD), da
Rede de Agroecologia da Mata (RAMA) e da Rede de Assistência Técnica e Extensão
Rural do Nordeste (Rede Ater NE) (CENTRO SABIÁ, 2018). Essta configuração em
articulações de diferentes redes sociais, em variados níveis (local à nacional), com in-
tercâmbios e trocas de experiências entre as mesmas, vem potencializando os benefí-
cios dessas interações, bem demonstradas em outro relato, a seguir:

Bom, da Rede PTA, que deu origem à ANA, lá em 2002. En-


tão assim, você tem um conjunto, embora algumas não estão
nesse espaço da Rede PTA e outras não estão no espaço da
ASA. Mas de toda forma essas organizações elas não surgem
do nada. Esses três ambientes, de certa forma, é o que converge
a ideia de convidar essas organizações pra essa conversa, essa
reunião para a formação da Rede ATER NE. Daí cada orga-
nização montou um projeto individualmente (GESTOR DO
CENTRO SABIÁ, 2017).

A etapa seguinte das organizações foi demonstrar suas experiências, elaboran-


do projetos e definindo a localidade do trabalho, o público selecionado, as temáticas
específicas etc. (PARANHOS et al, 2007). Segundo Gestor do Centro Sabiá (2017): “Na
época, em termos de financiamento, as organizações da Rede ATER NE receberam do
governo cerca de 250 mil reais, cada uma, para um projeto anual. Desse total, o recurso
para as ações coletivas das organizações atingia cerca de 30 mil.”

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Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

No caso do Centro Sabiá, o recurso coletivo foi disponibilizado para a pro-


dução de um jornal, denominado Gente da Terra, com o objetivo de divulgar as
experiências das organizações da Rede. Não se tratava de um jornal do exclusivo
do Centro Sabiá e sim da Rede ATER NE. Desta forma, cada organização geriu
seu recurso, destinado ao coletivo, em uma área própria de referência, como agro-
ecologia ou formação sobre economia solidária (PARANHOS et al, 2007). Na 3ª
edição do Jornal, o registro completo do II Encontro Nacional de Agroecologia
– ENA de 2006, em Recife, foi realizado enfatizando o processo de mobilização e
sistematização das experiências e atuações de transições agroecológicas da Rede
no Nordeste (ANA; FASE, 2014).
Do ponto de vista da concepção metodológica, que envolve a troca de experi-
ências e o acúmulo de conhecimentos de forma coletiva, é válido ressaltar a impor-
tância da ideia e e das práticas de intercâmbio. O intercâmbio foi uma experiência
inicialmente desenvolvida pela antiga Rede PTA e foi incorporada pelo Centro Sabiá e
pela Rede ATER NE como um todo (demais entidades).
A Caatinga, ONG da Rede ATER NE, por exemplo, desenvolveu um trabalho
denominado Projeto Campo Ativo, que tinha a estratégia de organizar um grupo de
jovens (25 pessoas) chamado de Agentes Promotores da Agroecologia (APAs). Como
bem demonstra o entrevistado:

Eles construíram a ideia de formar esse grupo de vinte e


cinco jovens, com técnicas de abordagem, de como pensar a
convivência com o semiárido, a agroecologia, etc. De plantio
agrícola, de comercialização, de beneficiamento, de debate
sobre políticas públicas, manejo da caatinga, tinham vários
aspectos. E esses jovens assessoravam e acompanhavam
grupos de agricultores nas suas próprias comunidades. Essa
experiência, foi uma experiência que o coordenador do Caa-
tinga teve quando visitou a Nicarágua, conheceu essa experi-
ência, e quando foi a construção do projeto, eles idealizaram
fazendo as adaptações para a nossa realidade (GESTOR DO
CENTRO SABIÁ, 2017).

Este fato evidencia como a construção das metodologias, hoje internalizadas


pela Rede ATER NE, vieram de uma forma “Botton Up”, oriundas das experiências
das próprias Ongs, entre extensionistas e agricultores, nas constantes trocas de expe-
riências, em diferentes níveis, do local ao internacional. A Rede ATER NE incorpo-
rou a prática de intercâmbio porque as próprias organizações dessa Rede vêm dessa
mesma trajetória.
March e Olsen (2008) reforçam que a tendência descentralizada de funciona-
mento das instituições e a atuação mais autônoma, como no caso desta Rede extensio-
nista, reflete no que representa o “novo institucionalismo”. Para Bergamasco (1993), a

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descentralização dos serviços públicos, em especial, os de Extensão Rural é a base para


a participação social nas políticas públicas.
Em termos de diretrizes do Centro Sabiá, um Gestor afirma que a
Comunicação precisa ser compreendida e realizada por todos da equipe, porque
se refere à dimensão central das ações da Ong. Dela decorrem todas as relações
entre os técnicos, entre técnicos e agricultores e entre os próprios agricultores
(GESTOR DO CENTRO SABIÁ, 2017). Ao fazer referência a Paulo Freire, um
dos Gestores traz a ideia de mudança no entendimento da extensão rural como
uma assistência técnica para uma proposta inovadora de comunicação e exten-
são baseada na obra de Freire.
Outra diretriz do Centro Sabiá é a da economia solidária, das relações eco-
nômicas na construção de mercados mais horizontais. Para um dos Gestores, a
agroecologia é o paradigma adotado pelo Centro Sabiá e um princípio maior que
norteia toda ação do Centro Sabiá, seja no sentido de reconhecer, valorizar e esti-
mular os saberes dos agricultores e agricultoras, como um fator essencial. O papel
das mulheres é mais um princípio trabalhado pela Ong, principalmente para po-
der entender como as agricultoras se tornam indutoras de processos de desenvol-
vimento agroecológico.
Como programas específicos, o Centro Sabiá tem um primeiro ”Programa
Agrofloresta e Economia Solidária” que é trabalhado em três dimensões, a Agrofloresta,
a Economia Solidária e a Segurança Alimentar e Nutricional. O segundo programa
se refere ao “Programa Comunicação para Mobilização Social”, para acessar as fa-
mílias mais isoladas e frequentemente invisibilizadas do meio rural. No terceiro, o
“Programa Gestão e Desenvolvimento Institucional” visa a atuação em gestão compar-
tilhada, exercitando mecanismos democráticos de participação. O “Programa Políticas
Públicas e Desenvolvimento Territorial” é o quarto programa que trata de contribuir
na construção das Políticas públicas para agricultura familiar, incluindo populações
tradicionais (CENTRO SABIÁ, 2018).
Ainda há o quinto “Programa Convivência com o Semiárido e Sustentabilidade
Ambiental” para dar suporte às adaptações das famílias de agricultores ao semi-ári-
do, com estratégias de manejo da agrobiodiversidade. Por fim, o sexto é o “Programa
Direitos Humanos na Agricultura Familiar Camponesa”, no intuito contribuir no
empoderamento de mulheres, jovens, negros e negras, indígenas e LGBT do campo
(CENTRO SABIÁ, 2018).
Dentro do programa sobre direitos humanos, é trabalhada uma abordagem
diferenciada nas ações do Centro Sabiá, tanto para o reconhecimento das mulheres
enquanto sujeito de direitos próprios, quanto para a valorização da juventude do meio
rural. Ainda neste programa, trabalham-se as ações de direito dos remanescentes de
quilombos, de populações indígenas, pescadores, ribeirinhos e demais populações tra-
dicionais. Reconhece que esses grupos socialmente diferenciados, também são sujeitos
das políticas públicas para agricultura familiar e de assistência técnica e extensão rural,
é respaldar os princípios da agroecologia, de inclusão social e produtiva.

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Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

Esses programas são denominados “programas da ação fim”, quando o trabalho


é realizado direto com o público. Nos outros programas, de Direito à Comunicação
para Mobilização Social e o programa de Gestão e Desenvolvimento Institucional,
são mais direcionados para a própria estrutura interna, do cuidado da instituição do
Centro Sabiá.
Em um primeiro momento, cada organização elaborou um projeto e depois se
depararam com uma condição, a Rede ATER NE enquanto um espaço institucional de
concertação entre as organizações envolvidas. No início, esse processo de constituição
da Rede e o seu papel perante as organizações não estavam tão claros (PARANHOS et
al., 2007). Segundo um dos Gestores:

Como a gente é rede, se cada um tem um projeto? Claro


que isso era importante porque a relação com o estado
é institucional. Então sendo de uma institucionalidade,
você não pode responder pelo outro. Então cada organiza-
ção teria, de fato, o seu convênio direto com o MDA. Mas
aí nós realizamos um primeiro encontro, que foi em Afo-
gados da Ingazeira, em 2004, de formação da Rede ATER
NE, onde cada organização indicou a participação de três
pessoas, por organização. E nós conseguimos que, nesse
processo de formação, que nós tivéssemos vários dirigen-
tes das suas organizações, no sentido de ajudar a dar uma
certa direção política também (GESTOR DO CENTRO
SABIÁ, 2017).

No processo de formação, as organizações perceberam a fragmentação de


ideias, no momento inicial, e descartaram a abordagem proposta para construir um
programa que serviu para todos da Rede ATER NE, do ponto de vista de concepção
política. A partir dessa iniciativa, as atividades que estavam presentes nos projetos
das organizações deram suporte ao novo programa (ANA; FASE, 2014)
Desta forma, em cada território, foi realizado um primeiro momento de for-
mação, por exemplo, no território do Sertão do Pajeú-PE, e as outras etapas (mó-
dulos) de formação, ocorreram em territórios distintos no Nordeste, com o intuito
de que todas as organizações pudessem circular no território de atuação das outras
entidades da Rede ANA; FASE, 2014).
A base do processo de formação consistia, segundo um Gestor do Centro
Sabiá, em ir diretamente para as experiências dos agricultores, entender como os
agricultores e as agricultoras desenvolviam os seus sistemas agrícolas, de forma a
contribuir com uma base agroecológica (CENTRO SABIÁ, 2018). Portanto, ao in-
vés de abordar os agricultores, teorizando sobre agroecologia ou extensão rural, o
Centro Sabiá buscava a experiência concreta do trabalho que os agricultores estavam
fazendo, em um diálogo e trocas com eles nesse momento.

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Sonia Maria Pessoas Pereira Bergamasco

O papel do Neoinstitucionalismo de Redes e a noção de redes sociais para


a compreensão da implementação da PNATER, por meio da Rede ATER NE, se
deve a dois fatores essenciais. Um deles foi o comprometimento das entidades
em trabalhar com os agricultores familiares, como sujeitos políticos do processo
de transição agroecológica. Estes atributos são responsáveis pelo estabelecimen-
to da rede e da constituição de sua identidade institucional (PARANHOS et al.,
2007). O consenso das organizações em partir de uma perspectiva agroecológi-
ca, para se trabalhar a sustentabilidade dos sistemas agrícolas, é um fator chave
na trajetória da rede.
As relações construídas nos intercâmbios representam um elemento de
grande influência no levantamento de ideias, princípios, valores e experiências em
comum que constituem uma identidade de rede (PARANHOS et al., 2007). Por
outro caminho, estes vínculos têm a capacidade de atuar com um efeito sinérgico,
multiplicando suas atuações pelas redes locais, regionais e estaduais, na troca de
experiências agroecológica nos diferentes níveis.
Como bem constatam Latour (2005) e Castells (2000), as redes sociotéc-
nicas funcionam em uma articulação entre agências humanas (e não humanas) e
indivíduos. Para Elias (1994), nesse processo constante e dinâmico das relações
em rede, em movimento, é quando o indivíduo se fortalece devido a uma articu-
lação anterior de pessoas, uma trajetória que serve de base a nova rede que ele
passará a construir.
A Rede ATER Nordeste possui uma ampla atuação junto as entidades partici-
pantes, com o apoio do Programa Nacional de ATER (Pronater) em cerca de 16 mil
famílias agricultoras, localizadas em 120 municípios, de 29 territórios, abrangendo
nove estados no Nordeste. As redes locais/regionais são formadas por instituições,
formais e informais, como organizações dos agricultores, ONGs, pastorais, igrejas,
universidades, extensionistas, dentre outros (PARANHOS et al., 2007).
Ao priorizar o enfoque da agroecologia, observou-se a atuação da Rede
ATER NE como mediadora dinâmica e abrindo mais um espaço para a interação
entre diversos grupos de agricultores familiares, de redes sociais e organizações
nos estados nordestinos. Do mesmo modo, esta rede extensionista atua na cons-
trução de vínculos com outras redes locais e microrregionais, ao mesmo tempo em
que faz parte ativamente das grandes redes estaduais e nacionais.
Portanto, o enfoque da análise do novo institucionalismo, com foco em re-
des, no caso das entidades que compõem a Rede ATER NE, vem funcionando
no intuito acabar com o isolamento social dos agricultores através da interação,
do reconhecimento de seus conhecimentos, experiências, adaptações e inovações
locais, diante dos demais, principalmente com outros agricultores, além dos técni-
cos. Nesta lógica, o técnico atua como um mediador, um ator social que detém um
conhecimento tão importante quanto o dos agricultores
Importa ainda reforçar que a trajetória da Rede ATER NE tem, no aspecto
da comunicação, um papel importante que fortalece a socialização dos saberes

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Neoinstitucioalismo de Redes: precursores e trajetória
da Rede ATER NE/Brasil

tradicionais que constituem conhecimentos agroecológicos, construídos na ação


coletiva de técnicos e agricultores em rede. O conhecimento acumulado é trans-
mitido a um conjunto maior de técnicos que se apropriam do processo de apren-
dizagem dialética. Portanto, a comunicação, em seu diálogo com as redes locais/
microrregionais, estaduais e nacionais, fortalece a expressão da rede como ator
político frente à sociedade.

5. Considerações Finais

A princípio, algumas considerações poderão ser afirmadas ao trazer o en-


foque da análise neoinstitucionalista de redes. As entidades que compõem a Rede
ATER NE têm como intuito fundamental acabar com o isolamento social dos agri-
cultores na interação, por meio do reconhecimento de seus conhecimentos, ex-
periências e adaptações locais, principalmente com outros agricultores, além dos
técnicos. Nesta lógica, o técnico atua como um ator social que detém um conheci-
mento tão importante quanto o dos agricultores.
As experiências dos agricultores também são impulsionadas pela dinâmi-
ca da rede, nos intercâmbios e nas trocas entre pessoas de diferentes localidades,
abrindo um espaço para que ocorram processos de construção de conhecimentos
agroecológicos, de forma mais aberta e horizontal. Portanto, o intercâmbio é a
base para o estabelecimento de um movimento social que gera inovação agroeco-
lógica, por meio de sistemas formais e informais de comunicação.
A contribuição da Rede para os objetivos da PNATER se dá na participação
social, na construção conjunta com entidades, extensionistas e agricultores, e na
oportunidade de propor mudanças na política para o fortalecimento dos agricul-
tores familiares e das redes locais na construção de conhecimentos agroecológicos.
Deste modo, a reflexão de como e em que medida a Rede se percebe como ator
desta política, especialmente trazendo sistematizada as suas atuações inovadoras
em campo é uma forma de gerar subsídios para a práxis da Política de ATER.
Na pesquisa, a PNATER foi capaz de ser estabelecida de forma “Botton up”,
de baixo para cima, ao se constituir desde o início por entidades de ATER que já
trabalhavam em parcerias entre si. Aproveitando a rede informal que já havia se
concretizado para, em seguida, se transformar em uma rede formalizada: a Rede
ATER NE. O estabelecimento da Rede formal ampliou os espaços de concertação
com representantes de organizações dos agricultores familiares, reforçando o seu
papel enquanto sujeito político.

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A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)
The democratic importance of Brazilian political parties and the behavior of the
Brazilian Federal Supreme Court judicial in relation to the DAUs (1989-2017)
La importancia democrático de los partidos políticos brasileños y el
comportamiento de la corte suprema brasileña en el control de la
constitucionalidad (1989-2017)

Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos1


José Mário Wanderley Gomes Neto2

Resumo
VASCONCELOS, G. A. T. de; NETO, J. M. W. G. A importância democrática dos partidos políticos
brasileiros e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017). Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p.
191-216, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art9
Para compreender a sociedade atual é importante ter em mente uma compreensão
histórica acerca do processo evolutivo que esta passou ao longo do tempo. Desde
a origem da democracia na Grécia Antiga até a sua forma moderna. A criação do
Estado tal qual o conhecemos hoje foi o que possibilitou a implementação de go-
vernos representativos, como no caso do Brasil. Ao final da Idade Média e início da
Idade Moderna, a diversidade de interesses sociais bem como a maior possibilida-
de de força popular, propiciou o surgimento dos primeiros partidos políticos. Até a
atualidade permanecem como ponte entre os cidadãos e o governo, são, portanto,
entidades de representação social na esfera política e que buscam defender os in-
teresses dos grupos ou camadas sociais que os legitimam com o voto. Uma vez que
possuem uma imensa relevância para as democracias contemporâneas, é natural
que sejam detentores de diversas modalidades de controle político onde atuam,
evidentemente, isso também acontece em nosso país. Daí, munidos de legitimida-
de ativa para propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade, os partidos políticos
nacionais atuam também junto ao Poder Judiciário na busca pela melhor defesa de
seus interesses. A partir disso, foi desenvolvida uma pesquisa quantitativa que fez
uso de regressão binária para melhor explicar a forma como o Supremo Tribunal
Federal responde as ADIs impetradas pelos partidos e como isso afeta diretamente
a legitimidade do nosso Estado democrático de direito, evidenciando a grande per-
da de objeto nessas situações, em especial os partidos pequenos e os de oposição.
Palavras-Chave: Democracia. Partidos Políticos. ADI.

1
Pós-graduanda em Ciência Política em UNICESUMAR, Bacharel em Direito pela Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP) e Graduanda em Ciência Política com Ênfase em Relações Internacionais em Uni-
versidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: garaujotabosa@yahoo.com.br Orcid: https://orcid.org/0000-
0003-1672-9245
2
Doutor em Ciência Política (UFPE), Mestre em Direito Público (UFPE), Professor no PPGD da Universidade
Católica de Pernambuco (UNICAP). E-mail: jose.gomes@unicap.br Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4003-856X

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Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

Abstract
VASCONCELOS, G. A. T. de; NETO, J. M. W. G. The democratic importance of Brazilian political
parties and the behavior of the Brazilian Federal Supreme Court judicial in relation to the DAUs
(1989-2017). Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 191-216, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropi-
cov44n1(2020)art9

In order to understand our current society it is important to keep in mind a histo-


rical perspective of the evolutionary process that has taken place over time. From
the origin of democracy in Ancient Greece to its modern form. The creation of the
State as we know it today has enabled the implementation of representative gover-
nments, as in the case of Brazil. At the end of the Middle Ages and the beginning
of the Modern Age, the diversity of social interests as well as the greater possibility
of popular power, gave rise to the emergence of the first political parties. Until now
they remain the bridge between citizens and government, are therefore entities of
social representation in the political sphere and that seek to defend the interests of
groups or social strata that have legitimized them by vote. Since they have immen-
se relevance for contemporary democracies, it is natural that they are holders of
various forms of political control where they act, of course, this is also happening
in our country. Hence, armed with active legitimacy to propose Direct Actions of
Unconstitutionality (DAUs), the national political parties also act in the Judiciary
sphere while searching for the best defense of their interests. Thus, a quantitative
research was developed using binary regression to better explain how the Federal
Supreme Court responds to the DAUs filed by the parties and how this affects the
legitimacy of our democratic state of law, evidencing the great losses of ground in
these situations, in particular the small parties and the opposition ones.

Keywords: Democracy. Political Parties. DAUs.

Resumen
VASCONCELOS, G. A. T. de; NETO, J. M. W. G. La importancia democrático de los partidos polí-
ticos brasileños y el comportamiento de la corte suprema brasileña en el control de la constitucio-
nalidad (1989-2017). Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 191-216, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/
cetropicov44n1(2020)art9

Para comprender la sociedad actual, es importante tener en cuenta una compren-


sión histórica del proceso evolutivo que ha experimentado con el tiempo. Desde el
origen de la democracia en la antigua Grecia hasta su forma moderna. La creación
del Estado tal como lo conocemos hoy fue lo que permitió la implementación de
gobiernos representativos, como en el caso de Brasil. Al final de la Edad Media
y al comienzo de la Edad Moderna, la diversidad de intereses sociales, así como
la mayor posibilidad de fuerza popular, llevaron a la aparición de los primeros
partidos políticos. Hasta hoy siguen siendo un puente entre los ciudadanos y el
gobierno, son, por lo tanto, entidades de representación social en el ámbito polí-
tico y que buscan defender los intereses de los grupos o estratos sociales que los

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A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

legitimaban con el voto. Dado que tienen una inmensa relevancia para las demo-
cracias contemporáneas, es natural que posean diferentes modalidades de control
político donde actúan, evidentemente, esto también sucede en nuestro país. Por
lo tanto, armados con una legitimidad activa para proponer Acciones Directas
de Inconstitucionalidad, los partidos políticos nacionales también trabajan con el
Poder Judicial en la búsqueda de la mejor defensa de sus intereses. A partir de eso,
se desarrolló una investigación cuantitativa que utilizó la regresión binaria para
explicar mejor cómo el Tribunal Supremo Federal responde a las ADI presentadas
por las partes y cómo afecta directamente la legitimidad de nuestro estado de dere-
cho democrático, lo que evidencia la gran pérdida de objetar en estas situaciones,
especialmente partidos pequeños y opositores.
Palabras clave: Democracia. Partidos políticos. ADI.

Data de submissão: 18/04/2020


Data de aceite: 07/06/2020

1. Introdução

As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) representam um instrumen-


to de controle constitucional inerentes ao nosso Estado Democrático de Direito, que
vigoram no Brasil desde a Constituição de 1988. A partir de então, os legitimados,
dentre os quais os partidos políticos, puderam exercer controle sobre o processo le-
gislativo nacional.
A democracia por definição é o governo do povo e que, portanto, todos têm
direitos a voz no governo. Hodiernamente, os partidos políticos atuam como repre-
sentantes políticos dos cidadãos no exercício da gestão governamental. No entanto,
com uma frequência exorbitante, é observável a perda de objeto nas ADIs propostas
por partidos políticos junto ao Supremo Tribunal de Justiça (STF), que não analisa
nem julga tais ações imparcialmente, o que configuraria um desrespeito ao princípio
democrático (LIMA; GOMES NETO, 2016; CARVALHO, 2008).
A primeira parte deste trabalho retrata que o estágio de desenvolvimento de-
mocrático em que nos encontramos hoje é fruto de um longo processo. Enfoca no im-
postante debate acerca da melhor forma de analisar e pensar democracia na moderni-
dade, seja a perspectiva minimalista da democracia defendida por Joseph Schumpeter
ou a teoria da poliarquia elaborada por Robert Dahl. E, demostra a importância da
participação popular para uma democracia efetiva, bem como a devida representação
de interesses perante a estrutura governamental.
Na seção seguinte, é feita uma análise histórica de como surgiram os partidos
políticos, entidades atualmente indispensáveis para a representação social no gover-
no. Relata-se os dois principais momentos históricos que determinaram a criação dos
primeiros partidos. A Revolução Nacional e a Revolução Industrial. Cada uma deu

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origem a duas clivagens sociais distintas que geraram seus respectivos partidos políti-
cos. Há também menção ao debate acerca do Bi ou Pluripartidarismo e como cada um
opera. O contexto brasileiro também é retratado, com especial ênfase ao momento do
surgimento dos primeiros partidos ainda no período Regencial.
Por fim, a última parte é elaborada por meio de uma pesquisa quantitativa que
fez uso de uma regressão logística binária para analisar a perda de objeto sofrida pelas
Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas por partidos políticos no Supremo
Tribunal Federal. O resultado dessa pesquisa mostra como alguns partidos são sub-
jugados em detrimento de outros e como isso afeta o nosso sistema representativo e
democrático. Desse modo, é possível observar a importância dada pelo legislador da
Constituinte de 1988 aos partidos políticos como efetivos representantes das mais di-
versas camadas sociais e que por isso, devem dispor de diversas medidas para assegu-
rar o devido regime democrático e a representação popular no governo. Valores esses
tidos como indispensáveis para o Brasil.
Portanto, o controle de constitucionalidade tem íntima relação com a judicia-
lização da política, uma vez que um agente político como representante do povo tem
a necessidade de tomar medidas de gestão a fim de melhorar a vida da população,
porém, nem sempre tais medidas estão de acordo com os Direitos Humanos e mui-
to menos com normas e princípios previstos constitucionalmente e já que tem-se a
“Carta Magna” como lei máxima no Brasil, não se admite tomar medidas que vão de
encontro a suas disposições legais.
Este trabalho teve como objetivo analisar as ADIs propostas por partidos po-
líticos perante a nossa Suprema Corte, nas quais foi possível observar seu recorrente
comportamento autorrestrito. Tal questão se revelou ser de grande importância para
a nossa sociedade, uma vez que prejudicaria todo o sistema democrático. A partir
de um levantamento amostral aleatório das ADIs propostas pelos partidos políticos.
Organizou-se uma matriz binária, baseada na ferramenta Logit, para analisar a pro-
porção de ADIs que sofreram perda de objeto e se, o partido político que protocolou,
bem como, sua posição de apoiador do governo ou não influenciariam no modo como
seriam julgadas pelo STF.

2. O debate democrático

Ao longo do tempo, diante de todo o desenvolvimento sofrido pela democra-


cia, vários debates ocorreram, no tocante às melhores formas de analisar esta forma
de governo. Entre os principais teóricos da democracia, temos Joseph Schumpeter e
Robert Dahl, cada um com uma perspectiva de análise e de melhor forma de exercer
a referida forma de governo.
Segundo Schumpeter (1942), em uma democracia, o mais importante seria a
escolha do representante e não a vontade do povo. Ou seja, as elites políticas, através
do processo eleitoral, adquirem o poder de decidir pelos eleitores. Nesse sentido, com
um grande destaque para o papel das lideranças, o autor acredita que é democrático o

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e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

governo que tiver eleições, visto que a democracia seria um mero procedimento e não
a soberania popular. Coloca aquela, portanto, como um meio e não um fim, sendo, um
espaço de luta pelas lideranças pelo voto livre.
Acredita que o povo não é racional e por isso possuem a mera função de
eleger políticos devidamente treinados para exercer a função pública. Além disso,
ainda estabelece algumas condições para o êxito do método democrático, tais como:
uma elite política bem capacitada, não estender a democracia para outras partes da
sociedade, uma burocracia que funcione bem e o autocontrole democrático (uma
cultura de aceitação das decisões que são tomadas pelos governantes). Esse cenário
caracteriza uma concepção minimalista da democracia, tendo-a como um mero e
pouco inclusivo procedimento.
Por outro lado, Robert Dahl (1997), analisou a democracia através de um mé-
todo de maximização, no qual estabelece um conjunto de metas e a melhor forma de
realizá-las. Utiliza também um método descritivo para melhor compreender e eluci-
dar as estruturas democráticas do mundo real. O autor criou uma democracia con-
siderada ideal, chamada democracia poliárquica que se constituiria de oito normas.
Estas se tornam os critérios para analisar as democracias reais, ou seja, são métricas
para classificar formas de governo e estabelecer o que seria necessário para que tais
normas existam em maior ou menor grau.
As normas são necessárias em momentos eleitorais (período de votação, bem
como antes e depois) e em períodos entre eleições. E possuem como principal obje-
tivo maximizar a soberania popular e a igualdade política. As normas são: 1) Todos
têm o direito de votar; 2) Peso igual para os votos; 3) A maioria vence; 4) Qualquer
pessoa não satisfeita com as alternativas propostas poderá inserir a que se identificasse
(propostas alternativas); 5) Todos os indivíduos possuam informações idênticas sobre
as alternativas; 6) Propostas e líderes majoritários substituem os minoritários; 7) As
ordens dos servidores públicos eleitos devem ser executadas; e 8) Todas as decisões
devem ser subordinadas às 7 normas anteriores.
Dessa forma, tendo tais normas como critérios, o mundo se dividiria (em or-
dem decrescente) em: poliarquias (igualitárias ou não) e hierarquias (oligarquias ou
ditaduras). A democracia em si seria um ideal a ser atingido e em realidade, temos
apenas uma aproximação dela eu seria a poliarquia. Com isso, existiria mais poliarquia
onde mais se aceitasse que as normas referidas são importantes, ou seja, a existência de
poliarquias está muito relacionada à ideia de cultura política do local analisado. Neste,
a sociedade democrática que existir treina em preceitos democráticos na sua rotina,
através da participação, para sempre manter tais preceitos claros ao povo.
A partir de tal debate, observa-se que as diferentes perspectivas acerca da de-
mocracia nos levam a crer que a forma mais participativa e, a princípio, mais justa para
a sociedade seria a teoria de Robert Dahl. É importante ter em mente que, apesar de
não termos atingido uma democracia de fato, na visão do autor, não seria interessante
deixar de persistir nesse intuito e ceder o poder as elites políticas e nos contentarmos
om uma forma minimalista e procedimental da democracia.

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3. O contexto de surgimento dos partidos políticos e o processo de


desenvolvimento

3.1. Origem

Os partidos políticos surgiram na Inglaterra no século XVIII, em um con-


texto de restituição do governo monárquico após a série de conflitos que culminou
com a decapitação de Carlos I. Entre este e o seu sucessor, Carlos II, o país foi
governado por Oliver Cromwell, como Lorde Protetor até a sua morte em 1658.
Momento este em que foi sucedido por seu filho Richard que, no entanto, não ha-
via herdado a desenvoltura política do pai e foi compelido a deixar o cargo. Após
muita deliberação por parte do Parlamento, Carlos II assumiu sua posição como
monarca, mas não da mesma maneira que seu pai havia feito, no tocante a impor-
tância dada ao Congresso Nacional.
Segundo Williamson (2013), o reinado de Carlos II o relevou como um sobe-
rano pragmático e, portanto, devido às crescentes demandas sociais, permitiu que o
Parlamento começasse a desenvolver o sistema partidário, tendo os Whigs (Partido
Liberal) e os Tories (Partido Conservador) emergido pela primeira vez.
O Guia Oficial do Palácio de Westminster, produzido pelas Houses of Par-
liament, relata que, a partir do século XVIII, período em que houve um considerável
aumento de demandas públicas para a participação na política, os Comuns co-
meçaram a exercer grande controle sobre as matérias financeiras, fato que, even-
tualmente, tornou a House of Commons dominante, bem como que a monarquia
também passou a desempenhar um papel menos significante na gestão da nação.
Naquela época, a política nacional de partidos evoluiu gradativamente e o atual
sistema de dois ou três partidos principais se desenvolveu no século XIX.
Este estudo ressalta ainda que, no século XX, o relacionamento entre as ca-
sas representativas mudou sua configuração. O Ato Parlamentar de 1911 re-
moveu a prerrogativa do veto legislativo para receitas e despesas da House of
Lords. Diversificou-se também o corpo de membros da referida Casa. Antes ape-
nas Pares do Reino, leia-se, nobres, de maneira hereditária poderiam se tornar
membros, após a reforma, estendeu-se a possibilidade de nela ingressar também
pessoas de notável saber e reputação. Como resultado, atualmente se tem uma
Câmara mais diversa e ativa no processo legislativo. A Câmara dos Comuns, por
sua vez, também se tornou mais representativa da realidade social e, uma vez que
se tornou preponderante no Legislativo, passou também a dar um ar de efetiva
democracia à Inglaterra, posto que era o local de atuação dos partidos políticos e
do sistema partidário em si.
Ainda sobre a origem dos partidos políticos, vale menção o doutrinador
jurídico José Jairo Gomes (2013), em sua obra referente a Direito Eleitoral, ele afir-
ma que o processo de formação dos partidos se deu através da atuação de deputa-
dos no Parlamento. Aponta também que já no século XVII começaram a ocorrer

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e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

movimentos de contestação aos excessos do poder monárquico-absolutista, além


de ressaltar que o início do desenvolvimento de ideias liberais, que por sua vez,
enfatizavam a liberdade individual frente ao Estado, também foram determinantes
para o processo.
A Revolução Industrial se mostrou de extrema importância para catalisar a
formalização dos partidos, já que seus movimentos socialistas ajudaram a firmar a
distinção ideológica entre Conservadores (Tories) e Liberais (Whigs). O contexto
desse período teve início em 1832 com a lenta e progressiva ascensão da burgue-
sia industrial, bem como a da massa trabalhadora, ou seja, os operários, que se
sindicalizaram e formaram as trade-unions. Em decorrência disso, o nível das rei-
vindicações culminou com o Partido Trabalhista (Labour Party) e sua busca pela
representação dessa parcela da população no Parlamento. Uma nota histórica re-
levante é que o Partido Liberal entrou em declínio na atualidade, sendo, portanto,
o cenário político contemporâneo na Inglaterra dominado, em sua maioria, pela
disputa entre os partidos Conservador e Trabalhista (GOMES, 2013).
Para o nosso sistema de democracia moderna, os partidos políticos se tor-
naram peças essenciais para o seu funcionamento. Assim, sua importância é ta-
manha que, no Brasil, detêm o monopólio do sistema eleitoral e chegam a definir
o perfil assumido pelo governo. Desse modo, não há representação popular nem
tampouco exercício de poder estatal sem a intermediação partidária. Atuam, nesse
sentido, como mecanismo de comunicação (entre a população e o governo) e de
participação do processo de decisão, ou ainda como instrumento destinado ao
recrutamento dos governantes e à socialização política. Tornaram-se indispensá-
veis à normalidade democrática e a possível ausência deles poderá induzir uma
resposta violenta de setores da sociedade que se sentirem prejudicados e excluídos
no âmbito da representação no nosso sistema democrático (GOMES, 2013).

3.2. Movimentos Históricos Determinantes

Entretanto, de acordo com Jalali (2017), em seu livro Partidos e sistemas


partidários, a motivação que levou a origem desses agrupamentos se deu através
de movimentos históricos no espaço social que culminaram em fraturas sociais
que perduraram ao ponto de gerarem dimensões de conflito que dividiram a socie-
dade e consequentemente suas prioridades políticas. O autor dá destaque para dois
acontecimentos, são eles: a revolução nacional e a revolução industrial, que deram
origem a duas clivagens (termo referente a divisão ou separação) sociais cada.
A revolução nacional diz respeito ao complexo processo de formação dos
atuais Estados da Europa Ocidental, após a Paz de Vestfália. No decorrer disso, hou-
ve a construção de vários Estados multinacionais, uma vez que abarcavam diversas
várias nações nos limites de suas fronteiras, como no caso da Espanha ou do Reino
Unido. Nessas localidades, existem imensos debates políticos suscitando referendos
ou outras tentativas de independência de nações que integram os atuais Estados.

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Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

Os conflitos que deram origem a esses Estados tiveram como resultado a


subordinação do grupo derrotado ao grupo vencedor, fato que gerou a clivagem
centro-periferia. Isso, contudo, não diz respeito a uma dimensão geográfica e sim
a uma divisão entre vencedores (centro) e derrotados (periferia). A “cultura cen-
tral” da construção nacional versus a crescente resistência das populações domi-
nadas étnica, linguística ou religiosamente. Trata-se, portanto, de uma clivagem
referente à construção territorial e cultural dos Estados modernos (JALALI, 2017).
Outra divisão social originada da revolução nacional se prende ao próprio
desenvolvimento das estruturas do Estado moderno. A provisão direta ou indi-
reta de uma série de bens, que hoje atribuímos ao governo, tais como educação,
proteção social, saúde e a definição de regras (Direito Canônico), outrora foram
prerrogativa da Igreja (Católica, Luterana ou Calvinista). Emerge assim o conflito
entre as aspirações mobilizadoras do Estado-nação e as exigências corporativas
das Igrejas. A clivagem Estado-Igreja abarca a divisão entre aqueles que defendem
a manutenção do papel da Igreja e aqueles que defendem a redução desse papel e
a sua substituição pelo Estado (JALALI, 2017).
A Revolução Industrial, por sua vez, foi um momento histórico que se de-
senvolveu sobretudo nos séculos XVIII e XIX e seus efeitos são amplamente co-
nhecidos e sentidos até a atualidade. Já que poucas são as esferas da vida que não
foram afetadas por ela. Esse novo meio de produção gerou duas clivagens sociais.
A primeira foi a clivagem rural-urbana que abarcava os interesses divergentes
dos grupos agrícolas e industriais. Ou seja, derivava de questões econômicas e,
portanto, sediava as disputas entre os setores fabris, que tinham interesse em
promover o comércio livre, nacional e internacionalmente, em contraste com os
interesses agrícolas que defendiam uma maior proteção dos mercados.
Contudo, tal disputa tem um caráter mais profundo, pois, em seu cerne, os
interesses rurais visavam defender suas terras, bem como sua posição histórica de
elite nacional, enquanto que os interesses urbanos/industriais reivindicavam aces-
so a essa elite, pelo seu mérito e capacidade de empreendimento (JALALI, 2017).
Tal situação é, por exemplo, bem visível no contexto britânico. Posto que
tal país, com sua forte tradição monárquica, garantia aos nobres e pares do reino
um status hereditário e vitalício no comando do país e não incentivava a ascen-
são social. Mas o novo contexto econômico muitas vezes permitia a não-aristo-
cratas uma imensa fortuna, por vezes maiores do que a de muitos fidalgos, fato
que gerava muito inconformismo social na época e a crescente busca por mais
representatividade de cidadão não possuidores de título nobiliárquico.
Michael St John Parker (2013), em seu livro “Life in Victorian Britain”,
relata que, apesar do crescimento das cidades, certos aspectos da Inglaterra vito-
riana permaneceram rurais. A aristocracia latifundiária vivia confortavelmente
em suas propriedades e fazendas, mas aqueles que faziam dinheiro a partir da
indústria e do comercio eram, no geral, rápidos em investir em terras. A agri-
cultura em si passou por um difícil período nos anos de 1840. Com isso, a massa
trabalhadora passou a migrar para as cidades e a buscar emprego nas indústrias.

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e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

O cenário político da época, assim, poderia ser visto no sentido de que a no-
breza foi paulatinamente tendo seu poder de influência reduzido, ricas e bem-sucedi-
das classes médias tomaram o controle do sistema político e as classes trabalhadoras
começaram sua própria ascensão ao poder devidamente organizado. Ideias políticas
passaram a ser levadas adiante com grande entusiasmo por todos os níveis da socie-
dade (PARKER, 2013).
Todavia, atualmente esta clivagem tem pouca visibilidade, pois houve um gran-
de declínio da população agrícola e os partidos tiveram que posicionar-se. Em con-
trapartida, o confronto entre patrões e trabalhadores destaca-se como sendo o mais
importante. E, de acordo com Jalali (2017), encontra-se na origem da divisão entre
esquerda e direita e, portanto, com os partidos de esquerda com tendências a defender
os valores e interesses da classe trabalhadora e uma maior intervenção do Estado na
economia. Isso é visto, pela literatura científica, como o principal conflito político da
Europa Ocidental, e por consequência, dos principais países do continente americano
também, tendo em vista a forte influência cultural que ainda sofremos por parte de
nosso continente colonizador (JALALI, 2017).
Ressalte-se que é através desta clivagem patrões-trabalhadores que melhor ex-
plica o voto nas democracias ocidentais. Daí, tal contexto se solidificou principalmen-
te após a Revolução Russa de 1917 e está presente até hoje nos mais diversos países ao
redor do mundo, inclusive no Brasil (JALALI, 2017).
No caso do Brasil, para a maioria dos pesquisadores, o primeiro partido polí-
tico surgiu em 1831 e denominava-se liberal. Em seguida, no ano de 1838, foi criado
o Partido Conservador, sendo ambos frutos de uma intensa atividade político-par-
tidária. Nos primeiros anos do Império, não existiam propriamente partidos polí-
ticos como temos hoje, e sim, apenas grupos de opinião. Estes, contudo, não eram
bem organizados nem suficientemente duradouros para serem caracterizados como
partidos. Além disso, o período conturbado do primeiro reinado não favoreceu a
formação de grupos coesos e o fato de D. Pedro I ter governado algum tempo com
o parlamento fechado constituiu-se numa dificuldade adicional (GOMES, 2013).
Já na fase do Segundo Reinado (incluindo o período regencial), o cenário
político brasileiro foi dominado pelos partidos Liberal e Conservador, época em
que vigorou uma certa estabilidade no quadro partidário nacional. Como tais partidos
não diferiam muito substancialmente, em 1870 é criado o Partido Republicano, que
por sua vez, viria a desempenhar um papel decisivo na queda do Império e na forma-
tação da República, sob inspiração dos EUA (GOMES, 2013).
Desde a instalação da República até os dias atuais, a história dos partidos políti-
cos brasileiros tem sido tumultuada e repleta de acidentes. No período compreendido
entre a nossa independência e a contemporaneidade, houve seis diferentes sistemas
partidários no Brasil. E são resultantes de diversas mudanças sofridas nas estruturas
do Estado geradas por revoluções e golpes políticos, que geraram extinções e forma-
ções de novas organizações. Portanto, se comparado a outros países, especialmente os
EUA e as nações da Europa ocidental, onde os sistemas partidários são estáveis dentro
do possível, no Brasil, há uma trajetória de marcante instabilidade (GOMES, 2013).

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Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

Com isso, é importante entender a relação entre o modelo de clivagens, de-


talhado anteriormente, e a formação e consolidação dos sistemas partidários. Estes
dizem respeito à forma de interação que existe entre os diversos partidos e como eles
se relacionam no contexto nacional em sua incessante busca pelo poder. Em termos
gerais, portanto, a estrutura de um sistema partidário deriva da natureza das clivagens
dentro de suas respectivas sociedades (JALALI, 2017).
Nesse sentido, os diferentes partidos transferem os conflitos resultantes das
clivagens sociais para a arena política e, da configuração destes conflitos emergem
as interações entre os partidos, ou os sistemas partidários. Em geral, os países têm
diferentes dinâmicas, visto que os processos evolutivos e revolucionários variaram
de acordo com a realidade histórica de cada um. Ou seja, os reflexos das revoluções
nacional e industrial trouxeram diversas clivagens que, posteriormente, geraram um
sistema partidário próprio a determinado país (JALALI, 2017).
Por exemplo, no caso britânico, por ter sido pioneiro nesse quesito, o timing e a
natureza das revoluções levaram à predominância da clivagem patrões-trabalhadores,
o que ajuda a explicar a estruturação do sistema partidário numa dimensão de com-
petição principal entre os partidos Trabalhista e Conservador. Ainda que existissem
outros interesses, o momento foi mais propício para que essa clivagem se tornasse o
cerne do debate político naquele país (clivagem dominante), contribuindo assim para
a consolidação do sistema partidário em torno destes dois partidos (JALALI, 2017).
Daí, as fraturas sociais tornam-se parte da “paisagem” social e política do país
e, geram as alternativas partidárias que, em democracias consolidadas (especialmente
na Europa Ocidental), são mais antigas do que a maioria dos eleitorados nacionais.
Assim, para muitos cidadãos, as principais opções eleitorais que lhe são apresentadas
eleitoralmente, existem até mesmo antes de nascerem e lhe foram passados por seus
ancestrais, numa relação que perdura gerações. Por isso, pode-se resumir que a con-
solidação dos sistemas partidários se dá pela formação de clivagens sociais, que geram
partidos e estruturam os sistemas partidários.

3.3. Sistemas Bi ou Pluripartidários

Ao redor do mundo, os partidos políticos só passaram a ser regulamentados


por normas constitucionais a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Destarte,
os regimes democráticos repartem-se em bi ou pluripartidaristas e, quando em al-
guns países, momentânea ou duradouramente, os partidos são suprimidos a um ou
nenhum na esfera governamental, não seria possível classificá-los como democracias.
Visto que o princípio base do regime democrático é a disputa pelo poder por diversos
segmentos sociais e a devida representação de todos, dentro do possível. Ou seja, a
alternância e poder e constante incerteza acerca do próximo governante, fazem parte
de um Estado democrático de fato (PRZERWORSKI,1984).
No tocante a ausência de partidos, ela pode ocorrer pela impraticabilidade
eleitoral, em governos de duração indefinida. Já o partido único, é comum em

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A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

regimes ditatoriais e autoritários como no caso da Itália fascista. Ressalte-se os


partidos de ideologias marxistas, que alegam ser transitórios e atuarem apenas
como ponte entre o socialismo e o comunismo, conforme defendia Mao Tse Tung
ao afirmar que o pluripartidarismo seria uma consequência do Estado burguês,
onde cada partido defenderia sua classe. De certo modo, tal teoria faz um certo
sentido, como já foi mostrado os processos históricos que originaram os partidos
políticos (MENDONÇA, 1981).
O bipartidarismo, por sua vez, é defendido por aqueles que acreditam que o du-
alismo é a ordem natural da política. E que, portanto, as decisões finais sempre se dão
entre duas possibilidades, ainda que hajam vários partidos, no Congresso, as votações
são entre duas hipóteses. Daí, a pluralidade aparente se transforma em dualidade real.
No entanto, o bipartidarismo, a rigor, exige que os dois partidos aceitem esta forma de
representação popular, sendo ambos, permanentemente, sucessores potenciais um do
outro. Essa efetiva possibilidade de alternância tem que ser assegurada caso contrário,
o regime se torna ilusório (MENDONÇA, 1981).
Inglaterra e EUA são exemplos clássicos de democracias bipartidárias. Na
Inglaterra, os partidos é que são fortes e não os candidatos ou líderes, propriamente, e
assim, são raras as mudanças violentas de votação entre dois partidos, porque a popu-
lação tende a seguir a ideologia do partido e acompanhar seus programas e propostas.
Porém, nos EUA, a eleição do governante se dá mais pelo compromisso que o candi-
dato defende do que na opinião difundida ou dogma seguido pelo partido ao qual é
vinculado (MENDONÇA, 1981).
No Brasil, já houve tanto a experiência do Bi quanto do pluripartidarismo. A
primeira se deu ainda no período do império e perdurou até o surgimento do Partido
Republicano que, após vinte anos no poder, pôs fim ao nosso regime monárquico e
instaurou a república, mas não por meio do voto, e sim através de insatisfações sociais,
militares e religiosas. Após esse evento, a nossa estrutura partidária fragmentou-se e
foi pulverizada em um sistema estadual que era pouco autêntico em sua representação,
por cerca de 40 anos. A cobrança por mais legitimidade representativa foi, inclusive,
um dos postulados da Revolução de 30 (MENDONÇA, 1981).
O bipartidarismo também esteve presente no período do governo militar
no Brasil. Contudo, com o processo de redemocratização e a promulgação da atual
Constituição, o país ingressou em sistema pluripartidarista. Esse sistema, apesar
de ter como objetivo garantir a maior representação possível da sociedade, muitas
vezes inspira a criação de novos partidos apenas para fortalecer os interesses das
camadas governantes.
No entanto, é importante mencionar o âmbito legal dos partidos. Juridicamente,
são tidos como entidades formadas pela livre associação de pessoas, cujas finalidades
são assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema repre-
sentativo, e defender direitos humanos fundamentais, tal como os direitos políticos do
cidadão (GOMES, 2013). Destarte, conforme mencionado anteriormente, tais insti-
tuições, no decorrer na história brasileira não abarcam as aspirações e necessidades de

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020 201


Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

todos, ou ao menos grande parte, da nação, por isso as constantes crises de represen-
tatividade sofridas pelo cenário político.
Em tese, cada filiado encontra-se ligado a outro por princípios filosóficos, so-
ciais, doutrinários, que se presume respeitar, culminando, assim, na chamada lealdade
partidária. Porém, ainda que nosso arranjo eleitoral conte com um balizamento legal
bom, não é possível dizer que o sistema partidário nacional é estável. A estabilida-
de desse sistema se dá por meio da reprodução das estruturas sociais geradas pelas
clivagens, no seio de uma própria comunidade ou até mesmo de uma família. Nesse
sentido, a estabilidade decorre da continuidade das estruturas sociais geradas pelas
várias clivagens (JALALI, 2017). Fato esse não observado no Brasil, cuja sociedade se
encontra em constante mutação, especialmente a partir dos anos 2000, mas sem per-
der o almejo ao governo e ao poder.
Em outras partes do mundo, em especial o “Velho Mundo”, tomando como
exemplo a clivagem patrões-trabalhadores, a estabilidade era gerada pela existência
continuada de uma ampla classe trabalhadora, após a Revolução Industrial. Esse mes-
mo padrão existia nas outras clivagens como a Estado-Igreja ou a centro-periferia.
Daí, pode-se extrair uma explicação socioestrutural, na medida em que se prende com
a manutenção das estruturas sociais que apoiavam os diferentes partidos. Ou seja, uma
sociedade estável implica em um sistema político-partidário estável porque, enquan-
to não houver conformação nesse sentido, será inviável uma concorrência partidária
previsível (JALALI 2017).
Ao mesmo tempo, também se pode atribuir a estabilidade de um sistema par-
tidário ao importante papel da socialização das identidades geradas pelas clivagens,
em que as novas gerações absorveriam os valores identitários e políticos das gerações
precedentes, processo que ocorre principalmente no meio familiar. Isso ajudava a de-
senvolver uma consciência política da identidade religiosa ou regional por parte do
indivíduo. A noção de uma pessoa como fruto do seu entorno e a reprodução dos
valores apreendidos ao longo da vida, bem como a sedimentação e reprodução desses
valores na esfera político-social (JALALI, 2017).
As identidades políticas também podem ser derivadas de uma dimensão or-
ganizacional. Havia uma densa rede de organizações que contribuíam para a difusão,
organização e mobilização dos diferentes grupos sociais, tais como: sindicatos, Igreja
ou ainda partidos políticos. Estes últimos, entram nos elencados, no tocante a uma
espécie do gênero partidos políticos. E são aqueles que visavam a organizar e repre-
sentar os interesses de sua camada social, originada a partir da estrutura de clivagens.
Possuíam uma elevada estabilidade ideológica e eram fiéis aos interesses do seu grupo
social de apoio. Contavam com um forte enraizamento na camada social que visavam
defender e eram chamados de “partidos de integração de massas” ou também de “par-
tidos de massas” (JALALI, 2017).
Diante do exposto e de volta ao contexto brasileiro, nosso país prevê, em sua
Constituição Federal de 1988, que “É livre a criação, fusão, incorporação e extinção
de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o

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A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana”. Estabelece ainda al-


guns preceitos a serem seguidos, tais como: caráter nacional, proibição de recebimento
de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a
estes, prestação de contas à Justiça Eleitoral e funcionamento parlamentar de acordo
com a lei. Além disso, assegura aos partidos políticos autonomia para definir sua es-
trutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o
regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as can-
didaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos
estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.
O regime democrático no Brasil sempre se deu de forma representativa, até
porque seria altamente inviável em sua forma direta nos moldes da Grécia Antiga
bastando para isso levar em consideração o tamanho da nossa população em compa-
ração com a de Atenas Clássica. Por isso, fazemos uso de partidos políticos dotados
de diversas garantias e preceitos que visam ao melhor interesse da população nacional
quando esta estiver sendo representada no Congresso.
Uma garantia fundamental nesse sentido é que os partidos estão abarcados en-
tre os legitimados no país para propor Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade
(ADIs). Isso é uma prova da importância democrática dessas entidades para o cenário
político nacional pois, além da arena que lhes cabe no Poder Legislativo para deba-
ter questões, também podem fazer uso da esfera do Poder Judiciário se acreditarem
ser necessário e no melhor interesse da nação combater uma possível ofensa à Carta
Magna brasileira.

4. As ADIs propostas pelos partidos políticos brasileiros e o com-


portamento do STF

4.1. Objetivo das ADIs

A legislação brasileira estabelece alguns meios de controle de constitucionalida-


de, dentre eles a ADI (Ação declaratória de inconstitucionalidade ou Ação direta de in-
constitucionalidade). Luís Roberto Barroso, em seu manual de Direito Constitucional
Contemporâneo, define este instrumento processual como controle de constituciona-
lidade de ato normativo em tese, abstrato, marcado pela generalidade, impessoalidade
e abstração. Busca-se, com isso, expurgar do sistema uma lei ou ato normativo viciado
(formal ou materialmente) através da invalidação deste ato normativo ou desta lei,
tendo por objeto a própria questão da inconstitucionalidade (BARROSO, 2013).
A Constituição Federal de 1988 e o Regulamento Interno do Supremo Tribunal
Federal estabelecem que o processo e o julgamento das ADIs deverão se dar perante o
STF. A ação deverá ser proposta por um dos legitimados, dentre os quais se encontram
os partidos políticos.
No Brasil, diferentemente de alguns lugares do mundo, todo partido po-
lítico que possua representação no Congresso Nacional, ainda que seja apenas um

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020 203


Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

representante, tem legitimidade ativa universal para propor ADIs. Já em outros países,
é, muitas vezes, exigido um número mínimo de representantes em suas respectivas
Casas Legislativas para que o partido tenha essa prerrogativa. Contudo, nem o diretó-
rio nacional nem a executiva regional têm legitimidade para propor a ação, pois não
podem agir nacionalmente em nome do partido político e este deve representar no
nosso Parlamento, os interesses nacionais que defende (MORAES, 2008).
Segundo o STF, a aferição da legitimidade ativa do partido deve ser feita no mo-
mento da propositura da ação e que a perda posterior da representação no Congresso
não o desqualifica como legitimado para a ação. Ou seja, se o partido perder sua re-
presentação durante a tramitação da ação, esta não será prejudicada (MORAES, 2008).
Com isso, é possível observar a importância dada pelo Constituinte de 1988
aos partidos políticos como efetivos representantes das mais diversas camadas sociais
e que, por isso, devem dispor de diversas medidas para assegurar o devido regime
democrático e a representação popular no governo. Valores esses tidos como indis-
pensáveis para o Brasil.
O controle de constitucionalidade caracteriza-se, em princípio, como um me-
canismo de correção presente em determinado ordenamento jurídico, consistindo em
um sistema de verificação da conformidade de um ato em relação à Constituição. As
normas constitucionais possuem um nível máximo de eficácia, obrigando os atos in-
feriores a guardar uma relação de compatibilidade vertical para com elas. Se não for
compatível, o ato será inválido, daí a inconstitucionalidade ser a quebra da relação de
compatibilidade no aspecto formal e material. Para que um sistema jurídico funcione,
pressupõe-se sua ordem e unidade, devendo as partes agir de maneira harmoniosa. O
mecanismo de controle de constitucionalidade procura restabelecer a unidade amea-
çada, considerando a supremacia e a rigidez das disposições constitucionais.
Nesse sentido, o controle de constitucionalidade tem íntima relação com a ju-
dicialização da política, uma vez que um agente político como representante do povo
tem a necessidade de tomar medidas de gestão a fim de melhorar a vida da população,
porém, nem sempre tais medidas estão de acordo com os Direitos Humanos e mui-
to menos com normas e princípios previstos constitucionalmente e já que tem-se a
“Carta Magna” como lei máxima no Brasil, não se admite tomar medidas que vão de
encontro a suas disposições legais. Assim, várias ADIs são propostas para conter tais
medidas e com isso se gera um controle judicial de matérias que originalmente seria
de atribuição do Poder Executivo. Daí dizer que quando o Poder Judiciário realiza
essa fiscalização em detrimento do Executivo, cria-se um processo de judicialização da
política, fato esse bastante recorrente em nosso país (CARVALHO, 2007).

4.2. Processo de Tomada de Decisão

Contudo, essa Judicialização da política tende a gerar por um lado um ati-


vismo judicial e por outro uma autorrestrição. O primeiro diz respeito às atitudes
tomadas pelo Poder Judiciário que, a rigor, vão além de suas atribuições originárias

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A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

e que, portanto, ocupariam espaço destinado a atuação do Executivo que deixa de


fazê-lo, muitas vezes, pelas mais variadas razões. Já a segunda refere-se aos mo-
mentos em que o Judiciário deixa de atuar em matéria que lhe foi originalmente
delegada. O interessante é que ambas as situações são verificadas no cenário na-
cional, tendo em vista a elevada tendência atual das cortes de somente julgar casos
que lhe convêm e deixar de lado os que demandem posicionamentos impopulares,
demonstrando a presença comportamentos estratégicos (SEGAL; COVER, 1989).
Este último dá-se quando juízes levam demasiadamente em conta a opinião
pública que suas decisões teriam antes de tomá-las, ou seja, preveem as possí-
veis reações da opinião pública e da política antes de proferir seu voto. Isso aju-
da a compreender uma série de fatores relacionados a judicialização, como por
exemplo, quais as forças políticas interessadas, se tem ou não pressão interna ou
externa, etc. Tal fato, muitas vezes, leva os magistrados a se omitirem de certos
julgamentos que lhe foram demandados por meio de represálias tanto internas
quando externas ao órgão judicial, gerando assim a perspectiva da autorestrição
do Poder Judiciário. Ou seja, “Esta se encarrega da prescrição sobre os critérios
a serem observados nas decisões e posturas do judiciário na sua atuação, (...), ao
levar em consideração o exercício de uma atividade política. ” (LIMA, 2014, p. 24).
Tal autorrestrição pode ter como pior consequência a perda do objeto liti-
gado, e isso se dá quando a corte se omite a ponto de tornar a demanda impossível
devido ao seu perecimento. Assim, prejuízos incalculáveis são gerados com esta
atitude do judiciário de se esquivar de demandas muitas vezes impopulares e que
culminam em pretensões não mais atingíveis.
Articulações políticas podem ser tidas como uma das razões pelas quais o
STF se omite ao receber ADIs formuladas por partidos políticos pois, estes, muitas
vezes, propõem tais ações objetivando atingir partidos rivais e se promoverem
diante dos eleitores. Contudo, existem situações em que tais ações são legítimas
e a Suprema Corte deixa de julgá-la como em prestação de favor a algum aliado
pertencente ao Congresso ou com alto cargo no Poder Executivo e isso gera uma
“politização do órgão jurisdicional” e consequentemente uma grande insegurança
quanto a credibilidade do STF.
Desse modo, um exame minucioso dessas ADIs propostas pelos partidos
políticos nacionais ajudará imensamente a compreender o real funcionamento do
“guardião de nossa constituição” que nem sempre age baseado na devida previsão
legal, mas sim em proveito próprio e de seus aliados. Podem, inclusive, deixar de
lado demandas tidas como essenciais para nossa sociedade.
Com isso, as atitudes autorrestritivas da nossa Suprema Corte, baseadas
em esperar que a perda do objeto demandado se concretize ao ser posteriormente
declarado como inconstitucional o fundamento em que se baseou a pretensão, ge-
rando assim, a alegação necessária para declarar o objeto como não mais relevante
no momento de seu julgamento e não quando foi proposto. Assim, diversas ações
têm seus julgamentos postergados com a finalidade de que com o tempo, a matéria

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Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

requerida seja tida como inconstitucional e isso baseie a fundamentação do STF


quando for proferir a sentença e o exima de ter de tomar decisões impopulares ou
que afete negativamente seus arranjos políticos.
Analisar as ADIs propostas por partidos políticos perante a nossa Suprema
Corte se revelou ser de grande importância para a nossa sociedade, uma vez que
prejudicaria todo o nosso sistema democrático pelo fato de o Poder Judiciário
atuar parcialmente quando provocado pelo Poder Legislativo.
Nesse sentido, o controle de constitucionalidade também fica comprometi-
do, pois o órgão que deveria realizá-lo não o faz por colocar em prática modelos de
atuação visíveis aos magistrados e a outros agentes políticos que seriam demons-
trados pelas seguintes hipóteses: A hipótese legalista concebe a decisão judicial
como sendo a atividade de verificar como e quando será aplicada a norma jurídica
diante de determinada situação fática posta a partir do conflito de interesses que
foi submetida ao Poder Judiciário. Na hipótese atitudinal, os Juízes agiriam dire-
tamente em favor da realização das políticas públicas que melhor refletem suas
preferências ideológicas e políticas originais. Já na hipótese estratégica, constran-
gimentos externos à Corte podem gerar incentivos institucionais a que os juízes,
no caso, os Ministros Presidentes, comportem-se de maneira estratégica, sendo in-
tuitivo dirigir o olhar aos demais atores e instituições que interagem com o Poder
Judiciário (GOMES, no prelo).
Desse modo, é possível observar as diferentes formas de julgar existentes. O
que interessa a este estudo é como elas podem interferir nas ADIs propostas por par-
tidos políticos a depender do partido e se na época em que o referido instrumento
constitucional foi proposto, ele se encontrava apoiando a situação governamental ou
a sua oposição, sem prejuízo a inclusão se outras variáveis caso venham a ser neces-
sárias. Assim, busca-se testar as variáveis de modo a concluir se nossa suprema corte
age parcialmente ao julgar tais remédios constitucionais parcialmente e descobrir
em qual hipótese comportamental seus entendimentos predominam.
Em um âmbito global, nosso país não está isolado nesse sentido, uma vez
que, ao longo da história, a implementação dos Tribunais Constitucionais em di-
versos países, como mecanismo de controle dos demais poderes, implicou em mu-
danças na forma de pôr em prática as políticas públicas pleiteadas pelos governos.
Visto que estes além de negociarem com as casas parlamentares, precisam também
ter atenção aos preceitos constitucionais, o que geraria uma assimetria entre os
poderes. A expansão do poder judicial torna-se mais visível a partir da verificação
de um quadro de condições que tende a se repetir nas democracias em que este fe-
nômeno é observado. No Brasil, isso é observável no diagnóstico dado ao aumento
das ações judiciais.
Ao redor do mundo, acredita-se que a expansão do poder judicial se deu
por diversos motivos, entre eles: a queda do comunismo, os EUA terem se torna-
do modelo para as novas democracias (que passam a utilizar a “Judicial Review”
em seus ordenamentos), como também o fim da Segunda Guerra Mundial e a

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A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

consequente valorização dos Direitos Humanos após os traumas decorridos dos


conflitos. Nesse sentido, as condições políticas para o surgimento da judicialização
têm como pilares a democracia, a separação dos poderes, a garantia e efetivação
dos direitos políticos, o uso dos tribunais pelos grupos de interesse (pois trata-se
de um processo que emana dos interesses econômicos e sociais centrais, cujos
grupos passam a utilizar o veto dos tribunais na realização dos seus objetivos, fa-
zendo uso de ADIs, por exemplo), o uso dos tribunais pela oposição (partidos po-
líticos muitas vezes não conseguem barrar determinadas alterações no parlamento
e fazem uso dos tribunais para impedir ou inviabilizar tais alterações contrárias
ao que acreditam) e a inefetividade das instituições majoritárias (tribunais ficam
obrigados a resolverem demandas sociais que deveriam ser tratados no âmbito
político) (CARVALHO, 2004).
No Brasil, o controle de constitucionalidade exercido junto ao STF poderá
ser exercido somente pelos agentes elencados no próprio texto legal. Dentre os
possíveis instrumentos a serem usados para este fim, o mais relevante é a pro-
positura de ADIs referentes aos cenários legais e políticos do país. Contudo, de-
pendendo do contexto em que são propostas e do jogo político que as envolve,
tais ações, muitas vezes deixam de ser julgadas (demostrando o comportamento
autorrestritivo de nossa Suprema Corte) propositalmente a fim de gerar perda de
objeto. Ou seja, o tribunal, não querendo se comprometer ao julgar determinada
temática ou deixa de fazê-lo visando interesses políticos, posterga o máximo pos-
sível o julgamento agindo assim, estrategicamente. Comprometendo com isso, o
sistema democrático ao fazer uso de argumentos formais e procedimentais para
evitar o processo e deixar a tarefa de decidir tal situação, no caso concreto, para os
órgãos legitimados pelo sufrágio (LIMA, GOMES; BARBOSA, 2016).
Para um entendimento melhor acerca da autorrestrição, é indispensável se
ter uma visão acerca do papel que o Judiciário desempenha em determinada so-
ciedade democrática. Assim como mostrar a importância de inclusão do deste
Poder em um ambiente político e as dificuldades que este enfrenta para exercer
essa tarefa. Visto que, dependem da aceitação popular das decisões tomadas pelo
Tribunal. Essa prerrogativa, dá poderes de veto de uma minoria parlamentar con-
tra a maioria, em decisões que acreditarem ser desvantajosa para seus interesses.
Tendo em vista que nossa suprema corte tem a função de guardar não só a
Constituição como também os principais valores da sociedade. Daí, o conflito de
proferir decisões em concordância com os princípios morais e o consentimento
sobre determinado tema. Por isso, muitas vezes, a corte se reserva a opção de nada
e com isso, manter a tensão entre esses valores. Surge, desse modo, o conceito de
virtudes passivas que se refere aos argumentos legais utilizados para dar a oportu-
nidade de o tribunal evitar decisões sobre esse confronto. Tal técnica, requer um
profundo conhecimento e familiaridade com a arte das formas a fim de afastar-se
do princípio do julgamento e inafastabilidade do Judiciário. E, deixar, portanto,
essa decisão a cargo das instituições eleitorais (LIMA, GOMES e BARBOSA, 2016).

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Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

Portanto, a potencialização da participação dos membros do poder


Judiciário nos atos de governo está relacionada à consolidação das garantias cons-
titucionais do mesmo, bem como na expansão de seu campo de atuação e das
consequências para a arena política. Os fatores explicativos de tal fenômeno es-
tão relacionados a duas dimensões analíticas: uma centrada na racionalidade dos
atores políticos responsáveis e a segunda situada em momento posterior pautada
pela racionalidade adotada pelos juízes. A utilização das Cortes para a proteção
de interesses minoritários, se dá na tentativa da oposição de reverter derrotas par-
lamentares ou simplesmente, para manter assuntos intrigantes em pauta. O mo-
mento posterior de análise, por sua vez, concentra-se do contexto que levou os
juízes a decidirem de determinada forma a situações políticas submetidas através
da judicialização.
A compreensão dessa postura frente à garantia da separação dos poderes do
Estado. Para interpretar esses dados empiricamente, o modelo causal, por meio de
uma articulação de uma série de variáveis, premissas e equações, captura a essên-
cia de um comportamento e explica os processos intrínsecos à sua ocorrência. Daí
cientistas sociais partirem da ideia de gerar implicações observáveis e então apli-
car procedimentos transparentes para inferir a partir de dados se a teoria se aplica
ao fenômeno social analisado. O que permite a interpretação de dados empíricos
sobre os fenômenos e a explicação destes fenômenos, mediante rígidas regras de
inferência. Possibilitando esclarecimentos sobre os fatores que influenciam na va-
riação de comportamento dos órgãos judiciais (GOMES NETO, 2015).

4.3. Análise Estatística

Diante do exposto, objetiva-se compreender a atuação parcial do STF para se


autorrestringir a fim de gerar perda de objeto para boa parte das ADIs propostas por
Partidos Políticos, instituições estas tidas como aglomerações sociais que objetivam a
representação da população perante o governo e que obtêm sua legitimidade para tal
por meio das eleições e, consequentemente, partes indispensáveis para a efetivação da
democracia no Brasil.
A partir de um levantamento amostral aleatório das ADIs propostas pelos
partidos políticos, observa-se se houve ou não perda de objeto e, com isso, organi-
za-se uma matriz binária, baseada na ferramenta Logit, para analisar a proporção
de ADIs que sofreram perda de objeto e se o partido político que protocolou, com
sua posição de apoiador do governo ou não, influenciariam no modo como seriam
julgadas pelo STF.
Ressalte-se que a amostra de ADIs de cada partido político a serem analisadas
foi designada proporcionalmente de acordo com quantidade total impetrada por
cada um. Assim, foram desconsiderados da pesquisa os partidos que não propu-
seram nenhuma ADI e também as ações propostas pelos chamados “diretórios dos
partidos” e afins.

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A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

Com isso, para uma análise empírica, faz-se uso do Logit que, diz respeito a um
tipo de análise estatística por regressão, utilizada para predizer o resultado de uma va-
riável dependente binária categórica, baseado em uma ou mais variáveis explicativas.
Ou seja, trata-se de uma espécie de análise por regressão empregada quando a variável
resposta é uma variável categórica binária (quando p tende a 0, Logit(p) tende a ∞ e
quando p tende a 1, Logit(p) tende a ∞), baseada na transformação logística ou Logit
de uma proporção. O uso deste instrumento permite, portanto, saber se uma variável
interfere muito, pouco ou simplesmente não interfere nas variações estatísticas do caso
estudado.
Nesse sentido, a organização e sistematização dos dados, com amparo em mo-
delos estatísticos adaptados ao estudo do comportamento judicial e tendo como base
alguns modelos teóricos nesse sentido, torna-se possível uma pesquisa de como po-
sicionamentos políticos influenciam as decisões na nossa Corte Constitucional que,
em tese, deveria se manter alheia a tais questões e se ater ao seu papel para com a
democracia. Do universo de 1108 ações, a amostra utilizada consistiu em 300 ADIs
distribuídas proporcionalmente de acordo com a quantidade proposta por cada parti-
do e com um intervalo de confiança de 95,15%.

Tabela 1: Variáveis integrantes do modelo.


ADI perda de objeto(1) ou não(0) Categórica Binária (dependente)
Respectivo partido partido que propôs(1) os demais(0) Categórica Binária (independente)
Fonte: Elaboração dos autores.

Esse trabalho fez uso da Logit ou regressão binária, que diz respeito a
uma ferramenta de análise de fenômenos sociais com a codificação dos eventos
em variáveis categóricas e a apresentação de resultados dicotômicos, ou seja,
sucesso ou insucesso. Para as análises, classificou-se as variáveis em qualitativas
nominais, formando uma matriz em que o numeral “1” dizia respeito à presença
da categoria, enquanto que o numeral “0” fez referência à ausência da categoria.
Assim, nesse caso baseado em uma análise logit binária, se o resultado estatístico
encontrado tiver sinal positivo (+), significa que a variável explicativa (inde-
pendente) está associada ao aumento das chances da primeira alternativa (1)
ocorrer; por outro lado, se o resultado obtido tiver sinal negativo (-), a respectiva
variável explicativa estaria associada à diminuição das chances do evento (1)
ocorrer; destarte, se o resultado obtido for muito próximo a 0 (zero), significa
ausência de associação ou uma associação muito baixa, sem qualquer interferên-
cia nas chances de ocorrer o evento sob predição no modelo (GOMES NETO,
BARBOSA, LIMA, VIEIRA, 2017).

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020 209


Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

Gráfico 1: Representação gráfica das chances de ocorrer o evento na presença das


variáveis partidárias - Coeficiente exponencial - Exp (B) - em análise estatística por
regressão logística (logit).

Fonte: Elaborado pelos autores.

O coeficiente exponencial utilizado no gráfico acima após uma interpretação


no sentido de verificar que esta unidade de medida afere os prováveis efeitos de uma
variável sobre as chances da variável dependente ocorrer. Assim, ao observar o gráfico
1, verifica-se que as chances de haver perda de objeto são em torno de seis vezes maio-
res para o partido político PHS do que aos demais, sendo esse um pequeno partido de
centro que, no geral, propõe ADIs para ter meios de ação no cenário político uma vez
que devido a sua pequena representação no congresso nacional, seus interesses por
vezes não são levados em conta. Daí, a propositura dessas ações lhes garante ao menos
uma tentativa de defender o que acreditam. No entanto, conforme as pesquisas mos-
traram, este não é um meio muito eficaz posto que são altas as chances de não obterem
julgamento e a ação ser extinta por perda de objeto.
Ainda sobre esse gráfico, observam-se outros três partidos. Um de direita, o
DEM e outros dois de esquerda, o PDT e o PT. O PDT, por ser também um partido
pequeno, segue a mesma justificativa do PHS, porém diferencia-se no tocante a sua
ideologia. Por se tratar de um partido de esquerda, juntamente com o PT, na época em
que eram oposição ao governo, ou seja, antes do governo do ex-presidente Lula, um
dos recursos que dispunham para mostrar sua divergência de interesses no congresso
era com o uso de ADIs. O PT principalmente, já que foi o partido que mais as propôs
na história, num total de 218. Mas ao assumirem a Presidência da República a proati-
vidade nesse sentido sofreu uma queda vertiginosa.
Por fim, o DEM é o melhor exemplo de um partido de direita, ao ilustrar a
grande tendência que possuíam de terem suas ações julgadas e não sofrerem perda de

210 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020


A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

objeto, pois na época de maior propositura não eram oposição ao governo e quando
passaram a sê-lo não necessitavam recorrer ao Poder Judiciário para terem suas ideias
levadas em consideração por que permaneceram um partido com expressiva represen-
tação no Poder Legislativo. Com isso:

Gráfico 2: Gráfico 1: Representação gráfica das chances de ocorrer o evento na presença


das variáveis ideológicas - Coeficiente exponencial - Exp (B) - em análise estatística por
regressão logística (logit).

Fonte: Os autores.

Fazendo uso da mesma linha de análise utilizada para o gráfico 1, o gráfico


2 também foi elaborado com base no coeficiente exponencial. Então, pode-se ex-
trair deste que partidos políticos com ideologia de esquerda têm, aproximadamen-
te, duas vezes mais chance de sofrerem com a perda de objeto quando propuserem
ADIs. Já os de direita possuem 0,5 mais chances de terem suas ações julgadas.
Desse modo, a ideologia do partido influencia fortemente na probabilidade deste
sofrer perda de objeto ou não. Isso se deve ao fato de que a maior parte das ADIs
foram propostas antes do início da gestão do PT e, por isso, a ideologia predomi-
nante na Assembleia Nacional era de direita. Assim, a oposição da época tendia
a recorrer ao STF para ter a apreciação dos temas que lhe interessava. A direita,
contudo, ajuizava, em sua maioria, ações voltadas aos interesses da gestão e, por
isso, sofriam menos com a falta de julgamento. Portanto, a ideologia partidária é
um importante variável de análise que, geralmente, influencia na perda de objeto
se for discordante ou oposta aos ideais governantes.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020 211


Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

Conforme essa pesquisa quantitativa mostrou, a hipótese inicial se confir-


mou já que os partidos de modo geral têm altas chances de sofrerem perda de obje-
to, ferindo, com isso, o processo democrático brasileiro pois ao restringir o acesso
dessas organizações de representação social a um devido processo legal, diminui-se
a representação de alguns segmentos populacionais. Confirmou-se também que os
partidos maiores têm menos chance de terem suas ADIs extintas por perda de ob-
jeto visto que o arranjo político faz com que possam defender seus interesses no
Congresso Nacional e utilizarem o STF apenas ocasionalmente e para assuntos, no
geral, aliados e defensores do governo, enquanto que os partidos menores, por pos-
suírem uma ínfima representação na Assembleia Nacional, têm que fazer uso dessas
ações para colocarem seus objetivos à vista, o que, consequentemente, na maioria
dos casos, não interessa à gestão.
A ideologia partidária, por sua vez, também influencia fortemente na ocorrên-
cia ou não da perda de objeto, posto que os partidos da oposição têm grandes chances
de sofrê-la enquanto que os partidos aliados ao governo, por outro lado, têm maiores
chances estatísticas de julgamento de suas ações. Ressalte-se ainda que as denomina-
ções de esquerda, direita, centro etc. interferem somente no tocante ao posicionamen-
to do partido frente ao governo no momento de propositura da ADIN.

5. Conclusão

Frequentemente, partidos políticos cujos interesses e preferências foram derro-


tados no campo legislativo decidem por judicializar tais questões e submeter à nossa
Corte Suprema avaliação de constitucionalidade de leis e de outros atos normativos,
aprovados ao arrepio das preferências das legendas proponentes.
Como se comporta o Supremo Tribunal Federal quando instado a julgar ações
diretas de inconstitucionalidade propostas por partidos políticos? Em regra, consis-
tem em litígios com altos custos decisórios, principalmente custos políticos e sociais,
em resposta aos quais o Tribunal reage com forte postura autorrestrita, principalmente
mediante a utilização da estratégia silenciosa do prejuízo pela perda superveniente do
objeto, em que questões controversas aguardam por longos períodos, sem qualquer
pronunciamento judicial quanto à alegada inconstitucionalidade.
Este artigo avança na compreensão do comportamento decisório, no caso, o
comportamento autorrestrito do Supremo Tribunal Federal, quando provocado a re-
solver conflitos instaurados judicialmente pelos partidos políticos, identificando pa-
drões de decisão, no tocante ao tamanho dos partidos; ao seu posicionamento dentro
do Parlamento (situação ou oposição); e ao seu viés ideológico e como esses fatores
influenciam as chances de sofrerem com perda de objeto. Ao fazer uso de uma re-
gressão logística binária, tendo como variável dependente a perda ou não de objeto e
como variável independente os respectivos partidos que propuseram as 300 ADIs que
compuseram a amostra utilizada, é possível observar que partidos políticos, em geral,
têm grandes chances de sofrerem perda de objeto.

212 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020


A importância democrática dos partidos políticos brasileiros
e o comportamento do STF frente às ADIs (1989-2017)

Verifica-se também que partidos maiores têm menos chance de corresponder à


hipótese inicial, visto que, matematicamente, grande parte se suas ações são julgadas.
Constatou-se, por fim, que a ideologia partidária influencia muito a perda de objeto,
uma vez que os partidos de oposição ao governo, conforme mostraram os resultados
da regressão, tendem a sofrê-la enquanto que os partidos aliados ao governo no mo-
mento de propositura das ações obtêm julgamentos.
A análise empírica quantitativa realizada neste estudo descobriu interessantes
padrões comportamentais da Corte em relação às demandas ajuizadas pelos partidos
políticos, que nos auxiliam na compreensão das interações entre as instituições parti-
dárias e os órgãos judiciais, mostrando razões de seletividade quanto a intervir, ou não,
em questões já deliberadas na arena legislativa, evitando, em muitos pontos, influir na
lógica democrática.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020 213


Gabriela Araújo Tabosa de Vasconcelos; José Mário Wanderley Gomes Neto

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216 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.191-216, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso
Medicinal uses of plants in the Cariri from paraibano: a case study
Usos medicinales de las plantas en el cariri paraibano: un estudio de caso

Débora Coelho Moura1


Marcela de Souza Silva Alves2
Erimágna de Morais Rodrigues3
Antonio James Oliveira Silva4
Aureliana Santos Gomes5

Resumo
MOURA, D. C.; ALVES, M. de S. S.; RODRIGUES, E. de M.; SILVA, A. J. O.; GOMES, A. S. Usos
medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso. Rev. C&Trópico, v. 44, n.1, p. 217-
233, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art10
Esse trabalho é pioneiro no estudo de uso de plantas medicinais, no município
de Gado Bravo-PB. Assim, este estudo apresenta-se com finalidade de levantar
o histórico etnobotânico das plantas medicinais, que é comum em diversas co-
munidades humanas. No município de Gado Bravo-PB, o uso de plantas medi-
cinais é comum entre seus respectivos moradores, pois eles utilizam-nas como
terapia, alívio de dores e doenças consideradas simples. O objetivo deste estudo
foi resgatar e sistematizar as informações populares sobre as plantas medicinais
utilizadas na cidade. Foi realizado um estudo em três ruas, com 40 pessoas, de
sexo e faixa etária diferentes. Foram citadas neste estudo 16 famílias botânicas de
26 espécies de plantas medicinais usadas como terapia pela comunidade. Apenas
duas plantas entre as 16 citadas pertencem ao bioma Caatinga, que é a Aroeira
(Myracrodruon urundeuva M. Allemão), e a Malva Rosa (Melochia tomentosa
L.). As demais são exóticas. Durante as entrevistas, os moradores demostraram,
que a população possui um grande conhecimento acerca das plantas medicinais
e suas propriedades terapêuticas.
Palavras-chave: Gado Bravo-PB. Caatinga. Plantas Medicinais.

1
Prof. Associada da Universidade Federal de Campina Grande. Doutora em Biologia Vegetal pela Universidade
Federal de Pernambuco-UFPE. E-mail: debygeo@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2663-2308
2
Mestranda em Educação pela UNINOVE. E-mail: marcelasouzageoufcg@gmail.com.ORCID: https://orcid.
org/0000-0003-2192-6163
3
Doutoranda em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: erimagnarodrigues@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4281-3555 
4
Mestrando em Informática e gestão do conhecimento- UNINOVE. E-mail: tecgeo.oliveirajames@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0722-7123
5
Graduanda do curso de Geografia da Universidade Federal de Campina Grande- UFCG. aurelianagomes7@
gmail.com

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020 217


Débora Coelho Moura; Marcela de Souza Silva Alves; Erimágna de Morais Rodrigues;
Antonio James Oliveira Silva; Aureliana Santos Gomes

Abstract
MOURA, D. C.; ALVES, M. de S. S.; RODRIGUES, E. de M.; SILVA, A. J. O.; GOMES, A. S. Medici-
nal uses of plants in the Cariri from paraibano: a case study. Rev. C&Trópico, v. 44, n.1, p. 217-233,
2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art10
This work is a pioneer in the study of the use of medicinal plants, in the municipality
of Gado Bravo/Paraíba. Thus, this study aims to present the historical and ethnobota-
nical rescue of medicinal plants, which is common in several human communities. In
the municipality of Gado Bravo, the use of medicinal plants is common among their
respective residents, as they use them as therapy, pain relief and diseases considered
simple. The objective of this study was to rescue and systematize popular information
about medicinal plants used in the city. A study was carried out in three streets, with
40 people, of different gender and age, respectively. In this study, 16 botanical families
of 26 species of medicinal plants used were cited as therapy by the community. Only
two plants among the 16 mentioned belong to the Caatinga biome, which are Aroeira
(Myracrodruon urundeuva Allemão), and Malva Rosa (Melochia tomentosa L.). the
others are exotic. During the interviews, residents demonstrated that the population
has a great deal of knowledge about medicinal plants and their therapeutic properties.
Keywords: Gado Bravo-Paraíba. Caatinga. Medicinal Plants.

Resumen
MOURA, D. C.; ALVES, M. de S. S.; RODRIGUES, E. de M.; SILVA, A. J. O.; GOMES, A. S. Usos
medicinales de las plantas en el cariri paraibano: un estudio de caso. Rev. C&Trópico, v. 44, n.1, p.
217-233, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art10
Este trabajo es pionero en el estudio del uso de plantas medicinales, en el munici-
pio de Gado Bravo-Paraíba. Por lo tanto, este estudio se presenta con el propósito
de rescatar histórica y etnobotánica de plantas medicinales, lo cual es común
en varias comunidades humanas. En el municipio de Gado Bravo-PB, el uso de
plantas medicinales es común entre sus respectivos residentes, ya que las utilizan
como terapia, alivio del dolor y enfermedades consideradas simples. El objetivo
de este estudio fue rescatar y sistematizar la información popular sobre las plan-
tas medicinales utilizadas en la ciudad. Se realizó un estudio en tres calles, con 40
personas, de diferente sexo y edad, respectivamente. En este estudio, la comuni-
dad citó a 16 familias botánicas de 26 especies de plantas medicinales utilizadas
como terapia. Solo dos plantas entre las 16 mencionadas pertenecen al bioma
Caatinga, que es la Aroeira (Myracrodruon urundeuva M. Allemão) y la Malva
Rosa (Melochia tomentosa L.), las otras son exóticas. Durante las entrevistas, los
residentes demostraron que la población tiene un gran conocimiento sobre las
plantas medicinales y sus propiedades terapéuticas.
Palabras clave: Gado Bravo-Paraíba. Caatinga, Plantas Medicinales
Data de submissão: 01/04/2020
Data de aceite: 30/04/2020

218 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso

1. Introdução

O uso de plantas com algum fim medicinal possui registro em diferentes


épocas da humanidade, sendo utilizadas de forma empírica por vários grupos
populacionais, tornando-se uma questão cultural, que permanece até os dias
atuais. A transmissão do conhecimento relacionado ao uso de plantas com fins
medicinais é repassada de geração para geração de forma oral, se caracterizando
como recurso essencial às comunidades (NÓBREGA, et al. 2017).
No Brasil, o estudo das plantas medicinais tem sido evidenciado pelas
novas tendências de preocupação, com a biodiversidade, através das ideias de
desenvolvimento sustentável, atrelado ao baixo poder aquisitivo da população,
que residem em regiões Norte e Nordeste (FLORENTINO et al. 2007; PEREIRA
et al, 2016; PIO et al. 2019). Por outro lado, o resgate histórico cultural das co-
munidades tradicionais sobre as plantas medicinais fez com que a Organização
Mundial de Saúde (OMS) propusesse aos órgãos responsáveis pela saúde pública
de cada país medidas que viabilizassem diminuir o número de excluídos dos
sistemas governamentais de saúde.
Tais medidas propostas foram o levantamento florístico das plantas me-
dicinais a nível regional que fossem usadas na medicina popular tradicional.
Que, através desse levantamento florístico, fossem estimuladas e recomendadas
as espécies de maior uso e aquelas que tivessem comprovação terapêutica. A
partir daí seriam desenvolvidos programas que permitissem cultivar e utilizar as
plantas selecionadas na forma de preparações dotadas de eficácia, segurança e
qualidade (PERNA; FERREIRA, 2014; ANDRADE, et al. 2017; PIO et al. 2019).
A Região Nordeste, por possuir comunidades tradicionais, possivelmente,
com base social de menor valor aquisitivo, torna comum o uso pela população
das plantas medicinais. Torna-se notório o número crescente de farmácias alopá-
ticas nos municípios brasileiros, contudo os usos destas plantas são disseminados
tanto no meio rural e urbano. Segundo Martins et al, (2005), Oliveira; Mezzomo;
Moraes (2018) aliados às informações etnobotânicas, a procura por essas plantas
podem ser a relação custo/benefício. Mosca et al, (2009); Cerqueira et al. (2020)
comentam que 90% da população economicamente carente do Nordeste recorre às
plantas medicinais para a cura de seus problemas de saúde.
Justifica-se este trabalho como pioneiro no município, tratando-se do
uso e diversidade de plantas medicinais. Isso ressalta a necessidade de estudos
que corroborem a diversidade florística sobre o uso dos recursos da flora em
Gado Bravo. Este estudo teve como objetivo levantar o resgate histórico e et-
nobotânico das plantas medicinais. Para tanto, buscou inventariar as espécies
vegetais e caracterizar o uso dessas através de alguns moradores do município
de Gado Bravo-PB.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020 219


Débora Coelho Moura; Marcela de Souza Silva Alves; Erimágna de Morais Rodrigues;
Antonio James Oliveira Silva; Aureliana Santos Gomes

2. Materiais e métodos

2.1. Área de estudo

A pesquisa foi realizada no município de Gado Bravo, localizado na região inter-


mediária de Campina Grande-PB, Nordeste do Brasil (Figura 1). Situado a 470 metros
de altitude, Gado Bravo apresenta clima Semiárido, e encontra-se sob as coordenadas
geográficas: Latitude: 7° 32’ 35” Sul, Longitude: 35° 48’ 2” Oeste (IBGE, 2010). O muni-
cípio possui cerca de 8.376 habitantes e uma densidade demográfica de 43,53 hab/km².

Figura 1: Mapa de localização do município de Gado Bravo.

Fonte: RODRIGUES, E.M. 2020.

2.2. Caracterização sociocultural

A cidade de Gado Bravo-PB surgiu como uma pequena vila, pertencente à


Cidade de Umbuzeiro na época, e tem sua origem ligada a uma casa de farinha no final
do século XIX início do século XX. A população provém de migrações principalmente
do estado de Pernambuco. Essa cidade apresentava, no passado, como principais ati-
vidades econômicas a agropecuária, pesca e caça. A partir da década de 1990, várias
transformações aconteceram, entre elas a emancipação política, tornando Gado Bravo
um município. Desde então, surgiram pequenos comerciantes, funcionários públicos e
o comércio local dos pequenos feirantes, que adentraram o perímetro urbano.

220 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso

A diversidade sociocultural da área é proveniente da estrutura fundiária, em


que a agricultura de subsistência atrelada à pecuária leiteira corroboraram para o for-
talecimento da economia local. As comunidades tradicionais representadas no muni-
cípio foram estabelecidas pelo inter-relacionamento, com seus respectivos ambientes
geográficos, como proximidade do rio Paraibinha (Figura 2), e a produção de algodão
e sisal, como fonte de renda (RODRIGUES, et al. 2015).

Figura 2: Drenagem circundante o perímetro urbano do município de Gado Bravo.

Fonte: Elaborado por SILVA, A.J.O 2020.

O município registrou nos últimos dez anos, até 2019, subsídios sociais de
origem federal, que mantém o homem no campo, proporcionando-lhe um suporte
alimentar e financeiro, como Bolsa Familia¹ e Seguro Safra², que atenuam as necessi-
dades básicas.
Diante de uma população pobre e carente, é notória a importância do uso de
plantas medicinais, visto que as condições socioeconômicas dos moradores são pre-
cárias e as plantas podem ser nesse sentido, um método de cura eficaz, com valor
bastante inferior ao dos medicamentos alopáticos. Portanto, torna-se necessário ser
repassado o conhecimento popular, sobre o uso de plantas medicinais para as próxi-
mas gerações, no intuito de disseminar esse saber, que é importante para todos.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020 221


Débora Coelho Moura; Marcela de Souza Silva Alves; Erimágna de Morais Rodrigues;
Antonio James Oliveira Silva; Aureliana Santos Gomes

2.3. Coleta de dados

Os dados etnobotânicos foram registrados em três ruas do município de Gado


Bravo. As ruas foram: José Pereira de Aguiar, Severino Felipe Barbosa e José Henrique
da Silva (Figura 3). A pesquisa foi realizada em um período de dois meses, agosto e se-
tembro de 2018. Foram aplicados 40 questionários semiestruturados, segundo meto-
dologia utilizada por Albuquerque; Lucena, (2004), buscando obter informações sobre
o potencial medicinal e características botânicas das plantas utilizadas. O questionário
padronizado foi utilizado para identificar as espécies vegetais: o nome da planta, enfer-
midade combatida, origem da planta, parte utilizada e posologia: forma de utilização,
quantidade (quantas vezes ao dia e tempo de uso).

Figura 3: Localização das áreas amostrais em que foram realizadas as entrevistas na


cidade de Gado Bravo.

Fonte: Elaborado por RODRIGUES, E.M.2020.

Foram entrevistados 40 (quarenta) moradores entre 21 e 80 anos, sendo con-


siderados especialistas locais (raizeiros, mateiros, agricultores, rezadeiras, donas de
casa). Utilizou-se como técnica de amostragem a metodologia proposta por Bailey
(1994), chamada “bola de neve” (snow ball), em que o primeiro especialista entrevis-
tado indica o próximo, e assim por diante, até chegar ao final do estudo, quando todos
os especialistas da comunidade foram entrevistados. Para o levantamento dos dados,
foram empregados os métodos de coleta de informações quantitativas, que se classifica

222 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso

como descritiva, a qual tem como propósito realizar a descrição das particularidades
de alguma população ou fenômeno, ou a determinação de relações entre variáveis.
Uma das peculiaridades importantes deste tipo de pesquisa é a aplicação de métodos
padronizados de coleta de informações, como por exemplo, a entrevista, o formulário,
o questionário, o teste e a observação (NOBREGA, et al. 2017; FIEBIG, PASA, 2018).
A frequência relativa das plantas medicinais foi calculada no Programa Excel,
conforme Martins (1979), Castro (1987), Fiebig; Pasa, (2018). Apenas as plantas que
apresentaram frequência de citação ≥ 5% foram consideradas para fins de discussão.
Um check list foi elaborado contendo nomes científicos e populares, bem como fi-
nalidades terapêuticas, formas de uso, parte(s) utilizada(s) e indicação das espécies
mencionadas pelos informantes locais. As identificações das espécies ocorreram na
atividade de campo (visitas). O nome científico foi consultado nas plataformas on-
line do Jabot6, bem como na Flora do Brasil 2020 (reflora)7. Nesta pesquisa, foram
registradas as espécies medicinais nativas e exóticas, sendo consideradas, para fins
de discussão, as espécies com frequência de citação ≥ 5%, por terem sido citada di-
versas vezes entre os entrevistados. Para comprovar o nome das espécies, utilizou-se
bibliografia especializada.

3. Resultados e discussões

3.1. levantamento sociocultural

O estudo foi realizado em 40 residências na cidade de Gado Bravo, Paraíba, com


faixa etária dos entrevistados entre 21 e 80 anos, sendo 97,5% do gênero feminino, pois
os homens estavam a trabalhar na agricultura, enquanto as mulheres permanecem
fazendo as atividades do lar. Segundo o IBGE (2010, estimada em 2019), a população
da cidade de Gado Bravo-PB possui um rendimento em média de 1,7 salário mínimo
mensal. A proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era, com base
no censo de 2010, estimada em 2019 de 6%, como funcionário público municipal,
como a maioria da população, residente em municípios interioranos.
Analisando o ranking populacional com ocupação remunerada, Gado Bravo
ocupa a quinquagésima quinta posição do total de 223 municípios. Considerando os
domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa, o terri-
tório municipal registrava 57,3% da população, em que o Índice de Desenvolvimento
Humano Municipal (2010 estimado em 2019) de 0,513 é considerado abaixo da li-
nha de pobreza.
Com base nos questionários, foi constatado que a população do município
possui uma renda de até um salário mínimo, e cerca de 60% não concluiu o Ensino
Fundamental I, evidenciando-se uma população com pouco conhecimento escolar
(Tabela 1). Em trabalhos realizados por Almeida (2019), Pio et al. (2019) e Cerqueira

6
Disponível em: http://rb.jbrj.gov.br/v2/consulta.php
7
Disponível em: http://floradobrasil.jbrj.gov.br.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020 223


Débora Coelho Moura; Marcela de Souza Silva Alves; Erimágna de Morais Rodrigues;
Antonio James Oliveira Silva; Aureliana Santos Gomes

et al. (2020), os resultados apontam que os principais atores, que manipulam as plantas
medicinais (raizeiros), não possuem instrução superior, e, no máximo, concluíram o
primeiro ciclo do Ensino Fundamental (antiga 4ª série). Além disso, a ausência da per-
petuação da profissão para os descendentes caiu em virtude do afastamento precoce
dos filhos do seio familiar, devido à falta de interesse e inserção no ambiente escolar.
Contudo, o conhecimento popular sobre as plantas medicinais, se sobressaem ao ensi-
no escolar. Os entrevistados que não são aposentados são agricultores e donas de casa.

Tabela 1. Informações socioculturais dos entrevistados em Gado Bravo.


Informações mais relevantes Entrevistados (n = 40) %
21 - 35 anos 35 %
36 - 50 anos 22,5%
Faixa etária
51 – 60 anos 20%
61 – 80 anos 22,5%
Feminino 95%
Representatividade de gênero
Masculino 5%
Oriundos 97,5%
Representatividade de moradores
Não oriundos 2,5%
Até 1 salário mínimo 82,5%
Renda familiar
1 a 2 salários mínimos 17,5%
Analfabeto 15%
1° grau incompleto 60%
1° grau completo 12,5%
Grau de escolaridade 2° incompleto 5%
2° completo 5%
3° incompleto 2,5%
3° completo 0%
Fonte: Elaborado pelos autores.

O povoado, que surgiu no final do século XIX, era denominado Curtume, hoje
conhecido como município de Gado Bravo. Os primeiros moradores deste lugarejo,
citados pelos entrevistados, eram pessoas ilustres, como as parteiras e rezadores; co-
nhecedores da manipulação das plantas, bem como posologia, além de fazerem asso-
ciação com orações que “traziam a cura”. Na década de 1970, a atividade de parteira
era comum em pequenos povoados. O município homenageia a “Senhora Felipa”, que
se tornou a madrinha de várias crianças, pois ela se deslocava de sua residência para
atender as parturientes. Os serviços eram sempre voluntários.
No município, existia também um rezador, conhecido como “Sr. Zé Ciço”, o
qual rezava contra o “mal-olhado” e “peito aberto”. Ele tinha sua residência bastante
movimentada, pois rezava em crianças e adultos. Essas informações da história da
cidade foram cedidas pela Prefeitura municipal de Gado Bravo. Na zona urbana, não
foram encontrados rezadores, contudo na área rural são encontrados, além de reza-
dores, os garrafeiros. Esses moradores coletam as plantas medicinais direto do campo,
ou seja, da vegetação de Caatinga, e após o parto indicavam-se garrafadas para as

224 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso

mulheres, uma mistura de plantas medicinais (mastruz, arruda, alfazema), com cacha-
ça, cebola branca e açúcar.
O município possui um Posto de Saúde “Abdias Albuquerque de Farias”, uma
Policlínica e a Unidade de Saúde “Madrinha Felipa”, que atende as necessidades mé-
dicas da população. De acordo com informações obtidas no posto de saúde, não há
programas relacionados ao uso de plantas medicinais, normalmente os médicos pres-
crevem remédios alopáticos, para os usuários dos serviços de saúde.

3.2. Levantamento etnobotânico

A flora medicinal citada pelos moradores de Gado Bravo é amplamente conhe-


cida por seus moradores. Entretanto são também usados medicamentos fitoterápicos
e a base de plantas medicinais, tais como: pomadas, xaropes, soluções tópicas cicatri-
zantes, garrafadas entre outros.
Ao analisar as notificações das plantas medicinais mencionadas pelos entre-
vistados, cerca de 73% (n=28) teriam adquirido esses conhecimentos, com os pais ou
parentes próximos. Essa forma de transferência sobre o uso tradicional dos recursos
vegetais prevalece em diferentes culturas (SILVA et al. 2015; FREITAS; FERNANDES,
2017), nos mais diversos biomas. Trabalhos realizados no Cerrado, Amazônia e
Caatinga evidenciam o declínio de muitas informações e práticas sobre os usos das
plantas, principalmente das medicinais, devido à influência da mídia televisiva, que
influencia a medicação alopática. Essa perda de conhecimento poderá acarretar em jo-
vens e adultos sem informação de sua origem, e gradativamente perda das heranças cul-
turais (OLIVEIRA et al, 2010; MACEDO et al, 2015, MARTELLI; CARVALHO,2019).
Em Gado Bravo, como nos demais locais, as mulheres demonstram forte in-
teresse sobre as plantas medicinais, todavia elas disponibilizam maior tempo em casa
e se responsabilizam pelos cuidados com a saúde de filhos e netos (PEREIRA et al.
2016). Por meio de relatos dos entrevistados, foi possível verificar que utilizam as ervas
medicinais por acreditarem em sua eficácia e na cura através das plantas, porquanto
são mais naturais, apresentando mais benefícios à saúde do que o medicamento sinté-
tico (relato de campo).
Neste estudo, foram levantadas 16 famílias botânicas de 26 espécies de
plantas medicinais, usadas como terapia pela comunidade. As plantas citadas pe-
los entrevistados são encontradas nos quintais dos moradores e em supermerca-
dos. Assim, Albertasse et al. (2010); Cerqueira et al. (2020) discutem que, a partir
da predição simples relacionada ao uso em abundância em que as plantas são en-
contradas, facilmente podem oferecer maiores possibilidades de uso. Porquanto,
a população local pode experimentar e aprender o uso, permitindo a perpetuação
do conhecimento e utilização.
A Tabela 2 apresenta as plantas citadas pelos moradores, evidenciando tam-
bém as mais utilizadas e compradas pela população. Cada entrevistado citava as plan-
tas mais utilizadas e indicava para qual enfermidade serviam, além de fazer referência

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020 225


Débora Coelho Moura; Marcela de Souza Silva Alves; Erimágna de Morais Rodrigues;
Antonio James Oliveira Silva; Aureliana Santos Gomes

à origem ou localidade que adquiriu a espécie, (município, estado). Apesar de o estudo


ter sido realizado em área de vegetação Caatinga, apenas duas plantas fazem parte des-
se bioma: a Aroeira (Myracrodruon urundeuva M. Allemão), e a Malva Rosa (Melochia
tomentosa L.). As demais são exóticas.
O modo de uso das plantas mais citados foram a infusão e a decocção, seguido
de maceração, sucos e banhos (Tabela 3). As partes das plantas que os entrevista-
dos utilizam com maior frequência são as folhas, flores, frutos, enquanto as sementes
e rizoma têm menor uso. Várias doenças foram citadas pelos moradores, sendo elas
simples, de baixo risco, sobre as quais as plantas são eficazes para o tratamento e cura.

Tabela 3: Listagem da flora medicinal citadas pelos entrevistados em Gado Bravo,


relacionada às famílias, nomes vernaculares, indicação terapêutica, parte utilizada,
modo de uso e origem.
Nome Indicação Parte
Família/especie Modo de uso Origem
vernacular terapêutica utilizada
Adoxaceae
Sambucus australis Febre, diabetes, Folha e
Sabugueiro Chá/Infusão Exótica
Cham. & Schltdl. gripe sarampo flores
Amaryllidaceae
Allium ascalonium Bory Inflamação/ Folhas e
Cebola branca Chá/Infusão Exótica
& Chaub. banho fruto
Anacardiaceae
Chá/
Myracrodruon urundeuva cozimento/
Aroeira Inflamação Casca Caatinga
M. Allemão Banho/
Garrafada
Apiaceae
Preventivo do Frutos e
Anethum graveolens L. Endro Chá/Infusão Exótica
câncer sementes
Frutos e
Pimpinella anisum L. Erva doce Calmante Chá/Infusão Exótica
sementes
Asphodelaceae
Aloe vera(L.) Burm. f. Erva babosa Anti-inflamatório Folhas Macerado Exótica
Asteraceae
Folhas e
Matricaria chamomilla L. Camomila Calmante Chá/Infusão Exótica
flores
Febre, labirintite, Folhas e Chá/
Helianthus annuus L. Girassol Exótica
enxaqueca sementes cozimento
Amaranthaceae
Folhas,
Chenopodium Antiparasitas
Mastruz flores e Macerado Exótica
ambrosioides L. intestinais
sementes
Lamiaceae

226 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso

Hortelã Gripe, tosse e


Mentha x villosa Huds Folha Chá/Infusão Exótica
miúdo febre
Plectranthus amboinicus Hortelã Tosse, gripe,
Folha Chá/Infusão Exótica
(Lour.) Spreng. Grande secreção
Plectranthus
Boldo Dor na barriga Folha Chá/Infusão Exótica
barbatus Andrews
Gripe,
Folhas e
Rosmarinus officinalis L. Alecrim tosse, febre, Chá/Infusão Exótica
flores
hipertensão
Ocimum basilicum L. Manjericão Tosse Folha e flor Chá/Infusão Exótica
Lauraceae
Cinnamomum zeylanicum Casca e Chá/
Canela Anti-inflamatório Exótica
Blume folha cozimento
Chá/
Laurus nobilis L. Louro Calmante Folha Exótica
cozimento
Malvaceae
Chá/
Melochia tomentosa L. Malva rosa Febre, inflamação Folha Caatinga
cozimento
Myrtaceae
Eucalyptus globulus
Eucalipto Gripe Folhas Chá/Infusão Exótica
Labill.
Chá/
Psidium guajava L. Goiaba Diarreia Folhas Exótica
cozimento
Pedaliceae
Reumatismo,
Sesamum indicum L. Gergelim hipertensão, Sementes Macerado Exótica
anemia
Poaceae
Cymbopogon citratus Calmante, dor
Capim Santo Folha Chá/Infusão Exótica
(DC.) Stapf de cabeça
Rutaceae
Citrus sinensis (L.)
Laranja Calmante Folha Chá/Infusão Exótica
Osbeck
Ruta graveolens L. Arruda Dor de ouvido Folha Macerado Exótica
Verbenaceae
Lippia alba (Mill.) N.E. Folhas e
Erva cidreira Calmante Chá/Infusão Exótica
Br. flores
Zingiberaceae
Alpinia zerumbet (Pers.) Folhas e Chá/
Colônia Febre Exótica
B.L. Burtt & R.M. Sm. rizoma cozimento
Fonte: Elaborado pelos autores.

O número de citações individuais entre as 38 mulheres e 2 homens variou de


três a cinco espécies, demonstrando que cada uma conhece o uso medicinal para 76%
das 26 espécies citadas pelo grupo. Isso possivelmente se deve ao fato de estas plantas
serem cultivadas e trocadas, quando necessário por vizinhos e parentes.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020 227


Débora Coelho Moura; Marcela de Souza Silva Alves; Erimágna de Morais Rodrigues;
Antonio James Oliveira Silva; Aureliana Santos Gomes

Analisando as espécies citadas, verifica-se que 90% são basicamente herbáce-


as cultivadas e exóticas, e duas da Caatinga (Myracrodruon urundeuva Allemão) –
Aroeira e (Melochia tomentosa L.) - Malva rosa. As espécies exóticas são adquiridas
através de cultivos caseiros, supermercados ou doações dos vizinhos mais próximos.
Comumente, essas plantas são comercializadas nas feiras livres. Contudo, no municí-
pio de Gado Bravo, não há esse meio comercial, devido à ausência de raizeiros que co-
mercializem seus produtos no mercado popular. Foram registradas em outros estudos
que plantas medicinais exóticas como (Lavandula spica L. - Alfazema, Ruta graveolens
L. - Arruda, Mentha x villosa Huds. – Hortelã miúda, Anethum graveolens L. - Endro)
são as mais usadas pela população, devido ao vasto conhecimento tradicional e à po-
pularização destas espécies vegetais, por serem de origem europeia, africana e asiática
(BEGOSSI et al. 1993; SOUZA; FELFILI, 2006; PEREIRA et al, 2016). ao longo de cin-
co séculos de colonização, essas práticas são disseminadas pela cultura, através da mis-
cigenação étnica (BENNETT; PRANCE, 2000, COSTA; MARINHO, 2016, CASTRO;
FIGUEIREDO, 2019).

3.3. Procedimentos terapêuticos

Considerando que a terapêutica estudada põe em prática os meios adequados


para aliviar ou curar os doentes, alguns procedimentos práticos foram registrados em
Gado Bravo-PB. O tratamento de diferentes doenças evidencia a utilização de plantas
medicinais que curam, seja em banhos de assento ou até mesmo no uso de chá via oral
(Tabela 4). O modo de preparo das plantas medicinais utilizados nos procedimentos
terapêuticos também apresenta o uso combinado de várias espécies vegetais, podendo
inserir outros ingredientes, como álcool, mel e/ou açúcar.
Tabela 4: Formas de utilização das plantas medicinais indicadas pelos moradores do município de Gado
Bravo-PB.

Forma de Preparo Nº de citações

Decocção 46

Infusão 103

Maceração 5

Suco 5

Banho 1

Fonte: Elaborado pelos autores.

As plantas que são utilizadas como uso medicinal pela população local apre-
sentam maior importância quando são referidas para problemas simples de saúde

228 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso

pública, de acordo com sistemas corporais reconhecidos pela OMS/CID-10 como: DI


= Doenças Infecciosas; DP = Doenças Parasitárias; DPTS = Doenças da Pele e Tecido
Subcutâneo; DS = Doenças do Sangue; TSC = Transtornos do Sistema Circulatório;
TSGI = Transtornos do Sistema Gastrintestinal; TSGU = Transtornos do Sistema
Gênito-Urinário; TSN = Transtornos do Sistema Nervoso; TSR = Transtornos do
Sistema Respiratório; TSV = Transtornos do Sistema Visual, doenças essas que fazem
parte da atenção primária à saúde.
Dessas enfermidades, as plantas mais citadas para mediar a cura ou o tratamen-
to acometido no transtorno do sistema nervoso foram Capim Santo, Camomila, Erva
Cidreira, Erva Doce. Essas espécies foram citadas por 70% dos informantes, maiores
de 40 anos de idade, em decorrência de doenças acometidas por pressão alta, estresse,
dores de cabeça, ansiedade, enquanto os mais jovens preferem os medicamentos alo-
páticos (Figura 4).

Figura 4. Citações das categorias de uso medicinal, com base nos Sistemas corporais
reconhecidos pela OMS/CID-10, indicadas pelos moradores do município de
Gado Bravo-PB.

De acordo com Amorozo; Gély (1988) e Ribeiro (2019), as razões apresentadas


para o uso de uma determinada planta estão de acordo com o sistema de pensamento
dos informantes, com concepções de causa e efeito próprias. Embora se diferenciem
de uma explicação causal científica, elas não excluem a possibilidade de uma ação

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020 229


Débora Coelho Moura; Marcela de Souza Silva Alves; Erimágna de Morais Rodrigues;
Antonio James Oliveira Silva; Aureliana Santos Gomes

farmacológica, devido à toxidade da planta. Um estudo mais detalhado sobre os proce-


dimentos e administração no preparo e posologia da planta podem fornecer indícios a
pesquisas farmacológicas, relacionadas aos princípios ativos. Dessa forma, seria muito
útil para o sistema de saúde implantar programas de saúde da família mais eficientes.

4. Conclusão

O conhecimento etnobotânico dos moradores de Gado Bravo-PB remonta aos


tempos do século XIX, quando a região ainda se caracterizava como rural. A prática
e o uso de plantas medicinais são constantes. Apesar do tempo, constatou-se que os
conhecimentos de plantas medicinais estão a ser repassados para as novas gerações
através de usos, como infusão e decocção para a cura de doenças simples, do tipo
transtorno do sistema respiratório, do sistema nervoso e gastrointestinal. Portanto, os
moradores mais jovens preferem remédios alopáticos em vez de plantas medicinais.
Com base no que foi relatado pelos entrevistados, as partes das plantas mais
utilizadas são folhas, flores e frutos. Todavia, as doenças citadas pelos moradores são
de baixo risco, sendo as plantas eficazes para o tratamento e cura.
A crescente modernização e a aquisição de novos conhecimentos inibem a di-
nâmica cultural, os hábitos, as crenças e os valores típicos da vida urbana. O resgate ao
conhecimento das memórias vivas dos antigos moradores nos leva a pensar no poder
de cura que as plantas apresentavam. Porém esses valores não são reconhecidos pela
sociedade contemporânea.
Neste estudo, as plantas citadas pelos entrevistados foram compradas nos
supermercado e algumas encontradas nos quintais dos moradores. Entretanto este
município não possui raizeiros e comerciantes na feira livre. Entre as espécies me-
dicinais, 90% são basicamente herbáceas cultivadas e exóticas, e duas da Caatinga
(Myracrodruon urundeuva Allemão) – Aroeira e (Melochia tomentosa L.) - Malva rosa.
Ou seja, os moradores apresentam vínculo com o espaço, ou a vegetação Caatinga,
porém não conseguem identificar as espécies medicinais, que são tradicionais deste
bioma.
De acordo com o conhecimento do uso de plantas medicinais encontrado nas
comunidades, as espécies foram citadas pelos entrevistados maiores de 40 anos de
idade. Estes são responsáveis pelo uso cultural e permanecem mantendo vínculo com
as plantas, disseminando e transmitindo saberes acerca do uso destas.

230 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.217-233, 2020


Usos medicinais de plantas no Cariri paraibano: um estudo de caso

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Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais
High temporal resolution remote sensing for
dynamic observation of tropical environment
Teledetección de alta resolución temporal para
una observación dinámica de ambientes tropicales

Laurent Polidori1

Resumo
POLIDORI, L. Sensoriamento remoto de alta resolução temporal para uma observação dinâ-
mica dos ambientes tropicais. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 235-255, 2020. DOI: https://doi.
org/10.33148/cetropicov44n1(2020)art11
Este artigo propõe uma discussão sobre a noção de resolução temporal e apre-
senta vantagens e limitações dos sistemas de observação de alta resolução tempo-
ral. Estes sistemas permitem acompanhar fenômenos ambientais dinâmicos assim
como melhorar a qualidade da interpretação das imagens em geral. Para ilustrar as
possibilidades oferecidas pelos sistemas espaciais de alta resolução temporal, três
exemplos são apresentados em áreas tropicais, onde fenômenos temporais, tanto
naturais quanto antrópicos, são estudados a partir de séries de imagens com alta
resolução temporal.
Palavras-chave: Sensoriamento remoto. Séries temporais. Ambientes tropicais.

Abstract
POLIDORI, L. High temporal resolution remote sensing for dynamic observation of tropical en-
vironment. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 235-255, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/cetropi-
cov44n1(2020)art11
This article proposes a discussion on the concept of temporal resolution, and pre-
sents advantages and limitations of high temporal resolution observation systems.
Such systems allow to follow dynamic environmental phenomena and to improve
the quality of image interpretation in general. In order to illustrate the possibili-
ties offered by high temporal resolution space systems, three examples are presen-
ted in tropical areas where temporal phenomena, both natural and anthropic, are
studied based on high temporal resolution image series.
Keywords: Remote sensing. temporal series. tropical environments.

1
Pesquisador titular, diretor do Centro de Estudos Espaciais da Biosfera CESBIO, Université de Toulouse. E-mail:
laurent.polidori@cesbio.cnes.fr. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6220-9561

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020 235


Laurent Polidori

Resumen
POLIDORI, L. Teledetección de alta resolución temporal para una observación dinámica de am-
bientes tropicales. Rev. C&Trópico, v. 44, n. 1, p. 235-255, 2020. DOI: https://doi.org/10.33148/
cetropicov44n1(2020)art11
Este artículo propone una discusión sobre la noción de resolución temporal, y pre-
senta ventajas y limitaciones de los sistemas de observación de alta resolución tem-
poral. Estos sistemas permiten monitorear fenómenos ambientales dinámicos, así
como mejorar la calidad de la interpretación de las imágenes en general. Para ilus-
trar las posibilidades que ofrecen los sistemas espaciales con alta resolución tempo-
ral, se presentan tres ejemplos en áreas tropicales, donde se estudian los fenómenos
temporales, tanto naturales como antrópicos, a partir de series de imágenes con alta
resolución temporal.
Palabras clave: Teledetección. Series de tiempo. Ambientes tropicales.

Data de submissão: 13/01/2020


Data de aceite: 28/04/2020

1. Introdução

Com o número e a variedade cada vez maiores de sistemas de observação da


Terra, as possibilidades de atualização da informação geográfica têm aumentado
muito nas últimas décadas, e alguns sistemas são até desenhados para providenciar
séries temporais de imagens com uma frequência determinada, tornando possível
a implementação de programas de monitoramento do meio ambiente em áreas
onde acontecem mudanças. Porém, o desenvolvimento de sistemas de alta resolu-
ção temporal, além de dificuldades técnicas de transmissão e armazenamento dos
dados, tem produzido um novo paradigma, no qual o usuário não precisa mais ol-
har cada imagem individual, mas necessita implementar algoritmos automatizados.
No caso das imagens óticas, era comum ter acesso cada ano a duas ou três
imagens viáveis (com uma cobertura nebulosa razoável), e os sistemas recentes de
alta resolução temporal como Sentinel-2 têm aumentado a probabilidade de obser-
var uma área determinada com poucas nuvens. No caso das imagens de radar, que
são quase insensíveis à presença de nuvens, o benefício da alta resolução temporal
é mais importante ainda. O sistema Sentinel-1 oferece, por exemplo, mais de trinta
imagens em qualquer região do mundo, em algumas, mais de sessenta, permitindo
um monitoramento quase contínuo do meio ambiente, principalmente nas zonas
tropicais, em que as mudanças podem ser espetaculares, em pouco tempo, e nas
quais as condições meteorológicas limitam muito as possibilidades de monitora-
mento com sensores óticos.
Neste artigo, são discutidas as vantagens e limitações da alta resolução tem-
poral são discutidas. Após um sobrevoo geral dos diferentes tipos de mudança

236 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020


Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

do meio ambiente, mostramos que eles podem ser detectados por sistemas de
sensoriamento remoto, segundo diferentes critérios relacionados com as carac-
terísticas geométricas, radiométricas ou interferométricas da superfície, permi-
tindo uma variedade de possibilidades de monitoramento por satélite. Ao longo
das últimas décadas, a evolução do desempenho dos sistemas espaciais de ob-
servação é comentada em termos de resolução espacial, espectral e temporal.
No caso da resolução temporal, são apresentadas as possibilidades técnicas de
melhoramento, assim como as contrapartidas positivas do custo tecnológico,
tanto em termos de melhoramento da qualidade das imagens, quanto de possibi-
lidades aumentadas de monitoramento dinâmico do meio ambiente. Finalmente,
apresentamos três exemplos de trabalhos publicados sobre diferentes aplicações
de séries temporais para o monitoramento da superfície terrestre em áreas tro-
picais. Os fenômenos ambientais estudados são tanto naturais (transporte de
sedimentos no litoral da Guiana francesa) quanto antrópicos (agricultura no
Vietnam, desmatamento da Amazônia).

2. Monitoramento dinâmico do meio ambiente

2.1. Variedade dos fenômenos dinâmicos

Mudanças acontecem na superfície da terra em todas as escalas espaciais e


temporais, e têm uma grande variedade de causas, às quais se dividem em duas cate-
gorias: antrópicas (desmatamento, urbanização, construção de obras, exploração de
recursos), gravitárias (deslizamentos, queda de pedras, erosão), geofísicas internas
(fenômenos sísmicos, tectônicos, vulcânicos) e, principalmente, hidrológicas (inun-
dações, erosão costeira).
Tais causas podem ter diferentes tipos de evolução através do tempo, como, por
exemplo, uma evolução contínua, cíclica ou catastrófica (Figura1) ou uma combinação delas.

Figura 1: Diferentes tipos de evolução de uma variável ambiental com relação ao tempo.

Fonte : Elaborado pelo autor.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020 237


Laurent Polidori

O tipo de evolução temporal influencia a possibilidade de modelar um fenôme-


no de mudança ambiental para prever estados futuros. A partir de um conhecimento a
priori do fenômeno e de dados de monitoramento, todo fenômeno pode ser antecipa-
do até certo ponto, com uma parte inevitável de imprevisibilidade.
Uma mudança que acontece entre duas datas pode ter vários comportamentos
que definem critérios para sua detecção e caracterização por meio do sensoriamento
remoto. Os aspectos mais considerados nos estudos de sensoriamento remoto estão
relacionados com os comportamentos radiométricos, geométricos e interferométricos.

• mudança radiométrica: acontece quando uma mudança ambiental transfor-


ma a cor da superfície (solo, água, vegetação) ao longo do tempo, devido à
evolução das características da superfície (tipo de solo ou de vegetação, pro-
priedades químicas e biológicas, temperatura, rugosidade, umidade, presença
de poluição) ;

• mudança geométrica: acontece quando uma mudança ambiental gera uma


reorganização espacial da matéria na escala do pixel. Pode ser uma mudança
de localização ou deslocamento (por exemplo: um banco de areia ou de lama
é transportado pelas correntes ao longo da costa), uma mudança de topologia
(exemplo: um meandro fica isolado ou uma península vira ilha depois de uma
fase de erosão), uma mudança de morfologia (um objeto muda de forma, a
exemplo de uma parcela agrícola ou uma margem fluvial ou litoral). A Figura
2 ilustra essas diferentes configurações geométricas no caso 2D, ou seja, numa
superfície horizontal, mas os mesmos fenômenos podem ter uma componente
vertical que exige uma observação em 3D.

Figura 2: Possíveis comportamentos geométricos de uma mudaça ambiental.

Fonte: Elaborado pelo autor.

• mudança interferométrica: no caso de observações por radar orbital, é


preciso mencionar outro comportamento relacionado com a reorganiza-
ção espacial da matéria na escala do comprimento de onda de um radar

238 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020


Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

(deslocamento médio de ordem centimétrica). Pode se tratar de desloca-


mento coerente (toda a matéria se desloca com o mesmo movimento como
no caso de uma subsidência) ou incoerente (redistribuição aleatória da ma-
téria devida à instabilidade da superfície e favorecida pela presença de vege-
tação ou de água que gera agitação).

2.2. Abordagens para o monitoramento por sensoriamento remoto

A detecção e caracterização de uma mudança da superfície terrestre a partir


de imagens tomadas por avião ou satélite pode ser feita de duas maneiras, levando à
definição de duas abordagens a depender da disponibilidade de imagens durante o
período estudado:
procurar testemunhos do passado em imagens do presente: isso supõe que os
traços não tenham desaparecido totalmente e que existem sensores com a sensibilidade
suficiente para revelá-los. A figura 3 mostra dois exemplos de feições antigas (uma
antrópica e a outra natural) que ainda aparecem em imagens de sensoriamento remoto.

Figura 3: Observação de testemunhos do passado em imagens recentes. 

Fonte: IGN, 2018; NASA, 2018.

À esquerda, um polder que existiu numa fazenda do século 18 na Guiana


francesa, aparecendo ainda numa fotografia aérea.
A direita, uma antiga rede hidrográfica no deserto do Saara, recoberta por uma
camada de areia mas visível numa imagem de radar de grande comprimento de onda.

• comparar imagens tomadas em datas diferentes: neste caso a diferença entre


as imagens pode indicar uma transformação. Essa abordagem depende da dis-
ponibilidade de imagens de acervo, que varia entre os diferentes países do mu-
ndo. Os maiores acervos aparecem depois da segunda guerra mundial (1945)
para fotografias aéreas e depois do lançamento do primeiro Landsat (1972),
para imagens de satélite. A Figura 4 mostra como fotografias aéreas podem
revelar mudanças acontecidas nos últimos sessenta anos.

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020 239


Laurent Polidori

Figura 4: Comparação de fotografias aéreas das décadas 1950 e 2010.

Fonte: IGN, 2018.

A comparação revela mudanças na região de Cayenne (Guiana francesa): urbani-


zação, erosão da praia, evolução da hidrografia e da cobertura vegetal numa zona úmida.
A possibilidade de estudar a evolução do meio ambiente com essa segunda abor-
dagem, stá relacionada com uma característica importante dos sistemas de observação:
a resolução temporal.

3. Promessas e limitações da alta resolução temporal

A resolução temporal faz parte de três características essenciais dos siste-


mas de sensoriamento remoto que, no caso de sistemas espaciais, são definidos
desde a fase de concepção: as resoluções espacial, espectral e temporal. A resolu-
ção espacial é relacionada com o tamanho do pixel e com a nitidez da imagem, que
determinam a possibilidade de discriminar dois objetos pontuais próximos. A re-
solução espectral, favorecida por bandas espectrais estreitas e numerosas, se refere
à possibilidade de caracterizar os objetos pela sua assinatura espectral (variação
da reflectância em função do comprimento de onda). A resolução temporal, que
consideramos neste artigo, se refere ao intervalo de tempo que é preciso esperar
entre duas observações consecutivas da mesma área, seja o sistema programado
para aquisições sistemáticas ou sob demanda. 

3.1. Evolução histórica das resoluções espacial, espectral e temporal

A observação da Terra por satélite remonta há mais de meio século desde a


aquisição da primeira imagem ‘‘Tiros’’ em 1960. A evolução mais dramática das ferra-
mentas e dados de sensoriamento remoto durante esse período é a resolução espacial,
que, originalmente, permite apenas localizar os continentes e acompanhar as grandes
massas atmosféricas, enquanto as imagens de satélite da década de 2010, comparáveis
às obtidas por aquisições aéreas, destacam objetos em escala humana, como veículos
ou mobiliário urbano (Figura 5).

240 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020


Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

Figura 5: Há meio seculo de distância, imagens Tiros (1960, esquerda) e Pleiades


(2012, direita).

Fonte: NASA, CNES, 2018.

Essa evolução chama dois comentários:

• um progresso considerável na resolução espacial e, portanto, na escala de ob-


servação exige cautela quando se trata de destacar uma mudança no meio am-
biente ou no clima por um longo período de tempo, uma vez que o olhar do
observador mudou durante o mesmo tempo;

• apesar do contraste espetacular entre os desempenhos das décadas de 1960


e 2010, nenhuma revolução tecnológica ocorreu, mas todos os campos téc-
nicos envolvidos (mecânica, ótica, computação) passaram por uma evolu-
ção contínua.

A partir do lançamento do primeiro satélite Landsat (1972), a maior quan-


tidade e diversidade de usuários tem trabalhado com imagens de sensores que
podemos chamar de ‘‘generalistas’’  que oferecem características interessantes em
todas as dimensões. Para ilustrar a evolução das últimas décadas, consideremos
dois sistemas espaciais óticos lançados a 30 anos de intervalo: SPOT (fevereiro
1986) et Sentinel-2 (junho 2015). A tabela 1 mostra os desempenhos típicos dessas

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020 241


Laurent Polidori

duas gerações de satélites en termos de resoluções espacial, espectral e temporal,


assim como os fatores de melhoramento.
Tabela 1: Evolução das caracteristicas de spot a sentinel-2.
SPOT Sentinel-2 razão

resolução espacial 10 m - 20 m 10 m – 20 m 1

resolução espectral 4 bandas 13 bandas 3,25


10 dias (1 satélite) 2,6
resolução temporal 26 j
5 dias (2 satélites) 5,2
Fonte: Elaboração própria.

Os dois satélites tem bandas espectrais de resoluções espaciais diferentes: para


SPOT, una banda de 10 m e 3 bandas de 20 m ; para Sentinel-2, 4 bandas de 10 m, 6 bandas
de 20 m e 3 bandas de 60 m). O SPOT não tinha a capacidade de observação contínua
devido a limitações de armazenamento e de transferência de dados.
É provavelmente a dimensão temporal que oferece a melhoria mais interessante no
caso dos satélites Sentinel-2: o período de revisita é de 10 dias e o fato de ter dois satélites
opostos na mesma órbita reduz esse período de 10 para 5 cinco dias.
Outros sistemas que favorecem a alta resolução temporal foram recentemente co-
locados em órbita, em particular:

• O satélite Sentinel-1A possui um radar de abertura sintética que passa a cada


12 dias no equador, e sua alternância com o Sentinel-1B reduz o período para
6 seis dias em muitas regiões. O radar é um sensor chamado all weather ou
seja, insensível às condições meteorológicas (as nuvens são transparentes), que
aproveita ao máximo à alta resolução temporal, pois cada imagem é explorável.

• O satélite franco-israelense VENuS, lançado em 2017, oferece um perío-


do de revisita de dois dias com um ângulo de visada constante, o que deve
permitir destacar fenômenos ambientais extremamente dinâmicos, ligados
principalmente à fenologia da vegetação. Nesse caso, a melhoria significativa
na resolução temporal não ocorreu em detrimento das resoluções espaciais
e espectrais, que permanecem comparáveis às do Sentinel-2, mas em detri-
mento da taxa de cobertura, uma proporção significativa das regiões tropi-
cais sendo inacessível (figura 6a). Note-se que essa cobertura é teórica, pois
a missão VENuS está programada para observar apenas cerca de 100 locais
(figura 6b) para fins experimentais.

242 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020


Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

Figura 6: A missão espacial VENuS2.

Fonte: NASA, 2018.

3.2. Desafios tecnológicos da alta resolução temporal

Sistemas de alta resolução temporal (tipicamente diária) existem há muito


tempo sejam de órbita baixa (como NOAA-AVHRR) ou geoestacionária (como
GOES), mas têm uma baixa resolução espacial (da ordem do kilômetro, ou um
pouco melhor no caso do sensor MODIS por exemplo). Pelo contrário, os sis-
temas de alta resolução espacial (1 – 10 m) costumam ter uma baixa resolução
temporal, com possibilidades de aquisição da ordem de três a quatro imagens
por ano (dependendo das condições meteorológicas), que não são adequadas
para a maioria dos estudos ambientais ou agronômicos.
A alta resolução temporal tem um custo. Para melhorá-la, é preciso abrir mão
de outros desempenhos, como a resolução espacial ou espectral. Todas as estratégias
que podem ser consideradas para melhorar a resolução temporal têm contrapartidas:

• Aumentando a abertura angular, um ponto da superfície terrestre é visto


com uma maior frequência (Figura 7a); porém, é visto com um ângu-
lo de visada variável que pode levar a uma interpretação radiométrica
errada (uma vez que a mesma superfície não é vista com a mesma cor
se for com perspectivas distintas), variações indesejáveis nas séries tem-
porais ou descontinuidades nas linhas de rejunte em mosaicos; além do
mais, o aumento da abertura angular exige uma degradação da resolução
espacial.

• Aumentando a agilidade do satélite ou do sensor permite mudar a orien-


tação da visada sob demanda (Figura 7b), assim que neste caso também,
um ponto da superfície terrestre pode ser visto com uma maior frequ-
ência (por exemplo, um satélite como Pléiades pode observar um ponto
escolhido a cada dois dias, ou até um dia usando dois satélites). Com
esta estratégia, o melhoramento da resolução temporal não se faz em de-
trimento da resolução espacial que pode permanecer alta (1 m), mas as

2
Figura 6a (esquerda): em amarelo, as zonas acessíveis pela missão VENuS
Figura 6b (direita): as áreas observadas pela missão VENuS

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020 243


Laurent Polidori

imagens sucessivas do mesmo ponto são tomadas com ângulos variáveis,


gerando as consequências já mencionadas acima. Outras consequências
são os possíveis conflitos de programação quando orientações incom-
patíveis são pedidas por diferentes usuários, e o fato da aquisição não
ser sistemática, assim que em caso de transformação da paisagem (des-
matamento, inundação etc.) a existência de uma imagem anterior fica
pouco provável.

Figura 7: Estrategias de melhoramento da resolução temporal3.

Fonte : Elaborado pelo autor.

Nos dois casos, o número de imagens da mesma área aumenta, mas a


qualidade da série temporal pode não ser adequada para a interpretação de mu-
danças ambientais. Uma solução simples pode ser considerada para evitar essas
limitações, mas envolve um custo financeiro maior. Colocando N satélites idên-
ticos sobre órbitas adequadas com a mesma geometria de observação, permite
dividir por N o período de revisita do sistema, como os satélites Sentinel-2A e 2B
que estão em oposição na mesma órbita heliosincrônica, reduzindo o período de
visita de dez a cinco dias (da mesma maneira, o uso dos dois satélites Sentinel-
1A e 1B reduz o período de visita de 12 a seis dias); neste caso, a calibração dos
sensores deve ser perfeitamente controlada para que possam ser usados indife-
rentemente como se fosse o mesmo sensor.

3.3. Possibilidades oferecidas pela alta resolução temporal

3.3.1. Monitoramento de mudanças ambientais


Sistemas de alta resolução temporal oferecem a possibilidade de acompan-
har a evolução da superfície terrestre ao longo do tempo. Essa evolução pode ser
de tipo contínuo, periódico ou catastrófico, como visto anteriormente, ou uma
combinação dos diferentes tipos. Cada período de revisita (que pode ser de um

3
Fig. 7a (esquerda): aumento da abertura angular
Fig. 7b (direita): aumento da agilidade (ângulo de visada variável)

244 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020


Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

mês, uma semana, um dia por exemplo) dá acesso a alguns fenômenos dinâmicos
e pode ser insensível a outros.

Numa série de imagens tomadas em diferentes datas, cada imagem pode in-
dicar mudanças com relação à imagem anterior, assim que a série permite datar uma
mudança e pode levar a uma síntese cartográfica na qual cada mudança é apontada
e associada a um intervalo de tempo (datas anterior e posterior à mudança).

3.3.2. Reconhecimento de comportamentos temporais


Além de descrever a evolução de um fenômeno ambiental ou de escolher
a data mais adequada, séries temporais permitem reconhecer um ecossistema ou
um cultivo pela sua assinatura temporal. A Figura 8a mostra a evolução de uma
variável ambiental (ou de um índice radiométrico como o NDVI) durante um
ano para três cultivos diferentes (exemplo teórico). Aparece uma confusão entre
pelo menos dois cultivos nos meses três, cinco e seis, e entre os três cultivos no
mês nove, ilustrando o risco de não poder discriminar os diferentes cultivos a
partir de uma imagem única, enquanto a disponibilidade de uma série temporal
(com uma resolução temporal de um mês nesse exemplo) permite reconstituir o
comportamento de cada cultivo ao longo do ano e identificar o mesmo com base
nesse critério. A Figura 8b mostra que uma degradação da precisão da medição
pode ser compensada pela disponibilidade da série temporal.

Figura 8: Exemplo teórico de variação de uma variável ambiental4.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Sistemas de alta resolução temporal também tem vantagens práticas até


para um análise instantânea sem consideração de mudança.

3.3.3. Filtragem das nuvens


No caso das imagens óticas, a superfície terrestre é geralmente escondida
por nuvens, e até em estação seca uma taxa de nebulosidade da ordem de 10%

4
Fig. 8a (esquerda): variação de uma variável ambiental (ou de um índice radiométrico como o NDVI) durante
um ano para três cultivos (exemplo teórico).
Fig. 8b (direita): mesma variação que fig. 7a com uma precisão radiométrica degradada (exemplo teórico).

Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020 245


Laurent Polidori

impede um estudo ambiental e uma produção cartográfica viáveis. Uma manei-


ra de se livrar das nuvens é através do uso de várias imagens tomadas em dife-
rentes datas, considerando que as nuvens mudam de localização e que para cada
pixel, existe pelo menos uma data sem nuvem. Neste caso, é possível produzir
uma síntese na qual a nuvem do dia d1 é substituída pelo conteúdo da imagem
do dia d2, onde as datas d1 e d2 são escolhidas dentro de uma série temporal
(HAGOLLE et al., 2008). O resultado obtido portanto é um mosaico no qual os
diferentes pixels são registrados em diferentes datas, como ilustrado pela figura 9,
assim que é preciso supor que as características ambientais não mudaram durante
o período de aquisição da série temporal. Esta hipótese pode ser ilusória nos am-
bientes muito dinâmicos da zona tropical sem a disponibilidade de séries de alta
resolução temporal para preservar a qualidade da síntese.

Figura 9: Eliminação de nuvens a partir de uma série temporal5.

Fonte: Elaborado pelo autor.

O método de eliminação de nuvens descrito acima é apenas um caso parti-


cular de uma abordagem mais geral que consiste na combinação de várias imagens
tomadas em datas diferentes na mesma área para destacar mudanças rápidas relacio-
nadas com as condições de observação (sensor, luminosidade, atmosfera, geometria
de observação) e sem significado ambiental, com o objetivo de separar essas mudan-
ças parasitas e as mudanças da paisagem, e assim melhorar a qualidade da interpre-
tação das imagens. Dois exemplos de tratamentos são comumente implementados
com séries de imagens de radar com este objetivo :

• Filtragem multitemporal do speckle. Nas imagens de radar o coeficiente de


retroespalhamento relacionado com a umidade, a rugosidade do solo ou a
densidade de vegetação, não é diretamente acessível por causa do ruído de
speckle que contamina a intensidade do pixel. A maioria dos filtros de speckle
consistem em suavizar o ruído substituindo o valor do pixel pela média de
uma vizinhança e preservando as feições importantes com critérios estrutu-
rais ou estatísticos, mas geram uma degradação da resolução espacial (Lee et
al., 1994). Com a disponibilidade de séries temporais de imagens de radar, a

5
Princípio da eliminação de nuvens a partir de uma série temporal de imagens óticas, mostrando que as variações
temporais da paisagem geram uma heterogeneidade espacial na síntese.

246 Ci & Tróp. Recife, v. 44, n. 1, p.235-255, 2020


Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

filtragem espacial pode ser substituída por uma filtragem temporal, assim que
a imagem pode ser suavizada sem perda da resolução espacial (TROUVÉ et
al., 2003). Esta abordagem é mais relevante com uma alta resolução temporal,
que torna mais realista a hipótese de uma superfície sem mudança, assim que
as variações de intensidade em diferentes datas podem ser atribuídas exclusi-
vamente ao speckle.

• Eliminação dos efeitos atmosféricos em séries interferométricas. A comparação


em termos de fase de duas imagens de radar de geometria idêntica pode reve-
lar deformações da superfície (subsidência, deslizamento). Porém, uma variação
das condições atmosféricas entre as duas datas (temperatura, pressão, umidade)
muda o valor da fase e pode sugerir deformações que não existem (TARAYRE;
MASSONNET, 1996). Neste caso também, a disponibilidade de séries tempo-
rais, até com precisão variável, permite separar a deformação lenta e coerente
da crosta terrestre e as variações rápidas e erráticas da atmosfera. Por exemplo,
Ramos (2009) revelou uma deformação tectônica na região de Manaus em séries
de imagens de Radarsat apesar de condições atmosféricas muito instáveis.

3.3.4. Relaxamento das exigências técnicas


Finalmente, a riqueza da informação temporal disponível em séries de
imagens permite compensar a qualidade limitada de cada imagem, e portanto
o desempenho limitado do sistema. Os exemplos citados acima mostram que
tratamentos específicos aplicados a séries de imagens podem gerar produtos
de precisão melhorada. O acesso à informação temporal também oferece um
critério adicional de detecção ou identificação, assim que a qualidade de cada
imagem pode ser degradada, sendo compensada pelo conhecimento do com-
portamento temporal dos elementos geográficos estudados. Na Figura 8 aci-
ma, temos mostrado que a redução da precisão radiométrica aumenta o risco
de confusão entre classes de uso da terra (Figura 8b), mas pode ser compensa-
da pela disponibilidade da série temporal.
A consequência prática dessa possibilidade é que a qualidade de cada
imagem, e portanto as exigências técnicas da concepção do sistema de observa-
ção, podem ser menos ambiciosas. Isso reduz a complexidade, o risco de pane e
o custo de concepção do sistema.

4. Aplicações em ambientes tropicais

4.1. Considerações gerais

A disponibilidade cada vez mais importante de séries de imagens de saté-


lite com um período curto de revisita tem oferecido a oportunidade de estudos
ambientais no caso de fenômenos muito dinâmicos, sejam de origem natural ou

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antrôpica. Essa possibilidade tem sido favorecida pelo desempenho da última


geração de sensores espaciais, cuja calibração geométrica de alta precisão per-
mite uma sobreposição perfeita entre as diferentes imagens, assim que a identi-
ficação de pontos de controle e a correção geométrica das imagens não são mais
exigidas do usuário como eram até os anos 2000.
O maior desafio deste tipo de análise é a possibilidade de discriminar o
fenômeno dinâmico estudado e as outras mudanças que podem ter acontecido
no mesmo tempo, sejam elas relacionadas com o meio ambiente ou com as con-
dições de observação (sensor, atmosfera).
O benefício das séries temporais é particularmente importante nas zonas
tropicais, onde as mudanças ambientais são mais rápidas, apesar das limitações
apresentadas anteriormente. A continuação são apresentados 3 exemplos de
análise de séries temporais par estudos de ambientes tropicais. Os fenômenos es-
tudados são tanto naturais (transporte de sedimentos no litoral da Guiana france-
sa) quanto antrópicos (agricultura no Vietnam, desmatamento da Amazônia).

4.2. Monitoramento do litoral instável da Guiana francesa

O litoral da Guiana é muito instável, com uma alternância de fases de


sedimentação (permanência de bancos de lama, crescimentos de manguezais,
assoreamento de estuários) e de erosão. A complexidade dos fenômenos e as
dificuldades de acesso tem incentivado há muito tempo estudos baseados em
imagens de sensoriamento remoto para entender o funcionamento dos ecossis-
temas e ajudar o planejamento da área costeira (POLIDORI, 2008).
Em 2003, a disponibilidade de uma série de 6 imagens de SPOT durante
a estação seca (Figura 10) tem permitido demonstrar as possibilidades da alta
resolução temporal para estudar a morfologia de um banco de lama. Devido
à órbita heliosincrônica do satélite, os instantes de observação são sincroni-
zados com a hora solar local, portanto não são sincronizados com a maré. A
consequência é que o banco de lama é visto seis vezes com diferentes alturas
de maré, assim que cada imagem gera uma curva de nível desde que o limite
entre a lama e a água seja detectado (figura 11). A interpolação dessas curvas
dá um modelo digital de elevação da superfície de lama, cujas incertezas são
devidas ao contraste limitado entre a lama úmida e a água turva, assim como
à hipótese de um banco de lama imóvel durante o período de cinco semanas,
uma hipótese discutível porém razoável no caso de uma alta resolução tempo-
ral como neste trabalho (GRATIOT et al., 2005).

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Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

Figura 10: Série de 6 imagens do satélite spot mostrando um banco de lama na costa
da Guiana francesa em diferentes alturas de maré.

Fonte: GRATIOT et al., (2005).

Figura 11: Curvas de nível obtidas a partir das imagens da figura 9 para a modelagem
da superfície do banco de lama.

Fonte: GRATIOT et al., (2005).

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4.3. Monitoramento da produção agrícola no Delta do Mekong

Séries temporais de imagens de radar tem sido usadas nos últimos anos para
monitorar os cultivos de arroz, como no delta do Mekong (BOUVET et al., 2009). O
radar é muito sensível à presença de arroz e aos diferentes estados de crescimento do
cultivo, principalmente a partir de indicadores como razões entre canais polarimé-
tricos. A figura 12 mostra que a razão HH/VV calculada a partir dos dados ASAR
do satélite ENVISAT destacam as superfícies de arroz (em comparação com outras
superfícies) assim como o ciclo agrícola numa área de três safras, apesar da resolução
temporal limitada do sensor (dez imagens por ano).

Figura 12: Evolução da razão media hh/vv calculada a partir de dados asar para classes
de pixels «arroz» e «não arroz» e diferença entre as classes numa area agricola do delta
do mekong com três safras anuais.

Fonte: BOUVET et al., (2009).

Depois do lançamento dos satélites Sentinel-1, o acesso a mais de trinta imagens


por ano tem aumentado muito as possibilidades de monitoramento. Registrando um
modelo genérico do crescimento do arroz sobre uma série temporal, é possível mo-
nitorar o cultivo particular que está sendo observado, através de características como
a data de semeadura (Figura 13a), o estágio fenológico (Figura 13b) ou a altura das
plantas (Figura 13c). Trabalhos recentes tem permitido estudar diferentes cenários
de produção agrícola e seus impactos, tanto em termos de safra quanto de emissão de
metano (HOA PHAN, 2018).

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Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

Figura 13: Cartografia de algumas características do arroz a partir da modelagem


da evolução do cultibo e de imagens Sentinel-1: data da semeadura (13a), Estágio
fenológico (13b), altura das plantas (13c).

c
Fonte: HOA PHAN, 2018.

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4.4. Monitoramento do desmatamento na Amazônia

O desmatamento das florestas tropicais precisa ser monitorado para pod-


er ser controlado e o uso do sensoriamento remoto é insubstituível, seja para
localizar os cortes, medir a sua extensão ou acompanhar a evolução do fenôme-
no no tempo. Na Amazônia brasileira, o desmatamento tem sido monitorado
com diferentes fontes de dados, especialmente as imagens Landsat TM que têm
a vantagem de estar disponíveis durante mais de 30 anos. Porém, a cobertura de
nuvens que impede as observações durante uma parte do ano incentiva o uso
de imagens de radar. Uma característica importante na escolha de um sensor de
radar é o comprimento de onda. A banda C (~5 cm) interage com a folhagem,
enquanto a banda L (~25 cm) penetra dentro do dossel e interage com a estru-
tura das árvores, sendo portanto mais sensível às características da floresta e
ao contraste entre a floresta e as áreas de vegetação baixa. A banda C é menos
sensível à degradação da floresta mas é mais disponível e oferece séries de alta
resolução temporal. Experimentações com Sentinel-1 mostram que a alta reso-
lução temporal compensa a limitação de sensibilidade das imagens individuais
(Le Toan et al., 2017). No exemplo da figura 14, a série de imagens destaca uma
área desmatada no período de 17/04/2016 a 03/08/2016. Esse período pode ser
reduzido a 12 dias para uma datação mais precisa usando todas as imagens dis-
poníveis. Porém, vale destacar que pode ser difícil detectar o desmatamento se a
vegetação cortada não foi retirada ou em caso de chuva. A figura 15 mostra que a
diferença floresta / não floresta pode ser imperceptível numa imagem individual
e sugere duas abordagens para superar essa limitação :

• identificar a parcela desmatada pela presença da sombra que a floresta intacta


projeta sobre a área cortada: essa abordagem é mais adequada para determinar
com precisão a data do desmatamento, mas é limitada à margem onde acon-
tece a sombra;

• considerar as variações de intensidade sobre um maior período de tempo para


uma interpretação mais segura: aparece claramente a vantagem da série tem-
poral com relação a uma imagem individual (BOUVET et al., 2018).

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para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

Figura 14: Série de imagens sentinel-1 mostrando uma parcela desmatada entre 17 de
abril e 3 de agosto 2016 na amazônia brasileira.

Fonte: LE TOAN et al., (2017).

Figura 15: Evolução de um índice radiométrico calculado a partir de série de imagens


sentinel-1 em 3 áreas: floresta (verde), área desmatada (preto), sombra na margem do
corte (vermelho), na amazônia peruana.

Fonte: BOUVET et al., (2018).

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5. Conclusão

A disponibilidade de séries de imagens de satélite com alta resolução temporal


tem oferecido novas possibilidades, tanto para tornar mais segura a interpretação das
imagens quanto para poder acompanhar as evoluções dinâmicas do meio ambiente.
As possibilidades e as limitações da alta resolução temporal têm sido apresentadas,
discutidas e ilustradas com trabalhos cujos autores aproveitaram a riqueza da informa-
ção temporal para monitorar fenômenos dinâmicos, tanto naturais quanto antrópicos.
Os exemplos escolhidos são estudos desenvolvidos em áreas tropicais, onde as mudan-
ças do meio ambiente são mais dinâmicas e onde, portanto, a alta resolução temporal
traz o maior benefício.

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Sensoriamento remoto de alta resolução temporal
para uma observação dinâmica dos ambientes tropicais

Referências

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2010), 2009.

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