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Aspectos Formativos
Cotidiano e Vida Material no Império (1822 – 1889)
Revisão Textual:
Prof.ª Dra. Luciene Oliveira da Costa Granadeiro
Cotidiano e Vida Material
no Império (1822 – 1889)
OBJETIVOS
DE APRENDIZADO
• Apresentar as questões do cotidiano e da vida material do período do Império, Primeiro e
Segundo Reinados, no intuito de analisar questões mais abrangentes para melhor compre-
ender a sociedade da época e suas transformações;
• Apresentar a cultura material, as alterações urbanas e arquitetônicas identificando mudanças
históricas advindas com as novas possibilidades econômicas e políticas do Império;
• Apresentar a vida cotidiana, no que diz respeito aos bens identificados nos inventários, estes
também apresentam sentidos diversos, conforme o período da sociedade e suas necessidades
de representação e sociabilidade;
• Apresentar a história da alimentação, entender o que se come e como se come em uma
sociedade, consistindo no entendimento mais profundo sobre as questões culturais;
• Apresentar a representação desta sociedade, tal como realizada por artistas e fotógrafos
do século XIX, indentificando olhares externos sobre a mesma, de descrições e críticas, que
auxiliam a elaborar uma interpretação mais reflexiva sobre o Império e o entendimento que
os seus protagonistas tinham de si mesmos e de sua história.
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retirar o “abafamento” das ruas, deixando entrar “grandes colunas de ar”, além de facilitar
a circulação das pessoas.
O Rio de Janeiro é uma cidade que passou por vários períodos de transformação, resgatados
e apresentados em pranchas digitalizadas que nos mostram as profundas mudanças que
a cidade vivenciou desde o período colonial até a Republica. Confira no link a seguir mais
sobre o trabalho do artista gráfico Carlos Augusto Nunes Pereira, o Guta!
Disponível em: https://youtu.be/whz-NltoUX8
No Brasil, a tradição clássica não surgiu após a chegada da Família Real ou com a de-
nominada “missão francesa” de 1816. Tais fatos foram certamente agentes catalizadores
do processo de implantação desse repertório arquitetônico que, significativamente, só se
difundiu após a independência. No entanto, desde o período colonial existiram exemplares
com clara concepção neoclássica, entre eles a Casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto,
como vimos, a Igreja de Nossa Senhora da Candelária e o Real Teatro São João, ambos
no Rio de Janeiro. A Candelária, reconstruída a partir de projeto do engenheiro militar
Francisco João Roscio apresenta filiação direta com o Convento de Mafra (1717 – 1720),
de João Frederico Ludovice, que já revelava a transição do barroco ao neoclassicismo em
Portugal (MENDES et al., 2011).
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A maioria das obras, já que foram ocupadas em regime de urgência, foram adaptadas,
por vezes, tentando introduzir algum novo elemento decorativo modernizador, como uma
platibanda, ornatos de ferro coroando a fachada, entre outros. A arquitetura produzida
para o governo e a nobreza foi basicamente influenciada por dois arquitetos franceses:
Grandjean de Montigny, da Escola de Belas Artes e Pierre Pézerat, da Politécnica de Paris.
O método utilizado por Montigny era inspirado na composição de grandes obras clássicas
do passado. Mas muitas dessas edificações eram criticadas pelos contemporâneos que já
tinham como preocupação os problemas de estabilidade, setorização e iluminação detec-
tados nos edifícios. Além disso, havia a maior valorização de aspectos relacionados à fun-
cionalidade e construção do que questões compositivas e estilísticas (CARVALHO, 2008).
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Figura 2 – Palácio da Marquesa de Santos em São Cristóvão, RJ
Fonte: Wikimedia Commons
Após algumas experiências com o café no século XVIII, a planta que dá origem aos
preciosos grãos foi plantada na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, mas ainda não apre-
sentando resultados satisfatórios. Apenas em meados do século XIX, com a ocupação do
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Vale do Paraíba, a cultura do café tornou-se expressiva, farta na produção e nos lucros ela
foi um dos símbolos mais importantes do Império. O “ciclo cafeeiro” firmou-se e muitas
fazendas de café foram construídas. Muitas vilas e cidades surgiram enquanto pontos de
reunião daquele novo segmento aristocrático que despontava: os “barões do café”. Em
conjunto com essas transformações econômicas e sociais, era preciso viabilizar o trans-
porte da produção cafeeira aos portos, além da necessidade de interligar o vasto território
nacional recém-consolidado a partir da Independência (MENDES et al., 2011).
Os primeiros agricultores do Vale do Paraíba, na maioria das vezes, eram homens rudes,
ex-garimpeiros, pequenos comerciantes oriundos das Minas Gerais, e construíam simples
abrigos rudimentares, anexos a depósitos e plantações, numa empírica ocupação diante das
incertezas dos resultados. À medida que os lucros chegaram e delineava-se o sucesso desse
investimento, o agenciamento de novas construções e de reformas das antigas se fazia ne-
cessário e iniciavam-se os modelos que seriam consagrados, posteriormente, nessa arquite-
tura de fazendas de café do século XIX. Dos primeiros abrigos junto às tulhas e às reduzidas
plantações, evoluiu-se para uma implantação que se tornou definitiva: ao fundo de um vale
de grandes dimensões, com edificações dispostas em quadras retangulares em torno de um
grande pátio, espaço de lavagem e secagem dos grãos (MENDES et al., 2011).
No auge do ciclo do café, durante o Segundo Reinado, era possível encontrar muitas
fazendas em condições de luxo e conforto que superavam as casas mais ricas das cidades.
Tudo o que pudesse ser transportado, faria parte de seu repertório construtivo e decorati-
vo: papéis de parede, mobiliário requintado, cristal, louças, pinturas que traziam a Europa
para o Brasil, que simulavam janelas abertas para outras paisagens que não as das pró-
prias fazendas (MENDES et al., 2011).
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As plantas das fazendas diferiam em números de aposentos, porém, mantinham a
setorização básica herdada dos moldes coloniais, o partido aberto, que separava o traba-
lho da habitação, e que agora incluía uma questão a mais: o social. Dessa forma, havia
uma área para receber, associada diretamente ao exterior, às vezes, por uma generosa
varanda que aos poucos foi perdendo espaço, ou um setor íntimo, mais aconchegante.
Mas a tradição das alcovas foi mantida, e o setor de serviços, com a cozinha aos fundos.
À medida que o proprietário enriquecia e a família aumentava, o espaço de moradia
servia para refletir essa opulência, e ia sendo modificado, com mais salas, biblioteca,
escritórios, dormitórios com camarinhas e saletas, grandes cozinhas e despensas, apo-
sentos de escravos (MENDES et al., 2011)
O segundo andar era destinado às atividades mais nobres, sociais e de habitação, enquan-
to o térreo era destinado aos serviços. Em muitos exemplares, podiam ser verificados pátios
internos, cercados de galerias e corredores envidraçados, ou mesmo confortáveis varandas
alpendradas fechadas, além de jardins de inverno, que vieram com a europeização dos cos-
tumes. As antigas paredes brancas agora recebiam cores, amarelo, azul, rosa e enquadra-
mento dos vãos em pedra ou argamassa pintada e esquadrias com cores combinadas. Papéis
de parede revestiam a taipa ou o adobe dos salões. Em alguns exemplares do final do século
XIX, é possível encontrar estruturas metálicas, criando varandas e alpendres.
Sobre as fachadas, não é possível estabelecer um padrão adotado pelas diversas se-
des, distribuídas geograficamente por cenários tão distintos. A maioria herdou, em seus
primórdios, elementos utilizados pelas fazendas e engenhos coloniais: pavimento térreo
destinado ao serviço, composto de vãos rasgados na alvenaria, que suportava o peso
de uma varanda superior para onde convergiam os acessos à moradia. A edificação era
arrematada por generosos beirais a escoar a água constante das chuvas tropicais. Gra-
dativamente, esses partidos se alteraram, incluindo inovações estilísticas, encomendadas
a arquitetos (MENDES et al., 2011).
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O “modo mineiro” foi mais utilizado nas casas-grandes, nas quais aproveitava-se o
espaço resultante sob o piso – o porão – como depósito ou moradia de escravos. O
modo paulista foi mais utilizado nas demais edificações, como senzalas, casas dos ad-
ministradores, entre outros. Para a implantação do núcleo central das fazendas, faziam-
-se grandes platôs, seguros por sólidos muros de arrimo de pedras ou tijolos, em toda
a área destinada à locação dos edifícios, que apresentava uma lógica própria: moradia
dos proprietários, edificações de beneficiamento de café, tulhas, terreiros, habitação dos
trabalhadores (BENINCASA, 2003).
A questão é que, em São Paulo, também é possível encontrar fazendas nas quais a
água não estava disponível próximo às áreas das edificações, já que canais de irrigação,
a céu aberto ou subterrâneos, eram construídos para atender essa demanda. Geral-
mente, os canais terminavam em um grande reservatório construído em alvenaria de
pedra ou de tijolos, situado em cota mais alta que as demais edificações, possibilitando
a criação e o abastecimento de vários canais secundários que seguiam em direção às
moradias principais, terreiros, pomar, hortas, moinhos, monjolos, currais, estábulos, e
outras instalações (BENINCASA, 2003).
Mesmo depois da chegada das ferrovias, quando se tornou mais cômoda a aquisição
de alimentos por via das cidades, não se abandonou de todo a sua produção nas fazen-
das. A tradição da horta e do pomar manteve-se, revestindo-se, porém, de um caráter
mais refinado e culto. No pomar, os fazendeiros plantavam mudas de variedades de fru-
tas e plantas exóticas, obtidas em suas viagens, exibidas com orgulho, enquanto prova
de ilustração (BENINCASA, 2003).
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Faça um tour virtual pelo Museu do Café! Localizado em Santos – SP no prédio da antiga
Bolsa Oficial do Café, o Museu possui um acervo museológico, bibliográfico e arquivístico
que conta a história do café no Brasil a partir de objetos, fotografias e documentos, entre
muitos outros vestígios. Conheça o lugar onde muitas decisões importantes sobre o comér-
cio do café foram realizadas, no link, disponível em: https://bit.ly/3CUMXHW
A outra dimensão foi considerada por Braudel como uma “zona de opacidade”, difícil
de se observar por falta de documentação histórica; ela seria a “outra metade informal da
atividade econômica, a da autossuficiência, da troca dos produtos e dos serviços num raio
muito curto”. Essa atividade econômica foi denominada por Braudel como civilização ou
vida material (BRAUDEL, 1995, p. 12). Durante muito tempo, essa “atividade de base”
que se encontra por toda a parte e se estende pelo mercado apresentando um “volume
fantástico”, nas palavras de Braudel, obteve do estudo da história um interesse limitado.
Porém, a partir de 1929 com a École des Annales e sua revista Annales d’Histoire
Économique et Sociale, o domínio do historiador foi amplamente aberto, e nele intro-
duzido a cultura material. Fernand Braudel, membro da segunda geração dos Annales,
foi o autor da primeira grande síntese sobre a história da cultura material, “Civilização
Material, Economia e Capitalismo – séculos. XV a XVIII”, escrita entre 1967 e 1979
(PESEZ, 1993).
Contudo, segundo Jean-Marie Pesez, é preciso admitir que a vida material fez um in-
gresso ainda bastante tímido na história, pois ela ainda não soube forjar seus conceitos,
nem desenvolver todas as suas implicações. Ainda segundo o autor, as únicas premissas
que podemos reter dos estudos realizados sobre a história da civilização material, são
aquelas relacionadas com as ideias sobre a cultura material enquanto uma história da
maioria. Além disso, a história da civilização material permite a compreensão da rela-
ção entre vida material e vida econômica, “intimamente ligadas e nitidamente distintas”
(PESEZ, 1993, p. 184).
Para Peter Burke, ao apresentar os pontos fortes e fracos da Nova História – a terceira
geração dos Annales – certos problemas são identificados quando se trata do estudo de
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novas fontes e novos métodos para as análises históricas. Segundo o autor, as novas pergun-
tas elaboradas buscavam outros tipos de fontes até o momento não explorados. Especifica-
mente no caso da cultura material, Burke considerou que seu estudo é baseado menos nos
artefatos do que nas fontes literárias. Podemos citar como exemplo, os relatos dos viajantes
e os inventários de propriedades, os quais ainda precisam de uma sofisticação crítica para
sua leitura que tem sido praticada também pelos estudiosos dos testemunhos orais e icono-
gráficos (BURKE, 1992).
Todavia, para Peter Burke, apesar das dificuldades encontradas com a documenta-
ção, as descrições oferecidas pelos viajantes ou pelos inventários podem esclarecer pon-
tos sobre “a vida social dos objetos – ou mais exatamente [...] a vida social dos grupos,
revelada por seu uso dos objetos” (BURKE, 1992, p. 29). Dessa forma, como esclareceu
Pesez, apesar dos estudos relacionados aos usos dos objetos serem considerados muitas
vezes como “retórica da curiosidade”, nem por isso a cultura material se mostrará me-
nos necessária, “porque apresenta o interesse de reintroduzir o homem na história por
intermédio da vivência material” (PESEZ, 1993, p. 210).
De acordo com o debate sobre as novas formas da história e do estudo da vida mate-
rial a partir de novas fontes, estudar a “vida social dos objetos” e “reintroduzir o homem
na história por intermédio da vivência material”, constituem elementos indispensáveis
para compreensão do significado dos bens materiais. Os Inventários e Testamentos
constituíram documentos essenciais para a realização de uma análise dos padrões de
vida devido ao caráter descritivo da vida material que eles encerram. Além disso, por
meio do caráter serial dessa documentação, é possível recuperar vários personagens que
em conjunto formam grupos sociais (FRAGOSO; PILTZER, 1988).
A descrição dos bens presente nas avaliações nos possibilita “compreender e distin-
guir a condição de vida dos inventariados e de seus familiares”. Também possibilita a
análise e o estudo das condições da vida social e econômica da época, além de oferecer
“material precioso para o estudo [...] da composição da família [...] e da evolução do nível
de vida daqueles nossos antepassados” (RIBEIRO, 1948, p. 19). Essa documentação
apresenta duas partes: o testamento e o inventário. O testamento, elaborado antes da
morte do inventariado, correspondia às últimas designações em vida sobre o destino de
seus bens, de seus índios, a enumeração de alguns bens e dívidas, e o principal: suas
disposições após a morte – número de missas e preferências para o acompanhamento
e sepultamento do corpo. A partir do estudo dos testamentos, podemos analisar alguns
aspectos da percepção de mundo do testador.
O inventário, por sua vez, correspondia ao levantamento dos bens de uma pessoa
após a sua morte, visando a “uma exata demonstração da situação econômica [...] a fim
de serem apurados os resultados que irão ser objeto da partilha”. No inventário, os bens
são discriminados em móveis – os utensílios – e imóveis, ou de raiz – as casas, terrenos
e roças. Os bens móveis em especial permitem precisar a diferença social no interior da
sociedade, e os bens imóveis indicam as atividades desenvolvidas pelos indivíduos e as
possibilidades de rendimento ao serem avaliados no local em que se situam. Os inven-
tários e testamentos também constituem o “testemunho de uma realidade complexa”
e permitem, através de sua análise, “compreender as mudanças nas formas de riqueza
social” (CREDDO, 1996, p. 11).
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Vale lembrar que, nos inventários, também encontramos quitações de dívidas, leilões
de bens, questões de tutoria de órfãos e averiguações acerca do cumprimento dos le-
gados. O formato dessa documentação sofreu poucas transformações no correr de três
séculos, entre o XVII e o XIX, proporcionando o mesmo tipo de informação e a pos-
sibilidade de detectar mudanças no cotidiano do uso dos objetos. O uso dos bens para
dotes de casamentos também foi um item muito presente nos inventários e testamentos,
que sofreu alterações com o passar dos séculos, o que demonstra alteração da mesma
forma no conceito de propriedade e no modo como se adquirem e conservam os bens
(NAZZARI, 2001).
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Figura 4 – Trajes femininos do início do século XIX (Roque Gameiro, Quadros da História de Portugal, 1917)
Fonte: Wikimedia Commons
Uma multidão de caixeiros viajantes passou a percorrer várias áreas para levar as
novidades europeias, que haviam se consagrado na Corte do Rio de Janeiro. Sedas
espessas francesas, cambraias finíssimas de linho ou algodão e incontáveis casemiras
de lã inglesa, rendas e bordados de Flandres e da Irlanda, chapéus de feltro e seda, fitas
e pentes para cabelos, cintos, sapatos, botas e botinas eram consumidos com avidez e
compunham os artigos mais luxuosos que passaram a percorrer as estradas do interior,
em direção às ricas fazendas de café ou engenhos de açúcar (SETÚBAL, 2008).
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No canal do Youtube “A modista do Desterro”, a moda brasileira do século XIX é desvendada
a partir de exemplares de revistas de moda e jornais femininos, que republicavam no Brasil
as tendências da moda europeia. No entanto, o tão comentado atraso da moda brasileira
com relação aos costumes da moda na Europa não era tão grande assim... Descubra o por-
quê no link, disponível em: https://youtu.be/IoV-DuSD9nk
A moda napoleônica masculina que também dominava Portugal daria espaço aos
padrões ingleses mais sóbrios rígidos e inspirados em roupas militares ou de montaria,
lãs cada vez mais escuras, chapéus contidos, sapatos escuros e sóbrios. Os excessos de
cor, plumas e perucas caíram em desuso com o passar do século, quanto às mulheres,
a moda dos vestidos leves e acinturados sob o busto, mais simples, ornados com rendas
e com muitas joias. A partir das décadas de 1860, as imensas saias balão, armadas com
hastes de metal para deixar as saias rodadas. A partir de 1880, a silhueta feminina vol-
ta a ser esguia, com espartilhos e corpetes muito justos, acentuando o busto, bastante
comuns até a Primeira Guerra Mundial. Influências trazidas de Portugal para o Brasil
(SETÚBAL, 2008).
Os objetos mais comuns nas residências eram as salvas (espécie de prato ou bacia
amplo e raso), pratos e talheres lisos ou com ornamentação barroca. Já as camadas po-
pulares se contentavam com objetos de estanho e madeira. Porcelanas orientais e louças
europeias, praticamente inexistentes no período colonial, tornam-se abundantes no XIX.
Nas cozinhas, eram comuns os tachos, caçarolas, caldeiras, caldeirões e frigideiras de me-
tais como o cobre e o ferro, além de muitos recipientes de cerâmica (SETÚBAL, 2008).
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Nas casas aristocráticas, a sala de visitas era o espaço onde os anfitriões re-
cepcionavam seus amigos. Construída na parte frontal da residência, nesse
cômodo eram expostos os móveis mais luxuosos e elegantes. A forma de
disposição das cadeiras e dos sofás induzia implicitamente a um caráter
de distinção e hierarquia. O arranjo dos móveis formava um U, ficando a
poltrona de encosto alto e com braços de uso do chefe da casa em uma das
extremidades, ladeado por um sofá, canapé ou cadeiras de palhinha sem
braços. A esposa sentava-se à direita de seu marido [...] havia cadeiras para
todos os convidados e familiares. (ABRAHÃO, 2010, pp. 105-106)
Nas salas, cristaleiras e aparadores-guarda-louça eram dispostos nas salas de jantar, guar-
necendo as paredes que cercavam as longas mesas para mais de uma dúzia de pessoas.
Pelos vidros nas portas desses móveis, muitas vezes lapidados com delicados motivos florais
ou com o monograma do proprietário, as famílias podiam ostentar a louça e as porcelanas,
bem como os cristais e serviços de chá em prata. A antiga primazia mantida pela porcelana
asiática na Época Moderna, quando era importada com enorme custo pelo Ocidente, foi
profundamente abalada pela fabricação de louça e também de porcelana na Europa, com-
pradas abundantemente pelos fazendeiros de café (SETÚBAL, 2008).
Muito mais cara do que a louça, a porcelana era feita de uma mistura de caulim, uma
substância terrosa esbranquiçada, mais quartzo e feldspato, que endurece quando cozida
e se torna translúcida. Difere, portanto, da faiança, que é opaca. Os fazendeiros de café
paulistas estiveram entre os grandes consumidores brasileiros da porcelana francesa;
muito disputadas, essas porcelanas indicam claramente a rápida sintonia entre os hábi-
tos que se queria implantar nas fazendas e sobrados ou palacetes urbanos com aqueles
costumes das elites europeias do Oitocentos. A nova sociabilidade dos salões, que a
projeção econômica e social exigia de muitos rudes produtores de café, era alimentada
por um rol de consumo sofisticado das elites sociais que existiu antes da Primeira Guerra
Mundial (SETÚBAL, 2008).
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Nas cozinhas das famílias abastadas, amplas e espaçosas, circulavam apenas os mem-
bros das famílias e os serviçais. Tachos de cobre, pilão de mão, gamelas, raladores, penei-
ras, colheres de pau, alguidares, pratos e talheres de uso diário eram utensílios indispensá-
veis nas cozinhas. Além do fogão a lenha e, em algumas residências, também era utilizado
o forno de barro para torrar grãos e para os assados, pães e biscoitos. Entre o final do
século XIX e o início do XX, as cozinhas deixariam de ser mal cheirosas e feias para se
tornarem belas, limpas e claras. Ocorreram modificações nos utensílios, passou a receber
louças vidradas, faianças portuguesas e inglesas, além de utensílios como batedeira de
ovos e de manteiga manuais e o moinho de café substituindo o pilão (ABRAHÃO, 2010).
Todos esses utensílios eram descritos nos inventários, tanto quanto nos séculos ante-
riores, ao final do XIX demonstrando as novidades como chocolateira, fogões de ferro
fundido e toda a “bateria” ou “trem” de cozinha. Ambientes dos cheiros e dos sabores,
as cozinhas desde os tempos coloniais tornaram-se espaços da transmissão das tradi-
ções alimentares, que, no caso brasileiro, contou com o rico entrelaçamento de “saberes,
sabores e paladares de várias culturas” (ABRAHÃO, 2010, p.132).
Os dados dos inventários demonstram que o interior das casas se transformou confor-
me as cidades foram vivenciando crescimento econômico, bem como o significado social
dos bens. Dessa forma, os estratos intermediários da sociedade das sociedades seguiam os
mesmos padrões comportamentais das elites pois desejavam fazer parte dela, frequentar
os seus salões. Tais mudanças na cultura material e nos hábitos não alcançaram todos os
estratos da sociedade, mas é certo que, no século XIX, o cotidiano já havia mudado em
vários sentidos se comparado ao período colonial, mesmo que não tenha ocorrido na
mesma intensidade ou velocidade. O mundo do café produziu seu impacto, sentido em
maior ou menor intensidade pelas pessoas dependendo da sua relação com este mundo.
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do XIX, são examinadas, é notável a variedade de seus moradores, assim como a sua
estreita e multifacetada interconectividade (GRAHAM, 2013).
Escravos e livres, negros e brancos, mulheres e homens, pobres e não tão pobres rela-
cionavam-se entre si, simultaneamente exemplificando a ordem hierarquizada da sociedade,
deixando de ver nessas relações apenas a dicotomia exploradores e explorados, a partir da
compreensão de que todos são serem humanos complexos, com múltiplas preocupações e
relações variadas, ainda que alguns fossem privilegiados e muitos severamente oprimidos.
“Essas pessoas ocupavam posições sociais num continuum, e não em grupos separados de
maneira nítida”. Nas práticas reais, há categorias em que as pessoas necessariamente não
viam a si mesmas como pertencentes a elas, o que significa que as relações socias era muito
mais complexas do que imaginado (GRAHAM, 2013, p. 23). No entanto, havia muitas ma-
neiras de diferenciar-se socialmente, uma das mais comuns era pelos bens materiais, o que
inclui a possibilidade financeira de consumir alimentos caros.
A riqueza proporcionada pelo cultivo do café em vastas áreas do sudeste acabou por
afetar também as práticas alimentares. No que diz respeito às bebidas, o café reinava,
mas também o mate era consumido em muitas regiões. Além da infusão do mate, o chá
oriental também teve seu espaço, a relevância das relações com a Inglaterra no século
XIX também foi responsável pela introdução do chá como prática de sociabilidade em
todo o Ocidente. Outros itens relacionados aos momentos de sociabilidade relativos às
mesas e os momentos de alimentar-se eram os doces.
Alguns vindos dos tempos coloniais continuaram a serem consumidos, doces de fru-
tas como marmelada, goiabada e bananada, doces de tubérculos, como abóbora e bata-
ta-doce, ou doces de origem portuguesa como a ambrosia, feito com gemas queimadas.
Bolos de arroz, bolinhos de chuva, arroz-doce, biscoitos de polvilho, pão de ló, cremes
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de ovos, que permaneceram nas mesas e nos cadernos de receitas do século XIX, só
foram substituídos por produtos industrializados no século XX (SETÚBAL, 2008).
No que diz respeito aos alimentos salgados, o tripé colonial mandioca, carne seca e
feijão continuou a compor a dieta principal da maioria da população, mas também passou
a dividir espaço com muitas novidades que foram introduzidas na culinária tanto pela eu-
ropeização das elites quanto pela imigração. Os pescados de água doce, as carnes secas
ou de caça, o cuscuz, o quibebe (bolo de carne seca e abóbora) e as farinhas tradicionais
passaram a perder espaço nas mesas dos fazendeiros em relação aos produtos importa-
dos, sobretudo, após as ferrovias conectarem o interior com os portos (SETÚBAL, 2008).
Em São Paulo, houve uma presença massiva de imigrantes a partir de 1860 que
contribuíram no gosto alimentar dessa região, a partir de uma combinação de gostos
da Itália, Japão, Sírios e Libaneses, em uma demonstração do paladar multiétnico que
acabou por tomar conta das cidades paulistas entre os séculos XIX e XX, dessa forma:
Ainda em São Paulo, havia lugares simples que faziam de maneira artesanal não
apenas o café, mas também os acompanhamentos, tais como quitutes, bolos de fubá,
broinhas de polvilho e bolinhos de tapioca. Esses locais passaram a dividir espaço no
último quartel do século XIX com novas casas mais sofisticadas nas quais eram servidos
junto com o café docinhos franceses, bombons, sorvetes de chocolate, pudins caramela-
dos e pão com manteiga, consumida apenas por aqueles que podiam pagar pelos altos
preços do trigo e da manteiga importada (MONTELEONE, 2010).
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Ouça as histórias dos descendentes de italianos de São Paulo contando sobre as receitas e
costumes alimentares que passaram de geração para geração.
Disponível em: https://youtu.be/SQEaO2hNcL8
Tomar café nesses locais não significava apenas sorver o líquido. O café e o local
onde ele era consumido tornaram-se indissociáveis, estimulando as conversas sobre o
cotidiano e as discussões entre estudantes, políticos, artistas, negociantes e empregados
do comércio. À moda europeia, os estabelecimentos brasileiros adotaram um ar sofisti-
cado, mas continuaram como locais de difusão das notícias e de debates. A introdução
das máquinas já no início do século XIX criou os expressos, a princípio recebidos com
reservas (MONTELEONE, 2010).
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para geração, a partir dos cadernos de receitas escritos pelas senhoras. A sociabilidade
praticada pela elite por certo não chegou aos lares dos demais estratos da sociedade. As
festas para as camadas mais pobres resumiam-se às festividades religiosas, aos eventos
políticos, aos enterros de personalidades e às suas reuniões de família (ABRAHÃO, 2010).
No entanto, eram essas pessoas das camadas mais pobres, que, de fato, cozinhavam,
em conjunto com as escravas da elite. Qualquer refeição era resultado de horas de tra-
balho, segundo o relato de alguns viajantes. O mais simples feijão tinha que ser posto a
secar, ser batido, abanado, catado antes de ir ao fogo. O café depois de colhido, tinha que
secar ao sol, ser abanado, limpo e depois torrado e moído. Polvilho e fubá, muito usados
no lugar do trigo, exigiam ralação de mandioca, depuração e secagem do polvilho, ou a
moagem do milho realizada com pesadas mós de pedra. A conservação da carne também
dava trabalho: retalhavam-se as peças que eram postas a secar ao sol, ou fritas. A banha
era recolhida e armazenada para utilização em diversas receitas (PRIORI, 2016).
Em Síntese
As novas tecnologias das cozinhas oitocentistas não apenas mudaram os hábitos ali-
mentares, mas também alteraram as características do trabalho doméstico relativo a
esta atividade, que sempre havia pertencido aos escravos].
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mais pobres, modos grosseiros, tais como o comer com as mãos e sonoros arrotos ao
final das refeições, lambuzando-se com a carne seca, o feijão, a farinha de mandioca,
o arroz, o pão o angu, alguns peixes, enquanto alimentação exclusiva de boa parte da
população (PRIORI, 2016).
Em contraste com as elites, pelas quais eram importados muitos produtos e os pratos
eram sofisticados, incluindo “faisão assado”, “línguas de rouxinol”, “perdiz à milanesa”, en-
tre outros acepipes frios e delicados, verduras, cremes e natas, além dos bombons france-
ses, além de muitas regras de etiqueta e manuais de boas maneiras. No almoço, iam para
as mesas todas as comidas, inclusive as compoteiras de doces, os licores, as garrafas de
vinho e as moringas d´água. A refeição tinha início com pratos quentes, assados antes dos
peixes, entradas frias com embutidos apenas após 1870, vinho do porto ou café encerrava
a refeição. As novidades gastronômicas incluíam whisky, gin, presunto, salmão, queijos e
manteiga importados, além de frutas cristalizadas (PRIORI, 2016).
A Fotografia e a Pintura do
Cotidiano: Retratos de Historicidade
Vivermos em um mundo perpassado por imagens, cercados e dominados por elas.
Imagens nos fascinam, povoam a memória que remete ao passado, elas também ocu-
pam o nosso universo mental quando ativamos nossa capacidade de criar, transformar
e pensar em mundos diferentes daqueles em que vivemos. As imagens são frutos da
ação humana, que interpreta e recria o mundo como representação, elas são visuais e
carregam consigo essa condição especial que se realiza no plano dos sentidos, são, pois,
traços de uma experiência sensorial e emotiva (PESAVENTO, 2008).
Mas, para além da instância das sensações que produzem o efeito visual, as imagens
são mentais, pois são fruto de uma percepção, o que nos remete aos processos da esfera
cognitiva de reconhecimento, identificação, classificação e atribuição de significados. As
imagens apreendidas pela vista recebem uma carga de sentido que as permite perdurar
na memória, podendo ser recuperadas pelo pensamento criando, assim, uma memória
de imagens, constituída pelas representações visuais e mentais do mundo, transmitindo
as tensões, conflitos e a base dos comportamentos sociais (PESAVENTO, 2008).
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UNIDADE Cotidiano e Vida Material no Império (1822 – 1889)
Nesse sentido, a fotografia introduziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do
mundo moderno. Ela transformou o modo como as sociedades passaram a perceber e lem-
brar de suas próprias realidades (KOSSOY, 2001). Mas, antes da fotografia, que é um invento
contemporâneo do século XIX, já existiam diversas tentativas de apreensão da realidade por
parte da iconografia, mais especificamente em desenhos e pinturas. Aproximações podem
ser realizadas entre esses dois momentos quando tomamos ciência de que intencionalidades
estão presentes tanto no ato de retratar/pintar, quanto no ato de fotografar.
Com relação aos desenhos e pinturas da era moderna, a história do olhar sobre as
populações fora da Europa começou no continente sul-americano, sendo a obra de Frans
Post a contribuição mais marcante do período colonial para o conhecimento por imagens
da realidade brasileira. Mas é preciso reconhecer que, apesar de Post, durante os primei-
ros séculos dessa exploração, os preconceitos religiosos e culturais dominantes não deixa-
ram muito lugar à investigação precisa, ou seja, a um olhar científico. A partir do século
XVIII, houve um avanço com a multiplicação das viagens de exploração, nas quais havia
se difundido a tradição própria aos marinheiros de longo curso de escrever diários sobre
as populações, lugares, flora e fauna das terras percorridas (LEENHARDT, 2008).
Além disso, havia uma questão estética que precisava lidar entre a visão tradicional
do ensino acadêmico, ainda sob as regras do neoclassicismo, e a exigência de exatidão
que se tinha desenvolvido por ocasião das expedições. Essas expedições foram, na
verdade, ocasião de feliz encontro entre artistas, formados no desenho e na pintura nas
academias de belas artes e dos desenhistas científicos habituados à disciplina descritiva
da botânica ou da zoologia (LEENHARDT, 2008).
Do mesmo modo que as perspectivas do mundo físico e natural dos trópicos, as ima-
gens que os estrangeiros construíram das gentes do Brasil ganharam os seus contornos
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básicos durante o período colonial. As narrativas oitocentistas, precisamente aquelas fei-
tas depois da abertura do país à visitação e à permanência dos estrangeiros, iniciada em
1808, incluem mais riqueza de detalhes nas descrições sobre as gentes mencionadas.
Entre os que desembarcam pouco depois da abertura dos portos e permanecem longos
períodos em terras brasileiras, é comum a percepção de que, dia após dia, o brasileiro,
graças ao contato cada vez mais próximo com os “civilizados” hábitos e costumes da Eu-
ropa – se tornava mais e mais distante da “selvageria americana” (FRANÇA, 2010, p. 10).
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UNIDADE Cotidiano e Vida Material no Império (1822 – 1889)
na Europa antes de partir para o Brasil em 1816. Os desenhos elaborados por Debret,
utilizados na obra Viagem pitoresca foram escolhidos por ele após sua volta à França,
e o texto é redigido a partir das figuras, em linguagem de relatório, para a publicação
em fascículos entre 1827 e 1835.
Figura 7 – Jean Baptiste Debret – Lavadeiras do Rio das Laranjeiras, 1826 (detalhe)
Fonte: Wikimedia Commons
Existem várias afinidades entre o livro de Debret e o de Johann Moritz Rugendas, in-
titulado Viagem pitoresca ao Brasil (1835), principalmente no que diz respeito ao tema
central: o espetáculo natural vivido pelo viajante e a vida humana em sociedade a partir
de um ponto de vista que pretende ser objetivo. “Não resta dúvida que os artistas reali-
zaram empréstimos da prática científica para a configuração de cenas da vida humana
na floresta, da sociabilidade urbana, das atividades rurais”. Se existe uma diferença entre
as concepções dos artistas, é porque, para Rugendas, “a paisagem natural é a própria
instância particularizadora que define o homem local. Na percepção de Debret, são as
interrelações sociais que constituem o lugar, e o espaço não passa de cenário para o
encontro e o confronto da sociedade” (BELUZZO, 1994, p. 76).
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dominam as figuras humanas ambientadas no seu próprio habitat, ou articuladas pela
ação que narra algum costume, lembrando que os textos do Viagem pitoresca não são
de autoria de Rugendas, mas sim baseados em cartas suas reescritas em tom jornalístico
(BELUZZO, 1994, p. 76).
Rugendas possuía outro diferencial que explica a sua associação mais direta à paisagem
natural; a participação nos preparativos e, nos primeiros meses da expedição do barão
Langsdorff, entre os anos de 1822 e 1825, contando um período de quatro meses em
que o artista deixou o acampamento que ficava em uma fazenda, a dois dias em barco
e a cavalo do Rio de Janeiro para onde se dirigiu e conheceu várias pessoas, incluindo
Debret, com o qual desenvolveu uma sólida amizade. A expedição partiu em 1824, mas
Rugendas a abandonou, pois desentendeu-se com o autoritarismo do barão, apesar de
Langsdorff ter se impressionado com a habilidade do jovem Rugendas. O tempo em que
passou com a expedição conviveu com outros desenhistas, como, por exemplo, Hercule
Florence, que continuou até o final da expedição em 1829, quando Langsdorff adoeceu
(PRADA, 2003).
O grupo foi para Santos de navio e seguiu para a Amazônia pelo interior do país.
De 1826 a 1829, percorreu os atuais Estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Gros-
so, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Amazonas e Pará. Florence realizou uma série de
desenhos e aquarelas, nos quais retratou a fauna, a flora, a paisagem e a população dos
locais visitados. Só em 1849, Hercule Florence retomou suas anotações e começou a
escrever o diário completo sobre a viagem científica. Esse diário, atualmente em posse
de seus descendentes, foi publicado em 1977 sob o título Viagem Fluvial do Tietê ao
Amazonas pelas Províncias Brasileiras de São Paulo, Mato Grosso e Grão-Pará
(1825-1829). Foram 17 mil km percorridos, mas devido aos vários percalços ocorridos
na expedição, só 12 dos 39 integrantes sobreviveram, incluindo Hercule Florence, um
dos desenhistas (PRADA, 2003).
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Com o fim de seu trabalho como segundo desenhista, o artista radicou-se a partir de
1830, na Vila de São Carlos, atual Campinas, em São Paulo, onde constitui família e
tornou-se fazendeiro, mas sem deixar a arte e as questões científicas de lado. Continuou
registrando a paisagem e as transformações pelas quais passou a região no decorrer do
século XIX. Documentou o incremento da lavoura de cana-de-açúcar e café, o trabalho
escravo nos engenhos, as queimadas e derrubada das matas para plantio e, em menor
número, a capital paulista (ENCICLOPÉDIA, 2021).
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des. Com a fotografia, passava-se a obter a representação visual de um fragmento do
real, e o congelamento dessa ação foi possível graças à gravação diretamente pela ação
da luz sobre determinada superfície sensibilizada quimicamente (KOSSOY, 2002).
Boris Kossoy, além de pesquisar sobre a História da fotografia, também é fotógrafo e define
que a fotografia é antes de tudo uma forma de expressão autônoma e permissível aos sonhos
e devaneios da imaginação, sendo ela sempre resultado de uma construção. Leia mais sobre
a produção e o pensamento de Boris Kossoy, no link, disponível em: https://bit.ly/3mdXLep
Mas, por todos os lugares nos quais a corveta passou, levou ao conhecimento das pes-
soas o invento de Daguerre, e fez várias demonstrações para tanto. O daguerreótipo não
estava por acaso na embarcação, já que havia interesses diplomáticos, comerciais e inter-
câmbios científicos envolvidos. Havia a expectativa de ser a primeira expedição ao redor
do mundo utilizando a fotografia. Com apoio oficial e cartas de recomendação do governo
francês, a primeira arribada em Lisboa foi frustrante. Mas, apesar dos percalços no início
e durante o percurso marítimo inicial, ao menos no Brasil, as demonstrações obtiveram
grande êxito, despertando o interesse do Imperador D. Pedro II (TURAZZI, 2010).
é a primeira vez que a nova maravilha se apresenta aos olhos dos bra-
sileiros [em 17 de janeiro de 1840] [...] É preciso ter visto a coisa com
os próprios olhos para se poder fazer ideia da rapidez e do resultado da
operação [...] Em menos de nove minutos, o chafariz do largo do Paço,
a Praça do Peixe, o Mosteiro de São Bento e todos os outros objetos
circunstantes se acharam reproduzidos com tal fidelidade, precisão e mi-
nuciosidade, que bem se via que a coisa tinha sido feita pela própria mão
da natureza e quase sem intervenção do artista” Jornal do Commercio.
(TURAZZI, 2010, p. 22)
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Figura 9 – Marc Ferrez, Retrato de duas senhoras negras (1885), Museu de Arte Moderna RJ
Fonte: Wikimedia Commons
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Na atualidade, é possível que alguém seja um bom fotógrafo mesmo não tendo gran-
de conhecimento técnico, em virtude dos múltiplos recursos oferecidos pelas câmeras
modernas. Fotografar é atribuir importância. É uma operação ritual que visa glorificar ou
condenar, nunca deixar indiferente. Circunstância que fez com que a fotografia fosse as-
sociada aos acontecimentos significativos e às coisas julgadas importantes. Durante muito
tempo, tal concepção afastou a fotografia do cotidiano, dos momentos banais (VASQUEZ,
2003), o que indica que cada período registrou seus momentos a partir de perspectivas do
contexto específico da sociedade a qual pertencem, ou seja, da sua historicidade.
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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:
Vídeos
Visita guiada com Sergio Burgi | Marc Ferrez: Território e imagem
Na abertura da exposição “Marc Ferrez: Território e imagem” no IMS Paulista em 26/03/19,
o curador Sergio Burgi realizou uma visita guiada. A exposição acompanha a trajetória de
Marc Ferrez entre 1867 e 1923, apresentando mais de 300 itens do acervo do IMS e de
outras instituições. A mostra relembra o excepcional fotógrafo que transitou por todos os
campos da imagem, sempre em estreito diálogo com a ciência e a tecnologia.
https://youtu.be/OCl93gWGMDM
Caminhos da Reportagem | Vale do Café: uma viagem no tempo
O programa Caminhos da Reportagem volta no tempo e faz uma viagem às fazendas de café
do século 19 na região do Vale do Paraíba. Foi lá que as famílias vindas de Minas Gerais por
conta do declínio do ouro e comerciantes da cidade do Rio de Janeiro que queriam investir na
região encontraram as condições ideais para a produção de café. O Programa perpassa por
questões históricas, técnicas, arquitetônicas e da cultura material para oferecer um panorama
sobre as características do Vale do Café, no Rio de Janeiro.
https://youtu.be/Xto0LJWbqj4
Leitura
Mulheres de paletó: Moda e cultura material no Brasil do século XIX
O artigo em questão apresenta uma visão diferenciada sobre a moda brasileira no século XIX,
a partir de uma investigação sobre a adaptação de itens masculinos à indumentária femini-
na. Para além dos vestidos, [joias e chapéus ornamentados, os jornais dedicados ao público
feminino, a partir da década de 1850 até início do século XX, apresentavam às mulheres a
possibilidade de usar coletes, paletós, gravatas sem perder a elegância. Questiona-se, assim,
se a citação de artefatos originalmente masculinos teria agido como uma estratégia simbólica
e performática feminina de empoderamento em um período que discussões sobre o papel da
mulher ganha fôlego na imprensa.
https://bit.ly/3jSSbLy
A coleção de cardápios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: impressos efêmeros como fontes para
os estudos sobre história, política e sociabilidade
O artigo traz à luz documentos da cultura material que – por sua natureza – tantas vezes
foram descartados e desvalorizados pelos historiadores: a coleção de cardápios de almoços
e jantares pertencentes ao Arquivo Histórico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Datados da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX, esse conjunto
de impressos efêmeros foi apresentado enquanto possibilidade metodológica e de pesquisa
no campo da História Cultural, desvelando aspectos importantes da História, Política e
Sociabilidade no Brasil Império e no início da República.
https://bit.ly/3jWLckN
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Referências
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domésticos. São Paulo, Alameda, 2010.
BURKE, P. Abertura: A Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, P. (org.),
A Escrita da História – Novas Perspectivas. 2. ed. São Paulo: Editora da Unesp, 1992.
CREDDO, M. do C. S. di. O inventário como fonte para a análise da mudança das formas
de riqueza social: Reflexões sobre um estudo de caso. Fontes Históricas: Abordagens e
Métodos. São Paulo: Programa de Pós Graduação em História, Unesp, 1996, pp. 24-31.
FRAGOSO, J.; PILTZER, L. Barões, homens pobres e escravos – notas sobre uma fonte
múltipla, os inventários post mortem. In: Revista Arrabaldes, Rio de Janeiro, Ano 1, n 2,
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FRANÇA, J. M. de C., As gentes dos trópicos. In: PINHEIRO, L. História viva: O olhar
dos viajantes 2. São Paulo: Duetto, 2010, pp. 6-11.
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UNIDADE Cotidiano e Vida Material no Império (1822 – 1889)
PRADA, C., Rugendas: Uma ponte sobre o Atlântico. In: D.O. Leitura, ano 22, número
02, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 02 fev. 2003, pp. 12-26.
PESEZ, J. M., História da Cultura Material. In: LE GOFF, J. (org.). A História Nova, São
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PRIORI, M. D. Histórias da Gente Brasileira – Império, vol. 2. São Paulo: Le Ya, 2016.
RIBEIRO, M. C. M. Fontes primárias para a história das povoações paulistas. In: Semi-
nário de estudos das fontes primárias para a história de São Paulo no século XVI.
São Paulo: 1948.
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