MUDAR A CJDADE
UMA INTRODUÇÃO CRÍTICA
AO PLANEJAMENTO
E Â GESTÃO URBANOS
fl Edição
1B
BERTRAND BRASIL
Copyright© 2001 Marcelo Lopes de Souza
2010
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP�BRASIL. CATALOGACAO•NA-FONlE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ
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(CAVAROZZI, 1992), tudo isso sob a égide ideológica do neolibera
lismo, concorreram decisivamente, "pela direita", no Brasil da déca
da de 90, para enfraquecer o sistema de planejamento e a própria
legitimidade do exercício de planejar. Contra esse pano de fundo, o
termo gestão traz, para alguns observadores, a conotação de um con
trole mais democrático, operando com base em acordos e consenso,
em contraposição ao plancj amento, que seria mais tecnocrático
(MACHADO, 1995).
Não obstante, a pretendida (não por todos, felizmente) substitui
ção de planejamento por gestão baseia-se em uma incompreensão da
natureza dos termos envolvidos. Planejamento e gestão não são ter
mos intercambiáveis, por possuírem referenciais temporais distintos
e, por tabela, por se referirem a d(ferentes tipos de atividades. Até
mesmo intuitivamente, planejar sempre remete ao futuro; planejar
significa tentar prever a evolução de um fenômeno ou, para dizê-lo
de modo menos comprometido com o pem,amcnto convencional, ten
tar simular os desdobramentos de wn processo, com o objetivo de
melhor precaver-se contra provâ1 1eis problemas ou, 111versa111ente,
com o fito de melhor tirar partido de prováveis benefícios. De sua
parte, gestão remete ao presente: gerir significa administrar uma
situação dentro dos marcos elos recursos presentemente disponíveis
e tendo em vista as necessidades imediatas. O planejamento é a pre
paração para a gestão futura, buscando-se evitar ou minimizar pro
blemas e ampliar margens de manobra; e a gestão é a efetivação, ao
menos em parte (pois o imprevisível e o indeterminado estão sempre
presentes, o que torna a capacidade de improvisação e a flexibilidade
sempre imprescindíveis), das condições que o planej amento feito no
passado ajudou a construir. Longe de serem concorrentes ou inter
cambiáveis, planejamento e gestão são distintos e complementares.
Não menos que a própria gestão, ou seja, a administração dos
recursos e das relações de poder aqui e agora, o planejamento -
algum tipo de planejamento - é algo de que não se pode abdicar.
Abrir mão disso equivaleria a saudar um caminhar errático, incompa
tível com a vida social organizada, independentemente do modelo e
do grau de complexidade material da sociedade (pois até mesmo
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D
sociedades tribais e grupos de caçadores e coletores "planejam" sua
vida e suas atividades). Como bem exprimiu Carlos Matus,
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verdade, a crítica das abordagens e técnicas de predição baseadas em
projeções de curvas evolutivas e extrapolação de tendências vem
sendo operada já há vários anos, com maior ou menor sofisticação,
não apenas fora, mas também dentro do campo do planejamento,
devido ao seu simplismo; por exemplo, por parte daqueles que se
ocupam da construção e do aperfeiçoamento da técnica de cenários.s
De fato, a construção de cenários não deve ser entendida como um
mero aperfeiçoamento das técnicas tradicionais de previsão, mas sim
como uma ruptura qualitativa, epistemológica, em relação a elas:
construir cenários não significa ( ou, pelo menos, não deveria signifi
car), na verdade, tentar "prever" o futuro, em sentido forte, como se
a história fosse passível de completa determinação ou, pelo menos,
como se fosse razoável, em nome de um pretenso pragmatismo, igno
rar a dimensão de contingência que sempre existe nos processos his
tóricos. Construir cenários significa (ou deveria significar) apenas
simular desdobramentos, sem a preocupação de quantificar probabili
dades e sem se restringir a identificar um único desdobramento espe
rado, tido como a tendência mais plausível. Na verdade, a todo
momento, mesmo no quotidiano, as pessoas planejam as suas ativida
des com a ajuda de simulações: "se o trânsito de estiver bom, vou che
gar no trabalho e fazer primeiro isso, depois aquilo, depois aquilo
outro, antes de entrar em sala para dar minha aula; se o trânsito estiver
ruim e eu perder tempo, irei direto para a aula, e farei, depois, isso e
aquilo, deixando aquilo outro, provavelmente, para amanhã ...". Trata
se, portanto, de uma abordagem realista do desafio de realização de
prognósticos, com a condição de não se ceder à tentação racionalista
de formalizar excessivamente a simulação, dando-se a impressão de
que três ou cinco ou seis cenários esgotam as possibilidades quanto ao
futuro. Fazer isso equivaleria a esvaziar a abordagem de sua flexibili
dade radical, de sua abertura para o imprevisível, transformando-a
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D
1111ma mera extensão da idéia convencional de projeção. Para um com
plemento dessa discussão remete-se o leitor ao box 1.
Box 1
Prognóstico e cenários
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• Terceira trincheira: capacidade de reação veloz ante a surpresa. Uma
vez que nem mesmo a técnica !1exível dos cenários pode dar conta plena
mente do inesperado, faz-se mister desenvolver mecanismos que permi
tam u m mínimo de agilidade por parte do agente tomador de decisões
envolvido diante de surpresas, especialmente do tipo negativo (catástro
fes, acidentes etc.).
• Quarta trincheir a: aprender com os erros. Como mesmo a terceira
trincheira , por mais bem construíd a que seja, não é infalível, ainda resta
(ao menos como consolo ... ) uma quarta possibilid ade, diante de proble
mas que não consegui mos debelar ou de erros cometido s: extrair lições
úteis para o futuro e tentar aprender com os próprios erros.
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o
l' requerida. Vale registrar que os cenârios não devem ser nem muito
11umerosos, o que torna o conjunto pesado e pouco manuseável, nem tão
poucos, resvalando para o simplismo (por exemplo, deve-se evitar deli-
11L·ar apenas dois cenários, um "otimista" e outro "realista", o que deixa de
l,it.!o justamente as situações intermediárias que freqüentemente são as
mais prováveis).
• Segunda trincheira: capacidade de reação veloz ante a surpresa,
prt'parando-se para se organizar eficazmente para dar respostas mesmo
diallle de eventos traumáticos improváveis ou imprevisíveis. Esse é o tipo
de preparação que contribui não para antecipar o futuro, mas para evitar
que se instale o pânico ou a total descoordenação dos agentes pegas de
surpresa por um evento inesperado, de grande e rápido impacto {especial
mente negativo).
• Terceira trincheira: capacidade de extrair lições do passado .
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gestão. Mesmo percebendo que, na prá tica (e não apena s termi nol o
gica mente), o pla nejamento vem perdendo es pa ço d ia nte do i media
tismo e do pri vatismo característicos da ação do Estado pó s-desen
v olv imenti sta no B ra sil, seria tolice i ma gina r que o planeja mento
desapa receu ou está em vias de desaparecer e que, a gora, "tudo é ges
tã o". Nesse sentido, é la mentável e, ao mes mo tempo, sintomá tico d e
u ma postu ra fraca e defensiva q ue John Fried ma nn, em u m texto des
ti nado a defender a idéia de pl aneja mento, ada pta ndo-a para fazer
face ao q ue ele denominou de "o desafio do pó s- modern is mo", tenha
acabado aproximando excessiva mente a sua concepção d e um pl ane
jamento renovado c o m o espíri to pró pri o da ges tã o, c onfund i ndo
ambas a s coi sa s, ao afirmar q ue "( ... ) a ênfase ( ... ) dever ia ser posta
nos processos q ue operam no tempo a tual ou em tempo real, porq ue
os planejadores somente podem espera r ser eficazes no presente efê
mero e ai nda não dec idido" (FRIEDMANN, 1992:86). No fundo,
pretender defender o pl aneja mento (al gum tipo de planejamento ou o
pl anejamento tout court) abrindo mão de u ma orientação pa ra o fu tu
ro ou, pelo menos, mi nimiza ndo a i mportâ ncia d isso em favor de um
centramento no tempo presente, é incorrer em uma contradiçiio.
A idéia, acalentada por al guns, de q ue o termo pl aneja mento
merece ser sub sti tuído pela pa lavra gestão pel o fa to de o pri meiro
possui r u ma ima gem comprometida com prá ticas conservadora s, é
absurda também por outra razão: gestão é admi nistração do presente
com a aj uda da vontade e da c ria tiv idade e, também , em face dos con
diciona mentos herdados do pa ssado; e, como lembra FRIEDMANN
( 1987:33), "[a]d m ini stra tion refers to the ma na gement of program
routi nes a nd is therefore concerned chiefly wi th activ ities of system
ma intenance and with those elements of sy stem cha nge that are on
the verge of being i ns ti tu tionalized", enqua nto q ue o planeja mento
"is concerned mai nly with i nforming processes of sy stem change" .
Sem dúv ida, tampouco fa ria o menor sentido sugeri r que toda gestão
é "conservadora" o u " reac ioná ria", enq ua nto que o pl aneja mento
seria "progressista", de vez q ue as idéias de " rotina" e "manutenção
Jo sis tema" nada nos informam sobre que rotinas e que sistema ( ou
q ue ele mentos de q ual sistema) se pretende ma nter, assim como, por
54
D
1 1 111n, lado, a s m uda nças promovidas pel o pl aneja mento bem podem
_,,r cfc1ivadas com o objetivo de consol idar e es tabiliza r u ma ordem
•udal injus ta. O que cabe observar, de toda m anei ra, é que a presu n
i.no <l e que a palavra gestã o pos suiria u ma na tu reza intri nseca capaz
de fnzê-la aparecer como u ma al terna tiva mais moderna e mai s pro
,ll l'l!+.sisla pa ra o termo pla neja mento carece ta nto de base lingüís tica
q111111lo <le funda mentação lógica, em q ue pese a (frágil) jus ti fica tiva
,h, luntlo ideológico. D ev e- se nota r, en passallt, que m uito daq uilo
q u t: atual mente se abri ga sob rótul os como city ma11ageme11 t o u
11r/1m1 ma11ageme11 t, no toca nte a experiê ncias de paí ses como a
l11gla tcrra e os EUA , são, precisa mente, exemplos de um en foq ue
"c1 11presarialista"I0 - logo, franca mente conservad or. No Bra sil, o
l1m11O ges tão pa rece ser ai nda um pouco mai s plástico e menos com
p m111c1 i<lo com algu m viés q ue seu eq ui valente i nglê s, embora seja
h11Kla11te evi dente que a sua populariza ção, em um momento em que,
1 1 0 esleira do empresarialismo, cada v ez mai s o Estado abre mã o d e
�1· 1 1 papel regula tório, su b stituind o larga mente o pla neja mento por
1 1 1 1 1 imedia ti smo mercadófilo, é sintomática d e uma tendê ncia peri go
rn L'ional idade empresarial. Seria esse o tec noc ra ti smo "pós- moder-
1 1 0" , para mu itos tã o charmoso?
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55
destacando-se os geógrafos, sem contar a colaboração prestada por
especialistas em Direito Urbanon. No Brasil, porém, ainda é comum
as pessoas imaginarem que planejadores urbanos são sempre arquite
tos. É sintomático, por exemplo, que o livro M aniére de penser
l'urbanisme, de Charles-Édouard Jeanneret, mais conhecido como
Le Corbusier, principal figura do urbanismo modernista, tenha sido
publicado no Brasil sob o título Planejamento urbano (cf. LE COR
BUSIER, 1984). Este é um duplo equívoco, pois não apenas os arqui
tetos (ou, mais particularmente, arqui tetos-urbanistas) constituem
tão-somente um dos vários grupos de profissionais potencialmente
ligados ao planejamento urbano, mas, além disso, devido à sua for
mação, praticam uma modalidade específica de planejamento urba
no. Urbanismo e planejamento urbano não são, portanto, sinônimos,
nem o primeiro esgota o segundo. Infelizmente, mesmo planejadores
comprometidos com um pensamento socialmente crítico, quando
arquitetos, costumam, no Brasil, confundir as duas coisas .1 2
Diversamente do planejamento urbano em geral, o Urbanismo
pertence, de fato e de direito, essencialmente, à tradição do saber
arquitetônico. Le Corbusier exprimiu contundentemente o ponto de
vista mais comum dos arquitetos sobre o assunto:
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D
O arquiteto-urbanista, devido à sua formação, que lhe oferece
vários conhecimentos técnicos bastante específicos, desenvolve uma
perspectiva, um olhar distinto daquele do cientista social. Dentre
outras diferenças, uma que salta aos olhos é aquela referente à impor
tância da dimensão estética: enquanto o cientista social tenderá, ao
li<lar com o espaço urbano, a mobilizar o seu conhecimento a propó
sito das relações e dos processos sociais ( dimensões econômica, polí
tica e cultural) e dos condicionamentos espaciais para extrair propo
sições a respeito de caminhos válidos de mudança social, o arquiteto,
legitimamente, poderá derramar luz sobre aspectos funcionais e esté
tirns. De um modo geral, assuntos concernentes ao traçado e à forma
de logradouros públicos e conjuntos espaciais intra-urbanos em geral
(volumetria, relacionamentos funcional e estético de um objeto geo
gráfico com o seu entorno etc.), bem como ao mobiliário urbano, são
principalmente da alçada dos arquitetos; são eles que possuem a for
mação acadêmica e o treinamento profissional apropriados: uma sen
sibilidade estética aguçada e cultivada e uma bagagem técnica acer
ca da funcionalidade dos traçados e objetos geográficos. Isso não sig
nifica que os planejadores que não sejam arquitetos não precisem
cultivar a sensibilidade estética ou aprender a raciocinar consideran
do a funcionalidade dos ob jetos geográficos ou fo rmas espaciais.
Tampouco está o autor a sugerir que o olhar arquitetônico possa ou
deva simplesmente ignorar conhecimentos oriundos das ciências
liociais, de ordem social-psicológica, política, econômica, histórica
etc. Mas o fato, o qual não se pode ignorar, é que as formações e as
licnsibilidades dos arquitetos ( cuja identidade aproxima-os, em parte,
das engenharias e, parcialmente, das artes plásticas) e dos cientistas
hu manos e sociais são e permanecerão diferentes - o que não quer
dizer que sejam incompatíveis.
Nas últimas trêsdécadas, arquitetos de matiz "pós-moderno" ou,
pdo menos, não-modernistas, descontentes com o fato de que o rótu
lo ll d1.111ismo associou-se excessivamente ao movimento modernis
ta, e arrostados com o desgaste ideológico da expressão planejamen-
1, 1 11rhano junto a alguns círculos intelectuais, passaram a adotar outra
e! Kprcssi'lo, urban design, para a qual a expressão portuguesa Desenho
■
57
Urbano não constitui um equivalente perfeito (ver DEL RIO, 1997).
Deveras, as tentativas dos urban designers de articular temas como
traçado urbano e percepção ambiental, abrindo-se para as contribui
ções de algumas das ciências sociais (notadamente Antropologia,
Geografia e Psicologia Social), constituem esforço simpático e lou
vável, o qual vem frutificando desde os trabalhos pioneiros de Kevin
Lynch (L YNCH, 1 9 8 0 ; ver, também, sua obra-prima: L YNCH,
1994) e Amos Rapoport (RAPOPORT, 1978). Sem embargo, sobre a
disputa terminológica entre Urbanismo e Desenho Urbano, o autor
deste l i vro deixa esta qüerela, de bom grado, aos arquitetos. O que
i nteressa, aqui, é ressaltar que, independentemente das diferenças
entre ambos, o urban design não é menos específico que o Urba
nismo, e não mais que este pode aspirar a ser sinônimo de planeja
mento urbano tout court.
Planejamento urbano (o qual deve, aliás, ser sempre pensado
junto com a gestão, seu complemento indissociável), sugere, por con
seguinte, um contexto mais amplo que aquele representado pelas
expressões Urbanismo e Desenho Urbano. O planejamento urbano
inclui o Urbanismo (ou o Desenho Urbano, como preferirem); o últi
mo é um subconjunto do primeiro. No ambiente intelectual alemão
essa distinção fica bem caracterizada, pois Stiidtebau (Urbanismo)
quase sempre é entendido como correspondendo a algo mais restrito
que Stadtplanwzg (planejamento urbano).13 No mundo anglo-saxão,
onde o termo urbanism, com o sentido de um campo de saber, não
conquistou direito de cidadania (quando muito, o termo é empregado
para se referir a um modo de vida: Urbanism as a way of l(fe é, a pro
pósito, o título de u m texto clássico de Sociologia Urbana), as
expressões urban plamzing e town plamzing apresentam-se, de todo
modo, bastante abrangentes, compreendendo subcampos específicos
como a landscape architecture, o site plamzing, o urban design e o
58
o
campo das public policies voltadas para o m e i o c i t a d i n o . Já no
ambiente intelectual francês, que nos inspirou o termo Urbanismo, é
freqüente o termo urbanisme ser tomado como sinônimo de planeja
mento urbano (aménageme/ll de la vil/e, planification urbaine),
l'.mbora isso nem sempre ocorra. O importante, seja lá como for, é
não confundir as duas coisas, tomando a parte (o Urbanismo) pelo
lodo (o campo interdisciplinar do planejamento urbano).
Considerando-se, todavia, que diferença não significa, necessa
riamente, rivalidade, e muito menos antagonismo, o aprendizado
r 1 1úluo entre cientistas sociais e arquitetos precisa ser aprofundado.
Arquitetos preocupados com planejamento urbano devem beber nas
l 1 1ntes das ciências sociais, por exemplo buscando treinamento com
plementar em cursos de pós-graduação em Geografia, Sociologia e
A n r ropo logia ( c a m i n h o seguido pelo b r i l hante Carlos Nelson
1 :crrcira dos Santos nos anos 70, um pioneiro em diversos sentidos, e
por muitos outros jovens arquitetos desde então, como alguns dos
ol'icntandos de pós-graduação do autor deste livro). Eles devem fami
liariz ar-se, ainda que em nível introdutório, com os componentes
11111is importantes e representativos do arsenal conceituai, das discus-
111'\cs teóricas e dos procedimentos metodológicos das ciências
11 1 1ciais. De sua parte, os cientistas sociais envolvidos com pesquisa
u rb a n a precisam s u perar sua usual ignorância e m matéria de
A rq 1 1 i 1c1ura. A consciência da necessidade de maior intim idade com
n d i 1 1 1 c 11são estética e de funcionalidade dos objetos geográficos deve
1hssc111i nar-se entre eles, os quais precisam incorporar conhecimen
t 11N, li.bicos que sejam, que vão desde estilos arquitetônicos até a his-
1 i',ri1 1 do Urbanismo, passando por análise morfológica e visual. Seja
rn 1 1 10 fnr, é importante conceder que cientistas sociais e arquitetos
1e-1 1 1 d i l'c iro às suas especificidades: o pla nejamento urbano praticado
p 1 1 r cicnristas sociais forçosamente será disti nto daquele prati cado
p 1 1 1 1 1 1 q 1 1 1 tt· t o s , pois os treinamentos, os olhares e as ênfases não são
1 Ili 11 11·� 1 1 1 os.
1 ': nt
•
59
2. Planejamento e gestão urbanos como
ferramentas de promoção do
desenvolvimento sócio-espacial
60
o
�l' llS valores culturais próprios e suas particularidades histórico-geo
�r:íficas. Desenvolvimento é mudança, decerto: uma mudança para
111dhor. Um "desenvolvimento" que traga efeitos colaterais sérios
11,111 é legítimo e, portanto, não merece ser chamado como tal.
Colaborar para a superação teórica do economicismo, do etno
l't• 111rismo, do teleologismo e do conservadorismo é algo que tem
N1do tentado pelo autor com a aj uda do conceito castoriadiano de
,11,rmromia (ver, sobretudo: SOUZA, 1996a; 1997a; 1 9 9 7 b ; 1 9 9 8 ;
]IK )Ob). É melhor, porém, antes de s e passar diretamente à exposição
i l1 1 conceito de autonomia, abordar alguns outros conceitos e idéias
r 1 1j;1 relação com a questão d a autonomia ficará evidente em seguida.
Em termos muito singelos e puramente introdutórios, pode-se
t l11. cr que se está diante de um autêntico processo de desenvolvimen-
11 1 sóc io-espacial quando se constata uma me/lroria da qualidade de
1•1,/1 1 e um aumento da justiça social. A mudança social positiva, no
l 'IIM>. precisa contemplar n ã o apenas a s relações sociais m a s , igual-
1111•1 1 t c . a espacialidade. A importância do espaço ( que é palco, fonte
111'. recursos, recurso em si [localizações], arena, referencial simbóli
l'1 1/Hknlitário e condicionador; que é substrato material, lugaru e ter
' 1 1 ,írio l !í ), na sua multidimensionalidade, tem sido comumente negli-
t◄ A 1 1·k1 foda, aqui, é à idéia de lugar enquanto um espaço vivido e dotado de signi
lh ,11111, 11111a realidade intersubjetivamente construída com base na e.x periência con-
1 t,•lt1 ,ll· imlivíduos e grupos. Nesta acepção, mais específica, lugar não é, simples-
1111 111,·. �i11,111i1110 de local ou um espaço qualquer, delimitado segundo critérios pura-
111n,11· "1 1hj�1ivos" (consulte-se, a respeito, RELPH, 1 976; TUAN, 1983).
1 1 A �rn,dhança do termo lugar, também a palavra território tem, mais ou menos
u•1 ,-11h·1 11l·111c, sido objeto de uma certa depuração/especificação conceituai. Assim é
11111· . rn 1 l io1a ,linda seja muitas vezes empregado, tanto no discurso do senso comum
1111,11111 , 1 1 1��1110 cm textos científicos, como sendo um mero sinônimo de espaço, cada
"'' ' 111.i1s 111 ijlc ser observado um esforço para entender o território como u m "espaço
1/, 11111,t., ,. ddi111itado por e a partir de re/açües de poder' (SOUZA, 1995a:78; grifo
1111 1 11 11(111.11) llU, mais precisamente ainda, como "relaç6es de poder esparialmente
,l, /1111111,rl,1.1 ,. operando ( ... ) sobre 11111 substrato referencial" (SOUZA, l 995a:97; grifo
1111 111lw.111., I). Esta última definição, mais rigorosa c parcialmente inspirada em SACK
t i 1.INl l l , ,11111111:1. adicionalmente, para a característica do território como sendo não a
1111th 1l,1hd.1,1<- do espaço ou substrato espacial em si, mas sim uma espécie de "campo
11,; 11 11 , ,1" ,111 irnlat.lo com uma porção específica do substrato material (apropriada ou
!'!•llll11l,11l,1 p, 11 11111 grupo social). Ou seja. o território, em si mesmo, no fundo, seq uer
f " lhl• 1 1 "1111 tangível.
61
■
genciada pela l i teratura standard sobre teoria do desenvolv imento.
Essa negligência para com a dimensão espacial da sociedade, discu•
tida pelo autor a l h u res (SOUZA, 1 996a; 1997a; 1997b), pode se,•
acrescentada ao economicismo, ao etnocentrismo e ao teleologismo
como um dos vícios propriamente epistemológicos que têm domina•
do o ambiente teórico há décadas. É para enfatizar a necessidade de
se evitar essa negligência que o autor tem usado a expressão desen
v o l v imento sócio-espacial, em vez de, sim plesmente, desenvolvi
mento social.
No que tange à melhoria da qualidade de vida, ela corresponde 11
crescente satisfação das necessidades - tanto básicas quanto não
básicas, tanto materiais quanto imateriais - de uma parcela cada vez
maior da população. Quanto ao aumento da justiça social, trata-se d e
u m a discussão m a i s complexa, p o i s esbarra n a multipl icidade de pos
s i b i l idades de entendimento da idéia de justiça social. Essas possibi
lidades d e entendimento são, às vezes, compleme ntares, às vezes
conflitantes entre s i . Para simplificar, pode-se assumir como ponto
de partida o aforismo aristotélico segundo o qual ser justo é "tratar os
i g u a i s i g u a l m e n t e e os d e s i g u a i s d e s i gualmente" ( c f. HELLER,
1 9 9 8 : 1 6 ) . Uma vez que, por ser form a l , esta referência não encerra
uma exposição do conteúdo da justiça, mas apenas um critério de
ide11tij'tcação extremamente abstrato do que é (ou não é) justo, tudo
dependerá de como se entenderão igualdade e desigualdade: igualda
de em relação a quê? Desigualdade em relação a quê? Dois exem
plos interligados podem aj udar a concretizar a compreensão deste
conceito formal: os indivíduos devem ter o seu acesso a equipamen•
tos culturais urbanos garan tido, não só por lei, mas também material-
mente (condições efetivas de acesso), independentemente da sua
etnia e de sua condição d e portadores ou não de deficiência física
(por exemplo, parap legia). Sob o â n gulo da etnia, parte-se da premis
sa da igualdade dos indivíduos enquanto seres humanos merecedo
res de tratamellto igualmellte digno e respeitoso. No caso dos porta
dores de paraplegia, a única forma de lhes garantir o acesso a vários
equipamentos cult urais é reconhecendo a sua desigualdade específi•
ca - ao mesmo tempo em que se lhes reconhece a igualdade esse11-
62
o
eia/ enquanto seres humanos merecedores de tratamento igualmente
digno e respe itoso - e provendo meios d e acesso d i ferenciados (ram
pas, corrimões especiais, banheiros apropriados etc.) em face dos
outros indivíduos. 1 6
Amartya SEN ( 1997) oferece uma reílexão consistente acerca d a
questão da exigência de igualdade, n o contexto da qual ele examina
criticamente o pensamento político-filosófico e ético d e autores
anglo-saxões, como John Rawls. SEN procura ir além da literatura
por ele radiografada ao insistir sobre um problema de fundo: o cará
ter simplificador e homogeneizador do tratamento-padrão a propósi
to da "igualdade de oportunidades", em que tudo se passa como se se
assumisse tacitamente que os indivíduos possuem, no fundo, as mes
mas necessidades. Ao denunciar que pouco ou pouquíssimo espaço
normalmente é deixado para a questão das diferenças entre os seres
humanos, Sen abre caminho, também, para u m a interpretação do pro
blema da desigualdade e da exigência de igualdade que leve a sério a
diversidade de leituras subjetivas e necessidades individuais. A des
peito de sua formação de economista, e l e salienta o fato de q u e a
igualdade não deve ser interpretada estreitamente, como igualdade
econômica somente, mas em termos amplos, o que inclui a igualdade
do ponto de vista da l i berdade. Sem embargo, para alguém fam i liari
zado com o pensamento autonomista d e Cornelius Castori adis, que é
a pedra angular d a abordagem do autor deste livro a respeito do que
ele tem chamado de desenvolvimento sócio-espacial, a reflexão de
Sen não acrescenta nada de verdadeiramente essencial, ao contrário:
ela s i t ua-se aquém do rigor, da profundidade e da elegância permiti
dos por um enfoque pautado no princípio d e defesa da autonomia
66
o
vida são objetivos imprescindíveis, nenhuma das duas metas é, ao fri
gir dos ovos, propriamente mais importante que a outra.
A pergunta inicial que se deve formular, diante da tarefa de ava
liar os impactos de uma intervenção realizada ou em curso ou de esti
m a r os prováveis efeitos da implementação de uma estratégia de
desenvolvimento, é, portanto, a seguinte: como e em que extensão a
intervenção ou estratégia em questão contribuiu, tem contribuldo ou
colltribuiria para maiores autonomia individual e coletiva ? As
demais indagações, tais como d e q u e modo e e m q u e extensão a inter
venção ou estratégia em questão contribuiu, tem contribu{do ou coll
tribuiria para maior justiça social ? e como e em que extellsão a illter
venção ou estratégia em questão contribu iu, tem contribuído ou con
tribuiria para uma melhor qualidade de vida? devem ser vistas como
estreitamente associadas à primeira, e não pode, de maneira alguma,
haver contradição entre elas (voltar-se-á a esse ponto mais adiante).
No entanto, conquanto justiça social e qualidade de vida sejam
parâmetros substantivos, eles são constructos extremamente abstra
tos; de fato, eles devem ser encarados como parâmetros subordina
dos gerais, os quais necessitam ser complementados por parâmetros
subordinados particulares. Acresce que, uma vez que justiça social e
qualidade de vida acham-se vinculadas a diferentes esferas (a justiça
social está relacionada com a esfera pública, ao passo que a qualida
de de vida remete, inicialmente, à esfera privada 11) , é preciso identi
ficar duas classes de parâmetros subord inados particulares. Exem
plos de parâmetros subordinados particulares associados à justiç a
social podem ser o nível de segregação residencial, o grau d e desi
gualdade sócio-econômica e o grau de oportunidade para participa
ção cidadã direta em processos decisórios relevantes. Exemplos de
parâmetros subordinados particulares associados à qualidade de vida
são aqueles relativos à satisfação individual no que se refere à educa
t;ão, à saúde e à moradia.
67
■
Dando um passo adiante, podem e devem ser produzidas adap
tações singularizantes dos parâmetros particulares. Elas constituem
uma especificação, conforme as circunstâncias temporais e espaciais,
dos parâmetros subordinados particulares. A forma como o compor
tamento de um determinado parâmetro subordinado particular pode
rá ser avaliado exige uma concretude maior que aquela possível ao
nível dos parâmetros particulares - há de se fazer justiça àquilo que
cada situação, no âmbito de uma dada sociedade ou cultura, em rela
ção a um certo grupo ou conjunto de grupos sociais, em um determi
nado espaço e em um dado momento histórico, possui de único. Para
que isso se dê, uma característica muito especial dessas adaptações
singularizantes deve estar presente: elas silo realizadas pelos pró
prios indiv{duoslcidadii.os envolvidos 110 planejamento ou n a gestii.o
em w11 determinado espaço e tempo, e nii.o pelo pesquisador ou pla
n ejador profissional. Examine-se isso com calma.
As adaptações singularizantes são aj ustamentos dos parâmetros
particulares em face da s i n gularidade de cada situação concreta.
Assim, salubridade, no tocante à habi tação, pode ser um indicador
muito útil para a avaliação da qualidade de vida; contudo, para fins
de delineamento de uma in tervenção urbanizadora conjugada com
regularização fundiária e oferta de moradias em uma favela específi
ca de uma dada cidade, é mais que conveniente ajustar o conteúdo e
a operacionalização de um indicador, mediante escalas de avaliação
e classificações ad !zoe. A finalidade disso é obter o máximo possível
de realismo, aj eitando o figurino da intervenção, ou mesmo os con
tornos da simples análise que deve anteceder qualquer intervenção,
sob medida de acordo com as reais necessidades, a cultura e os senti
mentos dos beneficiários, sem que, por outro lado, se perca de vista
ou se esqueça a referência teórico-conceituai e metodológica mais
geral. Levar em consideração o que é único significa, de certo modo,
submeter radicalmente a teoria à realidade e à práxis humana, mas
não equivale a aposentar a teorização. Ocon-e que, de preferência, o u
d e u m a perspectiva antitecnocrática, os beneficiários não hão d e ser,
mesmo no exemplo dado acima, obviamente situado em uma socie
dade heterônoma, meros recebedores passivos de benefícios mate-
68
D
riais, mas sim os agentes controladores do próprio processo. Se assim
é, a experiência prática quotidiana e o ••saber local" dos cidadãos
deverão ter livre expressão e ser incorporados à análise e ao desenho
da intervenção planejadora. Ao mesmo tempo, idealmente, o raciocí
nio prático do senso comum, que tem livre curso nas situações ordi
nárias de ação, deveria interagir, dialogicamente, c o m o tipo d e
conhecimento teoricamente lastreado dos pesquisadores e planejado
res profiss ionais. É nesse sentido que as adaptações singularizantes
de parâmetros particulares seriam desconstruções/reco nstruções, fei
tas em cada situação concreta, pelos cidadãos e conj untamente com
os pesquisadores e planejadores profissionais, dos parâmetros parti
culares, propostos por esses pesquisadores e planejadores com base
na combin ação de seus esforços prévios de investigação empírica e
n:llexão teórica (ou seja, reflexão sobre a dialética entre o particular
e o geral acerca dos fenômenos observados, isso sobre os fundamen
tos de um raciocínio multiescalar e multidimensional). Não se postu
la, por conseguinte, nem um primado da teoria e do "discurso compe
tcnte"I8, nem uma rejeição da teorização e um primado acrítico do
senso comum. A práxis planejadora o u gestora, e antes dela já a pró
pria atividade de pesquisa, deveria, idealmente, encarnar a fusão cria
tiva do saber dos atores sociais com os balizamentos técnko-científi
rns trazidos, na qualidade de consultores populares, pelos profissio-
1 1:iis de planejamento e gestão.
Tanto os parâmetros particulares quanto as suas adaptações sin-
■
71
acompanhar por melhorias do desempenho de outros parâmetros
subordinados, referentes à justiça social, e, no limite, por melhorias
no desempenho do parâmetro subordinador (autonomia). Por isso, é
essencial que o pesquisador mantenha o seu senso crítico, conquanto
sempre se distanciando da arrogância do "discurso competente": ele
tem a responsabilidade de, sempre que julgar imprescindível, alertar
para a il usão e as armadilhas de melhorias em alguns parâmetros em
detrimento de outros.
Outro ponto da maior importância é que, também entre os dois
parâmetros subordinados gerais, não deve ser buscada uma relação
hierárquica. Entre justiça social e qualidade de vida deve ser enxer
gada uma relação de colllplellle11tariedade essencial: qualquer u m
dos dois, s e tomado isoladamente e sem o outro, é insuficiente para
servir de base para avaliações e estratégias de desenvolvimento
sócio-espacial; cada um dos dois calibra e complementa o outro. Sem
a consideração da exigência de justiça social, falar em qualidade de
vida cada vez melhor para um número cada vez maior de pessoas
pode, perfeitamente, mascarar a permanência ou mesmo o aumento
de desigualdades gritantes de acesso aos recursos e meios de satisfa
ção de necessidades, ainda que o patamar geral se eleve para a maio
ria ou mesmo para todos. Por outro lado, maior justiça social, no sen
tido de um acesso igualitário a processos e instâncias de decisão, des
dobrando-se tanto em uma distribuição mais equânime dos recursos
quanto no aumento da margem de manobra para o exercício de u m
a g i r comunicativo ( n o sentido habermasiano mencionado na In
trodução), só se revestirá de apelo prático se encontrar rebatimento
em u m a melhoria da qualidade de vida (eliminação de fatores d e
sofrimento, desconforto, opressão e discriminação negativa).
Deixando para focalizar no próximo subcapítulo o problema da
mensuração de parâmetros, que é um importante complemento desta
discussão conceituai, deve-se dizer, por fim, que a parametrização aqui
delineada deve ser empregada tanto em diagnósticos quanto em pro
postas de intervenção. Aliás, as propostas de intervenção, para serem
compatíveis com uma abordagem científica, precisam, como será visto
com mais vagar no próximo capítulo, ser derivadas dos diagnósticos.
72
o
2.2. Desenvolvimento urbano
■
75
ambos os objetivos, aumento da justiça social e melhoria da qualida
d e de vida, podem ser compreendidos como objetivos illtrinsecamen
te relevantes, pois claramente dizem respeito afins e não somente a
meios. O mesmo se aplica, evidentemente, ao objetivo fundamental
do planejamento e da gestão urbanos, que é o próprio desenvolvi
mento urbano. Em comparação com os objetivos intrinsecamente
relevantes, metas como eficiência econôm ica, avanço técn ico e tec
nológico e outras não devem ser vistas como fins em si mesmos, de
um ponto de vista social abrangente e crítico; a rigor, trata-se, aqui,
e m última instância, de meios a serviço de objetivos mais elevados.
Esses objetivos merecem ser entendidos, portanto, como simples
objeti vos instrumen tais, por mais importantes que sejam.
N o que tange à operacionalização, a parametrização do desen
volvimento urbano será uma simples especificação do que já se esta
beleceu para o desenvolvimento sócio-espacial em geral. O que cabe
fazer, agora, é complementar ligeiramente o que se escreveu no sub
capítulo precedente.
A autonomia é tratada como o parâmetro subordinador, ao passo
que justiça social e qualidade de vida são considerados parâmetros
subordinados. Assim, ao mesmo tempo em que se pode entender o
desenvolvimento urbano como o objetivo fundamental e intrinseca
mente relevante do planejamento e da gestão urbanos, mais justiça
social e uma melhor qualidade de vida, que são os dois grandes obje
tivos intrinsecamente relevantes derivados daquele objetivo funda
mental, são, de um ponto de vista operacional, parâmetros subordina
dos ao parâmetro essencial do desenvolvimento urbano - a autono
mia individual e coletiva.
Conforme já se grifou no subcapítulo precedente, justiça social e
qualidade de vida são constructos muito abstratos, que precisam ser
tratados como parâmetros subordinados gerais, a serem complemen
tados por parâmetros subordinados particulares e, em um nível de
máxima concretude, por adaptações singularizantes dos parâmetros
particulares.
Os exemplos de parâmetros subordinados particulares associa
dos à justiça social sugeridos no Subcapítulo 2 . 1 . possuem, em parte,
76
o
um alcance bastante geral (como o grau de desigualdade socioeconô
mica, o grau de oportunidade para participação cidadã direta em pro
cessos decisórios relevantes e outros), embora o n ível de segregação
residencial tenha sido diretamente inspirado pelo ambiente urbano.
Os parâmetros subordinados particulares associados à qualidade
de vida, que são aqueles relativos à satisfação indi vidunl no que se
refere à de saúde, à educação etc., demandam, em princípio, apenas
aplicação específica ao meio citadino para serem considerados parâ
metros de desenvolvimento urbano. As particularidades do meio
urbano em matéria de densidade populac ional, freqüência de i ntera
ções, formas espaciais e diversidade e complexidade d a s relações
sociais, no entanto, sugerem a conveniência de uma reflexão voltada
1.:specificamente para o ambiente citadino. D i v ersos estudos, c o m
1 natizes d iversos a refletirem condicionamentos disciplinares e ideo
lúgieos particulares, têm sido oferec idos a propósito do tema da q ua
l idade de vida urbana. Rainer MADERTHANER ( 1 995), a partir de
uma perspectiva comparativamente mais integradora que o usual (o
que parece ser comum na chamada Psicologia Ambiental), oferece
uma reflexão de amplitude e p lasticidade apreciáveis, em que são
identificados dez conjuntos de necessidades (Bediirf,zisse), cada u m
c11ccrrando diversos aspectos específicos (Ei11zelaspekte). Cada uma
das d iferentes necessidades deve ser s ati sfeita em um ou vários
"domínios de uso e fruição" (tradução livre de Nutzungsbereiche):
l tahitação, trabalho, c irculação, diversão, consumo e e iiminação de
l nw/resíduos (correspondendo a uma adaptação crítica das famosas
" f u nções básicas" consagradas pelo Urbanismo modernista). Um
q11aJro sinótico, extraído por Maderthaner de um trabalho anterior
�eu 1.:m co- autoria, é especialmente útil como um ponto de referência
t' c 01 1 1 0 um balizamento para os estudos e debates em torno da defi-
11H;,i o de parâmetros de qualidade de vida; a figura 1 o reproduz,
l l1wi ra111cnte adaptado e simplificado.
77
■
Fig. 1
Possíveis
Necessidades Aspectos particulares conseqüências da
não-satisfação
■
79
sobre aquilo que se está chamado de parâmetro subordinador e parâ
metros subordinados gerais (e, em parte, também os particulares), faz
parte do que se pode e deve esperar do cientista e intelectual. De
outra parte, os parâmetros particulares (em última análise) e, sobretu
do, as adaptações singularizantes desses parâmetros, corresponden
tes a cada s ituação concreta específica (por exemplo, considerando a
natureza dos fatores e elementos envolvidos na segregação sócio
espacial em um lugar e em um momento histórico específicos), não
deverão, insista-se mais uma vez, ser especificados a priori de modo
fechado pelo analista. Defini-los não deve ser uma tarefa soli tária,
conquanto haja uma d iferença essencial entre uma situação de pes
quisa e uma si tuação de intervenção plane jadora: no momento do
diagnóstico e da análise, o cientista, mesmo imbuído de uma recusa
do objetivismo e do cientif icismo, tem o direito à última palavra
sobre as formulações que são, ao fim e ao cabo, de sua responsabili
dade pessoal; em contraste com isso, no caso de propostas de inter
venção quem deve deter a última palavra são os próprios envolvidos,
vale dizer, os cidadãos cuja autonomia deve ser estimulada e respei
tada, d�vendo o cientista contentar-se com o papel de um interlocu
tor que propõe (e, eventualmente, alerta para contradições e riscos
embutidos nas propostas feitas por outros, sejam eles pesquisadores
ou não), mas jamais o de um consultor tecnocrático que sonha, no
estilo de Maquiavel, com um Príncipe que execute as suas idéias,
impondo-as de cima para baixo (SOUZA, 2000b: 89). Portanto,
muito mais nitidamente que em um ambiente de pesquisa, em uma
si tuação de planejamento ou gestão, em que se cogita de delinear e
preparar a própria ação, lidar com os parâmetros e seu conteúdo é uma
tarefa coletiva, na qual o cientista ou intelectual pode, no máximo, pro
por bali zamentos e desempenhar o papel de prestador de esclareci
mentos técnicos e de auxiliar na coordenação de debates e enquetes
populares, embora reservando-se o direito, como cidadão, de emitir
pontos de vista eventualmente discordantes em relação à opinião da
maioria. Afinal, se, na qualidade de expert, o cientista não deverá rece
ber privilégios especiais e muito menos o poder de decidir o que será
feito do destino de seus concidadãos, na qualidade de cidadão ele pre-
80
D
cisa ter a sua l iberdade preservada para se pronunciar tão crítica e
livremente quanto qualquer outro indivíduo. Até que ponto o expert
poderá, mesmo informal e sutilmente, induzir a formação dos juízos
alheios e a forma de deliberação de seus concidadãos, é um problema
insolúvel aprioristicamente: somente com o amadurec imento crítico
político da coletividade e sobre a base de uma postura eticamente con
sistente por parte dos intelectuais/cientistas é possível minimizar o
1·isco de manipulação da vontade coletiva, risco esse, contudo, que -
tliga-se claramente - jamais será inteiramente eliminado.
Aborde-se, agora, o problema da mensuração. É possível e dese
jável construir escalas para medir os parâmetros? Sim, é tanto possí
vel quanto desejável, ou mesmo necessário, construir escalas de ava
liação. Essas serão, entretanto, o mais das vezes simples escalas ordi
nais, em que se estabelece que uma dada categoria representa uma
quantidade ou intensidade maior de alguma coisa em comparação
mm as categorias inferiores, mas sem que seja possível especificar o
quanto, exatamente, uma intensidade ou quantidade é maior que
outra. Isso deriva do fato de que, a não ser parcial e indiretamente (o
que às vezes pode ser irrelevante e mesmo induzir a equívocos),
rc nômenos como poder e segregação, que são constructos comple
xos, não admitem quantificação em um sentido estrito. Seja como
li >r, escalas poderão ser construídas, evidentemente, de d i ferentes
1111111ciras. Eventualmente, artifícios quantitativos de compatibiliza
�no e apoio à decisão poderão ser tentados, como a atribuição de
pesos e notas pelos próprios informantes no contexto de enquetes
populares ou mecanismos participativos diretos, com o fito de orien-
1111 a implementação de políticas públicas e estratégias de desenvol
v l i ncnto: a população, uma vez tendo sido definidos os parâmetros de
dl�.,cnvolvi mento (por exemplo, segregação residencial) e outros ele
ll ll'11tos de balizamento (como a quantidade de pessoas a serem aten
didus cm uma dada subárea), poderá detalhar, auxiliada pelos técni
,·, 1H, intl icadores a partir dos parâmetros (como, por exemplo, grau de
1•11 1 f 1 1 d a tle infra-estrutura), especificando, em seguida, categorias
d1,11lro tlc cada parâmetro (por exemplo, graus ou faixas de carência);
n 111édia ponderada dos pesos atribuídos aos indicadores e das notas
■
81
das categorias serviria para orientar tomadas de decisão no que tange
à distribuição dos recursos disponíveis. (Algo dessa natureza é feito
no âmbito de experiências de orçamento participativo, como será
examinado no Subcapítulo 1 1 .2 . da Parte III.)
A mensuração, portanto, sej a com base em escalas ordinais'
(mensuração latissimo se11su), seja, mais raramente, com base em
escalas mais poderosas, dar-se-á no plano dos parâmetros subordina
dos particul ares ou das adaptações singularizantes. Esses parâmetros
darão lugar a indicadores, elaborados para fazerem face a objetivos
bem determinados. Não se trata, de todo modo, de uma construção
apriorística de indicadores pretensamente universais (como renda per
capita, Índice de Desenvolvimento Humano e outros tantos); a cons
trução de indicadores deverá, bem ao contrário, se dar tão próxima
quanto possível da realidade dos contextos valorativos dos grupos
sociais específicos envolvidos.19
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