O princípio Mariano da igreja
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Book preview
O princípio Mariano da igreja - Brendan Leahy
Título original:
il principio mariano nella chiesa
© Città Nuova – Roma – 2001
Tradução:
José Maria de Almeida
© Cidade Nova – São Paulo – 2005
Copidesque:
Klaus Brüschke
Revisões:
Rafael Varela
Capa:
Márcio Paulo Soares de Oliveira
Conversão para Epub:
Cláritas Comunicação
ISBN 978-85-7821-104-2
(Original: 88-311-3257-1)
Editora Cidade Nova
Rua José Ernesto Tozzi, 198
Vargem Grande Paulista – SP – Brasil
CEP 06730-000 – Telefax: (11) 4158.2252
www.cidadenova.org.br
editoria@cidadenova.org.br
Sumário
Introdução
Que todos sejam um
I. MARCOS AO LONGO DO CAMINHO
O que dizer de Maria, a mãe de Jesus?
A época patrística Maria, mãe de Cristo e modelo da Igreja
A época medieval: Maria, mãe dos fiéis, esposa de Nosso Senhor Jesus Cristo
O Concílio Vaticano II e nos anos seguintes: o princípio Mariano na Igreja
Conclusão
II. A lógica trinitária de Deus
Mistério
Comunhão
Missão
III. MARIA PARA NÓS HOJE
Maria, mulher cuja morada é no mistério
Maria, mulher de comunhão
Maria, mulher cuja missão continua entre o tempo e a eternidade
Conclusão
IV. O PRINCÍPIO MARIANO NA IGREJA
O princípio Mariano na Igreja e o mistério: Ancilla Domini
O princípio Mariano na Igreja e a comunhão: Sponsa Verbi
O princípio Mariano na Igreja e a missão: Mater Dei et Mater Ecclesiae
Conclusão
V. SINAIS DO PRINCÍPIO MARIANO HOJE
O princípio mariano e a Renovação Conciliar
Uma espiritualidade para todos
Santidade, os santos, os fundadores e os carismas
A mística e a teologia
O princípio Mariano e a mulher na Igreja
A hora do laicato
Movimentos, Associações e Novas Comunidades Eclesiais
O Papa, a hierarquia e o princípio Mariano
Ecumenismo e diálogo inter-religioso
O princípio Mariano e a Igreja no mundo
Conclusão
Prefácio
O amor e a devoção a Maria são elementos fundamentais na cultura do continente latino-americano e constituem um dos traços característicos da religiosidade do povo brasileiro. João Paulo II, na sua primeira viagem ao Brasil, em 1980, percebeu isso e lembrou que a religiosidade popular é expressão de uma dimensão profunda do homem, é a própria alma do povo aflorando nas expressões e manifestações dessa religiosidade. No mais profundo dela encontramos sempre uma autêntica fome do sagrado e do divino.
Um ano antes, ao presidir a Terceira Conferência Episcopal Latino-Americana em Puebla, o Papa tinha proposto, como programa para todo o povo cristão, um retorno às verdades sobre Jesus Cristo, sobre a Igreja e sobre o homem. O então cardeal Ratzinger observou que a condição de atuação daquele programa de João Paulo II era o retorno a Maria.
Na América Latina, a piedade mariana tradicional vinha então declinando em alguns setores da vida da Igreja, deixando um vazio, logo preenchido por ideologias políticas.
Assim, o presente livro de Brendan Leahy chega ao Brasil num momento mais do que oportuno. Apresentando a perspectiva eclesiológica de Hans Urs von Balthasar — especialmente daquilo que esse grande teólogo suíço chamou de o perfil mariano
—, ele vem ao encontro daquelas exigências típicas do continente latino-americano e do povo brasileiro. Mais do que uma proposta renovada de devoção a Maria, o leitor vai encontrar a proposta de uma dinâmica mariana
de vida, que faz afirmações decisivas sobre como ser cristão e ser Igreja, hoje e no futuro do nosso continente e do mundo.
A relação Maria-Igreja nunca tinha sido apresentada de maneira tão profunda e essencial como no Concílio Vaticano II: Maria não é um modelo para o qual a Igreja deve olhar de fora. Ela — com sua total adesão aos desígnios de Deus, abrindo caminho para a Encarnação — é a figura da Igreja, a Igreja na sua plena realização. Em outras palavras, a essência da Igreja é mariana
(cf. Lumen Gentium, cap. 8).
O Concílio ressaltou a santidade da Igreja como dimensão primeira, à qual todas as demais devem servir, inclusive a dimensão hierárquica. E recorda que, nos escalões da santidade, justamente a mulher
, Maria de Nazaré, precede
a todos no caminho rumo à santidade; nela, a Igreja já alcançou a perfeição
(LG, idem).
Não por acaso, Igreja é nome de gênero feminino, com tudo o que isso comporta: maternidade, atenção ao outro, doação, amor gratuito. São atitudes atuais e urgentes, num mundo fragmentado e, contudo, sedento de unidade; mundo multi-étnico, multicultural e multireligioso, mas necessitado de diálogo e de fraternidade.
Para von Balthasar, Maria, no seu sim, torna-se a forma plasmadora da Igreja, lugar de encontro de Deus com o homem. Sim que não é apenas uma resposta individual, mas que contém a dimensão coletiva de abertura de todo o gênero humano para Deus. E os bispos latino-americanos, no Documento de Puebla recordam que Deus se fez carne por meio de Maria, começou a fazer parte de um povo, constituiu o centro da história. Ela é o ponto de união entre o Céu e a terra. Sem Maria, o Evangelho desencarna-se, desfigura-se e transforma-se em ideologia, em racionalismo espiritualista
(Puebla, n. 301).
"O Magnificat — continuam —
é o espelho da alma de Maria. Nesse poema, conquista o seu cume a espirituali-dade dos pobres de Javé e o profetismo da Antiga Aliança. É o cântico que anuncia o novo Evangelho de Cristo. É o prelúdio do Sermão da Montanha. Aí Maria se manifesta vazia de si própria, depositando toda sua confiança na misericórdia do Pai. No Magnificat ela manifesta-se como modelo ‘para os que não aceitam passivamente as circunstâncias adversas da vida pessoal e social […] mas que proclamam com ela que Deus exalta os humildes e, se for o caso, derruba os poderosos de seus tronos’ (João Paulo II,
Homilia em Zapopán"; Puebla, n. 297). Desse modo, Maria indica e inaugura, com a sua vida, um caminho novo e desafiador, capaz de integrar mística e cidadania, espiritualidade e compromisso social — enfatizam os bispos do Brasil (cf. CNBB, Com Maria, rumo ao novo milênio).
Paulo VI usou palavras de repercussão muito atual em nosso Continente: Maria é a mulher forte que conheceu a pobreza e o sofrimento, a fuga e o exílio; situações estas que não podem escapar à atenção de quem quiser dar apoio, com espírito evangélico, às energias libertadoras do homem e da sociedade
(MC, n. 37).
Sentimos nossas as afirmações dos bispos do Continente em Puebla: O povo latino-americano conhece bem tudo isso. […] A Igreja, que com nova lucidez e nova decisão quer evangelizar no fundo, na raiz, na cultura do povo, volta-se para Maria para que o Evangelho se torne mais carne, mais coração na América Latina. Esta é a hora de Maria; é preciso que ela seja, cada vez mais, a pedagoga do Evangelho na América Latina
(Puebla, n. 303).
Esse papel central de Maria tem inúmeras conseqüências também para o modo de ser Igreja. E isso pode ser constatado a partir de uma das intuições geniais de von Balthasar. Ele identificou nas várias dimensões da Igreja a continuação das experiências arquetípicas de fé daquelas pessoas que circundaram Jesus na sua vida histórica: os princípios petrino, paulino, joanino e jacobita (referentes a Pedro, Paulo, João e Tiago, respectivamente). Identificou ainda um princípio mariano, que abraça todos eles. (Não falaremos aqui desses princípios; estão muito bem descritos no presente livro). Ele mostrou também como esses princípios se relacionam entre si, especialmente o princípio petrino e o princípio mariano.
O primeiro exprime a santidade objetiva
da Igreja, ou seja, aqueles pontos institucionais de contato garantidos com o milagre original do Amor, Jesus Cristo, e com aqueles espaços
objetivos do divino e de sua vida que estão na Bíblia, nos sacramentos, no ministério, na autoridade na Igreja e assim por diante.
O segundo concentra-se na santidade subjetiva
da Igreja, no amor vivido que, dia após dia, vivifica e faz jorrar dos espaços
institucionais toda a riqueza que Deus oferece. Maria, com a sua figura no plano da Criação e da Redenção, mostra quais são os valores que mais contam, que não passarão, no Reino de Deus.
É a partir dessa intuição de von Balthasar que João Paulo II prenunciou: Na aurora do novo milênio, divisamos com alegria o surgimento desse perfil mariano da Igreja, que compendia em si o conteúdo mais profundo da renovação conciliar
.
E na sua histórica Carta Apostólica Mulieris dignitatem, o Papa afirmou ser o perfil mariano tão — se não mais — fundamental e caracterizante para a Igreja quanto o perfil apostólico e petrino, ao qual está profundamente unido
(n. 27, nota 55).
Dirigindo-se aos cardeais e aos prelados da Cúria Romana, em 1987, ele explicou — atribuindo a von Balthasar a paternidade de sua inspiração — que Maria Imaculada precede a todos, obviamente, o próprio Pedro e os apóstolos […]. Como bem disse um teólogo contemporâneo, Maria é ‘rainha dos Apóstolos’, sem pretender para si os poderes apostólicos. Ela tem outras coisas e muito mais […]. A Igreja vive desse autêntico ‘perfil mariano’, dessa ‘dimensão mariana’ […]. A ligação [entre os perfis mariano e petrino] é estreita, profunda e complementar, embora o primeiro seja anterior, tanto no desígnio de Deus quanto no tempo; e é mais alto e proeminente, mais rico de implicações pessoais e comunitárias
.
A redescoberta e o aprofundamento da essência mariana da Igreja, apresentada por este livro de Leahy, é mais do que nunca urgente e fundamental. É a condição para a que a Igreja seja o que deve ser: sacramento da união dos homens com Deus e entre si, e o faça mostrando ao mundo o seu verdadeiro e atraente semblante de sinal luminoso de uma humanidade nova, plenamente realizada.
Festa da Natividade de Maria,
8 de setembro de 2005
+ João Braz de Aviz
Arcebispo de Brasília
INTRODUÇÃO
QUE TODOS SEJAM UM
Em uma de suas últimas obras, A nossa tarefa¹, von Balthasar faz referência ao desejo maior que Jesus expressou na noite antes de morrer, na sua oração ao Pai: … a fim de que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti
(Jo 17,21)*. A oração de Jesus pela unidade revela o objetivo de toda a sua vida, qual seja, reunir-nos em unidade com Deus e entre nós. Sua oração recorda-nos que essa união é uma dádiva e não algo que podemos buscar sozinhos, por iniciativa própria. Além disso, a unidade que Jesus pede não é uniformidade, mas sim uma unidade plasmada segundo o modelo da Trindade, uma comparticipação na vida de unidade de Deus uno e trino. De fato, assim como na Trindade há três Pessoas divinas que são um, também a Igreja, que Jesus fundou como sinal e instrumento de unidade no mundo, contém múltiplas dimensões e aspectos que interagem uns com os outros em unidade. Para efetivar a realidade da unidade, a Igreja recebeu especialmente como dom dois princípios de santidade que plasmam sua vida: o princípio mariano e o princípio petrino. Esse livro é dedicado ao princípio mariano.
O termo princípio
não é definido diretamente por von Balthasar , que usa outras palavras, como perfil
, dimensão
ou aspecto
, para exprimir esse mesmo conceito. Em geral, podemos dizer que, quando ele fala de princípios na Igreja, deseja referir-se às dimensões fundamentais da natureza da Igreja. Quando recorda, por exemplo, o papel de Pedro, ele se refere àquela dimensão hierárquica e institucional da Igreja chamada de princípio petrino. Já o princípio mariano é aquela dimensão da Igreja que continua e ressoa o sim de Maria a Deus. É um sim repetido por todo o povo de Deus — leigos e clero — e ecoa por meio dele. Isso se evidencia mais particularmente na santidade de amor e na vida do Evangelho, que continua, no coração da Igreja, com o princípio petrino, como força que unifica.
O princípio mariano é um tema que encontramos já nos primeiros escritos de von Balthasar . Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, ele escreveu, por exemplo, uma obra programática, intitulada Derrubar os bastiões², na qual proclamava que, na história da humanidade (caracterizada por uma tendência para a unidade em diversas frentes), haveria de abrir-se uma nova época, uma nova era da Igreja. Antecipando o Concílio Vaticano II, von Balthasar sublinhava a necessidade de todos, na Igreja — leigos e ministros ordenados — aumentarem o amor mútuo e viverem, superando a si mesmos, voltados para Deus e para os irmãos e as irmãs do mundo, para além das limitações e restrições. Ele auspiciava uma redescoberta da natureza autêntica da catolicidade da Igreja e uma abertura verdadeira e renovada para os outros cristãos, para as outras religiões do mundo e para as pessoas de convicções diferentes. É nesse contexto que ele indica Maria.
No princípio da aventura evangélica, ele depara com a Mulher do Evangelho na pequena casa de Nazaré, onde todo o cristianismo encontra, por assim dizer, a sua centelha inspiradora. Por meio de seus escritos, von Balthasar propõe que se olhe para essa mulher, descrita nas Escrituras como um modelo para todos. Não se trata de incrementar a devoção, as festividades a ela dedicadas ou as orações particulares. Ao apontar para Maria, ele pretende nos conduzir aonde a vitalidade interior dá vida a toda a tradição da Igreja, não de modo anacrônico, mas na chamada aventura de tirar o fôlego
³.
A intenção de von Balthasar não é meramente nos levar a ver Maria como modelo de discipulado individual, válido para qualquer um de nós pessoalmente. O fato de, no Concílio Vaticano II, o capítulo sobre Maria ter sido colocado dentro da Lumen Gentium (a Constituição Dogmática sobre a Igreja) evidencia algo mais: trata-se de um marco que convida a uma renovada descoberta do princípio mariano atuante na própria vida da Igreja, de geração em geração. Ao trazê-lo à luz, von Balthasar quer estimular uma compreensão da identidade da Igreja em termos de um movimento dinâmico e bipolar entre os dois princípios de unidade que atuam no seio do povo de Deus: o princípio mariano e o princípio petrino.
A contribuição mais original e peculiar de von Balthasar
Não é exagero afirmar que a vida de von Balthasar era voltada, e não pouco, à promoção da energia espiritual explosiva de santidade
associada ao princípio mariano. Seus textos refletem essa paixão. Embora ele tenha dedicado expressamente somente dois breves ensaios a temas marianos — O Rosário (1977) e Maria para nós hoje (1987) —, o princípio mariano na Igreja é o ponto nodal de seu pensamento — como reconhece Medard Kehl —, ao redor do qual toda a sua reflexão teológica se desenvolve e flui⁴.
Também Andrew Louth observa que, embora explicitamente as referências marianas sejam até poucas e comedidas naquela que pode ser considerada uma espécie de ouverture das outras obras de von Balthasar , qual seja, O coração do mundo (1945), isso não altera a estrutura mariana fundamental da obra⁵. Longe de ser um aspecto marginal, o princípio mariano constitui o centro prospectivo da eclesiologia de von Balthasar⁶. Não é, pois, surpreendente descobrir que o primeiro artigo a fazer referência explícita ao tema de Maria em relação à Igreja foi publicado por von Balthasar em 1944⁷, e que um de seus últimos trabalhos, publicado postumamente em 1988, enfatiza o papel de Maria na dinâmica salvífica e eclesial⁸.
Inúmeros autores sentiram-se atraídos por seus escritos sobre o tema. Nesse contexto, basta mencionar: Wilhelm Link⁹, Joseph Fessio¹⁰, Medard Kehl¹¹, Achille Romani¹², Johann Roten¹³, Michel T’Joen¹⁴ e Ignace de la Potterie¹⁵. Eles consideram seu pensamento uma contribuição fundamental para a eclesiologia contemporânea. Segundo Fessio , "numa análise conclusiva, é de fato a dimensão mariana da Igreja que constitui a sua contribuição mais original e peculiar para a eclesiologia, e o seu kairós, com boa probabilidade consiste nisso"¹⁶.
O kairós em que nos encontramos é caracterizado pela transição, à luz do Concílio Vaticano II, para o início do Terceiro Milênio. Henri de Lubac , grande teólogo e admirador de von Balthasar , escreveu certa vez que a obra desse extraordinário homem de cultura
de nosso tempo é, provavelmente, o instrumento mais útil e rico de recursos para a exploração e explicitação dos tesouros do Concílio Vaticano II¹⁷. O mais alto reconhecimento disso, em relação ao princípio mariano na Igreja, provém de Mulieris dignitatem, a carta apostólica de João Paulo II sobre a dignidade da mulher, publicada em 1988: o Papa cita expressamente von Balthasar, ao se referir ao perfil mariano da Igreja¹⁸.
Questões metodológicas
Tentar escrever um livro sobre o princípio mariano na Igreja na perspectiva de von Balthasar é trabalho árduo. Quem tentou dar a conhecer seu pensamento sobre os mais variados assuntos bem sabe quanto é difícil trazer à luz a sua obra sem traí-la. Limitar-se a apenas uma parte da visão global que ele sempre procurou apresentar em cada um dos fragmentos de seus escritos, concentrar-se num único elemento, parece praticamente ir contra a metodologia de von Balthasar¹⁹. Todavia, a validade desse empreendimento é confirmada por uma palavra de apoio do próprio von Balthasar a Kossi K. Joseph Tossou , que tinha decidido sintetizar sua pneumatologia. Reconhecendo que seus escritos pneumatológicos eram uma espécie de arquipélago de fragmentos
, von Balthasar afirmou que uma obra que tentasse reuni-los seria meritória²⁰.
O presente livro pretende facilitar a viagem do leitor por um outro arquipélago de fragmentos
, desta vez, sobre o princípio mariano na Igreja. Empreenderemos uma abordagem temática, uma vez que alguns comentaristas — como Vorgrimler , Henrici , Biser e Wiederkehr — reconhecem que, na realidade, não houve deslocamentos maiores no pensamento de von Balthasar ao longo de sua vida. Nossa