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José Carlos Chiaramonte Carlos Marichal Aimer Granados organizadores CRIAR A NACGAO HISTORIA DOS NOMES DOS PAISES DA AMERICA LATINA HUCITEC EDITORA JOSE CARLOS CHIARAMONTE CARLOS MARICHAL AIMER GRANADOS organizadores CRIAR A NACAO Histéria dos nomes dos paises da América Latina Tradugio de Joao Ribeiro revista por Joao Paulo Pimenta da Universidade de Sao Paulo SBD-FFLCH-USP 4 0 6 6 9 8 HUCITEC EDITORA Sao Paulo, 2017 Capitulo 10 DE “PEQUENA VENEZA’ A REPUBLICA BOLIVARIANA DA VENEZUELA. HISTORIA, IDEOLOGIA E PODER, OU O NOME SOB SUSPEITA Dora Davita Mendoza Deve-se partir da base de que o pais nao tinha um nome antes da chegade dos espanhéis, pois nao havia alcangado unidade de nenhuma ordem. A entidade que hoje chamamos de Venezuela é um produto histérico da Conquista ¢ da Independéncia. Para ver como sur- giu e como foi imposto, deve-se seguir, portanto, a mar- cha da historia Aycet Rosensiat’ N. dia 10 de abril de 2002, produziu-se na Venezuela um acontecimento politico que trouxe como consequéncia imediata a ins- tauragdo de um governo chamado de “transig’0 democritica e unidade nacional”? Pelos meios de comunicagao visual que transmitiam o acon- tecimento do Salado Gran Mariscal de Ayacucho do Palacio de Miraflo- res, em Caracas, uma maioria anénima de venezuelanos atonitos, deso- rientados e perdidos esperava resposta sobre as desordens que aconteciam na sala do presidente intempestivamente deposto. A partir do que alguns consideraram o reconquistado cenario do poder, sobretudo entre os chamados “opositores” do governo, os dois decretos iniciais do novo governo tentavam resolver um problema conjuntural demasiado turvo. O primeiro decreto estabelecia 0 que era esperado em uma crise politica: um novo chefe, que assumia “neste ato de forma imediata 0 comando do Estado pelo perfodo estabelecido 1 Angel Rosenblat. El nombre de Venezuela. Caracas: Facultad de Humanidades y Educacion, Universidad Central de Venezuela, 1956, p. 12. 2 Para um panorama politico dos iltimos vinte anos, veja-se Margarita Lopez Maya. Del viernes negra al Referendo Revocatorio, Caracas: Alfadil, 2005. 197 198 Dora Davita Menpoza neste mesmo decreto”. E o segundo decreto determinava: “Restabele- ce-se o nome de Republica da Venezuela”. Do ponto de vista da antiga tradicéo do histérico nomeado, das simbologias ¢ representagdes do poder ¢ dos interesses ideoldgicos ¢ politicos complexamente entrelagados, o contetido desse segundo de- creto, mais inesperado, causaria impacto em grande parte dessa maioria de venezuelanos que, na frente da televisio, observava como se desen- volviam os acontecimentos.* Como nao podemos medir a significagao ideolégica do instante critico nessa teleaudiéncia, faremos uma aprecia- 40 do impacto do contetido ideoldgico a partir do momento em que foi enunciado e lido por um saber politico que, nesse instante, se encon- trava em vantagem, além de ser 0 cendrio propicio para uma audiéncia euférica e emocionada no Salao Ayacucho, Nesse instante, ambos os poderes presentes — 0 que se instaurava e uma parte da audiéncia — se encontravam em perfeita sintonia: seguros, triunfantes e galhardos, pro- curavam assumir as novas rédeas do poder que, horas antes, estavam em outras maos. Quando o mestre de ceriménias Daniel Romero leu: “Decreto segundo: «Restabelece-se 0 nome de Republica da Venezuela», e le- vou para a audiéncia o seu olhar triunfante pela renomeacio e, com um sorriso de satisfagao pelo éxito obtido junto a ela, teve de esperar varios minutos de aplausos ¢ alegria politica no salio pelo magno aconteci- mento. O ambiente parecia dizer que, finalmente, depois de uma mo- mentanea e tragica crise que havia comecado no ano de 1999, no enten- der dessa audiéncia, uma parte da identidade era devolvida. Também diziam que um pedago do que havia sido o passado nacional ganhava forma clara e precisa em um minitisculo mas simbdlico fato, bem como © que nao se queria para o presente, e que pudesse impedir o desenvol- vimento do futuro da nagao. Para essa audiéncia, o nome restituido de Republica da Venezuela identificava uma historia que nenhum outro nome poderia substituir, bem como um momento politico que se queria mudar. Por que o segundo decreto que renomeava a nagao havia gerado tanta satisfacio na audiéncia? Em termos ideoldgicos, quais grupos, 3 Utilizo a ideia da audiéncia no sentido empregado por De Certeau quando se pergunta: “Um piiblico, um repetidor, sem papel histérico, é possivel?” Michel De Cer- teau. La invencién de lo cotidianc. México: Universidad Iberoamericana, 2000, p. 179. bz “PeQuena Veneza” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 199 saberes e interesses identificavam Repriblica da Venezuela com Repiiblica Belivariana da Venezuela? Quais contetidos de tradigio, simbologia e interesses de poder operaram nesse saber politico em vantagem e nessa audiéncia regozijada ao ver restituido o nome da Reptiblica da Venezuela? Quais eram os interesses do outro grupo de poder que defendia o nome de Republica Bolivariana da Venezuela? Embora o acontecimento de abril de 2002 continue cheio de am- biguidades no debate publico e politico nacional atual, depois de quase seis anos, alguns venezuelanos, sem muito afi, vivem o dia a dia sem perceber grandes mudangas pelo nome Repiblica Bolivariana da Ve- nezuela ou Republica da Venezuela. Como Pretexto, quero fazer uso da tazao ideoldgica atual (inevitavelmente vinculada com o aspecto politi- co) para dirigir minhas perguntas ao passado do nome de Venezuela e visualizar as conexdes historicas (e, portanto, culturais) que, pelo fato de nomeas, determinaram os processos ideolégicos de entidades politi- cas e sociais que formaram a sua histéria. O ato de nomear sempre levou implicito um saber que exerce ilegitimamente um poder e uma hegemonia e, portanto, ¢ um ato ideologico que remete a estagios po- liticos e interesses diversos que determinaram, sempre de uma perspec- tiva lateral, o transcurso desta e de outras entidades no tempo. Neste enfoque, a epigrafe de Rosenblat nao podia ser mais ilustrativa. Com a finalidade de organizar minha exposi¢ao, vou especificar alguns momentos que representaram uma primeira fase a partir da qual se comegou a dar identidade a um espago. Entendido no ambito da chamada colonizacao ideol6gica a partir de uma entidade estruturada ¢, naturalmente, convencida da necessidade de construir 0 outro a partir da sua imagem, neste primeiro momento, destaca-se a surpreendida politica de uma entidade estrangeira na necessidade urgente de nomear ou definir espagos a partir do seu imagindrio; conquistando a partir da palavra, da religiao e da lei, 0 novo espago vai comegar a ser reconhe- cido a partir da mirada (e poder) de um outro saber, cuja necessidade de domesticar 0 concebido como desconhecido e selvagem implicara um lento processo de reconhecimento desse outro. Neste primeiro momento, a passagem do imaginado para 0 pos- suido foi organizada em dois acontecimentos que tornaram real um institucionalismo: a aceitacéo das terras de “Venezuela e suas Provin- cias’, chamadas assim na capitulagao do rei Carlos V, em 1528, aos {SBD/FFLCH/USP 200 Dora Davita Menpoza Welser. Por outro lado, a designacio do estatuto politico e de divisio territorial de Godernacién, em 1531, com a bula papal, o nome dessa entidade primeira chamada Venezuela, que dura indistintamente de 1500 até meados do século XVIII, estard associada em sua histéria sucessiva a denominagées indistintas de Gobernacién, Provincia e Capitania Geral que, tanto no aspecto civil quanto no eclesiastico, passo a passo mostra- 140 0 lento processo na construgao de uma identidade a propésito da instauracao das republicas e da formagao dos Estados nacionais. A cons- trugdo dessas narrativas colocou o passado no banco dos réus: da inte~ Bragao e da identidade ambiguas passou-se a necessidade de legitimar Presencas nacionais nas contendas bélicas, bem como negar e/ou en- contrar uma origem prépria incontestavelmente histérica que se cons- tituiu em uma meta fundamental. O outro, imaginado e nomeado Venezuela no mapa de Juan de la Cosa, em 1500 Porque os topdnimos sio considerados apropriagées linguisticas (e, portanto, culturais) do espaco, a toponimia indigena constituiu o primeiro reconhecimento de um espago proprio antes da chegada dos europeus. Vozes como Acarigua, Coro, Cumana, Guanare ¢ Caracas, entre outras, foram o produto de nomes dados pelos varios povoamen- tos de diferentes grupos indigenas pertencentes as familias linguisticas arawak, chibcha e caribe, as principais que habitaram as zonas que formavam a regiao oriental, ocidental ¢ centro-costeira, respectivamen- te, do que seria a Venezuela.* Embora fossem pontos de referéncia inevitaveis para reconquistar ou reconhecer espagos desconhecidos por aqueles que chegavam, esses toponimos ou apropriagées primarias do espaco pelo individuo que havia nomeado primeiro nao estiveram con- templados totalmente no que se conhece como 0 mapa onde apareceria escrito pela primeira vez o nome da Venezuela: o de Juan de la Cosa, no ano 1500.5 O fato é, obviamente, muito significativo. Considerado como © primeiro testemunho onde aparece escrito o nome de Venezuela, o 4 Sobre os topdnimos indigenas, veja-se Lisandro Alvarado. Glosario de voces indigenas de Venezuela. Obras Completas. Caracas: Ministerio de Educacién, 1956, 5 Para ume reproduso do mapa ¢ sua exolicacio histérico-cartogrifica, veja-se Hermann Gonzalez Oropeza. Atlas de la historia cartogrifica de Venezuela. Caracas: Edito. tial Papi, 1983, pp. 100-1. be “PEQUENA VENEZA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 201 planisfério de De la Cosa é considerado a primeira representacio car- tografica do que constituiria 0 ocidente costeiro do futuro territrio venezuclano.’ No perfil costeiro da Peninsula de la Guajira e da Penin- sula de Paraguana, a continuidade dos toponimos desenhados no mapa remetem ao saber europeu. Segundo Gonzalez Oropeza, nao parece provavel que De la Cosa e Ojeda tivessem penetrado no interior, mas sim que os nomes ali contidos refletiam também informagées indige- nas,’ Ramos Pérez também considera que, ao que parece, De la Cosa se valeu tanto do relato dos indigenas usados como intérpretes quanto da informagio obtida em sua convivéncia com os indigenas, para assim Tepresentar em seu mapa o que tinha visto.® Em uma observagao geral desses primeiros top6nimos contidos no mapa,’ essa naturalidade hibrida (cultural) por nomear, apontada por Gonzalez Oropeza ¢ Ramos Pérez (a conjuncao dos imaginarios daqui e dos imaginarios de Id), nao se observa, ao menos explicitamen- te, na sequéncia do nomeado. Destacam-se, pelo contririo, uma avalan- cha de denominagées que, a partir do seu contetido e significagao sim- bolica, instaurario outra ideia a partir do nome nos novos espacos. Denominagées como Monte de Santa Eufemia ou Tierras de San Ambrosio, Tepresentarfo uma nova fé religiosa a partir da escritura de suas pala- vras; nomes como Punto Desierto, Cabo de la Vela ou Cabo Almadraba Tepresentarao também, a partir da escritura, novas colonizagées do ter- rit6rio com a designagao cartografica europeia de cabo, ou nomes como Isla de Brasit-Gigantes, Margalida, Tres Islas ou Boca de Drago, novas visualizagées territoriais, novas colonizagées. Nomeadores, imaginarios ou aparelhos ideolégicos.Nessa representagao discursiva, a conquista a partir do nome hispinico sera fundamental. Nesse primeiro mapa, é importante ressaltar 0 detalhe quanto a dimensao do nome escrito no 6 Ibidem, p. 100. 7 Ibidem, p. 297. 8 Citado por Manuel Donis Rios. “Venezuela: topénimo afortunado en la carto- gratia auroral de América’. Montalban, n.° 24. 9.Os toponimos que aparecem nesse primeiro mapa sio: Monte de Santa Eufemia, Punto Desierto, Cabo de la Vela, Aguda, Lago, Cabo Almadraba, Cabo de Espera, Venezuela, Isla de Brasil-Gigantes, Monte Alto, Isla de Gigantes, Cabo de la Mota, Punta Flechada, Aldea de Turme, Costa Pareja, Monte Tajado, Campina, Isla de Sana, Margalida, Tres Islas, Boca de Drago, Rio de la Posicién, Rio del Obispo, Tres Hermanos, Playa de Cordoba, Rio de Holganza, Tierra Llana, Arrecifes, Playa Anegada, Golfo de Santo Domingo, Llanos, Monte F., Las Planellas, Tierras de San Ambrosio. Hl. Gonzdlez Oropeza, op. cit, p. 297. 202 Dora DAvita Menpoza papel. O tamanho da letra destacard um interesse particular na recente designagao; o nome de Boca de Drago aparecera no planisfério de De la Cosa em letras muito maiores, bem como a designagao Costa de Perlas, préxima a Isla de Margarita e de Mar de Agua Dulce: qual a razdo para esse destaque no papel como lugares de especial ateng’o para quem lesse, no futuro, o mapa? Os lugares por onde deviam entrar para che- gar diretamente aos lugares produtores de pérolas. A partir do nome, a toponimia hispanica colonizou os espagos no chamado processo de conquista e, em sua primeira aparicao cartogrifica, Venezuela aparece como um espago reconhecido j4 potencialmente co- lonizado. Muito cedo, como nesse mapa, 0 nomear a partir do imagina- rio europeu constituiu a principal pega de conquista. Das crénicas até a cartografia histdrica, nomes como San Felipe, Mérida, Trujillo, Valen- cia, El Sombrero e El Tirano, entre muitos, serao convertidos em subs- titutos apropriados de um processo que nao necessitava, em principio, nomes vernaculos e, se os necessitou, nao foram registrados nessa pri- meira representacao cartografica. O nome de Venezuela fez parte des- ses primeiros imagindrios. De “pequena Veneza” a golfo da Venezuela, ou do nome A controvérsia territorial Como ja foi dito, 0 fato de nomear, aparentemente desprovido de toda politica e ideologia, é um ato de poder que designa uma hegemonia, um interesse do outro por nomear 0 possuido, 0 obtido ou o conquista- do. Na descrigéo que Michel De Certeau faz da cena de Jan van der Stract, quando Américo Vespiicio chega do mar e, revestido com as armas europeias do sentido, enfrenta uma india, América, deitada, nuae diferente, ele observa como 0 conquistador, com seu saber ocidental e europeu, comega a nomear ¢ escrever o corpo da outra para comegar a tragar a sua propria carga histérica. Essa escritura, assinala o autor, esboga uma colonizagao do corpo pelo discurso do poder, a escritura conquistadora que esse Novo Mundo utilizara como uma pagina em branco onde comegard a escrever o querer ocidental.!” Essa colonizacio 10 Michel De Certeau. La escritura de la historia. México: Universidad Iberoamericana, 1993, p. 7. De “Pequena VEeNneEzA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 203 do outro transforma o seu espaco em um campo de expansao para um sistema de produg4o, campo para o qual a empresa cientifica trasladard sua produgao de dispositivos linguisticos autOnomos, impondo, desse modo, a lingua e os discursos prdprios. As viagens de Alonso de Ojeda, 1499, e Américo Vespticio, 1500, representam o reconhecimento da costa da atual Venezuela.!! Essas denominag6es e apropriacées histéricas do espaco — junto com a cons- trugao cartografica elaborada por Juan De la Cosa, em 1500 — serio as bases hist6ricas discursivas sobre as quais se erguerio as disputas nacio- nais posteriores sobre a justificagao de possessdes territoriais, 20 longo dos séculos XIX, XX e XXI.” De acordo com as narrativas coloniais, todos os testemunhos das viagens levam a conclusio de que 0 povoado indigena, que para Vespticio havia recordado a cidade de Veneza, estava nessa entrada do chamado golfo de Maracaibo, também conhecido em uma primeira época como golfo de Veneza e depois como golfo de Venezuela.’ Embora a alusio comparativa fosse, sem diivida, natural, se levarmos em consideragao 0 universo experiencial e compreensivo que esse saber europeu trazia,!* é interessante destacar a sequéncia hist6rica (¢ problematic) que a de- nominagao Veneza teve, transformada depois em golfo de Veneza, golfo de Maracaibo e, posteriormente, golfo de Venezuela.'* Essa sequéncia do nome foi de grande relevancia nas disputas sobre a configuragao da 11 Toda a regio compreendida de Guayana até Guajira 12 Refiro-me 4 que se sucederé entre Colombia e Venezuela ao longo dos séculos XIX € XX. Nao levo cm consideragdo, por enquanto, o sentido ideolégico ¢ politico que as discusses territoriais com Brasil e Guisna também representaram. Sobre esta tltima, veja-se Yaneth Arocha. Guyana: un capitulo en la gestion del Canciller Luis Alberto Zambrano Velasco, 1981-1983. Tesis de maestria, inédita, Caracas: Universidad Catdlica Andrés Bello, 2005. . 13 Sobre as variagoes linguisticas de nome de Venezuela, veja-se A. Rosenblat, op. cit, pp. 24-6. 14 Em 1498, Cristévao Colombo a denominaria Tierra de Gracia, e em sua sucessiva imagética sobre o achado nfo cessaria de comparar o que seria Venezuela com a terra de Castilha, as hortas de Valéncia, as verduras de Andaluzia, a virzea de Grana- da, 0 campo de Cérdoba, a baia de Cidis ou o rio de Sevilha. Citado por A. Rosenblat, op. cit, p. 18. 15 Para um estudo histérico sobre a regido do golfo da Venezuela, veja-se Pablo Ojer. El Golfo de Venezuela: wna sintesis histérica, Caracas: Instituto de Derecho Piblico, Universidad Central de Venezuela, 1983, Um estudo sobre 0 mesmo tema, em outro petiodo, € 0 do mesmo autor. La década fundamental en la controversia de limites entre Venezuela y Colembia, 1881-1891. Maracaibo: Corporacién de Desarrollo de la Regién del Zulia, Bibliotecs Corpozulia, 1982 204 Dora DAvita Menpoza identidade espacial relativa ao que poderiamos denominar 0 processo de sociabilidade bilateral com outras nagdes, ou mais especifica € vio- lentamente denominado como a controvérsia territorial com a Colém- bia ao longo dos séculos XIX e XX, e que continua. Com o pretexto de integracio territorial, a historia nacional de- cretou — no ambito historiogrfico, claro — que a Venezuela e a Co- lombia, configuradas jé como nagées independentes depois de 1830, mantivessem discrepancias por motivos de espacgos ocupados que nao thes pertencem.” Essa denominada discrepancia entre as duas nagées, no entanto, tem raizes histéricas mais profundas, que € necessario in- vestigar. Com identidades construfdas a partir do saber histérico (por historiadores do século XIX de ambas as regides), a discrepancia territorial do século XX se transformou ou se materializou a partir do suposto trauma politico que significou a unido da Venezuela dentro da Reptiblica da Colémbia durante um breve perfodo no século XIX, e que se transmitiu implicita ou explicitamente nos livros didaticos. O que foi concebido como um traumitico fracasso histérico personali- Zou-se, sendo associado a inimizade entre duas figuras de renome: Simén Bolivar ¢ Francisco de Paula Santander. Ambos afeitos a ideia de unifi- cago continental com a Repiblica da Colombia, 1819-1830, o pri- meiro é reconhecido como herdi de reptblicas, unificador de nagées, defensor de causas, mas o segundo como responsayel, de acordo com a historiografia nacional venezuelana, da separacio, traidor e sabotador do projeto da unificagdo grande-colombiana. Ambos configuram no coletivo nacional os dois icones que na histéria da territorialidade venezuelana sao concebidos como o herdi € o anti-herdi do que serio as reptiblicas,’7 Como parte de um inconsciente coletivo, essa apreciagdo separa~ tista contemporanea foi institucionalizada como razdo de Estado, e 0 uso politico da identidade espacial a partir da denominagao golfo de 16 O estudo mais completo sobre a complexa relagdo historica entre Venezuela € Colombia no século XIX em David Bushnell, El régimen de Santander en la Gran Colombia, Bogota: Tercer Mundo, 1966. 17 E necessario destacar que, nos textos de histéria nacionais, a Colémbia aparece durante o breve periodo da Repiblica da Colémbia (1819-1830), para depois desaparecer da histéria venezuclana, O fato € significativo, nao somente pelo carater local que foi dado a historia nacional, mas também pela necessidade de apagar um periodo histérico obscuro para a grandeza que a figura de Simén Bolivar simbolizou na historiografia tradicional. pe “Pequena VENEzA” 4 REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 205 Venezuela foi fundamental nesse proceso. Por volta dos anos 60 e 70 do século XX, organizou-se na Administragao de Fronteiras do centro diplomatic venezuelano uma equipe de trabalho, designada exclusiva- mente pelo Executivo nacional, para desentranhar as raizes histricas que determinavam que, efetivamente, a denominasiio ¢ o nome golfe de Venezuela determinavam pertencimento histérico diante de algumas pre~ tensdes da Colémbia. Pesquisadores como Pablo Ojer e Hermann Gonzilez Oropeza, sacerdote jesuita, dedicaram vastas pesquisas a ave- niguar, a partir da cartografia hist6rica, a denominacao de golfo de Venezuela como um principio histérico de pertencimento territorial e, portanto, nacional, ante qualquer pretensao foranea.’* Institucionalizada a pesquisa pelo Estado, o esclarecimento do nome ou — o que era— a sua definigao historica, comegaria a jogar um papel estratégico nao sé para fortalecer a ideia de uma identidade nacional e patriotica, mas também — ainda mais — na politica, a partir dos debates presiden- cialistas. Essa combinacao entre a nogao em defesa do golfo de Venezuela € a politica determinaria, em grande medida, a prevaléncia de um par- tido politico sobre outro. A histéria do nome golfo de Venezuela desig- nou nao sé uma regido histérica — a fina faixa territorial da peninsula de Perija, colombiana ou venezuelana? —, mas também um delicado tema politico que ainda divide a opiniao publica nas duas entidades sul-americanas. 1528, 1731 ou 1777? Gobernacion ou Capitania Geral, oudo nome a disputa historiografica Na interpretagao do processo de centralizagio das provincias co- loniais, o nome de Venezuela, como gobernacién (1528) dentro doVice- -Reino da Nova Granada (1731) ou como Capitania Geral (1777), gerou disputas historiograficas sobre a construgdo do Estado nacional que, inevitavelmente, remeteram 4 fixagao das bases territoriais de uma nacionalidade ainda ambigua. Ea partir do discurso dos primeiros his- toriadores do século XIX que se procura fixar uma meméria coletiva sobre a base do que serd o imagindrio nacional, muito especialmente o 18 Tal foi o interesse nacionalista desses dois pesquisadores pela defesa territorial que transladaram sua ideia a um vasto projeto universitario nas décadas de 60 e 70 do século XX. 206 Dora Davita Menpoza refcrido ao bolivariano, de integracao depois da separacao da reptiblica da Colémbia em 1830." Entre os autores que primeiro utilizaram a denominagio de “Ca- pitania Geral’, seriam os viajantes os que designariam espagos apropria~ dos a partir do nome, sem disputas sobre as datas da sua criacao. Alexan- der von Humboldt, em 1800, em El viaje a las regiones equinocciales del Nuevo Continente, designaria a entidade como “Capitania Geral das Pro- vincias Reunidas de Venezuela e Cidade de Caracas”, compreendendo Nova Andaluzia e Provincia de Cumana (com a ilha Margarita), Bar- celona, Venezuela ou Caracas, Coro e Maracaibo, Barinas e Guayana. Sempre que fez mengao dessa entidades e referia a “Capitania Geral de Caracas”. Frangois Depons, em 1801, em sua Viaje a la parte oriental de Tierra Firme, chamava a entidade de “Capitania Geral de Caracas”, composta pelas provincias de Venezuela, Maracaibo, Barinas, Guayana, Cumani e ilha de Margarita," e Jean Joseph Dauxion Lavaysse, em 1804, em sua viagem as ilhas de Trinidad, Tobago e Margarita, chama- tia a regiéo de “Capitania Geral de Caracas”, Os viajantes constituiram o olhar forasteiro destas comarcas, de cujas observagdes a historiografia do século XIX se enriqueceu enorme- mente. Com respeito aos olhares préprios, quer dizer, dos que habita- vam e viviam os problemas sem estarem de passagem, estes ofereceram a historiografia a evidéncia de uma inevitavel dupla posigSo relaciona- da com a sua integracio ou identidade territorial. Em 1810, Andrés Bello, a partir de seu texto Breve resumen de la historia de Venezuela,” Procurava mostrar um equilibrio entre o que havia sido a histéria da entidade com seu passado colonial, e a que era agora, em 1810. Para a maioria dos letrados da época da independéncia, incluindo figuras como 19 Nikita Harwich Vallenilla. “Construccién de una identidad nacional: el discurso historiografico de Venezuela en el siglo XIX", Revista de Indias, vol. 54, n° 202, 1994, pp. 637-56. 20 Alexander Humboldt. Viaje a /as regiones equinocciales del Nuevo Continente, Caracas: Monte Avila Editores, 1991. 21 Frangois Depons. Viaje a la parte oriental de Tierra Firme, Caracas: Tipografia Americana, 1930. 22 Andrés Bello. Resumen de la historia de Venezuela, Caracas: La Casa de Bello, 1978. Este texto foi publicado como apéndice no Calendério manual y guia universal de forasteros en Venezuela para el ano de 1810, Caracas, 1810, Sobre Andrés Bello como parte do corpo de letrados ca nasio, veja-se Dora Davila. Idemtidades bibridas o historia, lengua J nacion en Andrés Bello en el temprano siglo XIX latinoamericano, texto inédito, 2006. De “PEQUENA VENEZA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 207 Bello ou Simén Bolivar, a histéria da chamada “Empresa Espanhola na América” nfo havia constituido unicamente o conhecimento erudito do passado colonial e seus antecedentes, mas também a necessidade de explicar seu lugar como sujeitos historicos pertencentes ¢ identificados com uma entidade espacial, ideia que, depois, materializariam em sua justificativa de luta autondmica.*? Com respeito a Bello ¢ seu Resu- men. . ., era imperioso explicar os antecedentes do seu passado e situar- -se entre um eles e um nos. Quem era esse “nés”?, pergunta-se Carrera Damas ao interrogar a Historia de la conquista y poblacién de la provincia de Venezuela (Madri, 1723), de José de Oviedo y Baitos, obra utilizada por Bello na elabora~ 40 do seu Breve resumen de la bistoria de Venezuela, de 1810.2* Pode- riamos falar de narrativas de identidade (historiografia) a partir do mo- mento em que essa entidade de sujeitos que habitavam essa provincia comegou a ver-se a si mesma, cm sentido temporal e espacial, com certa identidade autonémica, e nao como siiditos do rei ou como espa- nhdis da América; tampouco como americanos, mas especialmente quando comegou a identificar-se dentro de um espaco préprio, diferen- ciando-se positivamente de quaisquer outros contextos. Em Oviedo y Bafios e sua obra, aponta Carrera Damas, nao se deu essa correlagao entre acontecer histérico e consciéncia histérica, apesar de ser 0 momento em que a chamada sociedade provincial (venezuelana) se encontrava no umbral do que podia ser considerado como sociedade venezuelana, de modo que fica em duvida sobre essa nogao de crioulismo precoce atribuida ao escritor colonial Oviedo25 Como em Oviedo y Baitos, “nds” eram, para Bello, os primitivos con- quistadores e povoadores do territério — dos quais diferenciava os in- dios que resistiam, chamados por ele de barbaros e vagabundos —, com quem a identificagao era um fato; como bom crioulo, Bello se identifi- cava com a metrdpole, sem interesse algum por diferenciar-se dela.” 23 Sobre a explicasao historica de um ilustrado e letrado justificando a luta autondmica durante os primciros lustros da independéncia, veja-se Elias Pino Iturrieta “Nueva lectura de la Carta de Jamaica”. Ideas y mentalidades en Venezuela, Caracas: Academia Nacional de la Historia, 1998. 24 German Carrera Damas, Historia de la historiografia venexelana (textos para si estudio). Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1985, p. 13. 25 Ibidem, p. 12. 26 Ibidem, p. 13. 208 Dora DAvita Mendoza Em seu Breve resumen de la historia de Venezuela, ha também uma clara diferenciacéo entre um “eles” € um “nds”; a intengao estava em diferenciar-se ¢ em fortalecer a memoria deixada pelos conquistadores, e situar-se como herdeiro dela. Antes do periodo que denomina rege- neracao civil da Venezuela, no final do século XVII,”” a explicacao de como os espanhdis tiveram de lutar contra as tribos barbaras para con- seguir assentar a sua memoria é um fato ao longo do seu discurso his- torico: “Ainda ficavam nas terras de Caracas algumas tribos de indios que, com sua obstinagao, causavam enormes prejuizos aos progressos dos espanhdis ¢ 4 povoagio da provincia. Os mais ferozes eram os Mariches, Teques, Quiriquires e Tomuzas”.?® Para Bello, a obstinagao desses indigenas indémitos de 1572 que nao se deixavam civilizar, era a causa dos prejuizos que evitavam um progresso material e social da povoagao, constituida exclusivamente por espanhdis conquistadores € pelas familias que se haviam assentado nessa zona do territério. O que Bello chamava de uma s6 familia?” — ja precocemente estabelecida na propriedade legal, na lingua e na religiao —* seria o triunfo final da empresa militar que, ja depois de 1586, a respeitavel povoasao que vi- mos havia conseguido [. . .]; seus conquistadores esperavam 0 tepouso necessirio para elevi-la A prosperidade que a natureza lhe destinava.”" Diferentemente dessa primeira época de Andrés Bello, nas pri- meiras historias da Venezuela, as de Montenegro y Colén, Francisco Javier Yanez, e Rafael Maria Baralt e José Domingo Diaz, a intencgao de recolher uma memé6ria coletiva patria sob o nome Venezuela se con- centrou na justificativa do movimento emancipador sob a premissa do desejo inerente a toda grande sociedade de administrar seu proprio des- tino, seus préprios interesses politicos e econdmicos. Esses elementos constituiram o espirito coletivo dos letrados, patricios e crioulos que dominaram essa regio do continente a partir do saber.” Como letra~ dos ¢ representantes ilustrados de sua época, da perspectiva da histéria, 27 A. Bello, op. cit., p. 41, 28 Ibidem, p. 32. 29 Ibidem, p. 44. 30 Tbidem, pp. 42 ¢ 44, 31 Ibidem, p, 35. 32 Citado por Mariano Picén Salas, em seu Estudio intraductorio a Andrés Bello, Obras completas. Temas de historia y geografia. Caracas: Ministerio de Educacién, t. XIX, p. XVI, 1957. DE “PEQUENA VENEZA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 209 se apoderariam da funcao social ¢ institucional a partir de desempenhos académicos, politicos ¢ burocraticos destinados somente 2 uma porgao dessa sociedade, designada para dirigir os novos caminhos que a natu- reza Ihes apresentava, Assim, na histéria escrita do primeiro perfodo das contendas bélicas, os letrados justificario a sua transformagio em poderes auténomos dentro de uma nova instituigao de poder 4 qual agora pertenciam como protagonistas, mas sob as regras de antigas ins- tituigdes, imitadas no que tinham de melhor. Atuando pela historia escrita, eles se converteram nos construtores do saber a partir das no- ges de patria e nag4o que, em seus escritos, transmitiriam as novas gerag6es de cidadéos republicanos. Provavelmente, 1837 é a data de inicio de uma nova etapa historiografica, com sua repercussdo na disputa sobre 0 nome e€ seu tempo; nesse perfodo comesaré a construgio do passado “nacional” venezuelano, a partir da heranga patria deixada pelas faganhas emanci- padoras, e o que era o territério durante o periodo colonial, o da rept- blica é, agora, o da nova nacio, independente da Colombia; definir os estagios da nacionalidade e do patriotismo como religito de Estado sera a chave nesse processo ideolégico.* Quando Feliciano Montenegro y Colén publica seu texto Geografia general para el uso de la juventud en Venezuela® e assinala a criagao da Capitania Geral em 1731 — baseado, provavelmente, na relagao que a entidade havia tido com o Vice-Reino da Nova Granada desde 1717, 33 O estudo mais completo sobre este processo ideoldgico é, sem duvida alguma, ode German Carrera Damas. E/culto a Bolivar. Caracas: Universidad Central de Venezuela. Do ensino da historia para os novos cidadaos republicanos, veja-se Nikita Harwich Vallenilla. “La génesis de un imaginario colectivo: la ensefianza de la historia de Venezuela en el siglo XIX”, Boletin de la Academia Nacional de la Historia, Caracas: (abril-junho), n.” 282, pp. 349-87. Na perspectiva de Carrera Damas, veja-se Elias Pino Iturrieta. E/ divine Bolivar. Ensayo sobre una religién republicana, Madri: Catarata, 2003. Sobre os catecismos politicos € 0 disciplinamento dos novos cidadios da repiblica veja-se Dunia Galindo. Téatro, cuerpo y nacidn. En las fronteras de una nueva sensibilidad. Caracas; Monte Avila Editores Latinoamericana/Comisién Presidencial V Centenario de Venezuela, 2000, pp. 117-72; Mirla Alcibiades. La heroica aventura de construir una repriblica. Familia “nacién en el cchoientos venexolano (1830-1865). Caracas: Monte Avila Editores Lati- noamericana/Centro de Estudios Latinoamericanos Rémulo Gallegos, 2004. 34 Feliciano Montenegro y Colon. Geografia general para el uso de Ia juventud en Venezuela. Caracas: Imprenta de Damirén y Dupuy, 1833-1837. Para um estudo his- toriografico sobre este autor, veja-se Lucia Raynero. Cito frente al espejo. La concepcién de la historia en Ia historiografta venezolana del sigle XIX (1830-1865). Caracas: Universidad Catolica Andrés Bello. tesis de doctorado inédita, 2005 210 Dora DAvita MEnpoza mas, com maior seguranga, quando que ia ser o territ6rio passava a depender, no aspecto jusidico, da Audiéncia de Santo Domingo — 9 é possivel que sua necessidade de reivindicar sua posigao ante a histé- ria tenha tido alguma influéncia.* Sem possibilidade de demonstrar inteiramente essa ideia em Montenegro, é importante registrar, no en- tanto, a evidéncia de que sua atuacao politica anterior, e a conversio definitiva a causa da independéncia em 1827, tenham tido algum efeito em seu discurso histérico. Isso para destacar na nova nacio, Republica da Venezuela, recém-criada em 1830, seus vinculos histéricos com 0 que havia sido a Nova Granada, Republica da Colombia, seu passado € 0 que representava para a integragdo do projeto bolivariano recen- temente separado. E provavel que, para Montenegro, a auséncia de uma base documental que demonstrasse a data da Capitania Geral nesse ano de 1731 respondesse a uma reivindicacao velada da sua atua- ¢4o politica no passado.” Com uma atuagao politica mais homogénea que a de Montenegro, Francisco Javier Yanez, outro historiador da facanha emancipadora,em seu Compendio de la historia de Venezuela desde su descubrimiento hasta que se declaré Estado independiente, de 1840, atribufa também ao ano de 1731 a criagio da entidade “Capitania Geral”, que teria se separado da Nova Granada.* Essa indicaco tinha, sem divida, uma intengio 35 Sobre essa razio em Montenegro, veja-se Ildefonso Méndez Salcedo. La Ca~ pitania General de Venezuela, 1777-1821. Una revision historiagréfica, legislativa y documental sobre el cardcter y la significacion de su establecimiento, Caracas: Universidad Catélica Andrés Bello, 2002, p. 18. 36 Escritor, historiador, educador e oficial do exército, tanto espanhol quanto republicano, a sua atividade politica foi a evidéncia prépria de um pensador ilustrado entre duas margens ou entre posigdes ideolégicas. Em 1831, de Nova York, pediu licenca a0 novo governo da Repiblica da Venezuela, recém-separada da Repiblica da Colom- bia, para regressar. Nesse periodo comega a redagio da obra, 1833-1837, de quatro tomos, o ultimo dedicado a histéria da Venezuela de 1492 a 1836. 37 A publicagio na Espanha, em 1829, da obra de Manuel Torrente, Historia de 4a revolucion hispancamericana, estimuulou neste historiador a necessidade imperiosa de refutar 0 que havia sido dito contra as faganhas emancipadoras e seu lider, Simn Bolivar. Seu Compendio de la bistoria. .. se constituiu em uma resposta as “miiltiplas falsidades com que o espanhol D. Mariano Torrente quis ofender a conduta dos americanos, sempre imbecis, no seu modo de pensar”, Citado por Nikita Harwich Vallenilla. “Un héroe para todas las causas: Bolivar en la historiografia”. Iberaamericana, América Latina, Espana, Portugal: Ensayos sobre letras, historia y sociedad, n.' 10, p. 10, 2003, 38 Francisco Javier Yanez. Compendio de ta historia de Venezuela desde su descubrimiento J conguista hasta que se declaré Estado independiente. Caracas: Academia Nacional de la Historia, 1944, Advogado, jornalista, escritor, historiador, graduou-se na Universidade de Caracas, DE“PeQuena VENEZA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 211 integradora histérica que, para os tempos de turbuléncia politica, de- viam ser reivindicados. Nao se sabe se coincidentemente como movi- mento separatista conhecido historiograficamente como a Cosiata,” nesse mesmo ano de 1826, e com o objetivo de escrever a histéria do momento politico que viviam para legar 2 posteridade a doutrina bolivariana, Yanez, junto com Cristobal de Mendoza, tomaria a tarcfa de reunir e publicar a primeira recopilagao onginica de documentos de Simén Bolivar, lider da independéncia e do movimento integrador de repiblicas sul-americanas.* Intitulada Coleccin de documentos relatives a la vida publica del Libertador de Colombia y del Peri, Simén Bolfvar, no comego de 1829 dela haviam sido publicados quinze tomos, e em 1833 ja haviam aparecido vinte e dois.*! Como parte de um corolario de recuperagao de memérias, verdades histéricas (contadas a seu modo e interpretacao), o nascimento de uma nacionalidade estava contido nessas primeiras histérias do que havia sido a histéria da Venezuela ea demarcagao do seu territério, como parte de uma identidade. Junto com Montenegro y Colén, e Yanez y Mendoza, Rafael Maria Baralt e José Domingo Diaz, em 1841, no Resumen de la Historia de Venezuela, tam- bém datavam a Capitania Geral de 1731. E muito possivel que nas intengdes de datar esse ano (1731) como de nascimento da Capita- nia Geral estivesse a oculta saudade do que ji nao era a unidade gran- de-colombina. 39 Essa crise de 1826, conhecida como a Cosa aquella ou a Cosiata, foi uma causa politica que conduziu & dissolucdo da jovem repiblica em 1830. 40 Nikita Harwich Vallenilla (op. cit., pp. 9-10) afirma que um estimulo 4 organizazao desta memoria para a posteridade foi a publicagéo na Espanha em 1829 do mencionado texto de Manuel Torrente, Historia de la revolucién hispanoamericana, na qual herdi Simén Bolivar era apresentado como “sedicioso, rebelde, vildo ¢ responsavel”, citando a Torrente, “pela perda de alguns paises que de tio legitimo dircito pertencem A monarquia espanhola”. 41 Francisco Javier Yanez & Cristébal Mendoza. Coleccién de documentos relati- vos a la vida publica del Libertador de Colombia y del Peri, Simon Bolivar, para servir a la historia de Ia independencia de Sudameérica. Caracas: Imprenta Devisme Hermanos, 22 vols., 1826-1833. 42 Para um estudo historiografico sobre a obra de Baralt, veja-se Elena Plaza. “Historiografia y nacionalidad: el resumen de Ia historia de Venezuela de Rafael Maria Baralt”. Tiempo y Espacio, VII, 13, pp. 63-96, 1990. Da mesma autora, veja-se: “El patriotismo ilustrado: el debate en la prensa sobre la separacién de la Antigua Venezuela de la Repuiblica de Colombia”, In: Construcciones impresas. Panfletes, diarios y revistas en la formacion de los Estados nacionales en América Latina, 1820-1920, México: Fondo de Cul- tura Econémica, 2004, p. 65-78. 212 Dora DAvita MEnpoza Essas intengdes de estimular, a partir das narrativas do passado, a identidade e 0 nacionalismo para a recuperagdo da meméria coletiva, continuaram ao longo do século XIX. Até meados desse século, a luz das disputas territoriais entre a nova replica da Colombia e a nova Republica da Venezuela, antes unidas, o debate sobre o pertencimento espacial ea definigao de identidade nacional recrudescera. A partir do que havia sido a Gobernacién de Venezuela em 1528 (mais auténoma) oua Capitania Geral, dependente do Vice-Reino da Nova Granada, em 1731, o discurso sobre a hist6ria mitua entre as duas nacoes mudara. Quando José Manuel Restrepo apontou em 1854, na sua Historia de Colombia, a ctiagao da Capitania Geral da Venezuela em 1777, os his- toriadores venezuelanos do século XIX comegaram a debater o ano de nascimento da entidade, e a tomar posicao para separar a histéria de ambas as entidades; estas nao somente haviam estado unidas durante o breve Vice-Reino da Nova Granada (1717-1738), mas também duran- te o breve tempo da denominada Repiiblica da Colombia (1819-1830). Era necessario esclarecer a divisdo dessa histéria para a posteridade. Seriam José Félix Blanco e Ramon Azpirua, em sua Coleccién de documentos para la historia de la vida publica del Libertador [Simon Bolivar], de 1876, que mostrariam que nao havia prova documental de tal criagio — a de 1731 —, argumentando que somente constava sua separacao do Vice-Reino da Nova Granada em 1742, finalmente, em 1777, ao serem agregadas as provincias que formariam definitivamente essa entidade. Nesse mesmo ano de 1876, e citando Blanco y Azpitrua, Antonio Leocadio Guzman garantia que a Capitania Geral havia sido criada em 1528. Em seu texto Negociacion de limites en 1874 y 1875 entre los Estados Unidos de Venezuela y los Estados Unidos de Colombia, de 1875, na condigao de ministro plenipotencidrio da Venezuela paraa discussao de limites com seu homédlogo Manuel Murillo, defendia a precocidade dessa relacao, e seguidamente fazia uma relagio das datas- chave que haviam unido ambas as regides. Essa genealogia temporal, de profundas raizes nacionalistas — pela continuidade do ideério bolivariano unido as subsequentes disputas territoriais que implicaria —, iniciaria um longo debate historiografico de profundas raizes naci- onalistas no que restava do século XIX, e também no XX. A discussao sobre o ano de criagdo da entidade, ¢ 4 tomada de posigdo nacionalista sobre o nascimento do territério, acrescentou-se o DE “PEQUENA VENEZA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 213 grau de poder de decisio que a entidade politica tinha a partir da pre- senca de governadores especiais com atribuiges no plano politico, da justica, do exército e da fazenda. Da perspectiva de uma configuracio do poder e da tomada de posi¢ao, consideravam, os poderes regionais que cada entidade tivesse (ou mantivesse) podiam ser delimitados. Nes- te sentido, autores como Francisco Gonzalez Guifian, da Historia contem- pordnea de Venezuela, de 1909, defendiam que a partir de 1777 as pro vincias haviam sido integradas com governadores especiais, diminuindo © poder de outras entidades regionais. No entanto, embora autores como Laureano Vallenilla Lanz, cujo Disgregacién e integracién é de 1930, de- fendessem que nesse ano de 1777 haviam sido demarcados os limites territoriais da futura entidade, formando uma unidade administrativa, a sua criagao nao datava nem de 1731 nem de 1777, e sim de 1528, quando a gobernacion de Venezuela foi criada. Um ano depois, em 1931, ‘Tulio Febres Cordero, em seu livro Rectificacién histérica, antigiedad de Ia capitania general de Venezuela, insistia que o ano de 1528 havia sido o da criagao da Capitania com a instituigio da gobernacién, argumentando que haviam sido estipulados salérios diferentes para cada cargo.” Outros historiadores contemporaneos, como Ambrosio Perera, de Historia orgdnica de Venezuela (1943); Mario Bricefto Iragorry, de Tapices de historia pdtria (1944); Eloy Gonzalez, de Historia de Venezuela (1945); Héctor Garcia Chuecos, de La capitania general de Venezuela, apuntes para una exposicion del Derecho Politica Colonial Venezolano (1945); e Caracciolo Parra Pérez, de El régimen espanol en Venezuela (1964), defenderam a ideia de integragio a partir da unificagao das provin- cias em 1777. Sem opor-se a essa concepcio, a disputa historiogréfi- ca adicionou a necessidade de demarcar, em dois momentos distintos, a hist6ria do que havia sido a existéncia da entidade. Jeronimo Mar- tinez, em Venezuela colonial (1965); Guillermo Morén, em Historia de Venezuela (1971); y Antonio Arellano Moreno, em La Capitanta Ge- neral de Venezuela (1973), apontavam duas instituigdes com atribui- gGes diferentes: a Capitania Geral, com atributos de governador em 43 O periodo no qual essas historias sao escritas (1909, 1930 e 1931) coincide como longo governo de Juan Vicente Gémez (1908-1935). De corte ditatorial, sob seu seio se formou uma pléiade de intelectuais que procuraram justificar a figura do soldado necessirio. Na sua maioria foram aduladores de baixo espirito critico, que justificaram uma histdria conveniente 20 governo. 214 Dora DAviLa Menpoza 1528; ea outra, a de 1777, como a grande Capitania Geral que, con federada com outras provincias, formaria uma unidade politica e mili- tar concentrada no aspecto judicial depois de 1786, ano de criacao da Real Audiéncia, No ano de 1983, data magna em que se comemorava o bicentenério do nascimento de Simén Bolivar, foi publicada uma obra de profundo contetido nacionalista e, sem duvida, de grande relevancia no tocante & disputa territorial com a Colémbia. Intitulada E/ golfo de Venezuela, seu autor — Pablo Ojer, um apaixonado ex-jesuita defensor dos direitos territoriais — justificava a histérica posigao venezuelana desde a cria- gio, em 1528, da Capitania Geral junto com 0 governo dos Welser. A partir da divisaéo temporal entre os dois momentos, o denominativo golfo e de Venezuela ativaria coletivamente um elemento de nacionali- dade sobre a base da defesa — inclusive militar — do que havia sido desde os primeiros momentos hist6ricos mais remotos 0 ‘territério na- cional da Venezuela”. De Republica de Venezucla a Republica de Colombia (1819-1830): identidades em disputa“* O nome de Colémbia para a nova repiiblica criada em 1819 cons- tituia um desejo de unidade hispano-americana, mas no fundo era um desejo de vindicagao histérica: diante do nome de América, que para alguns intelectuais havia sido uma injustica, o de Colombia seria uma justa homenagem ao descobridor. Os antecedentes mais distantes do nome estavam na Historia de las Indias, do frei Bartolomé de las Casas, que, indignado, indicava que Vespticio teria roubado de Colombo a gloria de daro nome a terra firme, e que esta deveria chamar-se Columba, Tierra Santa ou Tierra de Gracia, que o proprio genovés descrevia em suas cartas de relacao. Da América do Sul, no final do século XVIII, Francisco de Miranda teria o impulso de vindicagio histérica. Segundo indica Rosenblat, a Colombia era, para Miranda, a grande unidade hispano- ~americana, € empregava esse nome no lugar de América espanhola, 44 Com algumas modificagécs, a sesao referida 8 Republica da Colombia foi publicada em Dora Davila. “Republica de Colombia’. In: Elias Pino Iturrieta (coord). Historia minima de Venezuela. Caracas: Funtrapet, 2004, pp. 53-86. bE “PEQUENA VENEZA” A REPUBLICA BovaRIANA DA VENEZUELA 215 continente hispano-americano ou colénias espanholas.** O primeiro testemunho do uso desse nome em Miranda data de 1792, em uma carta enviada de Paris ao secretério Hamilton.** De Coliimbia, de uso inglés, a Columbus, de raiz latina, e Colombia, de tradi¢ao na toponimia hispano-americana por causa do rio Colémbia, chamado assim em 1775 por um espanhol na Colimbia Britinica, Miranda chegou a Colombeia, o qual utilizaria em 1805 para intitular seu grande arquivo pessoal de sessenta e trés volumes. Com terminacao grega, significava papéis e coisas relativas 4 Colombia. Em discurso redigido em 1801, referia-se “aos povos do continente hispano-americano”, mas seguidamente subs- tituiria o denominativo por “aos povos do Continente Colombiano’” (al- cunha hispano-americana).” Como gentilicos de profunda identifica- a0 regional, “Colombianos” e “Colombia” vao aparecer indistintamente em suas cartas. Durante os preparativos da fracassada expedigao as cos- tas venezuelanas, escreve: “Bravos filhos da Colémbia, exército da Co- lombia, nossa querida Colémbia”, e em 1806, do quartel-general: “Don Francisco de Miranda, Comandante-Geral do Exército Colombiano, aos povos habitantes do Continente Américo-Colombiano”.* Os nomes de Colombia e colombianos seguirao presentes em Mi- randa depois dessa invasao as costas da Venezuela em 1806. Em 1808, elabora um projeto constitucional para os cidaddos americanos; se o corpo legislativo estava constituido por representantes de diferentes assembleias provinciais, 0 nome que o designaria seria Concilio Co- lombiano. A capital federal dessa reptiblica se situaria preferencialmente no istmo de Panam e levaria o nome augusto de Colombo, a quem se deve o descobrimento desta bela parte da terra.” Por volta de 1810, publica em Londres cinco numeros de um jornal intitulado E/ Colom- biano, para levar as noticias mais importantes do momento aos habitan- tes do Continente Colombiano.” Uma vez em Caracas, ¢ a luz dos acontecimentos da Junta Supre- ma (1810) sob a influéncia de Miranda, os termos do texto enviado a 45 A. Rosenblat, op. cit, p. 44. 46 Ibidem. 47 Ibidem, p. 45. 48 Ibidem. 49 Ibidem. 50 Ibidem. 216 Dora Davita Menpoza Bogoté era para iniciar tratados de amizade, alianga e uniao federativa entre as provincias da Confederagio Venezuelana eo estado de Cun- dinamarca."' No primeito Congresso da Venezuela, a nova terminolo- gia passaria aos textos legais, Em 1812, quando 0 Congresso ditou um regulamento para a elei¢io de um Poder Executivo, dispds no artigo 3 que os candidatos deviam possuir as caracteristicas de ter trinta anos de idade e ser nascidos no Continente Colombiano (antes América Espa- nhola).? Os ideais colombianos de Miranda continuariam nas ideias de outros crioulos. Na chamada Carta de Jamaica, famoso escrito de Simén Bolivar (1816), este expunha a ideia de unir a Nova Granada com a Venezuela em uma repiiblica centralista cuja capital poderia ser Maracaibo ou uma cidade fandada nos confins de ambos os paises, e que poderia chamar-se Las Casas. Com a Constituigio de 1811, 0 nome de Venezuela ficaria nas proclamagées e discursos da chamada revolugao independentista, de- nominagao que sc estenderia até a Constituicéo de Angostura, de 1819: Nés, 0 Povo da Venezuela, a Republica da Venezuela, o Congresso Nacional da Venezuela. Depois de 1819, o primeiro nome que havia tentado romper politicamente como passado colonial a partir da deno- minacio, teria agora outra etapa politica para dar ao processo republi- cano um novo curso. Conhecido como 0 momento de consolidagao das democracias representativas e da legalidade do novo Estado nacional, 0 periodo da Repiblica da Colombia constituiria o ideal de integracao de Jovens reptiblicas que, na historiografia, foi interpretado como o fracas- so de uma uniao politica impossivel de conseguir, seja pelas disputas de poder, pelas diferencas de identidade regionais, ou por ambas. No dia 15 de fevereiro de 1819, dia em que se instalava 0 Con- gresso de Angostura para prosseguir com a ideia da unido sul-america- na, seu mais fervoroso promulgador mencionava: “Se nao ha um res- peito sagrado pela Patria, pelas Leis, ¢ pelas Autoridades, a Sociedade é uma confusio, um abismo [.. .] Para tirar deste caos nossa nascente Republica, todas as nossas faculdades morais sero insuficientes se nao fundirmos a massa do povo em um todo”. Para um politico crioulo 51 Citado por A. Rosenblat, op. cit., p. 46. 52 Ibidem. 53 "Discurso pronunciado por el Libertador ante el Congreso de Angostura el 15 de febrero de 1819, dia de su instalacién’. In: Simén Bolivar. Obrer completas, Caracas: Mi- nisterio de Educacién Nacional de los Estados Unidos de Venezuela, 1930, pp. 691-2, DE “PEQUENA VENEZA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 217 como Simén Bolivar, a uniéo dessa massa do povo, do governo, dos corpos legislativos, o todo desse espirito nacional, se concretizaria na denominada Republica da Colombia, entidade territorial que entre 1819 ¢ 1830 estaria constitufda pelo reino da Nova Granada, a antiga Capi- tania Geral da Venezuela, e a Presidéncia de Quito. Embora no Con- gresso de Angostura, em 1819, a criagio da Republica da Colombia fosse oficializada, os antecedentes da unido estavam relacionados a pra- tica republicana que essas regides (Nova Granada, Cundinamarca, Vene- zuela ¢ Quito) haviam mostrado ao redigir suas constituigdes, de modo que fazer uma frente comum de espirito nacional integrado seria um elemento de forca maior para o fortalecimento dessas republicas. A recente historia politica das trés inspirava o ideal de uniao. No periodo de 1819 a 1821, a recém-nomeada Colémbia havia sido uma republica no papel. A Constituicao sancionada em Angostura dois anos antes regia precariamente, porque a guerra continuava e sé uma parte do territério se encontrava liberada. A sua caracteristica fun- damental e transcendente era a ideia de Estado centralista, e um marca- do rechago ao sistema federal. Esse espirito seria mantido no projeto integracionista pela Constituigdo de 1821. Até o estabelecimento do Congresso de Cticuta, em 1821, a estrutura do novo Estado indepen- dente nao seria vista com mais clareza. Alguns autores contemporaneos indicam que o principio de unidade gra-colombiana nao se veria amea- ado até 1826, ¢ que o patriotismo compartilhado ¢ o sentimento de manter uma frente comum unida levariam, indefectivelmente, a unio das reptiblicas. No entanto, deve-se apontar que alguns obstéculos fo- ram inevitaveis nesse transito de unidade. Manter regides pequenas em harmonia, dar coesao a uma vastidao territorial que era maior em terri- tério que o antigo Vice-Reino e, sobretudo, esquivar os interesses dispu- tados entre o poder civil e o militar em estado de guerra eram s6 algu- mas das causas que fariam que a republica tivesse um nascimento debilitado, e que durante a sua efémera vida, mais do que resolver as diferengas, elas fossem agravadas. Governar um vasto territério foi o desafio do novo governo. Uma vez sancionada a Constituicdo, comegariam a aflorar os problemas que, ao longo do tempo de uniao, seriam a chave do fracasso: os econémicos, 54 Sem levar em consideragio estudos, que ainda nao foram feitos, sobre as reagdes socitis de outros setores menos favorecidos politicamente. 218 Dora Davita Mennoza concentrados na depressiio econdmica que a guerra havia deixado; os politicos, pelos conflitos de interesses regionalistas e caudilhistas em pugna; e, finalmente, as lutas internas entre federalistas e centralistas, e que se materializaram entre os chamados bolivarianos e santanderistas. A este panorama se somaram os problemas de cardter internacional, agravados pelos interesses neocolonialistas da Inglaterra e dos Estados Unidos. Com o seu capitalismo em expansio, agiam de acordo com as suas conveniéncias, ¢ prejudicavam a nascente unido. O conjunto dessa dinamica interna, complexa ¢ miltipla, fez que a grande nagao fosse Praticamente ingoverndvel em Bogota, ¢ que a reagdo desembocasse em descontentamentos. Estes foram aproveitados por algumas provincias e, do lado da Venezuela, comegaram a ser piblicas as tentativas separatistas. Alguns autores contemporaneos se perguntam por que o grupinho de politicos venezuelanos aceitou originalmente a ideia de um Estado colombiano unitario; mas é verdade que o prestigio e a forca politica de crioulos como Simén Bolivar, e a conveniéncia de combinar forcas em uma s6 frente contra a Espanha, constituiram as razdes mais poderosas para administrar e manter a unido. Essa integrag4o nao podia ser reali- zada inteiramente se nio contasse com um amplo apoio popular, e era esse apoio, justamente, o que faltava 4 grande maioria da sociedade para fazer o projeto ter sucesso. As razdes do separatismo venezuelano em relagao 4 Colombia estavam justificadas por causas econdmicas, sociais € politicas, mas pesava principalmente a autonomia deslocada e subor- dinada das elites crioulas a autoridades tidas como desconhecidas e afastadas do territério que havia sido sempre seu centro de ago. Essa foi, sem cuivida, a causa matriz que detonaria progressivamente, na mente dessa porgio social, a necessidade de separacao, dando lugar a subse- quentes acontecimentos que levariam a desintegragao total da Republi- cada Colombia. A necessidade de ensaiar outro projeto politico menos ambicioso se impunha. As disparidades entre federalistas e centralis- tas, entre um liberalismo federal ou um federalismo liberal, se impu- nham cada vez com maior forca, agora de uma Pperspectiva de perso- nalismo regional. Desde 1830, 0 nome de Republica da Venezuela seria 0 novo emblema para nomear a nacdo, sem nenhuma inovagio nas seguintes cartas magnas de 1857 € 1858. Seria em 1864 quando se introduziria novamente uma mudanga: os Estados Unidos da Venezuela. No papel, DE “PEQUENA VENEZA” A REPUBLICA BOVARIANA DA VENEZUELA 219 o federalismo voltava a aparecer, e 0 nome se manteria inalteravel du- rante as constituigdes seguintes: 1874, 1881, 1891, 1893, 1901, 1904, 1909, 1922, 1925, 1928, 1929, 1931, 1936 e 1947, Jé na segunda me- tade do século XX, em 1953, quando a nado voltava a regenerar-se sob 9 novo ideal nacional, de autoria de Marcos Pérez Jiménez, na voz da Assembleia Constituinte dos Estados Unidos da Venezuela, depois de oitenta e nove anos, desde 1864, renunciava-se novamente ao que havia sido uma tradic¢fo nominal: a nacdo venezuelana € a associagao dos venezuelanos em um pacto de organizacio politica como nome de Re- publica da Venezuela. Nossa reviso das diversas narrativas sobre o nome da Venezuela nos fala da configuracao de seu espago transformado em instituicio ou da integracao de uma ambigua nacionalidade que sempre foi mais de papel gue de fato. Em cada um dos momentos de mudanga de nome, a pretensio foi que se substituisse e se mudasse, quase automaticamente, a histéria, o instante vivido, e que a mengdo do novo nome de pais rompesse com o passado e€ se constituisse na esperanca de melhores tempos. Visto o processo de construcao de identidades da perspectiva das esferas do poder politico, o fato de nomear contribuiu para aglutinar grupos e interesses que se identificaram com os processos. Seus con- tetidos de tradigo, simbologia ¢ interesses operam, quase sempre, a partir do saber politico e seu instante de poder. Com as mudangas de nome pretende-se defender posigdes ante outros grupos de poder que defendem outros interesses. Entre uns ¢ outros, embora o nome haja mudado, parece que as raz6es continuaram sendo as mesmas.

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