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Para que o amador inadvertido deixe de ser mistificado

pelo expert, para que a "grande música" perca seus


privilégios de rito aristocrático, é preferível examinar
escrupulosamente os princípios e as funções,
permitindo a cada um separar o que há de essencial
em todo um amontoado de convenções e de "luxos"
culturais. Não são as biografias romanceadas, os
catálogos de obras, as análises harmônicas, nem
algumas migalhas de ciência esotérica que podem
garantir à música, como saber, o seu lugar na nossa
civilização.
Roland de Candé

I SBN85-336- 1501-9

9 788533 615014
volume 1

• Premissas

• Pré-história e Antigüidade: Cem


séculos de civilização musical

• A música no mundo HISTÓRIA UNIVERSAL


' A herança antiga e o canto cristão da MÚSICA
• A primeira Renascença

• A liberdade de criar
• A segunda Renascença
• A "Ars nova"

• A grande Renascença
• Apogeu da polifonia e começo dos
tempos modernos

• Formação do melodrama e do
estilo concertante
• A época barroca do classicismo

' A música clássica e o Século das


Luzes

volume 2

• O romantismo e sua herança

' O século das metamorfoses ou


a contestação geral do sistema

Capa
Projeto gráfico Katia Harumi Terasaka
Imagem Picasso, Joie de mure, detalhe, Amibes,
Museu Picasso.
Roland de Candé
HISTORIA UNIVERSAL
da MÚSICA
volume 2

T r a d u ç ã o Eduardo B r a n d ã o
R e v i s ã o da tradução Marina Appenzeller

Martins Fontes
São Paulo 2001
O ROMANTISMO
Ε SUA HERANÇA

Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título


HISTOIRE UNIVERSELLE DE LA MUSIQUE - Tome II
por Editions du Seuil, Paris.
Copyright © Éditions du Seuil, 1978.
Copyright © 1994, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

a
I edição
julho de 1994
a
2 edição
outubro de 2001

Tradução
EDUARDO BRANDÃO

Revisão da tradução
Marina Appenzeller
Revisão gráfica
Maurício Balthazar Leal
Renato da Rocha Carlos
Diñarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Composição
Antonio Neuton Alves Quintino
SUMÁRIO
Arte-finai
Moacir Katsumi Matsusaki

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CEP)


O SÉCULO DAS
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) METAMORFOSES
Candé, Roland de OU A CONTESTAÇÃO
História universal da música : volume 2 / Roland de Candé ;
tradução Eduardo Brandão ; revisão da tradução Marina GERAL
Appenzeller. - 2 . ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2001.
DO SISTEMA
Título original: Histoire universelle de la musique : tome I I .
I S B N 85-336-1502-7 (obra completa)
I S B N S5-336-Í501-9 (v. 2)

1. Música - Historia I. Título.

01-4888 CDD-780.9
índices para catálogo sistemático:
1. História da música 780.9
* 2. Música : História 780.9

Todos os direitos desta edição para o Brasil rescn-ados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 3301340 0I325-QQ0 São Paulo SP Brasil
Tel. (II) 32413677 Fax (U) 3 J05.6867
e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br
N O T A SOBRE OS MÚSICOS CÉLEBRES

Estatisticamente, é natural que a quantidade de grandes músicos


aumente com a população; e esta aumentou na Europa, de ma­
neira considerável, no século X I X . Mas também é a notoriedade
que aumenta, de maneira artificial, desde o início do século X V I I I ,
dando a ilusão de um progresso humano, de uma multiplicação
do gênio. As principais causas desse aumento de notoriedade são
as seguintes:
1. A diminuição do preço dos livros de música e o apareci­
mento dos concertos públicos garantem uma melhor difusão das
obras musicais, que conservam por mais tempo seu interesse. Ou-
trora, obtinha-se música copiando-a (o preço dos impressos era
exorbitante). Ora, o que havia a copiar? A música recente, cujo
sucesso não durava mais que uma temporada.
2. O desenvolvimento da musicología no século X I X suscita
um novo interesse pela música do passado, mas apenas de um
passado bem recente: a documentação referente a ele, tanto mu­
sical como histórica, é mais acessível, a notação é de fácil leitu­
ra, o sistema musical é familiar, a instrumentação também. As­
sim, a música "clássica" adquire uma posição privilegiada em
nossa cultura.
3. A concepção romântica do homem genial incita a escru­
tar as biografias para encontrar os sinais de um destino excep­
cional. Os grandes músicos, desde Bach, passam a fazer parte
de uma lenda que a publicação de vidas romanescas alimenta.
A pobreza, a humilhação, as desventuras amorosas, as famílias
intolerantes, a incompreensão dos contemporâneos, a surdez, a
tísica, a paranóia, a angústia ou a revolta contribuem para exal­
tar o gênio, ressaltando melhor seu caráter singular. Os artistas
românticos serão, eles próprios, bastante atentos à publicidade
da sua imagem.
Quando o sistema musical clássico, estável há gerações, co­
meça a ser abalado no fim do século X I X , o grande público, na­
turalmente conservador, dificilmente se adapta: ele não esgotou
o prazer que lhe proporciona a música à qual está acostumado.
Quando os compositores do século X X se afastarem radicalmen­
te do sistema tonai, serão rejeitados por uma sociedade que a mí­
dia e a música de consumo impregnam de tonalidade. Sua noto­
riedade será menor, e o disco continuará a aumentar a audiência
da música dos séculos X V I I I , X I X e início do século X X , ressus­
citando as obras mais insignificantes pelo artifício das "integrais" Por este contrato de 1? de março de
e das descobertas sensacionais. Para não transformar os últimos 1809, o arquiduque Rodolfo e os
príncipes Lobkowitz e Kinsky
capítulos em simples nomenclaturas, renunciei a toda e qualquer garantem uma renda anual de
abordagem exaustiva! 4.000 florins a Beethoven.
o
ROMANTISMO
Ε SUA
HERANÇA

O artista deve
dar um jeito para fazer
a posteridade acreditar
que ele não viveu.
Gustave Flaubert

Litografia de Fantin-Latour

Presumido retrato
da Malibran.
Aquarela de Delacroix.
11 ASPECTOS DO ROMANTISMO

ASPECTOS DO ROMANTISMO cubra e exprima a alma de todos os homens: "Ah!, insensato, que
crês que eu não sou t u ! " (Hugo, prefácio das Contemplações,
No início do século X I X , no momento em que se afirma a pro­ 1856).
funda originalidade do "segundo estilo" de Beethoven, a Euro­ Na Alemanha, o substantivo die Romantik designa, desde o
pa intelectual, inflamada pela idéia de progresso, já sentiu as pri­ fim do século X V I I I , uma nova tendência literária oposta ao clas­
meiras febres românticas. Quando, em 1804, ano em que Napo- sicismo. Mas, na França, já se confunde romântico e romanesco,
leão se torna imperador (3.572.000 sim, 2.579 não), Beethoven e na Inglaterra qualifica-se freqüentemente de romantic tudo o
apresenta sua Terceira sinfonia aos vienenses embasbacados, os que é pitoresco. A acepção da palavra sempre permanecerá bas­
primeiros românticos estão na força da idade: Madame de Staël tante vaga. Parece sobretudo que, na ausência de uma doutrina
tem trinta e oito anos, Schlegel trinta e sete, Chateaubriand trin­ coerente, dotada de bases intelectuais e sociológicas sólidas, o ro­
ta e seis, Hölderlin e Hegel trinta e quatro (como Beethoven), No­ mantismo se tornou uma maneira de ser, uma moda: ele se entu­
valis trinta e dois, Hoffmann vinte e oito... siasma por novos objetos, mas não propõe novas leis estéticas.
À subversão da sociedade correspondem uma nova sensibili­ Revolta-se contra o "gosto" clássico, mas sem substituir as re­
dade e uma concepção renovada da arte. Como Madame de Staël gras herdadas do classicismo. Desse modo, não se produz uma
1
mostrou tão bem , o mundo não pode mudar sem que a literatu­ revolução estética, uma verdadeira ruptura; simplesmente, o mun­
ra mude; esta deve formar suas leis segundo as condições da vida do fechado do classicismo abre-se enfim às realidades exteriores.
social, abandonar os temas de inspiração mitológica herdados do Os exemplos não vêm mais dos antigos, mas de Rousseau, Jean-
classicismo, pintar os "movimentos da alma", cujo conhecimen­ Paul, Schiller... e Shakespeare!
to aprofundado é uma aquisição recente... Os românticos reivin­ O espírito romântico afeta a literatura antes de afetar a filo­
dicam o Sturm und Drang e Shakespeare, redescobrem as lendas sofia. Aliás, ele se dissolve quando a razão se imiscui: é um pro­
medievais; substituem o culto da Antigüidade pelo da civilização blema de poetas. Mas os compositores nele descobrem um ideal
cristã, fonte inesgotável de inspiração; a "sensibilidade" torna­ em que se reconhecem e sua música é julgada romântica seja por
se um tema preponderante, em que o poderoso não se distingue um aspecto "literário" estranho à sua essência, seja pelo despre­
do fraco, pois ambos são sujeitos à melancolia, ao entusiasmo, zo às convenções que caracterizam o século XIX. Em todas as ar­
ao sentimentalismo idílico... Cada um de nós sente o que consti­ tes, o romantismo derrubou a tirania do Gosto.
tui a originalidade do século XIX: o progresso e o mal do século, Se bem não se tenha encontrado de imediato ninguém para
as monarquias überais e as repúblicas autoritárias, o nacionalis­ empunhar a bandeira beethoveniana, o brilho desta acabou por
mo e o internacionalismo, o individualismo e o sentimento da na­ iluminar todo o século. A relativa independência do compositor,
tureza, o sonho e a revolta... Mas a definição do romantismo pa­ livre da obrigação de escrever por encomenda, deixa-lhe a liber­
rece impossível. dade de escrever o que lhe apraz e apresentar sua música onde
Stendhal vê no romantismo apenas uma atitude moderna que bem entende. A partir de Napoleão, os príncipes não têm mais
ele não define: "o romanticismo [sic] é a arte de apresentar aos influência sobre a criação artística; a indústria ainda não tem; o
povos as obras literárias que, no estado atual de seus costumes século X I X está preservado dos totalitarismos estéticos. Nunca
e de suas crenças, são capazes de lhes proporcionar o maior pra­ o compositor foi nem será tão livre! Ele se aproveita disso para
zer possível; o classicismo, ao contrário, apresenta-lhes a litera­ abalar, ao sabor da sua inspiração, o formalismo de uma socie­
tura que proporcionava o maior prazer possível a seus avós" (Ra­ dade caduca; mas, não possuindo doutrina (pelo menos até o úl­
cine e Shakespeare, 1822). Vários outros autores sugerem que o timo quartel do século), não pensa em substituir as regras funda­
romantismo seria, em cada época, a atitude artística mais signifi­ mentais do sistema tonal e sequer se interroga sobre a sua legiti­
cativa de um espírito novo. Para Hugo, é "o liberalismo em lite­ midade. O que há de comum entre Schubert e Berlioz, ou entre
ratura" (prefácio de Hernani, 1830), definição interessante na vés­ Schumann e Wagner, salvo o desprezo pelas convenções formais,
pera da revolução de julho. Quase todos estão de acordo quanto no respeito das regras fundamentais? Se bem que Wagner, a par­
à subjetividade do romantismo: cada um encontra seus modelos tir de Tristão... Mas não antecipemos. Mozart, ao contrário,
em si mesmo. Mas essa introspecção permitirá que o artista des- submetia-se a todas as convenções, apesar da espontaneidade de
seu lirismo.
l.Dela littérature (1800); De l'Allemagne (1810). N a obra crítica de Mada­ O aspecto literário do romantismo na música é a conseqüên­
me de Staël, podemos encontrar os elementos de uma doutrina romântica coerente. cia do velho mal-entendido. No século X V I I , a ópera nascente fa-
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 12 13 ASPECTOS DO ROMANTISMO

zia da representação das paixões o objeto da música: a expressão A expressão febril dos sentimentos individuais comporta, por
tornava-se uma verdadeira obsessão, até na música instrumental. sinal, uma parte de mistificação. A lentidão do ato de composi­
O período clássico reagiu a essa deformação: a música tornou-se ção musical, no estágio de desenvolvimento que essa arte alcan­
soberana. Haydn e Mozart nunca se esforçaram em exprimir "pai­ çara então, não permite que o criador siga seu sonho ou sua pai­
xões" exteriores à sua inspiração puramente musical. O roman­ xão, desprezando as exigências da razão. Vivaldi podia escrever
tismo torna a empunhar a bandeira da expressão. A alma é o ob­ de um jato, sob o império de uma inspiração tumultuosa. Ber­
jeto que se deve retratar, que a música tem por função essencial lioz, ao contrário, deve estabelecer suas grandes partituras com
expressar. Acreditando, ou fingindo acreditar na significação da minucioso cuidado. Se compararmos o grafismo dos dois manus­
música, pretende-se até oferecer ao ouvinte o relato de uma ação critos, o primeiro é que parecerá romântico.
ou a descrição da natureza em composições instrumentais ditas No entanto, o romantismo consagrou-se ao culto da perso­
"programáticas". O individualismo romântico incitará freqüen­ nalidade. A despeito de seu gênio, as personalidades de Bach e
temente o músico.a pintar suas próprias experiências. O mal- Mozart são apagadas. As de Beethoven, Berlioz, Liszt ou Wag­
entendido é ainda mais grave na expressão subjetiva, pois é dei- ner são esmagadoras. Com freqüência o gênio sobe-lhes à cabeça
e eles se instalam na história como que em casa, com suas idéias,
seus gostos, seus sentimentos, seus amores. Alguns souberam or­
ganizar perfeitamente suas "relações públicas" (Paganini, Ber- A e s c r i t a p r e c i s a d e B e r l i o z

lioz, Liszt, Wagner), criando festivais ou sociedades filarmôni- (autógrafo de Romeu e Julieta).
15 ASPECTOS DO ROMANTISMO

sem se preocupar com as convenções. Em geral, seus mestres fo­


ram músicos menores e eles próprios não formam alunos (ou for­
mam alunos pouco importantes). Sua originalidade reside na au­
tonomia de seu gênio.
Em sua Filosofia delia musica (1836), Giuseppe Mazzini, o
herói revolucionário italiano, imputa ao romantismo ter-se vol­
tado para o passado, não para o futuro. Esse conservadorismo
não é uma orientação doutrinai, mas, antes, a conseqüência da
cultura musical romântica. De fato, na primeira metade do sécu­
lo X I X , as pessoas começam a interessar-se pela música do pas­
sado. Victor Hugo faz-se o arauto da lenda de Palestrina, consi­
derado o criador da música moderna (ver t. 1, p. 395). Essa opi­
nião, também professada por Mazzini, torna-se um dogma. As
primeiras biografias de Bach são publicadas na Alemanha a par­
tir de 1802 (Forkel), e Mendelssohn dará em 1829 uma audição
memorável da Paixão segundo São Mateus, que sem dúvida não
fora tocada havia mais de um século. É uma revelação, que con­
tribui, por sinal, para reforçar o nacionalismo alemão em reação
ao italianismo e ao cosmopolitismo. Em 1842, o velho Wilhelm
Bach (1759-1845), compositor e neto de Johann Sebastian, parti­
cipa com Mendelssohn e Schumann da inauguração de um mo­
numento em Leipzig. Apesar dos inúmeros erros, a Biografia uni­
versal dos músicos de Fétis (1844) dá um impulso poderoso aos
estudos de história da música e às ressurreições de músicas es­
quecidas.

concerto de Liszt em cas, executando suas obras por toda parte, escrevendo a toda a Eu- Música e sociedade Assim, o concerto perde seu caráter experi­
apeste, em 1872. ropa, relatando seus feitos e seus gestos em releases para a impren­ mental. Ele se aproxima muito mais do museu do que do ateliê.
2
sa . As idas e vindas de Berlioz ou de Liszt são, então, mais co­ O público ainda conserva sua curiosidade pela nova música, mas
nhecidas do público do que, hoje, as do presidente da República. são tocadas indefinidamente as páginas célebres de ontem e de ou­
Essa atitude também é mistificadora. As pessoas se interessam de­ trora, no decorrer de programas intermináveis : sinfonias ou 3

mais pela vida dos gênios românticos e acabam tendo uma falsa fragmentos de sinfonias, árias de óperas, concertos, fragmentos
idéia da sua personalidade, através das "vidas romanceâdas" e das de oratórios, paráfrase de determinada parte do programa pelo
autobiografias lisonjeiras. A percepção de sua música fica defor­
virtuose de plantão, etc. Mas não se vai além do século X V I I I ,
mada com isso, sobretudo quando são acrescentados a suas obras
apesar dos trabalhos dos primeiros musicólogos e da admiração
subtítulos, argumentos literários ou elucubrações fantasistas.
convencional pela Renascença, cuja música não se conhece. Os
Contudo, muitos músicos românticos evitaram essa espécie maiores sucessos cabem à música italiana na Itália, à música ale­
de exibição ou de promoção barulhenta; alguns desinteressaram- mã na Alemanha, à música vocal italiana e à música instrumental
se dos argumentos literários, que se tornaram a mania da época. alemã na França. Todavia, uma parte do público acha a música
Parece que resta um só traço comum a todos os gênios musicais
desse século: o individualismo. Cada um faz sua própria música,
3. Sem dúvida, o melómano de antigamente tinha maior apetite e maior fa­
2. A estrada de ferro torna as viagens fáceis e pouco dispendiosas (Berlioz culdade de atenção do que o de hoje, faculdade que a prática regular da música
dixit), o que estimula os compositores a multiplicarem as execuções de suas obras. conservava. Mas ele não teria resistido a programas tão longos se tivesse sido obri­
Outrora, cada ocasião suscitava uma nova composição, que se ouvia um pequeno gado a sujeitar-se à imobilidade crispada que observamos em nossos concertos:
número de vezes. Agora, as obras-primas românticas poderão aspirar a uma gló­ ele testemunhava quando queria seu prazer ou seu descontentamento com olhares
ria duradoura. à sua volta, comentários em voz baixa ou aplausos nos melhores momentos.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 16 17 ASPECTOS DO ROMANTISMO

clássica difícil, devido a seu formalismo. A música romântica pa­ belece sua reputação publicando uma Fisiología do casamento.
rece mais fácil, por pretender retratar sentimentos familiares. Victor Hugo (vinte e oito anos) ganha a batalha de Hernani...
A própria profissão de músico mudou consideravelmente. En­ Entre os músicos, Beethoven, Weber e Schubert já morreram.
tregue a si mesmo, não trabalhando mais contra remuneração, Paganini (quarenta e oito anos) colhe através da Europa uma gló­
o compositor terá dificuldades para organizar sua nova situação. ria ruidosa e uma grande fortuna. Rossini (trinta e oito anos) já
As leis sobre a "propriedade literária e artística", que são pro­ produziu todas as suas obras-primas; a revolução de julho o faz
mulgadas por toda parte desde o fim do século X V I I I , estabele­ perder sua sinecura de "primeiro compositor do rei". Berlioz (vinte
cem a legitimidade do direito autoral, mas sem dar ao criador os e sete anos) acaba de conquistar o grande prêmio de Roma, após
meios práticos de defendê-lo (ver t. 1, p. 630). Ele tem de fazer três fracassos sucessivos; antes de partir para a Vila Médicis, apre­
das tripas coração para garantir sua subsistência. O compositor senta ao público do Conservatório sua Sinfonia fantástica. Men­
organiza concertos em seu benefício, exerce uma profissão anexa delssohn (vinte e um anos), rico e culto (assistiu ao curso de Hegel
(crítico, maestro, professor), ou vive à custa de uma senhora r i ­ na Universidade), realiza uma grande atividade em favor da músi­
ca, a menos que disponha de uma fortuna pessoal (Paganini, Men­ ca do século X V I I I e acaba de revelar ao público de Berlim a Pai­
delssohn). A nova situação, mal assumida, tende a isolar da so­ xão segundo São Mateus. Chopin e Schumann estão com vinte anos.
ciedade os que não encontraram uma organização material satis­ O primeiro acaba de deixar Varsóvia, após três concertos triunfais;
fatória. Outra dificuldade, inerente ao ofício, confirma esse iso­ já tem muitas obras importantes em seu ativo, dentre as quais os
lamento. O compositor não escreve mais para um auditório limi­ dois concertos. O segundo abandona a Universidade de Heidelberg
tado a uma classe homogênea, mas para um "grande público" para se instalar em casa de seu mestre, Wieck, cuja filha Clara (on­
indeterminado, formado por uma constelação de individualida­ ze anos) dá nesse mesmo ano seu primeiro concerto na Gewand­
des. A função da música não é mais social, e sim cultural. Não haus; interessa-se mais pelo piano do que pela composição. Liszt
sabendo mais para quem nem por que cria, o compositor encon­ (dezenove anos), virtuose já renomado, está em Paris, onde fre­
tra em si mesmo o motor da sua inspiração. qüenta Hugo, Lamartine, George Sand, Berlioz, depois Chopin.
Logo uma nova elite, burguesa ou aristocrática, cria uma de­ Wagner e Verdi estão com dezessete anos, Franck com oito...
manda determinada que os artistas têm interesse em satisfazer: A partir de cerca de 1840, um prodigioso movimento de idéias
peças para piano, melodias, música de câmara. Os virtuoses ama­ abala o sonho romântico, e esse abalo não cessará antes do sécu­
4
dores multiplicaram-se desde a Revolução . A elite gostará de lo X X . O positivismo de Auguste Comte estabelece que todo fe­
cercar-se de músicos, fingirá imitá-los, mas eles não serão inte­ nômeno obedece a leis científicas. Proudhon ataca os princípios
grados e a incompreensão será por muito tempo o preço da liber­ sagrados de indivíduo, propriedade, nação e milita em favor de
dade. Isolado do público pela incerteza de suas reações, isolado uma federação européia de comunas. Os cientistas põem a ener­
dos salões pela discriminação social, o artista se torna egocêntri­ gia sob forma de equação (Joule), descobrem as ondas eletro­
co e a-social — ele nem sequer sabe o que é. magnéticas (Hertz), estabelecem as leis da hereditariedade (Men­
del)... Formado no pensamento hegeliano, Karl Marx propõe uma
1830 O ardor romântico está triunfante em 1830; ele anima por interpretação determinista da história e um método de análise
toda parte os levantes liberais e nacionalistas. Stendhal (quarenta que define as leis da evolução da nova sociedade "capitalista".
e sete anos) publica O vermelho e o negro e assume suas funções A noção de destino naufraga! Negado na história, o princípio
de cônsul em Trieste, onde começa a escrever A cartuxa de Par­ de finalidade também o é na biologia: Darwin mostra que o ho­
ma. J. von Eichendorff está com quarenta e dois anos, idade que mem não é um anjo decaído, que sua evolução é determinada
teria Byron (morto em Missolonghi, em 1824, quando combatia pela "luta pela vida" e pela seleção dos mais aptos. Enfim, Freud
pela independência ao lado dos patriotas gregos). Lamartine (qua­ explicará o próprio sonho e anaüsará o inconsciente, introduzin­
renta anos) é nomeado ministro plenipotenciario na Grécia; aca­ do a noção de determinismo caracterial. A ciência apoderou-se
ba de publicar as Harmonias poéticas e religiosas e de ser eleito das origens e dos fins, do mundo visível e invisível, do eu íntimo
Ä para a Academia Francesa. Heine e Vigny têm trinta e três anos, e do destino. O artista sente-se espoliado; ele se afasta cada vez
Delacroix e Michelet trinta e dois. Balzac (trinta e um anos) esta- mais de uma vida política devotada ao realismo . Seus confli- 5

4. Ingres, o mais célebre de todos, tocou o Concerto em lá menor de Viotti 5. As coisas evoluem de maneira diferente na Itália, onde a revolução nacio­
aos quinze anos no Capitólio de Toulouse. E m 1839, então diretor da Academia nal, que começa por volta de 1796 com a criação, em Nápoles, dos carbonari,
de França em Roma, tocou com Liszt na Vila Médicis a sonata em lá menor de é a princípio realista, mais tarde idealista (movimento "Jovem Itália", epopéia
Beethoven. garibaldina).
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 18 19 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

tos com a sociedade serão expressos em sua oposição ao sistema lo X V I I ; será um setor preservado, a que a burguesia culta forne­
estético. ce seus mitos e suas instituições. De fato, em torno do piano, a
Após Beethoven, alguns compositores tomaram partido na música começa a instituir-se; ela seleciona seus fiéis, que são re­
vida política do século X I X . Em Paris, Berlioz e Liszt se entu­ conhecidos por seu "gosto" e sua atitude.
siasmam pelo ideal da revolução de julho. Mas o ardor revolu­ A burguesia inventa o mito da música "verdadeira" (mais
cionário do primeiro arrefece após 1848. Ele exprime sua "admi­ tarde, a música "erudita"), com seu corolário, a noção de "com­
6
ração reconhecida" ao príncipe-presidente, queixa-se de que as preensão" , que fecha o círculo dos iniciados, desencorajando os
condições de trabalho variam de um dia a outro "conforme o ter­ neófitos. Não se tardará a adquirir o hábito de explicar as obras-
mômetro da sublevação suba ou desça, conforme o socialismo primas, convidando o ouvinte a perseguir, além da música, ilu­
aponte tempestade, bonança ou mau tempo" (Carta a Liszt de sões que lhe ocultam a pura mensagem musical. O homem sem
março de 1849); fica exasperado com "essas formas de governo cultura pressente a arbitrariedade das significações quando se afas­
representativo" que o forçam a consultar um comitê para orga­ ta da "música erudita", sentindo-se excluído de um mundo cujas
nizar uma sociedade filarmônica! É verdade que, em 1848, o no­ convenções ignora. A sacralização das obras, o recurso ao esote­
vo proletariado entra em cena, ao passo que 1830 vira triunfar rismo, a instituição de rituais, a afetação de transcender o prazer
uma burguesia liberal. são sinais distintivos de um establishment musical que dá o tom
Liszt contribui para manter, no círculo de George Sand, esse dos salões europeus e tende a criar nas salas de concerto um am­
ar democrático que irrita Chopin. Seu coração talvez tenha per­ biente de clube privado.
manecido do mesmo lado das barricadas, a despeito da atividade
que ele teria desenvolvido como agente secreto de Napoleão I I I
na época de Émile Olivier. Wagner ainda é estudante, quando mi­
lita no movimento Jovem Alemanha de Heine; mais tarde, torna- OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS
se paladino de uma Saxonia independente e republicana, partici­
pa um pouco, em Dresden, dos movimentos revolucionários de Desde o início do século, os grandes músicos cessam de apresentar
maio de 1849, mas acabará defendendo um pangermamsmo ra­ à história a imagem de uma comunidade de estilos e de técnicas.
cista em algumas obras que inspirarão os ideólogos do nazismo. Enquanto os nacionalismos não voltarem a dar aos compositores
Verdi, por sua vez, é o porta-bandeira do Risorgimento, o sím­ linguagens coletivas, o gênio é quase sempre singular e profético.
bolo da unidade italiana. Ele apóia as insurreições de 1848 e faz Nenhum novo princípio se destaca da diversidade das experiências,
parte do primeiro parlamento italiano. e a maioria reivindica, no essencial, as formas e o sistema clássicos.
Porém, na segunda metade do século, os artistas e, em parti­
cular, os músicos são mantidos cada vez mais isolados de uma Beethoven II Na época em que apresentava sua Terceira sinfo­
sociedade burguesa bastante afastada dos grandes destinos. "Nos nia na residência do príncipe Lobkowitz, Beethoven teria dito a
negócios, a burguesia reina. Na política, ela confia seus interes­ Krumpholtz, que fora seu mestre: "Não estou satisfeito com as
ses a quem quiser defendê-los. No urbanismo, na arte, ela não obras que escrevi até agora; quero seguir, doravante, um novo ca­
tem estilo e despreza os grandes poetas e os grandes artistas seus minho." Esse novo caminho é uma mudança de atitude ante a com­
contemporâneos. Dir-se-ia que ela teme qualquer criação em que posição. Nada de automatismo, nada de facilidade. A inspiração
poderia reconhecer-se, qualquer expressão que a obrigaria a se de­ torna-se angústia e vontade; ela não pode mais ser convencional.
finir. Sua universalidade é de fato; ela evita fundá-la; seria expô- Em 1808, alguns meses depois de ter assistido à apoteose de
la" (Domenach, Le retour du tragique). Daí em diante, será cada Haydn na Universidade, Beethoven oferece ao público do teatro
vez mais raro que um músico se destaque por um verdadeiro "en­ An der Wien um concerto extraordinário, que compreendia as pri­
gajamento" político. meiras audições da Quinta e Sexta sinfonias, do Concerto n? 4
Em compensação, em alguns países que lutam por sua iden­ para piano e orquestra (com o autor como solista) e da Fantasia
tidade nacional, o sentimento de uma comunidade de cultura e para piano, coro e orquestra! O público não se entusiasma; com
de destino se traduz em música, a partir de 1850, pela eclosão de
6. " A compreensão da música repousa em duas faculdades: a percepção sen­
diferentes "escolas" nacionais, de que trataremos adiante. No en­
sorial e a memória; porque devemos perceber o som que está presente e nos lem­
tanto, nos países independentes e unificados, em estado de revo­ brar do que passou. De nenhuma outra maneira podemos seguir o fenômeno mu­
lução social, a música torna-se novamente elitista, como no sécu­ sical" (Aristóxeno).
CO

OBRAS CORAI
COMPOSITORES,

PIANO SOLO

DE CÁMARA
ORATÓRIO,

CONCERTO
RELIGIOSA
SÊCS. X V I I I Ε X I X ,

SINF. DIV.
SINFONIA
SOLISTA

SONATA
CÔMICA

MÚSICA
MÚSICA

CRAVO,
POR O R D E M

ÓPERÀ-

ÓRGÃO
CANTO
ÓPERA

OBRAS
SÉRIA

BALÉ
CRONOLÓGICA

Vivaldi * * * * * * Φ *
Rameau * * * * * Φ Φ

J . S. Bach * * * * *. Φ * Φ Φ

Haendel * * * * * * Φ Φ Φ Φ

Dom. Scarlatti * • * * * Φ Φ

Leclair * * Φ Φ Φ

Pergolesi * * * * * * Φ Φ

W. F . Bach * * * * Φ * Φ

C . P. E . Bach * * * * Φ Φ Φ Φ

Haydn * * * * * * * Φ Φ Φ

J . C h . Bach * * * Φ Φ Φ * Φ Φ Φ

Boccherini * * * Φ Φ *
Cimarosa * * * Φ Φ Φ Φ

Mozart * * * * Φ * * Φ Φ Φ Φ *
Beethoven * * Φ * Φ * * Φ Φ Φ

Schubert * * * * Φ Φ Φ Φ *
Berlioz * * Φ

Mendelssohn * * * * * * Φ Φ Φ Φ

Chopin * Φ Φ Φ

Schumann * * * * * Φ Φ Φ certeza, não encontra o gênero de prazer que busca. De fato, es­ Beethoven e Haydn durante a audição
sas obras, surpreendentemente diversas, muito embora tenham si­ de A criação na grande sala da
Liszt * * * * Φ Φ Φ Φ
Universidade de Viena, em 1808.
do concebidas ao mesmo tempo, requerem muito do ouvinte, que
Franck * * * * * Φ Φ Φ Φ Φ
deve sem cessar adaptar-se à inesperada sucessão dos aconteci­
Smetana * * * * Φ Φ Φ
mentos interiores que os sons refletem, tornar-se cúmplice da von­
Bruckner * * * Φ Φ Φ tade criadora.
Brahms * * * Φ Φ Φ Φ Φ Φ Não há nela outra expressão, além dessa transferência de von­
Bizet * * * Φ * * Φ Φ
tade à obra. Quando Beethoven diz "Assim o destino bate à por­
ta", ele nem sequer imagina a gravidade do mal-entendido que
Mussorgsky * * * Φ
deflagra. O famoso motivo inicial anuncia, como se fosse um si­
Tchaikovsky * ** Φ Φ Φ Φ Φ nal do destino, o combate a que nos leva a Sinfonia em dó me­
Dvorak * * * * Φ Φ Φ Φ Φ nor. Esta não é uma "sinfonia do destino", mas a expressão de
Rimsky-Korsakov * * * * Φ Φ * Φ
uma vontade tensa, cujo destino é combater e vencer. O contras­
te entre a idéia metafísica de destino e a imagem realista das pan­
Fauré * * * Φ Φ Φ * Φ
cadas na porta é um pretexto para a caricatura (largamente ex­
Mahler plorado pelos humoristas) que afasta os espíritos superiores dessa
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 22 23 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

obra-prima: eles dirão que a conhecem muito bem, embora nun­ têm tamanha eficácia. Por seu desprezo pela sedução melódica,
ca a ouçam. Quando a célula rítmica simples, tocada pelos tím­ por sua habilidade em explorar as possibilidades de ampliação da
panos, conclamava a Europa nazificada à luta peía liberdade, to­ célula rudimentar, Beethoven subverte a noção de "tema".
dos conseguiam compreender o que Beethoven sugeria e o senti­ Quanto ao desenvolvimento, que adquire proporções inabi-
do de sua sinfonia. tuais, não é mais um exercício formal em que as mudanças de ân­
A primeira audição, em 1824, da Nona sinfonia e de três par­ gulo e de luz revelam a riqueza da invenção melódica; é, antes,
tes da Missa solemnis (a obra inteira não será executada em vida a expressão de uma dialética imperiosa, em que as diferentes cé­
do compositor) foi, como se sabe, uma apoteose trágica. Não ou­ lulas são tratadas como idéias, que se enfrentam, perdem e ga­
vindo mais, Beethoven parecia estranho a seu próprio triunfo. Sua nham, ampliam-se, suscitam outras e acabam adquirindo uma car­
sinfonia, em que as multidões sempre encontram motivos para ga emocional considerável. A própria variação escapa do forma­
crer na nobreza da espécie humana, subvertia então todos os cos­ lismo. A qualidade do tema não tem importância aí; ele será ape­
tumes: utilização das piores dissonâncias sem preparação nem re­ nas o pretexto de uma série de meditações que transcendem mag­
solução, adoção do princípio de unidade "cíclica", interversão níficamente o sujeito, como nas monumentais Variações op. 120
do segundo e terceiro movimentos, extraordinária contribuição sobre uma modesta valsa de Diabelli.
da voz humana... É, sobretudo, a única obra-prima musical ins­
A matéria sonora adquire nova importância na arquitetura
pirada por uma ideologia — mexprimível filosofia, ideal um pouco
beethoveniana: a música é pensada com seu timbre e sua densida­
confuso de primado espiritual e fraternidade universal, cuja
de. Sua habilidade de orquestrador nada tem de excepcional, mas
fórmula musical um homem superior buscou a vida toda. Todos
ele garantiu a promoção dos diferentes instrumentos da orques­
quiseram dar sua própria interpretação dessa filosofia: pacifismo,
tra, liberando seus recursos. Nunca se exigira tanto das trompas,
"livre religião", revolução, socialismo, unidade européia ou... fas­
cismo. Ora, o Hino à alegria de Schiller, que entusiasmara Bee­ das clarinetas ou dos contrabaixos; nunca timbres diferentes ha­
thoven desde 1792, nada mais é que uma canção idealista de ta- viam sido encadeados com tanta desenvoltura (prefigurando a
verna, exaltando a fraternidade intelectual dos adeptos do Sturm Klangfarbenmelodie de Schönberg e Webern); nunca se interferi­
und Drang. Nada tem de incômodo; mas o gênio de Beethoven ra tão audaciosamente no desenho com tão brilhantes manchas
dele faz o hino de uma civilização. Nele não introduz filosofia, de cor.
como não põe religião na Missa; em todas as obras, grita sua fé É, no entanto, ao piano e ao quarteto de cordas que Beetho­
ingênua na grandeza da razão humana, A bela melodia que lhe ven reserva prodígios. A sonata dita 'Appassionato', as cinco úl­
custou tantos esforços encontra-se quase igual no Agnus Dei da timas sonatas para piano, os cinco últimos quartetos e a grande
7
missa Cum jubilo ("com alegria") do século X I I . fuga suplantam tudo o que se podia esperar então da amplia­
ção das formas tradicionais. A forma sonata, a fuga e a grande
variação adquirem uma amplitude desconhecida; sobretudo a von­
tade criadora, separada das seduções imediatas, aparece em sua
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do
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cem.
plena realização. O piano revela possibilidades absolutamente
inauditas: sua técnica dá o maior salto da sua história. Quanto
Se seu idealismo é confusamente romântico, sua obra atesta ao quarteto, é pelo despojamento que ele alcança a grandeza: não
um classicismo fundamental, um autocontrôlé absoluto. É um pela pobreza nem pela renúncia, mas pela concentração dos re­
construtor, como Bach. Mas a arquitetura não obedece a nenhum cursos essenciais. Essa "interioridade" das últimas obras, que os
formalismo; ela é submetida continuamente à pressão de um tem­ exegetas sublinham, é a impressão que uma extrema tensão das
peramento excepcional. Um dos traços característicos do estilo de funções criadoras num isolamento sonoro completo nos propor­
8
Beethoven em sua maturidade é uma força elementar que se im- ciona .
*põe de maneira irresistível. Em nenhum outro compositor, moti­
vos tão simples como
7. Verdadeiro final do Quarteto n? 13 op. 130. Beethoven escreveu a pedido
do editor o pequeno final que se costuma tocar. Mais tarde, arrependeu-se!
8. Entre as obras sérias e inteligentes consagradas a Beethoven, duas são par­
ticularmente notáveis: R . Rolland, Beethoven, Ies grandes époques créatrices, 7
vol., Paris, 1940-1949, e Β. e J . Massin, Beethoven, Paris, 1955.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 24

Estudo de Kloeber para o


retrato de Beethoven. L U D W I G VAN B E E T H O V E N organista e compositor, e freqüen­
Bonn, I S de dezembro de 1770 ta os filhos da sra. Von Breunig
Viena, 26 de m a r ç o de 1827
(ambiente caloroso e culto, em que
completa sua formação geral).
Seu pai, Johann (1740-1792), tenor 1784 Segundo organista da corte,
da capela do eleitor de Colônia, era depois (1785) acompanhador no
filho de um músico de Malines, que teatro. Começa a constituir uma
se estabelecera em Bonn em 1732. clientela de alunos por volta de
Sua mãe, M . M . Keverich (1746¬ 1785-1786.
1787), era filha de um cozinheiro. 1787 Temporada em Viena inter­
Teve sete filhos, dos quais apenas rompida pela morte da mãe. Encon­
três viveram. tra Mozart, que trabalha no Don
1778-1781 Aluno do* pai, dá alguns Giovanni.
concertos como menino prodígio 1789 Inscreve-se na Faculdade de
(principalmente em Colônia e na Letras da nova Universidade de
Holanda); para ajudar essa carrei­ Bonn.
ra, reduzem sua idade em dois anos. 1792 Partida de Beethoven para
1781 Abandona a escola, estuda Viena, com a finalidade de traba­
Primeira página do manuscrito com Christian Neefe (1748-1798), lhar com Haydn, a quem conhece-
autógrafo da sonata 'Appassionato'
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 26 27 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

ra alguns meses antes, em Bonn. As 1.800 florins (cerca de 30.000 fran­ (= Fidelio), Egmont, Coriolano, para piano. Dez sonatas para violi­
aulas o decepcionam, mas a capi­ cos de hoje). As ruínas de Atenas. Nove sinfo­ no e cinco para violoncelo. Dezes­
tal o seduz e ele se apaixona por to­ 1805 Paixão por Joséphine von nias, cinco concertos para piano, sete quartetos de cordas e cerca de
das as moças. Instala-se efetivamen­ Brunswick. Os franceses entram em um para violino, um concerto tri­ vinte outras obras de música de câ­
te em Viena. Até 1796, morará no Viena. Estréia do Fidelio: três apre­ plo, uma Fantasia para piano, co­ mara. Numerosos Heder e arranjos
palácio do príncipe Lichnowsky. sentações. ro e orquestra. Trinta e duas sona­ de cantos populares irlandeses, es­
1794- 1800 Aluno de Salieri. 1808 Primeira audição no teatro tas, séries de variações e Bagatelas coceses e galeses. Última página da carta
1795- 1798 Concertos em Viena, An der Wien da Quinta e Sexta sin­ "à imortal amada".
Praga, Dresden, Nuremberg, Buda­ fonias, da Fantasia para piano, co­
peste, Berlim. Em Viena, executa ro e orquestra e do Concerto n? 4.
seu concerto em si bemol maior Pouquíssimo sucesso! É a última
(primeiro em data, mas publicado vez que Beethoven poderá tocar um
como "segundo concerto") no concerto em público.
Burgtheater. No dia seguinte, no 1810 A mão de Theresa Malfatti
mesmo teatro, toca um concerto de lhe é recusada. Desespero. Conhe­
Mozart numa apresentação em be­ ce Bettina Brentano.
nefício de Constanze. Em Praga, 1812 Carta " à imortal amada".
toca seus dois primeiros concertos. 1815 Início da tutela sobre seu so­
Em todos esses lugares, improvisa brinho Karl (1806-1858). Agravação
ao piano. da saúde: surdez, afecções pulmo­
1798 Primeiros problemas auditi­ nares, hepáticas, oculares, reumá­
vos. Sonata 'Patética'. ticas. Impressão crescente de soli­
1799 Chegada dos Brunswick a dão. Durante cinco ou seis anos
Viena. quase não trabalha.
1800 Primeiro concerto dado sob a 1822-1823 Beethoven recebe a visi­
responsabilidade de Beethoven: Pri­ ta de Rossini, Schubert, Weber e
meira sinfonia. Composição dos Liszt.
quartetos op. 18. 1824 Primeira audição da Nona
1801-1802 Paixão por Giulietta sinfonia e da Missa solemnis. Pa­
Guicciardi: Sonata dita "ao luar". rece alheio a seu triunfo. Faz cinco
Percebe que está tornando-se irre­ anos que não ouve nada.
mediavelmente surdo. Crise de de­ 1826 Tentativa de suicídio de Karl.
pressão: "Testamento de Heiligens¬ Esboços de uma décima sinfonia.
tadt", descoberto vinte e cinco anos 1827 Beethoven morre na tarde de
depois da sua morte. Seu caráter 26 de março, de cirrose hepática.
torna-se sombrio, isola-se volunta­ Em seu funeral, que foi acompa­
riamente, sua instabilidade é cres­ nhado por uma grande multidão,
cente (mudará de casa quarenta e Czerny e Schubert figuravam entre
quatro vezes em sua vida, voltan­ os que levavam os cirios.
do com freqüência a seus antigos
domicílios). Mas sua vontade supe- obra Duas missas (dó maior e Mis­
t. ra as crises sucessivas. sa solemnis), o oratório Cristo no
1803 Grande concerto no teatro An Monte das Oliveiras, diversas obras
der Wien: Cristo no Monte das corais; a ópera Fidelio, o balé As
Oliveiras, as duas primeiras Sinfo­ criaturas de Prometeu, aberturas
nias, o Terceiro concerto. Lucro de e música de cena para Leonora
Beethoven entrou para a lenda ainda em vida. O dogma da
sua infalibilidade pesa sobre os juízos estéticos, e os retratos são
deformados pela obsessão de seu destino trágico. Sublinhei aci­
ma sua intransigencia e insubmissão: é o fundo do seu caráter.
Como Alceste, ele odeia a mentira e a hipocrisia. Esse rigor mo­
ral e intelectual, unido à sua obsessão em ocultar a fraqueza de
seu ouvido (que ele nota desde os vinte e sete anos), lhe dá um
comportamento selvagem, que a maioria de seus amigos não com­
preende. É tido por misántropo, aceitam mal suas grosserias. Mu­
da quarenta vezes de domicílio em Viena em trinta e quatro anos.
No entanto, não há ninguém mais sociável e mais generoso; ele
não suporta a solidão, é o amigo mais seguro de todos, sua capa­
cidade de amar é inesgotável. Mas sua amizade é demasiado exi­
gente para muitos e seu idealismo é demasiado absoluto: decep­
ciona-se com freqüência. Beethoven se explica sobre sua aparen­
te misantropia no patético testamento que redige em 1802 em Hei­
ligenstadt.

Excertos do Testamento de Heiligenstadt


No entanto, ainda não podia decidir-me a dizer aos homens: falem mais
alto, gritem, sou surdo...
... Por isso, perdoem-me, se me vêem viver isolado, quando eu estaria
com prazer no meio de vocês. Minha desgraça me é duplamente penosa,
porque, por ela, devo tornar-me ignorado; não terei mais estímulo na
companhia dos homens, não terei mais conversas inteligentes nem mú­
tuos desabafos. Absolutamente só ou quase, é apenas na medida em que
a mais absoluta necessidade exigir que posso deixar-me reaver pela so-
_^ ciedade; sinto-me logo atormentado por uma terrível angústia: a de ser
A sala de trabalho de Beethoven exposto a deixar notar meu estado...
(Viena, último domicílio).
31 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

A solidão moral em que ele mergulha pouco a pouco lhe dá O primeiro marido de J . von
BEETHOVEN ta " à imortal amada". Era meiga, grande paixão atormentada, gera­ Brunswick, o conde Joseph von
a sensação de ser incompreendido. No entanto, desde os quaren­
Ε AS MULHERES sensível, egoísta, discreta. Sua f i ­ dora de Hoffnung e de Sehnsucht. Deym, dito Müller (1750-1804), era
ta anos, é um verdadeiro deus em Viena, sua música triunfa por antiquário e colecionador. Tinha um
lha, Miñona, nascida onze meses Em 1810, um pedido em casamen­
toda a Europa, e sua glória não terá eclipse. Mas ele quer a co­ gabinete de estátuas de cera, em que
MAGDALENA WILLMANN ( ? - ? ) depois da morte de Stackelberg (de to encontra a recusa da família, e
munhão total, não o sucesso parcial; e desconfia de um público fazia entrar os mortos célebres ao
Cantora conhecida em 1792. Amor quem, aliás, Josefina estava sepa­ Theresa se casa em 1817 com o ba­ som de uma música fúnebre tocada
rada), fará que lhe confiem as car­
fútil, que nunca reconhece o essencial. A fantasia popular apode­
sem grande conseqüência, apesar de rão von Drosdick. Foi certamente por um órgão mecânico. Foi a seu
tas de Beethoven, que desaparece­
rou-se dessa figura romântica de gênio incompreendido, como se pedido que Mozart compôs para esse
um pedido em casamento, rejeita­ a inspiradora do ciclo An die ferne
rão misteriosamente. apoderou da do "pequeno Mozart". Chegou a imaginá-lo pobre, medíocre instrumento as Fantasias
do "porque ele era feio demais e Geliebte, de 1816. Beethoven nun­ K . 594 e K . 608.
ca cessará de pensar nela.
como convém. Aliás, Beethoven queixava-se de viver mal, dema­
meio louco" (1796). Beethoven é,
T E R E S A VON BRUNSWICK (1775¬
siado atrapalhado que era para adniinistrar seus rendimentos. No
então, um assediador de mulheres,
1861) Irmã mais velha de Josefina, BETTINA BRENTANO (1785-1859) entanto, um concerto já lhe rende 1.800 florins em 1803; a venda
gaba-se de suas aventuras, que de­
seja "curtas e boas", e pede a seu a quem Beethoven conheceu ao Poetisa romântica, amiga de Goe­ a Clementi da Quarta Sinfonia, dos quartetos op. 59 e do Con­
aluno Ries que acompanhe ao pia­ mesmo tempo. A ela é dedicada a the e, mais tarde, de Schumann e certo para violino, 3.000; a dedicatória da Quarta Sinfonia ao con­
no seus folguedos amorosos... Sonata op. 78. Longa e profunda Brahms. Atravessa a vida de Bee­ de Oppersdorf, 350; e, a partir de 1809, o arquiduque Rodolfo,
amizade (pelo menos até 1816), thoven em 1810-1811, num dos pio­ o príncipe Lobkowitz e o príncipe Kinsky lhe asseguram, juntos,
uma pensão anual de 4.000 florins para impedi-lo de partir. Ao
GIULIETTA GUICCIARDI (1784-1856) compreensão íntima. Fiel, dedica­ res momentos. A amizade próxima
A "condessa ao luar", a quem foi da, idealista, um pouco pedante, lê do amor que se estabeleceu entre os
morrer, tinha 10.000 florins diante de si... O florim vaha cerca
dedicada a famosa Sonata op. 27, Platão, põe-se a serviço de todos, dois será uma lembrança feliz. Es­ de 2,50 francos na época, ou seja, o equivalente de 35 a 40 fran­
inspira a Beethoven uma grande consagra-se à educação das massas sa "moça com imaginação de fo­ cos atuais.
paixão de 1801 a 1803. Ela está e dos filhos da irmã: uma espécie guete" (A. Breton) compreende ad- É preciso, também, descontar o exagero romântico nos amo­
com dezessete anos quando o co­ de santa. Nunca se casou. rniravelmente bem o músico. Seu ir­ res desesperados, que completam o retrato típico do artista mal­
nhece e se torna sua aluna; consi­ mão, Clemens Brentano (1778-1842), dito, miserável e incompreendido. Beethoven experimentou o amor
dera-o um amigo, quase um pai. MARIA VON ERDÖDY (1779-1837) e seu marido, Joachim von Arnim fugidio, o afeto cúmplice, a paixão profunda; muitas vezes seus
Em 1803, casa-se com o conde von A ela são dedicados os Trios op. 70 (1781-1831), com quem se casa em sentimentos foram compartilhados. Mas esse urso mal lambido
Gallenberg (que será diretor do e a Sonata para violoncelo e piano 1811, são excelentes poetas, mem­ não inspirava o casamento. Não haveria nada de muito singular
Kärntnertor Theater quando Cho­ op. 102 n° 2. Conhece-a em 1803. bros do "cenáculo romântico" de nisso se sua solidão não fosse particularmente trágica. A abun­
pin aí tocar em 1829). Frivola e se­ Profunda e terna amizade recípro­ Heidelberg. Publicam juntos Des dante literatura consagrada à sua vida sentimental não responde
dutora aventureira. ca, que os desentendimentos tem­ Knaben Wunderhorn, coletânea de a uma pergunta fundamental. Quem é a "imortal amada", a quem
pestuosos não apagam. Beethoven Volkslieder que será musicada por é destinada a admirável e famosa carta, objeto desde sempre de
JOSEFINA VON BRUNSWICK (1779¬ mora em casa dela em 1808-1809; Mahler. um amor recíproco? Das hipóteses prudentemente examinadas pe­
1821) A quem são dedicadas as so­ ela fez de tudo para torná-lo feliz, los Massin (op. cit.), a mais satisfatória designa a misteriosa Jo­
natas op. 31. Conhece-a em 1799, com inteligência e coração. É de sua AMALIA SEBALD (1786-?) Talento­ sefina von Brunswick.
ano em que se toma esposa do con­ iniciativa a pensão que é oferecida sa cantora berlinense, elogiada por
O verdadeiro drama de Beethoven é, evidentemente, sua sur¬
de von Deym, de quem enviuva em ao compositor em 1809. A amiza­ Weber. Sua ligação com Beethoven :¿FMS ' \l|.:Tf
1804. Amizade, cumplicidade mu­ de entre os dois subsiste quando ela (1811-1812) é uma aventura passa­
dez: angústia da juventude, desespero da maturidade, silêncio to­
sical, compreensão mútua, depois parte para viver na Itália. tal dos dez últimos anos. Essa enfermidade não explica seu gê­
geira, sem conseqüências.
paixão e projetos de casamento. nio, mas é provável que ele não tivesse escrito a mesma música
Em 1810, ela se casa contra a von­ THERESA MALFATTI (1792-1856) Durante o verão de 1812, Beethoven com um ouvido normal. Talvez algumas deselegâncias tivessem
tade com o barão von Stackelberg, Tem dezessete anos, ele trinta e no­ escreve a famosa carta " à imortal sido evitadas. Mas, sem dúvida, ele nunca teria chegado a tal den­
que morre em 1812. Por que não ve, quando se conhecem em 1809. amada' '. Trata-se de Theresa Malfat­ sidade do pensamento musical se o silêncio exterior não lhe tives­
se casa com Beethoven? O amor de É uma moça muito bonita, frivola, ti, como se supôs por muito tempo, se imposto a concentração de sua vontade numa música ideal. "Es­
ambos é secreto, mas é dado a co> superficial, mas inteligente, perten­ ou de Josefina Brunswick-Deym, co­ se surdo ouvia o infinito", escreverá Victor Hugo.
nhecer pelas cartas de Teresa. De cente a uma rica família burguesa. mo acreditava sua irmã Teresa? Os
acordo com trabalhos recentes Amor à primeira vista, cartas apai­ biógrafos hoje se inclinam para a se­
(Massin, op. cit.), o mais plausível xonadas, inquietas (Beethoven já se gunda hipótese; mas nada permite
é que a ela estivesse dedicada a car­ desespera antes do fracasso). É uma uma afirmação taxativa.
Josefina von Brunswick.
33 OS GRANDES MÚSICOS ROMÁNTICOS

N I C C O L Ò PAGANINI contra em Livorno lhe oferece um o que não o impede de, dois anos
G ê n o v a , 27 de outubro de 1782 magnífico Guarnieri, que será seu depois, dar um presente de 20.000
Nice, 27 de maio de 1840
violino preferido. francos a Berlioz.
1798-1805 O jogo e as mulheres in­ 1840 Morre em Nice, de uma afec-
Depois de ter estudado com o pai terrompem sua carreira. De 1801 a ção da laringe. Achillino, o filho
(bandolinista amador) e com o mes- 1804, vive com uma mulher da alta que teve em 1826 com a dançarina
tre-de-capela da catedral, faz sua es­ sociedade tóscana e se consagra ao Antonia Bianchi, herda uma fortu­
tréia em público aos nove anos, en­ estudo da guitarra. na estimada em 2 milhões de liras
tusiasmando pela execução de va­ 1805 Retoma suas turnês pela Itá­ (cerca de 20 milhões de francos) e
riações de sua autoria sobre a Car- lia e aceita dirigir a música privada vários belos instrumentos. A cida­
manhola (perdidas). da irmã de Napoleão, Elisa, prin­ de de Gênova herdou seu precioso
1795-1796 Breves estudos com o cesa de Lucca e Piombo. Guarnieri, conservado no Palazzo
violinista Rolla e o compositor Ghi- 1828-1834 Turnês triunfais por to­ municipale.
retti, em Parma. Mas, segundo seus da a Europa. Amealha uma gran­
mestres, essa criança não precisa de fortuna, parte da qual é investi­ obra Vinte e quatro caprichos (vio­
aprender nada. da em sua propriedade nos arredo­ lino solo); três concertos, variações,
1797-1798 Primeiras turnes de con­ res de Parma (Vila Gaiona). Schu­ Sonata appassionato e várias ou­
certos: primeiro na Lombardia, bert ouve Paganini em Viena em tras "sonatas" para violino e or­
com o pai, depois em Lucca, Pisa, 1828, Chopin em Varsóvia e Schu­ questra; doze sonatas para violino
Livorno e cidades vizinhas, sozinho mann em Frankfurt em 1829, Ber­ e guitarra, duas sonatas e duas so­
com o irmão mais velho. Deixa-se lioz e Liszt em Paris em 1831. natinas para guitarra; um quarte­
viciar no jogo e tem de vender seu 1836 Perde 50.000 francos na fa­ to de cordas e catorze quartetos pa­
violino para pagar as dívidas; mas lência de um estabelecimento de jo­ ra violino, viola, violoncelo e gui­
um melómano francês a quem en­ go parisiense, o cassino Paganini, tarra.

Paganini O leitor pode ficar surpreso se cito Niccolò Paganini,


último representante da grande tradição italiana do violino, entre
os heróis lendários do romantismo musical. Muito embora cons­
te do repertório de todos os violinistas, representa um papel mo­
desto em nossa cultura musical. No entanto, é o primeiro compo­
sitor-virtuose romântico, pois Beethoven escapa das classificações.
Também inaugura as proezas puramente virtuosísticas, a carreira
fulgurante e lucrativa (reservada até então aos cantores e peque­
9
nos prodígios), a organização moderna das turnês . Sua força es­
tá em ousar qualquer coisa e ter êxito. Consegue até fazer uma
grande fortuna tocando violino, fortuna de que faz uso com ge­
nerosidade, a despeito de uma absurda reputação de avareza.
Dedica-se ao sucesso dos outros, toca para vítimas da peste e da
cólera e dá a Berlioz um magnífico presente de 20.000 francos (cer­
ca de 150.000 francos atuais!). Sua magreza doentia, seu ar estra­
nho, seus truques de ilusionista lhe dão um ar diabólico, cuida-

9. Acusaram-no seriamente de "se alugar" a um empresário de concertos, <_


como se estivesse entregando-se de corpo e alma a um proxeneta! Paganini por Ingres.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 34 35 O S GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

dosamente conservado. Desde o primeiro Fausto de Goethe, o dia­ Weber Karl Maria von Weber não tem a figura de profeta ou
bo é uma figura familiar e fascinante. de pai eterno, como Beethoven, nem de símbolo, como Paganini,
Graças a Paganini, a técnica do violino deu um salto enorme Berlioz ou Liszt. É o cabeça dos românticos alemães, e Wagner
e sua obra cria dificuldades que ele se propõe superar: facilidade considerava-o o mais germânico de todos. Também na Inglaterra
e variedade da execução em cordas duplas, nova técnica de arco é considerado uma glória nacional (Oberon, ópera inglesa). Mas
(staccato volante, ricochete...), associação do arco com ospizzi- em outros países sua estrela brilha tenuemente..
cati da mão esquerda, mudança de afinação ou scordatura, em­ É na ópera que seu papel histórico tem importância; voltarei
prego generalizado dos sons harmônicos (e não mais apenas nas adiante a isso. Sua música para piano é a de um grande exécutan­
cordas soltas), etc. Para os românticos, torna-se um símbolo e um te, independente de todas as escolas pianísticas de então. A for­
exemplo. Todos lhe prestam homenagem. Inspira Schumann (Es­ ma é, em geral, imperfeita, e suas sonatas costumam parecer uma
tudos, op. 3 e op. 10), Liszt (Seis estudos tirados de Paganini), improvisação; mas sua técnica é audaciosa e original, sua inspi­
Brahms (duas séries de Variações sobre o Capricho em lá menor); ração poética finíssima e essas qualidades pareceriam notáveis,
Schubert, desprezando o diabo, declara após ouvi-lo em Viena, não fosse a insustentável comparação com o gênio de Schubert.
em 1828: "Ouvi um anjo cantar no adágio de Paganini" (movi­ Weber também é um grande sinfonista. Em seus belos concertos
mento lento do Segundo concerto). e suas óperas (cena da Garganta dos Lobos do Freischütz, por

KARL MARIA sação de vigarice), crítico e maes­


ranjos de cantos escoceses, corais.
VON W E B E R tro em Mannheim e Darmstadt. É,
Músicas de cena, duas sinfonias,
Eutin (Lübeck), 18 de novembro de 1786 então, instável, fútü e acumula im­
aberturas sinfônicas, concertos ou
Londres, 5 de junho de 1826 prudências.
obras concertantes (dentre as quais
1811-1813 Grande turnê de concer­
a Konzertstück op. 79 para piano);
Primo-irmão de Constanze Weber, tos na maior parte das cidades ale­
música de câmara e inúmeras com­
mulher de Mozart. Filho de Franz mãs. Tornou-se um grande maestro.
posições para piano (dentre as
Anton Weber (1734-1812), violinis­ 1813-1816 Kapellmeister do Teatro
quais quatro sonatas, dez séries de
ta, contrabaixista e diretor de uma de Praga.
variações e a célebre Aufforderung
companhia dramática, que acres­ 1817-1826 Kapellmeister da Ópera
zum Tanz, orquestrada por Ber­
centa um "von" a seu nome. We­ alemã de Dresden. Faz desse teatro
lioz.
ber cresce nos bastidores dos tea­ um dos melhores da Alemanha. É
tros; seu pai quer que seja músico. a época de suas maiores obras.
1826 Esgotado pela tuberculose pul­
1796-1803 Estuda sucessivamente monar e por uma queimadura da la­
com Michael Haydn em Salzburgo, ringe (bebeu por distração ácido ní­
com o organista da corte da Bavie- trico em 1806), vai a Londres apre­
ra, depois com o abade Vogler em sentar em Covent Garden sua ópera
Viena. Aos catorze anos, apresen­ inglesa Oberon. Morre nessa cidade
ta sua primeira ópera em Freiberg, dois meses depois do triunfo dessa
Saxonia, no curso de uma turné da apresentação. Em 1844, seu corpo
trupe familiar. será levado ao túmulo da família em
1804-1806 Kapellmeister do teatro Dresden e, nessa ocasião, Wagner
de Breslau. pronunciará o elogio do defunto.
1807-1811 Musikintendant do du­
que Eugenio de Wurtemberg na Si- obra Dez óperas; três missas, dois
lésia, secretario do extravagante du­ ofertónos, sete cantatas, setenta e
que Ludwig em Stuttgart (de onde oito Heder alemães (com acompa­ Paisagem com viajante, desenho de
é expulso devido a uma falsa acu­ nhamento de piano ou guitarra), ar- Moritz von Schwind.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 36 37 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

exemplo), a orquestra é rutilante. Claro, a de Beethoven é mais rado no cristianismo, mas sem piedade. Escreve em seu diário:
eloqüente, a de Schubert mais homogênea e mais sutil. Contudo, " A razão nada mais é que fé analisada." Detesta a religião ofi­
há em Weber um sentido bastante novo do "colorido" orques­ cial do clero austríaco e partilha a exasperação dos intelectuais
tral, que anuncia o fogo de artifício de Berlioz. contra o regime conservador e intolerante de Metternich.
Com Mozart, Schubert é o mais puro gênio musical da his­
Schubert Gosta-se de Schubert como se gosta de Mozart, irra­ toria, uma espécie de vidente, guiado por uma intuição infalí­
cional e intensamente. A revelação de seu gênio é uma paixão sú­ vel, de que a vontade parece exclm'da. Ele escreve de uma só
bita, não o fruto de uma análise paciente. Por muito tempo foi assentada, geralmente sem rasuras, o mais depressa que sua pe­
considerado um mestre menor, pois várias gerações foram inca­ na consegue ir. A obra domina o homem e só por ele pode ex­
pazes de conceber que um homem comum na aparência pudesse plicar-se. A perfeição imediata da idéia é desconcertante. Quan­
alcançar sem esforço os cimos da arte pela graça de uma imagi­ do compõe aos dezessete anos Gretchen am Spinnrade (Marga­
nação musical ßem fraquezas. rida à roca) e aos dezoito anos Erlkönig, Schubert alcança de
Sua personagem não apresenta nenhuma das características saída os cimos em que se manterá: não fará progressos, não
singulares que se costuma acreditar serem o sinal do gênio. Bai­ tem progressos a fazer, pelo menos no que diz respeito ao lied.
xinho e gordo, muito míope (mas com olhos irrequietos e expres­ Plenamente consciente de seu gênio, Schubert não faz dele uma
sivos), era extremamente boêmio, vivendo num perpétuo impro­
causa de vaidade. Mal uma obra é concluída, começa outra,
viso. Seu sentimento bastante arraigado de independência dava-
e compõe tanto, que lhe sucedeu, segundo se diz, aplaudir uma
lhe um ar excessivamente tímido; era, antes, entediado, preocu­
de suas obras com entusiasmo, não se lembrando mais de que
pado com sua liberdade. Petrificado pelas convenções sociais,
faltavam-lhe o desembaraço, o trato desenvolto, a ambição. Mas, era o autor.
por suas qualidades de coração, suscitava amizades profundas e O lied está no âmago da obra de Schubert e é a mais elevada
fiéis. Com seus amigos, era bom, caloroso, discutia noites intei­ expressão de seu gênio. Nesse domínio, nunca será igualado, nem
ras, não raro com entusiasmo ¡ mas por vezes com uma gravida­ mesmo por Schumann. Pois ninguém cantou de uma maneira tão
de que os fascinava. A boêmia não foi, para ele, sinônimo de mi­ livre e tão natural; nunca as menores inflexões melódicas ou as
séria. Estava ao abrigo da necessidade, pelo menos depois de 1818, bruscas mudanças de luz corresponderam com tamanha evidên­
mas gastava sem pensar no dia de amanhã, consagrando grande cia aos mais sutis batimentos do coração, nunca se foi tão longe
parte de seu orçamento aos cafés e restaurantes. Aí se encontra­ e tão simplesmente na expressão de um sentimento poético. Se­
va o pequeno grupo de inseparáveis com os quais organizava os ria, por assim dizer, a linguagem familiar de uma vida anterior.
grandes passeios no campo e os longos serões musicais a que cha­ Cerca de seiscentos e cinqüenta Heder de Schubert são conheci­
mavam "schubertíades'VPuro vienense, cresceu numa atmosfe­ dos, nas formas mais diversas, desde a simples canção estrófica
ra estranha ao Sturm und Drang, viveu numa cidade agradável (Heidenröslein) até a cena dramática (Erlkönig) ou a cantata (Viola
e indolente, que logo ficará fascinada com a velocidade, a verti­ ou Der Hirt auf dem Felsen). Apenas no ano de 1815, compôs
gem, o erotismo da valsa (J. Strauss pai cria sua orquestra em cento e quarenta e duas, sem fraquejar.
1825). Schubert foi freqüentemente censurado pela escolha incon­
A maioria dos biógrafos de Schubert evoca o céu a seu res­ siderada dos poetas: ao lado de Goethe, Schiller, Heine, Novalis,
peito, e seu amigo, o pintor Moritz von Schwind, qualifica-o de Schlegel, encontram-se Müller, Von Collin, Schober, Mayrhofer.
"louco celeste". Esse anjo, todavia, é bem da terra. Os cheiros Estes últimos são seus amigos, mas não têm gênio. No entanto,
da floresta vienense passam por vezes para a sua música, ou os devia haver entre eles e o músico uma íntima compreensão artís­
efluvios de uma perna de cabrito-montês com bagas de airela. Co­ tica, pois uns versos pobres de Von Collin deram Nacht und Träu­
me e bebe por dez, adora passear no campo, não despreza os amo­ me, um dos mais belos Heder de Schubert, a admirável Viola se
res fáceis. Há em Schubert o que chamamos de um "bom equilí­ deve à colaboração de Schober, Nachtstück à de Mayrhofer e Die
brio", até a sífilis esgotar seus recursos físicos e morais. Sua inte­ Winterreise, perturbadora obra-prima, é composta com base num
ligência não era notável, muito embora não fosse medíocre. Seus ciclo de vinte e quatro poemas de Wilhelm Müller! Pura de qual­
amigos gostavam da sua conversa e da sua "grande elevação de quer compromisso intelectual, essa música não faz transcrição li­
espírito". Era crente? Parece ter sido animado por um sentimen­ teral; nela, a inspiração não se deve à qualidade literária do poe­
to religioso espontâneo, espécie de deísmo um tanto vago inspi- ma, mas ao sentimento poético geral.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 40 41 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

Oie liebe Farbe

Aspectos do gênio melódico de Schubert.

O espírito do lied fecunda toda a música de Schubert e dá


às suas obras mais ambiciosas o toque de humanidade em que re­
conhecemos o eco de uma voz fraterna. As palavra históricas so­
bre as "extensões" de Schubert são aborrecidos lugares-comuns.
Ele só parece extenso para quem está com pressa. Como um ines­
gotável contador, renova sem cessar nosso prazer pela fecundi-
dade da sua invenção. A concisão dos Heder torna a aparecer, aliás,
nos Improvisos e nos Momentos musicais. Nessas peças notáveis,
Schubert aparece como chefe de escola, inaugurando um tipo de
poema pianístico, de lirismo instrumental absolutamente novo.
Será esse exemplo que Schumann e Chopin seguirão.
Atribuem-se em geral as "celestes extensões" às grandes
obras-primas do último ano de vida: a Sinfonia em dó maior, a
Sonata em si bemol maior, o Quinteto em dó maior e a Missa em
mi bemol maior, que, para nossa felicidade, bem poderiam não
acabar nunca. Cada uma dessas obras é um dos pontos culminan­
tes do gênero que ilustra. Profundamente originais, a despeito de
sua estrutura clássica, sua liberdade se manifesta por audácias har­ Quinteto em dó maior, primeiro movimento
mônicas que devem ter impressionado Wagner. Sobretudo, a mú­
sica de câmara de Schubert alcança pontos sublimes, de que os Ao morrer, um ano depois de Beethoven, não tinha trinta
melhores nunca se aproximaram, em particular no Quarteto em e dois anos. Somente alguns íntimos puderam perceber então a
ré menor (A donzela e a morte), no Quarteto em sol maior, no grandeza de sua obra; mas alguns de seus Heder haviam circulado
Trio em mi bemol maior e no Quinteto em dó maior. por toda Viena.
Erlkönig
F R A N Z SCHUBERT cantores fazem seus estudos. No ve­ Apaixona-se por sua filha Carolina, de Heder Schwanengesang... Mor­Schubert, entre os quais Rosa¬
Viena (Lichtental), 31 de janeiro de 1797 rão, um quarteto familiar é forma­ sem esperança. re de "typhus abdominalis" (pro­ munde.
Viena, 19 de novembro de 1828
do e executa as primeiras obras de 1819 Tumê na Estíria com o can­ vavelmente, febre tifóide). 1885-1897 Primeira edição comple­
Franz (que toca a viola). tor Michael Vogl. Graças a seus 1830 Wilhelmine Schröder-Devrient ta publicada pela Breitkopf.
Seu pai, FranzTheodor (1763-1830), 1813-1814 Escola de magistério; é amigos, começa a construir uma re­ canta Erlkönig em casa de Goethe.
de origem morávia, era um mestre- assistente do pai até 1818. Primei­ putação em Viena. O poeta de oitenta anos descobre o obra Quinze óperas ou "Singspie­
escola pio e honesto, violoncelista ras obras importantes, dentre as 1822 É gravemente afetado pela sí­ gênio que até então desconhecia. le" e três músicas de cena (dentre
amador. Sua mãe, Elisabeth Vietz quais Gretchen am Spinnrade. filis. Aparente cura no ano seguin­ 1839 Primeira audição da Sinfonia as quais Rosamunde); seis missas e
(1756-1812), foi uma criada domés­ 1815 No período de um ano, escre­ te, mas sua saúde está minada; lo­ em dó maior, em Leipzig, sob a di­ inúmeras obras religiosas; numero­
tica até se casar. Tiveram pelo menos ve uma ópera, quatro operetas, go sofrerá de violentas dores de ca­ reção de Mendelssohn. síssimas obras corais e alguns quar­
treze filhos, dos quais apenas cinco duas missas, cerca de vinte obras beça e, a partir de 1826, buscará no 1850 Primeira audição em Viena tetos e trios vocais; cerca de seiscen-
sobreviveram. Infância pobre, num corais, duas sinfonias, um quarte­ álcool um alívio para a neurastenia. do Quinteto em dó maior (publica­ tos Heder... Nove sinfonias; dezes­
clima de entendimento e bondade. to, numerosas peças para piano e 1827 Assiste ao enterro de Bee­ do em 1853). seis quartetos de cordas, um quin­
Franz estuda canto e instrumentos cento e quarenta Heder, dentre os thoven. 1854 Estréia de A Ifonso und Estrel­ teto para violino, viola, violoncelo,
com o organista da paróquia; pare­ quais Erlkõnigl 1828 A saúde de Schubert se agra­ la em Weimar, com regência de contrabaixo e piano (Die Forelle),
ce que já sabe tudo por instinto. 1816-1817 Início das reuniões de va, e o enorme trabalho deste últi­ Liszt. um quinteto de cordas, três trios
amigos chamadas "schubertíades". mo ano (que constitui o ápice da 1865 Primeira audição da Sinfonia com piano, um trio de cordas, qua­
1808-1813 Menino de coro da ca­ Instala-se em Viena com o poeta sua obra) acaba de esgotá-lo. Com­ inacabada, sob a regência de Jo­ tro sonatas para violino e piano;
pela imperial. É pensionista do Schober. posição da Sinfonia em dó maior, hann Herbeck, em Viena. vinte e três sonatas para piano, oi­
Staadtkonvikt de Viena, espécie de 1818 e 1824 Estada com os Ester- do Quinteto de cordas, das três úl­ 1867 Grove e Sullivan descobrem to Improvisos, seis Momentos mu­
colégio musical em que os pequenos házy no castelo de Zelesz, Hungria. timas sonatas para piano, do ciclo em Viena vários manuscritos de sicais, numerosas danças.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 44

HECTOR BERLIOZ Mannheim, Weimar, Leipzig, Dres­ riet, que fica na rue Blanche, 43.
L a Côte-Saint-André (Isère), 11 de dez. de 1803 den, Hamburgo, Berlim...). Berlioz Instala-se em casa da medíocre can­
Paris, 8 de m a r ç o de 1869
executa suas quatro sinfonias: Fan­ tora Marie Recio (que o persegue há
Filho de um médico liberal e filán­ tástica, Fúnebre e triunfal, Harol­ alguns anos), na rue de Provence,
de na Itália, Romeu e Julieta. Men­ 41, depois na rue de La Rochefou­
tropo. Faz seus estudos secundários
delssohn recebe-o em Leipzig. cauld, 15.
em Grenoble e aprende música so­
1844 Grande concerto no Théâtre 1847-1848 Primeiras viagens à Rús­
zinho.
Italien, com o concurso de Liszt. sia e à Inglaterra.
1821 Seguindo o desejo do pai,
Este toca urna Fantasia sobre Don 1848 Morte de seu pai. Harriet f i ­
inscreve-se na Faculdade de Medi­
Juan e um arranjo do baile da Sin­ ca paralítica. Os acontecimentos
cina de Paris. Estudante pouco as­
fonia fantástica. políticos irritam Berlioz. Em de­
síduo, interessa-se mais pela ópera
1845 Dá um concerto de música zembro, fica encantado com o su­
do que pela anatomia.
russa em Paris, em presença de cesso de Luís Napoleão Bonaparte,
1825 Consegue reunir cento e cin­ Glinka. mas não votou para "não contri­
qüenta músicos para executar uma 1845-1846 Concertos em Marselha, buir para nenhuma catástrofe". O
Missa solene de sua autoria na igre­ Lyon, Bonn, Viena, Praga, Buda­ progressista de 1830 tornou-se anti-
ja Saint-Roch! peste, Breslau... Separa-se de Har­ republicano.
1826 Inscrição no Conservatório de
Paris, a despeito da oposição da fa­
mília. Aluno de Lesueur e Reicha.
1827 Apaixona-se por Ofélia, en­
carnada por Harriet Smithson. Ca­
sa-se com a comediante irlandesa
em 1833. Ela lhe dá um filho, Louis
(1834-1867).
1830 Grande prêmio de Roma (de­
pois de três tentativas malsucedi-
das), na noite das Três Gloriosas.
É o ano de Hernani (fevereiro) e da
Sinfonia fantástica (dezembro). Es­ 1850 Funda uma Sociedade Filar­ mi bemol maior de Liszt (com o au­ Berlioz em 1830.
ta é executada no Conservatório sob mônica, independente dos poderes tor ao piano). Triunfos da Infância
a regência de Habeneck. públicos. É nomeado bibliotecário de Cristo e do Te Deum.
1831-1832 Estada na Vila Médicis. do Conservatório. 1864 Os troianos em Cartago no
1835 Magníficos artigos de Schu­ 1851-1853 Duas novas viagens a Théâtre-Lyrique. Apesar do suces­
mann sobre a Sinfonia fantástica. Londres. Triunfal semana Berlioz so e das consagrações oficiais (é
O próprio Berlioz é crítico do Jour­ em Weimar. Grande turnê pela Ale­ membro do Instituto desde 1856),
nal des Débats. manha. Berlioz cai numa grave neurastenia,
1837 Execução triunfal da Grande 1854 Morte de Harriet. "Não po­ agravada pela morte do filho Louis,
Missa dos mortos nos Invalides; re­ díamos nem viver juntos, nem nos em 1867.
gência de Habeneck. separar." Berlioz casa-se com Ma­ 1866 Nomeado conservador do Mu­
1838 Paganini, entusiasmado por ne Recio. Terceira grande turnê pe­ seu Instrumental do Conservatório.
um concerto de Berlioz no Conser­ la Alemanha. Ajudado pelo jovem Saint-Saêns,
vatório, manda-lhe um cheque de 1855-1864 Viagens freqüentes à monta A leeste de Gluck na Ópera.
vinte mil francos. Alemanha. Vai todos os anos a Ba­ 1868 Após uma derradeira viagem
1842-1843 Primeira grande turnê den. Em 1855, rege em Weimar a à Rússia, onde é recebido como um
(Bruxelas, Frankfurt, Stuttgart, primeira audição do Concerto em soberano, repousa na Côte d'Azur,
Harriet Smithson como Ofélia.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 46 47 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

petáculos, reúne orquestras monstros, cria sociedades filarmôni­


onde é vitimado por uma congestão Tróia, Karlsruhe, 1890; Os troia­ cas, organiza festivais de música, os primeiros, sem dúvida . 10

cerebral. nos em Cartago, Paris, 1863), Béa­ Os fracassos afetavam-no profundamente. Mas foram com­
1869 Um ano depois, morre sem trice et Bénédict (Baden-Baden, pensados pelos êxitos "piramidais", "espantosos" da Sinfonia
nunca ter-se recuperado totalmen­ 1862). Uma Missa dos mortos (Ré­ fantástica, do Réquiem, da Infância de Cristo, pelas turnês triun­
te. Desde os sessenta, tem a apa­ quiem) e um Te Deum, para tenor fais pela Europa central e pela Rússia, ou por aquelas apoteoses
rência de um velhote. Em 11 de solo com um enorme conjunto co­
que foram as "semanas Berlioz", organizadas por Liszt em Wei­
março, após as exéquias na Trini­ ral e instrumental (orquestra sin­
mar. Todavia, sua música era raramente executada quando ele
té, os cavalos do carro fúnebre dis­ fônica e orquestra de metais); um
param a caminho do cemitério de oratório ou "trilogia sacra", A in­ não cuidava disso e, muito embora sempre se tivesse queixado de
Montmartre — onde Berlioz está fância de Cristo; melodias com or­ ser obrigado a produzir em data fixa um "imortal folhetim", seu
hoje enterrado perto de suas duas questra. Quatro sinfonias: Sinfo­ talento literário não era alheio à sua glória. Sua cultura e sua com-
mulheres. * nia fantástica, Romeu e Julieta batividade dispunham-no a tornar-se um dos maiores críticos da
(com solistas e coros), Haroldo na história, e seu proselitismo necessitava do meio de expressão que
11
obra Quatro obras dramáticas: Itália (com viola solo), Sinfonia fú­ lhe era oferecido pela imprensa .
Benvenuto Cellini (Paris, 1838), ,4 nebre e triunfal (com coros). Aber­ Dois anos após a morte de Beethoven, a Sinfonia fantástica
danação de Fausto, "ópera de con­ turas. Uma obra literária, que dava às músicas mais modernas um aspecto um tanto vetusto. Pre­
certo" (Paris, 1846), Os troianos abrange as Memórias e várias co­ tendendo ingenuamente pintar um "episódio da vida de um artis­
(em duas partes: A tomada de letâneas satíricas. ta", Berlioz buscava a inspiração na fonte, mas sempre com luci­
dez, ostentando sua independência em relação às modas e às con­
venções musicais. Não foi perdoado por isso. O respeito oficial
Berlioz Vocação contrariada, "mortal amor" por Ofélia, sin­ pelas santas regras clássicas, a religião da fuga e da forma sona­
fonia "fantástica", "torrentes de lágrimas", "inferno e dana­ ta, mantidos pelos conservatórios, fizeram pesar muito tempo so­
ção", leitura de Byron num confessionário, deambulações no­ bre ele a ridícula suspeita de uma falta de know how. Mas seu
turnas e, para terminar, os cavalos do carro fúnebre que dispa­ profundo conhecimento das obras de Beethoven revelaram-lhe co­
ram a caminho do cemitério de Montmartre... Nada falta a Ber­ mo abandonar os caminhos balizados sem se perder.
lioz, nem mesmo o nariz e. a cabeleira, para ser um modelo de A originalidade técnica de Berlioz reside principalmente em
compositor romântico; melhor, ele é uma caricatura shakespea- seu gênio melódico e em seu virtuosismo orquestral; a escrita po­
riana um pouco louca. Muito emotivo e fervilhante de imagina­ lifónica é simples, o que não exclui o requinte, como atestam a
ção, é seguramente sincero na expressão de suas paixões e nun­
sinfonia Romeu e Julieta, A danação de Fausto e A infância de
ca se renega. Mas encena-se com um gosto acentuado pelo espe­
Cristo. Ele criou uma nova forma de melodia francesa, não ape­
tacular e, também, com um senso de humor bastante raro num
nas nas peças que intitula — pela primeira vez, ao que parece —
egocêntrico desse calibre.
"melodias", mas também em certas páginas admiráveis, como a
A vida inteira ele cultivará a retórica hiperbólica em voga cena de amor de Romeu e Julieta (instrumental), a ária "Noite
na sua juventude. Precisa dela para viver. Seus menores epítetos calma e serena" de Béatrice et Bénédict, o septeto dos Troianos
bastariam para qualificar o Juízo Final. Mas permanece lúcido em Cartago ou a "Canção do rei de Tule" da Danação de Faus­
e, nas coisas sérias, reencontra seu rigor intelectual. Seu perso­
to. Por outro lado, seu gênio sinfônico, sua compreensão das pos­
nagem, não conformista, intransigente, agressivo, não parece
sibilidades melódicas e rítmicas dos instrumentos fizeram de Ber­
desagradar-lhe; nem todos os seus impulsos surpreendentes são
lioz o criador da orquestração moderna, que todos os grandes sin-
descontrolados. Ele cuida da imagem e atesta, na conduta de
seus negócios, um senso agudo das relações públicas. Apesar
dos ventos contrários — e eles o são com freqüência —, seu 10. De origem inglesa, a palavra "festival" é empregada na França a partir
espírito de empreendimento está constantemente alerta. É pre­ de 1830 aproximadamente.
tensioso, e a desenvoltura de seu trato é fenomenal: mobiliza 11. A obra literária de Berlioz é de um interesse constante; tudo é inteligen­
todos os concursos, escreve para a terra inteira, inunda a im­ te, espirituoso, inesperado. Ver, em particular: Mémoires, 2 vol., Paris, 1870,
reed. Garnier-Flammarion, 1969; A travers chants, Paris, 1872, reed. Gamier,
prensa de releases ("meus boletins do Grande Exército"), inves­ 1973; Les soirées de l'orchestre, Paris, 1852; Les grotesques de la musique, Paris,
te sobre os ministérios, força as portas do Instituto, monta es- 1859.
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Florença, fonistas franceses, alemães ou russos do fim do século adotarão.


por Mendelssohn. O Grande tratado de instrumentação e de orquestração moder­
nas é mais que um inesgotável livro de receitas: é uma obra de
estética. Enfim, pelo emprego de temas característicos ou "idéias
fixas" dotadas de valor simbólico, anuncia o leitmotiv wagne-
riano.

Mendelssohn Como Mozart e Schubert, Mendelssohn era de


Aquário. Sem conjeturar sobre as deduções que os astrólogos po­
dem fazer, observam-se nesses três músicos uma precocidade e uma
facilidade extraordinárias. Poucos artistas foram tão favorecidos
pela sorte quanto Felix Mendelssohn: rico, inteligente, dotado de
grande charme pessoal, recebera os meios de adquirir uma vasta
cultura e de desenvolver seus dons surpreendentes, que se aplica­
vam aos mais diversos domínios (música, letras, pintura, filoso­
fia, natação, equitação). Por seu talento como regente e pianista,
por sua autoridade como diretor da Gewandhaus de Leipzig, pe­
la atividade que desenvolveu no curso de suas numerosas viagens,
exerceu uma influência considerável sobre a vida musical da Eu­
ropa. Deu a conhecer a seus contemporâneos Lassus, Victoria, Moritz von Schwind,
Palestrina, Leo, Lotti, Durante; exumou obras maiores de Bach, aquarela inacabada:
Haendel e Schubert; deu interpretações exemplares das sinfonias Schubert ao piano.
Veneza, desenho de Mendelssohn.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 50 51 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

de Beethoven e das óperas de Mozart; favoreceu a carreira de Schu­


FELIX sino de piano e composição. Os
mann (que lhe dedica seus três quartetos de cordas em 1842) e de
MENDELSSOHN-BARTHOLDY prestigiosos concertos da Gewand­
Hamburgo, 3 de fevereiro de 1809 haus (em que apresenta a primeira Chopin. Grande parte da sua curta carreira foi consagrada à mú­
Leipzig, 4 de novembro de 1847
audição da Sinfonia em dó maior sica dos outros; deu um impulso decisivo à vida musical da Ingla­
de Schubert) não diminuem o rit­ terra e fez de Leipzig uma capital da música.
Seu pai, Abraham (1776-1835), mo de sua atividade de composi­ Mendelssohn ilustra as mais elevadas qualidades da cultura
banqueiro em Hamburgo, depois tor e pianista. ocidental. Para ser um grande artista, não precisou derrubar obs­
em Berlim, e sua mãe, Lee Salomon 1841 É nomeado diretor-geral da táculos, e sua obra sofre com sua facilidade. A simples preocupa­
(1777-1843), eram cultos, ricos e ge­ música da Prússia e Kapellmeister ção de agradar serve-lhe de princípio estético, mas ele tem o bom
nerosos. Seu avô paterno, Moses do rei. Mas só se instala completa­ gosto de realizar seu programa com sobriedade e clareza. Sua ciên­
(1729-1786), fora um excelente poe­ mente em Berlim em 1843 e 1844. cia da instrumentação preserva suas obras sinfônicas e sua músi­
ta e füósofo. Mendelssohn recebe a 1846 O oratório Elias, que estréia
ca de câmara dos perigos dessa facilidade natural, a que sua mú­
melhor educação possível, no meio em Birmingham, inaugura um gê­
sica de piano com freqüência sucumbe. As graciosas Canções sem
mais brilhante de Berlim. nero monumental de composição palavras não suportam a proximidade de Schubert, Schumann ou
coral, que desde então pertence às
1818-1825 Faz sua primeira apari­ tradições britânicas. As freqüentes Chopin, enquanto a música de Sonho de uma noite de verão, a
ção em público aos nove anos. Aos viagens de Mendelssohn à Inglater­ Sinfonia italiana, o Concerto para violino e o Octeto, composto
catorze, já tem uma obra conside­ ra fazem-no ser considerado uma aos dezesseis anos, são de um mestre, em quem a sensibilidade
rável em seu ativo. Duas viagens a glória nacional nesse país. romântica é temperada por uma sólida cultura clássica.
Paris decidem sua carreira musical. 1847 Depois da morte da irmã
Aos dezesseis anos, termina seu ad­ Fanny, fica sujeito a crises de de­ Schumann O mais belo conto de amor da história da música e
mirável Octeto, revelando uma es­ pressão. Está num estado de extre­ a inexorável tragédia da loucura formam a trama em que se esbo­
pantosa maturidade. Encontro com ma fadiga quando sucumbe a uma ça a nobre e cativante personalidade de Schumann. Em seu caso,
Goethe. hemorragia cerebral aos trinta e no­ a lenda é fiel à história. A correspondência entre Robert e Clara,
1827 Abertura de Sonho de uma ve anos. Leipzig lhe organiza um o diário íntimo dos dois, suas conversas relatadas por terceiros
noite de verão. Inscreve-se na Uni­ funeral grandioso (em 7 de novem­ são testemunhos transparentes, de sinceridade insuspeita. Eles nos
versidade (curso de Hegel). bro) e, em muitas cidades da Euro­ revelam a paixão mútua entre o compositor romântico de vinte
1829 Dirige uma audição da Paixão pa, o luto foi ocasião de manifes­ e dois anos e a genial menina de treze, selvagem e fascinante. Ela
segundo São Mateus, sem dúvida a tações solenes. toca maravilhosamente os Papillons que Robert acaba de escre­
primeira desde a morte de Bach.
ver: já é uma grande pianista. Ele tem a cabeça cheia de contos
Continuará, em seguida, a divulgar obra Dois oratórios e grande nú­
fantásticos, inventa "charadas" para ela, dão grandes passeios
as obras dos grandes músicos do mero de obras corais, religiosas e
passado, assim como as de seus profanas. Músicas de cena (espe­ juntos e, como ela é uma menina ingênua e romântica, acredita
contemporâneos (Berlioz, Chopin, cialmente, pai&Athalie e Sonho de em tudo o que ele conta. Nas vezes em que a carreira de Clara
Schumann, Wagner, etc.). uma noite de verão), cinco sinfonias os separa, o que acontece com freqüência cada vez maior, Robert
1829-1835 Turnês na Inglaterra (mais doze sinfonias de juventude trabalha pensando nela; ela é seu anjo da guarda e continuará a
(onde seu papel na vida musical é inéditas), dois concertos para pia­ sê-lo. Robert a revê um dia, depois de uma longa ausência; ela
decisivo), Itália, Suíça e Alemanha; no, um concerto para violino, aber­ está com dezesseis anos, é encantadora, eles declaram um ao ou­
estada em Paris em 1832. Sua ati­ turas de concerto, etc. Obras de tro seu amor. Cinco anos ainda serão necessários para se perten­
vidade é fenomenal, em particular música de câmara, numerosas com­ cerem, cinco anos de duro combate.
como pianista e regente. posições para piano (dentre as quais A longa marcha até Clara é o período mais fecundo da car­
1835-1841 Instala-se em Leipzig quarenta e oito Canções sem pala­ reira de Schumann. É então que ele compõe suas obras-primas
como diretor da orquestra da Ge­ vras), seis sonatas para órgão, cer­ para piano, especialmente o Carnaval op. 9 (1835), aFantasia op.
wandhaus, a qual reforma inteira­ ca de cem Heder, sem falar nas nu­ 17 (1836), ápice do piano romântico, as Kinderszenen eaKreisle-
mente. Funda o conservatório da merosíssimas composições de j u ­
riana (1838), as Davidsbündlertãnze (1837), os Estudos sinfôni­
cidade e confia a Schumann o en­ ventude.
cos (1834). Quando Clara pode inscrever em seus programas a mú­
sica de Robert, ela tem a impressão de escapar da vigilância do
Clara Wieck,
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 52

pai, de afrontar sua hostilidade. No ano de seu casamento, Schu­


mann compõe cento e trinta Heder (a metade de sua produção to­
tal), dentre os quais todos os mais belos: os ciclos Liederkreis op.
24 e 39, Myrthen op. 25, Frauenliebe und -leben op. 42, Dichter­
liebe op. 48.
A vida familiar dos dois será exemplar e, como nas historias
que terminam bem, terão muitos filhos (oito, exatamente)... Mas,
infelizmente, esta história acaba mal. O tão temido drama vem
à tona, o de Hölderlin e de Novalis, o desarranjo da razão. Única
luz na noite, o amor de Clara não sofrerá nenhum eclipse. O pro­
fundo afeto que Brahms mostrará a vida toda pela grande pianis­
ta é um terno aspecto da sua devoção ao casal Schumann. Pelo
menos não existe nenhum testemunho de uma paixão de que Ro­
bert pudesse desconfiar.
As perturbações mentais, cujos primeiros e leves sintomas ele
sentiu antes dos vinte anos, habituaram-no a dominar seus im­
pulsos, a passar pelo crivo da inteligência as sugestões de uma ima­
ginação desordenada. Seu gênio formou-se nessa disciplina secreta.
Mas a incerteza sobre sua vocação (jurista? poeta? pianista? com­
positor? crítico? editor?) fez desse egocêntrico um veleidoso, du­
vidando de si, empreendendo uma porção de coisas ao mesmo tem­
po, abandonando-as, retomando-as. Depois do período de inten­
sa atividade criadora correspondente à conquista ardente da feli­
cidade, um complexo de inferioridade em relação a Clara acen­
tua sua melancolia. Pianista fracassado, mau regente, casado com
uma das mais prestigiosas virtuoses, tem a sensação de ser a som­
bra de sua mulher nas turnês que fazem juntos. Esses fatores so­
mados à hereditariedade (seus pais eram hipernervosos, uma ir­
mã, inválida física e mental, suicidou-se em 1826) debilitaram pou­
co a pouco sua capacidade criadora e contribuíram sem dúvida
para precipitar a tragédia.
Sua cultura e sua emotividade fizeram dele um puro român­
tico alemão. Ao contrário de Schubert, é um intelectual. Seus pri­
meiros mestres foram Goethe, Schiller e, sobretudo, Jean-Paul;
entusiasmou-se por Hölderlin, por Byron, por Heine, seguiu Hoff­
mann no mundo fantástico de Callot, e seu piano nos leva num
carnaval de sonho, onde, entre os mascarados careteiros ou gra­
ciosos, passam Eusebius e Florestan (seus duplos), Estrella e Chia-
rina (Ernestine e Clara, as musas), Chopin e Paganini, os fogo­
12
sos "Companheiros de Davi" e muitos outros. Em música, seu

12. Essa misteriosa confraria dos "Companheiros de Davi" reúne, no espíri­


to de Schumann, mortos (Bach, Mozart, Beethoven), ausentes (Chopin, Berlioz)
e um grupo de amigos que um ideal comum reúne regularmente no Kaffeebaum
de Leipzig. A Ponte Velha sobre o Reno, em Dusseldorf.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 54 55 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

R O B E R T SCHUMANN 1829- 1830 Universidade de Heidel­ mútuo. Durante os cinco anos de por Clara. A sentença favorável foi quem consagra um artigo ditirâm- obra A ópera Genoveva (Leipzig,
Zwickau (Saxonia), 8 de junho de 1810 berg. Estuda sobretudo piano. Faz luta e separação, Robert comporá proferida em 1 ? de agosto e o casa­ bico. Brahms e o violinista Joachim 1850), a música de cena para Man­
Endenich (Bonn), 29 de julho de 1856
uma viagem à Itália, atravessando todas as suas obras-primas, e Cla­ mento foi realizado no dia 12 de se­ organizam em Hanôver um festival frede (Weimar, 1852), cerca de vin­
os Alpes a pé. Ouve Paganini e to­ ra tocará em toda parte o Carnaval, tembro, véspera dos 21 anos de Schumann (janeiro de 1854), com te obras para coro e orquestra.
Seu pai, August (1773-1826), era li­ ma consciência da sua vocàção. A os Estudos sinfônicos, as Kinders- Clara. imenso sucesso. Quatro sinfonias, um concerto e um
vreiro, editor e autor; sua mãe, Jo­ conselho de Wieck, abandona o di­ cenen, as Kreisleriana. 1843 Contratado por Mendelssohn 1854 Certa manhã, interrompe brus­ Concertstück para piano e orques­
hanna Christiana Schnabel (1771¬ reito. 1838- 1839 Instala-se em Viena, pa­ como professor do novo Conserva­ camente seu trabalho e vai-se jogar tra, um concerto para violino, um
1836), inteligente e hipersensível, 1830- 1832 Instala-se em casa de ra onde transferiu a revista. Aí co­ tório de Leipzig. Péssimo pedago­ no Reno. Salvo por barqueiros, é concerto para violoncelo. Um quin­
era filha de um cirurgião. Wieck, em Leipzig. Trabalho obs­ nhece o filho de Mozart e o ir­ go, abandona o cargo ao cabo de internado no hospício do Dr. Ri- teto, dois quartetos e dois trios com
1822-1827 Primeiras tentativas de tinado; mas em 1832 perde o uso do mão de Schubert. Clara está em um ano. Turnê pela Rússia com charz, perto de Bonn. Sua mulher piano, três quartetos de cordas. Nu­
composição aos doze anos. Tam­ terceiro dedo da mão direita, que Paris. Clara. (grávida de um oitavo filho) só se­ merosas composições para piano
bém escreve artigos curtos para amarrara para garantir a indepen­ 1839- 1840 Ação judicial para ob­ 18.44-1849 Instalação em Dresden. rá autorizada a vê-lo em julho de (dentre as quais Papillons, Davids-
uma revista do pai, poemas, peças dência do quarto! Grave depressão ter a autorização legal de se casar A revolução expulsa-os da cidade. 1856. Morre alguns dias depois, ve­ bündlertänze, Carnaval, Fantasie­
de teatro, sem descuidar de seus es­ em 1833. com Clara, apesar da oposição de 1850-1854 Instalação em Düssel­ lado por Clara e Brahms. stücke, Kinderscenen, Estudos sin­
tudos gerais. Lê muito na livraria 1833 Funda as "Davidsbündler" e Wieck, que Schumann processa por dorf como Musikdirektor. Deplo­ fônicos, Fantasia, Kreisleriana, três
do pai e se entusiasma por Jean¬ a Neue Zeitschrift für Musik (n? 1 difamação. Em abril, encontra Cla­ rável regente, Schumann não con­ Clara Schumann (1819-1896), uma sonatas...). Duzentos e sessenta He­
Paul. em 3 de abril de 1834). Faz amiza­ ra em Berlim (ela se refugiou em segue impor-se e sofre perturbações das maiores pianistas de seu tempo, der (dentre os quais Liederkreis,
1828 Universidade de Leipzig (di­ de com Mendelssohn. casa da mãe) e, nessa ocasião, Men­ nervosas e psíquicas cada vez mais compôs música para piano (incluin­ Dichterliebe, Frauenliebe und -le­
reito). Primeiras lições de piano 1835 Clara Wieck (16 anos) e Schu­ delssohn canta os primeiros Heder graves. Em 1853, trava conheci­ do um concerto), música de câma­ ben), peças para coro ou conjunto
com Friedrich Wieck. mann (25 anos) descobrem seu amor de Robert, acompanhado ao piano mento com o jovem Brahms, a ra e Heder. vocal, etc.

ideal é Schubert, que o faz descobrir a encantadora Agnès Ca­


ras; sente-o bastante próximo de si e, ao mesmo tempo, secreto
("só falava dele às árvores e às estrelas"). Também admira Men­
delssohn, seu amigo, e Berlioz, seu contrário, a quem consagra
em 1835 um longo estudo publicado em folhetim na Neue Zeits­
chrift; saúda o gênio nascente de Chopin em 1831 e o de Brahms
em 1853, em artigos proféticos. Sua formação musical não foi
muito racional, mas estudou a fundo as obras dos mestres e as
de seus contemporâneos.
Às grandes formas clássicas, cuja arquitetura convencional
paralisa sua inspiração, prefere uma dissecação psicológica ou
literária e procede, na maioria das vezes, por justaposição de
idéias; nas composições mais extensas, assinala uma predileção
pela variação. Conquanto seja o mais "literário" dos músicos,
conquanto acumule os símbolos e as alusões (muitas vezes pou­
co perceptíveis), sua música não tem pretensão "descritiva". Fre­
qüentemente, os sugestivos títulos são acrescentados a posterio­
ri, como no Carnaval op. 9. Quanto à admirável Fantasia op.
17, é a princípio apresentada como uma "Grosse Sonate" em
contribuição ao monumento de Beethoven; depois, mudando de
título, "nada mais é que um longo grito de amor lançado a t i " ,
revela a Clara.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 56 57 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

Suas obras-primas são as peças para piano já citadas (a que de que é vítima seu gênio é o mais tenaz e o mais nefasto da história
13
podemos acrescentar o belo Concerto) e os Heder de 1840. É ao da música. Marie d'Agoult , essa tola pretensiosa, já escreve que
piano que Schumann confia sua inspiração mais preciosa, con­ ' ' Chopin tosse com uma graça infinita' ', e Anna de Noailles suspi­
traponto sutil de suas fantasias e seus sonhos. Mas o lied corres­ ra nesciamente: "Oh, soluços de Chopin, oh, despedaçamentos do
ponde de maneira perfeita a suas aspirações artísticas, permitindo- coração..." Acaso se faz história escutando essas sereias?
lhe associar à sua obra seus poetas preferidos. O piano desempe­ Ora, se a sensibilidade de Chopin é, de fato, a de um filho do
nha um papel tão importante quanto a voz na sutil Uurninação século, é notável que, em sua pessoa, as tendências românticas não
do sentimento poético. Schumann tem, deste, uma compreensão tenham predominado. É um gênio independente e secreto, que se
profunda, que controla a todo instante a inspiração musical. É manteve à parte dos movimentos contemporâneos. Sua amizade
sua fraqueza em comparação com Schubert, de quem não possui por Delacroix e por Mickiewicz não é profunda. À admiração de
o instinto infalível, o dom de fazer a música jorrar de si que o Mendelssohn, Schumann, Berlioz, Liszt, ele responde com a indi­
dispensa de ressaltar as intenções literárias. ferença ou o desprezo; acha "completamente estúpido" o artigo
entusiasta de Schumann sobre suas Variações op. 2. Não sente afi­
A música de câmara de Schumann (apesar do quinteto) e sua
nidade com Beethoven, nem mesmo com Schubert. Seus verdadei­
música sinfônica (apesar da Sinfonia "renana") têm um interes­ ros mestres são Bach e Mozart. Nem as lições de piano do velho
se menor. Sua instrumentação não é inábil, é supérflua. Ε sua ima­ Zywny, quando era criança, nem as aulas de escrita do Conserva­
ginação é limitada por certo formalismo. tório de Varsóvia, irregularmente seguidas, tiveram sobre a sua for­
Enquanto pôde manter seu espírito sob o controle de sua mação a influência dos grandes clássicos ou das danças de campo­
vontade, Schumann foi um grande crítico musical; a lucidez de neses, com quem se misturava durante as férias de verão. Mas, no
seus juízos e a inteligência de suas análises forçam a admiração. que concerne ao essencial da sua arte, Chopin não deve nada a nin­
Sabe reconhecer seus erros e corrigir uma primeira impressão des­ guém; ele inventou tudo, preservando-se cuidadosamente de toda
favorável, adivinha o gênio de Chopin, de Berlioz, de Schubert, influência.
de Brahms, de Wagner. Com seus companheiros das "Davids- Elegante, espirituoso, reservado, esconde sua timidez sob uma
bündler", cria a Neue Zeitschrift für Musik para defender os amabilidade indiferente. Detesta as confidências, não fala nem de
músicos românticos e atacar os filisteus amantes de música ita­ sua saúde, nem de seus sentimentos, raramente de suas idéias.
liana. Um jovem desconhecido, chamado Richard Wagner, faz- "Conduz tua alma na angústia, deixa sofrer teu coração, mas que
se notar, nos primeiros números da revista, por artigos explosi­ ninguém, em tua face, leia tua dor." Ao mesmo tempo que uma
vos. Schumann, por sua vez, garante grande parte da redação exigência moral, Chopin exprime com isso sua concepção da arte.
com Eusebius e Florestan, personagens imaginários que encar­ Despreza as efusões líricas da música-confissão. Pode-se vestir sua
nam os dois aspectos da sua natureza ambígua: a razão e a im- obra com subtítulos e símbolos, podem-se descobrir nela rostos de
pulsividade. Com freqüência os faz dialogar, o que resulta em mulheres ou a sombra de uma revolução, podem-se ouvir nela so­
maior proveito de sua argumentação e maior prazer para os lei­ luços de amor ou gotas de água, mas Chopin, por seu lado, mostra
tores. Mestre Raro por vezes intervém para pô-los de acordo. desprezo por qualquer composição literária, dando a suas obras
Schumann abandona a direção da revista em 1838, mas continua títulos convencionais. Sua música é pura, como a de Mozart.
a enviar artigos. O último, publicado em 28 de outubro de 1853, Na lenda de Chopin, duas imagens são particularmente irri­
é intitulado Neue Bahnen (Novos caminhos): é o anúncio de que tantes, a do pianista de salão e a do tuberculoso, que, aliás, se
um jovem músico de vinte anos, Johannes Brahms, será o apósto­ conjugam sem consideração para com a história. Incontestavel-
lo de uma música nova e um dos maiores compositores do século. mente, Chopin era um mundano. Sedutor, bom dançarino, hábil
A Neue Zeitschrift für Musik continuará a ser publicada em Leip­ nos jogos de salão (era um excelente mímico), um pouco esnobe
zig até 1943. também, criou para si, nos salões parisienses, uma situação inve­
jável. Suas aulas, disputadas a preço de ouro, e o produto dos
contratos de edição parecem garantir-lhe rendimentos confortá­
Chopin As biografías romanescas e as interpretações exageradas 14
veis . O fato é que ele vive à larga e nunca terá problemas pe-
falsificaram o gênio de Chopin com uma obstinação particular. O
ar de mistério que se descobre nesse exilado, a inspiração atormen­
13. Chopin dedicou a ela sua segunda série de Estudos, poderosos, fulguran­
tada, o requinte do estilo, a tuberculose pulmonar sobretudo tes... É de se perguntar se acaso ela os leu.
designaram-no como símbolo do pior pathos romântico. O mito 14. Ver S. e D . Chainaye, De quoi vivait Chopin, Deux-Rives, 1951.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA *58 59 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

cuniários; quando uma dificuldade se apresenta, sempre aparece mos característicos, estruturas modais, células melódicas típicas.
OS MÚSICOS QUE uma fada boa, sob a forma de uma rica admiradora ou de uma O caráter polonês encontra-se em grande parte da sua obra, não
MORRERAM JOVENS ex-aluna. Essa vida fácil, em que não se sente forçado a nada, só nas Mazurkas e nas Polonaises. Orgulhoso de assumir a cultu­
dispensa-o das turnês de concertos que ele teme, permite-lhe criar ra de um povo oprimido, Chopin se pretende compositor nacio­
Lekeu 24 anos
com uma liberdade total e garante-lhe um círculo de relações ex­ nal e, como tal, terá, juntamente com Liszt, uma influência con­
Pergolesi 26 anos
Grigny 32 anos tremamente extenso. Ela prejudicará sua reputação póstuma, mas siderável.
Schubert 32 anos ele nunca esteve tão bem quanto no apogeu da sua carreira mun­ Não se interessa pelos longos desenvolvimentos e mostra-se
Belhni 34 anos dana. pródigo de idéias. Como Schumann, tem uma predileção pelas
L . Couperin 35 anos George Sand entra na vida de Chopin com um ardor missio­ formas simples e breves, que estimulam sua imaginação; porém,
Purcell 36 anos nário. Chopin acha-a antipática quando ela vem à sua casa pela sua invenção melódica aproxima-o mais dos italianos. Admira
Mozart 36 anos primeira vez, trazida por Liszt e Marie d'Agoult. Mas ela quer Rossini e sente profundas afinidades com Bellini. Possuem em co­
Bizet 37 anos
aquele "pequeno ser", cumula-o de seu amor e participa sua pai­ mum o dom da espontaneidade. "Neles tudo parece de um só ja­
Mendelssohn 38 anos
Stradella 39 anos
xão a um amigo comum, num bilhete em forma de ultimato. Cho­ to, de um impulso, saído subitamente " , escreve Liszt acerca dos
J. Stamitz 39 anos pin deixa-se tomar de assalto: ela o distrai de uma grave decep­ Prelúdios. "Eles possuem o ar livre e grandioso que caracteriza
Chopin 39 anos ção sentimental (seu amor pela encantadora Maria Wodzinska) as obras de gênio." Na música de Chopin, porém, o virtuosismo
Gershwin 39 anos e a curiosidade que ela lhe inspira se transforma, contra a sua pró­ nunca é gratuito, ao contrário dos italianos. Os ornamentos pro­
pria vontade, em paixão. porcionam à melodia seu elã, ao ritmo seu impulso. Quanto às
George está fascinada por esse artista secreto que ela acha passagens em "pequenas notas", ora afirmam um modo ou de­
RECORDES DE bastante feminino para responder a seu ideal de amor: o da Péri talham uma harmonia, ora são belas melodias fugidias entre pa­
LONGEVIDADE ou de sua própria Lélia. Convenceu-se de que estava destinada rênteses. Nenhuma obra de Chopin tem a ambição de ser uma
Reinken 99 anos
à felicidade de Frédéric; quer subtrair seu gênio à atmosfera fra- obra-prima. Encontramos numa mazurca ou num prelúdio — es­
G. Charpentier 96 anos gilizante dos salões parisienses, garantindo-lhe uma vida simples ses prodigiosos haicais — a mesma originalidade que na impres­
Gossec 95 anos e sadia no campo e a freqüentação de um meio digno dele. Con- sionista Balada em fá menor ou na suntuosa e radiante Barcaro­
Widor 93 anos segue-o e, se não se explorarem todos os recursos da psicologia la. Ε as soluções apaixonantes que o jovem autodidata deu em
Sibelius 92 anos do casal, pode-se pensar que essa ügação de dez anos foi feliz. seus Estudos (ele os compõe entre os dezoito e os vinte e quatro
Gretchaninov 92 anos Mas essa mulher superior, ao mesmo tempo mãe castradora e anos, com um inesgotável senso poético) a todos os problemas
Ropartz 91 anos amante devoradora, é dotada de uma monstruosa saúde, que pa­ técnicos bastariam para fazer dele a personalidade dominante da
Malipiero 91 anos rece nutrir-se das fraquezas alheias. Os cuidados que ela dispen­
Stravinsky 89 anos
história do piano. A despeito do que parecem crer alguns de seus
sou a seu "Chopinet", a seu "doente ordinário", a seu "pobre intérpretes, o rigor e a simplicidade eram constantes de sua ma­
Verdi 88 anos
Schmitt 88 anos
sofredorzinho" têm a dupla conseqüência desditada de retirar de neira de tocar. No tempo rubato, ele queria que a mão esquerda
Schütz 87 anos Chopin suas possibilidades naturais de defesa física e psicológica 15
permanecesse imutável — sempre esse controle da razão sobre
Kreisler 87 anos e de criar a absurda lenda do poeta agonizante que arrastam até os movimentos do coração.
Telemann 86 anos o piano, banhando-se em suas lágrimas, com um punhal no co­
Saint-Saèns 86 anos ração!
R. Strauss 85 anos
A obra de Chopin é romântica pela audácia da escrita, clássi­
Kodály 85 anos
ca pelo pudor e pela concisão. Ele é o vínculo entre Couperin e De­
bussy. Pela riqueza de sua harmonia, pela ambigüidade tonai, pe­
los cromatismos sutis, é um compositor de vanguarda, meio sécu­
lo à frente de seus contemporâneos. Por outro lado, é o primeiro
grande compositor que deu à sua obra as características específi­
cas de uma música nacional. Sua assimilação da cultura polonesa Barcarola.
não é superficial; conhece bem as canções e as danças de seu país,
que ele e muitos outros imigrantes associam à idéia da independência
nacional. No entanto, não utiliza temas folclóricos; como Béla Bar- 15. "No tempo rubato de um adágio, minha m ã o esquerda permanece com­
tók mais tarde, ele cria um folclore imaginário, assimilando rit- pletamente independente", escreve Mozart ao pai (outubro de 1777).
Autógrafo da Segunda Balada
modesto professor chamado Woj- de Chopin.
FRÉDÉRIC C H O P I N
Zelazowa Wola (Varsóvia), 1? de março de 1810 ciech Zywny). Começa a estudar
Paris, 17 de outubro de 1849
composição com Eisner, diretor do
Conservatório. No verão, faz tea­
Filho de Nicolas Chopin (1771¬ tro com suas irmãs e se inicia no fol­
1844), professor de origem lorena clore polonês.
estabelecido em Varsóvia em 1788, 1828 Estadas em Berlim e em
e de Justyna Krzyzanowska (1782¬ Praga.
1868). 1829 Dois concertos em Viena, no
1816-1823 Autêntico menino pro­ Kärntnertor Theater. Sucesso triun­
dígio. Publica sua primeira Polo­ fal. Volta por Praga, Dresden e
naise aos oito anos. Breslau.
1823-1826 Liceu de Varsóvia: exce­ 1830-1831 Começa a compor os
lentes estudos. Já é um pianista con­ Estudos. Após ter dado três concer­
sumado (trabalhou só e com um tos em Varsóvia, Chopin empreen-
Chopin, por Delacroix.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 62 63 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

Liszt A imagem que chegou até nós de Liszt, esse outro fabulo­
de uma "viagem de estudos": Bres­ 1837-1847 Ligação com George so pianista, é tão deformada quanto a de seu amigo Chopin. De­
lau, Dresden, Praga, Viena (onde Sand. Conhece-a em 1836 no Ho­ vemos dizer que ele inclusive contribuiu para isso. Impressiona-
fica por algum tempo), depois Mu­ tel de France, aonde viera ter com díssimo com Paganini, a quem ouve em Paris em 1831, constrói
nique e Stuttgart. Aí fica sabendo Liszt e Marie d'Agoult. A princípio, para si, ao fio dos anos, um personagem de virtuose fenomenal,
da tomada de Varsóvia pelos rus­ ela o desagrada, mas o distrai da que pulveriza os teclados e transfigura, segundo uns, ou desfigu­
sos; transtornado, prossegue seu ruptura com Maria; a antipatia se ra, segundo outros, tudo o que toca. Faz do recital de piano o
caminho para Paris, onde decide transforma em curiosidade, depois que Paganini fez do recital de violino: um grande espetáculo. Me­
fixar-se, num bonito apartamento numa espécie de resignação à pai­ nos fantasista do que Berlioz, apóia-se em suas amantes para a
no quinto andar do boulevard Pois­ xão. Após a catastrófica estada em mistificação, deixando-as até escrever qualquer coisa com seu no­
sonnière, 27. Célebre artigo de Majorca (inverno de 1838), instala- me. Mas é extraordinariamente cabotino, faz mímica do que toca
Schumann: "Tirem o chapéu, se­ se na rue Tronchei, depois, com com todo o corpo e chega a opor dois pianos em cena, passando
nhores, um gênio." George, no 16 da rue Pigalle. Pas­
de um a outro para mostrar seus dois perfis.
1831-1837 Período mundano. sam todos os verões em Nohant,
Chopin toca em toda parte; é apre­ onde freqüentam Liszt, Delacroix, O público aprecia particularmente as transcrições, arranjos
sentado a numerosos músicos, den­ Balzac, Arago, Quinei, Pauline e paráfrases de obras conhecidas, em que Liszt desenvolve uma
tre os quais Rossini, Cherubini, Viardot... A ruptura é medíocre: imaginação e um virtuosismo impressionantes. Nada escapa de­
Liszt, Berlioz, Bellini, Mendelssohn Chopin ousou tomar partido de So­ le: as grandes páginas de ópera, de Auber a Meyerbeer, de Wag­
(com o qual passeia a cavalo no lange, filha de George, contra a ner a Verdi, os Heder de Schubert, a Sinfonia fantástica, as obras
16
Bois de Boulogne). Mas evita cui­ mãe, numa triste história de casa­ para órgão de Bach, as sinfonias de Beethoven... Acusam-no
dadosamente qualquer influência. mento infeliz. de mostrar idêntica imaginação na execução das obras para pia­
Instala-se no 5, depois no 38 da 1848 Último concerto em Paris. no, cujo texto original ele costuma "enriquecer". Apesar de tu­
Chaussée-d'Antin (onde hoje pas­ Viagem à Inglaterra e à Escócia. do, é um prodigioso pianista; todos os testemunhos concordam
sa o boulevard Haussmann), num nesse ponto. E, por uma reação ordinária do público em favor
1849 Muda-se do square d'Orléans,
apartamento que mobilia com gos­ da especialização, o renome ruidoso do virtuose se impôs em de­
onde está instalado desde 1842, pa­
to; vive à larga. Sua música é to­ trimento da fama do compositor. As pessoas interessaram-se a
ra a rue Chaülot, depois para a pla­
cada pelos maiores virtuoses, den­ tal ponto pelo fenômeno pianístico e pelo homem paradoxal, que
ce Vendôme, 12. Minado pela tu­
tre os quais Liszt e Clara Wieck. deixaram na penumbra a maior parte de sua música.
berculose pulmonar, morre no dia
Seu primeiro concerto parisiense
17 de outubro, rodeado de nume­ Criança prodígio, candidato ao seminário das Missões estran­
(1832, na sala Pleyel, rue Cadet)
rosos amigos, antigos e recentes, geiras, participa do entusiasmo revolucionário das Três Glorio­
tem pouca repercussão. Em com­
muitos dos quais pretenderam ter sas, professa o ateísmo, retorna ao seio da Igreja sob o báculo
pensação, a alta sociedade disputa
recomido seu último suspiro. O Ré­ de Lamennais, faz-se tonsurar e recebe as ordens menores (não
suas aulas a preço de ouro. Cho­
quiem de Mozart foi executado em é ordenado padre) ao mesmo tempo em que conserva sua aman­
pin gosta dessa vida, que lhe dá a
seu funeral, em 30 de outubro, na te, torna-se cônego de Albano, conselheiro real da Hungria, agente
segurança de que necessita para
Madeleine. secreto de Napoleão I I I , sogro de Wagner (que dizem ter sido agen­
compor. Teme cada vez mais as
viagens e os concertos públicos, te secreto do lado inimigo!)... Esse libertário apostólico antecipou-
preferindo tocar para um círculo obra Salvo algumas obras de mú­ se à musicografia romanesca.
reduzido de pessoas. Em toda a sua sica de câmara e dezessete Cantos
A dominante do seu caráter é uma nobre generosidade, em
vida, esse grande pianista só deu poloneses, tudo é destinado ao
que entra um pouco de indiferença altaneira. Mas sua dedicação
cerca de trinta concertos. No en­ piano, em particular: catorze Po­
lonaises, cinqüenta e uma Mazur­
também pode ser brilhante, ao sol a pino da sua amizade ou da
tanto, vai diversas vezes à Alema­ sua admiração. Em todo caso, não é calculista. Quando é Hofka¬
nha, onde vê Mendelssohn, Schu­ cas, vinte e seis Prelúdios, vinte e
sete Estudos, vinte Noturnos, de­ pellmeister da corte de Weimar, deixa de dar concertos em seu
mann e os Wieck. Aí conhece Ma­
ria Wodzinska, de quem fica noi­ zenove Valsas, quatro Scherzi, qua­
vo; mas os pais da moça fazem seus tro Baladas, três Sonatas, dois 16. Essa parte da obra de Liszt é muito pouco conhecida, cerca de trezentas
peças. Ora livres paráfrases, ora transcrições fiéis, são maravilhosas demonstra­
projetos fracassar. Concertos, Barcarola, Berceuse,
ções dos recursos do piano. N ã o se deve desprezar o prazer que se pode ter ao
Fantasia. ouvi-las: em tal nível de perfeição, as críticas de "mau gosto" são de uma incon­
veniência grotesca.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 64

benefício, consagrando sua atividade a seus contemporâneos, sem


se deixar levar por seu próprio gosto nem por suas simpatias. Di­
vulga as principais obras de seu amigo Berlioz, monta a ópera Ge­
noveva de seu inimigo Schumann, dá a primeira representação de
Lohengrin, de Alfonso und Estrella, ópera esquecida de Schubert,
de Samson et Dalila de Saint-Saêns... Sua capacidade de traba­
lho é colossal: compositor de cerca de 1.500 obras, pianista, maes­
tro, organizador de concertos e festivais, literato ocasional, viaja
muito e mora, ao mesmo tempo, em toda a Europa. Em Buda­
peste, Paris, Weimar, Roma, está em casa. Tem um espírito con­
fuso, a exemplo de sua cultura desordenada (lê muito e qualquer
coisa), e agrava essa fraqueza ligando sua sorte, sucessivamente,
a duas pedantes temíveis. Marie d'Agoult (Daniel Stern em lite­
ratura), neurótica e vingativa, organizará depois da ruptura a ca­
bala antilisztiana, com o concurso de seu gemo Guy de Charna-
cé. Carolyne Wittgenstein, encantadora, doce e obstinada, con­
segue inculcar em seu amante suas doutrinas filosóficas e teológi­
cas nebulosas, a que consagra rios de tinta e publicações enciclo­
pédicas.
A obra de Liszt sofreu menos com a mitologia romântica do
que com a cabala. Em Paris, Charnacé sustenta na imprensa, sem
a menor lucidez, a virulenta animosidade de sua sogra. Na Ale­
manha e na Áustria, as hostilidades são conduzidas por Brahms
e pelo crítico Hanslick, instigados por Clara Schumann. Brahms
adormece quando Liszt toca para ele sua Sonata em Weimar e
Clara só ouve nela um "barulho ensurdecedor". Que tristeza! Vá
lá ainda que Charnacé descubra apenas o caos no magnífico Cre­
do em forma de fuga da Missa de Gran. Mas o que foi feito da
menina genial que sempre vemos com os olhos de Schumann? Se­
rá que ela não se lembrou dos "Davidsbündler" e dos Filisteus?
Em Roma, Liszt tem contra si todo o clero: "Para o senhor, só
existem eu e os lazarones", diz-lhe Pio I X . Os conservadores de­
nunciam como uma horrível desordem aquela "música do futu­
ro"; mas, para a vanguarda, ele é um falso jacobino. Ele mesmo
o diz, acrescentando olímpico: "posso esperar".
Os wagnerianos sempre procuraram reduzir a importância de
Liszt. Wagner, que lhe devia tanto, estética, moral e materialmen­
te, nunca inscreveu uma de suas obras em seus programas e nun­
ca o convidou para reger em Bayreuth. Sua influência sobre Wag­
ner e as gerações seguintes foi subestimada: sucessões de apoja-
turas ou de acordes de sétimas diminutas, ambigüidade tonal, cro­
matismo expressivo, vinte e cinco anos antes de Tristão.
A obra de Liszt é muito mais importante do que se pensa de
ordinário. Ele deu as costas à tradição de maneira particularmen­
te radical, subvertendo a tonalidade, a harmonia, a medida, a for-
65 OS GRANDES MÚSICOS ROMÁNTICOS

ma, a técnica instrumental. Como seu camarada Berlioz, é ao mes­


mo tempo célebre e desconhecido. Com seu desprezo insolente pe­
las conveniências, esses dois músicos chocavam mais os contem­
porâneos do que Schumann e Chopin, audaciosos mas convenien­
tes. Hoje, para muitos melómanos cultos, o lirismo generoso dos
dois é suspeito de demagogia, tanto mais que desfrutam agora su­
cesso popular. Ε todos admiram em Wagner o que se recusam a
ouvir em Liszt.

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Liszt, Estudo n? 2.

É verdade que os impressionistas Anos de peregrinação, ou


os Estudos transcendentais são pouco tocados, e que nunca se ouve
sua obra-prima sinfônica, a Sinfonia Fausto, que foi um dos prin­
cipais alvos da cruzada contra a "música do futuro", nem o es­
plêndido poema sinfônico Do berço ao túmulo. Conhece-se pou­
quíssimo sua música religiosa, em que se integram o cantochão,
o estilo polifónico, o dos grandes poemas sinfônicos, o teatro e
a simplicidade franciscana: Christus e Die Legende von der heili­
ge Elisabeth (oratorios), a Missa húngara da coroação e a Missa
de Gran são ápices dessa obra imensa... O que não diminui o va­
lor das composições mais célebres: as fulgurantes Rapsódias hún­
garas, cuja originalidade ainda nos surpreenderia se as ouvísse­
17
mos pela primeira vez , os Prelúdios, majestosa sinfonia cícli­
ca, que a princesa Carolyne dotou de um falso poema de Lamar­
tine que lhe serve de argumento, e sobretudo a Sonata, magnífico
e tumultuoso poema pianístico que abalou Wagner: " A beleza des­
sa sonata supera qualquer imaginação. Ela é grande, afável, pro­
funda, nobre, sublime como você. Ela remexeu as profundezas
do meu ser."

17. A inspiração nacional em Liszt deve muito às óperas de Ferenc Erkel


(1810-1893), fundador da escola húngara. A o contrário de Chopin e Bartok, Liszt
apela para autênticas melodias populares de seu país.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 66

FRANZ LISZT com Marie. Liszt é aclamado em Setenta e oito melodias, francesas,
toda parte como o maior virtuose
Raiding (Hungria), 22 de outubro de 1811 alemãs, italianas, húngaras, ingle­
Bayreuth, 31 de julho de 1886
que já se conheceu. sas. Doze poemas sinfônicos, duas
1847-1861 Instalação em Weimar "sinfonias" (Fausto e Dante), Dois
Seu pai, intendende dos dominios com a princesa Carolyne de Sayn- episódios do Fausto de Lenau (com
do príncipe Esterházy, excelente Wittgenstein. Kapellmeister da cor­ a primeira Mephisto-Waltz), segun­
músico amador, ensina-lhe piano. te, consagra toda a sua atividade da Mephisto-Waltz. Dois concer­
a divulgar a música dos outros, tos e uma Totentanz paia piano
1820 Primeiro concerto público em com uma incansável dedicação, e orquestra, doze Estudos transcen­
Poszony (Presburgo). principalmente as obras de Wag­ dentais, seis Estudos sobre temas
1821-1823 Temporada em Viena. É ner e Berlioz, Genoveva e Manfre­ de Paganini, Anos de peregrinação,
aluno de Czerny (piano) e Salieri do de Schumann, Sansão e Dalila Harmonias poéticas e religiosas,
(composição). Concerto em 1823 na de Saint-Saëns... Compõe durante dezenove Rapsódias húngaras, So­
Redoutensaal, em presença de Bee­ esse período a maioria de suas nata, uma centena de fantasias ou
thoven. obras principais, dentre as quais a paráfrases sobre óperas conheci­
Missa de Gran (Budapeste, 1856), das, inúmeros arranjos, etc.
1823-1833 Residência principal em
Paris (de 12 a 22 anos). Aluno de
Christus, a Sinfonia Fausto, a
Paër e Reicha. Importantes turnês
Sonata...
pela França, Inglaterra, Suíça. As­ 1861-1870 Estabelece-se em Roma,
siste à primeira audição da Sinfo­ primeiro na Piazza di Spagna, em
nia fantástica (1830) e aos primei­ casa de Carolyne, depois na Via
ros concertos parisienses de Paga­ Felice, 113, e no Monte Mario. Re­
nini e Chopin (1832). Freqüenta cebe a tonsura e as ordens meno­
Chopin, Berlioz, Hugo, George res, mas não é ordenado padre. Vai
Sand, Heine, Lamartine, Lamen­ a Budapeste em 1865 para reger a
nais e conhece Marie d'Agoult, que primeira audição de Santa Isabel.
abandona o marido e os filhos pa­ 1870-1886 Seu domicílio é a Eu­
ra segui-lo. ropa. Divide-se entre Roma, Wei­
1833-1840 Com Marie d'Agoult, mar, Bayreuth, Paris e Budapeste
na Suíça e na Italia (Anos de pere­ (onde é eleito presidente da nova
grinação). Dessa ligação nascem um Academia de Música). Turnês pe­
filho, Daniel (1839-1859) e duas fi­ la Itália, Áustria, Holanda, Fran­
lhas, Blandine (1835-1863), que se ça, Inglaterra, Luxemburgo. Res-
casará com Émile Ollivier e morre­ fria-se no trem que o traz a Bay­
rá em Saint-Tropez, e Cosima reuth e morre oito dias depois de
(1837-1930), que será sucessivamen­ uma congestão pulmonar. De acor­
te mulher de H . von Bülow e de do com seu desejo, seu funeral foi
Wagner. modesto, sem música. É enterra­
do no cemitério de Bayreuth.
1840-1847 Grande carreira interna­
cional: França, Alemanha, Bélgi­
ca, Suíça, Itália, Inglaterra, Espa­ obras (Mais de setecentas, contan­
nha, Portugal, Áustria, Hungria, do como uma só cada uma das
Sérvia, Bulgária, Romênia, Tur­ grandes coletâneas pianísticas.)
quia, Rússia... Relações com Wag­ Cinco missas, seis grandes salmos,
ner, Bettina von Arnim e Lola um Réquiem, seis oratórios, gran­
Montés; esta provoca a ruptura de número de hinos, cânticos, etc. Liszt, por M . Barabas.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 68 69 OS GRANDES MÚSICOS ROMÂNTICOS

Fazendo a resenha de uma audição do belo poema sinfônico daí, consagra todas as suas forças à realização desse programa,
Os ideais, Ravel escreverá em 1912: "Não há porventura quali­ só rege suas composições e impõe ao mundo a lei de seu gênio
dades suficientes nessa ebulição tumultuada, nesse vasto e mag­ providencial. Acreditando-se incumbido de uma missão superior,
nífico caos de matéria musical, em que várias gerações de com­ tem o sentimento de um primado de sua vontade. Luís I I da Ba-
positores ilustres encontrarão inspiração?" Wagner, Franck, R. viera irá submeter-se apaixonadamente a ela a partir de 1864, por
Strauss, a escola russa e a escola francesa "acaso não devem o uma súbita e genial intuição. Ε o müitante da "Jovem Alema­
melhor de suas qualidades à generosidade musical verdadeiramente nha", o inimigo da sociedade, logo se declara "humflimo súdi­
prodigiosa do grande precursor?" to" desse "caro rei, cheio de graça", representando com seu cos­
tumeiro talento uma comédia cínica e sentindo prazer em delirar
Wagner Richard Wagner é o gênio mais paradoxal de toda a his­ com um companheiro à altura.
tória da arte. A enorme literatura consagrada a seu "caso" ape­ Contudo sua ambição pede demais à sua inteligência, e sua
nas tornou seu pensamento mais obscuro e sua personalidade mais cultura (extensa, mas superficial) lhe proporciona apenas a ilu­
enigmática. Ele é bem o herói de um romantismo declinante, "um são da sabedoria. É incapaz sobretudo de efetuar uma escolha en­
belo pôr-do-sol que se tomou por uma aurora", escreverá Debussy, tre as idéias recebidas; confunde-as todas e não percebe a fraque­
e sua obra é a consumação de um velho sonho: fazer da arte uma za de uma síntese de idéias pretensamente superior, que nada mais
religião que transformará o mundo. Mas, fazendo-se profeta dessa é que uma mistura anárquica. Assim como é difícil distinguir sua
arte-religião, ele assume uma responsabilidade excessiva e semeia verdadeira personalidade da lenda que ele criou e que os sacerdo­
a confusão nas consciências musicais. Por muito tempo, os com­ tes de Bayreuth mantiveram, assim também parece difícil para
positores deverão definir-se por seu wagnerismo ou seu antiwag- muitos dissociar seu gênio musical da sua concepção da arte to­
nerismo, e a obra de Wagner será, para a música do futuro, a tal, logo da sua dramaturgia e da sua "religião". Se você declara
profecia de sua evolução. admirar a prodigiosa alquimia sonora, sem poder suportar a mi­
Movido por um orgulho delirante e pela consciência de estar tologia wagneriana, será tachado de antiwagnerismo primário, an-
incumbido de uma missão, mas limitado por um fenomenal ego­ tiwagnerismo ideológico, que será mais severamente julgado pela
centrismo, Wagner criou sua própria lenda, compondo sua auto­ igreja de Bayreuth do que o antiwagnerismo estético da reação
18
biografia , e organizou metódicamente o culto à sua pessoa. Vo­ neoclássica, de Brahms a Stravinsky.
luntarioso, empreendedor, calculista, sempre enganará a todos: Claro, o amante de música pode dispensar-se de subscrever
suas mulheres, seus amigos, seu real benfeitor, a si próprio, a nós... o ideal pangermanista e o princípio de superioridade da cultura
Nada parece espontâneo nele, nem mesmo o amor. O amor que alemã e de uma raça "ariana", expresso em vários escritos de
ele decide sentir por Mathilde Wesendonck é a experiência de que 19
Wagner . Em compensação, não escapa da metafísica pretensio­
necessita para compor Tristão ("Você está destinada à morte pa­ sa e confusa dos imensos dramas musicais. Posto em estado hip­
ra me dar vida", escreve-lhe). Uma vez acabada a obra, abando­ nótico por uma música sublime, pode acreditar-se iniciado numa
na Mathilde. Não nasceu músico, como tantos outros composi­ sabedoria superior, ao passo que está intoxicado por uma mescla
tores célebres; não tem vocação particular, tenta um pouco de tu­
desordenada de dogmas religiosos, lendas e teosofía nebulosa, que
do como diletante e acaba escolhendo a música, influenciádo pe­
convergem na exaltação do super-homem. Mesmo se Wagner fosse
la emoção que sentiu ao ouvir as sinfonias de Beethoven. Será um
o maior gênio artístico de todos os tempos, a ideologia que sua
diletante a vida inteira, não em música (ele forja pacientemente
obra sugere, a apologética e até o fanatismo religioso que ela sus­
seu ofício estudando as partituras dos mestres), mas em poesia,
cita poderiam inspirar, sem dúvida, algumas reticências. E, se em
em filosofia, em política. Tão subitamente quanto decidiu ser mú­
1975 a velha Winifred Wagner, nora do compositor, gritou mes­
sico, simulou romper com a sociedade nas barricadas de 1849.
mo "Heil Hitler!" durante uma representação, podemos até sen­
É então que se revela a si mesmo e que inicia sua verdadeira 20
tir medo .
carreira. Acaba de terminar Lohengrin, e o programa de sua obra
futura (com exceção talvez de Tristão) está estabelecido. A partir
19. E m particular em Das Judentum in der Musik (O judaísmo na música,
18. Os três volumes de Mein Leben foram ditados a Cosima, que os publicou 1850), Deutsche Kunst und deutsche Politik (Arte alemã e política alemã), Was
em 1911, depois de remanejar o texto. Nessa obra pia, ela sacrifica formidavel- ist deutsch (1865-78), comentários a Religion und Kunst, etc.
mente a história e o rigor intelectual ao culto de que é a sacerdotisa. 20. Relatado por P h . Sollers em Musique en jeu n? 23.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 70 71 O TEATRO MUSICAL

Mas a música exerce seu fascínio inclusive sobre o profano Há desenhos igualmente atormentados em Gesualdo e até em
irredutível. O espírito e os sentidos não podem resistir à podero­ Mozart:
sa lentidão dessas mterrnináveis sinfonias com canto, grandes rios
sagrados ao longo dos quais se erguem vozes desconhecidas. Len­
tamente a razão se apaga, como sob o império de um veneno
delicioso. "Parece, às vezes, ao ouvirmos essa música ardente
e despótica, que encontramos, pintadas no fundo das trevas, di­
laceradas pelo devaneio, as vertiginosas concepções do ópio",
escreve Baudelaire. Não se pode evocar melhor a espécie de vo­
luptuosa narcose em que a música de Wagner nos mergulha. Sua Mozart, Sinfonia em sol menor, final, 2? parte.
principal originalidade é essa continuidade irresistível, que im­
põe o clichê do rio ou da torrente de lava. A ausência de repou­ Mas em Wagner esse modo de expressão é sistemático, com seu
so dá a sensação de um tempo irracional, sem polaridade, em corolário harmônico: o encadeamento das apojaturas. A espera
que o espírito flutua, como fazem os objetos na ausência da gra­ de uma "resolução" incessantemente adiada é, aqui, um proce­
vidade. dimento capaz de criar o clima de tensão dramática correspon­
Embora essa obra seja destinada sobretudo ao teatro, é pa­ dente aos estados de crise.
radoxalmente sobre a instrumentação e sobre a harmonia que os Nenhuma obra pode ser considerada como sinal de uma
comentadores mais se detêm. No plano da escrita, porém, Wag­ "emancipação da dissonância", como o momento histórico em
ner não é um inovador, mas encontrou no sistema musical exis­ que o sistema se desequilibra. No entanto, se a posteridade faz
tente recursos insuspeitos. Sua orquestra é a de Beethoven, Schu­ remontar a Tristão a grande mutação da música moderna, é por­
bert, Berlioz e Liszt, enriquecida com algumas novidades ("tu­ que, nessa obra, o mito central da civilização ocidental mobiliza
bas" wagnerianas, trompete-baixo). Mas todos esses recursos são os recursos extremos do sistema "tonai" com uma intensidade
habilmente adaptados a uma função dramática contínua, de im­ excepcional. É a continuidade da tensão musical — da inefável
portância nova, através da qual Wagner exerce uma influência di­ paixão — que faz a importância de Tristão e não três compassos
reta sobre Debussy e Schönberg.
exemplares tomados aqui ou ali. Essa obra, a mais amada dos dra­
No plano melódico-harmônico, tampouco é um pioneiro. Mas mas wagnerianos e, talvez, a mais bela, é a menos teatral; talvez
explorou com uma audácia e uma eficácia notáveis a força ex­ seja um imenso poema sinfônico com duas vozes principais.
pressiva do cromatismo e as ricas possibilidades abertas à harmo­
nia por seus predecessores imediatos. Tristão e Parsifal esgotam
os recursos da harmonia tonal e abrem novos horizontes, premis­
sas de uma dissolução da tonalidade. Musicalmente, essas duas
obras são os ápices da arte wagneriana mais pura. O TEATRO MUSICAL NO SÉCULO X I X
Vedando a estabilidade harmônica, os encadeamentos cro­
máticos (sucessões de semitons ou de intervalos alterados) intro- Wagner II As grandes liturgias wagnerianas são fenômenos tão
duzem uma inquietude propícia à expressão da paixão. Os gregos singulares na história do teatro musical, que sempre seremos ten­
haviam-no pressentido e, desde a Renascença, numerosos com­ tados a superestimar ou subestimar sua importância, segundo a
positores exploraram seus recursos. Não é extraordinário encon­ religião que abraçamos.
trar em Wagner passagens como esta: No nível das suas mais elevadas ambições, Wagner fracas­
sou, na medida em que de sua arte-religião não restou mais que
um ritual da lembrança. Ouçam os peregrinos de Bayreuth: eles
comparam interpretações, como fazem todos os discófilos,
τ~π> extasiam-se com razão ao se lembrarem de certas grandes pági­
HP* *
nas, monumentos de nossa cultura, ou contam algumas fofocas
do festival, como acontece em qualquer lugar. Pouquíssimos fa­
lam dos grandes mitos wagnerianos como iniciados respeitosos; "Aeolodion" de Luís I I (híbrido
Wagner, Prelúdio de Tristão muitos seriam até incapazes de resumir a ação dos dramas. de piano, órgão e harmonio).
II e o Venusberg.
RICHARD WAGNER ta seu senso artístico e lhe incute o 1833 Chefe de coro do teatro de engana-o... Wagner é um marido
Leipzig, 22 de maio de 1813 gosto pelo teatro. Würzburg. deplorável.
Veneza, 13 de fevereiro de 1883
1820-1830 Bons estudos gerais em 1834-1836 Regente da orquestra do 1837-1839 Kapellmeister em Ri­
Dresden e em Leipzig. Também es­ teatro de Magdeburgo, Wagner ne­ ga. Ao cabo de dois anos, parte
Nono filho de Karl Friedrich Wag­ tuda piano e composição, mas sen­ le apresenta sem sucesso sua ópera bruscamente da cidade, sob a
ner (1770-1813), "Aktuarius" do te-se mais fascinado pelo teatro. Das Liebesverbot. O teatro vai à ameaça de seus credores. Embarca
Conselho da cidade, e de Johanna 1830-1833 Completa sua formação falência. Apaixona-se pela primei­ para a Inglaterra, onde apenas pi­
Rosina Pätz (1774-1848). Em 1814, na Universidade de Leipzig (filo­ ra cantora, Minna Planer (1809¬ sará em seu solo: seu destino é
esta se casa com o ator Ludwig Ge­ sofia e estética) e com o cantor de 1866), segue-a a Königsberg, torna- Paris.
yer (1780-1821), de quem Richard Santo Tomás (composição). Algu­ se primeiro maestro do teatro, casa- 1839-1842 Está instalado em Paris,
sempre pensará ser filho. Geyer, mas composições para orquestra e se com Minna. O teatro vai à fa­ onde suas dívidas aumentam e o le­
muito apegado ao menino, desper­ para piano. lência! Minna abandona-o, volta, vam para a prisão de Clichy. Fre-
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 74

qüenta Heine e Liszt, conhece Ber­ seu amigo e intérprete Hans von ce cinco meses depois, de uma cri­
lioz. Bülow. se cardíaca. Exéquias grandiosas
1842-1849 Instalação em Dresden. 1864-1865 Respondendo ao magní­ lhe são organizadas em Bayreuth
Triunfo de Rienzi (1842), fracasso fico e apaixonado convite de Luís no dia 18 de fevereiro, antes da
do Navio fantasma (1843). Entre­ I I , Wagner instala-se em Munique inumação no jardim de Wahnfried.
tanto, é nomeado Hofkapellmeis¬ e no Hochkopf, pavilhão de caça Renoir, com quem se encontrou em
ter. Estréia de Tannhäuser em do rei na montanha. Chega a na­ Palermo, fez seu retrato em 1882
1845; notável execução da Nona turalizar-se bávaro! Estréia de Tris­ (museu do Louvre).
sinfonia de Beethoven em 1846. tão, sob a direção de Bülow, cuja
1849 Apaixonado pelos aconteci­ mulher acaba de pôr no mundo obra Die Feen (Munique, 1888),
mentos revolucionários, que obser­ uma Isolda. Mas, sob a pressão dos Das Liebesverbot (Magdeburgo,
va "sem sentir, porém, o desejo de bávaros, Wagner tem de partir. 1836), Rienzi (Dresden, 1842), Der
misturar-se aos combatentes", im­ 1866-1872 Depois de ter errado du­ fliegende Holländer (Dresden,
prime panfletos destinados aos sol­ rante três meses (Genebra, Lyon, 1843), Tannhäuser (Dresden, 1845),
dados saxões: "Vocês estão de nos­ Avignon, Toulon, Marselha, Gene­ Lohengrin (Weimar, 1850), Der
so lado contra as tropas estrangei­ bra), instala-se em Triebschen, à Ring des Nibelungen (Bayreuth,
ras?" Essa iniciativa e suas rela­ beira do lago de Lucerna. Cosima 1876), Tristan und Isolde (Muni­
ções com "espíritos perigosos" (seu que, 1865), Die Meistersinger von
vem ter com ele aí, por vezes tam­
amigo Roeckel, companheiro de Nürnberg (Munique, 1868), Parsi­
bém Bülow e o rei Luís I I . Nietzs­
Bakunin, obrigado a fugir de Pra­ fal (Bayreuth, 1882). Várias obras
che (então professor na Basüéia) faz
ga, confiou-lhe a direção de seu corais, cerca de vinte Heder, algu­
numerosas visitas a Triebschen. Es­
jornal) provocam sua condenação. mas peças instrumentais e uma obra
tréia dos Mestres cantores em Mu­
Ameaçado de prisão, foge com literária considerável (libretos dos
nique, 1868, sob a regência de Bü­
Minna, seu cachorro e seu pa­ dramas musicais, autobiografia, en­
low. Em 1870, Cosima se divorcia
pagaio. saios sobre música, teatro, política,
e casa-se com Wagner, de quem já
1849-1858 Depois de ter ficado na religião, etc).
tem três filhos: Isolda (1865-1921),
casa de Liszt, que estreará Lohen­ Eva (1867-1943) e Siegfried (1869¬
grin em Weimar no ano seguinte, 1930).
instala-se em Zurique. Estadas em
Paris, Londres, Veneza, La Spezia, 1872 Instalação em Bayreuth e co­
Milão, Lucerna. Idilio com Mathil­ locação da pedra fundamental da
de Wesendonck (de 1853 a 1859), Festspielhaus. Luís I I contribui com
cujo marido é, com Liszt, o me­ 75.000 marcos. A magm'fica resi­
lhor patrocinador de Wagner. dência dos Wagner, Wahnfried, só
1858- 1859 Temporada em Veneza, será concluída em 1874.
no palácio Giustiniani. 1876 Inauguração do teatro, em
1859- 1862 Instalação em Paris. presença de Luís I I e do impera­
Após o escândalo da representação dor Guilherme I . O ciclo integral
parisiense de Tannhäuser e a rup­ do Ring des Nibelungen é apresen­
tura com Minna, instala-se tempo­ tado pela primeira vez. Viagem a
rariamente em Biebrich (à margem Roma, onde conhece Gobineau.
do Reno), depois em Viena e vjaja 1882-1883 Estréia de Parsifal em O crepúsculo dos deuses:
à Rússia. Crivado de dívidas, pen­ Bayreuth, sob a direção de Her­ transporte do corpo
mann Levi. Partida para Veneza, de Siegfried ao
sa em suicidar-se.
palácio dos Gibichungen
1863 Início da ligação com Cosi- onde Wagner se instala com sua fa­ (evocação da primeira
ma Liszt (1837-1930), mulher de mília no palácio Vendramini. Fale­ encenação, 1876).
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 76 77 O TEATRO MUSICAL

Der Ring des Nibelungen, a imensa tetralogía, liturgia wag¬ Thomas Mann, não pode ser idéia de um músico nato. A comple­
neriana típica, inspirou numerosas caricaturas, defesa mais ou mentaridade das artes é o próprio princípio de qualquer teatro mu­
menos feliz da inteligência contra o que a supera ou a ameaça. sical, mas sua "fusão" não tem sentido, implicaria um sincretis­
Um humor bastante fácil pode se dar livre curso, se considerar­ mo a que a música se recusa. Inebriado por concepções nebulo­
mos com um olhar frio os protagonistas dessa terrível história: sas, incapaz de escolher, Wagner pratica o amálgama, abrigándo­
a ambição vulgar do patriarca, um deus caolho, impotente e men­ se atrás do ditirambo dionisíaco, de que se crê o restaurador . 23

tiroso... a inconsciência do herói, um bárbaro louro e estúpido Seu amigo Nietzsche, na exaltação de uma poderosa comunhão,
que não tem medo de nada, nem mesmo de atravessar as chamas crê que o drama musical wagneriano substitui a antiga tragédia . 24

para conquistar sua tia, uma enorme atleta histérica... a mons­ Mas, como mostra Domenach (op. cit.), a identificação com os
truosa perversidade dessa divina família, em que o adultério, o grandes destinos trágicos está nos antípodas das ambições bur­
incesto, o roubo, a corrupção, o proxenetismo, os falsos jura­
guesas do século X I X . Além disso, o teatro moderno nada mais
mentos, a traição, o assassinato são moeda corrente e em que
é que o reflexo da sociedade, enquanto o teatro antigo era seu
todos são tão pouco senhores do destino, que perecem e o mun­
modelo, estético e moral.
do se encontra, ao cabo de quinze horas de representação, no
estado em que estava no início, antes da intervenção desses deu­ O próprio Wagner não acreditou por muito tempo que seu
ses malfeitores. drama musical podia ser uma arte total. Numa carta a Liszt de
16 de agosto de 1853, ergue-se contra essa concepção da sua arte,
A lenda dos Nibelungos pertence às tradições européias da que ele contribuiu para forjar. Aliás, os peregrinos de Bayreuth
cavalaria; está envolta numa atmosfera de humanismo, tolerân­ não parecem preocupar-se muito com a fusão das artes; para eles,
cia e poesia cortês. Nós a conhecemos por fontes medievais: es­ a Festspielhaus é, antes de mais nada, um templo da música. Mui­
candinavas (os Eddas e a Saga dos Wolsüngs) e germânica (o
tos não compreendem alemão e têm dificuldade em seguir a re­
Nibelungenlied, composto em Viena por um minnesänger da corte
presentação de uma ação confusa e pesada. Quando os netos de
dos Badenberg, no início do século XIII). Essa bela epopéia dos
Wagner reduzem o elemento cênico à sua expressão mais simples,
heróis francos e burgúndios do século V, que nos leva de uma
todo o mundo fica contente com essa "re-criação"; quando Pa­
ponta a outra do Reno e do Danúbio, e até da Islândia, onde
trice Chéreau, em 1976, se esforça (num espírito de aggiornamento)
reina a bela e invencível Brünnhilde, essa epopéia se torna, na
em dar importância ao visual, o público protesta.
pena de Wagner, a parábola titánica da pior ideologia naciona­
21
lista e racista . Mas, no Anel dos Nibelungos, pode-se ver o que Wagner pensou ter estabelecido o primado do drama. Con­
bem se entender: Siegfried poderia ser um herói revolucionário firmou com brilho o primado da música. Sua arte é essencialmente
"mais livre que os deuses" (Wagner), emancipando a mulher e musical: a música conduz o drama, define os caracteres, repre­
triunfando sobre as forças do dinheiro. Bernard Shaw vê no Anel senta as situações psicológicas. Trata-se, de fato, de pura drama­
22
um drama político moderno . Para os figurões do Terceiro turgia musical. É a beleza da sinfonia que nos faz aceitar que Tris­
Reich, Siegfried não é uma criatura hegeliana, mas o modelo tão e Isolda se pareçam com Siegfried e Brürmhilde, ou que Par­
do ariano louro, que os pequenos burgueses nacionalistas e bis- sifal erija em dogma a confusão dos valores. O gênio está na cria­
marckianos a que Bayreuth dava asas já haviam reconhecido. ção de uma hipnose, pela continuidade melódica e sinfônica, e
O patrocínio nazista nada acrescentou nem subtraiu à glória de no estabelecimento de associações psicológicas profundas pela re-
Wagner, o que subHnha o fracasso da sua obra enquanto arte miniscência dos temas condutores (leitmotive).
ideológica. A utilização de motivos característicos carregados de símbo­
Quanto ao princípio estético da fusão das artes, é uma uto­ los não é uma invenção de Wagner. Encontramos exemplos seus
pia confusa, que teria feito Mozart se sobressaltar. Como notou em Monteverdi, Bach, Mozart, Berlioz, Weber. Nunca, porém,
o princípio foi aplicado de maneira tão sistemática quanto no dra-
21. Sobre a lenda dos Nibelungos, ver: La chanson des Nibelungen, trad. Col-
leville e Tonnelat; Borges, Essai sur les anciennes littératures germaniques, Paris, 23. R . Wagner, L'art et la révolution, trad. Prod'homme, Paris, 1928.
1966; Béatrice Reynaud, "L'anneau du Nibelung", Musique en jeun? 22, le Seuil, 24. Mais tarde, ele sustentará o contrário. Os juízos estéticos de Nietzsche
1976 (excelente estudo comparado da tradição islandesa, do Nibelungenlied e da em geral são fúteis. É como filósofo que adota posições inversas ante o "caso
adaptação wagneriana). Wagner". Quanto a seu entusiasmo por Carmen: "Bizet não deve ser levado em
22. Β. Shaw, Le parfait Wagnérien, trad, francesa, Paris, 1933; reed. É d . conta, para mim. Mas, como antítese irônica de Wagner, ele produz um grande
d'Aujourd'hui, 1975. efeito" (Carta a Fuchs, 1888)!
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 78 79 O TEATRO MUSICAL

ma wagneriano, sobretudo no Anel dos Nibelungos. Os numero­ recitativos e árias, haviam fracassado; o gênio de Mozart não en­
síssimos motivos melódicos, harmônicos ou rítmicos (sessenta e veredou por esse caminho. Fidelio inaugura a ópera romântica
dois já foram enumerados no Crepúsculo) só têm sentido no seu sob a dupla influência de A flauta mágica e das Duas jornadas
contexto, em que se apresentam, aliás, sob formas diferentes. É de Cherubini: intensidade na expressão das paixões, riqueza da
pelo caminho do inconsciente que devem tocar o ouvinte, provo­ orquestra e dos coros, escolha de um tema romântico. A como­
cando no momento oportuno as associações de idéias desejadas. vente e forte obra de Beethoven conserva, porém, vínculos com
A lembrança de um tema em sua forma original importa menos a tradição e ainda não acentua características especificamente ale­
do que o caráter particular que a ação lhe confere. Não é o passa­ mãs. Undine, a única ópera de Hoffmann ainda representada em
do, mas o reflexo do passado no presente que os leitmotive expri­ 25
nossos dias , é uma obra original e misteriosa, em que a evoca­
mem, o que por vezes lhes dá um sentido profético. Os antiwag- ção da natureza é quase impressionista e em que a continuidade
nerianos não deixaram de sublinhar o aspecto demagógico do pro­ musical e dramática anuncia Wagner.
cedimento; mas sua eficácia é prodigiosa. Outros utilizaram-no É provável a influência de Undine sobre a composição das
depois dele com maior ou menor felicidade. Richard Strauss últimas óperas de Weber. Der Freischütz e Euryanthe são os mo­
empregou-o de maneira particularmente admirável no Rosenka­ delos da ópera romântica alemã, em contraste radical com a ópe­
valier. ra de Rossini, que triunfa então em todos os palcos da Europa:
À margem da reforma wagneriana e em contradição com temas lendários, sentimento da natureza, recurso ao maravilho­
seus princípios, os Meistersinger von Nürnberg trazem-nos de volta so, liturgia do amor redentor. Há no Freischütz um ritmo, uma
a um mundo freqüentável. Os sentimentos são de escala huma­ cor, que lhe conservam sua popularidade. Em contrapartida, a
na, a emoção é reconhecível, o humor e a generosidade protegem extrema pobreza do libreto de Euryanthe condena essa obra in­
de qualquer vulgaridade. Podemos identificar-nos com os heróis terminável ao esquecimento, muito embora seja musicalmente a
e sonhar com a deliciosa Eva, sem nos couraçarmos com virtu­ obra-prima de Weber e a prefiguração de Lohengrin.
des guerreiras; não precisamos de talismã para encontrar na lo- Depois de Wagner, o filão da ópera alemã parece ter-se es­
canda do velho Sachs os cheiros familiares, a bonomia sentimen­ gotado. Grandes músicos, como Brahms, Bruckner, Mahler não
tal, a sabedoria sorridente dos justos. Nenhuma névoa nos sufo­ abordaram o gênero; Hugo Wolf experimentou-o sem sucesso {Der
ca, nenhum sol negro tolda nosso céu, enquanto aplaudimos o Corregidor, 1895). A grande idéia wagneriana do drama musical
triunfo do espírito sobre a letra e do amor sobre o único malefí­ não suscita vocações, de sorte que o sagrado festival de Bayreuth
cio que lhe é oposto: o pedantismo burlesco de Beckmesser. A está destinado ao monoteísmo. Os mestres cantores são inimitá­
partitura é de uma riqueza e de uma diversidade magníficas: no­ veis, como o era A flauta mágica. É preciso esperar Richard
bre, irônica, fresca, erudita, terna com pudor, poderosa com co- Strauss e seu Rosenkavalier (1911), qualificado de "Komödie für
medimento. O tumulto geral em forma de fuga no segundo ato Musik", para redescobrir a mais elevada concepção do Singspiel
e o quinteto do terceiro ato são ápices do teatro musical... Não e, na personagem da Marechala, a sublime e humana grandeza
é a obra-prima dramática de Wagner, aquela em que sua mestria de Sarastro e de Hans Sachs.
é total?
Ampliação sublimada do Singspiel, Os mestres cantores A ópera italiana Na Itália, a ópera dá mostras, ao longo de to­
pertencem a um tipo de ópera romântica alemã, cujo caminho do o século XIX, de runa constante vitalidade. Cinco grandes com­
foi aberto pela Flauta mágica. Nem grandiloqüentes nem bu- positores garantem a sua perenidade: Rossini, Donizetti, Bellini,
fões, nem heróicos nem prosaicos, Os mestres cantores vinculam- Verdi, Puccini. Seu pequeno número é surpreendente se compa­
se ao drama pela gravidade dos temas, à comédia por seu de­ rado com a multidão de talentos que apareceram nos palcos ita­
senlace feliz, à sensibilidade romântica por sua vinculação às lianos do século X V I I I ; mas sua fecundidade e seu sucesso per­
lendas populares e por sua concepção moralista do triunfo do mitiram que a ópera italiana se renovasse continuamente e, não
amor. raro, assegurasse seu primado na cena lírica.

O exemplo da Zauberflöte revelou a si mesma essa ópera ale­


mã, decidindo sobre sua orientação até o aparecimento do drama 25. O grande E . T . A . Hoffmann (1776-1822), autor dos famosos Contos,
wagneriano. As tentativas de opera seria em língua alemã, com também foi magistrado, desenhista, crítico musical, regente e compositor.
CRONOLOGÍA DAS ÓPERAS: 1800 Les deux Journées de Cherubim, em Paris (Théâtre Feydeau).
SÉCULO X I X 1805 Fidelio de Beethoven, em Viena (An der Wien).
1807 Joseph de Méhul, em Paris (Opéra-Comique).
— La vestale de Spontini, em Paris (Ópera).
— / virtuosi ambulant! de Fioravanti, em Paris (Théâtre-Italien).
1809 Fernand Cortez de Spontini, em Paris (Ópera).
1812 La scala di seta de Rossini, em Veneza (San Moisè).
1816 / / barbiere di Siviglia de Rossini, em Roma (Argentina); com M . Garcia.
1817 La cenerentola de Rossini, em Roma (Teatro Valle).
1821 Der Freischütz de Weber, em Berlim (Schauspielhaus).
1823 Semiramide de Rossini, em Veneza ( L a Fenke).
— Euryanthe de Weber, em Viena (Kärntnertor); com Sontag.
1825 La dame blanche de Boieldieu, em Paris (Opéra-Comique).
1826 Oberon *de Weber, em Londres (Covent Garden).
1829 Guillaume Tell de Rossini, em Paris (Ópera).
1831 La sonnambula de Bellini, em Milão (Teatro Carcano); com Pasta.
— Norma de Bellini, em Milão (Scala); com Pasta e Grisi.
1836 Urna vida pelo czar de Glinka, em São Petersburgo.
1838 Benvenuto Cellini de Berlioz, em Paris (Ópera).
1843 O navio fantasma de Wagner, em Dresden.
— Don Pasquale de Donizetti, em Paris (Théâtre-Italien); com Grisi e Lablache.
1844 Hunyady László de Erkel, em Budapeste.
1845 Tannhäuser de Wagner, em Dresden (Teatro da Corte).
1847 Macbeth de Verdi, em Florença (Pergola).
1850 Genoveva de Schumann, em Leipzig (Teatro Municipal).
— Lohengrin de Wagner, em Weimar (Teatro da Corte); regência de Liszt.
1851 Rigoletto de Verdi, em Veneza ( L a Fenke).
1853 / / trovatore de Verdi, em Roma (Apollo).
— La traviata de Verdi, em Veneza ( L a Fenke). 1876 Der Ring des Nibelungen de Wagner, para a inauguração do teatro de Bay­ Uma apresentação no Scala
1854 Halka de Moniuszko, em Wilno. reuth (as duas primeiras apresentações haviam sido realizadas em Muni­ por volta de 1830.
1856 Russalka de Dargomyjsky, em São Petersburgo. que, em 1869 e 1870); regência de H . Richter.
1858 Le médecin malgré lui de Gounod, em Paris (Théâtre-Lyrique). Hubicka ("O beijo") de Smetana, em Praga.
— Orphée aux Enfers de Offenbach, em Paris (Bouffes-Parisiens). 1877 L'étoile de Chabrier, em Paris (Bouffes-Parisiens).
1859 Un bailo in maschera de Verdi, em Roma (Apollo). Samson et Dalila de Saint-Saëns, em Weimar.
— Faust de Gounod, em Paris (Théâtre-Lyrique). 1879 levgueni Onieguin de Tchaikovsky, em Moscou.
1862 Béatrice et Bénédict de Berlioz, em Baden-Baden. 1881 Les contes d'Hoffmann de Offenbach, em Paris (Opéra-Comique).
1863 Les troyens à Carthage de Berlioz, em Paris (Théâtre-Lyrique). 1882 Parsifal de Wagner, em Bayreuth; regência de H . Levi.
— Les pêcheurs de perles de Bizet, em Paris (Théâtre-Lyrique). 1884 Sigurd de Reyer, em Bruxelas ( L a Monnaie).
1864 Mireille de Gounod, em Paris (Théâtre-Lyrique). Manon de Massenet, em Paris (Opéra-Comique).
1886 Khovantchina de Mussorgsky, em São Petersburgo.
— La belle Hélène de Offenbach, em Paris (Théâtre des Variétés).
1887 Otello de Verdi, em Milão (Scala).
1865 L'africaine de Meyerbeer, em Paris (Ópera).
— Tristan und Isolde de Wagner, em Munique (Teatro da Corte); regência Le roi malgré lui de Chabrier, em Paris (Opéra-Comique).
Le roi d'Ys de Lalo, em Paris (Opéra-Comique).
de Bülow.
1890 O príncipe Igor de Borodin, em São Petersburgo.
1866 Prodaná nevesta ("A noiva vendida") de Smetana, em Praga.
A dama de espadas de Tchaikovsky, em São Petersburgo.
— L a vie parisienne de Offenbach, em Paris (Palais-Royal).
1892 Werther de Massenet, em Viena.
1867 Don Carlos de Verdi, em Paris (Ópera).
/ pagliacci de Leoncavallo, em Milão (Teatro dal Verme).
— Roméo et Juliette de Gounod, em Paris (Théâtre-Lyrique). 1893 Falstaff de Verdi, em Milão (Scala).
1868 Die Meistersinger von Nürnberg de Wagner, em Munique (Teatro da Cor­ 1896 La bohème de Puccini, em Turim (Teatro Reggio); regência de Toscanini.
te); regência de Bülow. Der Corregidor de Wolf, em Mannheim.
— La périchole de Offenbach, em Paris (Variétés). 1897 Fervaal de d'Indy, em Bruxelas (Monnaie).
1871 Aida de Verdi, no Cairo. 1898 Véronique de Messager, em Paris (Bouffes-Parisiens).
1872 O convidado de pedra de Dargomyjsky, em São Petersburgo. 1900 Tosca de Puccini, em Roma (Teatro Constanzi).
1874 Boris Godunov de Mussorgsky, em São Petersburgo. Louise de Charpentier, em Paris (Opéra-Comique); regência de Messager. Rubini, em
1875 Carmen de Bizet, em Paris (Opéra-Comique). 1902 Pelléas et Mélisande de Debussy, em Paris (Opéra-Comique). / puritani de Bellini.
F
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 82 83 O TEATRO MUSICAL

As qualidades desse teatro dedicado ao bel canto, sua gene­ ilustres Norma, mezzos ou contraltos como Maria Malibran e Ma­
rosidade melódica, a franqueza da sua expressão dramática, o brio rietta Alboni impunham-se não apenas por uma técnica vocal ir­
dos conjuntos, os atrativos cênicos, tudo o que, desde Montever­ repreensível em todos os registros, mas também por sua presença
di, fez o sucesso da ópera italiana se amplia, adaptando-se ao gosto cênica.
romântico. Os maus hábitos também subsistem, piamente manti­ Entre os homens, os castrados desapareceram do teatro no
dos pelos diretores de teatro, cuja tolice corrompe o gosto do pú­ fim do século X V I I I . A maioria dos primeiros papéis passa a ca­
26
blico com a ilusão de servir-lhe , e pelos grandes cantores, cuja ber, então, aos tenores; contudo, aos barítonos e aos baixos, ou-
soberania ainda não foi abolida, muito embora se tenha, desde trora limitados apenas às personagens de pais nobres, capitães da
então, a ambição de submetê-los às exigências do texto. guarda ou bufões, são confiados com freqüência cada vez maior
As extravagâncias que Marcello descrevia em seu Teatro alia os papéis principais, não só na comédia (Figaro, Leporello, Bar­
moda felizmente saíram de moda; porém, muitas grandes estre­ tolo, Falstaff), mas também no drama (Don Giovanni, Guilher­
las continuam achando nada ter a ver com a ação cênica. De uma me Tell, Rigoletto, lago). Alguns, como Luigi Lablache, um dos
representação do Demetrio de Hasse, em Mântua, Mozart escre­ maiores Leporello, alcançam a notoriedade de um tenor ou de uma
via a sua irmã: " A prima-dona canta bem, mas sem fazer movi­ soprano.
mento algum... Ela não pode abrir a boca e geme todos os sons. O século X I X exigirá de todos os tipos de voz cada vez mais
De resto, isso não é nenhuma novidade para nós." Em compen­ vigor, dando à "colocação da voz" uma importância primordial
sação, algumas cantoras logravam desempenhos extraordinários. na educação dos cantores. O desenvolvimento das grandes vozes
Mozart notou uma passagem cantada diante dele por Lucrezia dramáticas de soprano e de tenor, mais timbradas, poderosas e
Aguiari, dita "la Bastardella", que alcançava o d ó , e Leopold
6
27
extensas para o grave, em detrimento da leveza no agudo, susci­
Mozart afirmava que essa mesma artista possuía o sol — ou se­ 2
tará papéis de ópera que não teriam encontrado intérpretes satis- 0 Théâtre italien de Paris
ja, uma extensão de três oitavas e meia! fatórios no século X V I I I . . . em 1830, por Eugène Τ ami

cr
A mesma façanha seria renovada por Pauline Viardot, irmã
da Malibran, cuja voz cobria os registros de tenor, contralto e
soprano.
8"Λ

No entanto, os grandes cantores do século X I X não baseiam


mais seu prestígio no desempenho vocal ou na extravagância do
comportamento. Angelina Catalani (1780-1849) é a última sopra­
no virtuose da escola do século XVIII. Giuditta Pasta (1798-1865),
criadora dos papéis de Norma e da Sonámbula, é a primeira grande
cantora-atriz. Sopranos como Giulia Grisi ou Jenny Lind, duas

. 26. E m nome do público, exigem-se, por exemplo, desenlaces felizes. É as­


sim que, no Otello de Rossini, Otelo e Desdêmona se reconciliam no final, can­
tando o dueto "Cara, per te quest'anima", tirado de outra ópera de Rossini e
acrescentado in extremis.
27. O recorde nesse domínio pertence provavelmente à sublime Mado Robin,
que dava o r é com uma graça angélica e uma igual pureza tímbrica em toda a
6

escala vocal.
A L G U M A S ESTRELAS (criador do papel em Nova York;
DO CANTO NOS SÉCULOS seu filho, Manuel, fazia Leporello
e sua filha, Maria, fazia Zerlina).
XVIII Ε X I X

FAUSTINA BORDONI, 1695-1781, GIOVANNI BATTISTA RUBINI, 1794¬


mulher do compositor Hasse, sit>2 1854, mÍ2 a S13 (fá5 em falsete!).
a S0I4 com textura de mezzo-so­ Ottavio, Otello, Elvino (La son-
1
prano . Intérprete de Hasse e nambula; criador do papel), Artu­
Haendel. ro (/puritani; criador do papel).

FRANCESCA CUZZONI, 1700-1770, LUIGI LABLACHE, 1794-1858, mil a


dÓ3 a dós (soprano). Intérprete de mÍ4 (contra-mi do tenor!); textura
Haendel, Hasse, Porpora. de baixo cantante. Excelente Lepo­
rello, Malatesta (Don Pasquale; cria­
CATERINA GABRIELLI, dita "la dor do papel), Gerónimo (O casa­
Cochetta", 1730-1796, dÓ3 a fá mento secreto), Riccardo (Ipurita­
5

(soprano). Intérprete de Galuppi, ni) , Bartolo (O barbeiro de Sevilha). Adelina Patti.


Gluck, Traetta. Pede 5.000 duca­
dos para cantar na corte da Rús­ HENRIETTE SONTAG, 1806-1854, lá2
sia. Objetam-lhe que é o que ga­ a mis; textura de soprano, mas
nha um general: "Então, mandem canta Rosina (mezzo). Rosina, Se-
seus generais cantar!" miramide, Donna Anna, Euryan­
the, Suzanna... Muito bonita.
LUCREZIA AGUIARI, dita "la Bas¬
tardella", 1743-1783, sob a doe MARIA MALIBRAN, 1808-1836, fá2
(registro feminino completo, do a dós; sem dúvida textura de con­
contralto ao soprano ultraligeiro!). tralto (Angelina). Zerlina (criado­
Repertório de soprano ligeiro. ra do papel em Nova York), Leo­
nora (Fidelio), Angelina (La cene-
rentola), Norma, etc!
GiUDiTTA PASTA, 1798-1865, M2 a
rés; textura de mezzo. Rosina, Des-
dêmona (Otello de Rossini), criado­ PAULINE VIARDOT, 1821-1910, ir­
ra da Sonámbula e de Norma. Ex­ mã da precedente, dÓ2 a fás (3 oi­
tavas mais uma quarta, ou seja, a
celente atriz (a primeira, talvez).
extensão do tenor, do contralto e do
soprano!); textura de mezzo. Orfeu,
MANUEL GARCIA, 1775-1832, pai
Alceste, Rosina, Norma, Donna
de Maria Malibran e Pauline Viar-
Anna, Zerlina, Donna Elvira, Azu­
dot, tenor. Almaviva (do Barbeiro;
cena! Voz desigual, timbre medio­
criador do papel), Paolino (do Ca­
cre, volume insuficiente, mas uma
samento secreto), Don Giovanni extraordinária "presença".

1. A extensão das vozes só é conheci­ JENNY LIND, dita "o rouxinol sue­
da pelos testemunhos dos contemporâ­
neos. A extensão extrema das vozes hu­
co", 1820-1887, si2 a S0I5. Amina
manas vai de dói (sob a pauta na clave (La sonnambula), Norma, Lucia,
de fá) a rée (oitava superior do ré aci­ Beatrice di Tende... Muito bonita.
ma da pauta na clave de sol). Voz magnífica. Boa atriz.
GruLiA GRISI, 1811-1869, textura rita (na Ópera de Paris e na inau­
de soprano. Elvira (Ipuritani; cria­ guração do Metropolitan, em 1883).
dora do papel), Norma, Adalgisa Bonita e encantadora.
(Norma; criadora do papel), Lucre-
zda Borgia, Norma (Don Pasquale; ADELINA ΡΑΤΓΙ, 1843-1919, dÓ3 a
criadora do papel). fãs- Embora soprano ligeiro, canta
Zerlina, Cherubino, Aida, Marghe­
MARIETTA ALBONI, 1826-1894, fá2a rita, Leonora (77 trovatoré). É a pri­
dós (como Ebbe Stignani hoje); com meira grande cantora de quem pos­
textura de contralto. Grande voz. Ar- suímos gravações comerciais (reali­
sace (Semiramidé), Orsini (Lucrezia zadas quando ela tinha sessenta
Borgia), Angelina (Cenerentola). Se­anos): "Purdicesti"deLottie "Voi
gundo se diz, teria inclusive cantado chesapete" (ária de Cherubino). Es­
sem se preparar o papel de Don Car­ sas duas árias não permitem julgar
lo (barítono) em Ernani! a famosa leveza da voz, mas pode­
mos apreciar seu timbre, a qualida­
CHRISTINE NILSSON, 1843-1921, de da emissão... e a mediocridade do
sola a rés. Violetta, Elvira, Marghe­ estilo.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 88 89 O TEATRO MUSICAL

Rossini O herdeiro de Piccini, Paisiello, Cimarosa e Fioravanti va a lotar as salas havia mais de trinta anos, os romanos levaram
é Rossini. Aos vinte e cinco anos compôs suas duas obras-primas, ao fracasso a peça do jovem Rossini. Mas as apresentações se­
77 barbiere di Siviglia (1816), escrita em dezesseis dias, e Ceneren- guintes triunfaram e a obra tornou-se rapidamente, em toda a Eu­
tola (1817). Aos trinta e oito anos, com a missão cumprida, re­ ropa, a ópera-cômica mais popular de todos os tempos.
solve tirar uma aposentadoria confortável e, durante a segunda
metade da sua vida (morrerá aos setenta e seis anos), só compõe Nascido num 29 de fevereiro e falecido numa sexta-feira 13,
algumas obras religiosas e pequenas peças irônicas para piano. Rossim" estava sem dúvida fadado a um destino feliz; de qualquer I. It. T E A T R O AIXA. SCALA. 1

Quando O barbeiro de Sevilha estreou em Roma, em 1816, Ros­ modo, soube aproveitar sua "oportunidade". Depois do semifra- <Mf> * n ü fühbUM S I Map*. 1831 M Am. L C I T O U REQT.i.
' Dl 3UD. JUUBO-O nffOpm r
sini não era apenas o melhor compositor de óperas italianas, era casso de sua grande ópera romântica Guillaume Tell, em 1829,
o único! A maioria de seus predecessores morrera; alguns já não tomou uma das mais sábias decisões de sua carreira ao abando­
escreviam óperas fazia vários anos (Paisiello morreu alguns me­ nar os palcos, com rendimentos substanciais garantidos, pois o
ses depois, Zingarelli estava absorvido pelo ensino, e Fioravanti I L M O R O D l VENEZIA
gosto dos franceses pelas enormes óperas de Meyerbeer e pelas M mica ttxaia C I I K O T pg. r . B i r n n n f!o«at.
era maestro em Lisboa), outros haviam-se dedicado à ópera fran­ frivolidades de Auber e de Halévy talvez o levasse a trair seu ge­ DESDESICWA
PEBSOX.4CCI

cesa (Spontini, Cherubini). Nos teatros italianos da Europa, JlAUtin«


EJIíLIA . San«* M Ulli.
mo para ficar nas boas graças do público. De fato, sua obra não HODIUCO
OTELDO. ' , l i m i n e Fixiarv.

repetia-se indefinidamente o mesmo repertório. Em nome do cul­ cessou de ser popular e dela era extraída toda sorte de pots-pourris,
ELMtllO.
JACO . .
_ c u n e n IU K2.
ms\ nmiEsM:a
M\1IIM i c w z i a
DOT.E. .
to que dedicavam a Paisiello, cujo Barbiere di Siviglia continua- |] prfcw atta. rwada lad»|m
HAUT, Cn;i.IH.iI().
MAnCmi.VU-OLKíVVR.
la ( « «Π *JjT. Priera, atra luga un
arranjos e pastiches, não raro sem sua autorização, de modo que & A S S O λ QUATTRO (ra Ir affim driftft.ArraJnaia. -Jpt—rv ^arrmml,
, nmj-ati! r ZaatbfDi.

ele não foi o único a se enriquecer com seu talento. Conseguiu . ,


11
Í- Tcalr.. . .Cr. H


>m Srde tUou . til
a proeza de morrer ilustre, sem ter produzido nenhuma obra im­ a dVilla r deMra nrCTalria

GIOACCHINO ROSSINI soprano espanhola Isabella Colbran d'Antin, 2, e em sua bela casa de portante nos seus últimos quarenta anos. iSlä» PalcU di qnlat* fila.
ta SftOotcio úrnaórirrá mût « atta r
Pesaro, 29 de fevereiro de 1792 (1785-1845), amante do empresário campo em Passy, convida a alta ro­ No entanto, Rossini não é um romântico. Deve a simpatia
P a r i s , 13 de novembro de 1868
Barbaia; ela se instala com Rossi­ da parisiense para jantares suntuo­ do público e o apoio do mundo literário unicamente ao inalterá­
ni, com quem se casará em 1822, em sos (com freqüência, ele mesmo se vel bom humor que anima sua música, à qualidade da inspiração
Seu pai e sua mãe, respectivamen­ Bolonha. Viagens a Milão, Veneza encarrega da cozinha). Recebe os
melódica, ao esplendor dos conjuntos, ao atrativo cênico da sua
te trompista e cantora de teatro, e Roma, onde II barbiere di Siviglia mais ilustres representantes do
obra. Stendhal e Balzac (pouco competentes, mas representativos
estão perpetuamente em turnê. O é encenado em 1816. mundo literario e artístico, entre os
da elite intelectual) consideram-no o maior músico de sua época,
menino é entregue a si mesmo e 1822 Viagem a Viena, onde conhe­ quais Liszt, Wagner, Clara Schu­
a um charcuteiro de Bolonha, que ce Beethoven. mann, Adelina Patti. e Giuseppe Mazzini, herói do Risorgimento, esgota as hipérboles
o faz ter suas primeiras lições de 1823- 1824 Viagem a Paris e a Lon­ 1868 Em seu funeral solene, na em sua glorificação do grande músico, pouco suspeito de aspira­
música. dres (onde se apresenta principal­ igreja da Trinité, dezoito grandes ções revolucionárias... Não estão errados. No fim do grande pe­
mente como cantor). Por toda par­ estrelas do canto (dentre as quais ríodo criador de Rossini, não apenas ele não tem rival italiano,
1804-1809 Pequenos empregos de te, encontra partidários e adversá­ Alboni, Patti, Nilsson, Faure, Du- como Schubert morreu sem se fazer conhecer fora de Viena, We­
cantor ou de instrumentista no tea­ rios igualmente convictos. Os se­ prez) cantam com os alunos do ber é demasiado alemão para ser exportado (o Freischütz só será
tro de Bolonha. Aluno de Tesei gundos ficam desarmados com a Conservatório a prece de Moisés. representado na Ópera de Paris em 1841 e no Scala de Milão em
(canto) e do padre Mattei (compo­ polidez e o inalterável bom humor 1872), Berlioz é um jovem louco, Chopin, Schumann, Liszt e Wag­
sição) no Liceo Musicale de Bolo­ do compositor. obra Trinta e quatro óperas, mú­ ner ainda são iniciantes.
nha. 1824- 1836 Em Paris (28, rue Tait- sica religiosa (incluindo um Stabat Beethoven, porém, acaba de morrer e sua glória é universal.
1810 Sua primeira ópera, La cam­ bout). É diretor do Théâtre-Italien, Mater), inúmeras peças vocais iso­
Para muitos, a incorrupta italianidade de Rossini faz de sua obra
biale di matrimonio, representada compositor do rei e inspetor-geral ladas, hinos e cantatas de circuns­
a antítese da de Beethoven; e o próprio público vienense tende
em Veneza (San Moisè). do canto, até a revolução de 1830. tância, algumas peças sinfônicas,
1812-1813 Oito óperas representa­ 1836-1855 Vive em Bolonha, de- cinco quartetos de cordas, nume­
a preferir a alegria de Rossim à grandeza do ilustre compatriota
das em Veneza e Milão, entre as pois em Florença (1847). Viúvo em rosas peças humorísticas para que cumularam de honrarías. Fidelio só será representado em Pa­
quais La scala di seta, L 'italiana in 1845, torna a casar-se dois anos de- piano. ris, no Théâtre-Lyrique, em 1860, e no Scala de Milão em 1927!
Algert e Tancredi. pois com Olympe Pélissier, atriz e No entanto, uma vez dissipada a polêmica provocada por parti­
1815-1822 Diretor musical do tea­ modelo de Vernet. dários e adversários da ópera italiana, O barbeiro de Sevilha per­
tro San Carlo, de Nápoles. Mal che­ 1855-1868 Em Paris. Em seu apar­ manece uma das obras-primas da história do teatro musical, e pá­
ga, apaixona-se pela prima-dona, a tamento, na rue de la Chaussée ginas como o final do primeiro ato ou o quinteto do segundo são
momentos do mais raro prazer artístico.
91 O TEATRO MUSICAL

Γ-1-, ·~3-,

Ma.tcáet- hisee-ea- to-re,see.cato _ re, n,3_ledet_ tosecca-to_re,s*t-cato

COMTE

Bua _ «a se-ra,

K l - tedet_to sec.ca. to_ re,sec.cata _ re, ma_ledet_to5ecca_to-.re,se:-Cato

BART,

COMTE

qua, btlo_nase-ra,rT,íosí -^gnar^buonasc- ra,miosi_ giMJ.ne btjana se-ra,ir,iíi,i.-gno-re 5e(mo pacee sa_nt_ta.
f J t

se.ra, bi/o-na se » r a , mio st _ gno_r£, p a _ ce, soti-twe. sa _ nt _ ta.

da-te, buo „ na se _ r a , m»o si - gno - re pot do - man si par - le

Rossini, O barbeiro de Sevilha, quinteto do segundo ato.


Rossini, foto de Carjat. A escrita de Rossini parece pouco ousada para a época. Mas
algumas inovações interessantes tornam-se patrimônio da ópera culo X V I I I , se excetuarmos Gluck e Mozart. A admirável aber­
italiana. Muito antes de Wagner e Verdi, ele imagina, por exem­ tura do Barbeiro de Sevilha, que parece anunciar de maneira
plo, inverter as relações usuais entre a orquestra e as vozes: os tão perfeita o espírito da comédia, é tirada de uma excelente
instrumentos cantam então a melodia, que os personagens pon­ opera seria de Rossini, Elisabetta regina d'Inghilterra, encenada
tuam com interjeições, por vezes com frases curtas recto tono. Em no ano precedente (1815) em Nápoles, e também convém a essa
^ Guillaume Tell, ele adota o tipo de abertura-argumento que Bee­ tragédia — milagre da inefável invenção, nova prova da indeter-
thoven tinha concebido para Fidelio (Leonor I I e III), mas que minação da expressão musical! Em Elisabetta, Rossini arrisca
não utilizou: espécie de poema sinfônico, encarregado de criar a aos vinte e três anos a suprema audácia: escreve com todas as
atmosfera do drama, apresentando uma síntese dos temas psi­ notas os ornamentos, passagens e cadências, pondo fim ao privi­
cológicos. Até então, Rossini considerava a abertura, a "sinfo­ légio que os cantores se reservavam de improvisar esses embele­
nia", uma espécie de cortina musical, o que era habitual no sé- zamentos.
93 O TEATRO MUSICAL

Criticam-no obstinadamente pela pobreza da polifonia e da


orquestração. É um absurdo: um canto tão perfeito e sutil só po­
de ser acompanhado por um murmúrio. Bellini considerava mo­
destamente que "os artifícios de composição cortam o efeito das
situações". Todavia, sua harmonia é irrepreensível e os raros
exemplos de escrita contrapontística não revelam nenhuma fra­
queza. As preciosas antologias do bel canto que são La sonnam-
bula (Milão, 1831), Norma (Milão, 1831) elpuritani (Paris, 1835)
não carecem de interesse dramático, como sempre se diz. A bele­
za da melodia belliniana não é mais gratuita do que a do verso
raciniano; ela traduz uma paixão contida, um lirismo interior que
tira sua força, por vezes seu caráter trágico, de situações dramá­
ticas intensas. Mas o puro deleite vocal polariza a atenção de mui­
tos melómanos, em detrimento do interesse cênico e do sentido
geral da obra.
No entanto, Bellini é o mais puro representante do roman­
tismo italiano. Foi ele o primeiro a cortar qualquer vínculo com
a ópera do século X V I I I ; ele despertou o interesse por um teatro
musical humano e sentimental, no bom sentido do termo, em que
o canto se torna a expressão natural e, em pouco tempo, familiar
Bellini, aguada de Horace Vernet. Donizetti, Bellini As obras-primas de Gaetano Donizetti (1797¬ de sentimentos fortes e comoventes.
1848), L'elisir d'amore e, sobretudo, Don Pasquale (composto em
dez dias!), seriam dignas de Rossim. Mas sua incrível rapidez de Verdi De Nabucco (1842) a Falstaff (1893), a obra de Verdi co­
trabalho e sua atividade excessiva (era com freqüência o ensaia- bre o meio século que viu a criação dos dramas Uricos de Wag­
dor, o diretor de cena e, por vezes, o libretista de seus espetácu­ ner, do Fausto de Gounod, dos Troianos em Cartago de Berlioz,
los) não lhe permitiram edificar uma obra homogênea. De 1830 de Boris Godunov, de Carmen... Longo rasto de luz num céu ator­
a 1843, seu grande período de atividade criadora, escreveu e en­ mentado, essa obra nunca se desviou de sua trajetória sob o efei­
cenou quarenta óperas, sérias e cômicas, de qualidade desigual. to do fervilhamento das idéias estéticas.
Mas, se freqüentemente escreve suas partituras de maneira por Como Wagner, mas numa perspectiva diferente, Verdi rom­
demais apressada, o brio, a adequação vocal, a inteligência cêni­ pe com certa concepção elitista da música que impõe ao ouvinte
ca são irresistíveis. Encontramos nessa música fácil um excelente — mesmo que se trate do anônimo ocupante de um lugar pago
antídoto para o sublime. num teatro público — as convenções de uma cultura musical mi­
O gênio de Bellini é bem diferente. Morto aos trinta e quatro noritária. A ópera de Verdi consegue ser popular sem demagogia
anos, escreveu relativamente pouco, mas sempre com extremo cui­ vulgar nem concessão a uma moda. Ela age sobre os motores ins­
dado, ao contrário dos outros compositores falecidos jovens, que tintivos da emoção graças à simpücidade de suas estruturas musi­
quase sempre se apressaram, como se tivessem tido a premonição cais, à beleza natural do canto que faz suas as paixões fortes e
de seu destino. Com um requinte minucioso, cria melodias subli­ verdadeiras, ao eco perturbador do coração que representa a mul­
mes que muito impressionaram Chopin e certamente orientaram tidão anônima da qual o herói extrai sua humanidade.
sua inspiração. O próprio Bellini estudara os quartetos de Haydn A nobreza e a simplicidade da obra de Verdi são um reflexo
e de Mozart para buscar neles a naturalidade da invenção melódica. da sua personalidade. Sua generosidade, sua grandeza moral apa­
recem não só em sua música (em que se exprime com tanta fre­
qüência o sentimento profundo da dor), mas também em nume­
rosas realizações desinteressadas: obras de irrigação ou de drena­
gem, plantações, construção de um hospital, etc. Camponês pou­
co culto, mas sensível e entusiasta, não inventou nem doutrina,
di _ va che i _ n a i - _ gen _ __ ti nem sistema, e desconfia tanto dos programas estéticos como das
Norma.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 94

GIUSEPPE VERDI 1860-1865 Participação ativa na vi­ 1888, Boldini pinta seu magnífico re­
da política. É um dos embaixadores trato de Verdi.
L e R o n c ó l e (Parma), 10 de outubro de 1813
M i l ã o , 27 de janeiro de 1901
que levam a Vítor Emanuel os resul­ 1897 Morte de Giuseppina. Verdi,
tados dos plebiscitos. Com o apoio que acaba de terminar seus Pezzisa-
Filho de Carlo Verdi, estalajadei- de Cavour, é deputado por Fidenza cri, abandona quase toda atividade.
ro na aldeia de Roncóle, na comu­ e participa em Turim da proclama- 1901 Morre durante uma estada em
na de Busseto, e de Luisa Uttini, ção da Unidade. Viagens aLondres, Milão, em conseqüência de um ata­
fiandeira. a Paris, a São Petersburgo (La for­ que. Legou seus direitos autorais a
1823-1829 Graças à proteção de za del destino). uma das obras filantrópicas que fun­
Antonio Barezzi, comerciante e 1865-1867 Em Paris, onde são re­ dou: a "Casa di riposo per musicis-
bom músico amador, Verdi estuda presentadas a nova versão de Mac­ t i " , que acaba de ser construída en­
no ginnasio de Busseto e na Escola beth (1865) eDon Carlos (12,61). Vá­tão em Milão e onde é inumado.
de Música da cidade. rias estadas em Gênova.
1829-1833 Participa ativamente da 1871 Representação àeAidano no­ obra Vinte e seis óperas, dentre as
vida musical local, compõe (nume­ vo teatro do Cairo, para celebrar quais Rigoletto (Veneza, Fenice,
rosas partituras, todas destruídas (com certo atraso) a abertura do ca­ 1851), II trovatore (Roma, Apollo,
mais tarde), instala-se em casa de nal de Suez. 1853), Latraviata (Fenice, 1853), Un
seu protetor e se apaixona por sua 1873 A morte do grande escritor bailo in maschera (Roma, Apollo,
filha, Margherita Barezzi (1814¬ Alessandra Manzoni afeta profun­ 1859), La f orza del destino (São Pe­
1840), com quem se casará em 1836. damente Verdi, que compõe o Ré­ tersburgo, 1862), Aida (Cairo, 1871,
1833-1835 Graças à generosidade quiem em sua memória. e Scala de Milão, 1872), Otello (Sca­
de Barezzi, estuda em Milão com 1878-1893 Colaboração com Boito: la, mi), Falstaff (Scala, 1893). Ré­
Lavigna. Ao voltar, é nomeado lenta gestação de Otello e de Falstaff, quiem, quatro Pezzisacri. Um quar­
Maestro di Musica da comuna de que estrearam no Scala de Milão, res­ teto de cordas (1873), vinte melo­
Busseto. pectivamente, em 1887 e 1893. Em dias, duas cantatas de circunstância.
1839-1843 Primeiras óperas repre­
sentadas no Scala. Uma delas, Na-
bucco (1842), estende seu renome
para fora da Itália, e o espírito pa­
triótico que inspira essa obra faz do influências que poderia sofrer. Preocupa-se acima de tudo com Verdi, por Boldirü.

músico o cantor do Risorgimento. a sinceridade da inspiração, que, para ele, é a condição e a justi­
Em 1840, ele perde a esposa e os ficação da arte.
dois filhos. O espírito patriótico com que são tratadas algumas das suas
1847-1849 Sua base é Paris, de on­ primeiras óperas, em particular Nabucco (1842), faz dele um porta-
de viaja à Itália e à Inglaterra. bandeira do Risorgimento. Ele subscreve o ideal revolucionário
1849 Compra perto de Busseto a da unidade italiana, a que permanece fiel. A ação de Garibaldi
propriedade de Santa Agata, que se o entusiasma, e os acontecimentos de 1859-1861 projetam-no na
tornará a Vila Verdi. Aí se estabe­ vida política. Seu nome torna-se um símbolo e, quando os muros
lece em 1851 com a cantora Giusep- são cobertos com "Viva VERDI", os patriotas traduzem por " V i ­
pina Strepponi (1815-1897), com va Vittorio Emmanuele Re D'Italia". Quando o ducado de Par­
quem se casará em 1859. Ela será ma vota sua união com o Piemonte, Verdi é um de seus embaixa­
uma companheira exemplar. dores em Turim, e Cavour insistirá para que o músico faça parte
1853-1855 Após o fracasso ã\ Tra- do primeiro parlamento italiano. Artista "engajado", Verdi não
viata em Veneza, instala-se de novo quis fazer de sua obra um instrumento de propaganda, mas tam­
em Paris, onde apresenta uma ópe­ pouco procurou fazer com que não o fosse. Sua regra constante
ra francesa, Les vêpres siciliennes. é a sinceridade na independência.
Verdi, em cura em Montecatini.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 96

As três obras-primas que Massimo Mila chama de "trilogia


28
popular" e que constituem o primeiro ponto culminante da sua
obra correspondem a essa exigência: são Rigoletto (1851), 77 tro-
vatore (1853) e La traviata (1853). Em cada uma dessas três ópe­
ras românticas, uma heroína trágica — respectivamente Gilda,
Leonora e Violetta — morre por amor. Essas personagens, a que
a música confere uma profunda humanidade, são garantias, ao
mesmo tempo, do sucesso popular e da universalidade dessas ópe­
ras. Os três dramas acabam mal, na consumação de um destino
inexorável; as três personagens "simpáticas" são vítimas. No en­
tanto, seu sacrifício é o que provoca a emoção; longe de decep­
cionar o público, a tragédia abala-o graças à sinceridade de sua
expressão musical. Na Traviata, Verdi teve a audácia de repre­
sentar uma situação trágica e de colocar um problema moral, num
drama atual, representado com figurinos modernos. A princípio,
a obra é mal recebida por um público acostumado à ópera com
figurinos "de época"; ainda pior, por ser o elenco bem medío­
cre. Um ano depois, porém, o mesmo público veneziano reserva-
lhe uma acolhida triunfal.
O segundo ápice da ópera verdiana é Aida (1871), grande tra­
gédia lírica popular, nobre e apaixonada, modelo consumado da
ópera romântica italiana. Mais uma vez, a fatalidade trágica pesa
sobre o amor e uma grande heroína sacrifica sua vida. Tudo é
claro, simples e forte, o que suscita a ridícula crítica de "facilida­
de". O êxito de Aida é uma façanha, porque Verdi utiliza as me­
lhores receitas do teatro musical, sem trivialidade nem vulgarida­
de, com uma genial espontaneidade que forçará a emoção do mais
cético, se a obra for bem cantada e bem encenada. Nem o caráter
espetacular da obra, nem seu exotismo (muito bem-vindo, sem
dúvida, pois os egípcios fizeram de Aida uma ópera nacional) pro­
cedem de cálculos demagógicos. Eles são ditados por um instinto
dramático absolutamente puro, que, dessa vez, encontra no mo­
numental e na defasagem histórica e geográfica o contexto mais
29
favorável à expressão de sentimentos universais .
Últimos pontos altos da obra de Verdi, Otello (1887) e Fal-
staff (1893), com libretos de Boito, representam o apogeu do dra­ pretação. Assim, o velho mestre parece recomeçar tudo de no- Gabriel Bacquier em Falstaff
ma lírico e da ópera-cômica italianos. Mas, ao mesmo tempo, rom­ vo. Criando uma declamação melódica original da língua italia- (festival de Aix, 1971).
pem com a concepção popular das obras precedentes; inauguram na, ampliando a orquestra e fazendo-a desempenhar, a exemplo
uma arte de extrema consciência, que exige a perfeição na inter- de Wagner, um papel dramático importante, Verdi proporciona
os modelos de um teatro musical por vir. Aos setenta e quatro
28. Massimo Mila, II melodramma di Verdi, Bari, 1933. e aos oitenta anos, esse duplo testamento artístico atesta a ciên­
29. Se a tragédia podia renascer na ópera, como Nietzsche previa (ver aci­ cia que ele adquirira pouco a pouco, sem ter cessado de enun­
ma), isso tinha de ocorrer na Itália. Uma representação de Aida nas termas de
Caracalla (Roma) ou na Mostra d'Oltremare (Nápoles) é um grande ritual estivai,
ciar sua vacuidade! Tão perfeita associação entre a música e
comovente como um sacrifício antigo, ainda que a metade do texto seja levada a linguagem dramática não fora realizada na Itália desde Mon­
pelo vento. teverdi.
99 O TEATRO MUSICAL

no mesmo ano em Covent Garden 1917 Estréia de La rondine em


e no Scala (regência de Toscanini). Monte-Carlo, com Tito Schipa.
1904 Estréia de Madama Butterfly 1918 Estréia de II Mítico (II tabar­
em Milão (Scala): fracasso estrepi­ ro, Suor Angelica, Gianni Schlecht)
toso e, três meses depois, triunfo em Nova York (Metropolitan), com
em Brescia, sob a regência de Tos­ Claudia Muzio, Géraldine Farrar e
canini. Giuseppe de Luca.
1905 Para o aniversário da morte 1924 Puccini é operado em Bru­
de Verdi, Puccini apresenta um Ré­ xelas de um tumor na laringe.
quiem para três vozes e órgão, na Morre de uma crise cardíaca cin­
Casa de Repouso para os músicos co dias depois. A partitura de
(fundada por Verdi em Milão). Turandot, que ficou inacabada, é
Viagem à Argentina (festival Puc­ terminada com respeito e talento
cini). por Franco Alfano (1876-1954). A
1907 Viagem a Nova York: Mada­ estréia se dá no Scala de Milão em
ma Butterfly no Metropolitan, com 1926, sob a regência de Tosca­
Geraldine Farrar e Caruso. Enorme nini.
sucesso. Puccini.
1910 Estréia de La fanciulla del
West em Nova York (Metropoli­ obra Doze óperas, uma missa, Ca­
tan), com Emmy Destinn e Caruso, priccio sinfônico, algumas obras de
sob a regência de Toscanini. Novo música de câmara, algumas melo­
triunfo. dias.
Cena final de Turandot.

GIACOMO PUCCINI 1880-1883 Aluno do Conservatório


Lucca, 22 de dezembro de 1858 de Milão, com uma bolsa da rainha Puccini Puccini será o sucessor de Verdi. Mas não irá muito
Bruxelas, 29 de novembro de 1924
Margherita. Seu mestre é Ponchiel- mais longe. Se com freqüência se exagerou seu modernismo,
li, o compositor de La Gioconda. foi porque suas obras suscitaram um entusiasmo e uma hostili­
Os Puccini eram músicos de pai pa­ 1884 Sua primeira ópera, Le villi, dade desmedida e porque, desde a Incoronazione di Poppea,
ra filho, desde Giacomo (1712¬ estréia em Milão (Teatro dal Ver­ a ópera italiana não se distinguira muito pela audácia. Não se
1781), trisavô do üustre compositor, me), com o apoio de Boito e do edi­ diminui o gênio dramático de Puccini quando se coloca sua obra
que escreveu umas quinze pequenas tor Ricordi. numa perspectiva correta. Essa obra é contemporânea de Pel-
óperas ou divertimentos e foi orga­ 1891 Graças a seus primeiros direi­ léas (1902, entre Tosca e Madama Butterfly), de Jenufa (1904),
nista da catedral de San Martino, tos autorais, instala-se na Torre dei de Salomé (1905), do Rouxinol de Stravinsky (1914), do Caste­
em Lucca, cargo ocupado por seus Lago, onde funda com amigos fan- lo de Barba-Azul de Bartók (1918), de Erwartung de Schönberg
descendentes até Michèle (1813¬ tasistas o Clube da Boêmia. Desco­ (1924), de Wozzeck (1925)... No entanto, não se deve cair no
1864), pai do grande Puccini. brirá aí os prazeres da caça e do au­ excesso inverso e afirmar que Puccini permaneceu, indiferente
1867-1873 Estudos no seminário de tomóvel. às aquisições técnicas de seu tempo: ele foi ouvir Pierrot lunaire
Lucca. Soprano no coro da ca­ 1893 Estréia de Manon Lescaut em em Florença e estava em contato com os movimentos musicais
tedral. Turim (Teatro Regio), primeiro de vanguarda. Em suas últimas obras, a escrita harmônica por
1874-1879 Aluno do Istituto Musi­ grande sucesso. vezes extravasa do âmbito da tonalidade, como o próprio Schön­
cale de Lucca. Compõe para seu 1896 Estréia de La bohème, em Tu­ berg mostrou.
exame final uma bela Messa di Glo­ rim (Teatro Regio), sob a regência
j-'-IPJIGEPlflCi/lPFOHEE .'· Infelizmente, a obra de Puccini é mal conhecida. As obras
ria. Em 1875, tem a revelação da de Toscanini.
1' T ; K L ; C r \ ^ ö i P ^ f V MUSICS DI , Aida em Pisa: não será organista, 1900 Estréia da Tosca em Roma mais populares — La bohème (1896), Tosca (1900) e Madama
mas compositor de óperas. (Teatro Costanzi). Reapresentação Butterfly (1904) — costumam ser desfiguradas pela ênfase dada
a certas "facilidades". As obras mais originais — La fanciulla
2LO-mCQÍ?I21¿.CrEDn!DKl
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 100

del West (1910) e Turandot (póst., 1926) — raramente são execu­


tadas fora da Itália. Enfim, a glória de Puccini baseia-se num mal-
entendido: repetem-se as páginas tidas como "grandes árias" (ária
de Mimi, prece da Tosca, ária de Butterfly "No mar calmo"),
sem se ver que esses episódios líricos secundários são indissociá­
veis do contexto, numa arte que rompeu radicalmente com o bel
canto.
Há de tudo em Puccini. A forma geral das obras e seu cará­
ter moral são os dos dramas românticos; o estilo de declamação
musical é\o prolongamento do de Otello, pelo menos até Butterfly;
é criado um expressionismo italiano, em que a continuidade não
está mais no canto, mas na orquestra; a harmonia assimila com
prudência as últimas aquisições (influência de Debussy a partir
de La fanciulla del West)... No entanto, o realismo dos temas,
seu caráter de "crônica" designam Puccini como o melhor repre­
sentante de um pretenso "verismo" musical. Essa expressão in­
feliz, tomada da literatura, pode explicar o tema, mas não a arte,
que não é de essência realista. Não pode haver música verista fo­
ra da improvisação descontrolada. Portanto, não há escola musi­
cal verista. Aliás, Puccini é tão superior a Mascagni (Cavalleria
rusticana, 1890), Leoncavallo (Jpagliacci, 1892) e Giordano (An­
drea Chénier, 1896), principais músicos a reivindicar o verismo,
que a comparação é impossível.
De resto, se os temas dos dramas puccinianos seguem a mo­
da do naturalismo, se a ação é realista, os personagens são bas­
tante sumarios e a partitura não acrescenta realismo algum a seu
caráter. Com freqüência basta um traço do caráter, a que a músi­
ca dá o máximo de intensidade, o traço que os faz agir: amor, ter gênio para manter com eficácia um clima de incerteza ou de Maria Callas em Tosca
vingança, crueldade, coragem, desespero, fidelidade... Eles nos
angústia diante de um público geralmente informado sobre o de- (ópera de Paris, 1965).
interessam menos pelo que são do que pelo que fazem. Em com­
senlace do drama, e isso com meios puramente musicais. Nenhum
pensação, o músico tem o maior cuidado ao criar a atmosfera do
dos libretistas de Puccini é um Hitchcock; sem a música, suas pe­
drama. Com motivos curtíssimos, consegue introduzir uma ten­
ças não suscitariam a menor emoção.
são dramática, uma angústia que ele parece compartilhar. Quan­
do o exotismo do tema requer, ele recolhe melodias japonesas,
chinesas ou americanas, cujas fórmulas características utiliza com A ópera na França Na primeira metade do século X I X , a gran­
30
zelo de veracidade . Puccini distingue-se sobretudo por criar o de ópera é, na França, obra de compositores estrangeiros. Desde
pressentimento dramático, a expectativa febril do desenlace, o que a morte de Rameau, os compositores franceses perderam a veia
hoje se chama de "suspense" (o ato I I de Tosca é paradigmáti­ trágica e, enquanto Gluck lhes propunha um novo modelo de dra­
co). É sobretudo nisso que ele é moderno e genial; pois é preciso ma musical, eles se especializavam na ópera-cômica, síntese na­
cional da comédia com arietas e da ópera-bufa napolitana. Mas
o período romântico assiste ao declínio do gênero, apesar de um
30. Como Verdi, Puccini tampouco merece a crítica de exotismo "barato".
Ambos são conscienciosos. A música dos outros continentes não era difundida derradeiro êxito em 1825 : La dame Manche de Boieldieu. Essa obra
na Europa, como o é hoje pelo disco, em sua forma autêntica. A notação, fatal­ encantadora é um modelo de ópera romântica francesa, numa for­
mente aproximada, ainda assim era sugestiva de um clima musical estranho e, por ma emprestada da ópera-cômica, o que já anunciavam Tom Jo­
conseguinte, inquietante, como a imaginação dos músicos ocidentais podia então
conceber.
nes de Philidor, Le déserteur de Monsigny, Richard Coeur de Lion
de Grétry, Joseph de Méhul.
A OPERA DE PARIS 1764-1770 Sala das Tulherias, en­
Suas idealizações sucessivas tre os pavilhões do Relógio e de
Marsan. Incêndio...
1669 Por decreto real, Perriri e 1770-1781 Sala do Palais-Royal, re­
Cambert obtêm o privilégio de ex­ construída no mesmo lugar. Gran­
plorar uma Academia de Música: de sala circular capaz de conter
sala do Jeu de Paume de la Bouteil­ 3.000 pessoas. Novo incêndio...
le, na rue du Fossé (corresponde ho­ 1781 Salle des Menus Plaisirs, na
je aos números 42-44 da rue Maza­ rue Bergère.
rme). 1781-1794 Sala da Porte Saint-
1671 A Academia é inaugurada Martin. A Opéra-Comique se ins­
pela Pomone de Cambert, tocada tala em 1783 na Salle Favart, duas
oito meses sucessivos. A trupe é vezes incendiada (1838 e 1887) e
composta de 9 atores-cantores, 15 duas vezes reconstruída no mesmo
coristas e uma orquestra de 13 mú­ lugar. Em 1791, proclamação da li­
sicos. berdade dos teatros.
1672 Lully apodera-se do privilégio 1794-1820 Salle Montansier, na rue
(ver t. 1, p. 471) e instala a Acade­ de la Loi (rue de Richelieu, diante
mia no Jeu de Paume du Bel-Air da Bibl. nat.), com o nome de Théâ­
(13, rue de Vaugirard). tre des Arts. Esse teatro é demoli­
1673-1763 Sala do Palais-Royal, do depois do assassinato do duque
entre a rue des Bons-Enfants e os de Berry em 1820. Durante a ocu­
jardins do Palais-Royal (hoje, 1 e pação de Paris, em 1814, o impe­
rador da Rússia e o rei da Prússia
2 da rue de Valois, via aberta em
assistem aí a uma representação de
1784). Essa sala era ocupada pela
La vestale de Spontini.
Os incendios da Ópera:
trupe de Molière, que Lully expul­
1821-1873 Sala da rue Le Peletier.
a sala do Palais-Royal, 1763, sa. Os comediantes franceses insta­
Destruída por um incêndio...
a da rue L e Peletier, 1873. lam-se no teatro Guénégaud, depois
A Ópera de Charles Gamier
1861-1874 Apesar de uma forte
na rue Neuve-du-Fossé (atual 14 da
em construção, 1870. oposição e inúmeras dificuldades,
rue de l'Ancienne-Comédie). A sa­
Charles Gamier constrói o teatro
Abaixo, a Ópera da Porte la do Palais-Royal é destruída por
atual. Superfície no solo: 11.237
Saint-Martin (1781-1794). um incêndio em 1763. 2 2
m ; palco: 1.200 m (todo o edifí­
cio da Comédie-Française caberia
no espaço reservado ao palco e aos
bastidores).
1874-1875 Salle Ventadour, no fim
da rue Monsigny.
1875 Inauguração do "Palais Gar­
nier": trechos de óperas na moda.
1876 Primeira ópera estreada no
novo teatro inundado de jóias:
Jeanne d'Arc de um certo Auguste
Mermet (1810-1889)... "Por uma
graça especial e uma subvenção do
Estado, esse teatro pode apresentar
qualquer coisa..." (Debussy).
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 104

Mas o exemplo não foi seguido. À parte algumas árias bem-


sucedidas, as óperas-cômicas de Hérold (1791-1833), Halévy
(1799-1862), Auber (1782-1871) e Adam (1803-1856) não agüen­
tam a comparação com as de seus predecessores, e suas óperas
sérias só escapam da extrema trivialidade pelo recurso aos artifí­
cios mais pomposos da arte do canto. Apesar da graça leve do
Domino noir de Auber, é de espantar que essa obra tenha larga­
mente ultrapassado em Paris a milésima representação; mais di­
fícil ainda é compreender que La muette de Portici tenha conse­
guido ser apresentada quinhentas vezes na Ópera, ou que La jui­
ve de Halévy tenha triunfado nesse teatro no mesmo ano da ad­
mirável Ipuritani de Bellini (1835). Dessa última obra, os france­
ses só recordarão o duo marcial do segundo ato, para fazer dele
uma marcha militar.

Até a entrada em cena de Berlioz e Gounod, os principais


compositores de óperas francesas, desde Gluck, foram estrangei­
ros. Luigi Cherubini (1760-1842), florentino estabelecido desde
1786 em Paris, torna-se em 1822 diretor do Conservatório. Gas­
pare Spontini (1774-1851), em Paris de 1803 a 1820, é maestro
do Théâtre de l'Impératrice, onde dirige em 1811 a estréia da mon­
tagem francesa de Don Giovanni na versão original (com Mali­
bran, Grisi e Sontag nos papéis femininos, Garcia como Don Gio­
vanni, Lablache como Leporello). Giacomo Meyerbeer (1791¬
1864), filho de um rico banqueiro berlinense, compositor de
sucesso, afável e empreendedor, triunfa em toda a Europa e mo­
nopoliza a cena parisiense a partir de 1831...
A obra de Cherubini é dominada por Médée, tragédia extre­
mamente monótona cujo principal interesse é a violência dos sen­
timentos expressos pela heroína, não obstante a corajosa austeri­
dade da declamação musical, e Les deux journées, drama natura­
lista em que sentimentos de simples humanidade se exprimem nas
formas mais familiares da cavatina e da ária em estrofes. Esta úl­
tima obra, cujo tema aborda a questão de um salvamento, muito
apreciado na época romântica, é tida como inspiradora de Bee­
thoven, admirador de Cherubini, na composição de Fidelio. Mas
a arte sem concessão de Cherubini, severo epígono de Gluck, não
exerceu influência duradoura sobre a música francesa, muito em­ tários ditirâmbicos, e Fernand Cortez, primeira ópera histórica Constantin Guys, A saída do teatro.
bora ele tenha ensinado a toda uma geração de compositores as de grande espetáculo, são obras-primas. Seu sucesso foi conside­
rígidas disciplinas clássicas. rável e podemos encarar Spontini como o mais notável interme­
As óperas de Spontini são mais atraentes. La vestale, drama diário entre Gluck e Berlioz, cujo estilo dramático por certo in­
romântico calorosamente apaixonado, de que Berlioz fez comen­ fluenciou. Infelizmente, o sucesso de Fernand Cortez é em parte
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 106 107 O TEATRO MUSICAL

responsável pela voga dos grandes melodramas históricos em que à Carthage) é montada em 1863 no Théâtre-Lyrique (a Ópera de
Meyerbeer logo triunfará. Paris acaba então de passar pela má experiência de Tannhäuser)
No Complete Opera Book de Kobbé, livro de cabeceira dos e tem vinte e uma apresentações, enquanto a primeira parte (La
amantes do teatro lírico na Inglaterra e nos Estados Unidos desde prise de Troié) só será encenada após a morte do compositor, em
1920, podemos 1er que "Meyerbeer é considerado o fundador de 1890, em Karlsruhe. Enfim, a deliciosa ópera-cômica Béatrice et
um gênero francês geralmente identificado como Grande Opéra" ! Bénédict e apresentada em Baden-Baden em 1862. Todas essas
Infelizmente, o tipo de ópera comerciai inaugurado por Robert le obras são de altíssima qualidade musical e dramática, em parti­
Diable (1831) oferece um apanhado eclético das melhores receitas cular Les troyens à Carthage; o quadro sinfônico da floresta afri­
da época para fazer o público aplaudir com toda a certeza. Meyer­ cana no início do segundo ato, o célebre septeto no final do mes­
beer não carece de senso dramático, sua escrita vocal é muito agra­ mo ato e o trágico fim de Dido estão entre as mais belas cenas
dável; mas os efeitos são demasiado forçados, o cálculo é dema­ da ópera romântica.
siado visível, a orquestra é pesada. Muito tempo depois da morte Berlioz criou uma nova forma de canto francês, tanto com
do compositor, praticamente até o fim do século, Les huguenots suas óperas como com sua bela coletânea de melodias, Les nuits
(1836), Le prophète (1849) e sua melhor obra, L'africaine (póst., 31
d'été (1834), que anunciam Duparc e Fauré . No teatro, ele se
1865), garantem infalivelmente a prosperidade dos teatros.
afasta tanto da ária operística tradicional quando da declamação
Rossini, que chegou a Paris pouco antes de Meyerbeer e pas­ "expressiva", e os grandes modelos alemães e italianos não o fa­
sou na cidade a maior parte da vida, não conseguiu impor-se co­
zem perder sua originalidade. Nele, a idéia musical nasce do sen­
mo compositor de óperas francesas. As obras-primas que são a
timento poético ou dramático; mas ela não se renega, não se do­
ópera-bufa Le comte Ory (1828) e a grande ópera Guillaume Tell
bra às formas verbais da expressão, não sublinha a anedota. É
(1829) obtiveram apenas um sucesso relativo, logo eclipsado pelo
globalmente e não palavra por palavra que linguagem e música
triunfo de La muette de Portici e de Robert le Diable e, mais tar­
se entendem e se completam.
de, das outras obras de Auber e Meyerbeer. Como Verdi ao es­
A língua francesa conviria ao teatro musical, ao contrário
crever Don Carlos, Rossim continua a ser um músico italiano
do que afirmavam Rousseau e os enciclopedistas? Na segunda me­
quando compõe com libretos franceses. O de Guillaume Tell, por
sinal, é tão ruim e tão comprido (a ópera sem cortes duraria qua­ tade do século X I X e no início do século X X , numerosos músicos
se cinco horas) que, ao cabo de umas cinqüenta representações, franceses esforçaram-se por provar que sim, com uma felicidade
tomou-se o hábito de tocar apenas o segundo ato, como anteato, desigual. A singularidade da língua francesa está em ter suscita­
pelo simples prazer da música (principalmente o admirável trio do e colocado problemas de emissão vocal ou de prosódia que por
de Teil, Fürst e Arnold). A situação de Donizetti é análoga. La muito tempo suscitaram paixões. À má-fé dos que não querem
fille du régiment (comédia) e La favorite (drama) são óperas ita­ ouvir nem Rameau nem Berlioz replica uma reação chauvinista
32

lianas compostas com libretos franceses; aliás, suas qualidades são desfiando futilidades e vaiando Tannhäuser . Alguns estarão
bem mais valorizadas na adaptação italiana. prontos para jurar que Samson et Dalila equivale a Parsifal, que
Massenet nada fica a dever a Mussorgsky, nem Gustave Charpen­
Berlioz O maior compositor francês de óperas do período român­ tier a Puccini.
tico não foi profeta em seu país. Seu Benvenuto Cellini, que Liszt Enquanto o gênio dramático de Berlioz não conseguiu im­
admirava e fez triunfar em Weimar, fracassou em 1838 na Ópera por-se numa cena musical dedicada a Meyerbeer e Auber, um
de Paris (sete apresentações), assim como La damnation de Faust milagre é consumado por Charles Gounod (1818-1893), Jacques
("ópera de concerto") em 1846 na Opéra-Comique (!). Um certo
Scudo da Revue des deux mondes (morreu louco em 1864) afir­ 31. Na época em que triunfavam os "romances sentimentais", Berlioz é
ma: "Não só o sr. Berlioz ignora a arte de escrever para a voz hu­ o primeiro músico francês a publicar peças vocais com o título de "melodias"
(Mélodies irlandaises, 1830). No ano precedente, Adolphe Nourrit dava a conhe­
mana, como sua orquestração mesma nada mais é que um amon­ cer aos parisienses os Heder de Schubert sob a mesma denominação.
toado de curiosidades sonoras sem corpo e sem desenvolvimen­ 32. A princesa de Metternich depois da representação de Tannhäuser em
to!" Les troyens, composta entre 1856 e 1863, só será representa­ Paris: " E m Viena, onde, graças a Deus, ainda há uma verdadeira nobreza, nun­
da integralmente em 1969, cem anos depois da morte do composi­ ca se veria um príncipe de Liechtenstein ou de Schwarzenberg vaiar Fidelio do
seu camarote e reclamar um balé." A cabala do Jóquei, que faz e desfaz na
tor, e na Inglaterra. Das duas óperas que compõem essa grande
Opera, é animada não apenas pelo nacionalismo, mas também pelo apego ao
e genial tragédia musical em duas "noites", a segunda (Les troyens ridículo costume de introduzir um balé nas óperas.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 108

Offenbach (1819-1880) e Georges Bizet (1838-1875), em gêneros


e estilos bem diferentes: o milagre de renovar profundamente o
espírito do teatro musical francês, de criar uma ópera nacional
moderna, sem se deixar seduzir pelas sereias alemãs e italianas.
Uma cronologia sucinta mostrará que a obra desses três músicos
é exatamente contemporânea das de Verdi e Wagner.

1853 La Traviata
Le Médecin malgré lui de Gounod 1858
Orphée aux enfers de Offenbach 1858
Faust de Goimod 1859 Un bailo in maschera
1861 Tannhäuser (em Paris)
Les Pêcheurs de perles de Bizet 1863
Les Troyens à Carthage de Berlioz 1863
1865 Tristan un Isolde
La Vie parisienne de Offenbach 1866
Roméo et Juliette de Gounod 1867 Don Carlos (em Paris)
La Périchole de Offenbach 1868 Die Meistersinger
1871 Aida
Djamileh de Bizet 1872
1874 Boris Godunov
Carmen de Bizet 1875
1876 Der Ring des Nibelungen
L'Étoile de Chabrier 1877
Les Contes d'Hoffmann de Offenbach 1881
1882 Parsifal

Gounod As três grandes óperas sobre as quais repousa o reno­


me de Gounod — Faust, Mireille e Roméo et Juliette — foram
triunfalmente acolhidas e permaneceram populares (nove outras
fracassaram). Faust, que Berlioz elogiou rasgadamente num arti­
go do Journal des Débats, é considerada uma espécie de institui­
ção nacional e bate todos os recordes de bilheteria, tanto no ex­
terior como na França (contaram-se 3.000 representações na Ale­
manha entre 1901 e 1910). O entusiasmo do público é explicado
pela abundância das grandes cenas líricas em que se fizeram aplau­
dir os mais ilustres cantores, pelo frescor e pela simplicidade da
melodia, anexada ao repertório popular, e pelo brilho das cenas
pitorescas.
O ato da quermesse, ponto alto da obra, é de uma riqueza
extraordinária, que as inúmeras execuções não esgotam; o coro
inicial, em particular, em que os grupos de personagens são sutil­
mente diferenciados, é uma maravilha que já não notamos, tan­
tas vezes o ouvimos. Algumas cenas líricas contêm uma música
sublime, como o duo "O nuit d'amour" na bela cena do jardim
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 110

(ato III) ou o trio "Anges purs, anges radieux" pouco antes do 1875 Estréia de Carmen na Opéra-
GEORGES B I Z E T
fim. Mas as cenas dramáticas parecem demasiado monótonas, ca­ paris, 25 de outubro de 1838 Comique. A última ópera de Bizet
recem de força e de veracidade, o caráter das personagens mal Bougival, 3 de junho de 1875
enfrenta a hostilidade da critica e de
é esboçado — da obra-prima de Goethe não resta mais que uma uma parte do público, como as pre­
história de amor complicada pelo diabo, história, de resto, estra­ cedentes (com exceção de Lajolie fil­
nha à lenda . 33 Seu pai, Adolphe (1810-1886), era
le de Perth). Na noite de 2 para 3 de
professor de canto; sua mãe, Aimée
Sem ser um grande mestre, Gounod exerceu uma influência junho, pouco depois da 31? repre­
Delsarte (1814-1861), pianista. Seu
considerável sobre a orientação da música francesa, inspirando sentação, Bizet morre subitamente.
tio, François Delsarte, cantor, pu­
o gosto pela medida e pela clareza. Ele sofria, havia uns quinze anos, de
blicou Les archives du chant. terríveis dores de garganta (sem dú­
Offenbach As óperas-bufas de Offenbach são de uma veia bem vida de origem cancerosa). Seu es­
1848-1857 Aluno do Conservató­ tado se agravara nos últimos três me­
diferente e contrastam ainda mais com o repertório da Ópera de rio de Paris, onde obtém primei­ ses; ele se queixava de sufocar e de
Paris. O gosto pela medida e pela clareza ainda é mais edificante ros prêmios de solfejo, piano, fu­ ter alucinações auditivas, mergu­
nelas; ele se manifesta com grande arte no difícil gênero da co­ ga e órgão. Em 1857, ganha o lhando num grave estado de depres­
média um pouco maluca, em que tudo é pretexto para uma can­ grande prêmio de Roma. Já com­ são. Foi enterrado no dia 5 de junho
ção. Offenbach é o principal criador da opereta francesa, antíte­ pôs uma bela sinfonia e uma ópe¬ no cemitério do Père-Lachaise, após
se ou réplica irônica da grande ópera. Suas noventa e cinco ope­ ra-bufa, Docteur Miracle, que ga­ as exéquias celebradas na Trinité.
retas não são de igual qualidade. Mas a maneira como trata os nhou (empatada com Charles Le-
grandes temas mitológicos (Orphée aux enfers ou La belle Hélè­ coq) um concurso organizado por obra Uma dúzia de obras dramáti­
ne) e histórico (Geneviève de Brabant) é irresistível, e em suas Offenbach para o lançamento de cas, dentre as quais Les pêcheurs
obras-primas, La vie parisienne e La Périchole, o tom sentimen­ seu Théâtre des Bouffes-Parisiens. de perles (Théâtre-Lyrique, 1863),
tal obrigatório é introduzido com uma ternura deliciosa na exu­ 1858-1860 Temporada na Vila Mé­ La jolie fille de Perth (Théâtre-Ly­
berante quermesse. dicis. É feliz e muito popular entre rique, 1867), Djamileh (Opéra-Co­
Seu sucesso fez dele o símbolo da alegria parisiense no Se­ os pensionistas. Em vez da tradicio­ mique, 1872), Carmen (Opéra-Comi­
gundo Império. Mas essa imagem é restritiva. Sua música é a mais nal missa, sua primeira "remessa de que, 1875), L'arlésienne, melodra­
alegre, a mais espirituosa e, também, a mais admiravelmente es­ Roma" é uma ópera-bufa italiana, ma (Vaudeville, 1872). Composi­
crita nesse gênero ligeiro. Don Procopio. ções corais e melodias. Duas sin­
André Messager (1853-1929), cujo Fortunio é um êxito to­ 1861 "Leitor" no Théâtre-Lyrique. fonias (dentre as quais Roma), Pe­
tal, pôde impedir por algum tempo a decadência da opereta. Mas O diretor, Carvalho, encomenda- quena suíte para orquestra. Peçar
esse grande maestro, que regeu a estréia de Pelléas et Mélisande, lhe uma ópera, Les pêcheurs de per­ para piano, dentre as quais Jem
excelente intérprete de Wagner, não possui a verve e a simplicida­ les, que estreará em 1863. d'enfants (orquestrada pelo autor)
de vigorosa que fizeram de Offenbach um grande compositor de 1862 Viagem com Gounod a Ba­
"música ligeira", antes de essa denominação ser aviltada pela can­ den-Baden, onde Berlioz inaugura
tiga comercial. o novo teatro com Béatrice et Bé­
Emmanuel Chabrier (1841-1894) tem a verve, a simplicida­ nédict. Em seguida, Bizet irá tor­
de, o talento, mas falta-lhe a leveza. L'étoile (1877) e Une éduca­ nar-se muito caseiro e praticamen­
tion manquée (1879) são operetas admiráveis "para pessoas inte­ te não sairá mais de Paris e arre­
ligentes", numa linha que continuará a ser seguida, até Mamelles dores.
de Tirésias de Poulenc. 1869 Casa-se com Geneviève Ha­
lévy, filha de seu ex-professor, com
quem terá um filho, Jacques (1872¬
33. O personagem de Fausto é tão diferente do herói de Goethe e o de Mar­
1922), literato.
garida de sua Gretchen, que os alemães preferiram chamar a ópera de "Margare­
the". O célebre balé (início do ato V) foi introduzido na partitura quando da 1872 Estréia, no Théâtre du Vau­
reapresentação na Ópera de Paris, em 1869, a fim de respeitar a tradição desse deville, de L'artésienne de Alphon­
estabelecimento. O fato de essa evocação dançada da Noite de Walpurgis não se Daudet, música de Bizet. Bizet.
ter provocado a hilaridade é tão surpreendente quanto a idéia de fazer Fausto
dançar!
Bizet No ano em que ganha O primeiro grande prêmio de Ro- Cenário de Emile Bertin para Carmen.
ma, Bizet apresenta no Bouffes-Parisiens (antigo Théâtre Com­
te, rebatizado por Offenbach, que o dirige) uma opereta, Le doc­
teur Miracle. Na Vila Médicis, sua primeira "remessa de Roma"
é uma ópera-bufa italiana, Don Pr acopio. É decididamente não
conformista e sentiu-se provavelmente encorajado nessa disposi­
ção quando, em 1862, foi com Gounod a Baden-Baden, onde Ber­
lioz inaugurava o novo teatro com Béatrice et Bénédict.
Sua carreira não foi o que prometia ser. Com exceção de La
jolie filie de Perth (1866), bem executada no Théâtre-Lyrique e
bem recebida, as obras-primas de Bizet a princípio encontram ape­
nas indiferença ou hostilidade. Elas provocam a debandada da
crítica parisiense, cujo Waterloo será a estréia de Carmen (1875).
Desde Les pêcheurs de perles (1863), cuja beleza musical (a des­
peito de um libreto inverossímil) Berlioz é um dos raros a reco­
nhecer, a assombrosa acusação de "wagnerismo" passa de pena
em pena. Djamileh (1872) é julgada incompreensível. A luminosa
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 114 115 O TEATRO MUSICAL

partitura para a Artésienne de Daudet (1872) não deixa que a pe­ cura furiosa a crítica executará essa obra-prima, cuja apreciação
ça seja compreendida! viu Wagner e Brahms concordarem!"
Juizes lúcidos, como Gounod, E. Reyer, V. d'Indy e Th. de
Banville (Berlioz e Gautier já faleceram) reconheceram de saída
nessa obra o gênio de Bizet. Nietzsche nela encontrou a revelação
do sol mediterrânico e manifestou o entusiasmo delirante que se
sabe. Mas será preciso aguardar sua reapresentação de 1883 para
que Carmen triunfe em Paris, depois de se ter imposto em Lon­
34
dres e Nova York .
Carmen domina do alto o drama musical francês de Berlioz
a Debussy, apesar da importância histórica de Faust e de algu­
mas de suas belas páginas. Neste último quartel de século, nem
os Contes d'Hoffmann (1881), última obra de Offenbach es­
treada depois da sua morte, espetáculo romântico intrigante e
comovente; nem Samson etDalila de Saint-Saëns (Weimar, 1877),
magm'fica, mas fria e convencional; nem Manon (1884) ou Wer­
ther (1892), os melhores êxitos de Massenet (1842-1912), encan­
tador mestre menor dotado de uma sedutora veia melódica e
que prolonga o romantismo no século XX; nem, ainda, os cora­
josos intentos de ópera naturalista de Alfred Bruneau (1857¬
1934), amigo de Zola, e de Gustave Charpentier (1860-1956),
simpático autor de Louise, suportam o paralelo com as obras
de Puccini, dos russos e dos tchecos, recém-chegados na geogra­
fia da ópera.

A ópera russa As reações nacionalistas à hegemonia alemã e


italiana deram nascimento, sobretudo na Boêmia e na Rússia,
Bizet, L'artésienne, adagietto. a uma ópera nacional bastante interessante, porque se arraigou
na cultura autóctone, não só pela língua, mas pela escolha dos
temas e por um estilo musical baseado na música popular tradi­
Quanto a Carmen, essa fulgurante obra-prima, as condições cional.
da sua primeira apresentação não permitiram que o público per­ Desde o fim do século X V I I I , tentativas de óperas em russo
cebesse sua beleza: ensaios interrompidos por mil dificuldades, vinham sendo apresentadas em São Petersburgo, cidadela da ópera
encenação e figuração lamentáveis, coristas femininas apavora­ italiana, e em Moscou, principalmente por Mikhail Matinsky
das com o fato de terem de fumar cigarros e rebolar, exécutante (1750-1820), pelo veneziano Catterino Cavos (1775-1840) e por
do bombo contando mal suas pausas e fazendo o instrumento res­ Alexis Vertovsky (1799-1862). O interesse dessas obras é muito
soar num pianissimo de Micaela... Apesar disso, os papéis prin­ pequeno e a feitura é italiana, apesar dos empréstimos tomados
cipais são excelentes, e chegar-se-á até a afirmar que a interpreta­ do folclore. Mas obtiveram um sucesso considerável, e a idéia de
ção de Madame Galli-Marié era um caso de polícia. Mas, para uma ópera nacional estava no ar. É um fidalgo provinciano auto­
vencer com uma obra tão escandalosa os preconceitos do público didata, Mikhail Glinka (1804-1857), que a realiza completamen-
misoneísta da Opéra-Comique (lugar habitual dos encontros ma­
trimoniais), era necessário que tudo fosse irrepreensível. O furor 34. Essa sombria história de amor e de morte é qualificada de ópera-cômica,
da crítica é extraordinário; como toda música original, a de Car­ segundo um uso absurdo, pela simples razão de que há nela diálogos falados. O
men pertence à escola de Wagner e da "música do futuro", não libreto de Meilhac e Halévy (colaboradores de Offenbach!) trai Mérimée, mas de
maneira inteligente, com um perfeito senso dramático. É uma excelente idéia ter
tem melodia, não tem expressão, sua orquestra é ensurdecedora... situado o assassinato de Carmen na entrada da arena, no momento do triunfo
Hans von Bülow ficará surpreso com essa cabala: "Com que lou- do toreador.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 116 117 O TEATRO MUSICAL

te, menos talvez em Uma vida pelo czar (1836), considerada a pri­
f Λ a γ·» Λ * Λ ~ψ~β f 0f-ff fff û
meira ópera nacional, do que em Russian e Ludmilla (1842), bem
superior musicalmente e de todo independente dos modelos ita­

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lianos. Seus mais notáveis sucessores só se manifestarão na segun­ 1 Ρ J J
da metade do século: Alexandre Dargomyjsky (1813-1869), que
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cria, em Rusalka e sobretudo em O convidado de pedra, um tipo i
de declamação melódica russa ilustrado por Boris Godunov; e, ff t
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depois, Mussorgsky, Borodin, Tchaikovsky e Rimsky-Korsakov.
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MODEST 1865 Sua dipsomania provoca uma curso de canto (ela fora a estalaja-
grave crise (epilepsia ou desintoxi­ deira de Boris). Os amigos do com­
PETROVITCH
cação?). Liga-se a Ludmila Ches- positor são hostis a essa ocupação
MUSSORGSKY
Karevo (Pskov), 9 de março de 1839 takova, irmã de Glinka, que per­ e à intimidade que parece estabele­
S ã o Petersburgo, 16 de m a r ç o de 1881 manecerá sua amiga fiel e confi­ cer-se entre ele e a cantora.
dente. 1881 Após quatro crises sucessivas,
Descendente de uma antiqüíssima
1867 Engenheiro do Departamen­ Mussorgsky é internado no hospi­
família russa. Seu pai é um peque­
to de Águas e Florestas. Berlioz vem tal militar Nikolaievsky, a conse­
no proprietário rural. Sua mãe,
reger concertos em São Petersbur­ lho de Daria. Numerosas visitas:
imaginativa e musicista, ensina-lhe
piano. Sua babá lhe canta canções go: impressão profunda. Cui, Borodin, Rimsky (que lhe
Mussorgsky, Boris Godunov.
de ninar populares. 1870 A primeira versão de Boris trouxe o Tratado de instrumenta­
Godunov é recusada pelo teatro ção de Berlioz, a seu pedido), Re-
Marie. Mussorgsky empreende a re­ pin (que fez seu famoso retrato), Boris Godunov (1874), a obra-prima de Mussorgsky, e O
1848-1856 Excelentes estudos ge­
visão da sua partitura. Stassov... Na noite de 15 para 16 príncipe Igor (1890), a de Borodin, dominam a produção dessa
rais, terminados na Escola Militar.
1872 O casamento de Rimsky, com de março, bebe conhaque para ce­ escola russa. São duas obras extremamente dessemelhantes. In­
Sai com a patente de tenente. Pri­
meiros concertos públicos como quem mora faz mais de um ano, as lebrar seu aniversário (ele pensava telectual culto, formado nas disciplinas científicas (era médico
pianista. críticas de Borodin e de Balakirev ter nascido no dia 16), e é encon­ e, sobretudo, químico), Borodin trabalhou quase a vida toda
1856 Incorporado à Guarda Impe­ sobre a inexperiência do autor de trado morto às cinco da manhã. na composição de sua grande epopéia musical, escrevendo, qua­
rial e lançado na alta sociedade rus­ Boris afetam sua sensibilidade e Após uma magnífica cerimônia, é dro por quadro, o texto e a música, sem ter logrado terminá-la;
sa, freqüenta principalmente o sa­ fazem-no cair no alcoolismo. A se­ enterrado em 18 de março no ce­ depois da sua morte, Rimsky-Korsakov e Glazunov prepararam
lão do compositor Dargomyjsky, gunda versão de Boris, que o tea­ mitério Alexandre Nevsky. a partitura definitiva. Convencional pela forma (sucessão de árias,
onde se liga a Cui, Balakirev e ao tro Marie continua recusando-se a duos, conjuntos, coros), O príncipe Igor fascina por seu caráter
crítico Stassov. montar, é executada numa audição obra Quatro óperas (sem contar de épico inabitual, pelo movimento cênico, pelo brilho da or­
1859 Grave crise de depressão (ou privada. Grande sucesso. os esboços e os projetos): O casa­ questra e dos coros, pelos prodigiosos contrastes. Muito embo­
de epilepsia?). Deixa o exército pa­ 1874 Estréia pública de Boris Go­ mento (São Petersburgo, 1909), ra Borodin sempre se tenha considerado um amador, é uma obra
ra se consagrar à música. dunov, sob a regência de Naprav- Boris Godunov (São Petersburgo, admiravelmente organizada para impressionar a imaginação, com
1862 Formação do "Grupo dos nik. Grande sucesso de público. Re­ 1874), Khovantchina (São Peters­ uma variedade de invenção e uma qualidade de escrita notáveis.
Cinco". servas da crítica. Nos anos seguin­ burgo, 1886), A feira de Sorot­ Páginas como as do ato polovstiano ou o deslumbrante quadro
1863 Mussorgsky consegue um car­ tes, Mussorgsky trabalha penosa­ chinsy (Moscou, 1913). Alguns co­ "sob Kromi" extrapolam os marcos habituais da ópera: são mo­
go de engenheiro do Departamento mente em Khovantchina e em A fei­ rais e sessenta e três melodias (den­
delos de que Prokofiev deve ter-se lembrado quando, num mes­
de Obras e se instala em comunida¬ ra de Sorotchinsy, em meio a crises tre as quais os ciclos: Canções in­
mo clima de epopéia, compôs a música do filme Alexandre
de com cinco outros jovens artistas de epilepsia ou de delírio. Seus ami­ fantis, Sem sol e Cantos e danças
Nevsky.
e intelectuais; eles se intitulam " A gos não o compreendem mais e se da morte). Algumas peças sinfôni­
comuna". O apartamento torna-se afastam dele. cas e peças para piano (dentre as Mussorgsky é da família espiritual de Dostoievsky: tem afi­
um ponto de encontro, freqüentado 1879-1881 Acompanhador da can­ quais, a suíte Quadros de uma ex­ nidades com os Karamazov. O sucesso popular constante de Bo¬
em particular por Turguenev. tora Daria Leonova, que abriu um posição). ris Godunov, um dos pontos altos de toda a história do teatro
musical, é sua revanche póstuma contra os professores de boas
maneiras. Criticaram-no por sua ignorância das regras da ópera,
por sua inexperiência nas disciplinas clássicas, seu realismo à Dos­ atribui a última palavra, ao acrescentar a cena final da révolu- Khovantchina

toievsky, seu amargor à Gogol, suas posições estéticas de vanguar­ ção, que não existe em Puchkin. n 0 t e a t r o
Bolshoi
d e M o s c o u 1 9 5 0

da. O mais grave é que seu erudito amigo Rimsky-Korsakov hou­ Essa cena prodigiosa é objeto do maior erro de Rimsky. Nor- ' ·
ve por bem corrigir o que podia existir de selvagem na expressão malmente, ela se situa depois da morte de Boris, que os insurre­
de seu gênio. O libreto de Boris, escrito por Mussorgsky, perma­ tos ignoram, e a obra termina com o monólogo profético do Ino­
nece fiel aos dados históricos — bastante assombrosos para não cente (admirável personagem imaginado por Mussorgsky). Rimsky
precisarem ser romanceados —, o que confere ao drama uma di­ inverteu as duas cenas para ter um final mais nobre! É um moti­
35
mensão grandiosa . Ele se afasta de Puchkin, sua principal fon­ vo de monta para se preferir a versão original. Há outros erros:
te, pelo ângulo de enfoque: o "drama musical popular" de Mus­ a reorquestração da cena polonesa, sem ter compreendido que a
sorgsky tem a aparência de uma crônica, cujo narrador se teria "inabilidade", aqui, é desejada por Mussorgsky, preocupado com
misturado à multidão. Impressiona-nos em toda a obra a impor­ a exatidão histórica (evocação dos "24 violinos" de Marina, que
tância do coro, que representa o povo russo; é ele o verdadeiro mais tarde deveriam desagradar tanto à corte moscovita); a su­
motor da ação, e não os motivos psicológicos. Ele se manifesta pressão do tão inquietante toque a rebate sublinhando as predi-
desde o prólogo, na suntuosa cena da coroação, e Mussorgsky lhe çùc» do Inocente, a supressão (ou recomendação de suprimir) das
cenas de Rangoni-Marina e Rangoni-Dimitri, sem as quais o duo
35. Para reconstituir esse episódio particularmente confuso da história rus­ da fonte perde todo e qualquer significado...
sa, Mussorgsky adota vários postulados:
— Boris é mesmo o assassino do pequeno Dimitri; este morreu de fato (logo, No plano puramente musical, Rimsky-Korsakov com freqüên­
a clássica hipótese da substituição de crianças é rejeitada); cia enriqueceu proveitosamente a instrumentação; mas, infelizmen­
— o falso Dimitri é identificado com Grigori, o monge em fuga (Mérimée, te, corrigiu a harmonia e até o ritmo, tomando por erros ou ne­
em seu "Episódio da história da Rússia", recusa essa identificação);
— o casamento com Marina é uma maquinação de Rangoni, que ensina aos gligências as surpreendentes invenções de um gênio musical e dra­
dois protagonistas seus papéis; mático excepcional, completamente livre de qualquer formalismo.
Mussorgsky, — a morte de Boris é contemporânea ao início da revolução que leva Dimitri Querendo preencher uma parte do abismo que separa Boris da
partitura autografa (verdadeiro ou falso) ao poder; os insurretos ignoram essa notícia quando se põem
de Khovantchina. a caminho.
ópera tradicional, Rimsky procedeu à sua "meyerbeerização", se­
gundo a cruel expressão de Stravinsky.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 120 121 O TEATRO MUSICAL

As próprias óperas de Rimsky-Korsakov, em particular suas A ópera tcheca Entre as oito óperas de Bedrich Smetana, a en­
duas últimas obras-primas, A lenda da cidade invisível de Kitej tusiasmante Prodaná nevesta (A noiva vendida) (1866) tem um
(1907) e O galo de ouro (1909), são de uma absoluta beleza for­ brilho particular. Ela espalha tanta felicidade, é repleta de uma
mal. A riqueza e a perfeição da instrumentação superam os es­ música tão encantadora, o espetáculo é tão divertido e variado,
plêndidos modelos de Berlioz, cuja influência sobre os músicos que depois da representação lamentamos, do fundo do coração,
russos foi considerável. A fusão das técnicas ocidentais e da ins­ que não.tornem a apresentar a peça por inteiro. O sexteto do
piração russa (grandes lendas populares, assimilação dos modos ato I I I é de uma beleza comparável aos conjuntos de Figaro, Cosi
do folclore tradicional) é realizada de maneira espetacular: é a "fu­ fan tutte ou do Barbeiro de Sevilha. È o coroamento de uma
são íntima dos cantos populares russos e da fuga originária do obra-prima que, desde os primeiros compassos da célebre aber­
Ocidente" que Glinka preconizava. São fantasmagorías deslum­ tura, nos arrasta num movimento irresistível, em que são vizi­
brantes, a que falta a força da paixão. nhas a ternura e a bufonaria. A noiva vendida está tão profun­
As óperas de Tchaikovsky, das quais as mais belas são lev- damente arraigada na cultura tcheca, que não se sabe mais se
gueni Onieguin (1879) e, sobretudo, A dama de espadas (1890), Smetana se inspirou no folclore ou se é sua fonte. Sem alcançar
têm um interesse dramático bem menor. Mas há nelas uma abun­ esse alto nível, Hubicka (O beijo) é uma obra-prima de inven­
dância de bela música romântica bastante convencional, com ção musical que mereceria ser executada com maior freqüência;
grandes momentos de lirismo refinado, ricos de invenção me­ seu humor faz a luz e a sombra, a comédia e o drama se alterna­
lódica. rem sutilmente. Num estilo bem diferente, a grande ópera patrió-

NICOLAI ANDREIEVITCH 1871 Rimsky é nomeado professor Gretchaninov, Glazunov, Stra­


RIMSKY-KORSAKOV de composição e de instrumenta­ vinsky, Respighi...
Tikhvin (Novgorod), 18 de m a r ç o de 1844 ção do Conservatório. Instala-se 1907 Estréia de A lenda de Kitej no
Liubensk ( S ã o Petersburgo), 21 de junho de 1908
com Mussorgsky em casa do dire­ teatro Marie. Termina O galo de ou­
tor do Conservatório, Zaremba. ro e pensa num Orfeu e Eurídice...
Pertencia a uma família aristocrá­ 1872 Casa-se com uma jovem pia­ 1908 Uma crise de angina do peito
tica e foi criado nas terras do pai. nista, Nadejda Purgold. interrompe suas atividades em abril.
Desde os seis anos, ensinaram-lhe Morre dois meses mais tarde, na
1873-1884 É nomeado inspetor das
piano. noite de 20 para 21 de junho. O ga­
bandas de música da Frota. Perío­
1856-1862 Escola dos cadetes da lo de ouro estreará em Moscou em
do de apresentação de suas primei­
Marinha em São Petersburgo. No outubro de 1909.
ras óperas, A noite de maio e Snie-
domingo e durante as férias estuda gurotchka.
piano e violoncelo. A partir de obra Quinze óperas, dentre as quais
1861, completa sua formação com 1881-1887 Trabalha na revisão das as obras-primas Kitej e O galo de
Balakirev e se integra aos Cinco. obras de Mussorgsky e de Boro­ ouro. Numerosas obras corais. Três
1862-1865 Realiza como tenente o din. sinfonias, grandes aberturas e suí­
grande cruzeiro regulamentar. Du­ 1886-1900 Diretor dos concertos tes sinfônicas (dentre as quais A
rante suas horas livres, compõe. Ao sinfônicos russos, fundados pelo grande Páscoa russa), um concerto
voltar, suas primeiras obras são to­ editor Belaiev. Rege vários concer­ para piano, música de câmara, pe­
cadas com grande sucesso. É desig­ tos, principalmente em Paris, no ças para piano, quase cem melodias
nado para uma chancelaria e con­ âmbito da Exposição Universal de e a harmonização de cerca de cen­
sagra suas noites ao Grupo e à com­ 1889. Sua imensa reputação lhe to e cinqüenta canções populares
posição. atrai numerosos alunos: Liadov, russas.
Rimsky-Korsakov, desenho de Repin.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 122

tica Dalibor é uma obra notável pela importância, excepcional no


teatro, do princípio da variação: um mesmo tema é transforma­
do pelas peripécias da ação e pelas mudanças de enfoque psicoló­
gico, agindo por sua vez sobre o drama pelo jogo de suas meta­
morfoses.

Foi a audição da Noiva vendida que revelou a Dvof ák sua


vocação de músico nacional. A inspiração tcheca tem um papel
fundamental em sua música, cuja escrita harmônica e instrumen­
tal se aparenta à de Brahms. Ele não tem o gênio de Smetana e
carece de intuição dramática. Mas suas melhores óperas, princi­
palmente Cert a Káca (O diabo e Catarina) (1899) e, sobretudo,
Rusalka (1901), são repletas de um magnífico lirismo. A popula­ !•-.·- ' .·,···: .- •*•- . - '
ridade da bela sinfonia em mi menor "do Novo Mundo" infeliz­
mente eclipsou a música vocal, religiosa e dramática de Dvorak,
em que a riqueza e a espontaneidade melódica nos fazem pensar
em Schubert.
\

1856-1861 Regente da Sociedade onde seu estado se agrava rapida­


- · Φ - ' - M . - ^ - ^ ^
B E D R I C H SMETANA
LitomySl ( B o ê m i a ) , 2 de m a r ç o de 1824 Filarmônica de Göteborg (Harmo- mente até a completa surdez. Com­ ."·- •» i \ Vc-ÎrÂ;. -•; :jv->5-
Praga, 12 de maio de 1884
niska Sallskapet). A dominação põe ainda o ciclo de poemas sin­
austríaca se lhe tornara insuportá­ fônicos Ma Vlast (Minha pátria),
Aos cinco anos, participava de um vel. Só volta a seu país quando o re­ bem como algumas obras corais e . . t . - ,.-3' . .ι-* . y - :

quarteto de Haydn; aos seis, estrea­ gime fica mais liberal, após os su­ instrumentais. Mas sua saúde men­
va em público como pianista; aos oi­ cessos franco-italianos contra a tal se degrada pouco a pouco. Em
to começava a compor, sem ter re­ Áustria. 1884, é hospitalizado num asilo psi­
cebido outras lições que não fossem 1862 Participa da fundação do pri­ quiátrico, onde morre dois meses
as de seu pai, violinista amador. meiro teatro boêmio de Praga, o depois. É enterrado no cemitério Α tradição da ópera tcheca prosseguirá na obra audaciosa "Prados e bosques da Boêmia,
Teatro Provisório (Prdzatimm di¬ e original de Leos" Janácek (1854-1928). O estilo do grande mú­
de Vysehrad em Praga.
1840-1843 Termina os estudos ge­ vadlo), que, em 1868, irá tornar-se sico morávio deve muito pouco a Smetana e Dvorak. Como eles,
rais em Plzeñ, onde se apresenta o Teatro Nacional (Národní diva¬ é profundamente impregnado pelo folclore de seu país. Mas sua
obra Oito óperas, dentre as quais
como pianista. dlo).
Prodaná Nevesta (A noiva vendi­ arte de vanguarda, baseada num sistema harmônico e melódico
1843 Fixa residência em Praga, pa­ 1866-1874 Nomeado regente do no­ pessoal, pertence plenamente ao século XX; obras-primas como
da, Praga, 1866), Dalibor (Praga,
ra completar sua formação de pia­ vo teatro, aí apresenta em 1866 a Jenufa (1904) e Ζ mrtvého domu (Da casa dos mortos) (póst.
nista. Professor de música do con­ primeira de suas óperas nacionais, 1868) e Hubicka (O beijo, Praga,
1876). Corais e melodias. Poemas 1930), muito mais modernas do que os dramas de Puccini, por
de Thun. Quando do levante de Branibofi ν Ôechách (Os brandem-
exemplo, já pertencem à nova era inaugurada por Pelléas. (Ver
Praga (1848), abraça a causa da in­ burgueses na Boêmia), seguida al­ sinfônicos (dentre os quais, os seis
pp. 262 e 340).
dependência. guns meses depois de A noiva ven­ que compõem Ma Vlast), um trio
1849 Funda em Praga uma escola dida. Em 1873, manifesta-se um com piano, dois quartetos, peças Apesar do talento original de Ferenc Erkel (1810-1893) e de
particular de música, com o apoio princípio de surdez, seguido de pro­ para piano. Stanislaw Moniuszko (1819-1872), as óperas nacionais húngaras
de Liszt e Clara Schumann, que en­ blemas nervosos. Tem de abando­ e polonesas, também surgidas com o combate pela independên­
contra quando das viagens que fa­ nar suas funções. cia ou pela tomada de consciência de uma identidade nacional,
zem à Boêmia. 1874-1884 Retira-se para Jabkonia, não tiveram o brilho nem a fecundidade da ópera tcheca. Mas não
merecem o esquecimento em que caíram.
125 A HERANÇA ROMÂNTICA

A HERANÇA ROMÂNTICA a Europa central. A cultura européia deixa de ser cosmopolita,


para se tornar multinacional.
Ε AS ESCOLAS NACIONAIS Na música, uma arte especificamente alemã, que culminará
na obra de Wagner, disputa, a princípio com a Itália, uma pre­
O declínio do espírito romântico começou, como vimos, por vol­ ponderância secular. Depois disso, outros nacionaUsmos musicais
ta de 1840. Mas os movimentos de idéias que provocaram esse se afirmarão ante a dupla hegemonia, alemã e italiana, apresen­
declínio não eram de natureza a suscitar uma estética musical no­ tando, por uma reação natural, características nacionais tanto mais
va. Separado da sua fonte, o romantismo musical prossegue na acentuadas quanto mais forte e mais duradoura tiver sido a do­
velocidade adquirida. Berlioz, Liszt, Wagner, Verdi, Gounod pro­ minação musical estrangeira. As novas escolas nacionais devem
longaram até tarde no século, a despeito do racionalismo ambiente, buscar a singularidade que as libertará do classicismo europeu . 36

uma estética baseada na intuição, à qual se vinculam Bruckner, Encontram-na na emancipação modal (modos do cantochão, em
Tchaikovsky, Mahler, Sibelius... particular) e na assimilação das características específicas do fol­
37
Entretanto, Liszt e Wagner levaram o romantismo musical clore autóctone: ritmo, escalas, melodias, estilo instrumental...
ao ponto extremo em que o declínio se torna inevitável. A maior Quando, no início do século X X , o expressionismo alemão e o
parte dos músicos alemães da segunda metade do século se defi­ "impressionismo" francês derem nascimento a novas tendências
nirá por sua aceitação ou sua recusa da orientação tomada pela musicais cosmopoUtas, só subsistirão (com a aprovação supérflua
"música do futuro", e essas tomadas de posição determinarão do sinistro Jdanov) as escolas nacionais baseadas num folclore
apriorismos estéticos anunciadores da decadência. São muito im­ vivo. "Por que andaríamos sempre agarrados nas saias de nossas
propriamente classificados de "neoclássicos" os músicos que babás itaUanas?" (palavras de um músico russo, relatadas por
resistem à evolução reivindicando os valores tradicionais, pois Constantin Bräiloiu). A partir de então, as babás serão recruta­
nenhuma ruptura profunda com as formas e as estruturas do clas­ das em meio às camponesas de seu país.
sicismo ainda justifica o prefixo "neo". Seria mais exato distin­
guir uma tendência conservadora e uma tendência progressista en­ Itália e Alemanha Uma escola italiana existe desde Monteverdi.
tre os herdeiros dos grandes românticos. Mas as nuanças interme­ Ela se define por um estilo vocal e instrumental, transmitido de
diárias tornam incerta a Unha divisória entre as duas tendências, professor a aluno e difundido por toda a Europa. O povo itaUa-
e as diferenças de escrita não são acentuadas o bastante para de­ no é naturalmente músico, como outros são guerreiros ou merca­
finir nitidamente o duaUsmo. dores. Por seu número e seu talento, os compositores e os virtuo­
Na ItáUa, onde a música está voltada quase exclusivamente ses itaüanos fundamentaram em sua experiência e em seu saber
para o teatro, a reação ao idealismo romântico, tal como é ilus­ uma tradição musical pan-européia. Nessa escola italiana, não se
trado por Verdi, se manifesta na ópera naturalista de Puccini e reconhecem características nacionais pela simples razão de que não
dos "veristas". houve nação italiana antes do século X I X . Os músicos italianos
Em outros países, os dois tipos de reação, clássica e natura- e itaUanizantes formaram uma comunidade intelectual suprana­
Usta, são observados episódicamente; no entanto, o fato princi­ cional, cujos focos de irradiação estão disseminados por toda a
pal é uma renovação nacional que se estende à maioria dos países Europa. Faz-se música itaUana em Paris, Londres, Viena, São Pe­
da Europa. Essa renovação não exclui a priori nem a afiliação tersburgo. Somente a ópera verdiana poderia definir um estilo pu­
ao idealismo romântico, nem uma eventual reação naturahsta. Ela ramente nacional.
poderá apresentar-se, na música, como uma alternativa à tendên­ Pode-se falar também de uma escola alemã? Vários compo­
cia expressionista que, desde Tristão, anuncia a decomposição do sitores exaltaram a germanidade como uma virtude, mas sem
sistema tonai clássico; mas seu fundamento essencial é, como já defini-la claramente. Assim, Wagner saudou em Weber "o mais
disse, a tomada de consciência de uma identidade nacional, de uma alemão de todos os compositores alemães". Aliás, Euryanthe
comunidade de cultura e de destino, graças aos combates pela in­
dependência e pela Uberdade. Desde Valmy (1792), a noção de pa­ 36. Gluck achava "ridículas" as diferenças, no entanto bastante imprecisas
triotismo é um novo estimulante das lutas coletivas: a guerra em seu tempo, que observava entre os estilos nacionais.
tornou-se o problema de um povo inteiro. A consciência do Volks­ 37. A música dos camponeses suscita então um novo interesse. Mas será pre­
ciso aguardar o século X X para que o folclore seja objeto de uma ciência metódi­
geist se desenvolve nas gerações românticas alemãs, depois em toda ca (Bartók e Kodály).
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 126

anuncia Lohengrin, e essas obras fazem seu um idealismo espe­


cificamente alemão. Todavia, mais tarde adquiriu-se o costume
de definir a arte germânica considerando a priori que o drama
wagneriano era sua mais elevada expressão. O rigor contrapon-
tístico pudera caracterizar outrora a música alemã; agora, ima-
ginar-se-á reconhecê-la por seu romantismo, sua inspiração he­
róica, seu exagero, pelo lirismo sombrio e poderoso, pelos cata­
clismos sonoros. No entanto, Schumann considera a sobriedade
(Schlichtheit) uma qualidade da arte germânica; Brahms também,
quando declara undeutsch a prolixidade brilhante da música de
Liszt...
A obra de Wagner abre perspectivas dinâmicas. Ela não pro­
põe um modelo a imitar, mas a superar, levando uma parte da
música européia a abraçar o caminho de um expressionismo pan-
tonal. Ora, uma escola nacional é pouco evolutiva; sua identi­
dade se afirma na estabilidade de suas tradições. Salvo sendo
um epígono, atento em imitar características superficiais, só po­
derá reivindicar Wagner quem se envolver numa evolução cos­
mopolita.

Brahms Seria bem mais possível fazer de Brahms um chefe de


escola, mesmo que o classicismo que ele reivindica não seja espe­
cificamente alemão. Porque sua cultura e seu temperamento são
puramente germânicos, muito embora ele tenha passado a maior
parte da vida em Viena e conquanto haja em sua obra um misto
de ternura e de peso, de Gemütlichkeit e de gravidade, de classi­
cismo e de romantismo. Com freqüência, reconhecemos o eco dos
Volkslieder em sua inspiração melódica e em seu gosto por um
tipo de harmonização popular em terças e sextas paralelas...
Perante a "música do futuro", Brahms postou-se como tra­
dicionalista. Sua fidelidade às formas clássicas e sua antipatia pe­
los wagnerianos isolaram-no na história de seu tempo. Era preci­
so classificá-lo: colou-se-lhe a etiqueta cômoda de neoclássico. No
entanto, foi um pouco a contragosto que ele se tornou o porta-
bandeira dos meios musicais mais conservadores de Viena, a ci­
dade mais conservadora da Europa. Esse clássico, esse reacioná­
rio, possui apesar de tudo uma alma romântica de baixo alemão,
nutrido de canções populares. Suas primeiras leituras foram Jean¬
Paul e Hoffmann. Os Schumann foram os faróis de sua carreira
e a vida inteira ele manteve seu afeto por Clara, sempre lhe sub­
metendo suas novas composições.
Ele tem uma alma romântica e uma cabeça clássica; aprecia
a ordem e a medida, detesta a empolação, o chamativo, a osten­
tação das paixões... Por temperamento e por cultura, esse nórdi­
co pobre, tímido e luterano não sente nenhuma afinidade com
Weimar, onde Liszt o recebe em sua corte, em 1853. A atmosfera
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 128 129 A HERANÇA ROMÂNTICA

adulterada em que os genios de Liszt e de Wagner se regozijam passagens, desemola aquelas longas frases calmas, de passo re­
só pode horrorizar alguém que se sente feliz na simples e calorosa gular, em que é inimitável — a que forma a última estrofe da Rap­
hospitalidade dos Schumann. Mas o antiwagnerismo de Brahms sódia para contralto, coro masculino e orquestra é uma das mais
foi deploravelmente estimulado pela obstinação de um amigo, o belas melodias da história da música.
musicólogo e crítico vienense Eduard Hanslick (1825-1904). Inte­
ligente, mas parcial e intolerante, ele se tomou um incensador de
Adagio
Brahms e mobilizou em torno de seu nome os meios musicais mais
retrógrados, contra a "música do futuro", o romantismo e, de
modo geral, contra todos os inovadores. Aos ataques contra Liszt
S 1
1 .
1st auf oVi.rum PJJI _ ttr t Va -
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e Wagner somam-se outros contra Bruckner, perigoso concorrente fa f f M>| f J'M I 1J :


1 ^ = Φ = = Η Ι ι Π I
-1 i j
que alcança subitamente a notoriedade em 1884, quando sua Sé­ £ΐα Ton sunem OK-revcmehmlîch., so er -^ui — _ ck* sein

tima sinfonía é executada em Leipzig. I J if Δ ι J. b . ' Π ' Γ Ι ^ y J. M ι I ,' I


1
Brahms é muito superior a seu partido. Primeiro, sua língua _ i *
Heir, so cr - qui _ _ _ cke sein Herr!
malévola e sua rudeza são compensadas por profundas qualida­
des de coração; depois, ele nunca cometeu o erro de subestimar
o gênio de Wagner, muito embora não simpatizasse com sua es­ Na variação, forma por que Brahms tem particular afeição, Brahms, Rapsódia para contralto,
tética. Mas falta-lhe bom-senso: cultuando a ordem e a tradição, ele faz surgir de um tema geralmente simples uma floração de no- c o r o e
orquestra.
não sente incômodo em manter uma hostilidade pueril contra o vas idéias melódicas, em que o tema conserva sua identidade, co­
que pode parecer anárquico na música. Seus gostos não definem mo o bom ator é, ao mesmo tempo, ele e um outro, sem sequer
sua doutrina estética: ele gosta de Bach, Beethoven, Schumann, necessitar de um traje para dar a ilusão do desdobramento de per­
Dvorak, Grieg, do Wagner dos Mestres cantores, do Verdi do sonalidade. Isso é bem nítido nas Variações sobre um tema de
Réquiem, das valsas de Strauss, da Carmen de Bizet... O que não Haendel para piano, obra-prima de equilíbrio e imaginação. Pois
lhe agrada é mais significativo: o exagero do poema sinfônico lisz- estamos bastante distantes da retórica clássica, em que o tema apa­
tiano, os excessos patológicos do romantismo declinante, a assus­ rece sob uma série de disfarces convencionais. A arte da variação
tadora dissolução do sistema musical à qual tendem os wagne­ em Brahms refere-se ao Bach das Variações Goldberg, ou a Bee­
rianos. thoven; mas, ao contrário de seus predecessores, ele não conside­
Fazendo dele o "terceiro grande B " (os dois outros são Bach ra seus temas como pretextos para jogos de imitação sutis ou pa­
e Beethoven), Bülow impõe a etiqueta clássica. Ora, a obra de ra grandiosas extrapolações prometéicas: para ele, os temas são
Brahms escapa completamente do academismo do neoclassicismo sujeitos preciosos, que sairão aumentados — e não esquecidos —
alemão, tal como o ilustram Max Bruch, Reger ou Hindemith. da diversidade das interpretações rítmicas, harmônicas e instru­
Com algumas exceções (Rapsódia com voz de contralto, por exem­ mentais.
plo), sua obra não apresenta originalidade formal. Mas a inven­ A originalidade de Brahms não reside nas formas e nas es­
ção é generosa e pessoal o bastante para que hoje nunca pareça truturas, mas nas idéias: conclusão de uma sinfonia (a Quarta)
retrógrada, como os detratores de seu tempo o acusavam. Ela se por uma monumental chacona sobre um tema de Bach, enrique­
distingue por um sentimento de plenitude, equilíbrio, comedimien­ cimento da forma sonata mediante a utilização de três temas ou
to, pela escolha das soluções mais adequadas, particularmente na mais, introdução no desenvolvimento do princípio da variação,
instrumentação. Vincent d'Indy acha as sinfonias mal orquestra­ composição de quatro Heder sublimes com textos evangélicos e
das; mas Ravel, autoridade suprema nessa matéria, maravilha-se bíblicos (Vier ernste Gesänge, uma obra-prima) e de uma magní­
com elas. O tecido sonoro é pesado e macio, como são os belos fica liturgia dos mortos para a Igreja luterana (Ein deutsches Re­
tecidos; falta transparência, mas há calor. A harmonia, tradicio­ quiem) e, sobretudo, a reconciliação do sonho com a razão. So­
nal mas rica, contribui para dar essa impressão. No entanto, o mente em Richard Strauss encontraremos essa harmoniosa alian­
que acima de tudo preserva Brahms de qualquer secura acadêmi­ ça entre o classicismo e o romantismo, a ordem e a liberdade, o
ca é a generosidade de sua invenção melódica. Ele se inspira fre­ apolíneo e o dionisíaco. Se Brahms tivesse sido um chefe de esco­
qüentemente no inesgotável repertório do Volkslied. Em outras la, Strauss teria sido seu melhor discípulo.
aprende piano com dois bons pro­ mann. Será provavelmente o maior três sonatas, valsas, intermezzi, ca-
fessores locais. triunfo de sua carreira. priccii, rapsódias, variações (sobre
1847-1853 Aos catorze anos, dá 1875-1896 Brahms leva uma vida temas de Schumann, de Haendel
seu primeiro concerto público, to­ tranqüila em Viena, consagrando e de Paganini).
cando uma de suas composições. quase toda a sua atividade à com­
Ganha a vida tocando piano nas posição. Só se ausenta para algu­
tavernas e escrevendo música de mas breves viagens, profissionais
cervejaria. ou turísticas, à Alemanha e à Suí­ Brahms, 1896.
1853-1856 Torna-se parceiro do ça. É universalmente célebre e, se
violinista húngaro Remenyi numa suas obras são sempre discutidas
turnê de concertos. É então que faz em Viena, é porque seus partidá­
amizade com o célebre violinista rios (Hanslick à frente) o opuse­
Joachim, que o recomenda a Liszt ram aos wagnerianos e a Bruckner,
e a Schumann. Este consagra ao numa absurda rivalidade que ele
jovem compositor um artigo diti- nunca desejou. Apesar de seu as­
râmbico na Neue Zeitschrift für pecto externo brutal, é sensível e
Musik de 23 de outubro de 1853. liberal. Depois de ter desfrutado a
Durante os dois anos que precedem vida toda uma saúde de ferro, mor­
a morte de Schumann, Brahms f i ­ re aos sessenta e quatro anos de
ca em Düsseldorf, perto de Clara, câncer do fígado. Em suas exé­
prodigando-lhe um afeto que será quias, seu editor Simrock e Anton
fielmente mantido de ambas as Dvorak estão entre os que segu­
partes até a morte da grande pia­ ram o pano mortuário que cobre
nista, em 1896. o caixão.
1856-1862 Seu domicílio é Ham­
burgo, mas ele se apresenta por obra Grandes obras para coro e
toda parte como pianista e regen­ orquestra, entre as quais Ein deuts­
te, exercendo por algum tempo a che Requiem, Rapsódia com con­
função de diretor da música na tralto solo, Nänie, Gesang der Par­
corte de Detmold. Seu Concerto zen; corais a capela (dentre eles
em ré menor é mal recebido em Marienlieder), quartetos vocais (Lie¬
Leipzig em 1859. A partir de 1860, besliederwalzer, Zigeunerlieder) ;
adota, com Joachim, uma atitude numerosos Heder e harmonizações ΛΜΓίϋ•'.f.-iíi:* """««a
hostil em relação à "música do fu­ de canções populares. Quatro sin­
turo", representada por Liszt e fonias (1876, 1877, 1883, 1885),
Wagner. duas serenatas, Variações sobre um
JOHANNES BRAHMS 1862 Brahms instala-se em Viena, tema de Haydn. Dois concertos pa­
Hamburgo, 7 de maio de 1833 que será até a sua morte sua resi­ ra piano, um para violino, um con­
Viena, 3 de abril de 1897
dência principal. É, por algum tem­ certo duplo para violino e violon­
po, maestro da Singakademie celo. Dois sextetos de cordas, qua­
Filho de Johann Jakob Brahms (c. (1863-1864) e da Gesellschaft der tro quintetos (sendo um com pia­
1807-1872), contrabaixista de or­ Musikfreunde (1872-1875). no e um com clarineta), três quar­
questras populares, e de Johanna 1868 Primeira audição completa do tetos de cordas, três quartetos com
Henrika Nissen (c. 1790-1865). Réquiem alemão em Bremen, sob a piano, trios, sonatas para violino,
Criado pobremente numa casa mi­ regência do compositor, em presen­ para vioncelo, para clarineta. Nu­
merosas composições para piano:
serável do porto de Hamburgo, ça de Joachim e de Clara Schu­
Brahms aos vinte anos, por Laurens.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 132 133 A HERANÇA ROMÂNTICA

Bruckner Como Brahms, Bruckner foi promovido a chefe de es­ À herança de Schubert e de Beethoven {Missa solemnis e No­
cola a contragosto. Os partidários dos dois músicos opuseram- na sinfonia), à influência de Wagner, que não deve ser exagerada,
nos em vida. Às vezes, continuam opostos hoje, muito embora e à inspiração religiosa absolutamente fundamental, Bruckner acres­
o recuo da história atenue as diferenças. Ambos escreveram sin­ centa estas características pessoais importantes:
fonias de forma clássica e animaram-nas com um sopro românti­ — Uma orquestração bastante original, que muitas vezes evo­
co. Mas o romantismo de Bruckner é mais profundo e mais ins­ ca, como vimos, um órgão gigante, contanto que não se conside­
tintivo (ele não tem a menor cultura), seu estilo é mais livre e mais rem certas revisões wagnerizantes a que teve a ingenuidade de dar
38
ousado, embora o personagem seja anacrônico e pueril. Suas sin­ sua bênção .
fonias têm uma importância histórica muito maior, porque for­ — Uma luxuriante vegetação melódica que se multiplica ao
mam uma etapa capital entre o Schubert da Sinfonia em dó maior infinito com a inocente ousadia do barroco austríaco: a estética é
e Gustav Mahler. Ele se aparenta a seu compatriota Schubert pe­ bem a da admirável abadia de São Floriano, refúgio espiritual do
lo lirismo ingênuo, pela musicalidade pura sem compromisso in­ compositor.
telectual. Ambos são de origem camponesa; têm a mesma since­ — A mestria do grande estilo polifónico, em particular nos
ridade, o mesmo desdém pelas convenções mundanas; suas raízes finais das Sinfonias nf 7 e 8.
culturais são idênticas. Porém Bruckner é subjugado pela música — A assimilação do folclore da alta Áustria, cujo caráter se
de Wagner, que exerce uma influência importante sobre seu esti­ faz presente em particular nos magníficos scherzi, que lembram
lo melódico e sua escrita orquestral, sem fazê-la perder sua origi­ o da Sinfonia em dó maior de Schubert.
nalidade. — A ambigüidade modal e tonal, de que o scherzo áaNona Sin­
Bruckner é uma das personalidades mais cativantes da histó­ fonia oferece um exemplo admirável. A harmonia de Bruckner é um
ria da música. No curso de um ensaio de sua Quarta sinfonia, ele desmentido constante à surpreendente opinião de que é uma glorifi-
cação do acorde perfeito. Mahler não se deixará enganar por ela.
se aproxima encantado do maestro Hans Richter e põe-lhe dis­
cretamente na mão um táler, recomendando-lhe beber uma cane­ A Sétima e Nona sinfonias são, com o grandioso Te Deum,
os pontos culminantes de uma obra extremamente rica, que, no en­
ca de cerveja à sua saúde. Richter conservou religiosamente a ines­
tanto, valeu a Bruckner apenas fracassos e humilhações, até Nikisch,
timável moeda, fixada à corrente do seu relógio... Essa anedota
Richter e Mahler empreenderem a sua divulgação a partir de 1884.
ilustra o extraordinário candor de Bruckner, sua bondade, seus
Ainda hoje, é condenado sem ser ouvido e menospreza-se sua posi­
modos canhestros. Por sua timidez, sua tontice, seu jeito, suas ção histórica, não se recordando que ele é nove anos mais velho que
roupas grandes demais, sua polidez obsequiosa, parecia ridículo Brahms, trinta e seis mais velho que Mahler, a que costuma ser as­
e enternecedor. Também era excessivamente devoto; sua religião sociado, e apenas vinte e sete anos mais moço que Schubert.
infantil era a principal fonte de sua inspiração. Sua vida inteira
foi dominada pela fé, toda a sua obra é um ato de piedade. Co­
mo se pode criticá-lo pela extensão de suas obras? Elas exalam
um perfume de eternidade.
Admirável organista, introduz em suas sinfonias a espiritua­
lidade dos corais, e a disposição de sua orquestra evoca com fre­
qüência um registro de órgão, seja por nos fazer ouvir um sun­
tuoso cheio, seja por opor famílias instrumentais homogêneas. É
a um infinito metafísico que parecem referir-se os intermináveis
desenvolvimentos: o tempo não conta no diálogo com Deus. Ε
sem dúvida tanto o sentimento da perfeição divina quanto o das
exigências humanas é que impõem à composição longos períodos Bruckner, Sétima sinfonia, adágio.
de maturação e justificam as múltiplas revisões de obras nunca
suficientemente dignas da vocação que as inspira. Bastante pró­ 38. H á duas versões modernas das sinfonias que, ambas, pretendem ser fiéis
ximo de seu contemporâneo César Franck, ele não é, como Brahms à versão original, mas que apresentam sensíveis diferenças: a primeira foi publi­
cada a partir de 1934 por iniciativa da Sociedade Internacional Bruckner, sob a
o julgava, "um pobre louco que os padres de São Floriano têm direção de Robert Haas; a segunda a partir de 1950, por iniciativa da Biblioteca
na consciência". Nacional austríaca e sob a direção de Leopold Nowak.
ANTON BRUCKNER te grandes sucessos como improvi­
Alisfelden ( A l l a Austria), 4 de setembro de 1824 sador: em 1868 em Nancy e em
Viena, 11 de outubro de 1896
Notre-Dame de Paris (em presença
Seu pai, Anton (1791-1837), era de Franck, Saint-Saëns e Gounod),
mestre-escola, sacristão, chantre e em 1871 em Londres...
organista; sua mãe, Theresa Helm 1873 Primeira viagem a Bayreuth,
(1801-1860), era filha de um esta- aonde retornará com freqüência,
lajadeiro. Bruckner era o mais ve­ em particular para a estréia do Ring
lho de onze filhos. des Nibelungen (em 1876) e de Par­
sifal (em 1882).
1835-1836 É mandado para a casa 1881 Primeira audição triunfal da
de um primo, ém Hörsching, que Quarta sinfonia, sob a regência de
lhe ensina teoria musical e órgão, Richter: começo do reconhecimen­
base da formação de mestre-escola. to de Bruckner como compositor.
Seus estudos musicais durarão vin­ A estréia da Sétima sinfonia em
te e cinco anos! 1884, regida por Levi, assinalará
1837-1841 Estudos gerais e musi­ sua consagração. Apesar da hos­
cais na abadia de São Floriano, per­ tilidade de Hanslick e dos parti­
to de Linz, depois na Escola Nor­ dários de Brahms, os grandes re­
mal de Linz. gentes — Richter, Levi, Mottl,
1841-1855 Mestre-escola na aldeia Nikisch e Mahler — impõem pou­
de Windhag, depois de Kronsdorf co a pouco as sinfonias e o Te
e, enfim, em São Floriano, de que Deum. Bruckner chega a ser exe­
é ao mesmo tempo organista. Pri­ cutado nos Estados Unidos {Séti­
meiras composições. ma sinfonia em 1886, em Chicago
1855-1868 Organista da catedral de e Nova York).
Linz. Começa a granjear uma 1892 Triunfo da Oitava sinfonia em
grande reputação de improvisador. Viena, sob a regência de Richter.
Em 1858 (aos trinta e quatro 1893-1896 Sofrendo de hidropisia
anos!), faz um exame de teoria mu­ e problemas cardíacos, Bruckner
sical e de órgão em Viena, mas pouco aproveita seus sucessos tar­
continua a estudar: latim, teologia, dios e as honras de que o cumulam.
filosofia, física e... música (adqui­ Sai pouco e tem de ficar deitado
re uma notável ciência do contra­ com freqüência. Em 1895, o impe­
ponto). rador lhe oferece a casinha do Bel­
1864 Estréia na catedral de Linz de vedere, onde pode passear no jar­
sua primeira grande obra, a Missa dim. Mas ele se queixa da solidão.
em ré menor. Está com quarenta Esse grande e bom homem, que
anos. acredita na amizade, esse perpétuo obra Sete missas, cinco salmos (den- o órgão de Bruckner em
1865 Bruckner assiste em Munique noivo que volta a se apaixonar co­ tre os quais o magnífico Salmo 150), São Floriano.
à estréia de Tristão e Isolda. Bülow mo um adolescente, vai morrer qua­ um grandioso TeDeum, cantatas pa­
apresenta-o a Wagner. se sozinho. Suas exéquias serão ce­ ra coro misto, coros profanos para
1868 Instalação definitiva em Vie­ lebradas na Karlkirche, ao som do vozes masculinas. Onze sinfonias
na, onde é nomeado professor do adágio da sua Sétima sinfonia. É (sendo duas obras de juventude, sem
Conservatório e organista da corte inumado sob o órgão de São Flo­ número), um quinteto de cordas, pe­
(1868-1891). Alcança em toda par­ riano. ças para órgão e para piano.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 136 137 A HERANÇA ROMÂNTICA

A filiação Schubert -» Bruckner -» Mahler -* Alban Berg Sublime, exigente, atormentado pelos pressentimentos, tra­
atesta a realidade de uma escola austríaca que se distingue menos duz em neurose obsessiva o conflito que o opõe a seu tempo, a
por características nacionais (notáveis, porém, nos três primeiros) todos os tempos. O humor negro é a expressão familiar dos senti­
do que por uma extrema sensibilidade lírica e pela independência mentos contraditórios que o habitam. Freud, que Mahler consul­
em relação aos sistemas estabelecidos. A influência wagneriana ta no fim da vida, dá uma explicação interessante dessas contra­
foi mais profunda na Áustria do que na Alemanha, por corres­ dições. Em criança, o músico assiste a uma cena violentíssima en­
ponder a uma necessidade de escapar das estruturas clássicas; ela tre seus pais; foge para a rua e dá com um realejo que toca O
fez a escola austríaca enveredar pelo caminho do expressionismo du Heber Augustin.
e da famosa "emancipação da dissonância", cujas conseqüências
históricas Schönberg assumirá e cujas premissas já encontramos
em Schubert.
À morte' de Wagner, a Alemanha está padecendo de seus
sucessos econômicos e militares. A grande burguesia, sedenta de
arte alemã, faz de Bayreuth o Partenon da nação unificada. Mas A associação da tragédia com a alegria popular, explica Freud,
a recente unidade nacional, como as aquisições de toda revolu­ fica arraigada em seu psiquismo, a tal ponto que cada um desses
ção que se crê acabada, inspira para sua defesa uma mística da estados provoca invariavelmente o outro. De fato, em toda a sua
ordem. Wagner, o ídolo da nação, não é reconhecido como pro­ obra, temas de caráter popular criam uma atmosfera estranha­
motor de uma revolução musical cosmopolita; ele representa um mente inquietante. O mesmo pode ser dito dos ecos de música mi­
novo absoluto estético, uma alternativa ao classicismo. No en­ litar, associados sem dúvida aos perpétuos dramas familiares na
tanto, os músicos alemães pressentem o potencial subversivo da época em que os Mahler moravam em Jihlava, na Morávia, não
arte wagneriana e a impossibilidade de aliar-se a ela sem progre­ longe do quartel austríaco. Nos grandiosos psicodramas que as
dir perigosamente na direção que ela impõe, e é numa ordem sinfonias de Mahler parecem ser, as fanfarras e as marchas evo­
clássica que preferem buscar sua identidade nacional. " A Ale­ cam a morte; as valsas e os ländler, a loucura.
manha de hoje", escreve Debussy, "debate-se numa atmosfera Na época de sua formação musical, seus primeiros grandes
tetralógica em que uns caminham cegados pelos últimos reflexos modelos foram Wagner, de quem Hugo Wolf, colega de Mahler
desse pôr-do-sol que é Wagner; em que outros se agarram à fór­ no Conservatório de Viena, é prosélito intransigente, e sobretudo
mula neobeethoveniana que Brahms deixou." Em outras pala­ Bruckner, a quem dedica uma afetuosa admiração. Não foi seu
vras, não haveria saída para uma alternativa de estéticas cadu­ aluno; mas a compreensão mútua entre ambos designa Mahler co­
cas... Em compensação, a Áustria é um foco de fermentação ar­ mo seu discípulo espiritual. "Estimo, pois, ser mais habilitado do
tística. Não sendo afetada por nenhuma psicose nacionalista, ela que qualquer outro a me considerar seu aluno, o que sempre fa­
pode deixar-se seduzir por correntes cosmopolitas. Viena, centro rei com um sentimento de profunda gratidão." A influência de
geográfico da Europa, também é um ponto de convergência das Bruckner é fundamental. Percebemo-la nas arquiteturas grandio­
tendências musicais. sas, numa concepção não formalista do desenvolvimento que po­
deria ser qualifiçado de psicológico, na expressão de uma profunda
Mahler Nascido de uma família de judeus alemães estabeleci­ espiritualidade, católica em Bruckner, panteísta em Mahler (que
dos na Boêmia, mais tarde na Morávia, Gustav Mahler é um des­ recorre inclusive ao estilo do coral, no final da Quinta sinfonia
ses perpétuos exilados para quem Viena foi a pátria adotiva. "Sou e no último dos cinco Rückert-Lieder).
três vezes apátrida", dizia ele. "Como natural da Boêmia, na Áus­ Mas Mahler é, antes de mais nada, um dos maiores regentes
tria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo in­ da história, e essa carreira tem uma influência muito profunda
teiro. Por toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado!" em sua atividade criadora. Suas interpretações de Don Giovanni,
A ambigüidade de sua personalidade, dilacerada pelos conflitos de Fidelio, da Valquíria são consideradas modelos insuperáveis.
psicológicos, reflete-se em sua carreira e em sua obra. A fatalida­ Regeu quase toda a obra de Wagner, mas também Gluck (Iphige­
de que o priva de raízes também parece privá-lo de idade: ele está nie en Aulide), Mozart, Beethoven, Weber, Verdi, Puccini, Bizet
dividido entre o século X I X e o século X X , entre Bruckner e (Carmen e Djamileh), Tchaikovsky, Smetana, Offenbach (Con­
Schönberg. tos de Hoffmann), e até a Louise de Charpentier; a censura im-
Cenários de A . Roller para Iphigenie en Aulide (ato I I I ) . . . ... e para Lohengrin (ato Γ).

perial proíbe a representação de Salomé de Strauss, que ele se pro­ te criticado em sua obra. Talvez também explique por que essa
punha reger. Homem de teatro consumado, faz da Ópera de Vie­ obra estranha e ambígua pôde ser o elo fundamental entre Wag­
na uma das primeiras da Europa, renovando audaciosamente a ner e Bruckner, de um lado, Schönberg, Berg e Webern, de ou­
encenação com a colaboração do grande cenógrafo Alfred Roller tro. Schönberg e seus discípulos atestaram muitas vezes a influência
(cenários alusivos, estilizados, que fugiam do realismo de pape­ que a música de Mahler exerceu sobre eles. Os Kindertotenlieder,
lão, importância da iluminação e das cores, jogo cênico eficaz e Das Lied von der Erde e a Nona sinfonia, suas obras-primas, per­
tencem plenamente ao século XX, de que caucionam uma das ten­
rigoroso...). Suas interpretações das sinfonias de Bruckner, daTVo-
dências dominantes, a da escola vienense.
na de Beethoven e de suas próprias obras também são exempla­
res, como atesta a tradição transmitida por Bruno Walter, que
foi assistente de Mahler de 1894 a 1907. Raramente um regente
deixou uma impressão tão forte e tão duradoura.
Ora, um compositor necessita de silêncio e de paz para
absorver-se inteiramente em suas próprias concepções estéticas.
É sempre difícil edificar uma obra original quando se está imerso
na música dos outros, o que explica a raridade dos músicos que Die Sonne scheLdet htnteráímGe.bir- _ge. Inat.le Ta" „ Itr steigtdír A-fcend nieder
sejam tão grandes criadores quanto intérpretes. Mahler era uma
dessas exceções. No entanto, o contato permanente e profundo
com uma grande variedade de estilos (ele estudava as partituras Mahler, Das Lied von der Erde:
com extremo cuidado) explica o ecletismo que foi freqüentemen- "Der Abschied".
GUSTAV M A H L E R dor). Renova a interpretação das Zemlinsky (cunhado de Schön­ Amsterdã, Paris, Roma... Em
Kalisté (Morávia), 7 de julho de 1860 obras do repertório, de Gluck e Mo­ berg). Terão duas filhas, Maria e
1909, deixa o Metropolitan (assumi­
Viena, 18 de maio de 1911
zart a Verdi e Wagner, monta pela Anna; a mais velha morrerá de do por Toscamni) a fim de se con­
primeira vez em Viena Dalibor de difteria em 1907 (seis anos depois
sagrar a uma orquestra que formou
Füho de Bernhard Mahler (1827¬ Smetana, Ievgueni Onieguin de da composição dos Kindertoten- com o auxílio de um comitê de se­
1889), estalajadeiro, e de Maria Tchaikovsky, Djamileh de Bizet, lieder). nhoras.
Hermann (1837-1889), entre os lança-se numa brilhante carreira de1903 Primeira viagem à Holanda, 1910 Estréia da Oitava sinfonia em
quais reina um violento desentendi­ encenador. Os espetáculos que a convite de Mengelberg, país que Munique, em presença de Thomas
mento. Gustav é o segundo de uma monta com o concurso do pintor Mahler considerará sua segunda pá­ Mann, Strauss, Schönberg e Bru­
família de doze filhos (dos quais seis Alfred Roller vão tornar-se mode­ tria e que sempre lhe permanecerá no Walter: é uma apoteose. Via­
morrem em tema idade). los históricos: o Ring, Don Giovan­fiel. Meio das relações com Schön­ gem à Holanda; consulta Freud em
ni, Figaro, Iphigenie en Aulide... berg. Leyde.
1869-1875 Estudos gerais e musi­ Mahler também é regente da Or­ 1907-1911 Depois de ter pedido de­ 1911 No fim de uma temporada
cais em Jihlava. questra Filarmônica, com a qual missão de suas funções em Viena, atribulada nos Estados Unidos,
1875-1879 Aluno do Conservató­ executa a primeira audição da Sex- onde Weingartner lhe sucede, Mah- Mahler é acometido de uma angi­
rio de Viena, onde tem como cole­ na infecciosa e seu coração está
ga Hugo Wolf, wagneriano mili­ muito cansado. No caminho de vol­
tante. Na Universidade, estuda f i ­ ta, é tratado em Paris. Morre alguns
losofia e história. Apego filial a dias depois de sua chegada a Vie­
Bruckner. na. É enterrado no cemitério de
1880-1885 Ocupa cargos de Kapell­ Grinzing, ao lado da filha.
meister, sucessivamente em Hall,
Liubliana, Olomuc (onde monta obra Nove sinfonias e vastos esbo­
s
Carmen, em 1883) e Kassel. A par­ ços de uma décima (as sinfonias n°
tir de então, a maior parte de seu 2, 3, 4, 8 com intervenção mais ou
tempo (salvo o verão, reservado à menos importante da voz). Das
composição) é consagrada a uma Lied von der Erde (contralto, tenor
prestigiosa carreira de regente. e orquestra). Varios ciclos de Heder,
1885- 1886 Maestro da Ópera de a maioria com acompanhamento de
Praga, onde rege Gluck, Mozart, orquestra.
Beethoven, Wagner.
= *f Ή '' X U f T» * « L ^ l l -JeSl
1886- 1888 Segundo maestro em
Leipzig (o primeiro é Nikisch). É
encarregado de completar a ópera
inacabada de Weber Die drei Pin­
tos e reger sua estréia. Termina sua
Primeira sinfonia. contratado como ensaiador, depois Gustav
ta sinfonia de Bruckner e de várias 1er faz uma brilhante carreira nos Mahler, Esboços para o primeiro
1888-1891 Diretor da Ópera de Bu- maestro dos coros e, enfim, segun-
dapeste, que reorganiza completa- do maestro da orquestra. Concer­
de suas próprias sinfonias. Bruno Estados Unidos. No Metropolitan movimento da Décima sinfonia.
Walter torna-se segundo maestro Opera, dirige representações memo­
niente. Uma apresentação de Don tos de Mahler em Londres, Wei-
em 1901. ráveis de Don Giovanni, Fidelio,
Giovanni regida por Mahler susci- mar, Berlim (Segunda sinfonia). É
ta o entusiasmo de Brahms. Estréia batizado. 1900 Cinco concertos em Paris, por Tristão e Isolda e apresenta pela pri­
da Primeira sinfonia. 1897-1907 Kapellmeister e diretor ocasião da Exposição universal. meira vez em Nova York A noiva
1891-1897 Primeiro maestro da artístico da Ópera de Viena, com 1902 Mahler casa-se com Alma vendida e A dama de espadas. To­
Ópera de Hamburgo. Em 1894, o um poder quase absoluto (em prin- Schindler (1879-1964), bela, culta, da primavera e todo verão, está na
jovem Bruno Walter (18 anos) é cípio, depende apenas do impera- artista, aluna de composição de Europa, regendo em Viena, Praga,
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 142 143 A HERANÇA ROMÂNTICA

Como a tendência antagônica tinha sua fonte em Pelléas, (1863), Debussy (1884) foram premiados; e, à parte Maurice Ra­
Mahler não conseguia compreender o gênio de Debussy . Ao 39
vel, não conhecemos muitos gênios reprovados. A principal críti­
contrário da maioria dos músicos mortos prematuramente e que ca que se pode fazer aos sucessivos júris é por não utilizarem com
dão a impressão de terem completado sua obra, ele estava, em a devida freqüência o direito de não conceder o prêmio. Mas é
1911, num momento de mudança em sua carreira, tendo decidi­ preciso ser candidato para ser .premiado. Ora, o prêmio de Ro­
do consagrar-se inteiramente à composição. O adágio, único mo­ ma, desacreditado por sua ineficácia, deixa indiferentes os jovens
vimento acabado da Décima sinfonia, indica-nos com que espíri­ músicos que, em torno de Franck, Saint-Saëns e Fauré, formam
to de abertura esse herdeiro dos românticos encarava o futuro. a elite da música francesa.
Hugo Wolf (1860-1903), exato contemporâneo de Mahler, é Quando, em 1872, César Franck é nomeado para a classe
um gênio trágico, atormentado pela loucura e pela morte. Suas ten­ de órgão do Conservatório, Berlioz morrera fazia três anos. Os
dências psicóticas levaram ao fracasso tudo o que empreendeu. No mais célebres compositores franceses vivos são Charles Gounod
entanto, a partir de 1888, uma profusão de Heder admiráveis bro­ (1818-1893) e Camille Saint-Saëns (1835-1921). O primeiro já
taram subitamente da sua pena (mais de trezentos); entusiasmado figura como ancião; suas óperas, que continuam a triunfar, agora
com seu próprio gênio, parecia não se controlar, comparava-se a são clássicas, e logo ele se consagrará inteiramente à música re­
Schubert e a Schumann. Sua óperaDer Corregidor é uma magnífi­ ligiosa. O segundo é o único grande músico moderno, o fre­
ca coleção de lieder, mas sem interesse dramático. qüentador de Weimar, o guia da jovem geração, o virtuose adu­
lado. "Enquanto ele fazia tentativas contínuas para classificar-
A escola francesa Se existe uma escola francesa, é a um obscu­ se entre os compositores, eu acabei perdendo-o totalmente de
ro músico estrangeiro que a devemos: o organista César Franck vista" (Wagner, Memórias). Saint-Saëns é fabulosamente bem
(1822-1890),flamengopor parte de pai, alemão por parte de mãe, dotado, interessa-se por tudo e cultiva em sua música um ecle­
e que só teve seu primeiro sucesso como compositor aos sessenta tismo que viraria uma confusão se seu lirismo não fosse domi­
e oito anos, no ano da sua morte (quarteto de cordas). Berlioz nado por um extremo rigor formal. Admirador, depois adversá­
nada tinha de um chefe de escola e, embora tenha sido o inicia­ rio de Wagner, contribuiu para afastar a música francesa do
dor do canto francês moderno, seus compatriotas não reconhece­ wagnerismo; ensinando a clareza, a lógica, a perfeição da escri­
ram seu gênio. " É preciso ter uma bandeira tricolor nos olhos", ta, ele está na origem de uma renovação que a filiação Fauré-
escrevia em 1848, "para não ver que a música morreu agora na
Ravel ilustra. O século X X fará dele o símbolo do academismo
França [...] Nos últimos sete anos, vivo apenas do que minhas
em música, porque se esquecerá que ele era contemporâneo de
obras e meus concertos me renderam no estrangeiro." É verdade
Brahms: sua carreira excepcionalmente longa (foi uma criança
que as instituições musicais são medíocres ou esclerosadas. " H á
prodígio e morreu aos oitenta e sete anos) dá-lhe o privilégio
um só teatro lírico em Paris", acrescenta Berlioz, "a Ópera, que
40 de ter conhecido todos os grandes românticos e morrido depois
é dirigida por um cretino e está fechada para m i m " . . .
de Debussy. Saint-Saëns foi assistente de Berlioz (quando este
A atribuição do grande prêmio de Roma, instituído em 1803,
montou Armide e Alceste de Gluck) e testemunha da carreira
deveria ter sido o poderoso instrumento de promoção de uma es­
de Debussy, Ravel e Stravinsky. Sua bela Sinfonia com órgão
cola nacional. Mas, ao voltarem da Vila Médicis, os músicos lau­
(1886) acaso é mais acadêmica que sua contemporânea, a Quar­
reados encontram-se sós num mundo indiferente ou hostil, sem
apoio e sem perspectivas. Todavia, a ironia habitual sobre a me­ ta de Brahms?
diocridade dos laureados é injusta. Ao contrário do que se repe­ Edouard Lalo, mais velho que ele (1823-1892), excelente sin­
te, a maioria dos grandes compositores que se apresentaram para fonista, criador do balé francês moderno {Namouna, sua obra-
o concurso do Instituto recebeu o primeiro grande prêmio. No prima), é um independente menosprezado. Apenas seu Concerto
século XIX, Berlioz (1830), Gounod (1839), Bizet (1857), Massenet para violino e a Sinfonia espanhola têm sucesso; mas é Sarasate,
seu intérprete, que o público aplaude.
39. Reciprocamente, Debussy não conseguia suportar a música de Mahler.
Quando este regeu sua Segunda sinfonia em Paris, em 1910, Debussy abandonou Franck Numa França musical dominada pelo estrangeiro, o "ve­
ostensivamente a sala no meio do segundo movimento.
lho Franck" vai tornar-se, sem querer, um chefe de escola. Ao
40. Carta escrita de Londres a seu amigo, o arquiteto Duc. O "cretino" em
questão é o arquiteto Edmond Duponchel, bom administrador, mas musicalmen­ mesmo tempo que inicia seus alunos no gênio de Bach e lhes ensi­
te incompetente. na a improvisar, acaba transformando sua classe de órgão numa
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 144

verdadeira classe de composição, e sua compreensão calorosa da


personalidade de cada um inspira na nova geração que se forma
uma confiança afetuosa.
Henri Duparc (1848-1933), Vincent d'Indy (1851-1931), Er­
nest Chausson (1855-1899), Guy Ropartz (1864-1955), Guillaume
Lekeu (1870-1894) estão entre seus mais fervorosos discípulos. O
mesmo não se poderá dizer de Debussy, que fará uma curta apa­
rição na classe de órgão. "Module, module!", grita-lhe Franck.
"Mas por que haveria eu de modular, se me sinto muito bem nes­
ta tonalidade?"
.1 Os alunos de Franck criaram uma religião, o "franckismo",
que preservou do esquecimento esse artista modesto e desconhe­
cido. Ele nos faz pensar em outro organista, Bruckner, dois anos
mais moço, por sua bondade, sua ingenuidade, sua obstinação
no trabalho, qualidades que não mantêm a curiosidade do públi­
co, nem o interesse das instituições públicas. Vincent d'Indy divi­
de sua obra em três períodos: o primeiro, consagrado à música
ganha-pão, o segundo a uma música de igreja de qualidade desi­
gual, o terceiro (1876-1890) às composições maiores, dentre as
quais suas obras-primas: o Quinteto sobretudo, a Sonata para vio­
lino epiano, o Prelúdio, Coral e Fuga para piano, os Três corais
para órgão, as Variações sinfônicas e, apesar das passagens pesa­
das, a Sinfonia. Ele forneceu o modelo de uma forma dita "cícli­
ca", em que o reaparecimento, nos diversos movimentos, de um
tema ou de um fragmento melódico garante a unidade da obra.
^ O princípio não é de uma novidade extraordinária, mas é aplica­
do, aqui, sistematicamente, e os exegetas de Franck deliciam-se
com isso. Ele, é claro, atém-se à lógica formal; seus alunos po­
dem dizer algo a respeito. No entanto, isso não é essencial, por­
que, se ele se submete a uma lógica rigorosa, é para impor limites
a uma imaginação poderosa e generosa, amiúde sensual, por ve­
zes tumultuosa (o magnífico Quinteto). As obras-primas dos dez
últimos anos, nas quais repousa inteiramente a glória de Franck,
destroem admiravelmente a imagem de um "pater seraphicus",
que é, ao mesmo tempo, um professor de boas maneiras.

Variações sinfônicas.

Gustave Moreau, Orfeu.


145 A HERANÇA ROMÂNTICA

Mas uma escola deveria ter uma estética, e Franck não im­
põe nenhuma. Em compensação, a derrota de 1871 estimula um
nacionalismo chauvinista que mobiliza as forças criadoras. Cum­
pre ressuscitar a música francesa; e já que a ópera está corrompi­
da, já que o prêmio de Roma não é uma promoção, mas um di­
ploma de academismo, já que as associações sinfônicas (a do Con­
servatório e a de Pasdeloup no Cirque d'Hiver) só se interessam
pelo repertório clássico e pelos românticos estrangeiros, um pe­
queno grupo de independentes, que obteve a participação de
Franck e Saint-Saëns, decide fundar uma associação para a pro­
moção da música francesa moderna: a Société Nationale de Mu­
sique, cuja divisa é "Ars gallica". Pouco a pouco, todos os ami­
gos e discípulos de Franck e Saint-Saëns unem-se aos fundado­
res. A escola francesa afirma seu caráter nacional, mas continua
não tendo uma estética definida. O franckismo, cujos partidários
praticamente controlam a Société Nationale, é muito mais uma
41
ética e uma fidelidade . Ele é o fermento na massa: suscitando,
uma renovação musical, uma confiança na vitalidade da música
francesa, cria o clima de descoberta artística de que Debussy e
Ravel se beneficiarão...
O ruído feito em torno do franckismo não pode ser imputa­
do ao mestre que inspirou um culto tão fervoroso e, por vezes,
tão agressivo (com Saint-Saëns sobretudo e, mais tarde, com De­
bussy). O papel histórico de Franck foi reconhecer e incentivar
a personalidade dos jovens músicos, inspirar-lhes o respeito pela
arte de cada um, propiciar suas pesquisas, muitas vezes ouvi-los.
Foi bem a contragosto que esse homem sério e modesto foi pro­
movido a chefe de escola; como disse Charles Bordes (fundador
da Schola cantorum e dos Cantores de Saint-Gervais), "o velho
Franck foi formado por seus alunos". Não pensamos mais em
Bruckner, mas em Messiaen, cuja excepcional inteligência peda­
gógica permitiu que se estabelecesse entre professor e alunos uma
dupla corrente de influências fecundas. Mas, felizmente, não ha­
verá religião "messiaemsta" para completar o paralelo.

A Schola O profeta do franckismo é Vincent d'Indy, que se pro­


clama herdeiro do mestre. À morte de Franck, toma em mãos os
destinos da Société Nationale e, quatro anos mais tarde, com Bor­
des e Guilmant, funda a Schola cantorum, de que se torna pro­
fessor de composição e diretor. A escola que se forma em torno
dele vai opor-se sistematicamente ao "debussysmo", exaltando
a ordem e o rigor perante a sensualidade e a liberdade. Essa to­
mada de posição é ainda mais lamentável porque D'Indy sentia

41. Depois da morte de Franck, seus discípulos transformarão a Société Na­


tionale em panelinha. Os excluídos fundarão em 1909 a Société musicale indépen­
dante, que representará um papel importantíssimo.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 146

pessoalmente admiração e amizade por Debussy. Alguns discípu­


los fizeram um grande mal à sua memória, ao manterem uma que­
rela que ele não cogitara.
Seu ensino é de altíssimo nível, e o homem impõe respeito
por sua dedicação e sua retidão. Infelizmente, sua filosofia artís­
tica confusa baseia-se nos paradoxos históricos com que a. Action
française* alimentará sua doutrina literária e política: o roman­
tismo e a democracia aniquilaram a autêntica cultura francesa,
isto é, o classicismo, arraigado na tradição greco-latina; o milita­
rismo e a Kultur da Alemanha são, ao mesmo tempo, uma amea­
ça e um exemplo; os judeus, os protestantes, os franco-maçons
e os estrangeiros corrompem o patrimônio nacional nele inserin­
do valores alienígenas; a ópera "judaico-italiana", o naturalis­
mo e o simbolismo são produtos malsãos do romantismo... O mo­
delo do nacionalismo musical de Vincent d'Indy será o de Wag­
ner. Depois de se ter entusiasmado com Carmen, tem a revelação
de Bayreuth em 1876 (O anel dos nibelungos), depois em 1882 {Par­
sifal). Quando da segunda viagem, Liszt apresenta-o ao músico
alemão, cuja obra e cujas idéias o fascinam. Entrementes, numa
entrevista que fez grande barulho na época, dada ao jornalista
Louis de Fourcaud (1879), Wagner exorta os músicos franceses
a reatarem o fio interrompido de suas tradições musicais (sua cul­
tura insuficiente não lhe permite dizer como) e a inspirarem-se em
temas nacionais lendários. Em busca da tradição perdida, D'Indy
redescobre Rameau e o põe, com os mestres da Renascença e do
século X V I I , a serviço da nova ordem. eixo e tornando-o estéril. Não podia ser seguido, porqüe não ti- Vincent d'Indy na Schola.
A tendência humanista que se desenvolve na Schola canto- nha outra estética a propor, além de uma vaga expiação do peca­
rum foi certamente favorável ao desenvolvimento da escola fran­ do romântico e democrático. Dois alunos de Franck ofereciam
cesa, por mais contestável que tenha sido sua ideologia subjacen­ estéticas mais sutis: Chausson, o esquecido (nunca foi represen­
te. Mas a obra de Vincent d'Indy nem sempre ilustra essa renova­ tado na França Le roiArthus), e Duparc, cujas melodias são mo­
ção de maneira convincente. Até cerca de 1885, a influência wag­ delos do gênero. Mas o primeiro morreu prematuramente e o se­
neriana é dominante. Depois, a inspiração nacionalista e cristã
gundo parou de compor aos trinta e sete anos.
produz obras monumentais, rígidas e pretensiosas (como a Len­
Se Franck deu à escola francesa moderna, herdeira de Ber­
da de São Cristóvão, assustadora profissão de fé), mas também
seus maiores êxitos: a Symphonie cévenole e, sobretudo, L'étran­ lioz e de Gounod, a sensação de existir, e se D'Indy redescobriu
ger ("ação musical" mais concisa que Fervaal). O equilíbrio clás­ sua árvore genealógica, Bizet produziu a primeira grande obra-
sico tão admirado só começa a ser sensível nas últimas obras. E, prima que abria perspectivas de futuro e uma audiência interna­
quaisquer que sejam as qualidades pedagógicas de Vincent d'Indy, cional (v. p. 114). Porém é muito mais na música de Chabrier e
seu exemplo chega tarde demais: quer sejamos ou não sensíveis de Fauré que se encontram as características estéticas nacionais
ao classicismo francês do belo Diptyque méditerranéen, os jovens que então se costumava, de maneira bastante arbitrária por sinal,
compositores nada podem encontrar de exaltante nele, vinte anos opor ao romantismo e ao expressionismo alemães: equilíbrio, iro­
depois de La mer de Debussy. nia, poesia alusiva, comedimento e uma certa lucidez, que os fran­
D'Indy desperdiçou seu talento com seus princípios e sua falta ceses chamam de "espírito" e que geralmente recusam aos ou­
de intuição: ele não percebeu que estava tirando o franckismo do tros povos. Esses dois músicos, contemporâneos dos pintores "im­
pressionistas" e dos poetas "simbolistas", têm personalidades di­
+ Organização de extrema direita, dissolvida pelo governo depois da Segunda
ferentes, mas complementares, na imagem que o estrangeiro po­
Guerra, quando apoiou o governo pró-hitlerista de Vichy. (N.T.) derá formar da música francesa.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 148 149 A HERANÇA ROMÂNTICA

Chabrier Emmanuel Chabrier (1841-1894) deve à sua gordura


e a seu caráter jovial o fato de ser sumariamente classificado no tréia de Samson etDalila), Colônia profanas para coro e orquestra, no­
gênero desacreditado da música humorística. A maior parte de e Munique (em 1878 e 1879, com venta e sete melodias (dentre as
sua música é irônica e alegre. L'étoile (1877), maravilha de bufo­ Messager, para ouvir a Tetralogía). quais os ciclos La bonne chanson,
nada, permaneceu por muito tempo o exemplo que impedia os O Réquiem é executado na Made­ La chanson d'Ève, Le jardin clos,
músicos franceses de se levarem a sério. Mas a verve humorística leine (1888). Concertos em Londres L'horizon chimérique). Numerosas
de Chabrier esconde ao ouvinte desatento a arte, o entusiasmo e Genebra (1894). Voltará com fre­ composições para piano, dentre as
e a sensibilidade desse músico. Esse autodidata independente, ami­ qüência a Londres. quais Balada e Fantasia para piano
go de Manet e de Verlaine, felizmente não tem a seriedade de 1896 É nomeado organista da Ma­ e orquestra, treze Barcarolas, treze
Saint-Saëns ou do "bando de Franck". No entanto, ele confes­ deleine e professor de composi­ Noturnos, Temae Variações... Um
sava: "Apesar da minha aparência jovial, pertenço à categoria ção no Conservatório. Entre seus trio, dois quartetos e dois quintetos
de pessoas que sentem profundamente." No fim da vida, afir­ alunos: Ravel, Schmitt, Koechlin, com piano; um quarteto de cordas;
mava só gostar de Offenbach e de Wagner. Esse wagneriano fer­ Enesco. duas sonatas para violino e piano,
voroso partilhava com Offenbach o desprezo pela retórica e pe­ 1903 Princípio da colaboração de duas sonatas para violoncelo e
los sistemas. Foi buscar na música popular suas escalas modais, Fauré para Le Figaro. Primeiros piano.
seus ritmos francos e uma espécie de ingenuidade requintada que problemas auditivos.
é o encanto da sua música e que faz dela o melhor antídoto ao 1905 Em conseqüência do "caso
wagnerismo. Suas obras-primas são a ópera-cômica Le roi mal­ Ravel", Fauré sucede a Dubois na
gré lui (1887) e Pièces pittoresques para piano. Depois de ouvi- direção do Conservatório. Convida
las em 1881, Franck declarava com uma bela perspicácia: "Aca­ Debussy e D'Indy para ensinar lá.
bamos de ouvir algo extraordinário. Essa música liga nosso tem­ 1909 Eleito membro do Instituto
po ao de Couperin e Rameau." A arte de Chabrier não é estra­ (18 votos, contra 16 a Widor). Pre­
nha tampouco à dos pintores contemporâneos, de quem possuía sidente da Société musicale indépen­
numerosas telas (em particular umas quinze de Manet): eles têm dante.
o mesmo ideal de clareza. 1914 Sua surdez se agrava, mas ele
continua a desempenhar durante a
guerra suas funções no Conserva­
1866-1870 Organista da igreja de torio.
GABRIEL FAURÉ
Pamiers (Ariège), 12 de maio de 1845 Saint-Sauveur em Rennes. Primei­ 1920 A surdez força-o a se apo­
Paris, 4 de novembro de 1924
ros sucessos como compositor: me­ sentar.
lodias cantadas por Madame Car­ 1922 Homenagem nacional a Fau­
Sexto filho de Toussaint-Honoré valho. ré. Número especial da Revue mu­
Fauré (1810-1885), mestre-escola, 1870 Organista de Notre-Dame de sicale.
e de Hélène de Lalène-Laprade Clignancourt. Passa a guerra nos 1924 Morre das conseqüências de
(7-1887), filha de um capitão apo­ Voltigeurs [tropa de elite da infan­ uma pneumonia. Exéquias nacio­
sentado. Por recomendação de Sau- taria]. Durante a Comuna de Paris, nais na Madeleine, em presença do
biac, deputado da Ariège, maravi­ está em Rambouillet e na Suíça. presidente da República; executa-se
lhado com os dons do pequeno Fau­ 1872-1877 Organista em Saint- o Réquiem.
ré, Niedermeyer oferece aceitá-lo Honoré d'Eylau, depois ao órgão
gratuitamente em sua célebre ' 'Es­ do coro de Saint-Sulpice (grande ór­ obra Duas óperas, Prométhée (Bé-
cola de Música Religiosa de Paris " . gão: Widor), depois suplente de ziers, 1900) e Pénélope (Monte Car­
Saint-Saëns na Madeleine. Partici­ io, 1913). Músicas de cena, princi­
1855-1865 Interno na escola de pa da fundação da Société natio­ palmente para Pelléas et Mélisande
Niedermeyer, que também dá a nale. (Londres, 1898). Um divertimento
educação geral. Seu professor de 1877-1896 Mestre-de-capela na musical, Masques et bergamasques
piano é Saint-Saëns, que se torna­ Madeleine. Viagens a Weimar (em (Monte Cario, 1919). Numerosas
rá seu amigo. 1877, com Saint-Saëns, para a es- composições religiosas, várias obras
Figurinos para Pénélope
de Fauré, por Ibels.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 150

Fauré A arte sutil de Gabriel Fauré (1845-1924), estranha tam­


bém a todas as formas de grandiloqüência, é próxima da que a
Arte poética de Verlaine ilustra e define. Fora de suas fronteiras,
essa arte é geralmente considerada específica da cultura francesa
no que ela tem de mais original e de mais inexportável. Claro,
a beleza secreta da obra de Fauré, cuja parte mais preciosa, afora
o admirável quarteto de cordas, está contida nas últimas coletâ­
neas de melodias e peças para piano, a beleza dessa música nobre
e serena só se revela ao melómano culto, que saberá descobrir na
sutileza harmônica, de que em geral a melodia decorre, o segredo
de uma sensibilidade musical singular. Seu gênio, perfeitamente
original, deve' pouco (não obstante o que ele possa ter dito, em
sua modéstia) a seu mestre e amigo Saint-Saëns e nada a Liszt ou
Wagner, que ele admirava, mas com prudência. Quando Liszt de­
cifra a Balada em 1882, fica desconcertado pela novidade da es­
crita e acha a obra demasiado difícil. Pouco tempo atrás, acha­
vam o próprio Liszt demasiado moderno.

Fauré é um inovador, cuja importância teria sido mais bem


percebida se sua arte desconcertante não estivesse eclipsada pelo
gênio de Debussy. Ele criou uma escrita pianística minuciosamente
não conformista, de que se tornará devedora a geração seguinte,
+
e sua harmonia movediça, com suas "blue notes" em ruptura

+ Notas bemoladas, em geral a 3? e a 7? menores, características do jazz


cantado. (N.T.)
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 152 153 A HERANÇA ROMÂNTICA

de equilíbrio, é muito mais livre e original que a dos franckistas. No entanto, se todo o mundo rende homenagem a Fauré, seus
Com Duparc, é o criador de um tipo de melodia francesa insepará­ intérpretes são hoje raros e seu público extremamente Hmitado.
vel da cultura nacional. Mas, como Saint-Saëns, viveu o bastante Toda a escola francesa do século X I X está na mesma situação.
para ser confrontado a seus discípulos — cujas conquistas ele não Houve um desinteresse global por ela, em reação ao chauvinismo
faz suas — na realização última de uma obra que tende à suprema e ao terrorismo estético dos discípulos de Vincent d'Indy, mas tam­
purificação de seu próprio estilo. Permanece, no entanto, muito sen­
bém, talvez, porque seus fundamentos culturais são incertos e por­
sível às pesquisas dos jovens músicos, que admira e encoraja com
que não se encontrou uma personalidade forte o bastante para
uma notável compreensão do futuro da música francesa. Sua pe­
dagogia é um ato de amor, e seus alunos (Ravel, Schmitt, Enesco, propor uma estética capaz de substituir o wagnerismo. Qualquer
Casella, Koechün, Roger-Ducasse...) conservarão a lembrança de que seja a importância histórica da renovação de que foram pro­
sua bondade radiante, de sua intuição, de sua abertura de espírito. motores, nenhum músico francês desde Berlioz teve o gênio e a
influência internacional que terão Debussy e Ravel.

A escola inglesa Ao contrário do patriotismo francês, suscetí­


vel e revanchista, o dos ingleses se distingue por um profundo sen­
timento de superioridade, que o desenvolvimento do Império for­
talece. Mas esse povo, a quem o mundo deve idéias fecundas e
grandes realizações, esse povo que impôs sua língua a uma parte
da terra, sente em relação à sua música um complexo de inferio­
ridade. Depois da morte de Haendel, a música inglesa sofreu um
ecüpse quase total de mais de um século. O afluxo dos músicos
estrangeiros, que a qualidade das sociedades filarmônicas e co­
rais ou o espírito empreendedor dos diretores de teatro atraem,
permite que Londres permaneça um dos maiores centros musi­
cais da Europa. Mas o gênio criador nacional parece ausente. A
Inglaterra importa a maior parte da música que consome; e não
exporta quase nada. Só o irlandês John Field (1782-1837), exce­
lente pianista e precursor de Chopin (por seus belos Noturnos),
representa com certa originalidade a escola britânica.
No momento das guerras napoleónicas, o nacionalismo sus­
citou uma floração de baladas populares que talvez tivesse sido
a fonte de uma renovação, se a classe dirigente, absorvida pelo
dinheiro, pela gastronomia e pelo esporte, não limitasse sua cu­
riosidade musical às grandes estrelas do continente, à ópera ita­
liana e à dança. É a Johann Strauss (pai) que recorrem para
realçar as festas da coroação da rainha Vitória. Mendelssohn,
Berlioz, Wagner, Weber, Liszt, Gounod é que fazem o aconte­
cimento musical.
A tradição do oratório, criada por Haendel e renovada pelo
Elias de Mendelssohn (Birmingham, 1846), continua a represen­
tar o essencial da cultura musical britânica. A execução das gran­
des composições corais obedece a uma espécie de rito sagrado,
de que participam enormes multidões, intérpretes e ouvintes. Sem­
pre houve compositores ingleses que as escrevessem, num estilo
bastante convencional. Conquanto não se distinga por nenhum
talento original, a música inglesa deve em parte sua renascença
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 154 155 A HERANÇA ROMÂNTICA

a essa tradição coral e ao sucesso do famoso Three Choirs Festi­ sabrochar, por volta de 1900, de uma escola espanhola influen­
42
val . A execução em Gloucester, em 1880, de uma grande obra ciada pelas novas correntes musicais européias. Desde o início do
coral de Hubert Parry (1848-1918), Prometheus unbound, basea­ século XVIII, os compositores espanhóis escreviam música estran­
da no drama de Shelley, seria o ponto de partida da famosa reno- ¡ geira. A própria zarzuela tinha um sotaque italiano ou francês,
vação. Os ingleses atribuem a esse afresco wagneriano-vitoriano apesar de seu caráter popular; no século X I X , ela é de todo su­
sem originalidade uma importancia histórica excessiva; ele fome- j plantada por um tipo de ópera rossiniana, até renascer gloriosa­
ce apenas o exemplo de um tipo de oratorio profano, que será mente por volta de 1850. É então que Francisco Asenjo-Barbieri
até os dias de hoje uma especialidade dos músicos britânicos e ins- ¡ (1822-1894) apresenta as primeiras zarzuelas grandes em três atos,
pirará algumas obras-primas meio século depois, em particular inaugurando a grande época do gênero . 43

Belshazzar's Feast de William Walton (1931) e A Child of our ti­


Como a Inglaterra, a Espanha redescobre na segunda meta­
me de Michael Tippett (1941). t
de do século X I X um riquíssimo patrimônio musical, que havia
Também' parece excessivo, no juízo dos "continentais", que abandonado por muito tempo em benefício da música italiana.
as obras de Arthur Sullivan (1842-1900) e Edward Elgar (1857¬
Felipe Pedrell (1841-1922) foi o principal artífice dessa renova­
1934), glorias musicais da Inglaterra vitoriana, tenham continuado
ção. Como muitos músicos da sua geração, ele se entusiasma com
a encher as salas de concerto até nossos dias. O primeiro escre­
a música de Wagner, mas dela extrai a convicção de que as dife­
veu, com a colaboração literária do humorista William Gilbert,
operetas espirituosas e transbordantes de invenção melódica; mas \ rentes culturas musicais correm o risco de ser aniquiladas por um
elas não têm a verve e o brilho das de Offenbach, às quais são wagnerismo universal. Cada país deveria, segundo ele, fundar o
erroneamente comparadas. Quanto a Elgar, é um romântico in- i desenvolvimento de uma escola nacional nas características de um
fluenciado por Wagner e Brahms. Apesar de algumas obras mag- ; folclore autêntico e nas tradições estéticas das idades de ouro. Re­
níficas, como as variações Enigma (1899) e, sobretudo, o orató- j sumiu suas idéias num manifesto nacionalista intitulado Por nues­
44
rio The Dream of Gerontius (1900), sua música, em geral con- \ tra musica (1891) . Após Asenjo-Barbieri, Pedrell deu um im­
vencional e prolixa, não merecia eclipsar na Inglaterra a de \ pulso notável à descoberta do verdadeiro folclore, em oposição
Debussy. í ao que até então passava por tal, ao inventário sistemático das
Muito mais importante é a renovação da cultura musical do '< bibliotecas musicais da Espanha, enfim à ressurreição da obra dos
público. Hubert Parry e Charles Villiers Stanford (1852-1924) de- \ grandes mestres espanhóis dos séculos XVI e X V I I . Devemos-lhe
ram um impulso notável ao ensino. A Musical Antiquarian So­ em particular uma edição completa das obras de Victoria (cienti­
ciety (fundada em 1840), a Purcell Society (1876), a Plainsong and ficamente discutível).
Medieval Society (1888) e a Folksong Society (1898) reúnem e di­ Os grandes músicos que serão a glória da escola espanhola
fundem de maneira exemplar o rico patrimônio musical esqueci­ moderna, Isaac Albéniz, Enrique Granados e Manuel de Falia,
do. A tomada de consciência coletiva desse patrimônio é um fe­ contemporâneos de Debussy e Ravel, deverão a orientação de
nômeno de uma amplitude e de uma qualidade excepcionais. As- : seus gênios à zarzuela, às idéias de Pedrell (mestre de Granados
sim, será apenas no século X X que a escola inglesa tornará a al­ e De Falia), a Liszt e à nova música francesa. Realizarão em
cançar um prestígio internacional, por ter reconhecido suas raí- \ suas obras o que o italianismo e o wagnerismo ambientes veda­
zes e ter-se aberto às grandes correntes musicais européias. Ralph vam a Pedrell realizar nas suas: a integração das tradições espe­
Vaughan Wilhams (1872-1958) será o primeiro grande músico in­ cificamente espanholas na perspectiva de uma revolução musi­
glês desde Haendel. \ cal européia.

A escola espanhola A renovação musical da Espanha apresenta


as mesmas características da sucedida na Inglaterra: a redesco- \ 43. Os compositores mais importantes de zarzuelas após Asenjo-Barbieri fo­
ram Joaquín Gaztambide (1822-1870), Emilio Arrieta (1823-1894), Fernández C a ­
berta de um passado esquecido, a promoção de um ensino basea- I ballero (1835-1906), Tomás Breton (1850-1923)... mais tarde Albéniz e Granados.
do em valores nacionais e o estudo do folclore preparam o de- j O caráter comum das zarzuelas é a alternância entre canto e diálogos falados. Os
temas, que eram sempre cômicos, algumas vezes são dramáticos no século X I X
42. Fundado em 1724, esse festival reúne os coros das catedrais de Glouces­ (mas sempre com um pequeno tom de comédia). N ã o se deve confundir a zarzue­
ter, Worcester e Herford todos os anos no im'cio de setembro, numa das três cida­ la com a tonadilla, equivalente do intermezzo italiano.
des alternadamente. O repertório não é limitado aos oratórios, mas eles são pre­ 44. Tradução francesa: Pour notre musique. Quelques observations sur l'im­
ponderantes. portante question d'une école lyrique espagnole, Barcelona, 1893.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 156 1 5 7 A HERANÇA ROMÂNTICA

As escolas italiana, francesa e austro-alemã produziram gran­ a campanha napoleónica propiciou o notável desabrochar da l i ­
des músicos e distinguiram-se por estilos particulares quase sem teratura russa (Puchkin, Lermontov, Turgueniev), enquanto o con­
interrupção desde a Idade Média. Elas exerceram com freqüên­ servadorismo autoritário de Nicolau I fazia fermentar as idéias
cia, sobretudo a italiana, uma dominação sobre a música dos ou­ liberais numa grande parte da intelectualidade, convertida à filo­
tros países. Suas características específicas parecem pouco acen­ sofia de Hegel e ao socialismo utópico de Fourier e Proudhon.
tuadas, porque pertencem a um patrimônio europeu e são vela­ Foi num clima intelectual pré-revolucionário que se desenvolveu
das pelo jogo das influências recíprocas. Os músicos franceses, 45
a escola musical russa . Como disse anteriormente, seu nasci­
alemães e italianos não têm o sentimento de defender uma cultu­ mento é assinalado pela criação de uma ópera nacional, que per­
ra ameaçada; se exprimem seu patriotismo por ocasião de acon­ manecerá sua principal riqueza. Se Glinka e Dargomyjsky apare­
tecimentos poh'ticos ou culturais, fazem-no com um sentimento cem como pioneiros e chefes de escola, é muito mais a um grupo
de superioridade. de jovens autodidatas, todos amadores a princípio, que a música
As escolas espanhola e inglesa também existiram desde a Idade russa deve seu prestígio e sua originalidade.
Média. Mas sofreram um longo eclipse, sob a dominação cultu­ Um jovem estudante de matemática, Mily Balakirev (1837¬
ral do estrangeiro. Seu renascimento é uma libertação, baseada 1910), descobre ter uma vocação musical após encontrar-se com
nos traços mais característicos do patrimônio nacional, ou, pelo Glinka em 1855. Decide empreender uma carreira de pianista (é
menos, naqueles que seus músicos julgaram sê-lo. Esses traços na­ extremamente bem dotado) e freqüenta o salão de Dargomyjsky,
cionais são particularmente aparentes na música espanhola: ela onde conhece dois jovens oficiais, bons músicos amadores: Cé­
utiliza as escalas e os ritmos de um folclore fortemente singulari­ sar Cui (1835-1918), que será general, e Modest Mussorgsky, que
zado que resistiu com particular sucesso à influência corruptora logo escapará da boa sociedade e da Guarda Imperial para onde
da igreja e da música erudita. sua educação cuidadosa o desviara. Em 1861, um aluno da Es­
Nas outras nações européias, a história da música foi depen­ cola Naval, Nicolai Rimsky-Korsakov, desejoso de completar sua
dente do estrangeiro. Não houve, antes do século X I X , escola es­ formação musical sumária, dirige-se a Balakirev, que decidiu
lava ou escandinava estilísticamente original. A música polonesa abrir, no ano seguinte, uma escola de música independente e gra­
da Renascença é flamenga ou italiana; o admirável alaudista hún­ tuita. Enfim, Alexandre Borodin (1833-1887), assistente de quí­
garo Bakfark se insere na tradição francesa, a música instrumen­ mica da Academia de Medicina e amigo de Mussorgsky, une-se
tal da Boêmia nos séculos X V I I e X V I I I pertence à grande cor­ ao grupo e também completa sua formação de amador com
rente européia de origem italiana. O dinamarquês Buxtehude é Balakirev.
um mestre da escola de órgão alemã, e o sueco Roman formou Os cinco jovens músicos trabalham sem interrupção e logo
seu estilo nos meios cosmopolitas de Londres. Em toda parte, a levam a revolução aos meios musicais conservadores de São Pe­
ópera é italiana e em toda parte encontram-se na corte os melho­ tersburgo. O conjunto da crítica lhes será hostil, assim como as
res músicos estrangeiros, enquanto os autóctones vão instruir-se três principais instituições oficiais: a direção dos teatros imperiais,
e procurar fortuna no exterior. depois o Conservatório e a Sociedade de Música Russa, fundados
Um país como a Boêmia, por sua situação geográfica, suas por Anton Rubinstein (1829-1894), notável pianista e bom com­
tradições universitárias, sua luteria, é um foco de intercâmbios positor vinculado à escola alemã. Talvez nunca se tivesse ouvido
musicais fecundos entre as escolas veneziana, vienense e alemã; falar do pequeno grupo marginal e inexperiente, não fosse o in­
é um estímulo para a criação e um convite a participar do concer­ cansável dinamismo de Balakirev e a influência do célebre crítico
to europeu seguindo a corrente dominante. Mas certos países ex­ russo da época, Vladimir Stassov, que o batiza de "Grupo dos Cin­
cêntricos nunca sequer produziram música erudita. Sem relação co" e o impõe pela força à opinião pública. A revelação de Ber­
com uma música popular de tradição oral e uma antiga música lioz, que foi reger suas obras em São Petersburgo em 1867, será
litúrgica estritamente codificada, fica ao encargo de composito­ igualmente decisiva. Recebido pelos "Jovens Turcos" como um
res estrangeiros a música na corte.
45. Terá a revolução estética realizada pela escola russa sido beneficiada pelo
A escola russa. Os Cinco Essa situação é a da Rússia, onde a
conservadorismo social (que essa revolução exige, segundo Sartre), ou pelas idéias
formação de uma escola nacional no século X I X é particularmente subversivas de uma minoria ativa, cujo idealismo é fortalecido pela censura? A
significativa. O despertar dos sentimentos nacionalistas logo após dificuldade está em definir objetivamente uma revolução estética.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 158

profeta, o músico francês terá maior influência na Rússia do que


em seu próprio país. Essa influência será particularmente acentua­
da em Rimsky-Korsakov, o grande sinfonista do grupo; mas o Gran­
de tratado de instrumentação também será o livro de cabeceira de
Mussorgsky no hospital militar em que terminará seus dias.
Balakirev tem tanto direito quanto os pioneiros da geração
precedente de ser considerado um chefe de escola. Por seu entu­
siasmo, sua dedicação, seu conhecimento do folclore russo e das
técnicas de composição ocidentais, exerceu uma influência consi­
derável sobre seus compatriotas músicos. Mas sua obra (em que
não figura nenhuma ópera, ao contrário do exemplo geral) é muito
desigual. Hoje só é lembrada a brilhante Islamey, exercício de al­
tíssimo virtuosismo pianístico, e algumas belas melodias sobre poe­
mas de Lermontov.
César Cui vai tornar-se uma alta autoridade em matéria de
fortificações, mas permanecerá um amador em música; sua escri­
ta é pobre, sua imaginação é convencional e, como muitos ofi­
ciais superiores, compraz-se num sentimentalismo artístico um
pouco vulgar.
Os três outros, como já vimos, fizeram a glória da ópera rus­
sa. Suas obras-primas dramáticas são os mais belos testemunhos
de seu gênio; mas deixaram nos outros gêneros algumas compo­
sições notáveis e especificamente russas, como o quadro sinfôni­
co de Borodin Nas estepes da Ásia central e A grande Páscoa rus­
sa de Rimsky-Korsakov. Surpreende-nos a mestria que puderam
A grande porta de Kiev, alcançar esses ex-amadores. No caso de Rimsky, que se tornou
Kandinsky, 1928. u ¿os maiores técnicos dessa arte, é um verdadeiro prodígio. Sua
m

ciência da orquestração só é comparável à de Berlioz ou de Ra­


vel. Ela atinge seu apogeu nas obras-primas Kitej, O galo de ouro
e A grande Páscoa russa.
O gênio de Mussorgsky é de uma qualidade mais rara. Ele
nada deve à experiência ou à habilidade. Borodin e Balakirev, que
não compreenderam Boris, tomam por impericia aquele despre­
zo do formalismo ou do know how que Mussorgsky exprime ao
fazer da "verdade artística" o princípio de sua estética. Revolta­
do pela injustiça e pela mentira, tem alma de "narodnik", mas
é pessimista, não é um revolucionário. Sua grandeza, como ho­
mem e como artista, está na recusa. Subverteu a música com um
»• não-conformismo absoluto, nem um pouco afetado, que é a es­
sência da sua verdade artística. Sua obra associa lirismo e natura­
lismo. O elemento lírico se alimenta nas fontes do folclore russo;
ele revela um gênio melódico absolutamente original, cuja rique­
O galo de ouro de Rimsky-Korsakov,
za não se reconhece (basta ouvir, por exemplo, a serenata dos Can­ cenário de Natalia Gontcharova
tos e danças da morte). O elemento naturalista, ou expressionista, para o terceiro ato (1913).
!61 A HERANÇA ROMÂNTICA

subordina a melodia à idéia, acompanhando-a com uma harmo­


nia e uma instrumentação empírica prodigiosamente eficazes.
Suas obras-primas são, com Boris, as melodias, quintessên­
cias da arte vocal. Não há uma nota convencional ou supérflua
e as menores inflexões liberam uma carga emocional extraordi­
nária. A suíte pianística Quadros de uma exposição não possui
essas qualidades extremas, a despeito de grandes belezas. Aqui
também o estilo é puro de qualquer compromisso e buscaríamos
em vão as habituais fórmulas de virtuosismo. Mas a esplêndida
orquestração que Ravel deu a essa obra faz empalidecer a escrita
pianística bastante canhestra do original.

Allegro motto

S 1 1
if £^ if i f
L-j -U"—à 1

Quanto à célebre Noite no Monte Calvo, é uma partitura escrita Mussorgsky, Quadros
por Rimsky, com grande talento por sinal, a partir de diferentes de uma exposição
fragmentos de obras de seu amigo. Essa obra tem muito pouco (A choupana de Baba Yaga).

do estilo de Mussorgsky e mantém apenas longínquas relações com


sua Noite de São João no Monte Calvo.

Tchaikovsky Piotr Ilyitch Tchaikovsky pertence à mesma gera­


ção dos Cinco e começa sua carreira ao mesmo tempo que eles.
No entanto, não se liga nem ao movimento nacionalista de van­
Peer Gynt, baseado em Ibsen, guarda, nem à tradição conservadora. O juízo que faz de Mus­
música de Grieg, cenário sorgsky situa-o em relação a este e à corrente que ele representa:
de Remygins Glyling.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 162 163 A HERANÇA ROMÂNTICA

"Mussorgsky é uma natureza baixa, que gosta do grosseiro, do essa popularidade comprometedora valeu a Tchaikovsky o des­
brutal e do feio... Apesar de todos os horrores de que é capaz, prezo dos conhecedores e, depois, por afetação inversa, uma ex­
ele fala uma língua nova. Não é uma bela língua, mas é virgem." cessiva admiração. A sinceridade de sua obra torna-a cativante
Tchaikovsky, cuja educação musical foi confiada a Rubinstein, e não deveria expô-lo às flutuações da opinião, se se conhecessem
representa uma arte bastante ocidentalizada, se comparada com melhor seus diferentes aspectos, principalmente os que as seis sin­
a dos Cinco. No entanto, ele é reivindicado pelos russos de nosso fonias ilustram.
tempo (irritados sem dúvida pela exploração do exotismo eslavo) Fora da Rússia, a influência de Tchaikovsky não é con­
como o mais russo dos compositores. Claro, a mescla de fatalis­ siderável, apesar de suas turnês triunfais. Em compensação,
mo e sentimentalismo de que procura libertar-se em sua obra faz quando vai a Paris em 1889 para dar dois concertos de música
dele uma perfeita encarnação da "alma eslava"; é verdade tam­ russa no âmbito da Exposição Universal, Rimsky-Korsakov sus­
bém que se inspira no folclore (finais dos concertos e da Quarta cita o entusiasmo dos jovens músicos franceses, que têm a re­
sinfonia, por exemplo) sem se crer obrigado, como Rimsky, a be- velação de uma nova maneira de conceber a música. Debussy
molizar as sensíveis para ficar "russo antigo". Mas assimila bem está com vinte e nove anos e acaba de musicar seis Ariettes ou­
os clássicos (tem um culto por Mozart), e sua estética se inscreve bliées de Verlaine. Ravel está com catorze e ingressa no Conser­
sem contradição maior na corrente musical européia do século vatório.
X I X . É russo como um personagem de Tchékhov.
PlOTR I L Y I T C H Paris e a Bayreuth. Apaixona-se de outubro. Nunca sua saúde fí­
TCHAIKOVSKY pela Carmen. Amizade com Saint- sica e moral esteve tão boa quan­
Kamsko-Votkinsk (Viaika), 7 de maio de 1840 Saëns. do é levado pela cólera em cinco
São Petersburgo, 6 de novembro de 1893
P 1877 Aterrorizado por uma ten­ dias.
Altos i hh I Π ιτι ι ι ι ι ι Seu pai, inspetor das minas, e sua
dência homossexual cuidadosamen­
te dissimulada, casa com uma alu­ obra Dez óperas, dentre as quais
PS mãe, de velha nobreza francesa pro­ na do Conservatório, A . Miliuko- Ievgueni Onieguin (Moscou, 1879)
testante, são indiferentes à música. va, de quem foge, à beira do sui­ e A dama de espadas (São Peters­
Cors Tchaikovsky aprende piano, mas é
Vceltes
ce.
cídio, após três meses de união burgo, 1890), três balés (Lago dos
destinado à magistratura. cisnes, A bela adormecida, Ouebra-
morganática.
1877-1890 Ligação epistolar com nozes). Seis sinfonias, várias aber­
1850-1859 Bons estudos em São
Nadejda von Meek (1831-1894), turas sinfônicas, três concertos pa­
Petersburgo. É um menino inteli­
viúva rica e inteligente, que conse­ ra piano, um concerto para violino,
gente, frágil e hipersensível.
guiu com extremo tato tornar-se sua diversas composições para violino
1859-1863 Funcionário de primei­
ti confidente e a mecenas do compo­ e orquestra e para violoncelo e or­
y ""?if * r ι - .. " ra classe do ministério da Justiça.
sitor. Eles combinaram nunca pro­ questra. Três quartetos de cordas,
Continua como diletante seus estu­
curar encontrar-se. um trio com piano, um sexteto
dos musicais.
φ - (Lembranças de Florença), nume­
1887 Início de uma brilhante car­
1863-1866 Tendo deixado o servi­ rosas peças para piano, mais de cem
'
ço público, torna-se aluno de An­ reira de regente, que lhe permite fa­
Cr? melodias.
zer suas obras serem ouvidas em to­
ton Rubinstein no Conservatório de
São Petersburgo. Viagens à Alema­ da a Europa.
Tchaikovsky, Sexta sinfonia. nha, Bélgica e França, para onde 1891 Turnê triunfal aos Estados
voltará com freqüência. Unidos. Participa da inauguração
\ 1866 Nomeado professor de har­ do Carnegie Hall.
Ao contrário de seus maiores compatriotas músicos, é antes monia do novo Conservatório de 1893 Nova turnê triunfal: Alema­
de mais nada um sinfonista (a Quarta e a Sexta sinfonias e Ro­ Moscou. nha, Suíça, França, Bélgica, In­
meu e Julieta são suas obras-primas). A popularidade de seu Con­ 1874-1877 Compõe o primeiro con­ glaterra. Trabalha com entusiasmo
certo n? 1 para piano e orquestra (em detrimento do segundo, mais certo para piano, O lago dos cis­ na Sexta sinfonia ("Patética"), que
rico e mais original, porém) e de sua música de balé, em que a nes e a Quarta sinfonia. Viagens a rege em São Petersburgo em 16
Tchaikovsky. ênfase é dada ao sentimentalismo com um mau gosto aliciador,
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 164 165 A HERANÇA ROMÂNTICA

A escola tcheca Após Erkel Ferenc e Liszt Ferenc, depois de século. Esse grande músico é a glória da Morávia, onde a cultura
Fryderyk Chopin e Stanislaw Moniuszko, as escolas húngara e po­ foi por muito tempo sufocada pela dominação estrangeira. Seu
lonesa passam por um ecüpse até a renovação dos estilos nacio­ mestre, Pavel KfízTcovsky (1820-1885), frade agostinho de Brno,
nais no século X X , sob o impulso de Bartók, Kodály e Enesco. pode ser considerado o fundador de uma escola morávia; suas ad­
Já a escola tcheca foi continuamente fecunda até nossos dias. O miráveis composições corais, inspiradas no rico folclore do país,
gênio de Smetana, criador da ópera tcheca e símbolo da indepen­ merecem uma ampla difusão.
dência nacional, nunca foi tão grande quanto em A noiva vendi­
da, mas permanece excelente na música instrumental: o ciclo de
seis poemas sinfônicos Ma Vlast ("Minha Pátria") e o primeiro ANTONIN D V O R A K 1891- 1901 Professor de composi­
quarteto em mi menor são obras-primas (ver p. 122). Nelahozeves ( B o ê m i a ) , S de setembro de 184i ção no Conservatório de Praga
Praga, 1? de maio de 1904
(com uma interrupção de três anos
passados nos Estados Unidos).
e/o/ce Seu pai destinava-o a suceder-lhe 1892- 1895 Diretor do Conservató­
na hotelaria e no açougue. Mas ele rio de Nova York. Sinfonia "do
estudava órgão com o mestre-es­ Novo Mundo".
cola da aldeia. Teve grande difi­ 1901-1904 Diretor do Conservató­
culdade para fazer seus pais re­ rio de Praga.
conhecerem seus dons e sua voca­
ção e para poder prosseguir seus
obra Dez óperas, dentre as quais
estudos musicais na excelente es­
Jakobin (1889), Cert a Káéa ("O
cola de organistas de Praga (1857¬
diabo e Catarina") (1899), Rusal-
1859).
ka (1901). Várias grandes obras pa­
ra coro e orquestra. Nove sinfo­
1859-1862 Violista de uma peque­ nias, duas séries de Danças esla­
na orquestra de segunda ordem. vas, poemas sinfônicos, suítes,
Tentativas de composição. aberturas, vários concertos (para
1862-1871 Violista ou violinista da piano, para violino, para violon­
orquestra do novo teatro tcheco de celo). Doze quartetos de cordas,
Smetana, Ma Vlast: O Vltava. Praga (regência de Mayr, depois de cinco quintetos (dentre os quais,
Smetana). dois com piano), um sexteto, pe­
1874-1878 É organista numa igre­ ças para violino e piano, numero­
Dvorak, mais popular no exterior, não tem o gênio de Smeta­ ja de Praga. É a época em que seu sas peças para piano, uma centena
na. Mas é um grande músico, na tradição de Schubert e Brahms, estilo se forma, pela assimilação do de melodias e duos.
cujo ürismo se alimenta nas fontes da cultura popular tcheca. folclore: ritmos de polca, de skoc-
Fora as óperas já citadas, suas mais belas obras são o Réquiem, ná, de susedskâ, de furiant, ou da
o Stabat Mater e, sobretudo, a Sinfonia em mi menor, dita "i/o dumka ucraniana. As Danças es­
Novo Mundo' '. Essa obra extraordinariamente célebre baseia-se lavas (primeira coletânea: 1878) es­
em melodias de um folclore imaginário, compostas por Dvorak tão na origem da sua grande po­
no estilo nacional de seu país (com exceção do negro spiritual pularidade.
citado no segundo movimento); é o testemunho de uma profun­ 1884-1891 Numerosas viagens à
Inglaterra: estréia do oratório San­
da assimilação das características específicas de um folclore, co­
ta Ludmila no festival de Leeds
mo a de que Janácek e, mais tarde, Bartók darão os mais no­
(1886) e do Réquiem em Birming­
táveis exemplos. ham (1891). Viagens à Alemanha,
O altíssimo nível da escola tcheca se mantém com Zdeñek a Viena (onde Brahms é um de seus
Fibich (1850-1900), cujas óperas, melodramas (voz falada e or­ mais ardorosos partidários), à
questra) e as três belas sinfonias são injustamente esquecidas, e Rússia. Antonin Dvorák.
sobretudo com LeoS Janácek, cuja obra genial pertence a nosso
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 166

Escolas escandinavas O grande músico escandinavo do século


X X é o norueguês Edvard Grieg (1843-1907). Seu gênio melódi­
co, a qualidade da sua escrita pianística, a audácia requintada de
sua harmonia, sua sutil interpretação da cultura nacional dão à
sua música um encanto particular e fazem dele um dos mais no­
táveis intermediários entre Liszt e Debussy. Suas obras-primas es­
tão contidas nos dez volumes de Lyriske Stykker (Peças líricas)
para piano.
O grande compositor romântico sueco Franz Berwald (1796¬
1868) não possui um estilo especificamente escandinavo; sua obra,
rica e variada, é a de um europeu, contemporâneo de Schubert,
mas com um 'estilo bastante original. São igualmente européias
as encantadoras melodias de Lindblad (1801-1878). Poderosa e
independente, a Suécia não está ameaçada em sua cultura: sua es­
cola musical se desenvolve sob o signo do ecletismo.
Na Dinamarca, o verdadeiro criador de uma escola nacional
é Carl Nielsen (1865-1931), autor de admiráveis melodias e de uma
ópera-cômica, Maskarade, que é para os dinamarqueses o que A
noiva vendida é para os tchecos.
A Finlândia, solitária e ameaçada, lutando por sua cultura
secreta, seus lagos e suas florestas, fará de Jean Sibelius (1865¬
1957) o símbolo do nacionalismo finlandês. Cada vez que o pa­
triotismo é posto à prova, suas composições se tornam cantos de
resistência (em particular Finlândia). Sua música, sombria ou nos­
tálgica, inspira-se nos poetas românticos finlandeses, na grande
epopéia nacional do Kalevala e no folclore. A célebre Valsa triste
é bem insignificante, se comparada com o belo Concerto para vio­
lino, com a Quinta sinfonia e, sobretudo, com as quatro lendas
da Kalevala, das quais a segunda, Tuonela joutsen (O cisne de
Tuonela) é sua obra-prima.
Era justo estender-nos um pouco sobre as escolas nacionais,
muito embora as características específicas de cada uma delas não
constituam mais, hoje em dia, critérios de apreciação. É um fe­
nômeno que traduz ao mesmo tempo o debilitamento do papel
cultural da burguesia e a abertura de um período de crise no siste­
ma musical europeu. Até o início do século X I X , as característi­
cas nacionais eram indeterminadas na música erudita, ou, se pre­
ferirem, essas características eram por toda parte italianas. O de­
senvolvimento das escolas nacionais é uma reação natural ao cos­
mopolitismo aristocrático da arte clássica e uma tentativa de re­
novação de um sistema universal, cujos limites começam a ser
reconhecidos. O nacionalismo musical não é necessariamente pi­
toresco ou xenófobo. Bartók mostrará como ele pode ser uma fon­
te de renovação dos estilos e das técnicas de escrita, o que Cho­
pin, Glinka, Liszt e Smetana foram os primeiros a pressentir. As
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 168 169 UM BALANÇO DO SÉCULO ROMÂNTICO

características específicas das diferentes escolas, sejam elas basea­ elas favorecem a expressão de sentimentos pessoais e prestam-se
das ou não no folclore, em geral subsistirão, enquanto não se im- às novas experiências estéticas.
puserem fatores de universalidade: sistema dodecafônico, neoclas- A orquestra conserva sua fisionomia geral. Mas a ciência da
sicismo, técnicas eletracústicas, generalizações das teorias modais, escrita sinfônica se desenvolve consideravelmente sob o impulso
músicas aleatórias ou probabilistas, etc. de Beethoven e, sobretudo, de Berlioz. A instrumentação tornara-
se expressiva e não mais apenas decorativa desde Haydn e Mo­
zart; na orquestra romântica, as misturas de timbres são indisso­
ciáveis da idéia criadora, a invenção é concreta. O número de mú­
U M BALANÇO DO SÉCULO sicos aumenta com o dos ouvintes, o que parece razoável; mas
o gosto do superlativo acentua esse crescimento. Uma observa­
ROMÂNTICO ção escrita por Beethoven fala de sessenta e oito músicos para exe­
i cutar a Oitava sinfonia, o que já dobra o efetivo de que dispu­
As técnicas de composição não são modificadas tanto quanto se nham Haydn e Mozart para suas últimas sinfonias. Berlioz mobi­
pensa no século X I X . Os grandes gêneros tradicionais subsistem: liza oitocentos cantores e uma orquestra de cento e noventa mú­
sinfonia, sonata, concerto, quarteto... A forma sonata, caracte­ sicos para o seu Te Deuml As mudanças na composição da or­
rística do primeiro movimento da sonata clássica, a variação, a questra não são consideráveis. As cordas são escritas em cinco
forma rondó continuam a ser estruturas fundamentais dos gran­ partes, em vez de quatro (os contrabaixos já nem sempre dobram
des gêneros instrumentais. Porém, desde Beethoven, os temas os violoncelos); o grupo dos sopros se enriquece com o piccolo,
tornam-se idéias que se enfrentam, os desenvolvimentos são am­ o contrafagote, a clarineta baixo, os trombones (utilizados excep­
pliados e obedecem por vezes a uma dialética extramusical; o scher­ cionalmente no século XVIII), a tuba.
zo, que substituiu o minueto, adquire um caráter fantástico ou A feitura dos instrumentos de sopro melhora consideravel­
até trágico, o final pode ser tão desenvolvido quanto o primeiro mente, graças a invenções que tiveram um papel decisivo nos
movimento (ou mais). progressos da orquestração. Assim, o trompete e a trompa são
Três gêneros são mais especificamente românticos: o poema munidos de um jogo de pistões que, modificando o comprimen­
sinfônico, melhor chamado de "sinfonia programática" (Liszt), to do tubo, permite a execução de todos os graus da escala cro­
o lied, as curtas peças piam'sticas de que Chopin e Schubert pro­ mática. Os instrumentos da família das "madeiras" são dotados
porcionaram os modelos perfeitos sob os títulos púdicos de Estu­ do complexo sistema de chaves, hastes e anéis que hoje conhece­
do, Prelúdio, Improviso, etc. A sinfonia programática só consti­ mos. Esse sistema é invenção de um flautista alemão com talen­
tui um enriquecimento porque o pretexto literário nela autoriza to para a mecânica; ele permite escolher em função de critérios
uma grande liberdade formal: não é, propriamente falando, uma científicos, sem levar em conta a conformação da mão, a quan­
aquisição do século. O lied tem uma velha história, assim como tidade, a dimensão e a localização dos furos, a fim de produzir
47
46
a canção francesa : cantos de Minnesänger, Heder polifónicos da com igual qualidade todos os sons da escala cromática . A par­
Renascença e, enfim, Kunstlieder monódicos que surgem no sé­ tir de então, todos os instrumentos de sopro podem tocar afina­
culo X V I I . Heimich Albert, Keiser e Reichardt deram a esse lied dos, o que não acontecia no século X V I I I (Mozart queixou-se
seu caráter alemão. Schubert e Schumann dele fizeram um gêne­ disso).
ro de riqueza ilimitada, que se distingue em particular pela uni­ O instrumento solista por excelência é o piano, que rouba ao
dade de inspiração poética e musical e pela importância da parte violino sua supremacia. Encontramo-lo em todos os salões, pre­
de piano, que não é mais um simples acompanhamento, mas um sidindo aos lazeres culturais da burguesia, ou transformando-se
elemento dramático ou sugestivo essencial. As peças breves para em altar da respeitabilidade, recoberto de xales de seda bordada.
piano são o gênero romântico por excelência. Não obedecendo
a regras particulares, não sendo adstritas a nenhuma forma fixa, 47. O sistema de Theobald Boehm (1794-1881) permite fechar simultanea­
mente com nove dedos (o décimo sustenta o instrumento) os catorze furos distri­
buídos por todo o corpo da flauta. Graças às "correspondências", pode-se aper­
46. A palavra lied dá aos franceses um curioso complexo lingüístico, desde tar uma chave, seja diretamente, seja por intermédio de outra, se se desejar fe­
que o costume confiscou a palavra chanson para uso exclusivo da música popu­ char dois furos com o mesmo dedo. Esse sistema foi aplicado à flauta e à clarine­
lar. O francês não tem mais termo equivalente a lied para designar o conjunto ta. Para os instrumentos da familia do oboé, o francês Frédéric Triebe« (1813-1878)
das formas vocais breves. criou um sistema análogo.
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 170 171 UM BALANÇO DO SÉCULO ROMÂNTICO

Assim, todos podem apreciar como conhecedores as façanhas dos Com algumas exceções (na época da Renascença), nunca hou­
grandes virtuoses. A técnica do teclado dá um enorme salto, gra­ ve concepções estéticas ou técnicas de composição particulares
ças sobretudo a Beethoven, Chopin e Liszt. Nunca se enfatizará a uma música de entretenimento. A partir de cerca de 1830, uma
o bastante quanto a música para piano, de Liszt a Ravel, deve distinção cada vez mais nítida pode ser feita entre, de um lado,
aos geniais Estudos de Chopin: todas as dificuldades, mas tam­ uma música baseada na tradição, que adota formas nobres e
bém todos os recursos do instrumento são abordados da maneira uma escrita erudita e que não tem outra finalidade além de sua
mais ousada. própria realização e sua perenidade; de outro lado, uma música
A ópera ainda está muito apegada às suas convenções. O dra­ objeto, simples e alegre, cuja função de entretenimento é bem
ma musical expressionista de Wagner, Mussorgsky ou Puccini não acentuada e que busca a eficácia imediata, porque não está des­
consegue vencer facilmente a tirania da grande ária. O teatro mu­ tinada a durar. É também no século X I X que começa a organi­
sical permanece muito mais musical do que teatral, como exige zar-se a exploração comercial da música ligeira, baseada na prá­
a autonomia fundamental da música. A música sacra inspira pouco tica dos "arranjos", que correspondem às múltiplas exigências
o gênio do século, ao qual falta espiritualidade. Ela é abordada de uma vasta difusão. Sempre nos faltará vocabulário para dis­
de fora e num estilo profano, que pouco se distingue do da ópera tinguir os dois tipos de música, e suas definições nunca serão
ou da sinfonia. colocadas de maneira clara. A distinção estabelecida pela indús­
Se as formas permanecem convencionais apesar de sua tria do disco entre "clássico" e "variedades" não coloca crité­
48
liberdade , a harmonia clássica, em compensação, e os tipos me­ rios estéticos a priori, mas baseia-se nas condições de produção
lódicos que lhe correspondem sofrem uma mutação. A utilização e consumo.
expressiva, cada vez mais livre, das dissonâncias não resolvidas
e dos intervalos cromáticos anuncia a revolução pantonal do sé­
culo X X . A consciência da subversão em curso é difusa: a "músi­ Musicología e crítica A musicología é uma conquista da época
ca do futuro" recusa as imposições do classicismo, mas ainda não romântica. Mas, como vimos acima, sua eficácia prática hmita-
sabe a que cadeias está destinada. se ainda ao século X V I I I . O público só descobrirá a música da
Idade Média, da Renascença e da época barroca no fim do sécu­
Música ligeira Enquanto na segunda metade do século essa eman­ lo. Para a maioria, a história da música começa com Palestrina,
cipação da dissonância suscita no grande público as mesmas re­ chega a seu apogeu na obra clássica e termina com Wagner. É
sistências que toda ars nova, produz-se um fenômeno marginal desde essa época que os melómanos renunciam à música con­
de conseqüências ainda imprevisíveis: o aparecimento de uma mú­ temporânea, demasiado "difícil", preferindo a música históri­
sica ligeira escrita, desta vez em reação ao idealismo romântico ca. Essa tendência vai-se acentuar até meados do século X X ;
e ao mito da música erudita. Os mandarins e os profetas osten­ em seguida, observaremos uma renovação do interesse pela mú­
tam certo desprezo por essa "música de entretenimento" que uti­ sica nova.
liza os meios da música séria. Mas ela é, geralmente, de boa qua­ O crítico musical é um intermediário útil entre os criadores
lidade: o talento dos Johann Strauss, pai (1804-1849) e filho (1825¬ e o público. Seu papel se define no século X I X , porque a música
1899), como o de Offenbach, é o exemplo a que se referem gran­ se torna uma coisa pública. Ele deveria ser, de certa forma, um
de quantidade de músicos mais ou menos obscuros. Ε quando se historiador do futuro; mas em geral não é. A imprensa cotidiana
sabe que as Danças húngaras de Brahms eram tocadas nas cerve­ começa a abrir colunas musicais, confiando-as amiúde a músi­
jarias tem-se uma boa idéia do que era a música ligeira antes da cos medíocres, incapazes de exercer uma análise crítica séria. Com
sua exploração industrial. Ainda se trata, então, apenas de uma
raras exceções (Berlioz, Weber, Schumann, Hanslick, Th. Gau­
música burguesa. A qualidade se deteriorará quando uma indús­
tier, Baudelaire, Wolf, Β. Shaw...), os críticos do século X I X
tria burguesa resolver produzir uma música de grande consumo
são parciais, excessivos, surdos. No primeiro número da Gazette
com destino popular, segundo critérios que traem a pior demago­
musicale de Paris (1834), Liszt sugere que seja imposto aos críti­
gia comercial e o desprezo do consumidor.
cos um exame de seus conhecimentos e de seu talento. Pratica-se
muito a "crítica humorística", ou o ensaio literário, em vez da
48. A liberdade da forma é uma conquista do romantismo. Mas ela n ã o cons­
análise — o que nem sempre é um inconveniente... A partir do
titui uma mutação, como a emancipação da dissonância. A liberdade se manifes­
ta no interior das ordens formais herdadas, sem mudança radical. fim do século, a obsessão de "compreender" suscita uma enxur-
O ROMANTISMO Ε SUA HERANÇA 172

rada de notas explicativas que pretendem esclarecer o sentido


Visitantes de uma composição pela análise harmônica, como se o enuncia­ A GRAVAÇÃO SONORA
da Exposição de 1889
ouvindo o fonógrafo, do de uma sucessão de modulações pudesse propiciar uma emo­
desenho de Renouard. ção estética. "O bom crítico", escrevia Anatole France, "é aquele 1807 Young inscreve as vibrações
que conta as aventuras da sua alma em meio às obras-primas" de um diapasão num cilindro reves­
Fabricação de fonógrafos, tido de negro-de-fumo. Por mais de
c. 1905. (prefácio a La vie littéraire, 1888). E Baudelaire: "a crítica roça
meio século, numerosas experiên­
a cada instante a metafísica" (Salão de 1846). É fácil conquistar
cias e invenções para estudar o tra­
sucessos citando os erros históricos dos críticos do século XIX. çado de vibrações sonoras.
Mas não sabemos que erros de julgamento nos serão imputados
um dia, quando a história tiver feito a seleção entre nossos con­ 1876 Primeiros microfones de con­
temporâneos. "Suas sinfonias-pítons originam-se de um blefe que tato (Bell e Manuel).
alguns anos bastarão para esvaziar": eis a opinião de Brahms 1877 Charles Cros (1842-1888) e
sobre Bruckner! Para Balakirev, Chopin é "uma mundana ner­ Edison (1847-1931) inventam qua­
vosa", e Debussy diz que Schubert é "um músico para solteiro- se simultaneamente seus aparelhos
nas"! O gênio desses grandes homens protege-os de nossa seve­ gravadores e reprodutores de sons.
ridade; eles nos mostram que ninguém está a salvo de um erro Mas Cros não tem meios para ex­
de juízo. plorar sua invenção, como Edison
pode fazê-lo.
1889 O "fonógrafo" de Edison é
O fonógrafo Um ano depois da primeira montagem integral oferecido ao público da Exposição
do Anel dos nibelungos, uma invenção genial, que subverterá Universal: rolos de cera, motor de
a sociologia musical, realiza um velho sonho da humanidade: pilhas, preço exorbitante. Apareci­
49
o de conservar os sons . Em 1877, Charles Cros expõe na Aca­ mento discreto do disco (invenção
demia de Ciências o princípio de um aparelho reprodutor de som, de Berliner).
a que chama "paleofone" e de que consegue fazer uma maque- 1890 Início da exploração comercial
te. Alguns meses depois, Edison, sem ter conhecimento da in­ das gravações. Duplicação por có­
venção de Cros, constrói seu primeiro "fonograma", que apre­ pia (40 francos da época o rolo), de­
pois por moldagem (2,50 francos).
senta por sua vez à Academia de Ciências. O fono de Edison
Repertório de cançonetas, polcas pa­
é oferecido ao público na Exposição Universal de 1889: rolos
ra pistão, histórias de caserna.
de cera, motor elétrico, preço exorbitante. Ainda não é mais que 1894 O físico Dussaud inventa um
um brinquedo de luxo; mas, cerca de quinze anos depois, graças "microfonógrafo" de pilhas, gra­
às melhorias técnicas e à padronização, poder-se-á começar a vador e reprodutor.
gravar em discos (e não mais em rolos) alguns sucessos do gran­ 1898 O dimamarquês Poulsen mente o cilindro. O comércio se or­ 1913 Gravação integral da Quinta
de repertório e garantir, graças à multiplicação, uma difusão co­ aperfeiçoa seu "telegrafone", gra­ ganiza: Gramophone C?, Victor sinfonia de Beethoven pela Filar­
mercial satisfatória (ver pp. 399 ss.). vador magnético de fio metálico. C°, Columbia C?, Ste Pathé (que mônica de Berlim, sob a regência
A gravação da música é um tipo notável de notação analó­ Esse aparelho, que ainda existe, fazopta pela gravação vertical, com de Nikisch (8 discos de face sim­
gica, capaz de paliar as carências da notação simbólica habitual. ouvir a voz de Francisco José I . emprego de uma agulha de leitura ples).
Ela será utilizada como tal pela primeira vez por Bartók, em 1900-1905 Grandes estrelas do can­ de safira), Fonotipia, Odéon, etc, 1914 Primeiros experimentos de
to prestam seu concurso ao fonó­ mais tarde DGG. gravação fotográfica para o cine­
seus trabalhos sobre as canções populares, depois por todos os
grafo: os Figners (criadores de A 1910 Padronização dos diâmetros ma, por Lauste (1857-1935).
folcloristas que lhe sucederão e, mais tarde, pelos compositores
dama de espadas), a Patti, a Cal­ e das velocidades de rotação (80, de­ 1920-1925 Invenção do amplifi­
de música concreta e eletrônica. vé, Battistini, Plançon, a Melba, pois 78 rotações por minuto). Gra­ cador, do gravador elétrico e do
Tamagno (o primeiro Otelo), Mau- vação de Carmen e do Concerto pa­pick-up.
rel (o primeiro lago)... ra dois violinos de Bach por Kreis¬ 1921 Primeiras gravações de Tos­
49. Ninguém nunca evocou tão bem esse sonho quanto Rabelais, no capí­ 1903 O disco suplantou definitiva- ler e Zimbalist.
Fonógrafo de Edison, tulo 56 do Quarto Livro de Pantagruel. Esse texto surrealista é uma peça anto­ canini.
Nova York, 1878. lógica.
175 UM BALANÇO DO SÉCULO ROMÂNTICO

Mas, sobretudo, ao transformar pela repetição as condições


da comunicação musical, a gravação vai modificar profundamente
a composição do público e seu comportamento. Apenas alguns
privilegiados dentre os contemporâneos de Bach, Mozart e Bee­
thoven puderam ouvir a Missa em si menor, Don Giovanni ou
a Nona sinfonia, algumas vezes tendo de enfrentar viagens caras
e difíceis. Até o fim do século X I X , poucos melómanos tinham
a possibilidade de ouvir várias vezes uma obra sinfônica ou uma
ópera. Desde o momento em que a gravação possibilita audições
repetidas, a percepção da música torna-se diferente: a atenção di­
minui em prol dos reflexos. Por outro lado, a produção musical
acaba sendo assimilada à produção de objetos musicais manufa­
turados, impressos em série — as relações entre produtor e con­
sumidor são as da indústria. O acontecimento musical que per­
mite a fabricação do objeto manufaturado não é nada mais que
uma etapa de fabricação sem significado social importante. Des­
de o século X I X , o público se divide em categorias: apreciadores
de ópera, de concerto, de música de câmara, de música ligeira.
A indústria acentua essa diversificação e faz surgir a noção bur­
guesa de "valor estético", em função da qual os diferentes gêne­
ros serão classificados.
Outras aplicações engenhosas da ciência foram difundidas ao
público, no correr do século. Algumas tiveram incidências sobre
a vida musical, na medida em que facilitaram as idas e vindas,
a informação, o trabalho de criação... Rossini e Berlioz conhece­
ram a estrada de ferro, a fotografia, o telégrafo, as companhias
de navegação transatlânticas, o motor elétrico... Liszt e Wagner
Uma loja de gramofones, por volta de 1925.
conheceram também os primordios da iluminação elétrica e do
telefone. Brahms pôde ouvir, além disso, o fonógrafo de Edison
1926 Primeira gravação elétrica Capet, Koussevitzky, Bruno Wal­ da corrida em busca da alta fide­ e o gramofone de Berliner (que utiliza discos) e ver rodar os pri­
(HMV e Victor): o Messias de Haen­ ter, Horowitz e muitos outros gra­ lidade. meiros automóveis a gasolina.
del, por 3.500 exécutantes! vam. 1945 Primeiros discos de 45 rpm Quando os visitantes da Exposição de 89 descobrem maravi­
1927 Gravação de quase toda a 1935 Primeiros protótipos de gra­ com 17 cm de diâmetro, de resina lhados a torre de Gustave Eiffel, prodígio da arte e da técnica,
obra de Beethoven, para o centená­ vadores magnéticos: Marconi-Stille vinílica e com microssulcos (RCA).
têm a sensação de estar na véspera de uma idade de ouro, a nos­
rio da sua morte. As sinfonias são e AEG. 1948 Primeiros discos de microssul­
cos de 33 rpm, "longa duração"
sa. No mesmo ano, Franck apresenta sua Sinfonia nos concertos
admiravelmente interpretadas por 1939 Primeiros experimentos de es­
Weingartner. A velocidade de rota­ tereofonía (três pistas) no filme (Columbia C?). do Conservatório, o jovem Richard Strauss dá em Weimar a pri­
ção passa de 80 a 78 rpm. Fantasia de Walt Disney. 1949 Primeiros discos de microssul­ meira audição de seu poema sinfônico Don Juan, Mahler em Bu­
1928 Columbia edita para o cine­ 1943 Fabricação das primeiras fitascos na França (Oiseau-Lyre; en­ dapeste a da sua Primeira sinfonia e Rimsky-Korsakov, como se
ma discos de longa duração (10 a magnéticas de vinil revestido, bem genheiro Charlin) e na Inglaterra sabe, faz o público parisiense descobrir a nova música russa, que
12 minutos por face), girando°à 33 como do primeiro gravador magné­ (Decca). é uma revelação para o jovem prêmio de Roma, Claude Debussy.
rpm e começando no centro! 1955 Primeiros discos estereofôni-
tico digno de um uso musical profis­ Cinco anos depois, em 1894, este apresenta à Société Nationale
1929-1935 Stravinsky, Ravel, M i - sional (a máquina K.7 da AEG). cos (procedimento Bell Telephone uma surpreendente obra-prima, nem russa, nem wagneriana, nem
lhaud, Poulenc, Prokofiev, o trio 1944 Slogan "ffrr" da Decca (full e Western Electric, experimentado romântica, nem neoclássica: o Prelude à l'après-midi d'un faune,
Cortot-Thibaud-Casals, o quarteto frequency range recording): iníciodesde 1950). primeira manifestação de uma espécie de simbolismo musical, que
se chamou impropriamente de "impressionismo". Por volta de 1930.
4r
O SÉCULO
DAS METAMORFOSES
OU A CONTESTAÇÃO
GERAL DO SISTEMA
179 A AURORA DE NOSSO SÉCULO

do acontecimento. O pianista espanhol Ricardo Viñes apresenta,


A AURORA DE NOSSO SÉCULO num concerto da Société Nationale, duas peças para piano de um
estilo originalíssimo: Pavane pour une infante défunte e Jeux d'eau
o virgem, o vivaz A história da música parece acelerar-se nos últimos anos do sécu-
de Maurice Ravel.
eo belo hoje. γ χ ι χ Será isso conseqüência de uma aceleração geral? Ou do
0

Mallarmé aumento da informação? Ou da pressa de uma civilização em de­ 1905 Salomé de Richard Strauss é apresentada em Dresden. Es­
clínio?... Em música, como em muitos outros domínios, o século sa obra vulcânica, situada nos antípodas de Pelléas, faz tamanho
X X é uma era de contínua metamorfose. escândalo que será retirada do cartaz do Metropolitan e só pode­
Alguns anos antes do início deste século, o Prélude à l'après- rá ser montada na Inglaterra em 1910.
midi d'un faune alcançava tamanho sucesso na Société Nationa­ 1906 Primeira audição de Miroirs de Ravel por Ricardo Viñes.
le, que teve de ser tocado duas vezes! Essa obra genial, apesar No caminho que Liszt indicara, é uma música de piano inaudita.
da sua concepção revolucionária, seduziu os ouvintes pelo en­ 1908 Primeira obra atonal de Schönberg, as Peças para piano
canto voluptuoso da sua melodia e de seu ritmo suave, pelas op. 11. La mer de Debussy, sob a regência do compositor, uma
sutis cores da harmonia e da orquestração. U m ano antes, o obra-prima (uma primeira audição medíocre fora vaiada em
Quarteto de cordas era uma obra igualmente audaciosa, a des­ 1905).
peito da forma cíclica herdada do franckismo, mas suas sedu­ 1909 Peças para orquestra op. 16 de Schönberg: primeira tenta­
ções pareceram menos fortes. Para medir a novidade dessa mú­ tiva de Klangfarbenmelodie (melodia de timbres) na terceira pe­
sica, é preciso lembrar-se que, em 1894, ano do Prélude à l'après- ça. Fundação dos Balés de Diaghilev, que serão, durante cerca
midi d'un faune e do primeiro processo Dreyfus, Verdi (oitenta de vinte anos, um dos principais focos da vida musical.
e um anos) acaba de apresentar o Falstaff Bruckner (setenta 1910 Debussy toca pela primeira vez alguns de seus Préludes:
anos) trabalha em sua Nona sinfonia, Johann Strauss (sessenta mais uma nova sonoridade pianística. Seis peças para orquestra
e nove anos) continua compondo valsas, quadrilhas e operetas op. 6 de Webern, aluno de Schönberg.
para o teatro An der Wien, Dvofák acaba de apresentar sua
1911 Estréia de Petruchka do jovem Stravinsky, pelos Balés Rus­
Sinfonia do Novo Mundo, D'Indy funda a Schola e Mahler ter­ sos de Diaghilev, sob a direção de Monteux. Publicação em Vie­
mina sua Segunda sinfonia; Clara Schumann está com setenta na do tratado de harmonia de Schönberg (Harmonielehre).
e cinco anos, Brahms com sessenta e um, Fauré quarenta e no­
1912 Estréia de Daphnis et Chloé, a obra-prima de Ravel, pelos
ve, Puccini trinta e seis... O crepúsculo do romantismo parece
Balés Russos, sob a regência de Monteux. Estréia de Pierrot lu­
prolongar-se.
naire de Schönberg em Berlim. Essa obra revolucionária foi co­
Mas, nos vinte e cinco anos seguintes, uma série de aconteci­ piosamente vaiada. Tudo nela era desconcertante: a atonalidade,
mentos musicais notáveis subvertem o sentido da música: a escrita instrumental e o novo modo de expressão vocal chama­
do Sprechgesang.
1893-1894 Início da composição de Pelléas (desde a publicação 1913 No novo Théâtre des Champs-Elysées, primeira apresen­
do drama de Maeterlinck). Quarteto de Debussy e Prélude à tação da Sagração da primavera de Stravinsky: memorável bata­
l'après-midi d'un faune na Société Nationale. lha, cujo tumulto impedia que a orquestra fosse ouvida... Mas
1895 Primeira audição em Colônia de uma das obras-primas de a coreografia de Nijinsky, tanto quanto a música, desnorteava o
Richard Strauss, Till Eulenspiegel, seu quinto poema sinfônico. público elegante e os associados do teatro. A "revolução" da Sa­
1900 Estréia da Tosca de Puccini em Roma e de Louise de Char­ gração era uma revolução no comportamento. Cinco peças op.
pentier em Paris. Primeira audição dos dois primeiros Noturnos 10 de Webern, tão breves e tão sutis, que fazem pensar nos hai-
de Debussy na Société Nationale. Uma nova maneira de conce­ cais japoneses. A quarta peça comporta apenas seis compassos
ber e de sentir a música se impõe desde os primeiros compassos (exemplo p. 229).
de Nuages. 1917 Estréia nos Balés Russos de Parade de Erik Satie, sob
1902 Estréia de Pelléas et Mélisande na Opéra-Comique, sob a a regência de Ansermet (coreografia de Massine, cenários e f i ­
batuta de Messager, com Mary Garden no papel de Mélisande. gurinos de Picasso). Alguns jovens músicos, em torno de Jean
Schnebel, Abfälle 1,
A cabala é cuidadosamente organizada. Ninguém escuta a músi­ Cocteau, fazem da obra um estandarte. Reação contra o "debus-
Visible Music, detalhe. ca, salvo alguns literatos e musicistas, que avaliam a importância sysmo".
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 180 181 A AURORA DE NOSSO SÉCULO

1918 Aparecimento do jazz na Europa: entusiasmo dos jovens produção aumenta, o padrão de vida sobe. Ao mesmo tempo,
músicos. A Historia do soldado de Stravinsky estréia em Lausan­ a análise marxista é constatada. A ascensão do socialismo e o
ne, regida por Ansermet, com o concurso de Georges e Ludmilla desenvolvimento do movimento operário correspondem a ela. A
Pitoëff. Seu sucesso é interrompido pela gripe espanhola e pelo crítica das instituições, o questionamento de uma coisa julgada,
armistício. Debussy falecera no dia 25 de março. a separação entre a Igreja e o Estado, o exercício do livre exame
são sinais de um novo tempo, que os artistas vão viver à sua
Vivia-se, então, o início de uma transformação decisiva da maneira.
sociedade, em sua organização econômica e política, em seus cos­ Enquanto os impérios coloniais acabam de constituir-se na
tumes, em sua cultura. A Belle Époque é o apogeu do grande ca­ África e na Ásia e enquanto as grandes potências dividem por tra­
pitalismo: a influência política das altas finanças é considerável, a tados as zonas de influência entre si, em 1905 a batalha russo-
japonesa de Tsushima é a primeira derrota de um povo branco!
Esse acontecimento talvez seja um sinal do declínio da Europa,
que se esgota no gigantesco massacre da Primeira Guerra mundial.
Mas a época também é a de Toulouse-Lautrec, Matisse e dos últi­
mos impressionistas, de Gide, Claudel, Proust, Apollinaire, D'An-
nunzio, Pirandello, Rilke... É também a de imensas descobertas
científicas (rádio, raios X, quanta, relatividade) e de notáveis pro­
gressos técnicos (automóvel, avião, radiotelefonía, cinema)...
Em 1917-1918, a cultura ocidental é fortemente abalada. Uma
situação militar catastrófica (para os aliados, até julho de 1918;
para os impérios centrais, depois disso) e os ecos da Revolução
de Outubro provocam reações extremas: greves gerais e levantes
por toda parte; por outro lado, violenta hostilidade contra qual­
1
quer evolução dos costumes e do pensamento . A velha direita
francesa, ainda abalada pelo caso Dreyfus, reage à trágica epo­
péia das trincheiras denunciando toda espécie de bruxas, em par­
ticular os artistas modernos e cosmopolitas, agentes da subver­
são. Ela repete o lema da Action française: enquanto a elite da
nação morre em combate, tocaieiros e provocadores (judeus,
franco-maçons, pederastas, estrangeiros, anarquistas, bolchevi­
ques) obram para demolir a cultura tradicional. Futuristas, "ku-
bistas", balés russos são os sequazes dos "alemães" e dos "bol­
cheviques". Para Vlaminck, que tinha quarenta e dois anos na
época, "o que era errado era belo, o que era malsão tornava-se
original". Reciprocamente, os partidários da mudança condenam
sistematicamente qualquer glória consagrada (Debussy, por exem­
plo, ou os impressionistas) e defendem qualquer coisa, de qual­
quer jeito.
É por volta de 1918 que se toma consciência das novas cor­
rentes musicais — a de Schönberg, a de Ravel, a de Stravinsky
— e que se descobre a estética paradoxal de Satie. Rejeita-se De­
bussy, cuja extraordinária modernidade não se discerne. A van­
guarda multiplica os manifestos provocantes; de ambos os lados,

1. O próprio papa Pio X , em 1907, redige uma encíclica para condenar o mo­
dernismo (Pascendi).
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 182 183 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX

as pessoas se mostram excessivas, incompreensivas, não raro in­ Contestação e diversidade Ora, a música do século X X é bas­
tolerantes. A tradição encontra-se confrontada com a revolta an­ tante diferente da música moderna das outras épocas! Querer de­
tiidealista de uma ars nova, como sob Filipe, o Belo, e cada ten­ monstrar o contrário só pode acentuar sua singularidade... Des­
dência esmaga a outra com seu desprezo. Uma vontade de intimi­ de Debussy, assiste-se a tuna contestação geral do sistema e das
dação, que qualifico por hipérbole de "terrorismo estético", já regras acadêmicas: princípio das relações tonais, desenvolvimen­
existia em torno de Wagner, depois, em menor escala, de Vincent to temático, formas tradicionais. Aos músicos dessa época, a imi­
d'Indy. No século X X , precisamente a partir de 1918, essa atitu­ tação dos modelos, em que o ensino se baseava outrora, parece
de se torna habitual. Tão logo alguém se liga a uma escola ou a estéril. É o que exprime esta frase de Debussy: "Parecia que, des­
uma igrejinha (por acaso, por convicção filosófica, por gosto ar­ de Beethoven, a prova da inutilidade da sinfonia estava dada."
tístico ou por afinidade social), não pode mais desviar-se da hnha Em outras palavras, Beethoven, que Debussy admira por sinal,
traçada por alguns magos bem-falantes. Com largo emprego de mostrou a inutilidade dos marcos tradicionais superando-os: ele
sofismas, paradoxos brilhantes, improvisações irrefletidas, eles es­ ensina como não imitar os modelos.
tabelecem catecismos estéticos fora dos quais não há salvação. Mas, no século X X , a contestação dos modelos torna-se tão
As reações conservadoras são particularmente violentas. De­ ampla e tão profunda, que a assimilação de novas estéticas e téc­
ve-se dizer que foram vivamente provocadas nos anos que prece­ nicas implica rupturas completas. Ora, o ensino, baseado na ex­
deram 1918, logo depois da admissão no Louvre dos impressio­ periência, impõe a si mesmo como obrigação ser tradicional.
nistas. É a bela época das Demoiselles d'Avignon de Picasso Pensa-se fazer um trocadilho ruim ao observar o caráter conser­
(1907), das primeiras colagens (1912) por Picasso e Braque, do vador dos conservatórios — é, antes, um truismo. De fato, trata-
Manifesto futurista italiano (1909), do Nu descendo escada (1912) se de uma instituição destinada a conservar um sistema musical
de Duchamp e de seus primeiros "ready-made", anunciadores da num estado julgado perfeito e a transmiti-lo pelo ensino. Por is­
"pop-art", da Arte dos ruídos de Russolo (1913), do nascimento so, o ensino da música no século XX nunca corresponderá à rea­
de Dadá (1916). Ε o conservadorismo, reciprocamente, estimula lidade musical contemporânea. Os aprendizes de compositor
o gosto da provocação... aprenderão regras que talvez nunca usarão e ficarão mal prepa­
rados para a sua função na música e na sociedade.
Aliás, poderia ser de outro modo? Nas outras épocas, podia-
se definir uma "linguagem" musical comum aos compositores
SINGULARIDADE D A MÚSICA de uma ou várias gerações. Os mais audaciosos transformavam
periodicamente esse instrumento em proveito das gerações se­
NO SÉCULO X X guintes. Desde o início do século X X , ao contrário, existiram
Muitos melómanos se perguntam se nossa música moderna se dis­ simultaneamente técnicas ou até sistemas musicais inconciliáveis,
tingue fundamentalmente da música moderna das outras épocas. incompatíveis, irredutíveis uns aos outros: sistema tonai "enri­
De ordinário, respondem-lhes que não. Ε cada um, invocando o quecido", politonalidade, dodecafonismo serial, músicas em quar­
Eclesiastes, se convence de que não há nada de novo sob o Sol, to de tom (ou outras frações de tons), sistema modal ampliado,
de que a música moderna se impôs dificilmente em todas as épo­ música eletracústica, músicas aleatórias ou probabilistas, jazz,
cas, que as mesmas críticas de dissonância, de incoerência, de ba- música funcional ou de grande consumo (sistema tonai empo­
rulheira, de singularidade a qualquer preço sempre foram feitas brecido), etc.
à música moderna pelos elementos conservadores da profissão e Essa diversidade não teve equivalente na história. Se os pro­
pelo grande público contemporâneo. blemas que ela coloca para o ensino são difíceis, para a prática
Por isso, o temor de ser assimilado aos fósseis que condena­ musical são insolúveis. Algumas técnicas tornam a música inexe-
ram Monteverdi, Wagner ou Debussy incita os pedantes a consi­ cutável, não apenas pelos amadores, mas também pelos profis­
derar qualquer estética nova como o classicismo de amanhã. Eles sionais não especializados. A música de hoje acaso permite ima­
acham que a história se repete e não se crêem tolos o bastante ginar sessões de improviso de música de conjunto, como Mozart
para cair no ridículo dos censores de outrora. Todo criador que organizava para fazer Haydn ouvir os quartetos que lhe dedica­
se distingue de seus contemporâneos será reconhecido como um va? Ou Mendelssohn, para decifrar novos Heder de Schumann
precursor. acompanhado por Clara? Ready made de Duchamp.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 184 185 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX

Incontestavelmente, a música moderna do século X X apre­ mente difundida. O não-músico em geral acha "dissonante" qual­
senta características sem precedentes: diversidade de tendências, quer mistura de sons que choca seu ouvido; sua definição é sim­ E L E S DESCOBREM O JAZZ
questionamento de princípios fundamentais, incomumcabilidade plista, mas nem um pouco aberrante. Na teoria clássica, a oitava,
imediata, defasagem do ensino, extraordinários meios de difusão, a quinta justa e a quarta justa são chamadas "consonâncias per­ 1893 Dvofák: Sinfonia do Novo
cujo controle permite orientar a cultura coletiva e agir sobre a his­ feitas"; as terças e as sextas, maiores e menores, são "consonân­ Mundo (2? movimento: tema do
tória por uma seleção arbitrária... cias imperfeitas"; todos os outros intervalos são considerados dis­ negro spiritual "Sweet home").
1908 Debussy: Golliwog's Cake­
Na falta de uma grande idéia criadora comum, a pesquisa sonantes. O sistema harmônico baseado nessa teoria é bastante
walk (Children's Corner).
de uma técnica individual de composição adquire, em nossos dias, empírico e encontra maior justificação na tradição do que na acús­
1910 Debussy: Minstrels.
uma importância inabitual, traduzindo ao mesmo tempo o isola­ tica. A harmonia clássica às vezes é até ilógica quando, por exem­ 1912 Debussy: General Lavine Ec­
mento do artista na sociedade e uma tomada de consciência de plo, vários autores admitem a consonância do acorde de quinta centric e Hommage à Samuel Pick­
seu papel histórico. Na incerteza de seu destino individual, o ar­ diminuta (si.ré.fá), que comporta um trítono, mas recusam essa wick.
tista tenta escàpar a seu destino como categoria por uma busca qualidade ao acorde de quinta aumentada (dó.mi.soltf). Na har­ 1917 Satie: Parade (Petite fille
de originalidade estética. Mas, como a crítica histórica moderna monia clássica, toda dissonância exprime uma tensão, um dese­ américaine e Ragtime du paquebot).
lhe revela que a história tem um sentido, ele procura adivinhar quilíbrio, que se deve "resolver" na consonante vizinha. Numa 1918 Stravinsky: História do solda­
a posição que deve ocupar — sua originalidade tem de exprimir- harmonia dissonante, como a do século X X , é a consonância que do (Ragtime).
se por uma modernidade profética, que possa ser o classicismo pode exprimir uma tensão (Bartók), um desequilíbrio (Debussy), — Stravinsky: Ragtime para pe­
de amanhã. ou até ser abolida (dodecafonismo). quena orquestra.
Será correto definir a dissonância como um defeito da con­ 1919 Stravinsky: Piano ragmusic.
sonância (à maneira platônica)? São conceitos que convém ten­ 1920-1925 Ravel: L'enfant et les
A emancipação da dissonância No início do século, o questio­ sortilèges (foxtrote do bule de chá).
namento sistemático das antigas imposições formais, a dissolu­ tar considerar de maneira independente. Pode-se admitir, com
igual razão, que a exceção é a consonância perfeita e não a dis­ 1923 Milhaud: La création du
ção da tonalidade, a libertação do ritmo favoreceram um novo monde.
espírito de pesquisa. O compositor fica, desde então, tentado pe­ sonância. De fato, dois sons diferentes simultâneos são percebi­
dos, no caso geral, como um complexo heterogêneo, que os gre­ — Milhaud: Trois rag-caprices
la aventura, pela exploração do desconhecido, e a música torna- para piano e pequena orquestra.
se de novo experimental, como era antes da invenção da impren­ gos chamavam de diafonia. A percepção dessa diafonia pode ser
1923-1927 Ravel: Sonata para pia­
sa. Mas não é mais apenas a obra, é a própria técnica que é obje­ mais ou menos viva. Entre determinados sons, ela é atenuada no e violino (2? movimento: Blues).
to de experiência única. Inevitavelmente, a multiplicidade das pes­ a ponto de desaparecer; diz-se então que os sons formam uma 1929 Schönberg: Von Heute auf
consonância mais ou menos perfeita. A consonância seria, as­ Morgen.
quisas iria acarretar a diversidade das tendências, a acentuação
sim, um caso particular da diafonia, que foi privilegiado por ser
das especializações e a freqüente ruptura das relações entre os cria­
o menos provável.
dores e o público.
Objetivamente, a consonância e a dissonância de um inter­
As diferentes tendências têm, no entanto, uma raiz comum:
2 valo podem ser explicadas, segundo Helmholtz, pela comparação
"a emancipação da dissonância" . Elas se distinguem pela ma­
dos harmônicos dos dois sons, em particular pela consideração
neira como gerem essa conquista primordial. Trata-se, essencial­ 3
dos batimentos perceptíveis entre harmônicos . No intervalo de
mente, de uma mudança na própria concepção da harmonia, mu­
segunda, também podem ser percebidos batimentos entre os sons
dança que, para muitos amadores e alguns profissionais, basta
fundamentais, no registro grave até o fá da clave de fá (segunda
para definir a modernidade. Mas é certo que uma nova concep­ maior) ou até o sol da clave de sol (segunda menor), aproximada­
ção da harmonia acarreta uma mutação das formas melódicas e mente. O mesmo acontece nos intervalos de sétima, maior e me­
também convida a libertar as estruturas rítmicas do jugo do nor, entre a fundamental do som agudo e o h.2 do som grave.
compasso. Um intervalo é tanto mais consonante quanto mais harmônicos
Pode parecer inútil definir a dissonância. No entanto, não
é fácil especificar o que se esconde por trás dessa noção ampla- 3. Quando Helmholtz diz que a dissonância é definida pelos batimentos en­
tre harmônicos, ele exprime uma lei fisiológica e não física. De fato, cada um dos
harmônicos de um som produz batimentos com os harmônicos de outro som. Mas
2. Essa expressão, que caiu no gosto, foi empregada pela primeira vez por só são característicos de uma dissonância os batimentos percebidos. A dificulda­
Schönberg. Ele entendia com isso "que a compreensibiUdade da dissonância é equi­ de está em determinar de maneira absoluta os que todos percebem! De modo ge­
valente à compreensibilidade da consonância" (conferência dada em 1939, trad. ral, a coincidência dos harmônicos é percebida melhor do que a não-coincidência,
Leibowitz). se o fenômeno global for complexo.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 186 187 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX

comuns tiverem os sons constitutivos desse intervalo: o fortaleci­ dem bater, sobretudo se os harmônicos comuns forem fracos. De
mento dos harmônicos em uníssono mascara os batimentos entre fato, pode-se observar que a impressão de dissonância é variável
outros harmônicos. Inversamente, o intervalo é tanto mais disso­ em função do timbre e da textura. Isso não surpreende, pois a
nante quanto mais raros e mais distantes forem esses harmônicos natureza e a intensidade dos harmônicos variam com o timbre,
comuns e quanto mais perceptíveis forem os batimentos entre har­ enquanto a freqüência dos batimentos, assim como dos sons re­
mônicos muito próximos. sultantes, varia com a textura... Mas uma parte da demonstração
Abaixo o leitor encontrará um quadro dos principais inter­ vai por água abaixo se adotamos a avaliação pitagórica dos inter­
valos da escala harmônica (Zarlino), numa ordem de dissonância valos (escala cíclica); então, a terça, principalmente, torna-se dis­
crescente. Na segunda coluna, figuram os números de ordem dos sonante!
primeiros harmônicos comuns (ver exemplo t. 1, p. 106): o pri­ Qualquer tentativa de definição da dissonância mostra a re­
meiro número designa um harmônico do som mais grave, o se­ latividade dessa noção. Ela depende não só de parâmetros físicos
gundo, um harmônico do som mais agudo. A periodicidade dos e fisiológicos muito complexos, mas também de fatores psicoló­
harmônicos comuns é dada pelo segundo número: na quarta e na gicos e culturais. Na Idade Média, a terça era considerada uma
sexta maior, por exemplo, um harmônico em cada três do som dissonância; a quinta e a quarta "ocas" eram recomendadas, ao
mais agudo está em uníssono com um harmônico do som mais passo que nos parecem duras hoje em dia. Debussy encadeia acor­
grave. Na terceira coluna são indicados os primeiros harmônicos des dissonantes que nos dão uma impressão de doçura. Segundo
bem próximos (menos de um semitom), cujos batimentos são, pois, a bonita fórmula de Robert Kemp (a propósito de Pelléas): "As
capazes de ser percebidos. segundas não mais melindravam nem mordiam. Elas formavam
beijos apertados, e as nonas, sorrisos." A evolução da música oci­
dental não nos permite mais definir a dissonância pela agressão
que ela faria o ouvido sofrer. Tampouco é possível considerar a
intervalo primeiros primeiros harmônicos
harmônicos muito próximos
impressão de diafonia como base para definição, pois somente
comuns (menos de um semitom)
a oitava, a consonância mais perfeita, é percebida pela maioria
4
dos ouvintes sem experiência como um som único . Quanto aos
critérios acústicos, vimos que eram variáveis em função do tim­
oitava 2 e 1 todos comuns bre, da altura dos sons e da natureza da escala de referência; por­
quinta justa 3 e 2 13 e 9 (terço de tom) tanto, eles não permitem definir o grau de dissonância de um acor­
quarta justa 4 e 3 9 e 7 (pequeno terço de tom) de objetivamente. É preciso admitir, com Schönberg, que não há
sexta maior 5 e 3 12 e 7 (quarto de tom) noção fundamental de dissonância, mas apenas um estado de
terça maior 5 e 4 9 e 7 (quarto de tom) "consonância" — no sentido etimológico — mais ou menos
terça menor 6e 5 7 e 6 (quarto de tom) íntimo.
sexta menor 8e 5 11 e 7 (sexto de tom) A "emancipação da dissonância" é uma emancipação geral
da harmonia, uma rejeição das regras clássicas que nos impuse­
sétima menor 9 e 5 7 e 4 (quarto de tom) ram a distinção entre acordes instáveis, transitórios, que não sa­
segunda maior 9 e 8 7 e 6 (pequeno terço de tom) tisfazem o ouvido (dissonâncias), e acordes estáveis, aos quais o
sétima maior 15 e 8 11 e 6 (quinto de tom) ouvido aspira (consonâncias). O livre emprego dos diferentes agre­
segunda menor 16 e 15 11 e 10 (grande quarto de tom) gados sonoros e seu corolário melódico, o cromatismo, têm uma
quarta aumentada 45 e 32 7 e 5 (terço de coma) história que remonta à Renascença.
Até o século X V I , as dissonâncias são fortuitas; elas apare­
cem de forma fugidia no tecido complexo da polifonia, mas a aten-
Segundo os critérios adotados aqui, a quarta aumentada, ou
"trítono" (dó.fá#), aparece como o intervalo mais dissonante: pra­ 4. Segundo uma pesquisa do psicólogo alemão Carl Stumpf (1848-1936), 75%
dos ouvintes sem formação percebem como um som único dois sons simultâneos
ticamente não há harmônico comum audível nem batimentos mui­
em oitava; 50% reagem da mesma maneira à quinta, 33% à quarta, 25% à terça,
to perceptíveis entre h.7 e h.5. Mas se os timbres escolhidos não 20% ao trítono, 10% à segunda. Stumpf explica a noção de consonância por essa
favorecerem esses dois harmônicos o trítono parecerá muito me­ fusão {Verschmelzung) que o ouvinte sem formação realiza: é um dado psicológi­
nos dissonante do que uma segunda, em que os fundamentais po- co, e não mais físico ou fisiológico.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 188 189 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX

ção é mobilizada pela conduta das partes e não por determinado Tristão abre caminho para uma forma de expressionismo
encontro acidental. As alterações servem para a escolha dos dife­ em que as sucessões cromáticas e os encadeamentos de apoj atu­
rentes valores de certos intervalos: não se emprega simultânea ou ras têm uma função dramática independente das relações to­
consecutivamente o mesmo som em sua forma natural e alterada. nais. Essa dinâmica da harmonia dissonante encontra sua extre­
No século X V I , começa-se a utilizar o cromatismo, na acepção ma consumação no sistema de Schönberg. Todavia, não é a úni­
moderna do termo (sucessão de sons diversamente alterados), na ca maneira de utilizar livremente as dissonâncias. Também po­
busca de uma expressão dramática ligada ao espírito madrigales­ demos considerá-las por suas qualidades sonoras globais, suas
co. A partir de aproximadamente 1600 (Gesualdo, Monteverdi), "cores", compô-las como misturas de timbres, acrescentar aos
agregados dissonantes são encarregados de exprimir uma tensão acordes tradicionais sons destinados a modificar sua qualidade
dramática. sonora e não a acentuar seu dinamismo, ou então basear a har­
No século X V I I , as harmonias dissonantes e as melodias
monia dissonante na exploração de novos mundos sonoros, com
cromáticas já distinguem um músico "moderno"; mas a pala­
novas escalas e novos modos... De uma maneira ou de outra,
vra "cromático" designa um estilo bastante modulante e não, co­
a emancipação da dissonância impôs-se pouco a pouco como
mo hoje, o emprego sistemático das alterações, gerando séries de
inelutável. Uma das características dominantes da música do
semitons ou de intervalos estranhos à escala escolhida. O classi­
cismo musical do século X V I I I impõe à harmonia uma hierarquia século XX será a busca de novos métodos de composição capa­
de acordes, à melodia uma estrutura sóbria e simétrica, a cada zes de integrar logicamente as formas melódicas e as estruturas
nota da escala uma função dinâmica e às modulações uma dialé­ harmônicas oriundas dessa emancipação. Mas o sistema tonai
tica rigorosa, em função da tonalidade soberana e do sentimento permanece obsédante e o par dominante-tônica reaparece sor­
agudo da forma. O livre emprego das dissonâncias e dos enca- rateiramente nas harmonias mais ousadas. E, enquanto os mú­
deamentos cromáticos é limitado pelo "sistema tonal". A audá­ sicos de vanguarda tentam escapar dessa tirania, os mais con­
cia harmônica de Rameau fica ainda mais notável com isso: ele servadores enchem seus velhos acordes de provocantes "notas
é, sem dúvida, o primeiro músico a utilizar sistematicamente acor­ desafinadas".
des dissonantes, como fará Debussy, por suas qualidades acústi­ Todos os músicos da primeira metade do século tiveram de
cas, por seu "timbre". definir seu sistema de composição em relação à crise do sistema
Segundo Theodor Adorno, uma "avidez de dissonância" tonai. Alguns consideram esse sistema o fundamento natural da
faz-se sentir desde o século X V I "enquanto expressão do sujeito harmonia na música ocidental e se propõem apenas enriquecê-lo
sofredor, ao mesmo tempo autônomo e não livre". Essa obser­ para favorecer sua evolução sadia; outros, ao contrário, estimam
vação (ou essa hipótese), que pode ser sugerida por Monteverdi, que o sistema tonai esgotou seus recursos, constatam sua desa­
encontra sua plena justificação nos românticos. O acorde que pre­ gregação irreversível e preconizam uma ruptura radical em bene­
cede a entrada do barítono na Nona sinfonia de Beethoven (to­ fício de uma harmonia estritamente atonal ou pantonal, sem po­
das as notas da escala de ré menor) inclui-se na análise de Ador­
laridade; outros ainda conjugam todas as nuanças do "sim, em
no. Mais significativo ainda é o lied de Schubert Die Stadt: longa
termos" e do " n ã o , em termos"...
repetição de um acorde de sétima diminuta, com o qual termina
a peça, sem resolução. Aliás, nunca se sublinha bastante a audá­ O desejo de se libertar das injunções do sistema tonai não
cia harmônica de Schubert. Na obra de Chopin, de Schumann, se manifesta unicamente na emancipação da dissonância ou no
de Liszt, também encontramos numerosos exemplos de harmo­ radicalismo schönberguiano. Quando Satie encadeia acordes per­
nias dissonantes e de encadeamentos cromáticos, corresponden­ feitos, sem se preocupar com as relações tonais, é tão libertário
tes a uma intenção expressiva. em relação à harmonia ortodoxa quanto se encadeasse acordes
Mas é na obra de Wagner, principalmente em Tristão, que de sétima. A escala por tons (dó ré mi fá# sol# lá#) e a
o cromatismo expressivo, a modulação contínua, a tensão har­ escala pentatônica chinesa, utilizadas por Debussy, são to¬
mônica sugerem com mais força um novo método de composi­ nalmente indeterminadas, e encontraremos outras escalas (Bar-
ção. Certos agregados dissonantes são irracionais do ponto de vista tók e Messiaen, em particular) que impõem uma harmonia "mo­
tonai, e, nas páginas de grande tensão dramática, a linha melódi­ dal" específica, sem intervenção possível das funções tonais clás- ->
ca parece uma sucessão de sensíveis sustentadas pela paixão, sem sicas, porque estamos na atmosfera ambígua de várias tonali- ^ ^ ^ ^ S 2 Â y s é « ,
encontrarem repouso tonai (ver exemplo p. 70). a
" des. sob a regência de Leonard Bernstein.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 192 193 SINGULARIDADE DA MÚSICA NO SÉCULO XX

A contestação do venerável sistema coincide com uma certa preocupação em democratizar essa música erudita, o modo de
rejeição da imitação nas artes plásticas ou, mais exatamente — vida do trabalhador urbano coloca-o fora de condições de des­
já que a arte sempre imita —, com a reivindicação do direito de frutá-la. Seria preciso um extraordinário esforço de adaptação
imitar outra coisa que não as aparências. Um antiacademismo ge­ para se inserir num universo musical estranho a suas preocu­
ral põe todos os artistas, no início do século X X , na situação de pações.
reinventar sua arte. Ressalta-se a cada instante a incompreensão do grande pú­
No plano do ritmo, é difícil encontrar características co­ blico, no século X X , para com a música de seu tempo. Na verda­
muns ao conjunto da música do século X X . A despeito de uma de, é a música "cultural" em seu conjunto que é incompreendi­
opinião corrente, não é ele o elemento que nossa época subver­ da, sobretudo a mais significativa e a mais elaborada. A música
teu mais radicalmente. O aparecimento, no século X I X , dos com­ do passado utiliza um sistema musical mais ou menos familiar;
passos de 5, 7 ou 11 tempos, assim como das mudanças de rit­ ela não choca ninguém, apenas aborrece a grande massa dos que
mo e de compasso, nada tem de surpreendente: essas "novida­ distinguem apenas seus contornos, sem perceber o conteúdo mu­
des" se encontram no folclore. Quanto à acentuação violenta sical, o "sentido". Os apreciadores esclarecidos têm cada vez mais
dos tempos fortes (ou de cada tempo!), que faz dizer que uma consciência de pertencer a uma elite; eles formam uma nova clas­
música é bastante ritmada, é a própria negação do ritmo — a se de "melómanos" imbuídos de sua cultura e geralmente não
essência deste está na diversidade dos valores de duração. Quase ativos.
toda a música comercial é, a esse respeito, da mais extrema po­ Aliás, se a escola desse a todos um ensino musical satisfató­
breza. rio, que repertório seria oferecido aos eventuais músicos amado­
res das classes trabalhadoras? Uma música do passado bem dis­
Há sete séculos, é verdade, nosso sistema de notação propor­
tante da sua sensibilidade; uma música moderna demasiado com­
cional impõe valores de duração múltiplos uns dos outros, favo­
plexa, que se torna um objeto de especialistas; ou uma música in­
recendo certos modelos rítmicos. Assim, as dificuldades de escri­
dustrial cujo objetivo é o lucro (e que, de resto, só pode ser exe­
ta dissuadirão por muito tempo os compositores a levar suas pes­
5 cutada com consideráveis meios eletracústicos).
quisas além do que pode ser notado . Ademais, a divisão em
A despeito das proclamações demagógicas de boas intenções,
compassos iguais é um velho hábito de que é difícil afastar-se. Não
cumpre reconhecer que a música cultural é tão elitista no século
há teoria moderna do ritmo: Debussy, Stravinsky, Webern, Va­
XX quanto outrora e que não existe outra música popular fora
róse, Messiaen terão, cada um, uma maneira original de renovar
das "variedades", produzidas e difundidas pelas indústrias do
sua concepção.
show business. Aliás, é provável que o público dos grandes músi­
cos do nosso século, de Debussy a Messiaen, seja mais estritamente
Relações com o público O público do século X X é sempre a bur­ selecionado que o de Vivaldi, Haendel, Mozart, Beethoven e Ber­
guesia. Mas, ao contrário daquela do século romântico, é uma lioz. No século X V I I I , os marinheiros de Veneza assistiam à ópe­
burguesia decadente: ela perde, enquanto classe, o poderio eco­ ra; ora, não acredito que haja muitos operários assistindo a Pel­
nômico, representado doravante por um capitalismo abstrato, e léas ou aos Balés Russos. Não tardará para que todas as classes
seu poder político desfaz-se pouco a pouco. Com isso, ela já não sociais estejam imersas num mesmo banho de música estereoti­
possui meios para agir sobre a cultura. Quanto às classes ditas pada pela mídia, abusivamente desviada de sua função. A sensi­
"ascendentes", elas são ignoradas pelos artistas e não concebem bilidade auditiva não poderá deixar de embotar-se em contato per­
que estes possam trabalhar para elas. A função da arte, em parti­ manente com fundos sonoros excessivamente pobres ou "sons"
cular da música, não é mais social, e sim "cultural". A musicolo­ extremamente barulhentos.
gía, atraindo a atenção para as obras-primas do passado, man­ Em que país, capitalista ou socialista, um ministro da Cultu­
tém o mito da "música erudita"; e o ritual do concerto propõe ra tentará promover uma música de qualidade, correspondente
a um público cada vez mais vasto uma música composta, hoje co­ ao mesmo tempo ao estado do pensamento artístico contemporâ­
mo ontem, para uma minoria privilegiada. Ora, enquanto há uma neo e às aspirações profundas do grande público, antes de seu con­
dicionamento pela mídia e pelo show business! Em nenhum lu­
5. N a segunda metade do século, as c o n c e p ç õ e s r í t m i c a s da nova música só
gar se quis reconhecer que a massa sem rosto que Sartre chama
p o d e r ã o ser expressas acrescentando-se à n o t a ç ã o freqüentes explicações comple­ de "público virtual" é necessariamente mistificada. Em nenhum
mentares. lugar lhe são dados os meios para desfrutar o que se pretende des-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 194 195 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY

tinar-lhe, ajudando-a a distinguir o talento profético da mistifi­ Debussy Este escolheu o caminho mais "selvagem" de todos:
cação e da provocação. Onde se empreendesse sinceramente a des- o do prazer e da liberdade. Desde L'après-midi d'un faune (1894),
mistificação do público, este reaprenderia a escolher e, um pouco ele progride fora dos caminhos conhecidos, lançando mão de tu­
mais tarde, a inventar. Faz cem anos que os profissionais deplo­ do e deixando-se guiar por sua extraordinária sensibilidade audi­
ram o analfabetismo musical sem querer remediá-lo. O próprio tiva, por sua intuição do inaudito. Ele inaugura uma nova ma­
amador esclarecido, renunciando a conhecer a teoria e a prática neira de perceber a música, de comover-se com ela, um tipo de
musicais, incentiva a especialização e justifica a dificuldade da mú­ comunicação musical audaciosamente independente das referên­
sica moderna. Ε veremos que, em nome das ideologias mais fir­ cias intelectuais e, portanto, irredutível aos "ismos": classicismo,
memente progressistas, será defendida uma ordem estética cadu­ romantismo, wagnerismo, impressionismo, simbolismo. Debussy
ca contra a imaginação inovadora. detesta a análise, que nada mais é que um inventário de receitas,
ou a aplicação de esquemas intelectuais numa realidade sensível
e movediça. Ele quis que sua música fosse inanalisável. No curso
de uma conversa com seu mestre Guiraud, em 1889, Debussy en­
A S GRANDES CORRENTES cadeia alguns acordes no piano:

Fazia dez séculos que a polifonia se desenvolvia aumentando sua


complexidade. No fim do século X V I , sentiu-se a necessidade de
um retorno a estruturas mais simples; privilegiou-se a expressão
melódica e instituiu-se o primado do modo de dó, modo maior.
"É bonito, não nego", constata Guiraud. "Mas é teoricamente
A complexidade logo tornou a crescer e os recursos harmônicos 6
absurdo." "Não há teoria, basta ouvir. O prazer é a regra." De­
enriqueceram-se no âmbito de um sistema de relações hierárqui­
bussy escapa de pronto a todos os academismos.
cas e dinâmicas muito fecundo, o sistema tonai. Mas eis que, no
fim do século X I X , a multipücação das alterações cromáticas, a O caminho debussysta é um equivalente musical das corren­
1

emancipação da dissonância e a audácia das modulações condu­ tes impressionista e simbolista? Em 1887, a suíte Printemps , se­
zem à dissolução das funções em que repousa o sistema. Nos pri­ gunda remessa de Roma, é mal recebida pelo Instituto, devido a
meiros anos do século X X , todos os compositores confrontam-se seu "vago impressionismo". Como na pintura, essa palavra tem
com os problemas colocados por essa dissolução, como ressaltei a princípio um sentido desfavorável. É reempregada a propósito
acima. A maneira pela qual percebem a crise e organizam o uni­ de La damoiselle élue, do Quarteto, dos Noturnos; mas a nuança
verso monótono e inerte da escala cromática determina as gran­ pejorativa desaparece pouco a pouco e logo serão publicados en­
des orientações da música do século X X . Essas orientações são saios sobre o "impressionismo musical".
definidas, antes da Primeira Guerra Mundial, pela obra de qua­ Debussy sempre recusou essa etiqueta, como a recusaria sem
tro grandes músicos: Debussy, Ravel, Schönberg e Stravinsky. Sua dúvida hoje, muito embora seu significado se tenha ampliado.
influência exerceu-se, direta ou indiretamente, sobre quase todos A palavra evoca uma técnica sem equivalente musical; mas reteve-
os compositores deste século. Os problemas específicos do teatro se dela apenas a imprecisão do desenho, o esfumado que se pen­
musical levaram três grandes contemporâneos de Debussy — Puc­ sava ser a característica dominante do estilo debussysta. Se se
cini, Janácek e Richard Strauss — a seguir caminhos particula­ opõe o "impressionismo" ao "expressionismo" (o que não é
res, de que trataremos a propósito da ópera. Porém, qualquer que mais que um jogo de palavras), pode-se considerar impressio­
seja a originalidade de seus estilos, eles não estabelecem uma no­ nista a obra de Debussy, de Ravel, uma parte da de Stravinsky
va corrente e sofrerão, numa parte de sua obra, a influência das e de muitos outros. Mas pode-se acaso admitir que alguns músi­
revoluções em curso. Alguns raros músicos, por seu não-confor- cos, à maneira dos pintores impressionistas, tenham procurado
mismo e pela originalidade de suas concepções estéticas, vão situar- captar a sensação pura, a relação não conceituai com o mundo
se à margem das correntes históricas ou além delas. É o caso de
Scriabin, Ives ou Varèse. Outros, ao contrário, como Sibeüus,
Reger ou Rachmaninov, permanecem apegados à estética pós- 6. Conversas anotadas por Maurice Emmanuel e publicadas na coleção
romântica, às formas tradicionais, às técnicas de composição her­ Comoedia-Charpentier (1942).
7. A partitura dessa obra infelizmente se perdeu. A versão que às vezes é to­
dadas.
cada é a o r q u e s t r a ç ã o , por H . Büsser, de uma redução para piano e canto.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 19g 197 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY

sensível? Os músicos não possuem as mesmas referências ex­ ou essa face oculta, esse "alhures" que o obseda. De saída, ele
teriores; eles não imitam nenhum objeto identificável, nenhuma rejeita qualquer forma preconcebida, qualquer método de desen­
sensação. Os títulos sugestivos com que Debussy adorna suas volvimento, qualquer academismo de ontem, hoje ou amanhã,
partituras não devem iludir-nos: o que ele nós quer representar afirmando que "a música francesa quer, antes de mais nada, agra­
está além das aparências, é a face oculta do mundo sensível. dar...", o que é audacioso em 1904. É por isso que a arte de De­
O verdadeiro ponto comum com os impressionistas é a extrema bussy escapa da análise e das classificações; descrevê-la, analisá-
precisão na representação do efêmero, do devir, do inapreen- la, é negligenciar o que tem de essencial, é deixar de reconhecer
sível. que ela pertence às "correspondências misteriosas entre a Natu­
A etiqueta "simbolista" conviria melhor a Debussy. Mas aca­ reza e a Imaginação", como ele mesmo diz, pensando talvez no
so toda música não é simbolista, no sentido em que os poetas en­ célebre soneto de Baudelaire, Correspondências.
tendiam? A ambigüidade da comunicação artística, a instituição As referências a Wagner e aos russos deixam furiosos alguns
de novas relações semânticas baseadas na imaginação, a corres­ debussystas. É verdade que, no começo do século, se abusava de­
pondência entre o sensível e o espiritual, o valor alusivo dos sons,
las a propósito de tudo. Mas acaso era necessário afirmar, por
tudo isso não é novo para o músico, que, de qualquer modo, su­
reação chauvinista, que a estética de "Claude da França" nada
pera a significação e não esperou Mallarmé para "pintar não a
deve ao estrangeiro? Entre sua volta de Roma e L'après-midi d'un
coisa, mas o efeito que ela produz". Stefan Jarocinski consagrou
8 faune, Debussy viveu várias experiências musicais decisivas: duas
um livro notável para demonstrar a originalidade da estética de­
bussysta e o que a distingue do impressionismo e do simbolismo. peregrinações a Bayreuth (1888-1889), a descoberta da música rus­
Mas ele não exclui a influência exercida sobre os gostos e a sensi­ sa e de diferentes músicas orientais na Exposição de 1889, o en­
bilidade artística do músico pelo convívio com os pintores e poe­ contro com Satie no Auberge du Clou (1891), o estudo da parti­
tas de seu tempo. tura de Boris (1893, embora a possuísse desde 1889), uma viagem
A orientação revolucionária que Debussy dá à música mo­ a Solesmes (1893)...
derna definiu-se nos cafés artísticos e nos salões literários, não Apesar do wagnerismo ambiente (e de um primeiro contato
nos círculos musicais, que ele não freqüenta, escapando assim das .com Tristão e Isolda em Viena, em 1882), é em Bayreuth que
igrejinhas de todas as tendências. Sua orientação inscreve-se me­ Debussy tem a revelação do drama wagneriano e que participa
lhor do que qualquer outra no grande movimento de idéias da épo­ do entusiasmo incondicional dos meios artísticos de vanguarda.
ca: desvalorização da razão em benefício da intuição (Bergson), Os mestres cantores deixam-no indiferente; Tristão e Parsifal
relatividade das noções temporais e espaciais (Lorentz, Einstein), o fascinam. A instabilidade tonal e a continuidade da sinfonia
ambigüidade de uma realidade corpuscular e ondulatoria (Planck, no primeiro, os dourados e os efeitos de vitral do complexo har-
Bohr). A ciência perde sua segurança e descobre limites à sua in­ monia-orquestração no segundo abrem-lhe perspectivas insus­
vestigação: quanto mais suas medidas são apuradas, mais a reali­ peitas. Bem depressa Debussy rejeita a dramaturgia wagneria­
dade lhe escapa. O positivismo agora faz sorrir e a inquietude me­ na, irrita-se com a insistência da expressão musical, de sua re­
tafísica suscita uma renovação espiritual... Nas artes, afasta-se co­ dundância, detesta os personagens e a indiscrição com que se
mo uma quimera o permanente e o razoável para buscar a verda­ fazem acompanhar por um leitmotiv... Porém, a influência de
de no efêmero e no irracional. Parsifal é sensível numa parte da sua obra, de La damoiselle
O caminho escolhido por Debussy é o mais audacioso, por­ élue (ele estava, então, absorto na leitura da partitura de Wag­
que corresponde ao estágio mais avançado da cultura contem­ ner) ao Martírio de São Sebastião, passando pelos interlúdios
porânea. Se quisermos descrevê-lo nos termos imprecisos usuais de Pelléas. Mesmo numa obra tão distante da estética wagneria­
naquela época, diremos que o músico sugere a realidade em de­ na quanto Jeux, Debussy declarava ter buscado "aquela cor or­
vir, tal como a concebem, cada um a seu modo, Bergson e os questral que parece iluminada por trás e de que há efeitos tão
simbolistas, ou ainda o reflexo dessa realidade na imaginação, maravilhosos em Parsifal". Essa transparência, essa harmonia
libertada das funções tonais e da retórica do desenvolvimento
8. S. Jarocinski, Debussy, impressionnisme et symbolisme, Paris, 1971. Essa foram, para Debussy, o que a tensão cromática de Tristão terá
obra nos faz participar "ao vivo" da revolução artística do início do século. Ε
fundamental para a compreensão da estética debussysta, assim como a obra de
sido para Schönberg.
Vladimir Jankélévitch, Debussy et le mystère, Neuchâtel, 1949.
C L A U D E DEBUSSY tura, seu savoir-vivre, sua rica bi­ 1899 Casa-se com Lily Texier, bo­
Saint-Germain-en-Laye, 22 de agosto de 1862 blioteca exercem uma influencia nita costureira, encantadora, mas
Paris, 25 de m a r ç o de 1918
decisiva sobre a formação do jo­ pouco culta. Freqüenta as "quar­
vem músico. Ele também freqüen­ tas-feiras" de Pierre Louys na rue
Seu pai, Manuel Achille, filho de ta os meios artísticos nos cabarés Rembrandt, a Taverne Weber na
marceneiro, tinha na rue au Pain, de Montmartre. rue Royale (onde se encontra com
38, uma pequena loja de porcelanas 1885-1887 Temporada na Vila Mé­ Reynaldo Hahn, Maurras, L . Dau­
e objetos chineses, que faliu em dicis. Suas "remessas de Roma" es­ det, P. J. Toulet, Proust), a livra­
1865; arrumou então um emprego candalizam o Instituto. Liszt vai à ria de Edmond Bailly na Chaussée
em Paris. Victorine Manoury, mãe Vüa: fica impressionado. d'Antin, onde se encontram pin-
de Claude, era filha de um marce­ 1887-1897 Ligação com a bela, do­ tores e poetas, o café Voltaire na
neiro e de uma cozinheira. Nenhum ce e sensual Gabrielle Dupont, dita place de l'Odéon...
dos dois era músico. "Gaby dos olhos verdes", com
1902 Estréia de Pelléas et Mélisan­
quem se instala na rue de Londres,
1868-1869 Sua tia Clémentine, ir­ de na Opéra-Comique, sob a re­
42. A vida do casal é miserável, pois
mã de seu pai, leva-o para Carmes gência de Messager, com Mary
Debussy é incapaz de trabalhar por
e o faz ter aulas de piano. Garden (Mélisande) e Jean Périer
encomenda. É admitido nas "ter­
1870- 1871 Manuel Debussy coman­ (Pelléas); cenários de Jusseaume.
ças-feiras" de Mallarmé, na rue
da uma companhia de federados. A obra enfrenta uma cabala orga­
de Rome, a melhor introdução ao
Quando da queda da Comuna, cum­ nizada.
Erik Satie em casa dos Debussy, square du Bois de Boulogne. mundo artístico e literário.
pre cinco meses de prisão e tem seus 1904 Lily descobre que é traída e
1889 Exposição universal: desco­
direitos civis cassados. tenta suicidar-se, como Gaby. De­
berta da música russa e da música
1871- 1872 Madame Mauté de Fleur- indonésia. Liga-se aos Chausson, bussy briga com Messager, Mary
ville, sogra de Verlaine, que se diz em casa de quem decifrará a nova Garden e Pierre Louys, que tomam
aluna de Chopin, interessa-se pelo música, em particular Boris Go­ o partido de sua mulher. Apesar
j ovem Debussy e ensina-lhe benévo­ dunov. dos esforços de Lily para reatar a
lamente piano. O casal Verlaine mo­
ra em casa dela, que Rimbaud visita 1891 Encontros com Satie no ca­ vida em comum (como Gaby: De­
com freqüência. baré Chat Noir e no Auberge du bussy é indigno de sua sorte), di­
Clou. vorciam-se . Em 1905, Debussy ca­
1872- 1883 Conservatório de Paris: Debussy e Stravinsky.
aulas de Lavignac (solfejo), Mar- 1893 Assiste a uma representação sa-se com Madame Emma Bardac,
de Pelléas et Mélisande de Maeter­ a quem Fauré dedicou La bonne
montel (piano), Durand (harmonia), 1918 Após duas penosas opera­
Franck (órgão), Guiraud (composi­ linck e decide imediatamente fazer chanson, uma mulher inteligente e ções, seu câncer se agrava. Sua
ção). Debussy também se dirá alu­ uma ópera com a peça. Pierre Louys culta, com quem se instala num morte, enquanto o canhão Bertha
no de Massenet. Por três verões con­ desaprova a escolha, mas aceita palacete no square du Bois de Bou­ bombardeava Paris, passou desper­
secutivos (de 1880 a 1882) é contra­ acompanhar Debussy à casa de Mae­ logne, 24. Terão uma füha, Claude- cebida. Foi sepultado no Père-
tado como pianista por Nadejda von terlinck, em Gand. Emma (1905-1919), chamada Chou­ Lachaise, mas, no ano seguinte,
Meek, protetora de Tchaikovsky, 1894 Grande sucesso do Prélude à chou, a quem Debussy dedicará a seus restos foram transportados pa­
que o leva a Moscou, Viena, Suíça, l'après-midi d'un faune na Société Children's Comer. ra o cemitério de Passy.
Itália (encontra-se com Wagner em Nationale, sob a regência do maes­ 1910 Debussy conhece Stravinsky
Veneza). tro suíço Gustave Doret. na estréia do Pássaro de fogo. Pri­ obra Pelléas et Mélisande (drama
1884 Primeiro grande prêmio de 1897 Descobrindo que está sendo meiras manifestações de um câncer. lírico), Le martyre de Saint Sébas­
Roma pela cantata L'enfantprodi­ traída, Gaby Dupont tenta suici­ Rege suas obras em Londres, Vie­ tien (mistério), três balés (Khamma,
gue. Apaixona-se pela bonita Mada­ dar-se. É recolhida pelos Chausson na e Budapeste. La boîte à joujoux e Jeux); três can­
me Vasnier, cuja bela voz acompa­ e pelos Ysaye; Debussy briga com 1912-1914 Série de concertos em tatas, Chansons de Charles d'Or­
nha ao piano. Os Vasnier tratam-no eles. Depois da ruptura, ele se mu­ Viena, Budapeste, Moscou, São Pe­ léans para coro misto, numerosas
como filho da família: sua cul- da para a rue Cardinet. tersburgo, Roma e Amsterdã. melodias com poemas de Villon,
Claude Debussy.
201 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY

Verlaine, Mallarmé, P. Louys, Bau­


delaire, Bourget, Tristan Lhermi-
te... Prélude à l'après-midi d'un
faune, três Noturnos, La mer, Ima­
ges para orquestra. Numerosas pe­
ças para piano: Suite bergamasque,
suite Pour le piano, Estampes (de
que faz parte Soirée dans Grenade),
L'isle joyeuse, dois cadernos de
Images, Children's Corner, vinte e
quatro Prelúdios, doze Estudos, En
blanc et noir (dois pianos). Um
quarteto. Três sonatas.
fSJ
Debussy em casa dos chausson. A influência da música russa é muito mais incerta. Durante
suas duas estadas na Rússia (1881 e 1882), o jovem pianista de "fprî ¿r:
Madame von Meek por certo não deixou de decifrar a obra de rjiii_ii_!¿¿l_ ft H ' " 8 -i—
1

Tchaikovsky; mas não encontramos a menor reminiscência dela f. - γ»


r Γ
em sua obra. Nas obras do Grupo dos Cinco, ouvidas em 1889
sob a regência de Rimsky-Korsakov ou estudadas na partitura, Outras harmonizações dos dois primeiros compassos (o tema permanece
o que parece ter impressionado Debussy foram as construções mo¬ semelhante e no mesmo tom, com ligeiras variantes rítmicas).
dais, exóticas ou populares. O alvo de sua admiração foi sobretu­
9
do Mussorgsky : "Ele é único e único continuará sendo, por sua
arte sem procedimentos, sem fórmulas enfadonhas. Nunca uma "A música moderna desperta com L'après-midi d'un faune", es­
sensibilidade mais refinada traduziu-se por meios tão simples; pa­ creverá Boulez. O público de 1894 não resistiu a seu prazer, ape­
rece uma arte de selvagem curioso, que descobriria a música a ca­ sar da surpresa. Os críticos foram mais reticentes. A obra lhes ofe­
da passo traçado por sua emoção..." recia um grande tema, submetido a pedaços de desenvolvimento,
Na música do Extremo Oriente, descobre, com outros músi­ propunha-lhes variações desse tema — eles não sonharam, eles
cos franceses, os timbres inauditos, as escalas raras e ambíguas, analisaram.
uma concepção sutil do simbolismo musical (teatro anamita). É A partir de Noturnos (1899), a ruptura com o desenvolvimento
ainda a diversidade das escalas modais que ele vai interrogar em clássico, "laboratório do vazio", é consumada: não há mais tema
Solesmes, mas também a perfeição do arabesco, a ausência de gra­ a desenvolver, mas uma justaposição de idéias, entre as quais se
vidade melódica. estabelece uma rede de relações sutis, de associações profundas.
Todas essas experiências foram capitais, porque mostraram Cada idéia impõe outra, cada timbre impõe uma harmonia, e vice-
ao jovem músico diferentes maneiras de conceber a música, dan­ versa. .. Nem La mer, obra-prima sinfônica de Debussy e um dos
do as costas ao desenvolvimento temático tradicional e sem im­ monumentos da música de nosso tempo, nem as obras para pia­
por uma nova retórica. Debussy fortaleceu nelas seu gosto pelas no, nem Jeux são redutíveis a categorias preconcebidas; mesmo
sonoridades únicas e imprevistas. L'après-midi d'un faune já abre a música vocal escapa do previsível que o sentido do poema lhe
um mundo sonoro desconhecido, uma nova concepção da cria¬ propõe. O ouvinte dessa nova música é privado das referências ha­
> ção musical. O longo tema sonhador é harmonizado de diferen­ bituais, sua atenção não é mais guiada pela convergência no senti­
tes maneiras, tão sedutoras quanto não ortodoxas: do de um objetivo; ele deve deixar-se levar, sem saber aonde, e
entregar-se totalmente à ação mágica dos sons. É um sentimento
de insegurança que fascina alguns e explica a resistência de outros.
9. É a reminiscência de uma melodia do ciclo Sem sol que o início de Nuages
sugere, muito mais que Nas estepes da Ásia central de Borodin, como algumas Curiosamente, a estréia de Jeux em 1913 pelos Balés Russos
vezes se diz. de Diaghilev, quinze dias antes da Sagração da primavera, pas-
203 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY

sou quase despercebida, e essa partitura deslumbrante permane­


ceu pouco conhecida até sua redescoberta pelos jovens músicos
dos anos 50. Jeux é uma resultante das pesquisas de Debussy,
o momento em que a corrente que ele representa deságua num
futuro imprevisível. A atomização da matéria sonora (iniciada
em "Jeux de vagues" de La mer), a dispersão temática, o fra-
cionamento da orquestra em melodias de timbres, a harmonia
pantonal de várias passagens (a introdução apresenta as inver­
sões de um acorde formado de todos os sons da escala por tons),
a instabilidade rítmica, o peso das pausas... Tudo isso parece
ter vinte e cinco ou trinta anos de antecipação, e a mestria é
tal, que de tanta audácia desprende-se uma misteriosa ternura
(ver p. 336).
Com a mama de definir estilos sucessivos nos artistas, quis-
se descobrir um retorno ao classicismo nas últimas obras de De­
bussy. Pode um abrandamento da escrita justificar essa estranha
opinião? No essencial, parece muito mais que a estética de De­
bussy segue uma progressão sinuosa e contínua; sua curva é de­
masiado caprichosa para que nela se possa pensar em discernir
"épocas", cada uma com seu estilo próprio...

Dentre as grandes correntes que sucedem ao wagnerismo, esta


talvez seja a mais importante, pelas novas possibilidades que abre
às demais tendências:
— A harmonia perdeu sua origem contrapontística, em que
encontrava sua justificação. Ela reivindica o direito de ser não-
direcional, livre, hedonista. Não há mais diferença harmônica fun­
damental entre os tipos de acordes, mas apenas uma diferença de
timbre; as sétimas e as nonas se encadeiam, assim como os acor­
des perfeitos.
205 A S GRANDES CORRENTES: DEBUSSY

Ravel, Schönberg, Webern, Stravinsky, Bartok e Messiaen


devem a Debussy essas conquistas e muitas outras.
O mais surpreendente nessa música libertária, que escapa às
classificações, é sua coerência e seu sucesso. Ela será mais univer­
sal (portanto, mais "clássica") do que todos os neoclassicismos.
Durante três gerações, constituirá uma espécie de "arquétipo" mu­
sical de um inconsciente coletivo nutrido de símbolos e de Cor­
respondências baudelairianas.

A Natureza é um templo onde vividos pilares


Deixam por vezes fugir palavras confusas,
Onde o homem vara selvas de símbolos profusas
Que o observam com cúmplices olhares.

Como longos ecos que de longe se escondem


jeux, cenário de Bonnard. — Uma espécie de ubiqüidade tonal é proposta, por meio de Em tenebrosa e profunda unidade,
encadeamentos de acordes pertencentes a tons distantes, pelo pan- Vasta como a noite e a claridade,
tonalismo de certos agregados sonoros, ou pelo emprego de esca­ Os perfumes, as cores e os sons se respondem.
las modais equívocas.
Há perfumes frescos como a pele dos infantes,
Verdes como os campos, doces como as flautas,
— Ε outros, viciosos, ricos, triunfantes,

Ε com a expansão infinda das coisas altas,


Como o âmbar, a mirra e o incenso recendidos,
Que cantam o elã da alma e dos sentidos.
As flores do mal

Debussy e Ravel Ao contrário da opinião estabelecida, que si­


tua numa mesma corrente "impressionista" Debussy, Ravel e a
maior parte da música francesa, a personalidade singular de Mau­
rice Ravel propôs uma orientação estética original, cuja influên­
cia sobre a música do século X X não está longe de igualar a do
"debussysmo".
Com base nos modelos Corneille-e-Racine, Haydn-e-Mozart,
Schubert-e-Schumann, a musicografia impôs o clichê Debussy-e-
Ravel. Sem dúvida, é legítimo e até necessário comparar dois gran­
Jeux (Introdução).
des músicos, contemporâneos e compatriotas, que muitas coisas
aproximam e outras separam. Vladimir Jankélévitch diz muito
bem que, "se um pouco de lucidez ajuda a diferenciar esses dois
— A ruptura da continuidade instrumental revela o timbre grandes criadores, muita lucidez os aproxima". É de lamentar ape­
puro como material temático (La mer, Iberia, Jeux). nas que alguém não se possa interessar por um desses músicos sem
— A sutileza da notação rítmica abole o caráter marcado, ser espreitado por intransigentes devotos, suscitando contra o seu
redescobre os movimentos vitais, favorece a polirritmia... prazer a sombra ameaçadora do outro!
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 206 207 AS GRANDES CORRENTES: DEBUSSY

Ravel admirava Debussy, treze anos mais velho que ele: "Foi sos de coisas raras (música, poesia, objetos, pratos culinários),
ouvindo pela primeira vez L'après-midi d'un faune que com­ são secretos, sensuais, requintados. Ambos admiram os antigos
preendi o que era a música." Numa breve notícia autobiográ­ mestres franceses, a arte oriental, os poetas simbolistas, Edgar
10
fica , ele próprio ressalta a influência de Debussy em sua Shé­ Poe...
hérazade. Mas, para compreender o que o gênio de cada um Mas há no caráter e no estilo dos dois músicos diferenças fun­
deles tem de original, é preciso evitar reduzir o mais jovem a damentais. Debussy é mais inteligente que Ravel, mas seu caráter
epígono... Claro, Debussy tornou Ravel possível; Fauré sem dú­ é menos firme; é influenciável e cede facilmente à complacência,
vida não teria bastado. Mas outras influências contribuirão pa­ é amoral e voluptuoso. Ravel é moralmente austero e inabalável,
ra a formação de um estilo que logo seguirá seu próprio ca­ sem hipocrisia nem complacência. Nascido numa família modes­
minho. ta, Debussy formou-se ao acaso dos encontros, na roda aristo­
Se pudermos reconhecer a Debussy uma anterioridade bem crática de Madame von Meek — entre Moscou e Florença —, na
nítida na pesquisa de novas sonoridades orquestrais e na subver­ Vila Médicis, nos cafés da boêmia. Ao contrário, a personalida­
são da noção de harmonia, em compensação essa anterioridade de de Ravel desenvolveu-se no meio familiar de burgueses abas­
será mais contestável no domínio pianístico: a escrita de Jeux d'eau tados, judiciosos e cultos.
ou de Miroirs pode muito bem ter impressionado o compositor Suas formações musicais foram sensivelmente diferentes: o
de Images e dos Prelúdios. Uma simples cronologia comparada primeiro diz-se aluno de Massenet (é mentira, mas significati­
das obras importantes que os dois músicos consagraram ao piano vo), o segundo é aluno de Fauré. Sobretudo, suas sensibilidades
mostra que suas pesquisas foram paralelas: musicais se opõem em mais de um ponto. Debussy evoca a opa-
la, a transparência ou o reflexo, as Unhas esfumadas; Ravel,
o cristal, a luz viva, a precisão do traço. Debussy foge das for­
Debussy Ravel mas preconcebidas, detesta as estruturas aparentes; Ravel se sub­
mete por jogo, por mania de desafio, às formas mais exigentes
1901 Jeux d'eau (forma sonata, fuga, passacaglia). Debussy oculta seu know how,
Estampes 1903 Ravel esconde sua sensibilidade. O primeiro é um experimenta­
L'isle joyeuse 1904 dor sempre insatisfeito; o segundo, um construtor minucioso,
1905 Miroirs; Sonatine que conhece a fundo o material que utiliza. A instrumentação
Images 1905-1907
de La mer é obra de uma intuição genial, que exige do intérpre­
Children's Corner 1907-1908
te imaginação e iniciativa; a de Daphnis é a operação de uma
1908 Gaspard de la nuit
1908 Ma mère l'oye (4 mãos) ciência precisa e infalível, que exige do intérprete apenas a exa­
Prelúdios 1 1910 tidão da leitura. Em sua técnica pianística, Debussy situa-se na
1911 Valsas nobres e sentimentais filiação de Chopin; Ravel, na de Liszt... Poderíamos seguir in­
Prelúdios 2 1913 definidamente esse paralelo, com o risco de cairmos no lugar-
Estudos 1915 comum ou no paradoxo. Mas é absolutamente necessário re­
nunciar, se já não se renunciou, a uma insuportável idéia pre­
concebida: ao contrário de Debussy, lírico e sensível, Ravel se­
O que há de comum entre Debussy e Ravel é próprio de uma ria exato e frio! Stravinsky, especialista em mecânica de preci­
época da cultura musical francesa, que foi marcada pela estética são, qualifica-o de "relojoeiro suíço". Esse clichê inadequado
simbolista: horror ao pleonasmo, à redundância, exploração dos fez uma grande carreira.
velhos modos, gosto pelo exotismo, pesquisas de novas sonori­
dades, harmônicas e instrumentais, etc. Ambos são opostos ao Ravel Deveremos, mais uma vez, trair Ravel, falando do que
wagnerismo, ao franckismo, ao formalismo da Schola. São curio- ele tinha tanto cuidado em esconder: seu coração? Sabe-se que ele
adorava as crianças de que se sentia próximo, que falava de gatos
com infinita ternura, que conhecia a arte de dar uma alma às coi­
ί ο . "Esquisse autobiographique" [Esboço autobiográfico], ditado a Roland-
Manuel em 1928 e publicado pela primeira vez na Revue musicale em 1938 (nú­ sas. O horror aos desabafos e às confissões, o extremo pudor dos
mero especial consagrado a Ravel). sentimentos deram-lhe o hábito de um humor mistificador, que
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 208

esconde das sensibilidades míopes ou indiferentes a emoção ine­


fável difundida pelo martim-pescador das Histoires naturelles,
pelo adágio do Concerto em sol, pelo ultimo quadro de Ma mè­
re l'oye, pela ária " T o i le coeur de la rose" e pelo coro dos
animais em L'enfant et les sortilèges... Como não sentir ainda
as efusões calorosas ou a sensualidade intensa em Rapsódia es­
panhola, Daphnis et Chloé, no Concerto para a mão esquerda
ou em La valsei

L'enfant et les sortilèges

Todos os amigos do compositor atestaram sua refinada sen­


sibilidade, sua generosidade, sua afetuosa compreensão dos sen­
timentos alheios. Mas ele detesta as grandes frases e a esponta­
neidade impúdica, tanto na vida como na obra. À expressão mu­
sical de sua emoção, ele impõe a ascèse de uma perfeição de reló­
gio. Seus fracassos estrondosos no concurso de Roma deixaram-
lhe, em compensação, o gosto da realização técnica. A perfeição
do know how, que fecunda a sensibilidade, tornando-a criadora,
nem sempre foi reconhecida como fonte de seu gênio; preferiu-se
ver nela o sinal da impotência e da inércia afetiva. Se a liberdade
é a nobreza de Debussy, o rigor é a de Ravel.
Não é de causar surpresa que o humor cáustico de Ravel,
seu gosto pelo paradoxo, sua arte de ilusionista, de impostor
genial, tenham desconcertado muitos ouvintes. O próprio De­
bussy escrevia em 1907 a Louis Laloy: "Estou de acordo com
você para reconhecer que Ravel é dotadíssimo, mas o que me
irrita é sua atitude de prestidigitador, ou, melhor, de faquir en­
cantador, que faz flores nascerem em torno de uma cadeira."
O artifício, o brio orquestral, o virtuosismo, seus números de
mágica contrapontística servem-lhe para evitar o pathos e para
tapear o destino. O ecletismo e o desafio servem-lhe de princí­
pios estéticos.
Tudo atiça a sua curiosidade: a música dos outros, inclusive
dos mais jovens, a técnica instrumental, os timbres insólitos, os
novos métodos de composição, o folclore, o jazz... Não tendo
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 210

idéias preconcebidas, é acessível a todas as influências, sem nun­ servatório, Théodore Dubois, é for­
MAURICE RAVEL
ca perder sua originalidade. Pode encontrar nos outros uma ma­ Ciboure (Pyrénées-Atlantiques), 7 de m a r ç o de 1875 çado a se demitir. Ravel termina
neira de fazer, uma orientação estética, de que se servirá para fa­ Paris, 28 de dezembro de 1937
Miroirs e a Sonatina. Seu caráter
zer música de Ravel. A seu mestre Fauré, deve o fato de ter esca­ nobre lhe vale amizades profundas.
pado completamente das solicitações do wagnerismo pelo hábito Seu pai, Joseph Ravel (1832-1908), 1908 Ma mère l'oye e Gaspard de
da concisão clássica. A Debussy, deve a descoberta de um mundo engenheiro, natural da Savóia, bom la nuit.
sonoro inaudito. Mas, antes, assim como ele próprio declara na músico amador, foi inventor de um 1909 Ravel instala-se na avenue
autobiografia já citada, sofre em suas primeiras obras a influên­ motor térmico. Sua mãe, Maria De- Carnot, 4, e funda a Société musi­
luarte (1840-1917), era basca. Jo­ cale indépendante, corn Koechlin,
cia de dois músicos pouco conformistas: Chabrier e Satie. A es­
seph conhece-a na Espanha, onde Delage, Laloy, Schmitt, Huré. Fau­
crita ascética do segundo encontra-se em suas versões para piano
n
participa da construção de estradas ré aceita ser presidente.
de Pavane pour une infante défunte e de Ma mère l'oye . Em de ferro. Três meses depois do nas­
Shéhérazade, "a influência, ao menos espiritual, de Debussy é bem 1912 Estréia de Daphnis et Chloé
cimento de Maurice, o casal se ins­
visível", indica Ravel; vamos encontrá-la passageiramente na Rap­ nos Balés Russos, com Karsavina e
tala em Paris.
sódia espanhola e em Daphnis. Nijinsky, sob a regência de Mon­
teux.
Em 1913, Ravel entusiasma-se com a descoberta da Sagra­ 1889-1895 Aluno do Conservatório 1913 Temporada em Montreux
ção da primavera e também com Pierrot lunaire, cuja partitura de Paris, nas classes de Bériot (pia­ com Stravinsky, que lhe mostra a
Stravinsky lhe transmite (só ouvirá esta última obra em concerto no), Pessard (harmonia), Gédalge partitura da Sagração (três meses
no ano de 1921, quando da primeira audição parisiense). A reve­ (contraponto), sai sem nenhum prê­ antes da "estréia") e a de Pierrot
lação da obra de Schönberg suscita duas composições importan­ mio. lunaire.
tes, que assinalam uma virada decisiva na produção de seus auto­ 1898-1900 Ravel retorna ao Con­ 1916 Reformado por incapacitação
res: Três poemas de Stéphane Mallarmé de Ravel (canto, piano, servatório na classe de Fauré. Com­ física, consegue alistar-se como mo­
quarteto, 2 flautas, 2 clarinetas) e Três poesias da lírica japonesa põe Payane pour une infante défun­torista de caminhão. Mal recupera­
te. Nenhum prêmio! do de uma intervenção cirúrgica so­
de Stravinsky (mesma formação). Os dois compositores estavam
1900 Primeira inscrição para o con­ frida na frente de combate, é defi­
juntos em Clarens quando escreveram essas obras, e, como Stra­
curso de Roma: é eliminado no con­ nitivamente reformado no ano se­
vinsky teve o privilégio de ouvir Pierrot lunaire em Berlim dois
curso preliminar. guinte.
meses antes, é provável que a corrente de influência se tenha diri­
1901 Ganha o "segundo grande 1920 Ravel compra o "Belvedere"
gido do mais moço ao mais velho. prêmio de Roma" (Caplet, primei­ em Montfort-FAmaury, onde se
O que Ravel parece ter retido da descoberta é principalmen­ ro prêmio). Jeux d'eau (executados instala, cercado de gatos siameses,
te uma estética global que coincide com suas próprias preocupa­ no ano seguinte na Société Natio­ de alguns amigos de verdade e de
ções de concisão e de rigor, tais como aparecem nas Valsas no­ nale por Viñes). uma coleção de brinquedos mecâ­
bres e sentimentais (1911), importantíssima obra-prima negligen­ 1902 Apresenta-se pela segunda vez nicos. Mas mantém vínculos com o
ciada. O acompanhamento da voz por uma pequena formação ao concurso de Roma: nenhum prê­ País Basco, para onde retornará
instrumental, de possibilidades expressivas insuspeitas, constituía mio (primeiro premio: Kunc). Com­ com freqüência. Provoca um escân­
notável novidade. Essa estética voltará a estar presente nas admi­ põe o Quarteto de cordas. dalo ao recusar a fita da Legião de
ráveis Chansons madécasses (1925), quintessência da música. A 1903 Apresenta-se pela terceira vez: Honra.
nenhum prêmio (primeiro prêmio: 1923-1928 Turnês de concertos na
influência de Stravinsky sobre Ravel é episódica, mas sensível,
Laparra). Holanda, Itália, Inglaterra, Es­
principalmente na Sonata para violino e violoncelo, cujo final tem
1905 O júri do concurso de Roma candinávia, Canadá e Estados Uni­
a rugosidade do violino da História do soldado. Enfim, Ravel so­
recusa sua candidatura: "O senhor dos. Para sua grande surpresa, os
freu a atração do jazz e do music-hall, como atestam passagens Ravel pode considerar-nos uns pe­ ingleses acham-no um bom re­
de L'enfant et les sortilèges, do Concerto para a mão esquerda dantes: não nos tomará impune­ gente.
e da Sonata para violino e piano. mente por imbecis." (Primeiros 1931-1932 Estréia do Concerto pa­
prêmios: Gallois e Samuel-Rous­ ra a mão esquerda em Viena (Witt­
seau). Escândalo: o diretor do Con­ genstein) e do Concerto em sol
11. " E l e me certifica, todas as vezes que o encontro, que me deve muito. Tu­
do bem", declara Satie.
213 AS GRANDES CORRENTES: RAVEL

maior em Paris (Marguerite Long). lodias, dentre as quais os ciclos Poe­


Em 1932, percorre a Europa com mas de Mallarmé, Chansons madé-
Marguerite Long para apresentar o casses, Histórias naturais, Dom Qui­
Concerto em sol maior. xote a Dulcinéia.
1933 Aparecimento dos primeiros
distúrbios motores: não consegue
adaptar seus movimentos a certas
funções (apraxia). Sua inteligência
fica intacta, mas não pode mais tra­
balhar. Esses distúrbios são atribuí­
dos ao traumatismo consecutivo a
um acidente de táxi (1932).
1935 Viagem à Espanha e a Mar­

mm
rocos. Em Marrakech, o Glawi dá
uma grande festa em sua homena­
Ravel ao piano;
à sua direita, Ricardo Viñes. gem.
1937 Seu estado se agrava e uma in­
Gabriel Bacquier, Jane Berbié e
Albert Lance em L'heure espagnole
tervenção cirúrgica é tentada pelo
(Opéra-Comique, 1960). professor Clovis Vincent. Ravel
morre uma semana depois. É enter­
rado no cemitério de Levallois, per­
to de seus pais (e da fábrica dirigi­
da por seu irmão Edouard).

obra L'heure espagnole, comédia


musical (Opéra-Comique, 1911);
L'enfant et les sortilèges, fantasia
lírica (Monte-Carlo, 1925). Quatro
balés. Para orquestra: Rapsódia es­
panhola, Daphnis et Chloé, La val­
se, Boléro, Shéhérazade (com can­
to), dois concertos para piano. A
orquestração dos Quadros de uma
exposição de Mussorgsky e de algu­
mas das suas próprias obras para

I piano. Peças para piano. Foram or­


questradas por Ravel: Pavane pour
une infante défunte, Alborada del
Gracioso, Valsas nobres e sentimen­
tais, Ma mère l'oye, Le tombeau de
Couperin. Quarteto de cordas, In­
trodução e Alegro (harpa, flauta,
clarineta e quarteto de cordas), trio
com piano, sonata para violino e
violoncelo, sonata para violino e
piano. Três canções a capela, me­
A Fera de Ma mère l'oye vista por Leyritz.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 214 ' 215 AS GRANDES CORRENTES: RAVEL

O desafio aparece como um estímulo para a criação em Ra­ mites das possibilidades instrumentais, fazendo manar do teclado
vel; ele necessita de dificuldades a vencer, de contradições a resol­ cores desconhecidas. Bruscamente, ele adota em Ma mère l'oye
ver, de obstáculos a superar. Assim, todos sabem que ele foi um (1908), nas Valsas nobres e sentimentais e em Le tombeau de Cou­
dos mais prodigiosos orquestradores de todos os tempos, que en­ perin "uma escrita nitidamente mais clarificada, que endurece a
riqueceu com mil sortilégios infalíveis a herança de Liszt e de harmonia e acentua os relevos da música" (Esboço autobiográfi­
Rimsky-Korsakov. No entanto, escreveu pouco diretamente para co). O virtuosismo pianístico reaparece muito mais tarde nos con­
12
orquestra e, a partir de 1913, renunciou aos acessórios do ilu­ certos, e é a limitação que lhe impõe um pianista maneta, Paul Witt­
sionista, à diversidade furta-cor dos timbres, em benefício da cla­ genstein, que lhe inspira, para a mão esquerda só, novas superações.
reza, da linha pura, encontrando na austeridade novos meios de Esse mesmo espírito de desafio um pouco masoquista levou
sedução. Com uma perícia diabólica, fez da Sonata para violino Ravel, harmonista naturalmente voluptuoso (Daphnis, La valse),
e violoncelo uma obra de uma plemtude e de uma riqueza surpreen­ a sujeitar-se aos rigores do contraponto. Chega, por vezes, a su­
dentes (pelo jogo das cordas duplas, o final parece escrito em quar­ blinhar a progressão linear das "vozes" mediante uma politona-
teto) e descobre possibilidades insuspeitas para os instrumentos tra­ lidade* agressiva. Essa escrita, muito na moda entre 1910 e 1930,
dicionais. O Bolero, ao contrário, é a repetição incansável de um deixava Saint-Saëns furibundo. A princípio fugidia e sutilmente
mesmo tema, no mesmo tom de dó maior (salvo a cativante mo­ justificada pelo contexto harmônico, ela se torna sistemática em
dulação para mi maior, logo antes do fim), sem outro desenvolvi­ certas obras de Strauss, Ravel, Stravinsky, Prokofiev e Milhaud,
mento além de um enriquecimento progressivo da instrumentação. a ponto de justificar o emprego simultâneo de armaduras de cla­
ve diferentes. Assim, no Blues da Sonata de Ravel, o violino toca
em sol maior, enquanto o piano está em lá bemol maior; no iní­
cio do Concerto em sol maior, o flautim (tema) e a mão direita
do piano estão em sol maior, enquanto a mão esquerda está em
fá sustenido maior. Os primeiros exemplos de politonalidade cons­
ciente são os que encontramos na Salomé de Strauss (1905); mas
será Darius Milhaud quem tornará o procedimento sistemático
(Les Choéphores, 1915). O que por vezes pode parecer uma cola­
gem artificial, ou uma deliciosa provocação, corresponde a uma
tendência estética geral, a partir de 1910; em reação contra todos
os "ismos", cujos reflexos movediços esfumavam a nitidez do dis­
curso musical, busca-se a nudez, a Unha pura, as arestas vivas,
a dissonância que ousa dizer seu nome e um "lirismo inequívoco
em que o artista não tenta fazer de modo que se tome sua indús­
tria por sua emoção", como dizia Valéry.
Ravel conciUa tudo, faz a herança dar frutos, permanecendo
em sintonia com seu tempo, e o interesse que tem pela nova músi­
1111111 ca fortalece sua influência sobre os jovens. Há, sim, uma "cor­
rente" raveliana, distinta da corrente debussysta, e, quando de­
φ. gfc φ. φ φ φ 5c * i- * £ pois de 1918 os jovens músicos do grupo dos Seis e seu diretor es­
piritual, Jean Cocteau, se opõem de saída à estética de Ravel, ain­
Gaspard de la Nuit, "Scarbo".
da não compreenderam o que devem a ele. Darius Milhaud obser­
Em Jeux d'eau (1901), que está "na origem de todas as novi­ va, em 1938, "a imensa influência" que ele continua a exercer sobre
dades pianísticas que quiseram notar em minha obra", em Mi­ os aprendizes de compositor cujos exercícios acaba de ouvir: " A
roirs (1905) e em Gaspard de la nuit (1908), Ravel alcança os li- sutileza harmônica, a construção das obras de música de câmara
(em que as reminiscências do Trio são freqüentes), o estilo de cer­
12. Shéhérazade, Rapsódia espanhola, Daphnis, La valse, Bolero, os dois con­
tos elementos melódicos, algumas fórmulas de orquestração, tu­
O Esquilo de
certos. E m compensação, orquestrou suntuosamente grande número de obras des­ do deriva da personalidade raveliana." Teria então Raveí se tor­ L'enfant et les sortilèges,
tinadas ao piano. nado acadêmico? Ele próprio tem consciência do perigo, pois de- visto por Paul Colin.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 216

clara em 1925 a Hélène Jourdan-Morhange, falando de Georges


Auric: "Ele tem razão, esse menino, de malhar Ravel; se não ma­
lhasse Ravel, faria música de Ravel, e já chega de Ravel."

Schönberg Ao contrário de Debussy, individualista e inimitá­


vel, Schönberg é o modelo do chefe de escola. Debussy repre­
senta uma corrente hedonista e libertária: como nada mais é proi­
bido, é necessário explorar para o prazer todos os agregados so­
noros possíveis. Já Schönberg assume com uma lógica rigorosa
uma espécie de determinismo histórico: dado que as exigências
expressivas levam ao cromatismo e que as funções tonais são ca­
da vez mais éontestadas na experiência, a lógica da evolução le­
va a reorganizar o total cromático fora de qualquer referência
à tonalidade. Esses dois músicos distinguem-se por suas manei­
ras de considerar a herança wagneriana. Debussy tem a intuição
(genial, na época) de que o wagnerismo atrasa a evolução da
música. Schönberg acha o sentido dessa evolução no cromatis­
mo expressivo de Tristão, que ele leva a suas conseqüências ex­
Arnold Schönberg.
tremas.

1910-1912 Berlim. É professor do vataufführungen, onde estréiam nu­ obra Quatro obras dramáticas: Er­
A R N O L D SCHÖNBERG
Viena, 13 de setembro de 1874 conservatório Stern, graças à reco­ merosas obras contemporâneas. wartung (Praga, 1924), Die Glück­
L o s Angeles, 13 de julho de 1951
mendação de Richard Strauss. Es­ 1923 Primeira composição serial (a liche Hand(Viena, 1924), Von Heute
tréia do Pierrot lunaire (1912). Ex­ última peça do Opus 23). auf Morgen (Frankfurt, 1930), Mo­
Muito embora fosse talentosíssimo põe suas pinturas com o grupo 1924 Estréia de Erwartung, no fes­ ses und Aaron (Zurique, 1957). Gur­
e aprendesse violino desde os oito "Blaue Reiter" e o Douanier Rous­ tival da SIMC em Praga. relieder, para solistas, coros e orques­
anos, seus pais não o destinaram à seau. 1924-1933 Berlim. Schönberg é no­ tra; Pierrot lunaire, para voz, piano,
música. Ele trabalhou a composição 1912-1914 Viena, onde retoma o meado professor da Akademie der flauta, clarineta, violino, violonce­
como autodidata, com exceção de ensino. Künste. Tirado de suas funções em lo; Ode a Napoleão, para recitante
algumas aulas de contraponto com 1913 Primeira audição, em Viena, 1933 pelo novo ministro nacional­ e orquestra de cordas; Kol Nidrei e
Alexander von Zemlinsky (1872¬ dos Gurrelieder. Rege um concerto socialista, parte para Paris, onde Um sobrevivente de Varsóvia, para
1942). que acaba com a intervenção da po­ volta à religião israelita, abandona­ recitante, coro e orquestra. Coros,
lícia e que tem no programa: sua da desde 1921. Heder (dentre os quais Opus 8 e Opus
1899 Primeira audição do sexteto Sinfonia de câmara op. 9, as Peças 1933 Partida para os Estados Uni­ 22 com orquestra). Peças para or­
Verklärte Nacht. para orquestra op. 6 de Webern, os dos. Dá aulas primeiro em Boston e questra, um concerto para violino,
1901 Casamento com Mathilde von Lieder op. 4 de Berg (a vaia é tal, Nova York. um concerto para piano. Quatro
Zemlinsky, irmã de Alexander. que não é possível executar os Kin- 1936 Instala-se em Los Angeles, co­ quartetos de cordas, um sexteto
1901-1903 Berlim. Schönberg diri­ dertotenlieder de Mahler, última mo diretor do departamento musi­ ( Verklärte Nacht, também arranja­
ge operetas no Buntes Theater. obra do programa). cal da Universidade da Califórnia. do para orquestra de cordas), Sere­
1903-1910 Viena. Início de sua car­ 1914 Concertos em Londres, Leip­ Pedirá demissão em 1944. nata op. 24, Quinteto op. 26, Trio de
reira pedagógica: Berg e Webern es­ zig e Amsterdã. 1944-1951 Leva uma vida retirada, cordas op. 45. Peças para piano
tão entre seus primeiros alunos. Pri­ 1917 Schönberg funda em Viena um compondo pouco. Antes de morrer, (Opus 11, 19, 23, 25, 33). Transcri­
meiras obras atonais (Peças para "Seminar für Komposition", que, retomou uma última vez o manus­ ções e adaptações. Numerosas obras
piano op. 11: 1908). Primeira expo­ com seu incentivo, vai tornar-se o cé­ crito de sua obra-prima inacabada, e artigos teóricos ou pedagógicos.
sição de suas pinturas (1910). lebre Verein für Musikalische Pri- Moisés e Arão. Trabalhos de pintura.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 218 219 AS GRANDES CORRENTES: SCHÖNBERG

13
O dodecafonismo é um "método de composição com do­ meçando pelo fim), inversão do original (em que os intervalos são
ze sons, que não têm outras relações além da de um com outro", invertidos), retrógrado da inversão:
edificado pouco a pouco por Schönberg entre 1909 e 1923. Con­
siderando que não há noção fundamental de dissonância*, mas
estados de consonância mais ou menos distantes, toma o partido
Direta
de renunciar a toda e qualquer hierarquia entre os doze sons da
escala cromática*, concedendo a todos uma igual dignidade har­
mônica. Na última das Três peças para piano op. 11 e nas Cinco Inversão
peças op. 16, compostas em 1909, a dissolução das funções to­
nais é completa. Retrógrada
Mas era preciso encontrar um método que permitisse utili­
zar os doze sons da escala temperada, permanecendo fiel ao prin­ Retrogrado
cípio de sua equivalência: o aparecimento mais freqüente de cer­ da inversão
tos sons ou as remimscências de fórmulas diatónicas* poderiam
polarizar o interesse, sugerir novas relações privilegiadas. Ade­ Schönberg, série da Suíte op. 25
mais, o espírito construtivo de Schönberg não se quer deixar
encerrar num procedimento puramente negativo. A palavra "ato- Cada uma dessas formas admite uma transposição para cada
14
nalidade" , que dá conta de um só aspecto do dodecafonis­ um dos doze graus da escala cromática, o que dá um total de
mo, lhe desagrada. Depois de haver desenvolvido uma notável quarenta e oito versões disponíveis de uma mesma série. Um
teoria da harmonia atonal em 1911, em seu Harmonielehre, é "tema" pode ser composto de vários fragmentos melódicos, em­
só em 1923 que Schönberg formula seu método de composições prestados cada um deles das quarenta e oito fórmulas disponí­
em doze sons iguais, baseado no novo princípio da "série", ou veis, estando cada fragmento harmonizado por sons complemen­
Grundgestalt, que acaba de utilizar na última das Cinco peças tares tomados de uma outra versão da série geradora. O con­
para piano op. 23 e no quarto movimento (Soneto) da Serenata junto pode ainda ser complicado com a escrita em cânon, as
op. 24. variações rítmicas, etc.
A série, cujo princípio foi imaginado por Josef Matthias Teoricamente, nenhuma nota deve ocupar uma posição pri­
Hauer (1883-1959), e não por Schönberg, é uma sucessão funda­ vilegiada, como no sistema tonai. "Mesmo uma ligeira reminis­ si
mental dos doze sons, sem repetição nem oitava dobrada, dispos­ cência da antiga harmonia revelava-se incômoda, porque criava
tos pelo compositor numa ordem que determinará o desenvolvi­ inevitavelmente falsas esperanças em relação às conseqüências e
mento ulterior. O sistema de Hauer repousa na classificação de às continuações. O uso de uma tônica será decepcionante se não
numerosas séries possíveis de doze sons (12! = 479.001.600) em for baseado no fato de reger todas as relações da tonalidade. Do
44 tropen ou famílias melódicas, que teriam na música de doze mesmo modo, o uso de mais de uma série estava excluído, porque,
sons um papel análogo ao das armoniai na música grega ou dos em cada série seguinte, um ou vários sons teriam sido repetidos
mürchhanã na música indiana. cedo demais. Esse uso de várias séries fazia surgir o perigo de que
Cada série pode apresentar-se sob quatro formas, segundo um som repetido podia ser interpretado como uma tônica. De ma­
15
o princípio utilizado nos estilos tradicionais de imitação contra- neira geral, o efeito de unidade seria diminuído com isso."
pontística: forma original, forma retrógrada ou caranguejo (co- Schönberg é, em suma, o menos subversivo dos quatro gran­
des compositores que orientaram as principais correntes musicais
de nosso século. Constatando um fato histórico, ele estabeleceu
13. Deve-se essa denominação a René Leibowitz (1913-1972), que por meio
de seus escritos, seus concertos e seu ensino, com um zelo obstinado e uma pro­ uma ordem no novo meio sonoro que lhe era dado. Do mesmo
funda compreensão da história musical, iniciou toda uma geração de composito­ modo que Freud não desencaminhou a psicologia, ou Marx, a eco­
res no "dodecafonismo". nomia política e a história, também Schönberg não desencami­
14. Confunde-se com freqüência o conceito de atonalidade com o dodecafo­
nhou a música.
nismo. Ora, a aplicação de um m é t o d o de desenvolvimento "serial" a uma divi­
são da oitava em 24 quartos de tons ou em 6 tons iguais também geraria composi­
ções atonais. Ε a indeterminação tonal da Nona sinfonia de Beethoven (lá maior 15. A . Schönberg, " L a composition à douze sons", conferência pronuncia­
ou menor? si menor? ré maior ou menor?...) é uma espécie de atonalidade. da em 1939 (trad. Leibowitz, Polyphonie n° 4, Paris, 1949). Pierrô
9. Gebet an Pierrot. 221 AS GRANDES CORRENTES: SCHÖNBERG

Seria ainda possível compor no sistema tonal? O próprio


Mäßige J (ca βο)
Schönberg refere-se a ele em varias das suas últimas obras e afir­
Klarinette i ma: "Ainda há muita boa música a ser escrita em dó maior." Mas
opõe-se aos que "catam dissonâncias, querendo assim fazerem-
se passar por modernos, mas não tendo a audácia de tirar as de­
Rezitation. vidas conseqüências...", ou "aos que praticam entre as dissonân­
cias uma seleção de bom gosto, sem poder dar conta das razões
i.er.rot! msinLa.ohen hab ich^ver-lernt! Dae Bild des
^ Mäfiige_j^(ca 6^ pelas quais sua cacofonía seria permitida e a dos outros proibi­
da" (A. Schönberg, prefácio das Sátiras op. 28 para coro misto;
citado por Leibowitz em seu Schönberg, Le Seuil, 1969). Poucas
Klavier. posições estéticas foram tão lúcidas e tão honestas, na época em
Uma página da partitura de
que os mais firmes partidários do sistema tonai trapaceavam com Pierrot lunaire.
suas regras. A posição de Schönberg não é um parti pris teórico,
mas uma escolha pensada, cujo caráter essencial é seu admirável Nureiev e Vivi Flindt num balé
de Glen Tetley a partir da música de
radicalismo.
Pierrot lunaire (Palais des Sports, 1977).

(kläglich)

weht aie Flagge mir nun vom Mast.. Pi.er.

Die Rezitation hut die T o n h ö h e andeutungsweise zu b r i n g e n .


U. E . Õ 3 3 4 . 6336.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 222 223 AS GRANDES CORRENTES: SCHÖNBERG

A acusação feita a Schönberg de ser um compositor "inte­ Terá a corrente dodecafonista sido pressentida por Alexan­
lectual" refere-se ao lado racional que faz parte de seus procedi­ dre Scriabin (1872-1915) antes de Schönberg? Esse músico estra­
mentos. "Prefiro compor como um intelectual a fazê-lo como um nho, que a princípio foi um epígono de Chopin e de Liszt, entusi­
imbecil!" A lógica formal é, antes de mais nada, para ele, um asmou-se com a teosofía e produziu uma série de obras audacio­
fator de compreensão. Ele se explica a respeito na conferência já sas, relacionadas a uma metafísica desconcertante, mas em parte
citada: "O valor artístico exige a compreensibilidade, não apenas genial. Nunca carecendo de expressões infelizes, Stravinsky trata-o
tendo em vista uma satisfação intelectual, mas também para sa­ de "enfisema musical". Scriabin declara modestamente: "Eu não
tisfazer a emoção. A idéia do criador deve ser exposta (de manei­ sou nada, eu sou Deus." A partir de 1908 aproximadamente, Scria­
ra inteligível), qualquer que seja a emoção que tenha querido evo­ bin emprega escalas modais e uma harmonia ambíguas, decorren­
car. A composição com doze sons não tem outro objetivo além tes, por caminhos às vezes misteriosos, de um acorde de quartas
da compreensibilidade." sobrepostas que ele qualifica de "sintético" e que é o acorde má­
A inteligência que preside à reflexão teórica não impõe à obra gico por excelência. Sem dúvida, ele encontra bem antes de Schön­
nem secura, nem dureza. A terceira das Cinco peças op. 16, inti­ berg um método de desenvolvimento de tipo serial, em que inter­
tulada Farben, é mtidamente "impressionista", no sentido em que vém a noção de complementaridade, evocada acima (um tema for­
esse termo foi aplicado à música. É mais verdade ainda para Pier­ mado de uma parte dos sons da escala modal, por exemplo, é
rot lunaire, em que a sutil diversidade de cores é extraordinária, acompanhado pelas notas complementares); sem dúvida, os es­
16
apesar da extrema limitação do efetivo instrumental: essa riqueza boços da sua última obra O ato prévio, que data de 1913-1914 ,
sonora e a habilidade que ela atesta parecem-me mais notáveis nes­ contêm vários acordes de doze sons. No entanto, seu sistema har­
sa histórica obra-prima do que a novidade do Sprechgesang, téc­ mônico é essencialmente modal e não exclui as polaridades; ele
nica de expressão vocal a meio caminho entre o canto e a decla- anuncia muito mais Bartók e Messiaen do que Schönberg e seus
mação. Mas as obras que são fruto do método serial são mais sig­ sucessores. Voltarei mais adiante a isso.
nificativas. O ouvinte que aceita a regra do jogo sem buscar em Os dois principais discípulos de Schönberg — Alban Berg e
vão o que dela está deliberadamente excluído — a lógica tonai Anton Webern — completam sua obra de maneira tão notável,
— não deixa de descobrir nela a sensibilidade, a emoção, a no­ que formam no espírito dos melómanos a trindade do dodecafo-
breza de um grande músico e de um homem de coração, em par­ nismo serial. Suas personalidades bastante diferentes fizeram-nos
ticular em algumas obras mestras: Variações para orquestra op. adotar estéticas quase opostas. Berg é caloroso, sociável, sua in­
31, Peças para piano op. 33, Concerto para violino op. 36, Trio teligência é expansiva. Webern é discreto, sutil, sua inteligência
de cordas op. 45 to monumental Moses und Aaron, obra-prima é reflexiva.
de Schönberg. Tudo canta nessa música "sem melodia".
Berg O lirismo de Berg inscreve-se na tradição vienense de Mah­
ler, cujas obras, em particular a Sexta e a Nona sinfonia, exerce­
ram uma influência profunda sobre o jovem músico (que mante­
rá uma amizade fiel com Alma Mahler, viúva do compositor e
a quem foi dedicado Wozzeck). No entanto, a personalidade de
Berg afirmou-se desde os vinte e cinco anos (Quarteto op. 3) nas
primeiras obras em que se emancipou das funções tonais. Partin­
do dessa época, podemos distinguir em sua obra dois períodos,
cujo ponto de transição é ocupado pela Suíte lírica para quarteto
de cordas (1925-1926), sua obra-prima instrumental.
O primeiro é caracterizado pela exploração livre de um ato-
nalismo expressivo. O auge desse período é Wozzeck.

16. Esses esboços, cujo manuscrito está conservado no Museu Scriabin de


Moscou, foram notados em 1971 (ver Revue de musicologie n? 57). Eles represen­
tam cinqüenta e três páginas desse "Ato prévio", que devia formar o prelúdio
Schönberg, Pièce pour piano op. 33a. de um grande Mistério, obra de arte total.
1907-1918 Ocupa cargos modestos cultural", tão pouco conhecida ela para coro e orquestra, e duas can­
de maestro, na Alemanha e em é. Webern perde o direito de dar tatas, op. 29 e op. 31. Lieder com
Praga. aulas e de apresentar suas obras; conjunto instrumental (op. 8, 13,
1918 Retira-se para Mödling (no torna-se corretor de provas de um 14, 15, 16, 17, 18) e com piano
sul de Viena), onde levará uma vida editor de música. (pp. 3, 4, 12, 23, 25). Composi­
simples e obscura, consagrada qua­ 1943 Consegue chegar a Winter- ções para orquestra, dentre as
se unicamente à composição e ao thur, onde Scherchen promove a quais Seis peças op. 6, Cinco pe­
ensino. Todavia, colabora para os primeira audição das Variações op. ças op. 10, Sinfonia op. 21, Va­
concertos organizados por Schön­ 30. Em compensação, não ouvirá riações op. 30. Música de câmara,
berg e rege uma associação sinfô­ nenhuma das suas duas cantatas. incluindo Seis Bagatelas op. 9 pa­
nica operária, criada em Viena pe­ 1945 No fim da guerra, Webern foi ra quarteto de cordas, Trio op. 20,
la prefeitura socialista. instalar-se nos arredores de Salzbur­ Quarteto op. 22 para violino, cla­
1929 Estréia da Sinfonia op. 21 em go. É lá que é morto por uma sen- rineta, saxofone e piano, Concer­
Nova York. tinela americana, no momento em to op. 24 para 9 instrumentos,
1938 Estréia de Das Augenlicht em que saía de casa depois do toque de Quarteto de cordas op. 28. As Va­
Londres. recolher. riações op. 27 para piano.
— Após o Anschluss, o regime
nazista apenas pensa em condenar obra Algumas obras corais, den­
sua música como "bolchevismo tre as quais Das Augenlicht op. 26

ALBAN BERG obra Duas óperas: Wozzeck (Ber­


Viena, 9 de fevereiro de 1885 lim, 1925) eLulu (Zurique, 1937).
Viena, 24 de dezembro de 1935
Lieder, com orquestra (op. 4) ou
com piano. Der Wein, para sopra­
Durante seus estudos secundários,
no e orquestra. Três peças para or­
apaixona-se igualmente pela litera­
questra op. 6; Concerto "em me­
tura e pela música. Compõe gran­
mória de um anjo", para violino e
de quantidade de pequenas peças.
orquestra. Quarteto de cordas op.
1904-1909 Aluno de Schönberg. 3, quatro Peças para clarineta e pia­
1909-1914 Primeiras obras impor­ no op. 5, Kammerkonzert para pia­
tantes, dentre as quais Três peças no, violino e 13 instrumentos de so­
op. 6. pro, Lyrische Suite para quarteto de
1911 Casamento com a cantora cordas. Uma sonata (op. 1) para
Hélène Nahowsky. piano.
1927 Contrato com a Universal
Edition, que o liberta de qualquer
preocupação material. A N T O N (VON) W E B E R N
... Toda a existência de Berg decor­ (no fim da vida, suprimiu a p a n í c u l a "von")
reu tranqüilamente em Viena, ape­ Viena, 3 de dezembro de 1883
Mittersill (Salzburgo), 15 de setembro de 1945
sar de uma saúde precária. Seu ca­
ráter amável irradiava bondade, se­ 1902-1906 Estudos de musicología
renidade e inteligência, a despeito da na Universidade de Viena, sob a di­
incompreensão de que sofreu... reção de Guido Adler. Tese de dou­
1935 Morre na noite de Natal, de torado sobre Isaac.
uma septicemia consecutiva a um 1904-1910 Aluno de Schönberg (ao
abcesso. mesmo tempo que Berg). .
Seis bagatelas para quarteto de cordas

Sechs Bagatellen für Streichquartett


Alle Rechte vorbehalten
AH lights reserved _

Mäßig" (J.caeo) Änton Webern, Op. 9


O SÉCULO DAS METAMORFOSES 228

Em vários trechos da Suíte lírica, Berg utiliza pela primeira


vez o método serial de Schönberg, a que passará a ser fiel. As
obras-primas desse segundo período são a cantata Der Wein
(1929), a ópera inacabada Lulu (1929-1935) e o Concerto para vio­
lino "em memória de um anjo" (1935). O anjo é a filha de Alma
Mahler, a encantadora Manon Gropius, morta aos dezoito anos.
Berg vê no princípio.da série dodecafônica um fator de unidade,
Webern, por Franz Hederer, 1934.
pois as regras do desenvolvimento que ele implica parecem ser a
única alternativa ao sistema tonai. Mas não procura esgotar a ló­
gica do sistema e não aliena sua liberdade expressiva, esforçando-se Webern, Cinco peças op. 10 (n° 4)

por evitar as sucessões diatónicas ou as reminiscências tonais. As­


sim, a série geradora do Concerto para violino evoca as tonalida­ F l i e ß e n d , ä u ß e r s t z a r t ( J = ea 60)
des sucessivas de sol menor (A), ré maior (B), lá menor (C), mi /•it. — — tempo rit _ _ _ — _ Cenrpo
maior (D) e a escala por tons (E):
1
en sí b "

Tvampette
en at b
«ee. seut-d- m
JRP^= 3
tfotcissimo
Trombone
avec sourd.
Encontramos nesse mesmo concerto (segundo movimento, comp.
136-157) uma citação do coral Es ist genug e, na Suíte lírica (sex­ Zeit lassen.
sehr gebunden.

to movimento, comp. 26-27), uma citação de Tristão e Isolda. Es­ dotée -3-1 r-3-

sas referências a um meio sonoro familiar contribuem com certe­ Mandoline

za para tranqüilizar o grande público, que adere às obras maiores J°P-=


de Berg muito mais facilmente que às de Schönberg e Webern (ver
p. 343).
Celesta
Ht Pfíp HP
Webern A obra de Webern ilustra, ao contrário, as mais eleva­
das exigências estilísticas e formais, para as quais sua formação
Harpe
clássica e universitária pôde incliná-lo. A partir dos Lieder de Ste­
l'o "o
fan George op. 3 e 4 (1909), suas obras são atonais e se distin­ SP
Petit
guem por uma concisão e uma sutileza cada vez mais finas. Cer­ Tamboui-
tas obras, como as Seis bagatelas op. 9 para quarteto e as Cinco
fit. — — — ^ tempo
peças op. 10 para orquestra (1913), possuem a brevidade e a con­ F l i e ß e n d , ä u ß e r s t z a r t ( J = ca ίο)

centração dos haicais japoneses. As primeiras comportam menos fit. tempo


wie em Hauch. 1 Ζ 1 îhs_ S
de sessenta compassos ao todo e a quarta peça do op. 10 tem ape­ Violon soto
nas seis (ou seja, cerca de 20"). avec sotivà.
Pfíp.
A originalidade do estilo de Webern reside nessa desintegra­
ção da melodia, da harmonia, do ritmo, do timbre, iniciada pou­
Alto solo
co antes por Debussy, mas levada aqui a um limite além do qual avec sourá.
E E
a música cessaria de existir! Uma vez superada a surpresa que tal
desintegração pode provocar, o ouvinte sem preconceitos fica per- E d . Universal, Vienne.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 230 231 SCHÖNBERG Ε SUA ESCOLA

turbado com o lirismo penetrante da concisão, com o encanto se­ — Mais de meio século depois das primeiras obras seriais,
creto da fragilidade. Em certas Bagatelas, quase todas as notas a grande maioria da música consumida no mundo ocidental per­
de uma melodia são dotadas de timbres diferentes (explorando manece dependente do sistema tonai. Essa música de consumo não
todos os recursos instrumentais do quarteto). Essa técnica é a da é, decerto, representativa do pensamento musical contemporâneo,
Klangfarbenmelodie ("melodia de timbres"), que Schönberg es­ mas todos nós vivemos, queiramos ou não, imersos na tonalida­
boçou no fim de seu tratado de harmonia e aplicou pela primeira de. Daí decorre necessariamente que o dodecafonismo está isola­
vez na terceira das Peças op. 16 (1908). Webern irá dar-lhe um do num gueto para especialistas.
emprego particularmente notável na Sinfonia op. 21. A partir de — O rigor do método implica o temperamento igual. Ora,
1924 (Geisttische Volkslieder op. 17), sua escrita muito pessoal trata-se de uma escala artificial, como se sabe, e muitos instru­
assimila o método serial de Schönberg e permanece estritamente mentistas não evitam recair nos intervalos naturais, buscando a
fiel a ele. Longe de constrangê-lo, essa disciplina parece libertá- expressão e a qualidade sonora. Assim, o intérprete tenderá a po­
lo; pelo menos,' ele concebe obras mais longas e, em suas últimas larizar o desenvolvimento serial em certos sons, forçando os in­
composições (duas Cantatas e Variações op. 30), o estilo de We­ tervalos para acentuar seu caráter expressivo.
bern se faz mais expressivo, mais contínuo. A segunda Cantata
— Por seu radicalismo, o método não permite retorno. Ora,
(1943) é sua obra mais vasta, tanto pela duração quanto pelo efe­
ele estabelece dois limites à evolução da polifonia: a complexida­
tivo instrumental.
de da escrita (logo da execução e da inteligibilidade) e o esgota­
A obra de Webern abre novas perspectivas ao estabelecer
mento das permutações possíveis de doze sons. Além daí, a histó­
uma espécie de identidade entre melodia e harmonia (a noção
ria da polifonia deve cessar. Sabemos que iremos morrer; mas não
de acorde é substituída pela de melodia instantânea), aplicando
queremos saber quando.
às sucessões de timbres uma espécie de desenvolvimento serial,
libertando o ritmo da regularidade métrica para lhe dar uma — A variação perpétua da estrutura serial (em contradição,
função compositiva mais precisa, reduzindo tudo ao essencial. de resto, com o princípio de não-repetição) poderia gerar cerja
Seu idealismo, sua simplicidade, sua absoluta independência e monotonia. Mas o ouvinte mediano, confundido pelo emprego
a extrema pureza de seu estilo exercerão um fascínio sobre os de grandes intervalos (superiores à oitava), fica sem pontos de
jovens compositores após a Segunda Guerra Mundial. O radi­ apoio para sua memória e sua imaginação. Ele percebe muitas ve­
calismo de Webern vai levá-los a descobrir na obra de Schön­ zes o conjunto como uma combinação de acontecimentos sono­
berg uma contradição que julgarão severamente: a fidelidade ros aleatórios ou, na melhor das hipóteses, como uma comunica­
a formas clássicas e a convenções rítmicas tradicionais, no âm­ ção esotérica. Se o dodecafonismo serial fracassou enquanto sis­
bito de um método de composição que deveria ser radicalmente tema universal e coletivo (Schönberg era demasiado lúcido para
novo. "O único, na realidade, que teve consciência de uma no­ pensar que algum dia ele se tornasse tal), pelo menos é um méto­
va dimensão sonora, da abolição do horizontal oposto ao verti­ do exemplar de reflexão musical, uma excelente "base" antes da
cal, para não ver na série mais que uma maneira de proporcio­ conquista de terras desconhecidas.
nar uma estrutura ao espaço sonoro, para de certa forma fibrâ-
lo, foi Webern" (Boulez, Relevés d'apprenti, Le Seuil, 1966).
A severidade para com Schönberg adquirirá nos neo-seriais for­
mas absurdas, até que seu gênio seja finalmente reconhecido.
Talvez se deva passar por Webern para compreender Schön­
berg...
De modo geral, a corrente dodecafonista sempre foi mal aceita
pelo grande público e por uma parte do mundo musical. Os mes­
tres da cultura nazista condenaram-na como ' 'judaico-bolchevi-
que"; para Jdanov e os músicos soviéticos oficiais, ela era "for­
malista" e "cosmopolita". Uma parte da crítica julgava-a "inte­
lectual", incompreensível, destruidora. A falência do dodecafo-
nismo pode ser atribuída a várias causas:
Os B A L É S RUSSOS D E D I A G H I L E V ( 1 9 0 9 - 1 9 2 9 )
PRINCIPAIS CRIAÇÕES

local e data compositor título regente coreógrafo cenário principais local e data compositor título regente coreógrafo cenário principais
e figurinos intérpretes e figurinos intérpretes

1910 Paris, Stravinsky O pássaro de Pieraé Fokine Golovine Karsavina, Fokine 1926 Paris, Satie (orq. Jack Désormière Balanchine Derain Idzikovsky, Dalinova
Opéra fogo Bakst Sarah-Bernhardt Milhaud) in the box
1911 Paris, Stravinsky Petruchka Monteux Fokine A . Benois Nijinsky, Karsavina, 1927 Désormière Balanchine Garbo Spessivtzeva, Lifar
La Chatte
Châtelet Nijinska, Schüllar Sauguet
Monte Cario e Pevsner
1912 Paris, Debussy L'Après-midi Monteux Nijinsky Bakst Nijinsky 1927 Paris, Mercure Désormière Massine Picasso Massine
Châtelet d'un faune Fokine O. Redon Satie
Cigale
1912 Paris, Ravel Daphnis Monteux Fokine Bakst Nijinsky, Karsavina 1927 Paris, Prokofiev O paço de aço Désormière Massine Jaculov Tchernicheva,
Châtelet et Chloé Sarah-Bernhardt Dalinova, Massine,
1913 Paris, Debussy Jeux Monteux Nijinsky Bakst Karsavina, Schollar, Lifar
Champs-Elysées Nijinsky 1928 Paris, Stravinsky Apolo Désormière Balanchine Bauchant (D) Lifar, Tchernicheva,
1913 Paris, Stravinsky A sagração Monteux Nijinsky Roerich Marie Piltz, Sokolova Sarah-Bernhardt musageta Chanel (C) Dalinova,
Champs-Elysées da Primavera Dubrovska
1913 Paris Schmitt Tragédie de Monteux Romanov Soudeikine, 1929 Paris, Prokofiev O filho Prokofiev Balanchine Rouault Lifar, Dubrovska
Champs-Elysées Salomé Karsavina Sarah-Bernhardt pródigo
1917 Paris, Satie Parade Ansermet Massine Picasso Lopokova, Massine
Châtelet
1919 Londres, Rossini- La Boutique Delfosse Massine Derain Lopokova, Sokolova,
Alhambra Respighi fantasque Massine
1919 Londres, Falla 0 tricornio Ansermet Massine Picasso Karsavina, Massine
Alhambra
Os B A L É S SUECOS D E R O L F D E M A R É
1920 Paris, Stravinsky O canto do Ansermet Massine Matisse Karsavina, Sokolova
Opéra rouxinol PRINCIPAIS CRIAÇÕES
1920 Paris, Stravinsky Pulcinella Ansermet Massine Picasso Karsavina,
Opéra Tchernicheva,
Massine local e data compositor título regente coreógrafo cenário principais
1921 Paris, Prokofiev Chut Ansermet Larionov Larionov Slavinsky, Sokolova e figurinos intérpretes
Gaîté-Lyrique ("le Bouffon")
1922 Paris, Stravinsky Renard Ansermet Nijinska Larionov Nijinska, Idzikovsky
Opéra 1921 Paris, Milhaud L'Homme et Inghelbrecht Borlin A . Parr Borlin, Johanson
1923 Paris, Stravinsky Les Noces Ansermet Nijinska Gontcharova Dubrovska, Champs-Élysées son Désir
Gaîté-Lyrique Voizikovsky, Ignatov 1921 Les Six Les Mariés de Inghelbrecht Borlin Lagut (D) A r i , Figoni, Smith
1924 Poulenc Les Biches Flament Nijinska Marie Tchernicheva, Champs-Élysées la Tour Eiffel J . Hugo (C)
Monte Carlo Laurencin Nemchinova, 1923 Milhaud La Création Golschmann Borlin Léger Borlin, Strandin
Dubrovska Champs-Élysées du Monde
1924 Auric Les Fâcheux Flament Nijinska Braque Nijinska, 1924 Satie Relâche Désormière Borlin Picabia Bonsdorff, Borlin,
Monte Carlo Tchernicheva, Dolin Champs-Élysées (com Entr'acte Smith
1924 Paris, Milhaud Le Train bleu Monteux Nijinska Laurens (D) Nijinska, Sokolova, de René Clair)
Champs-Elysées C . Chanel (C) Dolin, Voizikovsky
(cortina:
Picasso)
1925 Paris, Auric Les Matelots M . C . Scotto Massine Pruna Lifar, Voizikovsky.
Gaîté-Lyrique Slavinsky,
Nemchinova
Stravinsky No fim de 1908, Serguei Pavlovitch Diaghilev (1872- Renard, de Stravinsky,
cen
1929), apreciador de arte e organizador de concertos, que acaba ári° de Larionov.
de revelar ao público parisiense a música dos "Cinco" russos, ouve
em São Petersburgo as obras de um jovem aluno de Rimsky-
Korsakov, Igor Feodorovitch Stravinsky. Fica tão impressiona­
do com a última composição de seu jovem compatriota, uns des­
lumbrantes Fogos de artifício para grande orquestra, que lhe en­
comenda a partitura do Pássaro de fogo para a companhia de Balés
Russos, que acaba de fundar com Mikhail Fokine.
Essa companhia faz sua primeira temporada em Paris em
1909, e O pássaro de fogo é apresentado em junho do ano se­
guinte pela grande Karsavina, tornando imediatamente célebre
no mundo inteiro o nome do compositor de vinte e oito anos.
Raramente em nossa época, uma obra-prima tão consumada saiu
da pena de um músico tão jovem. A orquestra fulgurante fazia
parecer baços os dourados de Rimsky-Korsakov. A súbita eclo­
são do gênio de Stravinsky, a rápida sucessão de suas obras-
primas e a influência destas sobre a música contemporânea esti­
veram ligadas aos balés russos de Diaghilev. Uma fecunda in­
fluência recíproca subverteu ao mesmo tempo a arte coreográfi­
ca e a música de balé.
Nem poeta, nem músico, nem pintor, nem coreógrafo, Dia­
ghilev foi, sobretudo, um prodigioso animador. A segurança de
seu juízo estético, sua intuição do devir das diferentes artes e seu
trato irresistível permitiram-lhe reunir os maiores artistas, conhe­
cidos ou desconhecidos, em cada disciplina. Muito mais que uma
empresa de balés, ele realizou um espetáculo total, cuja estética
é uma síntese das principais correntes contemporâneas. Rompen- Diaghilev e Nijinsky,
do com os lugares-comuns do balé romântico, não só reconciliou desenho de Cocteau.'
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 238 239 AS GRANDES CORRENTES: STRAVINSKY

a música e a dança; também quis que o poeta libretista e o pintor fim. Mas a maioria dos músicos, os que conheciam a partitura,
se associassem plenamente numa forma de espetáculo coreográ­ que haviam assistido aos ensaios, ou que haviam voltado para uma
fico em que a arte mais avançada de seu tempo pudesse ser facil­ representação menos tumultuada, em particular Debussy e Ravel,
mente comunicada ao grande público. Seus suntuosos quadros ani­ estes sabiam que haviam assistido a um grande acontecimento ar­
mados realizaram a mesma síntese que, outrora, as festas floren­ tístico.
tinas e os balés de corte. Esses "Quadros de uma Rússia pagã", segundo uma idéia
Graças à dedicação de Karsavina e à autoridade de Diaghi­ de Stravinsky, inspiram-se numa crença milenar, segundo a qual
lev, a brusca mutação na arte do balé foi aceita com entusiasmo a vida nasce da morte: a primeira parte é consagrada à Adoração
pelo público, com exceção de um pequeno número de habitués
da terra, a segunda ao Sacrifício de uma jovem ao deus da Pri­
da Ópera, sistematicamente opostos a uma arte "bolchevique".
mavera. Numa época em que a vanguarda musical, representada
O deslumbramento provocado pelo Pássaro de fogo ainda dura.
na França por Debussy e Ravel, se distinguía por um extremo re­
A personalidade do pequeno músico russo, triste, frio, aplica­
finamento, esse ritual primitivo, acompanhado por uma música
do, fascinava o mundo musical. " É um jovem selvagem que
usa gravatas tumultuosas, beija a mão das mulheres pisando- violentamente contrastante, devia naturalmente surpreender. Uma
Ihes os pés", escreve Debussy. "Velho, ele será insuportável, parte do público só viu, a princípio, nesses quadros grandiosos
isto é, não suportará nenhuma música; mas, por enquanto, é uma horrível pintura dos instintos mais selvagens. O primitivis­
inaudito." mo do tema e da coreografia, em que os dançarinos assumiam
Um ano depois, em 1911, os balés russos montam Petruch- poses inabituais (pés para dentro, joelhos dobrados, braços rígi­
ka. No mesmo ano, O martírio de São Sebastião de Debussy es­ dos...), sem dúvida chocou mais do que a música, encoberta uma
tréia em Paris, sob a regência de Caplet, apesar da oposição do parte do tempo pelo barulho da sala.
cardeal-arcebispo, que ameaça os espectadores de excomunhão. A sagração da primavera é, sem dúvida, a obra-prima de Stra­
Ainda no mesmo ano, Schönberg publica seu tratado de harmo­ vinsky. Mas a "revolução" que se credita a essa partitura genial
nia e Bruno Walter rege em Munique a primeira audição póstu­ foi um pouco exagerada. No plano harmônico, em particular, não
ma do Canto da terra de Mahler. há subversão radical capaz de desconcertar um ouvinte de 1913
A nova partitura do jovem Stravinsky é bem diferente da Figurino de Petruchka
habituado à música contemporânea. Desde os primeiros anos do
por Georges Lepape.
anterior, mas igualmente sedutora. Ele começava a escrever um século, os compositores não hesitam mais em utilizar qualquer
concerto para piano quando lhe veio a idéia de "um fantoche agregado sonoro, em primeiro lugar Debussy, numa intenção pu­
subitamente desembestado que, com suas torrentes de arpejos ramente harmônica. Na Sagração, os agregados politonais são
diabólicos, exaspera a paciência da orquestra"; e transformou mais freqüentes e mais complexos do que em Petruchka, mas o
em balé o projeto inicial. Petruchka é um imenso teatro de fan­ princípio é o mesmo e o sentimento tonai (por vezes modal: mo­
toches, animado por uma partitura insólita, em que são integra­ dos de lá e de ré, sobretudo) é fortemente afirmado. O acorde
dos com um virtuosismo assombroso canções populares, refrões característico dos Auguriosprimaveris (mib maior com sétima me­
e músicas das ruas. O bulício colorido do parque de diversões
nor + fáb maior), que se encontra em apresentações e tonalida­
é acentuado por uma escrita musical que dá a sensação da multi­
des diferentes em toda a partitura, não introduz nenhum equívo­
plicidade, graças a procedimentos de dissociação novíssimos na
co na tonalidade do trecho (mib); só surpreende pela maneira
época: politonalidade, polirritmia, timbres muito diferenciados.
brutal e assimétrica como é tocado. Em face do sistema tonal, Stra­
Uma vez mais, o público e os músicos ficaram deslumbrados.
Ninguém achou o que criticar nas misturas de ritmos e de tonali­ vinsky não é nem um dissidente, nem um reformador. Ele não
dades que evocam o parque de diversões, nem mesmo no motivo mata aula: faz bagunça na classe.
de Petruchka e em seu acorde característico, que sobrepõem dó No plano rítmico, a técnica é mais original. Desde a sutil no­
maior e fá# maior. tação dos acelerandos e dos ralentandos nos primeiros compas­
A terceira obra-prima de Stravinsky, A sagração da prima­ sos, até as perpétuas mudanças de compasso da Dança sacral, tu­
vera, não foi tão facilmente aceita. Na noite histórica de 29 de do é empregado para criar uma espécie de enfeitiçamento, seja
maio de 1913, no Théâtre des Champs-Élysées novinho em folha, pela obsédante regularidade das pulsações, associada a ostinati
a algazarra era tão intensa desde o começo que mal se ouvia a encantatórios, seja, ao contrário, por uma perturbadora assime­
orquestra. Saint-Saëns saiu estrepitosamente do teatro antes do tria. Entretanto, a audácia rítmica de Stravinsky foi freada por
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 240
O deus azul, música de R . Hahn,
coreografia de Fokine baseada num
seu conservadorismo harmônico, como a audácia harmônica de argumento de Cocteau, projeto de cenário
Schönberg foi freada por seu conservadorismo rítmico. Acrescento de Léon Bakst (1912).

que grande parte do material temático da Sagração poderia mui­


to bem pertencer a Petruchka:

A sagração da primavera

No entanto, se renunciamos a qualquer análise, resulta da


audição da Sagração a impressão de uma força nova e genial.
A originalidade dessa partitura está principalmente numa estéti­
ca geral que dá igualmente as costas a todas as sutilezas da mú­
sica contemporânea, hedonistas, simbolistas ou expressionistas.
Presidem a essa estética um know how excepcional e uma von­
tade impassível. Tudo é prodigiosamente dominado, calculado:
a extraordinária violência telúrica, os bruscos contrastes e as
oposições de cores fortes, que são assimiláveis a uma espécie
de "fovismo" musical, as danças encantatórias e até o próprio
lirismo.
Stravinsky ouve Pierrot lunaire em Berlim, em dezembro de
1912. Não gosta dessa música, mas ela desperta nele uma nova
vocação. Faz Ravel conhecer a partitura; ambos parecem encon­
trar nela um motivo para renunciar aos sortilégios das harmonias
e dos timbres. A última das Três poesias da lírica japonesa (1913)
mostra com bastante nitidez essa influência de Schönberg. Pouco
depois da Sagração, Stravinsky abandona, de fato, o estilo ruti­
lante que fez dele, aos trinta anos, um dos maiores artistas do sé­
culo, para adotar um estilo despojado, linear, uma instrumenta­
ção ascética. Depois dessa mutação, permanece profundamente
original durante vários anos, com uma tendência à provocação.
Prosseguirá, em seguida, até morrer, a mais longa e mais extraor­
dinária carreira de epígono da história da música. Ainda há, nes­
sa nova atitude, um quê de provocação, mas também uma contí­
nua ansiedade: a despeito de uma extraordinária mestria dos re­
cursos de sua arte (ou, talvez, por causa dessa mestria), Stravinsky
parece ter estado perpetuamente preocupado com os problemas
u IGOR cas de Stravinsky nos concertos Zi- 1914-1919 Após uma viagem a Kiev,
i FEODOROVITCH loti e lhe encomenda O pássaro de instala-se em Clarens. Amizade com
MUM'&W^^ • — fogo. Ramuz. Viagens a Madri e a Roma
STRAVINSKY
1910 Viagem a Paris para a estréia (onde conhece Picasso). Estréia co­
''J Oraiiienbaum (São Petersburgo), 17 de junho de 1882

η JUáâortffflô M3*ftiinih: Mcm^cfiiosoto ne m h ν


i
Nova Y o r k , 6 de abril de 1971 de O pássaro de fogo. Stravinsky mo regente (Genebra e Paris).
logo fica célebre. Estada em La 1919-1939 Instala-se na França: em
Seu pai, Feodor (1843-1902), era Baule, depois em Clarens (perto de Carantec (Finistère), depois em
Ol 8 MMâïïïM OWm: ΕΗΛΛί HfRÄEIHZ um célebre baixo da Ópera de São Montreux). Garches, perto de Paris. Numero­
Petersburgo, excelente Varlaam em 1911-1914 Estadas em Beaulieu, sas turnês como pianista e regente
Boris Godunov. Roma (com Diaghilev), Berlim, São (intérprete de suas próprias obras),
Petersburgo, Viena; mas reside pela Europa e Estados Unidos.
1891-1904 Começa a aprender pia­ principalmente em Paris. 1938 Perde a mulher e a filha Lud­
no aos nove anos. Estudos gerais. 1911 Estréia de Petruchka (Châte­ milla.
Estudos de direito em São Petersbur­ let). 1939 Parte para os Estados Uni­
go (o filho mais moço de Rimsky é 1912 Stravinsky ouve Pelléas et dos, a convite da Universidade de
seu colega). Mélisande em Paris, convidado por Harvard, depois se instala definiti­
1902-1908 Aluno de Rimsky-Kor­ Debussy, e Pierrot lunaire em Ber­ vamente em Hollywood.
sakov. Casamento (1907) com sua lim. Petruchka é apresentado em 1940 Casamento com Vera de Bor¬
prima Catarina Nossenko, que lhe Berlim e Viena. set.
dará quatro filhos, dos quais um se­ 1913 Estréia da Sagração da pri­ 1951 Primeira viagem à Europa de­
rá pianista: Sulima (1910). mavera (Théâtre des Champs-Ély­ pois da guerra. Voltará com fre­
1908 Diaghilev ouve peças sinfôni­ sées). qüência, em particular a Veneza,

de estilo e de forma, não conseguindo resolver as contradições de


suas opções estéticas. Seus "estilos" sucessivos podem ser resu­
midos da seguinte maneira:
Até 1914 Desenvolvimento e apogeu de um gênio prodigioso, que
se inspira na cultura russa. Sua arte, original e enfeitiçante, em­
prega orquestras enormes, uma harmonia carregada, contrastes di­
nâmicos impressionantes. As obras-primas desse período são O pás­
saro de fogo (1910), Petruchka (1911), A sagração da primavera
(1913) e uma deliciosa ópera pouco conhecida, O rouxinol (1914).
De 1914 a 1922 Stravinsky inaugura uma arte de extrema clare­
za, em que emprega pequenas formações instrumentais, freqüen­
temente insólitas, e uma escrita linear, mais contrapontística do
que harmônica. Essa arte metódicamente insolente é, ao mesmo
tempo, uma paródia destruidora dos métodos de composição tra­
dicional e uma ascese fecunda que arranca a música de todas as
hipnoses, inclusive a que a Sagração começa a exercer. É durante
esse período que Stravinsky anexa certos procedimentos do jazz
e se encontra com Jean Cocteau. As obras-primas são a História
do soldado (1918), Renard (1922) e sobretudo Les noces (1917;
instrumentação definitiva em 1923), uma das composições mais
ricas, mais originais e mais sedutoras de seu autor, deslumbrante
Imagem popular russa buquê de canções entremescladas.
(fim do século X I X ) .
A . Benois, "Stravinsky repousando onde aconteceram as estréias de The 1928), O beijo da fada (Paris, 1928),
na relva", no ano da Sagração. Rake's Progress (1951), Canticum Jogo de cartas (Nova York, 1937),
Sacrum (1956) e Threni (1958). Orpheus (Nova York, 1948), Agon
1952 Repetidas audições do Quar­ (Paris, 1957). Obras de teatro: O
teto op. 22 de Webern e visita ao tú­ rouxinol (Paris, 1914), História do
mulo desse músico (Salzburgo). soldado (Lausanne, 1918), Mavra
Conversão ao dodecafonismo serial. (Paris, 1922), The Rake's Progress
1962 Viagem triunfal à União So­ (Veneza, 1951). Obras corais, entre
viética, por ocasião de seu 80? ani­ as quais Oedipus Rex (1927), Sinfo­
versário. nia dos salmos (1930), Perséfone
1967 Fanfarra para dois trompetes, (1934), Missa (1948), Canticum Sa­
última obra conhecida de Stravinsky. crum (1956), Cantata (1952). Diver­
1971 Morte em Nova York, aos oi­ sas composições para canto e con­
tenta e nove anos. Conforme seu junto instrumental, melodias. Qua­
desejo, foi enterrado em Veneza. tro sinfonias. Dumbarton Oaks con­
certo (16 instrumentos de sopro),
obra Balés: O pássaro de fogo (Pa­ Ebony concerto (conjunto de jazz),
ris, 1910), Petruchka (Paris, 1911), concerto para piano, Capriccio e
A sagração da primavera (Paris, Movimentos para piano e orquestra,
1913), Pulcinella (Paris, 1920), Re­ concerto para dois pianos. Diversas
nard (Paris, 1922), Les noces (Pa­ obras para piano e para orquestra
ris, 1923), Apolo musageta (Paris, de câmara.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 244

Embora tenha sido composto em 1919 e representado em 1920,


Stravinsky regendo.
o delicioso balé Pulcinella, baseado em temas de Pergolesi, per­
tence ao período seguinte. Pelos achados rítmicos e instrumen­
tais saborosos, é ainda excelente Stravinsky, como são excelente
Picasso certos desenhos clássicos da mesma época (sobretudo
os que o pintor executou para os figurinos de balé). O público,
que acaba acostumando-se ao estilo forte da Sagração, fica des­
concertado. "Havia sido ensinado aos críticos e aos elegantes
um jogo extremamente complicado", conta Cocteau. "Eles co­
meçavam a orgulhar-se de ter certa força nesse jogo e tudo mu­
da: anuncia-se uma brincadeira de pular sela." Cocteau, adivi­
nha-se, recomenda a estética do pular sela; veremos adiante o
que será dela.
De 1922 a 1953 Tendo decidido estabelecer-se na França, Stra­
vinsky vai-se comportar como um malcriado consciencioso, apai­
xonado por sua segunda pátria, devendo esforçar-se por apren­
der os seus modos e servir à sua cultura. Durante esse longo
período — a metade da sua carreira —, opta por ser o defensor
metódico da tradição ocidental. A Missa se refere aos polifonis-
tas flamengos; Pulcinella e The Rake's Progress ao barroco ita­
liano, O beijo da fada a Tchaikovsky, o Concerto para piano
a um Bach imaginário, ao qual teriam imposto uma dieta. É
o período dos "retornos a...", da música objetiva, meticulosa,
escrita com tira-hnhas, com um extraordinário virtuosismo. Es­
sa estética petrificada, voltada para as meias medidas, suscita
um mal-estar estranho e uma bulimia de boa música: daríamos
qualquer coisa para ouvir um compasso de verdadeiro Stravinsky
ou de verdadeiro Bach. No entanto, algumas obras maiores do­
minam esse período: a Sinfonia dos Salmos (1930), o balé Or­
pheus (1947), a Sinfonia em três movimentos (1945) e a Missa
(1951).
De 1953 até sua morte Aos quarenta anos, Stravinsky defen­
dia sua supremacia reagindo às concepções ousadas de seus con­
temporâneos da maneira mais inesperada: pela instituição de um
academismo. Aos setenta, não só sua supremacia está ameaça­
da, como ele perdeu sua influência sobre os jovens músicos, que
se dedicaram, em torno de Messiaen e Leibowitz, à generaliza­
ção do princípio serial. O ilustre ancião não abdica: subitamen­
te, na hora em que o dodecafonismo se torna um academismo,
ele adota os métodos seriais, com uma coragem e uma destreza
admiráveis.
Stravinsky estava instalado desde 1940 em Beverly Hills, perto
de Los Angeles, a uns quinze quilômetros do domicílio de Schön­
berg. Mas os dois músicos não procuraram encontrar-se; nenhu­
ma afinidade, nem mesmo uma simples curiosidade os atraía. Ε
Stravinsky por Picasso, 1920. Stravinsky tinha horror da música dodecafônica... No entanto,
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 246 247 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES

sob a influência de seu "auxiliar musical", o jovem regente ame­ que encontra seus derradeiros representantes no século XX, alguns
17
ricano Robert Craft , e após uma visita ao túmulo de Webern criadores independentes souberam preservar sua originalidade.
em Salzburgo, ele realiza sua mais estranha conversão, dois anos
depois da morte de Schönberg. O choque decisivo teria sido pro­ A escola francesa Na França, o culto de Franck é piamente man­
vocado por uma obra de Webern, ouvida várias vezes durante es­ tido por seus últimos alunos, dos quais os mais notáveis, fora Vin­
sa viagem à Europa, o Quarteto op. 22, para violino, clarineta, cent d'Indy, são Guy Ropartz (1864-1955), cantor inspirado de
saxofone e piano. sua pátria bretã, e os dois sucessores do organista de Sainte-
Em In memoriam Dylan Thomas (1954), em Canticum Sa­ Clotilde, Gabriel Pierné (1863-1937), que também é, como regen­
crum em homenagem a São Marcos (1956), no balé Agon (1957), te, um achuirável intérprete de Debussy, e Charles Tournemire
em Threni (1958), em que o pavoroso martelamento das süabas (1870-1939), tão grande sinfonista quanto improvisador, herdei­
latinas e a complexidade agressiva da polifonia submetem o ou­ ro dos antigos mestres do órgão. O ensino rigoroso da Schola,
vinte a uma insuportável tortura, em Requiem Canticles (1966), dividido contraditoriamente entre o culto de Wagner e a defesa
etc., Stravinsky demonstra mais uma vez sua faculdade de adap­ obstinada da ordem tonai, só produziu frutos secos. O maravi­
tação e sua extraordinária mestria, submetendo a escrita serial à lhoso Déodat de Séverac (1873-1921) deve-lhe sua formação. Suas
sua vontade. Mas emprega seu talento superior muito mais para peças para piano, carregadas de impressões meridionais, são pe­
ι retardar do que para ultrapassar a corrente: apesar de sua perfei­ quenas obras-primas infinitamente sedutoras: "sua música tem
ta assimilação de um método de composição que antes mal co­ um cheiro gostoso", dizia Debussy.
nhecia — e que Boulez começa então a superar —, ele não resiste No entanto, o mais glorioso aluno da Schola é Albert Roussel
às simetrias e às polaridades sacrüegas, sustentando uma contra­
(1869-1937), grande músico ignorado, cujo talento foi mais aprecia­
dição insolúvel entre seu compromisso serial e sua nostalgia to-
do na Alemanha e na Inglaterra do que em seu próprio país. Come­
• nal. "Os intervalos de minhas séries são atraídos pela tonalida­
çando tarde seus estudos musicais, esse ex-oficial da marinha é, a
de", explica, o que não tem sentido numa organização serial e
princípio, considerado um amador; mais tarde, seus primeiros ad­
trai a fragilidade de suas opções, sua reticência em comprometer-
miradores o acharão demasiado erudito, e os jovens músicos do pe­
ï se a fundo. Incapaz de esgotar a lógica de um sistema para mos­
trar um novo caminho além, Stravinsky continua sendo um alu­ ríodo entre as duas guerras acreditarão descobrir nele um genial ino­
no bagunceiro entre os jovens neo-seriais, de que não tem nem vador. Na primeira parte da sua obra, em que culmina Le festin de
a sinceridade, nem a audácia. Mas ele os maravilha com seu vir­ l'araignée (1913), a influência franckista (através de D'Indy) combina­
tuosismo — e é mesmo um pouco o que deseja. se com a de Debussy, a forma e a sensualidade se reconciliam.
A maioria dos músicos que começaram sua carreira entre as Depois da guerra, principalmente a partir de 1926 (Suíte em
duas guerras cultuou Stravinsky. Sua influência foi tão grande, que fá), Roussel se orienta para uma arte mais severa, mais linear, com
a história da música teria sem dúvida seguido outro curso e econo­ grandes frases caracterizadas por sua ambigüidade modal. A es­
mizado várias crises, se ele tivesse perseverado no caminho esplên­
dido aberto por Petruchka e pela Sagração, por Renard e por Les
crita contrapontística é soberana. As obras-primas desse período
são o Salmo 80, a Terceira e a Quarta sinfonia e sobretudo o balé
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noces, se, em suma,tivessemostrado tanto entusiasmo quanto gênio. Bacchus et Ariane (1931). Nessa segunda parte da sua carreira,
Roussel infelizmente sucumbe à moda neoclássica, de que Stra­
vinsky é o árbitro: martelamento rítmico monótono, em nome do
"retorno a Bach" (Bach incompreendido, com anapestos petrifi­
À MARGEM DAS GRANDES cados), politonalidade agressiva, rejeição das seduções harmôni­
CORRENTES cas. Nem epígono, nem inovador, Roussel abraça com força seu
tempo, excluindo apenas as tendências atonais, cujo princípio re­
As personalidades de Debussy, Ravel, Schönberg e Stravinsky sus­ cusa categoricamente. Se apela para a politonalidade, é porque
citaram rapidamente vários epígonos ou imitadores, hábeis ou me­ a considera inteligentemente como "um contraponto de tonali­
nos hábeis. No entanto, à margem das correntes estéticas repre­ dades". Uma das principais originalidades de seu estilo é uma har­
sentadas pelos quatro grandes músicos e da corrente romântica monia flutuante, de essência contrapontística, baseada na assimi­
lação de certas escalas modais do Extremo Oriente.
17. Ver Souvenirs et Commentaires (conversas com Robert Craft), Paris, 1963.
À mesma geração pertencem Dukas e Schmitt. A reputação
É o próprio Craft que se qualifica de auxiliar musical. de Paul Dukas (1865-1935) data de 1897, ano em que foi apresen- Albert Roussel.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 248

tado, na Société Nationale, sob a regência do compositor, o céle­


bre Aprendiz de feiticeiro, baseado na balada de Goethe. Mas es­
sa obra brilhante é pouco representativa de seu estilo, de modo
que sua gloria repousa num mal-entendido. Suas obras-primas são,
em primeiro lugar, o belo "conto lírico" Ariane et Barbe-Bleue
(1907), depois o balé La Péri e as Variações, interludio e final so­
bre um tema de Rameau para piano. Delas emana uma impres­
são de nobreza, de equilíbrio, de beleza helénica, em que se ocul­
ta uma sensibilidade discreta. Inteligente e culto, Dukas sempre
soube descobrir e utilizar em seu proveito as mais preciosas qua­
lidades de seus predecessores e de seus contemporâneos, a essên­
cia de seu gênio. Sofreu a influência do amigo Debussy (cujo Pel­
léas admirou de imediato), mas não sucumbiu ao "debussysmo",
que é a imitação de uma aparência. Sua influência foi considerá­
vel como crítico e como pedagogo. Seus mais ilustres alunos fo­
ram Olivier Messiaen e Joaquín Rodrigo, o célebre autor do Con­
certo de Aranjuez para guitarra.
Florent Schmitt (1870-1958) foi colega de Ravel na classe de
Fauré no Conservatório. Ganha o primeiro grande prêmio de Ro­
ma em 1900, depois compõe em poucos anos suas três obras-
primas: Salmo 47 (1904), o balé La tragédie de Salomé (1907) e
o Quinteto com piano (1901-1908). Essas obras surpreendem por
sua força e sua originalidade. Elas logo garantem a Schmitt uma
posição de destaque no mundo musical. A despeito de uma infra-
estrutura tonal e clássica, são de uma audácia e de uma força no­
táveis. Seis anos antes da Sagração, La tragédie de Salomé prefi­
gura sua violência e seus contrastes grandiosos. Mas, durante os
cinqüenta anos que lhe restam viver, esse músico original é como
que vítima de esterilidade. Ainda desempenhará um papel de pri­
meiro plano por seus artigos combativos e por sua ação em prol
da música contemporânea no seio da Société musicale indépen­
dante. Mas sua reputação de compositor permanecerá ligada às
suas obras de juventude. As peças humorísticas que compôs para
piano ou para orquestra, por uma reação de defesa contra as efu-
sões românticas, por um comportamento omisso também, nada
acrescentam à sua glória.

Satie Erik Satie (1866-1925) pertence a essa mesma geração de


músicos franceses nascidos entre Debussy e Ravel; mas parece
mais moço. "Vim ao mundo muito jovem num tempo muito
velho", escreve. Seus amigos consideram-no um chefe de escola
genial, seus inimigos, um mistificador. Nunca se saberá como
ele próprio se julga, no segredo zelosamente guardado da sua
solidão. Sua personalidade singular, seu comportamento insóli­
to, seu gosto pela tapeação esotérica, tudo o que serviu para
forjar sua lenda falseia a idéia que podemos ter de seu talento.
ou acordes estranhos de quartas superpostas, ou sétimas, nonas, Satie por Man Ray.
décimas primeiras.
Ele é dadaísta em 1913 (opereta Le piège de Méduse), três
Uma página autografa Pintores e escritores ergueram-no às nuvens, opondo-o a Debussy, anos antes do nascimento dò movimento dadá. A partir de 1914,
de Sports et divertissements. R i Stravinsky. Estes, aliás, prestaram homenagem à profun­
a v e e dez anos antes do primeiro manifesto do surrealismo (Breton),
da originalidade de sua estética. Porém, mais tarde, fora alguns os textos narrativos que acompanham suas peças para piano e se
fiéis, os músicos tomarão o contrapé, rejeitando considerar co­ desenrolam junto com a música são de inspiração nitidamente sur­
mo um dos seus esse meigo brincalhão que não joga o jogo. realista... Em pleno wagnerismo, cultiva em suas primeiras obras
No entanto, Satie merece um lugar no panteão dos composi­ um angelismo medieval, adapta aos velhos modos seus impertur­
tores, um lugar pequeno, mas bem situado. Sua lenda esconde um báveis encadeamentos paralelos, suprime as barras de compasso,
músico sutil e um surpreendente precursor. Entre 1886 e 1895, en­ escreve nas partituras indicações fantasistas ("Com surpresa",
cadeia acordes perfeitos como estes: "Passo a passo", "Abra a cabeça"), oculta suas intenções sob
títulos misteriosos: Ogives, Sarabandes, Gymnopédies, Gnossien-
nes. De 1896 a 1916, quando os músicos franceses estão fascina­
» — Í - ^ i dos por Debussy, Ravel e o primeiro Stravinsky, Satie compõe
1? a r 1
suítes para piano, lineares, despojadas, meticulosamente ingênuas
5—h?—f f — e insolentes, que orna com títulos mistificadores: Peças frias, Pre­
lúdios fócidos, Embriões ressecados, Descrições automáticas, etc.
253 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES

Balés Suecos, com um Entr'acte cinematográfico de René Clair;


cenário de Picabia) são mais indigentes.
Satie era, ao mesmo tempo, subversivo e modesto. Tinha
por demais o espírito de contradição para ser um epígono e hu­
mor demais para se levar a sério fundando uma "escola". Con­
cidadão de Alphonse Allais (seus pais se freqüentavam), confia­
do bem moço ao avô e ao tio, dois adoráveis malucos, Satie
cultivou a mistificação bufa, com muito talento aliás, como uma
proteção contra a seriedade dos adultos. Muitos adultos não
souberam discernir a emoção que se escondia por trás dessa fa­
chada.

Alemanha Desde que a herança de Wagner foi reivindicada por


uma prestigiosa escola vienense (Bruckner, Mahler, Schönberg...),
a Alemanha perdeu sua preponderância musical. Liszt, Wagner
e Brahms foram suas últimas testemunhas. O mais digno repre­
sentante da grande tradição alemã no início do século X X é Max
Reger (1873-1916). Em sua obra excepcionalmente abundante, ele
renova a arte da sonata, da fuga e da variação, tal como ensinam
Bach, Mozart, Schubert e Brahms. Tem suficiente arte e lirismo
caloroso para não parecer acadêmico; sobretudo, tem o mérito
de voltar às fontes do coral luterano e da canção popular. A bele­
za formal de suas melhores obras, principalmente as Variações
e fuga sobre um tema de Mozart para orquestra e os dois últimos
quartetos de cordas (em mib e fá# ), oferece mais sedução do que

Seurat, La Parade. Eritrementes, irritado por ser considerado um amador, ingressa


aos quarenta anos na Schola, como aluno da classe de Roussel,
e recebe um belo diploma de contraponto com a menção "muito
bem" (1908).
Em 1916, compõe Parade, sua partitura mais importante, exe­
cutada no ano seguinte nos Balés Russos, em meio a uma indes­
critível algazarra: "Uma banda carregada de sonho", escreve Jean
Cocteau, autor do argumento; "um fundo com certos barulhos
que Cocteau julga indispensáveis", declara Satie exultante, com
uma modéstia hipócrita. Agora, quer compor música de "mobi­
liário", uma música cenário, que renuncia a qualquer expressão,
ν ainda que humorística. Essa estética não se vincula a nenhuma cor­
rente contemporânea, mas influenciou fortemente uma parte da
música do período entre as guerras. Ela inspirou a Satie suas mais
belas composições: Parade, o admirável Socrate, cinco Noturnos
para piano. Dois outros balés, Mercure (para as Soirées de Paris,
de Étienne de Beaumont; cenário de Picasso) e Relâche (para os com os pintores
i da cortina de Parade.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 254 255 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES

de ordinário se pensa. Infelizmente, sua influência sobre os músi­ se de saída na vanguarda da música contemporânea. Sucessivamen­
cos alemães da geração seguinte suscitou um movimento neoclás- te, Salomé (Dresden, 1905) e Elektro (Dresden, 1909) atingem um
sico de uma tristeza infinita. paroxismo musical e dramático: violência delirante, erotismo ar­
O maior compositor alemão deste século, Richard Strauss, dente, explosões tonitruantes de uma orquestra de fogo e sangue.
situa-se à margem de todas as correntes musicais. Sua carreira de Nunca se vira ou ouvira nada semelhante na ópera. A escrita mu­
compositor estende-se por sessenta anos (1885-1945). Durante os sical escapa a todos os sistemas, resiste a qualquer classificação
trinta primeiros, maravilhou o mundo pelo brilho e pela origina­ categorial, não tem modelo em nenhum outro lugar. Mas a con­
lidade de sua obra; durante os trinta últimos, decepcionou seus cepção dramática da harmonia e o expressionismo dilacerante que
mais fervorosos admiradores. Com raras exceções (as óperas Ara­ trata a voz de maneira sobre-humana exerceram uma influência
sobre uma parte do teatro musical de nosso tempo. Todavia, so­
bella e Capriccio, os Letzte Lieder e as Metamorfoses para ins­
noridades inauditas em sua simplicidade, como as que cercam o
trumentos de cordas), todas as suas obras-primas foram compos­
último canto sublime de Salomé, nunca mais serão imitadas.
tas antes de 19Í5: os célebres poemas sinfônicos (anteriores a 1900,
Essas duas extraordinárias antióperas, altamente escandalo­
inclusive o prodigioso Till Eulenspiegel), a maior parte dos Heder
sas, naturalmente provocaram os protestos que se impunham (fo­
e, sobretudo, as óperas Salomé, Elektro, Der Rosenkavalier e
ram proibidas na Inglaterra até 1910); no entanto, logo o público
Ariadne auf Naxos, de que falaremos adiante.
as fez triunfar, decidindo para Strauss uma carreira de músico de
Muito brahmsiano em suas primeiras obras, toma em 1888 teatro. Então, de repente, ele muda radicalmente de estilo e atin­
o caminho de um expressionismo sinfônico singularmente mo­ ge os píncaros da sua obra. Seu novo estilo é magníficamente bar­
derno para a época, declarando-se um Ausdrucksmusiker. A par­ roco e romântico, ao mesmo tempo; procede de Mozart, de Schu­
tir de então, quase todas as suas obras instrumentais terão um bert, do Wagner dos Mestres cantores, sem nunca cessar de ser
pretexto literário, em particular a série dos deslumbrantes poe­ original, mesmo ao render homenagem à valsa vienense ou ao bel
mas sinfônicos. No entanto, não se pode dizer que essa música canto. O gênio fora da lei, o modernista ousado que tinha chega­
exuberante e sensual seja "literária". O programa é apenas a do aos limites da grandeza demoníaca torna-se, de repente, fasci­
origem e o fim de uma série de associações de idéias musicais, nador, com uma imaginação, uma verve, uma emoção e um sen­
não sendo necessário que o ouvinte descubra seu fio. Nas obras- so teatral notáveis. Ele nunca foi mais verdadeiro, mais magis­
primas que são Don Juan (1888), Till Eulenspiegel (1895) e Dom tralmente seguro de si do que no Rosenkavalier (1911) ou em
Quixote (1897), a inspiração é de essência puramente musical. Ariadne auf Naxos (1912). Infelizmente, a partir de 1915, plagia
Quando Debussy ouve Till em Paris, sob a regência de Nikisch, a si mesmo com uma felicidade mais ou menos grande, confunde
fica estupefato: "Dá vontade de rir às gargalhadas ou de berrar grandeza e grandiloqüência, riqueza e excesso, espírito e compli­
até a morte, e ficamos surpresos por reencontrar as coisas em cação. As exceções mais gloriosas são obras de velhice: a ópera
seu lugar costumeiro; porque se os contrabaixos soprassem atra­ Capriccio (Munique, 1942), obra-prima de graça e de espírito,
vés de seus arcos, se os trombones esfregassem seus cilindros composta aos setenta e oito anos, e os Vier Letzte Lieder (1948),
e se encontrássemos Nikisch sentado no colo de uma vaga-lume, últimas composições terminadas por Strauss. Nelas se exprime um
não veríamos nada de extraordinário nisso. Tal fato não impede extraordinário sentimento de serenidade, particularmente em Im
a peça de ser genial sob certos aspectos, em primeiro lugar por Abendrot, em que à pergunta "Ist dies etwa der Tod?" o coro
sua prodigiosa segurança orquestral e pelo movimento frenético responde com o motivo da transfiguração de Tod und Verklärung
(composta sessenta anos antes):
que nos arrebata do começo ao fim." Em Viena, o velho Bruck­
ner, gravemente enfermo de hidropisia, faz com que o levem
duas vezes ao concerto para ouvir Till. Esses poemas sinfônicos
têm raízes no século X I X , em Liszt e Wagner. Mas a forma
costuma ser clássica (rondó, variações) e a orquestra wagneria­
na é ampliada e misturada com uma mestria e uma audácia po­
derosamente modernas.
Aos quarenta anos, o gênio de Strauss sofre uma mutação.
Apesar de dois fracassos justificados (Guntram em 1894 e Feuers­
not em 1901), vai-se consagrar a partir de então ao teatro, situándo­
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 256

Alheio a todas as correntes artísticas, pouco preocupado


com adotar uma estética coerente, mas possuindo um prodigio­
so know how, Strauss não exerceu praticamente nenhuma in­
fluência musical (a influência de Salomé foi de ordem dramáti­
ca). "Saímos da sua obra como de um circo", escreve em 1922
William Ritter, na Encyclopédie de la musique de Lavignac. Sua
música fascina no instante da audição, mas deixa poucos vestí­
gios profundos.

R I C H A R D STRAUSS 1892 Sucede a Bülow como dire­


Munique, 11 de junho de 1864 tor dos concertos filarmônicos de
Garmisch (Alpes b á v . ) , 8 de setembro de 1949
Berlim.
1894 Casamento com a soprano
Seu pai, primeira trompa da Ópera
Pauline de Ahna (7-1950), intérpre­
Real da Baviera, era ferozmente
te de sua primeira ópera Guntram.
conservador e antiwagneriano. Sua
1895-1898 Série de grandes poemas
mãe era uma Pschorr, da família
sinfônicos. Numerosas turnês de
dos grandes cervejeiros de Muni­
concertos.
que. O pequeno Strauss era uma
criança dotada, mas violenta e or­ 1898-1910 Kapellmeister na Ópera
gulhosa: batia na mãe. de Berlim.
1904 Strauss rege em Nova York a
1870-1882 Estudos gerais muito sé­ primeira audição da Sinfonia do­
rios e clássicos. Aos dezessete anos, méstica.
publica e promove a apresentação 1905 Estréia de Salomé em Dres­
de suas primeiras obras, bem con­ den.
vencionais. 1911 Estréia do Rosenkavalier em
1882- 1883 Completa os estudos na Dresden.
Universidade de Munique. Tendo pedido demissão de suas
1883- 1884 Temporada em Berlim, funções em Berlim, Strauss consa­ lui. •
onde suas obras chamam a atenção gra-se quase exclusivamente à com­
de Hans von Bülow, que facilita o posição, com exceção de três anos
início de sua carreira como maestro. de ensino na Hochschule für Mu­
1885 Sucede a Bülow como regen­ sik de Berlim (1917-1920).
te da orquestra de Meiningen. Tor­ 1929 Morte de Hugo von Hof¬
na-se bruscamente modernista.
1886-1889 Maestro assistente da
mannsthal, com quem Strauss co­
laborou desde 1906.
I I
Ópera de Munique. 1933 Quando do advento do nazis­
1888 Primeira obra-prima: Don mo, sucede a Bruno Walter como
Juan. Início de uma reputação es­ diretor da orquestra da Gewand­
candalosa. haus de Leipzig.
1889-1894 Maestro assistente na 1935 A condenação de sua ópera
•J
corte de Weimar. É convidado a re­ Die Schweigsame Frau (em colabo­
ger Tannhäuser em Bayreuth (1891). ração com o escritor judeu Stefan i
Em 1892, depois de uma grave en­ Zweig) põe fim às suas boas rela­ }
fermidade, faz uma viagem de con- ções com o regime. Além disso, seu thy.'
valescência ao Egito. filho Franz casou-se com uma ju-

Chagall, O violoncelista (1939).


Richard Strauss e família em 1906.
dia. Retira-se para sua casa de Gar­ obra Quinze óperas; três balés; oito
tnisch, onde vive sossegado; sua ce­ poemas sinfônicos. Quatro sinfonias,
lebridade garante-lhe uma espécie dentre as quais a Symphonia domes­
de imunidade. tica (autobiográfica) e aAlpensinfo¬
1942 Estréia em Munique sua últi­ nie. Concertos: para piano (Burleske),
ma ópera, Capriccio, com um libre­ para violino, para trompa, paraoboé.
to do maestro Clemens Krauss, gran­ Metamorphosen para 23 instrumen­
de intérprete de Strauss. tos de cordas. Quinze Heder com or­
1945-1949 Vive na Suíça. questra, cento e quarenta com piano.

Picasso, Mulher ao bandolim (1913).


O SÉCULO DAS METAMORFOSES 258

As correntes nacionais As escolas nacionais surgidas no século


X I X ganham no século X X novo alento. Como mostra o musicó­ ISAAC A L B É N I Z aluno de D'Indy e Dukas) e Lon­
logo romeno Constantin Brãiloiu, o mundo sonoro aberto por
Carnprodon (Catalunha), 20 de maio de 1860 dres (1891-1893).
Cambo-Ies-Bains (Bayonne, França), 18 de maio

Debussy é mais favorável ao desabrochar das melodias populares de 1909 1893-1909 Faz de Paris, até o fim
da vida, sua residência principal.
do que à harmonia tonal e às formas clássicas. Além disso, o es­
1864 Aos quatro anos, dá seu pri­ Dessa época datam todas as suas
tudo folclórico se desenvolverá sob o impulso de Béla Bartók e obras importantes. Faz amizade
Zoltan Kodály (1882-1967), que publicam em 1906 sua primeira meiro recital de piano em Barcelo­
na (teatro Romea): é um tal prodí­ com Fauré, Debussy, Chausson e
coletânea de canções camponesas. Mais tarde, Bartók notará e Dukas. Sua música é tocada com
gio, que os ouvintes suspeitam tra­
gravará em rolos fonográficos cerca de dez mil melodias popula­ freqüência na Société Nationale.
tar-se de uma trapaça. Dois anos
res, húngaras, eslovacas, romenas, ucranianas, servo-croatas, búl­ Ensina piano na Schola cantorum,
depois, apresenta-se em Paris, on­
garas, turcas, árabes (no Sul argelino), trabalho de uma amplitu­ de tem aulas com Marmontel.
onde Déodat de Séverac é seu alu­
de e de uma qualidade científica sem precedentes. As correntes no. Morre aos quarenta e nove anos
nacionais, ligadas outrora aos irredentismos do período após 1848, 1867-1873 Estudos no Conservató­ de nefrite crônica (mal de Bright),
apóiam-se cada vez mais no conhecimento aprofundado de um rio de Madri, tendo sido recusado uma das doenças de que Mozart te­
autêntico patrimônio, cujas características distintivas são assimi­ pelo de Paris devido à sua pouca ria morrido.
ladas por muitos compositores. idade.
1873- 1874 Aos treze anos, foge de obra Quatro óperas, dentre as quais
Espanha Contemporâneos de Debussy e de Ravel, os catalães casa, toca em várias cidades da Es­ Pepita Jiménez (Barcelona, 1896);
panha e embarca para Porto Rico, zarzuelas. Rapsódia espanhola e
Isaac Albéniz (1860-1909) e Enrique Granados (1867-1916), e os
dando concertos para pagar a pas­ Catalunha para orquestra. Nume­
andaluzes Joaquín Turina (1882-1949) e Manuel de Falia (1876¬
sagem e a estada. Seu pai, em mis­ rosas peças para piano, dentre as
1946) estabeleceram o prestígio internacional da escola espanho­
são em Cuba (é inspetor da Alfân­ quais as suítes ou coletâneas: Cata­
la realizando, cada um a seu modo, a síntese entre o patrimônio dega), encontra-o e finalmente au­ lunha, Ibéria, Suíte espanhola, Can­
nacional revelado por Pedrell e as novas tendências da música toriza-o a continuar seu caminho tos de Espanha, Espanha.
francesa. Todos eles viveram na Paris da Belle Époque e, com até os Estados Unidos. Ao voltar,
exceção de De Falla, aí fizeram uma parte de seus estudos. Tra­ apresenta-se em Liverpool, em Lon­
zem aos franceses maravilhados uma música bem diferente de dres e chega a Leipzig, onde conse­ MANUEL DE F A L L A
Cádiz, 23 de novembro de 1876
Carmen, da España de Chabrier ou da Sinfonia espanhola de gue ingressar no Conservatório. Alta Gracia (Argentina), 14 de novembro de 1946
Lalo. 1874- 1875 Aluno de Reinecke em
Nos quatro volumes de Iberia (1906-1909), sua obra-prima Leipzig. Era levantino por parte de pai (ori­
e um dos pontos altos do repertório pianístico moderno, Albé­ 1876 Aluno de Gevaert em Bruxe­ ginário de Valencia), catalão por
niz aplica a técnica mais elaborada até então conhecida. Mais las, onde se distingue por sua má parte de mãe e andaluz de nasci­
ainda que Ravel, ele é o continuador de Liszt, de quem foi alu­ conduta. mento. De saúde frágil, o jovem De
no e que acompanhou a Budapeste, Weimar e Roma. Em com­ 1877 Curta estada em Nova York. Faha fica em casa, onde sua edu­
paração com essa personalidade poderosa, Granados parece um 1878-1880 Tem aulas com Liszt, cação geral é confiada a uma mes­
mestre menor. Mas não podemos resistir ao fascínio de suas ad­ acompanhando-o a Budapeste, Wei­ tra. Sua mãe, excelente pianista
miráveis Goyescas, que evocam os aíreseos de San Antonio de mar e Roma. Depois disso, faz uma amadora, encarrega-se de sua edu­
turnê pela Europa e outra nos Esta­ cação musical.
la Florida e a arraia-miúda imaginada por Goya num ambiente
dos Unidos. 1890-1896 Freqüentes viagens a
de zarzuela. Essa suíte pianística, como a de Albéniz, refere-se
1883 Casa-se com Rosina Jordana. Madri, onde tem aulas de piano
a uma Espanha mais sonhada do que vivida. Turina, em com­ Excelente marido, põe subitamen­ com José Trago. Primeiras apresen­
pensação, é um puro músico andaluz, que encontrou a alma te fim a seu modo de vida aventu­ tações públicas.
de seu país natal, para lá do pitoresco fácil e do inevitável "mo­ reiro. Está com vinte e três anos. 1896-1904 A família se instala em
do andaluz": 1885-1893 Instala-se com a família Madri. De Falia ingressa no Con­
cadenee sucessivamente em Madri (1885, pa­ servatório, onde é aluno de Trago
ra ensinar piano), Paris (1889-1890: (piano) e Pedrell (composição).
De Falla e Massine,
no Alhambra de Granada.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 260 261 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES

Pedro, representado em 1923 no palácio da princesa de Polignac,


1905-1907 Concertos em várias ci­ grande festival de cante jondo. Cria à aõrniração pública, transportam- que o encomendara.
dades da Espanha. Premiado pela em 1925 em Sevilha a Orquestra Bé- no para Buenos Aires, depois para
Nesta última obra, De Falia realiza pela primeira vez seu ideal
Academia por sua ópera La vida tica de Cámara. Rege a primeira Cádiz, onde é enterrado em 9 de ja­
de pureza com uma perfeição exemplar. A simplicidade, a orques­
breve, sua primeira obra importan­ apresentação do Retábulo de mes­ neiro de 1947 na cripta da catedral,
te. Luta em vão para montá-la. tre Pedro, em Sevilha e Paris após uma nova cerimônia grandio­ tra reduzida, com seu cravo preciso e reservado, a salmodia com
1907-1914 Domicilia-se em Paris. (1923). Wanda Landowska execu­ sa (cantaram desta vez o Officium algumas hotas não geram nem secura, nem frieza, mas um hu­
Viagens pela França, Bélgica, Suí­ ta a primeira audição de seu Con­ Defunctorum de Victoria). mor e uma ternura incorpóreos. O comovente hino de Dom Qui­
ça, Alemanha, Inglaterra. Encon­ certo para cravo em Barcelona xote a Dulcinéia poderia muito bem ser uma homenagem à Vir­
tra-se com Ravel, Viñes, Dukas, (1926). Mas, a partir de 1930, dis­ obras Duas óperas: La vida breve gem, e o relato do Turgimão (soprano) evoca a tagarelice inocen­
Debussy, Albéniz. Fica gravemen­ túrbios nervosos imobilizam-no ca­ (Nice, 1913) eElretablo deMaesePe- te desses herdeiros dos jograis que percorriam ainda recentemen­
te enfermo em 1912 e atravessa uma da vez mais em Granada. Duas lon­ dro (Sevilha, 1923). A ópera-oratório te as aldeias de certas regiões da Espanha e da Itália meridional
crise religiosa. Seus esforços para gas estadas em Majorca não produ­ La Atlantida (terminada por Haiff- para apresentar, com marionetes ou alguns acessórios, ingênuas
montar La vida breve só têm êxito zem a melhora esperada. ter, Milão, 1962). Soneto a Córdoba canções de gesta audiovisuais. Extraído do Dom Quixote de Cer­
em 1913, quando a obra estréia em 1939-1946 Vai à Argentina para para voz e orquestra; Psyché, para vantes (II, 26), o tema do Retábulo põe em cena o teatro de ma­
Nice. Composição das Sete canções dar concertos; instala-se na casa da voz e 5 instrumentos; Siete canciones
rionetes de Mestre Pedro (Maese Pedro). No pequeno palco, Me-
populares. irmã em Buenos Aires, depois em populares españolas. Dois balés: El
Alta Gracia. Está continuamente amor brujo (Madri, 1915) e El som­
lisandra é raptada pelos mouros, apesar da proteção dos cavalei­
1915-1920 Vive principalmente em
doente e sua situação financeira é brero de tres picos (Londres, 1919). ros, enquanto uma criança, o Turgimão, comenta a cena num tom
Madri, onde funda a Sociedad Na­
desastrosa. Morre de uma crise car­ Homenajes para orquestra; Noches de salmodia agitada. Dom Quixote assiste ao espetáculo, que in­
cional de Musica. Fracasso de El
amor brujo em Madri. Sucesso de díaca em 14 de novembro de 1946. en los jardines de España, para pia­ terrompe várias vezes com seus comentários, e de repente, con­
El sombrero de tres picos em Lon­ Apesar do seu desejo de ser enter­ no e orquestra; concerto para cravo fundindo a ficção com a realidade, lança-se em socorro da bela,
dres (Balés Russos de Diaghilev). rado com simplicidade, fazem-lhe e 5 instrumentos. Para piano: Qua­ destroçando os bonecos do infeliz Mestre Pedro.
1920-1939 Instala-se em Granada. no dia 19 um funeral magnífico em tro peças espanholas, Fantasia boé- Depois do Retablo, De Falia parece ter ficado estéril. Dis­
Até 1930, viaja muito: Paris sobre­ Córdoba, ao som do "relato do tica e Para o túmulo de Paul Dukas. túrbios nervosos, somados à fragilidade da sua constituição, vão
tudo, Londres, Zurique, Bruxelas. pescador" de El amor brujo; é em­ Para guitarra: "Homenaje"para o tornar-lhe o trabalho difícil e penoso. Ele se destrói lentamente.
Organiza com Lorca, em 1922, um balsamado, seu corpo é exposto túmulo de Claude Debussy.
Mas, em 1926, apresenta uma composição importante, que al­
guns consideram uma obra-prima: o Concerto para cravo e cin­
co instrumentos, obra em que a aridez, a aspereza instrumental,
Em seus aíreseos sinfônicos e em seu Canto a Sevilla, para sopra­ o desafio ao prazer musical só podem despertar uma fria admi­
no e orquestra, evoca os jogos de sombra e luz com uma sensibi­ ração. Durante os vinte últimos anos da sua vida, tendo chega­
lidade quente, delicada e um tanto austera. Seu amigo, o poeta do ao desprendimento metafísico de um Juan de la Cruz, é ab­
andaluz Manuel Machado, celebrou essa música comovente no sorvido pela edificação do que considera a sua grande obra, uma
poema Turina Canta. espécie de ópera-oratório dedicada à glória da Espanha e do
Manuel de Falla é o maior músico que a Espanha conheceu cristianismo, mas interrompe incessantemente seu trabalho, que
desde Victoria, o mais autêntico e mais interiormente espanhol. parece impressioná-lo e que ficará inacabado. Essa obra é La
Ele assimilou em profundidade as características essenciais da mú­ Atlantida, que permaneceu desconhecida e misteriosa durante
sica andaluza e da antiga música religiosa de seu país, antes de longos anos, até que um amigo de Debussy, o maestro Ernesto
se dotar de um estilo bastante original, mais sóbrio, mais intenso Halffter, conseguiu completar sua partitura. A estréia no Scala
e mais rigoroso do que o de seus compatriotas. De Falia era uma de Milão em 1962, precedida por uma audição parcial em Bar­
espécie de santo, que adotara a disciplina ascética de um eremita. celona em 1961, será uma decepção, apesar da beleza hierática
Mas essa ascese só tardiamente encontra eco em sua música. Ela dos coros e da elevação sobrenatural de algumas árias. De Falia
não inspira suas quatro obras-primas: Sete canções populares es­ sem dúvida alcançou o mundo espiritual dos grandes místicos
panholas (1914), El amor brujo (1915-1916), que extravasa sen­ espanhóis, o que pode explicar que tenha parado de acreditar
sualidade, El sombrero de tres picos ("O tricornio", 1917-1919), na sua arte.
fogo de artifício de ironia alegre, claro, tonai, exuberante, sem
A escola espanhola é exemplar. Ela cultiva raramente o pito­
paixão nem ambigüidade, e enfim o maravilhoso Retablo deMaese
resco sem valor e se interessa muito mais pelas raízes do folclo-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 262 263 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES

re do que por suas flores. Até os nossos dias, seus melhores re­ de um atonalismo ampliado que repousa numa escala em quartos
presentantes extrairão uma inspiração forte e original na rica cul­ de tons.
tura de seu país, ainda que sua técnica de composição se aparente
às tendências seriais ou pós-seriais, sem nenhuma relação com a Outras escolas nacionais A influência de Bartók sobre as esco­
música nacional tradicional. las nacionais será capital; ela retardará o declínio destas. Voltarei
a esse grande compositor, que domina não só a escola húngara
Tchecoslováquia Só na Europa Central encontramos correntes com seu amigo Kodály, mas toda a criação musical entre as duas
nacionais de tamanha riqueza e continuidade. A escola tcheca guerras. Na mesma geração, o polonês Karol Szymanowski
(mais exatamente, morávia) é dominada, no princípio deste sé­ (1882-1937) e o romeno Georges Enesco (1881-1955) tiveram êxi­
culo, pela forte personalidade de Janácek. Embora nascido em to particular na síntese de um patrimônio nacional com as novas
1854, quatro anos antes de Puccini, sua carreira tardia e a ousa­ aquisições musicais ocidentais. Homem excepcional por seus dons
dia de seu estilo vinculam-no a nosso tempo. Mas escapa das artísticos e pela nobreza de seu caráter, Enesco foi um grande com­
classificações, como escapou da influência de seus mais ilustres positor, cujas mais belas obras, em particular a ópera Édipo (Pa­
contemporâneos: Puccini, Mahler, Debussy, R. Strauss. Seu es­ ris, 1936) e a terceira Sonata para piano e violino, mereceriam uma
tilo bastante pessoal está ligado a duas idéias fundamentais: a vasta difusão. Sua tríplice carreira de violinista, pianista e regen­
subordinação da harmonia ao ritmo e a das formas melódicas te infelizmente eclipsou a de compositor. Embora tenha escolhi­
à entoação da linguagem falada. Sua harmonia, audaciosa e in­ do viver em Paris, onde foi aluno de Fauré, a obra de Enesco,
dependente, é determinada pelas características modais da músi­ pouco numerosa, mas irrepreensível, é impregnada de um rico fol­
ca popular morávia. Empírica e funcional, ela é essencialmente clore romeno transcendido . 18

expressiva, em particular no emprego dramático das dissonân­ No início do século, a música russa permanece sob a influên­
cias; também podemos notar que ela é tanto mais móvel e tensa cia de Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov e dos últimos românticos
quanto menos o ritmo o é. Em suas óperas, que estão entre as alemães. Depois da revolução, a moda é um certo "naturalismo",
obras-primas do teatro musical moderno, Janácek adota um es­ em que a imitação dos barulhos das máquinas e a adoção de uma
tilo melódico baseado não apenas nas características específicas harmonia mais dissonante definem um novo modernismo. Ape­
da canção morávia, mas também na acentuação da ünguagem sar de uma rica tradição musical, religiosa e popular, apesar do
autóctone. Ele observa com atenção o falar da gente simples exemplo brilhante de Mussorgsky, a escola russa do século X X
(crianças e camponeses, em particular), que foi o mais bem pre­ não produzirá nenhum grande músico antes de Prokofiev, com
servado das influências exteriores, e esforça-se por notar suas exceção de Stravinsky. Serguei Rachmaninov (1873-1943), Niko­
inflexões, como se esforça por notar os risos, os choros, os ba­ lai Miaskovsky (1881-1950) e Reinhold Glière (1875-1956) perma­
rulhos da natureza, o canto dos pássaros. Esse estilo se encontra neceram fiéis à estética de Tchaikovsky e parecem ter ignorado
em outras composições vocais, não raro até na música instru­ o caminho aberto por Debussy desde 1894. Com exceção de Gliè­
mental, em particular nas obras-primas que são a coletânea Zá- re, cujos trabalhos sobre a música popular da Ucrânia e do Azer­
pisnik zmizelého (Diário de um desaparecido) para tenor, con­ baijão são uma referência, e de alguns de seus alunos (dentre os
tralto, coro feminino e piano, a suíte para piano V mlhách (Na quais Prokofiev), os compositores russos não assimilaram as ca­
, bruma) e o segundo quarteto (ver p. 340). racterísticas específicas do folclore, para daí deduzir uma escrita
Costuma-se esquecer que Janácek foi um pioneiro da et­ musical nova, original e audaciosa. Em vez de integrarem uma
nologia musical. De 1888 a 1903, recolheu numerosas canções cultura, eles se limitaram na maioria das vezes a falsear suas apa­
morávias, publicou coletâneas de harmonização e estudos sobre rências. O emprego de temas populares — mais ou menos desfi­
o folclore e a linguagem de seu país. É principalmente nesse do­ gurados pela notação — em composições ambiciosas sustentará um
mínio que esse isolado exerceu uma influência sobre as gerações
seguintes, suscitando em inúmeros músicos uma curiosidade pe­
18. O estudo das tradições musicais populares adquiriu na Romênia uma am­
la música popular. Depois dele, as personalidades mais salien­
plitude e uma qualidade notáveis. O Instituto do Folclore Romeno de Bucareste
tes da escola tcheca serão Bohuslav Martinu (1890-1959), cujo é não só um dos mais ricos da Europa em instrumentos e documentos de todos
classicismo sedutor e prodigiosamente fecundo é influenciado os tipos, como conseguiu manter no país a criação espontânea de novas canções,
por Roussel e Stravinsky, e Alois Hába (1893-1973), apóstolo transmitidas por tradição oral como as do passado.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 264 265 Λ MARGEM DAS GRANDES CORRENTES

formalismo ainda mais factício por se pretender fiel a uma "rea­ bizantina são irredutíveis às escalas fundamentais do sistema to­
lidade" soviética inacessível. nai. As escolas nacionais se desenvolverão com dificuldade, à
Em outras regiões da Europa, inúmeros bons músicos culti­ medida que se organizará a vida musical (conservatórios, ópe­
vam um estilo baseado nas tradições nacionais, diversamente as­ ras, sociedades filarmônicas, corais, edição musical). No entan­
similadas. Mas não encontramos nos contemporâneos de Debussy, to, formadas tarde demais, com bases teóricas frágeis e princí­
Ravel, Schönberg e Stravinsky personalidades musicais de primei­ pios estéticos ultrapassados, serão caducas antes de terem che­
ríssimo plano, por maiores que sejam o talento e a originalidade gado a seu apogeu, quando, a partir de 1960, alguns jovens mú­
de Ralph Vaughan Wilhams (1872-1958), o maior compositor in­ sicos adotarão os métodos da nova música. A composição ana­
glês desde Haendel, do sueco Wilhelm Stenhammar (1871-1927), lítica de uma música de caráter "folclórico", baseada nas escalas,
do italiano Gian Francesco Malipiero (1882-1973) ou do dinamar­ nos ritmos, nas formas e nos instrumentos tradicionais, tal co­
19
quês Carl Nielsen (1865-1931). Até meados de nosso século, um mo se praticou principalmente na Bulgária , é uma orientação
neoclassicismó mais ou menos folclorizante sucedeu em muitos fecunda. No entanto, seria necessário ir mais longe e conceber
países a um pós-romantismo apimentado com harmonias debussys- um sistema coerente, combinado com um método de composi­
tas e ravelianas. ção particular, que fosse a expressão do patrimônio e seguisse
Raríssimos são os músicos que, a exemplo de Janácek e a evolução geral das músicas eruditas. Onde existe uma tradição
Bartók, forjaram uma linguagem musical nova, partindo da aná­ popular rica e original, suas características essenciais devem sus­
lise metódica das formas melódicas, dos ritmos, das escalas do citar uma estética avançada, na corrente do pensamento musical
folclore nacional e de seu próprio espírito. Privadas de sua ins­ contemporâneo. Mais uma vez, o exemplo de Bartók é funda­
trumentação ou de sua emissão vocal característica, obrigadas mental.
Ralph Vaughan Williams.
a se dobrarem aos modelos rítmicos da música "erudita" e à
sua escala temperada, envoltas numa harmonia que lhes é estra­ Américas O continente americano liga-se musicalmente à Euro­
nha, as melodias populares maquiadas e endomingadas são uti­ pa. O desaparecimento das civilizações autóctones priva-nos de
lizadas como selo de autenticidade. A fertilidade desse folcloris- tradições musicais de que encontramos apenas o eco nos raros fol­
mo elementar é limitada, porque ele opõe uma resistência à evo­ clores preservados das influências ocidentais ("reservas" da Amé­
lução dos estilos e das técnicas de composição. Por não haver rica do Norte, Andes centrais, alta Amazônia). Apesar de uma
tomado consciência disso, as escolas nacionais condenaram-se mistura de povos favorável à eclosão de culturas originais, ape­
a um academismo fatal; depois de Bartók, os maiores com­ sar da animação da vida artística nas grandes cidades das três Amé­
positores serão cosmopolitas, com raríssimas exceções (inspi­ ricas, não se formaram escolas nacionais tão originais e fecundas
ração russa de Prokofiev, brasileira de Villa-Lobos, francesa quanto as da Europa. Manuel Ponce (1882-1948), seu aluno Car­
de Poulenc, inglesa de Britten, grega de Xenakis, espanhola de los Chávez (1899-1978) no México e Heitor Villa-Lobos (1887¬
1959) no Brasil são os compositores mais notáveis da América La­
Ohana).
tina. Eles souberam forjar estilos originais assimilando a música
Os países dos Bálcãs encontram-se numa situação particular.
tradicional de seus respectivos países. A audição em Paris dos Cho­
Submetidos à dominação otomana depois do desaparecimento do
ros de Villa-Lobos, "nova forma de composição musical que sin­
Império bizantino (queda de Constantinopla, 1453), são alijados
tetiza as diferentes modalidades da música brasileira, indígena e
da Europa cultural por mais de quatro séculos, até o Congresso
popular", fez sensação.
de Berlim de 1878. Então, a Bulgária, a Grécia, os países da fede­
Charles Ives (1874-1954) é a maior figura da música ianque
ração iugoslava e a Albânia saem de uma interminável Idade Mé­
e, sem dúvida, uma das mais singulares. Seu primeiro ancestral
dia, nas dificuldades de que se sabe, e se abrem pouco a pouco
americano, o capitão William Ives, desembarcou na Nova Ingla­
à cultura ocidental. Suas únicas tradições musicais são populares
terra em 1635 e fixou-se no Estado do Connecticut, onde Charles
e litúrgicas.
Esses países farão lentamente o aprendizado da música "eru­ ι
dita" nas formas e no estilo do romantismo declinante, esforçan­ 19. O folclore búlgaro é de uma riqueza extrema. Ele utiliza uma variedade
de escalas modais, de ritmos ordenados em compassos irregulares (5/8, 7/8, 8/8,
do-se por integrar a esse mundo sonoro estrangeiro seus patrimô­
11/8), de instrumentos tradicionais e uma emissão vocal característica, em que
nios melódicos, o que não se dará sem dificuldade, pois a maio­ reside seu encanto e sua originalidade. É uma música popular elaboradíssima, cu­
ria das escalas utilizadas no folclore dessas regiões e na liturgia j a tradição é mantida por conjuntos de rara qualidade. Villa-Lobos.
267 À MARGEM DAS GRANDES CORRENTES

nasceu. Seu pai, músico estimado da cidadezinha de Danbury, era Ives, Three Places in
um experimentador audacioso: fazia a família cantar em várias N e w
England (in), 1914.
tonalidades ao mesmo tempo, ou fazia duas bandas desfilarem
ao som de músicas diferentes, enquanto uma terceira tocava ou­
tra coisa do alto do campanário! Esse exemplo fez do jovem Ives,
antes dos'vinte anos, um compositor absolutamente não-confor-
mista, e o meio provinciano deu-lhe o gosto pelos hymn-tunes pres­
biterianos, pelas canções da guerra civil, pelas marchas rnilitares...
A conjugação desses gostos produziu uma das músicas mais ori­
ginais de nosso tempo, absolutamente independente de todas as
correntes contemporâneas. Puro autodidata, Ives preserva sua in­
dependência vivendo apartado do mundo musical e desvinculan­
do sua arte de qualquer preocupação econômica. De fato, desde
1898, ao sair da Universidade, ele se orienta para o mundo dos
negócios e irá tornar-se um dos maiores agentes de seguros dos
20
Estados Unidos .
Ives foi um pioneiro único em seu gênero. Com efeito, não
sofreu nenhuma influência, por não ter tido contato com a atua­
lidade musical, e exerceu pouquíssima, pois suas obras raramen­
te foram executadas e sempre tardiamente. Sua notoriedade in­
ternacional começa por volta de 1950, ao passo que cessou de com­
por desde 1928. No entanto, utilizou a pohrritmia e a politonali­
dade desde 1894 (Salmo 67); em 1903, escreve a primeira de suas
Three quarter-tone pieces (1903-1924), para dois pianos afinados
em quartos de tom; antecipa as "formas abertas" em 1911 numa
obra de interpretação variável (Hallowe'en, para quarteto de cor­
das e piano); emprega clusters* no piano a partir de 1916; encon­
tramos até mesmo esboços de organização serial do total cromá­
tico em seus Tone roads (1911-1915). A essas audácias se justa­
põem ou sobrepõem hinos patrióticos, cânticos ou temas de ro­
manças sentimentais, tratados da maneira mais ingenuamente
"kitsch". Certas partituras, pela multiplicação complexa das ci­
tações e das justaposições de idéias, elevam a técnica da "cola­
gem" à grande arte. As obras-primas desse gênio ignorado, exa­
to contemporâneo de Schönberg, são a Concord sonata para pia­
no (1909-1915), as Three places in New England para orquestra
(1903-1914) e a monumental Quarta sinfonia para três orquestras
(1910-1916). O ouvinte não prevenido as dataria de pelo menos
vinte anos depois, mas não hesitaria em atribuí-las a um autênti­
co americano.

20. Os escritos em que ele expõe sua filosofia dos seguros tornaram-se uma
referência para os profissionais do ramo.
INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM
1918-1940 Após o drama do primeiro conflito mundial, que
freou o desenvolvimento universal do espírito inovador, a gera­
ção do pós-guerra, arrastada num turbilhão de prazeres, mani­
festou uma reação de insolencia estética, no fim das contas bas­
tante natural... Mas, à distância, o período entre as duas guerras
parece-nos pobre. Ele evoca irresistivelmente um neoclassicismo
provocador, alegremente recheado de notas desafinadas, cuja mo­
da lança sombras sobre as ricas concepções de Bartók, Webern
21
ou Varèse, tardiamente reveladas ao grande público .
A produção musical é abundante e não faltam compositores
de grande talento, mas o pensamento musical é indigente. De um
ponto de vista histórico, esse período aparece como um parêntese
na progressão das grandes correntes musicais. Os músicos segui­
dores da moda substituem a reflexão séria que a efervescência ar­
tística do momento deveria inspirar pelos partis pris de panelinhas,
pela investigação às cegas dos meios de expressão, não raro pelas
infantilidades e pela mistificação. O esnobismo consiste em privi­
legiar o insólito e manter a confusão dos valores estéticos. Todo
o mundo se extasia diante da mais inocente composiçãozinha em
dó maior, contanto que seja acompanhada em dó# ou em fá#,
e apresenta-se como a última moda da audácia o casamento do
music-hall com os estereótipos neoclássicos... enquanto o admi­
rável Anjo de fogo de Prokofiev (1927) espera em vão uma repre­
sentação (a estréia só acontecerá em 1955).
Uma breve cronologia dará uma idéia das obras-primas com­
postas por alguns músicos de primeira grandeza durante os vinte
anos que separam as duas guerras mundiais, anos loucos e amiú-
de trágicos, que são os do surrealismo e dos grandes clássicos do
cinema, do foxtrote, da radiotelefonía, do correio aéreo, do fas­
cismo, da Terceira Internacional... O grande público só desco­
brirá a partir de 1945 muitas dessas obras-primas, principalmen­
te as da escola vienense, de Bartók, de Varèse, de Prokofiev e,
é claro, da geração de Jolivet e Messiaen, que não terão quarenta
anos em 1945.

1918 Estréia do Castelo de Barba-Azul de Bartók em Budapeste.


— História do soldado de Stravinsky.
1919 Estréia do Tricornio de De Falia em Londres (Balés Russos).

21. Por muito tempo, n ã o se consegue encontrar na F r a n ç a a música editada


nos países germânicos, pois os comerciantes patriotas se recusam a e n c o m e n d á -
la! Assim, n ã o podemos conhecer Bartók e os músicos da escola vienense publi­
cados pela Universal Edition (Bartók se queixa disso em novembro de 1921, nu­
ma carta a Poulenc).
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 270 271 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM

22
1920 Primeira audição de La valse de Ravel, nos concertos La- e o Arlequim] , coletânea de aforismos espirituosos que preten­
moureux. de ser um manifesto ou um catecismo da jovem música. Há al­
1921 Estréia de O amor das três laranjas de Prokofiev em guns anos, Cocteau se multiplica nos cenáculos literários e nos
Chicago. cafés artísticos. Conhece todo o mundo e torna-se um hábil ne­
— Primeira audição no teatro de Jorat (Suíça) do Rei Davi de gociador de encontros férteis. É amigo de Picasso, Stravinsky, Sa­
Honegger. tie, Diaghilev, Max Jacob, Apollinaire, Blaise Cendrars e de um
1923 Estréia de Les noces de Stravinsky em Paris (Balés Russos). grupo de jovens compositores, os futuros "Seis", que apresen­
— Estréia do Retábulo de Mestre Pedro de De Falla em Paris. tam suas obras no Vieux-Colombier, por iniciativa da admirável
— Primeira apresentação de A criação do mundo de Milhaud em cantora Jane Bathori (ao partir para os Estados Unidos em 1917,
Paris (Balés Suecos). Copeau lhe confiara a direção de seu teatro). A um deles, Geor­
1924 Estréia de Les biches de Poulenc e de Les fâcheux de Au­ ges Auric, dezenove anos, é dedicado Le coq et l'Arlequin.
ric em Monte Carlo. — Quarteto de Fauré.
r Cocteau diverte-se loucamente, e nos divertiríamos tanto
1925 Estréia em Berlim de Wozzeck de Alban Berg (regência de quanto ele, se ele não acabasse levando-se a sério, ao querer de­
Kleiber). — Estréia de L'enfant et les sortilèges de Ravel em sempenhar o papel de guia e de mestre espiritual. Diletante as­
Monte-Carlo (direção de Sabata). — Primeira audição das Inte­ sombroso, sempre a par de tudo, joga com os paradoxos, lança-
grais de Varèse em Nova York (regência de Stokowski). se de uma idéia a outra numa série de saltos mortais e sempre acaba
1926 Estréia de Turandot de Puccini em Milão (Scala) (regência caindo sobre os pés, ou sobre as mãos. Mas não exprime outra
de Toscanini). — Estréia do Mandarim maravilhoso de Bartók coisa além das idéias de seu tempo; só que as exprime como poe­
em Colônia (composto em 1919). Suíte lírica de Berg. ta, sob formas imprevistas que as fazem parecer novas. Não é um
1927 Fim da composição de O anjo de fogo de Prokofiev (es­ profeta, nem mesmo um conselheiro, mas um porta-voz do ta­
tréia no teatro Fenice de Veneza em 1955). — Primeira audição lento, dotado de um savoir-faire infalível.
na Filadélfia de Arcana de Varèse, sob a regência de Stokowski. Entrou na história da música sonhando e consegue realizar
1928 Variações op. 31 de Schönberg e Sinfonia op. 21 de Webern. a impensável idéia de Parade persuadindo Picasso a comprometer-
1930 Estréia de Cristóvão Colombo de Milhaud na Ópera de Ber­ se com os Balés Russos e Diaghilev a confiar no velho anarquista
lim (regência de Kleiber). que é Satie. Fortalecido por essa experiência que musicalmente
1931 Segundo Concerto para piano de Bartók e os dois Concer­ satisfaz a seus desejos, sai em liça contra o sublime, denuncia "a
tos de Ravel. música a ouvir com a cabeça nas mãos", derruba os ídolos e re­
1933-1940 Emigração para os Estados Unidos de numerosos mú­ comenda a cada um que cante "em sua árvore genealógica". Os
sicos, diante da ascensão do nazismo: Schönberg e Eisler em 1933, músicos franceses devem precaver-se contra a retórica beethove-
Weill em 1935, Hindemith e Stravinsky em 1939, Bartók e Mi­ niana, as pesadas brumas wagnerianas, a garoa e a fluidez de-
lhaud em 1940... bussystas, assim como contra "essas músicas de entranhas, esses
1935 Primeira audição do Concerto para violino de Berg. — Na­ polvos de que você tem de fugir, senão eles te comem", a que
tivité de Messiaen, organista da Trinité desde 1932. -— Mana de ainda está vinculada a estética da Sagração; é preciso precaver-se
Jolivet. contra tudo o que não é a clareza francesa. "Viva o galo! Abaixo
1937 Primeira audição na Basiléia (regência de Sacher) da Mú­ o Arlequim!" +

sica para cordas, percussão e celesta de Bartok. — Estréia em Zu­ O antiwagnerismo não é mais uma novidade. Ele foi o apa­
rique de Lulu de Berg. nágio dos elementos mais conservadores do mundo musical no
1938 Primeira audição na Basiléia da Sonata para dois pianos fim do século passado. Mas "defender Wagner porque Saint-Saëns
e percussão de Bartok. — Alexandre Nevsky, filme soviético de o ataca é simples demais. É preciso gritar: Abaixo Wagner, e Saint-
Eisenstein, música de Prokofiev. Saëns com ele. Esta é a verdadeira bravura".
1939 Sexto Quarteto de Bartok. Quanto à estética de Pelléas, que se inscreve em reação con­
1940 Variações op. 30 de Webern. tra a hipnose de Bayreuth, ela é inaceitável, porque Debussy "to­
cou em francês, mas com o pedal russo"! Como se pôde levar
Cocteau Mas voltemos a 1918, ano da morte de Debussy e das
grandes batalhas que levaram ao armistício. Nesse ano, o jovem 22. Reeditado com vários ensaios de estética e de crítica, sob o título Rappel
poeta Jean Cocteau (1889-1963), animador dos saraus parisien­ à l'ordre [Chamada à ordem], Paris, 1926.
Francis Poulenc e Jean Cocteau. ses e pregador da nova arte, publica Le cog et l'Arlequin [O galo + Lembre-se o leitor que o galo é o símbolo da França. (N.T.)
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 272 273 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM

Cocteau e seus amigos — poetas, pintores, músicos — não


terão sentido a extraordinária liberdade que Debussy trazia? Mas
não é de liberdade que se trata. A insolência dos novos jovens
não é um movimento contestatario, mas uma "chamada à or­
dem"; não à ordem preparada por Schönberg, "músico de quadro-
negro", nem por Ravel, demasiado refinado, demasiado sutil, ain­
da preso aos sortilégios impressionistas, ao esfumado, ao pedal.
O que é necessário é uma ordem clara e objetiva: o contraponto
de Bach, a robusta franqueza de Chabrier, a simplicidade de Sa­
tie, a sadia estética do circo e do music-hall... Reclamam-se "obras
essencialmente construídas, equilibradas, desenhadas com um tra­
ço seguro e firme... uma orquestra sem a caricia das cordas, uma
rica banda de madeira, metais e bateria".
Em seu novo estilo (Renard, Mavra, História do soldado),
Stravinsky está no bom caminho. Enveredará ainda mais por ele
ao escolher o desenlace do "retorno a Bach". Será possível que
esse grande músico, tão perfeitamente senhor da sua arte, tenha
sofrido a influência de Cocteau, que pregava entre duas piruetas
o "retorno ao antigo"? Stravinsky é atraído pelo esnobismo, cu­
jo poder ele mede. Zeloso da posição magistral que a Sagração
lhe proporcionou, doravante sempre temerá perder o último trem,
seja este neoclássico hoje, amanhã neo-serial, e não mais exercer
sua ascendência sobre os jovens músicos.
Cumpre deixar claro que o neoclassicismo está no ar depois
da Primeira Guerra Mundial e não responde às palavras de ordem
de nenhum chefe de escola. Descobre-se essa reação ao romantis­
mo e ao impressionismo em Reger (Konzert im alten Stil, 1911), O Grupo dos Seis.
em Ravel (Tombeau de Couperin, 1917), em Prokofiev (Sinfonia D a esquerda para a direita: F . Poulenc,
G . Taiüeferre, L . Durey, J . Cocteau,
clássica, 1917), em Hindemith a partir dos anos 20, enfim nos jo­ D . Milhaud, A . Honegger
vens músicos franceses que gravitam no círculo de Cocteau. (sem G . Auric).

Stravinsky, Ragtime para onze instrumentos.

a sério semelhantes besteiras? Acaso alguém podia ser da opinião


de Saint-Saëns quando ele escrevia a Fauré, em 27 de dezembro
de 1915: "Eu o aconselho a ver as peças para dois pianos, Noir
et Blanc, que o sr. Debussy acaba de publicar. É inverossímil, e
cumpre a todo custo fechar a porta do Instituto a um senhor ca­
paz de semelhantes atrocidades; deve ser posto ao lado dos qua­
dros cubistas"? O mal, segundo Cocteau, está em que "Debussy
se afasta do ponto de partida colocado por Satie"! Essa maneira
de ver singular deve ter divertido um bocado o "bom mestre",
que, numa conferência pronunciada em 1920, gaba-se de ter ar­
rancado Debussy dos braços de Mussorgsky, sugerindo-lhe que
buscasse uma transposição musical do estilo "impressionista".
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 274 275 INSOLENCIA E CHAMADA À ORDEM

Os Seis Ligados pela amizade, estes últimos se associam habi­ Essa estética, oposta às correntes históricas, prestou um des­
tualmente para mostrar suas obras, no Vieux-Colombier ou em serviço aos melhores elementos do grupo. Milhaud, Honegger e
outro lugar, freqüentam os mesmos meios parisienses (Cendrars, Poulenc muitas vezes aviltaram seu talento por uma fidelidade su­
Max Jacob, Satie, o pianista Ricardo Viñes, Jane Bathori, Va­ persticiosa a certos partis pris da juventude. Como é possível se­
24
lentine Gross — futura senhora Jean Hugo —, Diaghilev, Marie guir Satie sem marcar passo , impor-se o "neo-ascetismo" de
Laurencin, os Beaumont, os Polignac), participam das festas or­ Stravinsky (como dizia Poulenc) sem definhar, ou inspirar-se no
ganizadas por seu amigo Cocteau, com o qual têm o costume de jazz sem caricaturá-lo? E, quando mais tarde se quiser livrar-se
se encontrar todos os sábados à noite. Eles se chamam Arthur Ho- de um estilo que parece fora de moda, será possível encontrar um
negger (1892-1955), Francis Poulenc (1899-1963), Georges Auric segundo alento sem uma vocação imperiosa?
(1899-1983), Germaine Tailleferre (1892), Louis Durey (1888-1979)
e Darius Milhaud (1892-1974). O último uniu-se ao grupo em 1919,
ao voltar do Brasil, onde fora secretário do ministro da legação ARTHUR HONEGGER
L e Havre, 10 de m a r ç o de 1892
da França, Paul Claudel. Paris, 27 de novembro de 1955

Certa noite, o compositor Henri Collet (1885-1951) tem a idéia Seu pai, importador, natural de Zu­
de contá-los, por ocasião de um concerto na pequena sala Huy- rique e estabelecido em Le Havre,
ghens em Montparnasse, e publica na Comoedia dois artigos inti­ e sua mãe, Julie Ulrich, excelente
tulados "Os cinco russos, os seis franceses e Erik Satie", depois pianista amadora, concorreram pa­
"Os seis franceses". Nem imaginava o sucesso que sua fórmula ra a vocação musical do filho. Ele
iria ter. Os membros do grupo afirmam que só têm em comum começou seus estudos musicais em
a amizade, mas compõem em colaboração um Álbum dos Seis (pe­ Le Havre e em Zurique, depois foi
ças para piano) e a partitura do balé de Cocteau Les maries de mandado para Paris.
la tour Eiffel (1921). Na ausência de um programa estético capaz 1912-1917 Aluno de Capet (violi­
de inspirar uma verdadeira ação comum, o grupo começa a se dis­ no), Widor (composição) e D'Indy -..·}• f u • 4ΥΛ / Ν
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sociar desde 1921. Durey, que não está unido aos colegas nem pe­ (regência), no Conservatório de Pa­
los gostos, nem pelo caráter, é o primeiro a se retirar — sua mo­ ris. Torna-se amigo de Darius M i ­
déstia, suas elevadas exigências morais, seu militantismo no par­ lhaud.
tido comunista afastaram-no da vida musical. Honegger, por sua 1918 Liga-se ao futuro Grupo dos
vez, logo se desligará: "Não cultuo nem o parque de diversões, Seis, sem compartilhar seu credo es­
nem o music-hall, mas, ao contrário, a música de câmara e a mú­ tético. Sua primeira obra importan­
sica sinfônica no que ela tem de mais grave e mais austero..." te, Le dit desjeux du monde, é apre­
sentada num concerto dos "Novos
Na prática, o Grupo dos Seis só terá vivido uns dois ou três Jovens", no Vieux-Colombier.
anos. Mas consegue desmitificar a "música erudita", consegue 1921 Le roi David é apresentado no 1929-1930 Turnês nos Estados Uni­ Claude Nollier e Jean Vilar em Jeanne
ensinar-lhe a inocência em contato com o circo, o music-hall, as Théâtre du Jorat, que o poeta Re­ dos e na América do Sul. au bûcher, na Ó p e r a de Paris.
máquinas, o esporte, a natureza... Para lá dos benefícios publici­ né Morax instalou numa granja em 1938 Na Basiléia, estréia no concer­
tários da fórmula, a corrente neoclássica lhe deve muito. Origi­ Mézières (Suíça): triunfo, que tor­ to de Jeanne au bûcher, oratorio cê­
nalmente, explica Poulenc, não era mais "que um agrupamento na conhecido em toda parte o no­ nico de Claudel, que só será mon­
de amizades, não de tendências. Depois, pouco a pouco, estabe­ me do jovem músico. tado no teatro em 1950 (Ópera de
leceram-se idéias comuns que nos ligaram de maneira muito ínti­ 1923 Escreve a música para o fil­ Paris). No mesmo ano, o poeta e o
ma, a saber: a reação contra o vago, o retorno à melodia, o retor­ me La roue de Abel Gance, primei­ músico trabalham em La danse des
23 ro esboço do que será, no ano se­ morts, inspirada na Dança macabra
no ao contraponto, a precisão, a simplificação, etc" . Trata-se,
guinte, Pacific 231: essa obra logo de Holbein, conservada na Basiléia.
como se vê, de uma estética algo reacionária, apesar da obstina­
será popular no mundo inteiro. 1939 Para o sexto centenário da
ção de uma parte da crítica em representar os Seis como uma es­ 1926 Honegger se casa com a pia­
pécie de esquerda musical. Confederação Helvética, Honegger
nista Andrée Vaurabourg, sua intér­ compõe a lenda dramática Nicolas 24. A influencia de Satie exerceu-se,
prete e ex-colega no Conservatório. sem que ele soubesse, sobre músicos de
de Flue. três gerações: a de Ravel, a dos Seis e
23. F . Poulenc, Entretiens avec Claude Rostand, Paris, 1954. a de John Cage (1912).
277 INSOLENCIA Ε CHAMADA Â ORDEM

1946-1947 Curso na Universidade Pausole (Paris, 1930). Oratorios cê­


de Lennox. Turné prevista pelos nicos, dentre os quais Le roi David
Estados Unidos e América Latina. (Mézières, 1921), Jeanne au bûcher
Uma crise cardíaca, de que Ho­ (Basüéia, 1938). Diversas obras co­
negger não se recuperará, a inter­ rais, dentre as quais Cantique des
rompe. Todavia continuará a com­ cantiques, Danse des morts e Can­
por até 1953 (Cantata de Natal, tate de Noël. Numerosas melodias
estreada na Basiléia por Paul Sa­ e Pâques à New York, para uma
cher). voz e quarteto de cordas. Catorze
1955 Sucumbe a urna nova crise balés. Numerosas músicas de cena
cardíaca, temida há muito. e de filme. Três "movimentos sin­
fônicos" (dentre os quais Pacific
obra Óperas, entre as quais Judith 231), cinco sinfonias, concertino
(Monte-Carlo, 1926), Antigone para piano, concerto para violon­
(Bruxelas, 1927) e Nicolas de Flue celo. Três quartetos de cordas, duas
(Neuchâtel, 1941). Três operetas, sonatas para violino e piano, peças
entre as quais Les aventures du roi para piano.
Arthur Honegger.
Desde o início, Honegger conseguiu preservar sua indepen­
dencia, graças à sua formação germânica e protestante. Nunca
superou o vigor e a originalidade de suas duas obras-primas de
juventude: Le roi David, oratório muito justamente popular, e
Horace victorieux, ação cênica injustamente esquecida. Foi gran­
dioso sempre que se entregou a seu lirismo grave, em que se
associam a forma clássica e a expressão romântica, principal­
mente na segunda e na terceira Sinfonias (para cordas e "Litúr­
gica"), em Nicolas de Flue, em Jeanne au bûcher e na Danse
des morts. Para estas duas últimas obras, a colaboração com
Claudel revelou-se mais conforme com o gênio do músico do
que a cumplicidade factícia com Cocteau, que rendeu a ópera
Antigone, (1927). Honegger pensou tirar uma obra-prima dessa
caricatura de Sófocles, que cede com uma secura pouco comum
à moda neo-antiga.
Infelizmente, esse músico generoso, a quem não falta nem
fôlego, nem nobreza, fez freqüentemente um esforço para se im­
pedir de cantar, suscitando obstáculos à sua inspiração: incursões
num atonalismo estranho à sua inclinação natural (Horace), su­
jeição ao sentido literal das palavras e a uma prosódia artificial
(Antigone), respeito pelas formas clássicas (música instrumental),
busca de simplicidade popular (Jeanne e Nicolas de Flue), sub­
missão a uma função (cinema, música de circunstância), acade­
mismo (suas últimas obras).
As melhores composições de Milhaud também são anterio­
res a 1930: a grande trilogia da Oréstia de Esquilo (1914-1922),
que hoje caiu num esquecimento escandaloso; os balés Le boeuf
sur le toit (1919-1920) e La création du monde (1923), modelos
de interpretação livre e inteligente das músicas negras da Améri-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 278 279 INSOLENCIA E CHAMADA À ORDEM

tro da legação da França no Rio. Aí Christophe Colomb (Berlim, 1930), canções. Numerosas suítes sinfô­
compõe Les Euménides (terceira Médée (Antuérpia, 1939), David nicas também; doze sinfonias; cin­
parte da Ores tie). Ao voltar para (Milão, 1955). Três óperas para co concertos e Carnaval d'Aix, pa­
Paris, descobre o jazz e une-se aos crianças. Catorze balés, dentre os ra piano e orquestra; dois concer­
• ;
w - "novos jovens", futuro Grupo dos quais L'homme et son désir (Pa­ tos para violino, dois para viola,
Seis. ris, 1921), Le boeuf sur le toit (Pa­ dois para violoncelo, outros para
1922-1940 Reservando para a com­ ris, 1920), La création du monde percussão, para flauta, para trom­
posição as sossegadas estadas em (Paris, 1923). Numerosas músicas bone, para harpa, para marimba,
Aix, viaja muito: Estados Unidos, de cena, dentre as quais o imenso etc; dezoito quartetos de cordas,
União Soviética, Inglaterra, Áus­ tríptico da Oréstia de Esquilo, na três sonatas para violino, duas so­
tria, Holanda, Itália, Portugal, Es­ tradução de Claudel: 1. Agamem­ natas para viola, duas sonatas pa­
panha, etc. non (comp. 1913/estréia em Paris, ra piano, várias suítes de peças
1925 Milhaud casa-se com sua pri­ 1927); 2. Les Choéphores (1915/ curtas para piano, Scaramouche e
ma Madeleine, com quem terá um Bruxelas, 1935); 3. Les Euménides Le bal martiniquais para dois pia­
filho, Daniel (1930), pintor. Made­ (1917-1922/Bruxelas, 1949); o con­ nos. (A obra de Milhaud é prati­
leine será tão excelente companhei­ junto: Berlim, 1963. Numerosas camente impossível de ser arrola­
ra quanto colaboradora (libretos de obras corais, sacras e profanas. da: o opus 400 estava superado em
Médée e de Bolivar). Cerca de duzentas melodias ou 1963).
1940-1947 As representações de
Médée na Ópera de Paris são inter­
rompidas pela chegada das tropas ca do Sul e da América do Norte, respectivamente; a ópera Chris­
Darius Milhaud. DARIUS MILHAUD
Marselha, 4 de setembro de 1892 alemãs. Milhaud parte para os Es­ tophe Colomb (1928, libreto de Claudel, estréia em 1930 em Ber­
Genebra, 24 de junho de 1974 tados Unidos com a mulher e o fi­ lim); o Carnaval d'Aix para piano e orquestra baseado no balé
lho. Instala-se em Oakland, perto Salade (1924-1926)... Algumas composições mais tardias também
Descendente de uma grande f amflia de San Francisco, onde é encarre­ podem figurar entre suas obras-primas, em particular o comovente
judaica do Comtat Venaissin, teve gado de ensinar composição no Service sacré, para a Hturgia judaica (1947) e a ópera David (Je­
uma infância feliz num meio propí­ Mills College. Mas continuará sem­ rusalém, 1954), maravilhoso livro de imagens repleto de inteligên­
cio a seu desenvolvimento moral e in­ pre sendo provençal. cia e de coração.
telectual. Seus dons precoces foram 1947-1974 Nomeado professor de
A fertilidade de Milhaud foi prodigiosa: mais de quinhentas
incentivados e fizeram-no aprender composição no Conservatório de
obras (algumas delas de grandes dimensões) em quase todos os
violino aos sete anos. Paris, volta à França e, até 1971, di­
gêneros, todas as formas, todas as combinações instrumentais. Po­
1902-1909 Liceu de Aix-en-Proven- vidirá seu tempo cada ano entre
Mills College e Paris. demos criticá-lo por acumular lado a lado o raro e o ordinário,
ce. Aos doze anos, é membro de um
1952 Viagem a Israel. o sério e o fútil. No entanto, o milagre de seu gênio é precisamen­
quarteto. Depois dos estudos secun­
1954 A ópera David estréia na for­ te a inesgotável espontaneidade, a alegria de criar, livre de qual­
dários, seus pais, que o destinam a
ma de oratório em Jerusalém. A quer forma de megalomania ou de auto-satisfação. Guardadas to­
ser violinista, mandam-no a Paris,
primeira encenação se dará no Scala das as proporções, Milhaud foi preservado, como Mozart, de to­
com o amigo Armand Lunel.
de Milão em 1955. das as doenças da inteligência e da sensibilidade. Já em 1922,
1909-1914 Aluno de Widor e Gé-
1963 Primeira encenação da trilo­ Schönberg rendeu-lhe essa homenagem ambígua: "Ele me parece
dalge no Conservatório de Paris
gia Orestie na Ópera de Berlim. ser o representante mais significativo das tendências atuais em to­
(início da amizade com Honegger)
1971 Último ano em Mills College. dos os países latinos." De fato, Milhaud tem horror do expres-
e, sobretudo, aluno particular de
Koechlin, a quem deve o essencial sionismo alemão e do dodecafonismo, muito embora tenha regi­
da sua formação. Em 1912, encon­ obra Uma dúzia de óperas, sérias do a primeira audição em Paris de Pierrot lunaire em 1922. Em
tra-se com Jammes e Claudel. geral, permanece preso a uma politonalidade franca, que não cor­
ou cômicas, dentre as quais Les ma­
1917-1918 Estada no Brasil como lheurs d'Orphée (Bruxelas, 1926), responde a uma afetação, mas a uma inclinação natural. Esse pro­
secretário de Paul Claudel, minis­ Esther de Carpentras (Paris, 1938), cedimento certamente não é a solução para os problemas coloca­
dos pela evolução dos métodos de composição, mas dá ao fervi-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 280 281 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM

lhar de idéias ora um ar de festa ou de fantasia debochada, ora Até cerca de 1940, ele se ilustrou nas espirituais piruetas que
uma trágica grandeza ou uma intensidade dolorosa. Cocteau preconizava, com êxitos tão felizes quanto Le bestiaire
de Apollinaire (1919), Mouvements perpétuels para piano (1919)
e o balé Les biches (1924). Mas, qualquer que seja o brilho de
certo número de peças instrumentais, dentre as quais o belo Con­
certo para órgão, o melhor Poulenc é o músico sacro, em que se
transforma por vocação a partir de 1936 (após uma peregrinação
a Notre-Dame de Rocamadour). As principais qualidades da sua
música são a espontaneidade da inspiração e a perfeição do esti­
Milhaud, Saudades do Brasil.
lo. Não lhe devemos nenhum enriquecimento da técnica musical,
Poulenc é um clássico sensível e antiacadémico, à maneira mas ele sempre alcança admiravelmente seu objetivo, quer se tra­
de Couperin, Scarlatti ou Ravel. Nada em sua música evoca a se­ te de comover, quer de seduzir.
cura do neoclassicismo convencional. Em vida, foi freqüentemente Germaine Tailleferre, autora do encantador baléXe marchand
considerado um músico menor; desde a sua morte, certos histo­ d'oiseaux (Balés Suecos, 1923), quase desapareceu da vida musi­
riógrafos dele fizeram o herdeiro de Victoria, Lassus, Montever­ cal, pouco depois de ter feito sua aparição sorridente, o que é pe­
di, Mozart e Mussorgsky! É, sem dúvida, um grande mestre me­ na. Georges Auric observou as recomendações de Cocteau com
nor, que por vezes atinge os píncaros, na segunda parte da sua exemplar fidelidade em seus balés Les fâcheux (1924) e Les mate­
carreira: Figure humaine (1943) para coro duplo com poemas de lots (1926). Mas aplicou-se tão bem em não ser levado a sério,
Eluard, Stabat Mater (1950), os admiráveis coros da ópera Dia­ que suas grandes obras, num estilo forte e atormentado (a partir
logues des carmélites (1953-1956). Sua originalidade não está na da Sonata emfá maior de 1932), são obstinadamente ignoradas.
audácia, mas na naturalidade, que lhe permite inventar um clas­ Sua reputação baseou-se sólidamente numa enorme quantidade
David de Milhaud no Scala, 1955. sicismo bem pessoal. de música para cinema de surpreendente diversidade, em particu-

FRANCIS P O U L E N C Balés Russos de Diagmiev, em Mon­ Boston, sob a regência de Charles


Paris, 7 de janeiro de 1899 te-Carlo. Münch.
Paris, 30 de janeiro de 1963
1927 Compra uma bela casa em 1963 Morte súbita, de uma crise car­
Paralelamente a seus estudos secun­ Noizay, Touraine, onde passará lon­ díaca.
dários, estudou piano com R. Viñes. gas temporadas.
1929 Primeira audição do Concert obra Dialogues des carmélites,
1915-1917 Conhece Milhaud, Satie, champêtre, por Wanda Landowska ópera (Milão, 1957); Les mamelles
Auric e Cocteau. e Monteux. de Tirésias, ópera-bufa (Paris,
1917 Apresenta uma surpreenden­ 1947); La voix humaine, monodra¬
1935 Encontro fecundo com a poe­
te Rhapsodie nègre, num concerto ma (Paris, 1959). Quatro balés, den­
sia de Eluard. Im'cio da sua colabo­
dos "Novos Jovens" no Vieux-Co¬
ração, como pianista, com o baríto­ tre os quais Les biches (Monte-
lombier.
no Pierre Bernac. Carlo, 1924) e os Animaux modèles
1918 É mobilizado na Defesa an­
1943 Compõe a cantata Figure hu­ (Paris, 1945). Música de cena e de fil­
tiaérea. Compõe Mouvements per­
maine, com poemas de Eluard. mes. Obras religiosas, em geral pa­
pétuels.
1948 Turné pelos Estados Unidos ra coro a capela (Missa, Salve Regi­
1919 Le bestiaire, a partir dos poe­
mas de Apollinaire. Formação do com Bernac. na, Stabat Mater). Cantatas profa­
Grupo dos Seis. 1950 Stabat Mater em memoria de nas, dentre as quais Le bal masqué
1921 Poulenc trabalha composição Christian Bérard. e Figure humaine. Mais de cem me­
com Koechlin. Viagens a Viena com 1957 Estréia de Dialogues des car­ lodias. Concert champêtreparacra-
Milhaud: encontro com Schönberg, mélites, baseado em Bernanos, no vo, Concerto para 2 pianos, Concer­
Berg e Webern. Scala de Milão. to para órgão, Aubade para piano
1924 Estréia de Les biches com os 1960 Primeira audição do Gloria em e 18 instrumentos, peças para piano.
283 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM

Hindemith reage contra a ênfase, a metafísica, as "mensagens"


extrínsecas, opondo-lhes a Gebrauchmusik (música funcional).
Recomenda "manobrar o piano como uma máquina" e busca
a objetividade numa polifonia mecânica, sem paixão, sem opo­
sição de idéias, sem sorriso. Suas múltiplas Kammermusiken são
representativas dessa estética impassível para músicos robôs. Mas
o compositor leva sua lógica ao absurdo na ópera Cardillac (1926),
em que se esforça por dar ao sangrento drama, tirado de um
conto de Hoffmann bem expressionista, uma música fria e l i ­
near, escrupulosamente inexpressiva e indiferente às situações dra­
máticas!
A partir de 1935 aproximadamente, período em que termi­
na a ópera Mathis der Maler (Zurique, 1938), sua obra-prima,
Hindemith adota um estilo mais nobre, que, sem renunciar à
escrita contrapontística, orienta-se para um neo-romantismo gran­
dioso e calculado, que as preocupações didáticas ou metafísicas
tornam pesado. Essa evolução é coroada pela enorme ópera Die
Harmonie der Welt (Munique, 1957), em que a complexidade
polifónica e a filosofía nebulosa desencorajam a mais vigilante
atenção.
Ferozmente hostil ao dodecafonismo, mas preocupado com
lograr a substituição do sistema tonai que julga artificial e cadu­
lar para René Clair (A nós a liberdade), Cocteau (todos os seus co, Hindemith arquiteta um sistema frágil, em que uma nova hie­
filmes), Delannoy (muitos), Clouzot (O salário do medo, Os es­ rarquia dos intervalos é embasada numa análise superficial da teo­
piões), Ophuls (Lola Montés), Huston (Moulin Rouge), etc. ria dos harmônicos. Essa análise, incompleta do ponto de vista
À geração dos Seis, cuja importância histórica e cuja in­ científico e filosófico, reedita a ingenuidade de Rousseau, para
fluencia internacional não se deve superestimar, pertencem dois quem a Natureza era a única justificativa razoável para uma teo­
compositores notáveis, que reagiram de maneira bem diferente ria estética. Exposto no primeiro volume (1937) de seu tratado Un­
à tendência neoclássica: o alemão Paul Hindemith (1895-1963) terweisung im Tonsatz, o sistema de Hindemith atribui aos acor­
e o russo Serguei Prokofiev (1891-1953). O primeiro se impõe des (dos quais nenhum é proscrito) um potencial dinâmico, defi­
sem rigor uma disciplina estética exclusiva e racional; o segundo
encontra na exatidão e no rigor intelectual as condições da sua
liberdade artística.
nido não mais dialeticamente em função de uma "regra do jo­
go", mas intrínsecamente pela natureza física dos acordes. O Lu-
dus tonalis para piano (doze interlúdios e fugas) pretendeu ser o
V
"Cravo bem temperado" do novo sistema. Mas Hindemith não
Hindemith Ao contrário de Schönberg, que pega o expressio- teve os meios intelectuais de sua ambição, que redundou em fra­ II I

nismo romântico em sua própria cilada levando-o às suas últimas casso. Era um verdadeiro clássico, como Bach, mas sem o gênio
conseqüências, Hindemith começa dando as costas ao romantis­ e a paixão deste.
mo e dele zombando. Na efervescência artística da República de
Weimar, logo adquire uma reputação ruidosa com pequenas obras Prokofiev Já Prokofiev tem apenas a modesta ambição de exer­
cênicas provocantes: o delírio erótico de uma freira (Sancta Su­ cer bem seu ofício e ter êxito nele. Sua inteligência viva e realista f
sanna), um hino aos aquecedores a gás (Neues vom Tage), ou um sugere-lhe os meios de ser compreendido pelo maior número, sem
motivo de Tristão para acompanhar uma marionete birmanesa cas­ abdicar da sua personalidade. Sua produção abundantíssima é de­
trada (DasNusch Nuschi) bastam para provocar escândalo. Por­ sigual, seu classicismo nem sempre evita o academismo. Mas al­
que a escrita musical nada tem de revolucionária, à parte as dis­ gumas obras-primas fizeram dele um dos grandes músicos de nosso
cordancias provocadas pela impassibilidade contrapontística e a tempo, e sua música é, de todo o grande repertório moderno, a
estridência dos instrumentos de sopro. Na música instrumental, mais próxima da sensibilidade popular. Essas obras-primas são Hindemith regendo.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 284 285 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM

as óperas O amor das três laranjas e O anjo de fogo, os balés Chut mopolitismo neoclássico na moda parece-lhe insuportável. Seu
e Romeu e Julieta, a música para Alexandre Nevsky de Eisens­ próprio classicismo é essencialmente lírico: ele canta em abundân­
tein, a Sétima sinfonia, a sétima Sonata para piano... cia com um incansável prazer.
A distinção de dois "períodos" na obra de Prokofiev — o Também não se adapta ao "pensamento" artístico stalinis-
ocidental e o soviético — é deveras artificial. Sua obra é homogê­ ta, guardado escrupulosamente pelo jovem e ortodoxo Tikhon
nea e profundamente russa; e, embora não introduza nenhuma Khrennikov (1913). Quando Prokofiev retorna a seu país em 1933,
novidade maior, é original o bastante para não ser confundida encontra sucessivamente um triunfo popular, sortido de honra­
com nenhuma outra. Ela brilha pela agradável franqueza das idéias rías oficiais, depois condenações da União dos Compositores
melódicas, pela clareza da polifonia e pelo irresistível dinamismo. (secretário-geral: Khrermikov) e do comitê central do partido (re­
Os desabafos sentimentais e as angústias metafísicas são alheios lator: Khrerinikov, deputado do Soviete supremo), e enfim de novo
a esse homem equüibrado, metódico, que trabalhava em horas as honrarías e os prêmios. Mas a irregularidade da sorte nunca
fixas, apaixonado pelas ciências e pelas técnicas, excelente no brid­ abalou sua personalidade artística. Gorki dissera que ele era " f i ­
ge e melhor ainda no xadrez (disputou vários torneios, notada- lho de cisne em meio aos patos".
mente contra David Oistrakh). Prokofiev não fez escola. Muitos imitaram seu estilo, sem
Quando desembarca nos Estados Unidos, depois em Paris, encontrar seu espírito. O maior compositor soviético depois dele,
é recebido, como Stravinsky na mesma idade, com a curiosidade Dimitri Chostakovitch (1906-1975), raramente escapa do confor­
que aqueles "jovens bárbaros" vindos das estepes podiam inspi­ mismo de um neo-romantismo grandiloqüente, apesar de seus dons
rar. Este pulveriza os teclados dos pianos de maneira tão maravi­ prodigiosos. Algumas grandes páginas são exceção, dotadas de
lhosa, que não se presta atenção em suas composições. Mas, ao um admirável alento dramático, particularmente a Décima e a Dé­
contrário de Stravinsky, Prokofiev não se adapta ao mundo mu­ cima quarta sinfonias, o Oitavo e Décimo segundo quartetos e a
sical do Ocidente. A música francesa não lhe interessa (salvo a magnífica cantata A morte de Stenka Razin. Grande parte dos
Serguei Prokofiev em 1910. de Ravel); a futilidade dos salões parisienses exaspera-o e o cos- músicos da sua geração sucumbiu ao folclorismo superficial de

SERGUEI SERGUEIEVITCH 1916 Rege sua Suíte cita em São


PROKOFIEV Petersburgo: Glazunov abandona
Sontsovka (Ucrânia), 23 de abril de 1891 ostensivamente a sala.
Moscou, 5 de março de 1953
1918-1922 Vive nos Estados Uni­
dos. Não emigra por convicção po­
Sua mãe, excelente pianista amado­ lítica (a revolução deixa-o indiferen­
ra, foi sua primeira professora. Aos te), mas para buscar calma. Atra­
seis anos, ele tocava bastante bem vessa a Sibéria, embarca em Vladi­
e compunha pequenas peças. vostok, dá três concertos no Japão
enquanto espera o visto americano,
1902-1903 Estuda composição com desembarca em San Francisco e vai
Glière, que passa o verão em casa diretamente para Nova York. Pri­
dos Prokofiev. meiro, constrói uma reputação de
1904-1914 Aluno do Conservatório pianista vigoroso, mas O amor das
de São Petersburgo: Liadov (com­ três laranjas triunfa na Ópera de
posição), Rimsky-Korsakov (or­ Chicago, dirigida por Mary Garden
questração), Tcherepnin (regência), (1921). É também em Chicago que
Essipova (piano). Suas primeiras Prokofiev executa em primeira au­
obras importantes são apresentadas dição seu terceiro Concerto, com
pela primeira vez em Moscou (den­ grande sucesso. Essas duas obras
tre as quais os dois primeiros con­ são massacradas pela crítica nova-
certos). iorquina, por hostilidade contra a
287 INSOLENCIA Ε CHAMADA À ORDEM

que falamos acima, sem ter sabido reconhecer os grandes exem­


plos de Janácek, Bartók, De Falia ou do Stravinsky de Les no­
ces, que lhes teriam permitido desenvolver uma diversidade de es­
tilos originais, extraindo a quintessência do inesgotável folclore
das repúblicas soviéticas.

Outros clássicos Após a grande renovação artística dos primei­


ros quinze ou vinte anos do século, a maioria dos compositores
do período entre as duas guerras acreditou-se instalada num no­
vo classicismo. Muito poucos escolheram levar em frente as ex­
plorações de Debussy ou dedicar-se à nova técnica serial. Claro,
podia-se considerar que uma ordem musical duradoura baseava-
se no sistema tonai ampliado, nas formas tradicionais renovadas,
na reabilitação do contraponto e da melodia, numa estética orde-

cidade rival. Em 1920, viaja a Pa­ mesmo dia em que a imprensa


ris e à Bretanha. anuncia a doença do chefe do Es­
1922-1933 Instala-se em Ettal (Al­ tado: a morte do músico passa qua­
pes bávaros), depois em Paris. Tur­ se despercebida.
nês pela Alemanha, Estados Uni­ 1953 Estréia em concerto de O an­
dos, Itália, União Soviética, Cana­ jo de fogo, em Paris.
dá, Cuba... Participa da fundação 1955 Estréia cênica de O anjo de
do "Triton" (1932), mas não gos­ fogo, em Veneza.
ta da música francesa contemporâ­
nea, salvo a de Ravel. obra Oito óperas, dentre as quais
1933-1953 Fixa-se definitivamente O jogador (Bruxelas, 1929), O amor
na União Soviética, de onde não das três laranjas (Chicago, 1921), O
sairá mais a partir de 1939. anjo de fogo (Veneza, 1955), Guer­
1942 Estada em Alma-Ata com Ei­ ra e paz (Leningrado, 1955). Sete
senstein. Depois de terem realizado balés, dentre os quais Chut (Paris,
juntos Alexandre Nevsky, prepa­ 1921), O passo de aço (Paris, 1927),
ram Ivã, o Terrível. OfUho pródigo (Paris, 1929), Ro­
1947 Proclamado "artista do povo" meu e Julieta (Brno, 1938). Gran­
da República Soviética da Rússia. des obras corais. Notáveis músicas
1948 Advertência do Comitê Cen­ para cinema. Sete sinfonias, suítes
tral do PC. Violentos ataques da sinfônicas. Cinco concertos para
União dos Compositores contra sua piano; dois concertos para violino;
ópera Um homem autêntico. dois concertos para violoncelo.
1951 Cai de novo nas boas graças: Dois quartetos de cordas, duas so­
o oratório A guarda da paz lhe va­ natas para violino e piano, onze so­
le o prêmio Stalin. natas para piano (as duas últimas
1953 Morre de uma hemorragia ce­ inacabadas), numerosas peças pa­
rebral dois dias antes de Stalin, no ra piano, melodias.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 288 289 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

nada, desembaraçada do pathos romântico, e que era preciso pro­ edificação de sua obra por eles não sentirem aquela imperiosa vo­
teger essa ordem clássica contra as especulações dissolventes. cação de conduzir a história, cuja urgência o indiferente período
Excelentes músicos exploraram com perfeita mestria e uma entre as guerras raramente sentiu.
invenção pessoal o que parecia ser a linguagem musical coletiva
de seu tempo. Muitos aprenderam à própria custa que não se ins­
titui um classicismo indo contra a corrente da história. A outros,
mais originais, faltou fé em seu destino e perseverança em sua bus­
ca. Nem os franceses Henry Barraud (1900), Jacques Ibert (1890¬ EXPLORAÇÕES
1962) ou Jean Rivier (1896), nem os ingleses Arthur Bliss (1891¬
1975) ou William Walton (1902-1983), nem os italianos G. F. Ma-
lipiero (1882-1973) ou Alfredo Casella (1883-1947), nem o suíço
NO ÂMAGO DA MÚSICA
A herança de Debussy Entre os inovadores mais autênticos de
Franck Martin (1890-1974), nem o americano Aron Copland nosso século, alguns tiveram a fraqueza de não estender suas pes­
(1900), nem os alemães Werner Egk (1901) ou Boris Blacher (1903) quisas à totalidade do sistema musical, do que resulta uma hibri-
alcançaram verdadeira notoriedade fora de suas respectivas pá­ dação que dá ao ouvinte uma impressão de incoerência. A crítica
trias. Suas obras são publicadas, gravadas, tocadas ocasionalmente pode ser feita a Schönberg e Stravinsky, raramente a Ravel, nun­
em festivais, no rádio (nos piores horários!), ou no âmbito de as­ ca a Debussy. La mer e Jeux descobrem um mundo sonoro intei­
sociações em constantes apuros financeiros. Mas não têm audiên­ ramente novo, apontando o caminho para explorações e auroras
cia internacional. perpétuas. Esse exemplo atribui aos criadores a responsabilidade
Nas épocas precedentes, os compositores adquiriam sua "di­ de uma revolução permanente, que deve ser mantida por uma in­
mensão histórica" ao cabo de uma seleção muito lenta e sujeita saciável curiosidade.
a freqüentes revisões, em que o público desempenhava o papel À exploração genial, o neoclassicismo opõe, ao contrário, um
preponderante. Desde o início do século X X , a seleção é feita horizonte limitado; revestindo apenas com novas cores (harmô­
rápida e implacavelmente pela ação conjugada do meio profis­ nicas e instrumentais) as formas e os estilos melódicos familiares,
sional, da mídia e, em menor medida, do grande público. De ele se congela num conformismo temeroso. O dodecafonismô tam­
fato, este só se interessa pelos artistas já selecionados, precisa bém se congela na complexidade de suas regras e parece ainda mais
de "estrelas". Seja a seleção justa ou não, é impressionante rígido pelo fato de seu método serial ainda só se aplicar à melo­
que numerosos compositores de nosso tempo tenham sido man­ dia e à harmonia, instalando-se quanto ao mais nos velhos mar­
tidos afastados da competição e nunca tenham podido apresen­ cos tradicionais. Essas tendências impositivas e restritivas levam
tar-se em condições satisfatórias ao juízo do grande público. inevitavelmente a academismos. O exemplo de Debussy ensina a
Veremos mais adiante que a "nova música" da segunda metade sempre se proteger deles.
do século enfrenta a dificuldade inversa: no fórum permanente A verdadeira corrente debussysta não é a simples imitação
que constituem os numerosos festivais especializados, nas gra­ de um estilo qualificado de "impressionista", mas, ao contrário,
vações cuidadíssimas e nos programas radiofônicos consagra­ a renovação incessante dos horizontes musicais. Os músicos que
dos aos novos valores, a maior parte do público fica desorien­ forjaram um estilo perfeitamente original e coerente, ao prosse­
tada pela mudança radical que é imposta a seus hábitos de es­ guirem a exploração de todos os recursos harmônicos, modais e
cuta; assim, adota ou recusa tudo em bloco, guardando os no­ rítmicos, colocam-se nessa corrente revolucionária, eternamente
mes de alguns compositores de destaque designados pela im­ fértil. Com personalidades artísticas bem diferentes, Bartók, Va­
prensa ou por algum escândalo, mas confundindo o melhor e rèse, Jolivet e Messiaen são alguns deles. Eles tiveram a força de
o pior. resistir tanto aos sistemas tradicionais como aos de vanguarda.
A multidão dos compositores que não alcançaram de pronto Cada um descobriu sua verdade reconsiderando, como Debussy,
a dimensão histórica foi obrigada a exercer profissões paralelas a totalidade do complexo musical, passando pelo crivo de sua re­
(intérpretes, professores, responsáveis por programas ou serviços flexão e de sua sensibilidade as escalas modais, a harmonia, os
na rádio-televisão, jornalistas, editores) ou a exercer seu ofício timbres, o ritmo. A concepção independente e sintética da músi­
de compositor em setores marginais (cinema, publicidade, músi­ ca, que integra todas as suas dimensões espaciais e temporais —
ca por metro), atividades essas que os afastaram ainda mais da eis o essencial da corrente debussysta.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 290 291 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

Scriabin Na última parte de sua obra (1910-1915), Scriabin já As últimas sonatas de Scriabin fornecem exemplos notáveis
se empenha nesse modo de exploração completa da realidade de alternância e interação modal, com uma rítmica sutil e não ra­
sonora. A descoberta de Debussy foi um elemento decisivo de ro complexa. Aí encontramos aplicada inclusive uma técnica de
sua evolução, e a rica invenção harmônico-modal de La mer cau­ complementaridade que terá um papel importantíssimo na músi­
ciona suas pesquisas. Assim, por exemplo, o tema exposto nas ca serial: os sons de um modo são distribuídos entre blocos sono­
trompas no primeiro movimento ("Da aurora ao meio-dia no ros complementares, ou então algumas notas que faltam à har­
mar") monia modal se vêem dotadas de uma função temática maior (na
sutil sonata n? 8 sobretudo).
A singularidade do gênio de Scriabin nos interessa hoje por­
que bom número de suas iniciativas aparece a posteriori como an­
tecipação da nova música: espírito de síntese, natureza essencial­
mente harmônica do sistema modal, substituição da temática tra­
emprega uma escala modal (que transponho aqui para a tônica dicional por séries de "blocos sonoros" harmônicos e rítmicos (já
dó), ligada ao famoso acorde por quartas que Scriabin chama de presentes no segundo movimento de La mer), substituição da tô­
"sintético": nica por uma série de centros tonais escalonados por terças me­
nores (o acorde de sétima diminuta torna-se uma espécie de eixo
tonai), rítmica vital não sujeita ao compasso, etc. Mas não se de­
ve superestimar a influência desse criador solitário. Seu procedi­
mento é muito menos audacioso que o de Debussy e o de Schön­
berg, e concorre para a expressão de um romantismo exacerba­
do. Por sinal, ele foi pouco conhecido das gerações que lhe suce­
Essa harmonia fundamental, que encontraremos em Bartók, ge­ deram e o interesse por ele só se renovou mais ou menos a partir
ra outras escalas extremamente interessantes, que aparecem nas de 1960, em parte graças ao ensino eclético e à cultura universal :.£V:--í"- •-•sir.
- Q. \,V; _ - - - . ^
cinco últimas sonatas de Scriabin, em particular estas: de Messiaen.

Bartók O gênio de Bartók não foi reconhecido em vida do com­


positor, apesar de um período de sucesso em Budapeste, Viena
e Berlim. Sua originalidade é demasiado profunda para que ele
se possa integrar aos movimentos musicais contemporâneos, muito
embora se mantenha regularmente a par das novas produções.
Nos cinco anos que passa nos Estados Unidos —- seus últimos
anos —, multiplica os concertos e as conferências, por tanto tempo
com o acorde dito "maior-menor" caro a Bartók. Essas duas es­ quanto sua saúde lhe permite, enquanto prossegue seus traba­
calas são o segundo e o terceiro "modos com transposições limi¬ lhos sobre o folclore. Executa em particular a magnífica Sonata
tadas" de Messiaen. para dois pianos e percussão com sua mulher, Ditta Pásztory.
Mas não obtém o sucesso esperado, sente-se extremamente fraco
(está com leucemia) e sua situação financeira é catastrófica. "Nun­
ca, desde que ganho a vida, estive numa situação tão difícil",
escreve. A Associação dos Compositores Americanos (ASCAP)
ajuda-o; Menuhin encomenda-lhe a Sonata para violino solo,
Koussevitzky o Concerto para orquestra, Primerose o Concerto
para viola. Termina a Sonata e o Concerto para orquestra, assim
Nessa curiosa cadência, os três acordes esgotam os oito sons do primeiro modo
como um Concerto n? 3 para piano destinado a sua mulher (fal­
do exemplo precedente (segundo de Messiaen). O último acorde é uma forma in­ taram alguns compassos), mas deixa inacabados o Concerto pa­
vertida do "maior-menor". ra viola e um sétimo quarteto (no estado de esboços). "Tenho Bartók em 1926.
o castelo de Barba-Azul, de partir e ainda tenho tanto a dizer", confia a seu médico, pou-
na Ópera de Paris, 1959. C0 antes da morte.
Se observarmos que suas primeiras obras verdadeiramente ori­
O mandarim maravilhoso,
ginais datam de 1908 (Bagatelas para piano), teremos dificuldade pelo Balé do Século X X ,
B E L A BARTÓK 1892 Bartók estréia como pianista
para compreender que um músico tão genial tenha sofrido por coreografia de Parlic, Paris, 1962.
Nagyszentmiklós (hoje STnnicolaul Mare, Romênia), num movimento de sonata de Bee­
tanto tempo a indiferença do público internacional. Seu estilo in­ 25 de março de 1881
Nova Y o r k , 26 de setembro de 1945. thoven e numa obra de sua autoria,
dependente e sutil nunca se harmonizou às modas sucessivas: neo- O curso do Danúbio.
romantismo, debussysmo, neoclassicismo... Logo depois de sua Nasceu numa encruzilhada de cultu­ 1893-1899 Estudos no colégio de
morte, a glória chegou subitamente, quando o grande público des­ ras (magiar, eslovaca e romena), nu­ Pozsony. Estuda piano com um dos
cobriu duas de suas últimas composições: o Concerto para orques­ ma região que é um foco de irreden­ filhos de Ferenc Erkel. Descobre
tra e o Concerto n? 3 para piano. Não ficaria bem desaprovar tismo, de hostilidade aos Habsbur- Brahms sob a influência de Doh-
o gosto do público por essas duas obras esplêndidas. No entanto, gos, depois ao regime de Horthy. Seu nányi.
podemos lamentar que a reputação de Bartók não se tenha ba­ pai, diretor de uma escola de agri­ 1899-1903 Conservatório de Buda­
seado em sua obra-prima: Música para cordas, percussão e celes¬ cultura, morre quando ele está com peste. Amizade com Kodály. Estu­
* ta, estreada em 1937 na Basiléia por Paul Sacher. Essa partitura, sete anos. Sua mãe, Paula Voit, é da a obra de Liszt.
escrita para orquestra dupla de cordas, piano, celesta, xilofone, professora em Nagyszollos, depois 1901 Primeiro concerto importan­
harpa e percussão, é, ao mesmo tempo, o remate de um pensa­ em Nagyvárad e, erifim, em Presbur- te: toca a sonata de Liszt.
mento musical exemplar e um dos pontos culminantes da arte do go (Pozsony, hoje Bratislava). En­ 1903-1909 Viagens à Espanha, a
século XX. Suas sonoridades inauditas de seda, jade e cristal pa­ sina piano ao filho. Viena, Berlim, Paris (onde toca sua
recem ter tido alguma dificuldade para se impor.
β » L« I I cfissä 1 I I \ I ι ν

Bartók e sua mulher, Ditta, em 1938. Rapsódia para piano), Manchester 1920 O almirante Horthy é nomea­
(onde Richter estréia seu poema sin­ do "regente da Hungria".
1940-1945 Com ο domínio nazis­ Sua morte, no West Side Hospital
fônico Kossuth). 1923 Bartók se divorcia para se ca­
ta sobre seu país, decide emigrar. de Nova York, assinalará o início
1906 Entrementes, faz sua primei­ sar com a aluna Ditta Pásztory, que
Aceita um convite da Columbia da sua glória.
ra viagem de estudos sobre o folclo­ também tem dezesseis anos. Exce­
University e se instala em Nova
re (grande planície e Alta Hungria). lente pianista, ela dará vários reci­
York. Durante dois anos, multipli­ obra Uma ópera, O castelo de
Publicação com Kodály da primei­ tais com o marido.
1927-1928 Turnê pelos Estados ca as conferencias e os concertos, Barba-Azul (Budapeste, 1918); dois
ra coletânea de canções.
sozinho ou com a mulher, ao mes­ balés, O principe de madeira (Bu­
1907 Professor de piano do Con­ Unidos, onde toca suas obras.
mo tempo que continua seus tra­ dapeste, 1917) e O mandarim mara­
servatório de Budapeste. Kodály o 1929 Turnê pela União Soviética.
1932 Viagem ao Cairo, para o pri­ balhos científicos. Mas suas obras vilhoso (Colônia, 1926). Cantata
faz descobrir Debussy.
não são tocadas: sua situação fi­ profana para solistas, coro duplo e
1909 Casamento com sua jovem meiro congresso de música árabe.
nanceira é catastrófica e seu orgu­ orquestra. Numerosas melodias e ar­
aluna, Marta Ziegler, dezesseis 1936 Recolhe canções turcas na
anos, filha de um alto funcionário Anatólia. lho impede-o de aceitar a menor ranjos de canções populares. Várias
da polícia. Um ano depois, têm um 1934-1940 Primeiras audições da ajuda desinteressada. Sua saúde de­ composições importantes para or­
filho, Béla. Cantata profana (Londres, 1934), clina. Sofre de leucemia, sem sa­ questra (dentre as quais as obras-
1909-1912 Coleta canções popula­ do quarteto n? 5 (Washington, ber. Trabalha com muita dificul­ primas já citadas). Três concertos
res na Romênia, Bulgária, Ucrânia. 1935; quarteto Kolisch), da Músi­ dade, mas consegue terminar o para piano, dois para violino, um
1913 Viagem de estudos sobre o ca para cordas, percussão e celesta Concerto para orquestra encomen­ para viola (inacabado). Numerosas
folclore do Sul da Argélia. (Basiléia, 1937; regência de Sacher), dado por Koussevitzky, a sonata peças para piano. Seis quartetos de
1918 Primeira audição em Buda­ da Sonata para dois pianos e per­ para violino solo encomendada por cordas; Contrastes para violino, cla­
peste do Castelo de Barba-Azul: iní­cussão (Basiléia, 1938; Bartók e Dit­ Menuhin e o Concerto n? 3 para rineta e piano; quarenta e quatro
cio da celebridade como compo­ ta), do Divertimento (Basiléia, piano (faltaram apenas alguns duos para 2 violinos, duas sonatas
sitor. 1940; regência de Sacher). compassos), que destina à mulher. para violino e piano, etc.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 296 297 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

Se excluirmos suas primeiras obras, antes de 1905 aproxima­ o Divertimento (1939) e, sobretudo, o Quarteto n? 5 (1934), & Mú­
damente, cuja estética ainda indecisa muito deve a Liszt e a sica para cordas, percussão e celesta (1936) e a Sonata para dois
Brahms, os quarenta anos de atividade criadora de Bartók podem pianos epercussão (1937; primeira audição na Basiléia, em 1938,
dividir-se em três períodos: por Bartók e sua mulher), os três pontos culminantes, a quintes­
de 1905 a 1930 Seu amigo Zoltan Kodály o faz descobrir a mú­ sência de seu gênio. Abalado com a ascensão do nazismo e as re­
sica de Debussy, cuja harmonia modal ambígua o fascina, e percussões que este encontra em seu país sob o almirante Horthy
incentiva-o a recolher e estudar metódicamente as canções popu­ ("um perigo iminente nos ameaça: o de ver a Hungria entregar-
lares. Os dois jovens músicos publicam juntos sua primeira cole­ se, por sua vez, a esse regime de rapina e morticínio"), e mais
tânea de melodias húngaras em 1906. A partir de então, Bartók agarrado que nunca a seu ideal de paz e justiça universais, Bar­ Música para cordas, percussão
realiza uma síntese bastante original entre a música moderna oci­ tók transforma sua angústia em energia criadora. e celesta.
dental e o folclore magiar. "Kodály e eu queríamos fazer a sínte­
se do Oriente e do Ocidente. Por nossa raça e pela posição geo­ Ptü and ante, ) c a 56
gráfica de nosso país, que é ao mesmo tempo a ponta extrema
do Leste e o bastião defensivo do Oeste, podíamos pretendê-lo. — =f£- ffa-
Isso nos foi possível graças a Debussy, cuja música acabava de ψ rnf espr.
chegar até nós e nos iluminava." Paralelamente à publicação das
canções que recolhe, arranjadas para canto e piano, para coro a \ft== - ; 1r p s £ — ί )—k
capela ou para piano solo, Bartók assimila em suas obras as ca­
racterísticas rítmicas e melódicas da música popular, a tal ponto
ψ —Ψ - v&

que esta se torna sua "língua materna musical", que pode utili­
zar "de maneira tão livre quanto o poeta sua língua materna". -Í* —
FMH -V—?w <—*— f-
^ — 1 I ι s μ lΓ *j&™ •>* -L—?—L.—? r r I s

Salvo indicações de proveniência incluídas no título, não utiliza


em suas obras as melodias populares autênticas. Segundo uma bo­
f
•U-
nita expressão de Serguei Moreux, prefere criar um "folclore ima­ > - J J Jfi -> g) r-jp
i-if • τ -4—
25
ginário" . As mais belas obras desse período são o Allegro bár­ i
ί
baro (1911) e a Sonata (1926) para piano, a ópera em um ato O

%
castelo de Barba-Azul (composta em 1911 e estreada em Buda­
sit
peste em 1918) e, sobretudo, a magnífica "pantomima" O man­ 2soli ft::
darim maravilhoso (composta em 1918 e estreada em 1928, em L ^ ^ * _

Budapeste).
jo espt;
de 1930 a 1940 A assimilação do folclore é ainda mais acentua¬
da; ele se torna "modelo de estilo" e "modelo espiritual" . É
com a própria essência da canção popular em geral que Bartók
nutre seu pensamento musical. Seu estilo chegou ao estágio da mais
26
con sor¿.

= ——r±
m -£= - t —

profunda originalidade e do maior domínio. Esse periodo, durante •f


o qual ele beirou por algum tempo a glória como etnomusicólo- 9 —
go, pianista e compositor, é o das obras-primas: Cantata profa­ £ τ T ν—
na, hino à natureza e à liberdade, "sua profissão de fé mais pes­
soal" (1930), Concerto n? 2 para piano (1931; primeira audição f¬
por Bartók em Frankfurt, 1933), Vinte e sete coros infantis e fe­
mininos (1935), Mikrokosmos (terminado em 1937, com as esplên­
cy
-
~
consprct.
τ T f T HP-
I τ
i '

b b
didas Danças em ritmo búlgaro), o Concerto para violino (1938),

25. S. Moreux, Béla Bartók, Richard-Masse, 1954.


i = = —1> — b — b
-—
HP Α · —
26. Bence Szabolcsi, Bartók e a música popular, in Bartók, vida e obra, obra ,ptr ~ b
con sore/, àív.<v{j3, υ.„ — -Ο-'
coletiva, Budapeste, 1956. g
3p*-= — - -
'Is
JOB t'- —
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 298 299 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

de 1940 a 1945 A tragédia da tirania e da guerra, o exílio, uma coletâneas de canções que publicou, os mais simples arranjos exi­
pobreza próxima da miséria, enfim a doença, põem fim a esse elã giram a invenção de uma nova harmonia que levasse em conta
genial. Ainda podíamos esperar uma superação que fizesse de Bar­ as características modais e rítmicas particulares. Esses elementos
tók o maior compositor de nosso século. Ora, o sexto quarteto são indissociáveis; com o timbre instrumental, eles formam nas
tem o tom de um adeus patético. Durante dois anos e meio, até obras de Bartók uma unidade complexa, uma rede de interdepen­
agosto de 1943, escreve apenas um arranjo em forma de concerto dências. ·
da sua Sonata para dois pianos e percussão. As quatro importan­ Entre os modos utilizados por Bartók, alguns são diretamente
tes composições dos dois últimos anos (já citadas) assinalam, a inspirados na música popular, outros são fruto de extrapolações
despeito de sua beleza, um recuo em relação às obras-primas do harmônico-melódicas das sutis riquezas do folclore. Qualquer que
período precedente. Por nostalgia patriótica, Bartók cede a um seja o modo escolhido, mudanças cromáticas bastante caracterís­
folclorismo exterior cujo romantismo aparece como uma renún­ ticas dão à sua melodia um aspecto inimitável:
cia ante a impossibilidade de uma ascensão estafante e sem espe­
rança. Em contrapartida, as obras desse último período são mar­
cadas por uma comovente serenidade.

Os trabalhos de Bartók sobre o folclore possuem uma quali­


dade científica excepcional na época. Seria possível tirar de seus
escritos e de suas declarações uma carta da etnomusicologia mo­ Música para cordas, percussão e celesta.
27
derna , e seu método de trabalho, completado pelo grande fol-
clorista romeno Constantin Bräiloiu, permaneceu um modelo. A A melodia de Bartók se organiza em torno de centros polares que
dificuldade preliminar está em obter dos velhos camponeses que substituem as antigas funções tonais. A extrema tensão cromáti­
eles cantem canções antigas autênticas, preservadas de qualquer ca de algumas obras compostas sob a influência da escola vienen­
corrupção, e não as novas canções que seus filhos trazem da ci­ se não foge a essa organização que exclui a atonalidade; e, se seu
dade (o que supõe o conhecimento da língua e das tradições lo­ expressionismo bastante pessoal por vezes emprega o total cro­
cais). Quando consegue fazê-lo, Bartók grava num fonógrafo de mático, ele sempre faz reinar uma ordem modal oriunda da mú­
rolo (já antes de 1910) a preciosa melodia e recolhe a maior quan­ sica camponesa.
tidade possível de informações sobre o documento musical, o ins­ Constatamos que sua harmonia se baseia em eixos de polari­
trumento utilizado, se for o caso, e sobre o "informante". De­ dade correspondentes aos sons do acorde de sétima diminuta, os
pois disso, ao ouvir os fonogramas, ele procura notar as canções mesmos de Scriabin! Não há nisso nem influência, nem coinci­
com a maior exatidão possível. Esse método comporta uma éti­ dência fortuita. De fato, se considerarmos os quatro sons que for­
ca, na medida em que implica uma compreensão fraterna e um mam um eixo tonai — dó.mib.fáff.lá, por exemplo — poderemos
respeito absoluto pelas diferentes etnias. "O pesquisador deve notar que seu parentesco é estreito:
esforçar-se por esquecer qualquer sentimento nacional enquanto
trabalha na comparação de materiais provenientes de países dife­ — dó é relativo* comum de lá e mib ;
rentes... Minha verdadeira idéia mestra é a da fraternidade dos — mib é relativo maior de dó menor e (réji) relativo menor de fáj) maior;
— lá é relativo menor de dó maior e relativo maior de fáj! menor;
povos, de sua fraternidade perante e contra qualquer guerra, qual­ — fájj é (como dó) relativo comum de lá e mib (réS).
quer conflito." O nacionalismo de Bartók é um humanismo.
O conhecimento aprofundado das tradições musicais popu­ A esses grupos de quatro sons Bartók reconhece uma complemen­
lares autênticas contribuiu em grande parte para a formação do taridade, em particular aos que estão em relação de quarta au­
estilo de Bartók. "O estudo da música camponesa foi, para mim, mentada e que a harmonia clássica considera os mais afastados
de uma importância capital", escreve, "pois me permitiu Libertar- (fá# e dó, mib e lá, dó}l e sol, etc). São antípodas e Bartók
me da hegemonia do sistema dos modos maior e menor." Nas às vezes parece atribuir-lhes uma espécie de equivalência; as­
sim, acontece-lhe substituir o encadeamento clássico sol-dó por
27. Ver em particular a brochura capital Pourquoi et comment recueille-t-on sol-fájí.
la musique populaire? Genebra, 1948. Vários outros textos importantes foram reu­ O musicólogo húngaro Ernó Lendvai fez uma observação
nidos por Diego Carpitella sob o título Scritti sulla musica popo/are, Turim, 1955. curiosa, que, segundo ele, explicaria a maior parte das singularida-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 300 301 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

des melódicas, harmônicas e formais da música de Bartók: na ex­ Varèse O nome de Edgar Varèse evoca uma alquimia de Titã,
pressão numérica de numerosas estruturas verticais ou horizon­ uma mistura de galáxias, uma torrente de rochas em fusão. No
tais de suas partituras, ele encontra aproximações da seção áu­ entanto, esse gênio inquietante reivindica a música da Idade Mé­
rea! É assim chamada a divisão de uma grandeza C em duas gran­ dia e de Debussy, que o fascinou em sua juventude. Muito embo­
dezas A e Β tais que: ra seu temperamento e a orientação de suas pesquisas o tenham
levado a escrever uma música bem diferente, Varèse se situa, por
C = J3 sua própria independência, na corrente ilustrada por La mer e
Β A Jeux; ele é dos que recusam a obrigação de obedecer as regras es­
tabelecidas por outros e reconsideram globalmente todos os pa­
A Β râmetros de que depende sua arte.
I | 1
Varèse se aproxima de Bartók por sua avidez de música, sua
!_ C curiosidade em relação às tendências naturais, por aquele espíri­
to de síntese que torna indissociáveis as cinco dimensões da músi­
Calcula-se que a fração B/A, chamada "número áureo", seja igual ca (melodia, harmonia, ritmo, nuanças, timbre); por sua intran­
a 1 + VJ, OU seja, 1,61803399... Calcula-se também que é o li- sigência também ("Não tenho a menor vontade de me tornar um
2 velho caturra como o senhor", declara a Saint-Saëns); e também
pela incompreensão que sofreu e que sua obra sofre ainda hoje,
mite da fração formada por dois números sucessivos da série de
devido ao esnobismo de certos admiradores, bem como à injusti­
Fibonacci, da qual cada termo é a soma dos dois precedentes:
ça dos detratores. "Não há gênio irreconhecido", dizia. "Sem­
1 2 3 5 8 13 21 34 55 89... Por isso, na prática, consideram-se
pre se é reconhecido por seus pares." Quem são seus "pares" nos
como seção áurea as relações 8/5 ou 13/8 ou 21/13, etc, estando
anos difíceis que precederam a guerra? Alguns dos maiores pin­
entendido que a aproximação é tanto mais satisfatória quanto mais
tores e escritores, de quem ele tinha a inteligência de tornar-se ami­
longe se leve a série.
go: Léger, Miró, Calder, Alejo Carpentier, Henry Miller, Saint-
Lendvai observa, por exemplo, que o ponto culminante do
John Perse, Antonin Artaud, alguns músicos também, como
primeiro movimento da Música para cordas divide os 89 compas­
Schönberg e Jolivet.
sos da peça em 55 + 34; ou, ainda, que um acorde como este é
As primeiras audições de suas obras causaram escândalo. A
mais famosa foi a de Deserts, em 2 de dezembro de 1954 no Théâ­
tre des Champs-Élysées, em Paris, sob a regência de Hermann
Scherchen. Era a primeira vez que se associava uma fita magnéti­
ca à orquestra. Essa noite memorável nada teve a invejar da es­
formado de um intervalo de 5 semitons (sol-dó) e de um intervalo tréia da Sagração, pela amplitude da algazarra; parece até que os
de 8 semitons (dó-lá )... O grande número das observações desse manifestantes de 1954 estavam mais bem armados (alguns leva­
gênero é perturbador; mas pode-se tomar a seção áurea como jus­ vam apitos), mais violentos, mais barulhentos e mais grosseira­
tificação de opções estéticas? De qualquer modo, Lendvai e Sza- mente injuriosos que os de 1913.
bolcsi, os melhores conhecedores do pensamento artístico de Bar­ Como Berlioz, Wagner, Debussy e muitos outros, Varèse ou­
tók, estimam que essas notáveis relações numéricas foram dese­ viu criticarem-lhe sua impotência musical, que o leva ao "caos".
jadas e não fortuitas. Os que acham que sua música é uma cacofonía informe sentem-
Como Debussy, Bartók é o músico das intuições profundas se confortados em sua opinião por sua reticência à análise e pelo
e das vastas sínteses. Era fatal que nem sempre fosse compreen­ mistério de que cerca seus projetos formais e seu método de com­
dido e que se tornasse popular pelo que não era: um cigano. A posição. "Cada uma das minhas obras descobre sua própria for­
intransigência de seu caráter, assim como a originalidade de sua ma", diz. É um prodigioso instintivo que não se estorva nem com
música, valeram-lhe a carreira infeliz que sabemos. Ele permane­ receitas, nem com gramáticas, o que aos olhos dos pedantes é tí­
cerá uma das personalidades mais admiráveis da história da mú­ pico dos maus amadores. Ele não sabe ou não quer explicar co­
sica, um modelo de rigor moral, de justiça, de independência ra­ mo sua música é feita; Messiaen viveu essa experiência ao convidá-
dical, de resistência a todos os compromissos. lo à sua classe de composição. Mas essa música bárbara e refina-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 302

da exerce um poder encantatório; se o enfeitiçamento se produz,


não se pede mais nada.
Até 1920, as obras de Varèse teriam sido compostas sob a
influência de Debussy e de Strauss. Mas todas as partituras desse
"primeiro estilo" desapareceram; a maioria queimou-se num in­
cêndio em Berlim, as outras foram destruídas pelo compositor.
Suas obras mais originais, nas quais se baseia sua reputação, fo­
ram compostas entre 1921 e 1936. Três delas são particularmente
notáveis: os monumentais e misteriosos Arcana, ardentes de la­
vas fosforescentes (para grande orquestra), Integrais para onze
instrumentos de sopro e dezessete instrumentos de percussão (qua-

EDGAR VARÈSE Apresentação de suas obras princi­


Paris, 22 de dezembro de 1883 pais, em Nova York ou Filadélfia.
N o v a Y o r k , 6 de novembro de 1965
Segundo casamento, com Louise
Filho de Henri Varèse, industrial Norton. Viagens a Paris em 1924
natural de Pignerol, e de Blanche- (em casa de Fernand Léger) e 1926.
Marie Cortot, borguinhona. Passa 1927-1933 Após uma estada em
a infância em Villars, perto de Antibes, instala-se em Paris, onde
Tournus. várias de suas obras são apresen­
tadas, sob sua regência, de G. Pou­
1892-1903 A família se instala em let e de Slonimsky. Deixa Paris em
Turim. Edgar é destinado à Escola companhia de Jolivet e detém-se
Politécnica de Zurique, mas estuda em Barcelona, para ver o amigo
música escondido do pai, com Bol- Miró.
zoni, diretor do Conservatório de 1933-1936 Instala-se de novo em
Turim. Nova York.
1903-1908 Abandona a família ese 1936-1940 Vive temporariamente
instala em Paris. Estudos musicais em Santa Fé, San Francisco, depois,
na Schola Cantorum (D'Indy, Rous­ por dois anos, em Los Angeles. Pe­
sel), depois no Conservatório (Wi­ ríodo de depressão.
dor). Rege o coro da Universidade 1940-1950 Em Nova York (peque­
Popular. Casamento em 1907 com na casa com jardim, em Greenwich
Suzanne Bing. Village). Funda um coral de ama­
1908-1915 Instalação em Berlim, dores, o "New York Chorus", que
onde cria um Symphonischer Chor. executa sob sua direção obras dos
Estuda a música da Idade Média e séculos X I I I a X V I I I .
da Renascença. Encontros com 1950-1958 Divide-se entre a Euro­ 1958-1965 Nova York. Sofre de ar­ perprism e Integrais, para instru­ serts, para catorze instrumentos de
Strauss, Mahler, Busoni. Concerto pa e a América. tériosclérose. Em 27 de outubro dementos de sopro e percussão. Oc- sopro, percussão e fita magnética.
em Praga. Revelação do Pierrot lu­ Cursos e conferências na Alema­ 1965 é operado de uma obstrução tandre, para sete instrumentos de Nocturnal, paia soprano, coro e or­
naire. nha; elaboração e estréia de Déserts intestinal. Morre dez dias depois.sopro e um contrabaixo. lonização, questra. As obras anteriores à sua
1915 Mobilizado, depois reforma­ em Paris; viagem a Estocolmo. Pre­ paia. orquestra de percussões. Den­ instalação nos Estados Unidos
do por pneumonia dupla, embarca paração, na Philips holandesa, do obra Américas Arcana, para gran­ sidade 21,5, para flauta solo. Ecua­ (1915) foram destruídas, em parti­
para Nova York, onde se instala. Poème électronique para a Exposi­ de orquestra. Oferendas, para so­ torial, paia voz de baixo, instru­ cular uma ópera baseada em Hof¬
1915-1927 Reside em Nova York. ção de Bruxelas. prano e orquestra de câmara. Hy- mentos eletrônicos e percussão. Dé­ mannsthal.
Varèse e seus alunos em Darmstadt,
1950.

Ensaio de Déserts: os percussionistas.

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tro exécutantes) e Ionização para trinta e cinco instrumentos de


percussão (treze exécutantes). Com mais de vinte anos de anteci­
pação, essa obras inauguram as pesquisas da nova música poste­
rior a 1950. Ε já em 1923 Hyperprism era uma obra experimental «_
de rara audácia. Uma página da partitura de Arcana
O mais extraordinário é que Varèse realizou com a orquestra <® S n g C o ^ ^ Y o r l ^ f
eleitos sonoros que pertencerão, mais tarde, ao domínio das mú- permission).
307 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

sicas eletracústicas: impressão de desenrolar lento ou acelerado,


de filtragens, de sobreposição de fenômenos sonoros independen­
tes, de trilha sonora passada ao revés, etc. Ficou impressionadís-
simo com seus encontros em Berlim com o piamsta-compositor ι
Ferruccio Busoni (1866-1924), que já previra em 1908 a música
28
eletrônica : Busoni lhe disse: "Estou mais ou menos convenci­
do de que, na nova música autêntica, as máquinas serão necessá­
29
rias e terão um papel importante."
A temática tensa de Varèse, com essas notas repetidas co­
mo pios e cantos de pássaros do Apocalipse, sua rítmica instin­
tiva, visceral, notada com uma extraordinária sutileza, sua ins­
trumentação fervilhante de sussurros e gritos, dilacerada por ter­
ríveis clamores, sua harmonia tratada como cor sonora (a exem­
plo de Debussy), com esse reforço característico de certos har­
mônicos para modificar o timbre, tudo isso nos faz pressentir
não só Jolivet e Messiaen, mas Xenakis. Por outro lado, a liber­
dade das formas e das estruturas, a ruptura da continuidade
melódica e instrumental, a irregularidade rítmica, a harmonia-
cor, a concepção sintética do conjunto são prolongamentos da
pesquisa debussysta.
O método de composição de Varèse não é a improvisação
desordenada que seus detratores supõem. Ele se baseia numa Busoni e seu cachorro Giotto.
teoria pouco rigorosa, que evoca muito mais as cosmogonías
pitagóricas ou as concepções alquimistas da física moderna. Va­
rèse adquirira uma formação sólida, mas se interessava pela ciên­
cia como poeta. A propósito de sua música, gostava de empre­
gar uma linguagem científica, geralmente pouco adequada, mas
magnífica!
É um inspirado cujo pensamento assemelha-se a um rio na
cheia, a uma corrida de lava, a um sol em formação. Curtíssimo,
nutriu sua ciência tanto com Paracelso como com Leonardo da
Vinci ou Helmholtz. Não podemos censurá-lo por seus amálga­
mas quando confunde ciência e alquimia (quadrados mágicos, sim­
bólica dos números, etc), ou quando aproxima a espiral das quin­
tas da nebulosa de Andrómeda! Isso estimula sua imaginação e
a nossa. Ε quando explica que compõe "por cristalização", que
o ritmo é semelhante às forças gravitacionais que garantem a coe­
são das galáxias, quando nos fala de "transmutação da matéria
sonora", de "projeção do som organizado", de "translações"
e "rotações", ficamos fascinados e aprendemos mais sobre os fe­
nômenos musicais do que nos manuais escolares.

28. Busoni, Neue Aesthetik der Tonkunst, Berlim, 1908. Esse músico, repre­
sentado com freqüência como precursor genial, não realizou suas visões proféti­
cas em suas próprias composições. ^
29. Citado no excelente Varèse de Odile Vivier, L e Seuil, 1973. Varèse e seu gongo.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 308 309 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

A influência de Varèse foi considerável sobre duas gerações:


a de Jolivet e Messiaen e a de Xenakis. Sua obra foi revelada ANDRÉ J O L I V E T
Paris, 8 de agosto de 1905
aos jovens músicos do imediato pós-guerra, como as de Webern Paris, 20 de dezembro de 1974
e de Bartók, pelo insubstituível ensino de Messiaen. Em 1950,
ele próprio dá aulas no seminário de verão do Kranichsteiner Sua primeira iniciação musical lhe
Musikinstitut de Darmstadt. É a época em que se realiza o so­ é dada pela mãe, boa pianista ama­
nho premonitório de sua vida: a descoberta de técnicas de com­ dora. Aos treze anos, musica um de
posição eletracústicas. Enceta a nobre e grande partitura de Dé­ seus próprios poemas. Aos catorze,
serts, cuja fita magnética realizará com Pierre Henry no Studio aprende pintura e monta espetácu­
d'Essai da Radio française. Pouco mais tarde, conceberá um Poe­ los de marionetes.
ma eletrônico para o belo pavilhão Philips da Exposição de Bru­ 1920-1927 Termina seus estudos
xelas (1958), construído por Yannis Xenakis (então assistente de gerais na École Normale d'Auteuil.
Le Corbusier). Ensinará mais tarde até 1940 nas
escolas da Cidade de Paris. Para­
Jolivet Entre 1930 e 1933, André Jolivet teve o excepcional pri­ lelamente, estudou violoncelo e har­
vilégio de estudar com Varèse. É iniciado na acústica musical, nas monia.
possibilidades insuspeitas dos grandes conjuntos de percussão, nas 1928-1933 Aluno de Paul Le Fiem
relações esotéricas entre a música e o cosmos; tem a revelação de e Edgar Varèse. Acompanha este
uma concepção absolutamente nova da escuta musical, que será último a Nova York em 1933.
em grande parte decisiva para a sua própria orientação. Muito 1934 Primeiro encontro com Mes­
embora adote os símbolos e os princípios fundamentais da estéti­ siaen, entusiasmado com o Quarte­
ca de Varèse, sua forte personalidade impõe de saída um estilo to de Jolivet.
original. Em 1935, mal terminara os estudos, Jolivet apresenta 1935 Num concerto de "La Spira­
Mana, uma suíte de seis peças para piano inspiradas por objetos le", Nadine Destouches dá a pri­
meira audição de Mana: revelação
que Varèse lhe dera (entre eles, uma vaca e um pássaro de Cal-
para o mundo musical.
der): " A mana é essa força que nos prolonga em nossos fetiches
1936 Participa da fundação do gru­
familiares." Sob uma forma de aparência modesta, trata-se de
po Jeune France, com Baudrier, Le-
uma obra magistral que muito impressionou alguns jovens músi­
sur e Messiaen. Encontros com Mi­ sinfonia em Berlim (regência de
cos de então, entre os quais Obvier Messiaen. lhaud e Honegger.
André Jolivet.
Schmidt-Isserstedt).
1938 Colabora para a redação de 1959-1962 Conselheiro técnico da
La nouvelle saison corn Anouilh e Diretoria de Artes e Letras.
J.-L. Barrault. 1960 Criação em Aix-en-Provence
1943 Rege as representações de Le de um conservatório internacional
soulier de satin, na Comédie-Fran­ de verão.
çaise. 1964 Rege no festival da Cidade do
1945-1959 Diretor da música na Co­ México a primeira audição de sua
médie-Française. Terceira sinfonia.
1951 Primeira audição do Concer­ 1966-1970 Professor de composi­
to para piano em Estrasburgo; ape­ ção do Conservatório.
sar de uma sala agitada, é um gran­ 1967 Rege em Moscou a primeira
de sucesso, decisivo para a popula­ audição do segundo Concerto para
ridade de Jolivet. violoncelo (solista: Rostropovitch).
1956 Rege a estréia de La vérité de
Jeanne em Domrémy. obra A ópera-bufa Dolores (Lyon,
1959 Primeira audição da Segunda 1960). O oratorio La vérité de Jean-
Jolivet, Mana, V I . " P é g a s e "
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 310 311 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

certo para piano (1950), Épithalame para "orquestra vocal"


ne. Duas cantatas para solistas, co­ das, suítes sinfônicas. Músicas de (1953), a cantata Le coeur de la matière inspirada em Teilhard
ro e orquestra. Épithalame para ' Or­ cena e de cinema. Numerosos con­ de Chardin (1965), a segunda Sonata para piano (1957), a tercei­
questra vocal' ', Madrigal para 4 vo­ certos: para ondas Martenot, pia­ ra Sinfonia (1964)...
zes e 4 instrumentos. Missa Uxor no, trompete (dois concertos), har­ Suas últimas obras, mais despojadas, baseiam-se no "empre­
Tua para 5 vozes e 5 instrumentos. pa, flauta, violoncelo (dois con­
go serial de uma linguagem modal ampliada, utilizando os dados
Trois Complaintes du soldat e Poè­certos), percussão, fagote. Mana,
mes intimes para voz e orquestra Cinq danses rituelles e duas sona­ essenciais das músicas dos povos primitivos".
de câmara. Três balés: Guignol et tas para piano. Douze inventions
Pandore (Paris, 1944), L'Inconnue para 12 instrumentos. Cérémonial "Jeune France" Em 1934, Jolivet recebe uma correspondên­
(Paris, 1950) e Ariadne (Paris, para percussão. Mándala para ór­ cia de Olivier Messiaen, jovem organista da Trinité, que acaba
1965). Três sinfonias para grande gão. Diferentes obras de música de de 1er uma de suas partituras: "O senhor escreve a música que
orquestra, uma sinfonia para cor­ câmara. eu gostaria de escrever. Precisamos absolutamente nos conhe­
cer." Eles se encontram, para grande satisfação de ambos, e
fundam, com Daniel Lesur (1908) e Georges Migot (1891-1976),
Seguida de Cinq incantations paia flauta solo (1936) e de Cinq dan­ uma sociedade de música de câmara batizada "La Spirale" (sem
ses rituelles para piano (1939, orquestradas no mesmo ano), Mana dúvida sob influência de Varèse). No ano seguinte, em 1936,
inaugura uma estética sedutora e uma escrita notavelmente eficaz. Jolivet, Messiaen, Lesur e um novo companheiro, Yves Bau­
Jolivet baseia seu sistema harmônico e modal na explora­ drier (1906), decidem unir-se para fazer triunfar seus ideais con­
ção do fenômeno da ressonância: "baixos duplos" gerando duas vergentes e formam o grupo "Jeune France" [Jovem França].
séries complementares de harmônicos, que reagem sobre o cará­ Seu manifesto é simples e convincente: "Como as condições da
ter dos acordes; "ressonância inferior" consistente em sons gra­ vida se tornam cada vez mais duras, mecânicas e impessoais,
ves que têm harmônicos comuns nos acordes ou na Unha meló­ a música tem o dever de trazer sem trégua aos que a amam
dica e colorem de modo diferente os mesmos agregados; "trans­ sua violência espiritual e suas reações generosas... Retomando
mutações" pelo brusco fortalecimento de certos harmônicos. O o título que Berlioz ilustrou outrora, 'Jeune France' propõe-se
ritmo é determinado por uma dinâmica da sonoridade, "pelas difundir obras jovens, tão distantes do clichê acadêmico quanto
fases e intensidades do fluxo sonoro"; ele é, ao mesmo tempo, de um clichê revolucionário. As tendências desse grupo serão
elemento mágico e fator de coesão. Esses princípios não são tão diversas; elas se unirão para suscitar e propagar uma música
novos quanto parecem, pois os vemos explorados, consciente­ viva, num mesmo elã de sinceridade, generosidade e consciência
mente ou não, por Debussy, Ravel, Scriabin, Bartók e Varèse. artística."
Mas a música de Jolivet é profundamente original pela calorosa Não querem nem renovar as criancices de Cocteau e dos Seis,
espiritualidade que a anima, por sua universalidade, pela força nem sucumbir à secura do neoclassicismo de Stravinsky, então na
enfeitiçante que dela emana. Ela corresponde bem ao programa moda, nem se imporem a disciplina demasiado coerciva de Schön­
expresso desde 1935: "Eu procurava restituir à música seu senti­ berg e sua escola. Defendem o ideal de uma música livre, huma­
do original antigo, quando ela era a expressão mágica e encan- na, espiritualista, que não seja nem hermética, nem cosmopolita,
tatória da religiosidade dos agrupamentos humanos." nem comercial. De todos os movimentos desse gênero, é o mais
O drama da guerra lhe inspira uma espécie de ascèse, de simpático e o mais inteligente. Mas não evita as profissões de fé
renúncia à complexidade, que nos vale as comoventes Trois Com­ prolixas e as glosas esotéricas: teorias acústicas, cosmológicas e
plaintes du soldat. Depois da guerra, redescobre seu estilo en- humanistas de Jolivet, comentários místicos, etnológicos e orni­
cantatório complexo, mas ampliado à dimensão de um novo elã tológicos de Messiaen, especulações humanistas de Baudrier, o ani­
lírico e enriquecido pela hábil integração de elementos exóticos. mador e porta-voz do grupo. Somente Daniel Lesur escapa, pre­
Por sua extraordinária força rítmica, pelo brilho dos timbres, servado por sua inteligência, seu humor e seu senso crítico. Suas
pela irresistível vontade criadora, que faz todas as audácias se­ admiráveis coletâneas de melodias, sua Serenata para orquestra
rem aceitas, as obras-primas desse período exerceram uma in­ de cordas, o Cantique des cantiques para conjunto vocal ou a ópe­
fluência considerável sobre a receptividade do grande público ra Andrea del Sarto se alinham entre os mais belos testemunhos
à música contemporânea, em particular o justamente célebre Con­ de uma arte feita de pudor e perfeição. Essa música é pura, sem-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 312

compromisso literário nem angústia estética; ela funda sua liber­


dade na mestria absoluta da escrita tradicional.

Messiaen Quando o grande público descobre Olivier Messiaen


em 1945, este já apresentou algumas obras-primas, dentre as quais
La Nativité e Les corps glorieux para órgão, as Visions de l'Amen
para dois pianos, o Quatuor pour la fin du temps [Quarteto para
o fim do tempo]. É professor de harmonia do Conservatório faz
três anos e, há uns doze, os meios musicais esperam suas novas
obras com curiosidade. Mas, em 1945, a primeira audição das
Trois petites liturgies de la présence divine desencadeia uma tem­
pestade, em que a violência injuriosa e difamatoria não tem equi­
valente na história da crítica musical: "conspiração do mistério
e do malefício"... música "de unhas pretas, de mãos úmidas, de
tez linfática, de gordura malsã"... "estilo de negrume inquieto
e lúbrico"...
Não perdoam Messiaen por ter arrancado a aprovação do pú­
blico num estilo que deveria ter suscitado os sarcasmos e a indig­
nação deste. Não lhe perdoam por amalgamar a tradição e a re­
volução, a fé católica e a sensualidade, segundo uma estética in-
definível. Atacam-no sobretudo por causa dos comentários com
que cerca suas obras: o simbolismo visionário destes desencoraja
a exegese e a crítica. "Meu desejo secreto levou-me em direção

a essas espadas de fogo, a essas bruscas estrelas, a essas torrentes Olivier Messiaen.
de lava azul-laranja, a esses planetas turquesa, a esses violetas,
a esses grenás de arborescências cabeludas, a esses turbilhões de
sons e de cores em confusões de arco-íris..."
Um mês antes, Yvonne Loriod deu a primeira audição de
uma das obras-primas do piano moderno, Vingt regards sur l'en­
fant Jésus. Diante dessa obra monumental, o público mostrou-
se mais reticente e os espíritos fortes menos violentos: riu-se.
O estilo de Messiaen chegou então à maturidade; para ser mais
exato, ele assimilou completamente os princípios essenciais em
torno dos quais evoluirá sem cessar livremente. Porque sua esté­
tica e sua técnica se prestam a todas as novas conquistas, e seu
maravilhoso ecletismo sempre impedirá esse professor exemplar
de se instalar no conforto de um academismo, ainda que este
seja de vanguarda e instituído à sua conveniência. Ele disse com
freqüência que se nutria de tudo; o cantochão, o folclore, Bach,
a música russa, Debussy, Bartók, as músicas exóticas, o canto
dos passarinhos e os ruídos da natureza proporcionam-lhe os
elementos de uma síntese inaudita.
Irr ν»β 1

OLIVIER MESSIAEN 1947 Professor de análise, estéti­ Concerto de passarinhos, em


Avignon, 10 de dezembro de 1908 Chronochromie pour grand orchestre.
ca e ritmo no Conservatorio. Seu
¡ e r \aa 2 curso logo se transforma num en­
Filho de Pierre Messiaen (professor sino superior de composição, que
de letras e tradutor de Shakespeare) se estenderá ao Conservatório de
e de Cécile Sauvage, poeta simbolis­ verão de Darmstadt, assim como
ta, cresce num clima de inteligência a Tanglewood (Berkshire Music
estética. Aos oito anos, aprende so­ Centre), Budapeste, Buenos A i ­
zinho piano e composição. res, Sarrebruck, etc. Dentre os
1919-1930 Aluno no Conservatório alunos de Messiaen: Boulez, Le
11' V i " 5 de Paris de Gallon, Dupré, Emma­ Roux, Duhamel, Nigg, Barraqué,
nuel, Dukas. Ganha cinco primei­ Ballif, Pierre Henry, Yvonne Lo­
ros prêmios. Paralelamente, estuda riod, Stockhausen, Xenakis, Cons­
o cantochão, a rítmica indiana, a tant, Prey, Betsy Jolas, Philippot,
música em quartos de tom, o canto Fano, J.P. Guézec, G. Amy, P.
dos passarinhos, os livros sagrados, Mefano, etc.
a poesia surrealista... 1949 Mode de valeurs et d'intensi­
1931 É nomeado organista da Tri­ tés dá uma orientação decisiva à no­
nité. Suas improvisações e suas pri­ va música.
meiras obras importantes para ór­ 1953 Primeira audição em Stuttgart
gão (Apparition de l'Église éternel­ do Livre d'orgue.
le, L'Ascension, La Nativité) atraem 1967 Membro do Instituto.
para si a atenção do mundo musi­ 1969 Primeira audição triunfal em
cal. Lisboa do oratório La transfigura­
1936-1939 Professor da Escola tion, a obra capital, suma do pen­
Normal e da Schola Cantorum. samento de Messiaen.
1940-1942 Prisioneiro de guerra no 1972 Primeira audição em Wash­
Stalag V I I I A em Görlitz (perto da ington das Méditations sur le mystè­
fronteira polonesa). Compõe aí o re de la Sainte-Trinité. Messiaen e Stockhausen.
Quarteto para o fim do tempo,
apresentado em primeira audição
no campo de concentração, em
1941.
1942 Libertado, é nomeado profes­
sor de harmonia do Conservatório.
1945 As primeiras audições em Pa­
ris dos Vingt regards sur l'enfant Jé­
sus (por Yvonne Loriod) e, um mês
depois, das Petites liturgies de la
présence divine (regência de Désor­
mière), precedidas da publicação
(em 1944) do tratado de composi­
ção Technique de mon langage mu­
sical, deflagram uma violenta polê­
r
l'l vri'* mica entre partidários e adversários
de Messiaen.
317 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

Em outras palavras, Messiaen tem uma predileção por ritmos que


obra Trois petites liturgies de la questra de instrumentos de sopro e são ditos "não retrogradáveis", porque sua forma retrógrada é
présence divine para coro fenúriino percussões. Oiseaux exotiques, Ré­ idêntica à forma direta (não pode ser lido de trás para diante sem
e orquestra. Cinq rechants para 12 veil des oiseaux, Couleurs de la ci­ cair nos mesmos valores) — são grupos simétricos em relação a
vozes a capela. La transfiguration té céleste, Sept Hai-Kai, Des ca­ um valor central.
de Notre Seigneur Jésus-Christ pa­ nyons aux étoiles, para piano e or­
ra coro e orquestra. Três ciclos de questra. Quatuor pour la fin du
melodias: Poèmes pour Mi (com or­ temps para violino, clarineta, vio­
questra), Chants de terre et de ciel loncelo e piano. Obras para piano,
eHarawi. L'Ascension, Turangali- dentre as quais Vingt regards sur
la-Symphonie e Chronochromie pa­ l'enfant Jésus e Catalogue d'oi­
ra grande orquestra. Et expecto re- seaux. Uma volumosa obra para
surrectionem mortuorum para or­órgão.
Quatuor pour la fin du temps

Por outro lado, ele utiliza modos "de transposições limitadas",


Dois procedimentos extremamente fecundos serviram de ba­ de que só podemos obter um número limitado de transposições
se para seu método de composição, tal como ele o define na Téc­ sem cairmos de novo nas notas iniciais. Assim:
nica da minha linguagem musical (1944): ele "ampliou, amplifi­
cou certas noções antigas" e adotou "regras universais, princí­ escala por tom
pios unificadores". : admite apenas
2 transposições.
1. Ampliação de noções antigas. Esse princípio garante o vín­
culo com a tradição. Assim, o "pedal" (som obstinadamente pro­ : admite 3 transposições.
longado) torna-se um "grupo-pedal" mais ou menos considerá­
vel, constituindo um ostinato. Há três espécies de grupo-pedal.
O "pedal melódico" é uma frase que se repete independentemen­ : 4 transposições.
te dos ritmos ou das harmonias, como no moteto do século X I I I
ou na passacaglia. O "pedal harmônico" e o "pedal rítmico" são : 5 transposições,
uma sucessão de acordes e uma sucessão de valores rítmicos, que como os modos 4, 6 e 7.
se repetem da mesma maneira.
Segundo o mesmo princípio, a anacrusa (ou preparação), o Modos de transposições limitadas
acento (ponto culminante da frase) e a desinencia (ou queda)
tornam-se, cada um, um conjunto importante de sons. A combi­ As escalas maiores e menores clássicas proporcionam doze trans­
nação "anacrusa-acento-desinência" é uma construção comple­ posições diferentes (em todos os graus da escala cromática).
xa em que o acento pode estar subentendido, ou, ao contrário, — O emprego de "valores acrescentados". Do mesmo mo­
apresentar-se como uma imensa apojatura central. do que acordes simples terão uma cor particular se lhes acrescen­
tarmos notas estranhas (como em Debussy), assim também o acrés­
2. Princípios unificadores. São regras universais que concer­
cimo de um ponto ou de um valor breve dará seu caráter original
nem tanto à melodia como à harmonia e ao ritmo. Podemos dis­
às células rítmicas.
tinguir três tipos principais:
Messiaen nota os valores rítmicos com extrema minúcia, não
— O "encanto das impossibilidades". O ouvinte, escreve Mes­
podendo contentar-se com indicações imprecisas de ralentando,
siaen, "sofrerá independentemente da sua vontade o encanto das
de acelerando, de fermata, que atestaram, durantes séculos, uma
impossibilidades: um certo efeito de ubiqüidade tonai na não- notável indiferença ao ritmo, elemento curiosamente depreciado
transposição, uma certa unidade de movimento na impossibilida­ na música ocidental.
de do movimento retrógrado, tudo isso coisas que o levarão pro­ — As combinações de pedáis. Se sobrepusermos um "pedal
gressivamente a essa espécie de 'arco-íris teológico' que a lingua­ melódico", um "pedal rítmico" e um "pedal harmônico", cujos
gem musical cuja edificação e cuja teoria procuramos tenta ser". elementos sejam em números diferentes, obteremos uma renova-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 318 319 EXPLORAÇÕES NO ÂMAGO DA MÚSICA

ção perpétua das combinações, em particular se os números de ele­ Os Études de rythme pertencem a um período de pesquisa
30
mentos forem primos entre si . A unidade é salvaguardada pela dominado pelo sutilíssimo Livre d'orgue. Neles, Messiaen asso­
repetição dos mesmos elementos e pelos três pedáis, deslocados sem cia uma grande variedade de ritmos indianos, de cantos de pássa­
cessar, reagindo uns sobre os outros de maneiras sempre diferen­ ros e de timbres a estruturas seriais, numa escrita linear de extre­
tes. Um método análogo é empregado em música eletracústica, ma complexidade. É notável que essas obras "experimentais", cuja
quando se misturam seqüências de comprimentos diferentes. leitura inspira certo assombro, proporcionam à audição uma im­
A riqueza melódica, harmônica e rítmica, na música de Mes­ pressão de riqueza inaudita.
siaen, é inesgotável. Ela aumenta ainda pela assimilação de for­ Em 1953, quando seus alunos estão comprometidos num se-
mas emprestadas, notadamente dos rãgã indianos e dos cantos dos rialismo totalitário, em parte sob sua influência, e quando o velho
pássaros. A liguagem rítmica é particularmente interessante. De­ Stravinsky acaba de sucumbir a ele, Messiaen escolhe a liberdade.
bussy evadiu-se da ordem periódica imposta pelo compasso. Mes­ Compõe Réveil des oiseaux, para piano e orquestra, que será se­
siaen, por sua Vez, substitui o compasso por uma organização coe­ guido de Oiseaux exotiques (1956), igualmente para piano e orques­
rente, em que o ritmo só se refere à sua própria estrutura e adqui­ tra, e de Catalogue d'oiseaux para piano (1958). Não é a primeira
re autonomia, proporcionando-lhe as mesmas possibilidades de vez que introduz em suas obras cantos de pássaros; ele conhece uma
desenvolvimento que os outros parâmetros formais. Tudo isso é extraordinária variedade desses cantos, tendo notado todas as suas
levado a um ponto culminante na sinfonia Turangalila (1946), formas em cadernos com extrema minúcia. Mas nessas composi­
imenso canto de amor, barroco e caloroso. ções espantosas, de uma riqueza sem equivalente, só utiliza cantos
de pássaros, cuja entoação, acentuação e ritmo são reproduzidos
Em 1949, Messiaen publica Quatre études de rythme para pia­ tão fielmente quanto nosso sistema musical, a instrumentação e
no, dos quais o segundo, Modo de valores e de intensidades, ad­ a notação permitirem! Pode haver música mais audaciosa e, ao mes­
quiriu uma importância histórica particular. Essa curta peça pre­ mo tempo, mais fascinante do que esses concertos de passarinhos
tende ser um "prolongamento das idéias de Einstein" sobre a in­ organizados por mu dos mais doutos músicos de nosso tempo? Tam­
teração dos parâmetros temporais e espaciais; mas não se é obri­ bém encontramos um exemplo admirável dessa música, mesclado
gado a seguir o autor em suas parábolas relativistas! A idéia no­ ao ruído das águas e dos ventos da montanha, na penúltima se­
tável está em ter baseado a composição nas combinações de quatro qüência de Chronochromie (1960), "Epode".
"modos" complementares: um modo de alturas de trinta e seis
sons (dispostos em quase toda a extensão do teclado), um modo
rítmico de vinte e quatro valores de duração, um modo de ata­
ques {staccato, legato, tenuto, etc.) e um modo de intensidades
(de ppp ΆIff). Buscando um princípio unificador que se estenda
a todos os componentes da música, Messiaen é a fonte de uma
idéia que subverterá a consciência musical nos anos 50: a genera­
lização do método serial, que Webern apenas entreviu.
O ensino de Messiaen exerce então uma influência conside­
rável sobre os jovens compositores. Suas análises geniais da Sa¬
gração de Stravinsky, de Pelléas e de La mer de Debussy, da Mú­
sica para cordas de Bartók ou das obras da escola vienense fica­
ram célebres. Sua turma de harmonia desde 1942 e sua turma de Os "cantos" dos pássaros, ruídos sublimes, frutos de milha­
análise desde 1947 são verdadeiras turmas de composição, cuja res de séculos de adaptação fisiológica, são um desafio a nossos
31

influência ultrapassa largamente as fronteiras francesas. Podemos laboriosos métodos de composição . Imitando-os com respeito,
considerar que esse ensino prodigiosamente aberto foi decisivo pa­ Messiaen acentua a universalidade de seu estilo. Eles lhe propor-
ra toda a evolução da música na segunda metade do século.
31. "Os passarinhos são grandes artistas", diz Messiaen. Mas então por que,
sendo também um grande artista, necessita tanto deles? O milagre, ao contrário,
30. Se, por exemplo, sobrepusermos uma melodia de 8 sons, um ritmo de parece-me estar em que eles não realizam um pensamento artístico, mas uma fun­
5 valores e uma harmonia de 9 acordes, só tornaremos a encontrar a combinação ção. Se a vaca não "canta" tão bem quanto o melro, não é porque ela é menos
inicial depois de ter ouvido a melodia 45 vezes (a série de acordes 40 vezes, o rit­ grande artista, mas simplesmente porque sua anatomia não é adaptada a essa fun­
ção. E m compensação, ela dá leite!
mo 72 vezes).
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 320
¡'I i'
cionam uma infinidade de novos modos (melódicos, rítmicos, de
intensidade, de timbres) que não precisam dar provas da sua legi­
timidade. Essas riquezas não cessam de jorrar em suas composi­
ções ulteriores, particularmente em La transfiguration de Notre
Seigneur Jésus-Christ (1969) e Des canyons aux étoiles (1975),
obras fulgurantes que permanecerão entre os monumentos musi­
cais de nosso século.
O empirismo naturalista de Messiaen é complementar à sua
fé religiosa. Sua música é "teológica", explica ele — isto é, ela
é uma relação com Deus. É "católica" — isto é, universal. A sus­
peita que seu "misticismo" provocou não tem sentido. Messiaen
é intensamente'crente, mas nunca se postou como um místico, ao
contrário; é essencialmente por uma relação sensual com o mun­
do que se estabelece sua relação com Deus. Assim, ele reivindica
"uma música furta-cor, que proporcione ao sentido auditivo pra­
zeres voluptuosamente refinados". O imenso trabalho que cada
uma das suas partituras representa e a independência obstinada
que seus comentários denotam são garantias suficientes da sua sin­
ceridade, tão freqüentemente contestada.

na França, mas em toda Europa ocidental e nos Estados Unidos:


Schönberg e sua escola (1946) e Introdução à música de doze sons
A RENOVAÇÃO SERIAL: (1949). Não só essas obras constituem uma excelente documenta­
ção de base sobre a música serial "clássica", enriquecida com aná­
DA ESCRAVIDÃO À LIBERDADE lises exemplares, mas também estabelecem pela primeira vez que
o método proposto por Schönberg é o remate lógico da evolução
A nova corrente Graças a Messiaen e Boulez, a renovação se­ do sistema tonai, do mesmo modo que este fora o remate lógico
rial dos anos 40, destinada ao mais intolerante academismo, da evolução da polifonia modal.
colocou-se irresistivelmente na corrente debussysta das audacio­ Uma inteligência agudíssima, uma dialética de bronze e uma
sas explorações modais, rítmicas e instrumentais. Nos primeiros coragem de granito permitem que Leibowitz fascine toda uma ge­
anos de sua carreira de pedagogo, Messiaen era extremamente pou­ ração de compositores. Depois de ter subtraído temporariamente
co favorável ao método serial. A música da escola vienense, com alguns jovens franceses à influência de Messiaen, assenta um sé­
exceção da de Berg, não lhe inspirava simpatia alguma. Não obs­ rio golpe na influência de Hindemith na Alemanha, pelos cursos
tante, com uma admirável imparcialidade, ele se entregava a su­ que dá em Darmstadt em 1948 e 1949.
tis análises das composições de Schönberg, depois de Webern, des­ Graças à corajosa iniciativa do musicólogo Wolfgang Stei­
pertando a curiosidade de seus alunos por esse mundo sonoro que necke (1910-1961), o castelo de Kranichstein, perto de Darmstadt,
eles ainda não conheciam e incentivando seu gosto pela pesquisa. abriga desde 1946 o Kranichsteiner Musikinstitut, que organiza
Em 1945, um músico de origem polonesa, René Leibowitz a cada verão concertos e cursos de férias consagrados às mais re­
(1913-1972), volta a Paris, onde passou uma parte da juventude. centes formas do pensamento musical contemporâneo. Hindemith,
Depois de ter sido aluno de Schönberg e Webern, de 1930 a 1933, Varèse, Messiaen, Leibowitz, Fortner e Kíenek ensinam aí, e a
levou uma vida clandestina e estudiosa durante os anos do hitle­ maioria dos compositores que contribuirão para orientar a evo­
rismo. Esse desconhecido logo atrai os jovens compositores, que lução da música na segunda metade do século aí completam sua
vão ter com ele cursos de escrita serial, complemento necessário formação e mostram suas novas obras, antes de ensinar por sua
do ensino de Messiaen. Eles aprendem um método rigoroso de vez no Instituto: Luigi Nono (1924), Claude Ballif (1924), Hanz
Komposition mit zwölf Tönen. Completando essa iniciação, duas Werner Henze (1926), Bruno Maderna (1920-1973), Karlheinz
A biblioteca, por Vieira da Silva. obras notáveis de Leibowitz vão ter enorme repercussão, não só
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 322 323 A RENOVAÇÃO SERIAL

Stockhauseri (1928) estão entre os que receberão e darão muito tenidos e bemóis, perverte a sensibilidade auditiva e freia a ima­
a Darmstadt. Pierre Boulez (1925) é um dos raros músicos de sua ginação. Mas eles pressentem a fecundidade do princípio serial
geração que lá deu aulas (bem mocinho) sem nunca lá ter estuda­ enquanto novo meio de organizar um campo de possibilidades
do. Paralelamente aos cursos de composição, os responsáveis pe­ qualquer, o total cromático (dodecafonia) ou, eventualmente, ou­
lo Instituto tiveram a idéia de organizar cursos de interpretação tra coisa... Leibowitz ensinou-lhes um método rigoroso, como o
em que, pela primeira vez, instrumentistas são iniciados nos pro­ contraponto e a fuga escolares. Agora, Messiaen e Boulez indicam-
blemas específicos da música contemporânea. Essa iniciativa faz lhes o caminho da liberdade.
eco à célebre tirada de Schönberg: "Minha música não é moder­ Mas a liberdade é difícil e perigosa. A vanguarda serial dos
na, é mal tocada." anos 50 não consegue abraçá-la de imediato. Muitos se preten­
Essa primeira geração do pós-guerra, formada por Messiaen, dem "estritamente seriais" e algumas de suas composições são
Leibowitz e pelos cursos de Darmstadt, não concebe que a músi­ mais adequadas para conquistar a estima dos colegas do que a
ca de hoje possa ser outra que não serial. Mas eles não se preten­ confiança do público. Maurice Le Roux (1923), um dos mais bri­
dem revolucionários, ao contrário do que o público pensa então lhantes alunos de Messiaen e um dos primeiros, com Boulez, a
— e, de resto, não são mesmo. A escrita serial é o último estágio se lançar na nova aventura, fez a experiência disso à sua custa.
da evolução da escrita polifónica; utilizada desde 1923, é a técni­ Seu magnífico Cercle des métamorphoses para orquestra faz a mu­
ca de um novo classicismo, que se pôde pensar já morto. Não é sicalidade mais sensível e a escrita mais complexa coincidirem; to­
uma ruptura que se opera, mas um "retorno a...", que corre o das as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento serial são
risco de se tornar um pavoroso academismo. Felizmente, o pres­ exploradas com rigor, mas essa aritmética tem uma alma. A pri­
tígio de Messiaen brilha com um novo fulgor quando seus discí­ meira audição em 1953, em Aix-en-Provence, foi tumultuada. O
pulos descobrem o famoso estudo para piano Mode de valeurs público sem dúvida ficou zangado com a aritmética, cujo rigor
et d'intensités.
certamente lhe teria escapado se não lhe tivessem dito nada, e não
Boulez sente uma contradição na obra de Schönberg entre, ouviu a música . 32

de um lado, o radicalismo do método serial, aplicado à melodia


e à harmonia e, de outro, a indiferença em relação ao ritmo, à Os compositores falam demais. Desde meados do século,
instrumentação, às formas, que conservam os velhos hábitos da gabam-se muito mais de sua ciência combinatoria do que de
música tradicional. Desde as suas primeiras obras, em particular sua intuição artística; cada um considera um ponto de honra
a Sonatina para flauta e piano (1946) e a magistral Segunda sona­ ser mais douto e mais paciente que os outros no exercício da
ta para piano (1948), Boulez mantém distância do dodecafonis­ única disciplina válida. A música moderna é levada a um regi­
mo clássico, procurando conciliar os princípios do desenvolvimen­ me de partido único, com seus aproveitadores, seus ativistas
to serial com as pesquisas rítmicas de Messiaen. Webern parece e seus proscritos. Um terrorismo estético impõe a hegemonia
o único modelo a se seguir, pois aborda globalmente a realidade da música serial: todo jovem músico que quer ser respeitado
musical, nela introduzindo uma concepção ousada do ritmo e da tem de abraçá-la. Os que se recusam a fazê-lo — às vezes por
instrumentação. Sua obra, considerada até então um ponto de che­ maus motivos — contraem um curioso complexo de inferiorida­
gada, torna-se, por volta de 1950, o ponto de partida de uma de que os torna agressivos e injustos para com os seriais; estes
aventura. respondem com o desprezo e os sarcasmos. Desde os bons tem­
Ao mesmo tempo, o estudo de Messiaen ilumina o caminho pos da Schola, nunca se conhecera semelhante espírito de igreji-
a seguir. Nele o princípio modal é estendido a todos os parâme­ nha, em contradição com a modéstia e a tolerância exemplar de
tros sonoros; o princípio serial pode sê-lo da mesma maneira. Os Webern.
jovens neo-seriais, que logo reconhecem Boulez como um chefe Os santuários da nova música são, então, o Instituto de
de escola, não se contentarão com o jogo escolar das permuta- Darmstadt-Kramchstein, cujos concertos são o complemento in­
ções, inversões e caranguejos de uma mesma série de doze sons, dispensável dos cursos de verão, o festival de Donaueschingen,
em que a variação contínua é a única técnica de composição con­
forme à regra de não-repetição (ver p. 219). A uma série de altu­
32. A música de L e Roux não teve a difusão que merece, com exceção do
ras, eles associarão uma série de valores rítmicos, uma série de balé Le petit prince, baseado em Saint-Exupéry. A regência infelizmente afastou-
timbres, uma série de intensidades. Não é tanto o dodecafonismo o da composição, em que sua curiosidade, seus dotes excepcionais e seu entusias­
que os atrai: sua escala temperada, fria e artificial, confunde sus- mo comunicativo ainda prometem muito.
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 324

Manuscrito do Marteau sans maître.

fundado em 1921, que organiza desde 1950 jornadas de música inesperadas, uma música extremamente difícil de ser executada.
contemporânea, enfim o Domaine Musical em Paris. Essa asso­ Pouco a pouco, os ateliês de composição, os grupos de música
ciação, fundada em 1954 por Boulez, sob os auspícios da Com¬ experimental, os festivais especializados se multiplicarão na Fran­
* panhia M . Renaud-J.-L. Barrault, foi até 1973 no Petit-Marigny, ça, na Alemanha, na Itália, depois em toda a Europa e nos Esta­
depois no Odéon, um dos mais notáveis bancos de prova da mú­ dos Unidos.
sica contemporânea. Criticou-se muito essa instituição, seu me­
cenato privado, seu público esnobe, suas exclusões. Em todo ca­ Boulez Entretanto, a escrita serial, ao se generalizar, tornou-se
so, os concertos do "Domaine" deram a numerosos jovens com­ extremamente complexa. Em Mode de valeurs et d'intensités de
positores a oportunidade de mostrar, em condições de trabalho Messiaen, a cada som do modo melódico é atribuída uma dura-
ção, um ataque e uma intensidade variáveis — são como perso­ de Boulez, inaugurando um serialismo de semblante humano, que Boulez com Luciano Berio, 1974.
nagens que aparecem sempre com seus atributos específicos. Nas ainda levará alguns anos para se impor aos dodecafonistas "clás­
Structures para dois pianos de Boulez (primeiro livro, 1952), que sicos".
33
se inspiram no estudo de Messiaen , as séries complementares A evolução do estilo de Boulez precede ou acompanha a dos
são associadas de maneira variável: cada nota poderá receber su­ movimentos musicais de vanguarda. A partir do Marteau sans maî­
cessivamente diferentes ataques, nuanças e durações que compõem tre, a vontade de humamzação da música serial traduz-se por um
o material serial. A diversidade das combinações possíveis é pra­ refinamento da escrita vocal e instrumental, cujo hedonismo se
ticamente ilimitada, o que, infelizmente, não torna a audição mais vincula à corrente debussysta. A voz adquiriu uma nova impor­
atraente.
tância, que suscita pesquisas aprofundadas sobre as relações texto-
Essa obra capital, mas aborrecida, só fascinou os iniciados, música: a resultante dessas pesquisas será Pli selon pli (Portrait
sobre os quais sua influência foi considerável. Mas é em Le mar­ de Mallarmé), 1958-1959, obra suntuosa cujo conhecimento é ne­
teau sans maître (1954), a partir de poemas de René Char, que
cessário a quem quiser compreender a evolução da música con­
o método serial generalizado deixa o estágio experimental para
temporânea. Ε será interessante comparar a beleza sonora do se­
alcançar o da perfeita mestria e da livre fantasia. Essa suíte para
gundo livro de Structures (1962) com a secura do primeiro.
contralto, flauta, xilofone, vibrafone, guitarra, viola e uma rica
percussão é sedutora, leve e transparente, a despeito de sua sutil Em 1957, uma peça para piano de Stockhausen, de caráter
34
complexidade . Ela está na origem da notoriedade internacional bem livre, Klavierstück XI, é apresentada em primeira audição
em Darmstadt, seguida pouco tempo depois, no Domaine Musi­
33. Fragmentos dessa obra são apresentados em primeira audição no Festival
cal, da magistral Terceira sonata de Boulez. Essas composições,
do século X X por Messiaen e Boulez. Essa colaboração é sentida como o símbolo em que são introduzidos fatores de indeterminação das combina­
do entendimento e da influência mútua do mestre e do aluno. A autoridade de Mes­ ções seriais, adotam pela primeira vez o que é chamado de "for­
siaen sobre os jovens discípulos estrangeiros de Boulez aumenta ainda mais com isso.
34. E l a fora recusada a princípio no festival da S I M C , mas Marie-Thérèse
mas abertas". Uma obra aberta é composta de certo número de
Cahn e Hans Rosbaud a fizeram triunfar em Baden-Baden. "formantes", cada um dos quais admite várias variantes, cuja di-
O SÉCULO DAS METAMORFOSES 328 329 A RENOVAÇÃO SERIAL

versidade de emprego é deixada à iniciativa dos intérpretes. Mais dentemente das obras que essas técnicas sem precedentes suscita­
tarde, tantas vezes quantas achar necessário, o compositor pode­ rão, sua influência será profunda sobre a evolução das concep­
rá introduzir em sua composição novos formantes ou novas re­ ções estéticas e dos métodos de composição.
gras de combinação. O fetichismo do objeto musical acabado es­ A maior parte dos compositores seriais, alunos de Messiaen,
tá superado. A obra está em perpétuo devir, o que a denomina­ dos cursos de Darmstadt ou de Boulez, seguiu caminhos mais
35
ção, que se tornou usual, de works in progress exprime . A for­ ou menos originais, do extremo rigor do dodecafonismo clássico
ma é, então, duplamente aberta, ao intérprete e ao próprio com­ à üvre exploração de todo o contínuo das alturas, das durações
positor. A partir de 1957, grande parte da atividade criadora de e dos timbres, passando pela generalização do princípio serial.
Boulez se refere a essa noção de obra em evolução. É em particu­ Bruno Maderna (1920-1973), cabeça da jovem escola italiana,
lar o caso de uma obra notável, Éclats, cujo refinamento instru­ dedicou-se incansavelmente à defesa da nova música (como re­
mental seduziu o grande público. Composta em 1964 para quinze gente) e à pesquisa. Criou em Milão o Studio di Fonología da
instrumentos, essa obra, em parte improvisada, era destinada a RAI, primeiro centro de música experimental na Itália. Seu alu­
se inserir numa composição fixa para orquestra, o que deu, em no Luigi Nono (1924) é uma das mais fortes personalidades da
1969, Éclat/Multiples. música contemporânea. O militantismo politico a que sua obra
é dedicada tem o raro mérito de conciliar-se com o intransigente
Sair do impasse No estágio de complexidade que a música se­ modernismo do pensamento musical. É excepcional traduzir de
rial alcançou nos anos 50, a liberdade da pesquisa é Hmitada maneira tão convincente, numa escrita serial tão sutil, o lirismo
pelo sistema de notação, pela luteria, pelas habilidades de exe­ generoso e o calor humano que fazem a grandeza da música de
cução, por todas as instituições da música ocidental que repou­ Nono. A cantata II canto sospeso (1956) e a ópera Intolleranza
sam na escala de doze sons e numa rítmica paupérrima. A liber­ (1961) se alinham entre as obras mais comoventes deste tempo...
dade de pesquisa também é Hmitada pela generalização do prin­ Luciano Berio (1925) libertou-se bem depressa das imposições se­
cípio serial. Na variação total, todas as formas, todas as combi­ riais, mal adaptadas a seu temperamento, em benefício de um
nações possíveis, fazem parte de um grande todo cibernético estilo barroco, luxuriante, que integra todos os procedimentos
teoricamente cognoscível, em que o excepcional (a verdadeira da "nova música" com uma inteligência e uma independência
variação!) não existe mais. "Quando tudo se transforma igual­ notáveis (ver p. 396)...
mente em variação, quando mais nenhum 'tema' persiste e quan­ Karlheinz Stockhausen (1928) é uma estrela que o público ci­
do qualquer aparição musical sem distinção se determina como ta como exemplo para justificar seu gosto ou seu desgosto pela
permutação da série, a universalidade da variação faz com que música contemporânea. Audacioso e inventivo, tem ares de chefe
36
nada mais varie." O sistema é totalitário, no sentido de que de escola, junto com Boulez. Mas é um exagero pôr os dois músi­
engloba todos os componentes da música, sem admitir diversi­ cos num mesmo plano: o constante procedimento experimental
dade. de Stockhausen não é sustentado por uma cultura e uma reflexão
A reconquista do imprevisto e do excepcional, por uma su­ metódica comparáveis às de Boulez. A agressividade, a feiúra cal­
peração do método serial e pela integração de fatores aleatórios, culada, a ingenuidade de uma complexidade de escrita indiscerní-
será o motor principal da importante evolução da nova música