I SBN85-336- 1501-9
9 788533 615014
volume 1
• Premissas
• A liberdade de criar
• A segunda Renascença
• A "Ars nova"
• A grande Renascença
• Apogeu da polifonia e começo dos
tempos modernos
• Formação do melodrama e do
estilo concertante
• A época barroca do classicismo
volume 2
Capa
Projeto gráfico Katia Harumi Terasaka
Imagem Picasso, Joie de mure, detalhe, Amibes,
Museu Picasso.
Roland de Candé
HISTORIA UNIVERSAL
da MÚSICA
volume 2
T r a d u ç ã o Eduardo B r a n d ã o
R e v i s ã o da tradução Marina Appenzeller
Martins Fontes
São Paulo 2001
O ROMANTISMO
Ε SUA HERANÇA
a
I edição
julho de 1994
a
2 edição
outubro de 2001
Tradução
EDUARDO BRANDÃO
Revisão da tradução
Marina Appenzeller
Revisão gráfica
Maurício Balthazar Leal
Renato da Rocha Carlos
Diñarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Composição
Antonio Neuton Alves Quintino
SUMÁRIO
Arte-finai
Moacir Katsumi Matsusaki
01-4888 CDD-780.9
índices para catálogo sistemático:
1. História da música 780.9
* 2. Música : História 780.9
O artista deve
dar um jeito para fazer
a posteridade acreditar
que ele não viveu.
Gustave Flaubert
Litografia de Fantin-Latour
Presumido retrato
da Malibran.
Aquarela de Delacroix.
11 ASPECTOS DO ROMANTISMO
ASPECTOS DO ROMANTISMO cubra e exprima a alma de todos os homens: "Ah!, insensato, que
crês que eu não sou t u ! " (Hugo, prefácio das Contemplações,
No início do século X I X , no momento em que se afirma a pro 1856).
funda originalidade do "segundo estilo" de Beethoven, a Euro Na Alemanha, o substantivo die Romantik designa, desde o
pa intelectual, inflamada pela idéia de progresso, já sentiu as pri fim do século X V I I I , uma nova tendência literária oposta ao clas
meiras febres românticas. Quando, em 1804, ano em que Napo- sicismo. Mas, na França, já se confunde romântico e romanesco,
leão se torna imperador (3.572.000 sim, 2.579 não), Beethoven e na Inglaterra qualifica-se freqüentemente de romantic tudo o
apresenta sua Terceira sinfonia aos vienenses embasbacados, os que é pitoresco. A acepção da palavra sempre permanecerá bas
primeiros românticos estão na força da idade: Madame de Staël tante vaga. Parece sobretudo que, na ausência de uma doutrina
tem trinta e oito anos, Schlegel trinta e sete, Chateaubriand trin coerente, dotada de bases intelectuais e sociológicas sólidas, o ro
ta e seis, Hölderlin e Hegel trinta e quatro (como Beethoven), No mantismo se tornou uma maneira de ser, uma moda: ele se entu
valis trinta e dois, Hoffmann vinte e oito... siasma por novos objetos, mas não propõe novas leis estéticas.
À subversão da sociedade correspondem uma nova sensibili Revolta-se contra o "gosto" clássico, mas sem substituir as re
dade e uma concepção renovada da arte. Como Madame de Staël gras herdadas do classicismo. Desse modo, não se produz uma
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mostrou tão bem , o mundo não pode mudar sem que a literatu revolução estética, uma verdadeira ruptura; simplesmente, o mun
ra mude; esta deve formar suas leis segundo as condições da vida do fechado do classicismo abre-se enfim às realidades exteriores.
social, abandonar os temas de inspiração mitológica herdados do Os exemplos não vêm mais dos antigos, mas de Rousseau, Jean-
classicismo, pintar os "movimentos da alma", cujo conhecimen Paul, Schiller... e Shakespeare!
to aprofundado é uma aquisição recente... Os românticos reivin O espírito romântico afeta a literatura antes de afetar a filo
dicam o Sturm und Drang e Shakespeare, redescobrem as lendas sofia. Aliás, ele se dissolve quando a razão se imiscui: é um pro
medievais; substituem o culto da Antigüidade pelo da civilização blema de poetas. Mas os compositores nele descobrem um ideal
cristã, fonte inesgotável de inspiração; a "sensibilidade" torna em que se reconhecem e sua música é julgada romântica seja por
se um tema preponderante, em que o poderoso não se distingue um aspecto "literário" estranho à sua essência, seja pelo despre
do fraco, pois ambos são sujeitos à melancolia, ao entusiasmo, zo às convenções que caracterizam o século XIX. Em todas as ar
ao sentimentalismo idílico... Cada um de nós sente o que consti tes, o romantismo derrubou a tirania do Gosto.
tui a originalidade do século XIX: o progresso e o mal do século, Se bem não se tenha encontrado de imediato ninguém para
as monarquias überais e as repúblicas autoritárias, o nacionalis empunhar a bandeira beethoveniana, o brilho desta acabou por
mo e o internacionalismo, o individualismo e o sentimento da na iluminar todo o século. A relativa independência do compositor,
tureza, o sonho e a revolta... Mas a definição do romantismo pa livre da obrigação de escrever por encomenda, deixa-lhe a liber
rece impossível. dade de escrever o que lhe apraz e apresentar sua música onde
Stendhal vê no romantismo apenas uma atitude moderna que bem entende. A partir de Napoleão, os príncipes não têm mais
ele não define: "o romanticismo [sic] é a arte de apresentar aos influência sobre a criação artística; a indústria ainda não tem; o
povos as obras literárias que, no estado atual de seus costumes século X I X está preservado dos totalitarismos estéticos. Nunca
e de suas crenças, são capazes de lhes proporcionar o maior pra o compositor foi nem será tão livre! Ele se aproveita disso para
zer possível; o classicismo, ao contrário, apresenta-lhes a litera abalar, ao sabor da sua inspiração, o formalismo de uma socie
tura que proporcionava o maior prazer possível a seus avós" (Ra dade caduca; mas, não possuindo doutrina (pelo menos até o úl
cine e Shakespeare, 1822). Vários outros autores sugerem que o timo quartel do século), não pensa em substituir as regras funda
romantismo seria, em cada época, a atitude artística mais signifi mentais do sistema tonal e sequer se interroga sobre a sua legiti
cativa de um espírito novo. Para Hugo, é "o liberalismo em lite midade. O que há de comum entre Schubert e Berlioz, ou entre
ratura" (prefácio de Hernani, 1830), definição interessante na vés Schumann e Wagner, salvo o desprezo pelas convenções formais,
pera da revolução de julho. Quase todos estão de acordo quanto no respeito das regras fundamentais? Se bem que Wagner, a par
à subjetividade do romantismo: cada um encontra seus modelos tir de Tristão... Mas não antecipemos. Mozart, ao contrário,
em si mesmo. Mas essa introspecção permitirá que o artista des- submetia-se a todas as convenções, apesar da espontaneidade de
seu lirismo.
l.Dela littérature (1800); De l'Allemagne (1810). N a obra crítica de Mada O aspecto literário do romantismo na música é a conseqüên
me de Staël, podemos encontrar os elementos de uma doutrina romântica coerente. cia do velho mal-entendido. No século X V I I , a ópera nascente fa-
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 12 13 ASPECTOS DO ROMANTISMO
zia da representação das paixões o objeto da música: a expressão A expressão febril dos sentimentos individuais comporta, por
tornava-se uma verdadeira obsessão, até na música instrumental. sinal, uma parte de mistificação. A lentidão do ato de composi
O período clássico reagiu a essa deformação: a música tornou-se ção musical, no estágio de desenvolvimento que essa arte alcan
soberana. Haydn e Mozart nunca se esforçaram em exprimir "pai çara então, não permite que o criador siga seu sonho ou sua pai
xões" exteriores à sua inspiração puramente musical. O roman xão, desprezando as exigências da razão. Vivaldi podia escrever
tismo torna a empunhar a bandeira da expressão. A alma é o ob de um jato, sob o império de uma inspiração tumultuosa. Ber
jeto que se deve retratar, que a música tem por função essencial lioz, ao contrário, deve estabelecer suas grandes partituras com
expressar. Acreditando, ou fingindo acreditar na significação da minucioso cuidado. Se compararmos o grafismo dos dois manus
música, pretende-se até oferecer ao ouvinte o relato de uma ação critos, o primeiro é que parecerá romântico.
ou a descrição da natureza em composições instrumentais ditas No entanto, o romantismo consagrou-se ao culto da perso
"programáticas". O individualismo romântico incitará freqüen nalidade. A despeito de seu gênio, as personalidades de Bach e
temente o músico.a pintar suas próprias experiências. O mal- Mozart são apagadas. As de Beethoven, Berlioz, Liszt ou Wag
entendido é ainda mais grave na expressão subjetiva, pois é dei- ner são esmagadoras. Com freqüência o gênio sobe-lhes à cabeça
e eles se instalam na história como que em casa, com suas idéias,
seus gostos, seus sentimentos, seus amores. Alguns souberam or
ganizar perfeitamente suas "relações públicas" (Paganini, Ber- A e s c r i t a p r e c i s a d e B e r l i o z
lioz, Liszt, Wagner), criando festivais ou sociedades filarmôni- (autógrafo de Romeu e Julieta).
15 ASPECTOS DO ROMANTISMO
concerto de Liszt em cas, executando suas obras por toda parte, escrevendo a toda a Eu- Música e sociedade Assim, o concerto perde seu caráter experi
apeste, em 1872. ropa, relatando seus feitos e seus gestos em releases para a impren mental. Ele se aproxima muito mais do museu do que do ateliê.
2
sa . As idas e vindas de Berlioz ou de Liszt são, então, mais co O público ainda conserva sua curiosidade pela nova música, mas
nhecidas do público do que, hoje, as do presidente da República. são tocadas indefinidamente as páginas célebres de ontem e de ou
Essa atitude também é mistificadora. As pessoas se interessam de trora, no decorrer de programas intermináveis : sinfonias ou 3
mais pela vida dos gênios românticos e acabam tendo uma falsa fragmentos de sinfonias, árias de óperas, concertos, fragmentos
idéia da sua personalidade, através das "vidas romanceâdas" e das de oratórios, paráfrase de determinada parte do programa pelo
autobiografias lisonjeiras. A percepção de sua música fica defor
virtuose de plantão, etc. Mas não se vai além do século X V I I I ,
mada com isso, sobretudo quando são acrescentados a suas obras
apesar dos trabalhos dos primeiros musicólogos e da admiração
subtítulos, argumentos literários ou elucubrações fantasistas.
convencional pela Renascença, cuja música não se conhece. Os
Contudo, muitos músicos românticos evitaram essa espécie maiores sucessos cabem à música italiana na Itália, à música ale
de exibição ou de promoção barulhenta; alguns desinteressaram- mã na Alemanha, à música vocal italiana e à música instrumental
se dos argumentos literários, que se tornaram a mania da época. alemã na França. Todavia, uma parte do público acha a música
Parece que resta um só traço comum a todos os gênios musicais
desse século: o individualismo. Cada um faz sua própria música,
3. Sem dúvida, o melómano de antigamente tinha maior apetite e maior fa
2. A estrada de ferro torna as viagens fáceis e pouco dispendiosas (Berlioz culdade de atenção do que o de hoje, faculdade que a prática regular da música
dixit), o que estimula os compositores a multiplicarem as execuções de suas obras. conservava. Mas ele não teria resistido a programas tão longos se tivesse sido obri
Outrora, cada ocasião suscitava uma nova composição, que se ouvia um pequeno gado a sujeitar-se à imobilidade crispada que observamos em nossos concertos:
número de vezes. Agora, as obras-primas românticas poderão aspirar a uma gló ele testemunhava quando queria seu prazer ou seu descontentamento com olhares
ria duradoura. à sua volta, comentários em voz baixa ou aplausos nos melhores momentos.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 16 17 ASPECTOS DO ROMANTISMO
clássica difícil, devido a seu formalismo. A música romântica pa belece sua reputação publicando uma Fisiología do casamento.
rece mais fácil, por pretender retratar sentimentos familiares. Victor Hugo (vinte e oito anos) ganha a batalha de Hernani...
A própria profissão de músico mudou consideravelmente. En Entre os músicos, Beethoven, Weber e Schubert já morreram.
tregue a si mesmo, não trabalhando mais contra remuneração, Paganini (quarenta e oito anos) colhe através da Europa uma gló
o compositor terá dificuldades para organizar sua nova situação. ria ruidosa e uma grande fortuna. Rossini (trinta e oito anos) já
As leis sobre a "propriedade literária e artística", que são pro produziu todas as suas obras-primas; a revolução de julho o faz
mulgadas por toda parte desde o fim do século X V I I I , estabele perder sua sinecura de "primeiro compositor do rei". Berlioz (vinte
cem a legitimidade do direito autoral, mas sem dar ao criador os e sete anos) acaba de conquistar o grande prêmio de Roma, após
meios práticos de defendê-lo (ver t. 1, p. 630). Ele tem de fazer três fracassos sucessivos; antes de partir para a Vila Médicis, apre
das tripas coração para garantir sua subsistência. O compositor senta ao público do Conservatório sua Sinfonia fantástica. Men
organiza concertos em seu benefício, exerce uma profissão anexa delssohn (vinte e um anos), rico e culto (assistiu ao curso de Hegel
(crítico, maestro, professor), ou vive à custa de uma senhora r i na Universidade), realiza uma grande atividade em favor da músi
ca, a menos que disponha de uma fortuna pessoal (Paganini, Men ca do século X V I I I e acaba de revelar ao público de Berlim a Pai
delssohn). A nova situação, mal assumida, tende a isolar da so xão segundo São Mateus. Chopin e Schumann estão com vinte anos.
ciedade os que não encontraram uma organização material satis O primeiro acaba de deixar Varsóvia, após três concertos triunfais;
fatória. Outra dificuldade, inerente ao ofício, confirma esse iso já tem muitas obras importantes em seu ativo, dentre as quais os
lamento. O compositor não escreve mais para um auditório limi dois concertos. O segundo abandona a Universidade de Heidelberg
tado a uma classe homogênea, mas para um "grande público" para se instalar em casa de seu mestre, Wieck, cuja filha Clara (on
indeterminado, formado por uma constelação de individualida ze anos) dá nesse mesmo ano seu primeiro concerto na Gewand
des. A função da música não é mais social, e sim cultural. Não haus; interessa-se mais pelo piano do que pela composição. Liszt
sabendo mais para quem nem por que cria, o compositor encon (dezenove anos), virtuose já renomado, está em Paris, onde fre
tra em si mesmo o motor da sua inspiração. qüenta Hugo, Lamartine, George Sand, Berlioz, depois Chopin.
Logo uma nova elite, burguesa ou aristocrática, cria uma de Wagner e Verdi estão com dezessete anos, Franck com oito...
manda determinada que os artistas têm interesse em satisfazer: A partir de cerca de 1840, um prodigioso movimento de idéias
peças para piano, melodias, música de câmara. Os virtuoses ama abala o sonho romântico, e esse abalo não cessará antes do sécu
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dores multiplicaram-se desde a Revolução . A elite gostará de lo X X . O positivismo de Auguste Comte estabelece que todo fe
cercar-se de músicos, fingirá imitá-los, mas eles não serão inte nômeno obedece a leis científicas. Proudhon ataca os princípios
grados e a incompreensão será por muito tempo o preço da liber sagrados de indivíduo, propriedade, nação e milita em favor de
dade. Isolado do público pela incerteza de suas reações, isolado uma federação européia de comunas. Os cientistas põem a ener
dos salões pela discriminação social, o artista se torna egocêntri gia sob forma de equação (Joule), descobrem as ondas eletro
co e a-social — ele nem sequer sabe o que é. magnéticas (Hertz), estabelecem as leis da hereditariedade (Men
del)... Formado no pensamento hegeliano, Karl Marx propõe uma
1830 O ardor romântico está triunfante em 1830; ele anima por interpretação determinista da história e um método de análise
toda parte os levantes liberais e nacionalistas. Stendhal (quarenta que define as leis da evolução da nova sociedade "capitalista".
e sete anos) publica O vermelho e o negro e assume suas funções A noção de destino naufraga! Negado na história, o princípio
de cônsul em Trieste, onde começa a escrever A cartuxa de Par de finalidade também o é na biologia: Darwin mostra que o ho
ma. J. von Eichendorff está com quarenta e dois anos, idade que mem não é um anjo decaído, que sua evolução é determinada
teria Byron (morto em Missolonghi, em 1824, quando combatia pela "luta pela vida" e pela seleção dos mais aptos. Enfim, Freud
pela independência ao lado dos patriotas gregos). Lamartine (qua explicará o próprio sonho e anaüsará o inconsciente, introduzin
renta anos) é nomeado ministro plenipotenciario na Grécia; aca do a noção de determinismo caracterial. A ciência apoderou-se
ba de publicar as Harmonias poéticas e religiosas e de ser eleito das origens e dos fins, do mundo visível e invisível, do eu íntimo
Ä para a Academia Francesa. Heine e Vigny têm trinta e três anos, e do destino. O artista sente-se espoliado; ele se afasta cada vez
Delacroix e Michelet trinta e dois. Balzac (trinta e um anos) esta- mais de uma vida política devotada ao realismo . Seus confli- 5
4. Ingres, o mais célebre de todos, tocou o Concerto em lá menor de Viotti 5. As coisas evoluem de maneira diferente na Itália, onde a revolução nacio
aos quinze anos no Capitólio de Toulouse. E m 1839, então diretor da Academia nal, que começa por volta de 1796 com a criação, em Nápoles, dos carbonari,
de França em Roma, tocou com Liszt na Vila Médicis a sonata em lá menor de é a princípio realista, mais tarde idealista (movimento "Jovem Itália", epopéia
Beethoven. garibaldina).
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 18 19 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
tos com a sociedade serão expressos em sua oposição ao sistema lo X V I I ; será um setor preservado, a que a burguesia culta forne
estético. ce seus mitos e suas instituições. De fato, em torno do piano, a
Após Beethoven, alguns compositores tomaram partido na música começa a instituir-se; ela seleciona seus fiéis, que são re
vida política do século X I X . Em Paris, Berlioz e Liszt se entu conhecidos por seu "gosto" e sua atitude.
siasmam pelo ideal da revolução de julho. Mas o ardor revolu A burguesia inventa o mito da música "verdadeira" (mais
cionário do primeiro arrefece após 1848. Ele exprime sua "admi tarde, a música "erudita"), com seu corolário, a noção de "com
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ração reconhecida" ao príncipe-presidente, queixa-se de que as preensão" , que fecha o círculo dos iniciados, desencorajando os
condições de trabalho variam de um dia a outro "conforme o ter neófitos. Não se tardará a adquirir o hábito de explicar as obras-
mômetro da sublevação suba ou desça, conforme o socialismo primas, convidando o ouvinte a perseguir, além da música, ilu
aponte tempestade, bonança ou mau tempo" (Carta a Liszt de sões que lhe ocultam a pura mensagem musical. O homem sem
março de 1849); fica exasperado com "essas formas de governo cultura pressente a arbitrariedade das significações quando se afas
representativo" que o forçam a consultar um comitê para orga ta da "música erudita", sentindo-se excluído de um mundo cujas
nizar uma sociedade filarmônica! É verdade que, em 1848, o no convenções ignora. A sacralização das obras, o recurso ao esote
vo proletariado entra em cena, ao passo que 1830 vira triunfar rismo, a instituição de rituais, a afetação de transcender o prazer
uma burguesia liberal. são sinais distintivos de um establishment musical que dá o tom
Liszt contribui para manter, no círculo de George Sand, esse dos salões europeus e tende a criar nas salas de concerto um am
ar democrático que irrita Chopin. Seu coração talvez tenha per biente de clube privado.
manecido do mesmo lado das barricadas, a despeito da atividade
que ele teria desenvolvido como agente secreto de Napoleão I I I
na época de Émile Olivier. Wagner ainda é estudante, quando mi
lita no movimento Jovem Alemanha de Heine; mais tarde, torna- OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
se paladino de uma Saxonia independente e republicana, partici
pa um pouco, em Dresden, dos movimentos revolucionários de Desde o início do século, os grandes músicos cessam de apresentar
maio de 1849, mas acabará defendendo um pangermamsmo ra à história a imagem de uma comunidade de estilos e de técnicas.
cista em algumas obras que inspirarão os ideólogos do nazismo. Enquanto os nacionalismos não voltarem a dar aos compositores
Verdi, por sua vez, é o porta-bandeira do Risorgimento, o sím linguagens coletivas, o gênio é quase sempre singular e profético.
bolo da unidade italiana. Ele apóia as insurreições de 1848 e faz Nenhum novo princípio se destaca da diversidade das experiências,
parte do primeiro parlamento italiano. e a maioria reivindica, no essencial, as formas e o sistema clássicos.
Porém, na segunda metade do século, os artistas e, em parti
cular, os músicos são mantidos cada vez mais isolados de uma Beethoven II Na época em que apresentava sua Terceira sinfo
sociedade burguesa bastante afastada dos grandes destinos. "Nos nia na residência do príncipe Lobkowitz, Beethoven teria dito a
negócios, a burguesia reina. Na política, ela confia seus interes Krumpholtz, que fora seu mestre: "Não estou satisfeito com as
ses a quem quiser defendê-los. No urbanismo, na arte, ela não obras que escrevi até agora; quero seguir, doravante, um novo ca
tem estilo e despreza os grandes poetas e os grandes artistas seus minho." Esse novo caminho é uma mudança de atitude ante a com
contemporâneos. Dir-se-ia que ela teme qualquer criação em que posição. Nada de automatismo, nada de facilidade. A inspiração
poderia reconhecer-se, qualquer expressão que a obrigaria a se de torna-se angústia e vontade; ela não pode mais ser convencional.
finir. Sua universalidade é de fato; ela evita fundá-la; seria expô- Em 1808, alguns meses depois de ter assistido à apoteose de
la" (Domenach, Le retour du tragique). Daí em diante, será cada Haydn na Universidade, Beethoven oferece ao público do teatro
vez mais raro que um músico se destaque por um verdadeiro "en An der Wien um concerto extraordinário, que compreendia as pri
gajamento" político. meiras audições da Quinta e Sexta sinfonias, do Concerto n? 4
Em compensação, em alguns países que lutam por sua iden para piano e orquestra (com o autor como solista) e da Fantasia
tidade nacional, o sentimento de uma comunidade de cultura e para piano, coro e orquestra! O público não se entusiasma; com
de destino se traduz em música, a partir de 1850, pela eclosão de
6. " A compreensão da música repousa em duas faculdades: a percepção sen
diferentes "escolas" nacionais, de que trataremos adiante. No en
sorial e a memória; porque devemos perceber o som que está presente e nos lem
tanto, nos países independentes e unificados, em estado de revo brar do que passou. De nenhuma outra maneira podemos seguir o fenômeno mu
lução social, a música torna-se novamente elitista, como no sécu sical" (Aristóxeno).
CO
OBRAS CORAI
COMPOSITORES,
PIANO SOLO
DE CÁMARA
ORATÓRIO,
CONCERTO
RELIGIOSA
SÊCS. X V I I I Ε X I X ,
SINF. DIV.
SINFONIA
SOLISTA
SONATA
CÔMICA
MÚSICA
MÚSICA
CRAVO,
POR O R D E M
ÓPERÀ-
ÓRGÃO
CANTO
ÓPERA
OBRAS
SÉRIA
BALÉ
CRONOLÓGICA
Vivaldi * * * * * * Φ *
Rameau * * * * * Φ Φ
J . S. Bach * * * * *. Φ * Φ Φ
Haendel * * * * * * Φ Φ Φ Φ
Dom. Scarlatti * • * * * Φ Φ
Leclair * * Φ Φ Φ
Pergolesi * * * * * * Φ Φ
W. F . Bach * * * * Φ * Φ
C . P. E . Bach * * * * Φ Φ Φ Φ
Haydn * * * * * * * Φ Φ Φ
J . C h . Bach * * * Φ Φ Φ * Φ Φ Φ
Boccherini * * * Φ Φ *
Cimarosa * * * Φ Φ Φ Φ
Mozart * * * * Φ * * Φ Φ Φ Φ *
Beethoven * * Φ * Φ * * Φ Φ Φ
Schubert * * * * Φ Φ Φ Φ *
Berlioz * * Φ
Mendelssohn * * * * * * Φ Φ Φ Φ
Chopin * Φ Φ Φ
Schumann * * * * * Φ Φ Φ certeza, não encontra o gênero de prazer que busca. De fato, es Beethoven e Haydn durante a audição
sas obras, surpreendentemente diversas, muito embora tenham si de A criação na grande sala da
Liszt * * * * Φ Φ Φ Φ
Universidade de Viena, em 1808.
do concebidas ao mesmo tempo, requerem muito do ouvinte, que
Franck * * * * * Φ Φ Φ Φ Φ
deve sem cessar adaptar-se à inesperada sucessão dos aconteci
Smetana * * * * Φ Φ Φ
mentos interiores que os sons refletem, tornar-se cúmplice da von
Bruckner * * * Φ Φ Φ tade criadora.
Brahms * * * Φ Φ Φ Φ Φ Φ Não há nela outra expressão, além dessa transferência de von
Bizet * * * Φ * * Φ Φ
tade à obra. Quando Beethoven diz "Assim o destino bate à por
ta", ele nem sequer imagina a gravidade do mal-entendido que
Mussorgsky * * * Φ
deflagra. O famoso motivo inicial anuncia, como se fosse um si
Tchaikovsky * ** Φ Φ Φ Φ Φ nal do destino, o combate a que nos leva a Sinfonia em dó me
Dvorak * * * * Φ Φ Φ Φ Φ nor. Esta não é uma "sinfonia do destino", mas a expressão de
Rimsky-Korsakov * * * * Φ Φ * Φ
uma vontade tensa, cujo destino é combater e vencer. O contras
te entre a idéia metafísica de destino e a imagem realista das pan
Fauré * * * Φ Φ Φ * Φ
cadas na porta é um pretexto para a caricatura (largamente ex
Mahler plorado pelos humoristas) que afasta os espíritos superiores dessa
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 22 23 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
obra-prima: eles dirão que a conhecem muito bem, embora nun têm tamanha eficácia. Por seu desprezo pela sedução melódica,
ca a ouçam. Quando a célula rítmica simples, tocada pelos tím por sua habilidade em explorar as possibilidades de ampliação da
panos, conclamava a Europa nazificada à luta peía liberdade, to célula rudimentar, Beethoven subverte a noção de "tema".
dos conseguiam compreender o que Beethoven sugeria e o senti Quanto ao desenvolvimento, que adquire proporções inabi-
do de sua sinfonia. tuais, não é mais um exercício formal em que as mudanças de ân
A primeira audição, em 1824, da Nona sinfonia e de três par gulo e de luz revelam a riqueza da invenção melódica; é, antes,
tes da Missa solemnis (a obra inteira não será executada em vida a expressão de uma dialética imperiosa, em que as diferentes cé
do compositor) foi, como se sabe, uma apoteose trágica. Não ou lulas são tratadas como idéias, que se enfrentam, perdem e ga
vindo mais, Beethoven parecia estranho a seu próprio triunfo. Sua nham, ampliam-se, suscitam outras e acabam adquirindo uma car
sinfonia, em que as multidões sempre encontram motivos para ga emocional considerável. A própria variação escapa do forma
crer na nobreza da espécie humana, subvertia então todos os cos lismo. A qualidade do tema não tem importância aí; ele será ape
tumes: utilização das piores dissonâncias sem preparação nem re nas o pretexto de uma série de meditações que transcendem mag
solução, adoção do princípio de unidade "cíclica", interversão níficamente o sujeito, como nas monumentais Variações op. 120
do segundo e terceiro movimentos, extraordinária contribuição sobre uma modesta valsa de Diabelli.
da voz humana... É, sobretudo, a única obra-prima musical ins
A matéria sonora adquire nova importância na arquitetura
pirada por uma ideologia — mexprimível filosofia, ideal um pouco
beethoveniana: a música é pensada com seu timbre e sua densida
confuso de primado espiritual e fraternidade universal, cuja
de. Sua habilidade de orquestrador nada tem de excepcional, mas
fórmula musical um homem superior buscou a vida toda. Todos
ele garantiu a promoção dos diferentes instrumentos da orques
quiseram dar sua própria interpretação dessa filosofia: pacifismo,
tra, liberando seus recursos. Nunca se exigira tanto das trompas,
"livre religião", revolução, socialismo, unidade européia ou... fas
cismo. Ora, o Hino à alegria de Schiller, que entusiasmara Bee das clarinetas ou dos contrabaixos; nunca timbres diferentes ha
thoven desde 1792, nada mais é que uma canção idealista de ta- viam sido encadeados com tanta desenvoltura (prefigurando a
verna, exaltando a fraternidade intelectual dos adeptos do Sturm Klangfarbenmelodie de Schönberg e Webern); nunca se interferi
und Drang. Nada tem de incômodo; mas o gênio de Beethoven ra tão audaciosamente no desenho com tão brilhantes manchas
dele faz o hino de uma civilização. Nele não introduz filosofia, de cor.
como não põe religião na Missa; em todas as obras, grita sua fé É, no entanto, ao piano e ao quarteto de cordas que Beetho
ingênua na grandeza da razão humana, A bela melodia que lhe ven reserva prodígios. A sonata dita 'Appassionato', as cinco úl
custou tantos esforços encontra-se quase igual no Agnus Dei da timas sonatas para piano, os cinco últimos quartetos e a grande
7
missa Cum jubilo ("com alegria") do século X I I . fuga suplantam tudo o que se podia esperar então da amplia
ção das formas tradicionais. A forma sonata, a fuga e a grande
variação adquirem uma amplitude desconhecida; sobretudo a von
tade criadora, separada das seduções imediatas, aparece em sua
mt
do
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se
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re. no
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_ _
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fais
cem.
plena realização. O piano revela possibilidades absolutamente
inauditas: sua técnica dá o maior salto da sua história. Quanto
Se seu idealismo é confusamente romântico, sua obra atesta ao quarteto, é pelo despojamento que ele alcança a grandeza: não
um classicismo fundamental, um autocontrôlé absoluto. É um pela pobreza nem pela renúncia, mas pela concentração dos re
construtor, como Bach. Mas a arquitetura não obedece a nenhum cursos essenciais. Essa "interioridade" das últimas obras, que os
formalismo; ela é submetida continuamente à pressão de um tem exegetas sublinham, é a impressão que uma extrema tensão das
peramento excepcional. Um dos traços característicos do estilo de funções criadoras num isolamento sonoro completo nos propor
8
Beethoven em sua maturidade é uma força elementar que se im- ciona .
*põe de maneira irresistível. Em nenhum outro compositor, moti
vos tão simples como
7. Verdadeiro final do Quarteto n? 13 op. 130. Beethoven escreveu a pedido
do editor o pequeno final que se costuma tocar. Mais tarde, arrependeu-se!
8. Entre as obras sérias e inteligentes consagradas a Beethoven, duas são par
ticularmente notáveis: R . Rolland, Beethoven, Ies grandes époques créatrices, 7
vol., Paris, 1940-1949, e Β. e J . Massin, Beethoven, Paris, 1955.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 24
ra alguns meses antes, em Bonn. As 1.800 florins (cerca de 30.000 fran (= Fidelio), Egmont, Coriolano, para piano. Dez sonatas para violi
aulas o decepcionam, mas a capi cos de hoje). As ruínas de Atenas. Nove sinfo no e cinco para violoncelo. Dezes
tal o seduz e ele se apaixona por to 1805 Paixão por Joséphine von nias, cinco concertos para piano, sete quartetos de cordas e cerca de
das as moças. Instala-se efetivamen Brunswick. Os franceses entram em um para violino, um concerto tri vinte outras obras de música de câ
te em Viena. Até 1796, morará no Viena. Estréia do Fidelio: três apre plo, uma Fantasia para piano, co mara. Numerosos Heder e arranjos
palácio do príncipe Lichnowsky. sentações. ro e orquestra. Trinta e duas sona de cantos populares irlandeses, es
1794- 1800 Aluno de Salieri. 1808 Primeira audição no teatro tas, séries de variações e Bagatelas coceses e galeses. Última página da carta
1795- 1798 Concertos em Viena, An der Wien da Quinta e Sexta sin "à imortal amada".
Praga, Dresden, Nuremberg, Buda fonias, da Fantasia para piano, co
peste, Berlim. Em Viena, executa ro e orquestra e do Concerto n? 4.
seu concerto em si bemol maior Pouquíssimo sucesso! É a última
(primeiro em data, mas publicado vez que Beethoven poderá tocar um
como "segundo concerto") no concerto em público.
Burgtheater. No dia seguinte, no 1810 A mão de Theresa Malfatti
mesmo teatro, toca um concerto de lhe é recusada. Desespero. Conhe
Mozart numa apresentação em be ce Bettina Brentano.
nefício de Constanze. Em Praga, 1812 Carta " à imortal amada".
toca seus dois primeiros concertos. 1815 Início da tutela sobre seu so
Em todos esses lugares, improvisa brinho Karl (1806-1858). Agravação
ao piano. da saúde: surdez, afecções pulmo
1798 Primeiros problemas auditi nares, hepáticas, oculares, reumá
vos. Sonata 'Patética'. ticas. Impressão crescente de soli
1799 Chegada dos Brunswick a dão. Durante cinco ou seis anos
Viena. quase não trabalha.
1800 Primeiro concerto dado sob a 1822-1823 Beethoven recebe a visi
responsabilidade de Beethoven: Pri ta de Rossini, Schubert, Weber e
meira sinfonia. Composição dos Liszt.
quartetos op. 18. 1824 Primeira audição da Nona
1801-1802 Paixão por Giulietta sinfonia e da Missa solemnis. Pa
Guicciardi: Sonata dita "ao luar". rece alheio a seu triunfo. Faz cinco
Percebe que está tornando-se irre anos que não ouve nada.
mediavelmente surdo. Crise de de 1826 Tentativa de suicídio de Karl.
pressão: "Testamento de Heiligens¬ Esboços de uma décima sinfonia.
tadt", descoberto vinte e cinco anos 1827 Beethoven morre na tarde de
depois da sua morte. Seu caráter 26 de março, de cirrose hepática.
torna-se sombrio, isola-se volunta Em seu funeral, que foi acompa
riamente, sua instabilidade é cres nhado por uma grande multidão,
cente (mudará de casa quarenta e Czerny e Schubert figuravam entre
quatro vezes em sua vida, voltan os que levavam os cirios.
do com freqüência a seus antigos
domicílios). Mas sua vontade supe- obra Duas missas (dó maior e Mis
t. ra as crises sucessivas. sa solemnis), o oratório Cristo no
1803 Grande concerto no teatro An Monte das Oliveiras, diversas obras
der Wien: Cristo no Monte das corais; a ópera Fidelio, o balé As
Oliveiras, as duas primeiras Sinfo criaturas de Prometeu, aberturas
nias, o Terceiro concerto. Lucro de e música de cena para Leonora
Beethoven entrou para a lenda ainda em vida. O dogma da
sua infalibilidade pesa sobre os juízos estéticos, e os retratos são
deformados pela obsessão de seu destino trágico. Sublinhei aci
ma sua intransigencia e insubmissão: é o fundo do seu caráter.
Como Alceste, ele odeia a mentira e a hipocrisia. Esse rigor mo
ral e intelectual, unido à sua obsessão em ocultar a fraqueza de
seu ouvido (que ele nota desde os vinte e sete anos), lhe dá um
comportamento selvagem, que a maioria de seus amigos não com
preende. É tido por misántropo, aceitam mal suas grosserias. Mu
da quarenta vezes de domicílio em Viena em trinta e quatro anos.
No entanto, não há ninguém mais sociável e mais generoso; ele
não suporta a solidão, é o amigo mais seguro de todos, sua capa
cidade de amar é inesgotável. Mas sua amizade é demasiado exi
gente para muitos e seu idealismo é demasiado absoluto: decep
ciona-se com freqüência. Beethoven se explica sobre sua aparen
te misantropia no patético testamento que redige em 1802 em Hei
ligenstadt.
A solidão moral em que ele mergulha pouco a pouco lhe dá O primeiro marido de J . von
BEETHOVEN ta " à imortal amada". Era meiga, grande paixão atormentada, gera Brunswick, o conde Joseph von
a sensação de ser incompreendido. No entanto, desde os quaren
Ε AS MULHERES sensível, egoísta, discreta. Sua f i dora de Hoffnung e de Sehnsucht. Deym, dito Müller (1750-1804), era
ta anos, é um verdadeiro deus em Viena, sua música triunfa por antiquário e colecionador. Tinha um
lha, Miñona, nascida onze meses Em 1810, um pedido em casamen
toda a Europa, e sua glória não terá eclipse. Mas ele quer a co gabinete de estátuas de cera, em que
MAGDALENA WILLMANN ( ? - ? ) depois da morte de Stackelberg (de to encontra a recusa da família, e
munhão total, não o sucesso parcial; e desconfia de um público fazia entrar os mortos célebres ao
Cantora conhecida em 1792. Amor quem, aliás, Josefina estava sepa Theresa se casa em 1817 com o ba som de uma música fúnebre tocada
rada), fará que lhe confiem as car
fútil, que nunca reconhece o essencial. A fantasia popular apode
sem grande conseqüência, apesar de rão von Drosdick. Foi certamente por um órgão mecânico. Foi a seu
tas de Beethoven, que desaparece
rou-se dessa figura romântica de gênio incompreendido, como se pedido que Mozart compôs para esse
um pedido em casamento, rejeita a inspiradora do ciclo An die ferne
rão misteriosamente. apoderou da do "pequeno Mozart". Chegou a imaginá-lo pobre, medíocre instrumento as Fantasias
do "porque ele era feio demais e Geliebte, de 1816. Beethoven nun K . 594 e K . 608.
ca cessará de pensar nela.
como convém. Aliás, Beethoven queixava-se de viver mal, dema
meio louco" (1796). Beethoven é,
T E R E S A VON BRUNSWICK (1775¬
siado atrapalhado que era para adniinistrar seus rendimentos. No
então, um assediador de mulheres,
1861) Irmã mais velha de Josefina, BETTINA BRENTANO (1785-1859) entanto, um concerto já lhe rende 1.800 florins em 1803; a venda
gaba-se de suas aventuras, que de
seja "curtas e boas", e pede a seu a quem Beethoven conheceu ao Poetisa romântica, amiga de Goe a Clementi da Quarta Sinfonia, dos quartetos op. 59 e do Con
aluno Ries que acompanhe ao pia mesmo tempo. A ela é dedicada a the e, mais tarde, de Schumann e certo para violino, 3.000; a dedicatória da Quarta Sinfonia ao con
no seus folguedos amorosos... Sonata op. 78. Longa e profunda Brahms. Atravessa a vida de Bee de Oppersdorf, 350; e, a partir de 1809, o arquiduque Rodolfo,
amizade (pelo menos até 1816), thoven em 1810-1811, num dos pio o príncipe Lobkowitz e o príncipe Kinsky lhe asseguram, juntos,
uma pensão anual de 4.000 florins para impedi-lo de partir. Ao
GIULIETTA GUICCIARDI (1784-1856) compreensão íntima. Fiel, dedica res momentos. A amizade próxima
A "condessa ao luar", a quem foi da, idealista, um pouco pedante, lê do amor que se estabeleceu entre os
morrer, tinha 10.000 florins diante de si... O florim vaha cerca
dedicada a famosa Sonata op. 27, Platão, põe-se a serviço de todos, dois será uma lembrança feliz. Es de 2,50 francos na época, ou seja, o equivalente de 35 a 40 fran
inspira a Beethoven uma grande consagra-se à educação das massas sa "moça com imaginação de fo cos atuais.
paixão de 1801 a 1803. Ela está e dos filhos da irmã: uma espécie guete" (A. Breton) compreende ad- É preciso, também, descontar o exagero romântico nos amo
com dezessete anos quando o co de santa. Nunca se casou. rniravelmente bem o músico. Seu ir res desesperados, que completam o retrato típico do artista mal
nhece e se torna sua aluna; consi mão, Clemens Brentano (1778-1842), dito, miserável e incompreendido. Beethoven experimentou o amor
dera-o um amigo, quase um pai. MARIA VON ERDÖDY (1779-1837) e seu marido, Joachim von Arnim fugidio, o afeto cúmplice, a paixão profunda; muitas vezes seus
Em 1803, casa-se com o conde von A ela são dedicados os Trios op. 70 (1781-1831), com quem se casa em sentimentos foram compartilhados. Mas esse urso mal lambido
Gallenberg (que será diretor do e a Sonata para violoncelo e piano 1811, são excelentes poetas, mem não inspirava o casamento. Não haveria nada de muito singular
Kärntnertor Theater quando Cho op. 102 n° 2. Conhece-a em 1803. bros do "cenáculo romântico" de nisso se sua solidão não fosse particularmente trágica. A abun
pin aí tocar em 1829). Frivola e se Profunda e terna amizade recípro Heidelberg. Publicam juntos Des dante literatura consagrada à sua vida sentimental não responde
dutora aventureira. ca, que os desentendimentos tem Knaben Wunderhorn, coletânea de a uma pergunta fundamental. Quem é a "imortal amada", a quem
pestuosos não apagam. Beethoven Volkslieder que será musicada por é destinada a admirável e famosa carta, objeto desde sempre de
JOSEFINA VON BRUNSWICK (1779¬ mora em casa dela em 1808-1809; Mahler. um amor recíproco? Das hipóteses prudentemente examinadas pe
1821) A quem são dedicadas as so ela fez de tudo para torná-lo feliz, los Massin (op. cit.), a mais satisfatória designa a misteriosa Jo
natas op. 31. Conhece-a em 1799, com inteligência e coração. É de sua AMALIA SEBALD (1786-?) Talento sefina von Brunswick.
ano em que se toma esposa do con iniciativa a pensão que é oferecida sa cantora berlinense, elogiada por
O verdadeiro drama de Beethoven é, evidentemente, sua sur¬
de von Deym, de quem enviuva em ao compositor em 1809. A amiza Weber. Sua ligação com Beethoven :¿FMS ' \l|.:Tf
1804. Amizade, cumplicidade mu de entre os dois subsiste quando ela (1811-1812) é uma aventura passa
dez: angústia da juventude, desespero da maturidade, silêncio to
sical, compreensão mútua, depois parte para viver na Itália. tal dos dez últimos anos. Essa enfermidade não explica seu gê
geira, sem conseqüências.
paixão e projetos de casamento. nio, mas é provável que ele não tivesse escrito a mesma música
Em 1810, ela se casa contra a von THERESA MALFATTI (1792-1856) Durante o verão de 1812, Beethoven com um ouvido normal. Talvez algumas deselegâncias tivessem
tade com o barão von Stackelberg, Tem dezessete anos, ele trinta e no escreve a famosa carta " à imortal sido evitadas. Mas, sem dúvida, ele nunca teria chegado a tal den
que morre em 1812. Por que não ve, quando se conhecem em 1809. amada' '. Trata-se de Theresa Malfat sidade do pensamento musical se o silêncio exterior não lhe tives
se casa com Beethoven? O amor de É uma moça muito bonita, frivola, ti, como se supôs por muito tempo, se imposto a concentração de sua vontade numa música ideal. "Es
ambos é secreto, mas é dado a co> superficial, mas inteligente, perten ou de Josefina Brunswick-Deym, co se surdo ouvia o infinito", escreverá Victor Hugo.
nhecer pelas cartas de Teresa. De cente a uma rica família burguesa. mo acreditava sua irmã Teresa? Os
acordo com trabalhos recentes Amor à primeira vista, cartas apai biógrafos hoje se inclinam para a se
(Massin, op. cit.), o mais plausível xonadas, inquietas (Beethoven já se gunda hipótese; mas nada permite
é que a ela estivesse dedicada a car desespera antes do fracasso). É uma uma afirmação taxativa.
Josefina von Brunswick.
33 OS GRANDES MÚSICOS ROMÁNTICOS
N I C C O L Ò PAGANINI contra em Livorno lhe oferece um o que não o impede de, dois anos
G ê n o v a , 27 de outubro de 1782 magnífico Guarnieri, que será seu depois, dar um presente de 20.000
Nice, 27 de maio de 1840
violino preferido. francos a Berlioz.
1798-1805 O jogo e as mulheres in 1840 Morre em Nice, de uma afec-
Depois de ter estudado com o pai terrompem sua carreira. De 1801 a ção da laringe. Achillino, o filho
(bandolinista amador) e com o mes- 1804, vive com uma mulher da alta que teve em 1826 com a dançarina
tre-de-capela da catedral, faz sua es sociedade tóscana e se consagra ao Antonia Bianchi, herda uma fortu
tréia em público aos nove anos, en estudo da guitarra. na estimada em 2 milhões de liras
tusiasmando pela execução de va 1805 Retoma suas turnês pela Itá (cerca de 20 milhões de francos) e
riações de sua autoria sobre a Car- lia e aceita dirigir a música privada vários belos instrumentos. A cida
manhola (perdidas). da irmã de Napoleão, Elisa, prin de de Gênova herdou seu precioso
1795-1796 Breves estudos com o cesa de Lucca e Piombo. Guarnieri, conservado no Palazzo
violinista Rolla e o compositor Ghi- 1828-1834 Turnês triunfais por to municipale.
retti, em Parma. Mas, segundo seus da a Europa. Amealha uma gran
mestres, essa criança não precisa de fortuna, parte da qual é investi obra Vinte e quatro caprichos (vio
aprender nada. da em sua propriedade nos arredo lino solo); três concertos, variações,
1797-1798 Primeiras turnes de con res de Parma (Vila Gaiona). Schu Sonata appassionato e várias ou
certos: primeiro na Lombardia, bert ouve Paganini em Viena em tras "sonatas" para violino e or
com o pai, depois em Lucca, Pisa, 1828, Chopin em Varsóvia e Schu questra; doze sonatas para violino
Livorno e cidades vizinhas, sozinho mann em Frankfurt em 1829, Ber e guitarra, duas sonatas e duas so
com o irmão mais velho. Deixa-se lioz e Liszt em Paris em 1831. natinas para guitarra; um quarte
viciar no jogo e tem de vender seu 1836 Perde 50.000 francos na fa to de cordas e catorze quartetos pa
violino para pagar as dívidas; mas lência de um estabelecimento de jo ra violino, viola, violoncelo e gui
um melómano francês a quem en go parisiense, o cassino Paganini, tarra.
dosamente conservado. Desde o primeiro Fausto de Goethe, o dia Weber Karl Maria von Weber não tem a figura de profeta ou
bo é uma figura familiar e fascinante. de pai eterno, como Beethoven, nem de símbolo, como Paganini,
Graças a Paganini, a técnica do violino deu um salto enorme Berlioz ou Liszt. É o cabeça dos românticos alemães, e Wagner
e sua obra cria dificuldades que ele se propõe superar: facilidade considerava-o o mais germânico de todos. Também na Inglaterra
e variedade da execução em cordas duplas, nova técnica de arco é considerado uma glória nacional (Oberon, ópera inglesa). Mas
(staccato volante, ricochete...), associação do arco com ospizzi- em outros países sua estrela brilha tenuemente..
cati da mão esquerda, mudança de afinação ou scordatura, em É na ópera que seu papel histórico tem importância; voltarei
prego generalizado dos sons harmônicos (e não mais apenas nas adiante a isso. Sua música para piano é a de um grande exécutan
cordas soltas), etc. Para os românticos, torna-se um símbolo e um te, independente de todas as escolas pianísticas de então. A for
exemplo. Todos lhe prestam homenagem. Inspira Schumann (Es ma é, em geral, imperfeita, e suas sonatas costumam parecer uma
tudos, op. 3 e op. 10), Liszt (Seis estudos tirados de Paganini), improvisação; mas sua técnica é audaciosa e original, sua inspi
Brahms (duas séries de Variações sobre o Capricho em lá menor); ração poética finíssima e essas qualidades pareceriam notáveis,
Schubert, desprezando o diabo, declara após ouvi-lo em Viena, não fosse a insustentável comparação com o gênio de Schubert.
em 1828: "Ouvi um anjo cantar no adágio de Paganini" (movi Weber também é um grande sinfonista. Em seus belos concertos
mento lento do Segundo concerto). e suas óperas (cena da Garganta dos Lobos do Freischütz, por
exemplo), a orquestra é rutilante. Claro, a de Beethoven é mais rado no cristianismo, mas sem piedade. Escreve em seu diário:
eloqüente, a de Schubert mais homogênea e mais sutil. Contudo, " A razão nada mais é que fé analisada." Detesta a religião ofi
há em Weber um sentido bastante novo do "colorido" orques cial do clero austríaco e partilha a exasperação dos intelectuais
tral, que anuncia o fogo de artifício de Berlioz. contra o regime conservador e intolerante de Metternich.
Com Mozart, Schubert é o mais puro gênio musical da his
Schubert Gosta-se de Schubert como se gosta de Mozart, irra toria, uma espécie de vidente, guiado por uma intuição infalí
cional e intensamente. A revelação de seu gênio é uma paixão sú vel, de que a vontade parece exclm'da. Ele escreve de uma só
bita, não o fruto de uma análise paciente. Por muito tempo foi assentada, geralmente sem rasuras, o mais depressa que sua pe
considerado um mestre menor, pois várias gerações foram inca na consegue ir. A obra domina o homem e só por ele pode ex
pazes de conceber que um homem comum na aparência pudesse plicar-se. A perfeição imediata da idéia é desconcertante. Quan
alcançar sem esforço os cimos da arte pela graça de uma imagi do compõe aos dezessete anos Gretchen am Spinnrade (Marga
nação musical ßem fraquezas. rida à roca) e aos dezoito anos Erlkönig, Schubert alcança de
Sua personagem não apresenta nenhuma das características saída os cimos em que se manterá: não fará progressos, não
singulares que se costuma acreditar serem o sinal do gênio. Bai tem progressos a fazer, pelo menos no que diz respeito ao lied.
xinho e gordo, muito míope (mas com olhos irrequietos e expres Plenamente consciente de seu gênio, Schubert não faz dele uma
sivos), era extremamente boêmio, vivendo num perpétuo impro
causa de vaidade. Mal uma obra é concluída, começa outra,
viso. Seu sentimento bastante arraigado de independência dava-
e compõe tanto, que lhe sucedeu, segundo se diz, aplaudir uma
lhe um ar excessivamente tímido; era, antes, entediado, preocu
de suas obras com entusiasmo, não se lembrando mais de que
pado com sua liberdade. Petrificado pelas convenções sociais,
faltavam-lhe o desembaraço, o trato desenvolto, a ambição. Mas, era o autor.
por suas qualidades de coração, suscitava amizades profundas e O lied está no âmago da obra de Schubert e é a mais elevada
fiéis. Com seus amigos, era bom, caloroso, discutia noites intei expressão de seu gênio. Nesse domínio, nunca será igualado, nem
ras, não raro com entusiasmo ¡ mas por vezes com uma gravida mesmo por Schumann. Pois ninguém cantou de uma maneira tão
de que os fascinava. A boêmia não foi, para ele, sinônimo de mi livre e tão natural; nunca as menores inflexões melódicas ou as
séria. Estava ao abrigo da necessidade, pelo menos depois de 1818, bruscas mudanças de luz corresponderam com tamanha evidên
mas gastava sem pensar no dia de amanhã, consagrando grande cia aos mais sutis batimentos do coração, nunca se foi tão longe
parte de seu orçamento aos cafés e restaurantes. Aí se encontra e tão simplesmente na expressão de um sentimento poético. Se
va o pequeno grupo de inseparáveis com os quais organizava os ria, por assim dizer, a linguagem familiar de uma vida anterior.
grandes passeios no campo e os longos serões musicais a que cha Cerca de seiscentos e cinqüenta Heder de Schubert são conheci
mavam "schubertíades'VPuro vienense, cresceu numa atmosfe dos, nas formas mais diversas, desde a simples canção estrófica
ra estranha ao Sturm und Drang, viveu numa cidade agradável (Heidenröslein) até a cena dramática (Erlkönig) ou a cantata (Viola
e indolente, que logo ficará fascinada com a velocidade, a verti ou Der Hirt auf dem Felsen). Apenas no ano de 1815, compôs
gem, o erotismo da valsa (J. Strauss pai cria sua orquestra em cento e quarenta e duas, sem fraquejar.
1825). Schubert foi freqüentemente censurado pela escolha incon
A maioria dos biógrafos de Schubert evoca o céu a seu res siderada dos poetas: ao lado de Goethe, Schiller, Heine, Novalis,
peito, e seu amigo, o pintor Moritz von Schwind, qualifica-o de Schlegel, encontram-se Müller, Von Collin, Schober, Mayrhofer.
"louco celeste". Esse anjo, todavia, é bem da terra. Os cheiros Estes últimos são seus amigos, mas não têm gênio. No entanto,
da floresta vienense passam por vezes para a sua música, ou os devia haver entre eles e o músico uma íntima compreensão artís
efluvios de uma perna de cabrito-montês com bagas de airela. Co tica, pois uns versos pobres de Von Collin deram Nacht und Träu
me e bebe por dez, adora passear no campo, não despreza os amo me, um dos mais belos Heder de Schubert, a admirável Viola se
res fáceis. Há em Schubert o que chamamos de um "bom equilí deve à colaboração de Schober, Nachtstück à de Mayrhofer e Die
brio", até a sífilis esgotar seus recursos físicos e morais. Sua inte Winterreise, perturbadora obra-prima, é composta com base num
ligência não era notável, muito embora não fosse medíocre. Seus ciclo de vinte e quatro poemas de Wilhelm Müller! Pura de qual
amigos gostavam da sua conversa e da sua "grande elevação de quer compromisso intelectual, essa música não faz transcrição li
espírito". Era crente? Parece ter sido animado por um sentimen teral; nela, a inspiração não se deve à qualidade literária do poe
to religioso espontâneo, espécie de deísmo um tanto vago inspi- ma, mas ao sentimento poético geral.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 40 41 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
HECTOR BERLIOZ Mannheim, Weimar, Leipzig, Dres riet, que fica na rue Blanche, 43.
L a Côte-Saint-André (Isère), 11 de dez. de 1803 den, Hamburgo, Berlim...). Berlioz Instala-se em casa da medíocre can
Paris, 8 de m a r ç o de 1869
executa suas quatro sinfonias: Fan tora Marie Recio (que o persegue há
Filho de um médico liberal e filán tástica, Fúnebre e triunfal, Harol alguns anos), na rue de Provence,
de na Itália, Romeu e Julieta. Men 41, depois na rue de La Rochefou
tropo. Faz seus estudos secundários
delssohn recebe-o em Leipzig. cauld, 15.
em Grenoble e aprende música so
1844 Grande concerto no Théâtre 1847-1848 Primeiras viagens à Rús
zinho.
Italien, com o concurso de Liszt. sia e à Inglaterra.
1821 Seguindo o desejo do pai,
Este toca urna Fantasia sobre Don 1848 Morte de seu pai. Harriet f i
inscreve-se na Faculdade de Medi
Juan e um arranjo do baile da Sin ca paralítica. Os acontecimentos
cina de Paris. Estudante pouco as
fonia fantástica. políticos irritam Berlioz. Em de
síduo, interessa-se mais pela ópera
1845 Dá um concerto de música zembro, fica encantado com o su
do que pela anatomia.
russa em Paris, em presença de cesso de Luís Napoleão Bonaparte,
1825 Consegue reunir cento e cin Glinka. mas não votou para "não contri
qüenta músicos para executar uma 1845-1846 Concertos em Marselha, buir para nenhuma catástrofe". O
Missa solene de sua autoria na igre Lyon, Bonn, Viena, Praga, Buda progressista de 1830 tornou-se anti-
ja Saint-Roch! peste, Breslau... Separa-se de Har republicano.
1826 Inscrição no Conservatório de
Paris, a despeito da oposição da fa
mília. Aluno de Lesueur e Reicha.
1827 Apaixona-se por Ofélia, en
carnada por Harriet Smithson. Ca
sa-se com a comediante irlandesa
em 1833. Ela lhe dá um filho, Louis
(1834-1867).
1830 Grande prêmio de Roma (de
pois de três tentativas malsucedi-
das), na noite das Três Gloriosas.
É o ano de Hernani (fevereiro) e da
Sinfonia fantástica (dezembro). Es 1850 Funda uma Sociedade Filar mi bemol maior de Liszt (com o au Berlioz em 1830.
ta é executada no Conservatório sob mônica, independente dos poderes tor ao piano). Triunfos da Infância
a regência de Habeneck. públicos. É nomeado bibliotecário de Cristo e do Te Deum.
1831-1832 Estada na Vila Médicis. do Conservatório. 1864 Os troianos em Cartago no
1835 Magníficos artigos de Schu 1851-1853 Duas novas viagens a Théâtre-Lyrique. Apesar do suces
mann sobre a Sinfonia fantástica. Londres. Triunfal semana Berlioz so e das consagrações oficiais (é
O próprio Berlioz é crítico do Jour em Weimar. Grande turnê pela Ale membro do Instituto desde 1856),
nal des Débats. manha. Berlioz cai numa grave neurastenia,
1837 Execução triunfal da Grande 1854 Morte de Harriet. "Não po agravada pela morte do filho Louis,
Missa dos mortos nos Invalides; re díamos nem viver juntos, nem nos em 1867.
gência de Habeneck. separar." Berlioz casa-se com Ma 1866 Nomeado conservador do Mu
1838 Paganini, entusiasmado por ne Recio. Terceira grande turnê pe seu Instrumental do Conservatório.
um concerto de Berlioz no Conser la Alemanha. Ajudado pelo jovem Saint-Saêns,
vatório, manda-lhe um cheque de 1855-1864 Viagens freqüentes à monta A leeste de Gluck na Ópera.
vinte mil francos. Alemanha. Vai todos os anos a Ba 1868 Após uma derradeira viagem
1842-1843 Primeira grande turnê den. Em 1855, rege em Weimar a à Rússia, onde é recebido como um
(Bruxelas, Frankfurt, Stuttgart, primeira audição do Concerto em soberano, repousa na Côte d'Azur,
Harriet Smithson como Ofélia.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 46 47 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
cerebral. nos em Cartago, Paris, 1863), Béa Os fracassos afetavam-no profundamente. Mas foram com
1869 Um ano depois, morre sem trice et Bénédict (Baden-Baden, pensados pelos êxitos "piramidais", "espantosos" da Sinfonia
nunca ter-se recuperado totalmen 1862). Uma Missa dos mortos (Ré fantástica, do Réquiem, da Infância de Cristo, pelas turnês triun
te. Desde os sessenta, tem a apa quiem) e um Te Deum, para tenor fais pela Europa central e pela Rússia, ou por aquelas apoteoses
rência de um velhote. Em 11 de solo com um enorme conjunto co
que foram as "semanas Berlioz", organizadas por Liszt em Wei
março, após as exéquias na Trini ral e instrumental (orquestra sin
mar. Todavia, sua música era raramente executada quando ele
té, os cavalos do carro fúnebre dis fônica e orquestra de metais); um
param a caminho do cemitério de oratório ou "trilogia sacra", A in não cuidava disso e, muito embora sempre se tivesse queixado de
Montmartre — onde Berlioz está fância de Cristo; melodias com or ser obrigado a produzir em data fixa um "imortal folhetim", seu
hoje enterrado perto de suas duas questra. Quatro sinfonias: Sinfo talento literário não era alheio à sua glória. Sua cultura e sua com-
mulheres. * nia fantástica, Romeu e Julieta batividade dispunham-no a tornar-se um dos maiores críticos da
(com solistas e coros), Haroldo na história, e seu proselitismo necessitava do meio de expressão que
11
obra Quatro obras dramáticas: Itália (com viola solo), Sinfonia fú lhe era oferecido pela imprensa .
Benvenuto Cellini (Paris, 1838), ,4 nebre e triunfal (com coros). Aber Dois anos após a morte de Beethoven, a Sinfonia fantástica
danação de Fausto, "ópera de con turas. Uma obra literária, que dava às músicas mais modernas um aspecto um tanto vetusto. Pre
certo" (Paris, 1846), Os troianos abrange as Memórias e várias co tendendo ingenuamente pintar um "episódio da vida de um artis
(em duas partes: A tomada de letâneas satíricas. ta", Berlioz buscava a inspiração na fonte, mas sempre com luci
dez, ostentando sua independência em relação às modas e às con
venções musicais. Não foi perdoado por isso. O respeito oficial
Berlioz Vocação contrariada, "mortal amor" por Ofélia, sin pelas santas regras clássicas, a religião da fuga e da forma sona
fonia "fantástica", "torrentes de lágrimas", "inferno e dana ta, mantidos pelos conservatórios, fizeram pesar muito tempo so
ção", leitura de Byron num confessionário, deambulações no bre ele a ridícula suspeita de uma falta de know how. Mas seu
turnas e, para terminar, os cavalos do carro fúnebre que dispa profundo conhecimento das obras de Beethoven revelaram-lhe co
ram a caminho do cemitério de Montmartre... Nada falta a Ber mo abandonar os caminhos balizados sem se perder.
lioz, nem mesmo o nariz e. a cabeleira, para ser um modelo de A originalidade técnica de Berlioz reside principalmente em
compositor romântico; melhor, ele é uma caricatura shakespea- seu gênio melódico e em seu virtuosismo orquestral; a escrita po
riana um pouco louca. Muito emotivo e fervilhante de imagina lifónica é simples, o que não exclui o requinte, como atestam a
ção, é seguramente sincero na expressão de suas paixões e nun
sinfonia Romeu e Julieta, A danação de Fausto e A infância de
ca se renega. Mas encena-se com um gosto acentuado pelo espe
Cristo. Ele criou uma nova forma de melodia francesa, não ape
tacular e, também, com um senso de humor bastante raro num
nas nas peças que intitula — pela primeira vez, ao que parece —
egocêntrico desse calibre.
"melodias", mas também em certas páginas admiráveis, como a
A vida inteira ele cultivará a retórica hiperbólica em voga cena de amor de Romeu e Julieta (instrumental), a ária "Noite
na sua juventude. Precisa dela para viver. Seus menores epítetos calma e serena" de Béatrice et Bénédict, o septeto dos Troianos
bastariam para qualificar o Juízo Final. Mas permanece lúcido em Cartago ou a "Canção do rei de Tule" da Danação de Faus
e, nas coisas sérias, reencontra seu rigor intelectual. Seu perso
to. Por outro lado, seu gênio sinfônico, sua compreensão das pos
nagem, não conformista, intransigente, agressivo, não parece
sibilidades melódicas e rítmicas dos instrumentos fizeram de Ber
desagradar-lhe; nem todos os seus impulsos surpreendentes são
lioz o criador da orquestração moderna, que todos os grandes sin-
descontrolados. Ele cuida da imagem e atesta, na conduta de
seus negócios, um senso agudo das relações públicas. Apesar
dos ventos contrários — e eles o são com freqüência —, seu 10. De origem inglesa, a palavra "festival" é empregada na França a partir
espírito de empreendimento está constantemente alerta. É pre de 1830 aproximadamente.
tensioso, e a desenvoltura de seu trato é fenomenal: mobiliza 11. A obra literária de Berlioz é de um interesse constante; tudo é inteligen
todos os concursos, escreve para a terra inteira, inunda a im te, espirituoso, inesperado. Ver, em particular: Mémoires, 2 vol., Paris, 1870,
reed. Garnier-Flammarion, 1969; A travers chants, Paris, 1872, reed. Gamier,
prensa de releases ("meus boletins do Grande Exército"), inves 1973; Les soirées de l'orchestre, Paris, 1852; Les grotesques de la musique, Paris,
te sobre os ministérios, força as portas do Instituto, monta es- 1859.
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R O B E R T SCHUMANN 1829- 1830 Universidade de Heidel mútuo. Durante os cinco anos de por Clara. A sentença favorável foi quem consagra um artigo ditirâm- obra A ópera Genoveva (Leipzig,
Zwickau (Saxonia), 8 de junho de 1810 berg. Estuda sobretudo piano. Faz luta e separação, Robert comporá proferida em 1 ? de agosto e o casa bico. Brahms e o violinista Joachim 1850), a música de cena para Man
Endenich (Bonn), 29 de julho de 1856
uma viagem à Itália, atravessando todas as suas obras-primas, e Cla mento foi realizado no dia 12 de se organizam em Hanôver um festival frede (Weimar, 1852), cerca de vin
os Alpes a pé. Ouve Paganini e to ra tocará em toda parte o Carnaval, tembro, véspera dos 21 anos de Schumann (janeiro de 1854), com te obras para coro e orquestra.
Seu pai, August (1773-1826), era li ma consciência da sua vocàção. A os Estudos sinfônicos, as Kinders- Clara. imenso sucesso. Quatro sinfonias, um concerto e um
vreiro, editor e autor; sua mãe, Jo conselho de Wieck, abandona o di cenen, as Kreisleriana. 1843 Contratado por Mendelssohn 1854 Certa manhã, interrompe brus Concertstück para piano e orques
hanna Christiana Schnabel (1771¬ reito. 1838- 1839 Instala-se em Viena, pa como professor do novo Conserva camente seu trabalho e vai-se jogar tra, um concerto para violino, um
1836), inteligente e hipersensível, 1830- 1832 Instala-se em casa de ra onde transferiu a revista. Aí co tório de Leipzig. Péssimo pedago no Reno. Salvo por barqueiros, é concerto para violoncelo. Um quin
era filha de um cirurgião. Wieck, em Leipzig. Trabalho obs nhece o filho de Mozart e o ir go, abandona o cargo ao cabo de internado no hospício do Dr. Ri- teto, dois quartetos e dois trios com
1822-1827 Primeiras tentativas de tinado; mas em 1832 perde o uso do mão de Schubert. Clara está em um ano. Turnê pela Rússia com charz, perto de Bonn. Sua mulher piano, três quartetos de cordas. Nu
composição aos doze anos. Tam terceiro dedo da mão direita, que Paris. Clara. (grávida de um oitavo filho) só se merosas composições para piano
bém escreve artigos curtos para amarrara para garantir a indepen 1839- 1840 Ação judicial para ob 18.44-1849 Instalação em Dresden. rá autorizada a vê-lo em julho de (dentre as quais Papillons, Davids-
uma revista do pai, poemas, peças dência do quarto! Grave depressão ter a autorização legal de se casar A revolução expulsa-os da cidade. 1856. Morre alguns dias depois, ve bündlertänze, Carnaval, Fantasie
de teatro, sem descuidar de seus es em 1833. com Clara, apesar da oposição de 1850-1854 Instalação em Düssel lado por Clara e Brahms. stücke, Kinderscenen, Estudos sin
tudos gerais. Lê muito na livraria 1833 Funda as "Davidsbündler" e Wieck, que Schumann processa por dorf como Musikdirektor. Deplo fônicos, Fantasia, Kreisleriana, três
do pai e se entusiasma por Jean¬ a Neue Zeitschrift für Musik (n? 1 difamação. Em abril, encontra Cla rável regente, Schumann não con Clara Schumann (1819-1896), uma sonatas...). Duzentos e sessenta He
Paul. em 3 de abril de 1834). Faz amiza ra em Berlim (ela se refugiou em segue impor-se e sofre perturbações das maiores pianistas de seu tempo, der (dentre os quais Liederkreis,
1828 Universidade de Leipzig (di de com Mendelssohn. casa da mãe) e, nessa ocasião, Men nervosas e psíquicas cada vez mais compôs música para piano (incluin Dichterliebe, Frauenliebe und -le
reito). Primeiras lições de piano 1835 Clara Wieck (16 anos) e Schu delssohn canta os primeiros Heder graves. Em 1853, trava conheci do um concerto), música de câma ben), peças para coro ou conjunto
com Friedrich Wieck. mann (25 anos) descobrem seu amor de Robert, acompanhado ao piano mento com o jovem Brahms, a ra e Heder. vocal, etc.
Suas obras-primas são as peças para piano já citadas (a que de que é vítima seu gênio é o mais tenaz e o mais nefasto da história
13
podemos acrescentar o belo Concerto) e os Heder de 1840. É ao da música. Marie d'Agoult , essa tola pretensiosa, já escreve que
piano que Schumann confia sua inspiração mais preciosa, con ' ' Chopin tosse com uma graça infinita' ', e Anna de Noailles suspi
traponto sutil de suas fantasias e seus sonhos. Mas o lied corres ra nesciamente: "Oh, soluços de Chopin, oh, despedaçamentos do
ponde de maneira perfeita a suas aspirações artísticas, permitindo- coração..." Acaso se faz história escutando essas sereias?
lhe associar à sua obra seus poetas preferidos. O piano desempe Ora, se a sensibilidade de Chopin é, de fato, a de um filho do
nha um papel tão importante quanto a voz na sutil Uurninação século, é notável que, em sua pessoa, as tendências românticas não
do sentimento poético. Schumann tem, deste, uma compreensão tenham predominado. É um gênio independente e secreto, que se
profunda, que controla a todo instante a inspiração musical. É manteve à parte dos movimentos contemporâneos. Sua amizade
sua fraqueza em comparação com Schubert, de quem não possui por Delacroix e por Mickiewicz não é profunda. À admiração de
o instinto infalível, o dom de fazer a música jorrar de si que o Mendelssohn, Schumann, Berlioz, Liszt, ele responde com a indi
dispensa de ressaltar as intenções literárias. ferença ou o desprezo; acha "completamente estúpido" o artigo
entusiasta de Schumann sobre suas Variações op. 2. Não sente afi
A música de câmara de Schumann (apesar do quinteto) e sua
nidade com Beethoven, nem mesmo com Schubert. Seus verdadei
música sinfônica (apesar da Sinfonia "renana") têm um interes ros mestres são Bach e Mozart. Nem as lições de piano do velho
se menor. Sua instrumentação não é inábil, é supérflua. Ε sua ima Zywny, quando era criança, nem as aulas de escrita do Conserva
ginação é limitada por certo formalismo. tório de Varsóvia, irregularmente seguidas, tiveram sobre a sua for
Enquanto pôde manter seu espírito sob o controle de sua mação a influência dos grandes clássicos ou das danças de campo
vontade, Schumann foi um grande crítico musical; a lucidez de neses, com quem se misturava durante as férias de verão. Mas, no
seus juízos e a inteligência de suas análises forçam a admiração. que concerne ao essencial da sua arte, Chopin não deve nada a nin
Sabe reconhecer seus erros e corrigir uma primeira impressão des guém; ele inventou tudo, preservando-se cuidadosamente de toda
favorável, adivinha o gênio de Chopin, de Berlioz, de Schubert, influência.
de Brahms, de Wagner. Com seus companheiros das "Davids- Elegante, espirituoso, reservado, esconde sua timidez sob uma
bündler", cria a Neue Zeitschrift für Musik para defender os amabilidade indiferente. Detesta as confidências, não fala nem de
músicos românticos e atacar os filisteus amantes de música ita sua saúde, nem de seus sentimentos, raramente de suas idéias.
liana. Um jovem desconhecido, chamado Richard Wagner, faz- "Conduz tua alma na angústia, deixa sofrer teu coração, mas que
se notar, nos primeiros números da revista, por artigos explosi ninguém, em tua face, leia tua dor." Ao mesmo tempo que uma
vos. Schumann, por sua vez, garante grande parte da redação exigência moral, Chopin exprime com isso sua concepção da arte.
com Eusebius e Florestan, personagens imaginários que encar Despreza as efusões líricas da música-confissão. Pode-se vestir sua
nam os dois aspectos da sua natureza ambígua: a razão e a im- obra com subtítulos e símbolos, podem-se descobrir nela rostos de
pulsividade. Com freqüência os faz dialogar, o que resulta em mulheres ou a sombra de uma revolução, podem-se ouvir nela so
maior proveito de sua argumentação e maior prazer para os lei luços de amor ou gotas de água, mas Chopin, por seu lado, mostra
tores. Mestre Raro por vezes intervém para pô-los de acordo. desprezo por qualquer composição literária, dando a suas obras
Schumann abandona a direção da revista em 1838, mas continua títulos convencionais. Sua música é pura, como a de Mozart.
a enviar artigos. O último, publicado em 28 de outubro de 1853, Na lenda de Chopin, duas imagens são particularmente irri
é intitulado Neue Bahnen (Novos caminhos): é o anúncio de que tantes, a do pianista de salão e a do tuberculoso, que, aliás, se
um jovem músico de vinte anos, Johannes Brahms, será o apósto conjugam sem consideração para com a história. Incontestavel-
lo de uma música nova e um dos maiores compositores do século. mente, Chopin era um mundano. Sedutor, bom dançarino, hábil
A Neue Zeitschrift für Musik continuará a ser publicada em Leip nos jogos de salão (era um excelente mímico), um pouco esnobe
zig até 1943. também, criou para si, nos salões parisienses, uma situação inve
jável. Suas aulas, disputadas a preço de ouro, e o produto dos
contratos de edição parecem garantir-lhe rendimentos confortá
Chopin As biografías romanescas e as interpretações exageradas 14
veis . O fato é que ele vive à larga e nunca terá problemas pe-
falsificaram o gênio de Chopin com uma obstinação particular. O
ar de mistério que se descobre nesse exilado, a inspiração atormen
13. Chopin dedicou a ela sua segunda série de Estudos, poderosos, fulguran
tada, o requinte do estilo, a tuberculose pulmonar sobretudo tes... É de se perguntar se acaso ela os leu.
designaram-no como símbolo do pior pathos romântico. O mito 14. Ver S. e D . Chainaye, De quoi vivait Chopin, Deux-Rives, 1951.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA *58 59 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
cuniários; quando uma dificuldade se apresenta, sempre aparece mos característicos, estruturas modais, células melódicas típicas.
OS MÚSICOS QUE uma fada boa, sob a forma de uma rica admiradora ou de uma O caráter polonês encontra-se em grande parte da sua obra, não
MORRERAM JOVENS ex-aluna. Essa vida fácil, em que não se sente forçado a nada, só nas Mazurkas e nas Polonaises. Orgulhoso de assumir a cultu
dispensa-o das turnês de concertos que ele teme, permite-lhe criar ra de um povo oprimido, Chopin se pretende compositor nacio
Lekeu 24 anos
com uma liberdade total e garante-lhe um círculo de relações ex nal e, como tal, terá, juntamente com Liszt, uma influência con
Pergolesi 26 anos
Grigny 32 anos tremamente extenso. Ela prejudicará sua reputação póstuma, mas siderável.
Schubert 32 anos ele nunca esteve tão bem quanto no apogeu da sua carreira mun Não se interessa pelos longos desenvolvimentos e mostra-se
Belhni 34 anos dana. pródigo de idéias. Como Schumann, tem uma predileção pelas
L . Couperin 35 anos George Sand entra na vida de Chopin com um ardor missio formas simples e breves, que estimulam sua imaginação; porém,
Purcell 36 anos nário. Chopin acha-a antipática quando ela vem à sua casa pela sua invenção melódica aproxima-o mais dos italianos. Admira
Mozart 36 anos primeira vez, trazida por Liszt e Marie d'Agoult. Mas ela quer Rossini e sente profundas afinidades com Bellini. Possuem em co
Bizet 37 anos
aquele "pequeno ser", cumula-o de seu amor e participa sua pai mum o dom da espontaneidade. "Neles tudo parece de um só ja
Mendelssohn 38 anos
Stradella 39 anos
xão a um amigo comum, num bilhete em forma de ultimato. Cho to, de um impulso, saído subitamente " , escreve Liszt acerca dos
J. Stamitz 39 anos pin deixa-se tomar de assalto: ela o distrai de uma grave decep Prelúdios. "Eles possuem o ar livre e grandioso que caracteriza
Chopin 39 anos ção sentimental (seu amor pela encantadora Maria Wodzinska) as obras de gênio." Na música de Chopin, porém, o virtuosismo
Gershwin 39 anos e a curiosidade que ela lhe inspira se transforma, contra a sua pró nunca é gratuito, ao contrário dos italianos. Os ornamentos pro
pria vontade, em paixão. porcionam à melodia seu elã, ao ritmo seu impulso. Quanto às
George está fascinada por esse artista secreto que ela acha passagens em "pequenas notas", ora afirmam um modo ou de
RECORDES DE bastante feminino para responder a seu ideal de amor: o da Péri talham uma harmonia, ora são belas melodias fugidias entre pa
LONGEVIDADE ou de sua própria Lélia. Convenceu-se de que estava destinada rênteses. Nenhuma obra de Chopin tem a ambição de ser uma
Reinken 99 anos
à felicidade de Frédéric; quer subtrair seu gênio à atmosfera fra- obra-prima. Encontramos numa mazurca ou num prelúdio — es
G. Charpentier 96 anos gilizante dos salões parisienses, garantindo-lhe uma vida simples ses prodigiosos haicais — a mesma originalidade que na impres
Gossec 95 anos e sadia no campo e a freqüentação de um meio digno dele. Con- sionista Balada em fá menor ou na suntuosa e radiante Barcaro
Widor 93 anos segue-o e, se não se explorarem todos os recursos da psicologia la. Ε as soluções apaixonantes que o jovem autodidata deu em
Sibelius 92 anos do casal, pode-se pensar que essa ügação de dez anos foi feliz. seus Estudos (ele os compõe entre os dezoito e os vinte e quatro
Gretchaninov 92 anos Mas essa mulher superior, ao mesmo tempo mãe castradora e anos, com um inesgotável senso poético) a todos os problemas
Ropartz 91 anos amante devoradora, é dotada de uma monstruosa saúde, que pa técnicos bastariam para fazer dele a personalidade dominante da
Malipiero 91 anos rece nutrir-se das fraquezas alheias. Os cuidados que ela dispen
Stravinsky 89 anos
história do piano. A despeito do que parecem crer alguns de seus
sou a seu "Chopinet", a seu "doente ordinário", a seu "pobre intérpretes, o rigor e a simplicidade eram constantes de sua ma
Verdi 88 anos
Schmitt 88 anos
sofredorzinho" têm a dupla conseqüência desditada de retirar de neira de tocar. No tempo rubato, ele queria que a mão esquerda
Schütz 87 anos Chopin suas possibilidades naturais de defesa física e psicológica 15
permanecesse imutável — sempre esse controle da razão sobre
Kreisler 87 anos e de criar a absurda lenda do poeta agonizante que arrastam até os movimentos do coração.
Telemann 86 anos o piano, banhando-se em suas lágrimas, com um punhal no co
Saint-Saèns 86 anos ração!
R. Strauss 85 anos
A obra de Chopin é romântica pela audácia da escrita, clássi
Kodály 85 anos
ca pelo pudor e pela concisão. Ele é o vínculo entre Couperin e De
bussy. Pela riqueza de sua harmonia, pela ambigüidade tonai, pe
los cromatismos sutis, é um compositor de vanguarda, meio sécu
lo à frente de seus contemporâneos. Por outro lado, é o primeiro
grande compositor que deu à sua obra as características específi
cas de uma música nacional. Sua assimilação da cultura polonesa Barcarola.
não é superficial; conhece bem as canções e as danças de seu país,
que ele e muitos outros imigrantes associam à idéia da independência
nacional. No entanto, não utiliza temas folclóricos; como Béla Bar- 15. "No tempo rubato de um adágio, minha m ã o esquerda permanece com
tók mais tarde, ele cria um folclore imaginário, assimilando rit- pletamente independente", escreve Mozart ao pai (outubro de 1777).
Autógrafo da Segunda Balada
modesto professor chamado Woj- de Chopin.
FRÉDÉRIC C H O P I N
Zelazowa Wola (Varsóvia), 1? de março de 1810 ciech Zywny). Começa a estudar
Paris, 17 de outubro de 1849
composição com Eisner, diretor do
Conservatório. No verão, faz tea
Filho de Nicolas Chopin (1771¬ tro com suas irmãs e se inicia no fol
1844), professor de origem lorena clore polonês.
estabelecido em Varsóvia em 1788, 1828 Estadas em Berlim e em
e de Justyna Krzyzanowska (1782¬ Praga.
1868). 1829 Dois concertos em Viena, no
1816-1823 Autêntico menino pro Kärntnertor Theater. Sucesso triun
dígio. Publica sua primeira Polo fal. Volta por Praga, Dresden e
naise aos oito anos. Breslau.
1823-1826 Liceu de Varsóvia: exce 1830-1831 Começa a compor os
lentes estudos. Já é um pianista con Estudos. Após ter dado três concer
sumado (trabalhou só e com um tos em Varsóvia, Chopin empreen-
Chopin, por Delacroix.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 62 63 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
Liszt A imagem que chegou até nós de Liszt, esse outro fabulo
de uma "viagem de estudos": Bres 1837-1847 Ligação com George so pianista, é tão deformada quanto a de seu amigo Chopin. De
lau, Dresden, Praga, Viena (onde Sand. Conhece-a em 1836 no Ho vemos dizer que ele inclusive contribuiu para isso. Impressiona-
fica por algum tempo), depois Mu tel de France, aonde viera ter com díssimo com Paganini, a quem ouve em Paris em 1831, constrói
nique e Stuttgart. Aí fica sabendo Liszt e Marie d'Agoult. A princípio, para si, ao fio dos anos, um personagem de virtuose fenomenal,
da tomada de Varsóvia pelos rus ela o desagrada, mas o distrai da que pulveriza os teclados e transfigura, segundo uns, ou desfigu
sos; transtornado, prossegue seu ruptura com Maria; a antipatia se ra, segundo outros, tudo o que toca. Faz do recital de piano o
caminho para Paris, onde decide transforma em curiosidade, depois que Paganini fez do recital de violino: um grande espetáculo. Me
fixar-se, num bonito apartamento numa espécie de resignação à pai nos fantasista do que Berlioz, apóia-se em suas amantes para a
no quinto andar do boulevard Pois xão. Após a catastrófica estada em mistificação, deixando-as até escrever qualquer coisa com seu no
sonnière, 27. Célebre artigo de Majorca (inverno de 1838), instala- me. Mas é extraordinariamente cabotino, faz mímica do que toca
Schumann: "Tirem o chapéu, se se na rue Tronchei, depois, com com todo o corpo e chega a opor dois pianos em cena, passando
nhores, um gênio." George, no 16 da rue Pigalle. Pas
de um a outro para mostrar seus dois perfis.
1831-1837 Período mundano. sam todos os verões em Nohant,
Chopin toca em toda parte; é apre onde freqüentam Liszt, Delacroix, O público aprecia particularmente as transcrições, arranjos
sentado a numerosos músicos, den Balzac, Arago, Quinei, Pauline e paráfrases de obras conhecidas, em que Liszt desenvolve uma
tre os quais Rossini, Cherubini, Viardot... A ruptura é medíocre: imaginação e um virtuosismo impressionantes. Nada escapa de
Liszt, Berlioz, Bellini, Mendelssohn Chopin ousou tomar partido de So le: as grandes páginas de ópera, de Auber a Meyerbeer, de Wag
(com o qual passeia a cavalo no lange, filha de George, contra a ner a Verdi, os Heder de Schubert, a Sinfonia fantástica, as obras
16
Bois de Boulogne). Mas evita cui mãe, numa triste história de casa para órgão de Bach, as sinfonias de Beethoven... Acusam-no
dadosamente qualquer influência. mento infeliz. de mostrar idêntica imaginação na execução das obras para pia
Instala-se no 5, depois no 38 da 1848 Último concerto em Paris. no, cujo texto original ele costuma "enriquecer". Apesar de tu
Chaussée-d'Antin (onde hoje pas Viagem à Inglaterra e à Escócia. do, é um prodigioso pianista; todos os testemunhos concordam
sa o boulevard Haussmann), num nesse ponto. E, por uma reação ordinária do público em favor
1849 Muda-se do square d'Orléans,
apartamento que mobilia com gos da especialização, o renome ruidoso do virtuose se impôs em de
onde está instalado desde 1842, pa
to; vive à larga. Sua música é to trimento da fama do compositor. As pessoas interessaram-se a
ra a rue Chaülot, depois para a pla
cada pelos maiores virtuoses, den tal ponto pelo fenômeno pianístico e pelo homem paradoxal, que
ce Vendôme, 12. Minado pela tu
tre os quais Liszt e Clara Wieck. deixaram na penumbra a maior parte de sua música.
berculose pulmonar, morre no dia
Seu primeiro concerto parisiense
17 de outubro, rodeado de nume Criança prodígio, candidato ao seminário das Missões estran
(1832, na sala Pleyel, rue Cadet)
rosos amigos, antigos e recentes, geiras, participa do entusiasmo revolucionário das Três Glorio
tem pouca repercussão. Em com
muitos dos quais pretenderam ter sas, professa o ateísmo, retorna ao seio da Igreja sob o báculo
pensação, a alta sociedade disputa
recomido seu último suspiro. O Ré de Lamennais, faz-se tonsurar e recebe as ordens menores (não
suas aulas a preço de ouro. Cho
quiem de Mozart foi executado em é ordenado padre) ao mesmo tempo em que conserva sua aman
pin gosta dessa vida, que lhe dá a
seu funeral, em 30 de outubro, na te, torna-se cônego de Albano, conselheiro real da Hungria, agente
segurança de que necessita para
Madeleine. secreto de Napoleão I I I , sogro de Wagner (que dizem ter sido agen
compor. Teme cada vez mais as
viagens e os concertos públicos, te secreto do lado inimigo!)... Esse libertário apostólico antecipou-
preferindo tocar para um círculo obra Salvo algumas obras de mú se à musicografia romanesca.
reduzido de pessoas. Em toda a sua sica de câmara e dezessete Cantos
A dominante do seu caráter é uma nobre generosidade, em
vida, esse grande pianista só deu poloneses, tudo é destinado ao
que entra um pouco de indiferença altaneira. Mas sua dedicação
cerca de trinta concertos. No en piano, em particular: catorze Po
lonaises, cinqüenta e uma Mazur
também pode ser brilhante, ao sol a pino da sua amizade ou da
tanto, vai diversas vezes à Alema sua admiração. Em todo caso, não é calculista. Quando é Hofka¬
nha, onde vê Mendelssohn, Schu cas, vinte e seis Prelúdios, vinte e
sete Estudos, vinte Noturnos, de pellmeister da corte de Weimar, deixa de dar concertos em seu
mann e os Wieck. Aí conhece Ma
ria Wodzinska, de quem fica noi zenove Valsas, quatro Scherzi, qua
vo; mas os pais da moça fazem seus tro Baladas, três Sonatas, dois 16. Essa parte da obra de Liszt é muito pouco conhecida, cerca de trezentas
peças. Ora livres paráfrases, ora transcrições fiéis, são maravilhosas demonstra
projetos fracassar. Concertos, Barcarola, Berceuse,
ções dos recursos do piano. N ã o se deve desprezar o prazer que se pode ter ao
Fantasia. ouvi-las: em tal nível de perfeição, as críticas de "mau gosto" são de uma incon
veniência grotesca.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 64
-i 5 ΓΪΠ3
H*l
Liszt, Estudo n? 2.
FRANZ LISZT com Marie. Liszt é aclamado em Setenta e oito melodias, francesas,
toda parte como o maior virtuose
Raiding (Hungria), 22 de outubro de 1811 alemãs, italianas, húngaras, ingle
Bayreuth, 31 de julho de 1886
que já se conheceu. sas. Doze poemas sinfônicos, duas
1847-1861 Instalação em Weimar "sinfonias" (Fausto e Dante), Dois
Seu pai, intendende dos dominios com a princesa Carolyne de Sayn- episódios do Fausto de Lenau (com
do príncipe Esterházy, excelente Wittgenstein. Kapellmeister da cor a primeira Mephisto-Waltz), segun
músico amador, ensina-lhe piano. te, consagra toda a sua atividade da Mephisto-Waltz. Dois concer
a divulgar a música dos outros, tos e uma Totentanz paia piano
1820 Primeiro concerto público em com uma incansável dedicação, e orquestra, doze Estudos transcen
Poszony (Presburgo). principalmente as obras de Wag dentais, seis Estudos sobre temas
1821-1823 Temporada em Viena. É ner e Berlioz, Genoveva e Manfre de Paganini, Anos de peregrinação,
aluno de Czerny (piano) e Salieri do de Schumann, Sansão e Dalila Harmonias poéticas e religiosas,
(composição). Concerto em 1823 na de Saint-Saëns... Compõe durante dezenove Rapsódias húngaras, So
Redoutensaal, em presença de Bee esse período a maioria de suas nata, uma centena de fantasias ou
thoven. obras principais, dentre as quais a paráfrases sobre óperas conheci
Missa de Gran (Budapeste, 1856), das, inúmeros arranjos, etc.
1823-1833 Residência principal em
Paris (de 12 a 22 anos). Aluno de
Christus, a Sinfonia Fausto, a
Paër e Reicha. Importantes turnês
Sonata...
pela França, Inglaterra, Suíça. As 1861-1870 Estabelece-se em Roma,
siste à primeira audição da Sinfo primeiro na Piazza di Spagna, em
nia fantástica (1830) e aos primei casa de Carolyne, depois na Via
ros concertos parisienses de Paga Felice, 113, e no Monte Mario. Re
nini e Chopin (1832). Freqüenta cebe a tonsura e as ordens meno
Chopin, Berlioz, Hugo, George res, mas não é ordenado padre. Vai
Sand, Heine, Lamartine, Lamen a Budapeste em 1865 para reger a
nais e conhece Marie d'Agoult, que primeira audição de Santa Isabel.
abandona o marido e os filhos pa 1870-1886 Seu domicílio é a Eu
ra segui-lo. ropa. Divide-se entre Roma, Wei
1833-1840 Com Marie d'Agoult, mar, Bayreuth, Paris e Budapeste
na Suíça e na Italia (Anos de pere (onde é eleito presidente da nova
grinação). Dessa ligação nascem um Academia de Música). Turnês pe
filho, Daniel (1839-1859) e duas fi la Itália, Áustria, Holanda, Fran
lhas, Blandine (1835-1863), que se ça, Inglaterra, Luxemburgo. Res-
casará com Émile Ollivier e morre fria-se no trem que o traz a Bay
rá em Saint-Tropez, e Cosima reuth e morre oito dias depois de
(1837-1930), que será sucessivamen uma congestão pulmonar. De acor
te mulher de H . von Bülow e de do com seu desejo, seu funeral foi
Wagner. modesto, sem música. É enterra
do no cemitério de Bayreuth.
1840-1847 Grande carreira interna
cional: França, Alemanha, Bélgi
ca, Suíça, Itália, Inglaterra, Espa obras (Mais de setecentas, contan
nha, Portugal, Áustria, Hungria, do como uma só cada uma das
Sérvia, Bulgária, Romênia, Tur grandes coletâneas pianísticas.)
quia, Rússia... Relações com Wag Cinco missas, seis grandes salmos,
ner, Bettina von Arnim e Lola um Réquiem, seis oratórios, gran
Montés; esta provoca a ruptura de número de hinos, cânticos, etc. Liszt, por M . Barabas.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 68 69 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
Fazendo a resenha de uma audição do belo poema sinfônico daí, consagra todas as suas forças à realização desse programa,
Os ideais, Ravel escreverá em 1912: "Não há porventura quali só rege suas composições e impõe ao mundo a lei de seu gênio
dades suficientes nessa ebulição tumultuada, nesse vasto e mag providencial. Acreditando-se incumbido de uma missão superior,
nífico caos de matéria musical, em que várias gerações de com tem o sentimento de um primado de sua vontade. Luís I I da Ba-
positores ilustres encontrarão inspiração?" Wagner, Franck, R. viera irá submeter-se apaixonadamente a ela a partir de 1864, por
Strauss, a escola russa e a escola francesa "acaso não devem o uma súbita e genial intuição. Ε o müitante da "Jovem Alema
melhor de suas qualidades à generosidade musical verdadeiramente nha", o inimigo da sociedade, logo se declara "humflimo súdi
prodigiosa do grande precursor?" to" desse "caro rei, cheio de graça", representando com seu cos
tumeiro talento uma comédia cínica e sentindo prazer em delirar
Wagner Richard Wagner é o gênio mais paradoxal de toda a his com um companheiro à altura.
tória da arte. A enorme literatura consagrada a seu "caso" ape Contudo sua ambição pede demais à sua inteligência, e sua
nas tornou seu pensamento mais obscuro e sua personalidade mais cultura (extensa, mas superficial) lhe proporciona apenas a ilu
enigmática. Ele é bem o herói de um romantismo declinante, "um são da sabedoria. É incapaz sobretudo de efetuar uma escolha en
belo pôr-do-sol que se tomou por uma aurora", escreverá Debussy, tre as idéias recebidas; confunde-as todas e não percebe a fraque
e sua obra é a consumação de um velho sonho: fazer da arte uma za de uma síntese de idéias pretensamente superior, que nada mais
religião que transformará o mundo. Mas, fazendo-se profeta dessa é que uma mistura anárquica. Assim como é difícil distinguir sua
arte-religião, ele assume uma responsabilidade excessiva e semeia verdadeira personalidade da lenda que ele criou e que os sacerdo
a confusão nas consciências musicais. Por muito tempo, os com tes de Bayreuth mantiveram, assim também parece difícil para
positores deverão definir-se por seu wagnerismo ou seu antiwag- muitos dissociar seu gênio musical da sua concepção da arte to
nerismo, e a obra de Wagner será, para a música do futuro, a tal, logo da sua dramaturgia e da sua "religião". Se você declara
profecia de sua evolução. admirar a prodigiosa alquimia sonora, sem poder suportar a mi
Movido por um orgulho delirante e pela consciência de estar tologia wagneriana, será tachado de antiwagnerismo primário, an-
incumbido de uma missão, mas limitado por um fenomenal ego tiwagnerismo ideológico, que será mais severamente julgado pela
centrismo, Wagner criou sua própria lenda, compondo sua auto igreja de Bayreuth do que o antiwagnerismo estético da reação
18
biografia , e organizou metódicamente o culto à sua pessoa. Vo neoclássica, de Brahms a Stravinsky.
luntarioso, empreendedor, calculista, sempre enganará a todos: Claro, o amante de música pode dispensar-se de subscrever
suas mulheres, seus amigos, seu real benfeitor, a si próprio, a nós... o ideal pangermanista e o princípio de superioridade da cultura
Nada parece espontâneo nele, nem mesmo o amor. O amor que alemã e de uma raça "ariana", expresso em vários escritos de
ele decide sentir por Mathilde Wesendonck é a experiência de que 19
Wagner . Em compensação, não escapa da metafísica pretensio
necessita para compor Tristão ("Você está destinada à morte pa sa e confusa dos imensos dramas musicais. Posto em estado hip
ra me dar vida", escreve-lhe). Uma vez acabada a obra, abando nótico por uma música sublime, pode acreditar-se iniciado numa
na Mathilde. Não nasceu músico, como tantos outros composi sabedoria superior, ao passo que está intoxicado por uma mescla
tores célebres; não tem vocação particular, tenta um pouco de tu
desordenada de dogmas religiosos, lendas e teosofía nebulosa, que
do como diletante e acaba escolhendo a música, influenciádo pe
convergem na exaltação do super-homem. Mesmo se Wagner fosse
la emoção que sentiu ao ouvir as sinfonias de Beethoven. Será um
o maior gênio artístico de todos os tempos, a ideologia que sua
diletante a vida inteira, não em música (ele forja pacientemente
obra sugere, a apologética e até o fanatismo religioso que ela sus
seu ofício estudando as partituras dos mestres), mas em poesia,
cita poderiam inspirar, sem dúvida, algumas reticências. E, se em
em filosofia, em política. Tão subitamente quanto decidiu ser mú
1975 a velha Winifred Wagner, nora do compositor, gritou mes
sico, simulou romper com a sociedade nas barricadas de 1849.
mo "Heil Hitler!" durante uma representação, podemos até sen
É então que se revela a si mesmo e que inicia sua verdadeira 20
tir medo .
carreira. Acaba de terminar Lohengrin, e o programa de sua obra
futura (com exceção talvez de Tristão) está estabelecido. A partir
19. E m particular em Das Judentum in der Musik (O judaísmo na música,
18. Os três volumes de Mein Leben foram ditados a Cosima, que os publicou 1850), Deutsche Kunst und deutsche Politik (Arte alemã e política alemã), Was
em 1911, depois de remanejar o texto. Nessa obra pia, ela sacrifica formidavel- ist deutsch (1865-78), comentários a Religion und Kunst, etc.
mente a história e o rigor intelectual ao culto de que é a sacerdotisa. 20. Relatado por P h . Sollers em Musique en jeu n? 23.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 70 71 O TEATRO MUSICAL
Mas a música exerce seu fascínio inclusive sobre o profano Há desenhos igualmente atormentados em Gesualdo e até em
irredutível. O espírito e os sentidos não podem resistir à podero Mozart:
sa lentidão dessas mterrnináveis sinfonias com canto, grandes rios
sagrados ao longo dos quais se erguem vozes desconhecidas. Len
tamente a razão se apaga, como sob o império de um veneno
delicioso. "Parece, às vezes, ao ouvirmos essa música ardente
e despótica, que encontramos, pintadas no fundo das trevas, di
laceradas pelo devaneio, as vertiginosas concepções do ópio",
escreve Baudelaire. Não se pode evocar melhor a espécie de vo
luptuosa narcose em que a música de Wagner nos mergulha. Sua Mozart, Sinfonia em sol menor, final, 2? parte.
principal originalidade é essa continuidade irresistível, que im
põe o clichê do rio ou da torrente de lava. A ausência de repou Mas em Wagner esse modo de expressão é sistemático, com seu
so dá a sensação de um tempo irracional, sem polaridade, em corolário harmônico: o encadeamento das apojaturas. A espera
que o espírito flutua, como fazem os objetos na ausência da gra de uma "resolução" incessantemente adiada é, aqui, um proce
vidade. dimento capaz de criar o clima de tensão dramática correspon
Embora essa obra seja destinada sobretudo ao teatro, é pa dente aos estados de crise.
radoxalmente sobre a instrumentação e sobre a harmonia que os Nenhuma obra pode ser considerada como sinal de uma
comentadores mais se detêm. No plano da escrita, porém, Wag "emancipação da dissonância", como o momento histórico em
ner não é um inovador, mas encontrou no sistema musical exis que o sistema se desequilibra. No entanto, se a posteridade faz
tente recursos insuspeitos. Sua orquestra é a de Beethoven, Schu remontar a Tristão a grande mutação da música moderna, é por
bert, Berlioz e Liszt, enriquecida com algumas novidades ("tu que, nessa obra, o mito central da civilização ocidental mobiliza
bas" wagnerianas, trompete-baixo). Mas todos esses recursos são os recursos extremos do sistema "tonai" com uma intensidade
habilmente adaptados a uma função dramática contínua, de im excepcional. É a continuidade da tensão musical — da inefável
portância nova, através da qual Wagner exerce uma influência di paixão — que faz a importância de Tristão e não três compassos
reta sobre Debussy e Schönberg.
exemplares tomados aqui ou ali. Essa obra, a mais amada dos dra
No plano melódico-harmônico, tampouco é um pioneiro. Mas mas wagnerianos e, talvez, a mais bela, é a menos teatral; talvez
explorou com uma audácia e uma eficácia notáveis a força ex seja um imenso poema sinfônico com duas vozes principais.
pressiva do cromatismo e as ricas possibilidades abertas à harmo
nia por seus predecessores imediatos. Tristão e Parsifal esgotam
os recursos da harmonia tonal e abrem novos horizontes, premis
sas de uma dissolução da tonalidade. Musicalmente, essas duas
obras são os ápices da arte wagneriana mais pura. O TEATRO MUSICAL NO SÉCULO X I X
Vedando a estabilidade harmônica, os encadeamentos cro
máticos (sucessões de semitons ou de intervalos alterados) intro- Wagner II As grandes liturgias wagnerianas são fenômenos tão
duzem uma inquietude propícia à expressão da paixão. Os gregos singulares na história do teatro musical, que sempre seremos ten
haviam-no pressentido e, desde a Renascença, numerosos com tados a superestimar ou subestimar sua importância, segundo a
positores exploraram seus recursos. Não é extraordinário encon religião que abraçamos.
trar em Wagner passagens como esta: No nível das suas mais elevadas ambições, Wagner fracas
sou, na medida em que de sua arte-religião não restou mais que
um ritual da lembrança. Ouçam os peregrinos de Bayreuth: eles
comparam interpretações, como fazem todos os discófilos,
τ~π> extasiam-se com razão ao se lembrarem de certas grandes pági
HP* *
nas, monumentos de nossa cultura, ou contam algumas fofocas
do festival, como acontece em qualquer lugar. Pouquíssimos fa
lam dos grandes mitos wagnerianos como iniciados respeitosos; "Aeolodion" de Luís I I (híbrido
Wagner, Prelúdio de Tristão muitos seriam até incapazes de resumir a ação dos dramas. de piano, órgão e harmonio).
II e o Venusberg.
RICHARD WAGNER ta seu senso artístico e lhe incute o 1833 Chefe de coro do teatro de engana-o... Wagner é um marido
Leipzig, 22 de maio de 1813 gosto pelo teatro. Würzburg. deplorável.
Veneza, 13 de fevereiro de 1883
1820-1830 Bons estudos gerais em 1834-1836 Regente da orquestra do 1837-1839 Kapellmeister em Ri
Dresden e em Leipzig. Também es teatro de Magdeburgo, Wagner ne ga. Ao cabo de dois anos, parte
Nono filho de Karl Friedrich Wag tuda piano e composição, mas sen le apresenta sem sucesso sua ópera bruscamente da cidade, sob a
ner (1770-1813), "Aktuarius" do te-se mais fascinado pelo teatro. Das Liebesverbot. O teatro vai à ameaça de seus credores. Embarca
Conselho da cidade, e de Johanna 1830-1833 Completa sua formação falência. Apaixona-se pela primei para a Inglaterra, onde apenas pi
Rosina Pätz (1774-1848). Em 1814, na Universidade de Leipzig (filo ra cantora, Minna Planer (1809¬ sará em seu solo: seu destino é
esta se casa com o ator Ludwig Ge sofia e estética) e com o cantor de 1866), segue-a a Königsberg, torna- Paris.
yer (1780-1821), de quem Richard Santo Tomás (composição). Algu se primeiro maestro do teatro, casa- 1839-1842 Está instalado em Paris,
sempre pensará ser filho. Geyer, mas composições para orquestra e se com Minna. O teatro vai à fa onde suas dívidas aumentam e o le
muito apegado ao menino, desper para piano. lência! Minna abandona-o, volta, vam para a prisão de Clichy. Fre-
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 74
qüenta Heine e Liszt, conhece Ber seu amigo e intérprete Hans von ce cinco meses depois, de uma cri
lioz. Bülow. se cardíaca. Exéquias grandiosas
1842-1849 Instalação em Dresden. 1864-1865 Respondendo ao magní lhe são organizadas em Bayreuth
Triunfo de Rienzi (1842), fracasso fico e apaixonado convite de Luís no dia 18 de fevereiro, antes da
do Navio fantasma (1843). Entre I I , Wagner instala-se em Munique inumação no jardim de Wahnfried.
tanto, é nomeado Hofkapellmeis¬ e no Hochkopf, pavilhão de caça Renoir, com quem se encontrou em
ter. Estréia de Tannhäuser em do rei na montanha. Chega a na Palermo, fez seu retrato em 1882
1845; notável execução da Nona turalizar-se bávaro! Estréia de Tris (museu do Louvre).
sinfonia de Beethoven em 1846. tão, sob a direção de Bülow, cuja
1849 Apaixonado pelos aconteci mulher acaba de pôr no mundo obra Die Feen (Munique, 1888),
mentos revolucionários, que obser uma Isolda. Mas, sob a pressão dos Das Liebesverbot (Magdeburgo,
va "sem sentir, porém, o desejo de bávaros, Wagner tem de partir. 1836), Rienzi (Dresden, 1842), Der
misturar-se aos combatentes", im 1866-1872 Depois de ter errado du fliegende Holländer (Dresden,
prime panfletos destinados aos sol rante três meses (Genebra, Lyon, 1843), Tannhäuser (Dresden, 1845),
dados saxões: "Vocês estão de nos Avignon, Toulon, Marselha, Gene Lohengrin (Weimar, 1850), Der
so lado contra as tropas estrangei bra), instala-se em Triebschen, à Ring des Nibelungen (Bayreuth,
ras?" Essa iniciativa e suas rela beira do lago de Lucerna. Cosima 1876), Tristan und Isolde (Muni
ções com "espíritos perigosos" (seu que, 1865), Die Meistersinger von
vem ter com ele aí, por vezes tam
amigo Roeckel, companheiro de Nürnberg (Munique, 1868), Parsi
bém Bülow e o rei Luís I I . Nietzs
Bakunin, obrigado a fugir de Pra fal (Bayreuth, 1882). Várias obras
che (então professor na Basüéia) faz
ga, confiou-lhe a direção de seu corais, cerca de vinte Heder, algu
numerosas visitas a Triebschen. Es
jornal) provocam sua condenação. mas peças instrumentais e uma obra
tréia dos Mestres cantores em Mu
Ameaçado de prisão, foge com literária considerável (libretos dos
nique, 1868, sob a regência de Bü
Minna, seu cachorro e seu pa dramas musicais, autobiografia, en
low. Em 1870, Cosima se divorcia
pagaio. saios sobre música, teatro, política,
e casa-se com Wagner, de quem já
1849-1858 Depois de ter ficado na religião, etc).
tem três filhos: Isolda (1865-1921),
casa de Liszt, que estreará Lohen Eva (1867-1943) e Siegfried (1869¬
grin em Weimar no ano seguinte, 1930).
instala-se em Zurique. Estadas em
Paris, Londres, Veneza, La Spezia, 1872 Instalação em Bayreuth e co
Milão, Lucerna. Idilio com Mathil locação da pedra fundamental da
de Wesendonck (de 1853 a 1859), Festspielhaus. Luís I I contribui com
cujo marido é, com Liszt, o me 75.000 marcos. A magm'fica resi
lhor patrocinador de Wagner. dência dos Wagner, Wahnfried, só
1858- 1859 Temporada em Veneza, será concluída em 1874.
no palácio Giustiniani. 1876 Inauguração do teatro, em
1859- 1862 Instalação em Paris. presença de Luís I I e do impera
Após o escândalo da representação dor Guilherme I . O ciclo integral
parisiense de Tannhäuser e a rup do Ring des Nibelungen é apresen
tura com Minna, instala-se tempo tado pela primeira vez. Viagem a
rariamente em Biebrich (à margem Roma, onde conhece Gobineau.
do Reno), depois em Viena e vjaja 1882-1883 Estréia de Parsifal em O crepúsculo dos deuses:
à Rússia. Crivado de dívidas, pen Bayreuth, sob a direção de Her transporte do corpo
mann Levi. Partida para Veneza, de Siegfried ao
sa em suicidar-se.
palácio dos Gibichungen
1863 Início da ligação com Cosi- onde Wagner se instala com sua fa (evocação da primeira
ma Liszt (1837-1930), mulher de mília no palácio Vendramini. Fale encenação, 1876).
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 76 77 O TEATRO MUSICAL
Der Ring des Nibelungen, a imensa tetralogía, liturgia wag¬ Thomas Mann, não pode ser idéia de um músico nato. A comple
neriana típica, inspirou numerosas caricaturas, defesa mais ou mentaridade das artes é o próprio princípio de qualquer teatro mu
menos feliz da inteligência contra o que a supera ou a ameaça. sical, mas sua "fusão" não tem sentido, implicaria um sincretis
Um humor bastante fácil pode se dar livre curso, se considerar mo a que a música se recusa. Inebriado por concepções nebulo
mos com um olhar frio os protagonistas dessa terrível história: sas, incapaz de escolher, Wagner pratica o amálgama, abrigándo
a ambição vulgar do patriarca, um deus caolho, impotente e men se atrás do ditirambo dionisíaco, de que se crê o restaurador . 23
tiroso... a inconsciência do herói, um bárbaro louro e estúpido Seu amigo Nietzsche, na exaltação de uma poderosa comunhão,
que não tem medo de nada, nem mesmo de atravessar as chamas crê que o drama musical wagneriano substitui a antiga tragédia . 24
para conquistar sua tia, uma enorme atleta histérica... a mons Mas, como mostra Domenach (op. cit.), a identificação com os
truosa perversidade dessa divina família, em que o adultério, o grandes destinos trágicos está nos antípodas das ambições bur
incesto, o roubo, a corrupção, o proxenetismo, os falsos jura
guesas do século X I X . Além disso, o teatro moderno nada mais
mentos, a traição, o assassinato são moeda corrente e em que
é que o reflexo da sociedade, enquanto o teatro antigo era seu
todos são tão pouco senhores do destino, que perecem e o mun
modelo, estético e moral.
do se encontra, ao cabo de quinze horas de representação, no
estado em que estava no início, antes da intervenção desses deu O próprio Wagner não acreditou por muito tempo que seu
ses malfeitores. drama musical podia ser uma arte total. Numa carta a Liszt de
16 de agosto de 1853, ergue-se contra essa concepção da sua arte,
A lenda dos Nibelungos pertence às tradições européias da que ele contribuiu para forjar. Aliás, os peregrinos de Bayreuth
cavalaria; está envolta numa atmosfera de humanismo, tolerân não parecem preocupar-se muito com a fusão das artes; para eles,
cia e poesia cortês. Nós a conhecemos por fontes medievais: es a Festspielhaus é, antes de mais nada, um templo da música. Mui
candinavas (os Eddas e a Saga dos Wolsüngs) e germânica (o
tos não compreendem alemão e têm dificuldade em seguir a re
Nibelungenlied, composto em Viena por um minnesänger da corte
presentação de uma ação confusa e pesada. Quando os netos de
dos Badenberg, no início do século XIII). Essa bela epopéia dos
Wagner reduzem o elemento cênico à sua expressão mais simples,
heróis francos e burgúndios do século V, que nos leva de uma
todo o mundo fica contente com essa "re-criação"; quando Pa
ponta a outra do Reno e do Danúbio, e até da Islândia, onde
trice Chéreau, em 1976, se esforça (num espírito de aggiornamento)
reina a bela e invencível Brünnhilde, essa epopéia se torna, na
em dar importância ao visual, o público protesta.
pena de Wagner, a parábola titánica da pior ideologia naciona
21
lista e racista . Mas, no Anel dos Nibelungos, pode-se ver o que Wagner pensou ter estabelecido o primado do drama. Con
bem se entender: Siegfried poderia ser um herói revolucionário firmou com brilho o primado da música. Sua arte é essencialmente
"mais livre que os deuses" (Wagner), emancipando a mulher e musical: a música conduz o drama, define os caracteres, repre
triunfando sobre as forças do dinheiro. Bernard Shaw vê no Anel senta as situações psicológicas. Trata-se, de fato, de pura drama
22
um drama político moderno . Para os figurões do Terceiro turgia musical. É a beleza da sinfonia que nos faz aceitar que Tris
Reich, Siegfried não é uma criatura hegeliana, mas o modelo tão e Isolda se pareçam com Siegfried e Brürmhilde, ou que Par
do ariano louro, que os pequenos burgueses nacionalistas e bis- sifal erija em dogma a confusão dos valores. O gênio está na cria
marckianos a que Bayreuth dava asas já haviam reconhecido. ção de uma hipnose, pela continuidade melódica e sinfônica, e
O patrocínio nazista nada acrescentou nem subtraiu à glória de no estabelecimento de associações psicológicas profundas pela re-
Wagner, o que subHnha o fracasso da sua obra enquanto arte miniscência dos temas condutores (leitmotive).
ideológica. A utilização de motivos característicos carregados de símbo
Quanto ao princípio estético da fusão das artes, é uma uto los não é uma invenção de Wagner. Encontramos exemplos seus
pia confusa, que teria feito Mozart se sobressaltar. Como notou em Monteverdi, Bach, Mozart, Berlioz, Weber. Nunca, porém,
o princípio foi aplicado de maneira tão sistemática quanto no dra-
21. Sobre a lenda dos Nibelungos, ver: La chanson des Nibelungen, trad. Col-
leville e Tonnelat; Borges, Essai sur les anciennes littératures germaniques, Paris, 23. R . Wagner, L'art et la révolution, trad. Prod'homme, Paris, 1928.
1966; Béatrice Reynaud, "L'anneau du Nibelung", Musique en jeun? 22, le Seuil, 24. Mais tarde, ele sustentará o contrário. Os juízos estéticos de Nietzsche
1976 (excelente estudo comparado da tradição islandesa, do Nibelungenlied e da em geral são fúteis. É como filósofo que adota posições inversas ante o "caso
adaptação wagneriana). Wagner". Quanto a seu entusiasmo por Carmen: "Bizet não deve ser levado em
22. Β. Shaw, Le parfait Wagnérien, trad, francesa, Paris, 1933; reed. É d . conta, para mim. Mas, como antítese irônica de Wagner, ele produz um grande
d'Aujourd'hui, 1975. efeito" (Carta a Fuchs, 1888)!
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 78 79 O TEATRO MUSICAL
ma wagneriano, sobretudo no Anel dos Nibelungos. Os numero recitativos e árias, haviam fracassado; o gênio de Mozart não en
síssimos motivos melódicos, harmônicos ou rítmicos (sessenta e veredou por esse caminho. Fidelio inaugura a ópera romântica
dois já foram enumerados no Crepúsculo) só têm sentido no seu sob a dupla influência de A flauta mágica e das Duas jornadas
contexto, em que se apresentam, aliás, sob formas diferentes. É de Cherubini: intensidade na expressão das paixões, riqueza da
pelo caminho do inconsciente que devem tocar o ouvinte, provo orquestra e dos coros, escolha de um tema romântico. A como
cando no momento oportuno as associações de idéias desejadas. vente e forte obra de Beethoven conserva, porém, vínculos com
A lembrança de um tema em sua forma original importa menos a tradição e ainda não acentua características especificamente ale
do que o caráter particular que a ação lhe confere. Não é o passa mãs. Undine, a única ópera de Hoffmann ainda representada em
do, mas o reflexo do passado no presente que os leitmotive expri 25
nossos dias , é uma obra original e misteriosa, em que a evoca
mem, o que por vezes lhes dá um sentido profético. Os antiwag- ção da natureza é quase impressionista e em que a continuidade
nerianos não deixaram de sublinhar o aspecto demagógico do pro musical e dramática anuncia Wagner.
cedimento; mas sua eficácia é prodigiosa. Outros utilizaram-no É provável a influência de Undine sobre a composição das
depois dele com maior ou menor felicidade. Richard Strauss últimas óperas de Weber. Der Freischütz e Euryanthe são os mo
empregou-o de maneira particularmente admirável no Rosenka delos da ópera romântica alemã, em contraste radical com a ópe
valier. ra de Rossini, que triunfa então em todos os palcos da Europa:
À margem da reforma wagneriana e em contradição com temas lendários, sentimento da natureza, recurso ao maravilho
seus princípios, os Meistersinger von Nürnberg trazem-nos de volta so, liturgia do amor redentor. Há no Freischütz um ritmo, uma
a um mundo freqüentável. Os sentimentos são de escala huma cor, que lhe conservam sua popularidade. Em contrapartida, a
na, a emoção é reconhecível, o humor e a generosidade protegem extrema pobreza do libreto de Euryanthe condena essa obra in
de qualquer vulgaridade. Podemos identificar-nos com os heróis terminável ao esquecimento, muito embora seja musicalmente a
e sonhar com a deliciosa Eva, sem nos couraçarmos com virtu obra-prima de Weber e a prefiguração de Lohengrin.
des guerreiras; não precisamos de talismã para encontrar na lo- Depois de Wagner, o filão da ópera alemã parece ter-se es
canda do velho Sachs os cheiros familiares, a bonomia sentimen gotado. Grandes músicos, como Brahms, Bruckner, Mahler não
tal, a sabedoria sorridente dos justos. Nenhuma névoa nos sufo abordaram o gênero; Hugo Wolf experimentou-o sem sucesso {Der
ca, nenhum sol negro tolda nosso céu, enquanto aplaudimos o Corregidor, 1895). A grande idéia wagneriana do drama musical
triunfo do espírito sobre a letra e do amor sobre o único malefí não suscita vocações, de sorte que o sagrado festival de Bayreuth
cio que lhe é oposto: o pedantismo burlesco de Beckmesser. A está destinado ao monoteísmo. Os mestres cantores são inimitá
partitura é de uma riqueza e de uma diversidade magníficas: no veis, como o era A flauta mágica. É preciso esperar Richard
bre, irônica, fresca, erudita, terna com pudor, poderosa com co- Strauss e seu Rosenkavalier (1911), qualificado de "Komödie für
medimento. O tumulto geral em forma de fuga no segundo ato Musik", para redescobrir a mais elevada concepção do Singspiel
e o quinteto do terceiro ato são ápices do teatro musical... Não e, na personagem da Marechala, a sublime e humana grandeza
é a obra-prima dramática de Wagner, aquela em que sua mestria de Sarastro e de Hans Sachs.
é total?
Ampliação sublimada do Singspiel, Os mestres cantores A ópera italiana Na Itália, a ópera dá mostras, ao longo de to
pertencem a um tipo de ópera romântica alemã, cujo caminho do o século XIX, de runa constante vitalidade. Cinco grandes com
foi aberto pela Flauta mágica. Nem grandiloqüentes nem bu- positores garantem a sua perenidade: Rossini, Donizetti, Bellini,
fões, nem heróicos nem prosaicos, Os mestres cantores vinculam- Verdi, Puccini. Seu pequeno número é surpreendente se compa
se ao drama pela gravidade dos temas, à comédia por seu de rado com a multidão de talentos que apareceram nos palcos ita
senlace feliz, à sensibilidade romântica por sua vinculação às lianos do século X V I I I ; mas sua fecundidade e seu sucesso per
lendas populares e por sua concepção moralista do triunfo do mitiram que a ópera italiana se renovasse continuamente e, não
amor. raro, assegurasse seu primado na cena lírica.
As qualidades desse teatro dedicado ao bel canto, sua gene ilustres Norma, mezzos ou contraltos como Maria Malibran e Ma
rosidade melódica, a franqueza da sua expressão dramática, o brio rietta Alboni impunham-se não apenas por uma técnica vocal ir
dos conjuntos, os atrativos cênicos, tudo o que, desde Montever repreensível em todos os registros, mas também por sua presença
di, fez o sucesso da ópera italiana se amplia, adaptando-se ao gosto cênica.
romântico. Os maus hábitos também subsistem, piamente manti Entre os homens, os castrados desapareceram do teatro no
dos pelos diretores de teatro, cuja tolice corrompe o gosto do pú fim do século X V I I I . A maioria dos primeiros papéis passa a ca
26
blico com a ilusão de servir-lhe , e pelos grandes cantores, cuja ber, então, aos tenores; contudo, aos barítonos e aos baixos, ou-
soberania ainda não foi abolida, muito embora se tenha, desde trora limitados apenas às personagens de pais nobres, capitães da
então, a ambição de submetê-los às exigências do texto. guarda ou bufões, são confiados com freqüência cada vez maior
As extravagâncias que Marcello descrevia em seu Teatro alia os papéis principais, não só na comédia (Figaro, Leporello, Bar
moda felizmente saíram de moda; porém, muitas grandes estre tolo, Falstaff), mas também no drama (Don Giovanni, Guilher
las continuam achando nada ter a ver com a ação cênica. De uma me Tell, Rigoletto, lago). Alguns, como Luigi Lablache, um dos
representação do Demetrio de Hasse, em Mântua, Mozart escre maiores Leporello, alcançam a notoriedade de um tenor ou de uma
via a sua irmã: " A prima-dona canta bem, mas sem fazer movi soprano.
mento algum... Ela não pode abrir a boca e geme todos os sons. O século X I X exigirá de todos os tipos de voz cada vez mais
De resto, isso não é nenhuma novidade para nós." Em compen vigor, dando à "colocação da voz" uma importância primordial
sação, algumas cantoras logravam desempenhos extraordinários. na educação dos cantores. O desenvolvimento das grandes vozes
Mozart notou uma passagem cantada diante dele por Lucrezia dramáticas de soprano e de tenor, mais timbradas, poderosas e
Aguiari, dita "la Bastardella", que alcançava o d ó , e Leopold
6
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extensas para o grave, em detrimento da leveza no agudo, susci
Mozart afirmava que essa mesma artista possuía o sol — ou se 2
tará papéis de ópera que não teriam encontrado intérpretes satis- 0 Théâtre italien de Paris
ja, uma extensão de três oitavas e meia! fatórios no século X V I I I . . . em 1830, por Eugène Τ ami
cr
A mesma façanha seria renovada por Pauline Viardot, irmã
da Malibran, cuja voz cobria os registros de tenor, contralto e
soprano.
8"Λ
escala vocal.
A L G U M A S ESTRELAS (criador do papel em Nova York;
DO CANTO NOS SÉCULOS seu filho, Manuel, fazia Leporello
e sua filha, Maria, fazia Zerlina).
XVIII Ε X I X
1. A extensão das vozes só é conheci JENNY LIND, dita "o rouxinol sue
da pelos testemunhos dos contemporâ
neos. A extensão extrema das vozes hu
co", 1820-1887, si2 a S0I5. Amina
manas vai de dói (sob a pauta na clave (La sonnambula), Norma, Lucia,
de fá) a rée (oitava superior do ré aci Beatrice di Tende... Muito bonita.
ma da pauta na clave de sol). Voz magnífica. Boa atriz.
GruLiA GRISI, 1811-1869, textura rita (na Ópera de Paris e na inau
de soprano. Elvira (Ipuritani; cria guração do Metropolitan, em 1883).
dora do papel), Norma, Adalgisa Bonita e encantadora.
(Norma; criadora do papel), Lucre-
zda Borgia, Norma (Don Pasquale; ADELINA ΡΑΤΓΙ, 1843-1919, dÓ3 a
criadora do papel). fãs- Embora soprano ligeiro, canta
Zerlina, Cherubino, Aida, Marghe
MARIETTA ALBONI, 1826-1894, fá2a rita, Leonora (77 trovatoré). É a pri
dós (como Ebbe Stignani hoje); com meira grande cantora de quem pos
textura de contralto. Grande voz. Ar- suímos gravações comerciais (reali
sace (Semiramidé), Orsini (Lucrezia zadas quando ela tinha sessenta
Borgia), Angelina (Cenerentola). Seanos): "Purdicesti"deLottie "Voi
gundo se diz, teria inclusive cantado chesapete" (ária de Cherubino). Es
sem se preparar o papel de Don Car sas duas árias não permitem julgar
lo (barítono) em Ernani! a famosa leveza da voz, mas pode
mos apreciar seu timbre, a qualida
CHRISTINE NILSSON, 1843-1921, de da emissão... e a mediocridade do
sola a rés. Violetta, Elvira, Marghe estilo.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 88 89 O TEATRO MUSICAL
Rossini O herdeiro de Piccini, Paisiello, Cimarosa e Fioravanti va a lotar as salas havia mais de trinta anos, os romanos levaram
é Rossini. Aos vinte e cinco anos compôs suas duas obras-primas, ao fracasso a peça do jovem Rossini. Mas as apresentações se
77 barbiere di Siviglia (1816), escrita em dezesseis dias, e Ceneren- guintes triunfaram e a obra tornou-se rapidamente, em toda a Eu
tola (1817). Aos trinta e oito anos, com a missão cumprida, re ropa, a ópera-cômica mais popular de todos os tempos.
solve tirar uma aposentadoria confortável e, durante a segunda
metade da sua vida (morrerá aos setenta e seis anos), só compõe Nascido num 29 de fevereiro e falecido numa sexta-feira 13,
algumas obras religiosas e pequenas peças irônicas para piano. Rossim" estava sem dúvida fadado a um destino feliz; de qualquer I. It. T E A T R O AIXA. SCALA. 1
Quando O barbeiro de Sevilha estreou em Roma, em 1816, Ros modo, soube aproveitar sua "oportunidade". Depois do semifra- <Mf> * n ü fühbUM S I Map*. 1831 M Am. L C I T O U REQT.i.
' Dl 3UD. JUUBO-O nffOpm r
sini não era apenas o melhor compositor de óperas italianas, era casso de sua grande ópera romântica Guillaume Tell, em 1829,
o único! A maioria de seus predecessores morrera; alguns já não tomou uma das mais sábias decisões de sua carreira ao abando
escreviam óperas fazia vários anos (Paisiello morreu alguns me nar os palcos, com rendimentos substanciais garantidos, pois o
ses depois, Zingarelli estava absorvido pelo ensino, e Fioravanti I L M O R O D l VENEZIA
gosto dos franceses pelas enormes óperas de Meyerbeer e pelas M mica ttxaia C I I K O T pg. r . B i r n n n f!o«at.
era maestro em Lisboa), outros haviam-se dedicado à ópera fran frivolidades de Auber e de Halévy talvez o levasse a trair seu ge DESDESICWA
PEBSOX.4CCI
repetia-se indefinidamente o mesmo repertório. Em nome do cul cessou de ser popular e dela era extraída toda sorte de pots-pourris,
ELMtllO.
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to que dedicavam a Paisiello, cujo Barbiere di Siviglia continua- |] prfcw atta. rwada lad»|m
HAUT, Cn;i.IH.iI().
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la ( « «Π *JjT. Priera, atra luga un
arranjos e pastiches, não raro sem sua autorização, de modo que & A S S O λ QUATTRO (ra Ir affim driftft.ArraJnaia. -Jpt—rv ^arrmml,
, nmj-ati! r ZaatbfDi.
•
>m Srde tUou . til
a proeza de morrer ilustre, sem ter produzido nenhuma obra im a dVilla r deMra nrCTalria
GIOACCHINO ROSSINI soprano espanhola Isabella Colbran d'Antin, 2, e em sua bela casa de portante nos seus últimos quarenta anos. iSlä» PalcU di qnlat* fila.
ta SftOotcio úrnaórirrá mût « atta r
Pesaro, 29 de fevereiro de 1792 (1785-1845), amante do empresário campo em Passy, convida a alta ro No entanto, Rossini não é um romântico. Deve a simpatia
P a r i s , 13 de novembro de 1868
Barbaia; ela se instala com Rossi da parisiense para jantares suntuo do público e o apoio do mundo literário unicamente ao inalterá
ni, com quem se casará em 1822, em sos (com freqüência, ele mesmo se vel bom humor que anima sua música, à qualidade da inspiração
Seu pai e sua mãe, respectivamen Bolonha. Viagens a Milão, Veneza encarrega da cozinha). Recebe os
melódica, ao esplendor dos conjuntos, ao atrativo cênico da sua
te trompista e cantora de teatro, e Roma, onde II barbiere di Siviglia mais ilustres representantes do
obra. Stendhal e Balzac (pouco competentes, mas representativos
estão perpetuamente em turnê. O é encenado em 1816. mundo literario e artístico, entre os
da elite intelectual) consideram-no o maior músico de sua época,
menino é entregue a si mesmo e 1822 Viagem a Viena, onde conhe quais Liszt, Wagner, Clara Schu
a um charcuteiro de Bolonha, que ce Beethoven. mann, Adelina Patti. e Giuseppe Mazzini, herói do Risorgimento, esgota as hipérboles
o faz ter suas primeiras lições de 1823- 1824 Viagem a Paris e a Lon 1868 Em seu funeral solene, na em sua glorificação do grande músico, pouco suspeito de aspira
música. dres (onde se apresenta principal igreja da Trinité, dezoito grandes ções revolucionárias... Não estão errados. No fim do grande pe
mente como cantor). Por toda par estrelas do canto (dentre as quais ríodo criador de Rossini, não apenas ele não tem rival italiano,
1804-1809 Pequenos empregos de te, encontra partidários e adversá Alboni, Patti, Nilsson, Faure, Du- como Schubert morreu sem se fazer conhecer fora de Viena, We
cantor ou de instrumentista no tea rios igualmente convictos. Os se prez) cantam com os alunos do ber é demasiado alemão para ser exportado (o Freischütz só será
tro de Bolonha. Aluno de Tesei gundos ficam desarmados com a Conservatório a prece de Moisés. representado na Ópera de Paris em 1841 e no Scala de Milão em
(canto) e do padre Mattei (compo polidez e o inalterável bom humor 1872), Berlioz é um jovem louco, Chopin, Schumann, Liszt e Wag
sição) no Liceo Musicale de Bolo do compositor. obra Trinta e quatro óperas, mú ner ainda são iniciantes.
nha. 1824- 1836 Em Paris (28, rue Tait- sica religiosa (incluindo um Stabat Beethoven, porém, acaba de morrer e sua glória é universal.
1810 Sua primeira ópera, La cam bout). É diretor do Théâtre-Italien, Mater), inúmeras peças vocais iso
Para muitos, a incorrupta italianidade de Rossini faz de sua obra
biale di matrimonio, representada compositor do rei e inspetor-geral ladas, hinos e cantatas de circuns
a antítese da de Beethoven; e o próprio público vienense tende
em Veneza (San Moisè). do canto, até a revolução de 1830. tância, algumas peças sinfônicas,
1812-1813 Oito óperas representa 1836-1855 Vive em Bolonha, de- cinco quartetos de cordas, nume
a preferir a alegria de Rossim à grandeza do ilustre compatriota
das em Veneza e Milão, entre as pois em Florença (1847). Viúvo em rosas peças humorísticas para que cumularam de honrarías. Fidelio só será representado em Pa
quais La scala di seta, L 'italiana in 1845, torna a casar-se dois anos de- piano. ris, no Théâtre-Lyrique, em 1860, e no Scala de Milão em 1927!
Algert e Tancredi. pois com Olympe Pélissier, atriz e No entanto, uma vez dissipada a polêmica provocada por parti
1815-1822 Diretor musical do tea modelo de Vernet. dários e adversários da ópera italiana, O barbeiro de Sevilha per
tro San Carlo, de Nápoles. Mal che 1855-1868 Em Paris. Em seu apar manece uma das obras-primas da história do teatro musical, e pá
ga, apaixona-se pela prima-dona, a tamento, na rue de la Chaussée ginas como o final do primeiro ato ou o quinteto do segundo são
momentos do mais raro prazer artístico.
91 O TEATRO MUSICAL
Γ-1-, ·~3-,
COMTE
Bua _ «a se-ra,
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COMTE
qua, btlo_nase-ra,rT,íosí -^gnar^buonasc- ra,miosi_ giMJ.ne btjana se-ra,ir,iíi,i.-gno-re 5e(mo pacee sa_nt_ta.
f J t
GIUSEPPE VERDI 1860-1865 Participação ativa na vi 1888, Boldini pinta seu magnífico re
da política. É um dos embaixadores trato de Verdi.
L e R o n c ó l e (Parma), 10 de outubro de 1813
M i l ã o , 27 de janeiro de 1901
que levam a Vítor Emanuel os resul 1897 Morte de Giuseppina. Verdi,
tados dos plebiscitos. Com o apoio que acaba de terminar seus Pezzisa-
Filho de Carlo Verdi, estalajadei- de Cavour, é deputado por Fidenza cri, abandona quase toda atividade.
ro na aldeia de Roncóle, na comu e participa em Turim da proclama- 1901 Morre durante uma estada em
na de Busseto, e de Luisa Uttini, ção da Unidade. Viagens aLondres, Milão, em conseqüência de um ata
fiandeira. a Paris, a São Petersburgo (La for que. Legou seus direitos autorais a
1823-1829 Graças à proteção de za del destino). uma das obras filantrópicas que fun
Antonio Barezzi, comerciante e 1865-1867 Em Paris, onde são re dou: a "Casa di riposo per musicis-
bom músico amador, Verdi estuda presentadas a nova versão de Mac t i " , que acaba de ser construída en
no ginnasio de Busseto e na Escola beth (1865) eDon Carlos (12,61). Vátão em Milão e onde é inumado.
de Música da cidade. rias estadas em Gênova.
1829-1833 Participa ativamente da 1871 Representação àeAidano no obra Vinte e seis óperas, dentre as
vida musical local, compõe (nume vo teatro do Cairo, para celebrar quais Rigoletto (Veneza, Fenice,
rosas partituras, todas destruídas (com certo atraso) a abertura do ca 1851), II trovatore (Roma, Apollo,
mais tarde), instala-se em casa de nal de Suez. 1853), Latraviata (Fenice, 1853), Un
seu protetor e se apaixona por sua 1873 A morte do grande escritor bailo in maschera (Roma, Apollo,
filha, Margherita Barezzi (1814¬ Alessandra Manzoni afeta profun 1859), La f orza del destino (São Pe
1840), com quem se casará em 1836. damente Verdi, que compõe o Ré tersburgo, 1862), Aida (Cairo, 1871,
1833-1835 Graças à generosidade quiem em sua memória. e Scala de Milão, 1872), Otello (Sca
de Barezzi, estuda em Milão com 1878-1893 Colaboração com Boito: la, mi), Falstaff (Scala, 1893). Ré
Lavigna. Ao voltar, é nomeado lenta gestação de Otello e de Falstaff, quiem, quatro Pezzisacri. Um quar
Maestro di Musica da comuna de que estrearam no Scala de Milão, res teto de cordas (1873), vinte melo
Busseto. pectivamente, em 1887 e 1893. Em dias, duas cantatas de circunstância.
1839-1843 Primeiras óperas repre
sentadas no Scala. Uma delas, Na-
bucco (1842), estende seu renome
para fora da Itália, e o espírito pa
triótico que inspira essa obra faz do influências que poderia sofrer. Preocupa-se acima de tudo com Verdi, por Boldirü.
músico o cantor do Risorgimento. a sinceridade da inspiração, que, para ele, é a condição e a justi
Em 1840, ele perde a esposa e os ficação da arte.
dois filhos. O espírito patriótico com que são tratadas algumas das suas
1847-1849 Sua base é Paris, de on primeiras óperas, em particular Nabucco (1842), faz dele um porta-
de viaja à Itália e à Inglaterra. bandeira do Risorgimento. Ele subscreve o ideal revolucionário
1849 Compra perto de Busseto a da unidade italiana, a que permanece fiel. A ação de Garibaldi
propriedade de Santa Agata, que se o entusiasma, e os acontecimentos de 1859-1861 projetam-no na
tornará a Vila Verdi. Aí se estabe vida política. Seu nome torna-se um símbolo e, quando os muros
lece em 1851 com a cantora Giusep- são cobertos com "Viva VERDI", os patriotas traduzem por " V i
pina Strepponi (1815-1897), com va Vittorio Emmanuele Re D'Italia". Quando o ducado de Par
quem se casará em 1859. Ela será ma vota sua união com o Piemonte, Verdi é um de seus embaixa
uma companheira exemplar. dores em Turim, e Cavour insistirá para que o músico faça parte
1853-1855 Após o fracasso ã\ Tra- do primeiro parlamento italiano. Artista "engajado", Verdi não
viata em Veneza, instala-se de novo quis fazer de sua obra um instrumento de propaganda, mas tam
em Paris, onde apresenta uma ópe pouco procurou fazer com que não o fosse. Sua regra constante
ra francesa, Les vêpres siciliennes. é a sinceridade na independência.
Verdi, em cura em Montecatini.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 96
responsável pela voga dos grandes melodramas históricos em que à Carthage) é montada em 1863 no Théâtre-Lyrique (a Ópera de
Meyerbeer logo triunfará. Paris acaba então de passar pela má experiência de Tannhäuser)
No Complete Opera Book de Kobbé, livro de cabeceira dos e tem vinte e uma apresentações, enquanto a primeira parte (La
amantes do teatro lírico na Inglaterra e nos Estados Unidos desde prise de Troié) só será encenada após a morte do compositor, em
1920, podemos 1er que "Meyerbeer é considerado o fundador de 1890, em Karlsruhe. Enfim, a deliciosa ópera-cômica Béatrice et
um gênero francês geralmente identificado como Grande Opéra" ! Bénédict e apresentada em Baden-Baden em 1862. Todas essas
Infelizmente, o tipo de ópera comerciai inaugurado por Robert le obras são de altíssima qualidade musical e dramática, em parti
Diable (1831) oferece um apanhado eclético das melhores receitas cular Les troyens à Carthage; o quadro sinfônico da floresta afri
da época para fazer o público aplaudir com toda a certeza. Meyer cana no início do segundo ato, o célebre septeto no final do mes
beer não carece de senso dramático, sua escrita vocal é muito agra mo ato e o trágico fim de Dido estão entre as mais belas cenas
dável; mas os efeitos são demasiado forçados, o cálculo é dema da ópera romântica.
siado visível, a orquestra é pesada. Muito tempo depois da morte Berlioz criou uma nova forma de canto francês, tanto com
do compositor, praticamente até o fim do século, Les huguenots suas óperas como com sua bela coletânea de melodias, Les nuits
(1836), Le prophète (1849) e sua melhor obra, L'africaine (póst., 31
d'été (1834), que anunciam Duparc e Fauré . No teatro, ele se
1865), garantem infalivelmente a prosperidade dos teatros.
afasta tanto da ária operística tradicional quando da declamação
Rossini, que chegou a Paris pouco antes de Meyerbeer e pas "expressiva", e os grandes modelos alemães e italianos não o fa
sou na cidade a maior parte da vida, não conseguiu impor-se co
zem perder sua originalidade. Nele, a idéia musical nasce do sen
mo compositor de óperas francesas. As obras-primas que são a
timento poético ou dramático; mas ela não se renega, não se do
ópera-bufa Le comte Ory (1828) e a grande ópera Guillaume Tell
bra às formas verbais da expressão, não sublinha a anedota. É
(1829) obtiveram apenas um sucesso relativo, logo eclipsado pelo
globalmente e não palavra por palavra que linguagem e música
triunfo de La muette de Portici e de Robert le Diable e, mais tar
se entendem e se completam.
de, das outras obras de Auber e Meyerbeer. Como Verdi ao es
A língua francesa conviria ao teatro musical, ao contrário
crever Don Carlos, Rossim continua a ser um músico italiano
do que afirmavam Rousseau e os enciclopedistas? Na segunda me
quando compõe com libretos franceses. O de Guillaume Tell, por
sinal, é tão ruim e tão comprido (a ópera sem cortes duraria qua tade do século X I X e no início do século X X , numerosos músicos
se cinco horas) que, ao cabo de umas cinqüenta representações, franceses esforçaram-se por provar que sim, com uma felicidade
tomou-se o hábito de tocar apenas o segundo ato, como anteato, desigual. A singularidade da língua francesa está em ter suscita
pelo simples prazer da música (principalmente o admirável trio do e colocado problemas de emissão vocal ou de prosódia que por
de Teil, Fürst e Arnold). A situação de Donizetti é análoga. La muito tempo suscitaram paixões. À má-fé dos que não querem
fille du régiment (comédia) e La favorite (drama) são óperas ita ouvir nem Rameau nem Berlioz replica uma reação chauvinista
32
lianas compostas com libretos franceses; aliás, suas qualidades são desfiando futilidades e vaiando Tannhäuser . Alguns estarão
bem mais valorizadas na adaptação italiana. prontos para jurar que Samson et Dalila equivale a Parsifal, que
Massenet nada fica a dever a Mussorgsky, nem Gustave Charpen
Berlioz O maior compositor francês de óperas do período român tier a Puccini.
tico não foi profeta em seu país. Seu Benvenuto Cellini, que Liszt Enquanto o gênio dramático de Berlioz não conseguiu im
admirava e fez triunfar em Weimar, fracassou em 1838 na Ópera por-se numa cena musical dedicada a Meyerbeer e Auber, um
de Paris (sete apresentações), assim como La damnation de Faust milagre é consumado por Charles Gounod (1818-1893), Jacques
("ópera de concerto") em 1846 na Opéra-Comique (!). Um certo
Scudo da Revue des deux mondes (morreu louco em 1864) afir 31. Na época em que triunfavam os "romances sentimentais", Berlioz é
ma: "Não só o sr. Berlioz ignora a arte de escrever para a voz hu o primeiro músico francês a publicar peças vocais com o título de "melodias"
(Mélodies irlandaises, 1830). No ano precedente, Adolphe Nourrit dava a conhe
mana, como sua orquestração mesma nada mais é que um amon cer aos parisienses os Heder de Schubert sob a mesma denominação.
toado de curiosidades sonoras sem corpo e sem desenvolvimen 32. A princesa de Metternich depois da representação de Tannhäuser em
to!" Les troyens, composta entre 1856 e 1863, só será representa Paris: " E m Viena, onde, graças a Deus, ainda há uma verdadeira nobreza, nun
da integralmente em 1969, cem anos depois da morte do composi ca se veria um príncipe de Liechtenstein ou de Schwarzenberg vaiar Fidelio do
seu camarote e reclamar um balé." A cabala do Jóquei, que faz e desfaz na
tor, e na Inglaterra. Das duas óperas que compõem essa grande
Opera, é animada não apenas pelo nacionalismo, mas também pelo apego ao
e genial tragédia musical em duas "noites", a segunda (Les troyens ridículo costume de introduzir um balé nas óperas.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 108
1853 La Traviata
Le Médecin malgré lui de Gounod 1858
Orphée aux enfers de Offenbach 1858
Faust de Goimod 1859 Un bailo in maschera
1861 Tannhäuser (em Paris)
Les Pêcheurs de perles de Bizet 1863
Les Troyens à Carthage de Berlioz 1863
1865 Tristan un Isolde
La Vie parisienne de Offenbach 1866
Roméo et Juliette de Gounod 1867 Don Carlos (em Paris)
La Périchole de Offenbach 1868 Die Meistersinger
1871 Aida
Djamileh de Bizet 1872
1874 Boris Godunov
Carmen de Bizet 1875
1876 Der Ring des Nibelungen
L'Étoile de Chabrier 1877
Les Contes d'Hoffmann de Offenbach 1881
1882 Parsifal
(ato III) ou o trio "Anges purs, anges radieux" pouco antes do 1875 Estréia de Carmen na Opéra-
GEORGES B I Z E T
fim. Mas as cenas dramáticas parecem demasiado monótonas, ca paris, 25 de outubro de 1838 Comique. A última ópera de Bizet
recem de força e de veracidade, o caráter das personagens mal Bougival, 3 de junho de 1875
enfrenta a hostilidade da critica e de
é esboçado — da obra-prima de Goethe não resta mais que uma uma parte do público, como as pre
história de amor complicada pelo diabo, história, de resto, estra cedentes (com exceção de Lajolie fil
nha à lenda . 33 Seu pai, Adolphe (1810-1886), era
le de Perth). Na noite de 2 para 3 de
professor de canto; sua mãe, Aimée
Sem ser um grande mestre, Gounod exerceu uma influência junho, pouco depois da 31? repre
Delsarte (1814-1861), pianista. Seu
considerável sobre a orientação da música francesa, inspirando sentação, Bizet morre subitamente.
tio, François Delsarte, cantor, pu
o gosto pela medida e pela clareza. Ele sofria, havia uns quinze anos, de
blicou Les archives du chant. terríveis dores de garganta (sem dú
Offenbach As óperas-bufas de Offenbach são de uma veia bem vida de origem cancerosa). Seu es
1848-1857 Aluno do Conservató tado se agravara nos últimos três me
diferente e contrastam ainda mais com o repertório da Ópera de rio de Paris, onde obtém primei ses; ele se queixava de sufocar e de
Paris. O gosto pela medida e pela clareza ainda é mais edificante ros prêmios de solfejo, piano, fu ter alucinações auditivas, mergu
nelas; ele se manifesta com grande arte no difícil gênero da co ga e órgão. Em 1857, ganha o lhando num grave estado de depres
média um pouco maluca, em que tudo é pretexto para uma can grande prêmio de Roma. Já com são. Foi enterrado no dia 5 de junho
ção. Offenbach é o principal criador da opereta francesa, antíte pôs uma bela sinfonia e uma ópe¬ no cemitério do Père-Lachaise, após
se ou réplica irônica da grande ópera. Suas noventa e cinco ope ra-bufa, Docteur Miracle, que ga as exéquias celebradas na Trinité.
retas não são de igual qualidade. Mas a maneira como trata os nhou (empatada com Charles Le-
grandes temas mitológicos (Orphée aux enfers ou La belle Hélè coq) um concurso organizado por obra Uma dúzia de obras dramáti
ne) e histórico (Geneviève de Brabant) é irresistível, e em suas Offenbach para o lançamento de cas, dentre as quais Les pêcheurs
obras-primas, La vie parisienne e La Périchole, o tom sentimen seu Théâtre des Bouffes-Parisiens. de perles (Théâtre-Lyrique, 1863),
tal obrigatório é introduzido com uma ternura deliciosa na exu 1858-1860 Temporada na Vila Mé La jolie fille de Perth (Théâtre-Ly
berante quermesse. dicis. É feliz e muito popular entre rique, 1867), Djamileh (Opéra-Co
Seu sucesso fez dele o símbolo da alegria parisiense no Se os pensionistas. Em vez da tradicio mique, 1872), Carmen (Opéra-Comi
gundo Império. Mas essa imagem é restritiva. Sua música é a mais nal missa, sua primeira "remessa de que, 1875), L'arlésienne, melodra
alegre, a mais espirituosa e, também, a mais admiravelmente es Roma" é uma ópera-bufa italiana, ma (Vaudeville, 1872). Composi
crita nesse gênero ligeiro. Don Procopio. ções corais e melodias. Duas sin
André Messager (1853-1929), cujo Fortunio é um êxito to 1861 "Leitor" no Théâtre-Lyrique. fonias (dentre as quais Roma), Pe
tal, pôde impedir por algum tempo a decadência da opereta. Mas O diretor, Carvalho, encomenda- quena suíte para orquestra. Peçar
esse grande maestro, que regeu a estréia de Pelléas et Mélisande, lhe uma ópera, Les pêcheurs de per para piano, dentre as quais Jem
excelente intérprete de Wagner, não possui a verve e a simplicida les, que estreará em 1863. d'enfants (orquestrada pelo autor)
de vigorosa que fizeram de Offenbach um grande compositor de 1862 Viagem com Gounod a Ba
"música ligeira", antes de essa denominação ser aviltada pela can den-Baden, onde Berlioz inaugura
tiga comercial. o novo teatro com Béatrice et Bé
Emmanuel Chabrier (1841-1894) tem a verve, a simplicida nédict. Em seguida, Bizet irá tor
de, o talento, mas falta-lhe a leveza. L'étoile (1877) e Une éduca nar-se muito caseiro e praticamen
tion manquée (1879) são operetas admiráveis "para pessoas inte te não sairá mais de Paris e arre
ligentes", numa linha que continuará a ser seguida, até Mamelles dores.
de Tirésias de Poulenc. 1869 Casa-se com Geneviève Ha
lévy, filha de seu ex-professor, com
quem terá um filho, Jacques (1872¬
33. O personagem de Fausto é tão diferente do herói de Goethe e o de Mar
1922), literato.
garida de sua Gretchen, que os alemães preferiram chamar a ópera de "Margare
the". O célebre balé (início do ato V) foi introduzido na partitura quando da 1872 Estréia, no Théâtre du Vau
reapresentação na Ópera de Paris, em 1869, a fim de respeitar a tradição desse deville, de L'artésienne de Alphon
estabelecimento. O fato de essa evocação dançada da Noite de Walpurgis não se Daudet, música de Bizet. Bizet.
ter provocado a hilaridade é tão surpreendente quanto a idéia de fazer Fausto
dançar!
Bizet No ano em que ganha O primeiro grande prêmio de Ro- Cenário de Emile Bertin para Carmen.
ma, Bizet apresenta no Bouffes-Parisiens (antigo Théâtre Com
te, rebatizado por Offenbach, que o dirige) uma opereta, Le doc
teur Miracle. Na Vila Médicis, sua primeira "remessa de Roma"
é uma ópera-bufa italiana, Don Pr acopio. É decididamente não
conformista e sentiu-se provavelmente encorajado nessa disposi
ção quando, em 1862, foi com Gounod a Baden-Baden, onde Ber
lioz inaugurava o novo teatro com Béatrice et Bénédict.
Sua carreira não foi o que prometia ser. Com exceção de La
jolie filie de Perth (1866), bem executada no Théâtre-Lyrique e
bem recebida, as obras-primas de Bizet a princípio encontram ape
nas indiferença ou hostilidade. Elas provocam a debandada da
crítica parisiense, cujo Waterloo será a estréia de Carmen (1875).
Desde Les pêcheurs de perles (1863), cuja beleza musical (a des
peito de um libreto inverossímil) Berlioz é um dos raros a reco
nhecer, a assombrosa acusação de "wagnerismo" passa de pena
em pena. Djamileh (1872) é julgada incompreensível. A luminosa
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 114 115 O TEATRO MUSICAL
partitura para a Artésienne de Daudet (1872) não deixa que a pe cura furiosa a crítica executará essa obra-prima, cuja apreciação
ça seja compreendida! viu Wagner e Brahms concordarem!"
Juizes lúcidos, como Gounod, E. Reyer, V. d'Indy e Th. de
Banville (Berlioz e Gautier já faleceram) reconheceram de saída
nessa obra o gênio de Bizet. Nietzsche nela encontrou a revelação
do sol mediterrânico e manifestou o entusiasmo delirante que se
sabe. Mas será preciso aguardar sua reapresentação de 1883 para
que Carmen triunfe em Paris, depois de se ter imposto em Lon
34
dres e Nova York .
Carmen domina do alto o drama musical francês de Berlioz
a Debussy, apesar da importância histórica de Faust e de algu
mas de suas belas páginas. Neste último quartel de século, nem
os Contes d'Hoffmann (1881), última obra de Offenbach es
treada depois da sua morte, espetáculo romântico intrigante e
comovente; nem Samson etDalila de Saint-Saëns (Weimar, 1877),
magm'fica, mas fria e convencional; nem Manon (1884) ou Wer
ther (1892), os melhores êxitos de Massenet (1842-1912), encan
tador mestre menor dotado de uma sedutora veia melódica e
que prolonga o romantismo no século XX; nem, ainda, os cora
josos intentos de ópera naturalista de Alfred Bruneau (1857¬
1934), amigo de Zola, e de Gustave Charpentier (1860-1956),
simpático autor de Louise, suportam o paralelo com as obras
de Puccini, dos russos e dos tchecos, recém-chegados na geogra
fia da ópera.
te, menos talvez em Uma vida pelo czar (1836), considerada a pri
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meira ópera nacional, do que em Russian e Ludmilla (1842), bem
superior musicalmente e de todo independente dos modelos ita
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lianos. Seus mais notáveis sucessores só se manifestarão na segun 1 Ρ J J
da metade do século: Alexandre Dargomyjsky (1813-1869), que
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cria, em Rusalka e sobretudo em O convidado de pedra, um tipo i
de declamação melódica russa ilustrado por Boris Godunov; e, ff t
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depois, Mussorgsky, Borodin, Tchaikovsky e Rimsky-Korsakov.
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MODEST 1865 Sua dipsomania provoca uma curso de canto (ela fora a estalaja-
grave crise (epilepsia ou desintoxi deira de Boris). Os amigos do com
PETROVITCH
cação?). Liga-se a Ludmila Ches- positor são hostis a essa ocupação
MUSSORGSKY
Karevo (Pskov), 9 de março de 1839 takova, irmã de Glinka, que per e à intimidade que parece estabele
S ã o Petersburgo, 16 de m a r ç o de 1881 manecerá sua amiga fiel e confi cer-se entre ele e a cantora.
dente. 1881 Após quatro crises sucessivas,
Descendente de uma antiqüíssima
1867 Engenheiro do Departamen Mussorgsky é internado no hospi
família russa. Seu pai é um peque
to de Águas e Florestas. Berlioz vem tal militar Nikolaievsky, a conse
no proprietário rural. Sua mãe,
reger concertos em São Petersbur lho de Daria. Numerosas visitas:
imaginativa e musicista, ensina-lhe
piano. Sua babá lhe canta canções go: impressão profunda. Cui, Borodin, Rimsky (que lhe
Mussorgsky, Boris Godunov.
de ninar populares. 1870 A primeira versão de Boris trouxe o Tratado de instrumenta
Godunov é recusada pelo teatro ção de Berlioz, a seu pedido), Re-
Marie. Mussorgsky empreende a re pin (que fez seu famoso retrato), Boris Godunov (1874), a obra-prima de Mussorgsky, e O
1848-1856 Excelentes estudos ge
visão da sua partitura. Stassov... Na noite de 15 para 16 príncipe Igor (1890), a de Borodin, dominam a produção dessa
rais, terminados na Escola Militar.
1872 O casamento de Rimsky, com de março, bebe conhaque para ce escola russa. São duas obras extremamente dessemelhantes. In
Sai com a patente de tenente. Pri
meiros concertos públicos como quem mora faz mais de um ano, as lebrar seu aniversário (ele pensava telectual culto, formado nas disciplinas científicas (era médico
pianista. críticas de Borodin e de Balakirev ter nascido no dia 16), e é encon e, sobretudo, químico), Borodin trabalhou quase a vida toda
1856 Incorporado à Guarda Impe sobre a inexperiência do autor de trado morto às cinco da manhã. na composição de sua grande epopéia musical, escrevendo, qua
rial e lançado na alta sociedade rus Boris afetam sua sensibilidade e Após uma magnífica cerimônia, é dro por quadro, o texto e a música, sem ter logrado terminá-la;
sa, freqüenta principalmente o sa fazem-no cair no alcoolismo. A se enterrado em 18 de março no ce depois da sua morte, Rimsky-Korsakov e Glazunov prepararam
lão do compositor Dargomyjsky, gunda versão de Boris, que o tea mitério Alexandre Nevsky. a partitura definitiva. Convencional pela forma (sucessão de árias,
onde se liga a Cui, Balakirev e ao tro Marie continua recusando-se a duos, conjuntos, coros), O príncipe Igor fascina por seu caráter
crítico Stassov. montar, é executada numa audição obra Quatro óperas (sem contar de épico inabitual, pelo movimento cênico, pelo brilho da or
1859 Grave crise de depressão (ou privada. Grande sucesso. os esboços e os projetos): O casa questra e dos coros, pelos prodigiosos contrastes. Muito embo
de epilepsia?). Deixa o exército pa 1874 Estréia pública de Boris Go mento (São Petersburgo, 1909), ra Borodin sempre se tenha considerado um amador, é uma obra
ra se consagrar à música. dunov, sob a regência de Naprav- Boris Godunov (São Petersburgo, admiravelmente organizada para impressionar a imaginação, com
1862 Formação do "Grupo dos nik. Grande sucesso de público. Re 1874), Khovantchina (São Peters uma variedade de invenção e uma qualidade de escrita notáveis.
Cinco". servas da crítica. Nos anos seguin burgo, 1886), A feira de Sorot Páginas como as do ato polovstiano ou o deslumbrante quadro
1863 Mussorgsky consegue um car tes, Mussorgsky trabalha penosa chinsy (Moscou, 1913). Alguns co "sob Kromi" extrapolam os marcos habituais da ópera: são mo
go de engenheiro do Departamento mente em Khovantchina e em A fei rais e sessenta e três melodias (den
delos de que Prokofiev deve ter-se lembrado quando, num mes
de Obras e se instala em comunida¬ ra de Sorotchinsy, em meio a crises tre as quais os ciclos: Canções in
mo clima de epopéia, compôs a música do filme Alexandre
de com cinco outros jovens artistas de epilepsia ou de delírio. Seus ami fantis, Sem sol e Cantos e danças
Nevsky.
e intelectuais; eles se intitulam " A gos não o compreendem mais e se da morte). Algumas peças sinfôni
comuna". O apartamento torna-se afastam dele. cas e peças para piano (dentre as Mussorgsky é da família espiritual de Dostoievsky: tem afi
um ponto de encontro, freqüentado 1879-1881 Acompanhador da can quais, a suíte Quadros de uma ex nidades com os Karamazov. O sucesso popular constante de Bo¬
em particular por Turguenev. tora Daria Leonova, que abriu um posição). ris Godunov, um dos pontos altos de toda a história do teatro
musical, é sua revanche póstuma contra os professores de boas
maneiras. Criticaram-no por sua ignorância das regras da ópera,
por sua inexperiência nas disciplinas clássicas, seu realismo à Dos atribui a última palavra, ao acrescentar a cena final da révolu- Khovantchina
toievsky, seu amargor à Gogol, suas posições estéticas de vanguar ção, que não existe em Puchkin. n 0 t e a t r o
Bolshoi
d e M o s c o u 1 9 5 0
da. O mais grave é que seu erudito amigo Rimsky-Korsakov hou Essa cena prodigiosa é objeto do maior erro de Rimsky. Nor- ' ·
ve por bem corrigir o que podia existir de selvagem na expressão malmente, ela se situa depois da morte de Boris, que os insurre
de seu gênio. O libreto de Boris, escrito por Mussorgsky, perma tos ignoram, e a obra termina com o monólogo profético do Ino
nece fiel aos dados históricos — bastante assombrosos para não cente (admirável personagem imaginado por Mussorgsky). Rimsky
precisarem ser romanceados —, o que confere ao drama uma di inverteu as duas cenas para ter um final mais nobre! É um moti
35
mensão grandiosa . Ele se afasta de Puchkin, sua principal fon vo de monta para se preferir a versão original. Há outros erros:
te, pelo ângulo de enfoque: o "drama musical popular" de Mus a reorquestração da cena polonesa, sem ter compreendido que a
sorgsky tem a aparência de uma crônica, cujo narrador se teria "inabilidade", aqui, é desejada por Mussorgsky, preocupado com
misturado à multidão. Impressiona-nos em toda a obra a impor a exatidão histórica (evocação dos "24 violinos" de Marina, que
tância do coro, que representa o povo russo; é ele o verdadeiro mais tarde deveriam desagradar tanto à corte moscovita); a su
motor da ação, e não os motivos psicológicos. Ele se manifesta pressão do tão inquietante toque a rebate sublinhando as predi-
desde o prólogo, na suntuosa cena da coroação, e Mussorgsky lhe çùc» do Inocente, a supressão (ou recomendação de suprimir) das
cenas de Rangoni-Marina e Rangoni-Dimitri, sem as quais o duo
35. Para reconstituir esse episódio particularmente confuso da história rus da fonte perde todo e qualquer significado...
sa, Mussorgsky adota vários postulados:
— Boris é mesmo o assassino do pequeno Dimitri; este morreu de fato (logo, No plano puramente musical, Rimsky-Korsakov com freqüên
a clássica hipótese da substituição de crianças é rejeitada); cia enriqueceu proveitosamente a instrumentação; mas, infelizmen
— o falso Dimitri é identificado com Grigori, o monge em fuga (Mérimée, te, corrigiu a harmonia e até o ritmo, tomando por erros ou ne
em seu "Episódio da história da Rússia", recusa essa identificação);
— o casamento com Marina é uma maquinação de Rangoni, que ensina aos gligências as surpreendentes invenções de um gênio musical e dra
dois protagonistas seus papéis; mático excepcional, completamente livre de qualquer formalismo.
Mussorgsky, — a morte de Boris é contemporânea ao início da revolução que leva Dimitri Querendo preencher uma parte do abismo que separa Boris da
partitura autografa (verdadeiro ou falso) ao poder; os insurretos ignoram essa notícia quando se põem
de Khovantchina. a caminho.
ópera tradicional, Rimsky procedeu à sua "meyerbeerização", se
gundo a cruel expressão de Stravinsky.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 120 121 O TEATRO MUSICAL
As próprias óperas de Rimsky-Korsakov, em particular suas A ópera tcheca Entre as oito óperas de Bedrich Smetana, a en
duas últimas obras-primas, A lenda da cidade invisível de Kitej tusiasmante Prodaná nevesta (A noiva vendida) (1866) tem um
(1907) e O galo de ouro (1909), são de uma absoluta beleza for brilho particular. Ela espalha tanta felicidade, é repleta de uma
mal. A riqueza e a perfeição da instrumentação superam os es música tão encantadora, o espetáculo é tão divertido e variado,
plêndidos modelos de Berlioz, cuja influência sobre os músicos que depois da representação lamentamos, do fundo do coração,
russos foi considerável. A fusão das técnicas ocidentais e da ins que não.tornem a apresentar a peça por inteiro. O sexteto do
piração russa (grandes lendas populares, assimilação dos modos ato I I I é de uma beleza comparável aos conjuntos de Figaro, Cosi
do folclore tradicional) é realizada de maneira espetacular: é a "fu fan tutte ou do Barbeiro de Sevilha. È o coroamento de uma
são íntima dos cantos populares russos e da fuga originária do obra-prima que, desde os primeiros compassos da célebre aber
Ocidente" que Glinka preconizava. São fantasmagorías deslum tura, nos arrasta num movimento irresistível, em que são vizi
brantes, a que falta a força da paixão. nhas a ternura e a bufonaria. A noiva vendida está tão profun
As óperas de Tchaikovsky, das quais as mais belas são lev- damente arraigada na cultura tcheca, que não se sabe mais se
gueni Onieguin (1879) e, sobretudo, A dama de espadas (1890), Smetana se inspirou no folclore ou se é sua fonte. Sem alcançar
têm um interesse dramático bem menor. Mas há nelas uma abun esse alto nível, Hubicka (O beijo) é uma obra-prima de inven
dância de bela música romântica bastante convencional, com ção musical que mereceria ser executada com maior freqüência;
grandes momentos de lirismo refinado, ricos de invenção me seu humor faz a luz e a sombra, a comédia e o drama se alterna
lódica. rem sutilmente. Num estilo bem diferente, a grande ópera patrió-
quarteto de Haydn; aos seis, estrea gime fica mais liberal, após os su instrumentais. Mas sua saúde men
va em público como pianista; aos oi cessos franco-italianos contra a tal se degrada pouco a pouco. Em
to começava a compor, sem ter re Áustria. 1884, é hospitalizado num asilo psi
cebido outras lições que não fossem 1862 Participa da fundação do pri quiátrico, onde morre dois meses
as de seu pai, violinista amador. meiro teatro boêmio de Praga, o depois. É enterrado no cemitério Α tradição da ópera tcheca prosseguirá na obra audaciosa "Prados e bosques da Boêmia,
Teatro Provisório (Prdzatimm di¬ e original de Leos" Janácek (1854-1928). O estilo do grande mú
de Vysehrad em Praga.
1840-1843 Termina os estudos ge vadlo), que, em 1868, irá tornar-se sico morávio deve muito pouco a Smetana e Dvorak. Como eles,
rais em Plzeñ, onde se apresenta o Teatro Nacional (Národní diva¬ é profundamente impregnado pelo folclore de seu país. Mas sua
obra Oito óperas, dentre as quais
como pianista. dlo).
Prodaná Nevesta (A noiva vendi arte de vanguarda, baseada num sistema harmônico e melódico
1843 Fixa residência em Praga, pa 1866-1874 Nomeado regente do no pessoal, pertence plenamente ao século XX; obras-primas como
da, Praga, 1866), Dalibor (Praga,
ra completar sua formação de pia vo teatro, aí apresenta em 1866 a Jenufa (1904) e Ζ mrtvého domu (Da casa dos mortos) (póst.
nista. Professor de música do con primeira de suas óperas nacionais, 1868) e Hubicka (O beijo, Praga,
1876). Corais e melodias. Poemas 1930), muito mais modernas do que os dramas de Puccini, por
de Thun. Quando do levante de Branibofi ν Ôechách (Os brandem-
exemplo, já pertencem à nova era inaugurada por Pelléas. (Ver
Praga (1848), abraça a causa da in burgueses na Boêmia), seguida al sinfônicos (dentre os quais, os seis
pp. 262 e 340).
dependência. guns meses depois de A noiva ven que compõem Ma Vlast), um trio
1849 Funda em Praga uma escola dida. Em 1873, manifesta-se um com piano, dois quartetos, peças Apesar do talento original de Ferenc Erkel (1810-1893) e de
particular de música, com o apoio princípio de surdez, seguido de pro para piano. Stanislaw Moniuszko (1819-1872), as óperas nacionais húngaras
de Liszt e Clara Schumann, que en blemas nervosos. Tem de abando e polonesas, também surgidas com o combate pela independên
contra quando das viagens que fa nar suas funções. cia ou pela tomada de consciência de uma identidade nacional,
zem à Boêmia. 1874-1884 Retira-se para Jabkonia, não tiveram o brilho nem a fecundidade da ópera tcheca. Mas não
merecem o esquecimento em que caíram.
125 A HERANÇA ROMÂNTICA
uma estética baseada na intuição, à qual se vinculam Bruckner, Encontram-na na emancipação modal (modos do cantochão, em
Tchaikovsky, Mahler, Sibelius... particular) e na assimilação das características específicas do fol
37
Entretanto, Liszt e Wagner levaram o romantismo musical clore autóctone: ritmo, escalas, melodias, estilo instrumental...
ao ponto extremo em que o declínio se torna inevitável. A maior Quando, no início do século X X , o expressionismo alemão e o
parte dos músicos alemães da segunda metade do século se defi "impressionismo" francês derem nascimento a novas tendências
nirá por sua aceitação ou sua recusa da orientação tomada pela musicais cosmopoUtas, só subsistirão (com a aprovação supérflua
"música do futuro", e essas tomadas de posição determinarão do sinistro Jdanov) as escolas nacionais baseadas num folclore
apriorismos estéticos anunciadores da decadência. São muito im vivo. "Por que andaríamos sempre agarrados nas saias de nossas
propriamente classificados de "neoclássicos" os músicos que babás itaUanas?" (palavras de um músico russo, relatadas por
resistem à evolução reivindicando os valores tradicionais, pois Constantin Bräiloiu). A partir de então, as babás serão recruta
nenhuma ruptura profunda com as formas e as estruturas do clas das em meio às camponesas de seu país.
sicismo ainda justifica o prefixo "neo". Seria mais exato distin
guir uma tendência conservadora e uma tendência progressista en Itália e Alemanha Uma escola italiana existe desde Monteverdi.
tre os herdeiros dos grandes românticos. Mas as nuanças interme Ela se define por um estilo vocal e instrumental, transmitido de
diárias tornam incerta a Unha divisória entre as duas tendências, professor a aluno e difundido por toda a Europa. O povo itaUa-
e as diferenças de escrita não são acentuadas o bastante para de no é naturalmente músico, como outros são guerreiros ou merca
finir nitidamente o duaUsmo. dores. Por seu número e seu talento, os compositores e os virtuo
Na ItáUa, onde a música está voltada quase exclusivamente ses itaüanos fundamentaram em sua experiência e em seu saber
para o teatro, a reação ao idealismo romântico, tal como é ilus uma tradição musical pan-européia. Nessa escola italiana, não se
trado por Verdi, se manifesta na ópera naturalista de Puccini e reconhecem características nacionais pela simples razão de que não
dos "veristas". houve nação italiana antes do século X I X . Os músicos italianos
Em outros países, os dois tipos de reação, clássica e natura- e itaUanizantes formaram uma comunidade intelectual suprana
Usta, são observados episódicamente; no entanto, o fato princi cional, cujos focos de irradiação estão disseminados por toda a
pal é uma renovação nacional que se estende à maioria dos países Europa. Faz-se música itaUana em Paris, Londres, Viena, São Pe
da Europa. Essa renovação não exclui a priori nem a afiliação tersburgo. Somente a ópera verdiana poderia definir um estilo pu
ao idealismo romântico, nem uma eventual reação naturahsta. Ela ramente nacional.
poderá apresentar-se, na música, como uma alternativa à tendên Pode-se falar também de uma escola alemã? Vários compo
cia expressionista que, desde Tristão, anuncia a decomposição do sitores exaltaram a germanidade como uma virtude, mas sem
sistema tonai clássico; mas seu fundamento essencial é, como já defini-la claramente. Assim, Wagner saudou em Weber "o mais
disse, a tomada de consciência de uma identidade nacional, de uma alemão de todos os compositores alemães". Aliás, Euryanthe
comunidade de cultura e de destino, graças aos combates pela in
dependência e pela Uberdade. Desde Valmy (1792), a noção de pa 36. Gluck achava "ridículas" as diferenças, no entanto bastante imprecisas
triotismo é um novo estimulante das lutas coletivas: a guerra em seu tempo, que observava entre os estilos nacionais.
tornou-se o problema de um povo inteiro. A consciência do Volks 37. A música dos camponeses suscita então um novo interesse. Mas será pre
ciso aguardar o século X X para que o folclore seja objeto de uma ciência metódi
geist se desenvolve nas gerações românticas alemãs, depois em toda ca (Bartók e Kodály).
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 126
adulterada em que os genios de Liszt e de Wagner se regozijam passagens, desemola aquelas longas frases calmas, de passo re
só pode horrorizar alguém que se sente feliz na simples e calorosa gular, em que é inimitável — a que forma a última estrofe da Rap
hospitalidade dos Schumann. Mas o antiwagnerismo de Brahms sódia para contralto, coro masculino e orquestra é uma das mais
foi deploravelmente estimulado pela obstinação de um amigo, o belas melodias da história da música.
musicólogo e crítico vienense Eduard Hanslick (1825-1904). Inte
ligente, mas parcial e intolerante, ele se tomou um incensador de
Adagio
Brahms e mobilizou em torno de seu nome os meios musicais mais
retrógrados, contra a "música do futuro", o romantismo e, de
modo geral, contra todos os inovadores. Aos ataques contra Liszt
S 1
1 .
1st auf oVi.rum PJJI _ ttr t Va -
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ter der Líe —
If
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Bruckner Como Brahms, Bruckner foi promovido a chefe de es À herança de Schubert e de Beethoven {Missa solemnis e No
cola a contragosto. Os partidários dos dois músicos opuseram- na sinfonia), à influência de Wagner, que não deve ser exagerada,
nos em vida. Às vezes, continuam opostos hoje, muito embora e à inspiração religiosa absolutamente fundamental, Bruckner acres
o recuo da história atenue as diferenças. Ambos escreveram sin centa estas características pessoais importantes:
fonias de forma clássica e animaram-nas com um sopro românti — Uma orquestração bastante original, que muitas vezes evo
co. Mas o romantismo de Bruckner é mais profundo e mais ins ca, como vimos, um órgão gigante, contanto que não se conside
tintivo (ele não tem a menor cultura), seu estilo é mais livre e mais rem certas revisões wagnerizantes a que teve a ingenuidade de dar
38
ousado, embora o personagem seja anacrônico e pueril. Suas sin sua bênção .
fonias têm uma importância histórica muito maior, porque for — Uma luxuriante vegetação melódica que se multiplica ao
mam uma etapa capital entre o Schubert da Sinfonia em dó maior infinito com a inocente ousadia do barroco austríaco: a estética é
e Gustav Mahler. Ele se aparenta a seu compatriota Schubert pe bem a da admirável abadia de São Floriano, refúgio espiritual do
lo lirismo ingênuo, pela musicalidade pura sem compromisso in compositor.
telectual. Ambos são de origem camponesa; têm a mesma since — A mestria do grande estilo polifónico, em particular nos
ridade, o mesmo desdém pelas convenções mundanas; suas raízes finais das Sinfonias nf 7 e 8.
culturais são idênticas. Porém Bruckner é subjugado pela música — A assimilação do folclore da alta Áustria, cujo caráter se
de Wagner, que exerce uma influência importante sobre seu esti faz presente em particular nos magníficos scherzi, que lembram
lo melódico e sua escrita orquestral, sem fazê-la perder sua origi o da Sinfonia em dó maior de Schubert.
nalidade. — A ambigüidade modal e tonal, de que o scherzo áaNona Sin
Bruckner é uma das personalidades mais cativantes da histó fonia oferece um exemplo admirável. A harmonia de Bruckner é um
ria da música. No curso de um ensaio de sua Quarta sinfonia, ele desmentido constante à surpreendente opinião de que é uma glorifi-
cação do acorde perfeito. Mahler não se deixará enganar por ela.
se aproxima encantado do maestro Hans Richter e põe-lhe dis
cretamente na mão um táler, recomendando-lhe beber uma cane A Sétima e Nona sinfonias são, com o grandioso Te Deum,
os pontos culminantes de uma obra extremamente rica, que, no en
ca de cerveja à sua saúde. Richter conservou religiosamente a ines
tanto, valeu a Bruckner apenas fracassos e humilhações, até Nikisch,
timável moeda, fixada à corrente do seu relógio... Essa anedota
Richter e Mahler empreenderem a sua divulgação a partir de 1884.
ilustra o extraordinário candor de Bruckner, sua bondade, seus
Ainda hoje, é condenado sem ser ouvido e menospreza-se sua posi
modos canhestros. Por sua timidez, sua tontice, seu jeito, suas ção histórica, não se recordando que ele é nove anos mais velho que
roupas grandes demais, sua polidez obsequiosa, parecia ridículo Brahms, trinta e seis mais velho que Mahler, a que costuma ser as
e enternecedor. Também era excessivamente devoto; sua religião sociado, e apenas vinte e sete anos mais moço que Schubert.
infantil era a principal fonte de sua inspiração. Sua vida inteira
foi dominada pela fé, toda a sua obra é um ato de piedade. Co
mo se pode criticá-lo pela extensão de suas obras? Elas exalam
um perfume de eternidade.
Admirável organista, introduz em suas sinfonias a espiritua
lidade dos corais, e a disposição de sua orquestra evoca com fre
qüência um registro de órgão, seja por nos fazer ouvir um sun
tuoso cheio, seja por opor famílias instrumentais homogêneas. É
a um infinito metafísico que parecem referir-se os intermináveis
desenvolvimentos: o tempo não conta no diálogo com Deus. Ε
sem dúvida tanto o sentimento da perfeição divina quanto o das
exigências humanas é que impõem à composição longos períodos Bruckner, Sétima sinfonia, adágio.
de maturação e justificam as múltiplas revisões de obras nunca
suficientemente dignas da vocação que as inspira. Bastante pró 38. H á duas versões modernas das sinfonias que, ambas, pretendem ser fiéis
ximo de seu contemporâneo César Franck, ele não é, como Brahms à versão original, mas que apresentam sensíveis diferenças: a primeira foi publi
cada a partir de 1934 por iniciativa da Sociedade Internacional Bruckner, sob a
o julgava, "um pobre louco que os padres de São Floriano têm direção de Robert Haas; a segunda a partir de 1950, por iniciativa da Biblioteca
na consciência". Nacional austríaca e sob a direção de Leopold Nowak.
ANTON BRUCKNER te grandes sucessos como improvi
Alisfelden ( A l l a Austria), 4 de setembro de 1824 sador: em 1868 em Nancy e em
Viena, 11 de outubro de 1896
Notre-Dame de Paris (em presença
Seu pai, Anton (1791-1837), era de Franck, Saint-Saëns e Gounod),
mestre-escola, sacristão, chantre e em 1871 em Londres...
organista; sua mãe, Theresa Helm 1873 Primeira viagem a Bayreuth,
(1801-1860), era filha de um esta- aonde retornará com freqüência,
lajadeiro. Bruckner era o mais ve em particular para a estréia do Ring
lho de onze filhos. des Nibelungen (em 1876) e de Par
sifal (em 1882).
1835-1836 É mandado para a casa 1881 Primeira audição triunfal da
de um primo, ém Hörsching, que Quarta sinfonia, sob a regência de
lhe ensina teoria musical e órgão, Richter: começo do reconhecimen
base da formação de mestre-escola. to de Bruckner como compositor.
Seus estudos musicais durarão vin A estréia da Sétima sinfonia em
te e cinco anos! 1884, regida por Levi, assinalará
1837-1841 Estudos gerais e musi sua consagração. Apesar da hos
cais na abadia de São Floriano, per tilidade de Hanslick e dos parti
to de Linz, depois na Escola Nor dários de Brahms, os grandes re
mal de Linz. gentes — Richter, Levi, Mottl,
1841-1855 Mestre-escola na aldeia Nikisch e Mahler — impõem pou
de Windhag, depois de Kronsdorf co a pouco as sinfonias e o Te
e, enfim, em São Floriano, de que Deum. Bruckner chega a ser exe
é ao mesmo tempo organista. Pri cutado nos Estados Unidos {Séti
meiras composições. ma sinfonia em 1886, em Chicago
1855-1868 Organista da catedral de e Nova York).
Linz. Começa a granjear uma 1892 Triunfo da Oitava sinfonia em
grande reputação de improvisador. Viena, sob a regência de Richter.
Em 1858 (aos trinta e quatro 1893-1896 Sofrendo de hidropisia
anos!), faz um exame de teoria mu e problemas cardíacos, Bruckner
sical e de órgão em Viena, mas pouco aproveita seus sucessos tar
continua a estudar: latim, teologia, dios e as honras de que o cumulam.
filosofia, física e... música (adqui Sai pouco e tem de ficar deitado
re uma notável ciência do contra com freqüência. Em 1895, o impe
ponto). rador lhe oferece a casinha do Bel
1864 Estréia na catedral de Linz de vedere, onde pode passear no jar
sua primeira grande obra, a Missa dim. Mas ele se queixa da solidão.
em ré menor. Está com quarenta Esse grande e bom homem, que
anos. acredita na amizade, esse perpétuo obra Sete missas, cinco salmos (den- o órgão de Bruckner em
1865 Bruckner assiste em Munique noivo que volta a se apaixonar co tre os quais o magnífico Salmo 150), São Floriano.
à estréia de Tristão e Isolda. Bülow mo um adolescente, vai morrer qua um grandioso TeDeum, cantatas pa
apresenta-o a Wagner. se sozinho. Suas exéquias serão ce ra coro misto, coros profanos para
1868 Instalação definitiva em Vie lebradas na Karlkirche, ao som do vozes masculinas. Onze sinfonias
na, onde é nomeado professor do adágio da sua Sétima sinfonia. É (sendo duas obras de juventude, sem
Conservatório e organista da corte inumado sob o órgão de São Flo número), um quinteto de cordas, pe
(1868-1891). Alcança em toda par riano. ças para órgão e para piano.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 136 137 A HERANÇA ROMÂNTICA
A filiação Schubert -» Bruckner -» Mahler -* Alban Berg Sublime, exigente, atormentado pelos pressentimentos, tra
atesta a realidade de uma escola austríaca que se distingue menos duz em neurose obsessiva o conflito que o opõe a seu tempo, a
por características nacionais (notáveis, porém, nos três primeiros) todos os tempos. O humor negro é a expressão familiar dos senti
do que por uma extrema sensibilidade lírica e pela independência mentos contraditórios que o habitam. Freud, que Mahler consul
em relação aos sistemas estabelecidos. A influência wagneriana ta no fim da vida, dá uma explicação interessante dessas contra
foi mais profunda na Áustria do que na Alemanha, por corres dições. Em criança, o músico assiste a uma cena violentíssima en
ponder a uma necessidade de escapar das estruturas clássicas; ela tre seus pais; foge para a rua e dá com um realejo que toca O
fez a escola austríaca enveredar pelo caminho do expressionismo du Heber Augustin.
e da famosa "emancipação da dissonância", cujas conseqüências
históricas Schönberg assumirá e cujas premissas já encontramos
em Schubert.
À morte' de Wagner, a Alemanha está padecendo de seus
sucessos econômicos e militares. A grande burguesia, sedenta de
arte alemã, faz de Bayreuth o Partenon da nação unificada. Mas A associação da tragédia com a alegria popular, explica Freud,
a recente unidade nacional, como as aquisições de toda revolu fica arraigada em seu psiquismo, a tal ponto que cada um desses
ção que se crê acabada, inspira para sua defesa uma mística da estados provoca invariavelmente o outro. De fato, em toda a sua
ordem. Wagner, o ídolo da nação, não é reconhecido como pro obra, temas de caráter popular criam uma atmosfera estranha
motor de uma revolução musical cosmopolita; ele representa um mente inquietante. O mesmo pode ser dito dos ecos de música mi
novo absoluto estético, uma alternativa ao classicismo. No en litar, associados sem dúvida aos perpétuos dramas familiares na
tanto, os músicos alemães pressentem o potencial subversivo da época em que os Mahler moravam em Jihlava, na Morávia, não
arte wagneriana e a impossibilidade de aliar-se a ela sem progre longe do quartel austríaco. Nos grandiosos psicodramas que as
dir perigosamente na direção que ela impõe, e é numa ordem sinfonias de Mahler parecem ser, as fanfarras e as marchas evo
clássica que preferem buscar sua identidade nacional. " A Ale cam a morte; as valsas e os ländler, a loucura.
manha de hoje", escreve Debussy, "debate-se numa atmosfera Na época de sua formação musical, seus primeiros grandes
tetralógica em que uns caminham cegados pelos últimos reflexos modelos foram Wagner, de quem Hugo Wolf, colega de Mahler
desse pôr-do-sol que é Wagner; em que outros se agarram à fór no Conservatório de Viena, é prosélito intransigente, e sobretudo
mula neobeethoveniana que Brahms deixou." Em outras pala Bruckner, a quem dedica uma afetuosa admiração. Não foi seu
vras, não haveria saída para uma alternativa de estéticas cadu aluno; mas a compreensão mútua entre ambos designa Mahler co
cas... Em compensação, a Áustria é um foco de fermentação ar mo seu discípulo espiritual. "Estimo, pois, ser mais habilitado do
tística. Não sendo afetada por nenhuma psicose nacionalista, ela que qualquer outro a me considerar seu aluno, o que sempre fa
pode deixar-se seduzir por correntes cosmopolitas. Viena, centro rei com um sentimento de profunda gratidão." A influência de
geográfico da Europa, também é um ponto de convergência das Bruckner é fundamental. Percebemo-la nas arquiteturas grandio
tendências musicais. sas, numa concepção não formalista do desenvolvimento que po
deria ser qualifiçado de psicológico, na expressão de uma profunda
Mahler Nascido de uma família de judeus alemães estabeleci espiritualidade, católica em Bruckner, panteísta em Mahler (que
dos na Boêmia, mais tarde na Morávia, Gustav Mahler é um des recorre inclusive ao estilo do coral, no final da Quinta sinfonia
ses perpétuos exilados para quem Viena foi a pátria adotiva. "Sou e no último dos cinco Rückert-Lieder).
três vezes apátrida", dizia ele. "Como natural da Boêmia, na Áus Mas Mahler é, antes de mais nada, um dos maiores regentes
tria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo in da história, e essa carreira tem uma influência muito profunda
teiro. Por toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado!" em sua atividade criadora. Suas interpretações de Don Giovanni,
A ambigüidade de sua personalidade, dilacerada pelos conflitos de Fidelio, da Valquíria são consideradas modelos insuperáveis.
psicológicos, reflete-se em sua carreira e em sua obra. A fatalida Regeu quase toda a obra de Wagner, mas também Gluck (Iphige
de que o priva de raízes também parece privá-lo de idade: ele está nie en Aulide), Mozart, Beethoven, Weber, Verdi, Puccini, Bizet
dividido entre o século X I X e o século X X , entre Bruckner e (Carmen e Djamileh), Tchaikovsky, Smetana, Offenbach (Con
Schönberg. tos de Hoffmann), e até a Louise de Charpentier; a censura im-
Cenários de A . Roller para Iphigenie en Aulide (ato I I I ) . . . ... e para Lohengrin (ato Γ).
perial proíbe a representação de Salomé de Strauss, que ele se pro te criticado em sua obra. Talvez também explique por que essa
punha reger. Homem de teatro consumado, faz da Ópera de Vie obra estranha e ambígua pôde ser o elo fundamental entre Wag
na uma das primeiras da Europa, renovando audaciosamente a ner e Bruckner, de um lado, Schönberg, Berg e Webern, de ou
encenação com a colaboração do grande cenógrafo Alfred Roller tro. Schönberg e seus discípulos atestaram muitas vezes a influência
(cenários alusivos, estilizados, que fugiam do realismo de pape que a música de Mahler exerceu sobre eles. Os Kindertotenlieder,
lão, importância da iluminação e das cores, jogo cênico eficaz e Das Lied von der Erde e a Nona sinfonia, suas obras-primas, per
tencem plenamente ao século XX, de que caucionam uma das ten
rigoroso...). Suas interpretações das sinfonias de Bruckner, daTVo-
dências dominantes, a da escola vienense.
na de Beethoven e de suas próprias obras também são exempla
res, como atesta a tradição transmitida por Bruno Walter, que
foi assistente de Mahler de 1894 a 1907. Raramente um regente
deixou uma impressão tão forte e tão duradoura.
Ora, um compositor necessita de silêncio e de paz para
absorver-se inteiramente em suas próprias concepções estéticas.
É sempre difícil edificar uma obra original quando se está imerso
na música dos outros, o que explica a raridade dos músicos que Die Sonne scheLdet htnteráímGe.bir- _ge. Inat.le Ta" „ Itr steigtdír A-fcend nieder
sejam tão grandes criadores quanto intérpretes. Mahler era uma
dessas exceções. No entanto, o contato permanente e profundo
com uma grande variedade de estilos (ele estudava as partituras Mahler, Das Lied von der Erde:
com extremo cuidado) explica o ecletismo que foi freqüentemen- "Der Abschied".
GUSTAV M A H L E R dor). Renova a interpretação das Zemlinsky (cunhado de Schön Amsterdã, Paris, Roma... Em
Kalisté (Morávia), 7 de julho de 1860 obras do repertório, de Gluck e Mo berg). Terão duas filhas, Maria e
1909, deixa o Metropolitan (assumi
Viena, 18 de maio de 1911
zart a Verdi e Wagner, monta pela Anna; a mais velha morrerá de do por Toscamni) a fim de se con
primeira vez em Viena Dalibor de difteria em 1907 (seis anos depois
sagrar a uma orquestra que formou
Füho de Bernhard Mahler (1827¬ Smetana, Ievgueni Onieguin de da composição dos Kindertoten- com o auxílio de um comitê de se
1889), estalajadeiro, e de Maria Tchaikovsky, Djamileh de Bizet, lieder). nhoras.
Hermann (1837-1889), entre os lança-se numa brilhante carreira de1903 Primeira viagem à Holanda, 1910 Estréia da Oitava sinfonia em
quais reina um violento desentendi encenador. Os espetáculos que a convite de Mengelberg, país que Munique, em presença de Thomas
mento. Gustav é o segundo de uma monta com o concurso do pintor Mahler considerará sua segunda pá Mann, Strauss, Schönberg e Bru
família de doze filhos (dos quais seis Alfred Roller vão tornar-se mode tria e que sempre lhe permanecerá no Walter: é uma apoteose. Via
morrem em tema idade). los históricos: o Ring, Don Giovanfiel. Meio das relações com Schön gem à Holanda; consulta Freud em
ni, Figaro, Iphigenie en Aulide... berg. Leyde.
1869-1875 Estudos gerais e musi Mahler também é regente da Or 1907-1911 Depois de ter pedido de 1911 No fim de uma temporada
cais em Jihlava. questra Filarmônica, com a qual missão de suas funções em Viena, atribulada nos Estados Unidos,
1875-1879 Aluno do Conservató executa a primeira audição da Sex- onde Weingartner lhe sucede, Mah- Mahler é acometido de uma angi
rio de Viena, onde tem como cole na infecciosa e seu coração está
ga Hugo Wolf, wagneriano mili muito cansado. No caminho de vol
tante. Na Universidade, estuda f i ta, é tratado em Paris. Morre alguns
losofia e história. Apego filial a dias depois de sua chegada a Vie
Bruckner. na. É enterrado no cemitério de
1880-1885 Ocupa cargos de Kapell Grinzing, ao lado da filha.
meister, sucessivamente em Hall,
Liubliana, Olomuc (onde monta obra Nove sinfonias e vastos esbo
s
Carmen, em 1883) e Kassel. A par ços de uma décima (as sinfonias n°
tir de então, a maior parte de seu 2, 3, 4, 8 com intervenção mais ou
tempo (salvo o verão, reservado à menos importante da voz). Das
composição) é consagrada a uma Lied von der Erde (contralto, tenor
prestigiosa carreira de regente. e orquestra). Varios ciclos de Heder,
1885- 1886 Maestro da Ópera de a maioria com acompanhamento de
Praga, onde rege Gluck, Mozart, orquestra.
Beethoven, Wagner.
= *f Ή '' X U f T» * « L ^ l l -JeSl
1886- 1888 Segundo maestro em
Leipzig (o primeiro é Nikisch). É
encarregado de completar a ópera
inacabada de Weber Die drei Pin
tos e reger sua estréia. Termina sua
Primeira sinfonia. contratado como ensaiador, depois Gustav
ta sinfonia de Bruckner e de várias 1er faz uma brilhante carreira nos Mahler, Esboços para o primeiro
1888-1891 Diretor da Ópera de Bu- maestro dos coros e, enfim, segun-
dapeste, que reorganiza completa- do maestro da orquestra. Concer
de suas próprias sinfonias. Bruno Estados Unidos. No Metropolitan movimento da Décima sinfonia.
Walter torna-se segundo maestro Opera, dirige representações memo
niente. Uma apresentação de Don tos de Mahler em Londres, Wei-
em 1901. ráveis de Don Giovanni, Fidelio,
Giovanni regida por Mahler susci- mar, Berlim (Segunda sinfonia). É
ta o entusiasmo de Brahms. Estréia batizado. 1900 Cinco concertos em Paris, por Tristão e Isolda e apresenta pela pri
da Primeira sinfonia. 1897-1907 Kapellmeister e diretor ocasião da Exposição universal. meira vez em Nova York A noiva
1891-1897 Primeiro maestro da artístico da Ópera de Viena, com 1902 Mahler casa-se com Alma vendida e A dama de espadas. To
Ópera de Hamburgo. Em 1894, o um poder quase absoluto (em prin- Schindler (1879-1964), bela, culta, da primavera e todo verão, está na
jovem Bruno Walter (18 anos) é cípio, depende apenas do impera- artista, aluna de composição de Europa, regendo em Viena, Praga,
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 142 143 A HERANÇA ROMÂNTICA
Como a tendência antagônica tinha sua fonte em Pelléas, (1863), Debussy (1884) foram premiados; e, à parte Maurice Ra
Mahler não conseguia compreender o gênio de Debussy . Ao 39
vel, não conhecemos muitos gênios reprovados. A principal críti
contrário da maioria dos músicos mortos prematuramente e que ca que se pode fazer aos sucessivos júris é por não utilizarem com
dão a impressão de terem completado sua obra, ele estava, em a devida freqüência o direito de não conceder o prêmio. Mas é
1911, num momento de mudança em sua carreira, tendo decidi preciso ser candidato para ser .premiado. Ora, o prêmio de Ro
do consagrar-se inteiramente à composição. O adágio, único mo ma, desacreditado por sua ineficácia, deixa indiferentes os jovens
vimento acabado da Décima sinfonia, indica-nos com que espíri músicos que, em torno de Franck, Saint-Saëns e Fauré, formam
to de abertura esse herdeiro dos românticos encarava o futuro. a elite da música francesa.
Hugo Wolf (1860-1903), exato contemporâneo de Mahler, é Quando, em 1872, César Franck é nomeado para a classe
um gênio trágico, atormentado pela loucura e pela morte. Suas ten de órgão do Conservatório, Berlioz morrera fazia três anos. Os
dências psicóticas levaram ao fracasso tudo o que empreendeu. No mais célebres compositores franceses vivos são Charles Gounod
entanto, a partir de 1888, uma profusão de Heder admiráveis bro (1818-1893) e Camille Saint-Saëns (1835-1921). O primeiro já
taram subitamente da sua pena (mais de trezentos); entusiasmado figura como ancião; suas óperas, que continuam a triunfar, agora
com seu próprio gênio, parecia não se controlar, comparava-se a são clássicas, e logo ele se consagrará inteiramente à música re
Schubert e a Schumann. Sua óperaDer Corregidor é uma magnífi ligiosa. O segundo é o único grande músico moderno, o fre
ca coleção de lieder, mas sem interesse dramático. qüentador de Weimar, o guia da jovem geração, o virtuose adu
lado. "Enquanto ele fazia tentativas contínuas para classificar-
A escola francesa Se existe uma escola francesa, é a um obscu se entre os compositores, eu acabei perdendo-o totalmente de
ro músico estrangeiro que a devemos: o organista César Franck vista" (Wagner, Memórias). Saint-Saëns é fabulosamente bem
(1822-1890),flamengopor parte de pai, alemão por parte de mãe, dotado, interessa-se por tudo e cultiva em sua música um ecle
e que só teve seu primeiro sucesso como compositor aos sessenta tismo que viraria uma confusão se seu lirismo não fosse domi
e oito anos, no ano da sua morte (quarteto de cordas). Berlioz nado por um extremo rigor formal. Admirador, depois adversá
nada tinha de um chefe de escola e, embora tenha sido o inicia rio de Wagner, contribuiu para afastar a música francesa do
dor do canto francês moderno, seus compatriotas não reconhece wagnerismo; ensinando a clareza, a lógica, a perfeição da escri
ram seu gênio. " É preciso ter uma bandeira tricolor nos olhos", ta, ele está na origem de uma renovação que a filiação Fauré-
escrevia em 1848, "para não ver que a música morreu agora na
Ravel ilustra. O século X X fará dele o símbolo do academismo
França [...] Nos últimos sete anos, vivo apenas do que minhas
em música, porque se esquecerá que ele era contemporâneo de
obras e meus concertos me renderam no estrangeiro." É verdade
Brahms: sua carreira excepcionalmente longa (foi uma criança
que as instituições musicais são medíocres ou esclerosadas. " H á
prodígio e morreu aos oitenta e sete anos) dá-lhe o privilégio
um só teatro lírico em Paris", acrescenta Berlioz, "a Ópera, que
40 de ter conhecido todos os grandes românticos e morrido depois
é dirigida por um cretino e está fechada para m i m " . . .
de Debussy. Saint-Saëns foi assistente de Berlioz (quando este
A atribuição do grande prêmio de Roma, instituído em 1803,
montou Armide e Alceste de Gluck) e testemunha da carreira
deveria ter sido o poderoso instrumento de promoção de uma es
de Debussy, Ravel e Stravinsky. Sua bela Sinfonia com órgão
cola nacional. Mas, ao voltarem da Vila Médicis, os músicos lau
(1886) acaso é mais acadêmica que sua contemporânea, a Quar
reados encontram-se sós num mundo indiferente ou hostil, sem
apoio e sem perspectivas. Todavia, a ironia habitual sobre a me ta de Brahms?
diocridade dos laureados é injusta. Ao contrário do que se repe Edouard Lalo, mais velho que ele (1823-1892), excelente sin
te, a maioria dos grandes compositores que se apresentaram para fonista, criador do balé francês moderno {Namouna, sua obra-
o concurso do Instituto recebeu o primeiro grande prêmio. No prima), é um independente menosprezado. Apenas seu Concerto
século XIX, Berlioz (1830), Gounod (1839), Bizet (1857), Massenet para violino e a Sinfonia espanhola têm sucesso; mas é Sarasate,
seu intérprete, que o público aplaude.
39. Reciprocamente, Debussy não conseguia suportar a música de Mahler.
Quando este regeu sua Segunda sinfonia em Paris, em 1910, Debussy abandonou Franck Numa França musical dominada pelo estrangeiro, o "ve
ostensivamente a sala no meio do segundo movimento.
lho Franck" vai tornar-se, sem querer, um chefe de escola. Ao
40. Carta escrita de Londres a seu amigo, o arquiteto Duc. O "cretino" em
questão é o arquiteto Edmond Duponchel, bom administrador, mas musicalmen mesmo tempo que inicia seus alunos no gênio de Bach e lhes ensi
te incompetente. na a improvisar, acaba transformando sua classe de órgão numa
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 144
Variações sinfônicas.
Mas uma escola deveria ter uma estética, e Franck não im
põe nenhuma. Em compensação, a derrota de 1871 estimula um
nacionalismo chauvinista que mobiliza as forças criadoras. Cum
pre ressuscitar a música francesa; e já que a ópera está corrompi
da, já que o prêmio de Roma não é uma promoção, mas um di
ploma de academismo, já que as associações sinfônicas (a do Con
servatório e a de Pasdeloup no Cirque d'Hiver) só se interessam
pelo repertório clássico e pelos românticos estrangeiros, um pe
queno grupo de independentes, que obteve a participação de
Franck e Saint-Saëns, decide fundar uma associação para a pro
moção da música francesa moderna: a Société Nationale de Mu
sique, cuja divisa é "Ars gallica". Pouco a pouco, todos os ami
gos e discípulos de Franck e Saint-Saëns unem-se aos fundado
res. A escola francesa afirma seu caráter nacional, mas continua
não tendo uma estética definida. O franckismo, cujos partidários
praticamente controlam a Société Nationale, é muito mais uma
41
ética e uma fidelidade . Ele é o fermento na massa: suscitando,
uma renovação musical, uma confiança na vitalidade da música
francesa, cria o clima de descoberta artística de que Debussy e
Ravel se beneficiarão...
O ruído feito em torno do franckismo não pode ser imputa
do ao mestre que inspirou um culto tão fervoroso e, por vezes,
tão agressivo (com Saint-Saëns sobretudo e, mais tarde, com De
bussy). O papel histórico de Franck foi reconhecer e incentivar
a personalidade dos jovens músicos, inspirar-lhes o respeito pela
arte de cada um, propiciar suas pesquisas, muitas vezes ouvi-los.
Foi bem a contragosto que esse homem sério e modesto foi pro
movido a chefe de escola; como disse Charles Bordes (fundador
da Schola cantorum e dos Cantores de Saint-Gervais), "o velho
Franck foi formado por seus alunos". Não pensamos mais em
Bruckner, mas em Messiaen, cuja excepcional inteligência peda
gógica permitiu que se estabelecesse entre professor e alunos uma
dupla corrente de influências fecundas. Mas, felizmente, não ha
verá religião "messiaemsta" para completar o paralelo.
de equilíbrio, é muito mais livre e original que a dos franckistas. No entanto, se todo o mundo rende homenagem a Fauré, seus
Com Duparc, é o criador de um tipo de melodia francesa insepará intérpretes são hoje raros e seu público extremamente Hmitado.
vel da cultura nacional. Mas, como Saint-Saëns, viveu o bastante Toda a escola francesa do século X I X está na mesma situação.
para ser confrontado a seus discípulos — cujas conquistas ele não Houve um desinteresse global por ela, em reação ao chauvinismo
faz suas — na realização última de uma obra que tende à suprema e ao terrorismo estético dos discípulos de Vincent d'Indy, mas tam
purificação de seu próprio estilo. Permanece, no entanto, muito sen
bém, talvez, porque seus fundamentos culturais são incertos e por
sível às pesquisas dos jovens músicos, que admira e encoraja com
que não se encontrou uma personalidade forte o bastante para
uma notável compreensão do futuro da música francesa. Sua pe
dagogia é um ato de amor, e seus alunos (Ravel, Schmitt, Enesco, propor uma estética capaz de substituir o wagnerismo. Qualquer
Casella, Koechün, Roger-Ducasse...) conservarão a lembrança de que seja a importância histórica da renovação de que foram pro
sua bondade radiante, de sua intuição, de sua abertura de espírito. motores, nenhum músico francês desde Berlioz teve o gênio e a
influência internacional que terão Debussy e Ravel.
a essa tradição coral e ao sucesso do famoso Three Choirs Festi sabrochar, por volta de 1900, de uma escola espanhola influen
42
val . A execução em Gloucester, em 1880, de uma grande obra ciada pelas novas correntes musicais européias. Desde o início do
coral de Hubert Parry (1848-1918), Prometheus unbound, basea século XVIII, os compositores espanhóis escreviam música estran
da no drama de Shelley, seria o ponto de partida da famosa reno- ¡ geira. A própria zarzuela tinha um sotaque italiano ou francês,
vação. Os ingleses atribuem a esse afresco wagneriano-vitoriano apesar de seu caráter popular; no século X I X , ela é de todo su
sem originalidade uma importancia histórica excessiva; ele fome- j plantada por um tipo de ópera rossiniana, até renascer gloriosa
ce apenas o exemplo de um tipo de oratorio profano, que será mente por volta de 1850. É então que Francisco Asenjo-Barbieri
até os dias de hoje uma especialidade dos músicos britânicos e ins- ¡ (1822-1894) apresenta as primeiras zarzuelas grandes em três atos,
pirará algumas obras-primas meio século depois, em particular inaugurando a grande época do gênero . 43
As escolas italiana, francesa e austro-alemã produziram gran a campanha napoleónica propiciou o notável desabrochar da l i
des músicos e distinguiram-se por estilos particulares quase sem teratura russa (Puchkin, Lermontov, Turgueniev), enquanto o con
interrupção desde a Idade Média. Elas exerceram com freqüên servadorismo autoritário de Nicolau I fazia fermentar as idéias
cia, sobretudo a italiana, uma dominação sobre a música dos ou liberais numa grande parte da intelectualidade, convertida à filo
tros países. Suas características específicas parecem pouco acen sofia de Hegel e ao socialismo utópico de Fourier e Proudhon.
tuadas, porque pertencem a um patrimônio europeu e são vela Foi num clima intelectual pré-revolucionário que se desenvolveu
das pelo jogo das influências recíprocas. Os músicos franceses, 45
a escola musical russa . Como disse anteriormente, seu nasci
alemães e italianos não têm o sentimento de defender uma cultu mento é assinalado pela criação de uma ópera nacional, que per
ra ameaçada; se exprimem seu patriotismo por ocasião de acon manecerá sua principal riqueza. Se Glinka e Dargomyjsky apare
tecimentos poh'ticos ou culturais, fazem-no com um sentimento cem como pioneiros e chefes de escola, é muito mais a um grupo
de superioridade. de jovens autodidatas, todos amadores a princípio, que a música
As escolas espanhola e inglesa também existiram desde a Idade russa deve seu prestígio e sua originalidade.
Média. Mas sofreram um longo eclipse, sob a dominação cultu Um jovem estudante de matemática, Mily Balakirev (1837¬
ral do estrangeiro. Seu renascimento é uma libertação, baseada 1910), descobre ter uma vocação musical após encontrar-se com
nos traços mais característicos do patrimônio nacional, ou, pelo Glinka em 1855. Decide empreender uma carreira de pianista (é
menos, naqueles que seus músicos julgaram sê-lo. Esses traços na extremamente bem dotado) e freqüenta o salão de Dargomyjsky,
cionais são particularmente aparentes na música espanhola: ela onde conhece dois jovens oficiais, bons músicos amadores: Cé
utiliza as escalas e os ritmos de um folclore fortemente singulari sar Cui (1835-1918), que será general, e Modest Mussorgsky, que
zado que resistiu com particular sucesso à influência corruptora logo escapará da boa sociedade e da Guarda Imperial para onde
da igreja e da música erudita. sua educação cuidadosa o desviara. Em 1861, um aluno da Es
Nas outras nações européias, a história da música foi depen cola Naval, Nicolai Rimsky-Korsakov, desejoso de completar sua
dente do estrangeiro. Não houve, antes do século X I X , escola es formação musical sumária, dirige-se a Balakirev, que decidiu
lava ou escandinava estilísticamente original. A música polonesa abrir, no ano seguinte, uma escola de música independente e gra
da Renascença é flamenga ou italiana; o admirável alaudista hún tuita. Enfim, Alexandre Borodin (1833-1887), assistente de quí
garo Bakfark se insere na tradição francesa, a música instrumen mica da Academia de Medicina e amigo de Mussorgsky, une-se
tal da Boêmia nos séculos X V I I e X V I I I pertence à grande cor ao grupo e também completa sua formação de amador com
rente européia de origem italiana. O dinamarquês Buxtehude é Balakirev.
um mestre da escola de órgão alemã, e o sueco Roman formou Os cinco jovens músicos trabalham sem interrupção e logo
seu estilo nos meios cosmopolitas de Londres. Em toda parte, a levam a revolução aos meios musicais conservadores de São Pe
ópera é italiana e em toda parte encontram-se na corte os melho tersburgo. O conjunto da crítica lhes será hostil, assim como as
res músicos estrangeiros, enquanto os autóctones vão instruir-se três principais instituições oficiais: a direção dos teatros imperiais,
e procurar fortuna no exterior. depois o Conservatório e a Sociedade de Música Russa, fundados
Um país como a Boêmia, por sua situação geográfica, suas por Anton Rubinstein (1829-1894), notável pianista e bom com
tradições universitárias, sua luteria, é um foco de intercâmbios positor vinculado à escola alemã. Talvez nunca se tivesse ouvido
musicais fecundos entre as escolas veneziana, vienense e alemã; falar do pequeno grupo marginal e inexperiente, não fosse o in
é um estímulo para a criação e um convite a participar do concer cansável dinamismo de Balakirev e a influência do célebre crítico
to europeu seguindo a corrente dominante. Mas certos países ex russo da época, Vladimir Stassov, que o batiza de "Grupo dos Cin
cêntricos nunca sequer produziram música erudita. Sem relação co" e o impõe pela força à opinião pública. A revelação de Ber
com uma música popular de tradição oral e uma antiga música lioz, que foi reger suas obras em São Petersburgo em 1867, será
litúrgica estritamente codificada, fica ao encargo de composito igualmente decisiva. Recebido pelos "Jovens Turcos" como um
res estrangeiros a música na corte.
45. Terá a revolução estética realizada pela escola russa sido beneficiada pelo
A escola russa. Os Cinco Essa situação é a da Rússia, onde a
conservadorismo social (que essa revolução exige, segundo Sartre), ou pelas idéias
formação de uma escola nacional no século X I X é particularmente subversivas de uma minoria ativa, cujo idealismo é fortalecido pela censura? A
significativa. O despertar dos sentimentos nacionalistas logo após dificuldade está em definir objetivamente uma revolução estética.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 158
Allegro motto
S 1 1
if £^ if i f
L-j -U"—à 1
Quanto à célebre Noite no Monte Calvo, é uma partitura escrita Mussorgsky, Quadros
por Rimsky, com grande talento por sinal, a partir de diferentes de uma exposição
fragmentos de obras de seu amigo. Essa obra tem muito pouco (A choupana de Baba Yaga).
"Mussorgsky é uma natureza baixa, que gosta do grosseiro, do essa popularidade comprometedora valeu a Tchaikovsky o des
brutal e do feio... Apesar de todos os horrores de que é capaz, prezo dos conhecedores e, depois, por afetação inversa, uma ex
ele fala uma língua nova. Não é uma bela língua, mas é virgem." cessiva admiração. A sinceridade de sua obra torna-a cativante
Tchaikovsky, cuja educação musical foi confiada a Rubinstein, e não deveria expô-lo às flutuações da opinião, se se conhecessem
representa uma arte bastante ocidentalizada, se comparada com melhor seus diferentes aspectos, principalmente os que as seis sin
a dos Cinco. No entanto, ele é reivindicado pelos russos de nosso fonias ilustram.
tempo (irritados sem dúvida pela exploração do exotismo eslavo) Fora da Rússia, a influência de Tchaikovsky não é con
como o mais russo dos compositores. Claro, a mescla de fatalis siderável, apesar de suas turnês triunfais. Em compensação,
mo e sentimentalismo de que procura libertar-se em sua obra faz quando vai a Paris em 1889 para dar dois concertos de música
dele uma perfeita encarnação da "alma eslava"; é verdade tam russa no âmbito da Exposição Universal, Rimsky-Korsakov sus
bém que se inspira no folclore (finais dos concertos e da Quarta cita o entusiasmo dos jovens músicos franceses, que têm a re
sinfonia, por exemplo) sem se crer obrigado, como Rimsky, a be- velação de uma nova maneira de conceber a música. Debussy
molizar as sensíveis para ficar "russo antigo". Mas assimila bem está com vinte e nove anos e acaba de musicar seis Ariettes ou
os clássicos (tem um culto por Mozart), e sua estética se inscreve bliées de Verlaine. Ravel está com catorze e ingressa no Conser
sem contradição maior na corrente musical européia do século vatório.
X I X . É russo como um personagem de Tchékhov.
PlOTR I L Y I T C H Paris e a Bayreuth. Apaixona-se de outubro. Nunca sua saúde fí
TCHAIKOVSKY pela Carmen. Amizade com Saint- sica e moral esteve tão boa quan
Kamsko-Votkinsk (Viaika), 7 de maio de 1840 Saëns. do é levado pela cólera em cinco
São Petersburgo, 6 de novembro de 1893
P 1877 Aterrorizado por uma ten dias.
Altos i hh I Π ιτι ι ι ι ι ι Seu pai, inspetor das minas, e sua
dência homossexual cuidadosamen
te dissimulada, casa com uma alu obra Dez óperas, dentre as quais
PS mãe, de velha nobreza francesa pro na do Conservatório, A . Miliuko- Ievgueni Onieguin (Moscou, 1879)
testante, são indiferentes à música. va, de quem foge, à beira do sui e A dama de espadas (São Peters
Cors Tchaikovsky aprende piano, mas é
Vceltes
ce.
cídio, após três meses de união burgo, 1890), três balés (Lago dos
destinado à magistratura. cisnes, A bela adormecida, Ouebra-
morganática.
1877-1890 Ligação epistolar com nozes). Seis sinfonias, várias aber
1850-1859 Bons estudos em São
Nadejda von Meek (1831-1894), turas sinfônicas, três concertos pa
Petersburgo. É um menino inteli
viúva rica e inteligente, que conse ra piano, um concerto para violino,
gente, frágil e hipersensível.
guiu com extremo tato tornar-se sua diversas composições para violino
1859-1863 Funcionário de primei
ti confidente e a mecenas do compo e orquestra e para violoncelo e or
y ""?if * r ι - .. " ra classe do ministério da Justiça.
sitor. Eles combinaram nunca pro questra. Três quartetos de cordas,
Continua como diletante seus estu
curar encontrar-se. um trio com piano, um sexteto
dos musicais.
φ - (Lembranças de Florença), nume
1887 Início de uma brilhante car
1863-1866 Tendo deixado o servi rosas peças para piano, mais de cem
'
ço público, torna-se aluno de An reira de regente, que lhe permite fa
Cr? melodias.
zer suas obras serem ouvidas em to
ton Rubinstein no Conservatório de
São Petersburgo. Viagens à Alema da a Europa.
Tchaikovsky, Sexta sinfonia. nha, Bélgica e França, para onde 1891 Turnê triunfal aos Estados
voltará com freqüência. Unidos. Participa da inauguração
\ 1866 Nomeado professor de har do Carnegie Hall.
Ao contrário de seus maiores compatriotas músicos, é antes monia do novo Conservatório de 1893 Nova turnê triunfal: Alema
de mais nada um sinfonista (a Quarta e a Sexta sinfonias e Ro Moscou. nha, Suíça, França, Bélgica, In
meu e Julieta são suas obras-primas). A popularidade de seu Con 1874-1877 Compõe o primeiro con glaterra. Trabalha com entusiasmo
certo n? 1 para piano e orquestra (em detrimento do segundo, mais certo para piano, O lago dos cis na Sexta sinfonia ("Patética"), que
rico e mais original, porém) e de sua música de balé, em que a nes e a Quarta sinfonia. Viagens a rege em São Petersburgo em 16
Tchaikovsky. ênfase é dada ao sentimentalismo com um mau gosto aliciador,
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 164 165 A HERANÇA ROMÂNTICA
A escola tcheca Após Erkel Ferenc e Liszt Ferenc, depois de século. Esse grande músico é a glória da Morávia, onde a cultura
Fryderyk Chopin e Stanislaw Moniuszko, as escolas húngara e po foi por muito tempo sufocada pela dominação estrangeira. Seu
lonesa passam por um ecüpse até a renovação dos estilos nacio mestre, Pavel KfízTcovsky (1820-1885), frade agostinho de Brno,
nais no século X X , sob o impulso de Bartók, Kodály e Enesco. pode ser considerado o fundador de uma escola morávia; suas ad
Já a escola tcheca foi continuamente fecunda até nossos dias. O miráveis composições corais, inspiradas no rico folclore do país,
gênio de Smetana, criador da ópera tcheca e símbolo da indepen merecem uma ampla difusão.
dência nacional, nunca foi tão grande quanto em A noiva vendi
da, mas permanece excelente na música instrumental: o ciclo de
seis poemas sinfônicos Ma Vlast ("Minha Pátria") e o primeiro ANTONIN D V O R A K 1891- 1901 Professor de composi
quarteto em mi menor são obras-primas (ver p. 122). Nelahozeves ( B o ê m i a ) , S de setembro de 184i ção no Conservatório de Praga
Praga, 1? de maio de 1904
(com uma interrupção de três anos
passados nos Estados Unidos).
e/o/ce Seu pai destinava-o a suceder-lhe 1892- 1895 Diretor do Conservató
na hotelaria e no açougue. Mas ele rio de Nova York. Sinfonia "do
estudava órgão com o mestre-es Novo Mundo".
cola da aldeia. Teve grande difi 1901-1904 Diretor do Conservató
culdade para fazer seus pais re rio de Praga.
conhecerem seus dons e sua voca
ção e para poder prosseguir seus
obra Dez óperas, dentre as quais
estudos musicais na excelente es
Jakobin (1889), Cert a Káéa ("O
cola de organistas de Praga (1857¬
diabo e Catarina") (1899), Rusal-
1859).
ka (1901). Várias grandes obras pa
ra coro e orquestra. Nove sinfo
1859-1862 Violista de uma peque nias, duas séries de Danças esla
na orquestra de segunda ordem. vas, poemas sinfônicos, suítes,
Tentativas de composição. aberturas, vários concertos (para
1862-1871 Violista ou violinista da piano, para violino, para violon
orquestra do novo teatro tcheco de celo). Doze quartetos de cordas,
Smetana, Ma Vlast: O Vltava. Praga (regência de Mayr, depois de cinco quintetos (dentre os quais,
Smetana). dois com piano), um sexteto, pe
1874-1878 É organista numa igre ças para violino e piano, numero
Dvorak, mais popular no exterior, não tem o gênio de Smeta ja de Praga. É a época em que seu sas peças para piano, uma centena
na. Mas é um grande músico, na tradição de Schubert e Brahms, estilo se forma, pela assimilação do de melodias e duos.
cujo ürismo se alimenta nas fontes da cultura popular tcheca. folclore: ritmos de polca, de skoc-
Fora as óperas já citadas, suas mais belas obras são o Réquiem, ná, de susedskâ, de furiant, ou da
o Stabat Mater e, sobretudo, a Sinfonia em mi menor, dita "i/o dumka ucraniana. As Danças es
Novo Mundo' '. Essa obra extraordinariamente célebre baseia-se lavas (primeira coletânea: 1878) es
em melodias de um folclore imaginário, compostas por Dvorak tão na origem da sua grande po
no estilo nacional de seu país (com exceção do negro spiritual pularidade.
citado no segundo movimento); é o testemunho de uma profun 1884-1891 Numerosas viagens à
Inglaterra: estréia do oratório San
da assimilação das características específicas de um folclore, co
ta Ludmila no festival de Leeds
mo a de que Janácek e, mais tarde, Bartók darão os mais no
(1886) e do Réquiem em Birming
táveis exemplos. ham (1891). Viagens à Alemanha,
O altíssimo nível da escola tcheca se mantém com Zdeñek a Viena (onde Brahms é um de seus
Fibich (1850-1900), cujas óperas, melodramas (voz falada e or mais ardorosos partidários), à
questra) e as três belas sinfonias são injustamente esquecidas, e Rússia. Antonin Dvorák.
sobretudo com LeoS Janácek, cuja obra genial pertence a nosso
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 166
características específicas das diferentes escolas, sejam elas basea elas favorecem a expressão de sentimentos pessoais e prestam-se
das ou não no folclore, em geral subsistirão, enquanto não se im- às novas experiências estéticas.
puserem fatores de universalidade: sistema dodecafônico, neoclas- A orquestra conserva sua fisionomia geral. Mas a ciência da
sicismo, técnicas eletracústicas, generalizações das teorias modais, escrita sinfônica se desenvolve consideravelmente sob o impulso
músicas aleatórias ou probabilistas, etc. de Beethoven e, sobretudo, de Berlioz. A instrumentação tornara-
se expressiva e não mais apenas decorativa desde Haydn e Mo
zart; na orquestra romântica, as misturas de timbres são indisso
ciáveis da idéia criadora, a invenção é concreta. O número de mú
U M BALANÇO DO SÉCULO sicos aumenta com o dos ouvintes, o que parece razoável; mas
o gosto do superlativo acentua esse crescimento. Uma observa
ROMÂNTICO ção escrita por Beethoven fala de sessenta e oito músicos para exe
i cutar a Oitava sinfonia, o que já dobra o efetivo de que dispu
As técnicas de composição não são modificadas tanto quanto se nham Haydn e Mozart para suas últimas sinfonias. Berlioz mobi
pensa no século X I X . Os grandes gêneros tradicionais subsistem: liza oitocentos cantores e uma orquestra de cento e noventa mú
sinfonia, sonata, concerto, quarteto... A forma sonata, caracte sicos para o seu Te Deuml As mudanças na composição da or
rística do primeiro movimento da sonata clássica, a variação, a questra não são consideráveis. As cordas são escritas em cinco
forma rondó continuam a ser estruturas fundamentais dos gran partes, em vez de quatro (os contrabaixos já nem sempre dobram
des gêneros instrumentais. Porém, desde Beethoven, os temas os violoncelos); o grupo dos sopros se enriquece com o piccolo,
tornam-se idéias que se enfrentam, os desenvolvimentos são am o contrafagote, a clarineta baixo, os trombones (utilizados excep
pliados e obedecem por vezes a uma dialética extramusical; o scher cionalmente no século XVIII), a tuba.
zo, que substituiu o minueto, adquire um caráter fantástico ou A feitura dos instrumentos de sopro melhora consideravel
até trágico, o final pode ser tão desenvolvido quanto o primeiro mente, graças a invenções que tiveram um papel decisivo nos
movimento (ou mais). progressos da orquestração. Assim, o trompete e a trompa são
Três gêneros são mais especificamente românticos: o poema munidos de um jogo de pistões que, modificando o comprimen
sinfônico, melhor chamado de "sinfonia programática" (Liszt), to do tubo, permite a execução de todos os graus da escala cro
o lied, as curtas peças piam'sticas de que Chopin e Schubert pro mática. Os instrumentos da família das "madeiras" são dotados
porcionaram os modelos perfeitos sob os títulos púdicos de Estu do complexo sistema de chaves, hastes e anéis que hoje conhece
do, Prelúdio, Improviso, etc. A sinfonia programática só consti mos. Esse sistema é invenção de um flautista alemão com talen
tui um enriquecimento porque o pretexto literário nela autoriza to para a mecânica; ele permite escolher em função de critérios
uma grande liberdade formal: não é, propriamente falando, uma científicos, sem levar em conta a conformação da mão, a quan
aquisição do século. O lied tem uma velha história, assim como tidade, a dimensão e a localização dos furos, a fim de produzir
47
46
a canção francesa : cantos de Minnesänger, Heder polifónicos da com igual qualidade todos os sons da escala cromática . A par
Renascença e, enfim, Kunstlieder monódicos que surgem no sé tir de então, todos os instrumentos de sopro podem tocar afina
culo X V I I . Heimich Albert, Keiser e Reichardt deram a esse lied dos, o que não acontecia no século X V I I I (Mozart queixou-se
seu caráter alemão. Schubert e Schumann dele fizeram um gêne disso).
ro de riqueza ilimitada, que se distingue em particular pela uni O instrumento solista por excelência é o piano, que rouba ao
dade de inspiração poética e musical e pela importância da parte violino sua supremacia. Encontramo-lo em todos os salões, pre
de piano, que não é mais um simples acompanhamento, mas um sidindo aos lazeres culturais da burguesia, ou transformando-se
elemento dramático ou sugestivo essencial. As peças breves para em altar da respeitabilidade, recoberto de xales de seda bordada.
piano são o gênero romântico por excelência. Não obedecendo
a regras particulares, não sendo adstritas a nenhuma forma fixa, 47. O sistema de Theobald Boehm (1794-1881) permite fechar simultanea
mente com nove dedos (o décimo sustenta o instrumento) os catorze furos distri
buídos por todo o corpo da flauta. Graças às "correspondências", pode-se aper
46. A palavra lied dá aos franceses um curioso complexo lingüístico, desde tar uma chave, seja diretamente, seja por intermédio de outra, se se desejar fe
que o costume confiscou a palavra chanson para uso exclusivo da música popu char dois furos com o mesmo dedo. Esse sistema foi aplicado à flauta e à clarine
lar. O francês não tem mais termo equivalente a lied para designar o conjunto ta. Para os instrumentos da familia do oboé, o francês Frédéric Triebe« (1813-1878)
das formas vocais breves. criou um sistema análogo.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 170 171 UM BALANÇO DO SÉCULO ROMÂNTICO
Assim, todos podem apreciar como conhecedores as façanhas dos Com algumas exceções (na época da Renascença), nunca hou
grandes virtuoses. A técnica do teclado dá um enorme salto, gra ve concepções estéticas ou técnicas de composição particulares
ças sobretudo a Beethoven, Chopin e Liszt. Nunca se enfatizará a uma música de entretenimento. A partir de cerca de 1830, uma
o bastante quanto a música para piano, de Liszt a Ravel, deve distinção cada vez mais nítida pode ser feita entre, de um lado,
aos geniais Estudos de Chopin: todas as dificuldades, mas tam uma música baseada na tradição, que adota formas nobres e
bém todos os recursos do instrumento são abordados da maneira uma escrita erudita e que não tem outra finalidade além de sua
mais ousada. própria realização e sua perenidade; de outro lado, uma música
A ópera ainda está muito apegada às suas convenções. O dra objeto, simples e alegre, cuja função de entretenimento é bem
ma musical expressionista de Wagner, Mussorgsky ou Puccini não acentuada e que busca a eficácia imediata, porque não está des
consegue vencer facilmente a tirania da grande ária. O teatro mu tinada a durar. É também no século X I X que começa a organi
sical permanece muito mais musical do que teatral, como exige zar-se a exploração comercial da música ligeira, baseada na prá
a autonomia fundamental da música. A música sacra inspira pouco tica dos "arranjos", que correspondem às múltiplas exigências
o gênio do século, ao qual falta espiritualidade. Ela é abordada de uma vasta difusão. Sempre nos faltará vocabulário para dis
de fora e num estilo profano, que pouco se distingue do da ópera tinguir os dois tipos de música, e suas definições nunca serão
ou da sinfonia. colocadas de maneira clara. A distinção estabelecida pela indús
Se as formas permanecem convencionais apesar de sua tria do disco entre "clássico" e "variedades" não coloca crité
48
liberdade , a harmonia clássica, em compensação, e os tipos me rios estéticos a priori, mas baseia-se nas condições de produção
lódicos que lhe correspondem sofrem uma mutação. A utilização e consumo.
expressiva, cada vez mais livre, das dissonâncias não resolvidas
e dos intervalos cromáticos anuncia a revolução pantonal do sé
culo X X . A consciência da subversão em curso é difusa: a "músi Musicología e crítica A musicología é uma conquista da época
ca do futuro" recusa as imposições do classicismo, mas ainda não romântica. Mas, como vimos acima, sua eficácia prática hmita-
sabe a que cadeias está destinada. se ainda ao século X V I I I . O público só descobrirá a música da
Idade Média, da Renascença e da época barroca no fim do sécu
Música ligeira Enquanto na segunda metade do século essa eman lo. Para a maioria, a história da música começa com Palestrina,
cipação da dissonância suscita no grande público as mesmas re chega a seu apogeu na obra clássica e termina com Wagner. É
sistências que toda ars nova, produz-se um fenômeno marginal desde essa época que os melómanos renunciam à música con
de conseqüências ainda imprevisíveis: o aparecimento de uma mú temporânea, demasiado "difícil", preferindo a música históri
sica ligeira escrita, desta vez em reação ao idealismo romântico ca. Essa tendência vai-se acentuar até meados do século X X ;
e ao mito da música erudita. Os mandarins e os profetas osten em seguida, observaremos uma renovação do interesse pela mú
tam certo desprezo por essa "música de entretenimento" que uti sica nova.
liza os meios da música séria. Mas ela é, geralmente, de boa qua O crítico musical é um intermediário útil entre os criadores
lidade: o talento dos Johann Strauss, pai (1804-1849) e filho (1825¬ e o público. Seu papel se define no século X I X , porque a música
1899), como o de Offenbach, é o exemplo a que se referem gran se torna uma coisa pública. Ele deveria ser, de certa forma, um
de quantidade de músicos mais ou menos obscuros. Ε quando se historiador do futuro; mas em geral não é. A imprensa cotidiana
sabe que as Danças húngaras de Brahms eram tocadas nas cerve começa a abrir colunas musicais, confiando-as amiúde a músi
jarias tem-se uma boa idéia do que era a música ligeira antes da cos medíocres, incapazes de exercer uma análise crítica séria. Com
sua exploração industrial. Ainda se trata, então, apenas de uma
raras exceções (Berlioz, Weber, Schumann, Hanslick, Th. Gau
música burguesa. A qualidade se deteriorará quando uma indús
tier, Baudelaire, Wolf, Β. Shaw...), os críticos do século X I X
tria burguesa resolver produzir uma música de grande consumo
são parciais, excessivos, surdos. No primeiro número da Gazette
com destino popular, segundo critérios que traem a pior demago
musicale de Paris (1834), Liszt sugere que seja imposto aos críti
gia comercial e o desprezo do consumidor.
cos um exame de seus conhecimentos e de seu talento. Pratica-se
muito a "crítica humorística", ou o ensaio literário, em vez da
48. A liberdade da forma é uma conquista do romantismo. Mas ela n ã o cons
análise — o que nem sempre é um inconveniente... A partir do
titui uma mutação, como a emancipação da dissonância. A liberdade se manifes
ta no interior das ordens formais herdadas, sem mudança radical. fim do século, a obsessão de "compreender" suscita uma enxur-
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 172
Mallarmé aumento da informação? Ou da pressa de uma civilização em de 1905 Salomé de Richard Strauss é apresentada em Dresden. Es
clínio?... Em música, como em muitos outros domínios, o século sa obra vulcânica, situada nos antípodas de Pelléas, faz tamanho
X X é uma era de contínua metamorfose. escândalo que será retirada do cartaz do Metropolitan e só pode
Alguns anos antes do início deste século, o Prélude à l'après- rá ser montada na Inglaterra em 1910.
midi d'un faune alcançava tamanho sucesso na Société Nationa 1906 Primeira audição de Miroirs de Ravel por Ricardo Viñes.
le, que teve de ser tocado duas vezes! Essa obra genial, apesar No caminho que Liszt indicara, é uma música de piano inaudita.
da sua concepção revolucionária, seduziu os ouvintes pelo en 1908 Primeira obra atonal de Schönberg, as Peças para piano
canto voluptuoso da sua melodia e de seu ritmo suave, pelas op. 11. La mer de Debussy, sob a regência do compositor, uma
sutis cores da harmonia e da orquestração. U m ano antes, o obra-prima (uma primeira audição medíocre fora vaiada em
Quarteto de cordas era uma obra igualmente audaciosa, a des 1905).
peito da forma cíclica herdada do franckismo, mas suas sedu 1909 Peças para orquestra op. 16 de Schönberg: primeira tenta
ções pareceram menos fortes. Para medir a novidade dessa mú tiva de Klangfarbenmelodie (melodia de timbres) na terceira pe
sica, é preciso lembrar-se que, em 1894, ano do Prélude à l'après- ça. Fundação dos Balés de Diaghilev, que serão, durante cerca
midi d'un faune e do primeiro processo Dreyfus, Verdi (oitenta de vinte anos, um dos principais focos da vida musical.
e um anos) acaba de apresentar o Falstaff Bruckner (setenta 1910 Debussy toca pela primeira vez alguns de seus Préludes:
anos) trabalha em sua Nona sinfonia, Johann Strauss (sessenta mais uma nova sonoridade pianística. Seis peças para orquestra
e nove anos) continua compondo valsas, quadrilhas e operetas op. 6 de Webern, aluno de Schönberg.
para o teatro An der Wien, Dvofák acaba de apresentar sua
1911 Estréia de Petruchka do jovem Stravinsky, pelos Balés Rus
Sinfonia do Novo Mundo, D'Indy funda a Schola e Mahler ter sos de Diaghilev, sob a direção de Monteux. Publicação em Vie
mina sua Segunda sinfonia; Clara Schumann está com setenta na do tratado de harmonia de Schönberg (Harmonielehre).
e cinco anos, Brahms com sessenta e um, Fauré quarenta e no
1912 Estréia de Daphnis et Chloé, a obra-prima de Ravel, pelos
ve, Puccini trinta e seis... O crepúsculo do romantismo parece
Balés Russos, sob a regência de Monteux. Estréia de Pierrot lu
prolongar-se.
naire de Schönberg em Berlim. Essa obra revolucionária foi co
Mas, nos vinte e cinco anos seguintes, uma série de aconteci piosamente vaiada. Tudo nela era desconcertante: a atonalidade,
mentos musicais notáveis subvertem o sentido da música: a escrita instrumental e o novo modo de expressão vocal chama
do Sprechgesang.
1893-1894 Início da composição de Pelléas (desde a publicação 1913 No novo Théâtre des Champs-Elysées, primeira apresen
do drama de Maeterlinck). Quarteto de Debussy e Prélude à tação da Sagração da primavera de Stravinsky: memorável bata
l'après-midi d'un faune na Société Nationale. lha, cujo tumulto impedia que a orquestra fosse ouvida... Mas
1895 Primeira audição em Colônia de uma das obras-primas de a coreografia de Nijinsky, tanto quanto a música, desnorteava o
Richard Strauss, Till Eulenspiegel, seu quinto poema sinfônico. público elegante e os associados do teatro. A "revolução" da Sa
1900 Estréia da Tosca de Puccini em Roma e de Louise de Char gração era uma revolução no comportamento. Cinco peças op.
pentier em Paris. Primeira audição dos dois primeiros Noturnos 10 de Webern, tão breves e tão sutis, que fazem pensar nos hai-
de Debussy na Société Nationale. Uma nova maneira de conce cais japoneses. A quarta peça comporta apenas seis compassos
ber e de sentir a música se impõe desde os primeiros compassos (exemplo p. 229).
de Nuages. 1917 Estréia nos Balés Russos de Parade de Erik Satie, sob
1902 Estréia de Pelléas et Mélisande na Opéra-Comique, sob a a regência de Ansermet (coreografia de Massine, cenários e f i
batuta de Messager, com Mary Garden no papel de Mélisande. gurinos de Picasso). Alguns jovens músicos, em torno de Jean
Schnebel, Abfälle 1,
A cabala é cuidadosamente organizada. Ninguém escuta a músi Cocteau, fazem da obra um estandarte. Reação contra o "debus-
Visible Music, detalhe. ca, salvo alguns literatos e musicistas, que avaliam a importância sysmo".
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 180 181 A AURORA DE NOSSO SÉCULO
1918 Aparecimento do jazz na Europa: entusiasmo dos jovens produção aumenta, o padrão de vida sobe. Ao mesmo tempo,
músicos. A Historia do soldado de Stravinsky estréia em Lausan a análise marxista é constatada. A ascensão do socialismo e o
ne, regida por Ansermet, com o concurso de Georges e Ludmilla desenvolvimento do movimento operário correspondem a ela. A
Pitoëff. Seu sucesso é interrompido pela gripe espanhola e pelo crítica das instituições, o questionamento de uma coisa julgada,
armistício. Debussy falecera no dia 25 de março. a separação entre a Igreja e o Estado, o exercício do livre exame
são sinais de um novo tempo, que os artistas vão viver à sua
Vivia-se, então, o início de uma transformação decisiva da maneira.
sociedade, em sua organização econômica e política, em seus cos Enquanto os impérios coloniais acabam de constituir-se na
tumes, em sua cultura. A Belle Époque é o apogeu do grande ca África e na Ásia e enquanto as grandes potências dividem por tra
pitalismo: a influência política das altas finanças é considerável, a tados as zonas de influência entre si, em 1905 a batalha russo-
japonesa de Tsushima é a primeira derrota de um povo branco!
Esse acontecimento talvez seja um sinal do declínio da Europa,
que se esgota no gigantesco massacre da Primeira Guerra mundial.
Mas a época também é a de Toulouse-Lautrec, Matisse e dos últi
mos impressionistas, de Gide, Claudel, Proust, Apollinaire, D'An-
nunzio, Pirandello, Rilke... É também a de imensas descobertas
científicas (rádio, raios X, quanta, relatividade) e de notáveis pro
gressos técnicos (automóvel, avião, radiotelefonía, cinema)...
Em 1917-1918, a cultura ocidental é fortemente abalada. Uma
situação militar catastrófica (para os aliados, até julho de 1918;
para os impérios centrais, depois disso) e os ecos da Revolução
de Outubro provocam reações extremas: greves gerais e levantes
por toda parte; por outro lado, violenta hostilidade contra qual
1
quer evolução dos costumes e do pensamento . A velha direita
francesa, ainda abalada pelo caso Dreyfus, reage à trágica epo
péia das trincheiras denunciando toda espécie de bruxas, em par
ticular os artistas modernos e cosmopolitas, agentes da subver
são. Ela repete o lema da Action française: enquanto a elite da
nação morre em combate, tocaieiros e provocadores (judeus,
franco-maçons, pederastas, estrangeiros, anarquistas, bolchevi
ques) obram para demolir a cultura tradicional. Futuristas, "ku-
bistas", balés russos são os sequazes dos "alemães" e dos "bol
cheviques". Para Vlaminck, que tinha quarenta e dois anos na
época, "o que era errado era belo, o que era malsão tornava-se
original". Reciprocamente, os partidários da mudança condenam
sistematicamente qualquer glória consagrada (Debussy, por exem
plo, ou os impressionistas) e defendem qualquer coisa, de qual
quer jeito.
É por volta de 1918 que se toma consciência das novas cor
rentes musicais — a de Schönberg, a de Ravel, a de Stravinsky
— e que se descobre a estética paradoxal de Satie. Rejeita-se De
bussy, cuja extraordinária modernidade não se discerne. A van
guarda multiplica os manifestos provocantes; de ambos os lados,
1. O próprio papa Pio X , em 1907, redige uma encíclica para condenar o mo
dernismo (Pascendi).
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 182 183 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX
as pessoas se mostram excessivas, incompreensivas, não raro in Contestação e diversidade Ora, a música do século X X é bas
tolerantes. A tradição encontra-se confrontada com a revolta an tante diferente da música moderna das outras épocas! Querer de
tiidealista de uma ars nova, como sob Filipe, o Belo, e cada ten monstrar o contrário só pode acentuar sua singularidade... Des
dência esmaga a outra com seu desprezo. Uma vontade de intimi de Debussy, assiste-se a tuna contestação geral do sistema e das
dação, que qualifico por hipérbole de "terrorismo estético", já regras acadêmicas: princípio das relações tonais, desenvolvimen
existia em torno de Wagner, depois, em menor escala, de Vincent to temático, formas tradicionais. Aos músicos dessa época, a imi
d'Indy. No século X X , precisamente a partir de 1918, essa atitu tação dos modelos, em que o ensino se baseava outrora, parece
de se torna habitual. Tão logo alguém se liga a uma escola ou a estéril. É o que exprime esta frase de Debussy: "Parecia que, des
uma igrejinha (por acaso, por convicção filosófica, por gosto ar de Beethoven, a prova da inutilidade da sinfonia estava dada."
tístico ou por afinidade social), não pode mais desviar-se da hnha Em outras palavras, Beethoven, que Debussy admira por sinal,
traçada por alguns magos bem-falantes. Com largo emprego de mostrou a inutilidade dos marcos tradicionais superando-os: ele
sofismas, paradoxos brilhantes, improvisações irrefletidas, eles es ensina como não imitar os modelos.
tabelecem catecismos estéticos fora dos quais não há salvação. Mas, no século X X , a contestação dos modelos torna-se tão
As reações conservadoras são particularmente violentas. De ampla e tão profunda, que a assimilação de novas estéticas e téc
ve-se dizer que foram vivamente provocadas nos anos que prece nicas implica rupturas completas. Ora, o ensino, baseado na ex
deram 1918, logo depois da admissão no Louvre dos impressio periência, impõe a si mesmo como obrigação ser tradicional.
nistas. É a bela época das Demoiselles d'Avignon de Picasso Pensa-se fazer um trocadilho ruim ao observar o caráter conser
(1907), das primeiras colagens (1912) por Picasso e Braque, do vador dos conservatórios — é, antes, um truismo. De fato, trata-
Manifesto futurista italiano (1909), do Nu descendo escada (1912) se de uma instituição destinada a conservar um sistema musical
de Duchamp e de seus primeiros "ready-made", anunciadores da num estado julgado perfeito e a transmiti-lo pelo ensino. Por is
"pop-art", da Arte dos ruídos de Russolo (1913), do nascimento so, o ensino da música no século XX nunca corresponderá à rea
de Dadá (1916). Ε o conservadorismo, reciprocamente, estimula lidade musical contemporânea. Os aprendizes de compositor
o gosto da provocação... aprenderão regras que talvez nunca usarão e ficarão mal prepa
rados para a sua função na música e na sociedade.
Aliás, poderia ser de outro modo? Nas outras épocas, podia-
se definir uma "linguagem" musical comum aos compositores
SINGULARIDADE D A MÚSICA de uma ou várias gerações. Os mais audaciosos transformavam
periodicamente esse instrumento em proveito das gerações se
NO SÉCULO X X guintes. Desde o início do século X X , ao contrário, existiram
Muitos melómanos se perguntam se nossa música moderna se dis simultaneamente técnicas ou até sistemas musicais inconciliáveis,
tingue fundamentalmente da música moderna das outras épocas. incompatíveis, irredutíveis uns aos outros: sistema tonai "enri
De ordinário, respondem-lhes que não. Ε cada um, invocando o quecido", politonalidade, dodecafonismo serial, músicas em quar
Eclesiastes, se convence de que não há nada de novo sob o Sol, to de tom (ou outras frações de tons), sistema modal ampliado,
de que a música moderna se impôs dificilmente em todas as épo música eletracústica, músicas aleatórias ou probabilistas, jazz,
cas, que as mesmas críticas de dissonância, de incoerência, de ba- música funcional ou de grande consumo (sistema tonai empo
rulheira, de singularidade a qualquer preço sempre foram feitas brecido), etc.
à música moderna pelos elementos conservadores da profissão e Essa diversidade não teve equivalente na história. Se os pro
pelo grande público contemporâneo. blemas que ela coloca para o ensino são difíceis, para a prática
Por isso, o temor de ser assimilado aos fósseis que condena musical são insolúveis. Algumas técnicas tornam a música inexe-
ram Monteverdi, Wagner ou Debussy incita os pedantes a consi cutável, não apenas pelos amadores, mas também pelos profis
derar qualquer estética nova como o classicismo de amanhã. Eles sionais não especializados. A música de hoje acaso permite ima
acham que a história se repete e não se crêem tolos o bastante ginar sessões de improviso de música de conjunto, como Mozart
para cair no ridículo dos censores de outrora. Todo criador que organizava para fazer Haydn ouvir os quartetos que lhe dedica
se distingue de seus contemporâneos será reconhecido como um va? Ou Mendelssohn, para decifrar novos Heder de Schumann
precursor. acompanhado por Clara? Ready made de Duchamp.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 184 185 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX
Incontestavelmente, a música moderna do século X X apre mente difundida. O não-músico em geral acha "dissonante" qual
senta características sem precedentes: diversidade de tendências, quer mistura de sons que choca seu ouvido; sua definição é sim E L E S DESCOBREM O JAZZ
questionamento de princípios fundamentais, incomumcabilidade plista, mas nem um pouco aberrante. Na teoria clássica, a oitava,
imediata, defasagem do ensino, extraordinários meios de difusão, a quinta justa e a quarta justa são chamadas "consonâncias per 1893 Dvofák: Sinfonia do Novo
cujo controle permite orientar a cultura coletiva e agir sobre a his feitas"; as terças e as sextas, maiores e menores, são "consonân Mundo (2? movimento: tema do
tória por uma seleção arbitrária... cias imperfeitas"; todos os outros intervalos são considerados dis negro spiritual "Sweet home").
1908 Debussy: Golliwog's Cake
Na falta de uma grande idéia criadora comum, a pesquisa sonantes. O sistema harmônico baseado nessa teoria é bastante
walk (Children's Corner).
de uma técnica individual de composição adquire, em nossos dias, empírico e encontra maior justificação na tradição do que na acús
1910 Debussy: Minstrels.
uma importância inabitual, traduzindo ao mesmo tempo o isola tica. A harmonia clássica às vezes é até ilógica quando, por exem 1912 Debussy: General Lavine Ec
mento do artista na sociedade e uma tomada de consciência de plo, vários autores admitem a consonância do acorde de quinta centric e Hommage à Samuel Pick
seu papel histórico. Na incerteza de seu destino individual, o ar diminuta (si.ré.fá), que comporta um trítono, mas recusam essa wick.
tista tenta escàpar a seu destino como categoria por uma busca qualidade ao acorde de quinta aumentada (dó.mi.soltf). Na har 1917 Satie: Parade (Petite fille
de originalidade estética. Mas, como a crítica histórica moderna monia clássica, toda dissonância exprime uma tensão, um dese américaine e Ragtime du paquebot).
lhe revela que a história tem um sentido, ele procura adivinhar quilíbrio, que se deve "resolver" na consonante vizinha. Numa 1918 Stravinsky: História do solda
a posição que deve ocupar — sua originalidade tem de exprimir- harmonia dissonante, como a do século X X , é a consonância que do (Ragtime).
se por uma modernidade profética, que possa ser o classicismo pode exprimir uma tensão (Bartók), um desequilíbrio (Debussy), — Stravinsky: Ragtime para pe
de amanhã. ou até ser abolida (dodecafonismo). quena orquestra.
Será correto definir a dissonância como um defeito da con 1919 Stravinsky: Piano ragmusic.
sonância (à maneira platônica)? São conceitos que convém ten 1920-1925 Ravel: L'enfant et les
A emancipação da dissonância No início do século, o questio sortilèges (foxtrote do bule de chá).
namento sistemático das antigas imposições formais, a dissolu tar considerar de maneira independente. Pode-se admitir, com
igual razão, que a exceção é a consonância perfeita e não a dis 1923 Milhaud: La création du
ção da tonalidade, a libertação do ritmo favoreceram um novo monde.
espírito de pesquisa. O compositor fica, desde então, tentado pe sonância. De fato, dois sons diferentes simultâneos são percebi
dos, no caso geral, como um complexo heterogêneo, que os gre — Milhaud: Trois rag-caprices
la aventura, pela exploração do desconhecido, e a música torna- para piano e pequena orquestra.
se de novo experimental, como era antes da invenção da impren gos chamavam de diafonia. A percepção dessa diafonia pode ser
1923-1927 Ravel: Sonata para pia
sa. Mas não é mais apenas a obra, é a própria técnica que é obje mais ou menos viva. Entre determinados sons, ela é atenuada no e violino (2? movimento: Blues).
to de experiência única. Inevitavelmente, a multiplicidade das pes a ponto de desaparecer; diz-se então que os sons formam uma 1929 Schönberg: Von Heute auf
consonância mais ou menos perfeita. A consonância seria, as Morgen.
quisas iria acarretar a diversidade das tendências, a acentuação
sim, um caso particular da diafonia, que foi privilegiado por ser
das especializações e a freqüente ruptura das relações entre os cria
o menos provável.
dores e o público.
Objetivamente, a consonância e a dissonância de um inter
As diferentes tendências têm, no entanto, uma raiz comum:
2 valo podem ser explicadas, segundo Helmholtz, pela comparação
"a emancipação da dissonância" . Elas se distinguem pela ma
dos harmônicos dos dois sons, em particular pela consideração
neira como gerem essa conquista primordial. Trata-se, essencial 3
dos batimentos perceptíveis entre harmônicos . No intervalo de
mente, de uma mudança na própria concepção da harmonia, mu
segunda, também podem ser percebidos batimentos entre os sons
dança que, para muitos amadores e alguns profissionais, basta
fundamentais, no registro grave até o fá da clave de fá (segunda
para definir a modernidade. Mas é certo que uma nova concep maior) ou até o sol da clave de sol (segunda menor), aproximada
ção da harmonia acarreta uma mutação das formas melódicas e mente. O mesmo acontece nos intervalos de sétima, maior e me
também convida a libertar as estruturas rítmicas do jugo do nor, entre a fundamental do som agudo e o h.2 do som grave.
compasso. Um intervalo é tanto mais consonante quanto mais harmônicos
Pode parecer inútil definir a dissonância. No entanto, não
é fácil especificar o que se esconde por trás dessa noção ampla- 3. Quando Helmholtz diz que a dissonância é definida pelos batimentos en
tre harmônicos, ele exprime uma lei fisiológica e não física. De fato, cada um dos
harmônicos de um som produz batimentos com os harmônicos de outro som. Mas
2. Essa expressão, que caiu no gosto, foi empregada pela primeira vez por só são característicos de uma dissonância os batimentos percebidos. A dificulda
Schönberg. Ele entendia com isso "que a compreensibiUdade da dissonância é equi de está em determinar de maneira absoluta os que todos percebem! De modo ge
valente à compreensibilidade da consonância" (conferência dada em 1939, trad. ral, a coincidência dos harmônicos é percebida melhor do que a não-coincidência,
Leibowitz). se o fenômeno global for complexo.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 186 187 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX
comuns tiverem os sons constitutivos desse intervalo: o fortaleci dem bater, sobretudo se os harmônicos comuns forem fracos. De
mento dos harmônicos em uníssono mascara os batimentos entre fato, pode-se observar que a impressão de dissonância é variável
outros harmônicos. Inversamente, o intervalo é tanto mais disso em função do timbre e da textura. Isso não surpreende, pois a
nante quanto mais raros e mais distantes forem esses harmônicos natureza e a intensidade dos harmônicos variam com o timbre,
comuns e quanto mais perceptíveis forem os batimentos entre har enquanto a freqüência dos batimentos, assim como dos sons re
mônicos muito próximos. sultantes, varia com a textura... Mas uma parte da demonstração
Abaixo o leitor encontrará um quadro dos principais inter vai por água abaixo se adotamos a avaliação pitagórica dos inter
valos da escala harmônica (Zarlino), numa ordem de dissonância valos (escala cíclica); então, a terça, principalmente, torna-se dis
crescente. Na segunda coluna, figuram os números de ordem dos sonante!
primeiros harmônicos comuns (ver exemplo t. 1, p. 106): o pri Qualquer tentativa de definição da dissonância mostra a re
meiro número designa um harmônico do som mais grave, o se latividade dessa noção. Ela depende não só de parâmetros físicos
gundo, um harmônico do som mais agudo. A periodicidade dos e fisiológicos muito complexos, mas também de fatores psicoló
harmônicos comuns é dada pelo segundo número: na quarta e na gicos e culturais. Na Idade Média, a terça era considerada uma
sexta maior, por exemplo, um harmônico em cada três do som dissonância; a quinta e a quarta "ocas" eram recomendadas, ao
mais agudo está em uníssono com um harmônico do som mais passo que nos parecem duras hoje em dia. Debussy encadeia acor
grave. Na terceira coluna são indicados os primeiros harmônicos des dissonantes que nos dão uma impressão de doçura. Segundo
bem próximos (menos de um semitom), cujos batimentos são, pois, a bonita fórmula de Robert Kemp (a propósito de Pelléas): "As
capazes de ser percebidos. segundas não mais melindravam nem mordiam. Elas formavam
beijos apertados, e as nonas, sorrisos." A evolução da música oci
dental não nos permite mais definir a dissonância pela agressão
que ela faria o ouvido sofrer. Tampouco é possível considerar a
intervalo primeiros primeiros harmônicos
harmônicos muito próximos
impressão de diafonia como base para definição, pois somente
comuns (menos de um semitom)
a oitava, a consonância mais perfeita, é percebida pela maioria
4
dos ouvintes sem experiência como um som único . Quanto aos
critérios acústicos, vimos que eram variáveis em função do tim
oitava 2 e 1 todos comuns bre, da altura dos sons e da natureza da escala de referência; por
quinta justa 3 e 2 13 e 9 (terço de tom) tanto, eles não permitem definir o grau de dissonância de um acor
quarta justa 4 e 3 9 e 7 (pequeno terço de tom) de objetivamente. É preciso admitir, com Schönberg, que não há
sexta maior 5 e 3 12 e 7 (quarto de tom) noção fundamental de dissonância, mas apenas um estado de
terça maior 5 e 4 9 e 7 (quarto de tom) "consonância" — no sentido etimológico — mais ou menos
terça menor 6e 5 7 e 6 (quarto de tom) íntimo.
sexta menor 8e 5 11 e 7 (sexto de tom) A "emancipação da dissonância" é uma emancipação geral
da harmonia, uma rejeição das regras clássicas que nos impuse
sétima menor 9 e 5 7 e 4 (quarto de tom) ram a distinção entre acordes instáveis, transitórios, que não sa
segunda maior 9 e 8 7 e 6 (pequeno terço de tom) tisfazem o ouvido (dissonâncias), e acordes estáveis, aos quais o
sétima maior 15 e 8 11 e 6 (quinto de tom) ouvido aspira (consonâncias). O livre emprego dos diferentes agre
segunda menor 16 e 15 11 e 10 (grande quarto de tom) gados sonoros e seu corolário melódico, o cromatismo, têm uma
quarta aumentada 45 e 32 7 e 5 (terço de coma) história que remonta à Renascença.
Até o século X V I , as dissonâncias são fortuitas; elas apare
cem de forma fugidia no tecido complexo da polifonia, mas a aten-
Segundo os critérios adotados aqui, a quarta aumentada, ou
"trítono" (dó.fá#), aparece como o intervalo mais dissonante: pra 4. Segundo uma pesquisa do psicólogo alemão Carl Stumpf (1848-1936), 75%
dos ouvintes sem formação percebem como um som único dois sons simultâneos
ticamente não há harmônico comum audível nem batimentos mui
em oitava; 50% reagem da mesma maneira à quinta, 33% à quarta, 25% à terça,
to perceptíveis entre h.7 e h.5. Mas se os timbres escolhidos não 20% ao trítono, 10% à segunda. Stumpf explica a noção de consonância por essa
favorecerem esses dois harmônicos o trítono parecerá muito me fusão {Verschmelzung) que o ouvinte sem formação realiza: é um dado psicológi
nos dissonante do que uma segunda, em que os fundamentais po- co, e não mais físico ou fisiológico.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 188 189 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX
ção é mobilizada pela conduta das partes e não por determinado Tristão abre caminho para uma forma de expressionismo
encontro acidental. As alterações servem para a escolha dos dife em que as sucessões cromáticas e os encadeamentos de apoj atu
rentes valores de certos intervalos: não se emprega simultânea ou ras têm uma função dramática independente das relações to
consecutivamente o mesmo som em sua forma natural e alterada. nais. Essa dinâmica da harmonia dissonante encontra sua extre
No século X V I , começa-se a utilizar o cromatismo, na acepção ma consumação no sistema de Schönberg. Todavia, não é a úni
moderna do termo (sucessão de sons diversamente alterados), na ca maneira de utilizar livremente as dissonâncias. Também po
busca de uma expressão dramática ligada ao espírito madrigales demos considerá-las por suas qualidades sonoras globais, suas
co. A partir de aproximadamente 1600 (Gesualdo, Monteverdi), "cores", compô-las como misturas de timbres, acrescentar aos
agregados dissonantes são encarregados de exprimir uma tensão acordes tradicionais sons destinados a modificar sua qualidade
dramática. sonora e não a acentuar seu dinamismo, ou então basear a har
No século X V I I , as harmonias dissonantes e as melodias
monia dissonante na exploração de novos mundos sonoros, com
cromáticas já distinguem um músico "moderno"; mas a pala
novas escalas e novos modos... De uma maneira ou de outra,
vra "cromático" designa um estilo bastante modulante e não, co
a emancipação da dissonância impôs-se pouco a pouco como
mo hoje, o emprego sistemático das alterações, gerando séries de
inelutável. Uma das características dominantes da música do
semitons ou de intervalos estranhos à escala escolhida. O classi
cismo musical do século X V I I I impõe à harmonia uma hierarquia século XX será a busca de novos métodos de composição capa
de acordes, à melodia uma estrutura sóbria e simétrica, a cada zes de integrar logicamente as formas melódicas e as estruturas
nota da escala uma função dinâmica e às modulações uma dialé harmônicas oriundas dessa emancipação. Mas o sistema tonai
tica rigorosa, em função da tonalidade soberana e do sentimento permanece obsédante e o par dominante-tônica reaparece sor
agudo da forma. O livre emprego das dissonâncias e dos enca- rateiramente nas harmonias mais ousadas. E, enquanto os mú
deamentos cromáticos é limitado pelo "sistema tonal". A audá sicos de vanguarda tentam escapar dessa tirania, os mais con
cia harmônica de Rameau fica ainda mais notável com isso: ele servadores enchem seus velhos acordes de provocantes "notas
é, sem dúvida, o primeiro músico a utilizar sistematicamente acor desafinadas".
des dissonantes, como fará Debussy, por suas qualidades acústi Todos os músicos da primeira metade do século tiveram de
cas, por seu "timbre". definir seu sistema de composição em relação à crise do sistema
Segundo Theodor Adorno, uma "avidez de dissonância" tonai. Alguns consideram esse sistema o fundamento natural da
faz-se sentir desde o século X V I "enquanto expressão do sujeito harmonia na música ocidental e se propõem apenas enriquecê-lo
sofredor, ao mesmo tempo autônomo e não livre". Essa obser para favorecer sua evolução sadia; outros, ao contrário, estimam
vação (ou essa hipótese), que pode ser sugerida por Monteverdi, que o sistema tonai esgotou seus recursos, constatam sua desa
encontra sua plena justificação nos românticos. O acorde que pre gregação irreversível e preconizam uma ruptura radical em bene
cede a entrada do barítono na Nona sinfonia de Beethoven (to fício de uma harmonia estritamente atonal ou pantonal, sem po
das as notas da escala de ré menor) inclui-se na análise de Ador
laridade; outros ainda conjugam todas as nuanças do "sim, em
no. Mais significativo ainda é o lied de Schubert Die Stadt: longa
termos" e do " n ã o , em termos"...
repetição de um acorde de sétima diminuta, com o qual termina
a peça, sem resolução. Aliás, nunca se sublinha bastante a audá O desejo de se libertar das injunções do sistema tonai não
cia harmônica de Schubert. Na obra de Chopin, de Schumann, se manifesta unicamente na emancipação da dissonância ou no
de Liszt, também encontramos numerosos exemplos de harmo radicalismo schönberguiano. Quando Satie encadeia acordes per
nias dissonantes e de encadeamentos cromáticos, corresponden feitos, sem se preocupar com as relações tonais, é tão libertário
tes a uma intenção expressiva. em relação à harmonia ortodoxa quanto se encadeasse acordes
Mas é na obra de Wagner, principalmente em Tristão, que de sétima. A escala por tons (dó ré mi fá# sol# lá#) e a
o cromatismo expressivo, a modulação contínua, a tensão har escala pentatônica chinesa, utilizadas por Debussy, são to¬
mônica sugerem com mais força um novo método de composi nalmente indeterminadas, e encontraremos outras escalas (Bar-
ção. Certos agregados dissonantes são irracionais do ponto de vista tók e Messiaen, em particular) que impõem uma harmonia "mo
tonai, e, nas páginas de grande tensão dramática, a linha melódi dal" específica, sem intervenção possível das funções tonais clás- ->
ca parece uma sucessão de sensíveis sustentadas pela paixão, sem sicas, porque estamos na atmosfera ambígua de várias tonali- ^ ^ ^ ^ S 2 Â y s é « ,
encontrarem repouso tonai (ver exemplo p. 70). a
" des. sob a regência de Leonard Bernstein.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 192 193 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX
A contestação do venerável sistema coincide com uma certa preocupação em democratizar essa música erudita, o modo de
rejeição da imitação nas artes plásticas ou, mais exatamente — vida do trabalhador urbano coloca-o fora de condições de des
já que a arte sempre imita —, com a reivindicação do direito de frutá-la. Seria preciso um extraordinário esforço de adaptação
imitar outra coisa que não as aparências. Um antiacademismo ge para se inserir num universo musical estranho a suas preocu
ral põe todos os artistas, no início do século X X , na situação de pações.
reinventar sua arte. Ressalta-se a cada instante a incompreensão do grande pú
No plano do ritmo, é difícil encontrar características co blico, no século X X , para com a música de seu tempo. Na verda
muns ao conjunto da música do século X X . A despeito de uma de, é a música "cultural" em seu conjunto que é incompreendi
opinião corrente, não é ele o elemento que nossa época subver da, sobretudo a mais significativa e a mais elaborada. A música
teu mais radicalmente. O aparecimento, no século X I X , dos com do passado utiliza um sistema musical mais ou menos familiar;
passos de 5, 7 ou 11 tempos, assim como das mudanças de rit ela não choca ninguém, apenas aborrece a grande massa dos que
mo e de compasso, nada tem de surpreendente: essas "novida distinguem apenas seus contornos, sem perceber o conteúdo mu
des" se encontram no folclore. Quanto à acentuação violenta sical, o "sentido". Os apreciadores esclarecidos têm cada vez mais
dos tempos fortes (ou de cada tempo!), que faz dizer que uma consciência de pertencer a uma elite; eles formam uma nova clas
música é bastante ritmada, é a própria negação do ritmo — a se de "melómanos" imbuídos de sua cultura e geralmente não
essência deste está na diversidade dos valores de duração. Quase ativos.
toda a música comercial é, a esse respeito, da mais extrema po Aliás, se a escola desse a todos um ensino musical satisfató
breza. rio, que repertório seria oferecido aos eventuais músicos amado
res das classes trabalhadoras? Uma música do passado bem dis
Há sete séculos, é verdade, nosso sistema de notação propor
tante da sua sensibilidade; uma música moderna demasiado com
cional impõe valores de duração múltiplos uns dos outros, favo
plexa, que se torna um objeto de especialistas; ou uma música in
recendo certos modelos rítmicos. Assim, as dificuldades de escri
dustrial cujo objetivo é o lucro (e que, de resto, só pode ser exe
ta dissuadirão por muito tempo os compositores a levar suas pes
5 cutada com consideráveis meios eletracústicos).
quisas além do que pode ser notado . Ademais, a divisão em
A despeito das proclamações demagógicas de boas intenções,
compassos iguais é um velho hábito de que é difícil afastar-se. Não
cumpre reconhecer que a música cultural é tão elitista no século
há teoria moderna do ritmo: Debussy, Stravinsky, Webern, Va
XX quanto outrora e que não existe outra música popular fora
róse, Messiaen terão, cada um, uma maneira original de renovar
das "variedades", produzidas e difundidas pelas indústrias do
sua concepção.
show business. Aliás, é provável que o público dos grandes músi
cos do nosso século, de Debussy a Messiaen, seja mais estritamente
Relações com o público O público do século X X é sempre a bur selecionado que o de Vivaldi, Haendel, Mozart, Beethoven e Ber
guesia. Mas, ao contrário daquela do século romântico, é uma lioz. No século X V I I I , os marinheiros de Veneza assistiam à ópe
burguesia decadente: ela perde, enquanto classe, o poderio eco ra; ora, não acredito que haja muitos operários assistindo a Pel
nômico, representado doravante por um capitalismo abstrato, e léas ou aos Balés Russos. Não tardará para que todas as classes
seu poder político desfaz-se pouco a pouco. Com isso, ela já não sociais estejam imersas num mesmo banho de música estereoti
possui meios para agir sobre a cultura. Quanto às classes ditas pada pela mídia, abusivamente desviada de sua função. A sensi
"ascendentes", elas são ignoradas pelos artistas e não concebem bilidade auditiva não poderá deixar de embotar-se em contato per
que estes possam trabalhar para elas. A função da arte, em parti manente com fundos sonoros excessivamente pobres ou "sons"
cular da música, não é mais social, e sim "cultural". A musicolo extremamente barulhentos.
gía, atraindo a atenção para as obras-primas do passado, man Em que país, capitalista ou socialista, um ministro da Cultu
tém o mito da "música erudita"; e o ritual do concerto propõe ra tentará promover uma música de qualidade, correspondente
a um público cada vez mais vasto uma música composta, hoje co ao mesmo tempo ao estado do pensamento artístico contemporâ
mo ontem, para uma minoria privilegiada. Ora, enquanto há uma neo e às aspirações profundas do grande público, antes de seu con
dicionamento pela mídia e pelo show business! Em nenhum lu
5. N a segunda metade do século, as c o n c e p ç õ e s r í t m i c a s da nova música só
gar se quis reconhecer que a massa sem rosto que Sartre chama
p o d e r ã o ser expressas acrescentando-se à n o t a ç ã o freqüentes explicações comple de "público virtual" é necessariamente mistificada. Em nenhum
mentares. lugar lhe são dados os meios para desfrutar o que se pretende des-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 194 195 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY
tinar-lhe, ajudando-a a distinguir o talento profético da mistifi Debussy Este escolheu o caminho mais "selvagem" de todos:
cação e da provocação. Onde se empreendesse sinceramente a des- o do prazer e da liberdade. Desde L'après-midi d'un faune (1894),
mistificação do público, este reaprenderia a escolher e, um pouco ele progride fora dos caminhos conhecidos, lançando mão de tu
mais tarde, a inventar. Faz cem anos que os profissionais deplo do e deixando-se guiar por sua extraordinária sensibilidade audi
ram o analfabetismo musical sem querer remediá-lo. O próprio tiva, por sua intuição do inaudito. Ele inaugura uma nova ma
amador esclarecido, renunciando a conhecer a teoria e a prática neira de perceber a música, de comover-se com ela, um tipo de
musicais, incentiva a especialização e justifica a dificuldade da mú comunicação musical audaciosamente independente das referên
sica moderna. Ε veremos que, em nome das ideologias mais fir cias intelectuais e, portanto, irredutível aos "ismos": classicismo,
memente progressistas, será defendida uma ordem estética cadu romantismo, wagnerismo, impressionismo, simbolismo. Debussy
ca contra a imaginação inovadora. detesta a análise, que nada mais é que um inventário de receitas,
ou a aplicação de esquemas intelectuais numa realidade sensível
e movediça. Ele quis que sua música fosse inanalisável. No curso
de uma conversa com seu mestre Guiraud, em 1889, Debussy en
A S GRANDES CORRENTES cadeia alguns acordes no piano:
emancipação da dissonância e a audácia das modulações condu tes impressionista e simbolista? Em 1887, a suíte Printemps , se
zem à dissolução das funções em que repousa o sistema. Nos pri gunda remessa de Roma, é mal recebida pelo Instituto, devido a
meiros anos do século X X , todos os compositores confrontam-se seu "vago impressionismo". Como na pintura, essa palavra tem
com os problemas colocados por essa dissolução, como ressaltei a princípio um sentido desfavorável. É reempregada a propósito
acima. A maneira pela qual percebem a crise e organizam o uni de La damoiselle élue, do Quarteto, dos Noturnos; mas a nuança
verso monótono e inerte da escala cromática determina as gran pejorativa desaparece pouco a pouco e logo serão publicados en
des orientações da música do século X X . Essas orientações são saios sobre o "impressionismo musical".
definidas, antes da Primeira Guerra Mundial, pela obra de qua Debussy sempre recusou essa etiqueta, como a recusaria sem
tro grandes músicos: Debussy, Ravel, Schönberg e Stravinsky. Sua dúvida hoje, muito embora seu significado se tenha ampliado.
influência exerceu-se, direta ou indiretamente, sobre quase todos A palavra evoca uma técnica sem equivalente musical; mas reteve-
os compositores deste século. Os problemas específicos do teatro se dela apenas a imprecisão do desenho, o esfumado que se pen
musical levaram três grandes contemporâneos de Debussy — Puc sava ser a característica dominante do estilo debussysta. Se se
cini, Janácek e Richard Strauss — a seguir caminhos particula opõe o "impressionismo" ao "expressionismo" (o que não é
res, de que trataremos a propósito da ópera. Porém, qualquer que mais que um jogo de palavras), pode-se considerar impressio
seja a originalidade de seus estilos, eles não estabelecem uma no nista a obra de Debussy, de Ravel, uma parte da de Stravinsky
va corrente e sofrerão, numa parte de sua obra, a influência das e de muitos outros. Mas pode-se acaso admitir que alguns músi
revoluções em curso. Alguns raros músicos, por seu não-confor- cos, à maneira dos pintores impressionistas, tenham procurado
mismo e pela originalidade de suas concepções estéticas, vão situar- captar a sensação pura, a relação não conceituai com o mundo
se à margem das correntes históricas ou além delas. É o caso de
Scriabin, Ives ou Varèse. Outros, ao contrário, como Sibeüus,
Reger ou Rachmaninov, permanecem apegados à estética pós- 6. Conversas anotadas por Maurice Emmanuel e publicadas na coleção
romântica, às formas tradicionais, às técnicas de composição her Comoedia-Charpentier (1942).
7. A partitura dessa obra infelizmente se perdeu. A versão que às vezes é to
dadas.
cada é a o r q u e s t r a ç ã o , por H . Büsser, de uma redução para piano e canto.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 19g 197 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY
sensível? Os músicos não possuem as mesmas referências ex ou essa face oculta, esse "alhures" que o obseda. De saída, ele
teriores; eles não imitam nenhum objeto identificável, nenhuma rejeita qualquer forma preconcebida, qualquer método de desen
sensação. Os títulos sugestivos com que Debussy adorna suas volvimento, qualquer academismo de ontem, hoje ou amanhã,
partituras não devem iludir-nos: o que ele nós quer representar afirmando que "a música francesa quer, antes de mais nada, agra
está além das aparências, é a face oculta do mundo sensível. dar...", o que é audacioso em 1904. É por isso que a arte de De
O verdadeiro ponto comum com os impressionistas é a extrema bussy escapa da análise e das classificações; descrevê-la, analisá-
precisão na representação do efêmero, do devir, do inapreen- la, é negligenciar o que tem de essencial, é deixar de reconhecer
sível. que ela pertence às "correspondências misteriosas entre a Natu
A etiqueta "simbolista" conviria melhor a Debussy. Mas aca reza e a Imaginação", como ele mesmo diz, pensando talvez no
so toda música não é simbolista, no sentido em que os poetas en célebre soneto de Baudelaire, Correspondências.
tendiam? A ambigüidade da comunicação artística, a instituição As referências a Wagner e aos russos deixam furiosos alguns
de novas relações semânticas baseadas na imaginação, a corres debussystas. É verdade que, no começo do século, se abusava de
pondência entre o sensível e o espiritual, o valor alusivo dos sons,
las a propósito de tudo. Mas acaso era necessário afirmar, por
tudo isso não é novo para o músico, que, de qualquer modo, su
reação chauvinista, que a estética de "Claude da França" nada
pera a significação e não esperou Mallarmé para "pintar não a
deve ao estrangeiro? Entre sua volta de Roma e L'après-midi d'un
coisa, mas o efeito que ela produz". Stefan Jarocinski consagrou
8 faune, Debussy viveu várias experiências musicais decisivas: duas
um livro notável para demonstrar a originalidade da estética de
bussysta e o que a distingue do impressionismo e do simbolismo. peregrinações a Bayreuth (1888-1889), a descoberta da música rus
Mas ele não exclui a influência exercida sobre os gostos e a sensi sa e de diferentes músicas orientais na Exposição de 1889, o en
bilidade artística do músico pelo convívio com os pintores e poe contro com Satie no Auberge du Clou (1891), o estudo da parti
tas de seu tempo. tura de Boris (1893, embora a possuísse desde 1889), uma viagem
A orientação revolucionária que Debussy dá à música mo a Solesmes (1893)...
derna definiu-se nos cafés artísticos e nos salões literários, não Apesar do wagnerismo ambiente (e de um primeiro contato
nos círculos musicais, que ele não freqüenta, escapando assim das .com Tristão e Isolda em Viena, em 1882), é em Bayreuth que
igrejinhas de todas as tendências. Sua orientação inscreve-se me Debussy tem a revelação do drama wagneriano e que participa
lhor do que qualquer outra no grande movimento de idéias da épo do entusiasmo incondicional dos meios artísticos de vanguarda.
ca: desvalorização da razão em benefício da intuição (Bergson), Os mestres cantores deixam-no indiferente; Tristão e Parsifal
relatividade das noções temporais e espaciais (Lorentz, Einstein), o fascinam. A instabilidade tonal e a continuidade da sinfonia
ambigüidade de uma realidade corpuscular e ondulatoria (Planck, no primeiro, os dourados e os efeitos de vitral do complexo har-
Bohr). A ciência perde sua segurança e descobre limites à sua in monia-orquestração no segundo abrem-lhe perspectivas insus
vestigação: quanto mais suas medidas são apuradas, mais a reali peitas. Bem depressa Debussy rejeita a dramaturgia wagneria
dade lhe escapa. O positivismo agora faz sorrir e a inquietude me na, irrita-se com a insistência da expressão musical, de sua re
tafísica suscita uma renovação espiritual... Nas artes, afasta-se co dundância, detesta os personagens e a indiscrição com que se
mo uma quimera o permanente e o razoável para buscar a verda fazem acompanhar por um leitmotiv... Porém, a influência de
de no efêmero e no irracional. Parsifal é sensível numa parte da sua obra, de La damoiselle
O caminho escolhido por Debussy é o mais audacioso, por élue (ele estava, então, absorto na leitura da partitura de Wag
que corresponde ao estágio mais avançado da cultura contem ner) ao Martírio de São Sebastião, passando pelos interlúdios
porânea. Se quisermos descrevê-lo nos termos imprecisos usuais de Pelléas. Mesmo numa obra tão distante da estética wagneria
naquela época, diremos que o músico sugere a realidade em de na quanto Jeux, Debussy declarava ter buscado "aquela cor or
vir, tal como a concebem, cada um a seu modo, Bergson e os questral que parece iluminada por trás e de que há efeitos tão
simbolistas, ou ainda o reflexo dessa realidade na imaginação, maravilhosos em Parsifal". Essa transparência, essa harmonia
libertada das funções tonais e da retórica do desenvolvimento
8. S. Jarocinski, Debussy, impressionnisme et symbolisme, Paris, 1971. Essa foram, para Debussy, o que a tensão cromática de Tristão terá
obra nos faz participar "ao vivo" da revolução artística do início do século. Ε
fundamental para a compreensão da estética debussysta, assim como a obra de
sido para Schönberg.
Vladimir Jankélévitch, Debussy et le mystère, Neuchâtel, 1949.
C L A U D E DEBUSSY tura, seu savoir-vivre, sua rica bi 1899 Casa-se com Lily Texier, bo
Saint-Germain-en-Laye, 22 de agosto de 1862 blioteca exercem uma influencia nita costureira, encantadora, mas
Paris, 25 de m a r ç o de 1918
decisiva sobre a formação do jo pouco culta. Freqüenta as "quar
vem músico. Ele também freqüen tas-feiras" de Pierre Louys na rue
Seu pai, Manuel Achille, filho de ta os meios artísticos nos cabarés Rembrandt, a Taverne Weber na
marceneiro, tinha na rue au Pain, de Montmartre. rue Royale (onde se encontra com
38, uma pequena loja de porcelanas 1885-1887 Temporada na Vila Mé Reynaldo Hahn, Maurras, L . Dau
e objetos chineses, que faliu em dicis. Suas "remessas de Roma" es det, P. J. Toulet, Proust), a livra
1865; arrumou então um emprego candalizam o Instituto. Liszt vai à ria de Edmond Bailly na Chaussée
em Paris. Victorine Manoury, mãe Vüa: fica impressionado. d'Antin, onde se encontram pin-
de Claude, era filha de um marce 1887-1897 Ligação com a bela, do tores e poetas, o café Voltaire na
neiro e de uma cozinheira. Nenhum ce e sensual Gabrielle Dupont, dita place de l'Odéon...
dos dois era músico. "Gaby dos olhos verdes", com
1902 Estréia de Pelléas et Mélisan
quem se instala na rue de Londres,
1868-1869 Sua tia Clémentine, ir de na Opéra-Comique, sob a re
42. A vida do casal é miserável, pois
mã de seu pai, leva-o para Carmes gência de Messager, com Mary
Debussy é incapaz de trabalhar por
e o faz ter aulas de piano. Garden (Mélisande) e Jean Périer
encomenda. É admitido nas "ter
1870- 1871 Manuel Debussy coman (Pelléas); cenários de Jusseaume.
ças-feiras" de Mallarmé, na rue
da uma companhia de federados. A obra enfrenta uma cabala orga
de Rome, a melhor introdução ao
Quando da queda da Comuna, cum nizada.
Erik Satie em casa dos Debussy, square du Bois de Boulogne. mundo artístico e literário.
pre cinco meses de prisão e tem seus 1904 Lily descobre que é traída e
1889 Exposição universal: desco
direitos civis cassados. tenta suicidar-se, como Gaby. De
berta da música russa e da música
1871- 1872 Madame Mauté de Fleur- indonésia. Liga-se aos Chausson, bussy briga com Messager, Mary
ville, sogra de Verlaine, que se diz em casa de quem decifrará a nova Garden e Pierre Louys, que tomam
aluna de Chopin, interessa-se pelo música, em particular Boris Go o partido de sua mulher. Apesar
j ovem Debussy e ensina-lhe benévo dunov. dos esforços de Lily para reatar a
lamente piano. O casal Verlaine mo
ra em casa dela, que Rimbaud visita 1891 Encontros com Satie no ca vida em comum (como Gaby: De
com freqüência. baré Chat Noir e no Auberge du bussy é indigno de sua sorte), di
Clou. vorciam-se . Em 1905, Debussy ca
1872- 1883 Conservatório de Paris: Debussy e Stravinsky.
aulas de Lavignac (solfejo), Mar- 1893 Assiste a uma representação sa-se com Madame Emma Bardac,
de Pelléas et Mélisande de Maeter a quem Fauré dedicou La bonne
montel (piano), Durand (harmonia), 1918 Após duas penosas opera
Franck (órgão), Guiraud (composi linck e decide imediatamente fazer chanson, uma mulher inteligente e ções, seu câncer se agrava. Sua
ção). Debussy também se dirá alu uma ópera com a peça. Pierre Louys culta, com quem se instala num morte, enquanto o canhão Bertha
no de Massenet. Por três verões con desaprova a escolha, mas aceita palacete no square du Bois de Bou bombardeava Paris, passou desper
secutivos (de 1880 a 1882) é contra acompanhar Debussy à casa de Mae logne, 24. Terão uma füha, Claude- cebida. Foi sepultado no Père-
tado como pianista por Nadejda von terlinck, em Gand. Emma (1905-1919), chamada Chou Lachaise, mas, no ano seguinte,
Meek, protetora de Tchaikovsky, 1894 Grande sucesso do Prélude à chou, a quem Debussy dedicará a seus restos foram transportados pa
que o leva a Moscou, Viena, Suíça, l'après-midi d'un faune na Société Children's Comer. ra o cemitério de Passy.
Itália (encontra-se com Wagner em Nationale, sob a regência do maes 1910 Debussy conhece Stravinsky
Veneza). tro suíço Gustave Doret. na estréia do Pássaro de fogo. Pri obra Pelléas et Mélisande (drama
1884 Primeiro grande prêmio de 1897 Descobrindo que está sendo meiras manifestações de um câncer. lírico), Le martyre de Saint Sébas
Roma pela cantata L'enfantprodi traída, Gaby Dupont tenta suici Rege suas obras em Londres, Vie tien (mistério), três balés (Khamma,
gue. Apaixona-se pela bonita Mada dar-se. É recolhida pelos Chausson na e Budapeste. La boîte à joujoux e Jeux); três can
me Vasnier, cuja bela voz acompa e pelos Ysaye; Debussy briga com 1912-1914 Série de concertos em tatas, Chansons de Charles d'Or
nha ao piano. Os Vasnier tratam-no eles. Depois da ruptura, ele se mu Viena, Budapeste, Moscou, São Pe léans para coro misto, numerosas
como filho da família: sua cul- da para a rue Cardinet. tersburgo, Roma e Amsterdã. melodias com poemas de Villon,
Claude Debussy.
201 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY
Ravel admirava Debussy, treze anos mais velho que ele: "Foi sos de coisas raras (música, poesia, objetos, pratos culinários),
ouvindo pela primeira vez L'après-midi d'un faune que com são secretos, sensuais, requintados. Ambos admiram os antigos
preendi o que era a música." Numa breve notícia autobiográ mestres franceses, a arte oriental, os poetas simbolistas, Edgar
10
fica , ele próprio ressalta a influência de Debussy em sua Shé Poe...
hérazade. Mas, para compreender o que o gênio de cada um Mas há no caráter e no estilo dos dois músicos diferenças fun
deles tem de original, é preciso evitar reduzir o mais jovem a damentais. Debussy é mais inteligente que Ravel, mas seu caráter
epígono... Claro, Debussy tornou Ravel possível; Fauré sem dú é menos firme; é influenciável e cede facilmente à complacência,
vida não teria bastado. Mas outras influências contribuirão pa é amoral e voluptuoso. Ravel é moralmente austero e inabalável,
ra a formação de um estilo que logo seguirá seu próprio ca sem hipocrisia nem complacência. Nascido numa família modes
minho. ta, Debussy formou-se ao acaso dos encontros, na roda aristo
Se pudermos reconhecer a Debussy uma anterioridade bem crática de Madame von Meek — entre Moscou e Florença —, na
nítida na pesquisa de novas sonoridades orquestrais e na subver Vila Médicis, nos cafés da boêmia. Ao contrário, a personalida
são da noção de harmonia, em compensação essa anterioridade de de Ravel desenvolveu-se no meio familiar de burgueses abas
será mais contestável no domínio pianístico: a escrita de Jeux d'eau tados, judiciosos e cultos.
ou de Miroirs pode muito bem ter impressionado o compositor Suas formações musicais foram sensivelmente diferentes: o
de Images e dos Prelúdios. Uma simples cronologia comparada primeiro diz-se aluno de Massenet (é mentira, mas significati
das obras importantes que os dois músicos consagraram ao piano vo), o segundo é aluno de Fauré. Sobretudo, suas sensibilidades
mostra que suas pesquisas foram paralelas: musicais se opõem em mais de um ponto. Debussy evoca a opa-
la, a transparência ou o reflexo, as Unhas esfumadas; Ravel,
o cristal, a luz viva, a precisão do traço. Debussy foge das for
Debussy Ravel mas preconcebidas, detesta as estruturas aparentes; Ravel se sub
mete por jogo, por mania de desafio, às formas mais exigentes
1901 Jeux d'eau (forma sonata, fuga, passacaglia). Debussy oculta seu know how,
Estampes 1903 Ravel esconde sua sensibilidade. O primeiro é um experimenta
L'isle joyeuse 1904 dor sempre insatisfeito; o segundo, um construtor minucioso,
1905 Miroirs; Sonatine que conhece a fundo o material que utiliza. A instrumentação
Images 1905-1907
de La mer é obra de uma intuição genial, que exige do intérpre
Children's Corner 1907-1908
te imaginação e iniciativa; a de Daphnis é a operação de uma
1908 Gaspard de la nuit
1908 Ma mère l'oye (4 mãos) ciência precisa e infalível, que exige do intérprete apenas a exa
Prelúdios 1 1910 tidão da leitura. Em sua técnica pianística, Debussy situa-se na
1911 Valsas nobres e sentimentais filiação de Chopin; Ravel, na de Liszt... Poderíamos seguir in
Prelúdios 2 1913 definidamente esse paralelo, com o risco de cairmos no lugar-
Estudos 1915 comum ou no paradoxo. Mas é absolutamente necessário re
nunciar, se já não se renunciou, a uma insuportável idéia pre
concebida: ao contrário de Debussy, lírico e sensível, Ravel se
O que há de comum entre Debussy e Ravel é próprio de uma ria exato e frio! Stravinsky, especialista em mecânica de preci
época da cultura musical francesa, que foi marcada pela estética são, qualifica-o de "relojoeiro suíço". Esse clichê inadequado
simbolista: horror ao pleonasmo, à redundância, exploração dos fez uma grande carreira.
velhos modos, gosto pelo exotismo, pesquisas de novas sonori
dades, harmônicas e instrumentais, etc. Ambos são opostos ao Ravel Deveremos, mais uma vez, trair Ravel, falando do que
wagnerismo, ao franckismo, ao formalismo da Schola. São curio- ele tinha tanto cuidado em esconder: seu coração? Sabe-se que ele
adorava as crianças de que se sentia próximo, que falava de gatos
com infinita ternura, que conhecia a arte de dar uma alma às coi
ί ο . "Esquisse autobiographique" [Esboço autobiográfico], ditado a Roland-
Manuel em 1928 e publicado pela primeira vez na Revue musicale em 1938 (nú sas. O horror aos desabafos e às confissões, o extremo pudor dos
mero especial consagrado a Ravel). sentimentos deram-lhe o hábito de um humor mistificador, que
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 208
idéias preconcebidas, é acessível a todas as influências, sem nun servatório, Théodore Dubois, é for
MAURICE RAVEL
ca perder sua originalidade. Pode encontrar nos outros uma ma Ciboure (Pyrénées-Atlantiques), 7 de m a r ç o de 1875 çado a se demitir. Ravel termina
neira de fazer, uma orientação estética, de que se servirá para fa Paris, 28 de dezembro de 1937
Miroirs e a Sonatina. Seu caráter
zer música de Ravel. A seu mestre Fauré, deve o fato de ter esca nobre lhe vale amizades profundas.
pado completamente das solicitações do wagnerismo pelo hábito Seu pai, Joseph Ravel (1832-1908), 1908 Ma mère l'oye e Gaspard de
da concisão clássica. A Debussy, deve a descoberta de um mundo engenheiro, natural da Savóia, bom la nuit.
sonoro inaudito. Mas, antes, assim como ele próprio declara na músico amador, foi inventor de um 1909 Ravel instala-se na avenue
autobiografia já citada, sofre em suas primeiras obras a influên motor térmico. Sua mãe, Maria De- Carnot, 4, e funda a Société musi
luarte (1840-1917), era basca. Jo cale indépendante, corn Koechlin,
cia de dois músicos pouco conformistas: Chabrier e Satie. A es
seph conhece-a na Espanha, onde Delage, Laloy, Schmitt, Huré. Fau
crita ascética do segundo encontra-se em suas versões para piano
n
participa da construção de estradas ré aceita ser presidente.
de Pavane pour une infante défunte e de Ma mère l'oye . Em de ferro. Três meses depois do nas
Shéhérazade, "a influência, ao menos espiritual, de Debussy é bem 1912 Estréia de Daphnis et Chloé
cimento de Maurice, o casal se ins
visível", indica Ravel; vamos encontrá-la passageiramente na Rap nos Balés Russos, com Karsavina e
tala em Paris.
sódia espanhola e em Daphnis. Nijinsky, sob a regência de Mon
teux.
Em 1913, Ravel entusiasma-se com a descoberta da Sagra 1889-1895 Aluno do Conservatório 1913 Temporada em Montreux
ção da primavera e também com Pierrot lunaire, cuja partitura de Paris, nas classes de Bériot (pia com Stravinsky, que lhe mostra a
Stravinsky lhe transmite (só ouvirá esta última obra em concerto no), Pessard (harmonia), Gédalge partitura da Sagração (três meses
no ano de 1921, quando da primeira audição parisiense). A reve (contraponto), sai sem nenhum prê antes da "estréia") e a de Pierrot
lação da obra de Schönberg suscita duas composições importan mio. lunaire.
tes, que assinalam uma virada decisiva na produção de seus auto 1898-1900 Ravel retorna ao Con 1916 Reformado por incapacitação
res: Três poemas de Stéphane Mallarmé de Ravel (canto, piano, servatório na classe de Fauré. Com física, consegue alistar-se como mo
quarteto, 2 flautas, 2 clarinetas) e Três poesias da lírica japonesa põe Payane pour une infante défuntorista de caminhão. Mal recupera
te. Nenhum prêmio! do de uma intervenção cirúrgica so
de Stravinsky (mesma formação). Os dois compositores estavam
1900 Primeira inscrição para o con frida na frente de combate, é defi
juntos em Clarens quando escreveram essas obras, e, como Stra
curso de Roma: é eliminado no con nitivamente reformado no ano se
vinsky teve o privilégio de ouvir Pierrot lunaire em Berlim dois
curso preliminar. guinte.
meses antes, é provável que a corrente de influência se tenha diri
1901 Ganha o "segundo grande 1920 Ravel compra o "Belvedere"
gido do mais moço ao mais velho. prêmio de Roma" (Caplet, primei em Montfort-FAmaury, onde se
O que Ravel parece ter retido da descoberta é principalmen ro prêmio). Jeux d'eau (executados instala, cercado de gatos siameses,
te uma estética global que coincide com suas próprias preocupa no ano seguinte na Société Natio de alguns amigos de verdade e de
ções de concisão e de rigor, tais como aparecem nas Valsas no nale por Viñes). uma coleção de brinquedos mecâ
bres e sentimentais (1911), importantíssima obra-prima negligen 1902 Apresenta-se pela segunda vez nicos. Mas mantém vínculos com o
ciada. O acompanhamento da voz por uma pequena formação ao concurso de Roma: nenhum prê País Basco, para onde retornará
instrumental, de possibilidades expressivas insuspeitas, constituía mio (primeiro premio: Kunc). Com com freqüência. Provoca um escân
notável novidade. Essa estética voltará a estar presente nas admi põe o Quarteto de cordas. dalo ao recusar a fita da Legião de
ráveis Chansons madécasses (1925), quintessência da música. A 1903 Apresenta-se pela terceira vez: Honra.
nenhum prêmio (primeiro prêmio: 1923-1928 Turnês de concertos na
influência de Stravinsky sobre Ravel é episódica, mas sensível,
Laparra). Holanda, Itália, Inglaterra, Es
principalmente na Sonata para violino e violoncelo, cujo final tem
1905 O júri do concurso de Roma candinávia, Canadá e Estados Uni
a rugosidade do violino da História do soldado. Enfim, Ravel so
recusa sua candidatura: "O senhor dos. Para sua grande surpresa, os
freu a atração do jazz e do music-hall, como atestam passagens Ravel pode considerar-nos uns pe ingleses acham-no um bom re
de L'enfant et les sortilèges, do Concerto para a mão esquerda dantes: não nos tomará impune gente.
e da Sonata para violino e piano. mente por imbecis." (Primeiros 1931-1932 Estréia do Concerto pa
prêmios: Gallois e Samuel-Rous ra a mão esquerda em Viena (Witt
seau). Escândalo: o diretor do Con genstein) e do Concerto em sol
11. " E l e me certifica, todas as vezes que o encontro, que me deve muito. Tu
do bem", declara Satie.
213 AS GRANDES CORRENTES: RAVEL
mm
rocos. Em Marrakech, o Glawi dá
uma grande festa em sua homena
Ravel ao piano;
à sua direita, Ricardo Viñes. gem.
1937 Seu estado se agrava e uma in
Gabriel Bacquier, Jane Berbié e
Albert Lance em L'heure espagnole
tervenção cirúrgica é tentada pelo
(Opéra-Comique, 1960). professor Clovis Vincent. Ravel
morre uma semana depois. É enter
rado no cemitério de Levallois, per
to de seus pais (e da fábrica dirigi
da por seu irmão Edouard).
O desafio aparece como um estímulo para a criação em Ra mites das possibilidades instrumentais, fazendo manar do teclado
vel; ele necessita de dificuldades a vencer, de contradições a resol cores desconhecidas. Bruscamente, ele adota em Ma mère l'oye
ver, de obstáculos a superar. Assim, todos sabem que ele foi um (1908), nas Valsas nobres e sentimentais e em Le tombeau de Cou
dos mais prodigiosos orquestradores de todos os tempos, que en perin "uma escrita nitidamente mais clarificada, que endurece a
riqueceu com mil sortilégios infalíveis a herança de Liszt e de harmonia e acentua os relevos da música" (Esboço autobiográfi
Rimsky-Korsakov. No entanto, escreveu pouco diretamente para co). O virtuosismo pianístico reaparece muito mais tarde nos con
12
orquestra e, a partir de 1913, renunciou aos acessórios do ilu certos, e é a limitação que lhe impõe um pianista maneta, Paul Witt
sionista, à diversidade furta-cor dos timbres, em benefício da cla genstein, que lhe inspira, para a mão esquerda só, novas superações.
reza, da linha pura, encontrando na austeridade novos meios de Esse mesmo espírito de desafio um pouco masoquista levou
sedução. Com uma perícia diabólica, fez da Sonata para violino Ravel, harmonista naturalmente voluptuoso (Daphnis, La valse),
e violoncelo uma obra de uma plemtude e de uma riqueza surpreen a sujeitar-se aos rigores do contraponto. Chega, por vezes, a su
dentes (pelo jogo das cordas duplas, o final parece escrito em quar blinhar a progressão linear das "vozes" mediante uma politona-
teto) e descobre possibilidades insuspeitas para os instrumentos tra lidade* agressiva. Essa escrita, muito na moda entre 1910 e 1930,
dicionais. O Bolero, ao contrário, é a repetição incansável de um deixava Saint-Saëns furibundo. A princípio fugidia e sutilmente
mesmo tema, no mesmo tom de dó maior (salvo a cativante mo justificada pelo contexto harmônico, ela se torna sistemática em
dulação para mi maior, logo antes do fim), sem outro desenvolvi certas obras de Strauss, Ravel, Stravinsky, Prokofiev e Milhaud,
mento além de um enriquecimento progressivo da instrumentação. a ponto de justificar o emprego simultâneo de armaduras de cla
ve diferentes. Assim, no Blues da Sonata de Ravel, o violino toca
em sol maior, enquanto o piano está em lá bemol maior; no iní
cio do Concerto em sol maior, o flautim (tema) e a mão direita
do piano estão em sol maior, enquanto a mão esquerda está em
fá sustenido maior. Os primeiros exemplos de politonalidade cons
ciente são os que encontramos na Salomé de Strauss (1905); mas
será Darius Milhaud quem tornará o procedimento sistemático
(Les Choéphores, 1915). O que por vezes pode parecer uma cola
gem artificial, ou uma deliciosa provocação, corresponde a uma
tendência estética geral, a partir de 1910; em reação contra todos
os "ismos", cujos reflexos movediços esfumavam a nitidez do dis
curso musical, busca-se a nudez, a Unha pura, as arestas vivas,
a dissonância que ousa dizer seu nome e um "lirismo inequívoco
em que o artista não tenta fazer de modo que se tome sua indús
tria por sua emoção", como dizia Valéry.
Ravel conciUa tudo, faz a herança dar frutos, permanecendo
em sintonia com seu tempo, e o interesse que tem pela nova músi
1111111 ca fortalece sua influência sobre os jovens. Há, sim, uma "cor
rente" raveliana, distinta da corrente debussysta, e, quando de
φ. gfc φ. φ φ φ 5c * i- * £ pois de 1918 os jovens músicos do grupo dos Seis e seu diretor es
piritual, Jean Cocteau, se opõem de saída à estética de Ravel, ain
Gaspard de la Nuit, "Scarbo".
da não compreenderam o que devem a ele. Darius Milhaud obser
Em Jeux d'eau (1901), que está "na origem de todas as novi va, em 1938, "a imensa influência" que ele continua a exercer sobre
dades pianísticas que quiseram notar em minha obra", em Mi os aprendizes de compositor cujos exercícios acaba de ouvir: " A
roirs (1905) e em Gaspard de la nuit (1908), Ravel alcança os li- sutileza harmônica, a construção das obras de música de câmara
(em que as reminiscências do Trio são freqüentes), o estilo de cer
12. Shéhérazade, Rapsódia espanhola, Daphnis, La valse, Bolero, os dois con
tos elementos melódicos, algumas fórmulas de orquestração, tu
O Esquilo de
certos. E m compensação, orquestrou suntuosamente grande número de obras des do deriva da personalidade raveliana." Teria então Raveí se tor L'enfant et les sortilèges,
tinadas ao piano. nado acadêmico? Ele próprio tem consciência do perigo, pois de- visto por Paul Colin.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 216
1910-1912 Berlim. É professor do vataufführungen, onde estréiam nu obra Quatro obras dramáticas: Er
A R N O L D SCHÖNBERG
Viena, 13 de setembro de 1874 conservatório Stern, graças à reco merosas obras contemporâneas. wartung (Praga, 1924), Die Glück
L o s Angeles, 13 de julho de 1951
mendação de Richard Strauss. Es 1923 Primeira composição serial (a liche Hand(Viena, 1924), Von Heute
tréia do Pierrot lunaire (1912). Ex última peça do Opus 23). auf Morgen (Frankfurt, 1930), Mo
Muito embora fosse talentosíssimo põe suas pinturas com o grupo 1924 Estréia de Erwartung, no fes ses und Aaron (Zurique, 1957). Gur
e aprendesse violino desde os oito "Blaue Reiter" e o Douanier Rous tival da SIMC em Praga. relieder, para solistas, coros e orques
anos, seus pais não o destinaram à seau. 1924-1933 Berlim. Schönberg é no tra; Pierrot lunaire, para voz, piano,
música. Ele trabalhou a composição 1912-1914 Viena, onde retoma o meado professor da Akademie der flauta, clarineta, violino, violonce
como autodidata, com exceção de ensino. Künste. Tirado de suas funções em lo; Ode a Napoleão, para recitante
algumas aulas de contraponto com 1913 Primeira audição, em Viena, 1933 pelo novo ministro nacional e orquestra de cordas; Kol Nidrei e
Alexander von Zemlinsky (1872¬ dos Gurrelieder. Rege um concerto socialista, parte para Paris, onde Um sobrevivente de Varsóvia, para
1942). que acaba com a intervenção da po volta à religião israelita, abandona recitante, coro e orquestra. Coros,
lícia e que tem no programa: sua da desde 1921. Heder (dentre os quais Opus 8 e Opus
1899 Primeira audição do sexteto Sinfonia de câmara op. 9, as Peças 1933 Partida para os Estados Uni 22 com orquestra). Peças para or
Verklärte Nacht. para orquestra op. 6 de Webern, os dos. Dá aulas primeiro em Boston e questra, um concerto para violino,
1901 Casamento com Mathilde von Lieder op. 4 de Berg (a vaia é tal, Nova York. um concerto para piano. Quatro
Zemlinsky, irmã de Alexander. que não é possível executar os Kin- 1936 Instala-se em Los Angeles, co quartetos de cordas, um sexteto
1901-1903 Berlim. Schönberg diri dertotenlieder de Mahler, última mo diretor do departamento musi ( Verklärte Nacht, também arranja
ge operetas no Buntes Theater. obra do programa). cal da Universidade da Califórnia. do para orquestra de cordas), Sere
1903-1910 Viena. Início de sua car 1914 Concertos em Londres, Leip Pedirá demissão em 1944. nata op. 24, Quinteto op. 26, Trio de
reira pedagógica: Berg e Webern es zig e Amsterdã. 1944-1951 Leva uma vida retirada, cordas op. 45. Peças para piano
tão entre seus primeiros alunos. Pri 1917 Schönberg funda em Viena um compondo pouco. Antes de morrer, (Opus 11, 19, 23, 25, 33). Transcri
meiras obras atonais (Peças para "Seminar für Komposition", que, retomou uma última vez o manus ções e adaptações. Numerosas obras
piano op. 11: 1908). Primeira expo com seu incentivo, vai tornar-se o cé crito de sua obra-prima inacabada, e artigos teóricos ou pedagógicos.
sição de suas pinturas (1910). lebre Verein für Musikalische Pri- Moisés e Arão. Trabalhos de pintura.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 218 219 AS GRANDES CORRENTES: SCHÖNBERG
13
O dodecafonismo é um "método de composição com do meçando pelo fim), inversão do original (em que os intervalos são
ze sons, que não têm outras relações além da de um com outro", invertidos), retrógrado da inversão:
edificado pouco a pouco por Schönberg entre 1909 e 1923. Con
siderando que não há noção fundamental de dissonância*, mas
estados de consonância mais ou menos distantes, toma o partido
Direta
de renunciar a toda e qualquer hierarquia entre os doze sons da
escala cromática*, concedendo a todos uma igual dignidade har
mônica. Na última das Três peças para piano op. 11 e nas Cinco Inversão
peças op. 16, compostas em 1909, a dissolução das funções to
nais é completa. Retrógrada
Mas era preciso encontrar um método que permitisse utili
zar os doze sons da escala temperada, permanecendo fiel ao prin Retrogrado
cípio de sua equivalência: o aparecimento mais freqüente de cer da inversão
tos sons ou as remimscências de fórmulas diatónicas* poderiam
polarizar o interesse, sugerir novas relações privilegiadas. Ade Schönberg, série da Suíte op. 25
mais, o espírito construtivo de Schönberg não se quer deixar
encerrar num procedimento puramente negativo. A palavra "ato- Cada uma dessas formas admite uma transposição para cada
14
nalidade" , que dá conta de um só aspecto do dodecafonis um dos doze graus da escala cromática, o que dá um total de
mo, lhe desagrada. Depois de haver desenvolvido uma notável quarenta e oito versões disponíveis de uma mesma série. Um
teoria da harmonia atonal em 1911, em seu Harmonielehre, é "tema" pode ser composto de vários fragmentos melódicos, em
só em 1923 que Schönberg formula seu método de composições prestados cada um deles das quarenta e oito fórmulas disponí
em doze sons iguais, baseado no novo princípio da "série", ou veis, estando cada fragmento harmonizado por sons complemen
Grundgestalt, que acaba de utilizar na última das Cinco peças tares tomados de uma outra versão da série geradora. O con
para piano op. 23 e no quarto movimento (Soneto) da Serenata junto pode ainda ser complicado com a escrita em cânon, as
op. 24. variações rítmicas, etc.
A série, cujo princípio foi imaginado por Josef Matthias Teoricamente, nenhuma nota deve ocupar uma posição pri
Hauer (1883-1959), e não por Schönberg, é uma sucessão funda vilegiada, como no sistema tonai. "Mesmo uma ligeira reminis si
mental dos doze sons, sem repetição nem oitava dobrada, dispos cência da antiga harmonia revelava-se incômoda, porque criava
tos pelo compositor numa ordem que determinará o desenvolvi inevitavelmente falsas esperanças em relação às conseqüências e
mento ulterior. O sistema de Hauer repousa na classificação de às continuações. O uso de uma tônica será decepcionante se não
numerosas séries possíveis de doze sons (12! = 479.001.600) em for baseado no fato de reger todas as relações da tonalidade. Do
44 tropen ou famílias melódicas, que teriam na música de doze mesmo modo, o uso de mais de uma série estava excluído, porque,
sons um papel análogo ao das armoniai na música grega ou dos em cada série seguinte, um ou vários sons teriam sido repetidos
mürchhanã na música indiana. cedo demais. Esse uso de várias séries fazia surgir o perigo de que
Cada série pode apresentar-se sob quatro formas, segundo um som repetido podia ser interpretado como uma tônica. De ma
15
o princípio utilizado nos estilos tradicionais de imitação contra- neira geral, o efeito de unidade seria diminuído com isso."
pontística: forma original, forma retrógrada ou caranguejo (co- Schönberg é, em suma, o menos subversivo dos quatro gran
des compositores que orientaram as principais correntes musicais
de nosso século. Constatando um fato histórico, ele estabeleceu
13. Deve-se essa denominação a René Leibowitz (1913-1972), que por meio
de seus escritos, seus concertos e seu ensino, com um zelo obstinado e uma pro uma ordem no novo meio sonoro que lhe era dado. Do mesmo
funda compreensão da história musical, iniciou toda uma geração de composito modo que Freud não desencaminhou a psicologia, ou Marx, a eco
res no "dodecafonismo". nomia política e a história, também Schönberg não desencami
14. Confunde-se com freqüência o conceito de atonalidade com o dodecafo
nhou a música.
nismo. Ora, a aplicação de um m é t o d o de desenvolvimento "serial" a uma divi
são da oitava em 24 quartos de tons ou em 6 tons iguais também geraria composi
ções atonais. Ε a indeterminação tonal da Nona sinfonia de Beethoven (lá maior 15. A . Schönberg, " L a composition à douze sons", conferência pronuncia
ou menor? si menor? ré maior ou menor?...) é uma espécie de atonalidade. da em 1939 (trad. Leibowitz, Polyphonie n° 4, Paris, 1949). Pierrô
9. Gebet an Pierrot. 221 AS GRANDES CORRENTES: SCHÖNBERG
(kläglich)
A acusação feita a Schönberg de ser um compositor "inte Terá a corrente dodecafonista sido pressentida por Alexan
lectual" refere-se ao lado racional que faz parte de seus procedi dre Scriabin (1872-1915) antes de Schönberg? Esse músico estra
mentos. "Prefiro compor como um intelectual a fazê-lo como um nho, que a princípio foi um epígono de Chopin e de Liszt, entusi
imbecil!" A lógica formal é, antes de mais nada, para ele, um asmou-se com a teosofía e produziu uma série de obras audacio
fator de compreensão. Ele se explica a respeito na conferência já sas, relacionadas a uma metafísica desconcertante, mas em parte
citada: "O valor artístico exige a compreensibilidade, não apenas genial. Nunca carecendo de expressões infelizes, Stravinsky trata-o
tendo em vista uma satisfação intelectual, mas também para sa de "enfisema musical". Scriabin declara modestamente: "Eu não
tisfazer a emoção. A idéia do criador deve ser exposta (de manei sou nada, eu sou Deus." A partir de 1908 aproximadamente, Scria
ra inteligível), qualquer que seja a emoção que tenha querido evo bin emprega escalas modais e uma harmonia ambíguas, decorren
car. A composição com doze sons não tem outro objetivo além tes, por caminhos às vezes misteriosos, de um acorde de quartas
da compreensibilidade." sobrepostas que ele qualifica de "sintético" e que é o acorde má
A inteligência que preside à reflexão teórica não impõe à obra gico por excelência. Sem dúvida, ele encontra bem antes de Schön
nem secura, nem dureza. A terceira das Cinco peças op. 16, inti berg um método de desenvolvimento de tipo serial, em que inter
tulada Farben, é mtidamente "impressionista", no sentido em que vém a noção de complementaridade, evocada acima (um tema for
esse termo foi aplicado à música. É mais verdade ainda para Pier mado de uma parte dos sons da escala modal, por exemplo, é
rot lunaire, em que a sutil diversidade de cores é extraordinária, acompanhado pelas notas complementares); sem dúvida, os es
16
apesar da extrema limitação do efetivo instrumental: essa riqueza boços da sua última obra O ato prévio, que data de 1913-1914 ,
sonora e a habilidade que ela atesta parecem-me mais notáveis nes contêm vários acordes de doze sons. No entanto, seu sistema har
sa histórica obra-prima do que a novidade do Sprechgesang, téc mônico é essencialmente modal e não exclui as polaridades; ele
nica de expressão vocal a meio caminho entre o canto e a decla- anuncia muito mais Bartók e Messiaen do que Schönberg e seus
mação. Mas as obras que são fruto do método serial são mais sig sucessores. Voltarei mais adiante a isso.
nificativas. O ouvinte que aceita a regra do jogo sem buscar em Os dois principais discípulos de Schönberg — Alban Berg e
vão o que dela está deliberadamente excluído — a lógica tonai Anton Webern — completam sua obra de maneira tão notável,
— não deixa de descobrir nela a sensibilidade, a emoção, a no que formam no espírito dos melómanos a trindade do dodecafo-
breza de um grande músico e de um homem de coração, em par nismo serial. Suas personalidades bastante diferentes fizeram-nos
ticular em algumas obras mestras: Variações para orquestra op. adotar estéticas quase opostas. Berg é caloroso, sociável, sua in
31, Peças para piano op. 33, Concerto para violino op. 36, Trio teligência é expansiva. Webern é discreto, sutil, sua inteligência
de cordas op. 45 to monumental Moses und Aaron, obra-prima é reflexiva.
de Schönberg. Tudo canta nessa música "sem melodia".
Berg O lirismo de Berg inscreve-se na tradição vienense de Mah
ler, cujas obras, em particular a Sexta e a Nona sinfonia, exerce
ram uma influência profunda sobre o jovem músico (que mante
rá uma amizade fiel com Alma Mahler, viúva do compositor e
a quem foi dedicado Wozzeck). No entanto, a personalidade de
Berg afirmou-se desde os vinte e cinco anos (Quarteto op. 3) nas
primeiras obras em que se emancipou das funções tonais. Partin
do dessa época, podemos distinguir em sua obra dois períodos,
cujo ponto de transição é ocupado pela Suíte lírica para quarteto
de cordas (1925-1926), sua obra-prima instrumental.
O primeiro é caracterizado pela exploração livre de um ato-
nalismo expressivo. O auge desse período é Wozzeck.
Tvampette
en at b
«ee. seut-d- m
JRP^= 3
tfotcissimo
Trombone
avec sourd.
Encontramos nesse mesmo concerto (segundo movimento, comp.
136-157) uma citação do coral Es ist genug e, na Suíte lírica (sex Zeit lassen.
sehr gebunden.
to movimento, comp. 26-27), uma citação de Tristão e Isolda. Es dotée -3-1 r-3-
turbado com o lirismo penetrante da concisão, com o encanto se — Mais de meio século depois das primeiras obras seriais,
creto da fragilidade. Em certas Bagatelas, quase todas as notas a grande maioria da música consumida no mundo ocidental per
de uma melodia são dotadas de timbres diferentes (explorando manece dependente do sistema tonai. Essa música de consumo não
todos os recursos instrumentais do quarteto). Essa técnica é a da é, decerto, representativa do pensamento musical contemporâneo,
Klangfarbenmelodie ("melodia de timbres"), que Schönberg es mas todos nós vivemos, queiramos ou não, imersos na tonalida
boçou no fim de seu tratado de harmonia e aplicou pela primeira de. Daí decorre necessariamente que o dodecafonismo está isola
vez na terceira das Peças op. 16 (1908). Webern irá dar-lhe um do num gueto para especialistas.
emprego particularmente notável na Sinfonia op. 21. A partir de — O rigor do método implica o temperamento igual. Ora,
1924 (Geisttische Volkslieder op. 17), sua escrita muito pessoal trata-se de uma escala artificial, como se sabe, e muitos instru
assimila o método serial de Schönberg e permanece estritamente mentistas não evitam recair nos intervalos naturais, buscando a
fiel a ele. Longe de constrangê-lo, essa disciplina parece libertá- expressão e a qualidade sonora. Assim, o intérprete tenderá a po
lo; pelo menos,' ele concebe obras mais longas e, em suas últimas larizar o desenvolvimento serial em certos sons, forçando os in
composições (duas Cantatas e Variações op. 30), o estilo de We tervalos para acentuar seu caráter expressivo.
bern se faz mais expressivo, mais contínuo. A segunda Cantata
— Por seu radicalismo, o método não permite retorno. Ora,
(1943) é sua obra mais vasta, tanto pela duração quanto pelo efe
ele estabelece dois limites à evolução da polifonia: a complexida
tivo instrumental.
de da escrita (logo da execução e da inteligibilidade) e o esgota
A obra de Webern abre novas perspectivas ao estabelecer
mento das permutações possíveis de doze sons. Além daí, a histó
uma espécie de identidade entre melodia e harmonia (a noção
ria da polifonia deve cessar. Sabemos que iremos morrer; mas não
de acorde é substituída pela de melodia instantânea), aplicando
queremos saber quando.
às sucessões de timbres uma espécie de desenvolvimento serial,
libertando o ritmo da regularidade métrica para lhe dar uma — A variação perpétua da estrutura serial (em contradição,
função compositiva mais precisa, reduzindo tudo ao essencial. de resto, com o princípio de não-repetição) poderia gerar cerja
Seu idealismo, sua simplicidade, sua absoluta independência e monotonia. Mas o ouvinte mediano, confundido pelo emprego
a extrema pureza de seu estilo exercerão um fascínio sobre os de grandes intervalos (superiores à oitava), fica sem pontos de
jovens compositores após a Segunda Guerra Mundial. O radi apoio para sua memória e sua imaginação. Ele percebe muitas ve
calismo de Webern vai levá-los a descobrir na obra de Schön zes o conjunto como uma combinação de acontecimentos sono
berg uma contradição que julgarão severamente: a fidelidade ros aleatórios ou, na melhor das hipóteses, como uma comunica
a formas clássicas e a convenções rítmicas tradicionais, no âm ção esotérica. Se o dodecafonismo serial fracassou enquanto sis
bito de um método de composição que deveria ser radicalmente tema universal e coletivo (Schönberg era demasiado lúcido para
novo. "O único, na realidade, que teve consciência de uma no pensar que algum dia ele se tornasse tal), pelo menos é um méto
va dimensão sonora, da abolição do horizontal oposto ao verti do exemplar de reflexão musical, uma excelente "base" antes da
cal, para não ver na série mais que uma maneira de proporcio conquista de terras desconhecidas.
nar uma estrutura ao espaço sonoro, para de certa forma fibrâ-
lo, foi Webern" (Boulez, Relevés d'apprenti, Le Seuil, 1966).
A severidade para com Schönberg adquirirá nos neo-seriais for
mas absurdas, até que seu gênio seja finalmente reconhecido.
Talvez se deva passar por Webern para compreender Schön
berg...
De modo geral, a corrente dodecafonista sempre foi mal aceita
pelo grande público e por uma parte do mundo musical. Os mes
tres da cultura nazista condenaram-na como ' 'judaico-bolchevi-
que"; para Jdanov e os músicos soviéticos oficiais, ela era "for
malista" e "cosmopolita". Uma parte da crítica julgava-a "inte
lectual", incompreensível, destruidora. A falência do dodecafo-
nismo pode ser atribuída a várias causas:
Os B A L É S RUSSOS D E D I A G H I L E V ( 1 9 0 9 - 1 9 2 9 )
PRINCIPAIS CRIAÇÕES
local e data compositor título regente coreógrafo cenário principais local e data compositor título regente coreógrafo cenário principais
e figurinos intérpretes e figurinos intérpretes
1910 Paris, Stravinsky O pássaro de Pieraé Fokine Golovine Karsavina, Fokine 1926 Paris, Satie (orq. Jack Désormière Balanchine Derain Idzikovsky, Dalinova
Opéra fogo Bakst Sarah-Bernhardt Milhaud) in the box
1911 Paris, Stravinsky Petruchka Monteux Fokine A . Benois Nijinsky, Karsavina, 1927 Désormière Balanchine Garbo Spessivtzeva, Lifar
La Chatte
Châtelet Nijinska, Schüllar Sauguet
Monte Cario e Pevsner
1912 Paris, Debussy L'Après-midi Monteux Nijinsky Bakst Nijinsky 1927 Paris, Mercure Désormière Massine Picasso Massine
Châtelet d'un faune Fokine O. Redon Satie
Cigale
1912 Paris, Ravel Daphnis Monteux Fokine Bakst Nijinsky, Karsavina 1927 Paris, Prokofiev O paço de aço Désormière Massine Jaculov Tchernicheva,
Châtelet et Chloé Sarah-Bernhardt Dalinova, Massine,
1913 Paris, Debussy Jeux Monteux Nijinsky Bakst Karsavina, Schollar, Lifar
Champs-Elysées Nijinsky 1928 Paris, Stravinsky Apolo Désormière Balanchine Bauchant (D) Lifar, Tchernicheva,
1913 Paris, Stravinsky A sagração Monteux Nijinsky Roerich Marie Piltz, Sokolova Sarah-Bernhardt musageta Chanel (C) Dalinova,
Champs-Elysées da Primavera Dubrovska
1913 Paris Schmitt Tragédie de Monteux Romanov Soudeikine, 1929 Paris, Prokofiev O filho Prokofiev Balanchine Rouault Lifar, Dubrovska
Champs-Elysées Salomé Karsavina Sarah-Bernhardt pródigo
1917 Paris, Satie Parade Ansermet Massine Picasso Lopokova, Massine
Châtelet
1919 Londres, Rossini- La Boutique Delfosse Massine Derain Lopokova, Sokolova,
Alhambra Respighi fantasque Massine
1919 Londres, Falla 0 tricornio Ansermet Massine Picasso Karsavina, Massine
Alhambra
Os B A L É S SUECOS D E R O L F D E M A R É
1920 Paris, Stravinsky O canto do Ansermet Massine Matisse Karsavina, Sokolova
Opéra rouxinol PRINCIPAIS CRIAÇÕES
1920 Paris, Stravinsky Pulcinella Ansermet Massine Picasso Karsavina,
Opéra Tchernicheva,
Massine local e data compositor título regente coreógrafo cenário principais
1921 Paris, Prokofiev Chut Ansermet Larionov Larionov Slavinsky, Sokolova e figurinos intérpretes
Gaîté-Lyrique ("le Bouffon")
1922 Paris, Stravinsky Renard Ansermet Nijinska Larionov Nijinska, Idzikovsky
Opéra 1921 Paris, Milhaud L'Homme et Inghelbrecht Borlin A . Parr Borlin, Johanson
1923 Paris, Stravinsky Les Noces Ansermet Nijinska Gontcharova Dubrovska, Champs-Élysées son Désir
Gaîté-Lyrique Voizikovsky, Ignatov 1921 Les Six Les Mariés de Inghelbrecht Borlin Lagut (D) A r i , Figoni, Smith
1924 Poulenc Les Biches Flament Nijinska Marie Tchernicheva, Champs-Élysées la Tour Eiffel J . Hugo (C)
Monte Carlo Laurencin Nemchinova, 1923 Milhaud La Création Golschmann Borlin Léger Borlin, Strandin
Dubrovska Champs-Élysées du Monde
1924 Auric Les Fâcheux Flament Nijinska Braque Nijinska, 1924 Satie Relâche Désormière Borlin Picabia Bonsdorff, Borlin,
Monte Carlo Tchernicheva, Dolin Champs-Élysées (com Entr'acte Smith
1924 Paris, Milhaud Le Train bleu Monteux Nijinska Laurens (D) Nijinska, Sokolova, de René Clair)
Champs-Elysées C . Chanel (C) Dolin, Voizikovsky
(cortina:
Picasso)
1925 Paris, Auric Les Matelots M . C . Scotto Massine Pruna Lifar, Voizikovsky.
Gaîté-Lyrique Slavinsky,
Nemchinova
Stravinsky No fim de 1908, Serguei Pavlovitch Diaghilev (1872- Renard, de Stravinsky,
cen
1929), apreciador de arte e organizador de concertos, que acaba ári° de Larionov.
de revelar ao público parisiense a música dos "Cinco" russos, ouve
em São Petersburgo as obras de um jovem aluno de Rimsky-
Korsakov, Igor Feodorovitch Stravinsky. Fica tão impressiona
do com a última composição de seu jovem compatriota, uns des
lumbrantes Fogos de artifício para grande orquestra, que lhe en
comenda a partitura do Pássaro de fogo para a companhia de Balés
Russos, que acaba de fundar com Mikhail Fokine.
Essa companhia faz sua primeira temporada em Paris em
1909, e O pássaro de fogo é apresentado em junho do ano se
guinte pela grande Karsavina, tornando imediatamente célebre
no mundo inteiro o nome do compositor de vinte e oito anos.
Raramente em nossa época, uma obra-prima tão consumada saiu
da pena de um músico tão jovem. A orquestra fulgurante fazia
parecer baços os dourados de Rimsky-Korsakov. A súbita eclo
são do gênio de Stravinsky, a rápida sucessão de suas obras-
primas e a influência destas sobre a música contemporânea esti
veram ligadas aos balés russos de Diaghilev. Uma fecunda in
fluência recíproca subverteu ao mesmo tempo a arte coreográfi
ca e a música de balé.
Nem poeta, nem músico, nem pintor, nem coreógrafo, Dia
ghilev foi, sobretudo, um prodigioso animador. A segurança de
seu juízo estético, sua intuição do devir das diferentes artes e seu
trato irresistível permitiram-lhe reunir os maiores artistas, conhe
cidos ou desconhecidos, em cada disciplina. Muito mais que uma
empresa de balés, ele realizou um espetáculo total, cuja estética
é uma síntese das principais correntes contemporâneas. Rompen- Diaghilev e Nijinsky,
do com os lugares-comuns do balé romântico, não só reconciliou desenho de Cocteau.'
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 238 239 AS GRANDES CORRENTES: STRAVINSKY
a música e a dança; também quis que o poeta libretista e o pintor fim. Mas a maioria dos músicos, os que conheciam a partitura,
se associassem plenamente numa forma de espetáculo coreográ que haviam assistido aos ensaios, ou que haviam voltado para uma
fico em que a arte mais avançada de seu tempo pudesse ser facil representação menos tumultuada, em particular Debussy e Ravel,
mente comunicada ao grande público. Seus suntuosos quadros ani estes sabiam que haviam assistido a um grande acontecimento ar
mados realizaram a mesma síntese que, outrora, as festas floren tístico.
tinas e os balés de corte. Esses "Quadros de uma Rússia pagã", segundo uma idéia
Graças à dedicação de Karsavina e à autoridade de Diaghi de Stravinsky, inspiram-se numa crença milenar, segundo a qual
lev, a brusca mutação na arte do balé foi aceita com entusiasmo a vida nasce da morte: a primeira parte é consagrada à Adoração
pelo público, com exceção de um pequeno número de habitués
da terra, a segunda ao Sacrifício de uma jovem ao deus da Pri
da Ópera, sistematicamente opostos a uma arte "bolchevique".
mavera. Numa época em que a vanguarda musical, representada
O deslumbramento provocado pelo Pássaro de fogo ainda dura.
na França por Debussy e Ravel, se distinguía por um extremo re
A personalidade do pequeno músico russo, triste, frio, aplica
finamento, esse ritual primitivo, acompanhado por uma música
do, fascinava o mundo musical. " É um jovem selvagem que
usa gravatas tumultuosas, beija a mão das mulheres pisando- violentamente contrastante, devia naturalmente surpreender. Uma
Ihes os pés", escreve Debussy. "Velho, ele será insuportável, parte do público só viu, a princípio, nesses quadros grandiosos
isto é, não suportará nenhuma música; mas, por enquanto, é uma horrível pintura dos instintos mais selvagens. O primitivis
inaudito." mo do tema e da coreografia, em que os dançarinos assumiam
Um ano depois, em 1911, os balés russos montam Petruch- poses inabituais (pés para dentro, joelhos dobrados, braços rígi
ka. No mesmo ano, O martírio de São Sebastião de Debussy es dos...), sem dúvida chocou mais do que a música, encoberta uma
tréia em Paris, sob a regência de Caplet, apesar da oposição do parte do tempo pelo barulho da sala.
cardeal-arcebispo, que ameaça os espectadores de excomunhão. A sagração da primavera é, sem dúvida, a obra-prima de Stra
Ainda no mesmo ano, Schönberg publica seu tratado de harmo vinsky. Mas a "revolução" que se credita a essa partitura genial
nia e Bruno Walter rege em Munique a primeira audição póstu foi um pouco exagerada. No plano harmônico, em particular, não
ma do Canto da terra de Mahler. há subversão radical capaz de desconcertar um ouvinte de 1913
A nova partitura do jovem Stravinsky é bem diferente da Figurino de Petruchka
habituado à música contemporânea. Desde os primeiros anos do
por Georges Lepape.
anterior, mas igualmente sedutora. Ele começava a escrever um século, os compositores não hesitam mais em utilizar qualquer
concerto para piano quando lhe veio a idéia de "um fantoche agregado sonoro, em primeiro lugar Debussy, numa intenção pu
subitamente desembestado que, com suas torrentes de arpejos ramente harmônica. Na Sagração, os agregados politonais são
diabólicos, exaspera a paciência da orquestra"; e transformou mais freqüentes e mais complexos do que em Petruchka, mas o
em balé o projeto inicial. Petruchka é um imenso teatro de fan princípio é o mesmo e o sentimento tonai (por vezes modal: mo
toches, animado por uma partitura insólita, em que são integra dos de lá e de ré, sobretudo) é fortemente afirmado. O acorde
dos com um virtuosismo assombroso canções populares, refrões característico dos Auguriosprimaveris (mib maior com sétima me
e músicas das ruas. O bulício colorido do parque de diversões
nor + fáb maior), que se encontra em apresentações e tonalida
é acentuado por uma escrita musical que dá a sensação da multi
des diferentes em toda a partitura, não introduz nenhum equívo
plicidade, graças a procedimentos de dissociação novíssimos na
co na tonalidade do trecho (mib); só surpreende pela maneira
época: politonalidade, polirritmia, timbres muito diferenciados.
brutal e assimétrica como é tocado. Em face do sistema tonal, Stra
Uma vez mais, o público e os músicos ficaram deslumbrados.
Ninguém achou o que criticar nas misturas de ritmos e de tonali vinsky não é nem um dissidente, nem um reformador. Ele não
dades que evocam o parque de diversões, nem mesmo no motivo mata aula: faz bagunça na classe.
de Petruchka e em seu acorde característico, que sobrepõem dó No plano rítmico, a técnica é mais original. Desde a sutil no
maior e fá# maior. tação dos acelerandos e dos ralentandos nos primeiros compas
A terceira obra-prima de Stravinsky, A sagração da prima sos, até as perpétuas mudanças de compasso da Dança sacral, tu
vera, não foi tão facilmente aceita. Na noite histórica de 29 de do é empregado para criar uma espécie de enfeitiçamento, seja
maio de 1913, no Théâtre des Champs-Élysées novinho em folha, pela obsédante regularidade das pulsações, associada a ostinati
a algazarra era tão intensa desde o começo que mal se ouvia a encantatórios, seja, ao contrário, por uma perturbadora assime
orquestra. Saint-Saëns saiu estrepitosamente do teatro antes do tria. Entretanto, a audácia rítmica de Stravinsky foi freada por
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 240
O deus azul, música de R . Hahn,
coreografia de Fokine baseada num
seu conservadorismo harmônico, como a audácia harmônica de argumento de Cocteau, projeto de cenário
Schönberg foi freada por seu conservadorismo rítmico. Acrescento de Léon Bakst (1912).
A sagração da primavera
sob a influência de seu "auxiliar musical", o jovem regente ame que encontra seus derradeiros representantes no século XX, alguns
17
ricano Robert Craft , e após uma visita ao túmulo de Webern criadores independentes souberam preservar sua originalidade.
em Salzburgo, ele realiza sua mais estranha conversão, dois anos
depois da morte de Schönberg. O choque decisivo teria sido pro A escola francesa Na França, o culto de Franck é piamente man
vocado por uma obra de Webern, ouvida várias vezes durante es tido por seus últimos alunos, dos quais os mais notáveis, fora Vin
sa viagem à Europa, o Quarteto op. 22, para violino, clarineta, cent d'Indy, são Guy Ropartz (1864-1955), cantor inspirado de
saxofone e piano. sua pátria bretã, e os dois sucessores do organista de Sainte-
Em In memoriam Dylan Thomas (1954), em Canticum Sa Clotilde, Gabriel Pierné (1863-1937), que também é, como regen
crum em homenagem a São Marcos (1956), no balé Agon (1957), te, um achuirável intérprete de Debussy, e Charles Tournemire
em Threni (1958), em que o pavoroso martelamento das süabas (1870-1939), tão grande sinfonista quanto improvisador, herdei
latinas e a complexidade agressiva da polifonia submetem o ou ro dos antigos mestres do órgão. O ensino rigoroso da Schola,
vinte a uma insuportável tortura, em Requiem Canticles (1966), dividido contraditoriamente entre o culto de Wagner e a defesa
etc., Stravinsky demonstra mais uma vez sua faculdade de adap obstinada da ordem tonai, só produziu frutos secos. O maravi
tação e sua extraordinária mestria, submetendo a escrita serial à lhoso Déodat de Séverac (1873-1921) deve-lhe sua formação. Suas
sua vontade. Mas emprega seu talento superior muito mais para peças para piano, carregadas de impressões meridionais, são pe
ι retardar do que para ultrapassar a corrente: apesar de sua perfei quenas obras-primas infinitamente sedutoras: "sua música tem
ta assimilação de um método de composição que antes mal co um cheiro gostoso", dizia Debussy.
nhecia — e que Boulez começa então a superar —, ele não resiste No entanto, o mais glorioso aluno da Schola é Albert Roussel
às simetrias e às polaridades sacrüegas, sustentando uma contra
(1869-1937), grande músico ignorado, cujo talento foi mais aprecia
dição insolúvel entre seu compromisso serial e sua nostalgia to-
do na Alemanha e na Inglaterra do que em seu próprio país. Come
• nal. "Os intervalos de minhas séries são atraídos pela tonalida
çando tarde seus estudos musicais, esse ex-oficial da marinha é, a
de", explica, o que não tem sentido numa organização serial e
princípio, considerado um amador; mais tarde, seus primeiros ad
trai a fragilidade de suas opções, sua reticência em comprometer-
miradores o acharão demasiado erudito, e os jovens músicos do pe
ï se a fundo. Incapaz de esgotar a lógica de um sistema para mos
trar um novo caminho além, Stravinsky continua sendo um alu ríodo entre as duas guerras acreditarão descobrir nele um genial ino
no bagunceiro entre os jovens neo-seriais, de que não tem nem vador. Na primeira parte da sua obra, em que culmina Le festin de
a sinceridade, nem a audácia. Mas ele os maravilha com seu vir l'araignée (1913), a influência franckista (através de D'Indy) combina
tuosismo — e é mesmo um pouco o que deseja. se com a de Debussy, a forma e a sensualidade se reconciliam.
A maioria dos músicos que começaram sua carreira entre as Depois da guerra, principalmente a partir de 1926 (Suíte em
duas guerras cultuou Stravinsky. Sua influência foi tão grande, que fá), Roussel se orienta para uma arte mais severa, mais linear, com
a história da música teria sem dúvida seguido outro curso e econo grandes frases caracterizadas por sua ambigüidade modal. A es
mizado várias crises, se ele tivesse perseverado no caminho esplên
dido aberto por Petruchka e pela Sagração, por Renard e por Les
crita contrapontística é soberana. As obras-primas desse período
são o Salmo 80, a Terceira e a Quarta sinfonia e sobretudo o balé
"•-#*©5»}Α- ·:/ :.\r: I
noces, se, em suma,tivessemostrado tanto entusiasmo quanto gênio. Bacchus et Ariane (1931). Nessa segunda parte da sua carreira,
Roussel infelizmente sucumbe à moda neoclássica, de que Stra
vinsky é o árbitro: martelamento rítmico monótono, em nome do
"retorno a Bach" (Bach incompreendido, com anapestos petrifi
À MARGEM DAS GRANDES cados), politonalidade agressiva, rejeição das seduções harmôni
CORRENTES cas. Nem epígono, nem inovador, Roussel abraça com força seu
tempo, excluindo apenas as tendências atonais, cujo princípio re
As personalidades de Debussy, Ravel, Schönberg e Stravinsky sus cusa categoricamente. Se apela para a politonalidade, é porque
citaram rapidamente vários epígonos ou imitadores, hábeis ou me a considera inteligentemente como "um contraponto de tonali
nos hábeis. No entanto, à margem das correntes estéticas repre dades". Uma das principais originalidades de seu estilo é uma har
sentadas pelos quatro grandes músicos e da corrente romântica monia flutuante, de essência contrapontística, baseada na assimi
lação de certas escalas modais do Extremo Oriente.
17. Ver Souvenirs et Commentaires (conversas com Robert Craft), Paris, 1963.
À mesma geração pertencem Dukas e Schmitt. A reputação
É o próprio Craft que se qualifica de auxiliar musical. de Paul Dukas (1865-1935) data de 1897, ano em que foi apresen- Albert Roussel.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 248
de ordinário se pensa. Infelizmente, sua influência sobre os músi se de saída na vanguarda da música contemporânea. Sucessivamen
cos alemães da geração seguinte suscitou um movimento neoclás- te, Salomé (Dresden, 1905) e Elektro (Dresden, 1909) atingem um
sico de uma tristeza infinita. paroxismo musical e dramático: violência delirante, erotismo ar
O maior compositor alemão deste século, Richard Strauss, dente, explosões tonitruantes de uma orquestra de fogo e sangue.
situa-se à margem de todas as correntes musicais. Sua carreira de Nunca se vira ou ouvira nada semelhante na ópera. A escrita mu
compositor estende-se por sessenta anos (1885-1945). Durante os sical escapa a todos os sistemas, resiste a qualquer classificação
trinta primeiros, maravilhou o mundo pelo brilho e pela origina categorial, não tem modelo em nenhum outro lugar. Mas a con
lidade de sua obra; durante os trinta últimos, decepcionou seus cepção dramática da harmonia e o expressionismo dilacerante que
mais fervorosos admiradores. Com raras exceções (as óperas Ara trata a voz de maneira sobre-humana exerceram uma influência
sobre uma parte do teatro musical de nosso tempo. Todavia, so
bella e Capriccio, os Letzte Lieder e as Metamorfoses para ins
noridades inauditas em sua simplicidade, como as que cercam o
trumentos de cordas), todas as suas obras-primas foram compos
último canto sublime de Salomé, nunca mais serão imitadas.
tas antes de 19Í5: os célebres poemas sinfônicos (anteriores a 1900,
Essas duas extraordinárias antióperas, altamente escandalo
inclusive o prodigioso Till Eulenspiegel), a maior parte dos Heder
sas, naturalmente provocaram os protestos que se impunham (fo
e, sobretudo, as óperas Salomé, Elektro, Der Rosenkavalier e
ram proibidas na Inglaterra até 1910); no entanto, logo o público
Ariadne auf Naxos, de que falaremos adiante.
as fez triunfar, decidindo para Strauss uma carreira de músico de
Muito brahmsiano em suas primeiras obras, toma em 1888 teatro. Então, de repente, ele muda radicalmente de estilo e atin
o caminho de um expressionismo sinfônico singularmente mo ge os píncaros da sua obra. Seu novo estilo é magníficamente bar
derno para a época, declarando-se um Ausdrucksmusiker. A par roco e romântico, ao mesmo tempo; procede de Mozart, de Schu
tir de então, quase todas as suas obras instrumentais terão um bert, do Wagner dos Mestres cantores, sem nunca cessar de ser
pretexto literário, em particular a série dos deslumbrantes poe original, mesmo ao render homenagem à valsa vienense ou ao bel
mas sinfônicos. No entanto, não se pode dizer que essa música canto. O gênio fora da lei, o modernista ousado que tinha chega
exuberante e sensual seja "literária". O programa é apenas a do aos limites da grandeza demoníaca torna-se, de repente, fasci
origem e o fim de uma série de associações de idéias musicais, nador, com uma imaginação, uma verve, uma emoção e um sen
não sendo necessário que o ouvinte descubra seu fio. Nas obras- so teatral notáveis. Ele nunca foi mais verdadeiro, mais magis
primas que são Don Juan (1888), Till Eulenspiegel (1895) e Dom tralmente seguro de si do que no Rosenkavalier (1911) ou em
Quixote (1897), a inspiração é de essência puramente musical. Ariadne auf Naxos (1912). Infelizmente, a partir de 1915, plagia
Quando Debussy ouve Till em Paris, sob a regência de Nikisch, a si mesmo com uma felicidade mais ou menos grande, confunde
fica estupefato: "Dá vontade de rir às gargalhadas ou de berrar grandeza e grandiloqüência, riqueza e excesso, espírito e compli
até a morte, e ficamos surpresos por reencontrar as coisas em cação. As exceções mais gloriosas são obras de velhice: a ópera
seu lugar costumeiro; porque se os contrabaixos soprassem atra Capriccio (Munique, 1942), obra-prima de graça e de espírito,
vés de seus arcos, se os trombones esfregassem seus cilindros composta aos setenta e oito anos, e os Vier Letzte Lieder (1948),
e se encontrássemos Nikisch sentado no colo de uma vaga-lume, últimas composições terminadas por Strauss. Nelas se exprime um
não veríamos nada de extraordinário nisso. Tal fato não impede extraordinário sentimento de serenidade, particularmente em Im
a peça de ser genial sob certos aspectos, em primeiro lugar por Abendrot, em que à pergunta "Ist dies etwa der Tod?" o coro
sua prodigiosa segurança orquestral e pelo movimento frenético responde com o motivo da transfiguração de Tod und Verklärung
(composta sessenta anos antes):
que nos arrebata do começo ao fim." Em Viena, o velho Bruck
ner, gravemente enfermo de hidropisia, faz com que o levem
duas vezes ao concerto para ouvir Till. Esses poemas sinfônicos
têm raízes no século X I X , em Liszt e Wagner. Mas a forma
costuma ser clássica (rondó, variações) e a orquestra wagneria
na é ampliada e misturada com uma mestria e uma audácia po
derosamente modernas.
Aos quarenta anos, o gênio de Strauss sofre uma mutação.
Apesar de dois fracassos justificados (Guntram em 1894 e Feuers
not em 1901), vai-se consagrar a partir de então ao teatro, situándo
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 256
Debussy é mais favorável ao desabrochar das melodias populares de 1909 1893-1909 Faz de Paris, até o fim
da vida, sua residência principal.
do que à harmonia tonal e às formas clássicas. Além disso, o es
1864 Aos quatro anos, dá seu pri Dessa época datam todas as suas
tudo folclórico se desenvolverá sob o impulso de Béla Bartók e obras importantes. Faz amizade
Zoltan Kodály (1882-1967), que publicam em 1906 sua primeira meiro recital de piano em Barcelo
na (teatro Romea): é um tal prodí com Fauré, Debussy, Chausson e
coletânea de canções camponesas. Mais tarde, Bartók notará e Dukas. Sua música é tocada com
gio, que os ouvintes suspeitam tra
gravará em rolos fonográficos cerca de dez mil melodias popula freqüência na Société Nationale.
tar-se de uma trapaça. Dois anos
res, húngaras, eslovacas, romenas, ucranianas, servo-croatas, búl Ensina piano na Schola cantorum,
depois, apresenta-se em Paris, on
garas, turcas, árabes (no Sul argelino), trabalho de uma amplitu de tem aulas com Marmontel.
onde Déodat de Séverac é seu alu
de e de uma qualidade científica sem precedentes. As correntes no. Morre aos quarenta e nove anos
nacionais, ligadas outrora aos irredentismos do período após 1848, 1867-1873 Estudos no Conservató de nefrite crônica (mal de Bright),
apóiam-se cada vez mais no conhecimento aprofundado de um rio de Madri, tendo sido recusado uma das doenças de que Mozart te
autêntico patrimônio, cujas características distintivas são assimi pelo de Paris devido à sua pouca ria morrido.
ladas por muitos compositores. idade.
1873- 1874 Aos treze anos, foge de obra Quatro óperas, dentre as quais
Espanha Contemporâneos de Debussy e de Ravel, os catalães casa, toca em várias cidades da Es Pepita Jiménez (Barcelona, 1896);
panha e embarca para Porto Rico, zarzuelas. Rapsódia espanhola e
Isaac Albéniz (1860-1909) e Enrique Granados (1867-1916), e os
dando concertos para pagar a pas Catalunha para orquestra. Nume
andaluzes Joaquín Turina (1882-1949) e Manuel de Falia (1876¬
sagem e a estada. Seu pai, em mis rosas peças para piano, dentre as
1946) estabeleceram o prestígio internacional da escola espanho
são em Cuba (é inspetor da Alfân quais as suítes ou coletâneas: Cata
la realizando, cada um a seu modo, a síntese entre o patrimônio dega), encontra-o e finalmente au lunha, Ibéria, Suíte espanhola, Can
nacional revelado por Pedrell e as novas tendências da música toriza-o a continuar seu caminho tos de Espanha, Espanha.
francesa. Todos eles viveram na Paris da Belle Époque e, com até os Estados Unidos. Ao voltar,
exceção de De Falla, aí fizeram uma parte de seus estudos. Tra apresenta-se em Liverpool, em Lon
zem aos franceses maravilhados uma música bem diferente de dres e chega a Leipzig, onde conse MANUEL DE F A L L A
Cádiz, 23 de novembro de 1876
Carmen, da España de Chabrier ou da Sinfonia espanhola de gue ingressar no Conservatório. Alta Gracia (Argentina), 14 de novembro de 1946
Lalo. 1874- 1875 Aluno de Reinecke em
Nos quatro volumes de Iberia (1906-1909), sua obra-prima Leipzig. Era levantino por parte de pai (ori
e um dos pontos altos do repertório pianístico moderno, Albé 1876 Aluno de Gevaert em Bruxe ginário de Valencia), catalão por
niz aplica a técnica mais elaborada até então conhecida. Mais las, onde se distingue por sua má parte de mãe e andaluz de nasci
ainda que Ravel, ele é o continuador de Liszt, de quem foi alu conduta. mento. De saúde frágil, o jovem De
no e que acompanhou a Budapeste, Weimar e Roma. Em com 1877 Curta estada em Nova York. Faha fica em casa, onde sua edu
paração com essa personalidade poderosa, Granados parece um 1878-1880 Tem aulas com Liszt, cação geral é confiada a uma mes
mestre menor. Mas não podemos resistir ao fascínio de suas ad acompanhando-o a Budapeste, Wei tra. Sua mãe, excelente pianista
miráveis Goyescas, que evocam os aíreseos de San Antonio de mar e Roma. Depois disso, faz uma amadora, encarrega-se de sua edu
turnê pela Europa e outra nos Esta cação musical.
la Florida e a arraia-miúda imaginada por Goya num ambiente
dos Unidos. 1890-1896 Freqüentes viagens a
de zarzuela. Essa suíte pianística, como a de Albéniz, refere-se
1883 Casa-se com Rosina Jordana. Madri, onde tem aulas de piano
a uma Espanha mais sonhada do que vivida. Turina, em com Excelente marido, põe subitamen com José Trago. Primeiras apresen
pensação, é um puro músico andaluz, que encontrou a alma te fim a seu modo de vida aventu tações públicas.
de seu país natal, para lá do pitoresco fácil e do inevitável "mo reiro. Está com vinte e três anos. 1896-1904 A família se instala em
do andaluz": 1885-1893 Instala-se com a família Madri. De Falia ingressa no Con
cadenee sucessivamente em Madri (1885, pa servatório, onde é aluno de Trago
ra ensinar piano), Paris (1889-1890: (piano) e Pedrell (composição).
De Falla e Massine,
no Alhambra de Granada.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 260 261 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES
re do que por suas flores. Até os nossos dias, seus melhores re de um atonalismo ampliado que repousa numa escala em quartos
presentantes extrairão uma inspiração forte e original na rica cul de tons.
tura de seu país, ainda que sua técnica de composição se aparente
às tendências seriais ou pós-seriais, sem nenhuma relação com a Outras escolas nacionais A influência de Bartók sobre as esco
música nacional tradicional. las nacionais será capital; ela retardará o declínio destas. Voltarei
a esse grande compositor, que domina não só a escola húngara
Tchecoslováquia Só na Europa Central encontramos correntes com seu amigo Kodály, mas toda a criação musical entre as duas
nacionais de tamanha riqueza e continuidade. A escola tcheca guerras. Na mesma geração, o polonês Karol Szymanowski
(mais exatamente, morávia) é dominada, no princípio deste sé (1882-1937) e o romeno Georges Enesco (1881-1955) tiveram êxi
culo, pela forte personalidade de Janácek. Embora nascido em to particular na síntese de um patrimônio nacional com as novas
1854, quatro anos antes de Puccini, sua carreira tardia e a ousa aquisições musicais ocidentais. Homem excepcional por seus dons
dia de seu estilo vinculam-no a nosso tempo. Mas escapa das artísticos e pela nobreza de seu caráter, Enesco foi um grande com
classificações, como escapou da influência de seus mais ilustres positor, cujas mais belas obras, em particular a ópera Édipo (Pa
contemporâneos: Puccini, Mahler, Debussy, R. Strauss. Seu es ris, 1936) e a terceira Sonata para piano e violino, mereceriam uma
tilo bastante pessoal está ligado a duas idéias fundamentais: a vasta difusão. Sua tríplice carreira de violinista, pianista e regen
subordinação da harmonia ao ritmo e a das formas melódicas te infelizmente eclipsou a de compositor. Embora tenha escolhi
à entoação da linguagem falada. Sua harmonia, audaciosa e in do viver em Paris, onde foi aluno de Fauré, a obra de Enesco,
dependente, é determinada pelas características modais da músi pouco numerosa, mas irrepreensível, é impregnada de um rico fol
ca popular morávia. Empírica e funcional, ela é essencialmente clore romeno transcendido . 18
expressiva, em particular no emprego dramático das dissonân No início do século, a música russa permanece sob a influên
cias; também podemos notar que ela é tanto mais móvel e tensa cia de Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov e dos últimos românticos
quanto menos o ritmo o é. Em suas óperas, que estão entre as alemães. Depois da revolução, a moda é um certo "naturalismo",
obras-primas do teatro musical moderno, Janácek adota um es em que a imitação dos barulhos das máquinas e a adoção de uma
tilo melódico baseado não apenas nas características específicas harmonia mais dissonante definem um novo modernismo. Ape
da canção morávia, mas também na acentuação da ünguagem sar de uma rica tradição musical, religiosa e popular, apesar do
autóctone. Ele observa com atenção o falar da gente simples exemplo brilhante de Mussorgsky, a escola russa do século X X
(crianças e camponeses, em particular), que foi o mais bem pre não produzirá nenhum grande músico antes de Prokofiev, com
servado das influências exteriores, e esforça-se por notar suas exceção de Stravinsky. Serguei Rachmaninov (1873-1943), Niko
inflexões, como se esforça por notar os risos, os choros, os ba lai Miaskovsky (1881-1950) e Reinhold Glière (1875-1956) perma
rulhos da natureza, o canto dos pássaros. Esse estilo se encontra neceram fiéis à estética de Tchaikovsky e parecem ter ignorado
em outras composições vocais, não raro até na música instru o caminho aberto por Debussy desde 1894. Com exceção de Gliè
mental, em particular nas obras-primas que são a coletânea Zá- re, cujos trabalhos sobre a música popular da Ucrânia e do Azer
pisnik zmizelého (Diário de um desaparecido) para tenor, con baijão são uma referência, e de alguns de seus alunos (dentre os
tralto, coro feminino e piano, a suíte para piano V mlhách (Na quais Prokofiev), os compositores russos não assimilaram as ca
, bruma) e o segundo quarteto (ver p. 340). racterísticas específicas do folclore, para daí deduzir uma escrita
Costuma-se esquecer que Janácek foi um pioneiro da et musical nova, original e audaciosa. Em vez de integrarem uma
nologia musical. De 1888 a 1903, recolheu numerosas canções cultura, eles se limitaram na maioria das vezes a falsear suas apa
morávias, publicou coletâneas de harmonização e estudos sobre rências. O emprego de temas populares — mais ou menos desfi
o folclore e a linguagem de seu país. É principalmente nesse do gurados pela notação — em composições ambiciosas sustentará um
mínio que esse isolado exerceu uma influência sobre as gerações
seguintes, suscitando em inúmeros músicos uma curiosidade pe
18. O estudo das tradições musicais populares adquiriu na Romênia uma am
la música popular. Depois dele, as personalidades mais salien
plitude e uma qualidade notáveis. O Instituto do Folclore Romeno de Bucareste
tes da escola tcheca serão Bohuslav Martinu (1890-1959), cujo é não só um dos mais ricos da Europa em instrumentos e documentos de todos
classicismo sedutor e prodigiosamente fecundo é influenciado os tipos, como conseguiu manter no país a criação espontânea de novas canções,
por Roussel e Stravinsky, e Alois Hába (1893-1973), apóstolo transmitidas por tradição oral como as do passado.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 264 265 Λ MARGEM DAS GRANDES CORRENTES
formalismo ainda mais factício por se pretender fiel a uma "rea bizantina são irredutíveis às escalas fundamentais do sistema to
lidade" soviética inacessível. nai. As escolas nacionais se desenvolverão com dificuldade, à
Em outras regiões da Europa, inúmeros bons músicos culti medida que se organizará a vida musical (conservatórios, ópe
vam um estilo baseado nas tradições nacionais, diversamente as ras, sociedades filarmônicas, corais, edição musical). No entan
similadas. Mas não encontramos nos contemporâneos de Debussy, to, formadas tarde demais, com bases teóricas frágeis e princí
Ravel, Schönberg e Stravinsky personalidades musicais de primei pios estéticos ultrapassados, serão caducas antes de terem che
ríssimo plano, por maiores que sejam o talento e a originalidade gado a seu apogeu, quando, a partir de 1960, alguns jovens mú
de Ralph Vaughan Wilhams (1872-1958), o maior compositor in sicos adotarão os métodos da nova música. A composição ana
glês desde Haendel, do sueco Wilhelm Stenhammar (1871-1927), lítica de uma música de caráter "folclórico", baseada nas escalas,
do italiano Gian Francesco Malipiero (1882-1973) ou do dinamar nos ritmos, nas formas e nos instrumentos tradicionais, tal co
19
quês Carl Nielsen (1865-1931). Até meados de nosso século, um mo se praticou principalmente na Bulgária , é uma orientação
neoclassicismó mais ou menos folclorizante sucedeu em muitos fecunda. No entanto, seria necessário ir mais longe e conceber
países a um pós-romantismo apimentado com harmonias debussys- um sistema coerente, combinado com um método de composi
tas e ravelianas. ção particular, que fosse a expressão do patrimônio e seguisse
Raríssimos são os músicos que, a exemplo de Janácek e a evolução geral das músicas eruditas. Onde existe uma tradição
Bartók, forjaram uma linguagem musical nova, partindo da aná popular rica e original, suas características essenciais devem sus
lise metódica das formas melódicas, dos ritmos, das escalas do citar uma estética avançada, na corrente do pensamento musical
folclore nacional e de seu próprio espírito. Privadas de sua ins contemporâneo. Mais uma vez, o exemplo de Bartók é funda
trumentação ou de sua emissão vocal característica, obrigadas mental.
Ralph Vaughan Williams.
a se dobrarem aos modelos rítmicos da música "erudita" e à
sua escala temperada, envoltas numa harmonia que lhes é estra Américas O continente americano liga-se musicalmente à Euro
nha, as melodias populares maquiadas e endomingadas são uti pa. O desaparecimento das civilizações autóctones priva-nos de
lizadas como selo de autenticidade. A fertilidade desse folcloris- tradições musicais de que encontramos apenas o eco nos raros fol
mo elementar é limitada, porque ele opõe uma resistência à evo clores preservados das influências ocidentais ("reservas" da Amé
lução dos estilos e das técnicas de composição. Por não haver rica do Norte, Andes centrais, alta Amazônia). Apesar de uma
tomado consciência disso, as escolas nacionais condenaram-se mistura de povos favorável à eclosão de culturas originais, ape
a um academismo fatal; depois de Bartók, os maiores com sar da animação da vida artística nas grandes cidades das três Amé
positores serão cosmopolitas, com raríssimas exceções (inspi ricas, não se formaram escolas nacionais tão originais e fecundas
ração russa de Prokofiev, brasileira de Villa-Lobos, francesa quanto as da Europa. Manuel Ponce (1882-1948), seu aluno Car
de Poulenc, inglesa de Britten, grega de Xenakis, espanhola de los Chávez (1899-1978) no México e Heitor Villa-Lobos (1887¬
1959) no Brasil são os compositores mais notáveis da América La
Ohana).
tina. Eles souberam forjar estilos originais assimilando a música
Os países dos Bálcãs encontram-se numa situação particular.
tradicional de seus respectivos países. A audição em Paris dos Cho
Submetidos à dominação otomana depois do desaparecimento do
ros de Villa-Lobos, "nova forma de composição musical que sin
Império bizantino (queda de Constantinopla, 1453), são alijados
tetiza as diferentes modalidades da música brasileira, indígena e
da Europa cultural por mais de quatro séculos, até o Congresso
popular", fez sensação.
de Berlim de 1878. Então, a Bulgária, a Grécia, os países da fede
Charles Ives (1874-1954) é a maior figura da música ianque
ração iugoslava e a Albânia saem de uma interminável Idade Mé
e, sem dúvida, uma das mais singulares. Seu primeiro ancestral
dia, nas dificuldades de que se sabe, e se abrem pouco a pouco
americano, o capitão William Ives, desembarcou na Nova Ingla
à cultura ocidental. Suas únicas tradições musicais são populares
terra em 1635 e fixou-se no Estado do Connecticut, onde Charles
e litúrgicas.
Esses países farão lentamente o aprendizado da música "eru ι
dita" nas formas e no estilo do romantismo declinante, esforçan 19. O folclore búlgaro é de uma riqueza extrema. Ele utiliza uma variedade
de escalas modais, de ritmos ordenados em compassos irregulares (5/8, 7/8, 8/8,
do-se por integrar a esse mundo sonoro estrangeiro seus patrimô
11/8), de instrumentos tradicionais e uma emissão vocal característica, em que
nios melódicos, o que não se dará sem dificuldade, pois a maio reside seu encanto e sua originalidade. É uma música popular elaboradíssima, cu
ria das escalas utilizadas no folclore dessas regiões e na liturgia j a tradição é mantida por conjuntos de rara qualidade. Villa-Lobos.
267 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES
nasceu. Seu pai, músico estimado da cidadezinha de Danbury, era Ives, Three Places in
um experimentador audacioso: fazia a família cantar em várias N e w
England (in), 1914.
tonalidades ao mesmo tempo, ou fazia duas bandas desfilarem
ao som de músicas diferentes, enquanto uma terceira tocava ou
tra coisa do alto do campanário! Esse exemplo fez do jovem Ives,
antes dos'vinte anos, um compositor absolutamente não-confor-
mista, e o meio provinciano deu-lhe o gosto pelos hymn-tunes pres
biterianos, pelas canções da guerra civil, pelas marchas rnilitares...
A conjugação desses gostos produziu uma das músicas mais ori
ginais de nosso tempo, absolutamente independente de todas as
correntes contemporâneas. Puro autodidata, Ives preserva sua in
dependência vivendo apartado do mundo musical e desvinculan
do sua arte de qualquer preocupação econômica. De fato, desde
1898, ao sair da Universidade, ele se orienta para o mundo dos
negócios e irá tornar-se um dos maiores agentes de seguros dos
20
Estados Unidos .
Ives foi um pioneiro único em seu gênero. Com efeito, não
sofreu nenhuma influência, por não ter tido contato com a atua
lidade musical, e exerceu pouquíssima, pois suas obras raramen
te foram executadas e sempre tardiamente. Sua notoriedade in
ternacional começa por volta de 1950, ao passo que cessou de com
por desde 1928. No entanto, utilizou a pohrritmia e a politonali
dade desde 1894 (Salmo 67); em 1903, escreve a primeira de suas
Three quarter-tone pieces (1903-1924), para dois pianos afinados
em quartos de tom; antecipa as "formas abertas" em 1911 numa
obra de interpretação variável (Hallowe'en, para quarteto de cor
das e piano); emprega clusters* no piano a partir de 1916; encon
tramos até mesmo esboços de organização serial do total cromá
tico em seus Tone roads (1911-1915). A essas audácias se justa
põem ou sobrepõem hinos patrióticos, cânticos ou temas de ro
manças sentimentais, tratados da maneira mais ingenuamente
"kitsch". Certas partituras, pela multiplicação complexa das ci
tações e das justaposições de idéias, elevam a técnica da "cola
gem" à grande arte. As obras-primas desse gênio ignorado, exa
to contemporâneo de Schönberg, são a Concord sonata para pia
no (1909-1915), as Three places in New England para orquestra
(1903-1914) e a monumental Quarta sinfonia para três orquestras
(1910-1916). O ouvinte não prevenido as dataria de pelo menos
vinte anos depois, mas não hesitaria em atribuí-las a um autênti
co americano.
20. Os escritos em que ele expõe sua filosofia dos seguros tornaram-se uma
referência para os profissionais do ramo.
INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM
1918-1940 Após o drama do primeiro conflito mundial, que
freou o desenvolvimento universal do espírito inovador, a gera
ção do pós-guerra, arrastada num turbilhão de prazeres, mani
festou uma reação de insolencia estética, no fim das contas bas
tante natural... Mas, à distância, o período entre as duas guerras
parece-nos pobre. Ele evoca irresistivelmente um neoclassicismo
provocador, alegremente recheado de notas desafinadas, cuja mo
da lança sombras sobre as ricas concepções de Bartók, Webern
21
ou Varèse, tardiamente reveladas ao grande público .
A produção musical é abundante e não faltam compositores
de grande talento, mas o pensamento musical é indigente. De um
ponto de vista histórico, esse período aparece como um parêntese
na progressão das grandes correntes musicais. Os músicos segui
dores da moda substituem a reflexão séria que a efervescência ar
tística do momento deveria inspirar pelos partis pris de panelinhas,
pela investigação às cegas dos meios de expressão, não raro pelas
infantilidades e pela mistificação. O esnobismo consiste em privi
legiar o insólito e manter a confusão dos valores estéticos. Todo
o mundo se extasia diante da mais inocente composiçãozinha em
dó maior, contanto que seja acompanhada em dó# ou em fá#,
e apresenta-se como a última moda da audácia o casamento do
music-hall com os estereótipos neoclássicos... enquanto o admi
rável Anjo de fogo de Prokofiev (1927) espera em vão uma repre
sentação (a estréia só acontecerá em 1955).
Uma breve cronologia dará uma idéia das obras-primas com
postas por alguns músicos de primeira grandeza durante os vinte
anos que separam as duas guerras mundiais, anos loucos e amiú-
de trágicos, que são os do surrealismo e dos grandes clássicos do
cinema, do foxtrote, da radiotelefonía, do correio aéreo, do fas
cismo, da Terceira Internacional... O grande público só desco
brirá a partir de 1945 muitas dessas obras-primas, principalmen
te as da escola vienense, de Bartók, de Varèse, de Prokofiev e,
é claro, da geração de Jolivet e Messiaen, que não terão quarenta
anos em 1945.
22
1920 Primeira audição de La valse de Ravel, nos concertos La- e o Arlequim] , coletânea de aforismos espirituosos que preten
moureux. de ser um manifesto ou um catecismo da jovem música. Há al
1921 Estréia de O amor das três laranjas de Prokofiev em guns anos, Cocteau se multiplica nos cenáculos literários e nos
Chicago. cafés artísticos. Conhece todo o mundo e torna-se um hábil ne
— Primeira audição no teatro de Jorat (Suíça) do Rei Davi de gociador de encontros férteis. É amigo de Picasso, Stravinsky, Sa
Honegger. tie, Diaghilev, Max Jacob, Apollinaire, Blaise Cendrars e de um
1923 Estréia de Les noces de Stravinsky em Paris (Balés Russos). grupo de jovens compositores, os futuros "Seis", que apresen
— Estréia do Retábulo de Mestre Pedro de De Falla em Paris. tam suas obras no Vieux-Colombier, por iniciativa da admirável
— Primeira apresentação de A criação do mundo de Milhaud em cantora Jane Bathori (ao partir para os Estados Unidos em 1917,
Paris (Balés Suecos). Copeau lhe confiara a direção de seu teatro). A um deles, Geor
1924 Estréia de Les biches de Poulenc e de Les fâcheux de Au ges Auric, dezenove anos, é dedicado Le coq et l'Arlequin.
ric em Monte Carlo. — Quarteto de Fauré.
r Cocteau diverte-se loucamente, e nos divertiríamos tanto
1925 Estréia em Berlim de Wozzeck de Alban Berg (regência de quanto ele, se ele não acabasse levando-se a sério, ao querer de
Kleiber). — Estréia de L'enfant et les sortilèges de Ravel em sempenhar o papel de guia e de mestre espiritual. Diletante as
Monte-Carlo (direção de Sabata). — Primeira audição das Inte sombroso, sempre a par de tudo, joga com os paradoxos, lança-
grais de Varèse em Nova York (regência de Stokowski). se de uma idéia a outra numa série de saltos mortais e sempre acaba
1926 Estréia de Turandot de Puccini em Milão (Scala) (regência caindo sobre os pés, ou sobre as mãos. Mas não exprime outra
de Toscanini). — Estréia do Mandarim maravilhoso de Bartók coisa além das idéias de seu tempo; só que as exprime como poe
em Colônia (composto em 1919). Suíte lírica de Berg. ta, sob formas imprevistas que as fazem parecer novas. Não é um
1927 Fim da composição de O anjo de fogo de Prokofiev (es profeta, nem mesmo um conselheiro, mas um porta-voz do ta
tréia no teatro Fenice de Veneza em 1955). — Primeira audição lento, dotado de um savoir-faire infalível.
na Filadélfia de Arcana de Varèse, sob a regência de Stokowski. Entrou na história da música sonhando e consegue realizar
1928 Variações op. 31 de Schönberg e Sinfonia op. 21 de Webern. a impensável idéia de Parade persuadindo Picasso a comprometer-
1930 Estréia de Cristóvão Colombo de Milhaud na Ópera de Ber se com os Balés Russos e Diaghilev a confiar no velho anarquista
lim (regência de Kleiber). que é Satie. Fortalecido por essa experiência que musicalmente
1931 Segundo Concerto para piano de Bartók e os dois Concer satisfaz a seus desejos, sai em liça contra o sublime, denuncia "a
tos de Ravel. música a ouvir com a cabeça nas mãos", derruba os ídolos e re
1933-1940 Emigração para os Estados Unidos de numerosos mú comenda a cada um que cante "em sua árvore genealógica". Os
sicos, diante da ascensão do nazismo: Schönberg e Eisler em 1933, músicos franceses devem precaver-se contra a retórica beethove-
Weill em 1935, Hindemith e Stravinsky em 1939, Bartók e Mi niana, as pesadas brumas wagnerianas, a garoa e a fluidez de-
lhaud em 1940... bussystas, assim como contra "essas músicas de entranhas, esses
1935 Primeira audição do Concerto para violino de Berg. — Na polvos de que você tem de fugir, senão eles te comem", a que
tivité de Messiaen, organista da Trinité desde 1932. -— Mana de ainda está vinculada a estética da Sagração; é preciso precaver-se
Jolivet. contra tudo o que não é a clareza francesa. "Viva o galo! Abaixo
1937 Primeira audição na Basiléia (regência de Sacher) da Mú o Arlequim!" +
sica para cordas, percussão e celesta de Bartok. — Estréia em Zu O antiwagnerismo não é mais uma novidade. Ele foi o apa
rique de Lulu de Berg. nágio dos elementos mais conservadores do mundo musical no
1938 Primeira audição na Basiléia da Sonata para dois pianos fim do século passado. Mas "defender Wagner porque Saint-Saëns
e percussão de Bartok. — Alexandre Nevsky, filme soviético de o ataca é simples demais. É preciso gritar: Abaixo Wagner, e Saint-
Eisenstein, música de Prokofiev. Saëns com ele. Esta é a verdadeira bravura".
1939 Sexto Quarteto de Bartok. Quanto à estética de Pelléas, que se inscreve em reação con
1940 Variações op. 30 de Webern. tra a hipnose de Bayreuth, ela é inaceitável, porque Debussy "to
cou em francês, mas com o pedal russo"! Como se pôde levar
Cocteau Mas voltemos a 1918, ano da morte de Debussy e das
grandes batalhas que levaram ao armistício. Nesse ano, o jovem 22. Reeditado com vários ensaios de estética e de crítica, sob o título Rappel
poeta Jean Cocteau (1889-1963), animador dos saraus parisien à l'ordre [Chamada à ordem], Paris, 1926.
Francis Poulenc e Jean Cocteau. ses e pregador da nova arte, publica Le cog et l'Arlequin [O galo + Lembre-se o leitor que o galo é o símbolo da França. (N.T.)
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 272 273 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM
Os Seis Ligados pela amizade, estes últimos se associam habi Essa estética, oposta às correntes históricas, prestou um des
tualmente para mostrar suas obras, no Vieux-Colombier ou em serviço aos melhores elementos do grupo. Milhaud, Honegger e
outro lugar, freqüentam os mesmos meios parisienses (Cendrars, Poulenc muitas vezes aviltaram seu talento por uma fidelidade su
Max Jacob, Satie, o pianista Ricardo Viñes, Jane Bathori, Va persticiosa a certos partis pris da juventude. Como é possível se
24
lentine Gross — futura senhora Jean Hugo —, Diaghilev, Marie guir Satie sem marcar passo , impor-se o "neo-ascetismo" de
Laurencin, os Beaumont, os Polignac), participam das festas or Stravinsky (como dizia Poulenc) sem definhar, ou inspirar-se no
ganizadas por seu amigo Cocteau, com o qual têm o costume de jazz sem caricaturá-lo? E, quando mais tarde se quiser livrar-se
se encontrar todos os sábados à noite. Eles se chamam Arthur Ho- de um estilo que parece fora de moda, será possível encontrar um
negger (1892-1955), Francis Poulenc (1899-1963), Georges Auric segundo alento sem uma vocação imperiosa?
(1899-1983), Germaine Tailleferre (1892), Louis Durey (1888-1979)
e Darius Milhaud (1892-1974). O último uniu-se ao grupo em 1919,
ao voltar do Brasil, onde fora secretário do ministro da legação ARTHUR HONEGGER
L e Havre, 10 de m a r ç o de 1892
da França, Paul Claudel. Paris, 27 de novembro de 1955
Certa noite, o compositor Henri Collet (1885-1951) tem a idéia Seu pai, importador, natural de Zu
de contá-los, por ocasião de um concerto na pequena sala Huy- rique e estabelecido em Le Havre,
ghens em Montparnasse, e publica na Comoedia dois artigos inti e sua mãe, Julie Ulrich, excelente
tulados "Os cinco russos, os seis franceses e Erik Satie", depois pianista amadora, concorreram pa
"Os seis franceses". Nem imaginava o sucesso que sua fórmula ra a vocação musical do filho. Ele
iria ter. Os membros do grupo afirmam que só têm em comum começou seus estudos musicais em
a amizade, mas compõem em colaboração um Álbum dos Seis (pe Le Havre e em Zurique, depois foi
ças para piano) e a partitura do balé de Cocteau Les maries de mandado para Paris.
la tour Eiffel (1921). Na ausência de um programa estético capaz 1912-1917 Aluno de Capet (violi
de inspirar uma verdadeira ação comum, o grupo começa a se dis no), Widor (composição) e D'Indy -..·}• f u • 4ΥΛ / Ν
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sociar desde 1921. Durey, que não está unido aos colegas nem pe (regência), no Conservatório de Pa
los gostos, nem pelo caráter, é o primeiro a se retirar — sua mo ris. Torna-se amigo de Darius M i
déstia, suas elevadas exigências morais, seu militantismo no par lhaud.
tido comunista afastaram-no da vida musical. Honegger, por sua 1918 Liga-se ao futuro Grupo dos
vez, logo se desligará: "Não cultuo nem o parque de diversões, Seis, sem compartilhar seu credo es
nem o music-hall, mas, ao contrário, a música de câmara e a mú tético. Sua primeira obra importan
sica sinfônica no que ela tem de mais grave e mais austero..." te, Le dit desjeux du monde, é apre
sentada num concerto dos "Novos
Na prática, o Grupo dos Seis só terá vivido uns dois ou três Jovens", no Vieux-Colombier.
anos. Mas consegue desmitificar a "música erudita", consegue 1921 Le roi David é apresentado no 1929-1930 Turnês nos Estados Uni Claude Nollier e Jean Vilar em Jeanne
ensinar-lhe a inocência em contato com o circo, o music-hall, as Théâtre du Jorat, que o poeta Re dos e na América do Sul. au bûcher, na Ó p e r a de Paris.
máquinas, o esporte, a natureza... Para lá dos benefícios publici né Morax instalou numa granja em 1938 Na Basiléia, estréia no concer
tários da fórmula, a corrente neoclássica lhe deve muito. Origi Mézières (Suíça): triunfo, que tor to de Jeanne au bûcher, oratorio cê
nalmente, explica Poulenc, não era mais "que um agrupamento na conhecido em toda parte o no nico de Claudel, que só será mon
de amizades, não de tendências. Depois, pouco a pouco, estabe me do jovem músico. tado no teatro em 1950 (Ópera de
leceram-se idéias comuns que nos ligaram de maneira muito ínti 1923 Escreve a música para o fil Paris). No mesmo ano, o poeta e o
ma, a saber: a reação contra o vago, o retorno à melodia, o retor me La roue de Abel Gance, primei músico trabalham em La danse des
23 ro esboço do que será, no ano se morts, inspirada na Dança macabra
no ao contraponto, a precisão, a simplificação, etc" . Trata-se,
guinte, Pacific 231: essa obra logo de Holbein, conservada na Basiléia.
como se vê, de uma estética algo reacionária, apesar da obstina
será popular no mundo inteiro. 1939 Para o sexto centenário da
ção de uma parte da crítica em representar os Seis como uma es 1926 Honegger se casa com a pia
pécie de esquerda musical. Confederação Helvética, Honegger
nista Andrée Vaurabourg, sua intér compõe a lenda dramática Nicolas 24. A influencia de Satie exerceu-se,
prete e ex-colega no Conservatório. sem que ele soubesse, sobre músicos de
de Flue. três gerações: a de Ravel, a dos Seis e
23. F . Poulenc, Entretiens avec Claude Rostand, Paris, 1954. a de John Cage (1912).
277 INSOLENCIA Ε CHAMADA Â ORDEM
tro da legação da França no Rio. Aí Christophe Colomb (Berlim, 1930), canções. Numerosas suítes sinfô
compõe Les Euménides (terceira Médée (Antuérpia, 1939), David nicas também; doze sinfonias; cin
parte da Ores tie). Ao voltar para (Milão, 1955). Três óperas para co concertos e Carnaval d'Aix, pa
Paris, descobre o jazz e une-se aos crianças. Catorze balés, dentre os ra piano e orquestra; dois concer
• ;
w - "novos jovens", futuro Grupo dos quais L'homme et son désir (Pa tos para violino, dois para viola,
Seis. ris, 1921), Le boeuf sur le toit (Pa dois para violoncelo, outros para
1922-1940 Reservando para a com ris, 1920), La création du monde percussão, para flauta, para trom
posição as sossegadas estadas em (Paris, 1923). Numerosas músicas bone, para harpa, para marimba,
Aix, viaja muito: Estados Unidos, de cena, dentre as quais o imenso etc; dezoito quartetos de cordas,
União Soviética, Inglaterra, Áus tríptico da Oréstia de Esquilo, na três sonatas para violino, duas so
tria, Holanda, Itália, Portugal, Es tradução de Claudel: 1. Agamem natas para viola, duas sonatas pa
panha, etc. non (comp. 1913/estréia em Paris, ra piano, várias suítes de peças
1925 Milhaud casa-se com sua pri 1927); 2. Les Choéphores (1915/ curtas para piano, Scaramouche e
ma Madeleine, com quem terá um Bruxelas, 1935); 3. Les Euménides Le bal martiniquais para dois pia
filho, Daniel (1930), pintor. Made (1917-1922/Bruxelas, 1949); o con nos. (A obra de Milhaud é prati
leine será tão excelente companhei junto: Berlim, 1963. Numerosas camente impossível de ser arrola
ra quanto colaboradora (libretos de obras corais, sacras e profanas. da: o opus 400 estava superado em
Médée e de Bolivar). Cerca de duzentas melodias ou 1963).
1940-1947 As representações de
Médée na Ópera de Paris são inter
rompidas pela chegada das tropas ca do Sul e da América do Norte, respectivamente; a ópera Chris
Darius Milhaud. DARIUS MILHAUD
Marselha, 4 de setembro de 1892 alemãs. Milhaud parte para os Es tophe Colomb (1928, libreto de Claudel, estréia em 1930 em Ber
Genebra, 24 de junho de 1974 tados Unidos com a mulher e o fi lim); o Carnaval d'Aix para piano e orquestra baseado no balé
lho. Instala-se em Oakland, perto Salade (1924-1926)... Algumas composições mais tardias também
Descendente de uma grande f amflia de San Francisco, onde é encarre podem figurar entre suas obras-primas, em particular o comovente
judaica do Comtat Venaissin, teve gado de ensinar composição no Service sacré, para a Hturgia judaica (1947) e a ópera David (Je
uma infância feliz num meio propí Mills College. Mas continuará sem rusalém, 1954), maravilhoso livro de imagens repleto de inteligên
cio a seu desenvolvimento moral e in pre sendo provençal. cia e de coração.
telectual. Seus dons precoces foram 1947-1974 Nomeado professor de
A fertilidade de Milhaud foi prodigiosa: mais de quinhentas
incentivados e fizeram-no aprender composição no Conservatório de
obras (algumas delas de grandes dimensões) em quase todos os
violino aos sete anos. Paris, volta à França e, até 1971, di
gêneros, todas as formas, todas as combinações instrumentais. Po
1902-1909 Liceu de Aix-en-Proven- vidirá seu tempo cada ano entre
Mills College e Paris. demos criticá-lo por acumular lado a lado o raro e o ordinário,
ce. Aos doze anos, é membro de um
1952 Viagem a Israel. o sério e o fútil. No entanto, o milagre de seu gênio é precisamen
quarteto. Depois dos estudos secun
1954 A ópera David estréia na for te a inesgotável espontaneidade, a alegria de criar, livre de qual
dários, seus pais, que o destinam a
ma de oratório em Jerusalém. A quer forma de megalomania ou de auto-satisfação. Guardadas to
ser violinista, mandam-no a Paris,
primeira encenação se dará no Scala das as proporções, Milhaud foi preservado, como Mozart, de to
com o amigo Armand Lunel.
de Milão em 1955. das as doenças da inteligência e da sensibilidade. Já em 1922,
1909-1914 Aluno de Widor e Gé-
1963 Primeira encenação da trilo Schönberg rendeu-lhe essa homenagem ambígua: "Ele me parece
dalge no Conservatório de Paris
gia Orestie na Ópera de Berlim. ser o representante mais significativo das tendências atuais em to
(início da amizade com Honegger)
1971 Último ano em Mills College. dos os países latinos." De fato, Milhaud tem horror do expres-
e, sobretudo, aluno particular de
Koechlin, a quem deve o essencial sionismo alemão e do dodecafonismo, muito embora tenha regi
da sua formação. Em 1912, encon obra Uma dúzia de óperas, sérias do a primeira audição em Paris de Pierrot lunaire em 1922. Em
tra-se com Jammes e Claudel. geral, permanece preso a uma politonalidade franca, que não cor
ou cômicas, dentre as quais Les ma
1917-1918 Estada no Brasil como lheurs d'Orphée (Bruxelas, 1926), responde a uma afetação, mas a uma inclinação natural. Esse pro
secretário de Paul Claudel, minis Esther de Carpentras (Paris, 1938), cedimento certamente não é a solução para os problemas coloca
dos pela evolução dos métodos de composição, mas dá ao fervi-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 280 281 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM
lhar de idéias ora um ar de festa ou de fantasia debochada, ora Até cerca de 1940, ele se ilustrou nas espirituais piruetas que
uma trágica grandeza ou uma intensidade dolorosa. Cocteau preconizava, com êxitos tão felizes quanto Le bestiaire
de Apollinaire (1919), Mouvements perpétuels para piano (1919)
e o balé Les biches (1924). Mas, qualquer que seja o brilho de
certo número de peças instrumentais, dentre as quais o belo Con
certo para órgão, o melhor Poulenc é o músico sacro, em que se
transforma por vocação a partir de 1936 (após uma peregrinação
a Notre-Dame de Rocamadour). As principais qualidades da sua
música são a espontaneidade da inspiração e a perfeição do esti
Milhaud, Saudades do Brasil.
lo. Não lhe devemos nenhum enriquecimento da técnica musical,
Poulenc é um clássico sensível e antiacadémico, à maneira mas ele sempre alcança admiravelmente seu objetivo, quer se tra
de Couperin, Scarlatti ou Ravel. Nada em sua música evoca a se te de comover, quer de seduzir.
cura do neoclassicismo convencional. Em vida, foi freqüentemente Germaine Tailleferre, autora do encantador baléXe marchand
considerado um músico menor; desde a sua morte, certos histo d'oiseaux (Balés Suecos, 1923), quase desapareceu da vida musi
riógrafos dele fizeram o herdeiro de Victoria, Lassus, Montever cal, pouco depois de ter feito sua aparição sorridente, o que é pe
di, Mozart e Mussorgsky! É, sem dúvida, um grande mestre me na. Georges Auric observou as recomendações de Cocteau com
nor, que por vezes atinge os píncaros, na segunda parte da sua exemplar fidelidade em seus balés Les fâcheux (1924) e Les mate
carreira: Figure humaine (1943) para coro duplo com poemas de lots (1926). Mas aplicou-se tão bem em não ser levado a sério,
Eluard, Stabat Mater (1950), os admiráveis coros da ópera Dia que suas grandes obras, num estilo forte e atormentado (a partir
logues des carmélites (1953-1956). Sua originalidade não está na da Sonata emfá maior de 1932), são obstinadamente ignoradas.
audácia, mas na naturalidade, que lhe permite inventar um clas Sua reputação baseou-se sólidamente numa enorme quantidade
David de Milhaud no Scala, 1955. sicismo bem pessoal. de música para cinema de surpreendente diversidade, em particu-
nismo romântico em sua própria cilada levando-o às suas últimas casso. Era um verdadeiro clássico, como Bach, mas sem o gênio
conseqüências, Hindemith começa dando as costas ao romantis e a paixão deste.
mo e dele zombando. Na efervescência artística da República de
Weimar, logo adquire uma reputação ruidosa com pequenas obras Prokofiev Já Prokofiev tem apenas a modesta ambição de exer
cênicas provocantes: o delírio erótico de uma freira (Sancta Su cer bem seu ofício e ter êxito nele. Sua inteligência viva e realista f
sanna), um hino aos aquecedores a gás (Neues vom Tage), ou um sugere-lhe os meios de ser compreendido pelo maior número, sem
motivo de Tristão para acompanhar uma marionete birmanesa cas abdicar da sua personalidade. Sua produção abundantíssima é de
trada (DasNusch Nuschi) bastam para provocar escândalo. Por sigual, seu classicismo nem sempre evita o academismo. Mas al
que a escrita musical nada tem de revolucionária, à parte as dis gumas obras-primas fizeram dele um dos grandes músicos de nosso
cordancias provocadas pela impassibilidade contrapontística e a tempo, e sua música é, de todo o grande repertório moderno, a
estridência dos instrumentos de sopro. Na música instrumental, mais próxima da sensibilidade popular. Essas obras-primas são Hindemith regendo.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 284 285 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM
as óperas O amor das três laranjas e O anjo de fogo, os balés Chut mopolitismo neoclássico na moda parece-lhe insuportável. Seu
e Romeu e Julieta, a música para Alexandre Nevsky de Eisens próprio classicismo é essencialmente lírico: ele canta em abundân
tein, a Sétima sinfonia, a sétima Sonata para piano... cia com um incansável prazer.
A distinção de dois "períodos" na obra de Prokofiev — o Também não se adapta ao "pensamento" artístico stalinis-
ocidental e o soviético — é deveras artificial. Sua obra é homogê ta, guardado escrupulosamente pelo jovem e ortodoxo Tikhon
nea e profundamente russa; e, embora não introduza nenhuma Khrennikov (1913). Quando Prokofiev retorna a seu país em 1933,
novidade maior, é original o bastante para não ser confundida encontra sucessivamente um triunfo popular, sortido de honra
com nenhuma outra. Ela brilha pela agradável franqueza das idéias rías oficiais, depois condenações da União dos Compositores
melódicas, pela clareza da polifonia e pelo irresistível dinamismo. (secretário-geral: Khrermikov) e do comitê central do partido (re
Os desabafos sentimentais e as angústias metafísicas são alheios lator: Khrerinikov, deputado do Soviete supremo), e enfim de novo
a esse homem equüibrado, metódico, que trabalhava em horas as honrarías e os prêmios. Mas a irregularidade da sorte nunca
fixas, apaixonado pelas ciências e pelas técnicas, excelente no brid abalou sua personalidade artística. Gorki dissera que ele era " f i
ge e melhor ainda no xadrez (disputou vários torneios, notada- lho de cisne em meio aos patos".
mente contra David Oistrakh). Prokofiev não fez escola. Muitos imitaram seu estilo, sem
Quando desembarca nos Estados Unidos, depois em Paris, encontrar seu espírito. O maior compositor soviético depois dele,
é recebido, como Stravinsky na mesma idade, com a curiosidade Dimitri Chostakovitch (1906-1975), raramente escapa do confor
que aqueles "jovens bárbaros" vindos das estepes podiam inspi mismo de um neo-romantismo grandiloqüente, apesar de seus dons
rar. Este pulveriza os teclados dos pianos de maneira tão maravi prodigiosos. Algumas grandes páginas são exceção, dotadas de
lhosa, que não se presta atenção em suas composições. Mas, ao um admirável alento dramático, particularmente a Décima e a Dé
contrário de Stravinsky, Prokofiev não se adapta ao mundo mu cima quarta sinfonias, o Oitavo e Décimo segundo quartetos e a
sical do Ocidente. A música francesa não lhe interessa (salvo a magnífica cantata A morte de Stenka Razin. Grande parte dos
Serguei Prokofiev em 1910. de Ravel); a futilidade dos salões parisienses exaspera-o e o cos- músicos da sua geração sucumbiu ao folclorismo superficial de
nada, desembaraçada do pathos romântico, e que era preciso pro edificação de sua obra por eles não sentirem aquela imperiosa vo
teger essa ordem clássica contra as especulações dissolventes. cação de conduzir a história, cuja urgência o indiferente período
Excelentes músicos exploraram com perfeita mestria e uma entre as guerras raramente sentiu.
invenção pessoal o que parecia ser a linguagem musical coletiva
de seu tempo. Muitos aprenderam à própria custa que não se ins
titui um classicismo indo contra a corrente da história. A outros,
mais originais, faltou fé em seu destino e perseverança em sua bus
ca. Nem os franceses Henry Barraud (1900), Jacques Ibert (1890¬ EXPLORAÇÕES
1962) ou Jean Rivier (1896), nem os ingleses Arthur Bliss (1891¬
1975) ou William Walton (1902-1983), nem os italianos G. F. Ma-
lipiero (1882-1973) ou Alfredo Casella (1883-1947), nem o suíço
NO ÂMAGO DA MÚSICA
A herança de Debussy Entre os inovadores mais autênticos de
Franck Martin (1890-1974), nem o americano Aron Copland nosso século, alguns tiveram a fraqueza de não estender suas pes
(1900), nem os alemães Werner Egk (1901) ou Boris Blacher (1903) quisas à totalidade do sistema musical, do que resulta uma hibri-
alcançaram verdadeira notoriedade fora de suas respectivas pá dação que dá ao ouvinte uma impressão de incoerência. A crítica
trias. Suas obras são publicadas, gravadas, tocadas ocasionalmente pode ser feita a Schönberg e Stravinsky, raramente a Ravel, nun
em festivais, no rádio (nos piores horários!), ou no âmbito de as ca a Debussy. La mer e Jeux descobrem um mundo sonoro intei
sociações em constantes apuros financeiros. Mas não têm audiên ramente novo, apontando o caminho para explorações e auroras
cia internacional. perpétuas. Esse exemplo atribui aos criadores a responsabilidade
Nas épocas precedentes, os compositores adquiriam sua "di de uma revolução permanente, que deve ser mantida por uma in
mensão histórica" ao cabo de uma seleção muito lenta e sujeita saciável curiosidade.
a freqüentes revisões, em que o público desempenhava o papel À exploração genial, o neoclassicismo opõe, ao contrário, um
preponderante. Desde o início do século X X , a seleção é feita horizonte limitado; revestindo apenas com novas cores (harmô
rápida e implacavelmente pela ação conjugada do meio profis nicas e instrumentais) as formas e os estilos melódicos familiares,
sional, da mídia e, em menor medida, do grande público. De ele se congela num conformismo temeroso. O dodecafonismô tam
fato, este só se interessa pelos artistas já selecionados, precisa bém se congela na complexidade de suas regras e parece ainda mais
de "estrelas". Seja a seleção justa ou não, é impressionante rígido pelo fato de seu método serial ainda só se aplicar à melo
que numerosos compositores de nosso tempo tenham sido man dia e à harmonia, instalando-se quanto ao mais nos velhos mar
tidos afastados da competição e nunca tenham podido apresen cos tradicionais. Essas tendências impositivas e restritivas levam
tar-se em condições satisfatórias ao juízo do grande público. inevitavelmente a academismos. O exemplo de Debussy ensina a
Veremos mais adiante que a "nova música" da segunda metade sempre se proteger deles.
do século enfrenta a dificuldade inversa: no fórum permanente A verdadeira corrente debussysta não é a simples imitação
que constituem os numerosos festivais especializados, nas gra de um estilo qualificado de "impressionista", mas, ao contrário,
vações cuidadíssimas e nos programas radiofônicos consagra a renovação incessante dos horizontes musicais. Os músicos que
dos aos novos valores, a maior parte do público fica desorien forjaram um estilo perfeitamente original e coerente, ao prosse
tada pela mudança radical que é imposta a seus hábitos de es guirem a exploração de todos os recursos harmônicos, modais e
cuta; assim, adota ou recusa tudo em bloco, guardando os no rítmicos, colocam-se nessa corrente revolucionária, eternamente
mes de alguns compositores de destaque designados pela im fértil. Com personalidades artísticas bem diferentes, Bartók, Va
prensa ou por algum escândalo, mas confundindo o melhor e rèse, Jolivet e Messiaen são alguns deles. Eles tiveram a força de
o pior. resistir tanto aos sistemas tradicionais como aos de vanguarda.
A multidão dos compositores que não alcançaram de pronto Cada um descobriu sua verdade reconsiderando, como Debussy,
a dimensão histórica foi obrigada a exercer profissões paralelas a totalidade do complexo musical, passando pelo crivo de sua re
(intérpretes, professores, responsáveis por programas ou serviços flexão e de sua sensibilidade as escalas modais, a harmonia, os
na rádio-televisão, jornalistas, editores) ou a exercer seu ofício timbres, o ritmo. A concepção independente e sintética da músi
de compositor em setores marginais (cinema, publicidade, músi ca, que integra todas as suas dimensões espaciais e temporais —
ca por metro), atividades essas que os afastaram ainda mais da eis o essencial da corrente debussysta.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 290 291 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA
Scriabin Na última parte de sua obra (1910-1915), Scriabin já As últimas sonatas de Scriabin fornecem exemplos notáveis
se empenha nesse modo de exploração completa da realidade de alternância e interação modal, com uma rítmica sutil e não ra
sonora. A descoberta de Debussy foi um elemento decisivo de ro complexa. Aí encontramos aplicada inclusive uma técnica de
sua evolução, e a rica invenção harmônico-modal de La mer cau complementaridade que terá um papel importantíssimo na músi
ciona suas pesquisas. Assim, por exemplo, o tema exposto nas ca serial: os sons de um modo são distribuídos entre blocos sono
trompas no primeiro movimento ("Da aurora ao meio-dia no ros complementares, ou então algumas notas que faltam à har
mar") monia modal se vêem dotadas de uma função temática maior (na
sutil sonata n? 8 sobretudo).
A singularidade do gênio de Scriabin nos interessa hoje por
que bom número de suas iniciativas aparece a posteriori como an
tecipação da nova música: espírito de síntese, natureza essencial
mente harmônica do sistema modal, substituição da temática tra
emprega uma escala modal (que transponho aqui para a tônica dicional por séries de "blocos sonoros" harmônicos e rítmicos (já
dó), ligada ao famoso acorde por quartas que Scriabin chama de presentes no segundo movimento de La mer), substituição da tô
"sintético": nica por uma série de centros tonais escalonados por terças me
nores (o acorde de sétima diminuta torna-se uma espécie de eixo
tonai), rítmica vital não sujeita ao compasso, etc. Mas não se de
ve superestimar a influência desse criador solitário. Seu procedi
mento é muito menos audacioso que o de Debussy e o de Schön
berg, e concorre para a expressão de um romantismo exacerba
do. Por sinal, ele foi pouco conhecido das gerações que lhe suce
Essa harmonia fundamental, que encontraremos em Bartók, ge deram e o interesse por ele só se renovou mais ou menos a partir
ra outras escalas extremamente interessantes, que aparecem nas de 1960, em parte graças ao ensino eclético e à cultura universal :.£V:--í"- •-•sir.
- Q. \,V; _ - - - . ^
cinco últimas sonatas de Scriabin, em particular estas: de Messiaen.
Bartók e sua mulher, Ditta, em 1938. Rapsódia para piano), Manchester 1920 O almirante Horthy é nomea
(onde Richter estréia seu poema sin do "regente da Hungria".
1940-1945 Com ο domínio nazis Sua morte, no West Side Hospital
fônico Kossuth). 1923 Bartók se divorcia para se ca
ta sobre seu país, decide emigrar. de Nova York, assinalará o início
1906 Entrementes, faz sua primei sar com a aluna Ditta Pásztory, que
Aceita um convite da Columbia da sua glória.
ra viagem de estudos sobre o folclo também tem dezesseis anos. Exce
University e se instala em Nova
re (grande planície e Alta Hungria). lente pianista, ela dará vários reci
York. Durante dois anos, multipli obra Uma ópera, O castelo de
Publicação com Kodály da primei tais com o marido.
1927-1928 Turnê pelos Estados ca as conferencias e os concertos, Barba-Azul (Budapeste, 1918); dois
ra coletânea de canções.
sozinho ou com a mulher, ao mes balés, O principe de madeira (Bu
1907 Professor de piano do Con Unidos, onde toca suas obras.
mo tempo que continua seus tra dapeste, 1917) e O mandarim mara
servatório de Budapeste. Kodály o 1929 Turnê pela União Soviética.
1932 Viagem ao Cairo, para o pri balhos científicos. Mas suas obras vilhoso (Colônia, 1926). Cantata
faz descobrir Debussy.
não são tocadas: sua situação fi profana para solistas, coro duplo e
1909 Casamento com sua jovem meiro congresso de música árabe.
nanceira é catastrófica e seu orgu orquestra. Numerosas melodias e ar
aluna, Marta Ziegler, dezesseis 1936 Recolhe canções turcas na
anos, filha de um alto funcionário Anatólia. lho impede-o de aceitar a menor ranjos de canções populares. Várias
da polícia. Um ano depois, têm um 1934-1940 Primeiras audições da ajuda desinteressada. Sua saúde de composições importantes para or
filho, Béla. Cantata profana (Londres, 1934), clina. Sofre de leucemia, sem sa questra (dentre as quais as obras-
1909-1912 Coleta canções popula do quarteto n? 5 (Washington, ber. Trabalha com muita dificul primas já citadas). Três concertos
res na Romênia, Bulgária, Ucrânia. 1935; quarteto Kolisch), da Músi dade, mas consegue terminar o para piano, dois para violino, um
1913 Viagem de estudos sobre o ca para cordas, percussão e celesta Concerto para orquestra encomen para viola (inacabado). Numerosas
folclore do Sul da Argélia. (Basiléia, 1937; regência de Sacher), dado por Koussevitzky, a sonata peças para piano. Seis quartetos de
1918 Primeira audição em Buda da Sonata para dois pianos e per para violino solo encomendada por cordas; Contrastes para violino, cla
peste do Castelo de Barba-Azul: inícussão (Basiléia, 1938; Bartók e Dit Menuhin e o Concerto n? 3 para rineta e piano; quarenta e quatro
cio da celebridade como compo ta), do Divertimento (Basiléia, piano (faltaram apenas alguns duos para 2 violinos, duas sonatas
sitor. 1940; regência de Sacher). compassos), que destina à mulher. para violino e piano, etc.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 296 297 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA
Se excluirmos suas primeiras obras, antes de 1905 aproxima o Divertimento (1939) e, sobretudo, o Quarteto n? 5 (1934), & Mú
damente, cuja estética ainda indecisa muito deve a Liszt e a sica para cordas, percussão e celesta (1936) e a Sonata para dois
Brahms, os quarenta anos de atividade criadora de Bartók podem pianos epercussão (1937; primeira audição na Basiléia, em 1938,
dividir-se em três períodos: por Bartók e sua mulher), os três pontos culminantes, a quintes
de 1905 a 1930 Seu amigo Zoltan Kodály o faz descobrir a mú sência de seu gênio. Abalado com a ascensão do nazismo e as re
sica de Debussy, cuja harmonia modal ambígua o fascina, e percussões que este encontra em seu país sob o almirante Horthy
incentiva-o a recolher e estudar metódicamente as canções popu ("um perigo iminente nos ameaça: o de ver a Hungria entregar-
lares. Os dois jovens músicos publicam juntos sua primeira cole se, por sua vez, a esse regime de rapina e morticínio"), e mais
tânea de melodias húngaras em 1906. A partir de então, Bartók agarrado que nunca a seu ideal de paz e justiça universais, Bar Música para cordas, percussão
realiza uma síntese bastante original entre a música moderna oci tók transforma sua angústia em energia criadora. e celesta.
dental e o folclore magiar. "Kodály e eu queríamos fazer a sínte
se do Oriente e do Ocidente. Por nossa raça e pela posição geo Ptü and ante, ) c a 56
gráfica de nosso país, que é ao mesmo tempo a ponta extrema
do Leste e o bastião defensivo do Oeste, podíamos pretendê-lo. — =f£- ffa-
Isso nos foi possível graças a Debussy, cuja música acabava de ψ rnf espr.
chegar até nós e nos iluminava." Paralelamente à publicação das
canções que recolhe, arranjadas para canto e piano, para coro a \ft== - ; 1r p s £ — ί )—k
capela ou para piano solo, Bartók assimila em suas obras as ca
racterísticas rítmicas e melódicas da música popular, a tal ponto
ψ —Ψ - v&
que esta se torna sua "língua materna musical", que pode utili
zar "de maneira tão livre quanto o poeta sua língua materna". -Í* —
FMH -V—?w <—*— f-
^ — 1 I ι s μ lΓ *j&™ •>* -L—?—L.—? r r I s
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castelo de Barba-Azul (composta em 1911 e estreada em Buda
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peste em 1918) e, sobretudo, a magnífica "pantomima" O man 2soli ft::
darim maravilhoso (composta em 1918 e estreada em 1928, em L ^ ^ * _
Budapeste).
jo espt;
de 1930 a 1940 A assimilação do folclore é ainda mais acentua¬
da; ele se torna "modelo de estilo" e "modelo espiritual" . É
com a própria essência da canção popular em geral que Bartók
nutre seu pensamento musical. Seu estilo chegou ao estágio da mais
26
con sor¿.
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m -£= - t —
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didas Danças em ritmo búlgaro), o Concerto para violino (1938),
de 1940 a 1945 A tragédia da tirania e da guerra, o exílio, uma coletâneas de canções que publicou, os mais simples arranjos exi
pobreza próxima da miséria, enfim a doença, põem fim a esse elã giram a invenção de uma nova harmonia que levasse em conta
genial. Ainda podíamos esperar uma superação que fizesse de Bar as características modais e rítmicas particulares. Esses elementos
tók o maior compositor de nosso século. Ora, o sexto quarteto são indissociáveis; com o timbre instrumental, eles formam nas
tem o tom de um adeus patético. Durante dois anos e meio, até obras de Bartók uma unidade complexa, uma rede de interdepen
agosto de 1943, escreve apenas um arranjo em forma de concerto dências. ·
da sua Sonata para dois pianos e percussão. As quatro importan Entre os modos utilizados por Bartók, alguns são diretamente
tes composições dos dois últimos anos (já citadas) assinalam, a inspirados na música popular, outros são fruto de extrapolações
despeito de sua beleza, um recuo em relação às obras-primas do harmônico-melódicas das sutis riquezas do folclore. Qualquer que
período precedente. Por nostalgia patriótica, Bartók cede a um seja o modo escolhido, mudanças cromáticas bastante caracterís
folclorismo exterior cujo romantismo aparece como uma renún ticas dão à sua melodia um aspecto inimitável:
cia ante a impossibilidade de uma ascensão estafante e sem espe
rança. Em contrapartida, as obras desse último período são mar
cadas por uma comovente serenidade.
des melódicas, harmônicas e formais da música de Bartók: na ex Varèse O nome de Edgar Varèse evoca uma alquimia de Titã,
pressão numérica de numerosas estruturas verticais ou horizon uma mistura de galáxias, uma torrente de rochas em fusão. No
tais de suas partituras, ele encontra aproximações da seção áu entanto, esse gênio inquietante reivindica a música da Idade Mé
rea! É assim chamada a divisão de uma grandeza C em duas gran dia e de Debussy, que o fascinou em sua juventude. Muito embo
dezas A e Β tais que: ra seu temperamento e a orientação de suas pesquisas o tenham
levado a escrever uma música bem diferente, Varèse se situa, por
C = J3 sua própria independência, na corrente ilustrada por La mer e
Β A Jeux; ele é dos que recusam a obrigação de obedecer as regras es
tabelecidas por outros e reconsideram globalmente todos os pa
A Β râmetros de que depende sua arte.
I | 1
Varèse se aproxima de Bartók por sua avidez de música, sua
!_ C curiosidade em relação às tendências naturais, por aquele espíri
to de síntese que torna indissociáveis as cinco dimensões da músi
Calcula-se que a fração B/A, chamada "número áureo", seja igual ca (melodia, harmonia, ritmo, nuanças, timbre); por sua intran
a 1 + VJ, OU seja, 1,61803399... Calcula-se também que é o li- sigência também ("Não tenho a menor vontade de me tornar um
2 velho caturra como o senhor", declara a Saint-Saëns); e também
pela incompreensão que sofreu e que sua obra sofre ainda hoje,
mite da fração formada por dois números sucessivos da série de
devido ao esnobismo de certos admiradores, bem como à injusti
Fibonacci, da qual cada termo é a soma dos dois precedentes:
ça dos detratores. "Não há gênio irreconhecido", dizia. "Sem
1 2 3 5 8 13 21 34 55 89... Por isso, na prática, consideram-se
pre se é reconhecido por seus pares." Quem são seus "pares" nos
como seção áurea as relações 8/5 ou 13/8 ou 21/13, etc, estando
anos difíceis que precederam a guerra? Alguns dos maiores pin
entendido que a aproximação é tanto mais satisfatória quanto mais
tores e escritores, de quem ele tinha a inteligência de tornar-se ami
longe se leve a série.
go: Léger, Miró, Calder, Alejo Carpentier, Henry Miller, Saint-
Lendvai observa, por exemplo, que o ponto culminante do
John Perse, Antonin Artaud, alguns músicos também, como
primeiro movimento da Música para cordas divide os 89 compas
Schönberg e Jolivet.
sos da peça em 55 + 34; ou, ainda, que um acorde como este é
As primeiras audições de suas obras causaram escândalo. A
mais famosa foi a de Deserts, em 2 de dezembro de 1954 no Théâ
tre des Champs-Élysées, em Paris, sob a regência de Hermann
Scherchen. Era a primeira vez que se associava uma fita magnéti
ca à orquestra. Essa noite memorável nada teve a invejar da es
formado de um intervalo de 5 semitons (sol-dó) e de um intervalo tréia da Sagração, pela amplitude da algazarra; parece até que os
de 8 semitons (dó-lá )... O grande número das observações desse manifestantes de 1954 estavam mais bem armados (alguns leva
gênero é perturbador; mas pode-se tomar a seção áurea como jus vam apitos), mais violentos, mais barulhentos e mais grosseira
tificação de opções estéticas? De qualquer modo, Lendvai e Sza- mente injuriosos que os de 1913.
bolcsi, os melhores conhecedores do pensamento artístico de Bar Como Berlioz, Wagner, Debussy e muitos outros, Varèse ou
tók, estimam que essas notáveis relações numéricas foram dese viu criticarem-lhe sua impotência musical, que o leva ao "caos".
jadas e não fortuitas. Os que acham que sua música é uma cacofonía informe sentem-
Como Debussy, Bartók é o músico das intuições profundas se confortados em sua opinião por sua reticência à análise e pelo
e das vastas sínteses. Era fatal que nem sempre fosse compreen mistério de que cerca seus projetos formais e seu método de com
dido e que se tornasse popular pelo que não era: um cigano. A posição. "Cada uma das minhas obras descobre sua própria for
intransigência de seu caráter, assim como a originalidade de sua ma", diz. É um prodigioso instintivo que não se estorva nem com
música, valeram-lhe a carreira infeliz que sabemos. Ele permane receitas, nem com gramáticas, o que aos olhos dos pedantes é tí
cerá uma das personalidades mais admiráveis da história da mú pico dos maus amadores. Ele não sabe ou não quer explicar co
sica, um modelo de rigor moral, de justiça, de independência ra mo sua música é feita; Messiaen viveu essa experiência ao convidá-
dical, de resistência a todos os compromissos. lo à sua classe de composição. Mas essa música bárbara e refina-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 302
28. Busoni, Neue Aesthetik der Tonkunst, Berlim, 1908. Esse músico, repre
sentado com freqüência como precursor genial, não realizou suas visões proféti
cas em suas próprias composições. ^
29. Citado no excelente Varèse de Odile Vivier, L e Seuil, 1973. Varèse e seu gongo.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 308 309 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA
a essas espadas de fogo, a essas bruscas estrelas, a essas torrentes Olivier Messiaen.
de lava azul-laranja, a esses planetas turquesa, a esses violetas,
a esses grenás de arborescências cabeludas, a esses turbilhões de
sons e de cores em confusões de arco-íris..."
Um mês antes, Yvonne Loriod deu a primeira audição de
uma das obras-primas do piano moderno, Vingt regards sur l'en
fant Jésus. Diante dessa obra monumental, o público mostrou-
se mais reticente e os espíritos fortes menos violentos: riu-se.
O estilo de Messiaen chegou então à maturidade; para ser mais
exato, ele assimilou completamente os princípios essenciais em
torno dos quais evoluirá sem cessar livremente. Porque sua esté
tica e sua técnica se prestam a todas as novas conquistas, e seu
maravilhoso ecletismo sempre impedirá esse professor exemplar
de se instalar no conforto de um academismo, ainda que este
seja de vanguarda e instituído à sua conveniência. Ele disse com
freqüência que se nutria de tudo; o cantochão, o folclore, Bach,
a música russa, Debussy, Bartók, as músicas exóticas, o canto
dos passarinhos e os ruídos da natureza proporcionam-lhe os
elementos de uma síntese inaudita.
Irr ν»β 1
ção perpétua das combinações, em particular se os números de ele Os Études de rythme pertencem a um período de pesquisa
30
mentos forem primos entre si . A unidade é salvaguardada pela dominado pelo sutilíssimo Livre d'orgue. Neles, Messiaen asso
repetição dos mesmos elementos e pelos três pedáis, deslocados sem cia uma grande variedade de ritmos indianos, de cantos de pássa
cessar, reagindo uns sobre os outros de maneiras sempre diferen ros e de timbres a estruturas seriais, numa escrita linear de extre
tes. Um método análogo é empregado em música eletracústica, ma complexidade. É notável que essas obras "experimentais", cuja
quando se misturam seqüências de comprimentos diferentes. leitura inspira certo assombro, proporcionam à audição uma im
A riqueza melódica, harmônica e rítmica, na música de Mes pressão de riqueza inaudita.
siaen, é inesgotável. Ela aumenta ainda pela assimilação de for Em 1953, quando seus alunos estão comprometidos num se-
mas emprestadas, notadamente dos rãgã indianos e dos cantos dos rialismo totalitário, em parte sob sua influência, e quando o velho
pássaros. A liguagem rítmica é particularmente interessante. De Stravinsky acaba de sucumbir a ele, Messiaen escolhe a liberdade.
bussy evadiu-se da ordem periódica imposta pelo compasso. Mes Compõe Réveil des oiseaux, para piano e orquestra, que será se
siaen, por sua Vez, substitui o compasso por uma organização coe guido de Oiseaux exotiques (1956), igualmente para piano e orques
rente, em que o ritmo só se refere à sua própria estrutura e adqui tra, e de Catalogue d'oiseaux para piano (1958). Não é a primeira
re autonomia, proporcionando-lhe as mesmas possibilidades de vez que introduz em suas obras cantos de pássaros; ele conhece uma
desenvolvimento que os outros parâmetros formais. Tudo isso é extraordinária variedade desses cantos, tendo notado todas as suas
levado a um ponto culminante na sinfonia Turangalila (1946), formas em cadernos com extrema minúcia. Mas nessas composi
imenso canto de amor, barroco e caloroso. ções espantosas, de uma riqueza sem equivalente, só utiliza cantos
de pássaros, cuja entoação, acentuação e ritmo são reproduzidos
Em 1949, Messiaen publica Quatre études de rythme para pia tão fielmente quanto nosso sistema musical, a instrumentação e
no, dos quais o segundo, Modo de valores e de intensidades, ad a notação permitirem! Pode haver música mais audaciosa e, ao mes
quiriu uma importância histórica particular. Essa curta peça pre mo tempo, mais fascinante do que esses concertos de passarinhos
tende ser um "prolongamento das idéias de Einstein" sobre a in organizados por mu dos mais doutos músicos de nosso tempo? Tam
teração dos parâmetros temporais e espaciais; mas não se é obri bém encontramos um exemplo admirável dessa música, mesclado
gado a seguir o autor em suas parábolas relativistas! A idéia no ao ruído das águas e dos ventos da montanha, na penúltima se
tável está em ter baseado a composição nas combinações de quatro qüência de Chronochromie (1960), "Epode".
"modos" complementares: um modo de alturas de trinta e seis
sons (dispostos em quase toda a extensão do teclado), um modo
rítmico de vinte e quatro valores de duração, um modo de ata
ques {staccato, legato, tenuto, etc.) e um modo de intensidades
(de ppp ΆIff). Buscando um princípio unificador que se estenda
a todos os componentes da música, Messiaen é a fonte de uma
idéia que subverterá a consciência musical nos anos 50: a genera
lização do método serial, que Webern apenas entreviu.
O ensino de Messiaen exerce então uma influência conside
rável sobre os jovens compositores. Suas análises geniais da Sa¬
gração de Stravinsky, de Pelléas e de La mer de Debussy, da Mú
sica para cordas de Bartók ou das obras da escola vienense fica
ram célebres. Sua turma de harmonia desde 1942 e sua turma de Os "cantos" dos pássaros, ruídos sublimes, frutos de milha
análise desde 1947 são verdadeiras turmas de composição, cuja res de séculos de adaptação fisiológica, são um desafio a nossos
31
influência ultrapassa largamente as fronteiras francesas. Podemos laboriosos métodos de composição . Imitando-os com respeito,
considerar que esse ensino prodigiosamente aberto foi decisivo pa Messiaen acentua a universalidade de seu estilo. Eles lhe propor-
ra toda a evolução da música na segunda metade do século.
31. "Os passarinhos são grandes artistas", diz Messiaen. Mas então por que,
sendo também um grande artista, necessita tanto deles? O milagre, ao contrário,
30. Se, por exemplo, sobrepusermos uma melodia de 8 sons, um ritmo de parece-me estar em que eles não realizam um pensamento artístico, mas uma fun
5 valores e uma harmonia de 9 acordes, só tornaremos a encontrar a combinação ção. Se a vaca não "canta" tão bem quanto o melro, não é porque ela é menos
inicial depois de ter ouvido a melodia 45 vezes (a série de acordes 40 vezes, o rit grande artista, mas simplesmente porque sua anatomia não é adaptada a essa fun
ção. E m compensação, ela dá leite!
mo 72 vezes).
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 320
¡'I i'
cionam uma infinidade de novos modos (melódicos, rítmicos, de
intensidade, de timbres) que não precisam dar provas da sua legi
timidade. Essas riquezas não cessam de jorrar em suas composi
ções ulteriores, particularmente em La transfiguration de Notre
Seigneur Jésus-Christ (1969) e Des canyons aux étoiles (1975),
obras fulgurantes que permanecerão entre os monumentos musi
cais de nosso século.
O empirismo naturalista de Messiaen é complementar à sua
fé religiosa. Sua música é "teológica", explica ele — isto é, ela
é uma relação com Deus. É "católica" — isto é, universal. A sus
peita que seu "misticismo" provocou não tem sentido. Messiaen
é intensamente'crente, mas nunca se postou como um místico, ao
contrário; é essencialmente por uma relação sensual com o mun
do que se estabelece sua relação com Deus. Assim, ele reivindica
"uma música furta-cor, que proporcione ao sentido auditivo pra
zeres voluptuosamente refinados". O imenso trabalho que cada
uma das suas partituras representa e a independência obstinada
que seus comentários denotam são garantias suficientes da sua sin
ceridade, tão freqüentemente contestada.
Stockhauseri (1928) estão entre os que receberão e darão muito tenidos e bemóis, perverte a sensibilidade auditiva e freia a ima
a Darmstadt. Pierre Boulez (1925) é um dos raros músicos de sua ginação. Mas eles pressentem a fecundidade do princípio serial
geração que lá deu aulas (bem mocinho) sem nunca lá ter estuda enquanto novo meio de organizar um campo de possibilidades
do. Paralelamente aos cursos de composição, os responsáveis pe qualquer, o total cromático (dodecafonia) ou, eventualmente, ou
lo Instituto tiveram a idéia de organizar cursos de interpretação tra coisa... Leibowitz ensinou-lhes um método rigoroso, como o
em que, pela primeira vez, instrumentistas são iniciados nos pro contraponto e a fuga escolares. Agora, Messiaen e Boulez indicam-
blemas específicos da música contemporânea. Essa iniciativa faz lhes o caminho da liberdade.
eco à célebre tirada de Schönberg: "Minha música não é moder Mas a liberdade é difícil e perigosa. A vanguarda serial dos
na, é mal tocada." anos 50 não consegue abraçá-la de imediato. Muitos se preten
Essa primeira geração do pós-guerra, formada por Messiaen, dem "estritamente seriais" e algumas de suas composições são
Leibowitz e pelos cursos de Darmstadt, não concebe que a músi mais adequadas para conquistar a estima dos colegas do que a
ca de hoje possa ser outra que não serial. Mas eles não se preten confiança do público. Maurice Le Roux (1923), um dos mais bri
dem revolucionários, ao contrário do que o público pensa então lhantes alunos de Messiaen e um dos primeiros, com Boulez, a
— e, de resto, não são mesmo. A escrita serial é o último estágio se lançar na nova aventura, fez a experiência disso à sua custa.
da evolução da escrita polifónica; utilizada desde 1923, é a técni Seu magnífico Cercle des métamorphoses para orquestra faz a mu
ca de um novo classicismo, que se pôde pensar já morto. Não é sicalidade mais sensível e a escrita mais complexa coincidirem; to
uma ruptura que se opera, mas um "retorno a...", que corre o das as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento serial são
risco de se tornar um pavoroso academismo. Felizmente, o pres exploradas com rigor, mas essa aritmética tem uma alma. A pri
tígio de Messiaen brilha com um novo fulgor quando seus discí meira audição em 1953, em Aix-en-Provence, foi tumultuada. O
pulos descobrem o famoso estudo para piano Mode de valeurs público sem dúvida ficou zangado com a aritmética, cujo rigor
et d'intensités.
certamente lhe teria escapado se não lhe tivessem dito nada, e não
Boulez sente uma contradição na obra de Schönberg entre, ouviu a música . 32
fundado em 1921, que organiza desde 1950 jornadas de música inesperadas, uma música extremamente difícil de ser executada.
contemporânea, enfim o Domaine Musical em Paris. Essa asso Pouco a pouco, os ateliês de composição, os grupos de música
ciação, fundada em 1954 por Boulez, sob os auspícios da Com¬ experimental, os festivais especializados se multiplicarão na Fran
* panhia M . Renaud-J.-L. Barrault, foi até 1973 no Petit-Marigny, ça, na Alemanha, na Itália, depois em toda a Europa e nos Esta
depois no Odéon, um dos mais notáveis bancos de prova da mú dos Unidos.
sica contemporânea. Criticou-se muito essa instituição, seu me
cenato privado, seu público esnobe, suas exclusões. Em todo ca Boulez Entretanto, a escrita serial, ao se generalizar, tornou-se
so, os concertos do "Domaine" deram a numerosos jovens com extremamente complexa. Em Mode de valeurs et d'intensités de
positores a oportunidade de mostrar, em condições de trabalho Messiaen, a cada som do modo melódico é atribuída uma dura-
ção, um ataque e uma intensidade variáveis — são como perso de Boulez, inaugurando um serialismo de semblante humano, que Boulez com Luciano Berio, 1974.
nagens que aparecem sempre com seus atributos específicos. Nas ainda levará alguns anos para se impor aos dodecafonistas "clás
Structures para dois pianos de Boulez (primeiro livro, 1952), que sicos".
33
se inspiram no estudo de Messiaen , as séries complementares A evolução do estilo de Boulez precede ou acompanha a dos
são associadas de maneira variável: cada nota poderá receber su movimentos musicais de vanguarda. A partir do Marteau sans maî
cessivamente diferentes ataques, nuanças e durações que compõem tre, a vontade de humamzação da música serial traduz-se por um
o material serial. A diversidade das combinações possíveis é pra refinamento da escrita vocal e instrumental, cujo hedonismo se
ticamente ilimitada, o que, infelizmente, não torna a audição mais vincula à corrente debussysta. A voz adquiriu uma nova impor
atraente.
tância, que suscita pesquisas aprofundadas sobre as relações texto-
Essa obra capital, mas aborrecida, só fascinou os iniciados, música: a resultante dessas pesquisas será Pli selon pli (Portrait
sobre os quais sua influência foi considerável. Mas é em Le mar de Mallarmé), 1958-1959, obra suntuosa cujo conhecimento é ne
teau sans maître (1954), a partir de poemas de René Char, que
cessário a quem quiser compreender a evolução da música con
o método serial generalizado deixa o estágio experimental para
temporânea. Ε será interessante comparar a beleza sonora do se
alcançar o da perfeita mestria e da livre fantasia. Essa suíte para
gundo livro de Structures (1962) com a secura do primeiro.
contralto, flauta, xilofone, vibrafone, guitarra, viola e uma rica
percussão é sedutora, leve e transparente, a despeito de sua sutil Em 1957, uma peça para piano de Stockhausen, de caráter
34
complexidade . Ela está na origem da notoriedade internacional bem livre, Klavierstück XI, é apresentada em primeira audição
em Darmstadt, seguida pouco tempo depois, no Domaine Musi
33. Fragmentos dessa obra são apresentados em primeira audição no Festival
cal, da magistral Terceira sonata de Boulez. Essas composições,
do século X X por Messiaen e Boulez. Essa colaboração é sentida como o símbolo em que são introduzidos fatores de indeterminação das combina
do entendimento e da influência mútua do mestre e do aluno. A autoridade de Mes ções seriais, adotam pela primeira vez o que é chamado de "for
siaen sobre os jovens discípulos estrangeiros de Boulez aumenta ainda mais com isso.
34. E l a fora recusada a princípio no festival da S I M C , mas Marie-Thérèse
mas abertas". Uma obra aberta é composta de certo número de
Cahn e Hans Rosbaud a fizeram triunfar em Baden-Baden. "formantes", cada um dos quais admite várias variantes, cuja di-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 328 329 A RENOVAÇÃO SERIAL
versidade de emprego é deixada à iniciativa dos intérpretes. Mais dentemente das obras que essas técnicas sem precedentes suscita
tarde, tantas vezes quantas achar necessário, o compositor pode rão, sua influência será profunda sobre a evolução das concep
rá introduzir em sua composição novos formantes ou novas re ções estéticas e dos métodos de composição.
gras de combinação. O fetichismo do objeto musical acabado es A maior parte dos compositores seriais, alunos de Messiaen,
tá superado. A obra está em perpétuo devir, o que a denomina dos cursos de Darmstadt ou de Boulez, seguiu caminhos mais
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ção, que se tornou usual, de works in progress exprime . A for ou menos originais, do extremo rigor do dodecafonismo clássico
ma é, então, duplamente aberta, ao intérprete e ao próprio com à üvre exploração de todo o contínuo das alturas, das durações
positor. A partir de 1957, grande parte da atividade criadora de e dos timbres, passando pela generalização do princípio serial.
Boulez se refere a essa noção de obra em evolução. É em particu Bruno Maderna (1920-1973), cabeça da jovem escola italiana,
lar o caso de uma obra notável, Éclats, cujo refinamento instru dedicou-se incansavelmente à defesa da nova música (como re
mental seduziu o grande público. Composta em 1964 para quinze gente) e à pesquisa. Criou em Milão o Studio di Fonología da
instrumentos, essa obra, em parte improvisada, era destinada a RAI, primeiro centro de música experimental na Itália. Seu alu
se inserir numa composição fixa para orquestra, o que deu, em no Luigi Nono (1924) é uma das mais fortes personalidades da
1969, Éclat/Multiples. música contemporânea. O militantismo politico a que sua obra
é dedicada tem o raro mérito de conciliar-se com o intransigente
Sair do impasse No estágio de complexidade que a música se modernismo do pensamento musical. É excepcional traduzir de
rial alcançou nos anos 50, a liberdade da pesquisa é Hmitada maneira tão convincente, numa escrita serial tão sutil, o lirismo
pelo sistema de notação, pela luteria, pelas habilidades de exe generoso e o calor humano que fazem a grandeza da música de
cução, por todas as instituições da música ocidental que repou Nono. A cantata II canto sospeso (1956) e a ópera Intolleranza
sam na escala de doze sons e numa rítmica paupérrima. A liber (1961) se alinham entre as obras mais comoventes deste tempo...
dade de pesquisa também é Hmitada pela generalização do prin Luciano Berio (1925) libertou-se bem depressa das imposições se
cípio serial. Na variação total, todas as formas, todas as combi riais, mal adaptadas a seu temperamento, em benefício de um
nações possíveis, fazem parte de um grande todo cibernético estilo barroco, luxuriante, que integra todos os procedimentos
teoricamente cognoscível, em que o excepcional (a verdadeira da "nova música" com uma inteligência e uma independência
variação!) não existe mais. "Quando tudo se transforma igual notáveis (ver p. 396)...
mente em variação, quando mais nenhum 'tema' persiste e quan Karlheinz Stockhausen (1928) é uma estrela que o público ci
do qualquer aparição musical sem distinção se determina como ta como exemplo para justificar seu gosto ou seu desgosto pela
permutação da série, a universalidade da variação faz com que música contemporânea. Audacioso e inventivo, tem ares de chefe
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nada mais varie." O sistema é totalitário, no sentido de que de escola, junto com Boulez. Mas é um exagero pôr os dois músi
engloba todos os componentes da música, sem admitir diversi cos num mesmo plano: o constante procedimento experimental
dade. de Stockhausen não é sustentado por uma cultura e uma reflexão
A reconquista do imprevisto e do excepcional, por uma su metódica comparáveis às de Boulez. A agressividade, a feiúra cal
peração do método serial e pela integração de fatores aleatórios, culada, a ingenuidade de uma complexidade de escrita indiscerní-
será o motor principal da importante evolução da nova música