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Marcelo Lopes de Souza

MUDAR A CJDADE
UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA
AO PLANEJAMENTO
E Â GESTÃO URBANOS

fl Edição

1B
BERTRAND BRASIL
Copyright© 2001 Marcelo Lopes de Souza

Capa: Leonardo Carvalho

2010
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP�BRASIL. CATALOGACAO•NA-FONlE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ

S716m Souza, Marcelo Lopes de


6� ed. Mudar a cidade: uma íntrodução crítica ao planejamento e
à gestão urbanos/ Marcelo Lopes.de Souza. - 6� ed. - Rio
deJaneito: Bertrand Brasil, 2010.
558p
lneluibibliogr.ifia
ISBN ·978-85-286-0856-4

1. Sociologia urbana. 2. Planejamento urbano. 3; Cidades e


vilas. I. Título.
CDD-307.76
CDU-316.33456

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1. Os conceitos de planejamento
urbano e gestão urbana

l.l. Planejamento e gestão: conceitos rivais


ou complementares?

O conceito de gestão, há bastante tempo estabelecido no


ambiente profissional ligado à administração de empresas (gestão
l'111presarial), vem adquirindo crescente popularidade em conexão
com outros campos. No Brasil, desde a segunda metade da década de
HO se vem intensificando o uso de expressões como gestão urbana,
J\Cstão territorial, gestão ambiental, gestão educacional, gestão de
f'iência e tecnologia e outras tantas.
Na interpretação de alguns, a palavra gestão veio bem a calhar
rnmo um sucedâneo do termo planejamento. Largamente desacredi-
1ado e associado a práticas maléficas e autoritárias na esteira da
"crise do planejamento (urbano e regional)'' que, inicialmente em um
plano ideológico, chegou ao Brasil nos anos 80 (sob influência das
críticas de corte marxista iniciadas na Europa e nos EUA nos anos
70), a própria palavra planejamento deveria, para vários analistas, ser
kmida e, na melhor das hipóteses, substituída por outra. (Se bem que
alguns intelectuais, conforme já foi exposto na Introdução, passaram
a acalentar uma curiosa ojeriza pela idéia de intervenção em si.) No
que concerne aos fundamentos materiais do exercício do planeja-
111cnto em uma sociedade capitalista - um Estado bem organizado e
rnm capacidade de intervenção e realização de investimentos -, a
crise fiscal do Estado, o colapso do modelo de substituição de impor-
1 a�ões e do estilo desenvol vimentista pautado na state-cellfred matrix


45
(CAVAROZZI, 1992), tudo isso sob a égide ideológica do neolibera­
lismo, concorreram decisivamente, "pela direita", no Brasil da déca­
da de 90, para enfraquecer o sistema de planejamento e a própria
legitimidade do exercício de planejar. Contra esse pano de fundo, o
termo gestão traz, para alguns observadores, a conotação de um con­
trole mais democrático, operando com base em acordos e consenso,
em contraposição ao plancj amento, que seria mais tecnocrático
(MACHADO, 1995).
Não obstante, a pretendida (não por todos, felizmente) substitui­
ção de planejamento por gestão baseia-se em uma incompreensão da
natureza dos termos envolvidos. Planejamento e gestão não são ter­
mos intercambiáveis, por possuírem referenciais temporais distintos
e, por tabela, por se referirem a d(ferentes tipos de atividades. Até
mesmo intuitivamente, planejar sempre remete ao futuro; planejar
significa tentar prever a evolução de um fenômeno ou, para dizê-lo
de modo menos comprometido com o pem,amcnto convencional, ten­
tar simular os desdobramentos de wn processo, com o objetivo de
melhor precaver-se contra provâ1 1eis problemas ou, 111versa111ente,
com o fito de melhor tirar partido de prováveis benefícios. De sua
parte, gestão remete ao presente: gerir significa administrar uma
situação dentro dos marcos elos recursos presentemente disponíveis
e tendo em vista as necessidades imediatas. O planejamento é a pre­
paração para a gestão futura, buscando-se evitar ou minimizar pro­
blemas e ampliar margens de manobra; e a gestão é a efetivação, ao
menos em parte (pois o imprevisível e o indeterminado estão sempre
presentes, o que torna a capacidade de improvisação e a flexibilidade
sempre imprescindíveis), das condições que o planej amento feito no
passado ajudou a construir. Longe de serem concorrentes ou inter­
cambiáveis, planejamento e gestão são distintos e complementares.
Não menos que a própria gestão, ou seja, a administração dos
recursos e das relações de poder aqui e agora, o planejamento -
algum tipo de planejamento - é algo de que não se pode abdicar.
Abrir mão disso equivaleria a saudar um caminhar errático, incompa­
tível com a vida social organizada, independentemente do modelo e
do grau de complexidade material da sociedade (pois até mesmo
46
D
sociedades tribais e grupos de caçadores e coletores "planejam" sua
vida e suas atividades). Como bem exprimiu Carlos Matus,

[s1e planejar é sinônimo de conduzir conscientemente, não


existirá então alternativa ao planejamento. Ou planejamos ou
somos escravos da circunstância. Negar o planejamento é negar
a possibilidade de escolher o futuro, é aceitá-lo seja ele qual for.
(MATUS, 1996, tomo I, p. 14)

Um desafio que se coloca de imediato, ao se debruçar sobre a


tarefa de planejar, é o de realizar um esforço de imaginação do futu­
ro. Não deve haver sombra de dúvida quanto ao fato de que o plane­
jamento necessita ser referenciado por uma reflexão prévia sobre os
desdobramentos do quadro atual- ou seja, por um esforço de prog­
nô�tico. Não há ação, muito menos ação coletiva coordenada, que
possa prescindir disso. Descurar indiferenciadamente a importância
do planejamento, alegando, dentre outras coisas, que não se pode
predizer o futu�o, trai uma irresponsabilidade típica da atitude livres­
rn e diletante, em que o comprometimento com a ação transformado­
ra é, quando muito, puramente retórico. Entretanto, o linearismo ou
cartesianismo que se aninha na definição de previsão como uma ante­
cipação da evolução de um fenômeno precisa ser evitado, por sugerir
,1 possibilidade de prever confiavelmente o curso até mesmo de pro­
r�ssos complexos, como o são, em geral, os processos sociais. Na
liasc das abord.tgens simplistas ainda hoje largamente empregadas
l:s1Ct um viés organicista ou mecanicista, em que o analista presume
ser possível transpor para a investigação de fenômenos sócio-históri­
nis esquemas e métodos oriundos das ciências naturais.7 A bem da

de pla11eja111e11/o �mw1id pal i11te·


, , e' que , por e xemplo, o capítulo 6 do Curso
, As.snn
das t
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cn1cas com: e n-
rra uma br v panorâ mica e
,·mdo d e Célson F e rrari, 0 qual enc e e e
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i 1 , ,nais de prognose, contém a se guinte obse rvação: "[é] import máqui na. Assim
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de é um sist e ma dinâmico qu e trabalha como uma
'mod los' d suas máqui nas, os planeJa dorcs, dotado s
Fngcuharia M e cânica e labora e e
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,IL'.s�c conc e ito dinâmico d e cidade , passaram a
e

�,,·,;,1 1ar sJluaçõ e s hipotéticas e , princip


alm ente , para, a partir dos 'modelos', fazer
ARI, 1979:117).
pr<'visõcs a resp eito d e s e u futuro dese nvolvim e nto" (FERR


47
verdade, a crítica das abordagens e técnicas de predição baseadas em
projeções de curvas evolutivas e extrapolação de tendências vem
sendo operada já há vários anos, com maior ou menor sofisticação,
não apenas fora, mas também dentro do campo do planejamento,
devido ao seu simplismo; por exemplo, por parte daqueles que se
ocupam da construção e do aperfeiçoamento da técnica de cenários.s
De fato, a construção de cenários não deve ser entendida como um
mero aperfeiçoamento das técnicas tradicionais de previsão, mas sim
como uma ruptura qualitativa, epistemológica, em relação a elas:
construir cenários não significa ( ou, pelo menos, não deveria signifi­
car), na verdade, tentar "prever" o futuro, em sentido forte, como se
a história fosse passível de completa determinação ou, pelo menos,
como se fosse razoável, em nome de um pretenso pragmatismo, igno­
rar a dimensão de contingência que sempre existe nos processos his­
tóricos. Construir cenários significa (ou deveria significar) apenas
simular desdobramentos, sem a preocupação de quantificar probabili­
dades e sem se restringir a identificar um único desdobramento espe­
rado, tido como a tendência mais plausível. Na verdade, a todo
momento, mesmo no quotidiano, as pessoas planejam as suas ativida­
des com a ajuda de simulações: "se o trânsito de estiver bom, vou che­
gar no trabalho e fazer primeiro isso, depois aquilo, depois aquilo
outro, antes de entrar em sala para dar minha aula; se o trânsito estiver
ruim e eu perder tempo, irei direto para a aula, e farei, depois, isso e
aquilo, deixando aquilo outro, provavelmente, para amanhã ...". Trata­
se, portanto, de uma abordagem realista do desafio de realização de
prognósticos, com a condição de não se ceder à tentação racionalista
de formalizar excessivamente a simulação, dando-se a impressão de
que três ou cinco ou seis cenários esgotam as possibilidades quanto ao
futuro. Fazer isso equivaleria a esvaziar a abordagem de sua flexibili­
dade radical, de sua abertura para o imprevisível, transformando-a

8 A literatura sobre cenários disponível em português é muito escassa. SCHWARTZ


(1995) pode servir de introdução, mas seu nível é, essencialmente, de div ulgação
científica; a prosa é agradável, mas o leitor não encontrará muitos detalhes. Por outro
lado, tanto em inglês quanto em alemão há uma grande quantidade de trabalhos de
alto nível sobre o assunto (por exemplo, STRÁTER [1988]; STIENS [1998]).

48
D
1111ma mera extensão da idéia convencional de projeção. Para um com­
plemento dessa discussão remete-se o leitor ao box 1.

Box 1

Prognóstico e cenários

O epistemólogo Mario BUNGE (1989:625-6) estabeleceu claras dife-


1t11�·as entre expectativa (uma atitude automática de antecipação, presen­
te cm todos os animais superiores), conjectura (um intento consciente,
l'111hora despido de fundamentação racional, de representar o que é. foi ou
scr{i), profecia (uma conjectura em larga escala com relação ao futuro),
r,m gnose (uma conjectura informada, mas prisioneira de dados empíricos
imediatos e do senso comum) e predição (uma previsão baseada em teo­
rias e dados científicos). Claro está, por conseguinte, que, para Bunge
apenas a predição é científica. No entanto, Bunge, com sua formação de
i'ísico, incorpora, como tantos outros filósofos da ciência, a propósito
desse como também de outros assuntos, um preconceito de teor positivis­
ta. ao generalizar para toda a atividade científica os cânones próprios e
11ceitáveis para as ciências naturais.
O tipo de predição preconizado por Bunge é, na verdade, excessiva-
111e11te formal. funcionando como uma camisa-de-força no caso das ciên­
das sociais. Em contraste, Carlos MATUS (1996:28 e segs.), mesmo
sendo desnecessariamente condescendente com a predição, ou seja, com
o enfoque formalista em matéria de reflexão sistemática sobre o futuro,
l'�tá suficientemente atento para as peculiaridades da sociedade como
ohjl'lo. Matus consegue, com a sua abordagem das "quatro trincheiras''
<pa1tc fundamental de sua concepção do planejamento estratégico situa­
l'iunal), em que ele incorpora a técnica dos cenários e vai mesmo um
p,111co além. ultrapassar o linearismo.
t\s quatro "trincheiras" de Matus são, a bem da verdade, quatro
l'�l{1gios:

• Primeira trincheira: capacidade de predição. Embora concedendo-


11 ll' alguma importância, Matus reconhece que esta trincheira- na qual o
q111• � feito é estabelecer uma única imagem ou um único fio evolutivo
l'm.-1 o futuro, extrapolando uma tendência-é a mais vulnerável de todas.
• Segunda trincheira: capacidade de previsão. Mattls associa o termo
1,11·visào a uma simulação flexível, que basicamente corresponde à cons­
f1t1\·llo Jc cenários alternativos.


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• Terceira trincheira: capacidade de reação veloz ante a surpresa. Uma
vez que nem mesmo a técnica !1exível dos cenários pode dar conta plena­
mente do inesperado, faz-se mister desenvolver mecanismos que permi­
tam u m mínimo de agilidade por parte do agente tomador de decisões
envolvido diante de surpresas, especialmente do tipo negativo (catástro­
fes, acidentes etc.).
• Quarta trincheir a: aprender com os erros. Como mesmo a terceira
trincheira , por mais bem construíd a que seja, não é infalível, ainda resta
(ao menos como consolo ... ) uma quarta possibilid ade, diante de proble­
mas que não consegui mos debelar ou de erros cometido s: extrair lições
úteis para o futuro e tentar aprender com os próprios erros.

Como se vê, Matus utiliza o termo previsão em um sentido positivo,


associando-o à aplicação da técnica dos cenários. Neste livro, diversa­
mente, como o leitor notou, o termo previsão (assim como predição) pos­
sui uma conotação negativa, de vez que, em muitos trabalhos, esse rótulo
é empregado para recobrir projeções formalistas, no estilo extrapolação
de tendências. O termo mais abrangente é, no presente l i vro, prog116stico,
o qual, portanto, não possui necessariamente o caráter pré- científico atri­
buído por Bunge. Tanto previsões (ou predições) quanto cenários são
tipos de prognóstico; o primeiro, segundo a terminologia aqui adotada,
correspondendo a um tipo muito formal de prognóstico, inadequado para
lidar com fenômenos sociais, e o segundo correspondendo a um prognós­
tico flexível, adequado para as necessidades de cientistas sociais. De
resto, com a exceção da "pri meira trincheira" de Matus ( que deve ser, por
conseguinte, recusada como imprópria) . as outras três "trincheiras" equi­
valem a uma imaginativa concepção do esforço de se lidar com o futuro
no planejamento, útil e válida para o domínio das ciências sociais aplica­
das. Tendo em mente as ressalvas e ponderações anteriores, a sucessão de
''trincheiras" poderia ser reescrita como se segue, mais de acordo com o
espírito do presente livro:

• Primeira trincheira : capaciaade de prog11óstico. correspo11dendo à


habilidade de co11struir diversos cenários alternati vos d e forma elega11te,
consiste11te e realista. Isso exige tanto uma grande capacidade de selecio­
nar e analisar dados e informaç ões empírico s adequad os quanto sólidos
conhecim entos teóricos. Juntos, esses dois predicad os represen tam a
chave para interpreta ções intel igentes da dinâmica sócio-esp acial, condi­
ção sine qua ,wn para refletir consisten temente sobre a evolução do qua­
dro atual. É evidente que, além disso tudo, uma forte dose de imaginaç ão

50
o
l' requerida. Vale registrar que os cenârios não devem ser nem muito
11umerosos, o que torna o conjunto pesado e pouco manuseável, nem tão
poucos, resvalando para o simplismo (por exemplo, deve-se evitar deli-
11L·ar apenas dois cenários, um "otimista" e outro "realista", o que deixa de
l,it.!o justamente as situações intermediárias que freqüentemente são as
mais prováveis).
• Segunda trincheira: capacidade de reação veloz ante a surpresa,
prt'parando-se para se organizar eficazmente para dar respostas mesmo
diallle de eventos traumáticos improváveis ou imprevisíveis. Esse é o tipo
de preparação que contribui não para antecipar o futuro, mas para evitar
que se instale o pânico ou a total descoordenação dos agentes pegas de
surpresa por um evento inesperado, de grande e rápido impacto {especial­
mente negativo).
• Terceira trincheira: capacidade de extrair lições do passado .

O desafio, então, é o de planejar de modo não-racionalista e fle­


xí vd , entendendo-se que a história é uma mistura complexa de deter-
1 1 1i11ação e i ndetermi nação, de regras e de contingência, de níveis de
nmdicionamento estrutural e de graus de liberdade para a ação indi­
vidual, em que o esperável é, freqüentemente, sabotado pelo inespe­
rado - o que toma qualquer planejamento algo, ao mesmo tempo, ne­
L'cssário e arriscado. A história é, para usar os termos do filósofo
( 'urnelius CASTORIADIS ( 1 975), um processo de autocriação da
sociedade, ou sej a, onde uma verdadeira criação ex 11ihilo de sig11iji­
rnções imaginárias sociais9 tem constantemente lugar, indo além de
1 1 1 1 1 a simples "auto-organ ização" no sentido das ciências naturais.

� Os con�eitos de "imaginário" e "significações imaginárias s � iais_" dese ?1penham


um papel central na obra de Castoriadis. As significaç_ões ima�mánas sociais (ou o
_ .
1111aginário) não admitem nem ser reduzidas ao conceito marxista de ideolog� (no
sL·nlido usual de "falsa consciência'') nem propriamente ser empregado como s100111-
1110 do amplo conceito antropológico de cttlrura ( que inclui, também, a ch� mada cul-
1 11rn material: utensílios, habitações etc.); tampouco podem � las ser � 1st�� co � o
representando meramente "imaginação" (no sentido de irrealidade). S1gmf1caçoes
imaginárias sociais são muito reais em sua efetividade. Elas correspondem ªº� vai�
.
res societais nucleares (crenças, mitos, visões de mundo... ) que fomecem um senu­
du ' para O mundo de cada sociedade particular e modela� a psiquê dos indivíduos.
º

Essa expressão reaparecerá outras vezes no decorrer deste hvro.


51

Esse processo de autocriação do Social na e pela história i n c l u i ,
decerto, também a dimensão espacial, isto é , os vínculos múltiplos e
complexos entre as relações sociais (produtoras de espaço) e a espa­
cialidade (que condiciona, de maneiras variadas, as relações sociais)
- vide SOUZA ( 1 997b ). À luz disso, a cidade, produto dos processos
sócio-espaciais que refletem a interação entre várias escalas geográ­
ficas, deve aparecer não como uma massa passivamente modelável
ou como uma máquina perfeitamente controlável pelo Estado (tecni­
camente i nstruído por planejadores racionalistas e tecnocráticos),
mas como um fenômeno gerado pela interação complexa, jamais ple­
namente previsível ou manipulável, de uma m i ríade de agentes
modeladores do espaço, i nteresses, significações e fatores estrutu­
rais, sendo o Estado apenas um dos condicionantes em jogo (ainda
que seja um condicionante crucial nas modernas sociedades capita­
listas). A autocriação da realidade social (sócio-espacial), evidente­
mente, não é sinônimo de "pura espontaneidade"; o poder da vonta­
de e a ação premeditada (não só por parte do Estado, mas também de
grupos específicos d i retamente, ou mesmo, em um outro contexto
político-social hi potético, dos cidadãos autogeridos) nunca estão
ausentes. Uma visão mais abrangente e flexível do papel do planeja­
mento , que faça justiça à complexidade dos quadros de ação sócio­
espaciais concretos, deve desembocar em uma perspectiva que rela­
tivize o próprio dualismo, tão usual quanto simplista, entre o "espon­
tâneo" e o "planejado" nos processos de produção do espaço social:
espontâneo e planejado interagem o tempo todo de maneira nada
simples; aquilo que parece, à primeira vista, totalmente espontâneo,
se revela, olhando mais deti damente, fruto de uma pletora de ações
dispersas, muitíssimas delas deliberadas e não poucas formalmente
programadas, que criam uma sinergia.
Pode-se ainda dizer que não basta uma concepção de planeja­
mento ser politizada e arejada, como a de Carlos Matus, a qual, ade-
1 1 1 a i s disso, como filha do Iluminismo, se mostra comprometida com
um ideal de emancipação humana - compromisso esse encarnado
pela !'rase "o planejamento é ( .. . ) uma ferramenta das lutas permanen­
tes que o homem trava desde o início da humanidade para conquistar
52
D
�raus crescentes de liberdade" (MATUS, 1 996, tomo I, p. 1 5 ) .
f
/\ inal, mesmo u m a tal concepção apresenta problemas, sob o ângu­
lo da necessidade de desmistificar e democratizar radicalmente o pla­
nejamento, se não se percebem as limitações das várias instituições
11s quais normalmente se atribui um papel especial no contexto do
planejamento em sociedades capitalistas, a começar pelo Estado e a
democracia representativa. A autocriação da sociedade e, nesse con­
texto, a produção do espaço urbano, deve, o mais possível (esse é o
coração do assumido background polírico-filosófico deste livro), se
dar como um processo no qual tomam parte indivíduos li vres e lúci­
dos, o que depreende um olhar crítico sobre a tutela dos indivíduos
por algo como um aparelho de Estado e sobre as usuais intransparên­
l'ia e dimensão autoritária das relações de poder (e do planejamento e
da gestão da cidade) nas sociedades capitalistas (ver SOUZA
1 2000b], assim como discussões subseqüentes neste livro, para um
nprofundamento desse ponto).
Sej a como for, em uma época em que a capacidade regulatória e
de investimento do Estado se acha, muito particularmente no que
tange aos Estados superendividados da periferia e d a semiperiferia
rnpitalistas, bastante reduzida, adotar modelos menos centralizado­
res e rígidos de planejamento não é apenas uma opção ideológica: é
1 1111a necessidade econômica e política. Descentralização e flexibili­
dade, certamente, não precisam traduzir-se por "mercadofilia", no
c� t i l o preconizado pelos ultraconservadores (lembrar dos modelos
hat izados entre os anglo-saxões de tre11dp/a1111i11g, /everage p/a1111i11g
l' 1 ,ril'ate-management p/a1111i11g, mencionados na Introdução). A
democratização cada vez maior da ação coordenadora do Estado,
nhrindo-se para incorporar elementos de democracia participativa
1a11tl1 na gestão como no planejamento, é uma alternativa à submissão
nnftica ao mercado - submissão essa que é fonte de crescente esgar-
1j11111cnto do tecido social - e, aos "fascismos societais" discutidos por
llt ,aventura de Sousa SANTOS ( 1 999).
1 >e todo modo, é preciso reiterar que, ainda que retirada de seu
11 111igo pedestal e conduzida de modo democrático e não-rígido, a ati­
vidmle de planejamento jamais se confundirá inteiramente com a de


53
gestão. Mesmo percebendo que, na prá tica (e não apena s termi nol o­
gica mente), o pla nejamento vem perdendo es pa ço d ia nte do i media­
tismo e do pri vatismo característicos da ação do Estado pó s-desen­
v olv imenti sta no B ra sil, seria tolice i ma gina r que o planeja mento
desapa receu ou está em vias de desaparecer e que, a gora, "tudo é ges­
tã o". Nesse sentido, é la mentável e, ao mes mo tempo, sintomá tico d e
u ma postu ra fraca e defensiva q ue John Fried ma nn, em u m texto des­
ti nado a defender a idéia de pl aneja mento, ada pta ndo-a para fazer
face ao q ue ele denominou de "o desafio do pó s- modern is mo", tenha
acabado aproximando excessiva mente a sua concepção d e um pl ane­
jamento renovado c o m o espíri to pró pri o da ges tã o, c onfund i ndo
ambas a s coi sa s, ao afirmar q ue "( ... ) a ênfase ( ... ) dever ia ser posta
nos processos q ue operam no tempo a tual ou em tempo real, porq ue
os planejadores somente podem espera r ser eficazes no presente efê­
mero e ai nda não dec idido" (FRIEDMANN, 1992:86). No fundo,
pretender defender o pl aneja mento (al gum tipo de planejamento ou o
pl anejamento tout court) abrindo mão de u ma orientação pa ra o fu tu­
ro ou, pelo menos, mi nimiza ndo a i mportâ ncia d isso em favor de um
centramento no tempo presente, é incorrer em uma contradiçiio.
A idéia, acalentada por al guns, de q ue o termo pl aneja mento
merece ser sub sti tuído pela pa lavra gestão pel o fa to de o pri meiro
possui r u ma ima gem comprometida com prá ticas conservadora s, é
absurda também por outra razão: gestão é admi nistração do presente
com a aj uda da vontade e da c ria tiv idade e, também , em face dos con­
diciona mentos herdados do pa ssado; e, como lembra FRIEDMANN
( 1987:33), "[a]d m ini stra tion refers to the ma na gement of program
routi nes a nd is therefore concerned chiefly wi th activ ities of system
ma intenance and with those elements of sy stem cha nge that are on
the verge of being i ns ti tu tionalized", enqua nto q ue o planeja mento
"is concerned mai nly with i nforming processes of sy stem change" .
Sem dúv ida, tampouco fa ria o menor sentido sugeri r que toda gestão
é "conservadora" o u " reac ioná ria", enq ua nto que o pl aneja mento
seria "progressista", de vez q ue as idéias de " rotina" e "manutenção
Jo sis tema" nada nos informam sobre que rotinas e que sistema ( ou
q ue ele mentos de q ual sistema) se pretende ma nter, assim como, por
54
D
1 1 111n, lado, a s m uda nças promovidas pel o pl aneja mento bem podem
_,,r cfc1ivadas com o objetivo de consol idar e es tabiliza r u ma ordem
•udal injus ta. O que cabe observar, de toda m anei ra, é que a presu n­
i.no <l e que a palavra gestã o pos suiria u ma na tu reza intri nseca capaz
de fnzê-la aparecer como u ma al terna tiva mais moderna e mai s pro­
,ll l'l!+.sisla pa ra o termo pla neja mento carece ta nto de base lingüís tica
q111111lo <le funda mentação lógica, em q ue pese a (frágil) jus ti fica tiva
,h, luntlo ideológico. D ev e- se nota r, en passallt, que m uito daq uilo
q u t: atual mente se abri ga sob rótul os como city ma11ageme11 t o u
11r/1m1 ma11ageme11 t, no toca nte a experiê ncias de paí ses como a
l11gla tcrra e os EUA , são, precisa mente, exemplos de um en foq ue
"c1 11presarialista"I0 - logo, franca mente conservad or. No Bra sil, o
l1m11O ges tão pa rece ser ai nda um pouco mai s plástico e menos com­
p m111c1 i<lo com algu m viés q ue seu eq ui valente i nglê s, embora seja
h11Kla11te evi dente que a sua populariza ção, em um momento em que,
1 1 0 esleira do empresarialismo, cada v ez mai s o Estado abre mã o d e

�1· 1 1 papel regula tório, su b stituind o larga mente o pla neja mento por
1 1 1 1 1 imedia ti smo mercadófilo, é sintomática d e uma tendê ncia peri go­

•n : 1 1 <le aplicação da ló gica "gerenc ial" privada pa ra o espaço urba-


1 1 1 1 , esvaz iando a di mensão pol ítica ou subsumi nd o-a peran te u ma

rn L'ional idade empresarial. Seria esse o tec noc ra ti smo "pós- moder-
1 1 0" , para mu itos tã o charmoso?

1 .2. U rbanismo, urban design e planejamento urbano

bn países com u ma larga tradição e u ma cultura de pl aneja men-


11 1 L'ousoli<lada, o planeja mento urbano é, de fa to, um ca mpo que con­
ll' q,.a os mai s diferentes profi ssionais. Nele colaboram não apena s
1 1 1 q1 1 i ll�los, mas ta mbé m c ientista s soc iai s de diferentes forma ções,

111 1 'onlt lrmc já se adiantou na Introdução, pode-se traduzir por "empresarialismo" ou


"l'l11p1ot·11,k.dorismo" o termo entrepreneuriali,m, empregmlo por HARVEY ( 1 989)
111t111 q1111lilicar o novo estilo de govemança urbana que emerge ainda nos anos 70 e se
1 1 r1 1 1 1 111 1111 1 lfo1da s�guinte, caracterizado por uma submissão acrítica aos interesses do
lllt!!,.'1 11111 1'. por uma obsessão pela competição interurbana para atrair investimentos.


55
destacando-se os geógrafos, sem contar a colaboração prestada por
especialistas em Direito Urbanon. No Brasil, porém, ainda é comum
as pessoas imaginarem que planejadores urbanos são sempre arquite­
tos. É sintomático, por exemplo, que o livro M aniére de penser
l'urbanisme, de Charles-Édouard Jeanneret, mais conhecido como
Le Corbusier, principal figura do urbanismo modernista, tenha sido
publicado no Brasil sob o título Planejamento urbano (cf. LE COR­
BUSIER, 1984). Este é um duplo equívoco, pois não apenas os arqui­
tetos (ou, mais particularmente, arqui tetos-urbanistas) constituem
tão-somente um dos vários grupos de profissionais potencialmente
ligados ao planejamento urbano, mas, além disso, devido à sua for­
mação, praticam uma modalidade específica de planejamento urba­
no. Urbanismo e planejamento urbano não são, portanto, sinônimos,
nem o primeiro esgota o segundo. Infelizmente, mesmo planejadores
comprometidos com um pensamento socialmente crítico, quando
arquitetos, costumam, no Brasil, confundir as duas coisas .1 2
Diversamente do planejamento urbano em geral, o Urbanismo
pertence, de fato e de direito, essencialmente, à tradição do saber
arquitetônico. Le Corbusier exprimiu contundentemente o ponto de
vista mais comum dos arquitetos sobre o assunto:

O urbanista nada mais é que o arquiteto. O primeiro organi­


za os espaços arquiteturais, fixa o lugar e a destinação dos conti­
nentes construídos, liga todas as coisas no tempo e no espaço por
meio de uma rede de circulações. E o outro, o arquiteto, ainda
que interessado numa simples habitação e , nesta habitação,
numa mera cozinha, também constrói continentes, cria espaços,
decide sobre circulações. No plano do ato criativo, são um só o
arquiteto e o urbanista. (LE CORBUSIER, 1984:14)

l i A expressão Direito Urbano é preferível a Direito Urbanfalico, uma vez que,


como já se disse, o Urbanismo é tão-somente um subconjunto dentro do campo do
planejamento urbano, subconjunto esse ligado a uma área de atuação profissional em
particular. A título de analogia, note-se que ninguém fala de "Direito Agronômico",
mas sim de Direito Agrário.
12 É o caso, por exemplo, de MARICATO (2000), em diversas passagens.

56
D
O arquiteto-urbanista, devido à sua formação, que lhe oferece
vários conhecimentos técnicos bastante específicos, desenvolve uma
perspectiva, um olhar distinto daquele do cientista social. Dentre
outras diferenças, uma que salta aos olhos é aquela referente à impor­
tância da dimensão estética: enquanto o cientista social tenderá, ao
li<lar com o espaço urbano, a mobilizar o seu conhecimento a propó­
sito das relações e dos processos sociais ( dimensões econômica, polí­
tica e cultural) e dos condicionamentos espaciais para extrair propo­
sições a respeito de caminhos válidos de mudança social, o arquiteto,
legitimamente, poderá derramar luz sobre aspectos funcionais e esté­
tirns. De um modo geral, assuntos concernentes ao traçado e à forma
de logradouros públicos e conjuntos espaciais intra-urbanos em geral
(volumetria, relacionamentos funcional e estético de um objeto geo­
gráfico com o seu entorno etc.), bem como ao mobiliário urbano, são
principalmente da alçada dos arquitetos; são eles que possuem a for­
mação acadêmica e o treinamento profissional apropriados: uma sen­
sibilidade estética aguçada e cultivada e uma bagagem técnica acer­
ca da funcionalidade dos traçados e objetos geográficos. Isso não sig­
nifica que os planejadores que não sejam arquitetos não precisem
cultivar a sensibilidade estética ou aprender a raciocinar consideran­
do a funcionalidade dos ob jetos geográficos ou fo rmas espaciais.
Tampouco está o autor a sugerir que o olhar arquitetônico possa ou
deva simplesmente ignorar conhecimentos oriundos das ciências
liociais, de ordem social-psicológica, política, econômica, histórica
etc. Mas o fato, o qual não se pode ignorar, é que as formações e as
licnsibilidades dos arquitetos ( cuja identidade aproxima-os, em parte,
das engenharias e, parcialmente, das artes plásticas) e dos cientistas
hu manos e sociais são e permanecerão diferentes - o que não quer
dizer que sejam incompatíveis.
Nas últimas trêsdécadas, arquitetos de matiz "pós-moderno" ou,
pdo menos, não-modernistas, descontentes com o fato de que o rótu­
lo ll d1.111ismo associou-se excessivamente ao movimento modernis­
ta, e arrostados com o desgaste ideológico da expressão planejamen-
1, 1 11rhano junto a alguns círculos intelectuais, passaram a adotar outra
e! Kprcssi'lo, urban design, para a qual a expressão portuguesa Desenho


57
Urbano não constitui um equivalente perfeito (ver DEL RIO, 1997).
Deveras, as tentativas dos urban designers de articular temas como
traçado urbano e percepção ambiental, abrindo-se para as contribui­
ções de algumas das ciências sociais (notadamente Antropologia,
Geografia e Psicologia Social), constituem esforço simpático e lou­
vável, o qual vem frutificando desde os trabalhos pioneiros de Kevin
Lynch (L YNCH, 1 9 8 0 ; ver, também, sua obra-prima: L YNCH,
1994) e Amos Rapoport (RAPOPORT, 1978). Sem embargo, sobre a
disputa terminológica entre Urbanismo e Desenho Urbano, o autor
deste l i vro deixa esta qüerela, de bom grado, aos arquitetos. O que
i nteressa, aqui, é ressaltar que, independentemente das diferenças
entre ambos, o urban design não é menos específico que o Urba­
nismo, e não mais que este pode aspirar a ser sinônimo de planeja­
mento urbano tout court.
Planejamento urbano (o qual deve, aliás, ser sempre pensado
junto com a gestão, seu complemento indissociável), sugere, por con­
seguinte, um contexto mais amplo que aquele representado pelas
expressões Urbanismo e Desenho Urbano. O planejamento urbano
inclui o Urbanismo (ou o Desenho Urbano, como preferirem); o últi­
mo é um subconjunto do primeiro. No ambiente intelectual alemão
essa distinção fica bem caracterizada, pois Stiidtebau (Urbanismo)
quase sempre é entendido como correspondendo a algo mais restrito
que Stadtplanwzg (planejamento urbano).13 No mundo anglo-saxão,
onde o termo urbanism, com o sentido de um campo de saber, não
conquistou direito de cidadania (quando muito, o termo é empregado
para se referir a um modo de vida: Urbanism as a way of l(fe é, a pro­
pósito, o título de u m texto clássico de Sociologia Urbana), as
expressões urban plamzing e town plamzing apresentam-se, de todo
modo, bastante abrangentes, compreendendo subcampos específicos
como a landscape architecture, o site plamzing, o urban design e o

13 Nas palavras de KORDA ( 1999:37), "o planejamento urbano [Stadtplammg] s e


ocupa, acima de tudo, com o direcionamento da evolução espacial e com o uso das
superfícies de uma cidade, ao passo que a missão do Urbanismo [Srddrebau] é, antes,
a apb:ação do planejamento e a modelagem formal do espaço urbano por intermédio
d .ividade construtiva" .

58
o
campo das public policies voltadas para o m e i o c i t a d i n o . Já no
ambiente intelectual francês, que nos inspirou o termo Urbanismo, é
freqüente o termo urbanisme ser tomado como sinônimo de planeja­
mento urbano (aménageme/ll de la vil/e, planification urbaine),
l'.mbora isso nem sempre ocorra. O importante, seja lá como for, é
não confundir as duas coisas, tomando a parte (o Urbanismo) pelo
lodo (o campo interdisciplinar do planejamento urbano).
Considerando-se, todavia, que diferença não significa, necessa­
riamente, rivalidade, e muito menos antagonismo, o aprendizado
r 1 1úluo entre cientistas sociais e arquitetos precisa ser aprofundado.
Arquitetos preocupados com planejamento urbano devem beber nas
l 1 1ntes das ciências sociais, por exemplo buscando treinamento com­
plementar em cursos de pós-graduação em Geografia, Sociologia e
A n r ropo logia ( c a m i n h o seguido pelo b r i l hante Carlos Nelson
1 :crrcira dos Santos nos anos 70, um pioneiro em diversos sentidos, e
por muitos outros jovens arquitetos desde então, como alguns dos
ol'icntandos de pós-graduação do autor deste livro). Eles devem fami­
liariz ar-se, ainda que em nível introdutório, com os componentes
11111is importantes e representativos do arsenal conceituai, das discus-
111'\cs teóricas e dos procedimentos metodológicos das ciências
11 1 1ciais. De sua parte, os cientistas sociais envolvidos com pesquisa
u rb a n a precisam s u perar sua usual ignorância e m matéria de
A rq 1 1 i 1c1ura. A consciência da necessidade de maior intim idade com
n d i 1 1 1 c 11são estética e de funcionalidade dos objetos geográficos deve
1hssc111i nar-se entre eles, os quais precisam incorporar conhecimen­
t 11N, li.bicos que sejam, que vão desde estilos arquitetônicos até a his-
1 i',ri1 1 do Urbanismo, passando por análise morfológica e visual. Seja
rn 1 1 10 fnr, é importante conceder que cientistas sociais e arquitetos
1e-1 1 1 d i l'c iro às suas especificidades: o pla nejamento urbano praticado
p 1 1 r cicnristas sociais forçosamente será disti nto daquele prati cado
p 1 1 1 1 1 1 q 1 1 1 tt· t o s , pois os treinamentos, os olhares e as ênfases não são
1 Ili 11 11·� 1 1 1 os.

1 ': nt


59
2. Planejamento e gestão urbanos como
ferramentas de promoção do
desenvolvimento sócio-espacial

2.1. Desenvolvimento sócio-espacial

Antes de se passar à discussão sobre o desenvolvimento em


conexão especificamente com o ambiente urbano, cabe situar o trata­
mento conceituai, inicialmente, em um plano mais abstrato·. o do
desenvolvimento sócio-espacial em geral.
As discussões sobre "desenvolvimento" tê m se apresentado
como extremamente viciadas: vícios como eco11omicismo, et11oce11-
trismo, 1eleologismo (etapismo, historicismo) e co11servadorismo
têm flagelado, em combinações e com pesos variáveis, quase toda a
literatura teórica sobre o tema, que despontou após a Segunda Guerra
Mundial. O usual, no tocante ao assunto, ainda é tomar "desenvolvi­
mento" como sinônimo de dese11volvime11to econômico, e mesmo a
maioria das tentativas de amenizar o economicismo (inclusive da
parte de um ou outro economista) não consegue ultrapassar o seguin­
te ponto: no limite, a modemização da sociedade, em sentido capita­
lista e ocidental , é o que se entende por desenvolvimento. Consi­
derações sobre problemas ecológicos e sociais, via de regra, não têm
servido para outra coisa que meramente relativizar ou suavizar o pri­
mado da ideologia modernizadora capitalista, sem destroná-la e
mesmo sem tentar questioná-la radicalmente.
Para o autor do presente l ivro, diversamente, o desenvolvimento
é entendido como uma muda11ça social positiva. O conteúdo dessa
mudança, todavia, é tido como não devendo ser definido a priori, à
revelia dos desejos e expectativas dos grupos sociais concretos, com

60
o
�l' llS valores culturais próprios e suas particularidades histórico-geo­
�r:íficas. Desenvolvimento é mudança, decerto: uma mudança para
111dhor. Um "desenvolvimento" que traga efeitos colaterais sérios
11,111 é legítimo e, portanto, não merece ser chamado como tal.
Colaborar para a superação teórica do economicismo, do etno­
l't• 111rismo, do teleologismo e do conservadorismo é algo que tem
N1do tentado pelo autor com a aj uda do conceito castoriadiano de
,11,rmromia (ver, sobretudo: SOUZA, 1996a; 1997a; 1 9 9 7 b ; 1 9 9 8 ;
]IK )Ob). É melhor, porém, antes de s e passar diretamente à exposição
i l1 1 conceito de autonomia, abordar alguns outros conceitos e idéias
r 1 1j;1 relação com a questão d a autonomia ficará evidente em seguida.
Em termos muito singelos e puramente introdutórios, pode-se
t l11. cr que se está diante de um autêntico processo de desenvolvimen-
11 1 sóc io-espacial quando se constata uma me/lroria da qualidade de
1•1,/1 1 e um aumento da justiça social. A mudança social positiva, no
l 'IIM>. precisa contemplar n ã o apenas a s relações sociais m a s , igual-
1111•1 1 t c . a espacialidade. A importância do espaço ( que é palco, fonte
111'. recursos, recurso em si [localizações], arena, referencial simbóli­
l'1 1/Hknlitário e condicionador; que é substrato material, lugaru e ter­
' 1 1 ,írio l !í ), na sua multidimensionalidade, tem sido comumente negli-

t◄ A 1 1·k1 foda, aqui, é à idéia de lugar enquanto um espaço vivido e dotado de signi­
lh ,11111, 11111a realidade intersubjetivamente construída com base na e.x periência con-
1 t,•lt1 ,ll· imlivíduos e grupos. Nesta acepção, mais específica, lugar não é, simples-
1111 111,·. �i11,111i1110 de local ou um espaço qualquer, delimitado segundo critérios pura-
111n,11· "1 1hj�1ivos" (consulte-se, a respeito, RELPH, 1 976; TUAN, 1983).
1 1 A �rn,dhança do termo lugar, também a palavra território tem, mais ou menos
u•1 ,-11h·1 11l·111c, sido objeto de uma certa depuração/especificação conceituai. Assim é
11111· . rn 1 l io1a ,linda seja muitas vezes empregado, tanto no discurso do senso comum
1111,11111 , 1 1 1��1110 cm textos científicos, como sendo um mero sinônimo de espaço, cada
"'' ' 111.i1s 111 ijlc ser observado um esforço para entender o território como u m "espaço
1/, 11111,t., ,. ddi111itado por e a partir de re/açües de poder' (SOUZA, 1995a:78; grifo
1111 1 11 11(111.11) llU, mais precisamente ainda, como "relaç6es de poder esparialmente
,l, /1111111,rl,1.1 ,. operando ( ... ) sobre 11111 substrato referencial" (SOUZA, l 995a:97; grifo
1111 111lw.111., I). Esta última definição, mais rigorosa c parcialmente inspirada em SACK
t i 1.INl l l , ,11111111:1. adicionalmente, para a característica do território como sendo não a
1111th 1l,1hd.1,1<- do espaço ou substrato espacial em si, mas sim uma espécie de "campo
11,; 11 11 , ,1" ,111 irnlat.lo com uma porção específica do substrato material (apropriada ou
!'!•llll11l,11l,1 p, 11 11111 grupo social). Ou seja. o território, em si mesmo, no fundo, seq uer
f " lhl• 1 1 "1111 tangível.

61

genciada pela l i teratura standard sobre teoria do desenvolv imento.
Essa negligência para com a dimensão espacial da sociedade, discu•
tida pelo autor a l h u res (SOUZA, 1 996a; 1997a; 1997b), pode se,•
acrescentada ao economicismo, ao etnocentrismo e ao teleologismo
como um dos vícios propriamente epistemológicos que têm domina•
do o ambiente teórico há décadas. É para enfatizar a necessidade de
se evitar essa negligência que o autor tem usado a expressão desen­
v o l v imento sócio-espacial, em vez de, sim plesmente, desenvolvi ­
mento social.
No que tange à melhoria da qualidade de vida, ela corresponde 11
crescente satisfação das necessidades - tanto básicas quanto não­
básicas, tanto materiais quanto imateriais - de uma parcela cada vez
maior da população. Quanto ao aumento da justiça social, trata-se d e
u m a discussão m a i s complexa, p o i s esbarra n a multipl icidade de pos­
s i b i l idades de entendimento da idéia de justiça social. Essas possibi­
lidades d e entendimento são, às vezes, compleme ntares, às vezes
conflitantes entre s i . Para simplificar, pode-se assumir como ponto
de partida o aforismo aristotélico segundo o qual ser justo é "tratar os
i g u a i s i g u a l m e n t e e os d e s i g u a i s d e s i gualmente" ( c f. HELLER,
1 9 9 8 : 1 6 ) . Uma vez que, por ser form a l , esta referência não encerra
uma exposição do conteúdo da justiça, mas apenas um critério de
ide11tij'tcação extremamente abstrato do que é (ou não é) justo, tudo
dependerá de como se entenderão igualdade e desigualdade: igualda­
de em relação a quê? Desigualdade em relação a quê? Dois exem­
plos interligados podem aj udar a concretizar a compreensão deste
conceito formal: os indivíduos devem ter o seu acesso a equipamen•
tos culturais urbanos garan tido, não só por lei, mas também material-
mente (condições efetivas de acesso), independentemente da sua
etnia e de sua condição d e portadores ou não de deficiência física
(por exemplo, parap legia). Sob o â n gulo da etnia, parte-se da premis­
sa da igualdade dos indivíduos enquanto seres humanos merecedo­
res de tratamellto igualmellte digno e respeitoso. No caso dos porta­
dores de paraplegia, a única forma de lhes garantir o acesso a vários
equipamentos cult urais é reconhecendo a sua desigualdade específi•
ca - ao mesmo tempo em que se lhes reconhece a igualdade esse11-

62
o
eia/ enquanto seres humanos merecedores de tratamento igualmente
digno e respe itoso - e provendo meios d e acesso d i ferenciados (ram­
pas, corrimões especiais, banheiros apropriados etc.) em face dos
outros indivíduos. 1 6
Amartya SEN ( 1997) oferece uma reílexão consistente acerca d a
questão da exigência de igualdade, n o contexto da qual ele examina
criticamente o pensamento político-filosófico e ético d e autores
anglo-saxões, como John Rawls. SEN procura ir além da literatura
por ele radiografada ao insistir sobre um problema de fundo: o cará­
ter simplificador e homogeneizador do tratamento-padrão a propósi­
to da "igualdade de oportunidades", em que tudo se passa como se se
assumisse tacitamente que os indivíduos possuem, no fundo, as mes­
mas necessidades. Ao denunciar que pouco ou pouquíssimo espaço
normalmente é deixado para a questão das diferenças entre os seres
humanos, Sen abre caminho, também, para u m a interpretação do pro­
blema da desigualdade e da exigência de igualdade que leve a sério a
diversidade de leituras subjetivas e necessidades individuais. A des­
peito de sua formação de economista, e l e salienta o fato de q u e a
igualdade não deve ser interpretada estreitamente, como igualdade
econômica somente, mas em termos amplos, o que inclui a igualdade
do ponto de vista da l i berdade. Sem embargo, para alguém fam i liari­
zado com o pensamento autonomista d e Cornelius Castori adis, que é
a pedra angular d a abordagem do autor deste livro a respeito do que
ele tem chamado de desenvolvimento sócio-espacial, a reflexão de
Sen não acrescenta nada de verdadeiramente essencial, ao contrário:
ela s i t ua-se aquém do rigor, da profundidade e da elegância permiti­
dos por um enfoque pautado no princípio d e defesa da autonomia

1 6 Como se sabe, Aristóteles justificava a instituição da escravidão; é certo, por isso,


que a sua interpretação acerca da desigualdade carecia de uma genuína dimensão
,miversalista. É essa dimensão que permite que o respeito às desigualdades derivada s
da "loteria natural" (deficiências físicas hereditári as, congênitas ou causadas por aci­
dentes) ou referentes a distintas identidades legítimas possam conviver com uma for­
mulação da igualdade tão abrangente quanto a que reside na fórmula "igualdade dos
indivíduos enquanto seres humanos merecedores de tratamento igualmente digno e
respeitoso". Essa ressalva, todavia, em nada impede que o aforismo aristotélico seja
recontextualizado, de modo a tomá-lo compatível com uma dimensão universalista.
63

indivual e coletiva, tal como definidas mais adiante (e, com mais exa­
tidão, no Subcapítulo 1 0 . l . da Parte II), o qual é capaz de conciliar
poderosamente o respeito à alteridade com a exigê11cia de igualdade.
Deve-se dizer que o objetivo de aumento da justiça social calibra
e contextualiza o objetivo de melhoria da qualidade de vida. Por
exemplo, ao estabelecer que a satisfação das necessidades básicas
dos grupos menos privilegiados terá prioridade sobre a satisfação das
necessidades não-básicas dos grupos mais privilegiados. Nenhum
dos dois objetivos é, em última análise, mais importante que o outro.
Ambos são imprescindíveis.
Sob o ângulo operacional, falta, ainda, definir as bases para uma
parametrização d o desenvolvimento sócio-espacial. É aqui que o
conceito de auto11omia revela a sua i m portância. Da tarefa de para­
metrizar o desenvo lvimento sócio-espac ial com o auxílio da idéia de
autonomia o autor já se desincumbiu em um artigo publicado ante­
riormente (SOUZA, 2000b ), e o que se segue retoma, com ligeiras
modificações e correções, aquilo que se expôs naquela ocasião. Para
uma discussão mais completa da idéia de autonomia, pondo-a no
contexto de uma rápida apreciação da obra do filósofo Cornelius
Castoriadis, remete-se o leitor, como já se assinalou, ao Subcapítulo
10. 1 . da Parte II.
Autonomia individual e coletiva são como os dois lados da
mesma moeda. A autonomia individual, que é a capacidade de cada
indivíduo de estabelecer metas para si próprio com lucidez, persegui­
las com a máxima liberdade possível e refletir criticamente sobre a
sua situação e sobre as informações de que dispõe, pressupõe não
apenas condições favoráveis, sob o ângulo psicológico e intelectual,
mas também instituições sociais que garantam uma igualdade efetiva
de oportunidades para todos os indivíduos (o que inclui as condições
materiais e o acesso a informações confiáveis). E a autonomia coleti­
va, de sua parte, depreende não somente instituições sociais que
garantam a justiça, a liberdade e a possibilidade do pensamento críti­
co (o que implica a ausência de opressão "de fora para dentro" - de
uma sociedade sobre outra -, de "cima para baixo" - de uma classe
ou grupo social sobre outro - e de mitos ou mecanismos ideológicos
64
D
que transferem a responsabi lidade pelos destinos humanos da ação
humana para um plano metafísico - no estilo "vontade de Deus",
"direito divino dos reis" etc.), mas também a constante formação de
indivíduos lúcidos e críticos, dispostos a encarnar e defender essas
instituições. A autonomia individual, que anda de mãos dadas com o
princípio de defesa da alteridade legítima ("direito à diferença", em
que se incluem percepções distintas das próprias necessidades, e
desde que perseguir a satisfação dessas necessidades não fira as liber­
dades básicas de outrem), e a autonomia coletiva, em que a exigência
de justiça social e, por conseguinte, de igualdade efetiva de oportuni­
dades, pode ser convenientemente posta, não são iuéias antitéticas
mas, como se frisou no início do parágrafo, interdependentes. A pre­
tensa oposição entre a liberdade individual e a igualdade em um plano
coletivo é, precisamente, uma deformação ideológica a ser combatida.
Ambas as facetas da autonomia, a individual e a coletiva, pos­
suem tanto um valor instrumental quanto um valor substallfivo ou
Ílitrínseco. O valor instrumental da autonomia diz respeito à impor­
tância da liberdade para se fazerem coisas ou proteger-se de ações
nocivas de outrem, enquanto que o valor intrínseco refere-se à fruição
da liberdade efetiva como um bem em si mesmo, base da auto-estima
do ser humano. É preciso chamar a atenção, aqui, a exemplo do que o
autor já fizera em outras ocasiões (como em SOUZA, 1996a), para o
fato de que esse entendimento do valor intrínseco da autonomia não
tem alcance transcultural. Autonomia, na acepção aqui discutida,
constitui uma significação social imaginária fortemente enraizada no
solo histórico-cultural ocidental. Isso, por um lado, estabelece u m
certo tipo de limite para uma estratégia autonomista, j á que não seria,
de um ponto de vista de respeito não-etnocêntrico e de aceitação da
autodeterminação das culturas, justo desejar eliminar universos cultu­
rais como, por exemplo, sociedades tribais, pelo simples fato de não
serem autônomas no sentido aqui discutido; por outro lado, a ociden­
talização do mundo já avançou tanto que, ainda que de maneira sobre­
tudo indireta algumas vezes (como defesa da própria alteridade legíti­
ma), o referencial da autonomia acaba tendo um alcance verdadeira­
mente planetário (ver SOUZA, 1997a).
65

Uma vez que o caminho democraticamente mais legítimo para
se alcançarem mais justiça social e uma melhor qualidade de vida é
quando os próprios indivíduos e grupos específicos definem os con­
teúdos concretos e estabelecem as prioridades com relação a isso,
podem-se considerar justiça social e qualidade de vida como subor­
dinados à autonomia individual e coletiva enquanto princípio e parâ­
metro. Daí as duas faces da autonomia, a individual e a coletiva,
deverem ser entendidas como parâmetros subordinadores (ou, na
verdade, compreendendo ambas como simples manifestações esca­
larmente distintas do mesmo fenômeno, pode-se falar de um único
parâmetro subordinador). Mais justiça social e uma melhor qualida­
de de vida são, de um ponto de vista operacional, parâmetros subor­
dinados àquele que é o parâmetro essencial do desenvolvimento
sócio-espacial, que é a autonomia.
Esclareça-se que, ao se postular tanto a qualidade de vida quan­
to a justiça social como devendo ser subordinadas à autonomia, não
se está, com isso, querendo dizer que ambas são igualmente instân­
cias desta. Conforme já se ressalvou em artigo anterior (SOUZA,
2000b), justiça social e qualidade de vida situam-se em planos dife­
rentes no que diz respeito à sua relação com o princípio de autono­
mia: se a justiça social pode ser vista como derivada da própria auto­
nomia, ou como uma instância dela, o mesmo já não acontece com a
qualidade de vida, uma vez que a liberdade em que se acha eventual­
mente embebido um processo decisório não é, por si só, garantia
alguma de que as decisões serão acertadas e se traduzirão em melhor
qualidade de vida. O que pode, entretanto, ser afirmado - e é isso que
justifica uma certa subordinação também da qualidade de vida ao
princípio de autonomia - é que, sem autonomia individual, dificil-
mente muitos dos fatores que garantem uma boa qualidade de vida
podem ser concretizados; e, na presença de uma significativa hetero­
nomia no plano coletivo, será freqüente a manipulação imbecilizante
dos sentimentos de satisfação individual, como ocorre nas sociedades
de consumo contemporâneas. Importa, de qualquer maneira, reafir­
mar que, se tanto a justiça social quanto a melhoria da qualidade de

66
o
vida são objetivos imprescindíveis, nenhuma das duas metas é, ao fri­
gir dos ovos, propriamente mais importante que a outra.
A pergunta inicial que se deve formular, diante da tarefa de ava­
liar os impactos de uma intervenção realizada ou em curso ou de esti­
m a r os prováveis efeitos da implementação de uma estratégia de
desenvolvimento, é, portanto, a seguinte: como e em que extensão a
intervenção ou estratégia em questão contribuiu, tem contribuldo ou
colltribuiria para maiores autonomia individual e coletiva ? As
demais indagações, tais como d e q u e modo e e m q u e extensão a inter­
venção ou estratégia em questão contribuiu, tem contribu{do ou coll­
tribuiria para maior justiça social ? e como e em que extellsão a illter­
venção ou estratégia em questão contribu iu, tem contribuído ou con­
tribuiria para uma melhor qualidade de vida? devem ser vistas como
estreitamente associadas à primeira, e não pode, de maneira alguma,
haver contradição entre elas (voltar-se-á a esse ponto mais adiante).
No entanto, conquanto justiça social e qualidade de vida sejam
parâmetros substantivos, eles são constructos extremamente abstra­
tos; de fato, eles devem ser encarados como parâmetros subordina­
dos gerais, os quais necessitam ser complementados por parâmetros
subordinados particulares. Acresce que, uma vez que justiça social e
qualidade de vida acham-se vinculadas a diferentes esferas (a justiça
social está relacionada com a esfera pública, ao passo que a qualida­
de de vida remete, inicialmente, à esfera privada 11) , é preciso identi­
ficar duas classes de parâmetros subord inados particulares. Exem­
plos de parâmetros subordinados particulares associados à justiç a
social podem ser o nível de segregação residencial, o grau d e desi­
gualdade sócio-econômica e o grau de oportunidade para participa­
ção cidadã direta em processos decisórios relevantes. Exemplos de
parâmetros subordinados particulares associados à qualidade de vida
são aqueles relativos à satisfação individual no que se refere à educa­
t;ão, à saúde e à moradia.

ri A dcspciio do fato de que, evidentemente , as preferências e possibilidades dos


111111 víduos são influenciadas e condicionadas por processos e instituições a o nível da
�11dnla1h.:.

67

Dando um passo adiante, podem e devem ser produzidas adap­
tações singularizantes dos parâmetros particulares. Elas constituem
uma especificação, conforme as circunstâncias temporais e espaciais,
dos parâmetros subordinados particulares. A forma como o compor­
tamento de um determinado parâmetro subordinado particular pode­
rá ser avaliado exige uma concretude maior que aquela possível ao
nível dos parâmetros particulares - há de se fazer justiça àquilo que
cada situação, no âmbito de uma dada sociedade ou cultura, em rela­
ção a um certo grupo ou conjunto de grupos sociais, em um determi­
nado espaço e em um dado momento histórico, possui de único. Para
que isso se dê, uma característica muito especial dessas adaptações
singularizantes deve estar presente: elas silo realizadas pelos pró­
prios indiv{duoslcidadii.os envolvidos 110 planejamento ou n a gestii.o
em w11 determinado espaço e tempo, e nii.o pelo pesquisador ou pla­
n ejador profissional. Examine-se isso com calma.
As adaptações singularizantes são aj ustamentos dos parâmetros
particulares em face da s i n gularidade de cada situação concreta.
Assim, salubridade, no tocante à habi tação, pode ser um indicador
muito útil para a avaliação da qualidade de vida; contudo, para fins
de delineamento de uma in tervenção urbanizadora conjugada com
regularização fundiária e oferta de moradias em uma favela específi­
ca de uma dada cidade, é mais que conveniente ajustar o conteúdo e
a operacionalização de um indicador, mediante escalas de avaliação
e classificações ad !zoe. A finalidade disso é obter o máximo possível
de realismo, aj eitando o figurino da intervenção, ou mesmo os con­
tornos da simples análise que deve anteceder qualquer intervenção,
sob medida de acordo com as reais necessidades, a cultura e os senti­
mentos dos beneficiários, sem que, por outro lado, se perca de vista
ou se esqueça a referência teórico-conceituai e metodológica mais
geral. Levar em consideração o que é único significa, de certo modo,
submeter radicalmente a teoria à realidade e à práxis humana, mas
não equivale a aposentar a teorização. Ocon-e que, de preferência, o u
d e u m a perspectiva antitecnocrática, os beneficiários não hão d e ser,
mesmo no exemplo dado acima, obviamente situado em uma socie­
dade heterônoma, meros recebedores passivos de benefícios mate-

68
D
riais, mas sim os agentes controladores do próprio processo. Se assim
é, a experiência prática quotidiana e o ••saber local" dos cidadãos
deverão ter livre expressão e ser incorporados à análise e ao desenho
da intervenção planejadora. Ao mesmo tempo, idealmente, o raciocí­
nio prático do senso comum, que tem livre curso nas situações ordi­
nárias de ação, deveria interagir, dialogicamente, c o m o tipo d e
conhecimento teoricamente lastreado dos pesquisadores e planejado­
res profiss ionais. É nesse sentido que as adaptações singularizantes
de parâmetros particulares seriam desconstruções/reco nstruções, fei­
tas em cada situação concreta, pelos cidadãos e conj untamente com
os pesquisadores e planejadores profissionais, dos parâmetros parti­
culares, propostos por esses pesquisadores e planejadores com base
na combin ação de seus esforços prévios de investigação empírica e
n:llexão teórica (ou seja, reflexão sobre a dialética entre o particular
e o geral acerca dos fenômenos observados, isso sobre os fundamen­
tos de um raciocínio multiescalar e multidimensional). Não se postu­
la, por conseguinte, nem um primado da teoria e do "discurso compe­
tcnte"I8, nem uma rejeição da teorização e um primado acrítico do
senso comum. A práxis planejadora o u gestora, e antes dela já a pró­
pria atividade de pesquisa, deveria, idealmente, encarnar a fusão cria­
tiva do saber dos atores sociais com os balizamentos técnko-científi­
rns trazidos, na qualidade de consultores populares, pelos profissio-
1 1:iis de planejamento e gestão.
Tanto os parâmetros particulares quanto as suas adaptações sin-

1• A expre ssão "disc urso comp etente ", que


o autor retira de Maril e�� CHA� ! ( 1 :!���
parte de grupo s espec 1f'.cos de es�
, rl n c•sc il reivin dicaç ão corpo rativis ta, por
se pronu nciare m e serem ouvid os a respe ito d e
l l �tus" de legitim idade exclu siva para
"com uns", isto é, aos �o-e spec1 alls '. as e m
, i<- ll';. 11;ina<los temas . Ao negar às pessoas
ativam ��te da produ �ao daquele ��� r :�
11 111� ,l;ilia matéria, o direit o de partic iparem ç
de partic iparem das dec1s ocs que en�ol vem a ap
1 1 1 1 1 1 1 , 1 partic ularm ente, ses de muito s
afeta as vidas e os º:cres
,liHil ll:lc saber , mesm o quand o essa aplica ção ,;
discu rso competc n-
e com O p!ane ·
J amen to urban o), o
,', 11 \ •m que. 11otor·i amen te , ocorr . . _ . . : .
rática e, em úlhm a rnstan cia, auton tana.
ti · " 1 1 1 1 1 , 1 1 .,1-se como uma ideolo gia tecnoc _ : 0 s� ber técni •
mesm o que desqu a/'ifica,
4 ll ili·lai essa postur a, por outro lado, não é o b
r é reco11texwa l1zar esse sa er,
· -1--ICO ) , evt·dente mente·• 0 que se faz miste
l'I I ( 1 1 1 1 Cll'llll _ . amen tos
ao (baliz
avanç ou alguns come ntário s na Apres cntaç_
1 1,11,1 , 1 que O autor já outros ponto s desle livro) .
1 1 ,11 1 p l r n il·n1ar cs podem ser achad os em vários
69

gularizantes são relativos às circunstâncias, mas as segundas, por
serem fundamentalmente concretas, variarão, é lógico, potencial­
mente, i n finitamente mais que os primeiros. Foi preconizado, no
parágrafo precedente, que as adaptações singularizantes deverão ter
seu conteúdo definido pelos próprios indivíduos, sobre os fundamen­
tos da autonomia como princípio; não caberá ao analista especificar
as adaptações singularizantes válidas para a avaliação de uma situa­
ção ou o desenho de uma intervenção concreta sem levar em conta,
ainda que criticamente, a vontade dos indivíduos e grupos envolvi­
dos. Ocorre que os próprios parâmetros particulares não devem ser
um puro produto de gabinete, pois também o seu conteúdo deve ser
preenchido, incorporando as percepções e os sentimentos dos atores
sociais. Caso contrário, será o analista que estará impondo, em um
certo nível de detalhe, vale dizer, que vá além dos parâmetros gerais,
aquilo em que consiste o desenvolvimento sócio-espacial, e não as
pessoas que devem ser as protagonistas da mudança social. Essa
incorporação até pode, em um contexto não-ideal, ser tentada por
meio de inquéritos ; em circunstâncias políticas mais favoráveis, os
resultados de esquemas de pa rticipação popular na definição e
implementação de estratégias de desenvolvimento, em que os partici­
pantes manifestam li vremente as suas preferências e deli beram de
acordo com elas, poderão complementar ou mesmo substituir, com
vantagem e muito maior legitimidade, os inquéritos. Por outro lado,
a recusa de uma construção puramente apriorística dos ind icadores
de desenvolvimento sócio-espacial não elimina que o pesquisador ou
planejador profissional possa refletir sobre os parâmetros particula­
res e sugerir escalas de avaliação, classificações etc., desde que isso
seja feito a título de aproximação e desde que ele se disponha a abrir­
se para a intersubjelividade dos atores sociais (em situações de pes­
quisa) e, mais ainda, a encarar essas construções intelectuais como
sugestões aproximativas a serem submetidas ao crivo dos agentes
(em situações de planejamento e gestão).
Cabe, agora, salientar que, embora não se descure, aqui, a preo­
cupação com a viabilidade e a eficiência econômicas, a eficiência,
que já havia sido mencionada como um objetivo meramente instru-
70
o
mental do planejamento e da gestão urbanos, não deve nunca ser con­
siderada um fim em si mesma. Ela deve ser encarada simplesmente
como um meio a serviço da melhoria da justiça social e da qualidade
i
de vida - e somente no caso de realmente contribuir para esses f ns é
que a eficiência econômica poderá ser, a partir de uma perspectiva
autonomista, considerada como moralmente legítima. (O urbanista
Kevin Lynch, em seu admirável livro Good City Form, entende por
eficiência outra coisa; não uma estrita eficiência econômica, mas um
"balancing criterion: it relates the levei of achievement in some per­
formance to a loss in some other" [LYNCH, 1994: 22 1 ] . Um efficient
settlement no sentido de Lynch é um assentamento onde pode ser
alcançado um equilíbrio entre suas cinco dimensions ofperformance
[ vitality, se11se, fit, access, and control]. Embora eficiência, nesse
sentido, possa ser entendida como algo mais que um simples meio, já
que um equilíbrio entre as cinco dimensões de performance de Lynch
é uma meta substantiva não limitada a algo puramente instrumental
como o crescimento econômico, eficiência, no sentido do grande
urbanista norte-americano, é, de um ponto de vista lógico, nada mais
que uma meta intermediária em comparação com o parâmetro geral
qualidade de vida.)
Uma pergunta crucial, já colocada anteriormente (SOUZA,
2000b), é a seguinte: é possível falar de desenvolvimento sócio-espa­
cial quando houver ganhos relativos aos parâmetros subordinados
sem que haja avanços quanto aos parâmetros subordinadores (por
exemplo, menos poluição ou menos pobreza sem maior liberdade)?
e '. onsiderando-se o desempenho de alguns parâmetros particulares e
ndnptações singularizantes específicos, sim, é possível; no entanto,
mm muitas reservas, pois se trata de um ganho não defensável quan­
do se alargam os horizontes analíticos (longo prazo e grande escala).
Mdhorias materiais com tutela significam uma infantilização dos
d o 1 1 1 i 1 1auos/clirigidos. Considerando uma s ituação-limite, escravos
p1 1dc111 ser, materialmente, melhor ou pior tratados . . . Daí não ser
rnwílvel postular que haja um desenvolvimento sócio-espacial pleno
1111 uutêutico se o melhor desempenho de alguns parâmetros subordi-
11111.los, notauamente os relativos à qualidade de vida, não se fizer


71
acompanhar por melhorias do desempenho de outros parâmetros
subordinados, referentes à justiça social, e, no limite, por melhorias
no desempenho do parâmetro subordinador (autonomia). Por isso, é
essencial que o pesquisador mantenha o seu senso crítico, conquanto
sempre se distanciando da arrogância do "discurso competente": ele
tem a responsabilidade de, sempre que julgar imprescindível, alertar
para a il usão e as armadilhas de melhorias em alguns parâmetros em
detrimento de outros.
Outro ponto da maior importância é que, também entre os dois
parâmetros subordinados gerais, não deve ser buscada uma relação
hierárquica. Entre justiça social e qualidade de vida deve ser enxer­
gada uma relação de colllplellle11tariedade essencial: qualquer u m
dos dois, s e tomado isoladamente e sem o outro, é insuficiente para
servir de base para avaliações e estratégias de desenvolvimento
sócio-espacial; cada um dos dois calibra e complementa o outro. Sem
a consideração da exigência de justiça social, falar em qualidade de
vida cada vez melhor para um número cada vez maior de pessoas
pode, perfeitamente, mascarar a permanência ou mesmo o aumento
de desigualdades gritantes de acesso aos recursos e meios de satisfa­
ção de necessidades, ainda que o patamar geral se eleve para a maio­
ria ou mesmo para todos. Por outro lado, maior justiça social, no sen­
tido de um acesso igualitário a processos e instâncias de decisão, des­
dobrando-se tanto em uma distribuição mais equânime dos recursos
quanto no aumento da margem de manobra para o exercício de u m
a g i r comunicativo ( n o sentido habermasiano mencionado na In­
trodução), só se revestirá de apelo prático se encontrar rebatimento
em u m a melhoria da qualidade de vida (eliminação de fatores d e
sofrimento, desconforto, opressão e discriminação negativa).
Deixando para focalizar no próximo subcapítulo o problema da
mensuração de parâmetros, que é um importante complemento desta
discussão conceituai, deve-se dizer, por fim, que a parametrização aqui
delineada deve ser empregada tanto em diagnósticos quanto em pro­
postas de intervenção. Aliás, as propostas de intervenção, para serem
compatíveis com uma abordagem científica, precisam, como será visto
com mais vagar no próximo capítulo, ser derivadas dos diagnósticos.

72
o
2.2. Desenvolvimento urbano

Discussões sobre planejamento e gestão urbanos, de um lado, e


sobre teoria e estratégias de desenvolvimento, por outro, têm se dado,
via de regra, como se elas pudessem ser separadas (uma das raras
exceções, embora parcial e relativa, é John Friedmann [ver FRIED­
MANN, 1987], que deu contribuições teóricas importantes nos dois
campos, embora sua reflexão sobre o planejamento seja mais geral e
não especificamente sobre o urbano, uma vez que ele sempre esteve
111ais ligado à escala regional). No entanto, se a finalidade última do
planejamento e da gestão é a superação de problemas, especialmente
fatores de injustiça social, e a melhoria da qualidade de vida, ambos
deveriam ser vistos como pertencendo ao amplo domínio das estraté­
�•.ias de desenvolvimento, ao lado de estratégias de desenvolvimento
regional, nacional etc. Planejamento e gestão urbanos, vistos por essa
"tica de ciência social, nada mais são que estratégias de desenvolvi­
mento urbano, alimentadas por pesquisa social básica, tanto teórica
1111an10 empírica (ou seja, diagnósticos). Notadamente a partir de uma
perspectiva científica do planejamento e da gestão urbanos, discus-
111\cs conceituais e teóricas que têm sido travadas no âmbito da teori-
1.11�·ào sobre o desenvolvimento são fundamentais. Quando se trata de
liinnular políticas públicas e estratégias de mudança social, torna-se
Imprescindível mobilizar os conhecimentos aportados pelas várias
d�ncias sociais, inclusive sobre a temática do desenvolvimento em
r�culas supralocais.
Vale a pena ressaltar, en passallt, que, a partir do momento em
1111l' i;c assume que a finalidade do planejamento e da gestão urbanos
ft 1·1 11 1 1ribuir para a mudança social positiva, e que o planejamento é
11111,1 estratégia de desenvolvimento sócio-espacial, a modificação de
11111 l i:'tliito mental freqüentemente bastante arraigado se impõe: não é
t 11 1 1 11lvd cultivar um campo como "teoria do planejamento" que não
111,ju c1 ,11111 um subconjunto de uma reflexão teórica sobre a sociedade
�•, 111nls especificamente, sobre a mudança social. Neste livro, como
11111 , 1 1 1 1 11 1s 1rabalhos do autor, a teorização sobre o desenvolvimento
1�l'l11 llspacial, em geral e mais particularmente urbano, contextuali-
73

za a ocupação com o espírito, os agentes e os instrumentos do plane­
jamento. Se, até algumas décadas atrás, o principal vício mental a ser
combatido residia principalmente em que arquitetos-urbanistas acre­
ditavam demais poder alavancar o progresso e a harmonia sociais
com base em intervenções no espaço físico, mentalidade essa que se
encontra ho je em dia clémodée, atualmente uma outra deformação,
alimentada por planejadore!! de formações e origens profissionais
variadas, permanece impavidamente desafiadora: a de se fazer teoria
do planejamento sem a preocupação de contextualização no debate
teórico mais amplo sobre a mudança social. Isso tem sido a norma, e
essa norma tem uma explicação: usualmente, a motivação implícita é
a questão epistemológica em que condições é possível um conlieci­
mento que contribua para o mellwr funcionamento do sistema social
atual?; se o horizonte tácito é esse, não se cogita de uma superação do
sistema e, em vez disso, aceitam-se os seus marcos operatórios ( capi­
talismo e democracia representativa) como premissas. Em que pese
alguns autores serem mais "progressistas" que outros, o juízo de valor
implícito e hegemônico é, a rigor, conservador. No fundo, seja sob
uma óli-:a de "reengenharia institucional", seja de modo mais hetero­
doxo e simpático, não se pensa propriamente a sociedade, mas sim o
ambiente institucional do planejamento, no máximo abrindo-se para
uma certa reflexão teórica sobre o Estado e a administração pública.
Algumas vezes, os interesses mais estreitos, não raro corporativistas,
dos planejadores urbanos os levam mesmo a reivindicar para o plane­
jamento o status de uma disciplina (como fazem, por exemplo,
CAMPBELL e FAINSTEIN, 1998), em vez de uma aplicação dos
conhecimentos oriundos das design professions (como deve ocorrer
com as modalidades Urbanismo e urban design) ou de uma forma de
pesquisa social aplicada (como se faz neste livro, escrito por um cien­
tista social) Esse tipo de posição, que soa como uma aberração episte­
mológica (embora ela nada mais seja que o prolongamento de algumas
aberrações mais tradicionais, como as fronteiras artificiais entre as
diversas ciências sociais), reforça e realimenta a distorção institucional
que é a existência, em alguns países, de cursos de graduação para a for­
mação de planejadores, problema focalizado no Capítulo 5 a seguir.
74
D
Para se conceber um genuíno desenvolvimento sócio-espacial na
e da cidade, faz-se mister l ivrar-se do fardo do senso comum quanto
ao significado da expressão "desenvolvimento urbano". Conforme
foi já discutido em trabalho anterior (SOUZA, 1998), "desenvolvi­
mento urbano" é uma expressão que, muitas vezes, recobre simples­
mente, no discurso do dia-a-dia de políticos, administradores e do
µúblico em geral, a expansão e a complexificação do tecido urbano,
seja transformando em ambientes construídos ambientes outrora
intocados ou pouco modificados pelo homem, seja, também, des­
truindo ambientes construídos deteriorados ou simplesmente antigos
para que dêem lugar a construções mais novas. O que ninguém se
pergunta é sobre a sensatez de qualificar antecipadamente de "desen­
volvimento urbano" processos cujas positividade e conveniência, sob
o ângulo social mais amplo (o que inclui considerações ecológicas),
são muito comumente duvidosas. O que acontece é que a l inguagem
ordinária é modelada por uma ideologia modernizante que é a versão
urbana da ideologia do "desenvolvimento" capitalista em geral:
desenvolver é dominar a natureza, fazer crescer, "modernizar". Nos
países de língua inglesa, esse comprometimento da linguagem ordi­
nária com a ideologia capitalista modernizante é levado ao paroxis­
mo, de vez que não apenas "desenvolver um solo" significa nele
w11struir coisas, desnaturalizá-lo, mas as próprias construções são
d1amadas de "desenvolvimentos" (developments). Embora esse tipo
de emprego possa soar um pouco estranho a ouvidos lusófonos, ele
nuda mais é, no fundo, que uma versão ampliada da distorção funda­
mental, igualmente presente no senso comum no Brasil.
Como entender, então, alternativa e criticamente o desenvolvi-
1 1 1c11to urbano? Para sistematizar, pode-se assumir que o desenvolvi-
1uc11to urbano, o qual é o objetivo fundamental do planejamento e da
w.1 �� 1úo urbanos. deixa-se definir com a ajuda de dois objetivos deri-
1•11do.1·: a melhoria da qualidade de vida e o aumellto da justiça
.111, ·i11/. Tem-se, aqui, nada mais que uma especificação, para o
111u l,1c111c urbano, do quadro conceituai construído em um nível de
1111,h,r abstração no subcapítulo anterior.
À luz da preocupação com o planejamento e a gestão urbanos,


75
ambos os objetivos, aumento da justiça social e melhoria da qualida­
d e de vida, podem ser compreendidos como objetivos illtrinsecamen­
te relevantes, pois claramente dizem respeito afins e não somente a
meios. O mesmo se aplica, evidentemente, ao objetivo fundamental
do planejamento e da gestão urbanos, que é o próprio desenvolvi­
mento urbano. Em comparação com os objetivos intrinsecamente
relevantes, metas como eficiência econôm ica, avanço técn ico e tec­
nológico e outras não devem ser vistas como fins em si mesmos, de
um ponto de vista social abrangente e crítico; a rigor, trata-se, aqui,
e m última instância, de meios a serviço de objetivos mais elevados.
Esses objetivos merecem ser entendidos, portanto, como simples
objeti vos instrumen tais, por mais importantes que sejam.
N o que tange à operacionalização, a parametrização do desen­
volvimento urbano será uma simples especificação do que já se esta­
beleceu para o desenvolvimento sócio-espacial em geral. O que cabe
fazer, agora, é complementar ligeiramente o que se escreveu no sub­
capítulo precedente.
A autonomia é tratada como o parâmetro subordinador, ao passo
que justiça social e qualidade de vida são considerados parâmetros
subordinados. Assim, ao mesmo tempo em que se pode entender o
desenvolvimento urbano como o objetivo fundamental e intrinseca­
mente relevante do planejamento e da gestão urbanos, mais justiça
social e uma melhor qualidade de vida, que são os dois grandes obje­
tivos intrinsecamente relevantes derivados daquele objetivo funda­
mental, são, de um ponto de vista operacional, parâmetros subordina­
dos ao parâmetro essencial do desenvolvimento urbano - a autono­
mia individual e coletiva.
Conforme já se grifou no subcapítulo precedente, justiça social e
qualidade de vida são constructos muito abstratos, que precisam ser
tratados como parâmetros subordinados gerais, a serem complemen­
tados por parâmetros subordinados particulares e, em um nível de
máxima concretude, por adaptações singularizantes dos parâmetros
particulares.
Os exemplos de parâmetros subordinados particulares associa­
dos à justiça social sugeridos no Subcapítulo 2 . 1 . possuem, em parte,

76
o
um alcance bastante geral (como o grau de desigualdade socioeconô­
mica, o grau de oportunidade para participação cidadã direta em pro­
cessos decisórios relevantes e outros), embora o n ível de segregação
residencial tenha sido diretamente inspirado pelo ambiente urbano.
Os parâmetros subordinados particulares associados à qualidade
de vida, que são aqueles relativos à satisfação indi vidunl no que se
refere à de saúde, à educação etc., demandam, em princípio, apenas
aplicação específica ao meio citadino para serem considerados parâ­
metros de desenvolvimento urbano. As particularidades do meio
urbano em matéria de densidade populac ional, freqüência de i ntera­
ções, formas espaciais e diversidade e complexidade d a s relações
sociais, no entanto, sugerem a conveniência de uma reflexão voltada
1.:specificamente para o ambiente citadino. D i v ersos estudos, c o m
1 natizes d iversos a refletirem condicionamentos disciplinares e ideo ­
lúgieos particulares, têm sido oferec idos a propósito do tema da q ua­
l idade de vida urbana. Rainer MADERTHANER ( 1 995), a partir de
uma perspectiva comparativamente mais integradora que o usual (o
que parece ser comum na chamada Psicologia Ambiental), oferece
uma reflexão de amplitude e p lasticidade apreciáveis, em que são
identificados dez conjuntos de necessidades (Bediirf,zisse), cada u m
c11ccrrando diversos aspectos específicos (Ei11zelaspekte). Cada uma
das d iferentes necessidades deve ser s ati sfeita em um ou vários
"domínios de uso e fruição" (tradução livre de Nutzungsbereiche):
l tahitação, trabalho, c irculação, diversão, consumo e e iiminação de
l nw/resíduos (correspondendo a uma adaptação crítica das famosas
" f u nções básicas" consagradas pelo Urbanismo modernista). Um
q11aJro sinótico, extraído por Maderthaner de um trabalho anterior
�eu 1.:m co- autoria, é especialmente útil como um ponto de referência
t' c 01 1 1 0 um balizamento para os estudos e debates em torno da defi-
11H;,i o de parâmetros de qualidade de vida; a figura 1 o reproduz,
l l1wi ra111cnte adaptado e simplificado.

77

Fig. 1

Possíveis
Necessidades Aspectos particulares conseqüências da
não-satisfação

Insolação, luz do dia, ae- Esgotamento físico e psf-


ração, proteção contra ba- quico, vulnerabilidade face
1 . Regeneração rulho, espaços para ativi- a doenças, insônia, estres-
dades corporais, locais para se, depressão
a prática de esportes e brio-
cadeiras

2. Privacidade Proteção da esfera privada, Raiva, m e d o , e s t r e s s e ,


3 . Segurança proteção contra roubos e agressão, isolamento, atri-
assaltos tos com vizinhos, fraca to-
poli/ia

4. Funcionalidade Necessidade de espaço, Raiva, desperdício de tem-


5. 0rdem conforto, senso de orienta- po e dinheiro, desorienta-
ção ção, insatisfação com a mo-
radia e a vida, fraca topolilia

6. Comunicação Conversas, ajuda dos vizi- Preconceitos e conflitos so-


7. Apropriaçao nhos, participação e enga- ciais, insatisfação com a
8. Participação jamento moradia, vandalismo, se-
gregação
Aspectos dos prédios e la- Fraca topolilia, insat,slação
9. Estética
chadas, arruamento, pre- com a moradia, mudança
10. Criatividade sença de praças e parques de local, vandalismo

A consideração do conteúdo do quadro acima pode, com efeito,


onentar a construção de indicadores (parâmetros subordinados parti­
culares); por exemplo: nível de densidade residencial, nível de polui­
çao atmosférica ...
Quanto às adaptações singularizantes, o essencial já foi dito no
subcapítulo precedente, mas vale a pena repetir: tanto os parâmetros
particulares quanto, sobretudo, as adaptações singularizantes, não
deverão ser especificados à revelia dos sentimentos, dos valores e das
expectativas dos cidadãos. Assim como é possível para o pesquisa­
dor, em um nível de elevada abstração, refletir sobre as necessidades
básicas de uma coletividade a partir de seus conhecimentos empíri­
cos acumulados sobre o modo de vida e os problemas de sua socieda­
de, conquanto não seja eticamente admissível que ele pretenda defi-
78
o
nir as necessidades concretas de tal ou qual grupo em lugar dos pró­
prios interessados, da mesma forma o analista, não obstante ele poder
e dever avançar uma reflexão aproximativa sobre os parâmetros do
desenvolvimento, não deve pretender especificar pormenorizada­
mente o conteúdo dos parâmetros válidos para cada situação concre­
ta. Uma vez que a cada escala se pode associar um certo grau de sin­
gularidade, ou seja, de "unicidade" (qualidade do que é único e não
se repete), as adaptações singularizantes não se referem somente a
um nível microlocal, nem se distingüem dos parâmetros particulares
pela escala geográfica que abrangem. Os parâmetros subordinados
particulares são desdobramentos dos parâmetros gerais, com o fito de
torná-los operacionais, o mesmo se aplicando às singularizações em
relação aos parâmetros particulares dos quais são adaptações; só que,
neste caso, o detalha'mento não se detém em um nível de especifica­
ção ainda relativamente abstrato como aquele que reside em parâme­
tros particulares como grau de desigualdade socioeco11ômica e g rau
de oportunidade pa ra participação cidadã direta em processos deci­
sórios relevantes, ou ainda 11ivel de de11Sidade residencial e 11iveL de
110/uição atmosférica - todos passíveis de serem imaginados e esbo­
�·ados pelos próprios pesquisadores, ainda que venham a ser subme­
tidos, de algum modo e em algum momento, ao crivo do debate
público. As adaptações singularizantes e as escalas de avaliação
1 1 1ontadas com base nelas, diversamente, devem refletir os valores e
11s percepções das coletividades envolvidas na deliberação de inter­
venções sócio-espaciais, valores e percepções esses que conterão e
u: llctirão, ainda que em distintas escalas (do bairro "x" até uma dada
ddade como um todo), singularidades. O momento de discussão
111 ,cria e pública de, elementos para a construção de adaptações singu­
lurizantes é, aliás, também o momento em que o conteúdo dos pró­
p, ios parâmetros particulares que a elas estão ligados como suportes
li',g,il:os em um plano mais abstrato - conteúdo esse hipoteticamente
pn ,posto, inicialmente, por um pesquisador ou especialista em plane­
J11 111cnlo - poderá ser objeto de modificação e retificação.
Mcd itar criticamente sobre as condições mais gerais da mudan­
� 11 Nodal positiva, chegando a uma discussão lúcida e iluminadora


79
sobre aquilo que se está chamado de parâmetro subordinador e parâ­
metros subordinados gerais (e, em parte, também os particulares), faz
parte do que se pode e deve esperar do cientista e intelectual. De
outra parte, os parâmetros particulares (em última análise) e, sobretu­
do, as adaptações singularizantes desses parâmetros, corresponden­
tes a cada s ituação concreta específica (por exemplo, considerando a
natureza dos fatores e elementos envolvidos na segregação sócio­
espacial em um lugar e em um momento histórico específicos), não
deverão, insista-se mais uma vez, ser especificados a priori de modo
fechado pelo analista. Defini-los não deve ser uma tarefa soli tária,
conquanto haja uma d iferença essencial entre uma situação de pes­
quisa e uma si tuação de intervenção plane jadora: no momento do
diagnóstico e da análise, o cientista, mesmo imbuído de uma recusa
do objetivismo e do cientif icismo, tem o direito à última palavra
sobre as formulações que são, ao fim e ao cabo, de sua responsabili­
dade pessoal; em contraste com isso, no caso de propostas de inter­
venção quem deve deter a última palavra são os próprios envolvidos,
vale dizer, os cidadãos cuja autonomia deve ser estimulada e respei­
tada, d�vendo o cientista contentar-se com o papel de um interlocu­
tor que propõe (e, eventualmente, alerta para contradições e riscos
embutidos nas propostas feitas por outros, sejam eles pesquisadores
ou não), mas jamais o de um consultor tecnocrático que sonha, no
estilo de Maquiavel, com um Príncipe que execute as suas idéias,
impondo-as de cima para baixo (SOUZA, 2000b: 89). Portanto,
muito mais nitidamente que em um ambiente de pesquisa, em uma
si tuação de planejamento ou gestão, em que se cogita de delinear e
preparar a própria ação, lidar com os parâmetros e seu conteúdo é uma
tarefa coletiva, na qual o cientista ou intelectual pode, no máximo, pro­
por bali zamentos e desempenhar o papel de prestador de esclareci­
mentos técnicos e de auxiliar na coordenação de debates e enquetes
populares, embora reservando-se o direito, como cidadão, de emitir
pontos de vista eventualmente discordantes em relação à opinião da
maioria. Afinal, se, na qualidade de expert, o cientista não deverá rece­
ber privilégios especiais e muito menos o poder de decidir o que será
feito do destino de seus concidadãos, na qualidade de cidadão ele pre-
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cisa ter a sua l iberdade preservada para se pronunciar tão crítica e
livremente quanto qualquer outro indivíduo. Até que ponto o expert
poderá, mesmo informal e sutilmente, induzir a formação dos juízos
alheios e a forma de deliberação de seus concidadãos, é um problema
insolúvel aprioristicamente: somente com o amadurec imento crítico­
político da coletividade e sobre a base de uma postura eticamente con­
sistente por parte dos intelectuais/cientistas é possível minimizar o
1·isco de manipulação da vontade coletiva, risco esse, contudo, que -
tliga-se claramente - jamais será inteiramente eliminado.
Aborde-se, agora, o problema da mensuração. É possível e dese­
jável construir escalas para medir os parâmetros? Sim, é tanto possí­
vel quanto desejável, ou mesmo necessário, construir escalas de ava­
liação. Essas serão, entretanto, o mais das vezes simples escalas ordi­
nais, em que se estabelece que uma dada categoria representa uma
quantidade ou intensidade maior de alguma coisa em comparação
mm as categorias inferiores, mas sem que seja possível especificar o
quanto, exatamente, uma intensidade ou quantidade é maior que
outra. Isso deriva do fato de que, a não ser parcial e indiretamente (o
que às vezes pode ser irrelevante e mesmo induzir a equívocos),
rc nômenos como poder e segregação, que são constructos comple­
xos, não admitem quantificação em um sentido estrito. Seja como
li >r, escalas poderão ser construídas, evidentemente, de d i ferentes
1111111ciras. Eventualmente, artifícios quantitativos de compatibiliza­
�no e apoio à decisão poderão ser tentados, como a atribuição de
pesos e notas pelos próprios informantes no contexto de enquetes
populares ou mecanismos participativos diretos, com o fito de orien-
1111 a implementação de políticas públicas e estratégias de desenvol­
v l i ncnto: a população, uma vez tendo sido definidos os parâmetros de
dl�.,cnvolvi mento (por exemplo, segregação residencial) e outros ele­
ll ll'11tos de balizamento (como a quantidade de pessoas a serem aten­
didus cm uma dada subárea), poderá detalhar, auxiliada pelos técni­
,·, 1H, intl icadores a partir dos parâmetros (como, por exemplo, grau de
1•11 1 f 1 1 d a tle infra-estrutura), especificando, em seguida, categorias
d1,11lro tlc cada parâmetro (por exemplo, graus ou faixas de carência);
n 111édia ponderada dos pesos atribuídos aos indicadores e das notas


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das categorias serviria para orientar tomadas de decisão no que tange
à distribuição dos recursos disponíveis. (Algo dessa natureza é feito
no âmbito de experiências de orçamento participativo, como será
examinado no Subcapítulo 1 1 .2 . da Parte III.)
A mensuração, portanto, sej a com base em escalas ordinais'
(mensuração latissimo se11su), seja, mais raramente, com base em
escalas mais poderosas, dar-se-á no plano dos parâmetros subordina­
dos particul ares ou das adaptações singularizantes. Esses parâmetros
darão lugar a indicadores, elaborados para fazerem face a objetivos
bem determinados. Não se trata, de todo modo, de uma construção
apriorística de indicadores pretensamente universais (como renda per
capita, Índice de Desenvolvimento Humano e outros tantos); a cons­
trução de indicadores deverá, bem ao contrário, se dar tão próxima
quanto possível da realidade dos contextos valorativos dos grupos
sociais específicos envolvidos.19

1 9 Trabalhos empíricos anteriores do autor, envolvendo o diagnóstico de problemas e


o exame de processos sob o ângulo do desenvolvimento sócio-espacial cm cidadt!s
brasileiras (como a análise dos impactos desordenadores/reordenadores do tráfico de
drogas contida, por exemplo, em SOUZA [ 1 99Gb] e SOUZA [2000aJ), não chegaram
a incorporar uma parametrização sistemática, embora tenham envolvido trabalhos de
campo e, nesse contexto, o contato com os valores e as expectalivas daqueles direta­
mente atingidos pelos processos sob análise.

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