net/publication/266244820
Article
CITATIONS READS
20 2,896
2 authors, including:
Amanda Rabelo
Federal Rural University of Rio de Janeiro
29 PUBLICATIONS 78 CITATIONS
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
Male Teachers in Elementary Education in the Public Schools of Rio de Janeiro-Brazil and Aveiro-Portugal View project
All content following this page was uploaded by Amanda Rabelo on 30 November 2017.
RESUMO
Este artigo tem como objetivo principal realizar um histórico de como o magistério se tornou um
“gueto” profissional feminino. Vale a pena lembrar que o mesmo foi inicialmente uma profissão
masculina, onde somente os homens estudavam e ensinavam. Portanto, estudaremos como a mulher
passou a se dedicar a esta área e como esta passou a ser vista como uma profissão feminina por
excelência, inclusive associando-a à necessidade de qualidades “femininas” como, por exemplo, a
maternidade e sensibilidade. Analisaremos também como esta área passou a se desvalorizar a partir da
inserção feminina e como as separações e discriminações efetuadas com base nas relações de gênero
se arraigaram na instituição escolar (baseadas nas condições sociais que a mulher tinha na sociedade).
Quando a mulher entra no mercado de trabalho, a noção de que ela deve ser controlada está implícita
nas atividades que ela exerce e que sempre exerceu na sociedade (as tarefas domésticas e sua
submissão ao homem), assim, mudar as relações excludentes de gênero não dependia somente da
aceitação da mulher como docente. É importante destacar que é através do magistério (hoje
considerado um trabalho feminino, por excelência) que a mulher brasileira pôde abrir caminho ao
exercício profissional, pois esta passou a ser uma das primeiras atividades profissionais dignas à
mulher e que possibilitavam conciliar com as atividades domésticas. Mas o controle e a administração
do ensino continuava sob gerência masculina. Por mais que a educação tenha passado por algumas
mudanças na prática escolar, a feminização do magistério continua se perpetuando mais e mais,
desvalorizando o papel da mulher docente ano após ano. E o homem continuou se distanciando das
salas de aulas infantis. Percebe-se como a escolha profissional acaba sendo influenciada pelas
representações existentes na sociedade, que têm suas bases na história da feminização do magistério,
que divulga que as profissões consideradas movidas pela “emoção” seriam próprias das mulheres e as
ligadas à “inteligência” seriam patrimônio exclusivo dos homens. Por fim, percebe-se como as
mulheres acabam sendo influenciadas por receber essas representações e agem de acordo com elas. Os
meandros da escolha profissional docente, as influências que as mesmas sofreram, a visão dos
atributos que a mulher teria para o magistério, são questões que devem ser pesquisadas para que haja
uma tentativa de escolha profissional por uma “paixão”, mas que esteja atrelada à luta por uma
educação melhor e não à simples aceitação de uma condição imposta socialmente. A mulher não deve
deixar de ter amor pela profissão, porém um amor que não seja “cego”, quer dizer, que não a impeça
de ver as imposições sociais para que ela se submeta, que não lute. Investir na educação é lutar pelo
possível, pela mudança dessa educação que cada vez mais quer cada um no seu “devido lugar”,
estagnado e obediente. É necessário que a subjetivação que a sociedade exerce sobre a mulher não seja
maior do que seus impulsos pessoais e a vontade de lutar por ideais. Afinal, não há coisa melhor do
que fazer do seu ofício um prazer e um modo de batalhar pelo que se deseja.
1
Doutoranda da Universidade de Aveiro – Projecto de Investigação Financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia – FCT - Portugal
6168
TRABALHO COMPLETO
Este artigo visa fazer um breve histórico bibliográfico do papel da mulher na educação,
esclarecendo que a feminização no magistério não se resume ao aspecto quantitativo das mulheres que
aumentou nos âmbitos educacionais, mas também à concepção da profissão docente na sociedade que
está sempre associada às características femininas e, por isso, está sendo cada vez mais desvalorizada.
Por isto torna-se importante refletir sobre desde quando a feminização do magistério tem acontecido,
além entender hoje os fatos que levam a essa condição e quais suas conseqüências.
Ressaltamos, de acordo com a epígrafe inicial, que a educação, durante longo tempo, era
função estritamente masculina: os alunos eram do sexo masculino e o ensino era exercido
principalmente por religiosos (por padres, como os jesuítas) e por homens que estudavam e eram
contratados como tutores pelas pessoas com melhores condições financeiras2.
Mas, após a Revolução Francesa, com a ascensão da burguesia, a mulher é chamada a
assumir o seu “papel social” na educação dos filhos (FREITAS, 2000). Porém, não é a sua entrada no
magistério que permitiu que as separações e discriminações efetuadas com base nas relações de gênero
não estivessem presentes na escola. Elas já estavam arraigadas na instituição escolar e mudar as
relações excludentes de gênero não dependia somente da aceitação da mulher como docente.
Como conseqüência da abertura do magistério às mulheres, desqualifica-se e desvaloriza-
se a mulher através do discurso da falsa igualdade dos gêneros, limitando suas qualidades
profissionais, invocando um papel feminino, um suposto “dom” de um comportamento emocional e
moral. Esse dom era considerado inadequado para outras funções do âmbito público. A mulher, assim,
fica restrita à esfera privada, pelo simples fato de ter nascido mulher e poder gerar a vida (ARCE,
2001).
A associação da atividade de magistério a um “dom” ou a uma “vocação” feminina
baseia-se em explicações que relacionam o fato de a mulher gerar em seu ventre um bebê com a
“conseqüente função materna” de cuidar de crianças; função esta que seria ligada à feminilidade, à
tarefa de educar e socializar os indivíduos durante a infância. Dessa forma, a mulher deveria seguir seu
“dom” ou “vocação” para a docência.
No Brasil, essa caracterização da mulher como educadora dos filhos não se deu de forma
imediata. Na colonização, os portugueses vieram para o Brasil trazendo seus modelos de
comportamento e dominação. Esse domínio era patriarcal, típico na cultura ocidental judaico-cristã, e
foi aperfeiçoado durante anos pelo sistema capitalista em ascensão. A sociedade patriarcal
determinava que as mulheres fossem subjugadas pelos homens: pelo pai, pelo marido e pelas regras
elaboradas por estes (FREITAS, 2000).
O paternalismo fazia com que a mulher restringisse sua atuação à esfera privada de sua
casa, e sua ação pública se limitava a participar das atividades da igreja. O impacto dessa restrição
levou a mulher a se recolher ao âmbito doméstico, à condição de mera reprodutora, tornando-se
apenas um objeto de domínio masculino.
A mulher não precisava ter boa formação, bastava-lhe aprender as primeiras letras e os
cálculos aritméticos básicos para assegurar as tarefas do lar. Numa visão muito peculiar a mulher era
2
Ver CATANI, 1997 e FREITAS, 2000.
6169
apresentada como tentação permanente que deveria ser “domada” para tornar-se uma boa mãe e para
que não desviasse o homem do caminho correto (FREITAS, 2000). Esse pensamento era baseado na
explicação bíblica da primeira mulher, Eva, ter incentivado o primeiro homem, Adão, ao pecado e, por
isso, os dois teriam sido expulsos do paraíso. Mello e Leite (2000, p. 38-39) nos mostram como houve
uma tentativa de controlar essa mulher “pecadora”:
prazer, que era associado com a memória das mulheres, deveria ser controlado. Neste sentido,
Foucault nos mostra que, desde a antiguidade, várias práticas foram desenvolvidas em torno do ato
sexual “No final das contas, vimos que o ato sexual parece ter sido considerado desde há muito tempo
como perigoso, difícil de ser dominado e custoso; a medida exata de sua prática possível e sua
inserção num regime atento foram exigidas desde há muito tempo” (2001, p. 233).
A memória era perigosa e mais ainda se viesse da mulher que era submissa ao homem. A
memória era perseguida, pois pressentia-se nela um perigo, nela se manifestava a liberdade de
pensamento tão temida pela igreja e pelo poder:
Não se poderia deixar que a memória fosse compartilhada, pois assim ela seria construída
coletivamente e teria ainda mais força contra as instituições estabelecidas. Então, deveria ser extirpada
antes de se difundir. A memória seria perigosa e, dessa forma, quem a tivesse possuiria um grande
trunfo em suas “mãos”, pois a memória é um instrumento de poder.
Assim, deixar que a mulher recriasse sua memória “solta”, ou mesmo trabalhando, era
considerado um perigo para sua integridade e para a integridade de sua família, e do homem que sobre
ela detinha o poder, pois a traição era temida. E, portanto, a mulher era subjugada à superioridade
ativa do homem, que devia controlá-la, afastando essa tentação.
Desde a Antigüidade, a mulher deveria ser controlada e submetida à moral dos homens.
Para essa moral, ela era posse de um homem, tornando-se apenas um objeto no domínio masculino,
conforme nos diz Foucault: “Trata-se de uma moral dos homens [...]. Conseqüentemente, moral viril,
onde as mulheres só aparecem a título de objetos ou no máximo como parceiras às quais convém
formar, educar e vigiar, quando as têm sob seu poder [...]” (2001, p. 24). É essa moral que perpassa a
Antigüidade e que molda a moral Moderna, tendo importantes influências na memória social.
Mesmo quando a mulher entra no mercado de trabalho, essa noção de controle está
implícita nas atividades que ela exerce. Podemos perceber isso na afirmação de Bruschini e Amado
(1988, p. 6): “De uma forma velada, o controle da sexualidade feminina justificaria, daí por diante,
que mulheres trabalhassem com crianças, num ambiente não exposto aos perigos do mundo e
protegido do contato com estranhos — especialmente os do sexo oposto.”
Assim, é através do magistério, considerado um trabalho feminino, por excelência, que a
mulher brasileira pôde abrir caminho ao exercício profissional.
Até a independência do Brasil não existia educação popular, mas depois dela o ensino,
pelo menos nos termos da lei, se tornou gratuito e público, inclusive para mulheres. Isso aconteceu a
partir da primeira lei do ensino (datada de 1827) que deu direito à mulher de se instruir (porém com
conteúdos diferenciados dos ministrados aos homens) e que admitiu o ingresso de meninas na escola
primária (BRUSCHINI e AMADO, 1988).
A partir daí a formação de professoras do sexo feminino se fez necessária, pois os tutores
deveriam ser do mesmo sexo que seus alunos. O primeiro curso de ensino normal das Américas
surgiu, então, na cidade de Niterói (RJ), em 1835, e tinha no seu estatuto alguns pré-requisitos para
quem quisesse cursá-lo: a “boa morigeração [idoneidade moral] e ter idade superior a 18 anos”
(MARTINS, 1996, p. 70).
Nessa época, o currículo do estudo feminino era diferenciado do masculino: as moças se
dedicavam à costura, ao bordado e à cozinha, enquanto os homens estudavam geometria. As mulheres
professoras eram isentas de ensinar geometria, mas essa matéria era critério para estabelecer níveis de
salário, portanto, reforçava-se com isso a diferença salarial. Assim, as mulheres tinham direito à
6171
instrução, mas essa instrução acentuava também a discriminação sexual (FREITAS, 2000). Contudo,
apesar do estudo passar a ser um direito garantido por lei, a maioria das mulheres não tinha acesso à
instrução, com exceção daquelas que pertenciam às elites e às classes ascendentes, pois a segregação
da mulher continuava presente na sociedade.
Além de tudo, às mulheres eram requisitadas condições diferenciadas que atestassem
ainda mais a sua ética e seus bons costumes, como: certidão de casamento, se casada; certidão de óbito
do cônjuge, se viúva; sentença de separação, para se avaliar o motivo que gerou a separação, no caso
da mulher separada; vestuário “decente”. A mulher só poderia exercer o magistério publico com 25
anos, salvo se ensinasse na casa dos pais e estes forem de reconhecida moralidade. Ou seja, todos
poderiam realizar o curso de formação a partir dos 18 anos, mas havia uma diferenciação na hora de
entrar no mercado de trabalho.
Essa valorização da moral tinha como objetivo tornar o ensino das mulheres voltado não
à instrução, entendida como formação intelectual, mas como uma tentativa adicional de disciplinar sua
conduta. Isso fica claro na análise de Catani (1997, p. 28):
[...] a ênfase do ensino feminino [era] nas boas maneiras, nas técnicas, na
aceitação da vigilância, na aparência, na formação moralista. Coisa
adequada quando o ensino fundamental se destinava às classes populares,
pois o que estava em jogo não era difundir as perigosas luzes do saber, mas
disciplinar as condutas e refrear a curiosidade.
Com a República (em 1889), essas pressões impulsionaram ainda mais a necessidade de
ampliação das oportunidades educacionais. Os líderes republicanos consideravam o magistério uma
profissão feminina por excelência, pois estavam influenciados pelas teorias positivistas e burguesas,
que julgavam que a mulher estava “naturalmente” dotada da capacidade para cuidar das crianças.
Esse pensamento estava aliado à necessidade de formação de professores, tendo em vista
que os homens tentavam buscar vantagens financeiras em outras áreas. Dessa forma, as mulheres,
6172
Todavia, a condução da educação não era exercida pelas mulheres3, elas apenas
lecionavam. A estruturação da mesma, os cargos administrativos e de liderança, eram geridos pelos
homens. Dessa forma, havia um grande controle sobre a atuação das professoras, inclusive sobre sua
sexualidade. A escola continuava relegando a mulher a um plano secundário, perpetuando a submissão
existente na sociedade patriarcal.
Os homens que se dedicavam à educação, no decorrer do século XX, apresentavam
facilidades de promoção na carreira do magistério e no sistema educacional em geral. Já as mulheres
tinham uma ascensão profissional muito difícil, o que as fazia continuar na carreira de professora
primária por longo tempo.
Isso acontecia também porque quem cursava o normal até a década de 1940 não podia ter
acesso aos cursos superiores. Dessa forma, as mulheres (que já eram maioria nessa área) dos institutos
normais não podiam aumentar seu estudo e, assim, tinham que continuar no magistério primário. Após
essa década abriu-se caminho para cursar alguns cursos de Filosofia, e, a partir de 1953, passou a se
estender a ascensão aos demais cursos superiores.
3
Até os dias atuais há muitos homens nos setores administrativos da educação, principalmente nos cargos mais
altos como, por exemplo, os ministros de educação.
6173
4
Concepção vigente de forma exclusiva até meados do século XX.
6174
[...] se por um lado educar e ensinar é uma profissão, por outro lado, não há
melhor meio de ensino e aprendizagem do que aquele que é exercido de um
ser humano para outro, isso também é um ato de amor. E indo mais além,
gostar desse trabalho, acreditar na educação e nela investir como indivíduo
também se configura como um ato de paixão, a paixão pelo possível [...]
Talvez resida aí a extrema ambigüidade do ato de ensinar e da presença das
mulheres no magistério (1998, p. 76).
uma escolha inerente nas mulheres pelo magistério. A memória coletiva deve ser vista não só pelo
vínculo com o poder, com seus processos de subjetivação que tentam constituir o indivíduo para
controlá-lo, e pela manutenção da tradição que quer conservar cada um “no seu local”. Se a memória
leva a esquecer as opções que não foram efetuadas e a demarcar as eleitas, é preciso que as alternativas
segregadas da memória sejam lembradas ou que as escolhidas sejam objeto de uma maior reflexão,
baseada na luta pela formação de uma memória não subjetivada ou singularizada.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, J. S. de. Mulheres na escola: Algumas reflexões sobre o magistério feminino. Cadernos
de Pesquisa. São Paulo, n. 96, p. 71-78, fev., 1996.
______. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998.
BRUSCHINI, C.; AMADO, T. Estudos sobre mulher e educação. Cadernos de Pesquisa. São Paulo,
n. 64, p. 4-13, fev., 1988.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. 9a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2001.
LOURO, G. Gênero e Magistério: Identidade, História, Representação. In: CATANI, D. et al. (org.)
Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras Editora, 1997.
MARTINS, A. Dos anos dourados aos anos de zinco: análise histórico-cultural da formação do
educador no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.
MELLO, J.C. LEITE, E. Discursos velados: memória e cotidianidade feminina. In: LEMOS, M.
T.T.B.; MORAES, N.A. de. (org.) Memória, Identidade e Representações. Rio de Janeiro: 7 letras,
2000, p. 38-42.