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História da África Pré-colonização

Aula 5: A presença islâmica na África

Apresentação
Estudante, como estamos no aprendizado? Tem feito os exercícios? Veremos agora de forma mais aprofundada a relação
entre os árabes e os africanos, como foi o impacto da islamização em comunidades africanas e, principalmente, como
isso atingiu a escravidão.

Você provavelmente conhece bem os termos da escravidão na África feita pelos europeus, mas quanto às práticas feitas
pelos muçulmanos, você sabe como funcionavam? Quais eram as funções dos africanos na comunidade árabe? E os
africanos? Todos se comportaram de forma homogênea diante da presença islâmica? Convidamos você para conhecer
esse contexto da história africana, que merece sua reJexão.

Objetivo
• IdentiLcar as práticas escravistas na África no período da Antiguidade, antes da presença islâmica no continente;

• Analisar as relações políticas, econômicas e sociais entre a África e os reinos muçulmanos da Península Arábica.

O escravo africano na Antiguidade


Nas aulas anteriores, especialmente na Aula 2, você estudou os reinos africanos da Antiguidade, com grande destaque para o
Egito e o Reino de Cuxe. Vamos relembrar um aspecto importante sobre esse período: o que é ser escravo na África, na
Antiguidade?

No ano de 2.680 AEC, um relato de um escriba, provavelmente com doses de exagero, relata a entrada triunfante de um faraó
no Egito vindo da Núbia, de onde trazia mais de 5.000 prisioneiros que virariam cativos.

A escravidão no Egito não foi a mão de obra predominante, como você já viu. A maioria das obras púbicas era feita por servos
por um sistema de servidão coletiva. Quando havia captura de prisioneiros de guerra do alto do Nilo (mais para o sul da África)
o que predominava eram mulheres e crianças. Os homens eram em menor quantidade por conta de suas mortes nas batalhas
ou resistência em plena travessia no rio Nilo, onde muitos preferiam o afogamento ao cativeiro.
! Fonte: História Islâmica.

As mulheres tinham como destino os afazeres domésticos. As crianças, como se repetirá no caso da escravidão feita pelos
islâmicos, eram importantes porque, por serem muito jovens, poderiam assimilar a cultura do povo dominante, tornando-se
mais leais do que os adultos.

Saiba mais

Com o passar do tempo, o Egito começa a investir na escravidão masculina por conta da habilidade — já citada em aula anterior
— dos soldados núbios, como os arqueiros. Assim, os prisioneiros de guerra com talento militar passavam a ser mais valiosos e
importantes em uma época de guerras internas e de ameaças estrangeiras, como a dos hicsos.

Como exposto anteriormente, as mulheres eram responsáveis pelo cotidiano doméstico, pelo zelo com a alimentação, pelo
cuidado com os animais e pela agricultura. Porém, muitas também eram submetidas a abusos sexuais por parte de seu senhor
ou de familiares, pois a escravidão priva o escravo da posse de seu corpo e, consequentemente, de sua sexualidade.

Houve uma mudança nesse quadro quando o Reino de Cuxe começou a crescer e a enxergar no comércio de cativos uma
fonte de ganhos materiais com os egípcios. Assim, o Egito ganha porque não corre mais riscos de invasões e de travar
batalhas contra seus vizinhos. Logo, para Cuxe o prisioneiro de guerra deixa de ser do seu território para vir de além do Saara.

No governo meroíta houve comércio de longa distância, um mecanismo para aumentar o número de prisioneiros, seja por meio
de guerras ou por raptos. Esses prisioneiros foram trocados pelo Reino de Cuxe com o Egito e tiveram um papel importante na
construção de pirâmides e canais de irrigação.

O Juxo de escravos conseguiu passar os limites do Egito e chegou à Península Arábica e ao sul da Europa e à Ásia Menor pelo
mar Mediterrâneo. Posteriormente, no já estudado Reino de Axum, haverá um Juxo — sem chegar a números imensos — de
cativos para Roma. Um dado importante para egípcios ou árabes é a determinação do cativo pelo fenótipo, isto é, pelas
características físicas, algo que será de grande relevo poucos séculos mais tarde.
Dessa forma, o que 8ca caracterizado a respeito da escravidão nesse
período? Os escravos, em sua maioria, eram consequências de guerras
perdidas para um reino mais poderoso. Não foram construídas teorias que
justi8cassem a escravidão a partir de uma suposta inferioridade racial,
física, mental para aquele ser humano tornar-se escravo.
A concentração de cativos começou na Núbia, que depois investiu no
comércio de cativos mais ao sul do Saara. Por 8m, a escravidão não 8cou
restrita ao contexto africano. Sua presença atingiu vários povos do
Mediterrâneo e a Península Arábica.

Agora, você verá de forma mais detalhada a relação entre os árabes e o continente africano, principalmente no que tange à
escravidão.

A África e o Islã
Nenhum continente conheceu por um período tão longo uma sangria tão contínua e sistemática de pessoas como a África — e
aqui vamos fazer um recorte arbitrário por conta de fontes escritas —, que se estendeu do século VII ao XIX. A África não foi
somente o berço da civilização, mas também o berço da maior diáspora da humanidade.

Comentário

A associação mais comum que se faz entre África e escravidão é a presença dos europeus, com o pioneirismo português na
época da Idade Moderna, quando houve o Juxo de milhares e milhares de pessoas para as Américas na condição de cativos. Essa
cena não está errada, sob qualquer hipótese. A questão é que esse comércio, que já foi chamado de “infame”, não começou com
os europeus na Idade Moderna. Então, como começou?

Em épocas recentes há teorias que justiLcam a escravidão africana nas Américas quando aLrmam que a iniciativa não foi dos
europeus, mas dos próprios africanos. Os africanos já escravizavam africanos. Logo, não se pode delegar qualquer
responsabilidade pioneira para os europeus.

Essa argumentação seria válida se o africano soubesse, antes de tudo: o que é ser um africano? Esse conceito abstrato é
igualmente cabível para o termo “americano”, que reúne brasileiros, chilenos, hondurenhos, canadenses, guatemaltecos,
equatorianos, mexicanos, estadunidenses, cubanos ou haitianos, para Lcar nesses exemplos.

Isso é uma unidade?


Uma identidade fácil de se distinguir pela etnia, idioma, religião, costumes ou cultura?

Se não serve para o “americano”, por que serve para o “africano”?

Veremos agora os aspectos que levaram à escravidão na África no contexto da expansão muçulmana pelo continente, que
antecedeu em séculos a presença europeia. Não é seu papel de historiador fazer juízo de valor sobre o fato de a escravidão
islâmica sobre os povos africanos que se reuniam abaixo do Saara ter sido mais ou menos violenta do que aquela que foi
empregada pelos europeus, mas sim, trabalhar com dados.

Veremos nesta aula que, em vez de gastarmos tempo com adjetivos, veremos objetivamente que essas formas de escravismo
não se excluem. Ao contrário, complementam-se em vários aspectos, especialmente naquele que atribui estereótipos e traços
racistas à população negra africana.

O tráLco transatlântico não pode ser o único a


ser trabalhado pelos historiadores que se
debruçam sobre a África. O argumento de que
existia para não se estudar o tráLco anterior, que
destinava africanos para as Américas, é que
inexistiam fontes, o que se trata de um grande
equívoco.

Antes dos europeus, o tráLco negreiro se dava


nas areias do Saara e pela travessia do Mar
Vermelho e do Oceano Índico. Veja no mapa a
seguir rotas de comércio e de escravos pelo
Saara, das savanas até o Magreb e do Mar
! Rotas de comércio transaariano. Fonte: UFMG (2020).
Vermelho ao Oceano Atlântico.

A partir do século XII e, especialmente, no século XVI, as fontes sobre o tráLco aumentam para o historiador. No primeiro
momento, a origem é de viajantes muçulmanos, já mencionados em aula anterior. No segundo momento, no século XVI, a
documentação aumenta por conta da presença portuguesa no litoral de vários pontos do continente.

O papel de Maomé — Mohammad — na fundação do Islã foi a uniLcação de várias tribos árabes e a criação de uma religião
monoteísta feita por esse ex-militar, que era comerciante quando teve a revelação do anjo Gabriel sobre uma nova religião
monoteísta que juntar-se-ia ao judaísmo e ao cristianismo.

Ao contrário do que se possa pensar por conta dos conJitos religiosos atuais, o Islã (que signiLca “submissão”) apropriou-se de
passagens do cristianismo — virgem Maria, o nascimento e o martírio de Jesus de Nazaré — e da base do judaísmo — o
monoteísmo — para a criação de sua fé.
O processo de conversão pregado por Maomé é muito simples. A convicção
da verdade da frase que diz que Allah é o único Deus e que Maomé é seu
último profeta (shahadah). Isso não foi fácil para Maomé, que além de
criticar o politeísmo de seus contemporâneos também atacava o lucro
excessivo e a falta de preocupação com os pobres.

! Fonte: Super Interessante.

Qual a relação disso com a África? Você já viu que os reinos do Mali e Songai, por exemplo, se islamizaram. Antes deles, os
egípcios e os povos berberes das montanhas. Uma religião monoteísta com algumas determinações básicas para seus Léis
teve repercussão no continente africano.

Além da oração cinco vezes ao dia na direção de Meca (salah) — o


que acarretou um desenvolvimento muito grande na astronomia, pois,
no Saara, como saber onde está Meca com as dunas que mudam de
posição por conta dos ventos? —, do mês de jejum do nascer ao pôr
do Sol (Ramadã), do apoio a órfãos e mendigos com doações de
esmolas (zakat), duas coisas serão drásticas na África: a peregrinação
à Meca uma vez na vida e a leitura obrigatória do Corão.

A obrigatoriedade da leitura do Corão exigirá uma mudança em várias sociedades ágrafas, ou seja, sem escrita, que baseavam-
se somente na oralidade. A peregrinação à Meca resultará na jornada de chefes de reinos africanos (em aula anterior você viu a
luxuosa peregrinação à Meca feito por Mansa Musa e suas consequências) por rotas que consolidarão o comércio de longa
distância e a islamização em aldeias ao longo do caminho. Veremos que alguns homens ricos farão o hajj (peregrinação à
Meca) e quais suas consequências.
O período de triunfo do Islã na Península Arábica trouxe o desenvolvimento da ciência (matemática, astronomia, medicina, por
exemplo), da LlosoLa, da música, da arquitetura. Com a expansão na África, especialmente no Magreb, haverá mudanças,
como a que você viu em Tombuctu, com a criação de universidade e escolas. O Islã expande-se na África, mas não sem
resistência.
Exemplo

Os etíopes, que foram cristianizados por inJuência de egípcios cristãos, resistiram ao islamismo e não foram poucas as lutas
entre árabes e os povos da Etiópia. Cabe destacar que o cristianismo etíope era sincrético, misturado, pois podia-se perceber nos
rituais cristãos muito das danças e músicas do antigo Reino de Cuxe. A esse sincretismo na África o islamismo também não será
imune.

Mesmo havendo várias divisões no islamismo, seja por natureza teológica ou política, muito unia os Léis, como a peregrinação
a Meca, o uso de formas geométricas nas residências e templos, uso de azulejos e pisos (arabescos), a música, a língua árabe,
os livros sobre a religião, a valorização do saber.

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' (Aqui existe uma videoaula, acesso pelo conteúdo online

Essa identidade comum uniu a Península Arábica com todo o norte da África, que foi islamizado. O Islã chegou a reinos como o
de Mali e Songai. Porém, aqueles que não pertenciam à religião revelada, os povos do sul da África, seriam considerados
“bárbaros”, sem cultura.

Retornemos à questão: por que o Islã expandiu-se de forma tão rápida no Magreb, norte africano?

Porque nessa região havia um ponto em comum com os árabes islamizados, fossem eles comerciantes ou missionários: o
nomadismo.

! O nomadismo

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As organizações de pastoreio, o viver nas montanhas, as orações ao ar livre, nada disso seria estranho para o africano
magrebino. Porém, para quem vivia abaixo do Saara, da região do Sahel às Jorestas equatoriais, não serão somente os
missionários a converter-se, mas igualmente o camelo.

Quando esse animal foi introduzido no comércio de longa distância, não só as mercadorias acompanham a cáLla, mas
igualmente a nova fé. Quando sabemos, por meio de relatos árabes, que em meados do século XII uma caravana
levava cerca de seis a dez mil camelos, podemos entender a força da nova religião.

Porém, sempre é bom lembrar que, ao que tudo indica, muitos líderes africanos converteram-se apenas por motivos de
natureza comercial nas rotas transaarianas.

Não foram os árabes que levaram sua fé no Islã à força para os povos “inLéis”, pois eles tinham controle e
conhecimento de cidades, como a já citada Tombuctu ou Gao. Para os árabes, o que existia ao sul do deserto do Saara
era algo completamente desconhecido. O Egito era sua grande referência como centro de estudos e de religião — a
região mais importante fora da Península Arábica.

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Para além do Sudão (“terra de negros”) era o desconhecido e, quando houve tentativas missionárias nessa região, não
houve sucesso. Reinos como o do Congo conseguiram rechaçar a presença islâmica e mantiveram suas práticas
religiosas.

A partir do século IX começa um Juxo maior de escravos. Reinos africanos cujas elites se converteram começaram a
cobrar tributos de povos vizinhos com poder militar mais fraco. Boa parte desses tributos era pago com homens,
mulheres e crianças. Começou, assim, uma reação em cadeia baseada na escravidão. Tribos e aldeias de médio porte
começaram a invadir as de porte menor para capturar escravos para que sua população não fosse escravizada. Uma
corrente baseada em medo, guerra e submissão.

Os escravos tinham quais funções nos reinos africanos islamizados, no Magreb e principalmente, na Península
Arábica? Sim, a maioria trabalhará nas minas de ouro e de sal, nas rotas das caravanas carregando fardos nas costas.
Outros serão lavradores; os que tinham conhecimento e habilidade com o uso do ferro serão artesãos; eunucos
tomavam conta de haréns e das concubinas do senhor e vários foram soldados.

A travessia do escravo pelo deserto não era fácil. Era uma viagem de, em média, três meses a pé na areia escaldante
ou pedra quente, todos amarrados uns aos outros pelo pescoço ou pelas pernas. A fuga era algo muito remoto. Menos
pela vigilância — que era até fraca — do que pelo desconhecimento do território.

Como guiar-se no deserto? Como andar por dunas que mudam com os ventos? A fuga poderia levar rapidamente à
morte. O trajeto poderia resultar em sobrevida, apesar de vários terem morrido de sede, fome, doenças, cansaço,
insolação, desidratação.

O escravo poderia sobreviver ao deserto, mas muitas vezes falecia nos alojamentos em que eram alocados ao longo
do Sahel. Eram semanas ou meses à espera das caravanas que começariam uma nova, longa e penosa travessia.

É importante resumir como a escravidão é vista pelo mundo muçulmano.


Pela lei islâmica nenhuma pessoa livre podia ser escravizada por crime,
dívida ou indigência. Crianças não podiam ser escravizadas, assim como no
mundo grego ou romano. O jihad é uma forma de puri8car o mundo a partir
da conversão, pois os árabes viam-se como o povo eleito de Allah. Assim, o
escravo só poderia ser alforriado quando se convertesse.

Quais as funções que uma pessoa escrava teria? Poderiam ser cantores, jardineiros, artesãos que manuseavam couro, ferro ou
madeira, trabalhadores em minas de ouro, carregadores de mercadorias em caravanas, guerreiros, concubinas, pajens,
administradores de palácios.

Saiba mais
O tráLco começou a partir do século VII e não era feito por árabes, mas por tuaregues islamizados que percorriam o deserto
graças aos camelos, e conseguiam escravos em reinos e nações da África negra. Esses escravos eram capturados para
trabalharem nas minas de sal no Saara — que já foi um mar, por isso o sal — ou carregarem blocos de sal para diversos pontos da
O africano
África, subsaariano
como acontecia eméGana,
o alvoonde
da escravidão
havia trocapelos motivos
de sal já mencionados, mas é importante acrescentar outro: a idolatria a
por ouro.
imagens, a elementos da natureza, seu politeísmo, a crença e respeito a feiticeiros e sacerdotes.

No mundo islâmico o escravo tinha um futuro incerto. Poderia tanto limpar a fossa do seu dono como virar administrador do
palácio, com toda a conLança de seu senhor. As mulheres podiam ser concubinas e, quando uma escrava tinha um Llho com
seu senhor, conseguia a alforria. Como havia garantia de que aquele Llho era do senhor e não de um funcionário do palácio?
Como ter certeza de sua ascendência? Para evitar qualquer dúvida havia uma grande quantidade de escravos que foram
castrados e viraram eunucos. Eram os únicos a terem acesso aos aposentos das concubinas.

Como foi exposto acima, a alforria era possível. Como era a vida de um liberto? A liberdade, porém, não era totalmente livre. O
que isso quer dizer? O liberto tinha obrigações, como montar sua própria linhagem e sua família tinha que estabelecer relações
com a família de seu antigo senhor.

Sendo assim, o raio de ação de liberdade de um comércio, por exemplo, era limitado, pois a preferência nas trocas comerciais
era do antigo senhor. Na morte deste, passava para os Llhos, depois para os netos. Para piorar, os descendentes dos libertos
tinham que manter tal ligação com os descendentes do antigo senhor. A condição de liberto era viver nas franjas da sociedade
islâmica.

Uma coisa que o estudante de história tem que saber a


respeito da escravidão feita pelos árabes é que ela não foi
exclusivamente contra africanos, mas também contra
povos do leste europeu, como nas atuais Polônia, Eslovênia,
Eslováquia — o termo “eslavo”, inclusive, vem de “escravo”.

Inicialmente não havia uma forma diferenciada de


tratamento para os escravos. Como as características
físicas — o fenótipo — de eslavos ou negros é de fácil
distinção da do árabe, a instituição da escravidão deu
origem a termos pejorativos para os escravos, como “feios”,
“preguiçosos”, “sujos”.

Não se sabe ao certo quando começou a distinção entre os


escravos de origem eslava e os de origem africana, mas há
textos a partir do século XI que caracterizam os africanos
de forma muito agressiva. Uma hipótese cita a revanche
! Fonte: Pixabay.
dos árabes por terem sido dominados em sua região sul
pelo reino de Axum um século antes.

! A distinção entre escravos africanos e europeus

" Clique no botão acima.

Os negros, antes foram dominadores e soberanos, passaram a ser citados em textos árabes como seres com grande
deLciência intelectual, moral e estética. Esse processo de desumanização é um gatilho utilizado por sistemas
escravocratas para dar aos proprietários uma autojustiLcativa do mecanismo usado, quase que induzindo aquele ser
humano à condição de ser naturalmente propenso à escravidão. Uma exceção era feita às concubinas de origem
etíope, que eram sempre descritas pela beleza, elegância, porte.
No século XI há textos que aLrmam que os macacos seriam mais hábeis do que os negros. O maior historiador
muçulmano desse período, o já citado em outra aula Ibn Khadun, descreveu os negros como inclinados à escravidão
por conta de seu caráter bestial, animalesco.

Esses textos substituíram os relatos árabes, que ressaltavam a coragem dos africanos diante de invasões islâmicas
em seus territórios e havia nesses escritos certa simpatia pelos soldados negros.

Porém, com a expansão do Islã, há necessidade de ouro, ferro, mercadorias diversas e soldados, o que faz do tráLco
negreiro essencial para sua economia e consolidação de sua política. Assim, os textos degradantes passam a ser mais
frequentes. Gradativamente, as negras — antes belas e muito requisitadas — passam a rarear no harém, pois não havia
o desejo de dar alforria a seus Llhos e suas linhagens. E os homens Lcavam com o trabalho mais degradante.

O eunuco de origem branca, a título de exemplo, tinha a supressão de seus testículos, enquanto o de origem negra
tinha toda a genitália decepada rente ao abdômen. Mesmo que houvesse uma guarda negra de alto porte, formada por
homens com habilidades ímpares com lanças ou arcos, aos soldados negros não era dada a possibilidade de usar
montaria para soldados. Seus percursos para as batalhas eram feitos a pé.

No Islã há uma divisão muito clara e simples: há o Lel e o inLel. Como ter um escravo doméstico nessas circunstâncias?

Comentário

Um muçulmano só pode ter sua comida preparada por um irmão de fé. Então, o escravo deveria ser convertido. Nesse ponto,
porém, há uma contradição. Um irmão de fé não pode escravizar outro irmão de fé. Assim surgiu a explicação conhecida como
camita, que teve vida longa ao ponto de ser incorporada pelo mundo cristão.

A versão camita alega que a maldição de Deus a Cam — Llho de Noé que riu do pai quando este se embebedou com vinho —,
segundo a qual os descendentes de Cam serviriam aos descendentes de seus dois outros irmãos explicava a submissão dos
negros aos árabes, pois os negros, como os habitantes da antiga região de Cuxe, seriam descendentes de Cam. A escravidão
passa a ter a bênção divina e o negro é culpado por sua sorte.

O tráLco negreiro árabe deu-se na costa oriental do continente africano. A partir de um povoamento progressivo de persas e
árabes houve a organização de um comércio de escravos nas cidades costeiras. Isso aconteceu ao sul da Abissínia, atual
Etiópia.

Outro centro do comércio escravocrata foi o Egito. O Egito foi conquistado pelos árabes e depois as tropas muçulmanas
invadiram a Núbia. Enquanto o Egito fornecia como tributos cavalos, cereais e vinho, a Núbia fornecia uma cota anual de
escravos, que eram usados, como já dissemos, como soldados ou concubinas. Esses homens e mulheres eram da Núbia? Não.
Muitos eram originários de terras sem um Estado uniLcado, que a Núbia atacava.

O Cairo era o destino do comércio dos escravos e também o centro de redistribuição para o Oriente árabe. Peregrinos
sudaneses levavam escravos para venda no Cairo na rota para Meca. Alguns Estados africanos capturavam africanos de
sociedades mais primitivas para que servissem como moeda de troca por cavalos. Nesse ponto há um ciclo e os cavalos eram
usados para capturar pessoas.
! Fonte: shadyshaker / Pixabay.

As pessoas eram trocadas por mais cavalos, que eram usados para capturar mais e mais pessoas. Havia um problema de
curta duração desse ciclo em virtude da vida curta do cavalo em um habitat que lhe era estranho, onde havia pastos diferentes,
clima e moscas que lhes traziam doenças. Dessa forma, o ciclo recomeçava, sempre mais e mais rapidamente.

O quantitativo de africanos deslocados pelo tráLco árabe é incalculável. A África Oriental foi palco de uma imensa diáspora, que
começou antes da Era Comum e prosseguiu até o século XIX.

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Atividade
O Islã encorajava a alforria como um ato de grande piedade e sob a mesma categoria que a doação de esmolas. Por isso, muitos
senhores ricos libertavam de fato seus escravos em certos feriados religiosos. Havia diversas maneiras, sob a lei islâmica, de se
alforriar um escravo, muito embora em cada uma delas a alforria permanecesse uma decisão unilateral, que podia ser tomada
apenas pelo senhor (ou por um juiz, em caso de maus-tratos). O primeiro tipo de alforria era “uma declaração formal da parte do
senhor e gravada em um certiLcado dado ao escravo liberto.” Nesse caso, a descendência do escravo também seria livre. A
segunda forma ocorria por meio de um acordo escrito, pelo qual o senhor concedia a liberdade ao escravo em troca de certa
quantia de dinheiro. Esse acordo só podia ser anulado pelo escravo, nunca pelo senhor. Assim, apenas os Llhos nascidos durante
a vigência do contrato seriam libertados. Em terceiro lugar, o senhor podia comprometer-se a libertar o escravo em uma data
futura especíLca, ou podia comprometer seus próprios herdeiros a libertá-lo após sua morte. Um quarto método era um
julgamento legal conduzido por um juiz muçulmano (qadi), no caso de um senhor não conseguir cumprir suas obrigações morais
para com o escravo. A quinta forma de libertação ocorria quando uma escrava dava à luz um Llho de seu senhor. A criança seria
livre e em consequência a mãe adquiria certos direitos legais. Deve ser notado aqui, conforme veremos no exemplo dos haratin no
contexto marroquino, que havia uma diferença entre indivíduos nascidos livres e os escravos alforriados. O nascido livre o era em
teoria e na prática. Porém, para um escravo libertado através de um dos métodos acima, mesmo sendo legalmente livre, era difícil
romper completamente os laços com o senhor. John Hunwick descreve corretamente esse relacionamento como clientelismo
(wala). Ele explica que essa relação “proporcionava ao liberto um contexto social, provendo-o de uma família substituta, de um
nome de família e mesmo, com o tempo, de uma linhagem Lctícia”.

(EL HAMEL, C. “Raça”, escravidão e Islã no Marrocos: a questão dos haratin. Journal of North African Studies, v. 7, n. 3 (2002), p.
29-52.)

Após a leitura do trecho anterior responda as três questões a seguir:

1. Caracterize a `condição do liberto dentro da estrutura escravocrata islâmica.

2. Aponte, após a leitura da aula, duas das funções do escravo subsaariano nas relações escravistas orientadas pelos árabes
muçulmanos.

3. A dinâmica escravista deve ser considerada a partir dos contextos político e religioso. Relacione dois momentos históricos
buscando entender como o conceito de escravidão pode variar.

Notas
Referências

EL HAMEL, C. “Raça”, escravidão e islã no Marrocos: a questão dos haratin. Journal of North African Studies, v. 7, n. 3 (2002),
p. 29-52.

MOHAMMED, E. F. História geral da África, III: África do século VII ao XI. Unesco. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org
/ark:/48223/pf0000190251. Acesso em: 10 out. 2020.

SILVA, A. C. A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2011.
• Analisar a expansão banta na África subsaariana;

• IdentiLcar a organização política, econômica e cultural de sociedades descentralizadas e de povos mais centralizados,
como os hauçás.

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