Você está na página 1de 236

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 27
janeiro/junho - 2013

ISSN: 1517-7599
Editorial

Este volume 27 de Per Musi (QUALIS A1 na CAPES e indexada na SciELO) apresenta 18 artigos e uma resenha. Preocupa-
do com a construção de um ambiente sadio para a pesquisa em música, Luis Ricardo Silva Queiroz aborda um tema há
muito devido no Brasil: a ética na produção e divulgação do conhecimento musical científico, seus aspectos conceituais,
perspectivas e implicações práticas na atualidade.
Em um par de artigos analíticos, Gabriel Ferrão Moreira defende a existência de um “estilo indígena” em Villa-Lobos.
No primeiro, discute procedimentos composicionais recorrentes na melodia e harmonia do nosso grande compositor. No
segundo, apresenta uma abordagem hermenêutica das questões rítmicas e texturais para, finalmente, propor a existência
de tópicas indígenas brasileiras.
Mauricio De Bonis destrincha o entrecruzamento de procedimentos composicionais (metalinguagem, citação, artes plás-
ticas, teatro musical, leitura semântica) de Willy Corrêa de Oliveira em uma das peças de seu ciclo para piano Miserere,
baseada na interpretação de Joan Baez da canção tradicional mexicana La llorona.
Para analisar as contribuições do manuscrito O Melos e harmonia acústica de César Guerra-Peixe, Ernesto Hartmann
coloca, lado a lado, dois outros referenciais teóricos: o Caderno de estudos com Koellreutter do próprio Guerra-Peixe e o
The Craft of musical composition de Paul Hindemith.
Dentro da proposta de um sistema de modelagem composicional, Pedro Miguel de Moraes, Gustavo de Castro e Liduino
Pitombeira explicam o processo de geração de uma nova obra musical (Ponteio Nº 2, para piano, de Pedro Miguel de
Moraes) a partir do Ponteio Nº 12, para piano, de Camargo Guarnieri.
Dentro de seu projeto maior de propor uma metodologia para explicar os procedimentos da variação progressiva, Carlos
de Lemos Almada aborda as relações simbólicas e de hereditariedade entre a primeira das Quatro Canções Op.2 de Alban
Berg e três obras referenciais: Tristão e Isolda de Richard Wagner, a Primeira Sinfonia de Câmara Op.9 de Arnold Schoen-
berg e a Sonata para Piano Op.1 do próprio Berg.
Philippe Curimbaba Freitas, a partir do conceito de fetichismo musical de Adorno, discute a expressão e a negação
da forma em Erwartung, obra de Arnold Schoenberg que sintetizou o expressionismo.
Leonardo Pires Rosse desvenda os códigos musicais e literários do “paulista”, gênero musical camponês do nordeste de
Minas Gerais, cujos elementos podem ser pertinentes também a outras manifestações semelhantes no Brasil.
Maria Inêz Lucas Machado aborda o ensino do piano como um instrumento complementar que promove a interdisci-
plinaridade e a integração entre domínios diversos da formação acadêmica no bacharelado e na licenciatura em música,
discutindo ações pedagógicas de pianistas e professores em relação à apreciação, performance e criação.
Viviane Cristina da Rocha e Paulo Sérgio Boggio discutem as perspectivas interdisciplinares entre neurociências e mú-
sica na última década - interface ainda incipiente no Brasil – e suas contribuições para os campos da pedagogia musical,
performance e musicoterapia.
Karina Aki Otubo, Andréa Cintra Lopes e José Roberto Pereira Lauris traçam um perfil audiológico de alunos de gra-
duação em música, os quais foram submetidos a diversas avaliações (audiometria tonal liminar e de altas frequências,
logoaudiometria, imitanciometria e emissões otoacústicas) e sugerem ações educativas e preventivas contra a perda
auditiva.
Em seu estudo transversal sobre cantores líricos, Enio Lopes Mello, Léslie Piccolotto, Natalia Fonseca Pacheco e Mar-
ta Assumpção de Andrada e Silva revelam como seis eixos temáticos - emoção, técnica, habilidades, entrega, corpo e
interpretação – se relacionam com a expressividade e experiência na ópera.
Fernando Chaib estuda a aplicação do gesto na música para percussão, propondo uma abordagem tripartite na sua
realização, segundo ações corporais, intelectuais e sua integração, que são ilustradas com muitos excertos de obras
selecionadas relevantes do seu repertório.
Buscando expandir a técnica instrumental da pestana no violão e sua escassa bibliografia, Bruno Madeira e Fabio Scar-
duelli apresentam a história de sua utilização, ilustrando com procedimentos usuais e não usuais do repertório.
Gueber Pessoa Santos e Ricardo Mazzini Bordini demonstram como a análise motívica da Fantasia Sul América, para
clarineta solo, de Claudio Santoro pode servir de base para a construção de uma interpretação fundamentada pelo ins-
trumentista.
Vinícius de Sousa Fraga se debruça sobre questões históricas, analíticas e de performance do Concerto para Clarineta,
Op.57 de Carl Nielsen, discutindo também as divergências entre os manuscritos e a edição impressa.
Pablo Alberto Lanzoni apresenta uma análise retórica do Largo do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056 de J. S. Bach,
mostrando como os princípios retóricos estão intimamente relacionados aos procedimentos composicionais do gênio
alemão.
Na Seção Pega na Chaleira, temos duas resenhas. Luciano Hercílio Alves Souto apresenta a tese de doutorado O Violão
na era do disco: interpretação e desleitura na arte de Juliam Bream de Sidney Molina Júnior. Margarete Arroyo discute
Pictures of Music Education, o mais recente livro de Estelle Ruth Jorgensen, autora que é referência no campo da filosofia
da educação musical.
Informamos que Per Musi está disponível gratuitamente nos sites www.scielo.com.br e www.musica.ufmg.br/permusi.
As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail permusi@
ufmg.br.

Fausto Borém
Fundador e Editor Científico de Per Musi
PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade
e o debate são bem-vindos. As ideias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada
nas bases SciELO, RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Fundador e Editor Científico Universidade Federal de Minas Gerais


Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Reitor Clélio Campolina Diniz
Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton
Corpo Editorial Internacional Pró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago Gomez
Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Pró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de Oliveira
Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Pró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos
Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)
Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA) Escola de Música da UFMG
Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal) Diretor Prof. Dr. Maurício Freire Garcia
Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Montreal, Canadá) Vice-Diretor Prof. Dr. Flávio Barbeitas
João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal)
Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG
Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Coord. Prof. Dr. Sérgio Freire
Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Sub-Coord. Prof. Dr. Fernando Rocha
Inglaterra) Sec. Geralda Martins Moreira
Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Sec. Alan Antunes Gomes
Melanie Plesch (University of Melbourne, Austrália)
Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra) Planejamento e Produção
Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina) Melissa Soares - Cedecom/UFMG
Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Isabella Lucas (estagiária) – Cedecom/UFMG
Ingred Souza (estagiária) – Cedecom/UFMG
Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)
Projeto Gráfico
Corpo Editorial no Brasil Capa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMG
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Diagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG
Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)
André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte) Créditos das ilustrações da capa
André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) Gravuras de Villa-Lobos baseadas em quadro de Rugendas e desenho de
Ângelo Dias (UFG, Goiânia) Czeslaw Slania, impressos na cédula de Cz$ 500, utilizada entre 1986 e 1990.
Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte) Detalhes de partituras e desenho de indígenas retirados de manuscritos de
Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília) Villa-Lobos, do livro Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil de Jean de
Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas) Lery, dos Três Poemas Indígenas de Villa-Lobos em edição de Max Eschig e do
Diana Santiago (UFBA, Salvador) livro Rondônia de Roquete-Pinto.
Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)
Fabiano Araújo (UFES, Vitória) Tiragem
Fernando Iazetta (USP, São Paulo) 150 exemplares
Flávio Apro (UNESP, São Paulo)
Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte) Acesso gratuito na internet
José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas) www.musica.ufmg.br/permusi
José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)
Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba) Endereço para correspondência
Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte) UFMG - Escola de Música - Revista Per Musi
Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) Av. Antônio Carlos 6627 - Campus Pampulha
Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande) Belo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090
Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747
Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Fax: (31) 3409-4720
Norton Dudeque (UFPR, Curitiba) e-mails: permusi@ufmg.br
Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador) fborem@ufmg.br
Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte)
Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)
Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba)
Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro)
Sônia Ray (UFG, Goiânia)
Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro)
Vladimir Silva (UFPI, Teresina)

O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são


sigilosos

Revisão Geral
Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)
ABM
Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte)
PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 27, janeiro / junho, 2013 -
Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2013 –
Assistente Editorial
Sandra Pugliese n.: il.; 29,7x21,5 cm.
Semestral
ISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos.


I. Escola de Música da UFMG
Sumário

ARTIGOS CIENTÍFICOS
Ética na pesquisa em música: definições e implicações na contemporaneidade . ......................... 7
Ethics in the music research: definitions and implications in the contemporaneity
Luis Ricardo Silva Queiroz

O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I): aspectos melódicos e harmônicos..............................19


The Indian Style of Villa-Lobos (Part One): melodic and harmonic aspects.
Gabriel Ferrão Moreira

O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II):


aspectos rítmicos, texturais, potencial significante e tópicas indígenas ......................................29
The Indian Style of Villa-Lobos (Part Two): rhythmic and textural aspects, signifying potential and Indian topics
Gabriel Ferrão Moreira

De como La Llorona se tornou um Miserere de Willy Corrêa de Oliveira ...................................39


How La llorona became a Miserere by Willy Corrêa de Oliveira
Mauricio De Bonis

O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe, Koellreutter e Hindemith:


similaridades e princípios básicos . ..................................................................................................50
The Melos e Harmonia Acústica (1988) of César Guerra-Peixe, Koellreutter and Hindemith: basic principles and similarities
Ernesto Hartmann

Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2 de Pedro Miguel a partir da


modelagem do Ponteio Nº12 de Camargo Guarnieri .....................................................................61
Compositional procedures employed in Pedro Miguel’s Ponteio Nº 2
based on the modeling of Camargo Guarnieri’s Ponteio Nº12
Pedro Miguel de Moraes, Gustavo de Castro e Liduino Pitombeira

Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt:


a primeira das Quatro Canções Op.2 de Berg ‘................................................................................75
Symbology and heredity on the formation of a Grundgestalt: the first of Berg´s Four Songs Op.2.
Carlos de Lemos Almada

O expressionismo de Erwartung diante do problema do fetichismo musical ..............................89


Erwartung’s expressionism facing the problem of musical fetishism.
Philippe Curimbaba Freitas

“Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”: estruturação formal e


camuflagem em um gênero musical camponês do médio Jequitinhonha ..................................103
“Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”: formal structuring and camouflage in a peasant musical genre
from the mid Jequitinhonha river (south-east of Brazil)
Leonardo Pires Rosse
O Piano Complementar na formação acadêmica: concepções pedagógicas e
perspectivas de interdisciplinaridade ............................................................................................ 115
Secondary Piano in the academic formation: educational ideas and perspectives of interdisciplinary
Maria Inêz Lucas Machado

A música por uma óptica neurocientífica ....................................................................................132


A neuroscientific perspective on music
Viviane Cristina da Rocha e Paulo Sérgio Boggio

Análise do perfil audiológico de estudantes de música ..............................................................141


Analysis of the audiological profile of music students
Karina Aki Otubo, Andréa Cintra Lopes e José Roberto Pereira Lauris

Expressividade na opinião de cantores líricos ..............................................................................152


Expressiveness in the opinion of classical singers
Enio Lopes Mello, Léslie Piccolotto Ferreira, Natalia Fonseca Pacheco e
Marta Assumpção de Andrada e Silva

Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva:


técnica, interpretativa e expressiva ...............................................................................................159
Three gestural perspectives for a percussive performance: technical, interpretative and expressive.
Fernando Chaib

Ampliação da técnica violonística de mão esquerda: um estudo sobre a pestana ....................182


Extended left-hand guitar technique: a study on the barré.
Bruno Madeira e Fabio Scarduelli

Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro: uma análise .............................189
Fantasia Sul América for clarinet solo by Claudio Santoro: an analysis
Gueber Pessoa Santos e Ricardo Mazzini Bordini

O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen: contexto, análises e interpretações .........200
Carl Nielsen’s Clarinet Concerto, Op.57: context, analysis and performance
Vinicius de Sousa Fraga

Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto N.5, BWV 1056, de J. S. Bach ........218


Musical-rethorical notes on J. S. Bach’s Largo from Concerto N.5, BWV 1056
Pablo Alberto Lanzoni

SEÇÃO DE RESENHAS – “Pega na Chaleira”


Resenha sobre a tese de doutorado O Violão na era do disco:
interpretação e desleitura na arte de Juliam Bream de Sidney Molina Júnior ........................227
Review of the dissertation The guitar in the LPs era:
interpretation and misreading in the art of Juliam Bream by Sidney Molina Júnior.
Luciano Hercílio Alves Souto

Pensando a educação musical imaginativamente:


uma filosofia da educação musical por Estelle Ruth Jorgensen .................................................231
Thinking music education imaginatively: a philosophy of music education by Estelle Ruth Jorgensen.
Margarete Arroyo

6
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18.

Ética na pesquisa em música: definições e


implicações na contemporaneidade
Luis Ricardo Silva Queiroz (UFPB, João Pessoa, PB)
luisrsq@uol.com.br

Resumo: Os debates acerca da pesquisa em música na atualidade contemplam uma diversidade de questões que se
inter-relacionam à complexidade e à amplitude do universo de abordagens da área. Entre as importantes discussões que
permeiam a pesquisa em música, a ética na produção do conhecimento científico musical tem ocupado lugar de destaque.
Com foco nessa realidade, este artigo tem como objetivo refletir sobre de aspectos éticos na prática investigativa e suas
implicações para a pesquisa em música, apontando perspectivas e diretrizes gerais que podem embasar a atuação dos
estudiosos da área em seus diferentes campos de investigação. O trabalho tem como base pesquisa bibliográfica e
experiências consolidadas do autor como pesquisador e orientador de trabalhos de pesquisa em diferentes subáreas
da música. A partir das discussões realizadas, o texto aponta aspectos conceituais que fundamentam as definições
de ética no campo da música, bem como destaca questões que devem ser consideradas na produção e divulgação do
conhecimento científico musical.

Palavras-chave: ética na pesquisa em música; pesquisa em música no Brasil.

Ethics in music research: definitions and implications in the contemporaneity

Abstract: Nowadays, discussions about research in music include a variety of issues that interrelate to the complexity
and breadth of the area approaches. Among the important discussions that permeate research in music, ethics in the
production of the scientific knowledge of music has occupied a prominent place. Focusing on this reality, this article
aims at reflecting about the ethical aspects of research practice and its implications for research in music, pointing out
general perspectives and guidelines that may be the basis for the activities of scholars of this area in their different fields
and approaches. The work is based on a literature review and consolidated experiences of this author as a researcher
and advisor of research papers in the different subfields of music. It presents conceptual aspects that underlie ethics
definitions in the field of music, while highlights issues to be considered in the production and propagation of the
scientific knowledge of music.

Keywords: ethics in music research; music research in Brazil.

1 – Introdução
O campo de estudo da música, neste início do século XXI, Entre as muitas questões que permeiam o campo da
tem se mostrado cada vez mais abrangente e diversificado, música, nas suas distintas subáreas, a discussão sobre
evidenciando que as pesquisas sobre fenômenos musicais ética na pesquisa tem ganhado cada vez mais importância,
têm sido estruturadas a partir de uma multiplicidade de considerando os impactos da ação investigativa na
abordagens epistêmicas e metodológicas. Abordagens sociedade. Nessa direção, o estudo de práticas musicais
que visam abarcar a amplitude e as singularidades que em diversos contextos e com distintas características, o
constituem o estudo da música e que fazem emergir, na registro e circulação de músicas, processos de criação
contemporaneidade, questões intrínsecas à produção do e estruturação do fenômeno musical, formas de
conhecimento na área, que precisam ser analisadas e transmissão de saberes, aspectos relacionados ao som
discutidas pelos seus estudiosos de forma contextualizada e sua caracterização como expressão musical, entre
com a natureza, a abrangência e as especificidades dos outros diversos elementos que constituem o universo das
estudos musicais. pesquisas em música, vêm exigindo dos pesquisadores da

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 22/11/2011 - Aprovado em: 13/06/2012
7
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18

área cada vez mais responsabilidade, tanto na definição se em experiências pessoais consolidadas a partir da
e condução da pesquisa quanto nos processos e meios atuação como pesquisador e orientador de trabalhos
utilizados para a divulgação da produção científica. diversos de pesquisa na área de música.

A perspectiva de estudo sistemático da música, no 2 – A “regulamentação” de códigos de ética


âmbito da ciência, se insere em um movimento crescente para a pesquisa: problemas e perspectivas
e contínuo, o qual aponta que reflexões que abordem a
ética devem estar no cerne das pesquisas e da produção para o campo da música
científica em todas as áreas do conhecimento, sobretudo Antes de discutir as implicações e, sobretudo, as
aquelas que, como a música, se atêm a estudos que aplicações de condutas éticas na área, é importante
envolvem pessoas, de forma direta ou não. Nesse sentido, refletir sobre o que se entende como ética e de que
é cada vez mais importante (re)pensar valores, condutas forma tal entendimento se aplica no âmbito do estudo
e preceitos que devem nortear a atuação do pesquisador científico em música. Sem a pretensão de realizar uma
em música em suas incursões pelos fenômenos estudados. discussão ampla do abrangente e complexo conceito de
ética, busco apenas delimitar premissas relacionadas à
Lidar com pesquisa científica, contemplando uma definição de ética que embasa este trabalho.
expressão complexa e diversificada como a música, exige
diretrizes de pesquisa que sejam, ao mesmo tempo, claras, CENCI (2000) destaca que, do ponto de vista filosófico, a
coerentes e estruturadas, mas, também, respeitosas e ética, desde as suas primeiras definições, busca estudar e
vinculadas aos valores humanos, o que inclui, certamente, fornecer princípios orientadores para o agir humano, de
definições acerca da conduta ética do pesquisador. forma que esse agir possa ser bom para todos, possibilitando
que os distintos indivíduos (con)vivam socialmente de
SLOBIN (1992), refletindo sobre a pesquisa em forma equânime/equilibrada. A partir da perspectiva de
etnomusicologia, aponta perspectivas sobre a ética na estudos como o de PASQUALOTI (2010), e embasado em
pesquisa que certamente podem ser aplicadas às outras concepções, sobretudo do campo da filosofia, defino ética
subáreas da música. De acordo com o autor, apesar de como o conjunto de princípios norteadores para a ação,
todo pesquisador já ter em algum momento lidado com convivência e atuação na sociedade, lidando de forma
problemas relacionados à ética, poucos sistematizaram cuidadosa com os limites humanos (individuais e coletivos),
publicações sobre essa questão. Ainda segundo o autor, naturais e culturais, que marcam a nossa trajetória como
os primeiros trabalhos que se propõem a debater o tema ser. Essas definições precisam ser evocadas a fim de trazer,
mais profundamente só aparecem no âmbito dos estudos para a prática de pesquisa, referenciais para um agir ético.
musicais a partir dos anos de 1970. Um agir que deve marcar não só a atuação e a formação
profissional do pesquisador, mas a sua inserção como ser
Considerando a realidade da área de música até o final humano na sociedade e na vida.
do século XX, fica evidente o “embrionário” estado de
consciência ética nas suas pesquisas e a pouca discussão Em áreas ligadas ao campo das ciências biomédicas,
existentes na área no que se refere ao tema, sendo pelo risco mais evidente que suas pesquisas podem
necessário, portanto, aprofundar os debates acerca das representar para os pesquisados, discussões e definições
implicações éticas nas pesquisas dos fenômenos musicais sobre ética encontram-se em estágios mais avançados.
(SLOBIN, 1992, p.331; SEEGER, 1992). Por consequência, dada a emergência de uma
“regulamentação” ética para todas as áreas, sobretudo
Com efeito, questões relacionadas à ética na pesquisa para orientar a autorização, gestão e o financiamento
constituem um importante aspecto para o delineamento institucional de pesquisas, muitos aspectos relacionados
da pesquisa em música no século XXI, devendo ser a diretrizes definidas, principalmente, para os campos
ponto fundamental de reflexão e análise nos múltiplos da biomédica, têm sido transplantados para as ciências
campos de estudo da área na contemporaneidade. Com humanas. Assim, se por um lado, as universidades e
vistas a contribuir para essa discussão, este trabalho outras instituições de pesquisa já possuem comitês
apresenta reflexões sobre a ética na pesquisa em de ética com diretrizes estabelecidas para análise,
música, considerando a atual realidade dos seus campos orientação e regulamentação dos trabalhos nas áreas
investigativos, bem como diretrizes que, em geral, de saúde, por outro, no campo das ciências humanas e,
devem estar na base da atuação do pesquisador frente principalmente das artes, essa é uma questão que ainda
à diversidade dos fenômenos musicais e suas inter- precisa ser devidamente discutida.
relações com a sociedade.
É evidente que o atraso nas discussões sobre ética é
O texto está embasado em estudos bibliográficos que sintoma da recente inserção do tema nas definições da
contemplam a pesquisa em música e em trabalhos de ciência. Mesmo no âmbito de áreas da saúde, a primeira
outras áreas de conhecimento que têm debatido questões diretriz de ética que ganhou projeção internacional só foi
relacionadas à ética na produção do conhecimento estabelecida em 1947, com o Código de Nuremberg que,
científico. Além disso, as reflexões realizadas alicerçam- segundo CABRAL, SCHINDLER e ABATH (2006, p.523):

8
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18.

[…] tem sido uma inspiração constante para as declarações recentemente lançadas pelo CNPq para orientar a conduta
modernas sobre ética em pesquisa. Esse documento determina ética dos pesquisadores (CNPQ, 2012). Ações dessa
a necessidade do consentimento voluntário dos indivíduos
envolvidos na pesquisa após o seu devido esclarecimento sobre os natureza são bastante pertinentes e, se inter-relacionadas
objetivos e os riscos do projeto. Esse princípio básico foi refinado a questões específicas de cada área, podem trazer grandes
e reafirmado em 1964, na chamada Declaração de Helsinki, que contribuições para o fortalecimento da ética na pesquisa
sofreu algumas modificações nas décadas de 70, 80 e 90. Em 1975, brasileira. Considerando essa realidade, passo a refletir
por exemplo, foi incorporada a obrigatoriedade de aprovação
prévia de qualquer projeto de pesquisa em seres humanos por um mais especificamente acerca de perspectivas para a
comitê de ética. conduta ética no âmbito da pesquisa em música.

Portanto, a definição e a aplicação desse código só se Partindo da nevrálgica discussão sobre o estabelecimento
estabeleceram, de fato, a partir da segunda metade do de uma regulamentação específica que norteie ações
século XX, período em que a ética passa a ser considerada éticas nos diferentes campos de conhecimento, duas
elemento fundamental para a prática de pesquisa. O questões fundamentais emergem: 1) Diretrizes e câmeras
problema do código de Nuremberg, para as ciências estabelecidas para avaliar projetos de pesquisa em áreas
humanas, é que sua estruturação e definição atendem aos da saúde poderiam avaliar trabalhos qualitativos e até
princípios e às realidades das ciências biomédicas, e suas mesmo quantitativos de pesquisa em música, sem deturpá-
especificações, bem como as diversas ramificações que los, sem tirar a autonomia de seus pesquisadores etc.?
ocorreram ao longo dos anos a partir desse documento, 2) poderiam áreas como a música e as ciências humanas
têm forte ênfase nas especificidades das áreas de saúde. em geral serem regidas por códigos regulamentadores
No que tange a outras áreas de pesquisa, como a música, de ética, ou seria mais adequado diretrizes gerais que
por exemplo, é necessária a discussão e definição de norteassem a conduta dos pesquisadores?
diretrizes éticas que sejam adequadas às singularidades
de seus campos e abordagens de pesquisa. Assim como em outros países, as bases definidoras para a
regulação da ética em pesquisa no Brasil foram as ciências
Nesse sentido, a fim de fomentar a discussão sobre o biomédicas. Nesse sentido, muito embora a Resolução
tema no campo da música, apresentarei uma pequena 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde - CNS (BRASIL,
retrospectiva do debate sobre ética no âmbito das ciências 1996) seja enunciada como um documento válido para
humanas. Segundo DINIZ (2008) o tema foi intensamente todas as áreas disciplinares, no que se refere às diretrizes e
discutido na década de 1980, sobretudo nos Estados normas para as pesquisas que envolvem seres humanos, suas
Unidos. Ainda segundo a autora, reflexões direcionadas diretrizes normativas e metodológicas foram estabelecidas
para a temática emergiram num: a partir de perspectivas do campo da saúde, o que imprime
características específicas a seus focos de abordagem,
[...] momento de efervescência das pesquisas urbanas com grupos muitas vezes estranhas à prática investigativa, por exemplo,
alternativos aos estudos clássicos de Sociologia ou Antropologia,
tais como usuários de drogas, traficantes, presos e adolescentes, e das pesquisas que estudam fenômenos musicais.
de surgimento de novas questões de pesquisa, como a violência e
a sexualidade (DINIZ, 2008, p.418). Portanto, um ponto fundamental a ser discutido, em
áreas como a música, é se cabe avaliação de aspectos
Além disso, foi nesse período que as regulamentações éticos, realizada por câmaras não específicas, em
de ética em pesquisa com seres humanos ganharam pesquisas qualitativas, e até mesmo em alguns aspectos
força e projeção internacional, mas provocaram diversos das pesquisas quantitativas, ou se essa é uma tarefa a
debates sobre sua legitimidade para outros campos de ser realizada pelas comunidades disciplinares no debate
conhecimento que não se adequavam aos fundamentos entre pares. Sem dúvida os pesquisadores devem estar
da pesquisa nas áreas de saúde. Tal fato gerou, inclusive, o abertos a terem os seus projetos e trabalhos de pesquisa
questionamento, sobre a pertinência de regulamentações, em geral avaliados por comissões de ética. No entanto,
como as das ciências biomédicas, para áreas que tal processo precisa ser realizado por comitês capazes de
utilizavam metodologias mais focadas em abordagens dialogar com os pressupostos teóricos e metodológicos
qualitativas. A esse respeito, ISRAEL e HAY afirmam que: da área, contemplando aspectos que, ainda na atualidade,
não têm sido abordados em grande parte das diretrizes
Cientistas sociais estão indignados e frustrados. Eles acreditam
que seus trabalhos estão sendo coagidos e distorcidos por regulatórias vigentes no Brasil, a partir de documentos
regulamentos de condutas éticas que não necessariamente como a Resolução CNS 196/1996.
entendem a pesquisa em ciências sociais. [...] pesquisadores têm
argumentado que tais regulamentos são realizados com base nos Visto dessa forma, o que precisa ser enfatizado é que não
direcionamentos da biomédica, que fazem pouco ou nenhum
sentido para os cientistas sociais1 (2006, p.xiii, tradução minha). se discute a necessidade de diretrizes éticas para as áreas
das ciências humanas, principalmente para um campo
As questões apresentadas pelos autores representam com vinculações sociais e culturais tão fortes como o da
um dos mais significativos debates entre os muitos que música. O que se quer evidenciar, a partir das análises
marcam as definições da ética na pesquisa. Todavia, realizadas anteriormente, é a necessidade de condutas
o Brasil tem avançado nesse sentido com ações mais éticas embasadas em questões relacionadas ao universo
norteadoras e menos normativas, como são as diretrizes musical e à atuação do pesquisador nesse contexto.

9
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18

Entendo que, como afirma DUPAS (2001), evocando o 3 – A ética no âmbito da pesquisa em música
pensamento de Habermas, a teoria deve prestar contas à na atualidade
práxis, e o saber não pode ser isolado de suas consequências.
Muitas questões relacionadas à ética, que permeiam a
Devido à imprevisibilidade das consequências de uma
pesquisa em música, têm relação direta com a natureza
investigação, é mister que diretrizes sobre ética estejam
singular do fenômeno musical, enquanto prática social
sempre presentes na elaboração de um projeto de pesquisa,
e cultural. Nesse sentido, aspectos como a apropriação
na realização de um trabalho investigativo e na divulgação
indevida de produções musicais, a divulgação e circulação
de resultados das descobertas científicas, principalmente
de músicas sem as devidas autorizações, a exposição
quando se está lidando com seres humanos ou com
inadequada de sujeitos vinculados aos saberes, fazeres e
produtos resultantes de suas crenças, valores, ideais e
criações musicais, a atribuição de valor a práticas musicais
demais aspectos culturais, como é caso da música.
distintas a partir de diretrizes etnocêntricas e uniculturais,
entre outros aspectos, demonstram que as questões de ética
Não se trata também de um isolamento e da busca de
transversalizam os campos da pesquisa, das produções e
uma neutralidade da ciência, pois ao adentrar em um
das práticas musicais em suas diversas ramificações.
determinado universo de pesquisa, visa-se, entre outros
aspectos, compreender e interpretá-lo para apresentá-
Para ILARI (2009, p.179):
lo em forma de conhecimento científico à sociedade, a
partir, inclusive, de valores, ideologias e objetivos dos O estudo da música humana é ao mesmo tempo fascinante e
pesquisadores. Assim, me acosto às concepções de COTTA, complexo. Ao tomar para si o desafio de compreender as relações
considerando especificamente o universo da musicologia entre a música e o ser humano, o pesquisador tem por princípio
histórica, mas que podem ser ampliadas para dimensões ao menos uma das duas premissas: (1) a ideia de que a música
é uma atividade eminentemente humana que se dá, antes de
mais abrangentes do estudo da música. Nas palavras do mais nada, em um plano individual, e (2) a compreensão de que
autor, possibilitar o acesso aos materiais investigados: a música, além de atividade humana, é também uma atividade
social e coletiva (ver Turino, 2007). Sendo assim, não há como o
[...] traduz-se no reconhecimento de uma ética não exclusivista pesquisador musical evitar o confronto com questões éticas (ver
em relação aos objetos de pesquisa. Isso significa, no âmbito Richardson & McMullen, 2007).
da musicologia histórica brasileira, uma mudança de paradigma
comparável à revolução copernicana: não se trata mais de Assim, é fundamental consolidar a discussão, a análise e
descobrir ‘tesouros musicais’ e apropriar-se deles, mas sim de as reflexões de questões éticas intrínsecas e extrínsecas
tratar a documentação de valor histórico pelo seu valor de
informação e disponibilizá-la para a comunidade científica [e para a área de música, haja vista que tais questões estão no
a sociedade] (COTTA, 1999, p.2008). cerne da atuação dos pesquisadores da área. Esse debate
se torna ainda mais premente ao considerarmos a teia
A citação acima retrata o duplo papel do pesquisador, qual de relações que congrega a música e as incursões do
seja, atender às expectativas da ciência e sua inserção na pesquisador em seus múltiplos universos.
sociedade, mas, também, cuidar, respeitar e preservar os
direitos, as escolhas e as definições dos sujeitos pesquisados, Analisando a pesquisa em música na contemporaneidade,
com toda a gama de produtos, significados e saberes KORSYN (2003), em Decentering music: a critique of
que permeiam suas relações com a música. Diante dessa contemporary musical research, enfatiza diretrizes para a
realidade da pesquisa na área de música, implica afirmar que pesquisa em música numa época em que a humanidade
é preciso agir com transparência e cuidado, pois quando se está em “crise”. O autor levanta um número significativo
investiga a realidade das produções musicais, bem como os de questões que discutem os modelos sobre os quais os
processos de criação, performance e transmissão de música, objetos disciplinares da música são construídos, sugerindo
pode-se lidar com questões que, se para os pesquisadores uma relação “[...] entre trabalhos de estudiosos da música e
são, sobretudo, somente questões de pesquisa, para outras as redes culturais nas quais eles participam”.2 (p.1, tradução
pessoas podem ser definidoras de sua vida. Refletindo sobre minha). Dos diversos paradigmas que aponta, relacionados
essa questão, MOITA LOPES destaca que: à pesquisa em música, o autor destaca a relevância da
ética para produção do conhecimento científico da área
Certamente, o pesquisador deve ter cuidado para que sua pesquisa na atualidade. Nesse sentido, o autor afirma que “a crise
não seja usada para tirar a voz e caçar o poder de quem está
em situação de desigualdade. Fazer pesquisa, i.e. [isto é], produzir da pesquisa em música é basicamente uma crise ética [...]”3
conhecimento, é uma forma de construção de significado (KORSYN, 2003, p.176, tradução minha).
prestigiada na sociedade e, portanto, impregnada das relações de
poder inerentes à prática discursiva. Assim, os resultados de nosso Muitas outras abordagens de pesquisas em diferentes
trabalho podem ser usados para desempregar, condenar, [atestar]
incompetência, etc. (MOITA LOPES, 1996, p.11) subáreas da música têm levantado questões relacionadas
à ética, a exemplo de O’DEA (2000) e GERLING e
Partindo de premissas e diretrizes éticas em geral e SANTOS (2010), no campo das práticas interpretativas;
de singularidades que permeiam suas implicações no GREEN (2009), CASTAGNA (2008) e COTTA (1999) no
campo da música, a parte seguinte deste texto traz um âmbito da musicologia; SEGEER (1992; 2008), SLOBIN
panorama do atual debate nos estudos musicais e dos (1992) e QUEIROZ (2010; 2011) em abordagens da
direcionamentos que a área tem adotado para pensar as etnomusicologia; FREEMAN-TOOLE (1998) e DENCH
idiossincrasias de seu campo de estudo. (1998) focando estudos composicionais; e RICHMOND

10
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18.

(1996), BRESLER (1996), AZEVEDO, SANTOS, BEINEKE e questões que considero fundamentais, e com as quais
HENTSCHKE (2005), abordando o universo da educação tenho me deparado em estudos, discussões, propostas e
musical. Esses exemplos demonstram a ênfase que as orientações de pesquisa e que dizem respeito a definições
discussões sobre ética vêm ganhando na área da música. éticas que constantemente precisam ser revisitadas
durante os nossos trabalhos. Muitas das questões
Especificamente no que se refere ao cenário da pesquisa que permeiam a área de música também envolvem
sobre música no Brasil, as discussões relacionadas à outros campos de pesquisa, mas há, também, aspectos
ética ganharam impulsão a partir de debates realizados, específicos que são encontrados, sobretudo, no estudo
sobretudo no âmbito da Associação Nacional de Pesquisa e abordagem dos fenômenos musicais em seus diversos
e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e da Associação contextos. Nesse sentido, seja abarcando aspectos mais
Brasileira de Educação Musical (ABEM), desde a gerais e/ou específicos da área de música, ao lançar
década de 1990, bem como da Associação Brasileira de olhares e reflexões sobre questões de ética será possível
Etnomusicologia (ABET), a partir dos anos 2000. Nesse contribuir para o debate do tema no âmbito da produção
cenário tem se estabelecido reflexões pertinentes e do conhecimento científico musical.
necessárias sobre as múltiplas questões da ética na pesquisa
musical, embora tal discussão ainda seja embrionária em 4 – Doze questões fundamentais sobre da
relação à amplitude da área no Brasil atualmente. ética na pesquisa em música
Um levantamento detalhado de questões sobre ética,
No cenário internacional, a necessidade e a preocupação
que permeiam a pesquisa na área de música, exigiria
com a ética nos trabalhos de pesquisa estão evidenciadas
um exaustivo aprofundamento em matrizes que definem
em diversas diretrizes e definições que associações e
cultural, epistemológica e metodologicamente os
instituições da área de música têm estabelecido para
diferentes campos de estudo científico musical, aspecto
nortear a atuação de seus pesquisadores. Para mencionar
que foge ao escopo deste texto. Todavia, sintetizo, em
apenas dois exemplos, destaco:
doze questões, perspectivas que, em diálogo com outros
autores (BRESLER, 1996; CASTAGNA, 2008; COTTA,
1. As “Diretrizes para conduta ética”4, definidas pela
1999; KORSYN, 2003, PAIVA, 2005; SEEGER, 1992;
American Musicological Society (MAS) desde 1997,
SLOBIN, 1992), considero fundamentais para as reflexões
que estabelecem dimensões gerais para embasar o
relacionadas a condutas éticas na área de música.
trabalho de pesquisa do musicólogo, reconhecendo
a necessidade de promover princípios básicos de
conduta ética na profissão. O documento enfatiza 4.1 – Como lidar com o respeito à propriedade
ainda a necessidade de que o musicólogo defenda intelectual e aos trabalhos de outros
os princípios éticos definidos pela Associação, pesquisadores?
não só na sua atuação acadêmica, mas em todas Essa tem sido uma questão emergente e fundamental
as suas atividades profissionais (AMERICAN nas discussões sobre ética na atualidade. É evidente
MUSICOLOGICAL SOCIETY, 2012). que ao mesmo tempo em que se quer a democratização
do conhecimento e a desmistificação da pesquisa,
2. Outro exemplo é o “Código de Ética” definido pelo inserindo-a cada vez mais cedo no processo de
Journal of Research in Music Education, que visa formação, batalha-se, também, para não deixá-la cair na
orientar e estabelecer condutas éticas que devem estar banalização. Nesse processo, uma das questões que mais
na base dos textos e materiais científicos publicados têm preocupado pesquisadores na atualidade diz respeito
no periódico. No documento há uma clara referência ao plágio de textos. Como destacado por PAIVA (2005),
de que as suas definições estão preocupadas com a utilização responsável de trabalhos alheios é legítima
as condutas éticas no estudo com seres humanos. e contribui efetivamente para o diálogo e a ampliação
As perspectivas apresentadas são embasadas em do conhecimento científico. No entanto, é fundamental
diretrizes da área de psicologia, sendo que, inclusive, discutir os níveis de apropriação e até que ponto algo
o documento remete o leitor para o código de ética pode ou não ser classificado como cópia. Para PAIVA,
da “American Psicological Association”5. (JOURNAL “o plágio tem sido considerado como cópia integral
OF RESEARCH IN MUSIC EDUCATION, 2011).‑ ou parcial de trabalho intelectual alheio, sem a devida
menção ao autor”. A autora ressalta ainda que:
Diversos outros códigos e/ou diretrizes mais gerais que
tratam da ética em trabalhos de pesquisa em música [...] os problemas, no entanto, não se restringem à cópia. Informar
poderiam ser mencionados, mas esses dois são suficientes ao leitor, no início de um texto, por exemplo, que aquele trabalho
é baseado em outro não dá ao autor o direito de reproduzir, ipisis
para ilustrar um importante aspecto que merece atenção,
literis, o texto de outrem, sem as devidas aspas. Apropriar-se de
qual seja: a área de música está, cada vez mais, buscando uma ideia e tratá-la com outras palavras é, na minha opinião,
estabelecer caminhos, princípios e diretrizes que possam outra modalidade de plágio (PAIVA, 2005).
orientar os pesquisadores para uma atuação ética, que
abranja tanto a produção de pesquisa quanto a veiculação A facilidade de acesso gerada, sobretudo pela internet
e divulgação do conhecimento musical como um todo. e os diversos meios de circulação de informações na
Partindo dessa concepção, apresento, a seguir, doze contemporaneidade, as exigências por uma produção

11
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18

cada vez mais ampla, a falta de uma formação No campo da música comercial, essa definição é um
consistente acerca do respeito à propriedade intelectual, pouco mais clara, já que é sabido que a autoria é algo
têm sido alguns dos fatores que têm levado estudantes garantido por lei (BRASIL, 1998) e o uso indevido de
e profissionais a copiarem textos e se apropriarem de determinada produção musical pode ser questionado,
ideias alheias. Assim, tem sido comum identificar o uso inclusive judicialmente. No entanto, no que tange
indevido de produção intelectual (textos e ideias) em a produções musicais não vinculadas ao cenário
materiais como monografias, dissertações e teses, artigos comercial, tem sido comum, por vezes, não se dar o
científicos, páginas de internet, entre outros. Mesmo esse devido respeito e a atenção necessária aos proprietários
não sendo um problema exclusivo da área de música, é dos patrimônios investigados.
uma questão que os seus estudiosos não podem se eximir
de discutir no processo de produção de conhecimento. São diversos os relatos que evidenciam o uso indevido
de músicas em trabalhos de pesquisa, sem que autores,
Além do plágio, o CNPq tem destacado a importância da familiares, mestres, intérpretes, entre outros detentores da
conscientização dos pesquisadores para o “autoplágio”, propriedade musical, tenham dado a devida autorização.
que “consiste na apresentação total ou parcial de Essa é uma questão diretamente relacionada ao campo
textos já publicados pelo mesmo autor, sem as devidas da música, tendo em vista que é intrínseca à natureza
referências aos trabalhos anteriores” (CNPQ, 2012). do fenômeno musical e que, portanto, merece grande
Para o Órgão, essa também é uma prática indevida que atenção por parte dos pesquisadores.
deve ser combatida no cenário da pesquisa nacional e
internacional. Portanto, é outra questão que merece 4.3 – Ao lidar com o estudo da música e/ou
atenção dos pesquisadores da área de música.
de pessoas fazendo música em comunidades
Vale salientar que apesar dos avanços nos estudos musicas, e/ou grupos diversos, o trabalho de pesquisa
ao longo das últimas décadas, a qualificação para a pesquisa pode ser feito sem alterar o ritmo e o
na graduação ainda é limitada e, por vezes, a preparação planejamento do contexto investigado?
do músico não passa por um processo sistemático de Essa questão emerge, mais especificamente, para os
formação científica. Todavia, a exigência do mercado de trabalhos que lidam com estudos etnográficos e que,
trabalho e a necessidade, cada vez mais emergente, de portanto, têm uma imersão direta no campo pesquisado,
realizar cursos de pós-graduação, têm levando estudantes seja uma escola, uma prática musical coletiva e/
e profissionais da área, com diferentes perfis, a imergirem ou individual, um processo de gravação etc. Como
no campo da pesquisa. Essa realidade, certamente, traz, enfatizado por diversos pesquisadores da música (NETTL,
de forma ainda mais contundente, a questão do respeito 1964; SEEGER, 2008; SLOBIN, 1992; QUEIROZ, 2006),
à propriedade intelectual para o foco dos debates, já que todo trabalho de pesquisa altera, de alguma forma,
tem sido comum encontrar textos e publicações diversas os acontecimentos musicais e culturais do universo
na área, que não passam de compilação de ideias alheias, pesquisado. Seria ingênuo achar que uma pesquisa poderá
reprodução e apropriação de pensamentos e palavras de ser realizada sem interferir, mesmo que minimamente, na
outros autores. Não há dúvidas que a falta de tradição prática e/ou a ação cotidiana do contexto investigado.
em pesquisa e o incipiente estágio de formação de
pesquisadores nos cursos de graduação, e até mesmo de Todavia, é fundamental que o pesquisador busque
pós-graduação, como ainda é o caso da música no Brasil, as melhores alternativas para que o seu estudo não
estão entre as muitas questões geradoras desse problema. comprometa demasiadamente os fatos e as práticas que
definem o modo de ser, agir e pensar das pessoas no
4.2 – Ao estudar, utilizar e divulgar práticas seu meio social. Quando houver a percepção de que o
e/ou produtos musicais (performances, trabalho pode interferir negativamente na realidade de
estudo, as pessoas e suas vidas devem ser priorizadas e a
partituras, gravações, entre outros aspectos) pesquisa colocada em segundo plano. Assim, concordando
são respeitadas a autoria e a propriedade do com ROUNDS (1996), acredito que cabe ao pesquisador
patrimônio musical? conseguir o máximo de informação possível sem violar a
Da mesma forma que não é possível admitir o plágio de privacidade ou quebrar a confiança dos pesquisados.
textos e ideias, também não se pode admitir o plágio
musical, inclusive no âmbito da pesquisa. Toda obra, 4.4 – A comunidade e os informantes/
performance e demais elementos relacionados à música, participantes (sujeitos envolvidos na
estudados e/ou utilizados em pesquisas e publicações,
devem ser devidamente citados e, quando não forem de
pesquisa de maneira geral) são devidamente
domínio público, autorizados pelos detentores dos seus informados sobre os objetivos do trabalho?
direitos. Não se pode, em nome da ciência, desrespeitar Essa é uma questão que está inter-relacionada à anterior e
o patrimônio alheio e o direito à propriedade musical, que é outro aspecto fundamental na condução da pesquisa.
mesmo quando se trata de uma produção coletiva de uma É preciso deixar claro para qualquer pessoa envolvida
comunidade, um grupo étnico específico etc. na pesquisa, como pesquisado, qual é foco do estudo,

12
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18.

apresentando claramente os objetivos da pesquisa que são, geralmente, utilizados como material de base
será realizada, bem como seus possíveis desdobramentos, e analítica, mas também como ilustrações de textos e/ou
como será sua participação e/ou envolvimento. outros documentos produzidos.

O simples fato de enunciar o objetivo do trabalho não Fontes dessa natureza retratam situações, instru­
é suficiente, pois é fundamental a garantia de que os mentos, performances e outros elementos da música
participantes entendam e tenham ciência do que trata e de pessoas fazendo música, e, portanto, para serem
o estudo. Para que o processo seja, de fato, legitimado é produzidos, utilizados e/ou divulgados também
preciso que o pesquisador expresse-se com uma linguagem necessitam de autorização. É recomendável que todo
adequada, de forma que as pessoas dos diferentes contextos pesquisador tenha o respeito e o cuidado devido,
investigados possam compreender o que será realizado solicitando autorização tanto para realizar os registros,
com a sua música, com a sua cultura, com a sua vida. durante a coleta, quanto para utilizá-los em publicações
resultantes do processo investigativo.
4.5 – A aplicação de questionários e a
realização de entrevistas são efetivadas 4.7 – Ao encontrar partituras, gravações e
respeitando as preocupações e os interesses outros documentos musicais “raros”, como o
dos informantes? pesquisador deve proceder?
Como acontece em praticamente todos os campos da Os estudiosos da área de música muitas vezes se deparam
pesquisa em ciências humanas, a utilização de questionários com elementos musicais de diferentes formatos e que,
e entrevistas é bastante recorrente na área de música. por distintas razões, são considerados “raros”: uma
Como esses instrumentos de coleta de dados são bastante partitura antiga, uma gravação histórica, um instrumento
difundidos, é comum encontrar em manuais de metodologia em extinção, um repertório ainda não conhecido, uma
científica orientações de como elaborar questionários, performance inusitada, entre outros. Diante desse fato,
formular questões e conduzir entrevistas. Entretanto, as o que fazer e como agir? Solicitar aos detentores desses
orientações apresentadas, geralmente, visam apenas fornecer patrimônios que os entreguem, quando for o caso, para
diretrizes para a elaboração de perguntas e a aplicação dos uma biblioteca, um acervo musical, um museu etc.; que
instrumentos que possibilitem “extrair” dos informantes os tornem públicos e acessíveis à sociedade, para que
respostas para as questões formuladas, atendendo aos outras pessoas possam conhecê-los, ou é melhor deixá-
objetivos, metodologia e cronograma da pesquisa. los no seu contexto de origem, mesmo tendo acesso
restrito, mas onde estarão culturalmente localizados
No entanto, antes da preocupação com o sucesso do e na posse das pessoas que são realmente os seus
trabalho realizado, é preciso buscar a adequação dos proprietários? Muitas vezes, não compete e não caberá
instrumentos utilizados e da sua forma de aplicação ao pesquisador tomar decisões dessa natureza, já que
ao universo de pesquisa, refletindo se as perguntas quem deve decidir são as pessoas que detêm os saberes
apresentadas e a condução do trabalho não são invasivas e e os produtos musicais. Mas é verdade que a postura
agridem os pesquisados, violando aspectos relacionados ao do pesquisador e seus encaminhamentos podem ter
seu contexto cultural, às suas crenças, ideais e princípios. impacto direto numa tomada de decisão em situações
como as exemplificadas.
O pesquisador precisa ficar atento para fazer perguntas
coerentes, claras e reveladoras do que se almeja estudar, Refletindo sobre a postura do pesquisador, no que concerne
mas, sobretudo, é fundamental, buscar a realização desse a suas relações com a produção musical, seus registros e
processo de forma humana e comprometida com os produtores, CASTAGNA evidencia a importância de uma
interesses de pessoas – os pesquisados – que nos orientam e conduta respeitosa e humana. Assim o autor destaca:
nos ensinam ao longo de todo o processo investigativo. Além
É fundamental uma postura ética e humanística dos pesquisadores
do cuidado na elaboração e na aplicação dos instrumentos, em relação aos acervos musicais, documentais, bibliográficos,
outro aspecto importante a ser considerado na realização das sonoros, iconográficos, organológicos etc., sejam eles públicos,
entrevistas é a obtenção de autorização para a inserção da eclesiásticos ou privados, procurando também retribuir à
“voz” do pesquisado na divulgação do trabalho, explicitando comunidade que os conservou, pelo acesso que teve às fontes
primárias (CASTAGNA, 2008, p.76).
qual o uso que será feito desse material, de que forma será
utilizado, em que formato será apresentado etc.
É fato que a ciência tem como princípio divulgar e
disponibilizar para a sociedade os conhecimentos que
4.6 – A realização de gravações de áudio, vídeo emergem dos trabalhos de pesquisa, e é com essa
e fotografias são devidamente autorizadas? convicção que o pesquisador de música vai a campo.
Além de utilizar documentos visuais, sonoros e Todavia, concordando com as colocações enfatizadas
audiovisuais já publicados, é recorrente na pesquisa por CASTAGNA, fica evidente que, ao agir com base
em música a realização de fotografias, filmagens e nos preceitos e objetivos científicos, não se pode passar
gravações de áudio durante o trabalho de campo. Esses por cima dos direitos e valores das pessoas que detêm
documentos, produzidos pelos próprios pesquisadores, saberes, performances, registros e produtos musicais e

13
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18

que, portanto, devem ter voz e poder de decisão sobre apresentação da “verdade” não podem ser desvinculadas
qualquer encaminhamento que envolva suas práticas e/ de suas consequências.
ou produtos.
Nas pesquisas que utilizam o trabalho de campo
4.8 – O pesquisador deve pagar para obter etnográfico, por exemplo, as pessoas contam suas
histórias, abrem gavetas de seus acervos, permitem
informações, documentos, gravações etc.? adentrar as portas de suas salas de aula, possibilitam a
Em diversas situações, no processo de coleta e inserção em suas práticas etc. Como, então, lançar juízo
análise de dados, o pesquisador necessita da ajuda de de valor sobre o que fazem musicalmente? O pesquisador
informantes para a realização da pesquisa, seja nas tem o direito, por exemplo, de, segundo determinadas
entrevistas, no empréstimo de documentos, no acesso diretrizes educacionais, criticar e/ou classificar como
a gravações, no registro de áudio, vídeo, fotografias “boa” ou “ruim” a ação de um professor de música?
etc. Sem dúvida, a participação num processo de Qual o impacto disso para o professor? Mesmo que lhe
pesquisa demanda, para o pesquisado, tempo e algum tenha sido garantido o anonimato, na apresentação
tipo de dedicação. Diante dessas situações é legítimo o dos dados, ele sabia que seria julgado, questionado,
pagamento aos informantes? rotulado? É possível, em nome da ciência, romper com
as relações pessoais estabelecidas ao longo da pesquisa,
Essa é mais uma questão que não pode ser respondida com a confiança depositada no pesquisador e os demais
sem analisar cada caso e cada situação específica de aspectos que lhe garantiram acesso aos fatos? No caso
pesquisa. Certamente comprar informações não é algo de uma obra musical analisada, depois de devidamente
legítimo e que, entendo, não pode ser aceito como ético. autorizado o estudo, pelo compositor ou sua família,
Todavia, alguém receber para dar aulas ao pesquisador de o pesquisador tem o direito de julgar como “fraca” tal
um determinado instrumento pode ser algo devidamente criação? Ele explicou que, entre os objetivos do seu
legitimado no campo da pesquisa. O pagamento de trabalho, visava fazer uma análise valorativa da obra?
músicos para apresentarem uma performance a ser Suas análises não desqualificarão a obra, tanto artística
gravada, também é algo aceitável. No entanto, pagar para quando socialmente? Que impactos isso trará para os
ter acesso privilegiado a documentos e acervos públicos detentores de tal produção?
é indevido. Pagar alguém para que forneça informações
que você precisa durante uma entrevista pode induzir o Certamente tenho posições e condutas que guiam as
entrevistado a dar as respostas que ele entende que o minhas respostas a essas questões. Todavia, não tenho
pesquisador quer ouvir e, portanto, não é algo legítimo a pretensão de, neste trabalho, responder, de forma
na prática de pesquisa. absoluta, nenhuma dessas perguntas, mas acredito que
elas servem para retratar a importância de reflexões
Enfim, essa é uma questão demasiadamente complexa, e dessa natureza para pensarmos condutas éticas na
o que pode ser afirmado, a partir dela, é que o pagamento área de música. Mais uma vez, portanto, fica evidente
a algum serviço e a compra de algum material deve ser que maturidade, conhecimento, bom senso, respeito ao
realizado com fins específicos de custear um trabalho, outro, são atributos fundamentais para a atuação do
uma despesa, uma mão de obra. O que não é aceitável é pesquisador em música e somente a inter-relação desses
qualquer tipo de pagamento que vise dar ao pesquisador diversos elementos fornecerão diretrizes para uma ação
privilégios de acesso, informações sem legitimidade ética de pesquisa na área.
científica, registros de práticas desvinculadas de suas
realidades, dados obtidos de forma indevida etc. 4.10 – O pesquisador se preocupa em dar
retorno aos seus informantes e ao contexto
4.9 – Como realizar análises críticas sem
pesquisado?
expor os informantes, músicos, grupos e/ou
A realização de uma pesquisa gera expectativas tanto
comunidades que abriram as portas para a para o pesquisador quanto para as pessoas pesquisadas.
realização da pesquisa? É, inclusive, habitual que as pessoas investigadas
Outro princípio básico da ciência é que todo projeto solicitem fotos, gravações, comentários e outras formas
de pesquisa tem compromisso com a “verdade” e deve de registro e apresentação relacionados à sua musica. Por
apresentar os dados e informações obtidos a partir das tal razão, da mesma forma que é preciso se preocupar
investigações de forma clara, crítica e reflexiva. Todavia, em apresentar os objetivos do trabalho, antes da sua
no âmbito das ciências humanas essa diretriz precisa realização, é fundamental que a partir da conclusão da
ser pormenorizada. É da índole da ciência que toda pesquisa os resultados sejam disponibilizados para as
produção científica seja submetida à avaliação dos pares, pessoas, grupos e/ou comunidades que permitiram a
e a crítica e o debate em torno dessa produção é algo investigação de suas músicas.
esperado, e até desejado, pela comunidade científica.
Todavia, quando realiza pesquisas em música, o estudioso É possível encontrar, em diferentes áreas, relatos
lida com pessoas, ou com práticas e produtos resultantes sobre pessoas que colaboraram com pesquisas e que
da interação entre pessoas e, nesse caso, a crítica e a demonstraram ressentimento por não terem sido sequer

14
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18.

informadas da conclusão dos trabalhos. Em cursos a partir da divulgação desses materiais. Assim, as pessoas
de pós-graduação, não são atípicos casos em que os devem ter o direito de autorizar ou não a realização de um
informantes nem são convidados para as defesas de trabalho, fazendo isso de forma consciente, entendendo,
dissertação ou tese, tendo acesso ao trabalho, do qual claramente, que impacto a pesquisa poderá gerar.
faz parte, só algum tempo depois. Há, ainda, casos em
que pessoas colaboram com pesquisas e jamais têm 4.12 – Quando os resultados da pesquisa
qualquer tipo de retorno em relação às informações,
gravações e registros diversos realizados.
geram produtos (livro, CD, DVD, entre outros)
e algum tipo de lucro, os recursos obtidos
Portanto, na pesquisa em música, esse é mais um são compartilhados com os detentores dos
princípio ético importante, que deve ser considerado direitos sobre as músicas?
no processo de planejamento e realização do trabalho.
Trabalhos de pesquisa em música podem resultar
O pesquisador precisa prever mecanismos e alternativas
em produtos de cunho comercial, mesmo com
para que os registros realizados (fotografias, filmagens,
uma circulação limitada, podendo também, por
gravações de áudio, etc.) e os produtos gerados a partir
consequência, gerar algum tipo de lucro. Assim, é
do trabalho (dissertação, tese, CDs, DVDs etc.) sejam
comum se encontrar livros, DVDs, CDs, partituras,
disponibilizados, de forma transparente e respeitosa, para
entre outros materiais musicais, estruturados com
os sujeitos envolvidos na pesquisa, atendendo, assim, de
base em conhecimentos obtidos a partir de pesquisa
alguma forma, às suas expectativas e contribuindo, de
discográfica, documental, etnográfica etc.
acordo com as possibilidades de cada trabalho, com os
indivíduos e a comunidade envolvida.
Com efeito, as pessoas que possibilitaram o acesso ao
conhecimento e que são, de alguma forma, parceiras
4.11 – Ao fazer a divulgação da pesquisa, a na produção de determinado material resultante de
produção musical investigada e o direito à pesquisa, devem, naturalmente, ter direito à parcela do
propriedade cultural imaterial não ficarão lucro obtido com produtos que retratam e baseiam-se em
demasiadamente expostas? Quais as seus saberes. O pesquisador organiza, sistematiza, grava,
consequências disso para a comunidade? publica, divulga, mas faz isso a partir de conhecimentos
musicais que lhe são repassados.
Questões já apresentadas anteriormente destacaram a
importância do respeito à propriedade musical das pessoas, Essa diretriz não é prevista em qualquer lei de direitos
enfatizando a necessidade de que sejam solicitadas autorais, já que não se caracteriza como apropriação
autorização para o uso de músicas, imagens, falas etc. No indevida, pelo autor da obra, de uma melodia, uma letra,
entanto, o pesquisador precisa se preocupar, também, com um texto etc. com sendo seus. O fato é que somente
o uso desse material para além do seu próprio trabalho, mencionar os nomes de que detém aquele saber ou produto
entendendo que pessoas sem qualquer compromisso não é retorno suficiente, se o que foi gerado a partir do
firmado com o contexto investigado terão acesso a essas trabalho possibilita lucros comerciais. Assim, compartilhar
fontes e, assim, poderão fazer qualquer tipo de uso delas. ganhos e benefícios obtidos a partir da elaboração de
produtos resultantes de pesquisa é uma premissa e uma
Revisitando, mais uma vez, a ideia de que a realização
conduta que deve fazer parte de uma postura ética
de um trabalho não pode ser separada de suas
dos pesquisadores da área de música. Postura essa que
consequências, é necessário que pesquisadores reflitam
transcende qualquer norma e diretriz legal, estando de
sobre a exposição que farão do material musical alheio,
fato relacionada à sensibilidade de perceber e respeitar as
mesmo estando ela autorizada, e de que maneira tal
relações humanas, culturais e musicais estabelecidas ao
exposição poderá ser maléfica e/ou benéfica para seus
longo de um trabalho de pesquisa.
autores/detentores e/ou seu contexto.

Essas questões pressupõem um controle que dificilmente 5 – Conclusão


o pesquisador terá ao publicar um trabalho: Quem terá Não há respostas prontas para a maioria das questões
acesso? Como as informações serão utilizadas? Todavia, apresentadas, exceto para as regulamentadas por leis,
esses são aspectos fundamentais a serem considerados, como direitos autorais, propriedade intelectual etc. Na
pois com a facilidade de registro e circulação, inclusive verdade, para a grande parte dos problemas apresentados,
de materiais sonoros e audiovisuais, pode-se expor cada pesquisador terá que encontrar as suas próprias
demasiadamente os informantes, autores, compositores soluções, haja vista que muitos dos questionamentos
etc., ou as comunidades estudadas e, assim, não é possível sobre ética dependem de respostas e posicionamentos
se isentar da responsabilidade de buscar a melhor forma de que não são, necessariamente, só do pesquisador. Nesse
divulgar e publicar produções e conhecimentos de outros. sentido, as pessoas envolvidas no processo de pesquisa,
Como não é possível o controle sobre a circulação e o uso sejam compositores, intérpretes, brincantes, músicos
dos textos e outros registros, é importante que seja dada em geral e/ou responsáveis por patrimônios musicais,
a devida ciência ao músico, ao grupo e/ou comunidade devem ter papel decisivo em condutas que marcam a
pesquisados, sobre das consequências que poderão emergir atuação do pesquisador.

15
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18

Com efeito, o que compete, fundamentalmente, aos receituário para a conduta cotidiana dos indivíduos, nem
estudiosos é uma postura ética, no sentido de dar voz aos servir de desculpa para justificar seu agir mediante motivos
verdadeiros detentores das práticas, saberes e produtos puramente externos. A justa medida requerida pela
musicais que investigam. Assim, a condução de qualquer ética não é extraída por intermédio de fórmula alguma;
trabalho de pesquisa no campo da música, como em ela é medida qualitativamente, e isso exige cautela,
qualquer área que lida com estudo dos humanos e suas conhecimento, capacidade crítica, bom senso, respeito
expressões culturais, deve ser realizada com bom senso, ao próximo, às produções musicais e aos músicos e, de
sensibilidade e respeito ao fenômeno musical, material maneira geral, respeito à vida humana. Ao se engajar no
ou imaterial, estudado. trabalho de pesquisa, o investigador deve estar consciente
das implicações diversas que seu trabalho traz para o
As discussões realizadas neste texto evidenciam a fenômeno estudado. Nessa perspectiva, deve conduzir
dificuldade para se definir códigos de ética, para a área sua inserção no campo e suas relações com os sujeitos e/
de música e afins, com normas objetivas, como muitas ou produtos pesquisados de forma respeitosa, prevendo
vezes se faz para as ciências médicas. Tal aspecto aponta, consequências, problemas, limites e possibilidades para a
mais uma vez, para a importância de fomentarmos, de realização de seu trabalho.
forma substancial, esse debate na área de música, tendo
em vista que, de fato, são os pesquisadores que deverão Por fim, a análise das doze questões apresentadas
assumir condutas éticas para suas investigações na área. evidencia que, para o pesquisador da área de música,
Condutas que se adéquem às perspectivas gerais das e talvez para o pesquisador de qualquer campo de
ciências na contemporaneidade, mas que, acima de tudo, conhecimento, não é suficiente considerar e seguir
sejam coerentes com a complexidade e a singularidade critérios de cientificidade, estabelecidos em linhas
que marcam os estudos musicais. gerais. Claro que a ciência tem diretrizes, princípios,
valores e condutas que legitimam os seus campos de
O que se reforça com essa afirmação é que a ética não saberes, entre eles a música. Mas para a investigação
será conquistada a partir de um conjunto de normas de fenômenos musicais tais parâmetros devem ser
absolutas que determinem as nossas formas de agir como confrontados com as realidades estudadas e, muitas
pesquisadores. Nesse sentido, uma conduta ética só vezes, questionados, se não atenderem, além de
ocorrerá se os indivíduos encontrarem saídas plausíveis, critérios científicos, aspectos relacionados ao respeito,
racionais e humanas para suas ações, relações e posturas. diálogo e interação pessoal que marcam a atuação ética
do pesquisador em música, ao lidar com expressões
A ética filosófica (formal e universalista) não pode, culturais e, portanto, com importantes patrimônios
paternalisticamente, dizer o que o indivíduo deve fazer, relacionados à vida social, espiritual, material e
prescrevendo ações; ela não pode se constituir em um imaterial dos indivíduos.

16
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18.

Referências
AMERICAN MUSICOLOGICAL SOCIETY. Guidelines for ethical conduct. Disponível em: <http://www.ams-net.org/
administration/ethics.php>. Acesso em: 19 fev 2012.
AZEVEDO, Maria Cristina de Carvalho Cascelli de; SANTOS, Regina Antunes Teixeira dos; BEINEKE, Viviane; HENTSCHKE,
Liane. Ética na pesquisa: considerações para a pesquisa em educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 2005. 14., Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: ABEM, 2005, p. 1-10.
BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 196, de 10 de outubro de 1996. Aprova diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, 1996. Disponível em: < http://www.bioetica.
ufrgs.br/res19696.htm >. Acesso em: 02 maio 2010.
BRASIL. Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá
outras providências. Brasília, 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9610.htm>. Acesso
em: 23 maio 2010.
BRESLER, Liora. Ethical issues in the conduct and communication of ethnographic classroom research. Studies in Art
Education, v. 37, n. 3, p. 133-144, 1996. Disponível em: <http://faculty.ed.uiuc.edu/liora/sub_directory/pdf/Ethical%20
Issues.pdf>. Acesso em: 08 maio 2011.
CABRAL, Marta Maciel Lyra; SCHINDLER, Haiana Charifker; ABATH, Frederico Guilherme Coutinho. Regulamentações,
conflitos e ética da pesquisa médica em países em desenvolvimento. Revista de Saúde Pública [online], v.40, n.3, p. 521-
527, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102006000300022&ln
g=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 maio 2011.
CASTAGNA, Paulo. Eventos brasileiros no campo da musicologia: histórico, presente e futuro. Revista do Conservatório
de Música - UFPel, Pelotas, n. 1, p. 58-82, dez. 2008. Disponível em: <http://www.ufpel.edu.br/conservatorio/revista/
revista1.html>. Acesso em: 19 fev 2012.
CENCI, Ângelo Vitório. O que é ética? Elementos em torno de uma ética geral. Passo Fundo, 2000.
CNPQ. Ética e integridade na prática científica - relatório da Comissão de Integridade de Pesquisa do CNPq. Disponível em:
<http://www.cnpq.br/normas/lei_po_085_11.htm#relatorio>. Acesso em: 17 fev 2012.
COTTA, André Guerra. O Palimpsesto de Aristarco: considerações sobre plágio, originalidade e informação na musicologia
histórica brasileira. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 4, n. 2, p. 185-209,1999.
DENCH, Chris. Towards an ethics of musical composition. 1998. 73f. Thesis (Master in Music) – University of
Melbourne, 1998.
DINIZ, Débora. Ética na pesquisa em ciências humanas: novos desafios. Ciência e saúde coletiva [online], v. 13, n. 2, p.
417-426, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v13n2/a17v13n2.pdf >. Acesso em: 22 fev 2012.
DUPAS, G. Ética e poder na sociedade da informação: de como a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito
do progresso. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
FREEMAN-TOOLE, Richard. On the ethics of music composition. 1998. Disponível em: < http://www.freemantlemusic.com/
ethicsMar98Brooksedit.pdf>. Acesso em: 08 maio 2011.
GERLING, Cristina Capparelli; SANTOS, Regina Antunes, Teixeira dos. Pesquisas qualitativas e quantitativas em
práticas interpretativas. In: FREIRE, Vanda Bellard (Org.). Horizontes da pesquisa em música. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2010. p. 96-138.
GREEN, Edward. The impact of Rousseau on the histories of Burney and Hawkins: a study in the ethics of musicology.
Music’s intellectual history, 2009. (RILM perspectives series). Disponível em: <http://www.edgreenmusic.org/Articles/
RousseauBurneyHawkins.pdf>. Acesso em: 12 maio 2011.
ILARI, Beatriz. Por uma conduta ética na pesquisa musical envolvendo seres humanos, Pesquisa em música no Brasil:
métodos, domínios e perspectivas, p. 167-198, v.1, 2009. Disponível em: <http://www.anppom.com.br/editora/
Pesquisa_em_Musica-01.pdf >. Acesso em: 23 maio 2011.
ISRAEL, Mark; HAY, Lain. Research ethics for social scientists: between ethical conduct and regulatory compliance.
London: Sage Publications, 2006.
JOURNAL OF RESEARCH IN MUSIC EDUCATION. MENC Research publication/presentation code of ethics. Disponível
em: <http://www.menc.org/resources/view/journal-of-research-in-music-education-code-of-ethics>. Acesso em:
23 maio 2011.
KORSYN, Kevin Ernest. Decentering music: a critique of contemporary musical research. New York: Oxford University
Press, 2003.
MOITA LOPES, Luiz Paula da. Contextos institucionais em lingüística aplicada: novos rumos. Intercâmbio, v. 5, p.
3-14, 1996. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/intercambio/article/view/4107/2753>. Acesso
em: 23 fev 2012.
NETTL, Bruno. Theory and method in ethnomusicology. New York: The Free Press, 1964.
O’DEA, Jane. Virtue or virtuosity? Explorations in the ethics of musical performance. Westport: Greenwood Press, 2000.

17
QUEIROZ, L. R. S. Ética na pesquisa em música... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.7-18

PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. Reflexões sobre ética na pesquisa.  Revista Brasileira de Lingüística Aplicada.
Belo Horizonte, v. 5, n. 1. p. 43-61, 2005. Disponível em: <http://www.veramenezes.com/etica.htm>. Acesso em:
02 maio 2010.
PASQUALOTTI, Adriano. A ética na pesquisa: um procedimento metodológico indispensável. Disponível em< http://
usuarios.upf.br/~pasqualotti/etica.htm>. Acesso em: 02 maio 2010.
QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Ética na pesquisa em etnomusicologia. In: CONGRESSO DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 20., 2010, Florianópolis. Anais... Florianópolis:
ANPPOM, p. 558-562, 2010.
­­­­______. Pesquisa quantitativa e pesquisa qualitativa: perspectivas para o campo da etnomusicologia. Revista Claves,
João Pessoa, n. 2, p. 87-98, 2006.
______.(Re)pensando a ética na pesquisa em etnomusicologia. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE ETNOMUSICOLOGIA, 5., 2011, Belém. Anais... Belem: ABET, p. 415-423, 2011.
RICHMOND, John W. Ethics and the philosophy of music education. Journal of Aesthetic Education, v. 30, n. 3, p. 3-22,
1996.
ROUNDS, P. L. The classroom-based researcher as fieldworker: strangers in a strange land. In: SCHACHTER, J.; GASS, S.
(Ed.). Second language classroom research: issues and opportunities. Mahwah, New Jersey: Lawrence Erlbaum, 1996.
SEEGER, Anthony. Long-Term Field Research in Ethnomusicology in the 21st-Century. Em Pauta, Porto Alegre, v. 19, n.
32/33, p. 3-20, 2008.
SEEGER, Anthony. Ethnomusicology and music law. Ethnomusicology, v. 36, n. 3, p. 345‐359, 1992.
SLOBIN, Mark. Ethical issues. In: MYERS, Helen (Ed.). Ethnomusicology: an introduction. New York: W.W. Norton e
Company, 1992. p. 329-336.

Notas
1 Social scientists are angry and frustrated. They believe their work is being constrained and distorted by regulator of ethical practice who do
not necessary understand social science research […] researchers have argued that regulator are acting on the basis on biomedically driven
arrangements that make little or no sense to social scientists.
2 […] relationships between works of musical scholarship and the cultural networks in which they participate.
3 “The crisis of musical research is ultimately an ethical crisis […]”
4 Guidelines for Ethical Conduct.
5 <www.apa.org/ethics/code2002.html>. Acesso em: 08 maio 2011.

Luis Ricardo Silva Queiroz é Doutor em Música (área de Etnomusicologia) pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA), Mestre em Educação Musical pelo Conservatório Brasileiro de Música (CBM) do Rio de Janeiro e Graduado
em Educação Artística, Habilitação em Música, pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).
Professor Adjunto do Departamento de Educação Musical e do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGM) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Nessa Universidade foi Coordenador do Curso de Licenciatura em Música
(2005-2009), Chefe do Departamento de Educação Musical (2004-2005) e, atualmente, é coordenador do Programa
de Pós-Graduação em Música. Foi professor adjunto da UNIMONTES, de 1998 a 2004, e do Conservatório Estadual
de Música Lorenzo Fernandez, de Montes Claros-MG, de 1995 a 2002. É violonista atuante como solista em várias
cidades brasileira e autor de diversos artigos nas áreas de música, publicados em livros, periódicos especializados e
anais de congressos nacionais e internacionais.

18
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28.

O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I):


aspectos melódicos e harmônicos
Gabriel Ferrão Moreira (USP, São Paulo/SP)
gfmoreira@ymail.com

Resumo: Primeira parte do artigo resultante de minha dissertação de mestrado, que trata da representação musical do
índio brasileiro na composição de Heitor Villa-Lobos. Nessa primeira parte, apresento questões sobre aspectos melódicos
e harmônicos no que chamo de seu “estilo indígena.” Quais os meios musicais objetivos empregados por Villa-Lobos
para evocar a figura do índio na memória e na sensibilidade dos ouvintes de seu tempo? Existe um rol de procedimentos
composicionais recorrentes nessa construção sonoro-musical do índio em sua obra? Argumento que há um modo de
compor particular de Villa-Lobos quando trata da temática indígena/selvagem, um recorte específico de sua obra: seu
“estilo indígena”.

Palavras-chave: estilo indígena em Villa-Lobos; modernismo e primitivismo musical; análise e significado musical.

The Indian Style of Villa-Lobos (Part One): melodic and harmonic aspects

Abstract: First part of the article resulting from my Master’s Thesis, which deals with the musical representation of
Brazilian Indians in Villa-Lobos’s music. In this first part, I discuss melodic and harmonic aspects of what I call “indian
style”. What musical means the composer uses to evoke the figure of the Indians on the memory and sensibility of his
audience? Is there a specific collection of recurring musical procedures to portray his ideas of savageness? I argue that
Villa-Lobos has a particular way of composing when he deals with the indian/savage thematic on his work, a specific set
of his oeuvre: his ‘indian style”.

Keywords: indian style in Villa-Lobos; musical analysis and meaning; modernism and primitivism in music.

1 - Introdução
Villa-Lobos é reconhecido internacionalmente como o Entretanto, um desses tópicos recebeu maior atenção de
maior compositor brasileiro do século XX. As estatísticas Villa-Lobos do que todos outros, e esse foi o ‘elemento
vindas de diversas fontes parecem confirmar esse ‘senso indígena’, responsável pela consagração de Villa-Lobos
comum’ em escala mundial: o grande número de escritos como o representante maior da musicalidade brasileira no
sobre sua vida e obra em livros e artigos e o fato de exterior. O assunto indígena foi o preferido de Villa-Lobos
ser o compositor erudito brasileiro que mais arrecada nas suas estadias na Europa, de 1923 a 1930, haja vista
sobre os direitos autorais; mais, inclusive, do que a quantidade de obras compostas que faziam referência
compositores populares da atualidade (SALLES, 2009a). ao índio brasileiro: Choros nº3 (1925), Choros nº10 (1926),
A popularidade de Villa-Lobos tem ligação direta com Três Poemas Indígenas (1926) e muitas outras (MOREIRA,
a originalidade da sua obra e pela vastidão de temas 2010a). Muito além de uma inspiração restrita à década
que ele incorporou à sua composição, principalmente os de 1920, durante toda sua vida - nas mais diversas
relacionados ao Brasil – via música brasileira -, em suas formações instrumentais e propostas formais - o índio foi
diversas vertentes. personagem estimado pelo compositor em suas criações

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 25/03/2012 - Aprovado em: 13/07/2012
19
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28

(MOREIRA, 2010b). Portanto, não é a toa que suas alcunhas Partindo do pressuposto de que Villa-Lobos tenha
mais famosas tenham sido relacionadas ao índio: Índio de construído e trabalhado com diversos ‘dialetos musicais’2,
Casaca e L´indien Blanc (SCHIC, 1987). esse texto relata uma síntese da minha pesquisa à
procura de uma proposta estética específica de Villa-
É inegável que grande parte da celebridade de Villa- Lobos, aquela relacionada à representação musical do
Lobos no Brasil e no exterior tenha sido decorrente da índio na sua obra. Partindo da análise musical e crítica
recepção calorosa de sua obra na Paris dos Annés Folles historiográfica3, observo esse fenômeno numa perspectiva
(FLÉCHET, 2004). Ele primeiramente foi reconhecido que relaciona as opções musicais de Villa-Lobos com
como compositor brasileiro em Paris – e aqui valorizo a expressão de um pensamento particular acerca do
o gentílico – para então ser reconhecido como ícone índio – nomeadamente, nos anos 1920, do Primitivismo
da música brasileira no próprio Brasil (GUÉRIOS, 2009). europeu - onde considero a ação do compositor sobre
Ainda que essa brasilidade tenha se manifestado de uma determinada audiência que partilha desses ideais
diversas formas em sua carreira – como, por exemplo, a e expectativas e se nutre deles. Ensaio, também, uma
preferência pelo folclore brasileiro nos anos 30 frente à organização e classificação dos procedimentos musicais
música indígena nos anos 20 (ainda que eu destaque a específicos que observo como elementos constitutivos
existência de muitas conexões e interpenetrações nesses da ‘linguagem’ indígena de Villa-Lobos e discuto cada
dois tópicos na obra villalobiana) – foi a construção um deles numa abordagem hermenêutica, considerando
desse personagem Brasileiro, intrinsecamente ligada a construção dos seus significados através da relação
ao conceito de selvagem, que sedimentou a impressão entre a concepção do selvagem na imaginação francesa
geral que se tem do compositor e de sua música. (desde viajantes franceses do século XVI, passando por
pensadores iluministas aos intelectuais parisienses de
Contudo, esse interesse especial de Villa-Lobos pelo pós Primeira Guerra) e os meios musicais de encenar
índio – enquanto tema - e a música indígena – enquanto essas representações.
material - foi pouco estudado e discursos reducionistas
acerca do tema tomaram o senso comum acerca Alguns esclarecimentos sobre metodologia
do compositor, inclusive na academia. Uma dessas Peço licença para tratar com algum cuidado de
abordagens afirma que Villa-Lobos havia inventado, aspectos metodológicos do trabalho. A pesquisa
a seu bel-prazer, as referências da música indígena a – relatada integralmente em minha dissertação de
qual, supostamente, havia se baseado para compor suas mestrado - foi dividida nos seguintes estágios, sendo
obras. Conquanto tal afirmação não diminua em nada que esses se desenvolveram de forma simultânea, com
a originalidade e qualidade das obras de Villa-Lobos, exceção do primeiro:
essa suposição fazia coro à ideia de que Villa-Lobos
era um compositor totalmente intuitivo – e, portanto, 1) Elaboração de uma amostra relevante de obras de
sem método – e inverossímil; tentando, dessa forma, temática indígena em Villa-Lobos para análise. Tais
desvalorizar um dos seus pontos considerados fortes: o músicas de alguma forma deveriam remeter ao universo
de representar acertadamente um retrato da existência simbólico do índio – no título ou por conteúdo musical
indígena nas selvas brasileiras. Enquanto trabalhos de referente (conceito que desenvolverei mais tarde). Para
análise musical têm obtido resultados interessantes que as considerações feitas não fossem reduzidas a
ao se dedicarem a problematizar a suposta falta de questões instrumentais/interpretativas ou de período
método de Villa-Lobos1, nenhum trabalho se debruçou, produtivo específico do compositor (‘maneirismos’ de
até então, na problematização da relação de Villa- época), foram coletadas partituras de obras dos anos
Lobos com o material indígena que afirma utilizar 1910 ao fim da vida de Villa-Lobos (especificamente, a
em sua obra. Embora possamos deduzir que qualquer primeira obra analisada é de 1914 e a última de 1958,
pesquisa um pouco mais profunda levasse à asserção um ano antes da sua morte). Aqui a lista das obras
óbvia de que Villa-Lobos travou contato com literatura analisadas por data de início do ciclo:
musico-etnográfica que estava disponível à sua época
(PEPPERCORN, 2000; GUÉRIOS, 2009; NÓBREGA, 1974; • Das Danças Características Africanas: Danças
LAGO, 2003), não havia análises comparativas entre características de índios Mestiços do Brasil (1914
as fontes das melodias indígenas e as suas aplicações – piano) Op. 47: Farrapos, Kankukus e Kankikis;
na obra de Villa-Lobos – o que poderia revelar traços • Amazonas (19174 - versão para piano e versão
importantes do comportamento composicional do para a orquestra);
músico – e tão pouco, num segundo estágio, a procura • Da Prole do Bebê nº1: Caboclinha (A boneca de
de elementos musicais recorrentes nessa representação Barro)/ Petite Indigéne du Brésil – La poupée em
do índio em obras de diversas fases, que poderiam vir argile (1918 – piano);
a compor um léxico dos procedimentos composicionais • Das Canções Típicas Brasileiras: Nozani-ná e
utilizados por Villa-Lobos para construir esse ‘estilo Ualalôcê (1919-1935 – piano e voz);
indígena’, conforme o chamo, responsável por facilitar • Lenda do Caboclo (1920 – piano);
ao compositor a conquista do status internacional • Choros nº3 (1925);
vitalício que recebeu. • Choros nº10 (1926 - para orquestra e coro misto);

20
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28.

• Introdução aos Choros (1929); excertos musicais em autores eruditos e populares que
• Três Poemas Indígenas (1926 - versão para piano parecem confirmar a presença e a importância germinal
e voz); da obra de Villa-Lobos na concepção de música brasileira
• Saudades das Sélvas Brasileiras, nº 1 e 2 (1927 – indígena que se seguiu no século XX. Pela largueza da
piano); discussão desse último ponto, não o desenvolverei aqui,
• Canções de temática indígena no Canto Orfeônico tratando apenas da gênese do estilo indígena de Villa-
(1930); Lobos observando suas obras.
• Ciclo Brasileiro (1936 - piano): Dansa do Indio
Branco; Depois de feitas essas considerações, podemos
• Duas Lendas Ameríndias em Nheengatu I: O retornar para um texto mais fluído onde apresento os
Iurupari e o Menino (1952 – vocal); elementos constitutivos do estilo indígena de Villa-
• Da suíte Floresta Amazônica (1958 – canto e Lobos juntamente com a discussão de sua dimensão
piano), Veleiro - Indian Song, Canção do amor e hermenêutica e simbólica.
Melodia Sentimental. 5
2 - Utilização de melodias e textos de
2) Audição das músicas e análise. Nesse ponto do caráter indígenas nas composições vocais:
trabalho procurei observar, nas audições com partituras,
elementos recorrentes nas músicas de temática indígena
estabelecimento de intertextualidade e
de Villa-Lobos – no âmbito da melodia, harmonia, referências internas.
figurações rítmicas, elaboração de texturas, fraseologia, Ainda que não fosse um critério obrigatório na
forma, etc.. Também atentei para o conjunto geral composição de temática indígena de Heitor Villa-
da composição villalobiana a fim de verificar se os Lobos, o uso de melodias indígenas originais é um
elementos são exclusivos, ao menos em boa parte, das dos procedimentos sobre o qual ele constrói parte
obras de temática indígena. da sua composição indígena. Nesse contexto destaco
quatro procedimentos de Villa-Lobos com relação a
3) Leitura e escuta das fontes primárias. Os textos elaboração de um tema indígena para suas obras: a)
nos quais Villa-Lobos encontrou transcrições de música o uso das melodias originais transcritas, com pouca
indígena (ROQUETE-PINTO, 1938; LÉRY, 1585) foram ou nenhuma alteração do compositor; b) o uso de
pesquisados e os fonogramas aos quais Villa-Lobos fragmentos de uma melodia original como elemento
teve acesso escutados, a fim de estabelecer parâmetros para bricolagem8 na composição livre (utilizada como
para considerar o uso dessas fontes nas composições de recurso principal em composições instrumentais com
temática indígena de Villa-Lobos. referências a fontes indígenas, como Choros nº3 e
Introdução aos Choros), c) composição com melodia de
4) Classificação e discussão dos procedimentos caráter indígena criada integralmente pelo compositor
musicais na representação do índio na música de Villa- (com o uso de traços melódicos semelhantes às
Lobos. Após as análises, pude agrupar os procedimentos transcrições); 9 e d) composições nas quais Villa-Lobos
composicionais de Villa-Lobos na representação musical cita a fonte, e atribui a si mesmo a coleção da música,
do índio em sete categorias principais: a) Utilização mas a literatura atualmente não pode comprovar ou
de melodias e textos de caráter indígena nas canções; refutar suas declarações, apesar da opinião geral dos
b) Graus conjuntos, modalismo e pulso constante na pesquisadores tender a considerar tais coletas feitas
construção melódica; c) Estruturas em Quartas/Quintas; por Villa-Lobos fruto da imaginação do compositor.
d) Paralelismos; e) Ostinatos; f) Fluidez melódica; d) As indicações dessas modalidades do uso de melodia
Textura grandiloquente6. Discuto, em cada tópico, a indígena nas composições podem ser observadas
importância simbólica de cada uma dessas opções nos cabeçalhos das partituras das obras, por vezes
composicionais na construção de uma representação muito informativos, por outras, vago ou inexistente.
musical do selvagem de acordo com a imaginação Observemos no Ex.1, Ex.2 e Ex.3:
francesa, que se construiu desde relatos de missionários
franceses no Brasil colonial – como Jean de Lery (LERY, Em qualquer um dos três modos de construção de
1585) – a teóricos franceses do Iluminismo – como J.J melodia de caráter indígena, geralmente há algum tipo
Rousseau e J.P Rameau7 e que se consolidou, à época de de intertextualidade na composição, que a justifica como
Villa-Lobos, com as relações peculiares da França com indígena (como uma composição que não foi totalmente
o exótico vindo das Américas e Ásia, nas Exposições ‘inventada’ por Villa-Lobos). Quando há uma melodia
Internacionais de Paris, a partir de 1889 (BARBUY, 1999). indígena transcrita, o compositor cita detalhes sobre a
fonte primária (Ex.1). Nesses casos (Como em Três Poemas
5) Procura da presença do estilo indígena de Villa- Indígenas e Nozani-ná das Canções Indígenas) o grau de
Lobos na música brasileira da segunda metade do autenticidade comprovado no cabeçalho da partitura
século XX. Com o fim de verificar objetivamente a justifica chamá-la de indígena; quando não há citação
presença dessa proposta villalobiana da estética do direta de fonte (Ex.2), Villa-Lobos a compõe sobre um texto
índio na música que veio após o compositor, procurei de Mário de Andrade, assim sustentando sua posição não

21
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28

Ex.1 - Localização geográfica e temporal da melodia indígena no cabeçalho de Canide Ioune– Sabath dos Três Poemas
Indígenas de Villa-Lobos remetendo às coletas de melodias indígenas do missionário francês Jean de Léry (LÉRY, 1585).

Ex.2 - Cabeçalho autógrafo de Pai-do-Mato, primeira Canção Indígena de Villa-Lobos, com melodia de caráter indígena
criada sobre poema de Mário de Andrade.

Ex.3 - Cabeçalho do autógrafo de Ualalocê, segunda Canção Indígena. Nele está escrito “Lenda dos Índios, Cantada
e dansada (sic) para festejar a caça. Harmonizada por Villa-Lobos”. Citações dessa natureza são comuns na Coleção
Escolar e nos Cadernos de Canto Orfeônico, ambos da década de 1930.

de compositor (ou inventor) da canção que ele chama de transcrições mais estritamente. Um exemplo interessante
indígena - o que seria, de fato, um contrassenso - mas de pode ser dado aqui: observemos, no Ex.4, a transcrição
‘musicador’, harmonizador, mantendo a mesma postura de Nozani-ná, música indígena Pareci (tribo do norte
que tem com as melodias originalmente indígenas. Isso do Mato Grosso) coletada em 1912 por Roquete-Pinto
pode ser observado, também, pela necessidade de citar (1938):
fontes um tanto quanto obscuras (figura 3) para se eximir
do ato de criar ou inventar completamente uma melodia Villa-Lobos utilizou trechos da melodia Nozani-ná
que deve ser indígena. O fato que deve ser salientado aqui como tema de uma espécie de moteto introdutório
é que Villa-Lobos utilizou melodias indígenas transcritas, do seu Choros nº3. Uso o excerto musical do Ex.5 para
mesmo que não em cem por cento de suas composições exemplificar uma situação na qual Villa-Lobos cria
de temática indígena. Nas obras que não as usou livremente, inspirado em uma melodia indígena, mas
literalmente, nelas se baseou ao retirar elementos para permite que o ouvinte saiba de onde a melodia foi
evocar a sonoridade indígena, fazendo uma referência retirada, ou em outras palavras, a que música indígena
interna a suas próprias composições nas quais utilizou as a melodia pertence.

22
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28.

3 - Graus conjuntos, modalismos e pulso níveis: tanto na elaboração de melodias e motivos de


constante na construção melódica: encontros caráter temático, quanto para a construção de texturas
diversas na atmosfera da composição. Logo no início da
do atemporal e contemporâneo.
composição, Villa-Lobos apresenta o tema de Amazonas,
Em diversas composições de intenção indígena, Villa-Lobos que é constituído por duas notas, Mi e Ré (Ex.6).
constrói as melodias temáticas e os desenvolvimentos
texturais sobre graus conjuntos. Citando apenas alguns Esse tema será desenvolvido e apresentado de diversas
exemplos, temos Os Três Poemas Indígenas: Canide Ioune formas durante a música, formado basicamente por
– Sabath, Teirú, Iára; Dança do Índio Branco, Duas Lendas duas notas distantes uma segunda – um grau conjunto.
Ameríndias em Nheengatu – parte 1,Caboclinha, Ualalôcê, Abaixo, no Ex.7, diversos exemplos da transfiguração
Kankikis, Farrapos, Nozani-ná, e Amazonas. Em Amazonas10, rítmica e do contexto textural do intervalo Ré-Mi no
Villa-Lobos utiliza o princípio do grau conjunto em diversos decorrer da música.

Ex.4 -Transcrição de Edgard Roquete-Pinto da melodia de uma canção Pareci (1938).

Ex.5 - Bricolagem de versos da canção indígena Nozani-Ná, nos Choros nº3 de Villa-Lobos.

Ex.6 – Amazonas (c.1–2) de Villa-Lobos: tema inicial em graus conjunto.

23
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28

Ex.7 - Amazonas (p.2, c.2-4) de Villa-Lobos: desenvolvimento por transfiguração rítmica e do contexto textural dos
graus conjuntos do tema inicial.

Ex.8 – Ualalocê (p.1 c.1-5, mão esquerda) de Villa-Lobos: graus conjuntos.

Ex.9 - Teirú (c.1-4) de Villa-Lobos: ostinato com movimento de segundas nos contrapulsos (Dó#-Ré# e Ré-Mib).

Observemos, em outras obras de menor porte, a mais se confirmou, através das palavras de Villa-Lobos, a
utilização estrutural dos graus conjuntos. No ostinato da relação entre a música indígena utilizada por Villa-Lobos
Canção Indígena Ualalocê (Ex.8), as camadas melódicas e o canto gregoriano. Melodias em graus conjuntos,
(‘baixo’ e ‘tenor’) são organizadas em graus conjuntos – movimentos de segunda e saltos de terça, compensação,
no âmbito de segunda. ritmo conduzido pela palavra em pulsos, modalismo
e função ritual, são características pertencentes às
Notemos o mesmo uso dos graus conjuntos no ostinato transcrições de música indígena com as quais Villa-Lobos
de Teirú, dos Três Poemas Indígenas (Ex.9). teve contato, mas também ao canto gregoriano. Em suas
próprias palavras Villa-Lobos declara a importância do
Parece evidente que Villa-Lobos tenha utilizado com canto gregoriano em suas obras com um todo:
tamanha frequência os graus conjuntos e intervalos de As eras assírias, as relíquias esculturais da Coréia, o
segundas - articulados com divisões rítmicas simples – com misticismo da Índia, o amor abnegado do culto de beleza
a intenção de evocar uma impressão convincente de música entre os visigodos, a melopéia romana, a epopéia grega,
indígena legítima. As transcrições curtas com as quais as excursões gregorianas, que legaram à humanidade
teve contato mostravam estruturas melódicas construídas essa beleza eterna do cantochão, influíram fortemente
principalmente sobre intervalos de terça e segunda bem sobre certos aspectos da minha estética (VILLA-LOBOS
como divisões rítmicas binárias simples (como observamos [1922] apud GÚERIOS, 2009, p. 123).
na figura 4). Para construir suas próprias representações
e incrementar o ambiente harmônico e textural de sua Villa-Lobos, nesse discurso, conecta o cantochão a eras
composição, Villa-Lobos usou esses intervalos e ritmos ancestrais da humanidade, desenhando o progresso
como recursos essenciais, fortalecendo essa expressão desse ‘legado de beleza’ até sua conexão com o velho
selvagem em sua música. mundo, à época em que esse mundo era ‘novo’. Aqui, ele
elabora uma interpretação histórica em que os conteúdos
É interessante ressaltar um aspecto que surgiu das minhas culturais das civilizações que cita se materializam no
audições dessas canções como uma hipótese que logo conteúdo musical do cantochão, esse como um índice

24
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28.

de ancestralidade, beleza e religiosidade (expressa pelo que a utilização de intervalos perfeitos – e às vezes seus
uso dos termos culto e misticismo). A aparente similitude correlatos aumentados e diminutos – tem nessa música,
entre a construção melódica das transcrições indígenas vamos observar mais atentamente algumas das diversas
e do canto gregoriano (modos, adição rítmica, texto aparições dessas estruturas em sua obra.
‘religioso’) parece fornecer uma conexão simbólica entre
esses dois universos, no imaginário europeu, em conceitos Na Introdução aos Choros, por exemplo, Villa-Lobos utiliza
como ancestralidade, religiosidade, comunhão com a as estruturas em quartas como um recurso de construção
natureza (ou deuses), como sugere a gravura do Ex.10. de texturas harmônicas. Nessa obra, onde a melodia se
baseia em Nozani-ná, assim como os Choros nº3, Villa-
4 - Estruturas em Quartas/Quintas: uma Lobos insere as estruturas quartais desde o c.1 (Ex.11).
tópica do natural
Ainda discutindo o aspecto primitivo que Villa-Lobos Na parte de Choros nº3 em que se ouve a palavra picapau,
imprime a música indígena, quais seriam outras maneiras Villa-Lobos também utiliza estruturas que progridem
do compositor elaborar e tornar nítida essa categoria em em quintas (Ex.12) para conduzir, melodicamente, o
sua composição? Um recurso composicional difícil de ser desenvolvimento dessa seção.
ignorado pela sua grande recorrência na obra de temática
indígena de Villa-Lobos são as estruturas em quartas e Um último exemplo importante do uso de quartas e
quintas paralelas. Antes de explorarmos o significado quintas paralelas na composição de Villa-Lobos é obtido

Ex.10 - Gravura relatando um ritual dos Tupinambás, por Jean de LÉRY (1585). No mesmo livro, Histoire d’un voyage
faict en la terre du Brésil constam diversas transcrições de música indígena utilizadas por Villa-Lobos.

Ex.11 – Introdução aos Choros (p.1, c.1-2) de Villa-Lobos: utilização de 4as.

25
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28

numa obra tardia, de 1952, Duas Lendas Ameríndias em Lobos as utiliza com abundância nessa representação
Nheengatu I – O Iurupari e o Menino, onde as relações sonora do índio brasileiro? Segundo o pensamento que
harmônicas entre as vozes são construídas em quartas venho desenvolvendo e que aqui apresentei, penso que
paralelas (Ex.13) que vão se adicionando, enquanto a as estruturas que Villa-Lobos utiliza para representar
melodia mantem o caráter indígena, com as segundas e musicalmente o índio são apropriações particulares das
terças como intervalos principais. músicas de fonogramas e da sua leitura das transcrições.
Entretanto, não podemos observar o uso de polifonia
Observamos nesse último exemplo que mesmo depois de quartal nas transcrições analisadas. Devemos, contudo,
todos os procedimentos vanguardistas dos anos 20 e a considerar o poder retórico de evocação do selvagem
dita ‘modéstia’ do neoclassicismo/nacionalismo dos anos que esse procedimento musical já tinha à época da
30, Villa-Lobos, sete anos antes da sua morte, utilizava os ida de Villa-Lobos à Paris. Igor Stravinsky utilizava
intervalos de quartas e quintas paralelas como um índice abundantemente de quartas e quintas paralelas em suas
do índio. músicas, remetendo ao bárbaro russo, fundamentado na
tradição folclórica da sua terra natal12. O uso repetido
Entretanto, sabe-se que a utilização de polifonia vocal desse recurso edificou relações entre essa sonoridade
como regra de composição não é costume dos índios exótica e o povo exótico que ela representava. Ao
brasileiros11 – e de certa forma de todas as tribos estudadas que tudo indica Villa-Lobos ‘pegou carona’ com essa
das partes baixas da América do Sul. Porque Villa- representação musical para representar o seu selvagem

Ex.12 - Introdução aos Choros (p.3, segundo sistema, c.3-4) de Villa-Lobos: progressão em 5as.

Ex.13 - Duas Lendas Ameríndias I (1952, c.1-2) de Villa-Lobos: 4as paralelas como estrutura harmônica principal.

26
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28.

índigena brasileiro. Utilizando-se de procedimentos novas linguagens musicais com o uso desses intervalos,
populares de Stravinsky e modificando-os de acordo mas um retorno, um digressão musical aos padrões de
com suas próprias influências particulares (como linhas composição musical da Idade Média, na Ars Antiqua e
melódicas das transcrições), Villa-Lobos rearticula a Ars Nova (Séculos XI a XIV). O próprio Schoenberg (2001,
sonoridade do selvagem genérico do imaginário europeu p.117) elabora uma hipótese de teoria da gênese musical
tornando-a mais adequada à representação do índio fundamentada numa evolução do sistema tonal, onde o
brasileiro que desejava retratar, à medida que trabalha nível de desenvolvimento inicial seria a elaboração de
com outros parâmetros e referências. primitivas harmonias de quintas paralelas, num processo
que conduziria a uma complexificação dos intervalos e
A utilização de harmonia quartal em profusão se relaciona, do contraponto15. Ele argumentava que sua teoria se
também, de forma mais objetiva, com a descoberta baseava num princípio natural, o da Série Harmônica,
musical do oriente e da música africana por compositores onde o primeiro harmônico a surgir a partir do som
das escolas modernas de música – também através das fundamental - após a oitava - era a quinta justa.
Exposições Universais de Paris, desde o fim do século
XIX (BARBUY, 1999). Esse interesse por música não- Observamos, a partir dessa fala de Schoenberg, outro
ocidental se manifesta de maneira mais clara nos anos princípio importante quando se pensa nas quintas
10 e 20, na busca francesa pelo exótico em arte, que em como integrantes de discursos simbólicos. A quinta
música será satisfeita por diversos estilos sul-americanos, justa era um forte índice de proximidade da natureza
africanos, asiáticos entre outros (MENEZES BASTOS, indiferenciada e intocada artisticamente, em música16.
1999) onde novas escalas musicais (como a pentatônica O uso de quartas e quintas era eficiente, de fato para
e a hexafônica/tons inteiros) propiciaram também novas evocar - além dessa alteridade oriental e selvagem - a
combinações harmônicas, como a de quartas e quintas ‘infância da humanidade’, apoiada sobre um conceito de
sobrepostas. A construção do outro musical é um processo simplicidade e natureza, bastante eurocêntrico. Nesse
complexo. Mais do que inaugurar novas categorias sentido, podemos compreender a importância desse
sonoras, a importância do exótico reside em questionar recurso musical na representação do índio brasileiro por
a própria identidade - aquilo que se é num determinado Villa-Lobos na Europa. Essa sonoridade representava
momento - e o uso de quartas e quintas (principalmente em de forma muito eficiente – pela sua popularização, via
movimento paralelo) é uma alteridade significativa para o Stravinksy - diversos conceitos caros à representação do
desenvolvimento ‘curricular’ da música erudita europeia, índio por Villa-Lobos: alteridade, selvageria, primitivismo
baseada em harmonias de superposição de terças. e natureza. Isso justificava a sua aplicação, apesar da
No tratado Harmonia de Schoenberg (SCHOENBERG, inverossimilhança com as transcrições e fonogramas
2001), por exemplo, o autor desclassifica quartas e acessados pelo compositor.
quintas paralelas como sinônimos de modernidade13, e
se opõe a essa tendência ‘regressista’ se direcionando Continuo a analisar e discutir os elementos do estilo
cada vez mais à assimilação da dissonância14. Para indígena de Villa-Lobos, na segunda parte desse texto.
ele, o que realmente acontecia não era um avanço a

Bibliografia
BARBUY, H.. A Exposição Universal de 1889 em Paris: Visão e representação na sociedade industrial. São Paulo: Edições
Loyola, 1999.
FLÉCHET, A..Villa-Lobos à Paris: un écho musical du Brésil. Paris, L’Hartmattan, 2004.
GÚÉRIOS, P.R.. Heitor Villa-Lobos: o caminho sinuoso da predestinação. Curitiba: Edição do autor, 2009.
LAGO, M.C do. Recorrência temática na obra de Villa-Lobos: exemplos do cancioneiro infantil. Cadernos do Colóquio de
2003. Rio de Janeiro: Unirio, 2003.
LÉRY, J. de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil : autrement dite Amérique,... ([Reprod.]) / le tout recueilli sur les
lieux par Jean de Lery,... 1585. Disponível na internet :http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54640v .
MENEZES BASTOS, R.J. de. A Musicológica Kamayurá: Para Uma Antropologia da Comunicação no Alto Xingu, 2ª. ed.
Editora da UFSC, Florianópolis, 1999.
MOREIRA, G.F. O elemento indígena na obra de Heitor Villa-Lobos: uma pesquisa em finalização. Anais do SIMPOM - I
Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2010a.
______,. O elemento indígena na obra de Villa-Lobos: observações músico-analíticas e considerações históricas.
Dissertação de mestrado. Universidade do Estado de Santa Catarina: Florianópolis, 2010b.

27
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte I)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.19-28

NÓBREGA,A..Os choros de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, 1974.


PEPPERCORN, L.. Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Editora Publicações S.A.,2000.
ROQUETE-PINTO, E.. Rondônia. 4. ed. São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1938.
SALLES, P. T. . Villa, ainda (MBARAKA - revista da Fundação Padre Anchieta). Mbaraka - revista de música e dança da
Fundação Padre Anchieta, São Paulo, p. 118 - 126, 19 out. 2009a
______. Villa-Lobos: Processos composicionais. Campinas: Editora da Unicamp, 2009b.
SCHIC, A. S.. Villa-Lobos: souvenirs de l’indien blanc. Arles: Actes Sud, 1987.
SCHOENBERG, A. Fundamentos da composição musical. São Paulo: EDUSP, 2008.
______. Harmonia. São Paulo: UNESP, 2001.
SILVA, I.J. da.  Fantasia em tres movimentos em forma de choros de Heitor Villa-Lobos: Análise e contextualização de seu
último período. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho: São Paulo, 2008.

Notas
1 Estudos recentes de análise musical têm reconhecido que a questão da valoração da obra de Villa-Lobos por existência ou não de método era
desautorizada pela incompreensão do próprio (ou melhor, dos próprios) modus operandi do compositor. Hoje, diversas teses e dissertações (SILVA,
2008; CUNHA, 2004; SALLES, 2009b) têm estudado suas obras com mais cuidado analítico e revelado coisas interessantíssimas sobre estruturas
de textura, forma e timbrística da composição villalobiana.
2 Reconheço os seguintes ‘dialetos musicais’ de Villa-Lobos, o do caipira do interior brasileiro, o da música urbana do Rio de Janeiro, o do selvagem
brasileiro o do afrodescendente. São exemplos desses ‘dialetos’, respectivamente: Quarto movimento da Bachianas Brasileiras nº 2 (1930), Choro
nº1 (1920) e Danças Características Africanas (1914). Essa última composição apresenta remissões à música africana (como o uso frequente da
síncopa) e indígena, como será comentado mais tarde.
3 Com base, principalmente, nos escritos teóricos e estéticos de Arnold Schoenberg (2001, 2008).
4 A datação dessa obra tem sido questionada, mas adoto a data fornecida pelo compositor até a pesquisa de datação revelar seus resultados finais.
5 Ao fim do trabalho, forneço uma referência das edições das partituras analisadas.
6 Apesar de admitir que a construção do estilo indígena de Villa-Lobos se faz da combinação desses elementos num todo complexo, pude observar
que cada um deles é um item individual, podendo ser tratado com tal e ser trabalhado de diversas formas.
7 Que apesar de terem grandes divergências políticas e estéticas, privilegiaram, cada um a sua maneira, o selvagem em suas obras (MOREIRA, 2010b,
p.22).
8 Estrangeirismo da língua francesa, bricolar significa criar algo novo a partir do que já se possui, como um ‘reaproveitador’. Termo utilizado em
antropologia por Levi-Strauss em seu livro O pensamento selvagem (LEVI-STRAUSS, 1970).
9 Nas canções, geralmente apoiada em poesia de Mário de Andrade.
10 Essa discussão é referente à versão de Amazonas para piano.
11 Obviamente estou me referindo à música tradicional indígena e não às apropriações de outras músicas que algumas populações indígenas
atualmente fazem. Entretanto, é importante observar que a heterofonia é muito praticada por essas mesmas populações.
12 E nos procedimentos composicionais da escola russa de composição do fim do século XIX, Os Cinco: Rimsky-Korsakov, Mussorgsky, Cui, Borodin e
Balakirev).
13 O autor havia percebido esses desenvolvimentos da modernidade em seu próprio tempo. Ele era adepto do pensamento da ‘evolução’ da música,
se propondo, ele mesmo, com seu sistema dodecafônico conduzir a música a um patamar mais desenvolvido. Não surpreende então que julgue os
compositores que retornam ao Medievo, em termos sonoros, como charlatões (SCHOENBERG, 2001,p. 120, rodapé).
14 Muito embora Schoenberg mesmo tenha utilizado quartas paralelas em algumas composições, com o intuito de expandir a tonalidade (como em
sua Sinfonia de Câmara nº9). Ele a utilizava de forma muito diversa à de Villa-Lobos, conduzindo também seus alunos no uso dessa linguagem,
como podemos admitir pela existência do Arquétipo de Webern, construído basicamente sobre quartas (SALLES, 2009).
15 Esse pensamento apresenta um bom exemplo da aplicação da antropologia evolucionista do início do século XX sobre a história da música.
16 Sobre a relação entre a Série Harmônica e o pensamento sobre o natural, José Miguel Wisnik tem grandes contribuições em seu livro O som e o
sentido: uma outra história das músicas (1999).

Gabriel Ferrão Moreira é Doutorando em Música pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Música (musicologia-
etnomusicologia) pela Universidade do Estado de Santa Catarina, possui graduação em Licenciatura em Música pela
mesma universidade (2008). Atualmente pesquisa a linguagem modernista de Heitor Villa-Lobos. Possui pesquisas
paralelas e publicações em eventos interdisiciplinares, em temas transversais como Religião, Gênero, História e suas
relações com a Música. Também desenvolve projetos comunitários de educação musical de crianças e adultos através do
canto coral e prática instrumental. Atua principalmente nos seguintes temas: Pesquisa em musicologia-etnomusicologia,
composição, teoria musical ocidental e regência coral.

28
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38.

O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II):


aspectos rítmicos, texturais, potencial
significante e tópicas indígenas
Gabriel Ferrão Moreira (USP, São Paulo, SP)
gfmoreira@ymail.com

Resumo: Segunda parte do artigo resultante de minha dissertação de mestrado, que trata da representação musical
do índio brasileiro na composição de Heitor Villa-Lobos. Nessa segunda parte, continuo defendendo a existência de
um “estilo indígena” coerente e autoreferente na música de Heitor Villa-Lobos. Analiso aspectos rítmicos e texturais
desse estilo e, numa abordagem hermenêutica, seu potencial significante. Ao fim, apresento alguns modelos de tópicas
indígenas em Villa-Lobos.

Palavras-chave: estilo indígena em Villa-Lobos; modernismo e primitivismo musical; análise e significado musical.

The Indian Style of Villa-Lobos (Part Two): rhythmic and textural aspects, signifying potential
and Indian topics

Abstract: Second part of the article resulting from my Master’s Thesis, which deals with the musical representation of
Brazilian Indians in Villa-Lobos’s music. In this second part, I continue to defend the existence of a coherent and self-
referential Indian Style on Villa-Lobos music, and I observe the signifying potential of rhythmic and textural aspects of
this style based on a hermeneutic approach. Finally, some models of Indian topics on Villa-Lobos are presented.

Keywords: indian style in Villa-Lobos; musical analysis and meaning; modernism and primitivism in music.

1 - Paralelismo: uma tópica de ‘simplicidade técnica’


Assim como na construção do natural e primitivo podemos observar que o divisi dos trompetes e das três
através do uso de quintas e quartas paralelas Villa-Lobos trompas em fá se desenvolve paralelamente, no aspecto
imprimiu um sentido de primitivismo e proximidade rítmico e melódico, sendo constituído exclusivamente por
da ‘natureza virgem’ em sua música indígena, o uso terças e sextas. Esse é um exemplo bastante esclarecedor
amplo de paralelismo (nas diversas dimensões da obra) da importância dessas estruturas na obra de temática
colaborou para a inserção do conceito de ‘simplicidade’ indígena em Villa-Lobos.
ou pouco desenvolvimento técnico dentro do caldeirão de
representações simbólicas do índio em sua música. Antes Na série de peças para piano Danças Características
de desenvolver essa ideia, vejamos alguns exemplos. Africanas1 os paralelismos são recorrentes e se manifestam
em diversos parâmetros, melódicos, harmônicos e rítmicos.
Diversas sucessões de acordes que Villa-Lobos utiliza Observemos o exemplo de Kankikis, a terceira dança, onde o
em Amazonas se desenvolvem em movimento paralelo. paralelismo na repetição do motivo e o paralelismo rítmico
Observe o seguinte exemplo, no qual os acordes, apesar e harmônico das semicolcheias formam um exemplo
de se desenvolverem ritmicamente de maneira fluida, são especial do uso desse recurso por Villa-Lobos (no Ex.3).
formados por terças e se movem paralelamente em saltos
e graus conjuntos (Ex.1). Na sua hipótese sobre o desenvolvimento progressivo
da música ocidental, que já citamos, Schoenberg
No Choros nº10 podemos encontrar passagens ricas dessas além de considerar o avanço aos harmônicos mais
estruturas musicais paralelas. Na seção abaixo (no Ex.2) distantes da série harmônica como uma narrativa

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 25/03/2012 - Aprovado em: 13/07/2012
29
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38

Ex.1 - Amazonas (p.6, terceiro sistema, c.1) de Villa-Lobos: sucessão de acordes em movimento paralelo

Ex.2 – Choros 10 (p.7, c.1-4) de Villa-Lobos: terças e sextas paralelas.

Ex.3 - Kankikis (p.1, c.5-7) de Villa-Lobos: paralelismo em repetições motívicas.

que direciona esse desenvolvimento, ele observa a paralelismos rítmicos e melódicos (que não se restringe
questão da independência das linhas melódicas como somente aos intervalos de quinta justa) parece evocar
indicador do grau de complexidade da música, do seu uma simplicidade técnica humana ‘ativa’, um dos itens
estágio evolutivo. Movimentos oblíquos e contrários importantes do imaginário ocidental acerca do índio: a
(derivados da assimilação da terça como consonância) rusticidade dos seus meios técnicos e dos resultados da
satisfazem a complexidade mínima necessária para sua construção artística. Assim como as machadinhas
o uso da categoria ‘polifonia’ como Schoenberg a de pedra polida e vasos de barro, que para os europeus
define (SCHOENBERG, 2001, p.118). Nesse contexto, são souvenires da cultura indígena - que transmitem a
percebemos que o uso intenso de paralelismos rítmicos ideia de simplicidade técnica que se vê objetivamente na
e melódicos é tido como uma simplificação extrema, falta de complexidade dos materiais resultantes – são
dentro da produção artística de uma cultura que as músicas ‘simples’ desses povos. Justamente através
valorizava a polifonia complexa de Bach, Beethoven dessa simplicidade exótica é que se constrói a aura
e Brahms. Enquanto a opção por quintas paralelas na que reveste de valor tais produções artísticas, e Villa-
obra de temática indígena de Villa-Lobos remete a uma Lobos parece se apoderar com sucesso desse elemento
proximidade do natural indiferenciado, a opção por simbólico em sua composição de temática indígena.

30
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38.

2- O conceito de repetição/estaticidade sonoro de Villa-Lobos. Mas como se constrói essa relação


figurado no ostinato entre ostinato e o não-civilizado? Dentro da composição
musical canônica europeia, tradicionalmente, o ostinato
Os ostinatos são utilizados profusamente nas músicas
era considerado, segundo Schoenberg (2008), como
de intenção indígena de Villa-Lobos. Podemos dizer que
um recurso a ser evitado na composição. Seja por ser o
ele partilha do uso de uma estrutura musical bastante
oposto do desenvolvimento variado – qualidade musical
apreciada por compositores da primeira metade do
extremamente apreciada na música ocidental de concerto
século XX – como Stravinsky, de quem já falamos
- ou por ser uma ideia extremamente simples que ao
nesse trabalho -, um elemento constitutivo de parte da
soar repetidas vezes torna-se monótona e sem função
linguagem musical da época, concernente ao bárbaro
teleológica; o que – para uma análise funcional, orgânica
e exótico. Vejamos alguns exemplos da presença de
- é um defeito musical: uma célula sem função, que se
ostinatos na música de temática indígena de Villa-Lobos,
repete por toda a estrutura2. Observemos o que Schoenberg,
a procura de particularidades do compositor dentro desse
em seu tratado de composição (SCHOENBERG, 2008), no
procedimento comum à sua época.
subtítulo A utilização do motivo requer variação (op. cit,
p.36) diz acerca da necessidade do desenvolvimento nos
Em Nozani-ná das Canções Típicas Brasileiras podemos
motivos musicais, e a sua comparação desse processo
perceber o ostinato como princípio de repetição aplicado
com o desenvolvimento de um organismo:
em suas obras para piano. Ao harmonizar e ambientar a
canção pareci, Villa-Lobos utiliza um acompanhamento A preservação dos elementos rítmicos produz, efetivamente,
de piano bastante repetitivo onde em diversos planos coerência, (ainda assim a monotonia não pode ser evitada
temporais há repetição e reiteração; nomeadamente, no sem ligeiras mudanças) (...). A música homofônica poderia se
denominada de estilo da “variação progressiva”. Isso significa que
ostinato em colcheias (apresentado no Ex.4) e nas notas na sucessão das formas-motivo, obtidas pela variação do motivo
presas da mão direita, que se repetem em ciclos mais básico, há algo comparável ao desenvolvimento, ao crescimento
longos. Note a ênfase dada por Villa-Lobos ao intervalo de um organismo. (op. cit, p.36)3.
de segunda maior nesse ostinato, nas notas graves Lá e Si
e nas mais agudas Sol e Lá: Schoenberg, ao dar conselhos para o autotreinamento
afirma diversas vezes que a monotonia deve ser evitada
Estruturado de maneira semelhante ao ostinato de pelo compositor, e indica as maneiras de evitá-la na
Nozani-ná (com o movimento destacado de segundas composição:
maiores), o ostinato de Ualalocê, outra das Canções
Evitar monotonia: Muita repetição de notas, ou de figuras
Típicas Brasileiras, demonstra a repetição em vários melódicas, é indesejável se não se explora a vantagem da repetição
níveis. Observe a movimentação em segundas nos dois – a ênfase. (...) Permaneça em um âmbito de tessitura restrito e
‘planos melódicos’ do ostinato na clave de fá (notas DÓ# evite mover-se longamente em uma única direção (...). Observar
e RÉ# no grave e MI e FÁ# no agudo) no Ex.5. a linha do baixo: o baixo foi, anteriormente, descrito como uma
‘segunda melodia’. Isto quer dizer que ele está sujeito aos mesmos
requisitos da melodia principal: deve ser ritmicamente equilibrado,
A utilização frequente do ostinato na música de temática deve evitar a monotonia com repetições desnecessárias, deve
indígena em Villa-Lobos indica a importância desse possuir variedade de perfile deve fazer bastante uso das inversões
elemento musical na construção do universo indígena (...). (op. cit, p.146).

Ex.4- Nozani-ná (c.6-10) de Villa-Lobos: ostinato com ênfase em 2as.

Ex.5 - Ualalocê (c.1-5) de Villa-Lobos: ostinato de 2as em dois “planos melódicos”.

31
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38

Podemos perceber, através das palavras de um também o utilizaram4. Entretanto, mesmo elaborando
importante teórico que reclamou para si a continuidade através desses recursos elementos de exoticidade
da tradição musical germânica no século XX, a como outros compositores, existem características
valoração negativa dada a repetições exacerbadas peculiares da utilização do ostinato quando Villa-Lobos
sem variação, por alegada falta de propósito musical. procura representar o ameríndio. Villa-Lobos constrói
Ausente do equilíbrio existente na variação no sentido os ostinatos em suas composições com melodias de
schoenberguiano – que mantém elementos e inova alcance pequeno, geralmente os movimentos são de
dentro de um programa temático/motívico definido segunda (como em Teirú, ou em Saudades das Sélvas
– a repetição sem variação não obtém o dinamismo Brasileiras) ou uma única nota (Como em Canide Ioune –
comunicativo de ideias musicais, principalmente se Sabath e parte de Iára), reforçando enfaticamente– pela
considerarmos a música do classicismo vienense, do grande simplicidade melódica e rítmica das estruturas –
romantismo alemão e do ultraromantismo europeu. o conceito de simples de que revestia seu índio musical.

Percebemos aqui, que o uso intencional dos ostinatos 3 - A ‘horizontalização’ da estaticidade: o


como recurso expressivo da musicalidade indígena
por Villa-Lobos tem o poder de evocar o conceito
fluir da melodia na representação do índio
de ‘estaticidade’ e ‘repetição’, que se aparenta ao em Villa-Lobos
entendimento europeu com relação ao modo de vida das Villa-Lobos também trabalha os conceitos de estaticidade,
culturas selvagens; as ideias de que os índios são assim monotonia e simplicidade – ao quais me referi no tópico
desde o início dos tempos (sem história) e que sua música anterior - na melodia de suas composições de temática
é repetitiva, estática e visceral e é expressa musicalmente indígena. Nessas obras, o tema melódico e seus diversos
através dessa estereotipia. Villa-Lobos, ao mesmo tempo desenvolvimentos e/ou ressonâncias (SALLES, 2009b) são
em que subverte a noção de ‘historicidade’ do sujeito construídos sobre pulsos e/ou suas subdivisões binárias em
melódico e harmônico da música de concerto europeia, figuras rítmicas simples. Esses grupos rítmicos geralmente
logra êxito em representar musicalmente a alteridade podem ser divididos no contexto da melodia como inteiros
do índio através do uso do ostinato. Não podemos nos de dois pulsos (o pulso forte e o fraco, ou o pulso e o
esquecer de que Villa-Lobos não estava sozinho de contrapulso). Em Amazonas, por exemplo, tanto o tema
forma alguma no uso desse elemento musical; antes principal quanto o acompanhamento textural se movem
fazia parte do ‘vocabulário musical’ europeu; ora para em ‘tempos cheios’, na figura da semínima (Ex.6 e Ex.7).
representar o exótico primitivo ou para evocar estilos
europeus antigos, que dele se utilizavam, de diversas Nas diversas canções de temática indígena do Canto
formas. Stravinsky utiliza ostinatos em a Marcha Orfeônico, percebemos a utilização dessas estruturas
do Soldado e na Sagração da Primavera, e outros de semínimas e suas subdivisões binárias e ternárias
compositores como Hindemith, Schoenberg e Webern por Villa-Lobos (Ex.8).

Ex.6 -Tema de Amazonas (c.1-2) de Villa-Lobos: estruturação em semínimas.

Ex.7 – Amazonas (c.5-6) de Villa-Lobos: acompanhamento construído com pulsação de semínimas.

32
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38.

Os exemplos são inúmeros (MOREIRA, 2010b). A Podemos observar nessa transcrição que o ritmo da melodia
pergunta a que essas observações conduzem é a se baseia, exclusivamente em duas figuras rítmicas, o
seguinte: de que materialidade musical Villa-Lobos pulso (semibreve) e sua divisão (mínima). Nos Três Poemas
extrai esse caráter melódico para a representação Indígenas (1926), Villa-Lobos respeitou as divisões rítmicas da
do índio? Ao observar as transcrições com as quais transcrição, notando a melodia da forma mostrada no Ex.10.
Villa-Lobos teve contato, podemos constatar que as
melodias indígenas retratadas utilizam esses padrões Foi das próprias transcrições de música indígena que Villa-
rítmicos, de marcação de pulso e suas divisões Lobos extraiu esses motivos em que baseia sua composição
igualitárias em duas ou três partes. Observemos a melódica indígena. No Ex.11 mostro um trecho da melodia
transcrição Canide Ioune e Sabath feita por Jean de de Iára o terceiro poema indígena, criada por Villa-Lobos
Léry (1585), a que Villa-Lobos teve contato no livro A sobre texto de Mário de Andrade. Notemos que Villa-Lobos,
música no Brasil de Guilherme Melo (1947) e utilizou além de usar exclusivamente as divisões rítmicas de pulso,
em algumas composições5 (Ex.9). divisão do pulso (com exceção do Sol# do compasso 109,

Ex.8 - Cantos de Çairé Nº1 (c.1-4) de Villa-Lobos: figurações rítmicas de semínimas.

Ex.9 - Transcrições de Canide Ioune e Sabath, no primeiro e segundo sistemas, respectivamente (MELO, 1947).

Ex.10 - Versão das melodias Canide Ioune e Sabath, no primeiro dos Três Poemas Indígenas de Villa-Lobos.

Ex.11 - Iára (c.107-109) de Villa-Lobos: 3as menores e divisões rítmicas de pulso e de divisão do pulso.

33
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38

que adiciona um caráter lírico e interpretativo à canção), dos rios e outros elementos da floresta, obtemos
o compositor utiliza com profusão o intervalo de terça uma obra de textura rica, permeada de significados
menor, encontrado em diversas transcrições com as quais individuais, que constroem um maior, o da agregação
Villa-Lobos teve contato, como Teirú, usada no segundo do conceito de índio e de seu meio-ambiente. Enquanto
poema indígena, por exemplo. a melodia de caráter indígena evoca a personalidade
do selvagem, o restante dos recursos musicais parece
Podemos perceber, nesses exemplos acima, como Villa- construir o ambiente onde esse índio vive - a floresta
Lobos extraiu das melodias das transcrições tanto temas - com toda sua exuberância. De fato, o sentido do ser
literais, quanto inspiração de motivos e intervalos para selvagem só é completo quando se considera a selva
compor seus próprios ‘temas indígenas’. A relação dessa de onde vem esse indivíduo ideal. A quantidade de
sonoridade com os conceitos de estaticidade, monotonia, texturas soando simultaneamente constrói impressão
vem das próprias apreensões ocidentais sobre a rítmica de densidade, a variedade de timbres dessas texturas se
aditiva, modalismo (conceitos e música que podem se conecta ao conceito de diversidade, biodiversidade no
aplicar também a uma análise retórica da sonoridade contexto da floresta; a dinâmica e suas articulações, os
cantochão), com o acréscimo do pequeno conjunto de diversos estados de magnitude da floresta. A quantidade
notas usadas e dos intervalos restritos, amplificando esse de entes musicais se equivale aos entes da floresta,
sentido de monotonia, utilizado por Villa-Lobos. com comportamentos específicos bem distintos, assim
como as linhas melódicas e texturas completamente
4 - A Textura musical como ‘Ambientadora’ individuais na maior parte do tempo. Abaixo, na seção
do índio: riqueza, magnitude e biodiversidade Traição do Deus dos Ventos de Amazonas, podemos
reconhecer a melodia mais aguda como uma referência
musical na composição/orquestração de a esse personagem, Deus dos Ventos (Ex.12).
Villa-Lobos.
A orquestração é um elemento importantíssimo na A orquestração na composição de temática indígena
elaboração da música de caráter indígena de Villa- em Villa-Lobos é fruto da junção de todos os elementos
Lobos, como elemento retórico que retrata a floresta. constitutivos do seu estilo indígena, que constroem
Villa-Lobos era um orquestrador muito hábil; Olivier metáforas sonoras das propriedades da floresta e inserem
Messiaen o considerava o maior orquestrador do o índio sonoro num contexto onde sua identidade
século XX (SALLES, 2009a). A riqueza da orquestração é reforçada. O uso de instrumentos indígenas como
de obras como Amazonas, Rudá, Uirapuru e Floresta chocalhos (Noneto, Choros n.10) e caracaxás (Choros
do Amazonas, figura como uma tentativa de evocar, n.8), bem como seus derivados, dá uma dimensão mais
na imaginação da audiência europeia, a magnitude e literal à evocação do ethos indígena em Villa-Lobos e a
riqueza das florestas brasileiras. importância dada aos instrumentos de sopro em suas
orquestrações, frente às tradicionais cordas, também
Juntando se todos os elementos constitutivos do estilo pode ser interpretada como uma referência à própria
indígena de Villa-Lobos discutidos nesse artigo e os predileção dos indígenas pelos instrumentos de sopro,
somando às imitações de sons de pássaros, de corredeiras especialmente as flautas.

Ex.12 - Amazonas (p.5 c.1-4) de Villa-Lobos: riqueza de texturas “descoladas”,


grande tessitura do trecho e diversas indicações dinâmicas.

34
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38.

5- Epílogo: as tópicas indígenas de Villa-Lobos em Villa-Lobos, em Kankikis das Danças Características


Dentro da música de temática indígena de Villa-Lobos as Africanas (Ex.13) podemos observar a presença das
estruturas musicais de representação simbólica aparecem quartas paralelas, do ostinato, da movimentação por graus
conjuntamente, como pudemos ver no tópico anterior conjuntos, da repetição de um motivo, e da construção
sobre a textura musical dessas obras. Ao mesmo tempo em melódica sobre pulso e suas divisões.
que se condensam estruturas que compõem sonoramente
a obra, se somam conceitos simbólicos e sua sobreposição Em Amazonas, a construção do motivo do acompanhamento
delimita o objeto que se quer representar de forma mais possui os seguintes elementos musicais: melodia sobre o
acurada. As combinações entre esses elementos podem pulso, graus conjuntos e quintas paralelas (Ex.14), além
ser as mais diversas, entretanto algumas são mais de um elemento de circularidade na dinâmica – que
recorrentes, possibilitando seu encontro num primeiro fortalece a concepção cíclica da vida indígena, da qual
olhar da partitura ou num primeiro de obras indígenas falei anteriormente (p.201). Esses elementos congregados
de Villa-Lobos. Aqui se constrói o que podemos chamar constroem uma das tópicas indígenas de Amazonas.
de tópica musical (HATTEN, 1994,2004; AGAWU,1991):
construção musical objetiva que se configura como Em Saudades das Selvas Brasileiras podemos observar
significante – no sentido semiótico - ao comunicar um uma tópica indígena que é formada por quartas paralelas
significado para uma audiência informada desses signos superpostas, movimentação por pulso e salto de terça
culturais correntes6. Como exemplo de tópicas indígenas menor paralela entre as estruturas dos acordes (Ex.15).

Ex.13 - Kankikis (c.1-7) das Danças Características Africanas de Villa-Lobos: diversos elementos de representação indígena.

Ex.14 - Amazonas (c. 3-4) de Villa-Lobos: acompanhamento em 5as paralelas.

Ex.15 - Saudades das Selvas Brasileiras I de Villa-Lobos (c.34-37): tópica indígena.

35
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38

A construção de uma tópica é um processo complexo, Embora alguns tópicos dessa construção de linguagem
fruto de associações diversas entre o som e outros possam ser atribuídos a outros compositores que
significantes culturais, e parte do que discuti nesse texto representaram o selvagem na Europa nas primeiras décadas
foram interpretações desses processos de construção de do século XX, como Stravinsky, em nenhum deles a obra
significado em Villa-Lobos, especialmente na sua música de tema selvagem foi considerada tão importante quanto
de matiz indígena. Abaixo, no Ex.16, apresento um quadro pelo compositor brasileiro. Enquanto Stravinsky negou
referencial que procura relacionar os aspectos simbólicos veementemente suas raízes russas dos anos 10 com as
que construíram a percepção europeia do índio, os propostas neoclássicas dos anos 20, Villa-Lobos absorveu
procedimentos musicais utilizados por Villa-Lobos para essa identidade do selvagem sul-americano durante o
evocar essas ideias e a relação desses procedimentos com restante de sua vida; quer nas composições dos anos 30 e
a sensibilidade musical da audiência, fruto da construção 40 - como as Canções Típicas Brasileiras e, mesmo no seu
histórica dessas sonoridades particulares. lado de educador musical nos cadernos de Canto Orfeônico
- quanto na sua fase de composição para espetáculos
De um lado da tabela, do lado do ouvinte, há um ideal e filmes, a partir de 1945 ao fim de sua vida – como a
acerca do índio. Esse ideal é construído por diversas trilha sonora do filme americano Green Mansions, sobre
ideias particulares que se imiscuem entre si. Para evocar uma história que se passava na Amazônia venezuelana,
essas ideias há sons que Villa-Lobos usou e que descrevo composta em 1958, um ano antes da sua morte.
nesse trabalho. Alguns desses sons foram baseados na
realidade exótica das transcrições indígenas - as quais Via de regra, uma composição referente ao universo
também evocavam memórias aos europeus, que desde indígena, em Villa-Lobos vai possuir a maioria desses
as Grandes Navegações do século XV tiveram contato procedimentos arrolados aqui nesse trabalho. O exotismo
com relatos desses povos e suas músicas – outros se indígena, seu naturalismo religioso, sua ancestralidade, o
relacionaram exclusivamente com as ideias sobre música e status primitivo que recebe - juntos ao exotismo e riqueza
representações desenvolvidas na própria cultura europeia. da natureza que qualificam também o ser que nela vive –
A junção dessas representações sonoras construídas na serão representados por Villa-Lobos e constituirão muitas
imaginação ocidental via história e experiência, seus das referências que se tem até hoje tanto da própria ideia
anacronismos e coincidências no início do século XX, do índio que essa mentalidade ajudou a fortalecer, quanto
tornaram possível a construção de estruturas musicais, do ethos indígena em música utilizado por diversos
que logo se tornariam partes de um idioma villalobiano compositores de tanto de música erudita, MPB, quanto
específico para a representação do selvagem além-mar. na composição de trilhas sonoras para filmes7.

Ex.16 - Quadro referencial: ideias e seus correspondentes sonoros na criação do “som indígena” de Villa-Lobos

36
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38.

Bibliografia
AGAWU, V.. Playing With Signs, A Semiotic Interpretation of Classic Music. Princeton: Princeton University Press, 1991.
HATTEN, R. Musical Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation and Interpretation. Bloomington: Indiana University
Press, 1994.
______. Interpreting Musical Gestures, Topics and Tropes: Mozart, Beethoven, Schubert. Bloomington: Indiana University
Press, 2004.
LÉRY, J. de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil : autrement dite Amérique,... ([Reprod.]) / le tout recueilli sur les
lieux par Jean de Lery,... 1585. Disponível na internet :http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54640v .
MELO, G. de. A Música no Brasil; 2ª edição. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1947.
MOREIRA, G.F.. O elemento indígena na obra de Villa-Lobos: observações músico-analíticas e considerações históricas.
Dissertação de mestrado. Universidade do Estado de Santa Catarina: Florianópolis, 2010b.
MUSEU VILLA-LOBOS. Villa-Lobos, sua obra. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, 2009.
SALLES, P. T. . Villa, ainda (MBARAKA - revista da Fundação Padre Anchieta). Mbaraka - revista de música e dança da
Fundação Padre Anchieta, São Paulo, p.118-126, 19 out. 2009a
______. Villa-Lobos: Processos composicionais. Campinas: Editora da Unicamp, 2009b.
SCARINCI, S.; KUBO, V.. Dido em Lieto Fine: Breve estudo sobre a construção da personagem ópera de Cavalli e Busenello.
Anais do XX Congresso Nacional da ANPPOM. UDESC: Florianópolis, 2010.
SCHOENBERG, A. Fundamentos da composição musical. São Paulo: EDUSP, 2008.
______. Harmonia. São Paulo: UNESP, 2001.
VILLA-LOBOS, H.. Dansas Características Africanas. Disponível no Museu Villa-Lobos. Setor de Produção Intelectual de
Villa-Lobos. Documento HVL 02.31.01. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, s.d. 3.

Partituras
VILLA-LOBOS, Heitor. Amazonas. Redução para piano. Paris: Max Eschig, 1953.
______. Caboclinha: In: Prole do Bebê nº1. Rio de Janeiro: Arthur Napoleão, 1968.
______. Canto Orfeônico. Primeiro Volume. São Paulo: Irmãos Vitale Editores, 1951.
______. Canto Orfeônico. Segundo Volume. São Paulo: Irmãos Vitale Editores, 1940.
______. Choros nº3: picapáo. Paris: Max Eschig, 1978.
______. Choros nº10. Paris: Max Eschig, 1975.
_______. Dansa do índio branco. In: Ciclo Brasileiro. São Paulo: Editora Irmãos Vitale, 1936.
______. Duas Lendas Ameríndias em Nheegatu: O Iurupari e o Menino. Paris: Max Eschig, 1958.
_______. Farrapos: Op.47. Dança Indígena nº1. Rio de Janeiro: Editora Arthur Napoleão, 1960.
______. Introdução aos Choros. Paris: Max Eschig, 1987.
_______. Kankikis: Op.65. Dança Indígena nº2. Rio de Janeiro: Editora Irmãos Vitale, s.d..
_______. Kankukus: Op.57. Dança Indígena nº2. Rio de Janeiro: Editora Irmãos Vitale, s.d.. Data da Composição, 1915.
______. Nozani-ná. In: Canções Típicas Brasileiras. Paris: Max Eschig, 1929.
______. O Canto do Pagé. In: Coleção Escolar. 19..
______. Ualalocê. In: Canções Indígenas. Paris: Max Eschig, 1929.
______. Pai-do-Mato. In: Canções Indígenas. Rio, 1930.
______. Três Poêmas Indígenas: Trois Poêmes Indiens. Paris: Max Eschig, 1929.
______. Saudades das Sélvas Brasileiras: pour piano. Paris: Max Eschig, 1927.
_______. Suite Populaire Bresilienne. Paris: Max Eschig, 1955.
______. Uirapuru: symphonic poem. Nova Iorque: Associated Music Publishers, 1948.
______. Veleiro: indian song. In: Floresta Amazônica. Manuscrito. 1958.

37
MOREIRA, G. F. O Estilo indígena de Villa Lobos (Parte II)... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.29-38

Notas
1 No catálogo oficial de obras de Villa-Lobos (MUSEU VILLA-LOBOS, 2009) consta que a composição “foi desenvolvida sobre material musical
recolhido junto aos índios Caripunas, de Mato Grosso”. Nos acervos do Museu Villa-Lobos há um manuscrito de Villa-Lobos, no qual ele explica a
gênese da obra:‘Danças Africanas: As danças características africanas são inspiradas dos temas e das danças dos índios Coripuna que vivem até hoje
nas margens do Rio da madeira em Mato grosso, estado do Brasil. É uma tribo que tendo sido cruzada com os negros da África, que para aquelas
florestas fugirão das barbaridades da escravidão nos tempos coloniais, apareceu uma nova raça mestiça de selvagens que os brasileiros civilizados
denominavam de ‘Índios africanos’ por serem de cor mais escura que os índios e terem os cabelos iguais aos dos negros africanos. Os seus temas e
as suas danças tem um pouco de ritmo bárbaro das áfricas com uma melopeia original de aspecto rude e primitivo (VILLA-LOBOS, s.d. 3)
2 O mesmo raciocínio pode ser aplica a outras formas de monotonia em música, como cadências repetidas, modulações que não conduzam a
cadências finais, etc...
3 Ainda que Schoenberg tenha utilizado o ostinato como um recurso expressivo, como em Pierrot Lunaire, nº8 Nacht, ele utiliza esse elemento como
uma referência a uma tradição mais antiga da música europeia, remetendo aos ostinatos do barroco, como em Sarabandas de suítes e padrões
retóricos de óperas, como o tetracorde descendente menor (SCARINCI & KUBO, 2010).
4 No Quarteto de cordas No. 4, Op.32, último movimento; Pierrot Lunaire, No. 8, “Nacht” e Passacaglia para Orquestra, Op.1, respectivamente.
5 Nos Três Poemas Indígenas e em dois arranjos nos cadernos de Canto Orfeônico.
6 Como palavras que incorporam um significado. Um exemplo de tópica musical é o rufar de tambores, que comunica a ideia de guerra/nacionalismo;
ou o toque de trombetas, a presença de uma autoridade no recinto. Um exemplo mais complexo é a popular marcha fúnebre de Chopin (Sonata
para piano nº2, op.35) que recebeu, no decorrer do tempo e de seu uso um caráter inequívoco de conformação com a morte.
7 Ver MOREIRA (2010b, p.234).

Gabriel Ferrão Moreira é Doutorando em Música pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Música (musicologia-
etnomusicologia) pela Universidade do Estado de Santa Catarina, possui graduação em Licenciatura em Música pela
mesma universidade (2008). Atualmente pesquisa a linguagem modernista de Heitor Villa-Lobos. Possui pesquisas
paralelas e publicações em eventos interdisiciplinares, em temas transversais como Religião, Gênero, História e suas
relações com a Música. Também desenvolve projetos comunitários de educação musical de crianças e adultos através do
canto coral e prática instrumental. Atua principalmente nos seguintes temas: Pesquisa em musicologia-etnomusicologia,
composição, teoria musical ocidental e regência coral.

38
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49.

De como La Llorona se tornou um


Miserere de Willy Corrêa de Oliveira
Mauricio De Bonis (USP, São Paulo)
debonis@usp.br

Resumo: Em nossa pesquisa sobre o ciclo de peças para piano Miserere, de Willy Corrêa de Oliveira (DE BONIS, 2010)
discutimos uma série de procedimentos composicionais pertinentes a essa obra e à produção do compositor em geral, a
saber: a metalinguagem, a relação com as artes plásticas, a condensação de ideias, a superposição de citações à maneira
de um ideograma, o teatro musical, e a possibilidade de uma análise estrutural de cada peça ao lado de uma leitura
semântica (incentivada pela própria partitura). Obra aberta, o Miserere tem recebido adições do compositor após a
publicação da pesquisa. As mesmas ferramentas de análise aplicadas para o ciclo todo são aqui utilizadas para o estudo
de uma das últimas peças a serem acrescentadas, em 2009.

Palavras-chave: Willy Corrêa de Oliveira; Miserere; metalinguagem; memória musical; música contemporânea. brasileira.

How La llorona became a Miserere by Willy Corrêa de Oliveira

Abstract: In our research on the cycle of piano pieces called Miserere, by Brazilian composer Willy Corrêa de Oliveira
(DE BONIS, 2010) we discuss a series of compositional procedures used in this work and in the composer’s production in
general, such as borrowings and metalanguage, the relation to visual arts, the condensation of ideas, the superposition
of quotations in the manner of an ideogram, musical theater, and the possibility of an structural analysis of each piece
side by side with a semantic reading (favored by the score itself). As an open work, the Miserere has received additions by
the composer after the publication of this research. The same analytical tools applied to the cycle are here used to study
one of the last pieces to join the cycle in 2009.

Keywords: Willy Corrêa de Oliveira; Miserere, metalanguage; musical memory; Brazilian contemporary music.

1. Introdução
Em uma arte não-simbólica como a música, os significados pré-convencionados, diretamente associáveis
cruzamentos possíveis entre a análise estrutural e as a seus signos – para além das leituras individuais de cada
interpretações das resultantes semânticas de uma obra ouvinte, é sempre um risco o pesquisador adentrar em
podem ser influenciados seja pelo distanciamento, seja ilações de resultantes semânticas. Risco de, ao se afastar
pela oportunidade do contato direto com o compositor. de análises mais objetivas, não falar senão de sua própria
O que o distanciamento pode trazer de contextualização subjetividade. “O que não se pode falar, deve-se calar”
histórica (com a descontextualização de especificidades (WITTGENSTEIN, 1968, p.129).
menores e menos relevantes), o contato direto pode
trazer de um relato de reações, intenções e significados Corri esse risco na minha pesquisa de mestrado sobre o
que tentem revelar, na obra, um retrato possível do ciclo de peças para piano Miserere, de Willy Corrêa de
compositor. Oliveira. Frequentava o início de meu curso de composição
Nunca é excessivo frisar o quão escorregadio é o terreno na USP, quando em meio a tantas discussões sobre a
das discussões semânticas na musicologia. Em uma linguagem, Willy começou a trazer para a classe as
forma de linguagem que não impõe um repertório de primeiras peças do ciclo, em 1999. Algumas eram escritas

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 13/02/2012 - Aprovado em: 05/08/2012
39
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49

de manhã e trazidas no mesmo dia para a aula da tarde. de suas preocupações para a composição metalinguística,
Nesse primeiro momento li ao piano, em classe, as peças, na “costura” da citação com o discurso em que se insere,
sua unidade estrutural com os materiais que a circundam,
, , , , , , , , ,e e seu potencial semântico e expressivo.
(as peças do ciclo têm um sinal gráfico, um ideograma,
em lugar do título). No comentário à partitura do Miserere, Willy comenta
a ideia da peça como sugerida pelo ciclo homônimo
Na sequência do bacharelado em composição, às vezes em de gravuras de Georges Rouault. Obras pequenas e
aulas individuais ou com poucos amigos e colegas como a incisivas, com uma alta carga dramática extremamente
Caroline De Comi, o Marcus Siqueira, o Marcelo Queiroz, o concentrada. Entre as principais características do
ciclo de Willy está em primeiro lugar essa condensação
Gláucio Zanghieri, ouvimos ainda , , . de informações em peças breves para piano, prática
Um pouco depois ouvimos em sua casa, depois de corrente do compositor nas últimas décadas – uma
assistirmos todos ao filme Dois destinos (Cronaca familiare) proposta que remete a Schumann e Webern. Além dessas
de Valerio Zurlini, na Mostra Internacional de Cinema de duas referências, em nossa pesquisa relacionamos a
condensação nas peças breves de Willy aos estudos de
São Paulo; e também , tocada pelo próprio Willy,
POUND (1960) sobre a poesia.
pedindo para que fechássemos os olhos antes de começar.

Em seguida, participei de um projeto financiado pelo No Miserere a duração de quase todas as peças é definida
programa Petrobras Cultural, coordenado por Thiago Cury pelo tempo da enunciação completa da peça citada pelo
e Marcus Siqueira, no qual gravei em CD (selo Água-Forte) compositor. O tempo musical, assim, não é pensado como
a integral do Miserere, na Sala São Luiz, em São Paulo, na na construção de um discurso. Trata-se do espaço para a
presença do compositor. Nos concertos de lançamento do CD exposição de um objeto reconhecível em nova roupagem (e
em São Paulo apresentei algumas peças do ciclo; em 2008, não propriamente como citação surgido em meio a outro
em uma série de concertos em homenagem aos 70 anos do discurso). Eventualmente as referências se superpõem,
compositor, apresentei o ciclo completo em Campinas. como objetos expostos simultaneamente, a gerar uma
nova resultante. Analisamos esses casos como propostas
As peças do ciclo têm sua ordem de apresentação a “ideogrâmicas” em nosso trabalho (DE BONIS, 2010) sobre
critério do intérprete, e sua própria concepção como o ciclo, em analogia aos estudos de Fenollosa e Haroldo
ciclo permanece em aberto: uma nota do compositor na de Campos sobre a relação entre o ideograma chinês e as
partitura diz: “Desde 1999, de vez em quando um novo linguagens poéticas ocidentais (CAMPOS, 1994).
Miserere vem à caneta” (OLIVEIRA, Miserere).
Outro procedimento presente no ciclo é o teatro musical,
Defendi o Mestrado em 2006; a dissertação foi publicada desde a comunicação direta com o público na leitura de
em 2010 pela Editora Annablume. Um dia em casa, em textos por parte do pianista até pequenas encenações
2009, toca o telefone; Willy pergunta se eu não encontraria que chegam a constituir peças inteiras, como em
o CD da Joan Baez em que ela canta “La llorona”, que ele O ciclo joga ainda com relações de determinação e
gostaria de enviar a um primo – bastante enfermo – com indeterminação: pela liberdade conferida ao intérprete
quem falara há pouco. Alguns dias depois levo a ele o disco. na definição da ordem de apresentação das peças, é uma
Em pouco tempo uma nova peça estava pronta, baseado na obra aberta, mas cada obra é em si um objeto fechado.
Llorona, em homenagem ao primo que se fora, lembrando Fica em aberto, também, na dependência do resultado
de sua companhia constante na infância. Pedindo que eu do teatro musical, a execução ou não da peça ,
lesse a peça à primeira vista na edícula de sua casa, em para piano a quatro mãos, dependente da participação
companhia da Caroline, Willy me perguntou em que ciclo de um voluntário da plateia.
de suas obras eu achava que a peça se integraria melhor.
“No Miserere, respondi. Pelo espanto”. O núcleo inicial compreendia duas peças pré-existentes
e oito novas, em um total de dez peças. As duas peças
2. O Miserere pré-existentes, e , faziam parte de outros ciclos
Uma das principais características do ciclo de peças de peças breves do compositor (Recife, Infância: Espelhos
para piano Miserere é a metalinguagem, na referência e Caderno de Desenho, respectivamente), e foram trazidas
a obras pré-existentes de diversas origens, variadas, re- ao Miserere pela identidade com a proposta do ciclo. Todas
harmonizadas, transfiguradas. Procedimento cada vez as dez já continham todas as características principais
mais comum desde o início do século XX, a metalinguagem do Miserere: a condensação de informações, a alta carga
em diversas roupagens (de citações a referências dramática, a incorporação de materiais melódicos (ou
históricas mais ou menos diretas) é uma marca na obra sons de animais) pré-existentes (especialmente de música
de Willy desde a década de 1960. Henri Pousseur – outro popular e folclórica brasileira, pregões, canções de ninar,
compositor a incorrer largamente nessa prática – em seu hinos protestantes, canto gregoriano), a superposição
texto Composer (avec) des identités culturelles (2009b) fala ideogramática de materiais, o teatro musical.

40
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49.

Logo depois duas peças foram acrescentadas, devendo No Miserere os textos que acompanham as partituras
as duas serem sempre apresentadas em seguida, (para serem lidos para a plateia pelo pianista) antecipam
independentemente de sua posição no ciclo. Aprofundam os relatos de Passagens: assim como peças de outros
o jogo da relação com o público com o convite para a ciclos para piano passaram a integrar o Miserere, um dos
execução a quatro mãos em , seguida pela execução textos do Miserere – relativo à peça – se tornou
uma das Passagens.
(sem comentário algum) de , uma variação
(através de inserções de silêncio, filtrando o original)
Da mesma forma, as peças evocadas nesses ciclos para
sobre a Fantasia em Fá menor para piano a quatro
piano se fazem presentes nas Passagens: as cantigas
mãos de Schubert – reduzida para duas mãos. Amplia-
infantis evocadas nas Nove peças fáceis são comentadas
se também o leque de referências: a música popular
em relação direta com memórias da infância nas histórias
mexicana e a música erudita do Romantismo.
Brinquedo de roda e De como uma cantiga de roda
emigrou dos brinquedos infantis para o gênero elevado
Até 2003 mais três peças se somam: é a mais da canção de amor. Uma canção utilizada no Caderno de
longa do ciclo, a menos condensada no que diz respeito Desenho é comentada na história Descoberta do amor 1, e
à forma (embora não o seja em seu material harmônico). a passagem Memórias de casas novas comenta primeiras
traz consigo um pequeno conto a ser lido para histórias amorosas recontadas em obras de Willy como
o público, além da emulação de um som animal na voz Noturno em torno de uma deusa nua; Recife, Infância:
Espelhos e Velhos hinos cantados de novo.
do pianista (não mais no piano como em ). A peça
chega a um outro limite, como a mais abstrata
Fruto de uma vocação para contar histórias musicalmente,
do ciclo, a única que não faz referência a um material
há vinte anos a condensação musical habita a obra de
musical pré-existente (deveria ser ouvida com o filme de
Willy em cristalizações de memórias passadas lapidadas
Zurlini na memória).
em joias musicais, sonhos, contos, poemas em prosa nas
partituras. Nas Passagens realizam-se em texto, por vezes
Sobre este conjunto de peças foi desenvolvida minha
se encontrando quase que precisamente com a partitura
pesquisa de mestrado (DE BONIS, 2010). Em 2009
correlata, por vezes desenvolvendo e completando as
acrescentou-se ao ciclo uma nova peça, , cuja
narrações numa semântica de que só o texto dá conta.
referência principal é uma melodia popular mexicana,
Mas o limite entre texto e música foi forçado – às últimas
mas evocada em versão gravada por Joan Baez, o que
consequências – no Miserere.
a insere no universo da música popular americana da
década de 1970. O breve componente teatral se dá antes
Algumas memórias de sua infância em Passagens contam
de sua execução, quando o pianista assovia o mote que dá
do seu primo Beto, com quem Willy tinha um sinal para que
nome à peça, como Willy a chamar seu primo na infância.
se encontrassem na rua, em multidões, em qualquer lugar:
Ele “vira-se para a plateia (buscando encontrar alguém) e
um assovio, combinado, que na última peça adicionada ao
assovia o mote: uma, duas vezes. Torna ao piano, e toca.”
Miserere toma o lugar do título: ao invés de um ideograma,
(OLIVEIRA, Miserere). A peça soa em sua ausência.
como nas outras peças do Miserere, um trecho de partitura
com o sinal sonoro pelo qual se chamavam.
3. Passagens
Ao lado de sua produção como compositor, Willy sempre Na história A torre de Neli, nas Passagens, umas de suas
manteve uma produção teórica em textos e livros sobre primeiras desilusões amorosas, por volta dos sete anos de
música, arte e sociedade. Um caso especial nessa produção idade: “Por dias e dias vivi dúvidas dilacerantes até espalmar
é a coletânea de memórias de sua infância Passagens coragem para perguntar (como fosse factível: com ar ou com
(OLIVEIRA, 2008). São uma espécie de transposição à falta de ar) diretamente à Neli sobre nós. Eu e Ela. Não, ela
literatura do Miserere: fantasias breves, pequenos textos preferia meu primo Beto. Ele. Meu mundo caiu. Constatei
condensados como cristalizações de memórias da infância. que eu não era irresistível (como me imaginava).”

No Prelúdio às Passagens (já uma aproximação com uma Nas mesmas redondezas, também nas Passagens, em
ideia musical em lugar de prefácio), Willy fala das origens Enáire, Geraldo A., “afortunado” por morar na mesma rua
do livro em obras como Infância em Berlim por volta de de Enáire, flagra o menino à espreita aguardando que ela
1900 de Walter Benjamin, e certas passagens de Isaac aparecesse: “Andas desaparecido, só tenho visto o Beto”.
Babel. Esses dois autores já eram citados no prefácio a Seria ainda o primo “algo mais velho (e sábio de mais
um ciclo de peças para piano publicado por Willy vinte de dois anos de que eu) que viera para uma visita”? O
anos antes, Recife, Infância: Espelhos (1989). Além deste, primo que na terceira das Minhas três mortes prematuras,
diversos ciclos de peças breves das duas últimas décadas aponta para um dos bolos confeitados com areia, pedras
registram a reflexão do compositor sobre a infância, como e cacos, e diz sorrindo: “Um dente de caveira de cavalo!”
Caderno de Desenho (1993), L’art d’être grand-père (em 2 Ao que o menino se ergue “num salto inexplicável” e
volumes, 2005), Sete pequeninas peças para piano (1996), abala-se “(tremendo como uma britadeira) para casa,
Nove peças fáceis (1989), e o Miserere (1999-2009). pelo socorro, para salvar-me. Da morte?”

41
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49

No comentário à partitura (Ex.1) do Miserere : figura de acompanhamento sobre uma harmonia que
nega o original (Ex.2).
Falava com meu primo Beto (ao telefone) e ele agradecia o CD
de Joan Baez que eu lhe enviara, cantarolando – de volta – “la
llorona”, e andava ele com bengala, capengando, e a saúde
Entre os parâmetros de comparação com os principais
estraçalhada claudicava mais (todavia), tanto assim que antes de procedimentos composicionais do ciclo Miserere,
concluir a canção desandou a chorar como menino pequenino, ele em primeiro lugar se observa que a peça é baseada
aos setenta e tantos anos, até aqui cabra-macho pernambucano
típico. Uns dias, e nos avisaram que ele havia partido. Quando em uma melodia popular, como , (Ex.3),
criança: nós nos sinalizávamos assobiando o mote (de sua autoria)
que encima esta peça. . Pela referência à música latino-americana,
aproxima-se da primeira destas três peças; por sua
duração e tratamento harmônico, aproxima-se das duas
4. Um novo Miserere
últimas mais que de todas as outras peças do ciclo.
Como em diversas peças do ciclo, há nessa a reflexão sobre
a infância do compositor, cerca de sessenta anos depois, A peça não utiliza simultaneidade ideogramática de
numa espécie de prestação de contas com a memória
em fases distintas da vida. Nesse caso, a lembrança da citações, como ocorre em e . Incorre-se no
infância com a notícia da morte de um companheiro teatro musical apenas antes da execução da partitura:
próximo naqueles tempos, seu primo Beto. convocado o pianista a ler o comentário correspondente
à peça, e a assoviar o mote procurando alguém na
A fonte dos materiais da peça é a canção tradicional plateia. A melodia do assovio (cuja partitura dá nome à
mexicana La llorona, conforme interpretada por Joan peça) se desenrola sobre Ré maior, em uma suspensão
Baez. O título da peça é o único com um ideograma sonoro sobre a dominante, com alta variedade métrica (para
no Miserere, fragmento de partitura – um fragmento sua curta duração). Tem sua forte carga dramática
musical como título para uma obra musical. ligada à relação entre a história contada (sobre a morte
de seu primo e a história da infância) e a melodia citada,
A melodia original ocorre no médio-agudo (como em ) dileta pelo primo Beto, e que na sua origem tradicional
acompanhada por variações sobre sua estrutura harmônica mexicana fala da morte de uma maneira peculiar (muito
original, contracantos, imitações, eventualmente uma próxima, presente) àquele país.

Ex.1 – Manuscrito do comentário à partitura (Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, ).

42
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49.

Ex.2 – Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, , partitura.

Ex.3 – , do Miserere de Willy Corrêa de Oliveira.

43
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49

5. La llorona segundo Baez A harmonia original, em Lá menor, é muito próxima de


A canção considerada aqui como “original” (definição procedimentos da música popular mexicana:
necessária tratando-se de canção de tradição oral tão
difundida), a que a peça de Willy se refere, é a presente I IV I V (2x)
na gravação de Joan Baez, no disco Gracias a la vida (Joan I VII VI V (2x)
Baez canta em español), de 1974. Nesse disco a cantora
registra um arranjo da canção tradicional mexicana La A melodia original se constrói em torno da tonalidade
llorona, utilizando o texto seguinte: de Lá menor. Uma primeira seção tem seu eixo em Mi,
sugerindo um Mi frígio na melodia, mas já harmonizado
Todos me dicen el negro, Llorona
em Lá menor. Essa seção tem 16 compassos, formada
negro pero cariñoso
yo soy como el chile verde, Llorona por duas enunciações iguais de uma frase melódica de 8
picante pero sabroso. compassos. Segue a segunda seção, também formada por
duas enunciações de uma frase de 8 compassos, agora
Ay! de mi, Llorona
centrada sobre Lá, sugerindo o campo harmônico de Lá
llorona de ayer y hoy
ayer maravilla fui, Llorona menor (especialmente pela aparição da sensível no gesto
y ahora ni sombra soy descendente final). Cada enunciação desse ciclo melódico
e harmônico corresponde a uma estrofe da canção.
Dicen que no tengo duelo, Llorona
porque no me ven llorar
Hay muertos que no hacen ruido, Llorona A melodia original tem uma forte unidade motívica,
y es más grande su pena como se vê no Ex.4 – transcrição aproximada da
melodia cantada por Baez (deixando de registrar a
Ay! de mi, Llorona
riqueza das variações em suas inflexões do texto a cada
llorona de azul celeste
y aunque la vida me cueste, Llorona estrofe). O primeiro fragmento propõe três elementos
no dejaré de quererte básicos: a nota repetida, o salto de terça compensado
por graus conjuntos descendentes, o apoio rítmico
A canção se refere à lenda do espírito da mãe que ronda sobre a semínima (“terminação feminina”). O fragmento
às noites atrás de seus filhos (que ela matara ao ser seguinte já modifica o perfil rítmico antecipando o
abandonada), história que percorre o imaginário popular salto e invertendo sua direção, ao mesmo tempo em
no México e em boa parte das Américas há séculos, que o apoio rítmico final se dá sobre outro salto de
chegando a ser associada com a figura da “Malinche”, terça. A segunda frase explora os mesmos motivos em
a asteca que fora intérprete e amante de Hernán Cortés região mais aguda, chegando ao ponto culminante da
(MONTANDON, 2007, p.18-20). melodia em seu início e gradualmente retornando ao

Ex.4 – Variações motívicas na melodia original da Llorona.

44
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49.

ponto de partida. O fragmento final é o único que não Miserere, o eco é explicitado como tal, “do lado de fora”
possui os graus conjuntos em colcheias, como a conferir da melodia – como referência enfática à sua densidade
um movimento mais claramente cadencial – além da semântica na melodia original. Esse primeiro eco ocorre
ênfase sobre um traço melódico idiomático de músicas uma oitava abaixo, sugerindo um acorde diminuto sobre a
espanholas e latino americanas. dominante de Lá, na região central.

6. A artesania, no detalhe O segundo fragmento (Ex.6) parte da nota isolada para um


O Miserere baseado sobre a llorona já se inicia com a emaranhado que demora a se abrir até uma sexta maior,
enunciação da melodia original, reconcebida em seu perfil e novamente recai sobre um acorde de dominante com
harmônico e textural. Na primeira frase (A) cada fragmento a fundamental em Mi (agora varrendo as regiões central
melódico de 2 compassos enfatiza o eixo em Mi: o primeiro e médio-grave, aqui acrescido das notas polarizadoras
fragmento (Ex.5) circunda a nota Mi por segundas menores, de Lá – Si bemol e Sol sustenido, além do próprio Lá,
até ficar claro que se trata de um contracanto que abre antecipação da tônica).
gradualmente a polifonia até a sétima maior. Na melodia
original há um eco das três últimas notas desse fragmento, A segunda semifrase (Ex.7) é uma repetição melódica
sobre o qual sempre recai a palavra “llorona”. Neste da primeira, encerrando a primeira seção com 8

Ex.5 – Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, , c.1-2.

Ex.6 – Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, , c.3-4.

Ex.7 – Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, , c.4-8.

45
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49

compassos. Nela afirma-se pela primeira vez o Lá como A segunda parte da frase B (repetição melódica da primeira
tônica, uma décima-segunda abaixo da melodia. Em semifrase, Ex.9) chega à abertura máxima do campo de
caminho ascendente (após suspensão na nona menor), o tessitura na peça, próxima de cinco oitavas (do Ré sustenido
contracanto afirma também o Ré (no quinto compasso) em 1 no compasso 15 ao Dó 6 no compasso 13), juntamente
seu lugar na melodia original (presença da subdominante, com o limite da intensidade (quasi f por três compassos,
por um compasso). Após a coloração do Sol no eco ultrapassados apenas, anteriormente, por um pico isolado
melódico (agora oitava acima) por sua coincidência com de intensidade no compasso 8). A figura cromática
o Sol do contracanto (duas oitavas abaixo), novamente descendente ressurge como uma série de arpejos paralelos
se indica a região de tônica, até o contracanto conduzir de tríades perfeitas na região grave, mantendo a cada dois
a Sol sustenido, sensível de Lá, sob a sugestão de novo tempos (pela única vez na peça) os apoios sobre os acordes
acorde diminuto da dominante. Dois “comentários” ao do acompanhamento da canção original (I – VII – VI – V).
diminuto fecham a primeira parte: um mordente escrito A melodia, agora no agudíssimo, é quase integralmente
como appoggiatura (como reminiscência hispânica), e um dobrada oitava abaixo e adensada pela adição de um
acento em duína sobre os semitons polarizadores de Lá. contracanto (que reitera os caminhos diatônicos de três e
quatro notas predominantes na melodia).
Na frase B, agora centrada sobre Lá, inicialmente
(Ex.8) a melodia é exposta isolada na região aguda, A conclusão da frase B se dá inesperadamente em um
com acompanhamento na região média que contraria compasso de 9/8, suspendendo a conclusão métrica
a expectativa tonal: uma linha cromática descendente esperada e reduzindo em um compasso a frase como um
(mesma direção da harmonia original, mas sobre todo (tem 7 compassos ao invés de 8). Uma fermata curta,
outras alturas) exerce a função do baixo, respondida em silêncio, leva à resolução da tensão em suspenso com
(na mesma rítmica “feminina” do segundo compasso uma pequena rememoração da melodia inicial (Ex.10).
da primeira parte) por duas notas, favorecendo Ocorre agora em novo perfil (influenciado pelo início da
resultantes em quartas e quintas (nos primeiros frase B), com a melodia no médio grave respondida por
tempos dos compassos) alternadas com tons inteiros grupos de duas notas – e o eco surge duas oitavas acima.
(nos contratempos). Na conclusão da frase surge a No penúltimo compasso sobrepõe-se à melodia uma
harmonização original, com a cadência VI-V. referência ao contracanto dos compassos 6 e 7, na região

Ex.8 – Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, , c.9-12.

Ex.9 – Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, c.13-15.

46
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49.

Ex.10 – Willy Corrêa de Oliveira, Miserere, , c.16-19.

aguda, concluindo a peça sobre o acorde de dominante de dissonâncias isoladas na região médio-aguda para
de Lá – mais uma vez reforçado pelos dois semitons um melancólico contraponto, pontuado por acordes cada
polarizadores de Lá, Sol sustenido e Si bemol. Pela sua vez mais densos. Essa atmosfera predomina pelos quatro
brevidade (4 compassos) e pela referência a elementos compassos seguintes, com mais ênfase sobre a melancolia
das duas frases da peça, essa frase final pode ser ouvida polifônica de que sobre a densidade harmônica. A
como uma Coda para a peça como um todo. segunda frase começa com um respiro, uma melodia
aguda acompanhada em pp, sempre na ansiedade da
7. Uma escuta de significados suspensão harmônica. Irrompe em seguida o momento
O Miserere como ciclo tem força dramática no conjunto mais dramático, trágico, intenso, de máxima densidade,
de sua proposta, e ao mesmo tempo grande concentração interrompido num susto, em conclusão precoce. Como
dramática em cada peça, por sua condensação. Há ainda uma distensão do momento anterior, uma meditação
um grande impacto da ordem das peças (definida pelo sobre a dor passada, a peça se encerra após quatro
intérprete) sobre a escuta – de modo que a adição de compassos de rememoração.
uma nova peça tem uma forte influência sobre as outras
e sobre o conjunto. Essa última peça acrescentada é Cada peça do ciclo compõe um discurso fechado
relativamente longa para o Miserere, com grande ênfase em si, mas o ciclo permanece aberto, não apenas na
sobre o desenrolar das frases melódicas, desenhando ordenação de suas partes, mas na possibilidade sempre
uma estrutura de contrastes formais miniaturizada, presente de adição uma de nova peça breve, a partir
da unidade de proposta que unifica o ciclo em todas
como em e . A posição destas três peças as suas partes. A qualquer momento, visita ao Willy,
na ordenação geral do ciclo pode constituir uma zona ou toque de telefone, o livro publicado pode passar a
distinta em meio ao conjunto por sua proximidade precisar de mais um adendo.
discursiva, assim como pode articular uma memória
semântica e estrutural em meio a peças diversas, no
caso do seu afastamento. 8. Considerações finais
Em nosso trabalho anterior sobre o Miserere (DE BONIS,
A escuta do Miserere é sempre induzida a percepções 2010) demos ênfase à tensão presente neste ciclo entre
semânticas e subjetivas, paralelamente à escuta o dado estrutural, motívico, harmônico/direcional, e o
estrutural, linguística. Essa indução ocorre a partir da aspecto subjetivo, semântico, aforístico, sugerido ao
solicitação do compositor para que se leiam todos os ouvinte. Essa sugestão se dá, a princípio, pela referência
comentários às partituras ao público, fazendo-o participar a materiais musicais pré-existentes, pela carga de
das motivações e referências específicas na criação de significados que carregam (seja por sua origem na música
cada peça, reforçadas durante a escuta pelas referências popular, seja na história da música erudita). No Miserere
constantes a materiais musicais pré-existentes, sempre uma carga de sentidos relacionada à memória pessoal do
claramente reconhecíveis. compositor é acrescentada, através das leituras de textos
(pelo pianista) relativos a cada peça do ciclo.
Como resultante expressiva nessa última peça do
Miserere (a partir das referências levantadas na primeira A condensação das peças coloca ainda mais as luzes
parte deste texto), poderiam ser ouvidas figurações das sobre a resultante semântica: a ênfase não é sobre a
mais diversas dores – ou expressões de uma dor em suas construção de um discurso, mas sobre o impacto de um
múltiplas faces. Os quatro primeiros compassos partem objeto musical apresentado isoladamente. Nessa última

47
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49

peça, , há a referência à harmonização “sobrevalorizar o autodidatismo” (OLIVEIRA, 2006). Em


original, mas não um trabalho composicional da mesma um texto escrito em 1965 (portanto contemporâneo aos
ordem do original: a ação do compositor se dá sobre cada encontros entre os dois compositores) POUSSEUR (2009a,
intervalo, cada timbre, cada textura polifônica, como a p.168-169) aponta para a necessidade de se delinear um
conferir à canção a aura dos sentidos associados à sua sistema capaz de “integrar e coordenar todos os sistemas
lembrança. A intenção semântica da peça determina o musicais conhecidos”, “tendo em vista certa secura
mais alto respeito ao original, sempre reconhecível, a expressiva muito frequentemente glorificada no decurso
deixar o mais claro possível o trabalho do compositor de um passado recente” (em referência crítica ao serialismo
sobre cada material, ao mesmo tempo em que a integral, de que ele mesmo participara). As propostas de
harmonização original é apenas referida, à distância. Pousseur almejam a um “enriquecimento semântico de
relevo, uma proporção que a tomada em consideração dos
Em um livro lançado recentemente pelo compositor, parâmetros históricos e geográficos, literários e pictóricos,
uma coletânea de palestras, Willy comenta como ao além de muitos outros, expandirá ao extremo o campo das
invés de partir da estruturação racional de um discurso, significações desvendadas pela música”.
em peças como as Nove peças fáceis seu trabalho se
aproximara mais de um ikebana: As obras de Pousseur (1929-2009) e Willy nas últimas
cinco décadas demonstram duas experiências bastante
o fundamento dessa... estética, desta arte, não é você seguir as
regras... e sim, você chegar a uma surpresa: você mesmo chegar
distintas a partir de propostas similares. Ambos operam
a se maravilhar com aquilo que acabou de conseguir. E tudo isso com uma semântica musical na veiculação transfigurada
não pode ser muito pensado, tem que ser muito improvisado. Tal de materiais pré-existentes. Ao mesmo tempo em que
como quando um artista desenha. Tem que fazer tudo com certa permanece uma percepção clara da proposta e do
rapidez, mas na hora em que você terminou, você tem que se
surpreender (...), se a surpresa permanece: aquilo é um ikebana.
trabalho do compositor, abrem-se (do outro lado do
(OLIVEIRA, 2010, p.169) discurso) horizontes expressivos e de significados, por
mais subjetivos que estes possam vir a ser. A clareza de
A proposta da composição musical com base em materiais comunicação nesse caso está na intenção de que se abra
pré-existentes, no entanto, não é recente no compositor: um campo de interpretações a partir de associações
permeia sua produção há cerca de cinquenta anos. Em um múltiplas de elementos reconhecíveis, algo à maneira
relato autobiográfico contido em um álbum de partituras, de James Joyce. Mas pesa aqui a força poética da
Willy declara que volta da viagem aos cursos de Darmstadt imprecisão, da imprevisibilidade, da imaginação sobre
com a influência marcante de Henri Pousseur, que teria a estrutura, como só o não-simbolismo da linguagem
sido verdadeiramente um de seus mestres, o que o evitaria musical pode atingir.

48
BONIS, M. de. De como La Llorona se tornou um Miserere... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.39-49.

Referências
CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1994.
DE BONIS, Maurício. O Miserere de Willy Corrêa de Oliveira: “aporia” e “apodíctica”. São Paulo: Annablume, 2010.
MONTANDON, Rosa Maria Spinoso de. La Llorona: mito e poder no México. Tese (doutorado em história social). Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 2007.
OLIVEIRA, Willy Corrêa de. Caderno de Desenho. Manuscrito. Partitura.
______. Cinco advertências sobre a voragem. São Paulo: Luzes no Asfalto, 2010.
______. L’art d’être grand-père. Partitura.
______. Miserere. Manuscrito. Partitura.
______. Nove Peças Fáceis. São Paulo: Novas Metas, 1989.
______. Willy Corrêa de Oliveira, O presente. CD de áudio. Água-forte, 2006.
______. Passagens. São Paulo: Luzes no Asfalto, 2008.
______. Recife, Infância: Espelhos. São Paulo: Novas Metas, 1989.
______. Sete pequeninas peças para piano. São Paulo: Com-arte, 1996.
POUND, Ezra. Abc of reading. New York: New Directions Books, 1960.
Pousseur, Henri. Por uma periodicidade generalizada. In: Apoteose de Rameau e outros ensaios. São Paulo: Editora
UNESP, 2009, p.111-170.
______. Composer (avec) des identités culturelles. In: Série et harmonie généralisées: une théorie de la composition
musicale. Wavre: Mardaga, 2009, p.295-345.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1968.

Natural de São Paulo, Maurício De Bonis é compositor, pianista e pesquisador. Graduou-se em composição, sob orientação
de Willy Corrêa de Oliveira, pela ECA-USP, onde concluiu o doutorado em musicologia, sob a orientação de Flávia Camargo
Toni, como bolsista FAPESP. Participou como bolsista do 40º Ferienkurse für Neue Musik em Darmstadt, na Alemanha
(julho de 2000), e estudou piano com Heloísa Zani, Amílcar Zani e Cláudia Padilha. Como pesquisador, tem participado de
congressos acadêmicos no Brasil e no exterior, dedicando-se especialmente à música contemporânea brasileira. Lecionou
na Faculdade Mozarteum de São Paulo, na EMESP Tom Jobim – Escola de Música do Estado de São Paulo, na Faculdade de
Música Carlos Gomes e no Festival de Prados. Como compositor, tem participado de festivais nacionais e internacionais
de música contemporânea, como o Festival de Música Nova, as Bienais de Música Contemporânea do Rio de Janeiro e de
Mato Grosso e o 1º Simpósio de Música Contemporânea Brasil-Colômbia, em Medellín. Como pianista, mantém um duo
com a soprano Caroline De Comi, dedicando-se em especial à interpretação da música contemporânea brasileira.

49
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60

O Melos e Harmonia Acústica (1988) de


César Guerra-Peixe, Koellreutter e Hindemith:
similaridades e princípios básicos
Ernesto Hartmann (UFES, Vitória, ES)
ernesto.hartmann@ufes.br

Resumo: O Melos e Harmonia Acústica de César GUERRA-PEIXE (1988) apresenta um compêndio da atividade didática
deste compositor expresso em forma de apostila. O presente trabalho busca traçar as possíveis influências comparando-o
ao Caderno de Estudos com Koellreutter do próprio GUERRA-PEIXE (1944) e ao The Craft of Musical Composition de Paul
HINDEMITH (1937), visando compreender melhor os pressupostos técnicos e teóricos.

Palavras Chave: Guerra-Peixe; Caderno de Estudos com Koellreutter; Melos e Harmonia Acústica; Paul Hindemith; The
Craft of Musical Composition.

The Melos e Harmonia Acústica (1988) of César Guerra-Peixe, Koellreutter and Hindemith:
basic principles and similarities

Abstract: The Melos e Harmonia Acústica by César GUERRA-PEIXE (1988), presented a survey of the didactical activity of
this composer expressed in a textbook form. This research attempts to trace possible influences, comparing it to The Craft
of Musical Composition by Paul HINDEMITH (1937) and Caderno de Estudos com Koellreutter by GUERRA-PEIXE (1944) in
order to better understand the technical and theoretical approaches embodied in it.

Keywords: Guerra-Peixe; Caderno de Estudos com Koellreutter; Melos e Harmonia Acústica; Paul Hindemith; The Craft
of Musical Composition.

1- César Guerra-Peixe e os estudos com Koellreutter


Entre os alunos de Hans Joachim Koellreutter destacam- Música Viva, divulgando, por meio de concertos, irradiações,
se Claudio Santoro e César Guerra-Peixe, além de conferências e edições a criação musical hodierna de todas as
tendências, em especial do continente americano, pretende
Eunice Katunda e Edino Krieger, todos estes presentes mostrar que em nossa época também existe música como
nas primeiras ações e atividades do grupo Música Viva. expressão do tempo, de um novo estado de inteligência.
Este grupo visava revolucionar o panorama musical A revolução espiritual, que o mundo atualmente atravessa,
brasileiro ainda bastante estagnado e carente de novas não deixará de influenciar a produção contemporânea. Essa
transformação radical que se faz notar também nos meios sonoros,
propostas estéticas, apesar da repercussão da semana é a causa da incompreensão momentânea frente à música nova
de Arte Moderna de 1922. Mesmo que o Música Viva Manifesto Música Viva de 1944 (In: NEVES, 1984, p.94).
tenha proposto alguns manifestos com conteúdos
substancialmente diversos, podemos destacar o Sem aprofundarmo-nos nas complexas questões surgidas
Manifesto de 1944, que, de acordo com NEVES (1984), das diversas antíteses presentes nos Manifestos de
expõe as seguintes premissas: 1944-45 e 1946 do Grupo Música Viva, questões já

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 11/12/2011- Aprovado em: 03/06/2012
50
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60.

consistentemente abordadas por Carlos Kater em seu livro Em vários textos Guerra Peixe comenta o preconceito contra seu
Musica Viva e H. J. Koellreutter: Movimentos em direção à trabalho de orquestrador de música popular, demonstrando-se
solidário a seu colega Radamés Gnattali também arranjador e
modernidade (2001) e por diversos outros pesquisadores, vítima do mesmo tipo de preconceito por parte dos músicos
podemos considerar estas palavras como representativas estabelecidos no meio erudito. A composição de música de
das propostas do grupo. Renovação estética e técnica, câmara dodecafônica foi então a maneira de o compositor
educação musical (atividade a qual Koellreutter se consolidar seu nome. As obras iam sendo executadas nos
concertos e transmissões radiofônicas do grupo Música Viva, e o
dedicou proficuamente ao longo de sua vida) e divulgação nome do compositor ficava identificado a uma música moderna
da produção são os pilares estruturais deste projeto, e extremamente complexa, que lhe valia um inegável status.
norteando suas atividades até a sua extinção na década Para o bem e para o mal, as obras não passaram despercebidas.
de 1940, extinção esta motivada pela evasão de seus Além das execuções no Brasil, graças à rede de contatos que o
grupo formou, elas eram executadas também em Buenos Aires,
principais membros, entre eles, César Guerra-Peixe. Montevidéu e Lisboa, além de outros lugares esporadicamente
(EGG, 2004, p.154)
Diversos estudos sobre a denominada “Fase Dodecafônica”
ou “Atonal” de César Guerra-Peixe e de Claudio Santoro De qualquer forma, a mudança de postura estético-
estão disponíveis para pesquisa. Entre eles podemos ideológica dos dois principais membros compositores
destacar os de Cecília Nazaré A fase dodecafônica de produtivos e ativos do Música Viva (além de Koellreutter,
Guerra-Peixe; a luz das impressões do compositor (2002), evidentemente, César Guerra-Peixe e Claudio Santoro,
de André Egg O debate no campo do nacionalismo musical ambos no final da década de 1940 - porém por motivos
no Brasil dos anos 1940 e 1950: o compositor Guerra-Peixe distintos e com posicionamentos político-ideológicos
(2004), de Ana Claudia Assis Os Doze Sons e a cor Nacional: diversos - além de ter contribuído decisivamente
conciliações estéticas e culturais na produção musical de para o colapso do grupo, devido à adesão destes a um
César Guerra-Peixe (1944-1954) de 2006 e Compondo a discurso nacionalista - banindo de suas obras técnicas
Cor Nacional: conciliações estéticas e culturais na música mais vanguardistas como o dodecafonismo - gerou um
dodecafônica de César Guerra-Peixe (2007), de Sérgio interessante material de pesquisa para as gerações
Mendes Serialismo dodecafônico nas obras da primeira fase futuras. A Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil
(2007) e de Carlos Almada O dodecafonismo peculiar de de Mozart Camargo Guarnieri datada de 1950, e a
Claudio Santoro: análise do ciclo de canções a Menina Boba querela entre Santoro e Koellreutter, tornaram-se os
(2008). Apesar disso, quase nenhum, talvez com exceção da assuntos mais abordados, recebendo maior atenção
dissertação de Cecília Nazaré de Lima mencionada acima, dos pesquisadores.
aborda o seu Caderno de estudos com Koellreutter. Mesmo
neste trabalho, o documento principal é outro (também de O próprio discurso do compositor Guerra-Peixe subentende
extrema relevância), o Oitenta exemplos extraídos de minhas uma desqualificação de sua produção pós-dodecafônica. Três
obras demonstrando a evolução estética até abril de 1947 citações do próprio autor, colhidas em momentos distintos
(GUERRA-PEIXE, 1947). Segundo a autora, este período de sua vida (1947 - quando ainda imerso na fase atonal,
coincide com a Fase Dodecafônica de ­­­Guerra-Peixe, que, porém questionador da sua opção estética, 1952 - ao refletir
sobre sua mudança de posicionamento estético e 1971 -
foi curta, intensa e altamente produtiva e, apesar de sua repercussão quando já consagrado como um compositor nacionalista e
na época, em muitos aspectos nos parece desconhecida. Acredita-se
que, através da análise documental poderemos compreender melhor na sua maturidade artística) reforçam esta hipótese,
de que maneira Guerra-Peixe procurou expressar seus ideais nesta
técnica de composição (LIMA, 2002, p.iii). Sobre a rítmica nos 12 sons [...] este é um ponto fraco que venho
apontando, mas que meus colegas e amigos parecem discordar.
O que me atrapalhou até agora foi o preconceito de evitar
Já Ana Cláudia Assis nos fornece algumas informações sequencias, principalmente rítmicas. Tenho a impressão de que
sobre esta fase que, segundo a autora foi a gente começa a se embebedar de ideias filosóficas, acabando
por esquecer de lado a música. [...] Vejo, todavia, que na maioria
marcada pela adoção do dodecafonismo e pela adesão ao Grupo (para não dizer todas) das obras nos doze sons a sequencia não
Música Viva em 1944, cuja duração foi até dezembro de 1949. tem morada. Faz-se a “propaganda” estética de que a música
Guerra-Peixe compôs neste período, 49 obras para diferentes atonal é arrítimica. O que me diz disto? (Carta de Guerra-Peixe a
formações instrumentais, privilegiando o conjunto de câmara Curt Lange. Rio de Janeiro, 9 de maio de 1947).
(ASSIS, 2006, p.111).
Esta crítica tem mais sentido se contextualizada no
E comenta que, momento que vivia Guerra-Peixe no final da década de
40, a sua busca pela conciliação entre as técnicas de
ao aderir ao Música Viva e ao dodecafonismo, Guerra-Peixe
assumiu, assim como seus colegas de Grupo, uma posição de vanguarda e o caráter nacional.
compositor esteticamente anti-nacional, rompendo com uma
tradição fundada na segunda metade do século XIX através Ao justificar o porquê de seu abandono do dodecafonismo,
dos compositores do romantismo brasileiro - Brasílio Itiberê
(1848-1913), Alberto Nepomuceno (1864-1920), Alexandre 1) a impossibilidade de fazer realçar em minhas obras a
Levy (1864-1892) - e prolongada até o início dos anos 1950 nacionalidade que tanto prezo
(ASSIS, 2007, p.33). 2) A incomunicabilidade de sua curiosa linguagem, e
3) O reconhecimento da covardia de que eu era presa, fugindo aos
André Egg nos oferece uma outra, porém interessante problemas da criação de uma música necessariamente brasileira”
visão sobre este período do compositor, (GUERRA-PEIXE, 1952, p.3)

51
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60

Ao refletir sobre a questão do ritmo, tão cara a ele, além de Hindemith, outros autores como Julio Bas
(Tratado de la Forma Musical), Mathis Lussy (El ritmo
Do exagerado conceito resultam problemas insuperáveis, em
especial no que tange ao rítmo pois torna-se evidente a impressão
musical), Hugo Riemann (Composicion Musical) e Ernest
de falta de unidade formal. Uma das obras mais representativas Toch (la Melodia). Apesar destes autores elencados,
desses dias é o Quarteto Misto, de 1945, cujas dificuldades, quase as mais relevantes influências no desenvolvimento
sem apoio in tempo, impossibilitam a sua execução tanto no Rio do pensamento exposto por Guerra-Peixe nesta obra
de Janeiro quanto em Buenos Aires. O Quarteto Misto é algo
como a pintura de Kandinsky. Seja como for, a técnica dos doze
remetem à Hindemith e Koellreutter, essencialmente
sons se restringe tão somente ao papel de garantir a atonalidade; pelos conceitos de Fundamental, Harmonia Acústica
jamais um real valor construtivo no seu total [...] encerra aqui a e Relação de segundas (Hindemith), e pela estratégia
estrepitosa fase “dodecafônica” (GUERRA-PEIXE, 1971, p.1). didática abordada na primeira parte, presumivelmente
muito próxima à adotada por Koellreutter, como se pode
O termo “estrepitoso”, pitorescamente utilizado aqui, supor ao analisar o caderno de estudos de Guerra-Peixe.
demonstra o tom de irrelevância que o compositor Uma breve análise destas influências e destes conceitos
pretende impor a sua produção dodecafônica, assumindo- são o objeto deste trabalho, buscando compreender
se como um compositor exclusivamente nacionalista, um pouco melhor o pensamento norteador do autor na
influenciado e seguidor das ideias Andradianas. confecção do Melos e Harmonia Acústica.
Contudo, uma das publicações mais importantes de Guerra-
Peixe, o Melos e Harmonia Acústica (1988), demonstra 2 - Melos e Harmonia Acústica - Influências
uma profunda influência de seus estudos com Koellreutter de Hans Joachin Koellreutter
sobre “música em doze sons1”. Frequentemente utilizado Como uma proposta de síntese do material utilizado pelo
em cursos de composição no Brasil, esta pequena, porém compositor ao longo de sua carreira como professor,
extremamente rica publicação, divide-se em duas partes: Guerra-Peixe publicou em 1988 a pequena apostila
Construção da Melodia e Construção da Harmonia, a partir chamada Melos e Harmonia Acústica, visando organizar
de princípios acústicos. Mais que a Koellreutter, pode-se em um único compêndio o que considerava essencial
atribuir esta organização a Paul Hindemith, que após uma para a formação de um compositor. Trata-se, esta
longa explanação também divide seu tratado The Craft of obra, de uma síntese de ideias tidas como antagônicas
Musical Composition Volume I (exposição teórica2) desta (Pantonalismo e Dodecafonismo/Serialismo) e que,
forma. Como Kater (2001) ressalta, Hindemith foi uma das elaboradas em conjunto, propiciam uma visão bastante
principais influências de Koellreutter ainda na Alemanha, particular e interessante sobre técnicas composicionais
onde ele frequentou diversos cursos com o compositor. do século XX. Ao filtrar suas experiências como
Entretanto, é relevante notar que Guerra-Peixe inverte compositor “atonal” e, posteriormente “nacionalista”,
esta ordem dos conteúdos, introduzindo a melodia antes Guerra-Peixe cria um peculiar sistema de compreensão e
da harmonia em sua obra. aplicação de técnicas harmônicas e melódicas, onde, em
nenhum momento, permite aflorar a sua veia nacional,
Essa nossa opção em discutir as duas partes do Melos permitindo que cada leitor siga o rumo que deseje, “e
e Harmonia Acústica merece algumas considerações. o resto que fique por conta do estudante, tomando
De acordo com o índice do Melos (GUERRA-PEIXE, ele o caminho que preferir, o mais condizente com sua
1988, p.6), a obra se divide em quatro partes. Isso se sensibilidade” (GUERRA-PEIXE, 1988, p.5).
deve à estratégia didática adotada, porém, os assuntos
podem ser perfeitamente segmentados em apenas No Prelúdio3, prefácio introdutório à obra, Guerra-Peixe
duas. A primeira e a segunda parte, de acordo com o nos remete à Koellreutter: “Foi o prof. Koellreutter quem
índice, tratam da questão melódica, sendo a terceira e trouxe para o Brasil o estudo da melodia e daquilo que ele
quarta parte designadas à questão harmônica. O estudo denominava ‘Harmonia Acústica’, ambos os estudos com
da melodia é abordado, inicialmente, evitando-se o apoio nas obras de ensino de Paul Hindemith e outros”
aprofundamento da discussão sobre o ritmo (utilizam-se (GUERRA-PEIXE, 1988, p.5). Se considerarmos os estudos
apenas figuras de igual valor, o que não exclui totalmente de Kater (2001) sobre o grupo Música Viva, onde este
o parâmetro duração). Esta discussão é apresentada em afirma que Koellreutter frequentou cursos de composição
Estruturação Melorrítmica (segunda parte de acordo com Hindemith ainda na Europa, verificaremos uma relação
com o autor). De forma análoga, o autor decide abordar direta entre Guerra-Peixe, Koellreutter e Hindemith.
primeiramente a estruturação a duas vozes (Estruturação
a Duas Vozes, terceira parte), para posteriormente Sobre a relação de Guerra-Peixe com Koellreutter
concluir com Harmonia Acústica (quarta parte). Dessa podemos destacar O Caderno de Estudos datado de
forma, entendemos que, por se tratar de dois assuntos 1944. Este é um documento de extrema relevância para
distintos, há sentido em dividir o livro em apenas dois a compreensão do itinerário estético deste compositor.
tópicos ou partes, tal como mencionamos anteriormente: Uma comparação entre o Melos e Harmonia Acústica
respectivamente Melodia e Harmonia. e o Caderno de Estudos nos revela similaridades tão
marcantes que somos impelidos a supor que Guerra-
Ainda, de acordo com a reduzida bibliografia reportada Peixe (ao menos do ponto de vista didático) não abdicou
ao seu final, O Melos e Harmonia Acústica aponta, totalmente das premissas e princípios técnicos estudados

52
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60.

com Koellreutter, mesmo 44 anos depois. Mais do que isso, Os 4 elementos da série de 12 sons
apropriou-se delas para formular sua própria metodologia A série de 12 sons divide-se em 4 elementos:
de ensino, retraduzindo-as para um contexto que superou 1) a série propriamente dita chamaremos de fundamental
a “técnica dos doze sons” como costumavam denominar 2) o retrógrado da série da fundamental começando pela última
na ocasião do surgimento do Caderno de Estudos com nota e acabando na primeira conservando exatamente os
Koellreutter de 1944. mesmos sons.
3) o inverso é a inversão da ´serie fundamental por intervalos
Disponível em arquivo digitalizado no site da Biblioteca opostos.
Nacional, o Caderno de Estudos com Koellreutter (1944) 4) É o retrógrado do inverso feito pelo mesmo processo do
retrógrado da fundamental, isto é o inverso de traz para
apresenta em sua integra (seis páginas) o seguinte texto: adiante.
Aulas do prof. Koellreutter (1944) - Construção da Melodia
Seguem 4 exemplos de O, R, I, RI.” (GUERRA-PEIXE, 1944).
1. Todas as melodias têm que aparecer nos doze sons
2. Não prolongar por mais de quatro sons um determinado Estes exemplos mencionados estão ilustrados no Ex.1.
movimento para evitar aumentação ou diminuição forte
demais na linha melódica
3. O último som deve ser atingido por uma 2ª maior ou menor.
Observamos que a inversão (espelhamento) se dá neste
Pode-se também atingir a última nota por intervalo de 3ª exemplo a partir da mesma nota inicial (Sib3).
maior ou menor e 5ª descendente e 4ª ascendente. Os outros
intervalos não dão impressão de final. Todas as regras exceto uma são observadas aqui. A
4. Não se deve usar um som mais de uma vez para evitar exceção acontece com a 8ª regra, “Depois de um salto
interrupções na igualdade da construção da melodia. Procurar
não se deve acrescentar um outro na mesma direção”.
não voltar ao som dado anteriormente.
Podemos observar esta transgressão ocorrendo duas
5. Evitar arpejos ou grupos que formam ou dêem impressão
de grupos de acordes perfeitos e todos os pertencentes à vezes entre a terceira e quarta nota e a sétima e oitava
harmonia dissonante natural. A razão desta regra é evitar dar nota da série original (evidentemente extensivo às
um centro tonal a melodia. Deve evitar principalmente todos séries derivadas) respectivamente. Nestes dois casos,
os acordes com trítono. O efeito de acorde pode ser modificado
observa-se um salto de quarta ascendente seguido de
acrescentando uma segunda.
outro na mesma direção. No primeiro caso, trata-se de
6. Evitar seqüências.
uma sequência de duas quartas justas e, no segundo, de
7. Não saltar mais que uma 5ª ascendente ou descendente.
Saltos de 7ª produzem arpejos.
uma quarta justa seguida de uma quarta aumentada.
8. Depois de um salto não se deve acrescentar um outro na
Todavia, em ambas as situações, não há compensação do
mesma direção. salto (movimento compensatório na direção contrária,
9. Não é permitido mais de duas notas em segundas porque tem geralmente em grau conjunto).
como parte de uma escala pouca tensão melódica.
10. Evitar o cromatismo tanto quanto possível. Evidentemente, estas diretrizes podem ser traçadas
11. Só deve ter um ponto culminante (observar as regras de tensão desde séculos anteriores, pois fazem parte de um
e afrouxamento). corpus de regras típicas do contraponto Palestriniano,

Ex.1 - Exemplos de séries Original, Retrógrada e Inversa da Retrógrada extraídas da


última página do Caderno de Estudos com Koellreutter.

53
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60

reproduzidas por Johann Fux (Gradus ad Parnassum) no de Estudos com Koellreutter, pois elas condizem
século XVIII, cuja influência em Hindemith é decisiva. É perfeitamente, como nos casos das afirmações
notável que, mesmo dentro de uma proposta de “técnica exemplificados na tabela do Ex.2
de doze sons”, muitas destas regras continuem sendo
válidas, perpetuando um suposto modelo de “linearidade A compensação dos saltos também é recomendada no
melódica”, “correção” e “bom acabamento”, apesar de Melos e Harmonia Acústica, “Admita-se o salto de quarta
frequentemente encontramos inúmeros exemplos de justa ou aumentada e o de quinta justa ou diminuta
melodias de grande força expressiva que não aderem nem desde que em prosseguimento, seja escrito o intervalo
de perto a esse corpo de regras. de segunda em direção contrária (compensação)”
(GUERRA-PEIXE, 1988, p.6).
No Melos e Harmonia Acústica podemos perceber a
influência dos estudos com Koellreutter em diversos Outro ponto importante que pode ser observado é a
momentos. Novamente no Prelúdio, temos: preocupação de Guerra-Peixe com os pontos culminantes
e com o jogo de tensão e afrouxamento, desde os
... uma das preocupações tem sido a de eliminar do estudante as primeiros exemplos: “Tensão melódica é a direção
ideias [sic] que se limitam ao sistema tonal clássico, isto é, fugir do
Dó maior e Dó menor” (GUERRA-PEIXE, 1988, p.5)
ascendente do fragmento, realizada gradativamente [...]
Afrouxamento melódico é o oposto da tensão melódica
e [...] Ponto culminante superior é a nota que caracteriza
o ponto mais elevado dos fragmentos” (GUERRA-PEIXE,
quanto à Harmonia Acústica, estabeleci uma fórmula para 1988, p.12). O autor acrescenta a estes conceitos os de
equilibrar os primeiros tateios do estudante. Esta matéria
tem por base o valor acústico dos intervalos harmônicos,
“Ponto culminante Parcial”, “Ponto culminante máximo
independente de estilo e de tendências. Assim a Harmonia ou Clímax” e “Ponto culminante Inferior” recomendando
Acústica tem aqui, nos exercícios, uma progressão da tensão que estejam em proporções divisíveis por três tal qual a
harmônica dos acordes; mas como nem sempre a justeza dos seção Áurea (1/3 para o ponto culminante inferior e 2/3
propósitos é alcançada quando se vai no crescendo até o
acorde de maior tensão, achei que reproduzindo os acordes na
para o superior). Vale lembrar aqui a regra nº 12 do seu
forma retrógrada certas falhas poderiam ser notadas com mais Caderno de Estudos com Koellreutter que diz: “Só deve
facilidade (GUERRA-PEIXE, 1988, p.5). ter um ponto culminante (observar as regras de tensão e
afrouxamento)” (GUERRA-PEIXE, 1944, s.p.).
Nas duas citações extraídas do Prelúdio podemos observar
o quanto o autor ainda estrutura seu pensamento 3 - Melos e Harmonia Acústica - Influências
harmônico e melódico a partir de preceitos oriundos das
de Paul Hindemith
regras estudadas e reportadas em seu Caderno de Estudos
com Koellreutter. A utilização do termo “retrógrado”
É um fato impressionante que o ensino de composição nunca
evidencia a preocupação do compositor de construir desenvolveu uma teoria sobre a melodia. Qualquer estudante
as tensões sob parâmetros similares aos acústicos aprende harmonia e a partir da teoria tradicional acredita-se que
observados em Hindemith e que operam de forma análoga a manipulação do material tonal é conseqüência da harmonia.
nas instruções de Koellreutter. As recomendações iniciais (HINDEMITH, 1937, p.175)
são ainda mais reveladoras:
Com esta crítica, Hindemith inaugura o capítulo V da
a) Não ultrapassar, por enquanto, o limite de quinta justa sua obra The Craft Of Musical Composition. O título
composta. deste capítulo, Melodia, seguido do subtítulo Teoria da
b) Não repetir seguidamente qualquer nota na mesma altura. Melodia, propõe uma suposta inédita teoria da melodia,
c) Não escrever intervalo além de quinta justa, tanto subindo onde serão discutidos aspectos que concernem à
como descendo. construção de linhas melódicas e os efeitos dos elementos
d) Não estabelecer compasso nem ritmo, deixando os exercícios constitutivos, essencialmente os intervalos em seus
fluírem melodicamente sem compromisso com o tempo. aspectos e suas relações horizontais. Imediatamente
e) Não incluir alteração alguma, ascendente ou descendente. após esta citação, o próprio autor se retrata e recorda
f) Na medida do possível, não escrever sugestões de centro tonal que a teoria musical já havia estabelecido um possível
segundo a tradição clássico-acadêmica (complexos melódicos
corpus teórico sobre a melodia. Este corpus estaria
dos quais resultem acordes tonais) (GUERRA-PEIXE, 1988, p.6).
inserido de forma fragmentária e embrionária no estudo
do contraponto (que para Hindemith aparentemente
Ainda, o autor instrui sobre o que se interessa evitar:
significa quase que exclusivamente Johann Fux), sendo
a) Mais de três graus conjuntos na mesma direção a preocupação linear rapidamente abandonada em favor
b) Mais de quatro notas na mesma direção [...] de um foco vertical da música, a despeito do próprio
c) Evitar seqüência na forma de progressão simples conceito de linearidade pressuposto no contraponto.
d) Evita-se que a última nota seja atingida por grau disjunto, mas
sempre por grau conjunto. (GUERRA-PEIXE, 1988, p.6). Hindemith aponta possíveis circunstâncias que
conduziriam a um desinteresse na elaboração de uma
Por estas diretrizes podemos concluir que existe uma teoria da melodia, independente da suma importância
relação direta com as regras anotadas em seu Caderno que ele atribui a este estudo,

54
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60.

Melos e Harmonia Acústica (1988) Caderno de Estudos com Koellreutter (1944)


a) não se deve escrever mais de três graus conjuntos na 9 - não é permitido mais de duas notas em segundas porque
mesma direção com uma ligeira flexibilidade. tem como parte de uma escala pouca tensão melódica.
4 - não se deve usar um som mais de uma vez para evitar
b) não repetir seguidamente qualquer nota na mesma altura.
interrupções na igualdade da construção da melodia.
c) não escrever intervalo além de quinta justa, tanto subindo
7 - não saltar mais que uma 5ª ascendente ou descendente.
como descendo.
e) não incluir alteração alguma ascendente ou descend-
ente, quando contextualizada na proposta do autor (não 10 - evitar cromatismo o tanto quanto possível.
reproduzir fórmulas tonais).
5 - evitar arpejos ou grupos que formam ou dêem impressão
de grupos de acordes perfeitos e todos os pertencentes à
f) na medida do possível, não escrever sugestões de centro
harmonia dissonante natural. A razão desta regra é evitar
tonal segundo a tradição clássico-acadêmica (complexos
dar um centro tonal a melodia. Deve evitar principalmente
melódicos dos quais resultem acordes tonais)
todos os acordes com trítono. O efeito de acorde pode ser
modificado acrescentando uma segunda.
2 - não prolongar por mais de quatro sons um determinado
b) não utilizar mais de quatro notas na mesma direção movimento para evitar aumentação ou diminuição forte de-
mais na linha melódica.
c) evitar sequência na forma de progressão simples. 6 - evitar sequências.
3 - o último som deve ser atingido por uma 2ª maior ou
d) Evita-se que a última nota seja atingida por grau menor, pode-se também atingir a última nota por intervalo
disjunto, mas sempre por grau conjunto. Esta deve ser de 3ª maior ou menor e 5ª descendente e 4ª ascendente, os
contextualizada, excluindo as 3ªs e 5ªs e 4ªs como notas outros intervalos não dão impressão de final. Trata-se de
que antecedem a última. uma limitação da regra de forma a evitar os intervalos que
fortemente teriam um sentido tonal de conclusão.

Ex.2 - Comparação entre as diretrizes do Caderno de Estudos com Koellreutter e o Melos e Harmonia Acústica.

Ex.3 - Exemplo extraído do The Craft of Musical Composition (HINDEMITH, 1937, p.180).

Melodia é o elemento no qual as características mais pessoais do aspecto negativo da primeira - que este tipo de construção
compositor são clara e obviamente reveladas. Sua criatividade e melódica “não pode ser muito expressiva, visto que
fantasia podem ser capazes de gerar as progressões harmônicas
mais individuais, os ritmos mais ousados, os mais maravilhosos dificilmente liberta-se da sua harmonia” (HINDEMITH,
efeitos de dinâmica, a mais brilhante instrumentação, porém, 1937, p.180). Esse mesmo exemplo citado por Hindemith
nada disso é tão importante comparado à sua capacidade de pode ser observado no Ex.3, uma tríade de Mib Maior com
inventar melodias convincentes. Nesse ponto, especialista e leigo sexta maior.
concordam, é quase impossível detectar e analisar diferenças
estilísticas nas formações melódicas [...] deve ter havido uma certa
hesitação em demonstrar objetivamente as características mais Vale a pena comparar aqui com a regra invocada quando
pessoais e secretas de um compositor (HINDEMITH, 1937, p.177). da ocasião dos primeiros passos na estruturação melódica
no Melos p.9 e p.10 respectivamente, “na medida do
Ao iniciar sua exposição teórica, o autor nos alerta sobre possível, não escrever sugestões de centro tonal segundo
as características das melodias formadas por graus a tradição clássico-acadêmica (complexos melódicos dos
pertencentes a uma harmonia triádica e tercial, atribuindo quais resultem acordes tonais)” (GUERRA-PEIXE, 1988,
a estas duas características: a primeira diz respeito a sua p.9) e “evite-se arpejo sobre os acordes de harmonia
conexão com a própria harmonia e a capacidade desta clássico tonal, exceto em se tratando de acorde de quinta
progressão remeter a uma fundamental, e a segunda - o diminuta” (GUERRA-PEIXE, 1988, p.10).

55
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60

Como consequência lógica deste problema, Hindemith Além das diversas outras menções à relação de segundas
nos fornece os conceitos de Degree Progression presentes ao longo do Melos, ao final encontra-se um
(conceito que depende da exposição feita pelo autor nos apêndice, Adenda do Melos (GUERRA-PEIXE, 1988,
capítulos anteriores referentes à harmonia) e de Relação p.38-39), com vários exemplos analisados de relações
de Segundas (Seconds) “as verdadeiras unidades de de segundas em melodias famosas de vários autores,
construção são as segundas” (HINDEMITH, 1937, p.187). reiterando o grau de relevância atribuido a esta questão.
A ornamentação serve como elemento para mascarar as
obvias relações terciais ou triádicas entre um a sequencia 4- Harmonia Acústica - A teoria de Paul
melódica. Sendo assim, fica estabelecida uma “hierarquia” Hindemith
entre os sons presentes na melodia que podem ser
considerados graus da progressão ou apenas ornamentos, Hindemith elabora um complexo sistema de classificação
onde permanecem as classificações tradicionais desta de acordes visando contemplar toda a diversidade possível
categoria (passagem, apojatura, etc.). de construções harmônicas, terciais ou não, já, Guerra-
Peixe, simplifica ao máximo este processo. A preocupação
O ponto crucial da similaridade entre Hindemith e central na teoria de Hindemith é o estabelecimento de
Guerra-Peixe pode ser observado na seguinte frase, “A um sistema que viabilize a composição e a análise de
lei primária da construção melódica é que uma melodia progressões harmônicas vinculando-as ao tonalismo.
suave e convincente só é alcançada quando os pontos Além de sua rejeição ao politonalismo e ao modalismo,
importantes de uma progressão (Degree Progression) se Hindemith propõe análises de diversos estilos que vão
relacionam por segundas” (HINDEMITH, 1937, p.193). de Machault até Schoenberg, de forma a sustentar a sua
Esta frase é repetida contundentemente ao longo do argumentação teórica exposta em sua obra elevando-a
Melos, a partir da página 11, momento de conclusão da ao nível de uma teoria universal da música (ao menos
primeira parte (estruturação melódica sem ritmo). européia). Em sua análise de um extrato da Klavierstücke
op. 33ª de Schoenberg (HINDEMITH, 1937, p.217), ele
Para a melodia ser clara e expressiva deverá possuir algumas acusa a existência de diversos centros tonais, comprovados
qualidades essenciais, sem as quais se tornará caótica e pelo seu complexo sistema, antagonizando-se, assim à
inexpressiva. Veja-se no que se segue tais condições, quais própria proposta do compositor (dodecafônica).
são válidas para a melodia de todas as épocas e estilos, desde
a folclórica a mais elaborada. A ordem das segundas pode ser
alternada. Existe a relação de segundas superior - que é a que Apesar dessa polêmica constatação (polêmica esta
prevalece pela sua importância auditiva - e a inferior, esta quase admitida pelo próprio autor), impõe-se a factualidade da
sempre apenas conseqüência da anterior, mas que não deve ser similitude entre a proposta de Hindemith e a simplificação
desprezada (GUERRA-PEIXE, 1988, p.11). .
e contextualização realizada por Guerra-Peixe no Melos.
Como o próprio Guerra-Peixe indicara em seu Prelúdio,
Neste trecho, faz-se nítida a percepção da influência de
o termo “Harmonia Acústica” provavelmente deriva de
Hindemith, principalmente se levarmos em consideração
Koellreutter, convidando-nos a deduzir que esta seja uma
que existiam poucos livros didáticos sobre composição
livre tradução do procedimento “hindemithiano” (que
em língua portuguesa mesmo em 1988, e que, dentre
melhor se referia a este processo como Progression e
este pequeno grupo, nenhum aborda a questão das
Series 3). As similaridades mais evidentes observadas são a
relações de segundas, fato que inviabiliza o diálogo
renuncia à utilização de valores rítmicos, eliminando esta
de Guerra-Peixe com outros autores nacionais. Ainda,
dificuldade nos primeiros passos, de forma a explicitar o
é notável a relevância que Guerra-Peixe atribui a
conteúdo harmônico das progressões de acordes,
essa relação, considerando-a como regra universal
para composição de melodias, mesmo aquelas que se Simplificamos nosso estudo do elemento harmônico da música ao
proponham a utilizar técnicas seriais. excluir o tanto quanto possível o ritmo. Seria útil fazer o mesmo na
pesquisa pelas regras básicas da melodia (HINDEMITH, 1937, p.178)

Assim sendo, comprova-se a fortíssima influência dos Não estabelecer compasso nem ritmo deixando os exercícios
estudos com Koellreutter, transcritos no seu Caderno fluírem sem compromisso com o tempo (GUERRA-PEIXE, 1988, p.9)
de 1944, que, refletem ainda, a própria instrução que
Koellreutter obteve diretamente da fonte, Hindemith. O e a utilização das características acústicas dos
Ex.4 reproduz o exemplo de Guerra-Peixe. intervalos como fator seminal para a categorização das

Ex.4 - Exemplo de relação de segundas. (GUERRA-PEIXE, 1988, p.11)

56
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60.

estruturas harmônicas, em ambos os casos (Hindemith e é a nota inferior, e para Hindemith (nota apontada pela
Guerra­-Peixe) livremente construídas, sem compromissos seta) a nota superior. Ainda, para Guerra-Peixe, o Trítono
com uma estruturação exclusivamente tercial, característica (último intervalo na série de Hindemith) pertence a uma
da harmonia tonal tradicional. outra categoria, que ele atribui o nome de Intervalo Vago.

Aqui emerge o conceito de Fundamental do intervalo, Por não fornecer nenhuma argumentação teórica
indispensável para a argumentação de Hindemith. Este sobre este assunto ao longo do Melos, a razão pela
conceito não é abordado em praticamente nenhum outro qual ocorreu este deslocamento, neste caso, torna-se
compêndio de harmonia ou composição, mesmo ao longo obscura, assim como não existem outras indicações de
do século XX4, provavelmente devido a inconsistência na como operacionalizar ou funcionalizar este conceito
argumentação expositiva de Hindemith. Essa inconsistência para além da recomendação presente na página
se deve ao fato de Hindemith extrair a fundamental de 30 inscrita sob o número 53: “A escolha do som
um determinado intervalo a partir dos sons resultantes fundamental (grifo do autor) a ser colocado na parte
entre as alturas constituintes, processo esse amplamente mais grave ou em outra voz, tem importância no que
rejeitado pelos estudos acústicos posteriores à publicação tange à relatividade das tensões” (GUERRA-PEIXE,
do The Craft of Musical Composition (1937). 1988, p.30). Neste momento, percebe-se outra analogia
com a teoria de Hindemith, pois a argumentação das
Se a fundamental do intervalo e sua sucessão e ordem em fundamentais de intervalos deste último parte da
uma progressão desempenham um papel decisivo para a premissa de que um acorde invertido (a fundamental
determinação da tonalidade de acordo com Hindemith, não corresponde ao baixo) tem maior tensão do que
ao abandonar o próprio conceito de tonalidade, Guerra- um não invertido (a fundamental corresponde ao
Peixe despreza toda a explanação teórica de Hindemith, baixo) (HINDEMITH, 1937, p.91).
filtrando apenas o valor dos intervalos como constituintes
do chamado Tensionamento e Afrouxamento Harmônico. Hindemith inicia a sua exposição sobre o conceito de
A fundamental dos intervalos aqui, serve, apenas, como fundamental dos intervalos com a seguinte afirmação:
elemento de acréscimo ou decréscimo a uma tensão
Cada som individual não é música até que seja combinado
inerente à própria estrutura do acorde, não corroborando diretamente com outros sons, e relações tonais não são operantes
para indicação ou imposição de uma dada tonalidade. até que sons e combinações sonoras estejam em movimento. A
Não obstante, o Melos reproduz com uma curiosa matéria prima da música deve então incluir um terceiro elemento,
diferença a tabela proposta por Hindemith que pode ser em acréscimo aos sons envolvidos e os princípios das relações entre
eles. A música surge do efeito combinado de ao menos dois sons. O
apreciada no Ex.5, respectivamente (HINDEMITH, 1937, movimento de um em direção ao outro, o preenchimento do espaço
p.87) e (GUERRA-PEIXE, 1988, p.30). entre eles produz tensão melódica, enquanto a justaposição deles
produz harmonia. Portanto, o intervalo, formado pela conexão de
Pela comparação das duas tabelas podemos observar uma dois sons é a unidade básica da construção musical [...] assim como
as relações entre os sons são organizadas em ordem decrescente
discordância nas fundamentais dos intervalos de Sexta de valor, os intervalos também exibem uma ordem natural, que
Maior que para Guerra-Peixe (nota circulada em preto) denominaremos ‘Series 2’ (HINDEMITH, 1937, p.57).

Ex.5 - Tabelas de Intervalos de Hindemith e Guerra-Peixe

57
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60

Ao elevar a categoria intervalo ao patamar de unidade Exatamente neste ponto reside a inconsistência da
básica da construção musical, Hindemith centra teoria de Hindemith, reproduzida por Guerra-Peixe no
toda a sua argumentação teórica na ampliação Melos e Harmonia Acústica. Os tons de combinação não
das propriedades desta estrutura. Contudo, sua necessariamente coincidem com as fundamentais dos
compreensão do universo de intervalos possíveis intervalos. Como exemplo, tomemos o intervalo de 6ª
limita-se exclusivamente aos intervalos compostos maior (para não mencionar os de 7ª maior). Hindemith
por combinações de notas pertencentes à escala (p.70) nos propõe uma explanação não muito convincente
cromática. Não obstante, ele lança mão de um recurso para o fato da fundamental deste intervalo ser um som
inusitado até então, que é o som de combinação (sons estranho ao próprio intervalo (no caso o Láb), justificada
resultantes). Este som pode ser resultante da soma ou pela mais frequente utilização deste intervalo a mais de
da subtração das frequências dos dois sons geradores duas vozes, o que acarretaria na presença de outro som,
que formam o intervalo criando uma nova situação distinta da original.

mesmo que a natureza dos tons de combinação seja conhecida por Sons resultantes são virtualmente infinitos, podendo ser
um já longo tempo, eles nunca foram aplicados à teoria musical,
ao menos em um grau apropriado ao seu significado, a explanação
gerados por qualquer subtração ou adição de qualquer
das propriedades do material musical e as regras da escrita musical múltiplo das frequências envolvidas.
(HINDEMITH, 1937, p.59).
Quando dois ou mais sons senoidais são ouvidos simultaneamente,
um importante tipo de distorção no ouvido ocasiona a aparição,
O autor afirma que “As frequências dos tons resultantes na percepção sonora resultante, de sons adicionais àqueles que,
são sempre iguais à diferença entre as frequências dos de fato, estão ocorrendo. Tais sons fictícios, ou melhor, subjetivos,
sons originais” (HINDEMITH, 1937, p.61). O Ex.6 reproduz desaparecem se um dos sons originais cessa de ser gerado e,
consequentemente, ouvido. Importante e corrente fenômeno na
a tabela com os sons de combinação resultantes da prática musical, tais distorções são designadas, genericamente por
subtração das frequências. sons de combinação - uma vez que são fruto da combinação dos
sons existentes e, mais especificamente, da diferença entre suas
A partir destas resultantes, Hindemith propõe a freqüências - e dividem-se em sons diferenciais simples e sons
diferenciais cúbicos (MENEZES, 2003, p.88).
classificação de uma fundamental para cada grupo
intervalo/inversão, sendo estas fundamentais os sons
mais importantes e determinantes em sua organização Por exemplo, para duas frequências f1 e f2 poderíamos
para a operacionalização de um sistema de tonalidades. ter f1 + f2, 2f1 + f2, 3f1 + 2 f2, etc., ainda, teríamos as
subtrações, evidentemente iniciando com f2 - f1 (para
Se um dos sons do intervalo é reproduzido (duplicado) seja por todo f2 > f1).
uníssono ou por alguma oitava abaixo por um tom de combinação,
isto proporciona a este som uma força, sobrepondo-o ao o som resultante que talvez seja mais facilmente identificável
seu companheiro. Nos intervalos onde isso ocorre, os sons a um alto nível de intensidade é aquele cuja freqüência é dada
constituintes não são, então, de valor igual. Os sons reforçados pela diferença das freqüências componentes [...] é interessante
por esta reprodução (duplicação) podem ser considerados observar que devido à distorção não-linear, mesmo um único som
como Fundamental do intervalo e os outros seus companheiros com freqüência f1 dará origem a sensações adicionais de altura
subordinados (HINDEMITH, 1937, p.68). quando o volume for muito alto (ROEDERER, 2002, p.64).

Ex.6 - Tabela de sons resultantes extraída do The Craft of Musical Composition (HINDEMITH, 1937, p.61).

58
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60.

Lá1 Lá2 Mi2 Lá3 Dó#4 Mi4 Sol4 Lá4 Si4 Dó#5
110HZ 220HZ 330HZ 440HZ 550HZ 660HZ 770HZ 880HZ 990HZ 1100HZ
fn - f(n-1) 110HZ 110HZ 110HZ 110HZ 110HZ 110HZ 110HZ 110HZ 110HZ
Ex.7. Série Harmônica de Lá com os sons resultantes dos harmônicos adjacentes.

Esses sons adicionais, como os sons resultantes, não são natural da série harmônica, não constituindo então, uma
propriedade exclusiva do intervalo e sim resultado de um base apropriada para a fundamentação teórica exposta
fenômeno denominado “Harmônicos Aurais” (ROEDERER, pelo autor e reproduzida por Guerra-Peixe.
2002, p.67), causado por uma forma de ilusão auditiva,
de caráter essencialmente subjetivo. Evidentemente,
os resultados de experimentos realizados somente 5 - Conclusões
na década de 70 e 80 que geram esta conlcusão não Apesar de ser um duro crítico de sua própria Fase
estavam disponíveis à apreciação de Hindemith em 1930, Dodecafônica, concluímos que Guerra-Peixe não se
conduzindo-o a um provável equívoco em sua avaliação. desvencilhou por completo dos princípios básicos
aprendidos durante seu aprendizado com Koellreutter
Recentemente, os estudos de acústica, em particular na década de 1940. Apesar do próprio Guerra-Peixe ter
os de Murray Campbell e Clive Greated, nos elucidam afirmado isso, neste trabalho buscamos investigar de
sobre o mecanismo e a estratégia do rastreamento de que forma isso se manifestou especificamente no Melos
fundamentais. “Quando o ouvido interno escuta um e Harmonia Acústica. Mesmo podendo certas regras ser
som tônico ou composto, ele efetua intuitivamente uma observadas na prática do contraponto tonal e modal
espécie de ‘análise’ das frequências de seus parciais” tradicional, os princípios de ampliação da tonalidade,
(MENEZES, 2003, p.110). Como uma síntese do que se deu tensão e afrouxamento harmônico e melódico a partir
ao conhecimento com as experiências da década de 70 e 80 das características dos intervalos - questões estas
podemos afirmar que “embora desempenhem importante certamente presentes no programa de estudos realizados
papel, os sons diferenciais (resultantes da diferença entre com Koellreutter e constantes no Caderno de Estudos com
os parciais adjacentes) não constituem a causa principal Koellreutter de Guerra-Peixe - fazem parte essencial do
da dedução de uma altura definida de um espectro material utilizado por Guerra-Peixe para a instrução de seus
determinado” (MENEZES, 2003, p.114). Tomando essa alunos, corroborando a nossa hipótese de que o Caderno
afirmação como verdadeira, somos impelidos a considerar é um documento de extrema relevância, merecendo ser
com muita cautela os argumentos de Hindemith (e por objeto de estudos mais aprofundados, particularmente na
consequência os de Guerra-Peixe também) a respeito dos medida em que foi aplicado na sua obra entre 1944 e 1950.
sons fundamentais, pois toda a sua argumentação teórica
sobre as fundamentais, base para seu sistema de análise Ainda, a influência direta e indireta (através de
acústica dos acordes, estaria invalidada. Koellreutter) de Paul Hindemith pode ser fortemente
observada e traçada através das similaridades e afinidades
A tabela presente no Ex.7 associa as frequências dos sons teóricas presentes no Melos e Harmonia Acústica e no
de uma série gerada pelo Lá1 e a diferença entre cada dois The Craft of Musical Composition, como foi discutido ao
harmônicos adjacentes. longo deste trabalho.

Ao analisarmos os resultados, percebemos que o som Perante estas conclusões, estudos mais aprofundados,
resultante da subtração entre quaisquer dois harmônicos principalmente no que diz respeito ao tratamento dado
adjacentes é igual a fundamental da série. Esse é o por Guerra-Peixe em sua abordagem didática da melodia e
som que nosso ouvido buscará ao analisar cada grupo sua constituição pela fusão de motivos, poderão destacar
de intervalos dado. Dessa forma a relação entre esses ainda mais a relação entre estes três compositores sobre
harmônicos e a fundamental existe, produzindo outros outro enfoque. Acreditamos que esta questão é relevante
resultados diferentes dos observados por Hindemith, para a compreensão da pouca estudada influência de
porém limitados apenas aos harmônicos adjacentes de um Hindemith na formação dos compositores brasileiros da
dado som gerador e, em última análise, ao temperamento primeira metade do século XX.

59
HARTMANN, E. O Melos e Harmonia Acústica (1988) de César Guerra-Peixe... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.50-60

Referências
ASSIS, Ana Cláudia de. Compondo a Cor Nacional: conciliações estéticas e culturais na música dodecafônica de César
Guerra-Peixe. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, p. 33-41, 2007.
_______________. Os Doze Sons e a Cor Nacional: Conciliações estéticas e culturais na produção musical de César
Guerra-Peixe (1944-1954). 2006. 268f. Tese (Doutorado em História) - Departamento de Historia, Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
BRINDLE, Reginald. Serial Composition. London: Oxford University Press, 1966.
EGG, André Acastro. O debate no campo do nacionalismo musical no Brasil dos anos 1940 e 1950: o compositor Guerra
Peixe. 2004. 243f. Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras
e Artes da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004..
GUERRA-PEIXE, César. Caderno de Estudos com Koellreutter 1944. Texto disponível em Arquivo pdf (6 páginas) em http://
www.bn.br/site/pages/bibliotecaDigital/
bibsemfronteiras/indice_titulo.html. Acessado em 26 de Março de 2011.
_______________. Correspondência a Curt Lange: 9/Maio/1947, Acervo Curt Lange, UFMG, Belo Horizonte.
_______________. Música e Dodecafonismo, Recife, 1952.
_______________. Curriculum Vitae do Compositor, manuscrito, Rio de Janeiro, 1971.
_______________. Melos e Harmonia Acústica, Rio de Janeiro: Ricordi, 1988.
HINDEMITH, Paul, The Craft of Musical Composition .Volumes I e II. New York: Associated Music Publishers Inc., 1937.
KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter. Movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa Editora. 2001.
LIMA, Cecília Nazaré de. A fase dodecafônica de Guerra-Peixe: a luz das impressões do compositor, 2002. Dissertação
(Mestrado) UNICAMP, Campinas.
MENEZES, Flo. A acústica musical em palavras e sons. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
NEVES, José Maria, Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi, 1984.
ROEDERER, Juan G. Introdução à Física e Psicofísica da Música. Tradução Alberto Luis da Cunha. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.

Notas
1 Termo utilizado pelo próprio autor na capa de seu caderno.
2 Este tratado divide-se em dois volumes: 1º Volume: exposição teórica e 2º Volume: Exercícios práticos.
3 É interessante observar que aqui, mesmo depois de tantos anos de vida como compositor nacionalista, Guerra-Peixe decide utilizar a palavra
Prelúdio ao invés de Ponteado. É sintomático no que diz respeito a uma tentativa de promover um ambiente de liberdade para que cada estudante
faça suas próprias escolhas estéticas.
4 Reginald Brindle faz menção (BRINDLE, 1966, p.36) a esta questão reproduzindo a tabela de fundamentais, porém não aprofunda a discussão
tampouco apresenta fontes.

Ernesto Hartmann é Bacharel em Piano pela UFRJ, Licenciado em Música pela UCAM/RJ, Mestre em Práticas Interpretativas
(Piano) pela UFRJ e Doutor em Música (Linguagem e Estruturação Musical) pela UNIRIO. Produziu trabalhos publicados
como artigos em diversas revistas abordando temas ligados a Análise, Teoria e Linguagem Musical. Foi professor
colaborador da UFF-CEIM/RJ, Professor Substituto de Harmonia e Piano da UFRJ, Professor Substituto de Harmonia da
UFMG e Coordenador dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em Música do Conservatório de Música de Niterói/RJ.
Atualmente é Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Teoria da Arte e Música da UFES.

60
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74.

Procedimentos composicionais utilizados


no Ponteio Nº2 de Pedro Miguel a partir
da modelagem do Ponteio Nº12 de
Camargo Guarnieri
Pedro Miguel de Moraes (UFCG, Campina Grande, PB)
pedromiguelmusica@hotmail.com

Gustavo de Castro (UFPB, João Pessoa, PB)


gugabatera@gmail.com

Liduino Pitombeira (UFCG, Campina Grande, PB)


pitombeira@yahoo.com

Resumo: Este artigo trata da modelagem do sistema composicional utilizado pelo compositor Camargo Guarnieri (1907-
1993), na criação do Ponteio Nº12, do Segundo caderno de sua série para piano denominada Ponteios. Esta modelagem
foi realizada a partir da observação detalhada do comportamento de diversos parâmetros musicais utilizados pelo autor
nessa obra. Com base na observação quantitativa e qualitativa de como as diversas unidades estruturais da obra se inter-
relacionam, progridem e se transformam no decorrer do tempo musical, foi proposto, em uma segunda fase, um sistema
composicional utilizado no planejamento composicional do Ponteio Nº 2, para piano, de Pedro Miguel.

Palavras-chave: Camargo Guarnieri; Ponteio N.º12; sistemas composicionais de música.

Compositional procedures employed in Pedro Miguel’s Ponteio Nº 2 based on the modeling of


Camargo Guarnieri’s Ponteio Nº12

Abstract: This article deals with the modeling of the compositional system used by the Brazilian composer Camargo
Guarnieri (1907-1993) for the creation of the Ponteio Nº12 , from the Second book of his series for piano called Ponteios.
This modeling was accomplished through a detailed observation of the behavior of several musical parameters used in
this work by the composer. Based on quantitative and qualitative observations of how the various structural units of this
piece interrelate, progress, and change in the course of musical time, it was proposed a compositional system that was
used in a second phase, for the compositional planning of Pedro Miguel’s Ponteio Nº 2, for piano.

Keywords: Camargo Guarnieri; Ponteio Nº12; music compositional systems.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 11/11/2011- Aprovado em: 10/05/2012
61
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74

1 - Introdução Segundo MENDONÇA (2001, p.402), os Ponteios “são


Este artigo trata da modelagem do sistema composicional pequenas miniaturas sem forma definida, a maioria
utilizado pelo compositor Camargo Guarnieri (1907- monotemática, variando o espírito e a maneira de
1993), na criação do Ponteio Nº12, do Segundo exprimir, mas conservando em todos eles o profundo sabor
caderno de sua série para piano denominada Ponteios da música nacional”. A palavra ponteio vem do verbo
e da reutilização desse sistema na composição da “pontear”, que se relaciona com o procedimento, entre os
obra original para piano intitulada Ponteio Nº 2, do violeiros, de verificar a afinação através da execução de
compositor paraibano Pedro Miguel de Moraes (n.1991). um prelúdio antes de começar a tocar (VERHAALEN, 2001,
A metodologia utilizada nesta modelagem consistiu na p.128). Guarnieri explica que os Ponteios, “na verdade,
identificação das características dos diversos parâmetros são prelúdios que têm caráter clara e definitivamente
musicais utilizados por Guarnieri, tais como altura, brasileiro” (VERHAALEN, 2001, p.128).
duração, textura, dinâmica, articulação etc. Os aspectos
quantitativos e qualitativos das unidades estruturais, Em alguns ponteios podem ser identificados acordes
bem como sua transformação temporal, foram a base típicos do sistema tonal conectados por progressões
para a elaboração de um sistema composicional, que sintaticamente tonais (Ex.1)1. Em outros, encontramos
nos permitiu vislumbrar uma sintaxe de conexão entre tríades e tétrades típicas do período tonal, porém
os parâmetros da obra, com fins analíticos e prescritivos. conectadas de forma mais livre, onde a parcimônia de
Assim, ao propor uma modelagem sintática do Ponteio condução e a manutenção de notas comuns parecem ser
Nº12, este artigo visa contribuir para a compreensão da as diretrizes sintáticas (Ex.2). Este tipo de progressão é
em de Camargo Guarnieri, bem como, de maneira geral, encontrado caracteristicamente na fase final do período
tenta propor uma metodologia composicional no âmbito tonal. Há ainda, nos Ponteios, um terceiro caso, onde a
de uma linguagem atonal. saturação cromática, as múltiplas camadas e a ausência
de material triádico próprio do sistema tonal nos convidam
a uma abordagem pós-tonal das estruturas. Observem-
2 - Camargo Guarnieri e os Ponteios
se no Ex.3, os seis compassos iniciais do Ponteio Nº12,
Mozart Camargo Guarnieri nasceu em Tietê, São Paulo, reescritos para um compasso 4/4, para que se evidencie
em 1907. Compôs sua primeira obra, Sonho de Artista, o ritmo de baião, algo já sugerido pelas articulações. O
para piano, aos treze anos de idade. Sua produção para acompanhamento, feito pela mão esquerda, se restringe
piano solo consta, de acordo com catálogo publicado inicialmente a basicamente três tetracordes (tomando-se
por SILVA (2001, p.535-41) de 40 obras, incluindo 7 por base a teoria dos conjuntos de classes de notas, de
Sonatinas, uma série de 10 Improvisos, uma série de Allen Forte): [0358], [0158] e [0237]2.
20 Estudos, uma série de 10 Momentos, diversas peças
avulsas e uma série de 50 ponteios. Além disso, Guarnieri
3 - Modelagem do Ponteio Nº12, de Camargo
compôs seis concertos para piano e orquestra.
Guarnieri
A série dos ponteios foi composta entre 1931 e 1959 e O Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri, é construído
é constituída de cinquenta obras organizadas em cinco basicamente a partir da justaposição de duas camadas
cadernos, cada um com dez obras. O Primeiro caderno com características musicais distintas: uma que nos
foi composto durante quatro anos (1931-35). O projeto remete ao choro, executada pela mão direita, e outra
de composição da série foi retomado doze anos depois, ao baião, executada pela mão esquerda. Tal distinção é
com a composição do segundo caderno, de 1947 a 1949. determinada pelos gestos harmônicos e rítmicos. Dessa
O Terceiro caderno foi escrito cinco anos depois, de 1954- maneira, a análise levará em consideração essa dualidade
1955. A partir daí, os cadernos são escritos com uma existente entre as mãos esquerda (melodia) e direita
maior regularidade: o Quarto caderno é escrito de 1956 a (harmonia), algo já mencionado por VERHAALEN (2001,
1957, e o quinto caderno, de 1958 a 1959. p.134). É nossa hipótese de modelagem que Guarnieri

Ex.1 – Gestos sintaticamente tonais do Ponteio Nº 36, de Camargo Guarnieri, c.1-4.

62
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74.

Ex.2 - Gestos com sintaxe tonal expandida do Ponteio Nº13, de Camargo Guarnieri, c.1-3.

Ex.3 - Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri, reescrito de 2/4 para 4/4, c.1-5.

estruturou cada camada com sua individualidade própria obscura, ou mesmo desnecessária, a subdivisão de cada
e a fusão das duas resultou na obra. De certa forma, seção em subseções.
este procedimento se sintoniza com o politonalismo de
Milhaud (Saudades do Brasil, por exemplo), do início
do século XX, e também se antecipa aos processos 1–2 3–13 14–27 28–39 40–42
empregados no neorromantismo americano a partir
década de 1970, quando Rochberg, por exemplo, aplicou Intro A B A’ Coda
a fusão entre estruturas atonais e tonais em Music for
Ex.4 - Estrutura formal do Ponteio Nº12,
the Magic Theater. Demonstraremos, portanto, como a
de Camargo Guarnieri.
camada da mão direita sobrevive isoladamente ao sugerir
uma harmonia implícita e que se relaciona esteticamente
com o choro. Da mesma forma, demonstraremos como 5 - Camadas
a remetrificação da mão esquerda, a partir de acentos a) Mão esquerda
indicados pelo próprio compositor, produz, na maioria dos A parte correspondente à mão esquerda, que realiza
casos, uma figuração própria do baião. a estrutura harmônica, consiste em uma sucessão de
acordes conectados segundo o critério de economia de
4 - Macroestrutura movimento. A tabela do Ex.5 mostra as operações que
O Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri, é estruturado na seguem esse princípio de parcimônia e que possibilitam
forma A B A’ + coda, havendo uma pequena introdução uma condução suave (por semitons) dessas estruturas
de dois compassos antes da seção A. Essa estrutura é harmônicas. No primeiro compasso há um tetracorde
mostrada na tabela do Ex.4. O estilo tocata que é conferido que pode ser interpretado tanto como um Sol com
à peça pelo movimento perpétuo de semicolcheias torna sexta acrescentada, quanto como um mi menor

63
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74

Ex.5 - Conexão parcimoniosa entre os acordes do Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri.

64
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74.

com sétima menor (ver primeiro acorde da tabela mão esquerda”. Referências ao choro também podem
do Ex.5). Optaremos pela segunda interpretação em ser detectadas no último movimento do Concerto para
virtude desse modelo explicar a inteira formatação piano e orquestra Nº 5, cujo tema A é, segundo o próprio
de acordes da seção A (acordes 1 – 24), que consiste Guarnieri (VERHAALEN, 2001, p.233-234), inspirado
inteiramente da conexão de tríades menores (tricordes no choro. O Ex.6 mostra o início do choro Espinha de
[037]) acrescidas de uma nota. Na seção B, a redução Bacalhau, composto em 1936, primeira obra escrita pelo
de parcimônia de conexão, aqui considerada como clarinetista, compositor e regente pernambucano Severino
semitom, é compensada pelo grande número de notas Araújo (n. 1917), onde se pode observar uma similaridade
comuns entre muitos acordes. de contorno com o início do terceiro movimento do 5º
Concerto para Piano e Orquestra, de Guarnieri (Ex.7). Esta
No final do Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri, os similaridade vai além do contorno, uma vez que as alturas
tetracordes caminham em direção a lá menor, que do motivo de cinco notas (arquétipo gerador do inteiro
é precedido por um Mi maior com sétima e quinta concerto) podem ser detectadas no segundo compasso de
rebaixada (acorde 69 da tabela do Ex.5). Essa centricidade Espinha de Bacalhau. Mesmo sendo uma coincidência, o
de Lá poderá também ser observada, como veremos em fato de a melodia ser conferida ao ­clarinete (instrumento
seguida, em alguns trechos da mão direita, com relação de Severino Araújo) pode caracterizar um tributo de
às progressões harmônicas implícitas. Guarnieri a esse compositor. A seguir, serão mostradas
características do choro que estão presentes no Ponteio
b) Mão direita Nº12, de Camargo Guarnieri.
A mão direita, que pode sobreviver independentemente
da mão esquerda, revela uma estética que nos remete 6 - Hipótese de harmonia implícita
ao choro. A simpatia de Guarnieri com relação a esse A melodia da mão direita pode, em 79% do tempo,
gênero de música popular urbana pode ser observada, sugerir uma harmonia implícita de caráter tonal. Porém,
por exemplo, no emprego do termo para designar em certos momentos esse encadeamento harmônico é
algumas obras, ainda que de outros gêneros musicais, obscurecido pela intensa movimentação cromática das
como menciona VERHAALEN (2001, p.95): “Guarnieri camadas que constituem uma melodia composta, ou
escreveu diversos choros que na realidade são concertos ainda por saltos consecutivos de quarta. O Ex.8, que está
para instrumentos solistas e orquestra.” FIALKOW (1995, subdividido em 8.1 (seção A), 8.2 (seção B) e 8.3 (seção A +
p.41) também identifica, no Terceiro Caderno de Ponteios, coda) mostra a linha melódica da mão direita juntamente
marcas do gênero ao afirmar que “Guarnieri faz referência com a harmonia implícita, que pode ser subentendida a
ao estilo do choro no Ponteio Nº 23 (vigoroso), no qual um partir da melodia. Essa harmonia foi montada seguindo o
violão solo e um cavaquinho acompanhante são aludidos critério de formação de tríades (muitas vezes incompletas
nas mãos esquerda e direita, respectivamente. O Ponteio ou com notas acrescentadas) e que podem, muitas vezes,
Nº 25 apresenta uma textura compatível com o de uma ser conectadas nos moldes do sistema tonal com algumas
flauta na mão direita, acompanhada por um violão na irregularidades no ritmo harmônico.

Ex.6 - Trecho inicial de Espinha de Bacalhau, de Severino Araújo, mostrando o motivo de cinco notas.

Ex.7 - Início do tema A do 5º Concerto para Piano e Orquestra, de Camargo Guarnieri.

65
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74

Ex.8.1 - Harmonia implícita e procedimentos de construção melódica (seção A),


no Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri.

Os acordes de dominante secundária e de sexta napolitana Em seguida, enfocamos outros aspectos que relacionam a
(N), que acontecem na harmonia acima, são, segundo melodia de Guarnieri com o choro.
ALMEIDA (1999, p.124-126), típicos da harmonia do
choro tradicional. A modulação que ocorre nesse trecho 7 - Melodia
de mi menor para lá menor também é típica do choro, A melodia do Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri, se
como afirma Maurício Loureiro (citado por GOMES, 2007, constitui ora por duas camadas que se movimentam
p.27). Assim, fica estabelecida uma relação estética simultaneamente (com predominância desse tipo de
entre o choro e o Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri. construção nas seções A e A’), ora por uma única linha

66
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74.

Ex.8.2 - Harmonia implícita e procedimentos de construção melódica (seção B),


no Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri.

(encontrada em sua maioria na seção B). Nos trechos contrário; e (2) Nota de convergência (NC), que é o
em que há uma melodia composta, isto é, uma melodia ponto de chegada de duas vozes que se movimentam em
em duas camadas, a movimentação entre essas camadas camadas distintas, geralmente por movimento contrário.
pode ser modelada a partir de dois procedimentos: (1) Já nos trechos em que uma única linha acontece, outro
Nota de divergência (ND), que é o ponto de partida de um procedimento pode auxiliar a modelagem da melodia:
movimento de abertura onde as duas vozes caminham (3) Quartas consecutivas (QC), incluindo classes de notas
em camadas distintas, geralmente em movimento que podem ser empilhadas em intervalos de quarta. Há

67
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74

Ex.8.3 - Harmonia implícita e procedimentos de construção melódica (seção A’), no Ponteio Nº12, de Camargo
Guarnieri.

ainda um quarto procedimento que se situa mais no nível a repetição literal dos compassos 3-8 (seção A), que já
de manipulação melódica do que de construção, como foram analisados na Ex.8.1.
são os três primeiros: transposição de padrão (TP), que
pode ser literal ou não. Os Ex.8.1, 8.2 e 8.3 apresentam O tema se inicia com a movimentação descendente de
esses procedimentos nas três seções da peça. O Ex.8.3 duas camadas que se dirigem a nota si (NC), de onde é
(seção A’) omite os gráficos explicativos do compasso 27 arpejada a tríade de Mi menor. Partindo da fundamental
(anacruse para o 28) até o 33, uma vez que estes são desse acorde (ND), essas vozes realizam o procedimento

68
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74.

de Nota de Divergência até chegarem a dois Sis separados anteriormente indicam duas características que podem
por uma oitava, no início do compasso 6, onde o fluxo de ter se firmado como fruto do caráter improvisatório do
semicolcheias é interrompido por uma colcheia seguida de choro: fluxo contínuo de quiálteras e repetição sequencial
uma pausa (ver compassos 3-6 do Ex.8.1). É interessante de um padrão melódico partindo de diferentes graus da
ressaltar que essas notas estruturais (Mi em direção a escala. A parte B da peça é iniciada com um padrão de
Si) reforçam o discurso harmônico implícito que nesse cinco semicolcheias (x do Ex. 8.2), que consiste numa linha
momento sugere a tonalidade de Mi menor, estabelecendo descendente com um salto na última semicolcheia e que
uma analogia com a relação Tônica/Dominante. Essa é transposto sequencialmente. Considerando as notas que
linha, que também é rica em cromatismos, se relaciona iniciam cada transposição desse padrão (Dó, Sol, Ré, Lá e
com o idioma do chorinho, que segundo Behague (citado Mi), podemos perceber uma macroestrutura baseada em
por GOMES, p.21), Loureiro (citado por GOMES, p. 21) e quartas, que será um intervalo característico do próximo
ALMEIDA (1999, p. 106-114) herdou da modinha linhas padrão. Após esse sequenciamento do Padrão x, um
melódicas descendentes, apojaturas, notas dissonantes nos novo padrão é apresentado e transposto, o Padrão y, que
tempos fortes, cromatismos e grandes saltos melódicos. consiste em dois saltos de quarta ascendentes seguidos
Após essa pausa (compasso 6) inicia-se um ciclo de de três notas que descem por grau conjunto. As notas
quartas partindo do Mi, até chegar ao Sol, onde é arpejada estruturalmente importantes desse motivo são novamente
a tríade de Mi menor. Essas quartas consecutivas (QC) são as notas que dão início a cada transposição, uma vez
ornamentadas por cromatismos que também estabelecem que dão continuidade à linha descendente do padrão x,
relação com o chorinho pela característica acima citada, como ressalta a linha pontilhada no Ex.8.2. A série de
que são as apojaturas. Ainda no compasso 6 podemos ver transposições do padrão y é interrompida no compasso 19
que a melodia se inicia na segunda semicolcheia de um por um movimento de Nota Divergente que parte do Ré
grupo de quatro. Esse padrão, que segundo Loureiro (citado (ND) e é seguido pela aplicação dos procedimentos ND e
por GOMES, p.25-26) se tornou característico do choro, NC a outras notas, até que no compasso 22 o Padrão y
pode ser exemplificado nos dois primeiros compassos do retorna, porém com uma modificação (aqui identificada
choro Abraçando Jacaré, de Pixinguinha (Ex.9). como y’). A diferença entre y e y’ está na diatonicidade
deste último, que por utilizar apenas as teclas brancas do
Após essas quartas consecutivas (c.6-7), as camadas piano, abandona a característica de y de conter sempre um
voltam a movimentar-se, mas desta vez partindo da nota semitom entre as duas últimas notas do padrão. O Padrão
sol (ND) em direção a dois Mis separados por uma distância y’ é então submetido ao procedimento de manipulação
de oitava, a partir de onde realizam o procedimento de TP até o início da próxima seção, que será examinada no
Nota Convergente em direção ao lá (NC). Novamente próximo parágrafo.
as notas estruturais reforçam a harmonia implícita, que
agora parece sugerir a tonalidade de Lá menor. Nesse A’ traz a repetição literal da melodia apresentada na
ponto inicia-se uma nova movimentação por quartas até parte A até o início do compasso 33, a partir de onde
chegar a outro trecho (c.10), no qual movimentos de Nota surgem elementos oriundos da seção B que preparam a
de Convergência ocorrerão. Dessa vez as notas estruturais finalização da peça. Primeiramente há a inserção de um
(NC), formam quartas consecutivas: Si, Mi, Lá e Ré. padrão originado de y, aqui denominado y’’. Esse motivo é
transposto e na sequência o padrão original y retorna. Um
A seção B consiste basicamente em linhas que descem movimento de quartas consecutivas (QC) é seguido por
por grau conjunto intercaladas por saltos, que são em sua (ND) que parte do si no compasso 36. Nos compassos 37
maioria intervalos de quarta. Essa característica de contorno e 38 os acordes sugeridos pela linha melódica – mi menor
descendente já ocorreu no tema A, e contribui ainda mais e N (incompleto) – são ornamentados por cromatismos, e
para fortalecer uma relação estética com o choro. Mas, logo na sequência, o padrão y retorna. Após a aplicação
nessa parte central, podemos apontar duas semelhanças de três procedimentos (QC, NC e TP(y)), a obra conclui
com o gênero popular em questão. Os três autores citados enfatizando uma centricidade em Lá.

Ex.9 - Padrão de três semicolcheias em Abraçando Jacaré, choro de Pixinguinha.

69
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74

8 - Ritmo efeito métrico diferente da subdivisão normal da


A introdução do Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri, unidade de tempo, que seria de quatro semicolcheias.
apresenta um configuração rítmica nos dois primeiros Simultaneamente a isso, o acompanhamento segue o
compassos que consiste em oito colcheias com acentos mesmo padrão de baião de antes, produzindo assim duas
métricos que destacam três dessas figuras. Se compilarmos camadas rítmicas distintas (Ex.11).
esses dois compassos em um 4/4, poderemos ver uma
semelhança entre o que Guarnieri escreveu e um padrão 9 - Conclusões analíticas
rítmico que é típico do baião3. Porém essa célula rítmica O Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri, tem as
foi, em certos momentos, alterada por acréscimos características definidas a seguir. A peça é construída sobre
ou decréscimos de colcheias, pela reorganização da duas camadas com características distintas: uma que nos
acentuação, ou ainda pela junção de duas metades do remete ao choro, e outra ao baião. A macroestrutura é
padrão original. Esse processo é explicado no diagrama do intro+ABA’+coda. O A’ se inicia no compasso 28, com
Ex.10, onde cada colcheia é equivalente a uma unidade (1). anacruse, e repete literalmente por aproximadamente
Outra peculiaridade dessa peça é a polirritmia, que cinco compassos o material melódico apresentado na
é predominante na seção B. Como já foi tratado seção A. Na coda, muda-se a configuração acordal.
anteriormente, os padrões x e y são formados por 5 e
6 semicolcheias, respectivamente, o que causa um A harmonia da seção A é formada por somente três
acordes que sempre se conectam de forma parcimoniosa.
Estes acordes podem ser explicados como três acordes
menores vizinhos de semitons (Mi bemol menor, Mi menor,
Fá menor) aos quais se justapõem notas adicionais. Em
2/3 dos casos é possível reinterpretar esses acordes como
acordes maiores com notas justapostas. A seção B também
tem sua harmonia formada, em sua maioria, pelo mesmo
princípio, isto é, por tríades com notas justapostas, só que,
desta vez, as tríades são maiores e menores. A redução de
parcimônia de conexão, aqui considerada como semitom,
é compensada pelo grande número de notas comuns
entre muitos acordes. A estrutura rítmica da obra como
um todo é formada na mão esquerda pela alternância
de duas células que se agrupam gestalticamente por
articulação e registro. Essas células, uma formada por
três colcheias e outra por duas, produzem um ritmo
de baião que remetrifica o compasso original indicado
pelo compositor. Esse ritmo de baião é submetido a um
processo de assimetria pela inserção da célula de duas
colcheias. Na mão direita ocorre um movimento contínuo
de semicolcheias, como se observa em muitas tocatas
barrocas. Em alguns trechos ocorre polirritmia entre as
duas mãos, ocasionada pela justaposição de padrões
rítmicos de diferentes dimensões.

A melodia é algumas vezes composta (duas camadas)


e outras vezes linear. A conexão entre as camadas é
gerenciada a partir de dois procedimentos: Nota de
Divergência e Nota de Convergência. Nos trechos lineares,
dois outros procedimentos são utilizados: Quartas
Consecutivas e Transposição de Padrão.

A partir dessas conclusões analíticas, elaboramos um


sistema composicional, o qual consiste em uma série de
definições que refletem as características do Ponteio Nº12,
porém com um perfil mais generalizado, de tal forma
que possibilite a geração de novas estruturas, as quais
são diferentes, porém aparentadas com as originais. A
partir desse sistema, o Ponteio Nº 2, para piano, de Pedro
Ex.10 - Padrão rítmico do baião (3 3 2) submetido a Miguel, foi planejado. Na fase de planejamento, os perfis
modificações, no Ponteio Nº12, generalizados pelo sistema, aqui denominado de Sistema
de Camargo Guarnieri. Nº 2, são reconstruídos a partir de novas escolhas.

70
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74.

Ex.11 - Polirritmia na seção B, no Ponteio Nº12, de Camargo Guarnieri.

10 - Definição do Sistema Nº 2

Os gestos serão organizados linearmente em uma estrutura A B A’, onde não há clara divisão de
Definição 1
frases internas (a1,a2,...). Uma introdução e uma coda podem ser acrescentadas.

As partes, correspondentes a cada uma das mãos, são construídas independentemente a partir de dois
Definição 2
gêneros brasileiros folclóricos ou populares distintos.

A mão que apresenta gestos contínuos, com características de linha melódica, é construída a partir de
Definição 3 dois critérios não simultâneos: melodia composta e melodia linear. Estes critérios aparecem com maior
preponderância em duas das seções da obra.

A outra mão apresenta gestos simultâneos, cuja estrutura harmônica é construída, em sua maio-
ria, pelo princípio da parcimônia de condução de vozes, tomando como unidade de construção um
Definição 4 tricorde qualquer livremente adicionado de uma classe de nota. A configuração rítmica dessa mão
extrapola a métrica estabelecida para a obra. Os padrões rítmicos serão alterados por acréscimo,
decréscimo ou reorganização métrica.

11- Planejamento do Ponteio Nº 2, de Pedro Miguel


A forma, incluindo o número de compassos de cada sobre o padrão rítmico do Maracatu, enquanto a mão
seção, será articulada a partir do diagrama do Ex.12. direita realizará o acompanhamento em ritmo de Chote.
Também constam nesse diagrama, o tipo de construção A seguir, os Ex.13.1 e 13.2 trazem as três páginas da
da melodia (linear ou composta) e a sonoridade utilizada partitura do Ponteio Nº 2, de Pedro Miguel.
pela mão direita (013). A mão direita será construída

Estrutura Intro A B A’

Compassos 1–4 5–20 21–32 33–45

Mão Direita 013

Mão Esquerda – Linear Composta Linear

Ex.12 - Forma da obra original Ponteio Nº 2, de Pedro Miguel.

71
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74

Ex.13.1 - Página inicial do Ponteio Nº2, de Pedro Miguel.

72
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74.

Ex.13.2 - Segunda página do Ponteio Nº2, de Pedro Miguel.

73
MORAES, P. M.; CASTRO, G; PITOMBEIRA; L. Procedimentos composicionais utilizados no Ponteio Nº2... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.61-74

Referências
ALMEIDA, Alexandre Zamith. Verde e amarelo em preto e branco: as impressões do choro no piano brasileiro. 1999.
Dissertação (mestrado em Música) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP: 1999.
FIALKOW, Ney. Os Ponteios de Camargo Guarnieri. Tese de doutorado. EUA: Peabody Institute of the John Hopkins
University, 1995.
FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. New Haven: Yale University Press, 1973.
GOMES, Wagno Macedo. Chorando Baixinho, de Abel Ferreira: aspectos interpretativos do clarinetista Paulo Sérgio Santos.
Dissertação (mestrado em Música). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
KOSTKA, Stefan e Dorothy Payne. Tonal Harmony. 3ª Ed. New York: McGraw-Hill, Inc.,1994.
MENDONÇA, Belkiss C. A obra pianística. In: Camargo Guarnieri: o Tempo e a Música. Org. Flávio Silva. Rio de Janeiro:
Funarte, 2001, p.421-22.
SILVA, Flávio. Org. Camargo Guarnieri: o Tempo e a Música. Rio de Janeiro: Funarte, 2001, p.421-22.
VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri: Expressões de uma Vida. Trad. Vera Silvia Camargo Guarnieri. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo/ Imprensa Oficial, 2001.

Notas
1 O diagrama abaixo, segundo KOSKTA (1994, p.117), ilustra de forma clara o ciclo sintático tonal. Nos Ex. 1 e, além da nomenclatura de graus
harmônicos representados por algarismos romanos, indicamos as notas ornamentais por letras minúsculas As abreviaturas para essas notas
são: p=nota de passagem, s= suspensão, r=retardo, ap=apojatura, b=bordadura, e=escapada e in=interpolação. O referencial teórico para
a maioria dessas notas ornamentais pode ser encontrado em KOSTKA (1994, p.174-202).

2 Em vez da nomenclatura de Forte (1973), identificamos as classes de conjuntos de classes-de-notas, nesse trabalho, por suas formas primas entre
colchetes.
3 VERHAALEN (2001, p. 134) sugere que essa organização métrica se aproxima de uma valsa, certamente como resultado do agrupamento de três
colcheias que os dois primeiros acentos originam.

Pedro Miguel de Moraes (n.1991), Bacharelando em Composição pela Universidade Federal de Campina Grande, iniciou sua
carreira como violonista erudito, passando mais tarde para a área da composição, onde estuda sob a orientação de Liduino
Pitombeira, sem, no entanto, abandonar sua ligação com o violão, instrumento para o qual escreveu algumas obras, entre
peças atonais, choros e prelúdios. Em seu catálogo constam obras para piano solo, quarteto de cordas, conjunto de metais,
regional (formação típica do choro), além do seu instrumento “materno”, o violão. Pedro Miguel faz parte do GAMA, Grupo
de Análise Musical, grupo de pesquisa do CNPq certificado pela Universidade Federal de Campina Grande.

Gustavo de Castro estudou flauta doce, percussão e bateria na Escola Municipal de Música de Americana. De 1995 a
2005, foi percussionista na Banda Municipal Gunars Tiss da cidade de Nova Odessa-SP. Em 2006 iniciou o Bacharelado em
Música na Universidade Federal da Paraíba, onde também fez cursos de composição no COMPOMUS com Eli-Eri Moura,
Ilza Nogueira, José Orlando Alves e Liduino Pitombeira. Com a obra Fragmentos do Som foi um dos oito compositores
selecionados pelo Goethe Institut Córdoba-AR para o VII Festival Internacional de Música Contemporânea. Com a obra
Post Mortem foi selecionado para o Festival Internacional Druskomanija 2010 da Lituânia. Atualmente cursa mestrado em
Filosofia na Universidade Federal da Paraíba pesquisando o Compendium Musicae de René Descartes.

Liduino Pitombeira é Professor de Composição e Teoria Musical da Universidade Federal de Campina Grande. Sua música
tem sido executada pelo Quinteto de Sopros da Filarmônica de Berlim, Louisiana Sinfonietta, Orquestra Sinfônica do
Recife, Poznan Philharmonic Orchestra (Polônia) e OSESP. Tem recebido diversas premiações em concursos de composição
no Brasil e nos Estados Unidos, incluindo o 1º Prêmio no Concurso Camargo Guarnieri de 1998, o 1º Prêmio no concurso
“Sinfonia dos 500 Anos” e o prêmio “2003 MTNA-Shepherd Distinguished Composer of the Year Award”. Recebeu o
PhD em Composição pela Louisiana State University (EUA), onde estudou com Dinos Constantinides. Suas obras são
publicadas pela Peters, Bella Musica, Criadores do Brasil (OSESP), Conners, Alry, RioArte e Irmãos Vitale.

74
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88.

Simbologia e hereditariedade na formação


de uma Grundgestalt: a primeira das
Quatro Canções Op.2 de Berg
Carlos de Lemos Almada (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ)
calmada@globo.com

Resumo: Integrando um amplo projeto de pesquisa que visa elaborar uma metodologia analítica específica para os
procedimentos de variação progressiva, o presente estudo examina a possibilidade de existência de, por assim dizer,
transmissão hereditária (extraopus) na construção da ideia primordial (ou Grundgestalt) de uma peça musical. Para isso,
é analisada a primeira das Quatro Canções op.2, de Alban Berg, cuja Grundgestalt apresenta-se como um complexo
formado por várias transformações de elementos-chave extraídos de três obras: Tristão e Isolda de Richard Wagner, a
Primeira Sinfonia de Câmara op.9 de Arnold Schoenberg e a Sonata para Piano op.1, do próprio Berg.

Palavras-chave: Grundgestalt e variação progressiva; simbologia musical; transmissão extraopus.

Symbology and heredity on the formation of a Grundgestalt: the first of Berg´s Four Songs Op.2

Abstract: As a part of a broad research project that aims at elaborating a specific analytical methodology for the
procedures of developing variation, the present study examines the possibility of, so to speak, hereditary (extraopus)
transmission in the construction of the primordial idea (or Grundgestalt) of a musical piece. Thus, the analysis was
focused on the first of the Four Songs op.2, by Alban Berg, of which the Grundgestalt is presented as a complex formed
by several transformations of key-elements extracted from three pieces: Tristan and Isolde, by Richard Wagner, the First
Chamber Symphony op.9, by Arnold Schoenberg, and the Piano Sonata op.1, by Berg.

Keywords: Grundgestalt and developing variation; musical symbology; extraopus transmission.

1- Introdução
O presente artigo integra uma linha de pesquisa Sinfonia de Câmara op.9 de Arnold Schoenberg e (3) a
que basicamente visa desenvolver estratégias para Sonata para Piano op.1, do próprio Alban Berg.
a análise de procedimentos construtivos associados
aos conceitos de Grundgestalt e variação progressiva,
ambos elaborados originalmente por Arnold Schoenberg.
2 - Considerações básicas sobre os conceitos
Vem dar continuidade a dois estudos prévios sobre a de Grundgestalt e variação progressiva
matéria (ALMADA, 2011a; ALMADA, 2011b), nos quais Embora tenha sido formulado teoricamente por
foram estabelecidas as bases da metodologia que é Schoenberg apenas a partir de 1919 (EMBRY, 2007,
presentemente empregada, abrangendo terminologia, p.25), o conceito de Grundgestalt certamente já existia
simbologia e elementos gráficos para a análise. em seu pensamento em épocas bem mais remotas,
como demonstra a própria produção musical de sua
A obra musical aqui focalizada é a primeira (na ordem fase tonal (ver, por exemplo, o Quarteto de Cordas op.7
conológica de composição) das Quatro Canções op.2 e a Primeira Sinfonia de Câmara op.9, respectivamente
de Alban Berg. É especialmente notável nesta peça de 1905 e 1906).1 Tendo como fundamento filosófico
a existência de relações de derivação profundas e a corrente do Organicismo, surgida no séc. XIX (cujas
abrangentes que brotam de uma ideia primordial (ou raízes associam-se ao pensamento de Goethe e Darwin),2
Grundgestalt) composta, resultante da combinação de a concepção da existência de uma ideia primordial
elementos oriundos de três outras obras: (1) o Prelúdio da orientadora em uma peça musical, a partir da qual
ópera Tristão e Isolda de Richard Wagner); (2) a Primeira – ao menos de maneira idealizada – todo o material

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 14/10/2011- Aprovado em: 10/04/2012
75
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88

construtivo poderia ser extraído (incluindo os elementos ponto, como o op.2/II) sob diferentes perspectivas e graus
contrastantes) teria surgido para Schoenberg, segundo de profundidade, trazendo importantes contribuições para
seus próprios depoimentos, após análises minuciosas de este estudo: ADORNO (1997) destaca o caráter atemático
obras dos grandes mestres da música germânica: Bach, do grupo de canções, em sintonia com Ewartung de
Mozart, Beethoven e, notadamente, Brahms.3 A geração Schoenberg, bem como suas ligações com a obra berguiana
de todo o conjunto de material “genético” de uma peça antecedente, a Sonata op.1. No entanto, pelo menos
deve ser realizada, segundo Schoenberg, através de em termos, o atematismo sugerido por Adorno pode ser
inúmeras transformações (em “direções” e “velocidades” questionado: embora existam, de fato, poucos vínculos
imponderáveis), em um verdadeiro processo de rítmico-motívicos consistentes nas canções, percebe-
crescimento orgânico denominado variação progressiva se, a partir de sua análise no que se refere à dimensão
(originalmente developing variation). Em suma, a variação das alturas, associações ideológicas – e derivativas
progressiva consiste em variações sobre variações, o que – tão surpreendentes quanto relevantes. Em outras
gera linhagens consideravelmente extensas, incluindo palavras, conexões que não se apresentam nitidamente
formas híbridas (que, por sua vez, frequentemente na superfície musical por estarem desprovidas de seu
tornam-se base para novas variações).4 elemento identificador mais forte, o ritmo. JAMEUX (1980)
evidencia as relações entre música e texto presentes nas
A partir das elaborações de Schoenberg sobre ambos os canções, principalmente aquelas associadas aos conceitos
conceitos (que se manifestaram mais consistentemente básicos que interligam os poemas de Mombert e Hebbel
em sua música do que propriamente em seus textos), – sono e morte –, contextualizando-as ainda às situações
diversos autores vêm estudando a matéria sob vivenciadas por Berg naquela época. Este é um ponto de
perspectivas tanto teórico-conceituais quanto analíticas, contato com o trabalho de GAULDIN (1999), que examina
o que se tem intensificado a partir do final da década as diversas referências (musicais e extramusicais) que
de 1980.5 O presente estudo, tomando como referência permeiam o ciclo, resultando em um emaranhado de
alguns desses trabalhos, tem como meta essencial dar citações e símbolos que se entranham na estrutura da obra,
continuidade à elaboração de uma metodologia detalhada o que vem a ser uma das principais bases para o presente
para análise a partir de abordagens que privilegiem os estudo, como será apresentado. STRAUS (2005) analisa os
aspectos da variação progressiva e de suas relações com compassos iniciais do op.2/II de acordo com os princípios
a Grundgestalt de uma determinada uma peça musical. da Teoria dos Conjuntos de Classes de Alturas, destacando
informações construtivas de grande relevância como, por
3- As Canções op.2 exemplo, a estrutura cordal de “sexta francesa”. Por outro
Escritas entre 1908 e 1910, as canções que formam o op.2 lado – o que vem de encontro aos resultados deste estudo
podem ser consideradas as primeiras obras de Berg como –, esse autor questiona a existência de relações tonais
compositor plenamente formado, após a conclusão de no op.2/II, a despeito da presença da armadura de clave
seus estudos com Schoenberg, realizados entre 1904 e (de Mi bemol-menor) na partitura. É um questionamento
1908.6 Seus textos são provenientes de dois poetas alemães também presente no trabalho de AYREY (1982), que traz
atuantes em épocas distintas: Friedrich Hebbel (1813-1863), ainda uma interessante discussão sobre a viabilidade do
que escreveu o poema Dem Schmerz sein Recht!, usado na emprego de ferramentas analíticas neo-schenkerianas em
primeira canção, e Alfred Mombert (1872-1942), cujo ciclo peças de natureza similar. Ambos os tópicos são relevantes
Der Glühende serviu de base para as três canções finais. No para discussão nas conclusões deste artigo. PERLE (1977)
entanto, a sequência definitiva de publicação do op.2 não comenta a forte predileção de Berg por esquemas de
corresponde à ordem de composição das canções, como simetria, calcados especificamente no emprego de
revelam pesquisas sobre os esboços de Berg, realizadas ciclos simultâneos. Em especial, destaca no início do
por Stephen Kett (apud AYREY, 1982, p.38). De acordo com op. 2/II a superposição de uma sequência em segundas
tal ordem, as duas primeiras canções são sobre textos de menores descendentes de acordes de “sexta francesa” a
Mombert: Schlafend trägt man mich in mein Heimatland e um ciclo ascendente de quartas justas. Apresentando
Nun ich der Riesend stärksten überwand (correspondem aos outros exemplos desse procedimento composicional
poemas iniciais de Der Glühende), sendo seguidas por Dem (entre eles, a próxima obra de Berg, o Quarteto de
Schmerz sein Recht! (texto de Hebbel) e Warm die Luft (o Cordas op.3), Perle dá a entender ser ele fruto apenas
terceiro poema do ciclo de Mombert). Como se trata de um de uma preferência construtiva do compositor, embora,
agrupamentos de peças correlatas, é lógico considerar que, como será aqui comentado, existam fortes evidências
para efeito de uma análise derivativa a partir de uma ideia de que sua origem pode estar associada a uma técnica
primordial (Grundgestalt), a ordem de composição é um específica desenvolvida por Schoenberg em seu op.9. As
fator de decisiva importância a ser considerado. A primeira relações simétricas também estão no cerne de um artigo
canção a ser composta por Berg, portanto, deve constituir a de JARMAN (1987) sobre a música do compositor. Sua
etapa inicial da análise, a ser efetuada no presente estudo. Célula Básica I [Basic Cel I], embora com nomenclatura
e proveniência distintos em relação àqueles considerados
Diversos autores examinaram o ciclo do op.2 de Berg (e no presente estudo, mostra-se como elemento estrutural
alguns, especificamente, a canção Schlafend trägt man de crucial importância para o entendimento do processo
mich in mein Heimatland – identificada, a partir deste construtivo da canção analisada.

76
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88.

4- A Grundgestalt do op.2 das duas acima mencionadas, acrescente-se o Prelúdio


Neste estudo, propõe-se para a Grundgestalt do ciclo de Tristão e Isolda de Wagner. Isso conduz quase que
op.2 uma concepção inteiramente inusitada e, de certo naturalmente à hipótese de uma geração de Grundgestalt
modo, até mesmo contrária a duas características bem a partir de transmissão hereditária ou genética, por assim
elementares:7 (1) a ideia primordial normalmente se dizer. Como deixa claro GAULDIN (1999) – que evidencia
apresenta – em sua integridade e de modo claramente a existência das referências a Tristão e Isolda no op.2 de
reconhecível – nos compassos iniciais da obra e (2) ela Berg aqui consideradas –, a motivação para o emprego
em geral é deduzida a partir de condições estabelecidas de tais elementos extraopus nas canções teria uma forte
pela própria composição. Na forma aqui proposta, a carga simbólica, associada principalmente à paixão do
Grundgstalt do ciclo mostra-se como um conjunto de compositor por aquela que posteriormente se tornaria
abstrações – como, aliás, acontece na Sinfonia op.9 de sua esposa, Helene Nahowsky.8
Schoenberg e na Sonata op.1 do próprio Berg (ALMADA,
2011a; 2011b). Ela, portanto, apresenta-se não como uma O Ex.1 apresenta a Grundgestalt composta do op.2, a
unidade simples, mas como uma construção composta, partir da tripla fonte referencial, dividindo-se em dois
derivada da combinação de elementos-chave – e até ramos principais: T (de Tristão) e K (de Kammersymphonie
mesmo arquetípicos – advindos de outras obras: além – a designação original em alemão para a Sinfonia de

Ex.1 - Complexo-Grundgestalt das Quatro Canções op.2 de Berg, a partir de derivações do Prelúdio de Tristão e Isolda
de Wagner (a) e da Kammersymphonie op.9 de Schoenberg (b)

77
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88

Câmara). Observe-se que o ramo S (de Sonata) é Fá-Mi (originalmente desempenhado por um oboé
subordinado por derivação a K, o que evidencia a estreita desacompanhado), a linha cromática ascendente que
relação de influência que conecta ambas as obras.9 se segue, Sol#-Lá-Lá#-Si, e a tétrade meio-diminuta
O complexo resultante é inteiramente constituído de que a sustenta, o assim chamado “Acorde Tristão”. Disso
abstrações, denominadas Grundgestalten auxiliares resultam três GG´s, respectivamente, Ta [ct],Tb [ct] e Tc
(ou GG, os retângulos cheios) e, hierarquicamente [ac]. De Tb são obtidas duas gg´s variantes: tb-1 [ct], por
subordinadas a estas, Grundgestalten intermediárias (gg, redução (de quatro para três notas) e transposição, de
os retângulos tracejados). modo a fazer surgir a sequência Lá-Sib-Si (na notação
musical alemã, ABH, simbolizando “Alban Berg + Helene”)
Essa vasta e abrangente conjunção de elementos e tb-1.1 [ct], que reexpande a forma anterior para quatro
corresponde, portanto, às ideias construtivas básicas que notas, porém sem transpô-la: Lá-Sib-Si-Dó (ABHC, um
geram a totalidade (ou quase) do material melódico- anagrama de “Bach”, tema bastante recorrente entre os
harmônico que compõe as Canções op.2. membros da Segunda Escola de Viena).12

A simbologia aqui adotada requer uma breve explanação. O segundo ramo (Ex.1b) apresenta também três
Cada um dos retângulos (seja GG ou gg) apresenta elementos motívicos básicos que resumem as principais
algumas informações que os definem: relações estruturais existentes na Kammersymphonie: a
• Proveniência (em negrito, no vértice superior sequência de cinco quartas justas ascendentes, tratadas
esquerdo), ou seja, a relação parental de derivação na obra schoenberguiana tanto melódica quanto
(p.ex., tb-1, a partir de Tb). O tipo de inicial está harmonicamente (abstraída em Ka[ct]), a anacruse do
associado à hierarquia derivativa: maiúscula tema principal, que descreve o contorno ascendente
para Grundgestalt auxiliar (GG) e minúscula quarta justa-quarta aumentada (Kb [ct]) e a primeira
paraGrundgestalt intermediária (gg); frase desse mesmo tema, construída a partir da escala
• Característica principal da forma (entre colchetes, de tons inteiros (Kc [pcs], que se desdobra em suas duas
ao lado da proveniência), podendo ser uma das únicas possíveis coleções, convencionadas como a e b).
seguintes categorias abstratas: acorde [ac], Essas três GG´s dão origem a um número muito maior de
intervalo [int], contorno melódico [ct], conjunto formas do que no caso anterior:
de classes de alturas [pcs – como abreviatura de
pitch-class set]; - a partir da redução do âmbito de Ka [ct] resultam
• Especificação da característica (centralizada as díades: ka-1 [int] (o intervalo isolado de quarta
no lado inferior do retângulo), considerando as justa) e ka-1.1 [int] (sua inversão, a quinta justa);
seguintes convenções: - a partir da redução do âmbito de Kc[pcs] resultam
- <...> – sequência de intervalos sucessivos (para os tetracordes: kc-1 [ac] (a tétrade “dominante”
contorno melódico). Ex.: <+1+2-7>,10 indicando com quinta diminuta, também conhecida como
a série intervalar segunda menor ascendente- “acorde de sexta francesa”) e kc-2 [ac] (tétrade
segunda maior ascendente-quinta justa “dominante” com quinta aumentada);
descendente; - a partir da transformação de Kb [ct], de segmento
- [.../...] – sequência de intervalos simultâneos serializado (quarta justa-quarta aumentada) a
(para acordes), no sentido grave-agudo. Ex: tricorde de alturas não ordenadas, passível de
[3/4] indica a disposição de uma tríade menor; sofrer todo tipo possível de permutação. É este, de
- (...) – forma primordial de um conjunto de todos, o elemento construtivo mais importante na
classes de alturas não serializadas (usado para dimensão das alturas (especialmente no op.2/II).
pitch-class sets). Ex: (013). Suas derivações são intermediadas pelo sub-ramo
• Simbologia extramusical associada à forma S [pcs], que retrata a enorme importância desse
(sob o retângulo), entre chevron e aspas (p. ex: conjunto na estrutura da Sonata op.1 berguiana.13
<”Alban Berg”>); Três gg´s são obtidas, a partir de transposições e/
• As derivações são indicadas por setas tracejadas, às ou inversões desse tricorde, todas elas resultando
quais eventualmente são associadas abreviaturas em associações pessoais simbólicas: s-1 (ABE, para
dos tipos de operações empregadas (extração, “Alban Berg”), s-2 (HBE, para “Helene Berg”) e s-3
transposição, expansão, inversão etc.).11 (ADS, para “Arnold Schoenberg”).14

As informações acima apresentadas permitem identificar Em resumo, as diferentes formas que constituem a
precisamente todas as derivações obtidas a partir dos Grundgestalt composta da obra (ou, numa nomenclatura
elementos básicos presentes em cada um dos dois ramos alternativa, seu complexo-Grundgestalt – a partir deste
principais. No primeiro deles, derivado de Tristão e Isolda ponto, c-G) são empregadas, em maior ou menor medida,
(Ex.1a), três ideias motívicas (presentes justamente na construção das quatro peças do op.2, abrangendo
nos três compassos iniciais e que, por si só, sintetizam assim a quase totalidade de seus conteúdos melódico-
essa obra wagneriana) tornam-se os modelos para as harmônicos (incluindo ainda formulações delas derivadas,
subsequentes abstrações: o gesto melódico inicial Lá- que serão apresentadas oportunamente). Como etapa

78
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88.

inicial da análise completa do ciclo, as próximas seções no ponto climático da seção de desenvolvimento (parte III)
deste estudo examinam específicamente as relações da Sinfonia (c.358-9). As semelhanças são notáveis (ver Ex.3
derivativas presentes na primeira canção, Schlafend trägt em comparação com o Ex.2).
man mich in mein Heimatland (op.2/II).15
Nas duas pautas superiores desenrola-se um diálogo
5 - Análise derivativa do op.2/II (c.1-4)16 imitativo entre linhas que se referem explicitamente
O Ex.2 apresenta os quatro compassos iniciais da canção ao tema principal da Sinfonia, representado pelo seu
(Ex.1a), bem como uma redução do mesmo trecho fragmento anacrústico (ver Ex.1b), aqui adaptado à escala
(utilizando uma adaptação livre da metodologia analítica de tons inteiros. Sobreposto a tal textura, na pauta inferior,
schenkeriana),17 na qual são indicadas três relações o tema quartal é apresentado em sua integridade.18 A
derivativas associadas ao c-G (Ex.1b): (1ª) alternância construção é planejada de modo que a cada tempo sejam
entre as coleções a e b da escala de tons inteiros (a partir alternadas as duas coleções da escala de tons inteiros (os
de Kc [pcs]); (2ª) sucessão de acordes de “sexta francesa”, retângulos acinzentados facilitam a observação vertical
delimitados pelos retângulos sombreados (a partir de dessa alternância). Nos termos do presente estudo,
kc-1 [ac]) e (3ª) linha de baixo em sequência de quartas podemos sintetizar o próprio processo construtivo (ou seja,
justas ascendentes (a partir de Ka [ct]). a superposição dos dois materiais básicos, a escala de tons
inteiros e a sequência de quartas), atribuindo-lhe a criação
Ao menos neste trecho inicial fica evidente a existência de de uma nova forma gg, por hibridismo, designada pela
uma forte influência do ramo K (ou seja, oriundo da Sinfonia) fórmula ka+kc, que assim junta-se às demais derivações.
sobre a construção do op.2 de Berg. Na verdade, é possível
afirmar que a reverberação dessa obra de Schoenberg sobre Sob uma outra perspectiva – puramente melódica –,
a mente criativa de seu antigo aluno apresentar-se-ia ainda os quatro compassos iniciais do op.2/II fornecem novas
bastante intensa, não tendo se dissipado após a composição informações de grande importância. Duas ideias temáticas
da Sonata op.1. Em relação ao trecho específico aqui dialogam em contraponto: a linha do canto e a voz mais
analisado, pode-se encontrar o modelo de sua concepção aguda dos acordes da mão direita do piano (Ex.4).

Ex.2 – Berg – op.2/II (c.1-4): superfície (a); redução analítica (b)

79
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88

Ex.3 – Schoenberg – Sinfonia de Câmara op.9 (c.358-9) (redução)

Ex.4 – Berg – op.2/II (c.1-4): contraponto entre ideias temáticas x e y

As duas ideias temáticas têm suas respectivas identidades elementos genotípicos podem ser detectadas nas formas
associadas mais ao aspecto dos contornos intervalares x e y, como mostram as análises dos Exs.5, 6 e 7.
do que às suas configurações rítmicas correspondentes.
São nomeadas como x e y, tendo em vista a ausência de É possível observar no Ex.5 que a estrutura de x está
referências derivativas evidentes em relação à Grundgestalt associada à GG S [pcs], em três níveis de organização
composta da peça (a necessidade das subdivisões x1/x2 e (cada qual representado por uma trave horizontal ligando
y1/y2 será explicitada mais adiante). Constituem, portanto, hastes de algumas das alturas, na parte superior da
formas fenotípicas, em oposição àquelas presentes no pauta), sendo hierarquicamente mais importante aquele
c-GG, designadas como genotípicas.19 que é apoiado sobre as notas Si (início de x1), Fá (início
de x2) e Sib (final de x2). A forma-motivo Fá-Réb-Dó
Ainda que mostrem-se como elementos autônomos da (ligada pela trave na parte inferior da pauta) que abre
superfície e, por assim dizer, idiossincráticos, surgidos de o segmento inicial de x2, por sua vez, revela uma clara
condições únicas dessa canção específica (ou seja, não relação com a GG Ta [ct].20 Como será visto, tal elemento
estando necessariamente associados em parentesco com derivado do ramo “wagneriano” tem também atuação
as demais peças do ciclo), relações “subcutâneas” com decisiva na estrutura melódica desta canção.

80
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88.

Ex.5 – Berg – op. 2/II – relações entre x e as GG´s S [pcs] e Ta [ct]

Ex.6 – Berg – op. 2/II – relações entre y (associado à linha do baixo) e a GG S [pcs]

Ex.7 – Berg – op. 2/II – relações entre x e y (associados) e a GG S [pcs]

Em y (Ex.6) as relações com S [pcs] são também A marcante presença de S [pcs] nas estruturas de x e y
múltiplas, especialmente se for levada em conta a pode ser ainda ressaltada por intermédio de uma análise
associação simultânea dessa ideia temática (pauta abrangendo ambas as formas simultaneamente: nada
superior) com a linha do baixo do piano (em sequência menos do que onze referências ao tricorde podem ser
de quartas – comparar com o Ex.2). detectadas nesse contraponto (Ex.7)

81
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88

6 - Análise derivativa do op.2/II (perspectiva forma gg híbrida ka+kc). Sob a perspectiva da análise
global) neo-schenkeriana percebe-se como o evento harmônico
inicial – o dominante alterado (“sexta francesa”) da
A partir das informações coletadas, é possível iniciar a
tonalidade central, Mib-menor – é prolongado, a despeito
análise derivativa de toda a canção sob uma perspectiva
das alternâncias das coleções da escala de tons inteiros e
global, de modo não apenas a examinar as relações
da curva em quartas ascendentes. O acorde inicial, desta
de seu conteúdo com o c-GG (que abrange todo o
vez invertido, retorna quando o baixo atinge a nota Mi.21
ciclo), como também evidenciar eventuais papéis
estruturalizantes dos procedimentos de variação
A seção 2 (c.4.3-8.2) consiste numa espécie de interlúdio
progressiva. É interessante perceber que o viés do
instrumental, no qual acontece um diálogo imitativo
binômio derivação/variação desvenda alguns aspectos
envolvendo derivações de Ta e de S.22 A partir do c.7 o
que seriam inacessíveis sob outras abordagens.
contraponto se intensifica, com a diminuição das distâncias
entre as imitações, associada a uma gradual ascensão para
O Ex.8 apresenta o bloco inicial da peça (c.1-7), o registro agudo do piano, o que constitui nitidamente um
subdividido em duas seções: a primeira delas (c.1-4) processo de liquidação, propício para finalização formal.23
corresponde aos dois versos iniciais do texto, consistindo
numa espécie de enunciado principal, marcado pela A conclusão da segunda seção é marcada por um evento
presença das três ideias principais, x, y e a linha quartal derivativo importante, que prepara propriamente o
do baixo (é também pertinente acrescentar ao grupo a retorno do canto (ver Ex.9): após uma última transposição

Ex.8 – Berg – op. 2/II – análise derivativa: seções 1 e 2 (c.1-7)

Ex.9 – Berg – op. 2/II – final da seção 2 (c.8-9.1), linha mais aguda do piano (a) redução (b)

82
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88.

de Ta que é, no entanto, interrompida (por elisão da nota peça, a alternância das coleções a e b (da escala de tons
Lá#, indicada entre parênteses no Ex.9b), surge uma inteiros) é temporariamente abandonada, dando lugar
versão transformada, com a substituição do intervalo a uma superposição deslocada desses elementos. Uma
ascendente inicial da fórmula (sexta menor) por uma interessante reformulação da GG Ka (ainda que um tanto
quinta diminuta. Tal alteração implica o surgimento de disfarçada, pela apresentação simultânea de algumas das
uma nova gg híbrida: ta+s. notas) pode ser constatada na mão esquerda do piano
(c.10-13): Dó-Fá/Sib-Mib/Láb-Réb. A seção 4 inicia-se
A seção 3 (c.8.3-13.1) inicia-se no tempo que antecede no c.13, articulada pelo retorno do ambiente harmônico
a entrada do terceiro verso do canto, ponto onde inicial, com a alternância dos acordes de “sexta francesa”
surge finalmente o I grau da tonalidade central,24 o em movimento cromático descendente. É uma passagem
que enfatiza sua função articuladora (Ex.10). O trecho curta, correspondendo ao penúltimo verso do poema,
é marcado por uma intensa reformulação das ideias que prepara a seção final, uma espécie de recapitulação
temáticas x e y: estas são permutadas, com a inversão concentrada (ver Ex.11).
de suas posições originais (comparar com o Ex.8),
sequenciadas25 e fragmentadas (com a utilização das Berg engenhosamente aproveitou-se do fato de o
primeiras metades x1 e y1). Harmonicamente, o caráter do verso conclusivo do poema ser uma repetição literal do
trecho é também contrastante, pois, pela primeira vez na segundo (“In mein Heimatland” / “[de volta] à minha

Ex.10 – Berg – op. 2/II – análise derivativa: seções 2-4 (c.8-13)

Ex.11 – Berg – op. 2/II – análise derivativa: seções 4-5 (c.14-18)

83
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88

pátria”), fazendo retornar o bloco de ideias iniciais, porém Finalizando esta análise, o Ex.12 apresenta uma visão
de um modo mais compactado. A construção é também global (uma quase-Ursatz, por assim dizer)28 abrangendo
notável pelo tratamento metafórico que revela: um o grupo das três canções inciais.29 A relações observadas
retorno definitivo, após as digressões/viagens (seções 2 nesse nível fundamental são ainda mais surpreendentes,
a 4). Diversos pontos merecem comentários detalhados revelando um planejamento apoiado marcadamente
(comparar os Exs.11 e 8): na recursividade da GG S [pcs], o que confere a este
elemento o papel principal na hierarquia da construção
(a) a linha do canto é aqui resumida apenas à segunda tonal do ciclo. Como se vê no Ex.12, não apenas os vários
metade (x2) da ideia temática original; pontos de apoio – internos e entre as canções – como as
(b) a sílaba final (que no primeiro verso corresponde próprias tonalidades associam-se na relação (016).30
a Sib) é estendida a mais um degrau na escala
cromática descendente, chegando à nota Lá (como O Ex.13 apresenta uma redução do Ex.12, na qual são
que expressando um retorno definitivo e concreto, destacadas apenas as relações entre os pontos estruturais
antes apenas imaginado). Isso faz com que o conjunto e a GG S [pcs], sem hierarquizá-las, o que traz ainda à
de alturas que formam o segundo “Heimatland” tona novas associações contíguas.
corresponda à gg tb-2 (o anagrama de “Bach”), o que
não parece ser de modo algum fortuito;
7 - Conclusões
Este estudo vem confirmar o pressuposto de que os
(c) no aspecto harmônico/tonal observa-se o retorno
conceitos de Grundgestalt e variação progressiva
da preparação dominante, bem como de sua
fincaram profundas raízes na concepção criativa de
prolongação – no trecho dos c.1-4 –, finalmente
Berg, a partir de seus estudos com Schoenberg.31 Pela
dirigindo-se à resolução (reforçando, portanto, o
presente proposta, é possível concluir que tais elementos
caráter de retorno)26 que, no entanto, acontece mais
atuam como principais orientadores na estruturação das
uma vez sobre o I grau em modo maior;27
Quatro Canções op.2 e, especificamente, na primeira
(d) os baixos desses três acordes formam o conjunto delas a ser composta, Schlafen trägt man mich in mein
(016), ou seja, estão relacionados a S [pcs]; Heimatland. É ainda bastante relevante acrescentar que a
(e) tanto a linha do baixo quanto a linha superior dos ideia primordial do ciclo – sua Grundgestalt – apresenta-
acordes (y) apresentam-se em sua integridade, porém se inusitadamente como uma estrutura composta,
em diminuição rítmica livre em relação ao trecho inicial. resultante da aglutinação de materiais-chave derivados
É digna de menção a presença da variante híbrida ta+s de duas obras emblemáticas para o compositor: Tristão
(surgida na seção 3) na mão esquerda do piano. e Isolda e a Primeira Sinfonia de Câmara. No primeiro
caso, a partir de associações musicais aos projetos
Todos esses fatos parecem querer expressar uma volta amorosos de Berg, e no segundo, de sólidas referências
ao lar enriquecida por novas experiências, o que revela, a procedimentos composicionais apreendidos de seu
por si só, uma relação profunda e sofisticada entre texto mestre. No que se refere à peça aqui analisada, observa-
e música e, consequentemente, o perfeito domínio do se que as Grundgestalten auxiliares associadas ao ramo
compositor sobre os elementos estruturantes. da Sinfonia schoenberguiana apresentam-se como a

Ex.12 – Berg – op. 2 – relações estruturais-tonais entre as três primeiras canções do ciclo

84
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88.

Ex.13 – Berg – op. 2 – redução do Ex.12

principal fonte estruturadora: a sequência quartal (Ka trabalho que vem sendo desenvolvido na pesquisa sobre
[ct]), a escala de tons inteiros (Kc [pcs]) e, especialmente, o assunto. Os elementos gráficos derivados da análise
o set-class (016), obtido da transformação da anacruse schenkeriana, associados aos recursos previamente
do tema principal do op.9 (Kb [ct]) em conjunto de alturas estabelecidos revelaram-se uma estratégia eficaz, embora
não ordenadas (S [pcs]), uma derivação intermediada pela ainda passível de refinamentos.
obra berguiana que precede o op.2, a Sonata para Piano.
É muito interessante constatar que a análise global do op.
A hipótese aqui apresentada permite ainda que sejam 2/II a partir da abordagem derivativa (evidenciada pelos
melhor entendidas as motivações e as razões das escolhas Exs.8, 10 e 11) trouxe à tona uma insuspeitável arquitetura
de Berg para a concepção do ciclo. Os diversos autores de forma-sonata, ainda que com certas liberdades em
mencionados no corpo do texto analisam a obra sob as relação ao convencional e bastante concisa:32 seção 1 –
mais diversas perspectivas, muitas delas complementares Exposição simultânea dos dois “grupos temáticos”, x e y
a este estudo, mas, a despeito de serem todas, em seus (c.1-4); seção 2 – Transição (c.4-8); seção 3 – espécie de
próprios termos, elucidativas, atraentes e detalhadas, em Desenvolvimento, com fragmentação e sequenciação de
nenhuma delas é considerada a derivação como principal x e y, tratados imitativamente e em ambiente harmônico
força de organização estrutural. Mesmo GAULDIN (1999), contrastante (c.9-13); seção 4 – Retransição, com retorno
ao propor diversas associações e referências extra e ao contexto harmônico original; seção 5 – Reexposição
intramusicais como fator crucial para o entendimento compactada, finalizando em cadência “autêntica”.
das canções berguianas, deixa de lado o papel central
construtivo que é desempenhado pela influência advinda Embora tenham sido aqui pouco comentadas neste
de Schoenberg (e, mais especificamente, da Sinfonia estudo, as relações entre texto e música, evidentemente,
op.9), o que constitui, lamentavelmente, uma lacuna em também representam uma questão importante para o
seu importante trabalho. entendimento da obra, e serão reservadas para um exame
mais aprofundado nas etapas subsequentes da pesquisa,
Em relação à metodologia analítica, os resultados obtidos após (ou simultaneamente a) a análise derivativa das
neste estudo representam um aperfeiçoamento do canções restantes.

85
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88

Referências
ALMADA, Carlos de L. “Nas fronteiras da tonalidade”: Tradição e inovação na forma da Primeira Sinfonia de Câmara, op.9,
de Arnold Schoenberg. 2007. Dissertação (Mestrado em Música) – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro.
_______________. Pontos de contato entre a Sonata para Piano,op.1, de Alban Berg e a Primeira Sinfonia de Câmara,op.9,
de Arnold Schoenberg. In: V SIMPÓSIO DE PESQUISA EM MÚSICA - SIMPEMUS 5, 2008. Curitiba. Anais ...Curitiba:
UFPR, 2008.
_______________. A variação progressiva aplicada na geração de ideias temáticas. In: II Simpósio Internacional de
Musicologia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011a.
_______________. Derivação temática a partir da Grundgestalt da Sonata para Piano op.1, de Alban Berg. In: II Encontro
Internacional de Teoria e Análise Musical. Anais ...São Paulo: UNESP-USP-UNICAMP, 2011b. 1 CD-ROM (11 p.).
ADORNO, Theodor W. Alban Berg (Juliane Brand & Christopher Hailey, trad.). Cambridge: CambridgeUniversity Press,
1997.
AYREY. Craig. Berg’s ‘Scheideweg’: Analytical issues in Op. 2/ii. Music Analysis, vol. 1, nº 2, 1982, p.189-202
BOSS, Jack. Schoenberg’s Op. 22 radio talk and developing variation in atonal music.Music Theory Spectrum, vol. 14, nº
2, 1992, p.125-149.
BURTS, Devon. An application of the grundgestalt concept to the First and Second Sonatas for Clarinet and Piano, Op. 120,
no. 1 & no. 2, by Johannes Brahms. 2004. Dissertação (Mestrado em Música) – University of South Florida.
CARPENTER, Patricia. Grundgestalt as tonal function. Music Theory Spectrum, vol. 5, 1983, p.15-38.
DUDEQUE, Norton. Variação progressiva como um processo gradual no primeiro movimento do Quarteto A Dissonância,
K. 465, de Mozart. PerMusi, vol.8, UFMG, 2003, p.41-56.
________________. Music theory and analysis in the writings of Arnold Schoenberg (1874-1951). Aldershot: Ashgate
Publishings, 2005.
EMBRY, Jessica. The role of organicism in the original and revised versions of Brahms’s Piano Trio In B Major, Op. 8, Mvt. I: A
comparison by means of Grundgestalt analysis. 2007. Dissertação (Mestrado em Música) – University of Massachusetts
Amherst.
FRISCH, Walter. Brahms and the principle of developing variation.Los Angeles: University of California Press, 1984.
GAULDIN, Robert. Reference and association in the Vier Lieder, Op. 2, of Alban Berg.Music Theory Spectrum, vol. 21, nº 1,
1999, p.32-42.
HAIMO, Ethan. Developing variation and Schoenberg’s serial music. Musical Analysis, vol. 16, nº 3, p.349-365,1997.
HILMAR, Rosemary. Alban Berg’s studies with Schoenberg.Journal of the Arnold Schoenberg Institute, Los Angeles, vol.
VIII, nº 1, p.7-29, 1984.
JAMEUX, Dominique. Berg. Bourges: Solfèges, 1980.
JARMAN, Douglas. Alban Berg: The origins of a method. Music Analysis, vol. 6, nº 3, p.273-288, 1987.
MARTINEZ, Alejandro. La forma-oración en obras de la Segunda Escuela de Viena: un lectura desde la morfología de
Goethe. Revista del Instituto Superior de Música, no.12, Santa Fe, p.96-113, 2009.
MEYER, Leonard. Style and music. Chicago: The University of Chicago Press, 1989.
PERLE, George. Berg’s Master array of the interval cycles. The Musical Quarterly, nol. 63, n 1, 1977, p.1-30.
SALZER, Felix. Structural hearing: Tonal coherence in music (2 vol.). Nova Iorque: Charles Boni, 1952.
SCHOENBERG, Arnold. Style and idea: selected writings of Arnold Schoenberg. (Leonard Stein, ed.). Londres: Faber & Faber,
1984.
_______________. Fundamentals of musical composition.(Gerald Strang, ed.) Londres: Faber & Faber, 1990.
STRAUS, Joseph. Introduction to post-tonal theory (3 ed.). Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 2005.
STUCKENSCHMIDT, H. H. Schönberg: vida, contexto, obra. (Ana Agud, trad.). Madri: Alianza Editorial S.A., 1991.
TOOP, Richard. Stockhausen, Kalheinz. In: New Grove Dictionary of Music. Oxford: Oxford University Press, 2001.

86
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88.

Notas
1 Para uma análise detalhada da Grundgestalt da Sinfonia op.9, ver ALMADA (2011a).
2 Para Organicismo e a influência das descobertas de Darwin sobre a música romântica, ver MEYER (1989, p.189-96). Para o papel de Goethe na
elaboração do conceito de Grundgestaltpor Schoenberg, ver BURTS (2004, p.7-9) e MARTINEZ (2009).
3 Para destacar a importância do tratamento derivativo de Brahms, Schoenberg apresentou na Rádio Frankfurt em 1933 uma palestra intitulada
“Brahms, o progressivo”, que seria tranformada em um ensaio de mesmo título, publicado em 1950 na coletânea Style and Idea (SCHOENBERG,
1984, p.398-441). Para outros trabalhos mais recentes sobre variação progressiva e Grundgestalt na música de Brahms, ver FRISCH (1984), BURTS
(2004) e EMBRY (2007).
4 Entre inúmeras definições de variação progressiva já produzidas na literatura analítica, Ethan Haimo afirma que ela consiste em “uma categoria
especial da técnica de variação, implicando um processo teleológico. Como um de seus resultados, eventos de maior escala – mesmo aqueles
marcadamente contrastantes – podem ser entendidos como originados (ou brotados) das mudanças que foram feitas nas repetições das unidades
musicais anteriores. Portanto, a verdadeira variação progressiva pode ser distinguida das repetições variadas meramente locais que não possuem
consequências por desenvolvimento” (HAIMO,1997, p.351).
5 Ver, por exemplo, EPSTEIN (1989), CARPENTER (1983), BOSS (1992), HAIMO (1997), DUDEQUE (2003; 2005).
6 A bem da verdade, a Sonata para Piano op.1, concluída em 1908, poderia receber essa primazia, contudo, a motivação para essa peça teria sido
a realização de um exercício (ainda que bastante sofisticado e extremamente bem sucedido) proposto por Schoenberg, de composição de um
movimento de sonata com material tonal estendido (HILMAR, 1984, p.18). A construção da Sonata op.1 foi fortemente influenciada pela Sinfonia
de Câmara de Schoenberg, cuja composição a antecede em cerca de dois anos. Alguns procedimentos composicionais presentes em ambas as
obras, por sua vez, possuem relações estreitas com a estruturação das canções op.2, como será demonstrado.
7 Para comentários sobre alguns princípios teóricos para a Grundgestalt, sintetizados a partir de escritos de Schoenberg e de outros autores, ver
EMBRY (2007, p.25-7).
8 GAULDIN (1999, p.37-8) enumera alguns elementos musicais que têm a função de retratar a condição amorosa de Berg na época da composição
do op. 2. Em resumo: (a) a tonalidade de Ré-menor, da terceira canção, como a “tonalidade de Helene”; (b) o acrônimo ABH (a sequência de notas
Lá-Sib-Si, na notação alemã) representando o casal (Alban Berg e Helene); (c) citações em alturas originais de gestos melódicos e harmônicos do
Prelúdio de Tristão e Isolda. Além destas, este estudo leva em consideração outras referências extramusicais como motivadoras para a formação
da Grundgestalt composta do ciclo, como será visto a seguir.
9 Para os diversos pontos de contato existentes entre a Sinfonia de Schoenberg e a Sonata de Berg, ver ALMADA (2008) e ALMADA (2011b).
10 É aqui adotada a notação proposta por BOSS (1992).
11 Para uma tipologia provisória das operações de variação progressiva, ver ALMADA (2011b, p.19).
12 Como já comentado, a consideração desses elementos como uma das fontes de material para a Grundgestalt do op.2 é baseada em informações
apresentadas por GAULDIN (1999).
13 Ver ALMADA (2011b). Seria possível também relacionar a GG S à Célula Básica I proposta por JARMAN (1997), como um dos elementos mais
recorrentes na música de Berg. Trata-se do tetracorde (0167), que pode ser formado pela adição de dois trítonos separados por intervalo de
segunda menor ou pela superposição de dois tricordes (016) que contenham duas classes de altura em comum.
14 A letra “S” correponde a Mi bemol na notação alemã. Esse conjunto específico é considerado o “monograma” de Schoenberg (STUCKENSCHMIDT,
1991, p.446), sendo bastante recorrente tanto em sua música como uma espécie de assinatura, quanto na de seus amigos/discípulos Berg e
Webern, com o propósito de homenagem.
15 O texto da canção é o seguinte: “Schlafend trägt man mich / in mein Heimatland. / Ferne komm´ich her, / über Gipfel, über Schlünde, / über ein
dunkles Meer / in mein Heimatland”. Uma possível tradução: “Dormindo, sou levado de volta / à minha pátria / Venho de longe, / por sobre picos e
desfiladeiros, / por sobre um mar profundo, / à minha pátria”.
16 A partitura do ciclo op.2 (Berlim: Schlesinger, 1928) está disponível no seguinte site: http://216.129.110.22/files/imglnks/usimg/3/30/IMSLP22900-
PMLP52400-Berg_ _4_Lieder__Op._2.pdf
17 Tal tipo de estratégia (ligada ao que se costuma designar como neo-schenkerianismo) vem sendo bastante empregada em análises estruturais de
peças do repertório tonal expandido ou mesmo pós-tonal, desde a iniciativa pioneira de SALZER (1952). Evidentemente, nesse tipo de análise não
se busca uma correspondência entre os eventos analisados e uma estrutura primordial (Ursatz) estipulada a priori, mas tão-somente evidenciar
relações de prolongação e/ou de coerência entre elementos presentes em diferentes estratos hierarquizados de significação musical. Registre-se
que três dos estudos referenciais para este trabalho adotam estratégias semelhantes para analisar relações estruturais: AYREY (1982), JARMAN
(1987) e GAULDIN (1999). Acrescente-se ainda que, com o objetivo de facilitar a observação das relações derivativas, as reduções serão quase
sempre apresentadas sem armaduras de clave.
18 Ressalte-se que esse trecho constitui apenas um breve recorte de uma passagem de maior extensão e densidade e que, em nome da clareza,
dobramentos e algumas linhas subordinadas às principais foram omitidas do exemplo.
19 Ambos os conceitos, emprestados da terminologia da Genética, originam-se de uma análise derivativa dos temas principais da Sinfonia de Câmara
de Schoenberg, a partir de suas relações com a Grundgestalt da obra (ALMADA, 2011a). Entenda-se forma fenotípica neste contexto como aquela
que, embora não seja derivada por abstração de elementos da ideia primordial, resulta da concretização de um deles (ou da combinação de
vários), tornando-se assim um fenômeno da superfície musical. Isso não significa que relações “ocultas”, mais profundas (ou mesmo indiretas)
entre fenótipo e genótipo possam existir, como é o presente caso, aliás. Os elementos fenotípicos podem, por sua vez, constituir bases para
desdobramentos subsequentes, através de variação progressiva, incluindo combinações com formas genotípicas.
20 GAULDIN (1999, p.38-9) também atribui a esse motivo (e a todas as suas subsequentes reaparições na canção) uma clara referência ao gesto inicial
de Tristão e Isolda.
21 Fato que também não passa despercebido a PERLE (1977), JARMAN (1997) e STRAUS (2005). Como comenta este último, a simetria interna do
acorde de “sexta francesa” faz com que existam para ele apenas seis transposições distintas, todas elas presentes nesse trecho inicial da peça
(p.126), o que sugere não apenas que Berg estaria plenamente consciente dessa propriedade harmônica, como a teria empregado engenhosamente
como recurso a favor da expressão de seu tonalismo expandido.
22 Por questões de clareza as formas tricordais derivadas de S por transposição e/ou inversão que se apresentam em diversas superposições são
indicadas no Ex.8 através de linhas que conectam as notas envolvidas.
23 Neste caso, demarcando nitidamente o fechamento de uma transição entre duas seções estruturalmente mais relevantes (1 e 3). Para a definição
do procedimento estruturador de liquidação, ver SCHOENBERG (1990, p.58-9).

87
ALMADA, C. L. Simbologia e hereditariedade na formação de uma Grundgestalt... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.75-88

24 Registre-se que o acorde é apresentado de início em modo maior (como um dominante para o IV grau, que, no entanto, não se lhe sucede),
prolongando a verdadeira resolução subsequente (o acorde de Mib menor), como se vê no Ex.10.
25 Observe-se especialmente a relação entre o terceiro e o quarto versos, em sequência por segunda menor descendente. Como afirma JAMEUX (1980,
p.52), a topografia da linha melódica nesse ponto parece fazer “figuralismo musical”, descrevendo as textuais viagens sobre picos e desfiladeiros.
26 AYREY (1982, p.192-3) considera ambos os trechos “Heimatland” (c.1-4 e c.15-18) associados ao ambiente dominante/“sexta francesa”, tendo a
estabilidade tônica (o acorde de Mib maior dos c.8-9) relação com o termo “ferne” (“longe”), numa inversão de papéis conceituais em relação às
metáforas convencionais sobre o funcionalismo tonal. Ainda que instigante, tal interpretação perde força ao não levar também em conta o claro
apoio sobre Mib que finaliza a canção (c.17-8), que representaria, enfim, a concretização do retorno esperado.
27 Que é também, como o V grau prolongado, um acorde de “sexta francesa” (o Lá da melodia corresponde à quinta diminuta do acorde,
enarmonicamente). Aqui surge uma possível “explicação” para o uso da terça maior, já que esse acorde pode ser reinterpretado como o V grau da
canção seguinte, ambientada em Láb-menor.
28 Comparar com o Ex.2 de AYREY (1982, p.192) que, no entanto, dá conta apenas da relação entre as duas canções iniciais. O mesmo autor também
examina todo op.2/II a partir de uma adaptação metodológica da análise schenkeriana (com objetivos e resultados distintos em relação à presente
interpretação). Para uma comparação, ver AYREY (1982, p.198-9).
29 São estas as três canções tonais do ciclo (ainda que numa acepção bastante expandida), com armaduras de clave, o que possui implicações
estruturais, como é demonstrado a seguir. A quarta canção, Warm die Lüfte, tem a primazia de ser a primeira peça atonal de Berg e merecerá uma
atenção especial numa análise futura.
30 Fato que é também destacado por GAULDIN (1999, p.36).
31 Embora as realizações da assim chamada Segunda Escola de Viena possam ser consideradas o apogeu da aplicação da teoria da Grundgestalt,
observam-se reverberações de sua influência em obras de compositores mais recentes, como Stockhausen, cuja técnica construtiva denominada
Formula pode ser vista como uma reelaboração daquele conceito schoenberguiano.
32 Isso estreita ainda mais as ligações entre o op.2 e a Sinfonia, já que esta obra schoenberguiana representa um ponto de aperfeiçoamento ótimo no
que se refere à concisão formal da estrutura de sonata, numa linha que remonta ao sexteto Noite Transfigurada op.4, de 1899. Para uma discussão
mais detalhada sobre a busca de Schoenberg pela concisão formal em suas obras tonais, ver ALMADA (2007, p.21-30 e p.41-45).

Carlos Almada é Professor Adjunto da Escola de Música da UFRJ, atuando como docente nos níveis de graduação
e pós-graduação. É doutor e mestre em Música pela UNIRIO, ambos os cursos com pesquisas voltadas para análises
estruturais da Primeira Sinfonia de Câmara op.9, de Arnold Schoenberg. É compositor, com diversas obras apresentadas
em edições da Bienal de Música Brasileira Contemporânea, bem como registradas em CDs pela gravadora Ethos Brasil.
Atua também na música popular como arranjador, com inúmeros trabalhos gravados recentemente. É pesquisador com
vários artigos publicados em periódicos acadêmicos, tendo apresentado comunicações nos quatro últimos congressos
da ANPPOM, a partir de suas pesquisas. É autor dos livros Arranjo (Editora da Unicamp, 2001), A estrutura do choro (Da
Fonseca, 2006) e Harmonia funcional (Editora da Unicamp, 2009), bem como coautor de uma série de 12 livros sobre
música popular brasileira, publicados entre 1998 e 2010 pela editora americana MelBay.

88
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102.

O expressionismo de Erwartung diante do


problema do fetichismo musical
Philippe Curimbaba Freitas (UNESP, São Paulo, SP)
pcurimbaba@uol.com.br

Resumo: O monodrama Erwartung, de Arnold Schoenberg, foi caracterizado por um lado como síntese do expressionismo
e, por outro, como uma composição não definível por meio de categorias formais. Esta convergência entre expressão
e negação da forma, apontada por Carl Dahlhaus, é o ponto de partida deste texto, cujo objetivo é sustentar, mais do
que uma simples convergência, uma relação determinada entre expressão e negação da forma, ou da convenção. Isto é
realizado em três momentos: primeiro, desenvolve-se o conceito adorniano de fetichismo musical; segundo, aborda-se
a relação entre a expressão e a convenção à luz do problema do fetichismo musical, o que permite aproximar noções
como a negação da convenção, a negação romântica do objetivismo musical em prol da expressão subjetiva e a recusa
de materiais fetichizados; em terceiro lugar, aborda-se Erwartung, mostrando como o problema da convenção, do
objetivismo e do fetichismo não deixam de aparecer em uma peça que leva às últimas consequências a radicalização da
expressão pela negação da convenção.

Palavras-chave: Arnold Schoenberg; expressionismo musical; forma musical; fetichismo musical.

Erwartung’s expressionism facing the problem of musical fetishism

Abstract: Arnold Schoenberg’s monodrama Erwartung was characterized on one hand, as the epitome of expressionism
and, on the other, as a composition not definable by formal categories. This convergence of expression and denial of form,
remarked by Carl Dahlhaus, is the starting point of this text, which purpose is to sustain more than a simple convergence,
but a well-defined relationship between expression and denial of form and convention. This involves three moments:
first, the development of Adorno’s concept of musical fetishism; second, the approach to the relationship of expression
and convention seen from the perspective of musical fetishism, which enables us to approximate some notions as the
denial of convention, the Romantic denial of musical objectivism in favor of subjective expression, and the refusal of
fetishized material; and finally, the approach to the Erwartung, showing that the problem of convention, objectivism
and fetishism still remains in a piece which leads the radicalization of expression through denial of convention to the
ultimate consequences.

Keywords: Arnold Schoenberg; expressionism in music; musical form; musical fetishism.

“O espanto que Schoenberg e Webern suscitam, agora como antes, não emana
de sua incompreensibilidade, mas do fato de que se entende bem demais. Sua
música configura de imediato aquele medo, aquele terror, aquela percepção da
situação catastrófica da qual os demais querem se safar, retrocedendo. Chamam-
os individualistas, quando na realidade sua obra não é mais do que um único
diálogo com os poderes que destroem a individualidade – poderes cujas ‘deformes
sombras’ incursionam hipertrofiadas em sua música”. (ADORNO, 2009, p.50).

1 – Introdução
A obra musical da Segunda Escola de Viena do período imediata ao retirarem da música justamente aqueles
expressionista é frequentemente caracterizada na principais elementos por meio dos quais ela antes se fazia
literatura musicológica pela ruptura com as características inteligível. Isto revela uma convergência entre expressão
estilísticas do passado. Tanto a dissonância emancipada1 e negação da forma, convergência esta que se exprime
como a ausência de tema em algumas obras são por exemplo na literatura sobre o monodrama Erwartung
características que abalaram a compreensão musical Op.17, de Schoenberg, o qual foi caracterizado

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 17/02/2012- Aprovado em: 18/06/2012
89
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102

“de um lado – vista da perspectiva da história do “Com o desenvolvimento da música a uma ‘arte’ estamental
espírito [Geistesgeschichte] – como a síntese do (...), com o ultrapassamento do emprego meramente prático-
finalista das fórmulas sonoras tradicionais e, por conseguinte,
Expressionismo, e de outro lado – vista em termos de com o despertar das necessidades puramente estéticas, inicia-se
história da composição – como a realização da ideia regularmente sua verdadeira racionalização” (WEBER, 1995, p.86).
de uma música que é atemática e não definível por
categorias formais” (DAHLHAUS, 1990, p.149). A música se racionaliza ao livrar-se de funções rituais,
no interior das quais adquiria poderes mágicos, religiosos,
O objetivo deste artigo é sustentar mais do que uma medicinais etc. Os materiais musicais eram nesses
simples convergência: uma relação determinada entre o contextos determinados a partir fórmulas às quais se
anseio expressionista pela expressão pura, por um lado, atribuía poderes sobrenaturais. Portanto, um dos aspectos
e a recusa de elementos formais que tradicionalmente da racionalização musical é sua autonomização em
garantiam a inteligibilidade, por outro. Isto é realizado relação a funções rituais. Livres da subordinação a tais
baseando-se, por um lado, no conceito de fetichismo funções extra-musicais, os materiais musicais passam a
musical desenvolvido por Theodor Adorno e, por outro, ser adotados e desenvolvidos a partir de necessidades
em abordagens analíticas já existentes desse monodrama, puramente musicais. Autônoma em relação aos “fins
referentes aos aspectos musicais, isto é, não literários. A práticos”, a música se realiza em função do “gozo
escolha dessa obra não é gratuita: trata-se provavelmente estético” (WAIZBORT, 1995, p.39).
da obra que exprime mais nitidamente essa convergência
entre expressão e negação dos meios convencionais. Deste No entanto, a autonomia da música não se esgota,
modo, pretende-se lançar as bases para uma análise da segundo Weber, na liberação em relação aos objetivos
obra que tenha como foco a articulação entre expressão prático-finalistas. Mesmo realizada com o objetivo
e fetichismo. do “gozo estético”, a música ainda pode constituir e
desenvolver seu material pela mimetização de elementos
Em primeiro lugar, o texto analisa o conceito de extra-musicais:
fetichismo musical em três dimensões, abordadas por
Adorno, e o caracteriza a partir de um traço essencial “Em certas circunstâncias, a fala pode ainda exercer (...) uma
influência direta e completa sobre a formação do curso da melodia:
que constitui a música fetichizada: a autonomia da se esta língua, por exemplo, for uma das chamadas ‘línguas sonoras’,
totalidade da forma em relação à particularidade dos nas quais o significado das sílabas é variável de acordo com a altura
momentos. Aparentemente tal maneira de pensar a do som em que são pronunciadas.” (WEBER, 1995, p.81)
música fetichizada soa como um paradoxo, pois o que de
fato parece ocorrer é uma autonomia da parte em relação Weber comenta em seguida uma série de casos nos quais a
ao todo. O que se buscará é exatamente efetuar este música toma as características da fala como um princípio
giro por meio do qual a totalidade, para Adorno, migra mimético. Em contraposição a isso, racionalização
para as partes. Em segundo lugar, aborda-se a relação também significa autonomização em relação a qualquer
entre a expressão e a convenção à luz do problema do princípio mimético extra-musical no interior da música.
fetichismo musical, o que permite aproximar noções
como a negação da convenção, a negação romântica do A racionalização da música, para Weber, não é unívoca:
objetivismo musical em prol da expressão subjetiva e a pode se dar em diversos graus e direções. Weber descreve
recusa de materiais fetichizados. Em terceiro lugar, são e analisa em sua sociologia da música as músicas de
apresentadas e discutidas algumas análises da obra que, diferentes povos, suas características específicas e seus
abordadas a partir do problema da expressão, permitem diversos graus e modos de racionalização. O que lhe
compreender a radicalização da expressão em Erwartung interessa é determinar aquilo que é específico à música
como uma tomada de posição radical frente ao problema ocidental. Tal especificidade consiste, para Weber, no
do fetichismo, isto é, como uma recusa dos materiais caráter harmônico da racionalização de intervalos, o que
fetichizados. Mostra-se também como a simples não implica uma recusa dos elementos irracionais, não
negação da convenção, do objetivismo e do fetichismo harmônicos, mas uma subordinação destes à racionalidade
não soluciona o problema da expressão, pois esses três harmônica. São irracionais, por exemplo, os intervalos
elementos negados voltaram a aparecer na música, ainda cromáticos, isto é, que não pertencem a uma determinada
que de forma diferente. escala diatônica, os quais são racionalizados ao serem
interpretados, no interior de uma harmonia cromática,
como fundamental, terça ou quinta de uma tríade, isto
2 – Racionalização musical e autonomia é, ao serem harmonizados. Deste modo, os elementos
da forma melódicos, ainda irracionais – na medida em que seus
Adentremos no conceito de fetichismo musical a partir de intervalos se baseiam no gesto orgânico, mimetizado pela
Max Weber. Em seu Fundamentos Racionais e Sociológicos música, e não no sistema de divisão matemática da oitava
da Música (WEBER, 1995), o sociólogo desenvolve um –, são filtrados no interior de um sistema racional que
conceito central para o diagnóstico adorniano a respeito os assimila e consequentemente os racionaliza, ou seja,
da música fetichizada: a racionalização musical. Vejamos os “harmoniza”. Além disso, são também irracionais os
uma das maneiras como Weber apresenta este conceito: intervalos da melodia que não aparecem como som de uma

90
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102.

tríade, isto é, que não são harmonizados: as dissonâncias. entre eles soam de maneira contínua e necessária,
Estas, para poderem ocorrer na música racionalizada constituindo um todo, quer seja em virtude do trabalho
harmonicamente, são preparadas e resolvidas por motívico ou temático, quer seja pela relação harmônica
consonâncias, ou seja, são subordinadas à consonância, e coerente, a partir de um princípio harmônico que, no
só assim podem ser legitimadas, ou racionalizadas. Assim, caso do classicismo vienense, consiste basicamente na
na música harmônica ocidental a razão manteve-se, para extensão à peça toda do movimento cadencial sobre
Weber, soberana em relação aos elementos irracionais. a tônica, representado pelo esquema de Réti I-x-V-I,
apresentado por Jean-Jacques Nattiez, em que x pode
A música harmônica ocidental desenvolveu, portanto, um ser igual a zero, ou pode representar desde um único
sistema fechado de regras de contraponto e progressões grau até uma longa progressão de acordes. (NATTIEZ,
harmônicas que tornou possível que ela absorvesse todo 1984, p.337). Para Adorno, não apenas o todo opera
elemento extra-musical, todo resíduo de irracionalidade uma crítica das partes como também as partes impõem
e de mimetismo sem abrir mão de sua racionalidade; resistência à hipóstase do todo: a superioridade do
que ela pudesse cifrar todo resíduo irracional no interior “galante” na música de Haydn frente ao “acadêmico”
de um sistema racional autônomo, isto é que funciona está no fato de que o princípio formal unitário não
segundo suas próprias leis, as quais não sofrem ação encontra, em Haydn, sua legitimação em si mesmo mas
desses resíduos; que ela pudesse “ensimesmar-se em uma no confronto com seu oposto, isto é, com os elementos
construção de regras artísticas cada vez mais sublimada efêmeros, que pretende superar (ADORNO, 2009, p.18).
e complexa” (WEBER, 1995, p.109). Essa relação tensa entre partes e todo, em que o todo
articula e supera as partes e estas impõem resistência
Assim, no interior do conceito weberiano de ao todo, cristaliza a imagem de uma sociedade na qual
racionalização musical encontramos um diagnóstico “aqueles elementos particulares de felicidade seriam
de autonomização da forma musical em relação não só mais do que mera aparência”. Nesse impulso à superação
aos fins rituais mas também aos materiais melódicos do efêmero e das aparências, a música de Haydn realiza,
não racionalizados, que mimetizam elementos extra- para Adorno, uma reflexão de caráter social, e nisto
musicais como por exemplo o gesto corporal, a fala ou consistiria seu valor artístico.
o texto. Esse conceito de autonomia da forma musical
é de importância decisiva para uma discussão sobre o 3 – As três dimensões do fetichismo musical
fetichismo musical, tal como este foi pensado por Adorno. Em oposição ao que ocorre nesses casos do classicismo
No entanto é importante frisar que autonomia musical vienense, na música fetichizada os momentos parciais
não implica necessariamente fetichismo da música: a se isolam do todo e se oferecem em si mesmos como
relação entre ambos conceitos é bastante complexa. objetos do gozo, dispensando assim o ouvinte a “pensar
Na grande música autônoma do classicismo vienense, sobre o todo”. O ouvinte fetichista não apenas é incapaz
as “superficialidades”, os “estímulos aos sentidos”, as de reconstituir o todo a partir dos momentos parciais
melodias “profanas” e todos os elementos irracionais como tampouco está em condições de compreender
no sentido weberiano são absorvidos e submetidos aos tais momentos a partir do sentido que adquirem como
princípios de organização formal do classicismo ou, para função do todo, isto é, ouvem os momentos como se
continuar com Weber, são racionalizados. Portanto, a eles se esgotassem em si mesmos. Isto pode levar a
autonomia da forma aparece nitidamente como princípio crer que, na música fetichizada, a forma abriu mão de
compositivo no classicismo vienense, não obstante sua autonomia em prol dos momentos parciais, cuja
Adorno valoriza essa música e de modo algum identifica imediatez deixou já de censurar. Deste modo, a unidade
nela qualquer forma de fetichismo. Pelo contrário: sintética teria então deixado de se impor frente aos
materiais, os quais poderiam então falar por si mesmos,
“Na multiplicidade do estímulo e da expressão se demonstra sua
grandeza como capacidade de síntese. Não só a síntese musical libertando-se da violência do todo, por assim dizer. No
conserva a unidade da aparência e da vigília para que não decaia entanto, a posição de Adorno não é esta. Em primeiro
nos difusos instantes do saboroso. Além disso, nesta unidade, na lugar, o fato de que, na música fetichizada, os momentos
relação dos momentos particulares com a totalidade que se gera,
parciais são em si mesmos objetos de gozo – já que o
se mantém também a imagem de uma situação social na qual
aqueles elementos particulares de felicidade seriam mais do que gozo não cobra do ouvinte uma consciência das relações
mera aparência”. (ADORNO, 2009, p.18). entre esses momentos e de cada um deles com o todo –
não significa que o todo deixou de exercer qualquer papel
Adorno se refere à música de Haydn, na qual identifica na organização das partes. A respeito disto vale salientar
uma tensão dialética entre parte e todo. A síntese a importância atribuída por Adorno às repetições e ao
musical supera o caráter efêmero dos “difusos instantes clímax na eficácia da música em impregnar-se no ânimo
do saboroso”, realiza uma crítica dos momentos do ouvinte, eficácia esta que se põe a serviço do êxito
particulares, impedindo que eles se dissolvam como comercial. (ADORNO, 2009, p.28).
mera aparência. Isto significa que todos aqueles
elementos imediatos que aparecem como “estímulo”, Aqui torna-se necessário destrinchar o diagnóstico
“superficialidade” etc. são ligados e resolvidos no interior adorniano a respeito do fetichismo musical em um triplo
de uma forma unitária, de modo que as passagens diagnóstico, como propõe Vladimir Safatle (SAFATLE,

91
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102

2007, p.376), isto é, em um diagnóstico que envolve satisfazer suas necessidades afetivas. Aqui passamos
três dimensões: a dos modos de audição, a da estrutura a uma segunda dimensão do diagnóstico adorniano:
musical e a da função social. a função social. Em Weber, um dos sentidos da
racionalização musical é o desatrelamento da música
Iniciemos abordando o fetichismo a partir da dimensão a funções sociais – Weber refere-se à função religiosa,
dos modos de audição, isto é, da questão da audição que confere à música um caráter prático-finalista – e
fetichista. O ponto central no que se refere aos modos tal desatrelamento constitui também um dos sentidos
de audição está presente em uma passagem de Adorno já abordados da autonomia da forma. No entanto, à
bastante elucidativa: medida que a música passa a ser difundida e consumida
não em virtude de suas qualidades objetivas internas
“Um especialista norte-americano em anúncios radiofônicos que
se serve com preferência do meio musical se manifestou com
mas em função das necessidades afetivas do ouvinte,
ceticismo sobre o valor destes anúncios, pois os homens teriam ela em certo sentido joga por terra sua autonomia e
aprendido, inclusive durante a audição, a anular a atenção ao que readquire uma função social. Se passarmos da psicologia
é ouvido. (...) Sua tese é correta quando se trata da concepção à sociologia, podemos definir sua função social como
mesma da música” (ADORNO, 2009, p.16)
uma subordinação da música ao êxito comercial na
Um elemento central que marca para Adorno a medida em que o critério da eficácia psicológica não se
consciência musical fetichista é a ausência de restringe às escolhas individuais mas determina também
apreciação qualitativa daquilo que se escuta. Se pede- os mecanismos de difusão e, portanto, define o lugar
se a um ouvinte fetichista que fale sobre alguma social dessa música. Assim, no capitalismo tardio “(...)
música que tenha ouvido ou da qual afirme gostar, o a possibilidade da autonomização da esfera estética de
que salta à vista é a absoluta incomensurabilidade entre valor teria sucumbido à colonização da arte pela forma-
suas impressões subjetivas e as qualidades objetivas mercadoria.” (SAFATLE, 2007, p.377)
daquilo que escutou. A consciência musical do ouvinte
A música tornada fetiche se submete exclusivamente
fetichista está a tal ponto distante da música que lhe é
ao critério do êxito comercial: “A seleção mesma das
impossível ter uma experiência propriamente musical.
obras standards se rege por sua ‘eficácia’, precisamente
As melodias são experimentadas pelo ouvinte como algo
no sentido das categorias do êxito (...)”. (ADORNO, 2009,
carente de determinações musicais, algo que se possa
p.22). Como este mesmo êxito depende diretamente de
agarrar na sua imediatez, como imediatamente pleno
que a música possa intervir no estado anímico do ouvinte,
de sentido e que o compositor imprime na obra como
e como seu estado anímico já não possui relação alguma
algo próprio de si que está para além das qualidades
com a música, o critério ao qual a música fetichizada
objetivas da música: como “inspiração do compositor, a
se submete – não só na disposição do ouvinte à música
quem se pretende poder levar para casa em propriedade,
como também na seleção de repertório da “vida musical”
de igual modo que a inspiração se atribui ao compositor
– tampouco tem algo de musical. A mudança de função
como sua propriedade raiz” (ADORNO, 2009, p.22). Não
consiste portanto na substituição de uma relação em que
apenas os elementos de “inspiração”, como também a
a música era apreciada esteticamente e, deste modo,
voz dos cantores e o som dos instrumentos musicais
submetida a critérios de julgamento valorativo em função
são apreendidos isoladamente pelo ouvinte fetichista,
de suas qualidades objetivas, por uma relação na qual
desprovidos de qualquer função musical. Tendo perdido
ela supre necessidades afetivas dos seres humanos, por
toda relação objetiva com a música, resta explicar como
oferecer-se como substrato para o deslocamento de seus
esta passa a se relacionar com esse ouvinte. É o que
afetos. Este é o seu novo lugar social.
Adorno faz na seguinte passagem:
“Se convertem-se em fetiches os momentos de estimulação sensual A colonização da arte pela forma-mercadoria – que Adorno
da inspiração, da voz, do instrumento, e estes se dissociam de todas identifica não apenas na música de massas, produzida
as funções que lhes poderiam dar sentido, então respondem desde diretamente para o mercado, mas também na chamada
o mesmo isolamento emoções cegas e irracionais, desde a mesma
música séria, isto é, naquela música cuja produção não é
distância com respeito ao significado da totalidade e igualmente
determinadas pelo êxito, como relações com a música praticadas ainda afetada diretamente pelo critério de vendabilidade e
por quem carece de toda relação” (ADORNO, 2009, p.24). que reivindica para si um valor estético – não afeta a música
exclusivamente no que diz respeito à sua função social.
O ouvinte se comporta portanto de uma maneira projetiva: Para além de sua relação direta ou indireta com o mercado
sua relação se define como um deslocamento de afetos e com o êxito comercial, a forma-mercadoria constitui sua
em direção à música, a qual não cumpre mais do que estrutura objetiva: a constituição interna da música sofre
o mero papel de substrato: “Trata-se da submissão do transformações – e neste caso tratar-se de música “leve”
objeto ao esquema mental que dele possuímos, ou seja, ou música “séria” é indiferente. Aqui passamos à terceira
da apreensão do objeto como projeção de um esquema dimensão do diagnóstico adorniano. Vejamos como Adorno
mental (...)”. (SAFATLE, 2007, p.387). define a estrutura interna da música fetichizada:
“Que se consumam ‘valores’, que estes carreguem em si afetos,
O critério para a seleção musical tanto por parte dos sem que suas qualidades específicas sejam alcançadas pela
ouvintes como dos meios difusores passa a ser a eficácia consciência do consumidor, é uma expressão ulterior de seu
da música em impregnar-se no ânimo do ouvinte e em caráter de mercadoria” (ADORNO, 2009, p.24).

92
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102.

Adorno pensa aqui o conceito de fetichismo musical “Por uma parte, implica que a música, através da disposição sobre
a partir de uma referência importante ao conceito de o material da natureza, se transforma em um sistema mais ou
menos rígido, cujos momentos singulares têm um significado
fetichismo da mercadoria em Marx. Como evidencia a independente do sujeito e ao mesmo tempo aberto a ele. Toda
citação a Marx2, o que Adorno enfatiza é a dinâmica música, desde o princípio da época do baixo contínuo até hoje,
por meio da qual um corpo natural, imediatamente está unida como um ‘idioma’, que em boa medida está dado pela
apreensível pelos sentidos, se separa do processo social tonalidade, e cujo poder continua ainda na negação atual da
tonalidade. O que designa o termo ‘musical’ no uso mais simples
de determinação do seu valor, o qual aparece como uma da linguagem, se refere justamente a esse caráter idiomático, a
qualidade natural particular desse corpo. O trabalho uma relação para com a música na qual seu material, em virtude
humano – que constitui, juntamente com as características de sua objetivização, se converte em segunda natureza do sujeito
naturais dos materiais com os quais opera, uma das fontes musical. Mas, por outra parte, também sobrevive, no momento
da música semelhante à linguagem, a herança do pré-racional,
do valor – é tomado como se fosse uma característica mágico, mimético: graças à sua linguistização, a música se
natural da mercadoria. Para Marx, o que permite que as afirmou como órgão da imitação (...)” (ADORNO, 2000, p.76).
mercadorias sejam trocadas é o fato de envolverem uma
determinada quantidade de trabalho humano para sua Assim, a música é determinada, por um lado, mediante
produção, quantidade esta variável para cada mercadoria, a abstração de todas as qualidades que venham a
mas que possibilita uma relação quantitativa entre elas constituir a singularidade de uma música determinada.
totalmente independente de suas qualidades específicas. O que se obtém por meio desta abstração é aquilo que é
Esse componente abstrato da mercadoria, que envolve uma comum entre elas: os elementos musicais sedimentados
relação entre os homens por meio do trabalho humano, é por meio do trabalho de dominação do material sonoro
tomado como uma característica natural do objeto, e as pela forma musical, elementos estes que se abstraíram
relações quantitativas entre as diferentes mercadorias são desta ou daquela música em particular para constituírem
tomadas como relações existentes nas próprias coisas, no um referencial abstrato compartilhado daquilo que é
próprio corpo da mercadoria, e não entre homens: aquilo “musical”, que estabeleceria os padrões de reconhecimento
que é universal é tomado como particular. e legitimidade ante os quais os momentos expressivos e
particulares de cada música deveriam se curvar.
Em Marx o fetichismo da mercadoria consiste portanto
em que esta é tomada por um corpo natural, sensível, Por outro lado, a música não pode ser compreendida
no entanto dotado de qualidades sobrenaturais, supra- sem uma consideração de seus momentos expressivos,
sensíveis. Da mesma forma, em Adorno a música fetichista nos quais vai além dos elementos convencionais, em
se define como um objeto sensível dotado de qualidades direção a algo que tende ao informe e ao “pré-racional”:
supra-sensíveis. Aqueles elementos abstratos e universais nesses momentos, ela se particulariza e alcança
que, por estarem sedimentados na consciência auditiva do algo que é singular a uma música determinada e a
ouvinte, a tornam imediatamente apreensível são tomados distingue das demais. Para Adorno, a especificidade da
pelo ouvinte fetichista como propriedades particulares do linguagem musical, aquilo que lhe é próprio no interior
instante musical, como algo imediatamente disponível. A do pensamento, não pode ser compreendido a não ser a
estrutura da música fetichizada é definida essencialmente partir dessa “essência dupla”. Este é um dos pontos da
a partir desta dinâmica por meio da qual um universal é crítica de Adorno a Weber:
tomado por particular – dinâmica esta que constitui o
quid pro quo [tomar uma coisa por outra] a que Adorno “A [história] da música é, inquestionavelmente, a história de uma
racionalização progressiva. (...) Não obstante, a racionalização
se refere (ADORNO, 2009, p.26). Tendo abstraído todas (...) só constitui um de seus aspectos sociais, assim como a
as qualidades específicas do objeto, o ouvinte fetichista própria racionalidade, a Ilustração; só um momento na história
consome na realidade valores de troca lá onde crê que da sociedade de sempre, ainda irracional, ‘naturalista’. Dentro da
percebe qualidades sensíveis, isto é, percebe elementos evolução global em que participou da racionalidade progressiva,
no entanto, ao mesmo tempo, a música sempre foi também a voz
musicais universais abstratos onde crê que percebe aquilo do que no caminho dessa racionalidade se deixava para trás ou do
que há de mais singular e concreto. Para compreender que fora vítima” (ADORNO, 2006, p.14).
esta nova essência da música, seria útil observarmos
como ela se contrapõe ao que seria, na concepção de A música tornada fetiche perde justamente essa dupla
Adorno, uma essência da moderna música ocidental essência, constituindo-se exclusivamente de elementos
não fetichizada, para a qual o filósofo julga inadequada universais, abstratos. É como se, para Adorno, o conceito
qualquer definição positiva. weberiano de racionalização do material musical fosse
levado a cabo justamente ali onde a música se tornasse
No texto Sobre a Relação Atual entre Filosofia e Música, um fetiche, se emancipasse de todo vínculo com o
cuja questão principal é justamente a possibilidade de particular. O que parecia ser uma autonomia do momento
determinação de uma essência da música – compreendida parcial em relação à totalidade – como se os elementos
aqui apenas a música moderna ocidental –, Adorno aborda de estímulo que, no classicismo, eram ligados entre si
aquilo que considera central a ela: seu caráter racional, ou por meio da forma unitária, pudessem agora falar por si
linguístico, pensado justamente a partir de Max Weber. No mesmos – adquire na realidade o sentido contrário. O todo
entanto, para Adorno a racionalidade da música, ou o seu é imediatamente apreensível nos momentos individuais
caráter linguístico, tem uma “essência dupla”: como algo já disponível, sem que fosse necessário esforço

93
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102

algum para realizar as mediações entre um e outros. O princípio de estruturação diferente do princípio harmônico
universal apresenta-se emancipado de todo vínculo com o da cadência, na ótica de Adorno também se subordina a
particular, de modo que esse elemento ao qual Adorno se ela. Em relação a isto, Adorno parece ter em mente o fato
refere, que tende ao informe, ao pré-racional, fica ausente. de que a terça ascendente e a segunda descendente e,
logo adiante, o giro napolitano (c.2-3) – terça diminuta
Isto torna-se claro nos comentários de Adorno sobre descendente e segunda menor ascendente – não apenas
o Prelúdio para piano em Dó sustenido menor de permanecem circunscritos ao movimento cadencial
Rachmaninoff. Trata-se de um prelúdio constituído por determinado pelos graus melódicos do baixo como são
uma mesma cadência repetida inúmeras vezes. Adorno repetidos quase sempre idênticos. A partir do quarto
entende o movimento cadencial, dado pelas notas Lá- compasso, quando uma progressão parece levar a música
Sol#-Dó# do baixo, como uma referência à progressão para fora da tonalidade original – o que na realidade não
por graus melódicos do baixo da passacaglia3. No entanto, ocorre – as repetições melódicas se apresentam variadas,
em Rachmaninoff o único que aparece é o movimento mas tais variações são contingentes: são casos isolados
cadencial, cuja função é concluir a frase (Ex.1), mas que não constituem nenhum princípio dinâmico que
que o compositor “emancipou por completo de todo possa se opor à rigidez da cadência. Trata-se apenas de
conteúdo – de tudo o que sucede musicalmente – e o transposições, cuja referência ao modelo é claramente
lançou como mercadoria ao mercado” (ADORNO, 2006, percebida e que ocorrem duas vezes antes do retorno do
p.291). O contracanto melódico, que poderia tornar-se um motivo original, de modo que não se pode falar de um

Ex.1 – Prelúdio para piano Op.3 No2 (c.1-9) de Rachmaninoff.

94
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102.

processo de transformações, quer seja por variação, quer motivos se apresentam transpostos para outras alturas
seja por desenvolvimento. O mesmo pode-se dizer da parte sem alteração rítmica, sobre um movimento harmônico
contrastante – ou parte B – do prelúdio, cuja “soltura maior porém não suficiente para abalar a sensação do dó
virtuosística” não compensa, para Adorno, o fato de ser sustenido menor como tônica. As características mais gerais
mera repetição do contracanto, impotente como elemento da parte B são a alteração do padrão de subdivisão binária
estrutural que pudesse opor resistência à soberania do para o de subdivisão ternária, o predomínio da tônica e
movimento cadencial. O motivo de notas descendentes dos graus cadenciais e o descenso por graus conjuntos, a
do segundo compasso até a cabeça do terceiro aparece partir do compasso 35 (Ex.3), em um prolongamento da
com as mesmas notas nos compassos 14 e 15 e o motivo tônica que vai até o início da cadência, isto é, o retorno da
constituído por uma terça ascendente e uma segunda parte A. Tais características sugerem uma típica afirmação
descendente aparece de diversas formas no compasso da tônica que costuma aparecer nas grandes formas4,
16 – original, inversão, retrogradação e retrogradação da nos momentos de conclusão, antecedendo e reforçando
inversão –, tudo sobre uma harmonia estacionada na tríade a cadência final. No entanto, esta mesma cadência era o
de Dó sustenido menor, seguida pelos graus melódicos VI- único elemento que constituía a primeira parte, de modo
V-I no baixo mais uma vez, no compasso 17, no entanto que a peça inteira soa como uma conclusão sem que nela
com um II entre o VI e o V (Ex.2). Em seguida esses mesmos haja algo para ser concluído.

Ex.2 – Prelúdio para piano Op.3 No2 (c.14-17) de Rachmaninoff:


notas iniciais do contracanto sem o baixo (c.2) e início da parte B.

95
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102

Ex.3 – Prelúdio para piano Op.3 No2 (c.35-45) de Rachmaninoff.

A cadência constituída pelos graus melódicos VI-V-I – enquanto música. Se os momentos parciais soam em si
elemento idiomático comum na música romântica, que mesmos familiares aos ouvidos, isto é suficiente para
aparecia para afirmar uma tonalidade na conclusão de que ante a escuta o todo se desagregue e a música se
uma frase ou seção – se faz passar por um elemento de transforme em fetiche. Ou melhor: para que a parte se
inspiração, singular a esta música, como uma propriedade transforme ela mesma em uma totalidade autônoma,
do compositor injetada na música. A fácil assimilação imediatamente presente. Vimos que para Adorno as
dessa cadência – garantida pelo seu caráter universal melodias “profanas”, os “estímulos aos sentidos”, os
enquanto cadência – produz a impressão de existirem elementos de “superficialidade”, presentes em Haydn
qualidades sensíveis ocultas, isto é, propriedades soavam familiares aos ouvidos da época, e que no entanto
particulares do instante musical enquanto tal, e que graças ao princípio da autonomia da forma, a música
estariam para além de suas determinações sensíveis, realizava uma superação desses momentos efêmeros.
mas que são percebidas pelo ouvinte como uma Aqueles elementos completamente familiares passavam a
particularidade. O processo social descrito por Weber produzir estranhamento ao serem desenvolvidos e ligados
de racionalização harmônica do material musical – por no interior uma forma complexa, o que evidencia o poder
meio do qual os traços idiomáticos, dentre os quais a de diferenciação e ressignificação que o princípio unitário
cadência, são sedimentados na consciência musical e da forma autônoma exercia sobre materiais que em um
tornam-se assim assimiláveis – encarna-se no corpo primeiro momento soavam familiares. Esse aspecto
sensível da música e tudo se passa como se tais traços dinâmico na relação entre as partes e o todo é perdido
idiomáticos convencionais presentes nela fossem em si na música fetichizada, na qual em última instância não
mesmos musicais e inspirados. A estrutura harmônica há partes mas apenas um todo, um princípio abstrato, um
abstrata, uma vez emancipada de tudo o que pode haver clichê, um emprego de meios musicais já sedimentados e
de particular na música e de tudo o que não é cadência portanto reconhecíveis isoladamente – como por exemplo
conclusiva, é vista ela própria como uma qualidade o movimento cadencial – que, ao se apresentar como
particular. Tanto aqui como diagnóstico marxiano sobre o algo imediatamente disponível, para além de qualquer
fetichismo da mercadoria, ao qual Adorno faz referência, mediação temporal, de qualquer relação com elementos
toma-se uma coisa pela outra: toma-se o universal musicais mais particularizados, menos imediatos e
como se fosse um particular. A estrutura da música reconhecíveis, é tomado como se fosse um particular.
fetichizada reproduz esse quid pro quo: o todo migrou
para as partes e se autonomizou completamente de Tal dinâmica entre o reconhecível, o imediato, de um lado,
qualquer particularidade, ou, para mantermos os termos e o pouco reconhecível, o mediato, de difícil apreensão, de
weberianos, de qualquer “irracionalidade”: tornou-se uma outro, é uma importante questão no que toca ao conceito de
totalidade vazia, abstrata, que não obstante aparenta ser expressão musical, de modo que, por meio deste conceito,
o que há de mais pleno, concreto e disponível. poderemos apresentar o expressionismo musical como
um movimento intrinsecamente marcado pelo problema
4 – Expressão e convenção do fetichismo musical. Em um texto em que pretende
A reflexão de Adorno sobre a música nova da Segunda desfazer alguns mal-entendidos a respeito da estética
Escola de Viena é inseparável desse diagnóstico de que do sentimento, Dahlhaus aborda a questão da expressão
toda música que se insere mais ou menos comodamente apontando uma transformação pela qual este conceito
nos moldes tradicionais já não pode sobreviver passou por volta do final do século XVIII e início do XIX.

96
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102.

Até essa data, a expressão era tida como uma propriedade subjetiva e meios musicais objetivos sugere que ambos são
objetiva da música enquanto tal, sem que as emoções conceitos excludentes, que cada um deles predominaria
ou afetos expressados precisassem estar presentes nos em detrimento do outro. Assim, a realização da expressão
ouvintes, no intérprete ou no compositor. “Os movimentos se conseguiria mediante a liberação progressiva em relação
dos sons desencadeiam por simpatia os da alma (...) e a esses meios, conforme mostra Adorno:
estão sujeitos às mesmas leis que os impulsos psíquicos”.
“O que poderia realizar-se nestas condições [de dissolução da
(DAHLHAUS 2003, p.33). Portanto, a rigor, os afetos não obra autônoma] parece ilimitado. Todos os princípios seletivos
eram expressados mas sim desencadeados e provocados e restritivos da tonalidade caíram. A música tradicional devia
em virtude de uma afinidade entre os sons e a alma. Em encontrar-se nos limites de um número extremadamente
contraposição a isto, o novo conceito de expressão, isto é, limitado de combinações sonoras, especialmente no sentido
vertical. Devia defender-se continuamente contra o específico,
o conceito romântico, não afirmava mais uma “simpatia” mediante constelações do universal, que, paradoxalmente, deviam
entre os sons e os estados psíquicos, pois os afetos não apresentá-lo como idêntico ao irrepetível” (ADORNO, 2004, p.48).
eram mais desencadeados por simpatia: os sons eram
na realidade “sinais naturais” dos sentimentos. O que se Se a busca da particularização resulta no seu oposto – na
obtém nesta transformação é que, ao invés de representar convenção, na estilização da expressão por meio figuras
sentimentos exteriores a ela, a música continha os reconhecíveis – isto era atribuído ao fato de que ainda
sentimentos, isto porque o compositor registrava nela seus não se havia conseguido derrubar todas as amarras
próprios sentimentos subjetivos. De acordo com o conceito que a convenção impunha ao ato criador. Contra tais
romântico de expressão, diz Dahlhaus, a expressão não se amarras, o sujeito-compositor deveria imprimir-se na
esgota nos elementos musicais objetivos, cuja afinidade obra por meio da recusa a todo elemento convencional
com os estados psíquicos os tornava “expressivos”, mas pré-estabelecido. Entretanto, Adorno não compreende
abriria espaço para o compositor “forçar sua egoidade à a relação entre expressão e convenção nesses termos,
música” (DAHLHAUS, 2003, p.35). A expressão ganhava como se a realização da expressão dependesse de que
assim uma dimensão subjetiva, que se exprime na ideia todos os meios “seletivos” e “restritivos” da convenção
de um sujeito-compositor que visa penetrar na obra ao fossem pura e simplesmente abandonados, de modo que
afastar-se dos meios musicais catalogados e objetivados o sujeito-compositor se afirmasse contra a objetividade
rumo à singularidade. através da simples aniquilação dos elementos objetivos.

Essa distinção que Dahlhaus apresenta, a partir de uma 5 – Erwartung: Expressão como negação da
análise de fontes primárias, entre a expressão até o fim convenção
do século XVIII e a expressão romântica não parece ser
aceita por Adorno, que aproxima ambas sob o termo de Mesmo assim, é interessante determo-nos na maneira
“música expressiva ocidental”: romântica de compreender relação entre expressão e
convenção pois o conceito expressionista de expressão,
“A música ‘expressiva’ ocidental, desde princípios do século sobretudo da maneira como ele se apresenta em Erwartung,
XVII, assumiu a expressão que o compositor atribuía a suas deriva da expressão romântica. É por isso que Adorno situa
obras (...) sem que as emoções expressadas pretendessem estar
imediatamente presentes e serem reais à obra. A música dramática,
o momento de ruptura de Schoenberg expressionista não
verdadeira música ficta, ofereceu, de Monteverdi a Verdi, um como ruptura com o “exagero” da expressão romântica,
modo de expressão estilizado e ao mesmo tempo mediato, isto é, a mas como radicalização justamente desse “exagero”:
aparência da paixão”. (ADORNO, 2004, p.39).
“Entre os argumentos que quiseram deslocar o incômodo
Schoenberg para o passado do romantismo e do individualismo (...),
Não apenas Adorno identifica na música anterior ao século o mais difundido é o que o considera como ‘músico do expressivo’,
XIX essa inclinação à expressão que o próprio compositor e considera sua música como ‘exagero’ do princípio de expressão,
“atribuía a suas obras” e, consequentemente, essa relação tornado agora caduco. (...) É importante, em compensação, o
de oposição entre o sujeito-compositor e objetividade expressivo de Schoenberg desde o momento de ruptura que
remonta pelo menos às Obras para piano, opus 11, e aos Lieder
musical à qual Dahlhaus atribui importância apenas a sobre textos de George, onde se manifesta qualitativamente
partir do fim do século XVIII e início do XIX. Além disso, diferente do romântico, graças a esse ‘exagero’ do princípio da
a expressão romântica trairia, para Adorno, seu próprio expressão” [grifo meu] (ADORNO, 2004, p.39).
conceito, na medida em que a expressão subjetiva só se
realiza musicalmente por meio da “aparência da paixão”. O A transformação introduzida pela música de Schoenberg
que se obtém é menos a expressão singular de conteúdos só pode ser compreendida a partir daquilo que ela
subjetivos e mais a estilização destes conteúdos por meio conserva da música romântica: o exagero da expressão.
de temas, leitmotivs, acordes etc. que se ofereceriam como A ideia romântica de que a expressão só poderia chegar
um meio de acesso aos conteúdos mentais expressados no seu mais alto grau de realização ali onde todos os
neles, sem que seja possível estabelecer qualquer elementos convencionais caíssem por terra; de que o
continuidade entre estes e aqueles. O problema da sujeito-compositor se reconciliaria com a música ali onde
relação entre os conteúdos subjetivos e os meios musicais todas as fórmulas fossem abandonadas, seria levada a
objetivos – ainda que “fictos” – permanecia não resolvido, cabo justamente por Erwartung, que foi vista, “em termos
para além da determinação dos segundos como “sinais de história da composição”, “como a realização da ideia
naturais” dos primeiros. Essa contradição entre expressão de uma música que é atemática e não definível através de

97
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102

categorias formais” (DAHLHAUS, 1990, p.149). No entanto, Réb-Dó-Lá, tocadas no compasso 246 pelos contra-
Adorno identifica nessa radicalização da expressão uma baixos – conforme Dahlhaus indica, provavelmente
mudança qualitativa em relação à expressão romântica: por ser neles mais audível, pois aparece no registro
agudo do instrumento – mas também pela harpa,
“Nele [em Schoenberg], o único momento propriamente
subversivo é a mudança de função da expressão musical. Já não
pelos fagotes, pelo contra-fagote e pelo clarinete
se trata de paixões simuladas, mas antes de movimentos corporais baixo (Ex.4). Trata-se de um motivo, ao contrário do
do inconsciente, de shocks, de traumas, que ficam registrados no anterior, de difícil apreensão. Não obstante, Dahlhaus
meio da música. Atacam os tabus da forma já que estes submetem o considera o motivo principal fundamentalmente
tais movimentos à sua censura; racionaliza-os e os transpõe em
imagens” (ADORNO, 2004, p.40).
por duas razões, ambas relacionadas à estruturação
da música. Por um lado, ele torna possível resolver
Assim, a emancipação em relação aos elementos da um dos problemas principais com que uma análise de
tradição teria sido levada a cabo pelo procedimento Erwartung se depara:
documental, de registro de movimentos corporais, com “O problema composicional central de uma obra cuja ‘lei estrutural’,
o qual os elementos formais que na música tradicional como Adorno coloca, proíbe ‘continuidade e desenvolvimento’ é
garantiam a continuidade são aqui postos em xeque. E, ao estabelecer razões para que as seções se sucedam na ordem em
que elas se sucedem” (DAHLHAUS, 1990, p.152).
mesmo tempo, tal procedimento define o novo caráter da
expressão não mais como “paixões simuladas”, mas como
registro de shocks. No entanto, o resultado disso não é a No compasso 242, as “figuras explosivas” da orquestra
simples negação da forma e aqui começa a reviravolta: entram em contraste com a atmosfera tranquila e
introspectiva da seção que termina no compasso
“O registro sismográfico de shocks traumáticos converte-se ao anterior. Diante do problema apresentado na citação
mesmo tempo na lei técnica da forma musical. Esta lei proíbe toda acima, qual seja, o de estabelecer o nexo entre seções
continuidade e desenvolvimento. A linguagem musical se polariza
em seus extremos: atitudes de shocks e análogos estremecimentos
descontínuas, Dahlhaus aponta, em primeiro lugar,
do corpo, por um lado; e por outro expressa, vítreo, aquilo que a uma intercalagem entre uma seção e outra dada
angústia torna rígido” (ADORNO, 2004, p.42). pelo deslocamento do contraste textual em relação
ao musical, o que é de pouco interesse para nós.
O procedimento documental, de registro, define a forma Em segundo lugar, e é isto que mais nos interessa, o
musical do Schoenberg expressionista para Adorno motivo Réb-Dó-Lá mencionado adquire uma função
– sobretudo no caso de Erwartung. Os movimentos de mediação desse contraste que ocorre musicalmente
orgânicos imediatos, não censurados nem mediatizados na passagem do compasso 241 para o 242 (Ex.4). Os
por uma codificação dos sentimentos, aquilo que elementos que constituem o contraste propriamente
brota do sofrimento e da angústia enquanto tais ficam dito são a dinâmica (passa-se de um pp para um fff), o
registrados na música. O procedimento de registro volume sonoro (dado pelo aparecimento de um quase
da paixão como gesto orgânico não racionalizado se tutti orquestral no compasso 242, em oposição à leveza
contrapõe assim ao de simulação da paixão por meio do compasso anterior) e o timbre (no lugar do oboé
da associação de determinados temas, harmonias e como voz principal [Hauptstimme] no compasso 241,
passagens a determinados sentimentos, pelo qual os têm-se agora as cordas e, como uma voz secundária
sentimentos adquirem em tais temas, harmonias ou que, embora não seja indicada como tal, é bastante
passagens um caráter racional, objetivado e portanto audível, os metais). Dahlhaus mostra haver uma
mediatizado. Esta definição que Adorno faz da forma em articulação conseguida graças ao aparecimento do
Erwartung é tomada como ponto de partida na análise motivo Réb-Dó-Lá tanto no oboé – mas também na voz
que Dahlhaus realiza do monodrama, cujo objetivo e no fagote –, no compasso 241, como nos metais, no
é “tentar fazer compreensível em termos de técnica compasso seguinte (nessa voz que identificamos como
composicional aquele senso formal que Adorno definiu secundária), em sua forma original, embora transposto
exclusivamente em termos negativos, como falta de em ambos casos. Assim, “o contraste não permanece
‘continuidade e desenvolvimento’” (DAHLHAUS, 1990, sem que sejam feitas as mediações”.
p.150). Dahlhaus não nega a impossibilidade de se fazer
uma análise temática do monodrama, no entanto sua Uma das razões que leva Dahlhaus considerar o motivo
análise se volta aos elementos motívicos. Réb-Dó-Lá como o principal do trecho que toma para
analisar é, pois, sua função estrutural de mediação do
Dahlhaus compreende Erwartung como uma peça contraste mencionado. A outra razão, que possivelmente
dividida em seções, cada qual constituída por um não exclui a primeira, é a função como um dos “elementos
motivo predominante. Sua análise se detém em uma estruturais que formam a base da expressividade”
dessas seções, na qual identifica um motivo que pode (DAHLHAUS, 1990, p.150) em Erwartung. Dahlhaus não
ser facilmente apreendido como o principal: trata- faz uma simples oposição entre a expressividade e os
se do Mi-Ré#-Lá em que a voz canta “Wie kannst elementos objetivos – como a polifonia e o contraponto
du tot sein”, nos compassos 245 e 246. No entanto, – mas compreende ambos como co-dependentes: o
Dahlhaus afirma em seguida que o verdadeiro motivo contraponto, a relação contrapontística entre as várias
que estrutura a passagem é constituído pelas notas vozes, dada pela permanência de alguns elementos e

98
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102.

Ex.4 – Erwartung (c.241-246) de Schoenberg: trecho transcrito para piano e voz literalmente, ou seja, sem adaptações
nem omissões de notas ou dobramentos.

99
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102

pela variação de outros, é justamente um recurso da “(...) com o fim de entender o que Schoenberg compreendia
expressividade pois como uma ideia musical devemos lembrar que ele (...) tomava a
tonalidade, ou o significado das notas, simplesmente como meios
de apresentação e não como a substância das ideias musicais. Para
“quanto mais ‘eloquente’ é uma voz contrapontística – e Schoenberg, que insistiu enfaticamente no princípio da expressão,
quanto mais significante é o que ela tem a dizer – tanto o elemento primordial, essencial em uma ideia era seu conteúdo
mais enfaticamente ela se imprime na consciência do ouvinte expressivo ou contorno gestual; as funções tonais e conexões
inteligente como parte do discurso contrapontístico. (...) E, eram recursos definidores secundários – os meios para uma
inversamente, a expressividade de uma voz contrapontística formulação compreensível da ideia, não o núcleo da concepção
não é diminuída ao ser combinada simultaneamente com outras original” (DAHLHAUS, 1990, p.154).
vozes ‘eloquentes’; em vez disso – por meio de contraste, ao ser
posta em relevo ou em algum processo de complementação – ela
é realçada” (DAHLHAUS, 1990, p.151). No que diz respeito à expressão, a posição de Adorno – ou
pelo menos do Adorno da Filosofia da Nova Música – é mais
A base do discurso contrapontístico de Erwartung não é, severa do que a de Dahlhaus: Adorno não parece haver-
para Dahlhaus, a igualdade de vozes que caracteriza a se convencido de que a expressão tenha, em Erwartung,
textura da fuga, mas a hierarquia entre parte vocal, voz de fato realizado o desafio que a música romântica não
principal [Hauptstimme] voz secundária, [Nebenstimme] conseguira realizar, isto é, superado o congelamento da
e acompanhamento. Nesta hierarquia, os planos mais expressão em determinados meios musicais, e superado
importantes apresentam caracteres mais claros e os a essência romântica da expressão como “constelações
planos de fundo, caracteres cuja apreensão é mais do universal, que, paradoxalmente, deviam apresentá-
difícil. A expressividade se constitui, assim, conforme lo como idêntico ao irrepetível” (ADORNO, 2004, p.48).
Dahlhaus afirma na citação acima, na possibilidade de Com a liquidação de qualquer elemento temático ou
relacionar aquilo que as vozes apresentam, desde o que motívico no plano de frente, que possa ser acompanhado
salta aos ouvidos como mais claro e compreensível até os por uma escuta consciente, isto é, devido ao caráter
elementos mais escondidos, nos quais a música explode atemático da obra, tudo o que é negado na estrutura
nos momentos mais expressivos. manifesta reaparece na estrutura latente, isto é, nos
elementos estruturais não perceptíveis enquanto tais,
A análise que Dahlhaus realiza de Erwartung mostra que mas que garantem a unidade do todo. Deste modo, o
o princípio expressivo não deve ser compreendido, no pólo oposto da insubordinação às categorias formais e da
monodrama, como um princípio cuja realização depende liberação da convenção – consequência do procedimento
de que caiam por terra todos os elementos convencionais. de registro – é, como afirma Adorno, a rigidez motívica
Os momentos mais expressivos, isto é, em que os “shocks que compensa essa ausência de estruturas apreensíveis
traumáticos” são registrados, apresentam em si uma pela consciência e, deste modo, garante a inteligibilidade
unidade estrutural latente garantida pelo motivo Ré-Dó-Lá, e a consistência da obra. No entanto, quando tudo muda,
o qual aparece em diversas vozes no trecho analisado por nada pode mudar. Se no nível das estruturas conscientes
Dahlhaus, algumas vezes mais audíveis, outras menos; em não há nada que permanece estável para que o ouvinte
alguns casos melodicamente, em outros harmonicamente, possa acompanhar, no nível das estruturas latentes é
isto é, as três notas simultaneamente (Ex.4). Isto torna necessário que nada mude. Essa unidade estrutural de
possível que o gesto orgânico, pré-racional registrado que dependem os momentos mais expressivos, dada por
da mulher que não se conforma com a morte do homem uma rigidez motívica na base da expressividade, é o que
amado seja objetivado em elementos de linguagem parece levar Adorno a afirmar que, com a radicalização
musical, por meio dos quais a música “expressa, vítreo, do princípio expressivo, expressão e convenção se tocam,
aquilo que a angústia torna rígido” (ADORNO, 2004, p.42). com o qual a música torna-se inexpressiva:
“A música expressionista havia tomado com tanta exatidão o
É importante ressaltar, entretanto, que aqui o princípio princípio da expressão da música romântica tradicional que ele
expressivo coloca os meios musicais, isto é, os elementos assumiu o caráter de documento. Mas ao mesmo tempo o inverteu.
de linguagem musical que garantem a inteligibilidade A música como documento da expressão já não é ‘expressiva’. Sobre
do discurso, a serviço do gesto expressivo. Os elementos ela já não pende em vaga distância o que ao estar expressado lhe
confere o reflexo do infinito” (ADORNO, 2004, p.47).
estruturantes não são iluminados como figuras de
primeiro plano, imediatamente apreensíveis, como
ocorre, por exemplo, em relação aos temas de uma 6 – Conclusão
forma sonata, ao sujeito de uma fuga, aos leitmotifs de Se, por um lado, em uma recusa a todo esquema formal
uma ópera etc. mas permanecem num nível subterrâneo, pré-estabelecido de tratamento do material e em nome
inapreensível a não ser para aquele ouvinte que “não se da expressão pura, imediata, a música adquire a função
satisfaz em meramente registrar o fato de que coisas documental de registrar gestos orgânicos, por outro
diferentes foram sobrepostas” (DAHLHAUS, 1990, lado, esses mesmos gestos só se tornam musicalmente
p.151), mas que busca compreender a relação entre elas. consistentes devido a uma extrema rigidez motívica, e
Dahlhaus afirma em uma passagem que, no pensamento portanto estrutural. O motivo Réb-Dó-Lá permanece
musical de Schoenberg, os meios linguísticos herdados como um elemento fixo que garante a inteligibilidade
da tradição são tomados não como fins em si mesmos e consequentemente a expressividade. Isto afeta o que
mas como meios para expressar a “ideia musical”: Adorno chama, em um de seus textos, de espaço musical:

100
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102.

“A quem escuta sem preconceitos as primeiras obras da atonalidade o conteúdo do expressionismo, o sujeito absoluto não
livre (...) se impõe, se é que se pode descrever assim, o sentimento é absoluto. Em seu isolamento aparece a sociedade”.
de falta de espaço, de bidimensionalidade. Entre os shocks que
esta música lança, um dos essenciais é aquele em que a música (ADORNO, 2004, p.46).
nega ao ouvinte o ser incluído, o ser abraçado espacialmente”.
(ADORNO, 2000, p.81). Lidos a partir da questão do fetichismo seria possível
então dizer que, apesar das incomensuráveis diferenças
A essa música carente de espaço, Adorno contrapõe, em todos os aspectos, Erwartung e o Prelúdio em
entre outras, as obras tardias de Schoenberg, nas quais Dó sustenido menor de Rachmaninoff mencionado
identifica uma reflexão subjetiva sobre os materiais, acima se tocam em um ponto: na impossibilidade da
o que garante essa espacialidade. Uma das maneiras reconciliação entre subjetividade e objetividade devido
de produzir essa espacialidade é por meio de temas à totalidade da forma e sua violência sobre o sujeito.
e motivos que se repetem e, nessas repetições, se Havíamos chegado a uma formulação segundo a qual a
transformam e se distanciam cada vez mais dos estrutura da música fetichista é marcada pelo emprego
elementos iniciais, permanecendo, entretanto, a eles de elementos universais, de inteligibilidade imediata,
ligado pelos elementos mais abstratos. As repetições dispostos como se fossem elementos particulares. Assim,
são, portanto, apreensíveis conscientemente e são elas no prelúdio de Rachmaninoff, a cadência é utilizada
que, como um solo de identidade, tornam possível que não como um recurso conclusivo, uma pontuação da
os materiais iniciais se transformem e assim se renovem. forma, mas como o material mesmo de que a música
Esta ideia se aproxima do conceito schoenberguiano dispõe, como algo em si mesmo pleno de sentido. Ao
de variação em desenvolvimento, que Dahlhaus expõe apontar para o particular puro e simples, a música
no ensaio What is “developing variation” (DAHLHAUS, atinge o universal puro e simples. Adorno encontra algo
1990). Por meio dessa reflexão subjetiva sobre os semelhante a esse quid pro quo em Erwartung, a qual
temas e motivos objetivos poder-se-ía vislumbrar uma visaria um registro documental do sujeito isolado, não
superação do caráter objetivo dos elementos musicais mediatizado pelos elementos objetivos da convenção –
e uma reconciliação do sujeito com a música, não pela e é em nome disto que toma a decisão diametralmente
negação das estruturas musicais conscientes, mas por oposta da de Rachmaninoff e recusa todos os elementos
meio do trabalho subjetivo sobre elas. É justamente de inteligibilidade imediata – e não obstante se congela
esta transformação e renovação dos materiais que o no pólo oposto, no objetivismo, isto é, em não poder
procedimento documental de Erwartung impossibilita ser diferente daquilo que é. No entanto, enquanto o
ao proibir repetições temáticas ou motívicas prelúdio de Rachmaninoff oferece um asilo seguro ao
apreensíveis conscientemente. Isto torna possível sujeito, o qual se sente, como diz Berg, “romanticamente
compreender o que Adorno tem em mente ao afirmar confortável como em uma boa poltrona” (ADORNO, 2002,
que “Na relação documental com seu objeto, ela mesma p.622), em Erwartung o isolamento do sujeito destrói
[a música] se torna ‘objetiva’” (ADORNO, 2004, p.47). este mesmo sujeito, cuja essência aprece estritamente
Assim, para Adorno, ao levar às últimas consequências objetiva, como algo rígido e impermeável ao tratamento
o ideal romântico de expressão subjetiva, a música subjetivo. Erwartung pode ser considerada, entre
destrói o próprio sujeito. Ao tomar o sujeito como outras coisas, como a última realização musical da
algo pleno de conteúdo, singular, e ao tentar fixar este ideia de uma expressão buscada pela recusa dos meios
conteúdo por meio do procedimento documental, o convencionais de inteligibilidade e, com isto, pela recusa
expressionismo cai em uma armadilha da dialética, da total dos materiais fetichizados: da ideia de expressão
qual seu valor estético ou, para dizer como Adorno, seu e convenção como opostos excludentes. E nessa recusa
valor cognitivo, é inseparável: “A revirada produz-se total de materiais fetichizados, eis que surge o risco de
necessariamente. Deriva precisamente do fato de que outra forma de fetichismo.

101
FREITAS, P. C. O expressionismo de Erwartung... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.89-102

Referências
ADORNO, Theodor. Sobre la música. Ediciónes Paidós, 2000.
_________. Essays on Music. University of California Press, 2002.
_________. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004.
_________. Obra completa v. 16: Escritos Musicales I-III. Madrid: Akal, 2006.
_________. Obra completa v. 14: Disonancias / Introducción a la sociología de la música. Madrid: Akal, 2009.
DAHLHAUS, Carl. Schoenberg and the New Music. Cambridge University Press, 1990.
_________. Estética Musical. Lisboa: Edições 70, 2003.
NATTIEZ, Jean-Jacques. Tonal / Atonal. In: Enciclopédia Einaudi, v. 3. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.
SAFATLE, Vladimir. Fetichismo e mimesis na filosofia da música adorniana. In: Revista Discurso No 37. São Paulo: Alameda, 2007.
SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. São Paulo: Edusp, 1996.
WAIZBORT, Introdução. In: WEBBER, Max. Fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Edusp, 1995.
WEBER, Max. Fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Edusp, 1995.

Leitura Recomendada
ALMEIDA, Jorge de. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. O Debate sobre o expressionismo: um capítulo da história da modernidade estética.
Lukács, Bloch, Brecht, Benjamin e Adorno. São Paulo, 1991. Dissertação de Mestrado em Filosofia (FFLCH – USP)
MARX, Karl. La Mercancía. In: El Capital. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2002.

Notas
1 A emancipação da dissonância consiste, grosso modo, no uso livre de intervalos harmônicos dissonantes. Na tonalidade, os intervalos dissonantes
aparecem subordinados a consonâncias que o preparam e resolvem, enquanto os consonantes aparecem de maneira livre, sem necessidade de
preparo e resolução. Uma vez emancipada, a dissonância passa a aparecer livre da consonância, isto é, sem preparo e sem resolução, como sendo
ela mesma uma consonância. A respeito deste conceito, v. The Emancipation of the Dissonance (DAHLHAUS, 1990).
2 “O misterioso da forma de mercadoria consiste simplesmente em que esta reflete para os seres humanos os caracteres sociais de seu próprio
trabalho como caracteres sociais dos produtos do próprio trabalho, como atributos naturais e sociais destes objetos e, por conseguinte, também
a relação social dos produtores com respeito ao trabalho total como uma relação social entre objetos existente fora deles” (MARX, em O capital,
citado por ADORNO, 2009, p.25).
3 A passacaglia é um tipo de composição musical constituída por uma frase melódica no baixo que se repete um certo número de vezes e sobre
a qual as vozes mais agudas se movimentam, apresentando variações a cada repetição da frase do baixo. Esta frase é concluída através de um
movimento cadencial cada vez que é apresentada.
4 Em seu Fundamentos da Composição Musical (SCHOENBERG, 1996), Arnold Schoenberg distingue as “pequenas formas” das “grandes formas”. As
primeiras são constituídas basicamente pelo contraste entre partes e incluem desde a forma ternária mais simples, em que cada parte é uma frase
musical, até as mais complexas, como o “Minueto e Trio”, em que cada uma das três partes já é uma forma ternária simples. As segundas, que
incluem basicamente as formas “Sonata” e “Rondó-Sonata” são as que envolvem desenvolvimento e variação sobre os elementos apresentados,
e não apenas contraste. As transições, retransições, desenvolvimentos (parte B da forma sonata), e codas desenvolvidas são partes que aparecem
apenas nas grandes formas. Devido ao distanciamento tanto harmônico quanto motívico dos elementos iniciais, estas formas requerem um maior
reforço na conclusão para re-estabelecer a tônica principal.

Philippe Curimbaba Freitas é graduado em filosofia pela FFLCH – USP (São Paulo, SP) e mestrando em estética musical
pelo IA – UNESP (São Paulo, SP). Cursou composição musical na Universidad Católica Argentina (Buenos Aires, Argentina)
e na Faculdade de Artes Santa Marcelina (São Paulo, SP).

102
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114.

“Você mandou eu cantar, na mente


que eu não sabia”: estruturação formal
e camuflagem em um gênero musical
camponês do médio Jequitinhonha1
Leonardo Pires Rosse (pesquisador independente, Belo Horizonte, MG)
piresrosse@yahoo.com.br

Resumo: O paulista é um importante gênero músico-coreográfico camponês no médio Jequitinhonha (Minas Gerais).
A partir da análise formal de alguns de seus parâmetros técnicos, este artigo busca explorar mecanismos através dos
quais uma forma musical e literária pode propor um enunciado coerente e ao mesmo tempo dificultar ou restringir sua
apreensão. Esta “codificação” acontece aqui através de processos de estruturação formal de um lado, aliados a uma
particular economia de qualquer discurso analítico ou não-musical sobre a prática musical, de outro. Por fim, uma curta
comparação de caso pretende sugerir tal problema como um paradigma possivelmente pertinente a outros contextos
camponeses no Brasil.

Palavras-chave: folião; paulista; música camponesa; estruturação musical; conteúdo semântico.

“Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”: formal structuring and camouflage in a
peasant musical genre from the mid Jequitinhonha river (south-east of Brazil)

Abstract: The paulista is an important musico-choreographic peasant genre from the mid Jequitinhonha river (Minas
Gerais, south-east of Brazil). Starting with a formal analysis of some of its technical parameters, this article seeks to
explore mechanisms through which a musical and literary form can propose a coherent statement and at the same time
difficult or restrict its apprehension. This “codification” is done here through processes of formal structuring on one
hand, combined to a particular economy of any analytical or not-musical discourse about the musical practice, on the
other hand. At last, a short comparison of cases claims to suggest such problem as a paradigm possibly relevant to other
peasant contexts in Brazil.

Keywords: folião; paulista; peasant music of Brazil; musical structuring; semantic content.

1 - Introdução
O termo “foliões”, em Turmalina (Minas Gerais), designa violão e caixa), mas o investimento principal reside no
os responsáveis pela música e dança das festas em canto e nas letras cantadas. Alguns dos gêneros músico-
comunidades rurais do município. Diferentes gêneros coreográficos deste contexto são abertos à participação
músico-coreográficos fazem parte do repertório dos de todos os presentes; a performance de outros é restrita
foliões, gêneros ligados a momentos específicos dentro das aos foliões, assistidos então por um público. Em ambos os
festas, ou a festivais específicos de seu calendário. Estes casos, a música, suas letras e a dança traçam uma série
festivais estão intimamente ligados à religiosidade, onde de relações pessoais entre os foliões, entre estes e seus
a música exerce um papel importante na comunicação anfitriões, entre os anfitriões e outros convidados, entre
entre homens e santos católicos. humanos e santos, enfim, em diversas direções entre os
diferentes agentes da situação. Os foliões devem então
De um ponto de vista simplesmente musical, os foliões são dominar um sistema de códigos técnicos (musicais,
sobretudo cantores: o acompanhamento instrumental se literários, coreográficos) e de relações destes códigos a uma
faz geralmente presente (principalmente com viola caipira, forma específica de sociabilidade experimentada durante a

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 13/10/2011- Aprovado em: 23/03/2012
103
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114

prática musical. A qualidade musical é aqui indissociável responsáveis então pela animação e êxito da ocasião.
da qualidade das alianças criadas ou atualizadas entre os Em uma festa com foliões, diversos gêneros músico-
diferentes sujeitos através do próprio exercício musical. coreográficos serão “brincados” e estas “brincadeiras”,
Desta forma, erros e má qualidade de uma performance cuja execução pode ser mais ou menos virtuose, podem
podem acarretar prejuízo social, e inversamente, o sucesso integrar um número maior ou menor de participantes, e
musical constitui uma importante chave na construção de serem abertas ou não à participação de não-foliões.
uma sócio-cosmologia2.
Todos os gêneros musicais deste contexto são cantados e
A prática dos foliões está associada a uma série extensa reservam um espaço aberto à construção, em tempo real,
de regras, restrições, princípios de estruturação formal, de suas letras. Uma peça qualquer possui geralmente versos
prescrições de condução melódica das diferentes vozes, invariáveis e exclusivos, aos quais são acrescentados, em
enfim, a uma gramática musical suficientemente cada execução, diferentes versos escolhidos no próprio
complexa e sutil para ser percebida com graus diferentes instante de sua realização. Este procedimento é chamado
de apreensão entre foliões e espectadores mais ou menos “jogar verso”. De forma geral, estes versos “jogados”
cultos. Embora esta fineza perceptiva seja um objetivo não são criados durante a performance musical, mas
coletivamente partilhado, notamos a ausência quase selecionados dentro de um vasto repertório pré-existente
deliberada de todo discurso teórico ou não-musical sobre e comum a diferentes gêneros musicais.
a prática musical. O aprendizado desta gramática passa
essencialmente pela experiência da performance e de sua No contexto local, o termo “verso” é às vezes ambíguo
escuta. O vocabulário musicológico e coreográfico deste na distinção entre verso e estrofe, tal qual o entendemos
contexto é significativamente reduzido: existem poucos na teoria literária acadêmica. O último termo (“estrofe”)
termos para falar de música e vários deles são imprecisos não existe no vocabulário musicológico dos foliões de
ou polissêmicos. Estaríamos então diante de um aparente Turmalina. Proponho aqui mantermos esta terminologia,
paradoxo entre o que seria uma cultura do virtuosismo e indicando entretanto entre parênteses o sentido
um discurso teórico (analítico, abstrato, descritivo) quase específico de “verso” ou “estrofe”, quando o texto exigir
ausente. Este contraste parece apontar uma valorização este tipo de precisão. Desta maneira, utilizaremos as
da própria complexidade gramatical deste repertório. fórmulas “verso (verso)” ou “verso (estrofe)”, de acordo
com o sentido específico atribuído à palavra.
Como os camponeses de uma forma geral no Brasil, os
foliões de Turmalina e seu “público” são frequentemente O conjunto de versos que caracteriza uma determinada
associados por sua representação oficial nacional a uma peça – aqueles que lhe são exclusivos e sempre presentes
“inocência perdida” no mundo moderno industrializado, em seu interior – será chamado aqui de “estrofe
a uma “ingenuidade intelectual” e a uma “ignorância característica” de tal peça. Esta expressão é igualmente
generalizada”, devidos a um suposto “isolamento estrangeira ao vocabulário próprio ao contexto estudado,
geográfico” (cf. BRANDÃO, 1983; CANDIDO, 2003 [1964]; sendo proposta então por fins de comodidade descritiva.
MOREIRA, 2005; RODRIGUES, 2008). No extremo oposto
deste estereótipo, estes camponeses se mostrariam 3 - As Vozes
grandes intelectuais no interior de um sistema de códigos 3.1 - Sistema de condução melódica – o canto
acessíveis apenas a um número restrito de “iniciados”. restrito pela estrutura
O paulista é um gênero frequentemente apontado entre os
A partir da análise formal de alguns parâmetros técnicos
foliões como belo e, além de seu papel de divertimento, sua
de um importante gênero músico-coreográfico dos
vocação de objeto de fruição estética já foi observada alhures
foliões – o “paulista” – este artigo busca problematizar
(ROSSE, 2009a e 2009b). Ele é realizado geralmente em um
brevemente mecanismos através dos quais uma forma
ponto avançado ou pouco eufórico de uma festa, momentos
musical e literária pode propor um enunciado coerente e
onde um certo ambiente de concentração é buscado. Sua
ao mesmo tempo dificultar sua apreensão, ou restringi-
prática é reservada apenas aos foliões, e mesmo assim, aos
la. Esta “codificação” seria feita, como veremos, através
foliões experientes. Da mesma forma, sua escuta parece ser
de procedimentos de estruturação formal de um lado,
buscada sobretudo por um público mais experiente, capaz
aliados a uma particular economia de qualquer discurso
de compreendê-lo de forma apropriada.
analítico ou não-musical sobre a prática musical, de
outro. Por fim, uma curta comparação de caso pretende
Utiliza-se aqui um sistema de condução melódica das
sugerir tal problema como um paradigma possivelmente
vozes comum também a outros gêneros cantados pelos
pertinente a outros contextos camponeses no Brasil.
foliões. Trata-se de um sistema a quatro vozes, chamadas
“primeira”, “segunda”, “contrato” e “requinta”. É o folião
2 - Algumas considerações preliminares que canta a primeira quem escolhe a peça que será
Em Turmalina, ou nos bairros rurais vizinhos, é frequente cantada e os versos que serão jogados durante a mesma.
que as festas comunitárias ou privadas recebam os Estas decisões são normalmente comunicadas aos
foliões como convidados de honra. Como mencionamos outros cantores exclusivamente através da performance,
acima, estes são especialistas de música e dança, grandes em tempo real: o folião que “dá” a primeira começa a

104
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114.

cantar uma peça qualquer e o resto do grupo o segue Como as frases neste contexto musical são geralmente
instantaneamente. apoiadas sobre as funções harmônicas de tônica,
dominante, ou subdominante, as notas de base da linha do
Também em um nível melódico a linha cantada pela contrato constituem sempre a quinta ou a fundamental
primeira é uma referência indispensável para a condução destes acordes. Geralmente se a função harmônica é de
das outras três partes. A composição destas é pensada tônica, a primeira canta a terça ou a quinta do acorde.
sempre em relação à melodia reproduzida pela primeira, O contrato cantará nestes casos sua quinta ou sua
a qual vamos chamar aqui, justamente por esta razão, fundamental (ou seja: ou o quinto, ou o primeiro grau
de “melodia principal”. Esta melodia principal é a única da escala). Quando a função é de dominante, a primeira
linha eventualmente isolada das outras, cantada à vezes canta a terça, a quinta, ou às vezes a sétima do acorde,
individualmente para indicar uma peça fora de seu sobre as quais o contrato cantará a fundamental (quinto
contexto de performance. grau da escala). Se a função for de subdominante, a
primeira cantará a terça do acorde, o contrato cantará
Além da primeira, não se pensa tampouco em memorizar sua quinta (primeiro grau da escala).
partes ou melodias específicas, mas sim em desenvolver
a habilidade de decodificar uma melodia principal Entre estas notas de base do contrato, é comum que o
qualquer, e de colocar outra voz em relação a ela. Um “contrateiro” (cantor do contrato) respire, marcando uma
folião pode nunca ter ouvido uma peça e ser entretanto ligeira pausa, ou que ele cante ornamentos e notas de
capaz de acompanhá-la sem problemas. Este é inclusive passagem. Esta linha constrói um tipo de heterofonia
um exemplo bem concreto de uma situação bastante rítmica em relação à melodia principal, uma pequena
frequente. Mais do que aprender peças particulares, variação que suprime algumas notas, alonga durações,
o cantor deve aprender a dominar um sistema de distorce ligeiramente figuras rítmicas.
condução melódica.
A requinta entra ainda depois do contrato, e quando
Como sabemos é sempre a pessoa que canta a primeira este para em respirações, ela para também, só voltando
quem começa o canto. Ela cantará então uma melodia depois que ele volta. Em geral, o “requinteiro” (cantor da
determinada, obrigatoriamente memorizada a priori. requinta) não deve começar a cantar antes que todas as
A segunda começa a cantar logo em seguida, algumas outras três vozes já estejam soando. A requinta mantém
notas após. Ela segue basicamente uma linha melódica basicamente o intervalo harmônico de uma oitava
paralela à primeira, num intervalo harmônico de uma acima da segunda, ou seja, uma sexta diatônica acima
terça diatônica abaixo desta. da primeira, guardando algumas notas mais longas em
relação a estas vozes, e alguns pequenos portamentos
O contrato entra um pouco depois da segunda. Mesmo descendentes em fins de frases.
a partir de sua entrada, ele não canta exatamente o
mesmo número de notas que a primeira e a segunda, Tomemos como exemplo a melodia seguinte, apresentada
nem em total homofonia ou paralelismo. Sua linha é no Ex.1, cantada pela primeira sobre os quatro primeiros
formada de durações mais longas e baseada em duas versos (versos) de uma peça de paulista (sobre a qual
alturas principais: o primeiro e o quinto graus da escala voltaremos mais tarde):
diatônica, sempre numa mesma oitava, entre as notas da
melodia principal e da requinta, a voz mais aguda dentre Esta melodia poderia ser resolvida por quatro foliões da
as quatro, que veremos mais adiante. seguinte maneira, como nos mostra o Ex.2:

Ex.1 - Trecho de melodia cantada pela primeira em uma peça de paulista.

105
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114

Ex.2 - Trecho anterior cantado a quatro vozes.

Se por um lado podemos entender a linha melódica com um pouco menos de intensidade que a primeira, mas
cantada pela primeira como um tipo de resumo de todas as duas vozes mantêm um volume relativamente regular,
as outras partes, um texto onde encerram-se todos os sem variações significativas de amplitude.
elementos necessários para que um folião experiente
possa conceber as outras três linhas, por outro lado, O contrateiro canta ainda dentro do primeiro registro,
devemos ter em mente que, sem a primeira, ou sem a mas suas notas aproximam-se mais do limite agudo
habilidade necessária para decodificá-la, não há canto deste mecanismo. Nesta parte aguda, a tensão interna
viável. Poderíamos pensar aqui em um sistema de restrição nas cordas vocais é maior e o timbre é consideravelmente
do canto, reservado neste caso aos cantores experientes, diferente da parte grave do mesmo registro, um dos
condicionado à presença sine qua non da voz primeira. motivos pelos quais esta parte aguda da voz de peito
é por vezes assimilada a outro registro, chamado
frequentemente “voz de cabeça” (LEOTHAUD, 2004-
3.2 - Registros vocais, intensidade sonora e
2005, p.41-42). A linha do contrato possui em geral
dicção – a letra dissolvida na melodia mais variações de dinâmica que a primeira e a segunda.
Dois outros parâmetros são muito significativos na distinção Ela faz crescendos em notas de entrada e suas notas de
de cada parte vocal em relação à primeira: a maneira em que fim de frase são enfraquecidas em direção à pausa. As
seus cantores pronunciam as palavras das letras; os registros passagens de maior amplitude são um pouco mais fortes
vocais utilizados e a intensidade de cada parte. que a intensidade geral da linha da primeira. Assim como
sua liberdade em relação à rítmica da melodia principal, o
A primeira e a segunda utilizam o mesmo registro laríngeo: contrato tem certa liberdade quanto à execução da letra
a voz de peito, ou “Mecanismo I”, para adotarmos a de uma peça. Além de omitir algumas sílabas e palavras,
terminologia proposta pelo Laboratoire d’Acoustique sua dicção é menos clara que a da primeira. Algumas
Musicale do CNRS – Centre National de la Recherche sílabas são categoricamente substituídas por vocalizes.
Scientifique3. As duas partes articulam também igualmente
bem os fonemas das palavras, cantando um texto claro, Os requinteiros utilizam voz de falsete (“Mecanismo II”),
totalmente inteligível. A segunda normalmente canta num timbre menos rico em harmônicos que a voz de peito.

106
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114.

Eles fazem um pouco mais de variação de intensidade que Mas enquanto estas características colaboram na
a linha do contrato, com crescendos e decrescendos ainda distinção entre as diferentes partes cantadas, elas
mais acentuados em notas longas de início e fim de cada dificultam consideravelmente, por outro lado, a
intervenção. Sem dúvida, a requinta é a parte que menos apreensão da letra veiculada por estas vozes. Os vocalizes
pronuncia os fonemas das letras. Versos inteiros são do contrato e principalmente da requinta, cantados com
“traduzidos” em vocalizes, apenas algumas palavras (isso grande amplitude e com ataques ligeiramente defasados
varia um pouco de cantor para cantor) restam inteligíveis. em relação às linhas da primeira e da segunda, mascaram
absolutamente a letra articulada por estas vozes em vários
Diversos então são os parâmetros que diferenciam cada momentos das peças. A disposição física dos cantores e do
parte vocal. Elas são produzidas em regiões diferentes do público apoia ainda frequentemente esta empreitada. Não
espaço das alturas; elas começam a soar em momentos teremos espaço para tratar da composição coreográfica
diferentes, segundo uma ordem previsível; têm timbres do paulista e da disposição física de seus quatro cantores,
particulares; são cantadas com intensidades diferentes; mas ressalto apenas que estes se deslocam em alguns
e com pronúncias específicas das letras. Existe enfim momentos do canto, e que este deslocamento sempre
uma grande transparência entre cada parte vocal parte e chega a uma configuração onde os foliões que
executada por cada folião: podemos bem distingui- cantam a primeira e a segunda encontram-se paralelos e
las auditivamente. Aliás, alguns parâmetros chamam a de frente ao contrato e a requinta, estes também paralelos
atenção do ouvinte a diferentes partes em momentos entre si. Estas duas “duplas” se dispõem aqui como se
diferentes da performance, como à entrada de uma delas, ocupassem cada uma um lado oposto de um quadrado.
ou em notas fortes de outra. O ouvinte pode mesmo por Elas cantam basicamente de frente uma para a outra
um momento não escutar com clareza alguma das vozes, e de lado ou de costas para o público. A cada vez que
dependendo da disposição física de seu cantor em relação se movimentam, elas trocam de lado e o público escuta
aos outros, ou da movimentação dos foliões durante uma com maior proximidade ora a primeira e a segunda, ora o
dança, mas dificilmente ele vai confundir vozes diferentes contrato e a requinta. O Ex.3 ilustra um destes momentos
que soam ao mesmo tempo. de movimentação dos foliões durante um paulista.

Ex.3 - Quatro foliões brincam um paulista. O senhor de camisa xadrez canta a primeira. O que toca violão canta a
segunda. Eles estão de frente para o fotógrafo. O senhor com um chapéu de feltro e o outro que também está de
costas cantam respectivamente o contrato e a requinta. O público se dispõe aos cantos do cômodo.

107
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114

4 - Procedimentos de estruturação formal – Embarquei no trem de ferro


o conteúdo velado pela forma Às onze e meia do dia
(3)
Também chamado de “quatro”, o paulista é executado por Embarquei no trem de ferro
quatro foliões que alternam ciclicamente seções musicais Às onze e meia do dia
cantadas a cappella a uma seção instrumental composta
de sapateado, palmas e violão. Como um tipo de interlúdio, (seção instrumental) (X)
esta seção instrumental é sempre retomada da mesma Menininha adeus adeus
forma, sob o mesmo texto musical, tanto dentro de uma Cá eu volto outro dia
peça, quanto entre diferentes peças. Contudo, ela não é (4)
Adeus Maria Cocota
alvo de uma execução rígida, estrita, ou rigorosamente Adeus Cocota Maria
fiel a um texto original, mas aberta a pequenas variações
de uma performance a outra, aliás como todo o corpus (seção instrumental) (X)
musical dos foliões de Turmalina.
Não apenas nesta peça, mas de forma geral em todas as
Esta seção tem uma métrica regular e marcada. Os peças de paulista, as seções 1, 2 e 4 possuem o mesmo
diferentes trechos cantados de diferentes peças, em texto musical. Não se trata de um único trecho melódico
oposição, obedecem a um tempo musical não mensurado, comum a peças diferentes (como a seção instrumental),
a uma rítmica relativamente lenta e rubato, muito mas de melodias específicas a cada peça, dentro das
sujeita a variações que se aproximam mais ou menos de quais ocupam igualmente as seções 1, 2 e 4. Desta forma,
um andamento regular, e a diferenças muito fluidas ou nestas seções o canto é estrófico.
inexistentes entre tempos fortes e fracos.
Na maior parte das vezes uma peça de paulista Poderíamos transcrever musicalmente esta peça como
é organizada em quatro seções cantadas, sempre no Ex.4, onde os primeiros três sistemas de cada página
introduzidas, intercaladas e finalizadas pela seção constituem a seção X; o quarto e quinto sistemas da
instrumental. Argumentam os foliões que qualquer peça primeira página constituem as seções 1, 2 e 4; e o último
pode ser executada também em duas ou três seções sistema a seção 3.
cantadas. Neste caso, a mesma letra que pode ser dividida
em quatro seções, é disposta em duas ou três, mas não As seções estróficas (1, 2 e 4) são terminadas sempre
reduzida. Não se muda tampouco a ordem em que são por um bordão, tanto da letra quanto da melodia. Como
apresentados os versos desta letra, nem a melodia sobre a veremos, este bordão é formado pelos dois últimos versos
qual são cantados, mas apenas o maior ou menor número (versos) do verso (estrofe) que caracteriza esta peça, aquele
de interseções instrumentais que os divide. No entanto, ao que lhe é exclusivo e sempre presente em seu interior. As
menos atualmente, vemos apenas raramente realizações seções 1 e 2 são iniciadas por um verso (estrofe) jogado,
de paulistas em três seções cantadas, as execuções em composto de quatro versos (versos): os dois primeiros são
quatro seções sendo de longe as mais frequentes. cantados ao início da seção 1 e os dois últimos ao início
da seção 2, o que faz com que estas duas metades sejam
Tomemos como exemplo, para nossa análise, uma versão cantadas sobre o mesmo trecho musical. No exemplo
em quatro partes cantadas de um paulista, brincada na acima, cantou-se “Você mandou eu cantar / Na mente que
manhã de um domingo em junho de 2006, na sala de eu não sabia” sobre as duas primeiras frases musicais da
entrada de uma casa em Turmalina. A letra das quatro seção 1; e “Mas eu chamo quebra-asa / Da meia-noite pro
seções cantadas nesta peça é reproduzida abaixo, na dia” sobre as duas primeiras frases musicais de 2.
ordem do canto. Levando em consideração esta ordem, e
para facilitar a descrição da peça, proponho chamarmos Estes versos jogados não têm, em princípio, nenhuma relação
tais seções de 1, 2, 3 e 4, e a seção instrumental de X. semântica de complementaridade com o bordão. Aliás, esta
é uma vocação geral de versos jogados: uma mesma estrofe
(seção instrumental) (X) pode ser utilizada em diferentes peças, ou estrofes diferentes
em diferentes execuções de uma mesma peça.
Você mandou eu cantar
Na mente que eu não sabia A seção 3 de um paulista é a única das seções cantadas
(1)
Adeus Maria Cocota onde o texto musical é diferente, mesmo que por vezes
Adeus Cocota Maria (como neste exemplo) ele seja um resumo das outras
seções, composto exclusivamente de excertos do texto
(seção instrumental) (X)
musical destas. Aqui são apresentados e repetidos os dois
Mas eu chamo quebra-asa primeiros versos (versos) da estrofe característica da peça.
Da meia-noite pro dia
(2) Na seção 4 são cantados os últimos quatro versos
Adeus Maria Cocota
Adeus Cocota Maria (versos) dos seis versos (versos) que compõem a estrofe
característica da peça, sendo que os dois últimos já haviam
(seção instrumental) (X) sido apresentados desde a seção 1: eles são o bordão.

108
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114.

Ex.4 - Transcrição de um paulista.

109
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114

Ex. 4-2

Ou seja, a letra que caracteriza a peça é composta por sentido era obscuro no início da peça, não apenas ganha
uma estrofe de seis versos (versos). Os dois últimos destes sentido costurado ao resto do texto, mas fecha a seção 4
versos são os primeiros a serem apresentados, dentro da como uma conclusão, como um arremate que diz: “agora
seção 1, e retomados na seção 2. Na seção 3, o primeiro você entende o que querem dizer estas palavras, repetidas
e segundo versos da estrofe característica são cantados misteriosamente deste o início do canto”.
seguidamente duas vezes. O terceiro e quarto versos
vão ser apresentados na seção 4, seguidos do quinto Poderíamos resumir a estrofe característica desta peça
e sexto versos. Até a seção 4, não se tem elementos como:
suficientemente claros para se fazer a ligação entre os Embarquei no trem de ferro
versos já apresentados (entre o primeiro e o segundo Às onze e meia do dia
de um lado, e o quinto e o sexto de outro). Só com a Menininha adeus adeus
exposição do terceiro e quarto versos é que teremos Cá eu volto outro dia
todos os elementos necessários para a correspondência Adeus Maria Cocota
semântica entre todos os versos, para a construção da Adeus Cocota Maria
estrofe completa, em seu sentido pleno. O bordão, cujo

110
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114.

Um adeus, melancólico, certamente entre um casal de apresentar seus elementos. Trata-se da proposta quase
namorados. O rapaz partiu no trem das onze e meia deliberada de um enigma, de um desafio de percepção.
despedindo-se de Maria Cocota e prometendo voltar.
Paralela a esta estrofe exclusiva desta peça, apresenta- Normalmente, os versos (versos) pares da estrofe
se outra, o “verso jogado”, cujo sentido só pode ser característica de um paulista rimam entre si. Na execução
igualmente deduzido na junção de fragmentos de apresentada acima, os versos (versos) pares do verso
diferentes seções musicais. Trata-se de uma estrutura (estrofe) que foi jogado rimam também com os versos
literária que embora aconteça no tempo, exige uma (versos) pares da estrofe característica da peça (sabia, dia,
leitura não-linear, ou também não-linear, além de dia, dia, Maria). Mas raramente são jogados versos que
fragmentada e polifônica. rimam com o resto do texto. E nos casos mais numerosos,
os bordões só vão rimar com o segundo verso da seção 3,
Se resumirmos a “melodia característica” desta peça, entre seções diferentes, e com o segundo verso da seção 4,
a melodia principal colada a sua estrofe característica dentro de uma mesma seção. Estas rimas nos assinalariam
(transcrita abaixo, no Ex.5), veremos que também sua então os versos da estrofe característica, elas marcariam
exposição exige uma leitura fragmentada. As frases uma unidade entre estes e uma diferença em relação ao
musicais coladas ao primeiro e segundo versos são verso jogado. Mas além da grande distância guardada
respectivamente as mesmas do terceiro e sexto versos. entre estas rimas, os foliões preenchem ainda notas
Poderíamos supor que se trata de um só texto musical, longas de fim de frase com pequenas palavras cantadas,
apresentado de forma resumida ou fragmentada num palavras sem conteúdo semântico tais como: “aiai”, “lelê”,
momento (primeiro sistema abaixo), e desenvolvida “ei”, “ê”, “lalá”. Estas palavras marcam então o fim de
ou integral em outro (segundo e terceiro sistemas). quase todos os versos (versos) das peças, dissolvendo ou
Nota-se também neste caso a analogia estrutural sabotando eventuais rimas entre estes.
entre as frases musicais coladas ao quarto e quinto
versos (versos), no plano melódico, e os versos terceiro Em todas as peças de paulista que escutei, uma mesma
e quarto em si, no plano das letras: ambos pares ligam frase musical é colada ao segundo e ao último verso da
duas extremidades de um conteúdo. estrofe característica. Ou seja, na ordem em que são
cantadas, a última frase musical de cada seção cantada.
A composição é aqui um jogo que parte de elementos É um bordão musical colado à metade do bordão da letra
dispersos, reunidos gradativamente numa unidade. Ela nas seções 1, 2 e 4 e independente deste na seção 3. Ela
propõe um enunciado coerente e inteiro e ao mesmo afirma o bordão da letra em 1, 2 e 4 e trai o ouvido em
tempo dificulta sua apreensão, através de várias 3, insinuando o status de bordão ao que na verdade é o
pequenas táticas formais, através da própria forma de segundo verso (verso) da estrofe característica.

Ex.5 - “Melodia característica” do paulista analisado: a melodia principal colada a sua estrofe característica.

111
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114

A primeira e segunda frases musicais de 1, 2 e 4 nos traem partes vocais, nem discurso sobre a organização harmônica
da mesma forma. Em 1 e 2 estas frases musicais são destas. Mesmo se considerarmos a prática musical em si,
relacionadas a versos jogados; em 4 elas nos surpreendem, veremos que ela se baseia no exercício musical integral.
coladas a versos da estrofe característica. Acentua esta Isto é, não se costumam isolar parâmetros ou partes,
confusão a discrição reservada à apresentação destes mesmo para um ensaio ou um processo de treinamento.
versos. Trata-se do terceiro e quarto versos da estrofe Tampouco são utilizadas representações visuais ou táteis
característica, cuja importância para a completude da para o aprendizado técnico, como no aprendizado de
estrofe já foi evocada. No entanto, é o único par de instrumentos musicais não apenas em sistemas musicais
versos da estrofe característica cantado uma só vez baseados na escrita, mas também em diversos sistemas
a cada execução, assim como os dois pares do verso musicais de tradição oral, onde movimentos de dedos,
jogado. Os dois primeiros versos da estrofe característica posições e gestos corporais e instrumentais são descritos
são cantados duas vezes na seção 3. Os dois últimos são e relacionados a sons musicais. Enfim, não há aqui um
cantados três vezes, ao fim de 1, 2 e 4. sistema expressivo de metáforas para sons musicais ou
para sua organização, embora como temos visto, trate-
5 - Discurso e análise musicológicos se de uma música bastante sistematizada, e de uma
sistematização bastante estrita.
Diversos são então os procedimentos técnicos que
restringem a apreensão do conteúdo semântico da letra.
A total compreensão do canto estaria aqui reservada a 6 - Cantiga de roça e considerações finais
um número restrito de ouvintes, e mesmo de cantores.
Proponho agora um breve desvio por um outro gênero
É frequente, por exemplo, que um folião seja capaz
musical relacionado aos foliões, para em seguida voltar
de cantar uma peça seguindo outros colegas mais
ao paulista e concluir nosso texto. Trata-se da “cantiga de
experientes, sem ter entretanto uma consciência muito
roça”, também chamada “canto de capina”, “mutirão” ou
precisa do conteúdo do que está sendo cantado. Aliás,
ainda “reúna”, uma música muito importante na região
outros autores já observaram situações semelhantes
até o início dos anos 1970, mas atualmente em desuso.
em contextos musicais não muito distantes. KIMO, por
Este gênero exclusivamente vocal embalava mutirões de
exemplo, o ressalta em um grupo de foliões em Montes
trabalho na roça. “Mutirão” era um sistema de trabalho
Claros (Minas Gerais). Ao perguntar ao Mestre Joaquim
coletivo e de troca de mão-de-obra baseado em relações
Poló, o principal folião deste grupo, se um outro membro
de reciprocidade e comunitarismo muito corrente no
do “terno” conhecia um determinado verso cantado
médio Jequitinhonha, até aproximadamente os anos
frequentemente, o autor obteve a seguinte resposta:
1970. Sitiantes vizinhos aliavam-se para campanhas de
“Não. Só compade Sula. Ele segue Sula. Compade Sula fala pra trabalho agrícola que exigiam mão-de-obra numerosa,
ele o verso. Mas na hora que o verso entrou, que ele falou, aquele reunindo-se consecutivamente na roça de cada um
verso que entrou na cabeça, que ele acabô de falar, aquele verso, dos envolvidos, até que todos tivessem sua solicitação
você pode perguntá pra ele que ele não sabe o quê que é. Dinzão
(Dim) canta comigo. Depois de terminar de cantar o verso, você
satisfeita e proporcionalmente retribuída. Sempre
pergunta ele o quê que é, que ele não sabe. Vai passar saber daqui que havia alguns foliões entre os companheiros que
a uns tempos né”. (2006, p.41).” trabalhavam, e a narrativa do grupo de Turmalina relata
que sempre os havia, as cantigas de roça eram entoadas
Mas além dos mecanismos formais que contribuem à durante o trabalho, revezadas entre conjuntos de quatro
restrição da apreensão musical, uma grande economia trabalhadores/cantores durante toda a jornada.
no que concerne qualquer forma de discurso não-musical
sobre a música apoia também de forma importante Dentro das campanhas de mutirão, ao fim de cada dia
este regime de escuta. O sistema musical dos foliões de trabalho, o anfitrião do dia oferecia uma festa em sua
parece reservar seu espaço central à prática musical em residência, onde se reuniam os trabalhadores e também
si, à ação musical, em detrimento de qualquer tipo de suas famílias nucleares. Além de um sistema de cooperação
representação. Toda a instrução musical de um folião, vicinal, o mutirão representava sistematicamente um tipo
por exemplo, passa pela observação e imitação, processos de festival comunitário, um período que podia se estender
que priorizam a experiência musical em sua forma mais por mais de uma semana, onde os dias eram marcados
concreta, em despeito de abstrações ou de sistemas de pelo trabalho coletivo dos homens e pelas cantigas
teorização. É bastante reduzido, inclusive, o vocabulário de roça, e as noites preenchidas de festas, com outros
musicológico descritivo ou analítico dos foliões. Além da gêneros musicais4.
classificação dos gêneros musicais, das partes vocais e
de algumas noções como “jogar verso”, poucos termos Durante minhas estadias em Turmalina, tive a
são empregados para se referir a aspectos, parâmetros oportunidade de escutar alguns poucos cantos de capina,
ou processos de composição musical ou poética. Assim apresentados fora de contexto por alguns foliões, apenas
como a palavra “verso”, há alguns termos de significado como uma forma de me explicarem como aconteciam
polissêmico ou impreciso, empregados com acepções estes cantos durante o trabalho na roça, algumas décadas
diferentes e imprecisas segundo seus contextos de atrás. Esta audição superficial sempre me causou a
utilização. Não há tampouco qualquer discurso que teorize impressão de grande semelhança estilística entre este
a sistematização da condução melódica das diferentes gênero e o paulista. De fato, em várias outras ocasiões

112
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114.

alguns foliões me explicaram que estes dois gêneros são desafio, o jogo de dedução, de solução de uma charada,
muito próximos. Com exceção das seções instrumentais independente das informações nela contidas.
e de movimentos coreográficos, inexistentes no canto
de capina, a estruturação formal deste e do paulista No canto de capina ou no paulista de Turmalina, as letras
é a mesma. Há inclusive peças de canto de capina não giram em torno de uma charada, ou de um problema
correntemente cantadas como paulistas, bem como havia deliberadamente proposto, tampouco original (todos
o inverso, quando as primeiras eram ainda praticadas. podem conhecer de antemão as peças que são cantadas).
A adaptação nestes casos é muito simples, bastando No entanto, um certo enigma é proposto, como sugeri
acrescentar ou suprimir a dança e as seções instrumentais acima, na apresentação de versos parcialmente velados
das peças. Há ainda peças indicadas duplamente como pela forma de cantar, fragmentados e embaralhados,
paulistas e cantos de capina. acumulados durante o canto até formarem um sentido de
conjunto, completado ao fim da peça. Mas se este “sentido”
BRANDÃO (1983, p.82-91) descreveu um mutirão no pode ser deduzido a partir de elementos apresentados
município de São Luís do Paraitinga (São Paulo), cuja dentro da própria peça, esta trabalha também em sentido
dinâmica parece muito semelhante aos mutirões de contrário, em camuflar esta coerência, restrita então a
Turmalina: o dia marcado pelo trabalho coletivo na roça, um número reduzido de companheiros, experientes o
embalado por cantos de trabalho, chamados de “brão” suficiente para conseguirem deduzi-la. Aliás, muitos são
em São Luís do Paraitinga; e a noite por uma festa na não apenas os ouvintes e foliões que não enxergam a
casa do anfitrião, o “patrão” do dia. Nestes brãos, duplas resolução deste “enigma”, mas os que não enxergam nem
de trabalhadores/cantores se revezavam no canto de mesmo sua existência. Talvez a própria proposta deste
versos de saudação e de versos enigmáticos (chamados enigma se faça através de um enigma.
“linhas”), charadas cujas resoluções eram buscadas pelos
outros companheiros de trabalho durante toda a jornada. O conteúdo semântico das letras é, no paulista como em
Ao longo do dia, as duplas ofereciam ou solicitavam outros gêneros dos foliões, um elemento de importância
através do canto, a cada alternância, novos elementos central da composição. Ele não representa apenas um
para a solução dos enigmas, acumulando pouco a pouco enunciado poético, livre e impessoal: as letras se inserem
condições cada vez maiores para as resoluções dos constantemente em trocas de gentileza, de brincadeiras
problemas. Companheiros que conseguissem decifrá-los e de reconhecimentos entre cantores e público, se
apresentavam a resposta também através do canto. Ao conectando a diversos eventos extra-musicais das
fim do dia de trabalho, caso ninguém tivesse conseguido ocasiões5. Mas, além deste papel dialógico mais direto,
resolver o enigma proposto por uma dupla, os próprios as letras cantadas pelos foliões parecem desempenhar
cantores o revelariam fora de contexto musical, como um outro tipo importante de comunicação, que depende
um dos assuntos das conversas entre os companheiros. apenas indiretamente de um conteúdo semântico
Um certo prestígio parecia ser alcançado seja por quem específico. Todas as nuanças presentes na composição
foi capaz de resolver um enigma, seja pelos cantores de um paulista nos mostram que, qualquer que seja o
que conseguiram sustentá-lo insolúvel até o fim do significado de um conteúdo semântico (e paralelamente
dia. O principal interesse deste exercício parece ser o a ele), compreendê-lo, já é em si um fim comunicacional.

113
ROSSE, L. P. “Você mandou eu cantar, na mente que eu não sabia”... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.103-114

Referências
BRANDÃO, Carlos R. Os Caipiras de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida.
São Paulo: Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2003 [1964].
CASTELLENGO, Michèle. Les deux principaux mécanismes de production de la voix humaine, leur étendue et leur utilisation
musicale. Ext. du colloque La voix dans tous ses éclats. Paris: Centre Pompidou, 1986.
CASTELLENGO, Michèle. Continuité, rupture, ornementation, ou les bons usages de la transition entre deux modes
d’émission vocale. La voix et les techniques vocales - Cahiers de musiques traditionnelles 4, p.155-165. Genève:
Ateliers d’ethnomusicologie, 1991.
CASTELLENGO, M.; ROUBEAU, B. Revision of the notion of voice register. XIX° International CoMeT Congress. Utrecht,
1993.
CASTELLENGO, M.; ROUBEAU, B. Voice Range Profile in relationship to laryngeal vibratory mechanisms. International
CoMeT Congress. Paris, 1997.
KIMO, Igor J. Música, Ritual e Devoção no Terno de Folia de Reis do Mestre Joaquim Poló. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
Dissertação de Mestrado em Música.
LÉOTHAUD, Gilles. Théorie de la Phonation. Paris: Université Paris Sorbonne – Paris IV, 2004-2005. Cours de DEUG 2ème
année. Disponível em: <http://www.paris4.sorbonne.fr/e-cursus/texte/CEC/Gleothaud/leothaud.htm>. Acesso em: 26
mar. 2009
MARCHI, L.; SAENGER, J.; CORRÊA, R. Tocadores – homem, terra, música e cordas. Curitiba: Olaria, 2002.
MOREIRA, Roberto J. Ruralidades e globalizações: ensaiando uma interpretação. In: R. J. Moreira (org.), Identidades
Sociais – Ruralidades no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p.15-40.
RODRIGUES, Davidson de O. Jeca Tatu e os dilemas da modernização rural no Brasil. In: E. L. Borges (org.), Campo e Cidade
na Modernidade Brasileira. Belo Horizonte: ARGUMENTUM, 2008, p.13-40.
ROSSE, Leonardo P. Folia, Musique et Sociabilité à Turmalina (Brésil). Saint-Denis: Université Paris 8, 2009a. Dissertação
de Master II em Etnomusicologia.
________________. Eu agora estou ciente que meus companheiros é bom – Folia, Música e Sociabilidade em Turmalina.
Brasília: Domínio Público, 2009b. Tradução e adaptação da dissertação Folia, Musique et Sociabilité à Turmalina
(Brésil). Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_
obra=165983>. Acesso em: 01 set. 2010.

Notas
1 Este artigo é uma reelaboração de ideias ensaiadas inicialmente em minha dissertação de Master II (ver Rosse 2009a). Tento retomar aqui parte
da descrição original, desdobrando-a em uma análise e problematização mais estritas e aprofundadas.
2 Propus em outros trabalhos uma análise sociológica de diferentes agentes ligados à prática musical dos foliões de Turmalina (ROSSE, 2009a e
2009b). Neste quadro, foram observadas diferentes formas em que a música articula termos de uma relação interpessoal.
3 Ver por exemplo CASTELLENGO (1986 e 1991); e Castellengo & Roubeau (1993 e 1997).
4 Sistemas de mutirão camponês muito semelhantes são descritos por alguns autores em diferentes estados do Brasil. Ver por exemplo: BATISTA
(in MARCHI et al. 2002, p.265-268); BRANDÃO (1983, p.78-91); CANDIDO (2003 [1964], p.87-94); COSTA (in MARCHI et al. 2002, p.277-279);
PEREIRA, P. (in MARCHI et al. 2002, p.288-289); PEREIRA, J. (in MARCHI et al. 2002, p.297); PEREIRA, A. (in MARCHI et al. 2002, p.300-301).
5 Este papel dialógico das letras cantadas pelos foliões em Turmalina foi razoavelmente demonstrado em outros trabalhos (ROSSE, 2009a e 2009b).

Leonardo Pires Rosse é Bacharel em Composição pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003) e Mestre em
Etnomusicologia pela Universidade Paris 8, Vincennes – Saint-Denis (França) (2009), onde defendeu a dissertação
intitulada Folia, Musique et Sociabilité à Turmalina (Brésil) [Folia, Música e Sociabilidade em Turmalina (Brasil)], sob a
orientação de Rosalia Martinez.

114
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

O Piano Complementar na formação


acadêmica: concepções pedagógicas e
perspectivas de interdisciplinaridade
Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte)
marinez@musica.ufmg.br

Resumo: Estudo sobre fundamentos para que a abordagem interdisciplinar do Piano Complementar possa promover a
integração entre domínios diversos da formação acadêmica, no bacharelado e na licenciatura. São discutidas as vantagens
da articulação pedagógica entre a apreciação, a performance e a criação, com a contextualização de aspectos inerentes
ao ensino e ao desenvolvimento musical. As particularidades dos diversos perfis dos alunos da graduação, bem como suas
necessidades e semelhanças, são subsídios para observações sobre a interface entre as disciplinas, a compreensão musical
e conexões entre a prática no instrumento e a percepção da música. As concepções de alguns pianistas e professores são
também tratadas e diretamente correlacionadas com a prática e a reflexão sobre a música e o ensino musical.

Palavras-Chave: piano complementar; abordagem interdisciplinar em música; apreciação, performance e criação;


formação acadêmica; proposta pedagógica em música.

Secondary Piano in the academic formation: educational ideas and perspectives of interdisciplinary

Abstract: Study about fundaments for an interdisciplinary approach of the Piano as a Second Instrument class that could
promote integration between different fields of the academic formation at the undergraduate level in Brazil. It discusses
the advantages of a pedagogical coordination between appreciation, performance and composition, with the contextualization of
issues related to music teaching and musical development. Characteristics of specific profiles of undergraduate students as well
as their needs and similarities are taken under consideration in order to understand the interfaces between the disciplines, musical
understanding and connections between the instrumental practice and the perception of music. Some ideas of recognized pianists
and teachers are considered and related to the practice of music and music teaching.

Keywords: secondary piano; interdisciplinary approach in music; appreciation, performance and composition; academic
formation; pedagogical approach in music.

1. Introdução
Os temas discutidos foram selecionados pelas suas do século atual e seus autores - alguns com expressiva
interseções musicais e pedagógicas, com a perspectiva projeção como músicos e também como pedagogos -
de uma formação acadêmica para o bacharelado e a tratam de inúmeros assuntos em suas publicações. A
licenciatura que integre a performance, a apreciação revisão literária e a nossa experiência são subsídios
e a criação, através do piano complementar. Na para as considerações apresentadas, que focalizam,
literatura sobre o ensino da música de uma forma dentre outros temas, necessidades da formação
geral e, mais especificamente, com relação ao ensino musical e pianística, preceitos para o estudo eficiente,
do piano, encontramos concepções e fundamentos integração de disciplinas ou áreas no ensino musical
construídos na diversidade das vivências de alguns e instrumental, problemas comuns encontrados pelos
músicos professores. Os textos abordados como alunos em diferentes estágios e a conexão necessária
referências datam de meados do século XX até o início entre distintas capacidades musicais.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 10/11/2011- Aprovado em: 13/04/2012
115
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

2. Reflexões sobre compreensão e memória a memória e decorre da reflexão sistemática e lógica,


musicais e o estudo do piano praticada amplamente no estudo da peça a ser interpretada.
O próprio GIESEKING estudava as obras difíceis lendo-as
A compreensão e a memória musicais ocupam lugares
atentamente e compreendendo-as, inicialmente sem o
importantes, dentre os tópicos tratados por pianistas
uso do instrumento, método de estudo que, para LEIMER,
professores, quando expõem suas concepções sobre
conferiu ao seu ex-aluno uma capacidade de memória
o ensino do instrumento. No conjunto de processos
fenomenal (1949, p.10-11 e 46). Conhecer a construção
que integram a formação de um músico, nós também
de uma obra musical e saber onde estão seus pontos
consideramos relevante a ampliação de capacidades
de apoio são requisitos para uma leitura reflexiva e o
integradas para compreender e memorizar. Com o foco
exercício sistemático da memória. O autor aponta alguns
específico na disciplina Piano Complementar, podemos
fatores favoráveis - apoios naturais para um bom processo
aferir oportunidades para a aquisição de habilidades
de estudo – tais como o domínio necessário da análise e
nessas áreas do desempenho musical. De modo geral,
da teoria musicais e a capacidade para a organização do
os alunos da licenciatura e do bacharelado podem
material a ser estudado (1949, p.15-17).
obter recursos para aprimorar outro tipo de escuta
musical - a audição crítica -, ao mesmo tempo em que
Andor FOLDES (1949) reforça o papel determinante da
alargam suas possibilidades nos campos da percepção
memória no aprendizado musical, entendendo-a como
e da memorização. Desenvolver e integrar capacidades
habilidade vinculada à disciplina e ao desenvolvimento de
distintas são metas importantes, portanto, aprender a
cada músico. Se o cérebro retém mais facilmente aquilo
estudar ouvindo e compreender para saber estudar são
que compreende, haverá maior prontidão para memorizar a
habilidades indispensáveis ao músico. No tocante à
música que foi compreendida. Por este motivo, dificuldades
memória, é importante o desenvolvimento da capacidade
de retenção estarão em evidência nas peças cuja demanda
de registrar texturas diferentes, de maior ou menor
técnica e capacidade de compreensão estejam acima das
complexidade, além das linhas melódicas. Memorizar
possibilidades do intérprete. Além disto, para FOLDES, o
peças ou trechos escritos para seu instrumento principal
interesse pelo objeto de estudo é um dos fundamentos
- com uma só linha melódica - pode ser uma tarefa
para o bom desempenho da memória. Quando se aliam o
gradativamente mais fácil para o graduando, após as
interesse pelo objeto - a obra musical - e a capacidade
experiências com seu repertório de piano, inclusive, através
de compreensão do músico, há uma situação sinalizadora
dos próprios trabalhos de criação para este instrumento.
de que “metade da batalha está ganha” (1949, p.71-73).
Quando o aluno consegue ouvir, compreender e ainda
FOLDES descreve três tipos de memória:
aumentar a confiança na sua capacidade de memorizar, -
realizando um repertório adequado às suas possibilidades 1. A Memória Auditiva - A modalidade que fixa os tons,
- acontecem manifestações espontâneas de satisfação as alturas e timbres;
pessoal. Em autoavaliações, alguns estudantes discorrem 2. A Memória Visual - A capacidade de reter imagens da
sobre suas conquistas e progressos musicais demonstrados partitura, localização de trechos, viradas de páginas;
em determinadas situações durante as aulas. Além de 3. A Memória dos dedos - O registro de reações
depoimentos em classe, temos dados a este respeito mecânicas dos movimentos coordenados, dos
registrados em estudo realizado através de entrevistas e dedilhados
questionários, respondidos por alunos em 2007 e 20081.
A combinação entre estes três tipos de memória,
Vários pianistas professores discorreram sobre a memória desenvolvidos equilibradamente e com ligeira
musical, enfatizando a importância do seu desenvolvimento, predominância da mais importante, a Auditiva, seria a
conjugado às necessidades e particularidades da situação ideal, segundo FOLDES. Na sua concepção, o
performance. Encontramos referências a este assunto em trabalho de memorizar pode ser ensinado e amadurecido,
literatura específica, produzida em largo espaço de tempo, seguindo-se fundamentos importantes como a
com diferentes graus de sistematização. Mencionaremos aprendizagem lenta, a base propiciada pela compreensão
algumas delas: Karl Leimer e Walter Giesiking2 (1949), musical, um número de repetições suficientes por um
Andor Foldes (1949), Eduardo Hazan (1984), José Alberto largo espaço de tempo e o criterioso e consciente emprego
Kaplan (1987), Márcia Kasue Kodama (2000). No método das três modalidades de memórias (p.73-80).
de ensino apresentado por LEIMER-GIESEKING (1949)], o
treinamento do ouvido e a capacidade de “auto-audição Eduardo HAZAN (1984, p.23-24) escreve sobre como o
são fatores importantes para o desenvolvimento da aluno deve estudar de maneira consciente e produtiva.
memória. Ouvir a própria execução com crítica minuciosa Ele inicia o tema citando uma frase dita por Franz
é uma capacidade a ser desenvolvida com “extrema Liszt aos seus alunos: “Mais importante que o estudo
concentração” e, portanto, condição preliminar para a da técnica é a técnica do estudo”. O autor considera
boa performance. Para LEIMER, o professor deve insistir o minucioso planejamento de estudo como um ponto
incansavelmente com o aluno, para que nada lhe escape crucial para obtenção de bons resultados e, além de
ao ouvido. O desenvolvimento deste tipo de escuta requer apresentar exemplos de roteiros a seguir e de alertar
o “conhecimento correto do quadro musical”, tratado como para os problemas frequentes, faz menções à memória
um requisito indispensável. Este conhecimento sustenta musical. Como os músicos precedentes, HAZAN julga

116
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

imprescindíveis a análise e a compreensão estrutural da 4. Memória Analítica ou Racional - Analítica (para


obra. Se as seções de uma peça são, de fato, conhecidas, KODAMA), desenvolvida através da análise das peças;
é possível estudar tocando-as em ordens diferentes, Racional (para KAPLAN), atua para firmar o significado
combinando várias possibilidades de percurso. Portanto, e a estrutura da peça musical. Esta capacidade de
é de importância vital saber conectar as seções que compreensão, sustentada pelos estudos musicais, é
compõem a obra estudada. Para o autor, a Memória condição básica, igualmente mencionada por LEIMER-
Motora corresponde ao resultado do hábito ou do GIESEKING, FOLDES e HAZAN.
reflexo condicionado e deve apoiar-se, necessariamente,
nas capacidades de analisar e compreender. Assim, KAPLAN (1987, p.70) apresenta três etapas para o
reencontramos as premissas de LEIMER-GIESEKING processo de memorizar: a) a aquisição (requer atenção
e FOLDES, sobre a necessidade da compreensão e interesse, ou motivação); b) a fixação ou retenção
musical e da auto-audição no estudo pianístico, como (pressupõe compreensão e organização do material, além
suportes para a memória racional ou analítica, nas da repetição ou exercitação prática); c) a evocação (traz
denominações de KAPLAN (1987) e KODAMA (2000), que à lembrança o resultado da combinação entre os tipos de
analisaremos mais adiante. Segundo HAZAN, quando memória atuantes no estudo musical). KAPLAN confirma
a Memória Motora atua sozinha, pode facilmente os princípios dos outros pianistas trazidos a esta discussão,
falhar aos “primeiros sinais de nervosismo”, comuns na com relação à ineficiência, ou fragilidade da memória
performance, e “é este o caso em que a primeira batalha cinestésica (automatização de complexos movimentos
foi ganha, mas a guerra perdida” (neste sentido, o autor combinados), quando isolada de uma compreensão
aborda um dos problemas relacionados à ansiedade analítica e estrutural. Conforme KODAMA, a associação
na performance). Sem nomear a outra modalidade de entre os vários tipos de memória é fundamental para o
memória discutida, HAZAN aconselha o aluno a estudar músico e a mais eficaz seria a combinação entre a Auditiva
tocando uma frase (A) e imaginando auditivamente e a Digital (ou cinestésica, motora). A autora defende a
a seguinte (B), e assim continuar alternadamente, ou ideia de que “quanto maior for o número de formas maior
seja, após tocar a terceira (C), apenas imaginar a quarta será a qualidade da memorização”.4 KODAMA comenta
frase D)3. Quando HAZAN se refere à ‘imaginação’ de sobre potencialidades presentes na integração dos tipos
uma frase, subentende-se a capacidade musical de de memória musical, ao descrever o desempenho de um
ouvir internamente um trecho, sem que este seja professor (e, nós acrescentaríamos, de qualquer músico
tocado. Percebemos a explícita correlação entre esta experiente) diante da partitura:
capacidade, que requer treinamento e concentração, e
o desenvolvimento da memória auditiva. [o professor]... consegue tocar obedecendo todas as indicações
de uma forma fácil e rápida, pois durante anos repetiu as
J. A. KAPLAN (1987, p.69) e M. KODAMA (2000, p.33) informações a respeito de leitura de notas, das figuras musicais,
dos dedilhados e todas essas ligações (circuitos) neurais referentes
descrevem quatro tipos de memórias utilizadas pelos a essas informações ficaram facilitadas. Deste modo, o seu cérebro
músicos, que podem ser desenvolvidas: desenvolveu um repertório de padrões de atividades motoras.
Com a simples visualização da partitura, a sua mente é capaz de
1. Memória Visual - Ambos se referem à fixação da ativar automaticamente os movimentos de dedos adequados para
imagem da partitura. Parece-nos caber ainda a este tocar as notas e o ritmo de acordo com o que está escrito, numa
tipo de memória o registro da localização de trechos sequência ordenada (2000, p.26).
musicais nas páginas (especialmente onde há as viradas),
as anotações pessoais feitas em determinadas passagens Na análise sobre a memória e a compreensão musicais,
e até um complexo de informações visuais que inclui o a partir das concepções desse grupo de pianistas,
teclado em si e o ambiente de estudo, por exemplo. evidenciam-se convergências quanto às necessidades de
planejamento do estudo, sob a orientação individualizada
2. Memória Auditiva - Considerada por KODAMA como a do professor. A experiência, o conhecimento específico
mais importante para o músico, por permitir decorar “o e o interesse pela obra a ser abordada são requisitos
resultado sonoro da música” e, para KAPLAN, como sendo intimamente ligados às condições, percepções e emoções
a gravação de sucessões sonoras. individuais do músico. Avaliamos que a abrangência e a
pertinência destes temas e das observações analisadas,
3. Memória Digital ou Cinestésica - Digital (para naturalmente, não se restringem aos aspectos particulares
KODAMA), como a capacidade de memorizar e da memória a ser desenvolvida, pois são fundamentos
automatizar sequências de movimentos das mãos; aplicáveis ao ensino musical, com domínios específicos
Cinestésica, (para KAPLAN), obtida pelo treinamento que, e metas a alcançar. É desejável que o aluno de Piano
“através da repetição dos movimentos, os automatiza”. Complementar aprenda a estudar a partir da análise e
Parece haver uma complexa combinação de movimentos da utilização eficiente dos recursos pessoais disponíveis.
nesta automatização, envolvendo dedos, mãos, braços, Há vantagens na transferência da capacidade de
pés, gestos, ângulos com que o olhar busca a partitura e, concentração e do conjunto de habilidades desenvolvidas
por isto, consideramos a denominação de KAPLAN mais neste aprendizado para as demais necessidades da prática
apropriada. Alguns professores a chamam também de musical, em outras áreas da formação acadêmica. Como os
Memória Mecânica, ou Motora, como E. HAZAN. demais músicos incluídos na revisão acima apresentada,

117
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

KODAMA enfatiza a importância de se aprender a estudar exigência constante nas horas de estudo do instrumento
corretamente, descobrindo, raciocinando e entendendo. (ESTRELLA, 1941, p.41-43).
Tais possibilidades geram grande satisfação, portanto, o
estudo eficiente pode levar ao que ela chama de “prazer Na convicção de Edgar WILLEMS (1966), para a educação
intelectual” (2000, p.36). Quanto à nossa experiência, musical abrangente o professor deve estar apto a
ponderamos que são comuns as alusões de alunos de Piano observar não só o que é melhor fazer em cada situação,
Complementar à satisfação presente neste aprendizado e mas também as reações dos seus alunos. Sobre a validade
ao aprimoramento musical dele decorrente. A capacidade das abordagens pedagógicas, encontramos em seu Guia
de perceber novas possibilidades e sutilezas musicais - Didático a concepção de que o solfejo, a harmonia, o
elemento de motivação – é vista como um progresso canto e os instrumentos vinculam-se organicamente
importante, tanto na própria performance, individual ou (p.15). O solfejo deve estar incluído “de forma racional
em grupo, quanto na performance de outras pessoas. e vivente no conjunto das disciplinas musicais, servindo
de sustentação para a prática instrumental, para o
3. O estudo do piano e a integração de estudo e a pratica da harmonia, da improvisação e da
conteúdos composição”.6 (p.43).Conforme o autor, a interligação é
Arnaldo ESTRELLA (1941) avalia como longo e árduo amplamente favorável à homogeneidade entre as áreas
caminho a ser trilhado pelo estudante de piano. Ele do ensino musical, que padecem frequentemente de
ressalta como imprescindível neste empreendimento a uma prática isolada de disciplinas (p.43). Ele esclarece
participação dos professores de outras áreas, como teoria que “o solfejo está longe de ser um simples balbuciar de
e solfejo: “Nunca será demais sublinhar a importância exercícios ou de melodias acompanhadas pelo professor”.
deste estudo” (p.41). Conforme ESTRELLA, a pretensão (p.42). Parece-nos uma visão bastante lúcida a respeito
de ser pianista (acrescentaríamos: ou de almejar uma desta atividade, por não padronizar procedimentos
formação musical consistente) sem o conhecimento e nem restringir o potencial e a amplitude dos seus
da teoria elementar é como tentar abraçar a literatura benefícios. Como o próprio WILLEMS alerta, o professor
ignorando as letras do alfabeto. Às necessidades terá liberdade de ação se possuir princípios básicos e, ao
básicas da teoria e do solfejo, vencidas na etapa inicial, variar ao infinito os exercícios, conduzirá os alunos num
devem agregar-se outros conhecimentos pertencentes trabalho prazeroso e eficaz (p.42).
à bagagem mínima de um pianista, como história da
música e o estudo das formas musicais. Não basta confiar Em Dissertação de Mestrado apresentada à Escola de
exclusivamente nos dotes pessoais, na intuição e na Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
sensibilidade, é preciso possuir requisitos fundamentais (ECA/USP), Márcia HIGUCHI faz um histórico das próprias
para o acesso “à construção sólida, à lógica concatenação dificuldades pessoais nos primeiros anos de estudos
de motivos, à soberba imaginação criadora”. Este acesso pianísticos, comparando-as, mais adiante, aos problemas
é resultado da atividade cerebral: “Só a inteligência e o demonstrados pelos seus alunos de piano (2003, p.08-09).
conhecimento levam à compreensão” (p.42). Quanto à Reaparecem correlações evidentes entre a sua análise
realização musical, ESTRELLA afirma: “Para transmitir não e os temas tratados por ESTRELLA, WILLEMS e outros
basta sentir. Só se transmite evidentemente aquilo que autores precedentes nesta revisão. HIGUCHI descreve
os dedos produzem”; se o estudo e a técnica estiverem as fragilidades pessoais que foram um incômodo no seu
deficientes, a mera intenção é conhecida apenas pelo período inicial de estudos:
executante, tornando-se “misteriosa e insuspeita para
1. Leitura - solfejo lento, visão deficiente do teclado,
o ouvinte”. O autor - em concordância com os demais
dificuldades na marcação do tempo, na coordenação
trazidos a esta discussão - considera indispensável saber
de movimentos e na decodificação dos sinais da
ouvir a si próprio, discernindo o que soa realmente do que
escrita musical, associados à execução pianística;
o está apenas delineado na sua intenção. Há o risco de que
o pianista se iluda e ouça o que está na sua imaginação, 2. Ritmo - imprecisão, irregularidade nas durações e
supondo ouvir o que está efetivamente tocando5. dificuldade na manutenção do pulso;
ESTRELLA reconhece dificuldades neste processo e aponta 3. Articulação - realização musical sem o devido
duas razões iniciais: 1) a audição de perto é menos nítida; cuidado com as articulações determinadas na
2) preocupações de ordem técnica absorvem parte da partitura;
atenção. Tanto como LEIMER-GIESEKING e similarmente 4. Dedilhado - escolhas sem a pesquisa eficiente,
aos outros pianistas, recomenda como excelente: “o emprego de variações que dificultavam o
hábito de estudar uma obra fora do piano, repassando-a estabelecimento de padrões;
mentalmente, sem entraves e preocupações de execução, 5. Falhas de memória - associação principal somente
buscando a expressão justa, a exteriorização exata da sua entre as memórias digital e auditiva, sem a adequada
concepção” (p.43). O pianista prevê em sua tese que a compreensão das estruturas musicais, ocasionando
evolução da indústria de gravação pode facilitar e tornar uma performance vulnerável a qualquer empecilho
possível a sua utilização para o estudo e para atividades ou interrupção na sequência dos movimentos;
didáticas. Porém, reafirma que o recurso da gravação 6. Técnica pianística - imprecisão do toque, pouca
não substituirá a necessidade de saber se ouvir, como clareza e falta de definição sonora.

118
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

Ao discorrer sobre as suas dificuldades, HIGUCHI enfatiza a a história da música, a percepção, a interpretação,
preocupação intensa vivida à época, o que a fazia estudar a escrita, a leitura e a criação. O aluno deve ter
mais de dez horas por dia . Entretanto, pela inadequação oportunidades para vivenciar a música de maneira
do esforço, os resultados obtidos ficavam aquém das suas integrada, “sem a inadequada compartimentalização
expectativas e geravam novas frustrações. Anos mais tarde, tão comum na educação musical tradicional”. (p.51).
ao iniciar as atividades pedagógicas, reencontrou nos Para CAMPOS, o piano pode adquirir a dimensão daquilo
alunos problemas semelhantes aos que havia vivenciado: as que é realmente: um instrumento para a expressão
carências acima enumeradas e maus hábitos de estudo. Não daquele que o executa. A convivência confortável entre
estudar devagar e em partes, como uma das ferramentas o indivíduo e o instrumento constrói uma relação de
para aperfeiçoamento técnico, a falta de concentração, o intimidade, promove a aproximação do ser humano
mau aproveitamento do tempo, o estudo feito de forma da linguagem da música. A autora completa sua ideia
mecânica, sem consciência das estruturas e das relações afirmando: “Certamente, ao usar a criatividade na
sonoras são alguns problemas detectados. Diante deste exploração do instrumento, associada à aprendizagem
quadro, HIGUCHI (2003, p.10-11) procurou embasamento tradicional, teremos uma realização musical mais
na Psicologia e encontrou explicações importantes sobre satisfatória, expressiva e prazerosa” (2000, p.76-77).
a concentração e a memória, tais como: a) as informações
obtidas pela consciência são mais facilmente lembradas; o É perceptível a sintonia entre CAMPOS e outros
monitoramento consciente e intencional leva ao estágio de educadores musicais nos seus questionamentos sobre a
automatização, depois que a habilidade é suficientemente aplicabilidade de métodos rígidos e de receitas básicas
ensaiada; b) há otimização do desempenho quando se para o ensino de instrumento. A limitação criticada
exerce apenas uma atividade consciente de cada vez; nestes processos é, a nosso ver, a fixação de padrões
quando várias são desenvolvidas simultaneamente, reduz- pouco produtivos diante das inúmeras variáveis pessoais
se a capacidade de atenção e as tarefas influenciam-se e musicais, naturalmente envolvidas na relação entre
mutuamente. Esses conceitos ajudaram-na a entender o professor e o aluno, desenvolvida em instituições,
os benefícios existentes na orientação recebida de seus modalidades e níveis distintos de ensino. De fato, o ato
antigos professores: estudo lento e consciente, compasso de transmitir conhecimentos não pode ser um fim em si
por compasso, de mãos separadas, solfejando e analisando. mesmo, a construção da autonomia e o desenvolvimento
Reencontramos alguns aspectos negativos destacados por da criatividade requerem uma ligação profunda com
HIGUCHI - que tornaram os dez anos iniciais de seu estudo a música, nas suas dimensões sensorial, afetiva e
“profundamente árduos e difíceis” - ao observarmos a intelectual. Há pertinência e profundidade nas palavras
média de desempenho dos alunos de Piano Complementar. de WILLEMS, quando aborda a questão da escolha de
Esses problemas parecem estar interligados, repercutindo métodos - “procedimentos metodológicos quando partem
não só na performance ao piano, mas também no processo da vida, são de uma ilimitada riqueza” - e ao preconizar
geral da formação musical de cada um. que o professor necessita “concentrar-se no essencial,
recordando que a vida precede a consciência e deve ter
A nosso ver, diante desse conjunto de situações, o primazia sobre as formas” (1966, p.9). Parece-nos haver
aluno deve ser reorientado para a minimização de semelhanças entre este pensamento e a conjectura de
impactos negativos, incidentes não só no desempenho CAMPOS sobre a realização musical do aluno: “mais que
ao piano, mas, numa visão global e integradora, em seu um ato de exteriorização, é antes de tudo conexão com
percurso individual de formação acadêmica. O professor sua própria essência interior” (2000, p.73). Acreditamos
pode auxiliá-lo para a aquisição de bons hábitos e que essa conexão se estabelece quando a precedência e
planejamento de estudo e conscientizá-lo a respeito a primazia da vida já foram reconhecidas, portanto, uma
de pré-condições determinantes para a sua prática, das qualidades necessárias a quem ensina é saber como
como boa leitura, percepção apurada, auto-audição ajudar o aluno para que ele acesse o seu mundo interior.
e conhecimentos específicos sobre fundamentos da A cada passo nesse aprendizado, crescem as chances de
linguagem musical. Acreditamos que estas premissas, realização pessoal, de expressão da individualidade e
não circunscritas à pedagogia do instrumento, como as construção da própria personalidade musical.7
demais apresentadas ESTRELLA, WILLEMS e HIGUCHI,
sustentam-se também nas aulas de Percepção Musical
4. O estudo do piano e algumas correlações
e Treinamento Auditivo. Portanto, as atividades que
favoreçam a interdisciplinaridade devem ser escolhidas com a percepção da música
caso a caso pelo professor. Aprender a estudar com Os alunos manifestam-se sobre assuntos bastante
independência - em situações diversas e com objetivos diversificados, relativos à prática musical. As semelhanças
bem definidos - é um ganho que o aluno transfere para entre sensações ou experiências individuais, a partir de
outros campos da sua prática musical. situações similares, despertam interesses e perguntas.
Um dado frequente que chama a atenção no relato de
Moema CAMPOS (2000) defende a importância alguns estudantes de piano são as suas associações entre
pedagógica da participação ativa do aluno, em sentido aquilo que ouvem e o impacto deste estímulo sonoro
mais completo, no estudo do piano. O ideal é resguardar, na memória visual. Durante atividades de apreciação,
em qualquer aula, as correlações entre a teoria, o solfejo, análise auditiva, exercícios direcionados à identificação de

119
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

tríades, ou até a partir de um fragmento musical ouvido em diversos centros e universidades, com voluntários
não intencionalmente, eles contam ser possível ‘enxergar’ músicos e não-músicos. Em uma parceria realizada
num teclado imaginário aquilo que está soando. Por em 1999, entre a Universidade Bucknell e o Instituto
exemplo, ao escutar o acorde perfeito menor Dó, Mib, Sol, Neurológico de Montreal, verificou-se que a capacidade
o aluno que tem alguma intimidade com o piano e bom cerebral dos músicos diferencia-se na revisão de
discernimento auditivo vê ativada em sua mente a imagem suas conexões e é auxiliada pelo desenvolvimento de
desta configuração. Esta associação, evidentemente, é atividades musicais. Ou seja, o treinamento aumenta a
facilitada quando o acorde é gerado por este instrumento, quantidade de células que respondem aos sons e, mais
mas, mesmo que a fonte sonora seja outra, há uma espécie ainda, um aprendizado musical prolongado possibilita
de conferência, ou comparação, com o resultado que respostas e mudanças físicas mais evidentes. A reação
seria obtido se o grupo de notas fosse produzido por um dos músicos é diferente das reações dos leigos e,
piano. Acreditamos ser mais relevante para o treinamento além disto, eles exibem um superdesenvolvimento
musical a capacidade de discernir o tipo da tríade ouvida - em determinadas áreas do cérebro. Concluiu-se que
a relação intervalar existente entre as notas e o resultado muitas áreas nos lobos temporais envolvidas na audição
da sua simultaneidade - ou a sintaxe estabelecida entre de melodias também eram ativadas, mesmo quando
tríades. Marie Claude ARBARETAZ (1979, p.03) cita alguns estas eram apenas imaginadas pelos não-músicos
pedagogos, para reforçar sua própria concepção de que (p.81). Outro estudo apresentado por WEINBERGER
é a natureza de um encadeamento de sons que cria a aconteceu na Universidade de Münster, na Alemanha,
música e não uma sucessão de sons isolados, razão pela em 1998. Dentre algumas conclusões desta pesquisa,
qual o seu trabalho pretende ser uma alternativa para mencionamos: a) quando músicos ouvem um piano,
desenvolvimento deste tipo de escuta musical. Também as regiões auditivas do seu hemisfério esquerdo
na sua perspectiva, o ouvido absoluto não é uma condição apresentam nível de resposta 25% maior do que os
sine qua non para determinar a musicalidade de alguém, ou leigos e este efeito é uma especificidade observada
caracterizar a sua personalidade musical. Sendo o ouvido no processamento de sons musicais; b) a expansão
relativo um critério mais seguro para avaliar a capacidade da área de reação é tanto maior quanto mais cedo
musical, a autora entende que a sua abordagem pedagógica tiver ocorrido o início do estudo musical. Com relação
requer a atenção dos professores, desde o início dos estudos à expansão de áreas, em 2002, pesquisadores da
musicais. Artur SCHNABEL (1998, p.127), pianista que Universidade de Heidelberg na Alemanha relataram que
desde criança possuía ouvido absoluto, considera o ouvido o córtex auditivo dos músicos pode ser até 130% maior,
relativo como o mais importante. Em sua opinião, o ouvido comparado ao dos não-músicos. As percentagens estão
absoluto pode ser uma vantagem musical, mas, de forma ligadas aos níveis de treinamento, o que sugere que
alguma é a marca de um bom musicista. aprender música proporciona o aumento do número
de ligações entre os neurônios que a processam. No
A precisão com relação à altura está relacionada a fatores mesmo artigo, WEINBERGER traz as observações de um
como os casos de ouvido absoluto, o tempo de estudo e estudo na Universidade de Konstanz, na Alemanha: as
a intimidade com o timbre. Para o aluno que toca piano, regiões do cérebro que recebem informações sensoriais
se este for o instrumento gerador, é mais fácil identificar da mão esquerda - entre os dedos indicador e mínimo
a altura exata, a não ser que o acorde esteja soando em - eram significativamente maiores em violinistas,
regiões extremas. No entanto, observamos que se o ou seja, tinham correlação com os dedos utilizados
mesmo acorde for realizado por um trio vocal e facilmente para movimentos próprios da mão esquerda, rápidos
reconhecido como um perfeito menor, a mudança de timbre e complexos. Porém, não foi observado aumento
pode dificultar a percepção precisa da altura, tarefa que nas áreas do córtex relativas à mão direita, que é
demanda mais tempo e concentração do aluno, com auxílio responsável pelo controle do arco. Por sua vez, não-
do diapasão. É comum no processo de conferência, que o músicos diante do mesmo estímulo não exibiram
estímulo sonoro e a memória visual desencadeiem, como um essas diferenças entre as mãos. Em 2001, o Instituto
reflexo condicionado, a ‘realização’ tátil do acorde com uma de Pesquisa Rotman de Toronto fez um estudo com
das mãos, simulando sobre uma superfície plana qualquer trompetistas e verificou que as suas reações cerebrais
o toque pianístico da tríade em questão8. O fenômeno são extremamente extensas quando escutam o som
inverso é perceptível, quando escutamos internamente de seu instrumento, o que não acontece quando o
o resultado sonoro do que lemos numa partitura, ou de som é produzido por outros instrumentos. Conforme
uma configuração (por ex., o acorde acima mencionado) a análise geral de WEINBERGER sobre os diversos
que apenas visualizamos num piano. Tais ocorrências, estudos é possível que haja um substrato anatômico
que também fazem parte da nossa experiência pessoal, a partir do aumento da coordenação entre as regiões
demonstram a ativação de uma complexa conexão entre os motoras e os dois hemisférios cerebrais. As pesquisas
tipos diversos de memória e habilidades, empregados pelos sugerem que as expansões estão condicionadas ao
músicos em suas formas de processamento musical. tempo de preparação instrumental e que o tamanho do
córtex motor e do cerebelo (região cerebral envolvida
Explicações sobre particularidades da percepção na coordenação motora) é maior nos músicos. De
musical são tratadas por N. WEINBERGER (2004), em acordo com as descobertas feitas até o momento,
suas considerações a respeito de pesquisas realizadas segundo o autor, “a música tem base biológica e o

120
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

cérebro tem organização funcional para ela”. Várias Os estudos acima descritos, a nosso ver, parecem
regiões cerebrais são ativadas para o processamento confirmar as vantagens da integração entre as práticas
específico da música, seja na sua percepção ou nas musicais, resultantes em capacidades correlacionadas e
reações emocionais provocadas e, e além disso, há em transferências de habilidades. Com esta perspectiva,
especializações observáveis nas estruturas cerebrais, acreditamos na exploração de possibilidades pedagógicas
inclusive um superdesenvolvimento (2004, p.82-83). ao piano, abordado como um instrumento complementar.
As vantagens são particularmente significativas para
E. ALTENMÜLLER (2004, p.28-29), menciona os estudos os alunos que tenham pouca intimidade, ou nenhuma
do Instituto de Pesquisa Rotman e acrescenta outras experiência anterior com um instrumento harmônico. Nos
informações obtidas, destacando a capacidade dos resultados das pesquisas mencionadas por WEINBERGER
maestros, geralmente mais desenvolvida do que a dos e ALTENMULLER, há explicações que confirmam
outros músicos, de localizar a origem dos sons e direcionar características de desempenho, relacionadas às conexões
atenção específica a integrantes posicionados nas existentes entre as experiências auditivas, táteis e
extremidades dos grandes grupos musicais. A ‘cooperação visuais relatadas pelos pianistas, quando descrevem suas
entre o ouvido e mão’, apontada pelo autor, foi constatada modalidades de percepção e de apreciação musical, de
através de respostas dos estudantes às perguntas feitas forma geral. A evolução dos métodos de estudo e de
pelos pesquisadores, após testes auditivos com acordes9: imageamento do cérebro e as constatações científicas
a) ao ouvir os acordes, vários participantes do estudo sobre as formas de recepção e processamento da música
disseram que também os haviam visualizado mentalmente pelo ser humano fornecem meios para que se possa
num teclado; b) quase todos já os tinham exercitado num compreender melhor as diferenças e similaridades entre os
piano. Possivelmente, as lições práticas no instrumento músicos. WEINBERGER (p.78) faz um resumo importante
levaram a representação mental do teclado - armazenada sobre este tema: imagens feitas tanto em pacientes
no córtex - para o primeiro plano. Em testes práticos com danos cerebrais quanto em indivíduos normais
melódicos com músicos amadores, observou-se que alguns revelaram não haver um centro especializado para a
‘escutavam’ uma melodia ao tocá-la num teclado sem o música, mas sim a ativação de muitas áreas, inclusive
som. Os participantes também passaram a reproduzir no as que estão envolvidas em outros tipos de cognição.
piano melodias a eles apresentadas em sequência, com o A ativação dessas áreas cerebrais varia de acordo
aumento gradativo de sua complexidade. Os resultados com as experiências individuais e com o treinamento
apontaram para mudanças dos padrões de atividade nas musical de cada pessoa. Entendemos que informações
regiões táteis e auditivas, que foram testadas após vinte importantes tais como estas devem ser consideradas para
minutos de exercícios e ficaram ainda mais evidentes na a construção de alternativas que alimentem o percurso
avaliação feita após três semanas de prática. Ao ouvir curricular de um aluno do bacharelado ou da licenciatura.
música, as áreas do sistema motor sensorial das pessoas Julgamos procedente concluir - conforme nossas
se ativavam, mesmo que não estivessem movendo as observações e de acordo com resultados dessas pesquisas
mãos. Uma conclusão instigante foi obtida um ano após a - que existem vários benefícios na prática da disciplina
realização deste estudo, quando a equipe de pesquisadores Piano Complementar. De maneira especial, ressaltamos
constatou que uma participante ainda mantinha presentes a autonomia em domínios específicos da formação
as alterações nos padrões cerebrais, embora não tivesse acadêmica e o desenvolvimento das capacidades de
voltado a tocar piano durante todo este período. percepção harmônica e melódica, em suas associações
naturais com as memórias, auditiva, visual, tátil e motora.
São importantes outros dados levantados por Isto significa dizer que a experiência diversificada e
ALTENMULLER em sua análise destas pesquisas: a) individualizada com o piano pode envolver diferentes
percebemos a música mais do que como simples sons; estratégias pedagógicas, francamente favoráveis ao
b) durante um concerto, vemos os músicos usando sua desenvolvimento de novas conexões e associações,
própria percepção visual e sentimos estímulos táteis, ativadas no processamento individual da música.
oriundos das vibrações causadas pelas passagens mais
fortes; c) tocar um instrumento envolve atividade
5. Observações sobre particularidades de
motora / sensorial, percebida como uma série de
movimentos; d) estudar na partitura envolve o alunos da Graduação
processamento de informação abstrata; e) estudos A atuação paralela10 em classes de Percepção Musical,
de imagem mostram a representação de uma mesma Treinamento Auditivo e Piano Complementar nos abriu
música de múltiplas maneiras no cérebro de um músico um campo para observações e experiências pedagógicas
profissional, como som, movimento, símbolo. Conforme articuladas. As diferenças delineadas no corpo discente
conclui ALTENMULLER, não há regras universais no influem nas trajetórias acadêmicas individuais e nas
processamento cerebral da música, pois ela é absorvida escolhas de alternativas pedagógicas por parte dos
de formas diferentes pelas pessoas. Portanto, cada professores. As particularidades ocasionadas por
indivíduo é um ‘centro de processamento musical’ único experiências pessoais que antecederam a Graduação
e, em cada um de nós, as estruturas deste centro podem mostram-se também na variedade inerente aos perfis
se adaptar rapidamente a novas circunstâncias. dos alunos, de acordo com a modalidade no seu curso de

121
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

música. A nossa experiência em salas de aula e as questões funções principais (Tônica, Dominante e Subdominante),
pedagógicas suscitadas conjugam-se, naturalmente, importantes na prática do idioma tonal. A dificuldade do
às manifestações dos alunos em suas avaliações e aluno para tocar e ouvir as tríades afeta a qualidade da sua
opiniões sobre os próprios percursos, o currículo e as experimentação e identificação dos climas harmônicos,
oportunidades de aprendizado disponíveis na EMUFMG. também nos idiomas modal ou não tonal. Esta condição
Suas perguntas, expectativas e inquietações agregam-se não é verificada apenas nas turmas de Treinamento
às nossas, auxiliando-nos na elaboração de diagnósticos Auditivo e Percepção Musical, que têm a heterogeneidade
e de propostas. De fato, questões institucionais e no desempenho e na maturidade musicais como uma
pessoais têm influência marcante no processo de ensino das suas principais características. Muitos iniciantes
e aprendizagem, situações peculiares repetem-se em que se matriculam na disciplina Piano Complementar
dualidade com o constante movimento docente, que sem experiência sistemática anterior, ou mesmo com
visa ao ensino de boa qualidade através de avaliações, algum tipo de contato informal com o instrumento,
adaptações e mudanças pedagógicas e administrativas. também apresentam certas limitações, detectadas não
só nas questões técnicas de realização instrumental (o
Quando comparamos determinados grupos de alunos, que é previsível e razoável), mas também com relação
percebemos semelhanças entre dificuldades e facilidades a aspectos teóricos e práticos do aprendizado musical.
de desempenho detectadas. É possível um levantamento As limitações podem atingir níveis indesejáveis, no que
de situações comuns nas aulas coletivas das disciplinas concerne ao domínio de conteúdos básicos da linguagem,
Percepção Musical (04 períodos obrigatórios para todas à compreensão e à capacidade de análise auditiva.
as habilitações do bacharelado e para a licenciatura)
e Treinamento Auditivo (disciplina optativa) e também 6. O piano como recurso pedagógico:
nas aulas individuais ou em pequenos grupos de
Piano Complementar (02 períodos obrigatórios para a aplicabilidade e perspectivas
habilitação em Regência e disciplina optativa para os A experiência na disciplina Piano Complementar - com
demais graduandos e licenciandos). Por exemplo, no perspectivas de integração da prática pianística com outros
conjunto dos alunos de instrumentos melódicos e de canto domínios no aprendizado musical – nos permite observar
(notadamente nos primeiros períodos do curso) há uma benefícios desta atividade musical peculiar. É considerável
considerável incidência de defasagens, em graus diferentes, o campo para exploração e estabelecimento de estratégias
nas percepções harmônica e estrutural. Não raramente, em que resultam em progressos para os graduandos. O piano
sua performance de música em conjunto realizada nas é chamado algumas vezes de instrumento ‘audiovisual’: a
aulas, este tipo de aluno demonstra limitações para ouvir e organização visual das teclas favorece a exploração sonora,
integrar à sua linha musical as demais partes, instrumentais com grande amplitude de alturas. Suas características
ou vocais. Por vezes, o fato é relatado espontaneamente físicas facilitam a experimentação de uma gama variada
pelos alunos, conscientes de que lacunas na sua percepção de alturas, estruturas, texturas, dinâmicas e coloridos
limitam a compreensão da obra musical, nos detalhes ou timbrísticos. Dar acesso a esta aventura criativa com
na sua integralidade. Nessas condições, ficam relegados estratégias adequadas é, a nosso ver, um importante recurso
a segundo plano aspectos fundamentais como nuances pedagógico para a formação de qualquer aluno. Para o
de textura, colorido harmônico, contrastes de dinâmica, graduando em Canto, por exemplo, a habilidade ao teclado
agógica, articulações; há prejuízos para o diálogo e a permite o acompanhamento de vocalises e a realização,
interação entre os músicos, derivações naturais de uma mesmo que simplificada, da estrutura harmônica de peças
construção conjunta da interpretação musical. que esteja estudando. O domínio básico do instrumento
parece ser de grande valia para a construção da sua
Os alunos da Percussão apresentam uma vantagem no desenvoltura e autonomia na leitura e na performance.
tocante à rítmica, à regularidade no pulso, às combinações e É um recurso auxiliar no estudo de repertório, favorece a
sobreposições de grande complexidade métrica. É perceptível compreensão musical, prepara para atividades profissionais
o entrosamento técnico e interpretativo na realização à frente de um grupo coral e para a orientação de seus
musical, seja em duetos, seja em pequenos ou grandes grupos futuros alunos de canto e técnica vocal11. Diante do conjunto
instrumentais percussivos. Por outro lado, com referência de informações e capacidades, recursos pedagógicos
à percepção melódica e harmônica e à consciência destes e habilidades específicas de um professor de música,
eventos na própria performance aos teclados, observa-se parece-nos imprescindível a experiência com o piano, na
uma incidência de defasagens. Há casos em que os próprios formação de um aluno da Licenciatura. A desenvoltura na
estudantes apontam o problema, durante a prática musical percepção harmônica é um suporte fundamental para a
nas aulas, inclusive de Piano Complementar. Percussionistas qualidade do trabalho de um musicalizador, seja na escola
graduados pela EM já nos apresentaram opiniões e avaliações especializada, ou da rede regular de ensino, seja em aulas
informais sobre estas fragilidades, que parecem diretamente particulares. O potencial expressivo do futuro educador
ligadas ao tipo de bagagem musical trazida para o curso de musical pode ser explorado - e valorizado - através do
música, pelos candidatos à habilitação em Percussão. tratamento consciente de possibilidades dinâmicas e
timbrísticas do piano (ou teclado com sensibilidade ao
Observamos não ser incomum a carência de condições toque). Deste profissional são esperadas, dentre outras, as
básicas para se realizar ao teclado, no mínimo, as capacidades de fazer harmonizações, pequenos arranjos,

122
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

transposições, improvisações. Presumimos ser interessante • Treinamento para o desenvolvimento da capacidade


a habilidade específica no piano porque, mesmo não de memorização;
sendo um instrumento comumente disponível nas escolas • Contato com outras formas de notação e de
regulares, há como se utilizar um teclado nas aulas, com utilização da linguagem musical, desvinculadas de
vantagens de um instrumento harmônico que permite aos centros tonais ou modais;
alunos a visualização e a experimentação da organização • Estímulo e recursos para criação musical;
das alturas e de pequenas estruturas musicais. • Fundamentação no tratamento da escrita pianística,
através da criação (especialmente importante para
Reiteramos como aspectos positivos, que permitem elaboração de arranjos e trabalhos de composição
uma constante renovação de propostas, algumas para o instrumento);
características e possibilidades pedagógicas do Piano
• Consciência da verticalidade e da horizontalidade
Complementar: o instrumento pode viabilizar o modelo de
nas texturas: independência rítmica e melódica
educação musical preconizado por diversos educadores,
entre as vozes, estabelecimento de planos diferentes,
que visa à integração entre a performance, a criação e a
apuro da escuta musical destes eventos;
apreciação musicais. De maneiras semelhantes, músicos
e professores indicam a necessidade de equilíbrio no • Aprofundamento em questões estruturais e
tratamento destas atividades, independentemente da refinamento no uso da linguagem;
faixa etária dos alunos. A avaliação do trabalho musical e • Conquista gradativa da segurança nas decisões
da aprendizagem a partir de uma única atividade mostra- técnicas e expressivas;
se insuficiente, porque os níveis de compreensão podem • Oportunidades para a performance e apreciação da
ser demonstrados diferentemente entre as três áreas. O performance de colegas em aulas coletivas, nas
educador inglês Keith SWANWICK avalia: quais são também apresentados os trabalhos de
criação para piano;
(...) poderia ser pouco inteligente basear um nível de currículo • Desenvolvimento do interesse pela significativa
unicamente na performance, seja por meio de ensino instrumental
literatura do instrumento.
individual ou em grupo. (...) os estudantes deveriam ter acesso a um
âmbito maior de possibilidades musicais, inclusive composição e
apreciação. Somente assim teremos certeza de que eles são capazes 6. 2. Considerações sobre as aulas coletivas
de mostrar e desenvolver todo o potencial de sua compreensão
musical (2004, p.97). Experiências musicais importantes podem acontecer nas
aulas coletivas, com grupos confortáveis de cinco alunos.
SWANWICK (1979) apresenta um mnemônico para esta Realizamos regularmente este tipo de encontro12 e a
modalidade integradora do ensino musical - C (L)A (S) P -, no adesão dos alunos proporciona resultados animadores.
qual, além da criação, da apreciação e da performance (C, A São estimuladas e compartilhadas a apreciação musical
e P), estão contemplados e inter-articulados o indispensável e audição crítica a partir do repertório do grupo,
desenvolvimento de habilidades específicas (S = skills) e os que inclui trabalhos de criação nos idiomas modal,
estudos de literatura da música e sobre a música (L). Esta tonal ou não-tonal. É possível comparar as variações
visão educacional, em sua abrangência e aplicabilidade, sobre um mesmo tema nas composições individuais,
adapta-se a distintos níveis e perspectivas de ensino. com a discussão acerca de aspectos musicais. A aula
coletiva propicia um bom nível de integração através
6. 1. Uma visão sobre especificidades do da performance comentada e da troca de experiências,
ainda que não ocorra com a regularidade ideal para
Piano Complementar alunos do Piano Complementar. Obviamente, o número
Para contemplar premissas de integração entre os de alunos deve se adequar à duração prevista para a
diversos domínios da formação e articular conteúdos aula, pois a distribuição do tempo estará submetida
fundamentais no ensino musical, utilizamos um conjunto a este contingente. O planejamento está sujeito às
de possibilidades na abordagem da disciplina Piano disponibilidades de espaço físico e de horários dos
Complementar. As estratégias adotadas adaptam-se à participantes, mas a viabilização do encontro é tarefa
diversidade dos perfis individuais e são desenvolvidas mais simples do que equilibrar necessidades e potenciais
de forma interarticulada. A prática musical na disciplina individuais diluídos no grupo, dentro do tempo
inclui o estudo e performance do repertório individual estipulado para a aula. Este equilíbrio visa à qualidade
escolhido, a leitura à primeira vista (individual, ou do trabalho musical e à avaliação sobre o mesmo,
a quatro mãos nas aulas coletivas) e atividades de ao término de cada sessão. Partindo deste princípio
análise, transposição, improvisação (também vocal/ norteador, apontamos alguns pressupostos que, no
instrumental), criação. Através das atividades, buscamos nosso entendimento, podem resguardar experiências
propiciar aos alunos benefícios como: coletivas interessantes e enriquecedoras:

• Revisão e aprofundamento nos conteúdos da teoria 1. A música deve ser o enfoque principal; ao conduzir
elementar; os trabalhos, o professor deve ter o cuidado de
• Recursos para experimentação e desenvolvimento da não trazer para si importância maior do que a do
escuta; próprio processo13;

123
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

2. O processo é mais proveitoso quando o aluno favorecido quando uma breve análise da partitura, antes
(intérprete/apreciador) julga-se apto para a troca da leitura à primeira vista no instrumento, possibilita
com os colegas e vê no professor a capacidade de a discriminação de aspectos musicais relevantes que
contribuir, através de sugestões e opiniões musicais; forneçam um panorama geral da peça.
3. O professor responsável pela orientação cotidiana
deve preparar o aluno para tocar em público, Há preceitos básicos que nos parecem consensuais
conhecer concepções diferentes e confiar no seu entre os professores e diferenciam esse tipo de leitura
próprio potencial expressivo; do estudo de repertório16. Para ler à primeira vista, é
importante captar a visão global e manter a regularidade
4. São importantes o respeito às individualidades e
do pulso, sem interromper o processo, mesmo diante
potenciais diferenciados e a busca da qualidade na
de alguma falha. Treinar para tocar sem olhar para
performance, independentemente da complexidade
o teclado, ou apenas baixando muito rapidamente
(técnica e musical) da obra interpretada.
os olhos, é um requisito importante, que depende do
desenvolvimento do senso espacial e da junção entre
Em alguns encontros convidamos os alunos de Piano
as memórias tátil, auditiva e visual. O conhecimento
Complementar para reflexões e elaboração de possíveis
musical torna perceptíveis as estruturas do discurso e
analogias a partir de trechos, textos ou poemas
permite que se saiba como omitir ou substituir um ou
selecionados para a leitura em classe. No material
outro elemento, sem comprometimento ou deturpação
discutido estão incluídos temas relacionados à arte, à
do seu fluxo. A compreensão e a vivência musicais
música e seus intérpretes, à compreensão, à sensibilidade,
facilitam a expressividade na realização da dinâmica e da
ao ensino de uma forma geral e ao ensino específico da
agógica, mesmo que de uma forma incipiente. Por outro
música.14 Apresentações musicais comentadas, leituras e
lado, ao estudar o repertório o aluno deve concentrar-
discussões são estratégias para alcançarmos os objetivos
se na correção de erros, a cada passo, com as devidas
implícitos na nossa proposta pedagógica. Apesar das
interrupções para análise da situação e experimentações,
dificuldades operacionais, insistimos nas aulas coletivas
sempre que houver necessidade. Ele deve procurar
extracurriculares porque são oportunidades para
soluções para os problemas imediatamente, ao invés
entrosamento, enriquecidas por situações inesperadas.
de passar várias vezes pelo mesmo trecho - repetindo
Encontramos conformidade entre esta perspectiva e
e fixando os erros em sua memória motora -, à espera
a do educador SWANWICK (2004), em cuja opinião há
de uma solução espontânea e repentina, com explicação
benefícios na inclusão de atividades semelhantes a estas
desconhecida. A escolha do dedilhado, por exemplo, não
nos programas educacionais. Segundo o autor, neste tipo
é uma tarefa que possa ser negligenciada e nem sempre
de participação há espaço para a performance comentada
é fácil, há situações em que a decisão não é simples.
e para que os alunos apresentem suas ideias e conversem
Estudar por partes e lentamente, escutar, estar atento aos
sobre a música:
detalhes técnicos e musicais são condições essenciais. A
Em um amplo programa de educação musical, os estudantes devem observação das mãos possibilita a análise dos movimentos
amiúde encontrar a si mesmos em posição de fazer julgamentos envolvidos a cada momento, com o objetivo de ajustá-los
musicais verdadeiros, de transformar e desenvolver suas próprias
à produção da sonoridade desejada.
idéias musicais e partilhar seus valores musicais próprios. Pois
os indivíduos fazem suas próprias conexões musicais, que os
capacitam a moverem-se criativamente entre as camadas da Um aspecto crucial é a escolha do repertório, tanto para
música. Os estudantes podem então avaliar seu próprio trabalho a leitura à primeira vista, quanto para a performance. O
e o trabalho dos outros. Tornar-se um ‘membro’, ser parte de uma passo é delicado e importante, afinal, as escolhas que
‘conversação’ é, afinal, do que trata a educação. Só isso torna uma
avaliação significativa, incluindo a ‘auto-avaliação’ do estudante
fazemos são assunto de grande e natural interesse, sejam
(SWANWICK , 2004, p.97).15 elas afetivas ou relacionadas às atividades profissionais.
A orientação do professor e o autoconhecimento do aluno
são fundamentais para o exercício da escolha, para a
6.3. Ler e escolher o repertório, combinar
utilização de métodos de estudo apropriados e para uma
ações e improvisar leitura consciente. Por isto, entendemos que a seleção de
A leitura à primeira vista depende de habilidades repertório para cada estudante deve respeitar critérios,
construídas a partir do conhecimento musical e da tais como: interesses e motivação para a atividade; estágio
técnica específica do instrumento. Como recurso de desenvolvimento técnico e musical; necessidades
pedagógico, conduz o aluno às descobertas e individuais para crescimento e independência; adequação
experiências de concepção musical, realimentadas no entre desafios e possibilidades; diversificação do material
seu autoconhecimento. O intenso trabalho do ouvido e sua compatibilidade com tempo previsto para a
repercute no movimento das mãos à procura do melhor atividade, no caso da leitura à primeira vista17; ampliação
resultado, ao mesmo tempo em que o olhar avança na do conhecimento a respeito de compositores, gêneros,
partitura, para leitura e antecipação de informações idiomas e notações diferentes. 18
básicas para o processamento musical. A preparação dos
movimentos em sequência apoia-se nessas informações, O pianista Michel BLOCK19, em uma entrevista, defende
pois, para cada etapa da decodificação da partitura há fortemente o processo lento de ver, ler e praticar, por seus
uma ação física correspondente. O desempenho pode ser benefícios musicais e psicológicos. Em sua opinião, esta é

124
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

uma atividade mais difícil, devido à capacidade geral de independente das texturas. Há aspectos da performance
atenção que ele percebe nas pessoas, mesmo naquelas que merecem uma maior atenção por parte do aluno e,
que acreditam desejar fazer música. BLOCK compara identificados com o auxílio do seu professor, evidenciam-
o processo de ler e estudar devagar e atentamente se paulatinamente. É possível investigar o conjunto de
com o recurso visual da câmara lenta, que, utilizado necessidades individuais, escolher adequadamente os
numa transmissão esportiva, revela a sincronia de recursos e direcioná-los aos patamares desejados e ao
movimentos imperceptíveis e complexos, comentados tratamento de diferentes conteúdos.
em seguida por especialistas da área, treinados para vê-
los numa velocidade normal. Com a câmara lenta, os A improvisação pode ser estimulada a partir de
movimentos combinados das piruetas de um ginasta ou propostas que apresentem o aumento gradativo do grau
do mergulho de um nadador ficam visíveis para o leigo de complexidade musical. É sempre um desafio para o
e também para quem pretenda analisá-los. BLOCK faz a aluno improvisar uma linha melódica vocal sobre um
analogia entre a arte e a técnica da leitura à primeira encadeamento tocado ao piano. Mesmo que esteja
vista e da prática musical em movimento lento com o restrito às funções harmônicas principais, o material deve
mesmo princípio do esporte, alertando que, na música, atender a diferentes patamares das percepções melódica
o ouvido é o instrumento que deve ser verdadeiramente e harmônica. Se a sequência de acordes for transposta,
sensibilizado, desenvolvido e ensinado. É como se nossos com o cuidado de preservar o conforto da região vocal
olhos ‘ouvissem’ (ao invés de ver) a música e nossa a ser utilizada, outras vantagens estarão incluídas.
audição ‘tocasse’ através de nossas mãos. Neste processo Dentre estas, a conquista de prontidão no raciocínio
devem ser evitados os efeitos nocivos da fragmentação, que envolve o trânsito entre tonalidades ou modos
do movimento desarticulado e antimusical, ou de diferentes, considerando-se as suas dimensões teóricas
uma contagem marcial e robotizada dos tempos em e práticas. Quando a linha melódica é improvisada ao
andamento lento. O conceito da prática recomendada piano ocorre, inicialmente, uma natural diminuição
por BLOCK implica que a atenção deve estar inteiramente na sua complexidade melódica e rítmica, porque ao
voltada para o trabalho do movimento lento: mental, pensamento musical estarão acopladas necessidades
emocional e físico. Parece-nos essencial que o aluno seja técnicas referentes à sua concretização no teclado. A
orientado a respeito destas três dimensões destacadas escolha do dedilhado mais confortável ou um rápido
pelo pianista, para saber integrá-las conscientemente, ajuste quando a primeira opção não for apropriada são
seja numa leitura ou na performance do seu repertório, exemplos de habilidades que envolvem treinamento
na criação e na apreciação musicais. específico e experiência musical. Também por razões
técnicas, a expressão musical em dois planos dinâmicos
A nosso ver, a combinação de ações distintas visa ao na homofonia pode ser um desafio mais complexo,
desenvolvimento de capacidades de dissociação e principalmente para os iniciantes no instrumento.
independência, além de dar suporte para a expressão
individual. Esta independência tem reflexos nas decisões Leitura, ação combinada e improvisação podem ser,
técnicas e musicais, de acordo com a concepção que de forma alternada ou conjugada, trabalhadas com
está sendo construída. Há uma grande variedade um mesmo material, desde que haja versatilidade e
de exercícios práticos para utilização em disciplinas criatividade na sua utilização, com possibilidades variáveis
coletivas ou individuais. As ações simultâneas podem em aulas de Percepção Musical, Treinamento Auditivo
acontecer diversificadamente, por exemplo, através de e Piano Complementar. São atribuições do professor a
duas linhas melódicas (cantar e tocar), duas ou mais escolha, a adaptação e as formas de utilização do material
linhas rítmicas (percutir as mãos, pés e palmas, pés e musical – seja ele popular, folclórico, erudito - conforme
voz, palmas e voz, combinar três destas ações, etc.), as habilitações e os perfis discentes. Quanto ao material
entre uma linha rítmica e outra melódica, (cantar e didático, há uma grande variedade de publicações que
percutir), ou uma base harmônica e uma linha melódica trazem compilações temáticas com inúmeros exemplos
(tocar e cantar). O aluno de Piano Complementar pode extraídos da literatura, de vários períodos e gêneros, além
realizar atividades a partir do seu próprio repertório, dos exercícios elaborados com objetivos e conteúdos
com a alternância entre as linhas da peça, cantando específicos. Os que empregam a diversificação de claves,
uma delas e tocando outra, ou, ao tocar duas ou mais por exemplo, preparam alunos de regência para a leitura
vozes, escolher uma destas para ser cantada ao mesmo (ou redução) ao piano de peças escritas com outras
tempo. Notamos que afloram algumas dificuldades formações instrumentais, um requisito importante para
neste processo e, na medida em que elas são vencidas, a sua futura prática profissional. Tendo em vista que
a performance tende a melhorar, sob vários aspectos. A muitos desses alunos não têm um domínio satisfatório
capacidade de ler verticalmente e a coordenação motora do instrumento ao ingressar na Graduação, tal habilidade
também são objetivos buscados através da prática de deve merecer atenção diferenciada, por parte do seu
tocar uma voz e percutir o ritmo de outra ou apenas professor de Piano Complementar. 20
percutir a linha rítmica de duas vozes com as mãos.
Os exercícios conferem ao praticante maior segurança Um tema a ser destacado é a pertinência da prática musical
nas questões que envolvem a realização consciente e que equilibra a diversificação e o enfoque nos idiomas

125
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

modal, tonal e atonal. Não é pequeno o percentual de é alertado para que a expressividade musical não fique
alunos com experiência insuficiente fora do âmbito tonal, em segundo plano. Quando dificuldades de entonação
o que ocasiona restrições ou limitações indesejáveis na e compreensão são obstáculos vencidos, incentivamos
sua formação. Se não é sempre possível incluir esta o aluno para que experimente com liberdade a própria
diversidade no repertório individual de cada semestre, dinâmica, de acordo com sua análise e sua intuição.
é muito fácil trabalhar idiomas em outras atividades,
de forma produtiva e interessante. Mencionaremos Encontramos em BERKOWITZ, FONTRIER e KRAFT (1976,
três exemplos de publicações didáticas que podem ser cap. IV p.256-317) exercícios, em dificuldade gradativa,
adaptados a propostas diferentes (leitura à primeira distribuídos em quatro seções: Play and Sing, I a IV22.
vista, transposições e improvisações) e que contemplam Inicialmente, há apenas a linha do baixo e uma melodia
idiomas distintos. Ermelinda PAZ (1989 e 1994) realizou a ser cantada, com predominância de graus conjuntos e
um trabalho de pesquisa sobre o modalismo na canção notas pertencentes aos acordes das funções principais.
brasileira que resultou em um conjunto organizado e A seguir, acordes que acompanham a melodia, tocados
expressivo de canções folclóricas, colhidas em várias pela mão esquerda, ou pelas duas mãos (posição aberta);
regiões do país. As canções estão registradas com suas há variações das texturas, como a homofônica ao
letras e em algumas delas há sugestões de harmonização. piano e o acréscimo da linha exclusivamente vocal, ou
É um material interessante para solfejo, análise auditiva, com tratamento polifônico, onde partes escritas para o
ditado melódico e identificação ou realização das instrumento são sobrepostas por uma linha vocal. Pouco
harmonizações características do modalismo (com registro a pouco, crescem as dificuldades técnicas e musicais e
em cifras ou graus). A intimidade com o clima harmônico a complexidade nas dimensões harmônica, melódica e
de cada modo pode ser construída, gradativamente, rítmica. Há o emprego de modulações (tons vizinhos e
pela experimentação de possibilidades diferentes no afastados), da instabilidade tonal, do atonalismo livre e do
acompanhamento de uma melodia. Após as atividades de modalismo. Existem inúmeras possibilidades de leitura, de
identificação melódica e harmônica, há como trabalhar inversões entre linha cantada e tocada e de transposições,
as canções brasileiras em pequenos arranjos vocais, nas exploradas de acordo com a desenvoltura musical e
classes. De forma similar, a leitura, a harmonização e os pianística de cada aluno. No Capítulo V, Improvisation
arranjos destas canções são possibilidades práticas para Studies (p.319-334), os encadeamentos harmônicos são
o aluno de piano, que ainda pode exercitar transposições tocados como base para uma improvisação vocal, para
e improvisações, ampliando sua vivência do âmbito a qual estão escritas diferentes linhas apenas rítmicas,
harmônico específico de cada modo. ficando a cargo do executante o acréscimo de notas
ao trajeto rítmico estipulado, para dar corpo à melodia.
Em Lire la Musique par la Connaissance des Intervalles, Podem ser experimentadas novas melodias, com o mesmo
vol I e II, ARBARETAZ (1979) inclui grupos de exercícios ritmo, em desafios que refinam a coerência, a atenção e
a duas vozes, realizados pela mesma pessoa: Jouer et a criatividade. Este capítulo está organizado em quatro
Chanter (tocar e cantar). Conforme a concepção da seções nas quais a ênfase na complexidade das linhas
autora, os exercícios visam a habituar instrumentistas e rítmicas é agregada paulatinamente.
cantores a escutar a sua parte integrada a outra parte e a
obter independência entre leitura e escuta. As peças estão 6.4. Experiências criativas
cuidadosamente organizadas em dificuldade gradativa,
com indicações de andamento, mas a autora não escreve “Les mauvais musiciens n’entendent pas ce qu’ils jouent.
a dinâmica, delegando as escolhas para o executante. Les medíocres pourraient entendre mais ils n’écoutent pas.
Les musiciens moyens entendent ce qu’ils ont joué.
Os exercícios focalizam intervalos de forma específica Seuls les bons musiciens entendent ce qu’ils vont jouer.”
e, como o objetivo não está na questão rítmica, não há
complexidade no tratamento das durações. Alunos de EdgardWillems23
piano podem tocar e cantar o material contrapontístico
alternando as vozes, pois ele foi composto de acordo com As palavras de E. Willems expõem sua visão sobre
a tessitura vocal média das vozes humanas, tornando a condições individuais do intérprete e, segundo deduções
opção de alternância das ações perfeitamente factível. naturais, parecem ter conexão direta com diferentes níveis
O idioma não-tonal empregado por ARBARETAZ é, para da performance. Conforme o autor, “os maus músicos não
a maioria dos estudantes, um novo ingrediente e um podem ouvir o que eles tocam. Os medíocres podem ouvir,
desafio21. Detectamos entre eles pouca ou nenhuma mas não escutam. Os músicos medianos ouvem o que eles
experiência anterior com estas atividades, especialmente, tocaram. Apenas os bons músicos ouvem o que irão tocar”.
cantar intervalos constitutivos de linhas melódicas E. Willems aponta para a diferença determinante entre a
estruturadas sem a referência de um centro de atração. audição fisiológica, até involuntária, e a escuta ativa que
Sem este apoio, a manutenção da afinação é mais revela compreensão e intenção musicais. Entendemos
difícil, principalmente nas dissonâncias resultantes que fatores como o tipo de aprendizado, a dedicação e
da simultaneidade entre o piano e a voz. Além de o interesse do intérprete e as capacidades individuais
cantar e tocar as linhas melódicas sobrepostas, sem a de discernimento e concentração são componentes
previsibilidade dos idiomas tonal ou modal, nosso aluno com preponderante influência na atividade musical.

126
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

Para conseguir ‘ouvir antes de tocar’, o músico deve ter deste resulte a sonoridade desejada. Acreditamos que
em mente uma paisagem sonora construída durante o o processo e os resultados da análise de uma peça em
trabalho de preparação da peça. Essa paisagem, moldada construção descortinam novas possibilidades para fruição.
lentamente pela percepção dos eventos e pela concepção No pensamento de WISNIK (2001, p.29-30), a música
da obra, precede cada gesto, mantém a vitalidade da consegue “(...) expandir e suspender, condensar e deslocar
intenção musical e norteia a sua interpretação durante aqueles acentos que acompanham todas as percepções.
a performance. Existe nela uma gesticulação fantasmática, que está como
que modelando objetos interiores”. Para Charles ROSEN, “a
Partindo da premissa de que ao lidarmos com um força expressiva da música faz com que imaginemos como
objeto do nosso interesse, em qualquer atividade, o real o que, de fato, está apenas implícito” (2000, p.27)
nosso envolvimento tende a ser maior, incluímos em 25
. Entendemos que na investigação do tratamento da
nossa metodologia os trabalhos de criação, como uma linguagem através da criação é possível desenhar também
estratégia para o desenvolvimento musical, que leve o um cenário importante para a apreciação. Surgem
aluno intérprete a buscar ‘ouvir antes de tocar’. Visamos fundamentações para a performance, é possível ouvir o
a um maior comprometimento com a sua performance, que ‘está apenas implícito’, há a revelação de diferentes
através da atividade criativa, com oportunidades para ‘objetos interiores’ e ‘gesticulações’. Ao desejar expressar
agregar a exploração consciente do seu potencial o próprio pensamento, o aluno conscientiza-se sobre a
expressivo e a aquisição de conhecimentos musicais, necessidade de desenvolver recursos técnicos específicos,
nos aspectos práticos, teóricos e conceituais. O aluno que envolvem capacidades como a de combinar
escreve pequenas peças ou variações, a partir de temas movimentos de maior ou menor complexidade, mais
escolhidos no repertório que esteja estudando, na rápidos ou mais lentos, sem que haja o comprometimento
medida das suas possibilidades. Procuramos orientá-lo da precisão e da flexibilidade. Se a própria criação
para que os trabalhos estejam adequados à proposta musical é o foco das atenções e campo de possibilidades
inicial e, principalmente, para que saiba resguardar o musicais a ser explorado, a motivação e o envolvimento
equilíbrio entre as demandas técnicas e expressivas tendem a crescer. Parece-nos evidente a repercussão
da peça e as suas condições pessoais para realizá-las positiva deste processo nos campos específicos da prática
no instrumento. Como exemplo deste procedimento, musical de cada graduando, seja aluno de instrumentos,
diante de peças que utilizam apenas as cinco notas do canto, composição, regência, ou da licenciatura. Essas
pentacorde, correspondentes aos cinco dedos no piano, experiências com a criação através do piano podem
deverão ser explorados novos elementos estruturadores, ser proporcionadas a alunos de música, em quaisquer
tais como: inclusão de saltos (se no tema original só há estruturas ou modalidades de ensino musical.
graus conjuntos), inversões na direcionalidade e outras
modificações melódicas, dimensionamento harmônico, A criação associada à prática do idioma modal é um
mudanças de texturas (contraponto, homofonia), dos caminhos escolhidos, por reconhecermos as lacunas
novas articulações, enriquecimento da linha rítmica e comuns neste domínio. Pelo mesmo motivo, algumas
outras configurações métricas, expansão dos registros, experiências no idioma atonal servem como pontos de
modificações de andamento e caráter, implementação partida para a criação de pequenas peças. A prática no
da dinâmica, emprego de modos diferentes, instrumento complementa e sistematiza o aprendizado
reorganização da forma. A cada variação criada, o foco musical, acrescentando recursos inviáveis nas aulas
deve estar no processo de enriquecimento gradativo coletivas de Percepção Musical, cujas turmas, atualmente,
dos resultados, com a incorporação de elementos podem abrigar até 30 alunos. Para ampliar as experiências
que tornam evidentes as transformações, a partir da com o idioma modal, partimos de exercícios práticos
dialética com o material original24. ao piano, para avaliar, individualmente, a bagagem de
informações e o nível de compreensão. Em alguns casos
Observamos que o aluno demonstra interesse pela de iniciantes, a simples tarefa de tocar escalas Maiores e
proposta e um genuíno envolvimento com o processo de menores - nas formas antiga (modo eólio), harmônica, e
criação, quando reconhece o ensejo de poder expressar- melódica - em apenas uma oitava, envolve dificuldades
se musicalmente, descobrindo recursos musicais e não apenas técnicas, mas, principalmente, as decorrentes
pianísticos. A cada aula, em conversas e experimentações da não-sistematização de conhecimentos teóricos e da
de alternativas, buscamos a integração entre o pouca desenvoltura auditiva. A possibilidade de lidar
aprendizado e o prazer obtido pelos resultados musicais. com estruturas modais (através de diferentes atividades)
O reconhecimento de elementos estruturadores da configura-se com uma motivação a mais. Tocar e cantar
linguagem e as experimentações e discussões sobre vários escalas modais, comparando-as com os dois modos do
aspectos técnicos e musicais têm repercussão positiva na sistema tonal, pode ser um exercício que demanda tempo
formação do aluno. Dentre estes, citamos o tratamento e disponibilidade do aluno e do professor. Em um curso de
da dinâmica e da agógica, as nuances das articulações, Pedagogia da Educação Musical realizado na EM UFMG,
as texturas, a escolha do andamento e do caráter, a no início dos anos 1980, a pedagoga Violeta H. Gainza26
descoberta de recursos expressivos, o refinamento da apresentou-nos em classe um Quadro Comparativo
escuta e o aperfeiçoamento do toque pianístico, para que dos Modos Litúrgicos, no qual destaca em uma tabela

127
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

as diferenças entre as estruturas escalares dos modos aluno. O estímulo à criação e o seu resultado concreto
litúrgicos, quando comparadas com as escalas Maior e são também possibilidades para a obtenção de satisfação
menor do sistema tonal. Este quadro, transcrito a seguir pessoal e autoconfiança. Além destes aspectos positivos,
(Ex.1), sintetiza informações de forma simples e direta, é pertinente registrar a existência de casos em que,
razão pela qual nós o temos utilizado em aulas coletivas conforme a avaliação discente, a atividade descortinou
e individuais e em disciplinas diferentes. novos horizontes. Alguns alunos já declararam que a
sua primeira pequena peça para o piano foi também a
Gradativamente, induzimos o aluno a descobrir o primeira experiência com a criação instrumental, ou, pelo
encadeamento característico de cada modo. Ao tocar menos, a primeira construída conscientemente e com
e cantar o acorde do I grau (com exceção do modo de preocupações com a coerência e a exequibilidade.
Si - Lócrio), pode classificá-lo como Maior ou menor e,
tocando a escala, experimenta a lógica da denominação
7. Conclusões
adotada por Gainza: M+ ou M- , m+ ou m-, respectivamente “O que importa em uma educação digna de tal nome é
para os modos Lídio, Mixolídio, Dórico e Frígio. Se aluno a vida. Sobre esta vida virá a inserir-se a consciência.”
procura outros graus como o IV e V, determinantes no
tonalismo, surgem as primeiras diferenças; quando toca Edgard WILLEMS (1966, p.34)
as tríades do II e do VII graus, o ambiente harmônico
revela novas surpresas. Concluir que o encadeamento do A nosso ver, há um campo extenso para experimentar
acorde do I grau com apenas mais um outro diferente e ajustar estratégias destinadas à formação musical
pode definir o modo é motivo de surpresa. Fizemos um através do piano, tanto em aulas particulares, como em
quadro para a comparação entre os climas harmônicos e projetos variáveis de musicalização das escolas de ensino
para a definição, caso a caso, dos acordes característicos, regular, em escolas música de formação livre, ou em
abaixo apresentado no Ex.2. escolas inseridas na universidade, que visa à formação
acadêmica. Naturalmente, a escolha de um caminho é
A cada semestre, uma ou mais variações ou pequenas decorrente da sua adequação às metas específicas do
peças são criadas pelos alunos. A produção musical de ensino - nos diversos ambientes e instituições - e as
cada um é incluída no seu repertório e apresentada na opções dos professores devem se apoiar na sondagem
a Audição Final da disciplina27, o que, no nosso ponto de possibilidades e objetivos próprios de suas distintas
de vista, constitui-se em uma meta importante para o clientelas. Tendo em vista a prática pedagógica na

Notas Nome Parece Porém... Logo:


Dó Jônio (M) -------- --------
Ré Dórico menor 6ª Maior menor +
Mi Frígio menor 2ª menor menor -
Fá Lídio Maior 4ª Aumentada Maior +
Sol Mixolídio Maior 7ª menor Maior -
Lá Eólio (m) -------- --------
Si Lócrio --------- -------- -------
Ex.1 – Quadro Comparativo dos Modos Litúrgicos, apresentado por Violeta H. Gainza.

Jônio ambiente tonal: I, IV,V, I; ambiente modal : I, II, I/ I, VI, I etc


Dórico I m e IV M / ou I m e II m (definem o modo)
Frígio I m e II M / ou I m e VII m (definem o modo)
Lídio I M e II M / ou I M e VII m (definem o modo)
Mixolídio IM eVm / ou I M e VII M (definem o modo)
Eólio I m e VII M /ou I m e V m
Lócrio
Ex.2 - os encadeamentos de acordes e os modos

128
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

Graduação e com relação às potencialidades da disciplina assertiva no percurso acadêmico de cada aluno. O
Piano Complementar, acreditamos em particularidades contato individual estabelecido nas aulas é interativo,
positivas de atividades articuláveis entre si e adaptáveis dinâmica que auxilia o professor a conhecer nas
às perspectivas dos alunos, em suas múltiplas trajetórias. individualidades os interesses, perspectivas e habilidades
O conteúdo programático e a abordagem pedagógica já alcançadas, assim, sua participação no processo de
da disciplina podem resguardar alguns princípios desenvolvimento musical dos alunos pode ajustar-se
fundamentais de integração entre áreas do conhecimento a diferentes enfoques e estágios. Por sua vez, o aluno
musical. Como um destes princípios básicos, entendemos da licenciatura ou do bacharelado (que não curse a
que o processo de aprender também significa adquirir habilitação em Piano) pode experimentar possibilidades
capacidades próprias para construir relações e analogias. novas de performance musical. Essas oportunidades
Nesta concepção de ensino/aprendizagem o aluno não conjugadas ampliam fronteiras e abrem caminhos
se encontra apto somente a dar respostas padronizadas para as suas capacidades de apreciação e criação.
e previsíveis a estímulos A experiência docente na Experiências criativas expandem a compreensão e o
disciplina Piano Complementar permite diagnósticos, universo musical do instrumentista, cantor ou regente,
propicia a implementação de propostas sintonizadas através da combinação de habilidades entre um domínio
com as potencialidades individuais e uma participação e o outro - a criação e a performance.

Referências
ALTENMULLER, E. O.Acordes na Cabeça,Revista Viver Mente&Cérebro, www.vivermentecerebro.com.br, outubro, 2004.
ARBARETAZ, M. C. Lirela Musique par laConnaissancedesIntervalles, vol I e II. Paris: ChappelEditeurs de Musique, 1979.
BERKOWITZ, S., FONTRIER, G. e KRAFT, L. A New Approach to Sight Singing. New York: W. W. Norton &Company, 1976.
CAMPOS, M. C. A Educação Musical e o Novo Paradigma. Rio de Janeiro: Enelivros, 2000.
CAVAZOTTI, A. e GANDELMAN, S. Uma Entrevista com Janet Schmalfeldt. PER MUSI, v. 5.Belo Horizonte: Escola de Música
da UFMG, p.55-67, 2002.
DOBBS, DavidReflexo Revelador,RevistaMente&Cérebro,www. mentecerebro.com.br, junho, 2006.
ESTRELLA A. A. Em Torno de Estudos Pianísticos. Tese de concurso para provimento da cadeira de piano, da Escola
Nacional de Música da Universidade do Brasil. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio - Rodrigues & C., 1941.
FOLDES, A. Segredos do teclado - livro dos pianistas. Fernando Lopes Graça. (trad.); Lisboa: Valentim de Carvalho Ltda:
1949.
GAINZA, V. H. Mètodo para Piano - introducción a la música. Buenos Aires: Barry Editorial, 1976.
___________Fundamentos materiales y técnicas de laeducacion musical. Buenos Aires: Ricordi, 1969.
___________ La iniciacion musical del nino. Buenos Aires: Ricordi, 1964.
___________ Estudos de Psicopedagogia Musical. São Paulo: Summus, 1988.
___________ (ed.) Nuevas Perspectivas de laEducacion Musical. Buenos Aires: Editorial Guadalupe, 1990.
GALHOZ, M. A. D. Fernando Pessoa - Obra Poética – organização, introdução e notas. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar
Ltda, 1960.
GARDNER, Howard. Estruturas da Mente A Teoria das Inteligências Múltiplas. Sandra Costa (trad.); Porto Alegre: Artes
Médicas do Sul, 1994.
GIESEKING W. - LEIMER K. Como Devemos Estudar Piano. Tatiana Braunswieser (trad.);São Paulo: E. S. Mangione Edição
“A Melodia”: 1950.
HAZAN, E. O Piano - Alguns Problemas e Possíveis Soluções. São Paulo: Irmãos Vitale, 1984.
HIGUCHI, M. K. K. Técnica e Expressividade - diversidade e complementaridade no aprendizado pianístico. Dissertação de
Mestrado, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP): 2003.
KAPLAN, J. A. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre; Editora Movimento, 1987.
KODAMA, M. K. Tocando com Concentração e Emoção. São Bernardo do Campo: M. KasueKodama, 2000.
LIMA, S. A. [org.] Peformance&Interpretação Musical – umaprática interdisciplinar. São Paulo: Musa Editora Ltda., 2006.
PAZ, E. A. 500 Canções Brasileiras. Rio de Janeiro: Luís Bogo Editor, 1989.
________ As Estruturas Modais na Música Folclórica Brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ - Cadernos Didáticos, 1994.
________. Um Estudo Sobre as Correntes Pedagógico-Musicais Brasileiras.Rio de Janeiro: Cadernos Ditáticos UFRJ, 1992.
ROSEN, Charles. A Geração Romântica. São Paulo: Edusp - Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
SCHNABEL, A. My life and Music. New York: Dover, p.121-141, 1988.

129
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131

SWANWICK, K. A Basis for Music Education. London: Routledge, p 40-53, 1979.


___________ Ensinando Música Musicalmente. São Paulo: Moderna, 2004.
WAGNER, Jeffrey. Interview with Michel Block for Clavier Magazine: To Thine Own Self Be Ture, MaurícioVeloso (Trad.)
[original nãoeditado]
___________Passing on the Legacy - interview with Michel Block by Jeffrey Wagner, Clavier Magazine, vol 37, january
1998.
WEINBERGER, N. M. A Música e o Cérebro, Scientific American Brasil, www.sciam.com.br, 2004.
WIDMER, E. Ludus Brasiliensis – caderno I. São Paulo: Ricordi Brasileira,1967.
WILLEMS, E. Educacion Musical – Vol I. GuíaDidáctica para el Maestro. Buenos Aires: Ricordi Americana,1966.
___________. As Bases Psicológicas da Educação Musical. Suíça: Edições Pro-Musica, 1970.
___________. El valor humano de laeducacion musical. Buenos Aires: Paidos, 2002.
WISNIK, J. M. O Som e o Sentido - Uma outra história das músicas. São Paulo: Editora Schwarcz, 2001.

Notas
1 Resultados em Um Estudo sobre a Comunidade Acadêmica - opiniões e informações, capítulo VI da nossa Dissertação de Mestrado: O Piano
complementar e a Interdisciplinaridade: performance, apreciação e criação integradas na formação acadêmica do bacharelado e da licenciatura ;
www.bu.ufmg.br
2 Entre 1912 e 1917, Walter Gieseking foi aluno de Karl Leimer e, mais tarde, o deu-lhe incentivo para que o livro fosse publicado.
3 Com esta exemplificação o autor se refere, naturalmente, às estruturas de um repertório tradicional, porém, entendemos que o princípio
pedagógico da proposta pode ser transferido para o estudo de peças com outras formas de organização do discurso musical.
4 Sobre as conexões entre formas de memória, acrescentaremos resultados de estudos recentes, no subtítulo 04.
5 Nelson Freire discorre sobre a importância de um estudo bem feito: “É fundamental saber estudar com inteligência. Ouvir-se. Ser seu maior crítico.
Este é um dos maiores problemas dos instrumentistas: não se ouvem. É primordial se colocar no lugar do outro [o ouvinte].” (entrevista ao jornal
Estado de Minas; 08/11/2009).
6 A nosso ver, esta perspectiva permanece atual, visto que as transformações constantes da linguagem - com a expansão de recursos idiomáticos e
de fontes sonoras utilizadas - não restringem as possibilidades da criação musical.
7 Esse crescimento está atrelado à expansão das inteligências musical e intra-pessoal, segundo concepções de H. GARDNER (Estruturas da Mente - A
Teoria das Inteligências Múltiplas; Porto Alegre: Artes Médicas do Sul, 1994; cap. 06 e 10).
8 Alunos de violão costumam experimentar o toque correspondente das notas no próprio braço, como se este fosse o do seu instrumento.
9 Iniciamos o subtítulo 04 com referências a essa espécie de ‘cooperação’, frequentemente constatada nas conversas entre músicos.
10 Experiência na Escola de Música (EM) da UFMG: Bacharelado (com 21 habilitações, a partir da implantação do REUNI, em 2009), Licenciatura e
cursos permanentes de Extensão.
11 A história da habilitação em Canto da EMUFMG registra que já houve consenso com relação à necessidade de um nível básico no domínio do
instrumento. Durante muito tempo, este consenso refletiu-se nos critérios de seleção para ingresso no curso: os candidatos ao Bacharelado em
Canto realizavam provas de piano, interpretando, obviamente, peças de menor complexidade do que as exigidas no repertório para os interessados
na habilitação em Piano.
12 Atividade extracurricular voluntária, não prevista para a disciplina Piano Complementar.
13 Como se fosse um ator em um monólogo, ou um ilusionista que demonstra habilidades inacessíveis aos não-iniciados.
14 Alguns participantes elaboram textos como exercícios de auto-reflexão, crítica e estabelecimento de analogias, tanto entre os diversos temas
tratados, quanto entre estes e as próprias experiências musicais.
15 As camadas da música às quais o autor se refere são a consciência e o controle dos materiais sonoros, do caráter expressivo e da forma musical,
além da consciência do valor pessoal e cultural da música (2004, p.91).
16 E. Widmer (1967, p.03) e E. Hazan (1984, p 28), por exemplo, destacam suas orientações para a leitura à 1ª vista, tais como examinar a partitura
antes de tocar, manter o olhar sempre adiante do trecho que está sendo tocado, olhar raramente para as mãos, tentar ler as frases para encontrar
o sentido da música, tocar lentamente, não parar para correções no percurso. Para Hazan, são igualmente importantes o automatismo para tocar
arpejos, escalas e acordes nas diversas tonalidades, o senso rítmico bem desenvolvido, noções básicas de esquemas harmônicos e formais, o
conhecimento a respeito da linguagem do compositor.
17 Utilizamos regularmente para a leitura à 1ª vista o nosso livro didático Percepção Musical - Idiomas e Timbres: 25 pequenos exercícios e peças a duas
e mais vozes (2000, não publicado). Este material foi elaborado para atender às práticas e necessidades específicas das aulas de Percepção Musical
eTreinamento Auditivo – análises auditivas, leituras vocais, ditados, etc. – e passamos a empregá-lo também na disciplina Piano Complementar.
As peças e exercícios são acompanhados de uma sucinta análise musical e, além da diversificação dos timbres, o material contempla os idiomas
modal, tonal e atonal, com as dificuldades musicais apresentadas de forma gradativa. Predomina a escrita pianística e algumas das peças a três e
quatro vozes, destinadas a diferentes formações instrumentais, podem ser lidas por dois alunos, ou através de redução da partitura ao piano.
18 Entendemos que a formação acadêmica deve resguardar para o graduando uma visão mais ampla que ultrapasse a sua preferência, ou futura
especialização em um único estilo de linguagem musical.
19 WAGNER, Jeffrey, (1998).
20 De acordo com o atual currículo da habilitação em Regência na EM UFMG, o graduando deve estar apto para os dois períodos obrigatórios da
disciplina Leitura de Partitura ao Piano.

130
MACHADO, M. I. L. O Piano Complementar na formação acadêmica... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.115-131.

21 Janet SCHMALFELDT discorre em entrevista sobre a acessibilidade à música produzida desde o século passado em idioma atonal. Concordamos
com sua opinião de que as melhores condições para a compreensão da música de Shoenberg e Babbit, por exemplo, dependem de uma preparação
específica. Na sua avaliação: “No entanto, [esta preparação] não irá acontecer, a menos que façamos algum trabalho para treinar os nossos ouvidos
e os de nossos alunos para ouvir relações atonais. Em algumas das melhores escolas de música existe algo como treinamento auditivo atonal”
(CAVAZOTTI, A. e GANDELMAN, 2002, p.64).
22 No capítulo III, Duets- duas vozes iguais ou mistas (p.208-255) -, o material musical pode ser empregado ao piano, para leitura à 1ª vista e para
tocar e cantar, com a comodidade vocal assegurada em ambas as partes.
23 Marie Claude Arbaretaz (1979) inclui como epígrafe, nos dois volumes do seu trabalho, a citação de Edgar Willems, encontrada no seu livro
L’oreille Musical, Tome II. Em outra publicação (1970, p.97) o autor reedita esta afirmação e acrescenta que os “músicos artistas ouvem como irão
tocar ou cantar aquilo que eles ouvem interiormente”. Tal premissa nos reporta à concepção de Fernando Pessoa (GALHOZ, 1960, p.31) sobre a arte
entendida como uma representação simultânea - ou interseção - de um estado de alma, paisagem interior (neste caso, sonora), com o mundo, ou
seja, com a paisagem exterior captada pela nossa percepção.
24 O 1º volume do Microkosmos (B. Bartók) e o 1º caderno dos Ludus Brasiliensis (Ernst Widmer), têm sido nossos principais pontos de partida para
que os alunos criem suas variações.
25 Em A Geração Romântica, o autor aborda o pensamento musical, as singularidades e procedimentos composicionais nas obras para piano de
compositores do romantismo. Nas suas análises, focaliza aspectos importantes como o conhecimento acerca de características e potencialidades
do instrumento, revelado na criação musical de vários compositores.
26 Para Violeta Gainza (1976, Introdução- Guia Didactica) o aluno deve viver e compreender a música através da sua prática ao piano; partir do
que lhe é próximo e familiar para o conhecimento sistematizado (reconhecer e manejar estruturas básicas) e para a expressão pessoal. Se o aluno
compreende o que toca, o faz com extraordinária facilidade, portanto, é também desejável incluir no seu repertório os próprios trabalhos de
criação musical. A criação surge naturalmente como produto de um saudável metabolismo, quando há a clareza a respeito das estruturas musicais
e instrumentais. Gainza considera a prática de repertório a quatro mãos como recurso importante para o ajuste e equilíbrio dinâmico entre as
partes e valoriza as atividades como transposição, leitura, improvisação, imitação consciente (reprodução do que o professor fez, apelando para a
memória visual e auditiva), ditado ao piano, tocar de ouvido.
27 A audição ao término do semestre está prevista na metodologia de avaliação da disciplina. Participam todos os alunos e o grupo de professores da
área compõe a banca examinadora.

Maria Inêz Lucas Machado concluiu a Graduação em Piano, a Especialização em Educação Musical e o Mestrado em
Estudos das Práticas Musicais na Escola de Música da UFMG. É professora da instituição, na qual exerceu o cargo de
Vice-Diretora por dois mandatos consecutivos, entre 2002 e 2010, e, por um semestre, o cargo de Diretora. Acumula
experiências pedagógicas e administrativas, inclusive em projetos e cursos diversos de Extensão. Atua em disciplinas do
núcleo da formação geral - percepção musical, treinamento auditivo, piano complementar - com ênfases em performance
e educação musical. Constituem suas áreas de interesse (estudos e trabalhos publicados) temas tais como as dinâmicas
da formação básica, intermediária e acadêmica em música, a Extensão e a Graduação em Música na Universidade Pública.

131
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140

A música por uma óptica neurocientífica


Viviane Cristina da Rocha (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP)
vivianerocha85@gmail.com

Paulo Sérgio Boggio (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP)


paulo.boggio@mackenzie.br

Resumo: O estudo da neurociência tem trazido muitas contribuições em diversas áreas, buscando melhor compreender
o funcionamento do cérebro humano. O estudo da música tem sido valorizado em diversas áreas, das quais se destacam
a percepção auditiva, a relação entre música e movimento, a relação entre música e memória, estudos com música e
linguagem, além daqueles acerca das emoções evocadas por música. Além disso, muitos estudos têm apontado para o
papel da música como ferramenta de intervenção em diferentes alterações neurológicas como afasia, autismo e dislexia.
Este artigo apresenta uma revisão dos trabalhos publicados em periódicos internacionais, na última década, relacionados
à música e neurociência, representativos de cada uma das sub-áreas acima citadas. Concluiu-se que há contribuição
da neurociência tanto para o campo de música, da pedagogia musical e da performance, quanto para o campo da
musicoterapia.

Palavras-chave: neurociência da música; emoção e música; linguagem e música; reabilitação e música.

A neuroscientific perspective on music

Abstract: The field of neuroscience has brought several contributions to numerous different areas, in order to achieve a
better understanding of the human brain function. The study of music and how it affects people’s brains has been studied in
conjunction with many other areas, such as music perception, movement, memory, language and music evoked emotions. Also,
many articles have been pointing out to music as a rehabilitation tool in different neurological alterations, such as aphasia,
autism and dyslexia. This article presents a review of representative studies published in the last decade about neuroscience and
music, especially on the areas quoted above. In conclusion, one can perceive the possibilities of contributions from neuroscience
to the field of music itself, as well as music pedagogy, music performance and music therapy.

Keywords: neuroscience of music; emotion and music; language and music; rehabilitation and music.

1 - Introdução
Será muito difícil encontrar uma pessoa que não vivencie a Nas últimas décadas, o avanço das Neurociências
música em seu dia-a-dia. A música se faz presente na vida tem possibilitado uma maior compreensão sobre a
das pessoas de diversas formas, seja ouvindo música no relação entre música e sistema nervoso. Técnicas
carro, assistindo a filmes ou propagandas de televisão, indo como imagem por ressonância magnética (IRM) têm
a concertos, shows ou mesmo estudando um instrumento possibilitado, por exemplo, a verificação de diferentes
musical. A música, junto à linguagem, é um dos traços volumes de estruturas cerebrais específicas como
exclusivos dos seres humanos. Apesar da existência do o corpo caloso, córtex motor e cerebelo quando se
canto dos pássaros e alguns tipos de comunicação entre compara músicos de alto desempenho e não músicos
primatas e baleias, por exemplo, nenhuma outra espécie (SCHLAUG et al., 1995). Nesse sentido, muito tem se
possui esses dois domínios organizados da maneira como discutido sobre efeitos neuroplásticos resultantes
são nos seres humanos (MITHEN, 2006). Além disso, a do treino musical, por exemplo. Já estudos com IRM
música é tão antiga na vida do homem, que é anterior à funcional (IRMF) têm possibilitado o estabelecimento
própria linguagem e à agricultura (LEVITIN, 2008). Embora de correlações entre determinadas áreas cerebrais
não se saiba, ao certo, o papel evolutivo desempenhado e funções, habilidades musicais ou processamento
por ela, não se pode negar sua importância em nossas de sons. Autores como Robert Zatorre (ZATORRE;
vidas, dada sua onipresença, independente da cultura em BELIN; PENHUME, 2002), pioneiro nos estudos de
que está inserida. neurociência e música, estabeleceram, por exemplo,

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 10/09/2011- Aprovado em: 12/05/2012
132
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140.

o papel do hemisfério direito no processamento de 2 - Percepção de estímulos auditivos


música, detalharam o processamento de informação A percepção do som envolve uma série de estruturas
auditiva e musical realizado pelo córtex auditivo e cerebrais, tais como córtex pré-frontal, córtex pré-motor,
discorreram sobre percepção e produção musicais, ou córtex motor, córtex somatosensorial, lobos temporais,
seja, sobre a interação de funções auditivas e motoras. córtex parietal, córtex occipital, cerebelo e áreas do
No caso dessas duas técnicas (IMR e IMRF) amplamente sistema límbico, incluindo a amígdala e o tálamo (OVERY;
empregadas em neurociências, a informação fornecida MOLNAR-SZACKACS, 2009). Essas áreas envolvidas na
tem como principal característica a alta resolução percepção musical envolvem desde a percepção auditiva
espacial. Em função disso, estudos sobre as bases do som, até o reconhecimento de seus parâmetros básicos
neurais da música também têm empregado técnicas (altura, duração, timbre e intensidade) e as relações entre
como a eletroencefalografia (EEG) e análise de eles. Além disso, a percepção musical envolve, também, o
potenciais evocados relacionados a eventos (PE) como entendimento da forma e a compreensão de organizações
forma de entender os aspectos temporais relacionados hierárquicas (sintaxe musical). Tanto a percepção
ao processamento de informação musical. O EEG é uma primária do som quanto seu entendimento sintático
técnica que permite mensurar e determinar com alta são modulados pela experiência emocional de se ouvir
precisão temporal o engajamento cognitivo causado música. A integração de áreas corticais do cérebro com o
por determinada tarefa (AMODIO; BARTHOLOW, sistema límbico (responsável pelas emoções) faz com que
2011). É comumente utilizado em experimentos que o processamento musical seja influenciado pela emoção
investigam a detecção auditiva de dissonâncias, (LEVITIN; TIROVOLAS, 2009).
quebra de expectativa em música ou detecção de
erros em melodias, por exemplo (BESSON; FAÏTA, Muito do que se sabe sobre estruturas cerebrais e música
1995; BRAUN et al., 2008). A análise de potenciais advém de estudos com pacientes que sofreram lesões
evocados (PE) permite que se possa compreender se cerebrais. São estudos tipicamente correlacionais que
o cérebro tem maior ou menor facilidade em detectar investigam a relação entre áreas cerebrais acometidas e
dissonâncias se comparadas a consonâncias. Esse tipo alterações na percepção de diversos desses parâmetros
de pesquisa leva a discussões acerca do componente musicais. Por exemplo, pacientes que apresentam lesão no
biológico de construções melódicas. Por meio da córtex temporal direito tipicamente perdem a capacidade
análise de potenciais evocados, pode-se analisar de reconhecer melodias mantendo a percepção rítmica.
em janelas de tempo da ordem de milissegundos, o Por outro lado, pelo fato destas informações serem do tipo
engajamento cognitivo do indivíduo em determinada correlacionais, ainda não se sabe como o cérebro realiza a
tarefa. Essa análise é feita por meio dos potenciais integração desses parâmetros percebidos separadamente
ou componentes, que são nomeados de acordo com em uma só música (PERETZ; ZATORRE, 2004), sendo que
a janela de tempo em que aparecem e a polaridade há pouca informação sobre as computações neurais
(negativa ou positiva). Dessa forma, o componente envolvidas em cada etapa, assim como a forma como
N400 é analisado numa janela de tempo de cerca de estas são integradas no tempo.
400 milissegundos e tem polaridade negativa (DUNCAN
et al., 2009; LUCK, 2005). O EEG tem sido amplamente Estudos de neuroimagem indicam que o córtex temporal
utilizado em estudos que buscam compreender as direito desempenha um papel importante na percepção
semelhanças e diferenças entre o processamento de melodia (ZATORRE; CHEN; PENHUME, 2007). Além
musical e verbal. Como exemplo desta técnica, disso, mostram que pacientes com lesões na porção
KOELSCH et al. (2004) mostraram que o componente anterolateral direita do giro de Heschl apresentam
N400, tipicamente relacionado ao processamento dificuldades na percepção de sons cuja frequência
semântico da linguagem verbal é encontrado de forma fundamental foi extraída, além de dificuldades na
semelhante durante o processamento de informação identificação do contorno melódico em músicas (PERETZ;
semântica não-verbal (musical). Com isso, estreita-se ZATORRE, 2004). É importante notar que o cérebro
a relação entre aspectos básicos do processamento humano é capaz de identificar as notas cuja frequência
de informação verbal e musical. Da mesma forma, o fundamental foi extraída pela análise dos harmônicos do
estudo da neurociência da música tem trazido, nas som, deduzindo a fundamental (LEVITIN, 2010).
últimas décadas, uma série de contribuições para o
melhor entendimento dos efeitos causados pela música Da mesma forma, a percepção de ritmos recruta uma série
nos indivíduos e de seu impacto no funcionamento do de outras estruturas, tais como gânglios basais, cerebelo,
cérebro humano (PERETZ; ZATORRE, 2004). córtex pré-motor dorsal e área motora suplementar. A
percepção rítmica, assim como ocorre com a melódica, é
Em função dos estudos crescentes na literatura realizada pelo cérebro em diversos níveis hierárquicos, por
científica internacional e do número reduzido de isso o envolvimento de um grande número de estruturas
trabalhos publicados no Brasil, esta revisão buscou cerebrais. Quanto mais complexo o padrão rítmico ouvido,
apresentar os principais tópicos estudados na relação maior a atividade neural de quem ouve (CHEN; PENHUME;
entre música e neurociência, assim como apontar para ZATORRE, 2008). É importante notar que a percepção
novas perspectivas de investigação. rítmica envolve áreas motoras do cérebro, independente

133
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140

de se executar ou somente ouvir música, o que sinaliza córtices auditivo e motor são recrutados. O interessante
para mecanismos de integração multisensorial e motora desse dado é que, mesmo somente ouvindo música,
(ZATORRE; CHEN; PENHUME, 2007). Esse assunto será sem se executar qualquer tarefa motora, o córtex
tratado com maiores detalhes na seção seguinte. motor é recrutado. Além disso, apesar de diferenças
na intensidade do recrutamento de áreas entre os dois
grupos, tanto músicos quanto não músicos obtiveram o
3 - Música e movimento
mesmo tipo de recrutamento. Isso indica que a interação
Um aspecto importante da música, tanto em sua auditivo-motora não está restrita a pessoas com prática
percepção quanto em sua produção é a capacidade de musical, sendo a prática musical relacionada somente à
gerar interações auditivo-motoras no cérebro de quem intensidade desse fenômeno. Seguindo a mesma linha,
executa e, também, no de quem ouve. Para compreender BAUMANN et al. (2005) investigaram as áreas cerebrais
essas interações é necessário o esclarecimento de dois envolvidas quando pianistas tocavam sem feedback
conceitos importantes: auditivo e ouviam as mesmas peças previamente tocadas
sem tocar o instrumento. Assim como no estudo anterior,
Feedfoward – Relacionado à capacidade do indivíduo de os pesquisadores observaram recrutamento tanto de
prever eventos. Um exemplo é o fato de que quase todo áreas motoras quanto auditivas durante as duas tarefas -
indivíduo é capaz de bater os pés no ritmo de uma música uma puramente motora e outra puramente auditiva. Nas
que escuta. O indivíduo percebe a regularidade da música duas situações, tanto o córtex auditivo quanto o córtex
(estímulo auditivo) e consegue prever e sincronizar o motor foram recrutados, fornecendo maiores evidências
movimento dos pés com ela (resultado motor). para o entendimento das interações auditivo-motoras.

Feedback – Relacionado à capacidade de realizar Cabe notar que pacientes com doenças neurológicas podem
alterações no processo motor a partir da audição de se beneficiar dessas interações auditivo-motoras, como é
estímulo sonoro. Um exemplo disso é o violinista que toca o caso de pacientes com doença de Parkinson, que, apesar
uma nota com afinação não muito precisa e consegue, da dificuldade em se locomover, conseguem, por meio da
a partir do resultado sonoro, realizar modificações nas música, adquirir um andar mais fluente. Além disso, esses
posições dos dedos, alcançando, assim, um resultado pacientes conseguem dançar ao ouvir música, o que indica o
preciso de afinação (ZATORRE; CHEN; PENHUME, 2007). engajamento de áreas cerebrais relacionadas ao movimento
com a simples audição de música (THAUT et al., 2001). Esse
Há muitos estudos acerca dessas interações. LAHAV; efeito estaria relacionado à ativação de circuitos automáticos
SALZMAN; SCHLAUG (2007) realizaram um estudo com de movimento, normalmente perdidos durante o processo
pessoas sem experiência musical em que ensinavam aos degenerativo da doença. O que se argumenta é que os
sujeitos sequências simples de 5 notas ao piano. Após o circuitos que normalmente engajam áreas relacionadas à
treino, ao ouvirem as sequências treinadas, os sujeitos locomoção vão perdendo sua função. A música, no caso,
apresentavam recrutamento de estruturas tanto do atuaria como um agente diferente ao normalmente utilizado
córtex auditivo quanto do córtex motor. Para sequências no engajamento de tarefas motoras.
não treinadas, o mesmo não acontecia, ou acontecia
com menor intensidade. Estudos como esse indicam Outra questão importante é a relação do sistema de
a interação entre córtex auditivo e motor. Estabelecer neurônios espelho com a música. Os neurônios espelho
como se dão essas interações pode auxiliar na melhor foram descobertos primeiramente em macacos e,
compreensão dos mecanismos de feedfoward e feedback posteriormente, descobriu-se sistema análogo no cérebro
que regem a performance musical. humano (MOLNAR-SZACKACS; OVERY, 2006). Consiste
num grupo de neurônios que é recrutado tanto na ação
Em estudo de neuroimagem, VOGT et al.(2007) quanto na observação da mesma ação executada por
investigaram as interações auditivo-motoras em músicos outro indivíduo. São recrutados, também, em resposta à
(violonistas) e não músicos. Cada sujeito era submetido audição de sons relacionados à ação executada por outro
a uma sessão de prática de 4 acordes. No dia seguinte, indivíduo (RIZZOLATTI; CRAIGHERO, 2004). Acredita-se
participavam de uma sessão de ressonância magnética que o sistema de neurônios espelho esteja relacionado
funcional (IMRF) em que assistiam a um vídeo no qual ao aprendizado por imitação, tendo sido, possivelmente,
um violonista tocava acordes. Dentre os acordes tocados responsável pela aquisição da linguagem nos seres
estavam aqueles treinados além de acordes não treinados. humanos (MOLNAR-SZACKACS; OVERY, 2006). Assim
Os sujeitos também eram instruídos a tocar acordes que como a linguagem, o aprendizado de música é realizado,
apareciam no vídeo (treinados e não treinados). Além do em grande parte, pela capacidade de imitação (MOLNAR-
teste de desempenho, em que músicos tiveram melhores SZACKACS; OVERY, 2006; OVERY; MOLNAR-SZACKACS,
resultados, os resultados da ressonância mostraram o 2009; LEVITIN, 2008). Ao mesmo tempo, apesar de
recrutamento de áreas cerebrais semelhantes na audição indícios sobre o papel do sistema de neurônios espelho
e na execução. Essa semelhança apareceu tanto em no aprendizado e na prática musical, não se sabe ao
músicos quanto em não músicos, embora com intensidade certo qual seria a função desses neurônios em relação à
diferente nos dois casos. Os resultados indicam que tanto música. MOLNAR-SZACKACS e OVERY (2006) propuseram
na audição quanto na execução de música ambos os um modelo indicando uma possível contribuição dos

134
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140.

neurônios espelho para a compreensão e organização (especialmente melodias) e do hemisfério esquerdo para
hierárquica, além de um papel de conexão entre córtex processamento de linguagem. Isso pode ser observado em
auditivo e sistema límbico, o que teria implicações na casos de pacientes com amusia, por exemplo, que têm a
percepção de emoções evocadas por música. fala intacta e apresentam problemas em reconhecimento
de músicas (ZATORRE; BELIN; PENHUME, 2002; PFEUTY;
4 - Música e linguagem PERETZ, 2010). Outro exemplo da independência dos
Tanto a música quanto a linguagem valem-se da sistemas de processamento de fala e de música é o caso de
manipulação dos diferentes parâmetros do som para sua pacientes com afasia, que mantêm a capacidade de cantar
organização sonora, além de compartilharem a necessidade e de reconhecer música, embora tenham dificuldades na
de uma organização hierárquica. Para a fala, utiliza-se fala (ZATORRE; CHEN; PENHUME, 2007).
grande variação de timbres em um curto espaço de tempo,
formando-se vogais e consoantes. Na música, há maior A afasia consiste na perda total ou parcial da comunicação
variação de alturas e a duração de cada som é maior do verbal. Pode ser resultado de lesão na porção posterior
que na fala. Ao mesmo tempo, as variações de duração do lobo frontal inferior (área de Broca) ou na porção
desempenham papel mais importante do que na fala, tendo posterior do lobo temporal superior (área de Wernicke),
que ser realizadas de maneira precisa. Apesar das diferenças ambas no hemisfério esquerdo do cérebro (SCHLAUG;
citadas, música e linguagem têm, ambas, organização MARCHINA; NORTON, 2009). Estudos indicam que
sintática e implicam compreensão semântica (PATEL, 2008; pacientes com afasia podem se beneficiar da Terapia de
PATELet al., 1998; ZATORRE; BELIN; PENHUME, 2002). Entonação Melódica (MIT – Melodic Intonation Therapy).
Essa terapia se utiliza de dois elementos principais, o uso
Grande contribuição tem sido dada pelos estudos com de intervalos melódicos próximos aos do canto na fala e
PE (potenciais relacionados a eventos). Por meio desta a marcação do ritmo da fala com a mão esquerda. Em um
técnica não invasiva, pode-se obter resultados com alta estudo conduzido por SCHLAUG; MARCHINA; NORTON
precisão temporal, embora não se obtenha resultados (2009), foram acompanhados pacientes com afasia de
precisos de localização dos processamentos neurais moderada a severa submetidos a tratamento intensivo
(AMODIO; BARTHOLOW, 2011). Um potencial relacionado de MIT. Os pesquisadores analisaram imagens obtidas
a evento importante para o estudo da linguagem é o por ressonância magnética de estruturas do cérebro
N400, inicialmente descrito por KUTAS e HILLYARD (1980) dos pacientes antes e depois do tratamento. Além de
em resposta a incongruências semânticas textuais. O apresentarem significativa melhora na fala, todos os
N400 é um potencial negativo que aparece por volta pacientes apresentaram aumento das fibras do fascículo
de 400 milissegundos após o estímulo (KHATEB et al., arqueado do hemisfério direito, área que, no hemisfério
2010). KOELSCH et al.(2004) realizaram experimentos esquerdo, conecta as regiões de Broca e Wernicke. Os
relacionando o N400 também a incongruências semânticas resultados indicam que a MIT, baseada em intervalos
musicais, sugerindo que a compreensão semântica de cantados e marcação rítmica pode gerar benefícios na
música deve ser semelhante à compreensão semântica de fala de indivíduos com afasia, por meio da reorganização
textos. Neste estudo foram conduzidos dois experimentos da região homóloga no hemisfério que não sofreu lesão
similares. No primeiro, os sujeitos eram apresentados
a trechos de frases, seguidos de palavras, que poderiam Na mesma direção, RACETTE; BARD; PERETZ (2006)
apresentar congruência ou incongruência semântica com a conduziram três diferentes experimentos com pacientes
frase apresentada. Ouviam também, trechos musicais, que afásicos. Os experimentos eram relacionados à repetição
poderiam ser seguidos por palavras de conteúdo semântico de palavras, canções, orações e provérbios, além de
congruente ou incongruente ao trecho musical apresentado. memória para os trechos repetidos. Os pesquisadores
Os participantes eram instruídos a julgar a palavra como buscavam identificar diferenças entre memória e
congruente ou incongruente. Tanto na situação musical qualidade de repetição de palavras cantadas ou faladas.
quanto na situação textual, o potencial N400 foi evocado, Apesar de não encontrarem diferenças significativas nas
com mesma amplitude, indicando o mesmo tipo de situações de repetição, encontraram diferenças quando
processamento neural para semântica textual e musical. No se cantava junto com um estímulo auditivo e quando se
segundo experimento, os trechos apresentados aos sujeitos falava junto a um estímulo. Este estudo trouxe evidências
eram os mesmos, porém os participantes eram instruídos de que o canto em conjunto pode trazer benefícios para os
a somente prestar atenção, pois seriam posteriormente pacientes por meio da ativação do sistema de neurônios
submetidos a um teste de memória. Nessa segunda espelho ou de interações auditivo-motoras.
situação, os resultados encontrados foram os mesmos, não
havendo diferença com relação à primeira situação. Os Já com relação à dislexia, estudos revelam que pacientes
resultados sinalizam uma base comum no processamento com este distúrbio apresentam dificuldades de timing
semântico das informações. e ritmo tanto em linguagem quanto em música
(MOLNAR-SZACKACS; OVERY, 2006). OVERY (2003)
Por outro lado, música e linguagem são processadas de conduziu estudos relacionando habilidades linguísticas
maneira independente no cérebro, havendo predominância e musicais em crianças disléxicas e saudáveis. Os
do hemisfério direito no processamento musical resultados dos experimentos indicam que disléxicos

135
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140

apresentam os mesmos problemas em música e em resultado de julgamentos estéticos e envolva, portanto,


linguagem, envolvendo dificuldades motoras com somente regiões corticais do cérebro, sendo resultado
ritmos e dificuldades com rápidos estímulos auditivos. de análises estruturais da música (PERETZ; ZATORRE,
Além disso, um dos experimentos de OVERY propunha 2004). Outra corrente, no entanto, acredita que a
um programa de aulas de música com duração de 15 música seja capaz de evocar emoções simples, do dia-
semanas, específico para disléxicos, contendo exercícios a-dia, tais como alegria, tristeza, medo e raiva, sendo
de ritmo e canto. Como resultado, obteve-se melhora na independente de análises formais. Estudos indicam
capacidade fonológica dos disléxicos e na capacidade que a música recrutaria estruturas do sistema límbico
de soletrar palavras. No entanto, não houve melhora na e paralímbico e não apenas áreas corticais do cérebro
capacidade de leitura dos sujeitos. (KOELSCH, 2010). Nesse sentido, indicam que a audição
de música agradável implica o recrutamento de regiões
Por fim, indivíduos autistas, que podem apresentar cerebrais relacionadas ao sistema de recompensa.
déficits linguísticos graves, podem se beneficiar de Essa atividade seria semelhante à encontrada em
terapias relacionadas ao canto, uma vez que muitos resposta ao abuso de drogas, por exemplo. Em estudos
deles se interessam por música. Embora não haja muitos que correlacionam medidas de condutância da pele
estudos relacionando música e benefícios linguísticos com ressonância magnética funcional, observou-se
para autistas, existem relatos de casos isolados em que se que, quando os sujeitos ouviam trechos musicais que
utilizou uma adaptação da MIT com resultados positivos causavam prazer (medidos por meio da condutância da
na aquisição de linguagem em autistas. No entanto, pele e traduzidos como “arrepios”), áreas dos sistemas
estudos ainda devem ser conduzidos nessa área para que límbico e paralímbico relacionadas à recompensa
se possa propor um tratamento específico para autistas eram recrutadas (BLOOD; ZATORRE, 2001; MENON;
envolvendo música (WAN et al., 2010). LEVITIN, 2005).

Muitos experimentos foram conduzidos buscando-se


5 - Música e emoção a melhor compreensão dos parâmetros do som, tanto
A capacidade da música de evocar emoções é uma em linguagem falada quanto em música, e sua relação
das suas características mais bem reconhecidas pelos com as emoções. Em um artigo de revisão sobre o
ouvintes. Desde a Antiguidade, discute-se a capacidade tema, JUSLIN e LAUKKA (2003) compilaram os sinais
da música em evocar sentimentos. PLATÃO, em A acústicos de músicas instrumentais e vocais envolvidos
República, discorre sobre a impressão de traços morais na evocação de emoções como alegria, tristeza, raiva,
em indivíduos a partir da experiência musical. Para medo e ternura (Ex.1).
PLATÃO, determinados modos (escalas em que a música
grega era baseada) tinham a capacidade de imprimir SCHERER (1995) também compilou características
diferentes traços morais específicos nos indivíduos. O acústicas de emoção relacionada à voz, cantada e falada.
filósofo também acreditava que determinados modos As características foram compiladas para alegria, tristeza,
deveriam ser banidos da música grega por incitar raiva e medo (Ex.2). Esses estudos indicam um padrão
aspectos morais pouco nobres nos cidadãos gregos. No comum para a comunicação de emoções entre linguagem
período Barroco (1600-1750), compositores guiavam-se falada e música. As características manipuláveis em
pela Teoria dos Afetos, segundo a qual se poderia exprimir música para se transmitir emoções seriam semelhantes
determinadas emoções por meio da música, através da às da prosódia da fala.
correspondência de intervalos melódicos específicos e
determinadas emoções (GROUT; PALISCA, 2007). A capacidade da música de regular emoções, apesar de
amplamente observada no dia-a-dia, ainda necessita
Do ponto de vista evolutivo, a música pode ter tido ser mais estudada. O melhor entendimento das
papel importante na comunicação de emoções entre os estruturas envolvidas na evocação de emoções por
primeiros humanos, ainda sem a linguagem desenvolvida música pode contribuir para o tratamento de distúrbios
como a conhecemos. A partir do rebaixamento da laringe, como depressão e doença de Parkinson, uma vez que a
trazido pelo advento do bipedalismo, nossos ancestrais música ativa áreas como o hipocampo (que poderia ter
puderam produzir uma gama maior de sons, explorando relação com a depressão) e o sistema dopaminérgico
melhor características sonoras como a prosódia, por (região afetada pela doença de Parkinson) (KOELSCH,
exemplo. Dessa forma, a música, anterior à linguagem, 2010). Outra contribuição importante pode ser dada
poderia ter contribuído para a comunicação de estados a pacientes com Alzheimer. Estudo conduzido por
de ânimo entre humanos. Pode ter contribuído também DRAPEAU et al. (2009) avaliou o reconhecimento de
para a melhor convivência em grupo dos primeiros emoções em faces, voz e música por pacientes com
humanos, por meio de suas características que favorecem Alzheimer. Os resultados mostraram que os pacientes
a interação social (MITHEN, 2009). perdiam somente a capacidade de reconhecer emoções
em faces, mantendo a capacidade de reconhecimento
Estudos com emoções evocadas por música indicam de emoções em vozes e música. O melhor entendimento
diferentes visões entre os pesquisadores. Alguns desse processo pode levar a contribuições para o
acreditam que a emoção evocada por música seja tratamento da doença por meio da música.

136
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140.

Emoção Sinais acústicos para fala e música vocal

Raiva Andamento rápido, alta intensidade, frequência fundamental alta, alta variação de frequência

Medo Andamento rápido, baixa intensidade, frequência fundamental alta, baixa variação de frequência

Alegria Andamento rápido, intensidade entre média e alta, frequência fundamental alta, alta variação de frequência

Tristeza Andamento lento, baixa intensidade, frequência fundamental baixa, baixa variação de frequência

Ternura Andamento lento, baixa intensidade, frequência fundamental baixa, baixa variação de frequência

Ex.1 – Tabela com sinais acústicos de emoção na fala e na música vocal e instrumental. Baseado em JUSLIN; LAUKKA, 2003.

Emoção Sinais acústicos para fala e música vocal


Raiva Média de frequência alta, alta variação de frequência, alta intensidade, alta frequência de articulação
Medo Média de frequência alta, alta variação de frequência, alta frequência de articulação
Alegria Média de frequência alta, alta variação de frequência, alta intensidade, alta frequência de articulação
Tristeza Média de frequência baixa, baixa variação de frequência, baixa intensidade, baixa frequência de articulação

Ex.2: Tabela com sinais acústicos de emoções na fala e no canto. Baseado em SCHERER, 1995.

6 - Música e memória
O uso de música como recurso mnemônico traz dúvidas de memória (SCHULKIND, 2009). Pacientes com lesão
a respeito da natureza da memória para música. Ainda no lobo temporal direito podem perder a capacidade
não se sabe, por exemplo, se a memória para música de reconhecer músicas, porém não perder a memória
pode ter as mesmas características que a memória para para outros assuntos. Estudos sobre reconhecimento
outros tipos de eventos. Além disso, não se sabe por de melodias sugerem que este esteja relacionado não
que razão a música facilita a aquisição de memória. A só à memória, mas também à análise formal da música
existência de pacientes com demência que podem se ouvida (PERETZ et al., 2009).
esquecer de fatos da própria vida, mas são capazes de
cantar canções da infância de cor indica que, se não é A música é amplamente utilizada como recurso
especial, a memória para música é, ao menos, diferente mnemônico. No entanto, não se sabe ao certo por que
da memória para fatos e imagens do cotidiano. Relatos motivo a música amplia as capacidades de memória
de caso indicam que pacientes que sofrem de demência, para textos, por exemplo (SU; WANG, 2010). Uma
com atrofia do lobo temporal esquerdo, apresentam hipótese reside no compartilhamento de conteúdo
perda de memória semântica, esquecendo-se de semântico entre linguagem e música. Estudos com
palavras e nomes de objetos. No entanto, em músicos potenciais evocados indicam que a compreensão
com demência, apesar da perda da memória semântica, sintática e semântica de música é semelhante à
não há perda da memória musical (WEINSTEIN et al., de linguagem, sendo que as duas áreas podem
2011). Ainda se faz necessária uma maior investigação compartilhar o recrutamento de áreas neurais. Além
acerca da memória musical na demência. Além disso, disso, é possível que o resultado positivo de um mesmo
a maioria dos estudos investiga a memória musical em texto memorizado com música e sem música resida no
pacientes com demência leve. O estudo desse tipo de fato de que as pessoas gostam de música e, portanto,
memória em outros estágios da doença poderá trazer “ensaiam” muito mais um texto com música do que um
novas perspectivas a respeito da memória. texto sem música (SCHULKIND, 2009).

Estudos com pessoas saudáveis na área de memória Segundo KOELSCH (2010), a ativação de áreas como o
para música quando comparada à memória para hipocampo durante a audição de músicas pode, também,
textos e preços, por exemplo, indicam que a memória ter relação com a memória, podendo trazer contribuições
musical funciona da mesma maneira que outros tipos para intervenções em doenças como Alzheimer.

137
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140

7 - Música e neuroplasticidade – cérebro de cerebral por meio da música. Em um artigo de revisão,


músicos TERVANIEMI (2009) também oferece indicativos de que
as diferenças encontradas entre cérebros de músicos e
Além das contribuições com relação a distúrbios
não músicos seriam induzidas pela prática musical. Um
neurológicos já citados, são conduzidos muitos estudos
estudo apontou maior área de representação cerebral
com relação à plasticidade e ao cérebro de músicos. Estudos
dos dedos da mão esquerda em violinistas profissionais
indicam que há diferenças estruturais entre cérebros de
(ELBERT et al., 1995). Quanto às diferenças estruturais de
músicos e não músicos. Entre as diferenças apontadas
cérebros de músicos e não músicos, também há evidências
estão maior volume do córtex auditivo, maior concentração
de que o planum temporale esquerdo, responsável pelo
de massa cinzenta no córtex motor, maior corpo caloso
processamento de sons complexos, seja maior do que
anterior. Estudos envolvendo neuroplasticidade indicam
o direito em músicos, se comparados a não músicos
correlação entre tempo de estudo musical e essas
(TRAINOR; SHAHIN; ROBERTS, 2009).
diferenças estruturais. Além disso, é possível que haja um
período crítico relacionado a essas mudanças, indicando
Além das contribuições do estudo da música para
uma possível correlação entre idade em que se começou
tratamento de distúrbios neurológicos já citadas,
a estudar música e as mudanças estruturais cerebrais.
pode-se indicar um possível uso da música na área de
Apesar das correlações encontradas, não se sabe se as
educação, uma vez que há indícios de correlações entre
mudanças no cérebro de músicos foram induzidas pelo
habilidades musicais e outros tipos de habilidades, desde
estudo de música ou se já havia uma predisposição para
cognitivas até relacionadas à socialização e integração
o desenvolvimento delas anterior ao estudo de música
dos indivíduos.
(ZATORRE; CHEN; PENHUME, 2007; SCHLAUG et al., 1995).

Há, ainda, estudos que indicam correlação entre 8 - Perspectivas futuras


treinamento musical formal e habilidades linguísticas, Apesar do grande crescimento do número de pesquisas
espaciais e matemáticas. Além disso, há indícios de que em neurociência da música na última década, ainda
a boa discriminação de altura e ritmo em música possa há muitas questões a serem respondidas. A possível
contribuir para boa discriminação fonológica e para utilização da música no tratamento de distúrbios
desenvolvimento precoce da leitura. Também foram neurológicos é uma questão que, apesar de apresentar
encontradas correlações entre treinamento musical e bons indicativos, ainda necessita de maior exploração
memória verbal, além de correlação com melhora em para que se possa chegar a propostas concretas de
testes de QI. Também com relação aos possíveis efeitos tratamentos. Além disso, apesar do grande número
do treinamento musical no cérebro, há contribuições de estudos relacionando música e neuroplasticidade,
dos estudos com potenciais evocados. Estudos com ainda não se pode afirmar que a música desempenha
PE indicam que os potenciais N1 e P2, relacionados papel ativo em mudanças estruturais no cérebro.
à discriminação de estímulos auditivos têm maior Muitos estudos ainda precisam ser conduzidos na área.
amplitude em músicos profissionais do que em não Destaque deve ser dado às interações auditivo-motoras
músicos (TRAINOR; SHAHIN; ROBERTS; 2009). que podem contribuir tanto para o tratamento de
distúrbios, como para o ensino de música. A prática de
Buscando compreender a correlação entre estudo musical alguns instrumentos que geram fadiga muscular pode
e aumento do corpo caloso, SCHLAUG et al. (2009a) se beneficiar das interações auditivo-motoras com
realizaram um estudo com crianças entre 5 e 7 anos de o objetivo de se reduzir horas de estudo puramente
idade. As crianças foram divididas em três grupos: um muscular e, ainda assim, manter um bom resultado.
grupo com prática semanal de instrumento musical de 1 a Com relação à linguagem, ainda há muita controvérsia
2 horas, um grupo com prática semanal de 2 a 5 horas e um na área a respeito das relações desta com a música.
grupo controle que não teve aulas de música. Ao começo Ainda que haja extensa tradição estético-filosófica
do estudo não havia diferenças entre os volumes dos corpos acerca de emoções evocadas por música, estudos em
calosos dos sujeitos. Após 29 semanas de prática havia neurociência apontando para essa direção utilizam
diferença significativa entre o tamanho do corpo caloso como referência somente as emoções básicas, tais
das crianças dos três grupos, sendo que as crianças com como alegria, tristeza, medo e raiva (EKMAN; FRIESEN;
mais tempo de estudo apresentavam um aumento maior O’SULLIVAN, 1987). Apesar desse tipo de emoção
do corpo caloso. HYDE et al. (2009) conduziram um estudo poder ser evocado por música, não se pode negar que
semelhante que acompanhou dois grupos de crianças por o fenômeno musical é mais complexo e pode evocar
15 meses. Um grupo teve aulas de instrumento musical e diversas nuances diferentes de emoções nos ouvintes.
outro grupo somente participava de aulas de musicalização No entanto, as emoções básicas são um princípio ao
em grupo na escola. Foram encontradas diferenças estudo de emoções evocadas por música. Dessa forma,
em regiões como giro pré-central direito (área motora apesar dos grandes avanços na última década, estudos
relacionada a movimento de mãos), corpo caloso e giro apontam para o desenvolvimento de uma série de novos
de Heschl (área auditiva primária). Esses estudos indicam rumos, buscando a resolução das dúvidas acerca desse
uma forte possibilidade da indução da plasticidade fenômeno tão caro ao ser humano.

138
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140.

Referências
AMODIO, D. M., & BARTHOLOW, B. D. Event-related potential methods in social cognition. In A. Voss, C. Stahl, & C. Klauer
(Eds.), Cognitive Methods in Social Psychology. New York: The Guilford Press, pp. 303-339, 2011.
BESSON, M.; FAÏTA, F. An event-related potential (ERP) study of musical expectancy: comparison of musicians with
nonmusicians. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, v. 21, p. 1278-1296, 1995.
BAUMANN, S.; KOENEKE, S.; MEYER, M.; LUTZ, K. & JANCKE, L. A network for sensory-motor integration: what happens
in the auditory cortex during piano playing without acoustic feedback? Annals of the New York Academy of Science,
v. 1060, p. 186-188, (2005).
BLOOD, A.; ZATORRE, R.J. Intensely pleasurable responses to music correlate with activity in brain regions implicated in
reward and emotion. PNAS, v. 98, p. 11818–11823, 2001.
BRAUN, A.; MCARDLE, J.; JONES, J.; NECHAEV, V.; ZALEWSKI, C.; BREWER, C.; DRAYNA, D. Tune deafness: processing melodic
errors outside of conscious awareness as reflected by components of the auditory ERP. PLoS ONE, v. 3, e2349, 2008.
CHEN, J. L.;PENHUME, V.B.; ZATORRE, R. J. Moving on time: brain network for auditory-motor synchronization is modulated
by rhythm complexity and musical training. Journal of Cognitive Neuroscience, v. 20, p. 226, 2008.
DUNCAN, C. C.; BARRY, R. J.; CONNOLLY, J. F.; FISCHER, C.; MICHIE, P. T.; NÄÄTÄNEN, R.; POLICH, J.; REINVANG, I.; VAN
PETTEN, C. Event-related potentials in clinical research: guidelines for eliciting, recording, and quantifying mismatch
negativity, P300, and N400. Clinical Neurophysiology, v. 120, p. 1883-1908, 2009.
DRAPEAU, J.; GOSSELIN, N.; GAGNON, L.; PERETZ, I.; LORRAIN, D. Emotional recognition from face, voice, and music in
dementia of the Alzheimer type. Annals of the New York Academy of Science, v. 1169, p. 342-354, 2009.
EKMAN, P.; FRIESEN, W.; O’SULLIVAN, M.; DIACOYANNI-TARLATZIS, I.; KRAUSE, R.; PITCAIRN, T.; SCHERER, K.; CHAN, A.;
HEIDER, K.; LECOMPTE, W. A.; RICCI-BITTI, P.; TOMITA, M. Universals and cultural differences in the judgments of
facial expressions of emotion. Journal of Personality and Social Psychology, v. 53, p. 712-717, 1987.
ELBERT, T.; PANTEV, C.; WIENBRUCH, C.; ROCKSTROH, B.; TAUB, E. Increased cortical representation of the fingers of the
left hand in string players. Science, v. 270, p. 305-307, 1995.
GROUT, D.J.; PALISCA, C.V. História da Música Ocidental. 5 ed. Lisboa: Gradiva, 2007.
HÉBERT, S.; RACETTE, A.; GAGNON, L.; PERETZ, I. Revisiting the dissociation between singing and speaking in expressive
aphasia. Brain, v. 126, p. 1838-1850, 2003.
HYDE, K.L.; LERCH, J.; NORTON, A.; FORGEARD, M.; WINNER, E.; EVANS, A.C.; SCHLAUG, G. The effects of musical training
on structural brain development. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1169, p. 182-186, 2009.
JUSLIN, P.N.; LAUKKA, P. Communication of emotions in vocal expression and music performance: Different channels,
same code. Psychological Bulletin, v. 129, p. 770-814, 2003.
KHATEB, A.; PEGNA, A.J.; LANDIS, T.; MOUTHON, M.S.; ANNONI, J. On the origin of the N400 effects: An ERP waveform
and source localization analysis in three matching tasks. Brain Topography, v. 23, p. 311-320, 2010.
KOELSCH, S. Towards a neural basis of music-evoked emotions. Trends in Cognitive Sciences, v. 14, p. 131-137, 2010.
KOELSCH, S.; KASPER, E.; SAMMLER, D.; SCHULZE, K.; GUNTER, T.; FRIEDERICI, A. D. Music, language and meaning: brain
signatures of semantic processing. Nature Neuroscience, v. 7, p. 302-307, 2004.
KUTAS, M.; HILLYARD, S.A. Reading senseless sentences: brain potentials reflect semantic incongruity. Science, v. 207, 1980.
LAHAV, A.; SALTZMAN, E; & SCHLAUG, G. Action representation of sound: audiomotor recognition network while listening
to newly acquired actions. Journal of Neuroscience, v. 27, p. 308-314 (2007).
LEVITIN, D. J. A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
______.The world in six songs.New York: Dutton, 2008.
LEVITIN, D.J.; TIROVOLAS, A.K. Current advances in the cognitive neuroscience of music. Annals of the New York Academy
of Sciences, v. 1156, p. 211–231, 2009.
LUCK, S. J. An introduction to the event-related potential technique. London: The MIT Press, 2005.
MENON, V.; LEVITIN, D.J. The rewards of music listening: Response and physiological connectivity of the mesolimbic
system. NeuroImage, v. 28, p. 175-184, 2005.
MITHEN, S. The singing Neanderthals. The origins of music, language, mind and body. Harvard University Press: Cambridge, 2006.
MITHEN, S. The Music Instinct. The evolutionary basis of musicality. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1169, p. 3-12, 2009.
MOLNAR-SZACKACS, I.; OVERY, K. Music and mirror neurons: from motion to e’motion. Social Cognitive and Affective
Neuroscience, v.I, p. 234-241, 2006.
OVERY, K. Dyslexia and music. From timing deficits to musical intervention. Annals of the New York Academy of Sciences,
v. 999, p. 497-505, 2003.
OVERY, K.; MOLNAR-SZACKACS, I. Being together in time: musical experience and the mirror neuron system. Music
Perception, v. 26, p. 489-504, 2009.
PATEL, A.D. Music, Language and the Brain. Oxford University Press: New York, 2008.
PATEL, A.D.; PERETZ, I.; TRAMO, M.; LABREQUE, R. Processing prosodic and musical patterns: a neuropsychological
investigation. Brain and Language, v. 61, p. 123-144, 1998.

139
ROCHA, V. C.; BOGGIO, P. S. A música por uma óptica neurocientífica. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.132-140

PERETZ, I.; ZATORRE, R.J. Brain Organization for music processing. Annual Review of Psychology, v. 56, p. 89-114, 2004.
PERETZ, I.; GOSSELIN, N.; BELIN, P.; ZATORRE, R.J.; PLAILLY, J.; TILLMENN, B. Musical lexical networks. The cortical
organization of music recognition. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1169, p. 256-265, 2009.
PFEUTY, M.; PERETZ, I. Abnormal pitch–time interference in congenital amusia: Evidence from an implicit test. Attention,
Perception, & Psychophysics, v. 72, p. 763-774, 2010.
RACETTE, A.; BARD, C.; PERETZ, I. Making non-fluent aphasics speak: sing along! Brain, v. 129, p. 2571-2584, 2006.
RIZZOLATTI, G.; CRAIGHERO, L. The mirror-neuron system. Annual Review of Neuroscience, v. 27, p. 169-192, 2004.
SCHERER, K.R. Expression of emotion in voice and music. Journal of Voice, v. 9, p. 239-251, 1995.
SCHLAUG, G.; JANCKE, L.; HUANG, Y.; STAIGERI, J.F.; STEINMETZ, H. Increased corpus callosum size in musicians.
Neuropsychologia, v. 33, p. 1047-1055, 1995.
SCHLAUG, G.; FORGEARD, M.; ZHU, L.; NORTON, A.; NORTON, A.; WINNER, E. Training-induced neuroplasticity in young
children. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1169, p. 205-208, 2009a.
SCHLAUG, G.; MARCHINA, S.; NORTON, A. Tracts of patients with cronic Broca’s aphasia undergoing intense Intonation-
based Speech Therapy. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1169, p. 385-394, 2009.
SCHULKIND, M. D. Is memory for music special? Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1169, p. 216-224, 2009.
SU, Q.; WANG, F. Study the Effect of Background Music on Cognitive Memory. Applied Mechanics and Materials v. 37-38,
p. 1368-1371, 2010.
TERVANIEMI, M. Musicians – Same or Different? Annals of the New York Academy of Sciences, v.1169, p. 151-156, 2009.
THAUT, M.H.; MCINTOSH, K.W.; MCINTOSH, G.C.; HOEMBERG, V. Auditory rhythmicity enhances movement and speech
motor control in patients with Parkinson`s disease. Functional Neurology, v. 16, p. 163-172, 2001.
TRAINOR, L. J.; SHAHIN, A. J.; ROBERTS, L. E. Understanding the benefits of musical training. Effects on oscillatory brain
activity. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 1169, p. 133-142, 2009.
VOGT, S.; BUCCINO, G.; WOHLSCHLÄGER, A. M.; CANESSA, N.; SHAH, N. J.; ZILLES, K.; EICKHOFF, S. B.; FREUND, H. J.;
RIZZOLATTI, G.; FINK, G. R. Prefrontal involvement in imitation learning of hand actions: Effects of practice and
expertise. NeuroImage, v. 37, p. 1371-1383, 2007.
WAN, C.Y.; RÜBER, T.; HOHMANN, A.; SCHLAUG, G. The therapeutic effects of singing in neurological disorders. Music
Perception, v. 27, p. 287-295, 2010.
ZATORRE, R.J.; BELIN, P.; PENHUME, V.B. Structure and function of auditory cortex: music and speech. Trends in Cognitive
Sciences, v. 6, p. 37-46, 2002.
ZATORRE, R.J.; CHEN, J.L.; PENHUME, V.B. When the brain plays music: auditory-motor interactions in music perception
and production. Nature Neuroscience, v. 8, p. 547-558, 2007.
WEINSTEIN, J.; KOENIG, P.; GUNAWARDENA, D.; MCMILLAN, C.; BONNER, M.; GROSSMAN, M. Preserved Musical Semantic
Memory in Semantic Dementia. Archives of Neurology, v. 68 , p. 248-250, 2011.

Viviane Rocha, soprano, iniciou seus estudos musicais em 2003. Estudou na Escola Municipal de Música de São Paulo, sob
orientação de Caio Ferraz. Bacharel em Música com Habilitação em Canto Lírico pelo Instituto de Artes da UNESP, tendo sido
orientada por Márcia Guimarães e Martha Herr. Recebeu prêmio de Excelência pelo TCC intitulado “O preparador vocal e seu
trabalho junto ao regente de coro – O caso do Coro de Câmara da UNESP”, com orientação de Martha Herr. Mestranda em
Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde desenvolve pesquisa acerca das relações
entre cérebro e música no Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social sob orientação do professor Doutor Paulo Boggio.
Atua profissionalmente como cantora, preparadora vocal de coros e professora. Atualmente leciona no Conservatório Souza
Lima, em São Paulo.

Paulo Sérgio Boggio, psicólogo, especialista em Neuropsicologia, Mestre em Psicologia Experimental e Doutor em Neurociências
e Comportamento pela Universidade de São Paulo. Pesquisador produtividade 2 do CNPq. Professor adjunto no Programa de Pós-
Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento e no Curso de Psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador
de Pesquisa, Coordenador do Núcleo de Neurociência do Comportamento e Coordenador do Laboratório de Neurociência
Cognitiva e Social do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

140
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151.

Uma análise do perfil audiológico de


estudantes de música
Karina Aki Otubo (Fonoaudióloga Clínica, Suzano, SP)
karina_otubo@yahoo.com.br

Andréa Cintra Lopes (FOB-USP, Bauru, SP)


aclopes@usp.br

José Roberto Pereira Lauris (FOB-USP, Bauru, SP)


jrlauris@fob.usp.br

Resumo: Tocar um instrumento musical requer a integração das habilidades perceptiva, motora, e cognitiva, desenvolvidas
modularmente, de forma gradativa e hierarquicamente coordenada. Na realização de uma obra musical, a audição
atua de forma marcante na sua complexa associação com o cérebro, capaz de produzir mudanças comportamentais e
emocionais nos humanos. O presente estudo analisa o perfil audiológico de estudantes de graduação em Música, que
foram submetidos à Avaliação Audiológica (Entrevista, Audiometria Tonal Liminar, Logoaudiometria, e Imitanciometria),
além dos exames complementares de Audiometria Tonal de Altas Frequências (AT-AF) e Emissões Otoacústicas Evocadas
por Estímulo Transiente (EOAT). Os resultados indicaram que os estudantes apresentam audição dentro da normalidade.
Entretanto, ações educativas e preventivas são essenciais para promover a conscientização sobre alterações auditivas
nesse grupo de risco.

Palavras-chave: testes auditivos em estudantes de música; zumbido; ações educativas e preventivas.

An audiological analysis of music students in Brazil

Abstract: Playing a musical instrument demands integration of perceptive, motor and cognitive skills, modularly and
gradually developed and in a hierarchically coordinated fashion. In music performance, the complex association between
hearing and the brain is central, one capable of producing behavioral and emotional changes in human beings. The
present study analyzes audiological profiles of music students, who were submitted to Audiological Assessment (Interview,
Threshold Tonal Audiometry, Logoaudiometry and Imitanciometry), besides the complementary examinations of High
Frequencies Tonal Audiometry and Transient Evoked Otoacustic Emissions. The results indicated normal hearing for the
students. Nevertheless, preventive and educative actions are essential to promote awareness of auditory alterations
within this risk group.

Keywords: hearing tests in music students; tinittus; educative and prevention actions.

1- Introdução
A pedagogia instrumental apresenta dois aspectos percepção, que as interpreta (COSTA, 2003). A audição
fundamentais no processo ensino-aprendizagem participa de forma marcante no sistema perceptivo, o qual
do intérprete: o estudo da práxis 1 interpretativa, é fortemente influenciado por fatores afetivos e culturais
objetivando clarificar a relação entre o texto escrito e (CASTRO, 2004). Além disso, a percepção auditiva
a realização sonora, e a fisiologia da execução musical, é continuamente requerida para regular a afinação
responsável pelos cuidados referentes aos movimentos individual, e sobre o entrosamento com o restante do
do corpo e da técnica de execução de cada instrumento. grupo, além de ser empregada para seguir o desenrolar
Concomitantemente, as informações são captadas da obra de modo a estabelecer trajetórias sonoras que
sensorialmente pelos receptores visuais, auditivos, são memorizadas e que sinalizam a reentrada em um
proprioceptivos e táteis, que passam pelo crivo da compasso (COSTA, 2003).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 11/09/2011- Aprovado em: 03/06/2012
141
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151

Diante da importância que a audição representa na podendo ser percebidos em uma ou ambas as orelhas,
execução musical, estudos evidenciam que mesmo ou mesmo em alguma região da cabeça; Kahari et al.,
apresentando audição normal, os músicos também estão 2001) e diminuição da inteligibilidade da fala (NEVES,
sujeitos ao acometimento de perda auditiva induzida por 2007). As alterações provocadas pelo nível de pressão
níveis de pressão sonora elevados – PAINPSE (Mendes sonora elevado, não se restringem somente à audição,
e Morata 2007; Maia et al., 2007; Amorim et al., sendo frequentes os casos: de hipertensão arterial,
2008), assim como qualquer indivíduo exposto na esfera estresse, depressão, ansiedade, aumento da tensão
da sociedade moderna, como profissionais de diversas muscular, alteração do sono, gastrite e dificuldade de
áreas, tais como trabalhadores das indústrias, militares, concentração (SANTONI, 2008).
dentistas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006). Além disso,
músicos acabam sendo submetidos a elevados níveis de Estudos realizados por Maia et al. (2007); AMORIM
pressão sonora em ambientes de apresentação ou mesmo et al. (2008) e MARTINS et al.(2008), indicaram que o
em seus ensaios (MARTINS et al., 2008). perfil audiológico encontrado em músicos de diversos
estilos musicais e orquestra, segue o padrão de evolução
A PAINPSE é considerada uma das doenças ocupacionais da PAINPSE, com início de comprometimento nas
mais prevalentes em todo o mundo (DIAS, CORDEIRO frequências agudas (3.000, 4.000 e 6.000 Hz) mesmo na
e CORRENTE, 2006, p.65). “Caracteriza-se pela perda ausência de queixa auditiva.
auditiva provocada em função da exposição por tempo
prolongado ao ruído, configurando-se como uma perda O diagnóstico da PAINPSE é realizado por meio da
auditiva do tipo neurossensorial 2, geralmente bilateral, obtenção de uma história de exposição em ambiente
irreversível e progressiva com o tempo de exposição ruidoso, exame otorrinolaringológico com ênfase na
ao ruído (CID 10 – H83.3)3. A perda tem seu início e otoscopia e exame audiométrico (ARAÚJO, 2002).
predomínio nas frequências de 3.000, 4.000 ou 6.000
Hz, progredindo, posteriormente, para 8.000, 2.000, Segundo o Ministério da Saúde (2006), não existe
1.000, 500 e 250 Hz. Em condições estáveis de exposição, até o momento tratamento para PAINPSE, sendo
as perdas em 3.000, 4.000 ou 6.000 Hz, geralmente recomendada a adoção de medidas de prevenção tais
atingirão um nível máximo, em cerca de 10 a 15 anos. como: tratamento acústico de salas de ensaio, uso de
Uma vez cessada a exposição ao ruído intenso não haverá protetores auditivos especiais de atenuação uniforme, e
progressão da perda” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2006). acompanhamento audiológico por meio da audiometria
tonal e emissões otoacústicas (MENDES E MORATA,
Segundo o Ministério da Saúde (2006), é importante 2007; SANTONI, 2008).
diferenciar a PAINPSE de outros agravos auditivos que,
apesar de terem o mesmo agente etiológico, possuem Considerando a habilidade auditiva um dos sentidos
características distintas, como: Trauma Acústico, fundamentais para a aquisição e aprimoramento de
Mudança Temporária de Limiar e Mudança Permanente percepções destinadas ao aprendizado, a referente
do Limiar. O Trauma Acústico é uma alteração pesquisa direcionou seu objetivo para a análise do perfil
auditiva provocada pela exposição a ruído abrupto e audiológico dos estudantes de graduação em Música.
muito intenso, como por exemplo, tiros e explosões.
Normalmente é unilateral e acompanhada de zumbido. A 2 – Método e Materiais
Mudança Temporária de Limiar ocorre devido à exposição Delineado como um estudo transversal, descritivo e
prolongada a sons intensos, causando uma redução na comparativo, o estudo foi composto por alunos de
sensação auditiva, mas que cessada a exposição retorna graduação da Universidade Sagrado Coração – USC
ao normal. A Mudança Permanente do Limiar ocorre em (situado na cidade de Bauru (SP)), regularmente
função das exposições prolongadas e repetidas a sons matriculados no Curso de Música (Bacharelado em
de intensidade elevada, não havendo tempo de repouso Instrumento e Licenciatura em Educação Musical),
de uma exposição à outra, caracterizando a PAINPSE realizado durante o ano de 2009.
(PINTO et al., 2002). A PAINPSE também é influenciada
por alguns fatores, dentre eles: características físicas do A seleção dos estudantes procedeu mediante
ruído (tipo, espectro e nível de pressão sonora), tempo apresentação da Carta de Autorização ao Departamento
de exposição (frequência e horas) e suscetibilidade de Ciências Humanas, efetuado presencialmente pela
individual (determina a influência das perdas auditivas, pesquisadora ao Coordenador do Curso, permitindo aos
esclarecendo o fato de alguns músicos apresentarem alunos a contemplação do convite e esclarecimentos
perdas auditivas mais graves do que outros, num tempo de sobre os procedimentos utilizados na pesquisa. Ao final
exposição semelhante e tocando o mesmo tipo de música da visita, obteve-se uma lista de interessados contendo os
(HARGER E BARBOSA, 2004; SAMELLI E SCHOCHAT, dados de identificação, contato telefônico, e o semestre
2000). Além da perda de audição, o acometimento da do Curso em vigência. Os estudantes foram convocados
PAINPSE pode desencadear intolerância a sons intensos, para a realização da Avaliação Audiológica, conforme
zumbido (sensação de perceber sons na ausência de uma disponibilidade pessoal associado à disponibilidade
fonte externa, geralmente descritos como pitch agudo, de uso dos equipamentos, cujos procedimentos foram

142
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151.

realizados na Clínica de Fonoaudiologia da Faculdade de que se obteve resposta em 50% das apresentações em
Odontologia de Bauru – FOB/USP. cada frequência), obtidos pelo estímulo Warble (cobre
uma larga gama de frequências e, desse modo, os limiares
A partir da Entrevista Específica, os estudantes receberam obtidos refletem melhor sensibilidade dentro dessa gama
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), de frequências) (HAMILL E HAAS, 1986).
consentindo a sua participação no projeto de pesquisa. A
partir de então, um questionário foi aplicado para coletar A Imitanciometria, realizada com o objetivo de verificar
os dados de identificação, assim como as condições de a integridade funcional do conjunto membrana tímpano-
saúde geral e auditiva, além da exposição musical e ossicular (responsável pela transmissão da vibração
ocupacional, estabelecendo como critérios de exclusão, acústica desde a membrana até a base dos ossículos, sendo
todos aqueles que indicaram problema neurológico, que o seu mau funcionamento acarreta uma alteração da
psiquiátrico, e/ou cardíaco; uso de medicação ototóxica; percepção auditiva), foi pesquisada com apresentação de
e deficiência auditiva com etiologia determinada estímulos de tons puros de 500 a 4.000 Hz, utilizando-se
incompatível com a PAINPSE. Todos os alunos do Curso o imitanciômetro SD30 (Siemens®), calibrado conforme
em situação ativa e não relacionados aos critérios de especificações estabelecidas pela ANSI S3.39.
exclusão, foram incluídos na pesquisa.
Levando ainda em consideração que a avaliação de
Após a verificação do perfil do candidato, foi realizada testes objetivos como as Emissões Otoacústicas Evocadas
a Inspeção do Meato Acústico Externo (MAE), com o (EOAs) possibilita uma pesquisa direta do mecanismo
objetivo de averiguar possíveis comprometimentos de amplificação coclear das células ciliadas externas,
que poderiam interferir nas avaliações específicas, tais caracterizado como um exame independente da resposta
como: alteração na membrana timpânica; presença de do indivíduo, não invasivo, sensível ao estado coclear, o
corpo estranho ou acúmulo de cerume. Caso encontrado que permite um monitoramento auditivo mais preventivo
alguma alteração, os participantes seriam encaminhados e efetivo (KEMP, 1989), a análise foi realizada por meio
ao Setor de Otorrinolaringologia da clínica. do equipamento Madsen Capella, calibrado conforme
especificações recomendadas pelo Inmetro. As EOAs são
Diante das considerações estabelecidas, os participantes transmitidas da cóclea através dos ossículos e membrana
foram submetidos à Audiometria Tonal Liminar – ATL timpânica, medidas no conduto auditivo externo. Existem
(pesquisa dos limiares auditivos na faixa de frequência de dois tipos básicos de EOAs resultantes das atividades
250 a 8.000 Hz, determinando o menor nível de energia do ouvido interno: as espontâneas (captadas sem
acústica audível por via aérea (LOPES, 2011), em ambas apresentação de estímulo sonoro), e as evocadas (obtidas
as orelhas) e Logoaudiometria (obtenção de informações secundariamente à presença de um som) que se dividem
sobre as habilidades de detecção e reconhecimento de fala em: Transientes, Produtos de Distorção e Estímulo
avaliando qualitativamente a audição (MIRANDA E AGRA, Frequência (ainda sem utilização clínica (GUEDES et
2008), cujos testes empregados consistem em: Limiar de al., 2002)). O tipo de Emissão Otoacústica utilizada na
Reconhecimento de Fala – LRF (utilizado para confirmação pesquisa foi a Transiente (EOAT), realizada nas faixas de
das respostas obtidas para tom puro nas frequências que frequência de 1.000 a 4.000 Hz, eliciadas por meio do
se relacionam com a energia dos sons da fala - 500, 1.000 estímulo click (transitório acústico de curta duração com
e 2.000 Hz), e Índice de Reconhecimento da Fala – IRF faixa de frequência bastante abrangente, representando
(mensuração da capacidade de detecção e discriminação uma resposta global da cóclea), com intensidade entre 79
da palavra através da porcentagem de acertos de repetição e 83 dBNPS (Nível de Pressão Sonora). As respostas ao
dos fonemas ouvidos (FROTA E SAMPAIO, 1998)). exame foram consideradas significativas quando houve
reprodutibilidade maior que 50%, com amplitude de
Considerando que a Audiometria Tonal de Altas Frequências resposta e relação sinal/ruído ≥ 3 dBNPS, em pelo menos
(AT-AF) confirmaria as impressões clínicas fornecidas três frequências consecutivas avaliadas, e estabilidade da
pela audiometria convencional, além de possibilitar a sonda superior a 80% (PRIEVE et al., 1993).
detecção precoce, a descrição e a diferenciação das
perdas auditivas induzidas por ruído (LOPES, 2011), Devido ao pequeno tamanho da amostra e os dados
realizamos a análise das frequências de 9.000, 10.000, não obedecerem à distribuição normal, foram utilizados
11.200, 12.500, 14.000 e 16.000 Hz (limite superior de testes não paramétricos na análise dos resultados, aos
frequência do equipamento em uso), associado à pesquisa quais os estudantes foram distribuídos em dois Grupos: I
da ATL, utilizando o Audiômetro SD50 (Siemens®), fones (iniciantes) e II (concluintes) do Curso. Para comparação
auriculares HDA 200 (Sennheiser®) que adota correções entre os grupos, foi utilizado o teste de Mann-Whitney, e
para Nível de Audição (NA), de acordo com o Certificado para verificar a correlação entre variáveis o Coeficiente de
1.51-9493/92 e 14738/93, padrões ANSI S3.6, Normas Correlação de Spearman. Em todos os testes foi adotado
de Segurança IEC 645 e Cabina Acústica Vibrasom®. O nível de significância de 5% (p<0,05).
método empregado na pesquisa dos limiares auditivos foi
o descendente (partindo-se da intensidade maior para a Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa
menor, sendo considerado limiar a menor intensidade em da Faculdade de Odontologia de Bauru FOB/USP sob

143
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151

o protocolo de no. 065/2009, com suporte financeiro Considerando o tempo de início na atividade musical, 1
concedido pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do participante (8%) referiu ter iniciado a atividade há menos
Estado de São Paulo), sob o processo de nº 2008/09270-2. de 5 anos; 9 participantes (69%) entre 5 a 10 anos; e 3
participantes (23%) a um período superior a 10 anos.
3 – Resultados
Embora a lista obtida durante o convite para participar Segundo os dados obtidos por meio do questionário, não
do projeto representar um número significativo foi constatado nenhum antecedente (seja de origem
de interessados (43 estudantes), apenas 13 alunos congênita, familiar ou ocupacional), compatível aos
compareceram à convocação para a realização dos critérios de exclusão.
exames, sendo realizados 53 tentativas de agendamento,
incluindo os participantes que já haviam sido agendados Durante a Inspeção do Meato Acústico Externo (MAE),
anteriormente, e não comparecido em primeiro momento. apenas 1 participante (8 %) foi encaminhado ao Setor
Dentre os fatores que contribuíram para o declínio de Otorrinolaringologia, devido à obstrução do conduto
de participantes (Ex.1), destaca-se a dificuldade para auditivo externo por acúmulo de cerume. Após a
conciliar os horários entre os estudantes e a avaliação realização da limpeza no conduto auditivo, as provas
audiológica, pois a maioria exercia funções empregatícias específicas foram novamente retomadas.
durante o dia e, no período noturno, cursavam a
graduação e posteriormente realizavam apresentações Embora os limiares obtidos na Audiometria Tonal
com suas respectivas bandas, inviabilizando o repouso Liminar (ATL) estivessem dentro da normalidade em
acústico recomendado para a Avaliação Audiológica. 100% dos estudantes (N=13) - Ex.2, houve diferença
estatisticamente significativa entre os dois grupos
Diante do exposto, a casuística desse estudo foi composta nas frequências de 4.000 Hz (p= 0,019); 6.000 Hz
por 13 estudantes de ambos os sexos, sendo 77% do (p= 0,045) e 8.000 Hz (p= 0,045) para a Orelha
sexo masculino (N=10), e 23% do feminino (N=3); com Direita. De acordo com resultados obtidos em estudos
idade mínima de 19 anos e máxima de 24 anos (média: realizados por Sakamoto et al. (1998) e Pedalini et. al.
22 anos) para o Grupo I (iniciantes, n=5); e mínima de (2000), há uma tendência de diminuição da acuidade
21 anos e máxima de 33 anos (média: 23,5 anos) para o auditiva em função do aumento da frequência, sendo
Grupo II (concluintes, n=8). Em suas atividades musicais, os detectado com maior prevalência na medida em que
participantes utilizavam instrumentos correspondentes a: ocorre um avanço da idade. Empregamos o teste
bateria 31% (N=4), violão 23% (N=3), guitarra 15% (N=2), estatístico de Coeficiente de Correlação de Spearman,
e piano 8% (N=1). Em contrapartida, 23% (N=3) dos correlacionando a idade com os limiares auditivos
alunos realizavam atividades na área de Educação Musical. de acordo com a orelha e frequência testada, sendo

Ex.1 - Quantitativo de interessados que não compareceram à Avaliação Audiológica, e suas respectivas causalidades.

144
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151.

Ex.2 – Mediana, Mínimo e Máximo dos valores dos limiares auditivos obtidos por frequência e orelha testada,
sugerindo audição normal (limiares ≤ 25 dBNA) conforme classificação proposta por Lloyd e Kaplan (1978).

Ex.3- Correlação entre a idade e limiares auditivos em


função da frequência e orelha analisada, em ambos os grupos.

Ex.4 - Correlação entre o tempo envolvido na atividade musical e


limiares auditivos, sobre as frequências e orelhas testadas, nos grupos.

145
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151

constatada correlação significativa na frequência de em ambos os grupos (Ex.5). Por outro lado, em análise
3.000 Hz (r = 0,60) para a Orelha Esquerda (Ex.3), e individual das altas frequências, identificamos um entalhe
ausência de correlação significante com o tempo audiométrico (mínimo: 30 dB e máximo: 40 dB) na frequência
envolvido na atividade musical (Ex.4). de 16.000 Hz, em ambas as orelhas, em 2 participantes
(15%), sendo 1 indivíduo correspondente ao Grupo I e outro
Os resultados identificados pela Logoaudiometria (LRF ao Grupo II. Além disso, 1 participante do Grupo I (8%),
e IRF) confirmaram as respostas obtidas para tom puro apresentou rebaixamento de limiar nas frequências a partir
sobre as médias das frequências de 500, 1.000 e 2.000 Hz, de 12.500 a 16.000 Hz, bilateralmente (Ex.6).
cujo nível de porcentagem de acertos foi correspondente
à faixa de normalidade, indicando que em 100% (N=13) Quando questionados sobre a sensação subjetiva de ruído,
dos estudantes não há dificuldade para compreender 62% (n=8) dos alunos consideram que o ambiente de
a fala, conforme a classificação proposta por JERGER, apresentação é intenso, porém, 38% (n=5) relataram não
SPEAKS e TRAMMELL (1968). possuir essa percepção de ruído excessivo. A queixa auditiva
mais citada pelos participantes foi o de zumbido 23% (N=3),
Em busca de analisar as médias obtidas nas frequências de sendo um sintoma constante em 1 participante (8 %), e
500, 1.000 e 2.000 Hz (utilizadas para classificar o padrão de prevalente após as apresentações em 100% (N=13).
normalidade ou o grau de perda auditiva, priorizando a energia
dos sons da fala); 3.000, 4.000 e 6.000 Hz (com o objetivo Os registros obtidos no teste de Imitanciometria indicaram que
de verificar a existência de rebaixamento das frequências em 100% dos participantes (N=13), a curva timpanométrica
altas, responsáveis pelo impacto de 60% da inteligibilidade encontrada foi correspondente ao tipo A (mobilidade
da informação - frequências acima de 1.000 Hz (FLETCHER normal do sistema tímpano-ossicular), com reflexos
(1953)); além da pesquisa nas Altas Frequências – acima ipsilaterais e contralaterais presentes em níveis normais
de 8.000 Hz (considerando a possibilidade de detectar (reflexo desencadeado entre 70 e 100 dB acima do limiar de
perdas auditivas ainda assintomáticas), não foi identificada via aérea), classificados segundo a literatura proposta por
nenhuma alteração de limiar, sugerindo mais uma vez que os Jerger e Jerger (1989), representando integridade global das
valores encontram-se dentro dos padrões de normalidade, vias auditivas. Dessa maneira, podemos constatar que não

Ex.5- Médias obtidas de acordo com as frequências e orelhas analisadas, nos Grupos I e II.

Ex.6 - Valores de Mediana, Mínimo e Máximo dos limiares auditivos por frequência,
em dBNA, obtidos em cada orelha por meio da AT- AF.

146
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151.

houve interferência das estruturas avaliadas nos resultados ausência de registro em 1 orelha (8%) do lado esquerdo,
obtidos em outros testes. em função de semelhante intercorrência. De modo
geral, não houve resultados significativos em relação
Em virtude da impossibilidade de vedamento do conduto à frequência e orelha testada (Ex.7). A prevalência de
auditivo externo para captação das respostas, a amostra respostas captadas conforme a orelha testada (Ex.8),
utilizada para análise dos resultados das EOAT, foi assim como a Ausência de Resposta em função das
composta por 12 indivíduos (93%), ocorrendo ainda, frequências (Ex.9), permitiu constatar que as frequências

Ex.7 - Valores de Mediana, Mínimo e Máximo das EOAT.

Ex.8 - Respostas captadas por meio da EOAT, de acordo com a orelha testada, nos Grupos I e II.

Ex.9 - Ausência de resposta das EOAT, dispostas por orelha e frequência (Hz) analisada, em ambos os grupos.

147
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151

mais agudas (especialmente 4.000 Hz) estão mais sujeitas FERREIRA, 2002). Para Maia e Russo (2008), a prevalência
a disfunções em nível coclear, associando dessa maneira do entalhe audiométrico, pode ser considerada como um
os achados encontrados na ATL. sinal de alerta, uma vez que pode indicar uma tendência
ao desencadeamento da PAINPSE ao longo do tempo.
4 – Discussão Além disso, a suscetibilidade individual e a exposição
As dificuldades encontradas sobre o processo de repetida são fatores importantes para o aparecimento de
convocação dos estudantes também foi relatada por lesão auditiva (JUNIOR, 1993).
Maia e Russo (2008), ratificando os desafios enfrentados
diante ao baixo índice da casuística obtida. Convém A ocorrência de entalhe audiométrico identificada em
ressaltar a importância sobre a inter-relação: pesquisador análise isolada, na frequência de 16.000 Hz, em ambas
e participantes, de modo a disponibilizar esclarecimentos as orelhas, em 1 participante do Grupo I (19 anos), e em
e despertar o interesse em conhecer a si mesmo. Além 1 do Grupo II (33 anos), e nas frequências a partir de
disso, a obtenção da lista de interessados foi de grande 12.500 a 16.000 Hz bilateralmente em 1 participante do
valia no direcionamento do processo de agendamento (a Grupo I (21 anos), correspondem aos achados observados
partir do semestre em vigência do aluno), proporcionando por Fouquet (1997), nos quais indivíduos pesquisados
o equilíbrio sobre a distribuição dos participantes aos na faixa etária entre 18 a 30 anos, apresentaram curva
grupos delineados pelo estudo. audiométrica relativamente linear nas frequências
de 9.000 a 12.000 Hz, e queda abrupta dos limiares a
Embora os limiares auditivos estejam dentro da partir de 15.000 Hz, na faixa etária de 18 a 24 anos, e a
normalidade em todos os estudantes, assim como os partir de 13.000 Hz, na faixa mais velha. Em seu estudo,
achados descritos por Axelsson, Eliasson, Israelsson Carvallo et al.(2007) também não encontrou diferenças
(1995); Kahari et al. (2001); Maia e Russo (2008), estatisticamente significantes entre as orelhas direita e
houve diferença estatisticamente significante entre esquerda, observando tendência à diminuição do nível
os grupos nas frequências de 4.000, 6.000 e 8.000 de intensidade dos limiares em dBNA (Decibel Nível de
Hz, para a Orelha Direita, corroborando com estudos Audição) 4 com o aumento da frequência. Para Barbosa de
realizados na população musical, no qual os limiares Sá et al.(2007); Green, Kidd, Stevens (1987) a Audiometria
auditivos demonstraram-se relevantes em uma ou mais de Alta Frequência não dever ser usada como método
frequências da faixa de 3.000 a 6.000 Hz (MAIA et al., isolado para estabelecimento de diagnóstico, pelo fato
2007; AMORIM et al., 2008; MARTINS et al., 2008). de não haver um padrão de normalidade estabelecido.
Segundo MAIA e RUSSO (2008), um dos motivos que Contudo, quando realizada uma audiometria individual
podem explicar os limiares auditivos preservados é a faixa prévia à exposição deletéria, é plenamente factível e
etária da população estudada, compreendida entre 19 e confiável a monitorização e o diagnóstico precoce de
33 anos, com tempo de atuação concentrada em menos ototoxicidade e de lesões induzidas por elevados níveis
de 10 anos (77%), correspondentes aos achados obtidos de pressão sonora, tendo, como base, o limiar auditivo
pelas pesquisadoras. Diante da análise entre idade com individual inicial para realizar uma análise comparativa
os limiares auditivos, conforme a orelha e frequência (BARBOSA de SÁ et al., 2007). Diante dos aspectos
testada dos grupos, houve correlação significativa na que recaem sobre as dificuldades de padronização (em
frequência de 3.000 Hz (r = 0,60) para a Orelha Esquerda. função da falta de fidelidade aos padrões de calibração,
Ao dividir os músicos de orquestra por faixa etária em seu limitações dos equipamentos e metodologia empregada),
estudo, Kahari et al. (2001) também notaram que quanto observamos ainda a escassez de estudos nas Altas
maior a idade, piores estavam os limiares audiométricos, Frequências, especialmente na população musical,
porém, a maior ocorrência de entalhe foi identificada que poderia vir a se beneficiar como um método de
na frequência de 6.000 Hz, e principalmente na Orelha monitoramento auditivo e diagnóstico precoce (associado
Esquerda dos indivíduos do sexo masculino. De acordo a outros testes), pela maioria apresentar limiares dentro
com CHASIN (1996), a perda por exposição ao ruído e dos padrões de normalidade.
por exposição à música são similares, exceto pelo fato
da perda auditiva induzida pela música poder apresentar Com a evolução da eletrônica e o consequente
assimetrias, pois a direção do som do próprio instrumento aumento da potência dos amplificadores, acoplados
é um dos principais fatores para o aumento do nível da aos instrumentos musicais modernos, resultou-se à
pressão sonora individual (no caso dos violinistas, há maior elevação da intensidade da música (MENDES e MORATA,
exposição sonora à esquerda, enquanto para os músicos 2007), acarretando a percepção de som intenso nos
que tocam flauta transversal há maior exposição à direita, ambientes de apresentação, e ao predomínio do sintoma
por exemplo; Schmidt, Verschuure, BrocAAR, 1994; auditivo recorrentemente encontrado em estudos na
KAHARI et al., 2001). Além disso, a posição que o músico população musical: o zumbido (HAGBERG, THIRINGER,
toca em relação ao grupo também é um fator importante, BRANDSTROM, 2005; MAIA et. al., MENDES E MORATA,
devido às características sonoras de outros instrumentos 2007). O zumbido é um sintoma que pode ser causado por
tocados na proximidade do músico, e dos aspectos físicos inúmeras afecções otológicas, metabólicas, neurológicas,
do ambiente (Palin, 1994; CHASIN, 1996; TEIE, 1998; cardiovasculares, farmacológicas, odontológicas,
Kahari et al., 2001; MENDES, KOEMLER, ASSENCIO- psicológicas que, por sua vez, podem estar presentes

148
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151.

concomitantemente no mesmo indivíduo (SANCHEZ beneficiar ambas as partes, em busca de aprimorar os


et al., 2005). Segundo os pesquisadores, pacientes com conhecimentos na qualidade acústica, auditiva e musical.
zumbido e audiometria normal representam um grupo Além disso, a continuidade nos estudos voltados à
raro. As características clínicas do zumbido (tempo de população musical se faz necessária, pois a limitação de
doença, localização, tipo, frequência de aparecimento) estudos contribui apenas para o esquecimento de um
nestes pacientes são semelhantes às de indivíduos com sentido essencial e exigido recorrentemente durante a
zumbido e perda auditiva. Apesar dos recentes avanços execução de uma obra musical.
na literatura específica, a sua fisiopatologia ainda não foi
completamente elucidada, o que compromete o avanço 5 - Conclusão
do seu tratamento.
Diante dos achados obtidos, constatou-se que os limiares
auditivos dos estudantes encontram-se dentro dos padrões
Assim como o estudo realizado em músicos por MAIA e
de normalidade. Apesar da Audiometria Tonal Liminar
RUSSO (2008), a região da frequência de 4.000 Hz foi
(ATL) representar audição normal em sua totalidade
a que apresentou as menores amplitudes de resposta,
(100%), houve correlação significativa entre os grupos
indicando um comprometimento inicial das células
nas frequências de 4.000, 6.000 e 8.000 Hz, constatados
ciliadas externas. Corroborando com os achados das
para a Orelha Direita e, diante da análise entre a idade
autoras, tal prevalência não era esperada, uma vez que,
com os limiares auditivos, conforme a orelha e frequência
embora expostos a níveis elevados de pressão sonora
testada, houve correlação significativa na frequência de
musical, todos os músicos apresentavam limiares
3.000 Hz para a Orelha Esquerda. Em análise individual
auditivos dentro da normalidade. Diante dos resultados,
das Altas Frequências (acima de 8.000 Hz), houve a
a EOAT demonstra ser um método que atua de modo
presença de entalhe audiométrico na frequência de
preventivo no monitoramento da função coclear em
16.000 Hz, em ambas as orelhas, em 1 participante do
indivíduos expostos a ruído, no caso, pelos níveis elevados
Grupo I e outro no Grupo II, e nas frequências a partir
de pressão sonora gerada pela música.
de 12.500 a 16.000 Hz bilateralmente, em 1 participante
do Grupo I. Em análise de exame objetivo (representado
No entanto, evidenciamos a importância sobre a
pela EOAT), a frequência de 4.000 Hz apresentou menor
conscientização dos efeitos da exposição a níveis de
reprodutibilidade (25%) bilateralmente. Por meio de
pressão sonora elevados, tanto para os alunos, quanto aos
questionário, verificou-se significativa percepção de nível
professores, por meio da adoção de medidas preventivas
sonoro intenso nos ambientes de apresentação, associado
descritas por Mendes e Morata (2007); Santoni (2008)
ao sintoma recorrentemente relatado como o zumbido.
como o acompanhamento audiológico (através da
audiometria tonal associada a outros testes); tratamento de
salas de ensaio; e uso de protetores auditivos especiais de Agradecimentos:
atenuação uniforme (atenuam toda a faixa de frequência à Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB-USP), à
de 100 a 8.000 Hz sem mudar significativamente a forma Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
espectral do som original na frequência). Apesar de tais (FAPESP) e à Universidade Sagrado Coração (USC) -
medidas ainda estarem distante da realidade nacional, a em especial aos alunos do Curso de Música, aos quais
consolidação de parceria com outras instituições poderiam dedicamos o presente estudo.

149
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151

Referências
AMORIM, R. B. et al. Alterações auditivas da exposição ocupacional em músicos. Arquivos Internacionais de
Otorrinolaringologia. São Paulo, v.12, n.3, p.377-383, 2008.
ANSI – American National Standarts Institute S3.6. American National Standards Specification. New York: ANSI,1989.
ANSI – American National Standarts Institute S3.39 American National Standards Specification for Instruments to Measure
Aural Acoustic Impedance and Admittance. New York: ANSI,1987.
ARAÚJO, S. A. Perda auditiva induzida pelo ruído em trabalhadores de metalúrgica. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia.
São Paulo, n.68, v.1, p.47-52, 2002.
Axelsson, A.; Eliasson, A.; Israelsson, B. Hearing in pop-rock musicians: a follow-up study. American Auditory Society
Ear & Hear. Baltimore, v.16, n.3, p.245-253, 1995.
CARVALLO, R. M. M. et al. Limiares auditivos para altas frequências em adulto sem queixas auditivas. Acta ORL. São Paulo,
v.25, n.1, p.62-66, 2007.
CASTRO, G. G. S. Novas posturas de escuta na cultura contemporânea. Intexto. Porto Alegre, v.10, n.10, p.1-11, 2004.
Chasin, M. Musicians and the prevention of hearing loss. San Diego: Singular Publishing Group, 1996.
COSTA, C. P. Quando tocar dói: análise ergonômica da atividade de violistas de orquestra. Brasília: UnB, 2003. (Dissertação
de Mestrado).
DIAS, A. et al. Associação entre perda auditiva induzida pelo ruído e zumbidos. Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro,
v.22, n.1, p.63-68, 2006.
FLETCHER, H. Speech and hearing communication. New Jersey: Van Nostrand Co, p.464, 1959.
FOUQUET, M. L. Limiares de audibilidade nas frequências ultra-altas de 9 a 18 kHz em adultos de 18 a 30 anos. São Paulo:
UNIFESP, 1997. Monografia (Especialização em Distúrbios da Comunicação Humana).
FROTA, S.; SAMPAIO, F. Logoaudiometria, In Silvana Frota. Fundamentos em Fonoaudiologia. 1a ed. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, p.61-68, 1998.
Green, D. M., Kidd, G. J., Stevens, K. N. High-frequency audiometric assessment of a young adult population. Acoustical
Society of America. 81(2): New York, v.81, n.2, p.485-494, 1987.
GUEDES, M. C. et al. Estudo da reprodutibilidade das emissões otoacústicas em indivíduos normais. Revista Brasileira de
Otorrinolaringologia. São Paulo, v.68, n.1, p.34-38, 2002.
HAGBERG, M.;THIRINGER, G.;BRANDSTROM, L. Incidence of tinnitus, impaired hearing, and musculoskeletal disorders among
students enrolled in academic music education – a retrospective cohort study. Occupational and Environmental Health.
Berlin, v.78, n.7, p.575-583, 2005.
HAMILL, T. A.; HAAS, W. H. The relationship of pulsed, continuous, and warble extended-high frequency thresholds.
Communication Disorders: Amsterdam, v.19, n.3, p.227-235, 1986.
HARGER, M. R. H. C.; BARBOSA-BRANCO, A. Efeitos auditivos decorrentes da exposição ocupacional ao ruído em trabalhadores
de marmoraria no Distrito Federal. Associação Médica Brasileira. São Paulo, v.50, n.4, p.396-399, 2004.
JERGER, J.; SPEAKS, Charles; TRAMMELL, Jane. A new approach to speech audiometry. Speech and Hearing Disorders:
Washington, v.33, n.4, p.318-328, 1968.
JERGER, S.; JERGER, J. Alterações auditivas: um manual para avaliação clínica. São Paulo: Atheneu, p.102, 1989.
JUNIOR,J.J.J. Avaliação dos limiares auditivos de jovens e sua relação com hábitos de exposição à música eletronicamente
amplificada. São Paulo: USP, 1993. Tese (Doutorado em Otorrinolaringologia).
Kahari, K. R. et al. Hearing assessment of classical orchestral musicians. Scandinavian Audiology. Denmark, v.30, n.1, p.13-
23, 2001.
Kahari, K. R. et al. Hearing development in classical orchestral musicians. A follow-up study. Scandinavian Audiology. Denmark,
v.30, n.3, p.141-149, 2001.KEMP, D. T. Otoacustic emission: basic facts and applications. Audiology in Practice, p.1-4, 1989.
LLOYD, L. L.; KAPLAN, H. Audiometric interpretation: a manual of basic audiometry. Michigan: University Park Press, p.326, 1978.
LOPES, A. C. Audiometria tonal liminar, In Maria Cecília Bevilacqua (ed.) Tratado de Audiologia. 1a ed. São Paulo: Editora
Santos, p.63-80, 2011.
MAIA, A. A. et al. Análise do perfil audiológico dos músicos da orquestra sinfônica de Minas Gerais (OSMG). Per Musi, v.15.
Belo Horizonte: UFMG, p.67-71, 2007.
MAIA, J. R. F.; RUSSO, I. C. P. Estudo da audição de músicos de rock and roll. Pró-Fono. Barueri, v.20, n.1, p.49-50, 2008.
MARTINS, J. P. F. et al. Avaliação da perda auditiva induzida por ruído em músicos de Tubarão-SC. Arquivos Catarinenses de
Medicina. Florianópolis, v.37, n.4, p.69-74, 2008.
Mendes, M. H.; Koemler; L. A.; Assencio-Ferreira, V. J. A prevalência de perda auditiva induzida pelo ruído em músicos
de banda instrumental. CEFAC. São Paulo, v.4, n.3, p.179-185, 2002.
MENDES, M. H.; MORATA, T. C. Exposição profissional à música: uma revisão. Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia. São
Paulo, v.12, n.1, p.63-69, 2007.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Perda auditiva induzida por ruído (Pair). Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2006.

150
OTUBO, K. A.; LOPES, A. C.; LAURIS, J. R. P. Uma análise do perfil audiológico de estudantes de música. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.141-151.

MIRANDA, J. S.; AGRA, S. E. R. Logoaudiometria: o uso do mascaramento na avaliação do reconhecimento de fala em


indivíduos com deficiência auditiva sensorioneural. Salusvita. Bauru, v.27, n.3, p.329-339, 2008.
NEVES, R. R. R. A importância que metalúrgicos e músicos atribuem à audição e sua preservação. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, 2007. Dissertação (Mestrado em Fonoaudiologia).
Palin, S. L. Does classical music damage the hearing of musicians? A review of the literature. Occupational Medicine.
England, v.44, n.3, p.130-136, 1994.
PEDALINI, M. E.B. et al. Média dos limiares tonais na audiometria de alta frequência em indivíduos normais de 4 a 60 anos.
Pró-Fono. Barueri, v.12, n.2, p.17-20, 2000.
PINTO, A. S. et al. O ruído urbano e a saúde auditiva. Lato & Senso. Amazônia, v.3, n.5, p.90-93, 2002.
PRIEVE, B. A. et al. Analysis of transient-evoked otoacustic emissions in normal-hearing and hearing-impaired ears. Acoustical
Society of América. New York, v.93, n.6, p.3308-3319, 1993.
SÁ, L. Conrado Barbosa de et al. Avaliação dos limiares de audibilidade das altas frequências em indivíduos entre 18 e 27
anos sem queixas otológicas. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia. São Paulo, v.73, n.2, p.215-225, 2007.
SAKAMOTO, M. et al. Average thresholds in the 8 to 20 kHz range as a function of age. Scandinavian Audiology. Denmark,
v.27, n.3, p.189-192, 1998.
SAMELLI, A. G.; SCHOCHAT, E. Perda auditiva induzida por nível de pressão sonora elevado em um grupo de músicos
profissionais de rock and roll. Acta Awho. São Paulo, 2000, v.19, n.3, p.136 -143.
SANCHEZ, T. et al. Zumbido em pacientes com audiometria normal: caracterização clínica e repercussões. Revista Brasileira
de Otorrinolaringologia. São Paulo, v.71, n.4, p.427-431, 2005.
SANTONI, C. B. Músicos de pop-rock: efeitos da música amplificada e avaliação da satisfação no uso de protetores auditivos.
São Paulo: PUC, 2008. Dissertação (Mestrado em Fonoaudiologia).
Schmidt, J.M.; Verschuure, J.; Brocaar, M.P. Hearing loss in students at a conservatory. Audiology. Basel, v.33, n.4,
p.185-194, 1994.
TEIE, P.U. Noise-induced hearing loss and symphony orchestra musicians: risk factors, effects, and management. Maryland
Medical. Baltimore, v.47, n.1, p.13-18, 1998.

Notas
1 Segundo o Dicionário Aurélio, práxis está diretamente relacionado ao verbo praxe, que significa o que se pratica habitualmente; rotina; prática.
2 A Perda Auditiva do tipo Neurossensorial ocorre quando as células ciliadas da cóclea e/ou nervo ficam prejudicadas e o som não consegue atingir o
cérebro (onde o som é processado). Uma vez que as células ciliadas foram perdidas e/ou o nervo está lesado, não há como recuperá-las, o que torna
este tipo de perda permanente. Geralmente esse tipo de perda reduz a audição de sons agudos e pode distorcer alguns sons. Pode ser provocada
pelo avanço da idade; exposição ao ruído; e outras causas (doenças como a rubéola durante a gravidez; traumas acústicos e cranianos; uso de
medicações ototóxicas, entre outros).
3 H83.3 é um código referente a CID-10, corresponde aos efeitos do ruído sobre o ouvido interno. A CID-10 foi conceituada para padronizar e
catalogar as doenças e problemas relacionados à saúde, tendo como referência a Nomenclatura Internacional de Doenças, estabelecida pela
Organização Mundial de Saúde.
4 Ao realizar a Audiometria Tonal Liminar (ATL), verifica-se qual a diferença em decibel por frequência, a audição que o indivíduo tem em relação à
audição da maioria da população, determinando a menor intensidade ou pressão sonora, caracterizando dessa maneira, o Decibel Nível de Audição.

Karina Aki Otubo possui Graduação em Fonoaudiologia pela Universidade de São Paulo, Campus Bauru (FOB-USP), e
atualmente é pós-graduanda em Audiologia Clínica e Ocupacional pelo Centro de Especialização em Fonoaudiologia
Clínica (CEFAC). Atua na Área de Audiologia Ocupacional.

Andréa Cintra Lopes possui Graduação em Fonoaudiologia pela Universidade do Sagrado Coração, Mestrado em Distúrbios
da Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Doutorado em Distúrbios da Comunicação Humana
pela Universidade de São Paulo, título de especialista em Audiologia e Ativação em Processos em Profissões da saúde
pela FIOCRUZ, e pós-doutorado no Laboratório de Acústica e Vibração da Faculdade de Engenharia - UNESP. É professora
doutora dos cursos de graduação e pós-graduação, nível mestrado do Departamento de Fonoaudiologia da FOB-USP.

José Roberto Pereira Lauris possui Graduação em Engenharia Mecânica pela Fundação Educacional de Bauru, atual
UNESP, Mestrado em Engenharia Elétrica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutorado em Ciências
pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor Associado da Faculdade de Odontologia de Bauru da
Universidade de São Paulo (FOB-USP), ministrando as disciplinas de Estatística e Metodologia de Pesquisa, tanto em
graduação como pós-graduação. Vice coordenador do Campus de Bauru, USP.

151
MELLO, E. L.; FERREIRA, L. P.; PACHECO, N. F.; SILVA, M. A. A. Expressividade na opinião de cantores líricos. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.152-158

Expressividade na opinião
de cantores líricos
Enio Lopes Mello (PUC, São Paulo, SP)
enio.mello@superig.com.br

Léslie Piccolotto Ferreira (PUC, São Paulo, SP)


lesliepf@pucsp.com

Natália Fonseca Pacheco (PUC, São Paulo, SP)


nfpacheco@gmail.com

Marta Assumpção de Andrada e Silva (PUC, São Paulo, SP)


m.andradaesilva@gmail.com

Resumo: Investigação sobre a opinião de cantores líricos em relação à expressividade na performance operística. Método:
50 cantores líricos (24 mulheres e 26 homens) citaram cinco palavras relacionadas à expressividade do cantor de ópera.
Resultados: a partir da frequência das repetições de palavras nas respostas dos cantores foram elaborados seis eixos
temáticos: emoção (76%); técnica (64%); habilidades (58%); entrega (54%); corpo (48%) e interpretação (38%) que
foram correlacionados aos dados de caracterização dos sujeitos. Conclusão: a partir dos resultados desta pesquisa pode-
se inferir que a expressividade do cantor lírico diz respeito à emoção, à técnica e à habilidade do cantor de se entregar
ao personagem e ao público, e isso se conquista com anos de experiência na profissão.
Palavras chaves: expressividade no canto e na atuação; canto em ópera.

Expressiveness in the opinion of classical singers

Abstract: Investigation about the opinion of classical singers in relation to expressiveness in opera performance. Method:
50 classical singers (24 females and 26 males) provided five words related to the expressiveness of opera singers. Results:
The following six themes were defined from the frequency of word repetition in the singers’ answers: emotion (76%);
technique (64%); skills (58%); involvement (54%); body (48%) and interpretation (38%). These were crossed with the
subjects’ characterization data. Conclusion: The data suggest that the expressiveness of classical singers is related to
emotion, technique, and the ability of the singer to completely involve himself with the character and audience, and this
is achieved with years of experience in the profession.
Keywords: expressiveness in singing and acting; opera singing.

1- Introdução Neste sentido, CAVAZOTTI (2001) afirmou que, apesar


Expressividade é um tema que provoca muita da produção de pesquisa na área da música sobre a
controvérsia, porque além de ser subjetivo, depende da performance ter crescido consideravelmente nos últimos
linha de pressupostos teóricos que se adota. Na linha da vinte anos, ainda é grande a dificuldade em se abordar
Comunicação, por exemplo, tudo é expressivo, não obstante questões centrais, intrínsecas à experiência, tais como
ao julgo de valor, ou seja, se é bom ou ruim, sempre haverá as referentes à expressividade e ao significado musical.
uma expressão que comunica algo, sem conotações de Cientes da complexidade que envolve esse tema serão
comunicação positiva ou negativa. expostas a seguir várias conjecturas, concernentes da
área da musica, para plausíveis reflexões no canto lírico.
Entretanto, apesar da inegável relevância do tema,
existem poucas pesquisas na área da música que Para MUSZKAT et al (2000), a música é uma linguagem,
abordem a expressividade com consenso de raciocínio. porque se baseia em um sistema de signos, naturais

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 15/11/2011- Aprovado em: 02/06/2012
152
MELLO, E. L.; FERREIRA, L. P.; PACHECO, N. F.; SILVA, M. A. A. Expressividade na opinião de cantores líricos. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.152-158.

ou convencionados, que transmitem informações ou pesquisas de análises descritivas interdisciplinares


mensagens de um sistema a outro, seja, orgânico, social desenvolvidas nos campos da Musicologia, Ensino
ou cultural. Para o autor, há um paralelo entre a linguagem Musical, Psicologia e na Neurociência, cujo objetivo
verbal e a musical, pois ambas utilizam-se de estruturas é explicar ou dar sentido às polêmicas relacionadas
sensoriais para recepção e processamento auditivo às funções do rigor métrico e da fidelidade ao texto
(fonemas, sons) e visual (grafemas da leitura verbal e na expressividade interpretativa musical. As autoras
musical), que dependem da integridade funcional das consideram que as indicações da partitura podem ser
regiões envolvidas com atenção, memória e na utilização um elemento propulsor no desenvolvimento de uma
das estruturas eferentes motoras, necessárias tanto para capacidade expressiva mais elaborada.
a fala, quanto para a execução musical. No entanto, o
código utilizado na música não separa significante e Para PAULA e BORGES (2004), a performance musical
significado, diferentemente da linguagem verbal, ou seja, precisa ser elaborada e construída. O fazer musical possui
a mensagem da música não se condiciona à convenção um caráter interdisciplinar, implicado na intensa conexão
semântico-linguística, mas a uma organização que com outras áreas de conhecimento. Isso acontece porque
transmite ideias, por meio de estruturas significativas, as informações contidas no texto musical não são
que é a música propriamente dita. automaticamente processadas para transformarem-se nas
ações motoras que irão produzir os sons desejados. Para
De acordo com SCHENKER (2000), entre a partitura e a alcançar esse nível, o intérprete, além de decifrar o texto
execução do intérprete há um espaço em branco a ser musical, precisa arquitetar, muitas vezes arduamente,
preenchido. Nas partituras, as intenções expressivas as ações e os sons desejados. As informações contidas
do compositor, quanto às dinâmicas e timbres, são no texto musical precisam ser pensadas, elaboradas e
geralmente indicadas por instruções verbais subjetivas e processadas, e isto requer tempo e energia. Esse trabalho
os valores exatos de duração das notas são grafados na geralmente é executado pelo intérprete por meio da
partitura, porém nem sempre são executados. Segundo repetição de movimentos e da escuta. Segundo os autores,
o autor, isto ocorre porque a notação musical não pode um dos pontos críticos da performance está associado à
dar conta de todas as pequenas nuances da execução de capacidade para se dominar o estresse de palco, ou seja,
uma obra, pois a escrita musical é racional, cartesiana, o controle emocional. De acordo com SAPOLOSKY (2003,
enquanto que a obra de arte é viva, orgânica. Portanto, p.80), um estressor é algo do ambiente com o poder de
como nem tudo está escrito, cabe ao intérprete devolver tirar o corpo da homeostase (equilíbrio) e o organismo
à obra sua vitalidade original, ao reconhecer e ser capaz responde ao estresse fazendo uma série de adaptações
de executar o que não se encontra notado na partitura. fisiológicas, a fim de restabelecer o equilíbrio.

Sobre este assunto, SHIFRES (2001) destacou duas A maioria dos autores citados relaciona a expressividade
abordagens teóricas: a que valoriza a execução como ao sucesso do cantor em comunicar significado, ou seja,
realização da estrutura musical derivada da análise conseguir transmitir para o ouvinte, durante a performance
sistemática da obra e a que valoriza a execução, como o sentido do que canta. Para ANDRADA E SILVA (2005,
a realização das normas estilísticas que definem a p.94), o canto expressivo acontece quando o cantor
prática comum da execução de uma época. Contudo, consegue transmitir ao seu público, de modo altamente
julgamentos acerca da autenticidade da execução significativo, com vivacidade, força e energia, as ideias, as
provenientes de quaisquer dos dois enfoques correm o emoções e os valores implícitos na música. Baseada nesta
risco de serem omissos quanto à ação criativa peculiar do afirmação, a autora traça dez princípios que devem nortear
executante. Neste caso, a história da execução musical a intervenção fonoaudiológica junto ao cantor, e dentre
revela que a liberdade interpretativa é vista como força esses se destacam: alimentar o prazer de estar no palco;
contrária, tanto à vertente do marco estilístico, quanto à induzi-lo ao conhecimento do sentido da letra da música;
da unidade da obra. Pelo exposto, o autor considerou que verificar o domínio de técnicas e acima de tudo, convence-
o problema da autenticidade da interpretação não está lo que deve cantar com o coração e com a alma.
restrito às questões da aplicação das normas estilísticas
ou das gramáticas interpretativas, mas abrange outra Para SALGADO (2001e 2006), as emoções “artísticas” se
dimensão. Desse modo, mesmo que se possa considerar aproximam ou se assemelham às emoções ditas “reais”. Se
uma interpretação mais pertinente que outra, não é o cantor interpretar com uma grande convicção interior,
razoável falar de fidelidade ou autenticidade. Toda obra o efeito da expressão com que representa cada uma
musical tem na sua estrutura significados sociais e das emoções será mais convincente e, portanto, neste
culturais, que o intérprete assimila ou rechaça, conforme sentido, mais autêntica.
a visão musical e representações da obra, do compositor,
da época e também do mundo que o cerca. GABRIELSSON e JUSLIN (1996) evidenciaram as relações
dos parâmetros acústicos e as intenções expressivas nas
HIGUCHI e LEITE (2007) e HIGUCHI (2008) refletiram performances de nove músicos profissionais. Os músicos
acerca das questões que transitam entre o espaço da receberam instruções para interpretarem segundo os
fidelidade ao texto e a liberdade do intérprete, em adjetivos: alegre, triste, raivoso, suave, amedrontado,

153
MELLO, E. L.; FERREIRA, L. P.; PACHECO, N. F.; SILVA, M. A. A. Expressividade na opinião de cantores líricos. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.152-158

solene e inexpressivo. Os resultados mostraram a 2.2- Procedimentos


complexidade da questão diante das inúmeras escolhas Os cantores foram entrevistados via internet
possíveis para transmitir as intenções expressivas. Efeitos (Messenger- webcam e microfone) ou pessoalmente.
acústicos similares podem representar motivações Após identificação (iniciais do nome, faixa-etária,
expressivas diversas e efeitos acústicos diferentes podem classificação vocal, tempo de atuação na profissão,
representar as mesmas ideias expressivas. Constataram, formação em canto, exercício de outras profissões),
por este motivo, as dificuldades presentes na identificação solicitou-se que citassem cinco palavras que na opinião
das causas de características perceptivas tão evidentes. deles estivessem relacionadas à expressividade do
cantor lírico. Esta entrevista foi gravada (digital voicer-
Para COSTA (2009) o trabalho cênico dirigido à SONY-ICD-P620) e posteriormente transcrita.
formação de jovens cantores pode representar um
recurso facilitador na criação e manutenção de uma 2.3- Análises dos dados
obra, sejam nos aspectos acústicos vocais ou no
Os dados de identificação serviram para a
domínio de palco quando se estabelecem a formação de
caracterização dos sujeitos e as palavras citadas foram
um coro cênico, ao mesmo tempo em que desempenha
submetidas a análise de conteúdo, conforme proposta
um papel lúdico e prazeroso aos participantes. Neste
de MINAYO (2004), que consiste em descobrir os
sentido, LOUREIRO (2006) afirmou que as diferenças
núcleos de sentido que compõem uma comunicação,
de teor expressivo são percebidas com bastante
cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa
clareza até mesmo por ouvintes leigos. Sendo assim,
que esteja ligada ao objetivo proposto. Na análise de
uma interpretação expressiva, mesmo que contenha
conteúdo, duas abordagens foram possíveis: análise
algumas imprecisões e erros, é sempre mais apreciada
de eixos temáticos (qualitativa) e dedução frequencial
que uma performance tecnicamente perfeita.
(quantitativa). Desta forma, os eixos temáticos
foram extraídos da repetição de termos, que foram
Neste sentido ABDO (2005, p.361) comunga com os
codificados, divididos e reagrupados por semelhança.
postulados de PAREYSON (1997, p.120), sobre a “estética
Foram categorizados 06 eixos temáticos, a saber:
da formatividade”. Ambos consideram que o centro da
técnica, emoção, corpo, interpretação, entrega e
autonomia da arte é a própria especificação da forma
habilidades. Os dados foram transpostos para uma
artística. A primeira autora concebeu por forma artística
planilha (Microsoft Excel 2010) e em seguida fez-se
o acabamento de um processo que tem como máxima
o cruzamentos das caracterizações dos sujeitos com
expressão de êxito a adequação consigo mesmo e não
os eixos temáticos sobre expressividade, descritos
a algum fim ou valor extrínseco. Segundo ela, o artista
anteriormente. Para tanto, utilizou-se o teste
exercita sua “formatividade” no ato da criação. Nesse
estatístico de correlação (Pearson) por meio do Data
exercício está presente toda a sua vida espiritual. Assim, no
Analysis and Statistical Software (STATA), sendo que,
“modo de formar” do artista, ou seja, em seu “estilo”, que
o valor de significância adotado foi de p ≤ 0,05, ou
é ao mesmo tempo pessoal e histórico, está presente sua
seja, assumiu-se a probabilidade de apenas 5% das
vontade expressiva e comunicativa. Por este motivo, na obra
respostas dos cantores não serem comuns para todos
de arte, até mesmo um detalhe mínimo diz, comunica algo.
que responderam sobre o mesmo eixo temático, desta
Tudo nela carrega significados, uma vez que está imbuído
forma, quanto menor for o valor de p, maior será a
dos sentimentos, aspirações e convicções do artista.
concordância de opinião entre os cantores.
A partir dos expostos acima, o objetivo do estudo
foi investigar a opinião de cantores líricos sobre a 3- Resultados
expressividade na performance operística. Os eixos temáticos mais referidos pelos 50 sujeitos
da pesquisa foram: “emoção” com 38 citações (76%);
2- Método seguido por “técnica” 32 (64%), “habilidade” 29
(58%); “entrega” 27 (54%); “corpo” 40 (48%) e for fim,
Este artigo é resultado de uma pesquisa transversal, de “interpretação” 19 (38%).
caráter descritivo e qualitativo, que foi aprovada pelo
comitê de ética em pesquisa da Pontifícia Universidade A caracterização dos participantes, quanto às variáveis
Católica de São Paulo (PUC/SP), sob o número 119/2008. sexo, faixa etária, formação, tempo de docência e
classificação vocal está exposta no quadro (Ex.1).
2.1- Seleção dos sujeitos
Os critérios para seleção dos sujeitos foram: ter E a correlação entre os eixos temáticos sobre
idade mínima 21 anos, sem limite máximo de idade; expressividade e a caracterização dos sujeitos segundo
experiência mínima de três anos como cantor (a) sexo, classificação vocal, formação, tempo de atividade
lírico (a) profissional. Participaram desta pesquisa 50 e faixa etária está exposta na tabela (Ex.2).
cantores líricos, identificados como S1, S2, S3 e assim
sucessivamente até S50.

154
MELLO, E. L.; FERREIRA, L. P.; PACHECO, N. F.; SILVA, M. A. A. Expressividade na opinião de cantores líricos. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.152-158.

Ex.1 – Caracterização dos sujeitos: número (n) e porcentagem (%), segundo sexo,
faixa etária, formação em música/canto; tempo de docência e classificação vocal.

4- Discussão de uma interpretação mais livre e expressiva. Nesta


A partir da análise dos dados expostos no Ex. 1, pode- perspectiva, a preparação estará atrelada a capacidade de
se observar que houve uma homogeneidade de opinião conjugar áreas interdisciplinares do conhecimento.
entre os cantores entrevistados, haja vista que, apenas
no cruzamento do “tempo de atividade” com o eixo Os dados sobre o eixo temático “entrega” vão ao encontro
temático “entrega”, houve correlação estatisticamente da ideia de doação, que foi abordada por ANDRADA E
significante, ou seja, p ≤ 0,05. Este dado nos permite SILVA (2005, p.95). Segundo a autora, a doação do cantor
inferir que quanto maior o tempo de profissão, maior ao papel interpretado e ao seu público configura uma
será a entrega do cantor para a atividade a que se possibilidade de se tornar expressivo, isto porque ao doar-
propõe, ou seja, há uma diferença entre cantores se o cantor estabelece uma relação de desejo da conquista
iniciantes e os mais experientes na profissão, no que do outro [ouvinte] e a partir desta conquista o cantor
diz respeito à entrega do cantor à personagem da ópera, poderá deter a atenção do expectador para a performance.
sendo que, cantores mais experientes, com maior tempo Desse modo, a expressividade estará implicada no grau de
de atividade profissional, acreditam que a entrega esteja comunicação estabelecida entre cantor e público.
atrelada à capacidade de se tornar expressivo.
O eixo temático “emoção” apresentou uma tendência a
Nota-se também uma tendência de a entrega estar se diferenciar entre homens e mulheres, entre as cinco
relacionada com a formação do cantor, isto porque, os classificações vocais (principalmente para sopranos) e
resultados dessa correlação (0,057%) se aproximaram do entre as três faixas etárias (20 a 30; 31 a 40; acima de
valor de significância (p≤ 0,05). Pode-se inferir a partir 40). Os resultados evidenciam dados que corroboram com
desse dado que, para os cantores graduados em música/ a opinião de ABDO (2005) no que se refere ao sentimento
canto, a entrega ao personagem é mais relevante do que do cantor durante uma performance. Para a autora
para aqueles com formação informal. Para PAULA e BORGES quando o cantor interpreta uma personagem carrega
(2004), a formação e o estudo são base para a concepção em si todo sentimento que lhe é próprio, evidenciando

155
MELLO, E. L.; FERREIRA, L. P.; PACHECO, N. F.; SILVA, M. A. A. Expressividade na opinião de cantores líricos. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.152-158

Ex.2 – Correlação entre os eixos temáticos sobre expressividade e caracterização dos sujeitos segundo sexo,
classificação vocal, formação, tempo de atividade e faixa etária.

dessa forma uma característica própria de interpretar. No cruzamento do eixo temático “emoção” com “faixa
Portanto, no cruzamento do eixo temático “emoção” com etária” evidenciou-se uma tendência (p = 0,054) a
o eixo temático “sexo” o valor de p = 0,067, representa afirmar que quanto mais velho for o cantor (a), maior
que a emoção na performance do cantor é um dado mais a possibilidade da emoção se tornar importante para a
importante na opinião das mulheres (21 = 87,5%) do que expressividade durante a performance. Cabe ressaltar
dos homens (17 = 65,38%). Esse resultado está reforçado que segundo alguns autores (SALGADO, 2001; PAULA e
na correlação entre as classificações vocais e a emoção, BORGES, 2004; MAULÉON e MARTINEZ, 2004), a emoção
isto porque pode-se observar que entre as mulheres há deve fazer parte de toda performance, porem é necessário
diferença entre a porcentagem de sopranos (88,89%) e as um estado de controle, para que as reações inerentes a ela
mezzo-sopranos (83,33%). não interfiram na capacidade do cantor em estabelecer

156
MELLO, E. L.; FERREIRA, L. P.; PACHECO, N. F.; SILVA, M. A. A. Expressividade na opinião de cantores líricos. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.152-158.

uma relação com a plateia. Ou seja, a emoção não pode acordo com MAULÉON e MARTINEZ (2004), a música e os
interferir de forma negativa no controle vocal e na processos de comunicação envolvidos em sua produção
incorporação do personagem. vinculam-se a processos corporais e neurológicos. Esses
mecanismos são compartilhados entre o intérprete e o
Observa-se que nos eixos temáticos: técnica, ouvinte e permitem o acesso em tempo real à informação
corpo, interpretação e habilidade não há diferença contida no sinal sonoro, por conseguinte possibilita
estatisticamente significante, portanto, presume-se que uma compreensão do discurso, de natureza expressiva e
há um entendimento homogêneo entre os cantores. emocional, de forma não consciente.
Porém, não se pode afirmar que estes eixos sejam
importantes para todos os cantores, pois os eixos foram O eixo temático “corpo” corrobora com a opinião de
baseados na opinião da maioria. PAULA e BORGES, (2004). Segundo os autores, durante
uma performance, a própria apresentação pública é
Em relação às habilidades de cada intérprete, deve-se o agente estressor. Tal estado tem aspectos positivos,
estar atento à estreita relação que existe entre o potencial pois prepara o corpo para responder mais prontamente
técnico de cada cantor com o momento e a intenção à situação que se configura. Assim, o coração com
interpretativa durante uma performance, estes atributos batimentos acelerados, suor frio, respiração intensificada,
configuram a singularidade da espontaneidade do cantor frio no estômago e outras, são sensações ativadas pela
quando está em cena. Sobre este aspecto, HIGUCHI e mente com o objetivo de preparar o corpo para a ação
LEITE (2007) consideram que a espontaneidade é um e cabe ao intérprete controlar-se emocionalmente, por
elemento facilitador da expressividade interpretativa meio de uma postura mental adequada. Desse modo, a
musical, portanto, a restrição na performance pode qualidade da performance depende tanto da capacidade
ocasionar inibição na expressividade. Em contrapartida, de execução, quanto do autocontrole diante do público.
a total espontaneidade conduz a uma real limitação na
capacidade expressiva. 5- Considerações finais
Os resultados desta pesquisa demonstraram haver
SHIFRES (2001) criou um neologismo metafórico, homogeneidade na opinião dos cantores líricos
“metatexto”, referindo-se, provavelmente, à palavra participantes que, quando solicitado que citassem palavras
metalinguagem, que significa linguagem que se utiliza relacionadas à expressividade, fizeram referências a seis
para descrever outra linguagem ou qualquer sistema eixos temáticos, a saber: emoção, técnica, habilidades,
de significação. Para o autor, a execução musical é um entrega, corpo e interpretação. Quando esses eixos foram
processo complexo de reconstrução em que o texto relacionados às características pessoais dos cantores,
interpretado e a partitura revelam-se em outro texto, ou pôde-se inferir que a expressividade do cantor lírico
seja, a execução é compreendida como um “metatexto”, diz respeito à emoção, à capacidade de entrega ao
que traz uma oportunidade de estudo sobre as tensões personagem e ao público, e isso se conquista com anos
entre as intenzioni [intenções] de cada intérprete. De de experiências na profissão.

Referências
ABDO, Sandra N. Sobre o problema da autonomia da arte e suas implicações hermenêuticas e ontológicas. Kriterion
[online], 2005, v. 46, n.112, p.357-366.
ANDRADA E SILVA, Marta A. Expressividade no canto. In: KYRILLOS Leny R., organizadora. Expressividade: da teoria à
prática. São Paulo: Revinter, 2005, p.91-103.
CAVAZOTTI, André. Caminhos para pesquisa na área de performance musical: uma breve introdução à fenomenologia da
música. Cadernos do Instituto de Artes da UNICAMP, Campinas, 2001, v.5, p.35-38.
COSTA, Patrícia. A expressão cênica como elemento facilitador da performance no coro juvenil. Per Musi, 2009, n.19, p.63-71.
GABRIELSSON Alf, JUSLIN Patrick N. Emotional Expression in Music Performance: Between the Performer’s Intention and
the Listener’s Experience. Psychology of Music, 1996, n.24, p.68-91,
HIGUCHI Marcia K.K. Fidelidade ao texto e a expressividade na interpretação musical: uma visão neuropsicológica. Anais
do SIMCAM4 - IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais, 2008. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dl/simcam4/
downloads_anais/SIMCAM4_Marcia_Higuchi.pdf
HIGUCHI, Marcia K.K, LEITE João P. Rigidez métrica e expressividade na interpretação musical: uma teoria neuropsicológica.
Opus: Rev. da Associação Nacional de pesquisa e pós-graduação em música – ANPPOM (Goiânia), 2007, n.13, v.2,
p.187-207. Disponível em: <http://www.anppom.com.br/opus/opus13/212/12-Higuchi-Leite.htm

157
MELLO, E. L.; FERREIRA, L. P.; PACHECO, N. F.; SILVA, M. A. A. Expressividade na opinião de cantores líricos. Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.152-158

LOUREIRO, Mauricio A. A pesquisa empírica em expressividade musical: métodos e modelos de representação e extração
de informação de conteúdo expressivo musical. Rev. Opus, 2006, n.12, v.12, p.1-26. Disponível em: http://www.
anppom.com.br/opus/opus12/01_Mauricio.pdf
MAULÉON Claudia, MARTINEZ Isabel C. Co-articulacion em el canto: uma clave para analisis del discurso expressivo. Anais
IV Reunion de SACCoM, 2004. Disponível em: http://www.saccom.org.ar/2004_reunion4/actas_indice.htm
MINAYO, Maria Cecília de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 8º Ed. São Paulo: Hucitec. (2004).
MUSZKAT Mauro, CORREIA Cléo MF, CAMPOS Sandra M. Música e Neurociências. Rev. Neurociências, 2000, n. 8, v.2,
p.70-75.
PAREYSON Luigi. Os problemas da estética. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997, 246p.
PAULA L, Lucia; BORGES Maria Helena J. O ensino da performance musical: uma abordagem teórica sobre o
desenvolvimento dos eventos mentais relacionados às ações e emoções presentes no fazer musical. Música Hodie,
2004, n.4, v.1.p.29-44.
SCHENKER Heinrich. The Art of Performance. New York: Oxford University Press; 2000.
SALGADO Antônio G. A expressividade na face e na voz do cantor e sua importância na comunicação do conteúdo
emotivo de uma performance musical. Performance – Revista de Interpretação Musical, 2006, n.2, p.1-13. Disponível
em: <http://www.performanceonline.org/pt/edicoes/pt/n2/SalgadoPrt.pdf^>
______. Contributo para a Compreensão de Alguns dos Processos Perceptivos e Cognitivos Implicados no Reconhecimento
da Expressão da Emoção Facial e Vocal no Canto. In: Actas della Primera Reunión Anual de SACCoM. Avellaneda: Ed.
Flavio Shifres, 2001. Disponível em: <http://www.saccom.org.ar/secciones/primera/Papers/Salgado/Salgado.htm
SAPOLSKY Robert. Assumindo o controle do estresse. Rev. Scientific American Brasil, 2003, n.17, v.1, p.79-87.
SHIFRES Flavio. El ejecutante como intérprete: un estudio acerca de la cooperación interpretativa del ejecutante en la
obra musical In: Actas della Primera Reunión Anual de SACCoM. Ed. Flavio Shifres. Avellaneda. Universidad de Buenos
Aires, 2001. Disponível: http://www.saccom.org.ar/secciones/primera/Papers/Shifres/Shifres.htm

Enio Lopes Mello é cantor lírico e terapeuta corporal, especializado no método de Cadeias musculares e articulares
GDS ICTGDS-Bruxelas, Mestre em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutorando em
Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tenor solista do Coral Tanus da Cidade de São Paulo.
Membro do Laboratório de Voz da PUCSP (LABORVOX/PUCSP)

Léslie Piccolotto Ferreira é Fonoaudióloga. Mestre em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e doutora em Distúrbios da Comunicação Humana (Fonoaudiologia) pela Universidade
Federal de São Paulo. Professora e coordenadora do Programa de estudos pós-graduados em Fonoaudiologia da PUCSP.
Diretora do LABORVOX/PUCSP.

Natalia Fonseca Pacheco é cantora lírica; Bacharel em Musica pela Universidade do Estado de Minas Gerais; Mestre
em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cantora efetiva do Coral Lírico de Minas Gerais
(Palácio das Artes). Membro do LABORVOX/PUCSP.

Marta Assumpção de Andrada e Silva é fonoaudióloga clinica, Mestre em Distúrbios da Comunicação pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Professora Assistente Doutora na Pós-graduação e Graduação em Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo; Professora Adjunta no Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa
de Misericórdia de São Paulo. Membro do LABORVOX/PUCSP.

Apoio financeiro: CNPq (bolsa de doutoramento do primeiro autor)

158
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

Três perspectivas gestuais para uma


performance percussiva: técnica,
interpretativa e expressiva
Fernando Chaib (DeCA – INET-MD Universidade de Aveiro, Aveiro, Portugal)
fernandochaib@gmail.com

Resumo: Esse artigo1 propõe uma reflexão sobre a atuação do intérprete percussionista em função dos gestos que
o mesmo poderá aplicar sobre uma performance musical. Para uma construção performativa, que acreditamos poder
auxiliar na transmissão do conteúdo musical de uma obra, selecionamos três ações gestuais: técnica (relativa aos
movimentos corporais); interpretativas (relativa aos exercícios intelectuais) e expressivas (integração das ações corporais
e intelectuais). As explicações e análises sobre os fenômenos gestuais são ilustradas com obras consagradas do repertório
de percussão.

Palavras-chave: gesto em percussão; movimento corporal em música; exercício intelectual e performance.

Three gestural perspectives for a percussive performance: technical, interpretative and expressive

Abstract: This article aims at providing a reflection towards the percussionist gestures during musical performance. In
building a performance we propose to assist the transmission of a work’s musical content according to three gestural
acts: technical (only related to body motion); interpretative (related to intellectual exercises) and expressive (integration
between body and intellect actions). The explanations and analyses of the gesture phenomena are illustrated with
standard works of the percussion repertoire.

Keywords: gesture in percussion; body movement in music; intellectual exercise and performance.

1. Introdução
Nas artes performativas o fenômeno gestual é encarado (2010) e JENSENIUS et. al. (2010) – Instrumental gestures
de diversos modos, sendo encontradas as mais variadas (CADOZ e WANDERLEY, 2000) ou sound-accompanying
interpretações sobre o mesmo. Em algumas formas de gestures (DELALANDE, 1988). A partir de algumas reflexões
expressão artística como a música, dança, pintura e teatro, sobre esse objeto buscaremos identificar certas relações
os autores e intérpretes geralmente se apropriam de forma gestuais passíveis de serem incutidas e redimensionadas
plural do conceito de gesto. GODØY (2010) é enfático ao para a performance destinada ao repertório escrito para
afirmar como são recentes os estudos que relacionam o percussão. Ao considerarmos o movimento corporal uma
gesto com o fenômeno sonoro em específico: “We are only das principais fontes de expressividade para a elaboração
in the beginning of more systematic studies of gestural da performance do percussionista, acreditamos que a
affordances of music sound, and needless to say, there are percepção e o desenvolvimento dos gestos realizados
very many theoretical and methodological challenges here”. permitirá o alargamento das possibilidades de transmissão
GODØY (2010, p.122). Mesmo assim, já existem na literatura e compreensão do conteúdo musical presente na obra
especializada alguns conceitos a respeito do fenômeno executada. Isso poderá gerar diferentes níveis de expressão
gestual em música, dos quais nos interessa nesse artigo: levando o intérprete a ampliar as suas faculdades e
sound-producing gestures, compartilhado por DAHL et.al horizontes interpretativos.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 16/11/2011- Aprovado em: 13/05/2012
159
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

Três diferentes pontos de vista sobre o gesto foram Não obstante observaremos como a percussão se serve de
aqui analisados. O primeiro, ao qual chamaremos adaptações de técnicas de execução de outras famílias de
Gesto Percussivo (GP), será o responsável pela extração instrumentos para a sua execução. O ato de soprar é uma
sonora do instrumento, processo imprescindível para delas. Para a realização do seu som, muitos apitos possuem
uma performance musical percussiva. O segundo, uma pequena esfera que debate-se dentro da própria
conceitualizado como Gesto Percussivo Interpretativo caixa de ressonância do apito produzindo o efeito de um
(GPI), discutirá o exercício e domínio intelectual do tremolo (dizemos que a esfera chocalha dentro do “corpo”
percussionista sobre a obra capaz de outorgar-lhe um do apito). Para que isso ocorra e produza o som para o qual
caráter performativo único e original. Finalmente, o o apito foi concebido, é necessário soprá-lo. O ato em si é
terceiro conceito de gesto que denominamos Gesto o de soprar mas a sua consequência, o som obtido através
Percussivo Expressivo (GPE) será a simbiose dos dois do chocalhar da esfera, caracterizará a ação como um GP.
gestos anteriores, somados a uma concepção de
movimento corporal que transcende as questões técnicas Carlos Stasi vai mais além em sua obra Canção Simples de
de execução instrumental. Para uma melhor compreensão Tambor (1990) solicitando ao percussionista “soprar” em
dos conceitos e suas aplicações práticas na performance direção à caixa (STASI,1990 p.04). Por ser uma obra escrita
em percussão tomaremos como casos de estudo algumas para percussão e tendo em conta a contextualização da
obras de referência existentes no repertório destinado aos performance, consideraremos todos os atos realizados
instrumentos de percussão2. durante a execução instrumental como ações de
interação percussiva. Mesmo tratando-se de um sopro,
2. Gesto Percussivo (GP) essa ação exerceu o papel de fonte de interlocução entre
o instrumentista e o instrumento, por tanto desempenhou
As discussões que buscam encontrar soluções para as
uma função gestual percussiva.
barreiras impostas pelos instrumentos de percussão (ou
pela partitura) relativamente à interpretação e expressão Outro exemplo será a utilização de arcos de instrumentos
musical são, de fato, constantes no universo percussivo. de cordas sobre idiofones e instrumentos de lâminas. A
Para além dos meios expressivos (articulações, relação táctil é praticamente a mesma que a utilizada
dinâmicas, ligaduras, etc.), as discrepâncias tímbricas e por violinistas, contrabaixistas, etc. É certo que o deslize
sonoras (ressonância, reverberação, etc.) caracterizam- do arco para obtenção do som é uma característica dos
se como fatores complexos na construção performativa instrumentos de cordas, mas, ao observarmos um número
do percussionista. Apesar de as pesquisas envolvendo considerável de obras para percussão que se apropriam
o gesto relacionado a esse assunto serem recentes dessa técnica, somos obrigados a admitirmos que trata-
observamos que a primeira década do século XXI foi se, em música para percussão, de uma ação percussiva.
“presenteada” com uma série de trabalhos voltados para
este sujeito3. Mesmo pertencendo a um mesmo campo Através desses e outros exemplos percebemos como o GP
de investigação esses trabalhos carregam diferentes nos conduz à variados atos de percutir, mostrando-se um
abordagens relativas ao objeto de pesquisa. Antecipando meio de execução instrumental complexo e multifacetado.
essa gama de estudos, BAILEY (1963) já procurava
discutir certas problemáticas evidentes na performance
para percussão ao afirmar que os percussionistas 2.1. Possibilidades de GP (lista de gestos
deveriam desenvolver técnicas que projetassem percussivos)
sensações de legato, mesmo sendo impossível produzir Para visualizarmos os exemplos de contatos que se
essa ideia no real sentido da palavra. seguem, elaboramos uma lista de gestos percussivos
(Ex.1) contendo excertos musicais (Ex.2 a Ex.10) que
Tomaremos como base das observações o conceito de servirão de auxílio para uma melhor compreensão
Sound-producing gestures definido como: “meaning body dos conceitos discutidos. Para tal elegemos obras
movements necessary for producing sound” (GODØY, 2010 que possuem reconhecida relevância artística no
p.110). Serão esses movimentos somáticos indispensáveis, repertório percussivo.
o ponto de origem dos gestos corporais ligados à
performance musical em percussão. Sem esses primeiros Será importante frisar que o texto musical, através
movimentos a execução instrumental percussiva realizada das figuras de tempo e da sonoridade requerida no
por um indivíduo tornar-se-ia impossível. Através das instrumento, influenciará as relações de contatos
observações aqui feitas será possível determinar o GP pontuais ou duráveis. O bom senso do percussionista
como o primeiro gesto realizado pelo percussionista ditará as suas considerações relativas aos diversos
para a extração sonora, ou seja o primeiro contato tipos de contatos existentes, optando pela
estabelecido entre intérprete e instrumento. A ideia temporalidade mais adequada de cada ação sobre o
será justamente observar os meios de execução sobre os instrumento. Através dessa nuance interpretativa
instrumentos de percussão para dar a esse conceito uma observamos a ocorrência de convergências entre as
direção à performance musical. Atos como friccionar, relações de contato em uma performance, permitindo
raspar, chocalhar, tactear e apalpar, dentre outras ações a possibilidade de uma nova lista (Ex.11) contendo
que serão expostas integrarão o conceito de GP. novas relações de gestuais (Ex.12 a Ex.22):

160
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

Tipologia do GP Sigla Descrição Referência


Execução onde alguma parte do corpo utilizada para a extração
Contato Direto CAGE (1939).
CDC sonora estabelece contato durável (permanente) sobre o instru-
Constante Ex.2.
mento (toque preso).
Contato Direto Execução onde alguma parte do corpo utilizada para a extração PIRES (1971).
CDI
Inconstante sonora estabelece contato pontual (não permanente) (toque solto). Ex.3.
Contato Indireto Execução onde objetos manipulados pelo instrumentista estabe- GRISEY
CIC
Constante lecem contatos duráveis com o instrumento. (1976). Ex.4.
Contato Indireto Execução onde objetos manipulados pelo instrumentista estabe- OLIVEIRA (1993,
CII
Inconstante lecem contatos pontuais sobre o instrumento. rev.1999). Ex.5.
Contato Execução do instrumento sem haver contato direto do instru-
STASI (1990).
Semi-Direto CSDC mentista sobre o material que, estando em contato constante
Ex.6.
Constante com o instrumento, extrai o som do mesmo.

Contato Semi-Direto Mesmo conceito aplicado ao CSDC, salvo que o objeto que extrai TINOCO (2003,
CSDI
Inconstante o som não estará em contato constante com o instrumento. p.03). Ex.7.

Contato Uma parte do corpo percutirá sobre outra que estará manipu-
STASI (1990,
Semi-Indireto CSII lando um objeto qualquer. O mesmo se moverá por simpatia, es-
p.04). Ex.8.
Inconstante tabelecendo contato com o instrumento.
Raspar um objeto contra outro apoiado sobre um membranofone.
Contato ZAMPRONHA
O instrumento atuará como um amplificador e modificador do
Semi-Indireto CSIC (2000/2006,
som. O CSIC se caracterizará ao considerarmos como instrumento
constante p.07). Ex.9.
todo o conjunto dessa relação de contato.
Contato No exato momento da extração sonora não há qualquer contato
STASI (1990).
pseudo-indireto CPII táctil do intérprete estabelecido com o instrumento ou com o
Ex.10.
inconstante objeto manipulado.
Ex.1: Lista de tipologias de GP.

Ex.2 - First Construction (In Metal) (1939) de CAGE:


realização de tremolo na folha de zinco, segurando a mesma de forma constante (c.1-5).

Ex.3: Pires: Ostinati (1971) de PIRES: rulo nas congas com mãos (2º Sistema).

Ex.4: KYTI (1993/1999) de OLIVEIRA: rulo nos tímpanos (c.44-46).

161
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

Ex.5: Partiels pour 18 musiciens (1976) de GRISEY:


raspar escova continuamente sobre a pele de um bombo sinfônico (c.47).

Ex.6: Canção Simples de Tambor (1990) de STASI: bola de pingue-pongue


gira continuamente sobre a caixa sem o percussionista tocar-lhe (Início do 3ºmov.).

Ex.7:Imaginary Dancescape a Melodrumming after Cocteau (2003) de TINOCO:


bolas de borracha sacudidas dentro de um Steel-Drum (c.5).

Ex.8: Canção Simples de Tambor (1990) de STASI: uma mão executa o ritmo escrito
sobre a outra que está segurando uma vara de pesca (p.04).

Ex.9: Recycling Collaging Sampling (2000/2006) de ZAMPRONHA: seção de improviso, onde


D = peles; S = metais suspensos e NRW = madeiras e metais abafados (p.07).

Ex.10: Canção Simples de Tambor (1990) de STASI: realizar o ritmo


soltando a bola de pingue-pongue sobre a caixa e agarrando-a de volta (p.03).

162
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

Sigla Descrição Referência


CII+CDI Manipula-se um objeto ao mesmo tempo em que alguma parte do corpo OLIVEIRA (2010).
está livre para percutir diretamente no instrumento. Ex.12.
Manipula-se um objeto em contato pontual sobre o instrumento e outro DEANE (1983).
CII + CIC em contato constante (glissando em uma única lâmina). Ex.13.
Manipula-se um artefacto em contato pontual com o instrumento ao mes-
BARTÓK (1939).
CII+CDC mo tempo em que alguma parte do corpo interfere de forma constante no
Ex.14.
resultado sonoro (glissando nos tímpanos).
Manipula-se um objeto em contato constante com o instrumento ao mes-
SEJOURNÉ (1999).
CIC + CDI mo tempo em que alguma parte do corpo agirá sobre o mesmo de forma
Ex.15.
direta e constante (harmônico no vibrafone).
Manipula-se um artefacto em contato constante com o instrumento ao
NOBRE (1963, p.35).
CIC + CDC mesmo tempo em que alguma parte do corpo interfere de forma constante
Ex.16.
no resultado sonoro (cuíca).
Uma mão deverá efetuar toques constantes na pele enquanto a outra es-
tará apoiada em forma de concha com o cutelo encostado à pele no cen-
APERGHIS (1981).
CDC+CDI tro da mesma apontando para a mão que realiza os toques. Esse tipo de
Ex.17.
contato ocorre quando deslizamos a mão que está no centro da pele em
direção à que realiza os toques na borda.
Deve-se estabelecer um movimento contínuo de um objeto sobre com al-
CSDC + CII guma parte do corpo atuando sobre o instrumento. Somado a esse movi- STASI (1990). Ex.18.
mento deverá ser utilizado um batente ou objeto qualquer para percutir.

Será o mesmo conceito de CSDC+CII, no entanto o batente ou objeto de-


CSDC + CIC STASI (1990). Ex.19.
verá efetuar contatos constantes.
Será o mesmo conceito de CSDC+CII, salvo que já não há manipulação
CSDC + CDI de um batente. Alguma parte do corpo deverá agir diretamente sobre a STASI (1990). Ex.20.
extração sonora do instrumento.
Toques no Repique: Uma das mãos utiliza baqueta e a outra estará livre ROSAURO (1992).
CII + CDI + CDC
para percutir de forma direta e indireta. Ex.21.
Combinações STASI (1990: 03).
Observadas em obras que permitem a criação de improvisos.
diversas Ex.22.

Ex.11: Lista de combinações do GP.

Ex.12: Radio Bossa (2010) de OLIVEIRA: notas com “cabeça” grande = polegar direito, “cabeça” pequena = dedos e
baquetas, figuras sem “cabeça” = mão direita aberta (p.01).

Ex.13: Mourning Dove Sonet (1983) de DEANE:.glissando de Fá para Mi bemol (c.1-2).

163
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

Ex.14: Sonata para dois pianos e percussão (1939) de BARTÓK: glissando nos tímpanos (c.259-263).

Ex.15: Rhapsody for Percussion Solo and Orchestra (1992) de ROSAURO:


Toques no Repinique (c.365-366).

Ex.16: Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes (1999) de SEJOURNÉ: harmônicos no vibrafone em uma única
lâmina, utilizando arco e dedo como artifícios (c.171-173).

Ex.17: Variações Rítmicas (1963) de NOBRE: linha da cuíca (1º sistema, p.35).

Ex.18: Exercício n.12 (2003) de BOLÃO. Toques no Rebolo onde:


Voz de cima FUSTE, voz do meio DEDOS e voz de baixo MÃO (p.51).

Ex.19: Les Gutteurs de Sons (1981) de APERGHIS: cotovelo apoiado no centro da pele do tambor
para a realização do glissando (c.263).

164
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

Ex.20: Canção Simples de Tambor (1990) de STASI: enquanto a bola de pingue-pongue gira na caixa, deve-se realizar o
rimo escrito utilizando uma vassourinha em toques simples (p.03).

Ex.21: Canção Simples de Tambor (1990) de STASI: enquanto a bola de pingue-pongue gira na caixa, deve-se raspar a
vassourinha nas figuras sem “cabeça” (p.03).

Ex.22: Canção Simples de Tambor (1990) de STASI: enquanto a bola de pingue-pongue gira na caixa, deve-se realizar
um rulo com os dedos (p.03).

2.2. Conceitualização do GP de entendimento da atividade musical” (CAZARIM, 2008,


Após as observações realizadas a partir das listas Ex.1 s/p.). Ao considerarmos condição sine qua non para a
e Ex.11, admitimos o GP como o movimento corporal prática musical percussiva, o GP será:
indispensável para a primeira ação gerada entre o
intérprete e instrumento (a sua extração sonora). De Movimento somático inevitável, consequente
carácter puramente técnico mas não interpretativo, esse de uma execução instrumental percussiva.
gesto será o primeiro passo dado para a construção de
uma performance em percussão, podendo ser considerado 3. Gesto Percussivo Interpretativo (GPI)
a primeira fonte de interlocução expressiva do intérprete. Determinar os meios de interpretação que caracterizarão
Apesar de ser responsável pelos movimentos corporais os movimentos realizados com o corpo, significa
desprovidos de interpretação musical intencional, o GP efetivamente delinear e criar correspondências entre
poderá estar condicionado ao primeiro fator determinante os gestos realizados e o carácter interpretativo da
para a busca de uma expressividade corporal que interaja obra. O percussionista, mais do que qualquer outro
com a música pois: “o corpo não é, nunca, significativa instrumentista, poderá estabelecer esse paralelo ao
e emocionalmente neutro, nem para os praticantes, nem encontrar certas possibilidades no que diz respeito às
para os observadores” (FAZENDA, 1996 p.149). GODØY formas que o corpo pode adquirir no espaço e o tipo de
também comunga dessa ideia ao afirmar no conceito sensação que as mesmas poderão passar ao espectador.
de Sound-producing gestures que: [...] That serves
articulation [...] and expressivity” (GODØY, 2010 p.110). A conexão que o percussionista estabelece com o
No entanto o GP como fonte de expressividade não é seu instrumento é bastante complexa. No repertório
necessariamente um ato interpretativo. Isso significa que, destinado à percussão a relação de espaço entre
mesmo antes da interpretação, existe a expressão inerente instrumento e instrumentista não poderá em hipótese
do corpo ilustrada através dos simples gestos realizados alguma ser ignorada. Ao contrário, torna-se uma questão
pelo instrumentista para a obtenção do som. É também preponderante para a construção dos gestos percussivos.
necessário salientarmos que, mesmo tratando-se de um O intérprete tem que, antes de tudo, perceber o seu
gesto técnico: “O gesto entendido como pensamento plano de espaço em relação ao instrumento que está à
não racionalizado, se mostra como a forma primordial sua frente. No caso de uma marimba ou um vibrafone as

165
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

aberturas das baquetas serão diferentes para os intervalos, ampliarão as suas possibilidades para uma execução
dependendo da região do instrumento. Uma abertura instrumental mais eficaz. É possível evidenciarmos isso
de intervalo de 4ª ou 5ª, por exemplo, nunca será igual bem claramente nas montagens feitas para a execução
em oitavas diferentes. Dificilmente um percussionista de obras que envolvem percussão múltipla, onde a
tocará um instrumento de lâminas4 sem mover as inutilização dos membros inferiores e tronco tornaria
pernas e o tronco, modificando consideravelmente a sua bastante limitada a execução instrumental e os possíveis
posição correspondente ao instrumento. Com relação meios de interpretação e expressividade.
aos instrumentos de percussão múltipla o problema da
relação espaço/instrumentista é ainda mais complexa Observando os instrumentos de lâminas percebemos uma
pois, para cada montagem, surgirão problemas distintos: movimentação de tronco e membros inferiores essenciais
para o instrumentista estar devidamente colocado frente
O intérprete, muitas vezes, se desloca no espaço e adquire
diferentes posições para o seu corpo na execução de obras que
a uma região qualquer do instrumento. Em diversos
requerem configuração de instrumentos com tamanhos, pesos, casos no vibrafone faz-se necessária a alternância dos
disposições de lâminas e alturas5 diferentes. TRALDI, CAMPOS, pés sobre o pedal, o que influencia diretamente em um
MANZOLLI (2008, p.03). “jogo” de pernas e movimentação do tronco: “Os dois
pés devem ser utilizados alternadamente, conforme a
Percebemos como o desenvolvimento de uma memória região do instrumento executada, contribuindo para um
espacial6 torna-se imprescindível para o percussionista posicionamento corporal adequado diante do mesmo”
construir a sua performance. Em música geralmente (CHAIB, 2012 p.62).
utiliza-se o termo memória muscular (ou memória motora)
no ato da performance ou aplicada a uma metodologia
3.1. Gesto e Exercício Intelectual
de estudo do instrumento. Para o percussionista será
importante pensar como um ator de teatro ou um Segundo ZIBIKOWSKY (2011) todo gesto que acompanha
bailarino, admitindo para si também a ideia de memória um discurso (em termos de linguagem falada) é
corporal, que será exatamente: responsável por introduzir novas informações às
estruturas do discurso. O autor sugere que através das
memória muscular + memória espacial = memória corporal análises realizadas sobres estudos de MACNEIL (2005)
é possível chegar-se a duas importantes conclusões.
A importância da conscientização de uma memória A primeira indica que o gesto oferece dinamismo ao
corporal para o desenvolvimento e para uma boa utilização discurso, sendo uma fonte imagística de pensamentos
dos gestos poderá ser sentida na afirmação de Catalão: difíceis de serem expressados (ou que se tornam
“Un musicien qui dépend trop de la vision pour jouer de incômodos) através da linguagem falada. A segunda
son instrument aura moins de conscience de sa gestuelle conclusão (e possivelmente a que melhor se aplicará na
et développera moins sa mémoire corporelle” (CATALÃO, transposição para a performance musical em percussão)
2008 p.52). Poderemos afirmar que em música o performer diz respeito ao fato de os gestos, através do pensamento,
deverá referenciar a sua memória corporal à sua memória informarem e darem forma ao uso da linguagem. Num
auditiva, caso contrário o resultado final poderá tornar- processo interpretativo é exatamente esse o caminho que
se excessivamente coreográfico, escasso de material procuraremos seguir para a construção da performance
musical. O resultado que esperamos da memória corporal percussiva. O gesto pensado para a execução musical
é a realização de uma execução instrumental condizente poderá ajudar a transmitir a nossa ideia do conteúdo
com o conteúdo musical que se queira transmitir. Para musical a ser transmitido.
considerarmos exequível uma performance musical em
instrumentos de percussão nos termos descritos, as pernas, Para falarmos sobre o gesto numa perspectiva intelectual
as mãos, os pés e o tronco do corpo humano tornam-se agregada ao plano artístico torna-se necessário
tão essenciais quanto os braços e a cabeça. Em muitos observar a origem de onde partem esses movimentos e
casos, isso gera a ideia de uma “intrigante e sutil dança” a intencionalidade dos mesmos, pois: “Apenas quando
(TRALDI, CAMPOS, MANZOLLI, 2008 p.03). Para conceber- o movimento, que foi inicialmente um gesto genuíno,
mos essa ideia torna-se relevante a preocupação com os é executado a partir da imaginação, pode tal gesto se
movimentos realizados pelo tronco e membros inferiores. tornar um elemento artístico [...]” (LANGER, 1953 p.175).
Sem o auxílio dessas partes do corpo se tornariam Percebemos que a realização de um gesto que não possui
praticamente impossíveis performances sobre obras de no seu ponto de partida a origem de um trabalho racional,
primeira grandeza do repertório a exemplo de Zyklus (1951) será incapaz de transmitir qualquer significado artístico.
de STOCKHAUSEN, Janissary Music (1962) de WORRIEN ou O intérprete, através do gesto intelectual (GIL, 2001),
Psappha (1979) de XENAKIS. deverá reagir a diferentes situações criando diversas
alternativas corporais para distintos trechos ou passagens.
Admitimos que, para a grande maioria das obras escritas Esse gesto, por ser abstrato, poderá ser visualizado
para percussão, os braços e os pulsos serão importantes através do corpo uma vez que: “Todo o pensamento
para conduzir as mãos à extração do som do instrumento. [...] é acompanhado de gestos virtuais que o próprio
Mas devemos também constatar que os movimentos pensamento não é capaz de exprimir, o que exigem um
realizados com as pernas, os pés e o tronco do intérprete corpo para se poderem dizer”, (GIL, 2001 p.220). É dessa

166
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

forma que a ação do seu pensamento deverá, de alguma Catalisar esse procedimento comunicativo metafórico
maneira, permitir-se sentir (visível ou sonoramente), entre os movimentos do corpo e a música poderá nos
transformando-se necessariamente numa aproximação ajudar a reduzir as dificuldades colocadas por PIKE. No
interpretativa entre a obra e o público. No seio desse momento em que o autor afirma ser “impossível dizer
conceito habita o exercício intelectual e a atitude de exatamente onde um segmento acaba e onde começa
pensar do intérprete. É possível que a carência de uma o seguinte”, nós sugerimos como apoio para a solução
prática racional do intérprete na forma de construção dos desse problema a utilização da estrutura da obra musical.
seus gestos possa gerar, em clara evidência, um suposto No momento que os movimentos acompanharem a ideia
distanciamento entre o executor, a obra e a plateia pela sonora da performance (tenha ela momentos de silêncio
falta de elementos artísticos capazes de estabelecer uma ou não), as duas formas de expressão automaticamente
interação comunicativa entre artista e espectador. serão capazes de compensar as lacunas uma da outra.

LABAN (1978) afirma que o espaço será um fator de


3.2. Quebra com a natura
movimento que também interferirá no pensamento7
(enquanto raciocínio lógico) do intérprete. O autor Se atribuirmos o fato de que a interpretação é também
sugere a existência de quatro fases do esforço mental fruto de um exercício intelectual, onde o pensamento
que precedem e acompanham ações propositadas, sendo está interagindo diretamente com questões abstratas e
elas: atenção, intenção, decisão e precisão. O movimento concretas, a relação estabelecida do corpo com qualquer
relativo ao espaço encaixa-se na fase de atenção. A processo natural parece revelar-se como um elemento
tendência será o performer buscar uma auto-orientação sem relação ao ato interpretativo de uma obra (por
criando uma relação com um objeto de interesse de exemplo, o simples ato de apalpar algum instrumento sem
modo direto e imediato ou de forma prudente e volúvel. intencionalidade técnica ou musical). Ou seja, para haver
A intenção determinará a tensão muscular depositada uma intenção artístico-musical sobre o gesto aplicado no
sobre a ação, graus de força, variando entre o leve e o instrumento, o mesmo deve ser pensado anteriormente
pesado. A decisão é talvez o momento mais intuitivo de como um elemento comunicativo de expressão artística.
toda a ação pois refere-se ao tipo de gesto realizado (por Se não houver um trabalho intelectual de formação da
exemplo de que maneira o performer deverá estender interpretação e expressividade, o gesto como elemento
ou não o braço, se faz ou não sentido naquele exato artístico comunicativo perder-se-á.
momento o movimento pensado). A precisão será o fator
que antecede brevemente à ação objetiva. O controle das É importante não confundirmos conceitos e aceitarmos,
outras fases será determinante para que esse fator se principalmente no que tange a performance em percussão,
relacione ao movimento de forma congruente à execução a ideia de que os movimentos possam vir a ser fenômenos
da ação pensada. Precisão será o próprio domínio do “naturais”. A expressão “natural” pressupõe algo inerente
movimento bem estudado. ou, sob certo ponto de vista, um sentido de normalidade.
No gesto natural o corpo se desloca no espaço devido
Em música para percussão tudo parece ser volúvel e não à imposição exterior da ação. Quando realizamos a
exato. O fator decisão altera-se em diversos níveis quando ação de caminhar, movimentamos as pernas e os pés
observamos diferentes performances de uma mesma obra instintivamente devido à necessidade de locomoção. Não
realizadas pelo mesmo intérprete. Por questões de coerência há um movimento cadenciado ou a presença de um ritmo
e logística fomos obrigados a realizar duas montagens que denuncie o controle interno do movimento e, quando
distintas para a execução de Phènix (1982) de BERNARD- há, deixa de ser natural (por exemplo a marcha de um
MÂCHE8. Outro exemplo será a alteração da afinação das batalhão de soldados). A respiração é outro exemplo.
pedras em Três Quadros sobre Pedra (2011) de ANTUNES Quando respiramos de forma inerente, nem damos conta
PENA9. Mesmo no procedimento de composição da desse ato por ser tratar de algo natural. Mas quando
performance, o intérprete utiliza a sua própria visualização trabalhamos a respiração para a prática de um desporto,
(e do espaço em torno de si) como um artifício para execução de um instrumento de sopro ou mesmo cantar,
memorizar mais facilmente os movimentos adquiridos para deixamos de agir naturalmente, evidenciando-se uma
a execução instrumental. Daí um dos pontos preponderantes cadência rítmica.
onde o gesto relacionado ao exercício intelectual deve
ser assumido como um elemento fundamental para a Em diversos casos a movimentação do percussionista
performance em percussão. A discussão travada sobre a sobre o instrumento não possui qualquer elemento
proficiência metafórica do movimento corporal no sentido que o caracterize como algo natural. Ao contrário, por
de comunicar-se levou PIKE à seguinte conclusão: muitas vezes exige-se um certo esforço físico, equilíbrio
e metodologia de estudo onde são necessárias inúmeras
É impossível determinar com precisão a fronteira que separa um repetições do mesmo movimento para que ele se torne
fragmento de outro; de dizer exatamente onde um segmento acaba exequível. Não se tratam apenas de repetições de um gesto
e onde começa o seguinte; a primeira razão desta indeterminação
é que os movimentos do corpo, deslizam ou correm de um para a resolução de um problema que envolva passagens
para outro, de tal modo que é muitas vezes impossível cortar o musicais tecnicamente difíceis. O que está escrito na
continuum […]. PIKE (1967, p.77). partitura pode não necessariamente implicar dificuldade,
mas a movimentação corporal que permite o melhor

167
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

posicionamento do instrumentista sobre o instrumento é 3.3. Exemplos no repertório


que pode gerar certo desconforto, justamente por não se O GPI também evidencia-se numa perspectiva anterior
tratar de algo natural. A partir do momento que fazemos à performance em palco. As reflexões relacionadas
uma certa associação entre a dança e os movimentos à representatividade do material sonoro fará da
corporais do percussionista, devemos presumir e assumir interpretação uma componente gestual abstrata que
que os mesmos não são, de todo, naturais: se transmodificará para o corpo e para o instrumento.
O ato de dançar, em qualquer que seja a situação, é indissociável das
Observando as obras para percussão percebemos que
técnicas corporais através das quais o corpo e o seu movimento se para além das diferentes interpretações que uma
constroem formal e significativamente, pelo que a atuação do corpo composição permite em termos gerais, o repertório
na dança não é um fenômeno natural. FAZENDA (1996, p.141). diferencia-se principalmente pelo fato de poder gerar, em
cada performance, um material sonoro completamente
Obviamente o percussionista ou qualquer intérprete ao diferente mantendo-se a estrutura da obra. Os
preparar uma determinada obra fará o possível para compositores usufruem diretamente desse conceito e
tornar a execução o mais natural possível aos olhos do oferecem ao intérprete uma possibilidade diferente de
espectador. Para nós toda a dificuldade motora impingida atitude desse mesmo gesto. No caso em questão um
no processo de criação da performance justifica a ante- compositor poderá alterar o material sonoro proposto
naturalidade dos movimentos lançados em palco. Não inicialmente em uma obra. Essa é uma particularidade,
é uma regra geral, mas tão-pouco pode-se afirmar sob uma perspectiva quase ilimitada de variações sonoras,
que os movimentos interpretativos para a execução de atribuída exclusivamente aos instrumentos de percussão.
um instrumento de percussão sejam, de todo, naturais. Será possível alterar um ou outro instrumento (ou
Dentro de uma outra perspectiva o conceito de corpo suprimir e/ou adicionar), modificando substancialmente
“natural” está associado a outras ideias, dentre elas a o carácter musical da obra, sem contudo interferir na sua
espontaneidade e universalidade de movimentos: “[…] escrita e estrutura.
funcionamento ‘natural’ do corpo, o seu movimento deve
ser espontâneo, livre das regras que se rege a construção Para executarem-se meios expressivos como ligaduras de
de um corpo artificial” (FAZENDA, 1996 p.147). Nesse frase, dinâmicas e articulações a partir de um vibrafone
sentido admitimos o movimento “natural” (como a o intérprete deverá pensar gestualmente diferente ao
autora coloca, entre aspas) do corpo do intérprete na procurar o mesmo sentido musical em passagens que
sua relação espontânea com a música, nesse caso com envolvam, por exemplo, instrumentos de pele ou idiofones.
a improvisação musical. Não descartamos a possibilidade Os diferentes instrumentos, que exigem distintas
de o percussionista encontrar recursos corporais maneiras de execução, para os quais se quer passar a
instintivos e se valer dos mesmos para a realização de mesma ideia musical farão com que o intérprete atue ao
uma performance musical improvisada. De outro modo mesmo tempo com atitudes distintas. No caso de uma
torna-se difícil admitir como a “naturalidade corporal” obra possuir um instrumento de lâmina e instrumentos
poderia ter relação com a performance percussiva, de pele, madeira ou metal, o pensamento musical deverá
ou mesmo musical. Por outro lado, é precisamente ser o mesmo para que o carácter da obra não perca a sua
pela improvisação que se poderá perceber a falta de homogeneidade interpretativa. Percebemos que o GPI,
naturalidade encontrada nos movimentos. Acreditamos ao atuar em diferentes níveis ao mesmo tempo, será um
que futuros trabalhos poderão vir a demonstrar gestos gesto com uma pluralidade de atitudes possíveis de serem
jamais pensados ou realizados. interpretadas e executadas em si

Expressar a composição do gesto corporal na performance Para além da obra em si, o próprio instrumento e
do percussionista poderá nos induzir a afirmar que materiais a serem manipulados pelo percussionista
a fluência de um determinado movimento não deva tornam-se necessários para que o gesto intelectual
transgredir a naturalidade do mesmo. Mas aqui o sentido traduza o significado musical desejado. A escolha do
de “naturalidade” significa não romper e nem se sobrepor tipo de material para ilustrar um trecho ou uma obra por
gestualmente à construção do texto musical. O nosso inteiro, influenciará a forma como vemos a performance e
cuidado deverá ser destacar que a concepção do gesto como ouvimos o material sonoro. Um claro exemplo será
corporal não pode e nem deve ser algo exagerado, sem a obra Três Quadros sobre Pedra10 (2011) de Luís Antunes
sentido, além daquilo que se espera dos movimentos Pena, onde o compositor exige a presença de seis pedras
corporais relativos a uma performance musical. previamente afinadas na montagem (Ex.23).

Ex.23: Três Quadros sobre Pedra (2011) de ANTUNES PENA: afinação das pedras.

168
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

No decorrer da montagem dessa obra travamos diversas ressonantes e não ressonantes. Mas, da mesma forma que
conversas informais com o compositor11. Nas pesquisas SCHICK (2006), podemos considerar uma terceira via que
realizadas sobre as pedras (em termos de sonoridade, seria a dos metais semi-ressonantes. Desta maneira permite-
timbre, ressonância, etc.) descobrimos um tipo de pedra se que as vozes estejam mais claramente distribuídas,
com um timbre bastante peculiar12. O som das mesmas podendo-se ouvir com eficácia as poliritmias escritas. Não
agradou o compositor de tal forma que foi-nos dispensada nos vemos obrigados a seguir um padrão e estipular o mesmo
a necessidade de encontrar as notas pré-estabelecidas na tipo de material para cada voz (pelo menos para as vozes dos
partitura. O receio era o de que, ao cortar as pedras para metais). Basta que sejam ressonantes, semi-ressonantes e não
tentar afinar as notas, as suas características sonoras ressonantes. As diferentes ressonâncias e intenções de toque
originais pudessem se perder. Desta forma, o material ditarão a independência das vozes, podendo o percussionista
utilizado e consequentemente o resultado sonoro para a optar por uma montagem com grande diversidade tímbrica.
nossa performance foi diferente do material (instrumental No Ex.24 estão listados os instrumentos que fizeram parte da
e sonoro) sugerido nas indicações da partitura13. nossa montagem.

Observando a obra The Anvil Chorus (1991) de David Lang Dificilmente, quando se trata de uma obra que dá certa
percebemos a existência de quatro vozes independentes liberdade de escolha dos instrumentos, o percussionista
que realizam uma interlocução entre si. O compositor divide “acerta” na montagem em uma primeira experiência. O
essas vozes através de grupos de instrumentos e materiais, resultado tímbrico final ouvido pelo espectador será fruto
além da maneira como os mesmos devem ser tocados. de um forte exercício intelectual no decorrer do preparo da
Pelo tipo de material sugerido e observando o título da obra. Estando os instrumentos escolhidos, faz-se necessário
obra podemos ter uma ligeira ideia de como a música deve definir a melhor forma de dispô-los diante do intérprete,
soar. Em verdade, a ideia de vários ferreiros trabalhando ao tendo em conta que esta obra assume a peculiaridade do
mesmo tempo com batidas em pulsos e velocidades diversas uso de cinco pedais. Para atenuar as dificuldades técnicas
é o que caracteriza a origem desta obra. impostas pela obra optamos por tocar sentado. Começamos
a construir a montagem a partir dos instrumentos a pedal.
O GPI intensifica-se no making off da performance da obra. Dispomo-los entre 140º e 160º, sendo os metais mais
À medida que vamos estudando percebemos quais mudanças graves tocados com o pé esquerdo e os mais agudos com
na montagem serão necessárias. Esse momento é certamente o direito. O bombo estará situado entre as duas enxadas.
um ato de cognição espacial e tímbrica delineado para o
interprete em função da obra executada, exigindo uma Os instrumentos do Grupo 2 e 3 estão acomodados sobre
conexão imprescindível com o GP. Deveremos trabalhar sobre o uma pequena mesa, permitindo a locomoção dos pés
GPI as informações oferecidas pela obra para desenvolvermos por debaixo da mesma, para a execução dos pedais. Os
a ideia sonora onde o instrumento de percussão múltipla três metais do Grupo 1 estarão suspensos sobre a mesa
moldado (resultante desse gesto) oferecerá ao intérprete e e defronte ao intérprete, este estará sentado em uma
ao ouvinte. O compositor separa os grupos de metais em posição central à montagem (Ex.25):

Grupo 1 mola de elevador (agudo), frigideira grande (médio), cano cilíndrico longo (grave).
Grupo 2 Quatro canos de metal retangulares de diferentes procedências e alturas distintas.
Grupo 3 Dois blocos de madeira bastante sonoros (médio e agudo).
Grupo 4 latão de petróleo (grave), lata de tinta (médio), duas enxadas (agudos), bombo de 20’.
Ex.24: The Anvil Chorus (1991) de LANG: instrumentos da montagem.

Ex.25: The Anvil Chorus (1991) de LANG: parte da montagem (instrumentos à pedal).

169
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

Ex.26: The Anvil Chorus (1991) de LANG: montagem completa.

Mediante os estudos vão avançando passamos a saber o anteriormente à performance, será perceptível apenas o
tipo de relação angular e de distância que os instrumentos seu resultado final: concreto mas inerte (a montagem);
devem ter entre si para uma melhor performance. Outrossim abstrato porém fluido (a música). Trata-se efetivamente
esse gesto também pode traduzir-se na própria montagem de uma particularidade atribuída à música para percussão.
mesmo antes de chegarmos aos movimentos corporais. O Diremos então que o GPI será:
material usado para percutir pelo percussionista poderá
ajudar a traduzir a mensagem a ser passada: “The set of Ações racionalizadas pelo percussionista anteriormente
instruments needed to represent this much independent e/ou no ato da performance,
rhythmic material is a percussive junk-heap, a mousetrap ilustradas pelas referências materiais e sonoras em palco
contraption featuring five foot-pedals and handfuls
of noisy percussion instruments” (SCHICK, 2006 p.27).
Quando assumimos a figura de ferreiros para a obra, 4. Gesto Percussivo Expressivo (GPE)
podemos criar a possibilidade de uma visualização bastante Para CAMURRI e MOESLUND (2010) o gesto expressivo
aproximada dessa ideia. Foi possível admitir para a mão em música e dança:
esquerda, durante as intervenções sonoras dos metais
It is responsible for the communication of a kind of information
não ressonantes, o uso de um martelo. O timbre adquirido (what we call expressive content) that is different and in most
por essa ferramenta sobre os metais (contribuindo para o cases independent, even if often superimposed on, a possible
efeito sonoro proposto) e a sua visualização (através do seu denotative meaning. CAMUURRI e MOESLUND (2010, p.253).
formato, como referência laboral numa cultura), permite
ao público “separar” as vozes de modo visual e auditivo, De acordo com os autores o conteúdo artístico expressado
sendo possível identificar as diferentes “personagens” pelo corpo poderá ser utilizado para despertar estados
que o percussionista interpreta de maneira independente mentais, sentidos, modos, afetos e intenções emocionais.
durante a sua performance. O compositor chega a sugerir De fato, essa será a principal meta do GPE: procurar
o uso de martelos de sinos tubulares para os metais induzir no espectador uma percepção musical, através dos
ressonantes, mas os instrumentos escolhidos para esta voz gestos realizados pelo intérprete durante a performance,
resultaram melhor sonoramente com outro tipo de batente. utilizando como principal fonte de interlocução o
Fica estabelecido para a mão direita o uso de uma baqueta estímulo visual.
com uma cabeça grande extremamente dura (usada para
os metais ressonantes e blocos de madeira), um martelo Para uma melhor compreensão de como as aplicações do
comum de pequeno porte na mão esquerda para os metais GPE poderão se enquadrar na performance em percussão,
não ressonantes. Para os pés utilizaremos pedais com estabelecemos um paralelo com a dança por se tratar
diferentes batentes (plástico duro ou metal para o tambor de uma forma de expressão artística onde o intérprete
de petróleo e enxada média, feltro duro para a lata de tinta vale-se de todo o seu corpo para a transmissão da sua
e bombo, cabeça de metal para enxada aguda). mensagem sem contar com o auxílio da fala, principal via
comunicativa do ser humano. O coreógrafo e o bailarino
Observamos como um dos objetivos do GPI formou-se necessitam criar condições metafóricas que liguem os
aqui através de um dispendioso trabalho de observação, movimentos corporais às mensagens que se queiram
paciência, estudo e esforço físico. Sendo invisível transmitir, na maioria das vezes, em conjunto com a
para público, por tratar-se de uma atitude tomada música. Costumam chamar à “construção” do corpo

170
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

(preparação da coreografia) de partitura corporal. Aqui producing gestures” (JENSENIUS et. al., 2010 p.24).
os gestos poderão alternar-se (ou fundirem-se) entre o
concreto (corpo) e o abstrato (exercício intelectual) para O GPE surgirá na performance do percussionista
a transmissão dessas mensagens. Salientemos que um exatamente nos momentos de “silêncio”, suspensões,
mesmo gesto poderá ser executado pelo intérprete (e notas longas atribuídas a articulações pontuais (não
captado pelo público) com atitudes diferentes. O resultado envolvendo rulos, arcadas longas ou algo do gênero). Ou
final gestual poderá derivar das atitudes vinculadas ao seja, circunstâncias às quais denominaremos ausência de
gesto: “A compreensão do movimento vem por intermédio intervenção sonora do intérprete. Uma vez caracterizado
da descoberta das atitudes que prevalecem em relação dessa forma, diremos que esse gesto não terá relação
aos fatores de movimento, ou estão ausentes, numa dada direta com a produção, mas sim com o acompanhamento
sequência de movimentos” (LABAN,1978 p.170). dos eventos sonoros realizados, sendo uma ferramenta de
estímulo visual. Para CATALÃO (2008) por exemplo:
Em percussão o sentido musical de uma obra torna-se
muitas vezes utópico ou metafórico. Procuraremos, através Les moments de silence entre deux gestes musicaux espacés dans
le temps doivent être remplis par les gestes physiques aptes à les
do GPE, possibilitar a observação de uma diferença (ou relier: par exemple les mouvements fluides peuvent tracer dans
semelhança) de carácter entre uma passagem e outra l’air le chemin entre deux événements musicaux qui se suivent
de uma determinada obra. Em muitos casos esse gesto dans le discours musical. CATALÃO (2008, p.57).
poderá se transmodificar para qualquer região do corpo
do intérprete. Não é difícil observarmos composições Por estarmos cientes que a performance para o
onde se exigem situações performativas inexequíveis percussionista possui características únicas que
ou extremamente não funcionais para o percussionista. permitem ao intérprete a construção com o seu corpo de
Muitas vezes isso obriga-o a passar para o público o seu gestos particulares ao fazer musical, percebemos como a
pensamento musical, a sua ideia interpretativa, de uma utilização das formas lineares no corpo são claramente
forma metafórica ou abstrata. No que tange às questões identificáveis e exequíveis no repertório destinado
sonoras, os instrumentos de percussão possuem diferentes à percussão. Relacionar a dança com a performance
limitações no que diz respeito aos recursos musicais percussiva parece-nos o mais conveniente. Ao falar sobre
expressivos capazes de serem extraídos dos mesmos a relação de música e dança, John Cage afirma o seguinte:
(como o caso de ligaduras de frase, notas longas, legatos
Cualquiera que sea el método usado para componer, los materiales
e staccatos, variações de dinâmicas; etc.). O GPE será o de la danza pueden extenderse a la organización de los materiales
responsável por atribuir ou contribuir para a transmissão de musicales. [...]. La música será entonces algo más que un
uma veracidade a supostas utopias ou metáforas existentes acompañamiento, será parte integral de la danza. CAGE (2007, p.88).
em certas obras existentes no repertório percussivo.
Neste caso consideraremos também a recíproca
A ideia será explorar na performance sensações de verdadeira, sendo a dança também um elemento e/ou
expressividade possíveis de serem desenvolvidas pelo corpo parte integral da performance musical. Assim, tomamos
em detrimento de uma obra musical. Utilizaremos como como procedimento análogo o seguinte conceito:
referência o conceito em dança denominado volume: “todo
o movimento descreve no espaço um volume” (BOUISSAC, Curved and circular lines, still or moving, produce a sense of
flow and ongoingness and are affined with sustained timing. They
1973 p.176). O intérprete deverá criar formas lineares com are graceful and lyrical, emphasizing a feeling of resiliency [...];
o corpo no espaço em que se encontra com o sentido de reflecting an attitude of caring [...] they are soothing [...], yielding,
fazer-se acompanhar o trecho musical executado. bending, animalike, organic. Straight lines and angles give a
feeling of stasis, stillness: when done in movement, the movement
appears broken or shattered and cuts through the space, there
BLOM e CHAPLIN (1989) admitem que as formas lineares is a affinity with percussive timing. [...] They call to mind strong
que podemos criar corporalmente demonstram um adjectives and their corresponding themes and ideas: hard-edged,
contraste distintivo em suas implicações dramáticas. O sharp, jagged, rigid. They are unyielding, inflexible, solid. BLOM e
delineamento de intenções variáveis sobre linhas diretas, CHAPLIN (1989, p.37-38).
angulares e curvas causará, no espectador, implicações
sensoriais que o levarão a distintas interpretações Algo importante neste conceito, que será determinante
de fluidez15. LABAN (1978) afirma que o fator de para a aplicação na performance em percussão, será a
movimento-fluência desempenha um papel fundamental relação que se faz entre as formas lineares e o tempo.
em toda a expressão pelo movimento. Dar forma ao É preciso salientar que em dança a expressão tempo
corpo no momento da performance acarreta uma dupla poderá ter relação direta com o ritmo (denominado
função: um processo de desenvolvimento do material por Laban tempo-ritmo). Os autores estipulam uma
executado e um processo de fornecimento de uma diferenciação entre “tempo em suspensão” e “tempo
estrutura. O conceito de sound-accompanying gestures percussivo”. Por acreditarmos que os dois exemplos de
poderá ser perfeitamente aplicado nessa situação: “tempo” encaixam-se perfeitamente na qualidade de
“sound-accompanying gestures are not involved in the eventos sonoros percussivos, faremos uma releitura
sound production itself, but follow the music [...] They que nos permita interpretar as distintas situações
can be sound-tracing [...] or they can mimic the sound- que possam ocorrer durante a performance. A

171
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

expressão “tempo em suspensão” passa-nos a ideia Salientamos que todas as sugestões de construção
de tratarem-se de sons longos, contínuos, constantes. gestual com corpo que serão apresentadas são resultado
Já “tempo percussivo” compreendemos tratar- da nossa interpretação referente à composição
se de uma assimilação aos ataques e articulações musical executada e procura, sob nosso ponto de
ritmados, em curtos espaços de tempo: “A média vista, transmitir o conteúdo da obra de maneira mais
que permitimos a um movimento suceder a outro é a eficiente ao espectador. Não significa de todo que as
velocidade com a qual agimos”. (LABAN, 2008 p.73). propostas de movimento corporal que serão ilustradas
A simples observação do ato de andar poderá servir representam uma forma única e exclusiva de gerenciar
como exemplo, se substituirmos a ação do passo pela o trabalho do corpo referente à obra em questão e seu
de tocar. Quando caminhamos de maneira natural conteúdo musical. Não cabe a nós e nem é nosso intuito
podemos considerar esse ritmo como uma velocidade sistematizar e/ou tornar pragmáticas as possibilidades de
média do nosso andar. Ao atribuirmos a cada passo performance corporal em relação a uma composição ou
uma unidade correspondente a uma batida da pulsação sobre as possíveis interpretações que surgem no ato da
que transmitimos poderemos determinar os graus de execução. O que apontaremos no decorrer desse tópico
velocidade dos mesmos. Se dermos um passo no espaço são possibilidades, caminhos que o intérprete poderá
de várias batidas, consideraremos o mesmo como lento se valer para potencializar os conceitos ilustrados sob
ou vagaroso. Na contramão, vários passos dentro de diferentes perspectivas e aplicá-los em diversas obras
uma só batida serão percebidos como passos rápidos. do repertório percussivo.

No caso de um trecho musical onde não haja quebras a) Assimilação e convergência de textos musicais
e/ou características estáticas, sugerimos que o tempo semelhantes com eventos sonoros discrepantes:
de movimentação do corpo deverá seguir o tempo
Uma das características da obra Phènix16 (1982)
de duração de um evento sonoro até o outro, o que
de BERNARD-MÂCHE, é possuir textos musicais
vem significar: tempo lento, movimento corporal
semelhantes para instrumentos com características
lento; tempo rápido, movimento corporal rápido.
sonoras completamente distintas, inseridos na
Esta ideia poderá ser posta em causa em situações
composição. Para ilustrarmos a utilização de formas
peculiares onde a “quebra” intencional do corpo
lineares com o intuito de estabelecer uma conexão
perante o material sonoro produzido é um objetivo
gestual entre textos musicais semelhantes, utilizaremos
da performance. O que queremos dizer é que seguir o
dois trechos onde situa-se o tema principal da obra.
tempo dos eventos sonoros não será necessariamente
Os mesmos encontram-se em lugares diferentes na
uma regra geral, mas por outro lado poderá funcionar
partitura (um no início da composição e outro no início
como um bom mecanismo de transmissão e fusão da
da segunda página). O intérprete, ao executar duas
mensagem musical a ser passada.
notas longas (mínimas pontuadas) seguidas de um
ornamento no vibrafone (Ex.28), executa esse mesmo
5.1. Utilização das Formas Lineares motivo no momento em que os instrumentos de pele
Para visualizarmos em certos trechos da partitura as aparecem pela primeira vez (Ex.29).
formas lineares que proporemos para a movimentação
corporal durante a performance, realizamos uma simples Um instrumento de pele de poucas dimensões é incapaz
relação visual da linha em conformidade à forma gestual de sustentar por muito tempo o decaimento do som
passível de ser aplicada (Ex.26). extraído por um único ataque17. Será sonoramente

Linha Forma Resultado linear do trecho

Curva ou Circular

Reta ou Angular

Ex.27: Tabela das formas lineares para serem visualizadas na partitura.

172
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

identificável que a mínima pontuada do vibrafone (Ex.28) diferentes eventos sonoros e, consequentemente,
soará de maneira mais uniforme do que nos instrumentos nas frases. Os movimentos compartilham elementos
de pele aqui utilizados (Ex.29). Independente do gesto intencionais comuns, logo em uma frase será possível
de ataque que fizermos sobre o vibrafone, basta a barra ilustramos a sua forma e seu conteúdo. O espectador
de abafamento não estar encostada às lâminas para poderá identificar com mais facilidade a mesma ideia,
termos o som completo da nota em questão18. Algo de passada por distintos instrumentos, ao perceber que as
semelhante ocorre nas peles, pois qualquer que seja intenções gestuais foram as mesmas. Nesse caso o gesto
o gesto que se realize o som sempre será mais curto, demonstrará a mesma intencionalidade de execução
neste caso, que o do vibrafone. O compositor sugere uma através do corpo, contribuindo para a homogeneidade
situação congénere entre o tempo de decaimento das discursiva. O intuito será o de criar um sentido gestual
notas dos dois instrumentos ao modificar as dinâmicas a para conseguirmos extrair em distintos instrumentos um
serem executadas nas peles. Será forçoso encontrar uma conteúdo interpretativo com níveis de expressividade
alternativa que denuncie a proximidade discursiva entre distintos, preservando a unidade do texto musical
esses dois trechos, para além do material sonoro do qual apresentado (Ex.30 e Ex.31):.
dispomos. A forma linear ilustrada pelo gesto atuará aqui
como a fonte da solução transposta para o corpo. Os Ex.30 e Ex.31 indicam o movimento curvilíneo (através
da visualização das linhas curvas) realizado pelos braços
Enfatizar a ligadura de frase em Ex.28 e, ao mesmo em conjunto com os pulsos para a execução destes dois
tempo, a longa duração das notas a serem executadas trechos. Conseguimos aqui construir a relação gestual
em Ex.29 nos conduz a uma aplicação da forma linear interpretativa do corpo em função do trecho musical
curvilínea ou circular. Procuraremos transmitir uma executado. Não será, de todo, necessário que os toques
sensação de continuidade, sendo possível estabelecer realizados nas peles sejam idênticos aos toques no
uma convergência visual no gesto executado nos vibrafone (ou vice-versa) pois, na sua particularidade,

Ex.28: Phénix (1982) de BERNARD-MÂCHE: início da obra (p.01).

Ex.29: Phénix (1982) de BERNARD-MÂCHE: início do 1º sistema (p.02).

Ex.30: Phénix (1982) de BERNARD-MÂCHE: início da obra (p.01).

Ex.31: Phénix (1982) de BERNARD-MÂCHE: início do 1º sistema (p.02).

173
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

cada instrumento nos permite diferentes possibilidades BERNARD-MÂCHE possui um trecho que ilustra essa
de contatos para a sua execução e extração sonora. Mas a situação, alternando os motivos entre vibrafone e
soma de todos os fatores (já aqui discutidos) que ajudam peles, gerando uma frase composta por distintos sons.
na construção do gesto poderá, em seus diferentes níveis O compositor não indica qualquer ligadura de frase.
de assimilação, incorporar um desenho gestual congénere No entanto, tratando-se de uma variação do tema
para distintos instrumentos (mesmo que as articulações desenvolvido pelo vibrafone, a ligação entre os motivos
sejam diversas). A adoção da forma linear curvilínea faz-se fundamental para gerar um dinamismo na frase
ou circular sugere uma não interrupção do movimento que denuncie a relação entre esses trechos. (Ex.32).
sobre todo este trecho. Ao tocar a primeira nota, o
percussionista deverá preparar o ataque seguinte sem A escrita do pedal do vibrafone nos ajuda a perceber
“quebrar” o movimento do corpo em direção à próxima a conexão sonora existente entre a alternância dos
nota. Logo, se esse tempo é lento (ou longo) e o corpo instrumentos. Mais uma vez, o corpo poderá auxiliar na
move-se ininterruptamente, o movimento corporal será percepção da frase. Familiarizar-se com a disposição
consequentemente lento e sofrerá alterações conforme o dos instrumentos na montagem é fundamental para
as figuras de tempo se modificam. a construção desse gesto. Nos casos de estudo, a
obra foi executada sob duas perspectivas distintas de
b) Ininterrupção da frase: sensação de continuidade montagem (Ex.33 e Ex.34)19.
em frases com eventos sonoros discrepantes
Em muitos casos o distanciamento tímbrico entre os Em Ex.33 os instrumentos de pele estão suspensos acima
instrumentos de percussão age como uma barreira para do nível das lâminas, dispostos na posição vertical sob um
a realização de ligaduras de frases ou mesmo para a ângulo de 45º. Nessa montagem o percussionista deverá
criação de um sentido de fluência ou ininterrupção do realizar um leve movimento para frente e para trás nas
texto musical entre os eventos sonoros realizados. O transações entre os membranofones e o vibrafone. Em
ritmo escrito muitas vezes pode contribuir para isso, uma Ex.34 as peles estão suspensas ao mesmo nível das lâminas
vez que notas longas escritas para instrumentos de pouca do vibrafone, numa posição horizontal (perpendicular
reverberação podem expor essas limitações e causar uma ao chão) e/ou ligeiramente inclinadas para o intérprete.
sensação de interrupção ou mesmo conclusão em trechos Não podemos deixar de destacar que nessa montagem o
que deveriam, a partir de uma análise interpretativa, movimento das pernas, tronco e cabeça do intérprete será
indicar uma ideia de continuidade. Phènix (1982) de mais necessário e exigido pela disposição dos instrumentos.

Ex.32: Phènix (1982) de BERNARD-MÂCHE: voz de cima: peles, voz de baixo: Vibrafone (2º sistema, p.02).

Ex.33 Ex.34

174
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

Para as duas montagens acreditamos que a interação pelos ataques realizados no vibrafone devem perdurar
gestual da forma linear curvilínea ou circular em até a próxima intervenção nas peles (que possuem
congruência com os eventos sonoros permitirá um intervenções sonoras curtas seguidas de pausas). Duas
complemento à expressividade do intérprete na busca questões aqui devem ser levadas em conta: o trecho
por essa sensação de homogeneidade que o trecho deve isolado de cada instrumento e a soma das duas vozes
ter: “ [...] é nas transições de uma posição para a outra no seu contexto sonoro e gestual. Nesse trecho ocorre
que se verifica uma adequada mudança de expressão, uma controvérsia sonora nas peles, pois tocá-lo em
o que determina a criação de um estilo de movimentos dinâmica ff forçosamente criará uma relação com o
dinamicamente coerente” (LABAN, 1978 p.135). Em Ex.29. Por não indicar regiões de toque distintas nas
ambas as montagens deve-se buscar a relação curvilínea peles (ou baquetas e meios de contatos diferentes), o
do corpo como um todo (inclusive cabeça, tronco e som extraído só não será o mesmo por serem realizados
pernas). Ilustramos a seguir a relação gestual da forma em alturas diferentes (Ex.36):
linear curvilínea nesse trecho. O ritmo nesse trecho é
mais vivo do que o ilustrado nos Ex.28 e Ex.29, por tanto Interpretamos o pedal do vibrafone como um elo de
o tempo de movimentação do corpo deverá também ligação entre as duas linhas, onde o som e a mistura
acompanhar esse carácter (Ex.35): dos timbres devem conjugar o conteúdo musical
proposto. O percussionista precisará encontrar uma
atitude gestual que incite a percepção dos eventos
c) Ilustração de distintas intenções do texto
sonoros descritos, estáticos e/ou curtos ritmicamente.
musical em eventos sonoros semelhantes: A intenção de intervalo rítmico entre uma nota e outra
Phènix (1982) de BERNARD-MÂCHE ilustra nitidamente deve ser conseguida através de outro mecanismo que
uma das questões que geralmente intriga o percussionista não o sonoro. A forma linear resultante do gesto será
no momento de interpretar uma obra: o cruzamento preponderante para salientarmos a diferença entre os
de informações que seguem direções expressivas e dois trechos.
musicais diferentes, mas que obtêm praticamente o
mesmo resultado sonoro. Na p.05 o tema principal Para a linha das peles sugerimos a aplicação da forma linear
volta a ser exposto, com uma leve variação sobre o texto reta e/ou angular, onde o movimento corporal responsável
musical nas peles. Percebemos que o compositor sugere, pelos ataques agirá de forma pontual e não fluente. Para
através da indicação de pedal, que os sons obtidos o vibrafone o gesto seguirá o caminho inverso, a forma

Ex.35: Phènix (1982) de BERNARD-MÂCHE: voz de cima: peles, voz de baixo: vibrafone (2º sistema, p.02).

Ex.36: Phènix (1982) de BERNARD-MÂCHE: voz de cima: vibrafone, voz de baixo: Peles (2º sistema, p.05).

175
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

linear circular ou curvilínea, estimulando a sensação de d) Visualização de intervenções sonoras pontuais:


continuidade e ligação entre os ataques (Ex.37): Utilizando como caso de estudo para esse tipo de aplicação
da forma linear uma composição para grupo de música
As relações rítmicas e de tempo do movimento devem ser de câmara de percussão, ilustraremos a possibilidade de
diferentes em cada membro que executa seu respectivo visualização de intervenções sonoras pontuais em trechos
instrumento, estando relacionadas diretamente com a onde a massa de som é homogênea e ruidosa (enfatizando
sensação de fluência ou estaticismo representada pelo mais inarmônicos do que harmônicos), dificultando ou
trecho escrito. A parte do corpo ocupada pela execução causando certa confusão acerca de, auditivamente,
das peles agirá de forma mais rápida e objetiva. Por localizar essas intervenções em uma performance. A
outro lado, o trecho do vibrafone seguirá o mesmo obra de Mário Laginha escrita para sete percussionistas
padrão de velocidade do movimento executado no outro intitulada Este pássaro não é preto (2002) possui um
excerto semelhante (Ex.30), já exemplificado. O objetivo grande trecho escrito apenas para pratos tocados por
aqui será o de provocar no espectador impressões todos os intérpretes (Ex.38).
onde predomine a sensação de mudança de caráter da
exposição do tema representada temporalmente nas Tratando-se os pratos de idiofones de altura não
atitudes gestuais provocadas nas peles, uma vez que o definida, a aglomeração de sons e indivíduos tocando
trecho indicado para o vibrafone segue o mesmo critério ao mesmo tempo, onde a distância entre os intérpretes
desde o início da obra (em se tratando especificamente é quase nula (tocam lado a lado) acaba por dificultar
da exposição do tema principal). a percepção das mensagens sonoras transmitidas

Ex.37: Phènix (1982) de BERNARD-MÂCHE: voz de cima: peles, voz de baixo:


Vibrafone (2º sistema, p.04).

Ex.38: Este pássaro não é preto (2002) de LAGINHA: c.161-164.

176
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

individualmente, sendo mais perceptível em termos dependerá da interpretação coletiva uma vez que não
auditivos o resultado do tutti. O ritmo constante, a há ligaduras de frase ou qualquer outra indicação de
prevalência de dinâmicas similares e a mesma técnica e expressividade. A aplicação da forma linear deverá
exploração tímbrica utilizadas por todos os executantes contribuir para que os pontos culminantes sejam mais
causa à performance uma massa sonora uniforme facilmente identificáveis.
particular. Por esse motivo o compositor procura, através
da distribuição de acentos em momentos diferentes, dar Existem outras possibilidades de o gesto contribuir para
“movimento” aos ataques em uníssono. A ideia é fazer a percepção desses eventos sonoros pontuais sem a
com que pontos culminantes surjam, em diferentes utilização da forma linear. Caso a interpretação do trecho
momentos e intérpretes, por entre a massa sonora que convencione que os movimentos dos braços não devem
se mantém estática ritmicamente (Ex.38). ser excessivos em momento algum, a cabeça ou o tronco
poderão salientar através de um rápido movimento (a
O problema a ser solucionado é fazer com que esses direção não é preponderante) a execução dos acentos.
pontos culminantes sejam percebidos nitidamente Acreditamos que, ao utilizarmos o corpo na sua totalidade
pelo espectador. Mesmo os pratos estando abafados na performance percussiva, devemos abdicar de uma
pelo contato com a superfície do chão e o trecho ser suposta hierarquia que possa transparecer dos membros
executado em dinâmica p, os ruídos provocados poderão superiores e cabeça em relação às outras partes, dando
confundir a divisão dos acentos em palco (Ex.39). importância para a construção de todo o movimento
Partindo do princípio de que o uníssono torna trabalhosa corporal, uma vez que: “Even when there is only one
(possivelmente confusa) a percepção de uma intervenção tiny part of the body moving, the rest of the body serves
dinâmica individual, podemos correr o risco de perder as background for that part and so is active in a visual
a ideia que o trecho sugere. No c.162 percebe-se que and choreographic way” (BLOM e CHAPLIN,1989 p.16).
poderá haver auditivamente uma certa dificuldade em Essa perspectiva será preponderante para as situações
determinar se o primeiro acento foi dado pelo perc.1 ou gestuais aplicadas num sentido de performance musical,
perc.2 já que na disposição em palco estão muito próximos particularmente destinadas ao repertório que envolvem o
um do outro, executando o mesmo ostinato rítmico. Esse emprego do GPE. Normalmente o movimento da cabeça
problema ocorre entre todos os percussionistas, sendo é quase inerente à aplicação do acento, pois quanto mais
perceptível nos C.c.163 e 164. energia concentrada e projetada pelo corpo para uma
ação qualquer, maior será a reação natural da cabeça
A forma linear poderá auxiliar na transmissão dessa referente a isso. Reforçar de forma consciente essa relação
ideia musical. Ao aproveitar o movimento dos braços da cabeça com o acento poderá ser outra saída gestual
para a execução de notas mais fortes, o intérprete será para o trecho em questão (Ex.38). A movimentação do
capaz de realçar o evento sonoro de destaque (acento) tronco e joelhos (mesmo que de forma sutil) também
fazendo com que o membro responsável por esse ataque poderá ser considerada para reforçar o súbito momento
realize um gesto linear. A sua forma (reta ou circular) de discrepância dinâmica individual.

Ex.39: Este pássaro não é preto (2002) de LAGINHA: performance do Drumming G.P.

177
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

e) Visualização de relações antagônicas entre Nesse exemplo o movimento do braço não estará em
gesto e texto musical: concordância com o valor rítmico da nota tocada,
mas com o som propagado no espaço onde o mesmo
O compositor francês George Aperghis já em 1981
é produzido. Evidencia-se uma maior preocupação
aplicava, mesmo que de forma indireta, a ideia de sound-
cênica com o trecho, uma vez que a velocidade do gesto
accompanying gestures. Em sua obra Les Guetteurs des
realizado com o corpo (longo e constante) não condiz
Sons (1981), observamos a requisição de movimentos
com o a parte escrita (curta e interrompida). Então, no
com os braços que entram em concordância com as
fim do c.26, quando não há mais som, o percussionista
ressonâncias extraídas do instrumento (Ex.40).
volta a efetuar movimentos sem tocar o instrumento,
A observação que faremos baseia-se no texto de podendo induzir novamente o espectador a imaginar
apresentação de Gaston Sylvestre, presente na partitura, eventos sonoros inexistentes. Outrossim, no c.27, o
dividindo a obra em três partes. Nessa discussão nos movimento do braço direito volta a ser duradouro, mas
interessa a primeira parte onde os percussionistas sem a produção do som. Aqui, começa-se a perceber que
interpretam um bebê, recém nascido, que está apenas o gesto, sem contato com o instrumento, não
descobrindo o universo do tato e do som (ou da influência basta para a extração sonora.
do seu gesto sobre o som): “Au départ il faut imaginer
les trois interprètes comme des ‘nouveaux nées’, comme Aperghis também explora uma ideia antinatural dos
des bébés qui découvert leurs mains [...]” (SYLVESTRE in movimentos em relação às dinâmicas aplicadas. A dinâmica
APERGHIS, 1981). No c.24 o compositor pede apenas a obedece a três princípios de Newton denominados leis do
movimentação do braço para baixo e para cima, sem tocar movimento20. O primeiro princípio nos diz que todo corpo
o instrumento, obedecendo o ritmo escrito, tratando-se permanece em estado de repouso ou velocidade constante,
apenas de uma intervenção gestual corporal. Percebe-se a não ser que uma força que atue sobre ele obrigue-o a
aqui que o compositor induz no espectador a ideia de modificar o estado de sua ação. O segundo princípio afirma
que haverá uma intervenção sonora através do gesto que quando a força resultante aplicada sobre um corpo for
realizado, o que não ocorre de fato. Já no c.25 a nota é diferente de zero, ele adquire uma aceleração proporcional
tocada com uma deslocação do braço de forma lenta com à força, com mesma direção e sentido. O terceiro diz
um sentido vetorial vertical para cima (c.26). Note-se que respeito a ação e reação. Ou seja, um corpo exercerá
esse movimento acompanhará o som resultante da nota força contrária proporcional à qual foi sujeito por outro. A
tocada (tratando-se o instrumento de um tambor grave, o resultante da intensidade de dinâmica será proporcional à
mesmo possui um tempo de decaimento do som suficiente força-peso aplicada sobre o corpo.
para estabelecer essa relação com o movimento).

Ex.40: Les Guetteurs de Sons (1981) de APERGHIS: Percussionista 2. c.24-28.

Ex.41: Les Guetteurs des Sons (1981) de APERGHIS: Percussionista 1. c.3-6.

178
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

Contrariando as sensações quotidianas da relação da analisadas são únicas. Contudo, desenvolver o GPE nos
intensidade de dinâmica com o embate dos corpos auxiliou a compreender a possibilidade de transmissão
envolvidos, o intérprete percussionista poderá criar (numa perspectiva audiovisual) do conteúdo musical
mecanismos para subverter essa ideia intuitiva de das obras para percussão, executando-as de forma
força em relação à intensidade sonora. Observando Les mais coerente relativamente às indicações previstas na
Guetteurs des Sons (1981) de APERGHIS, percebemos partitura. Para nós o Gesto Percussivo Expressivo poderá
que o compositor vai contra a ideia de correspondência sintetizar-se como:
direta entre o movimento corporal e os valores rítmicos
das notas, bem como a intensidade sonora extraída em Ações corporais realizadas pelo percussionista que
detrimento do gesto em si. Isso nos permite hipóteses procuram induzir a
sobre as mais variadas percepções e induções sobre o percepção de um evento sonoro em referência a um
conteúdo musical. O rompimento de convenções entre o discurso musical apresentado.
gesto e a resultante sonora ajuda-nos a perceber como o
movimento corporal pode alterar o curso da interpretação
de uma passagem musical, através de uma “contra 5. Conclusão
indução” intuitiva do espectador (Ex.41). Através dos conceitos aqui discutidos procuramos
oferecer condições ao percussionista para a construção
Em Ex.41 podemos visualizar uma contradição entre o de uma performance musical preocupada em gerir as
movimento realizado pelo percussionista (para baixo relações gestuais do ponto de vista técnico, interpretativo
com o braço direito) a partir de c.4 e o som obtido em e expressivo em detrimento de uma obra executada. O
c.6. A movimentação corporal será lenta, porém o som objetivo foi criar alternativas performativas que possam
obtido será em dinâmica f. O espectador, num primeiro auxiliar o intérprete numa transmissão do conteúdo
momento intuitivo, fará uma conexão do movimento musical executado, tendo em vista a complexa relação
lento do braço a um toque sem grandes dimensões que se estabelece geralmente entre os instrumentos de
de dinâmica. No entanto esse trecho alterará, a partir percussão, suas capacidades sonoras e os textos musicais
de uma ótica sensorial natural, a sua percepção de presentes na partitura. Através disso admitimos que o
forma súbita. Igualmente o intérprete deverá criar desenvolvimento de futuros trabalhos que componham
mecanismos que permitam a execução da dinâmica metodologias relacionadas com este campo de pesquisa
escrita, sem “quebrar” o sentido de continuidade possam efetivamente originar experimentos com a
(velocidade constante) do braço de c.4 a c.6. Nesse intenção de demonstrar analiticamente os níveis de
ponto o trabalho de tensão e relaxamento e a força influência gerados pelas relações gestuais em palco e
muscular (LABAN 1978) deverão ser considerados, de que maneira as mesmas atuam sobre a percepção
afim de estabelecer os pontos ideias dos movimentos do espectador em relação aos conteúdos musicais
exercidos pelo braço, pulso e mão para a execução existentes nas obras executadas.
desse trecho antagônico.
Observando os trabalhos realizados por SCHUTZ e
Através das leituras que realizamos sobre algumas LIPSCOMB (2004 e 2007), DAHL (2005) e BOUNEARD,
possibilidades interpretativas e expressivas, condicionadas WANDERLEY e GIBET (2011) acreditamos ter oferecido
ao movimento corporal, chegamos a um consenso relativo material performativo suficiente para a composição de
ao que será o GPE em termos conceituais. Percebemos um próximo passo de pesquisa que poderá passar pela
como esse gesto poderá atuar em convergência com construção de uma maquete experimental que venha
o texto musical ou de forma contrária à ideia que une utilizar processos que envolvam interfaces multimédia
frequentemente som e movimento. Isso nos permite (vídeo, áudio e áudio/vídeo) e interajam com participantes,
dizer que o emprego desse conceito não será regrado ou servindo como instrumento de recolha de dados para
composto por uma aplicação estreita de movimentos. Tão futuras análises a respeito da influência que o gesto
pouco as saídas aqui encontradas para o desenvolvimento poderá exercer sobre o espectador numa performance
de uma expressão corporal condicionada às obras destinada à música para percussão.

179
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181

Referências
ANTUNES-PENA, L. (2011). Três Quadros sobre Pedra. Tübingen: Sumtone.
APERGHIS, G. (1981). Les Guetteurs de Sons. Paris: Editions Salabert.
BAILLEY, B. (1963). Mental and Manual Calisthenics for the Mallet Player. 1º ed. New York: Warner Bros.
BARTÓK, B. (1939) Sonata para dois pianos e percussão. (ed. de 1942) Londres: Wakes & Son.
BERNARD-MÂCHE, F. (1982). Phènix. Paris: Editions Durand.
BLOM, L. A., e L. T. CHAPLIN. (1989). The Intimate Act of Choreography. 1ª ed. Londres: Dance Books Ltd.
BOLÃO, O. (2003). Batuque é um Privilégio 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumiar.
CAGE, J. (2007). Silencio. Tradução: M. Pedraza. Madrid: Ediciones Àrdora.
_______. (1939). First Construction (in Metal). New York: Edition Peters.
CAMURRI, A., e T. MOESLUND. (2010). Visual Gesture Recognition. In Musical Gestures - Sound, Movement, and
Meaning. Editado por R. GODØY e M. LEMMAN. London: Routledge.
CATALÃO, J. (2008). Le Jeu organique du musicien: Des chemins pour une interprétation vivante en musique. PhD
Thesis, Faculté de Musique Université de Montréal, Montréal.
CAZARIM, T. (2008). “Ação, pensamento, gesto, expressividade e a prática musical”. Anais do SIMCAM 4 – IV Simpósio
de Cognição e Artes Musicais. .
CHAIB, F. (2007). Exploração Tímbrica no Vibrafone: Análise Interpretativa da Obra Cálculo Secreto, de José Manuel
López López. Dissertação de Mestrado, DeCA-Universidade de Aveiro, Aveiro.
DEANE, C (1983). Mourning Dove Sonet. EUA: Edição do autor.
FAZENDA, M. J. (1996). “Corpo Naturalizado: Experiência e discurso sobre duas formas de dança teatral americanas”.
In Corpo Presente, treze reflexões antropológicas sobre o corpo. Oeiras: Celta Editora.
Delalande, F. (1988). La gestique de Gould. In G. Guertin (Ed.), Glenn Gould: Pluriel, (p.85-111). Montréal: Courteau.
GIL, J. (2001). Movimento Total: O Corpo e a Dança. Lisboa: Relógio D’Água.
____. (1980). Metamorfoses do Corpo. Tradução: M. C. Meneses. Lisboa: A Regra do Jogo, Edições Ltda.
GODØY, R., e M. LEMAN. (2010). Musical Gestures - Sound, Movement, and Meaning. 1ª ed. New York: Routledge.
GRISEY, G (1976). Partiels pour 18 musicians. Milão: Ricordi.
JENSENIUS, A., M. WANDERLEY, R. GODØY, e MARC LEMAN. 2010. Concepts and Methods in Research. In Musical
Gestures - Sound, Movement, and Meaning. Editado por R. GODØY e M. LEMAN. New York: Routledge.
LABAN, R. (1978). Domínio do Movimento. Tradução: A. M. B. DE VECHI e M. S. M. NETTO. 5ª ed. São Paulo: Summus
Editorial. 1ª ed. McDonald & Evans Limited 1971.
LANG, D. (1991). The Anvil Chorus. Red Poppy.
LANGER, S. 1953. Sentimento e Forma. São Paulo: Perspectiva.
MCNEILL, D. (2005). Gesture and Though. Chicago: University of Chicago Press.
NOBRE, M. (1963).Variações Rítmicas.
OLIVEIRA, J.P. (1993). Kity. Portugal: Edição do autor.
OLIVEIRA, L. (2010). Radio Bossa. Porto: Edição do autor.
PIKE, K.L. (1967). Language in Relation to a unified theory of the Structure of Human Behavior. The Hague: Mouton.
PIRES, (1971). Ostinati. (ed. de 1982).Frankfurt: Zimmerman.
ROSAURO, N. (1992) .Rhapsody for Percussion Solo and Orchestra. Santa Maria: Pro-Percussão.
SCHICK, S. (2006). The Percussionist’s Art: same bed, different dreams. Vol. 1. Rochester: University of Rochester Press.
SEJOURNÉ, E. (1999). Concerto pour Vibraphone et Orchestre à Cordes. Paris: Alfonce Produtions.
STASI, C. (1990). Canção Simples de Tambor. São Paulo: Edição do autor.
TINOCO, L. (2003). Imaginary Dancescape a Melodrumming after Cocteau. Porto: Edição do autor.
TRALDI, C., J. MANZOLLI, e C. CAMPOS. (2009). “Os gestos Incidentais e Cênicos na Interpretação entre Percussão e
Recursos Visuais”. Ensaio Magazine, Outubro 2009, 16 - 18.
ZAMPRONHA, E. (2000/2006). Recycling Collaging Sampling. São Paulo: Edição do autor.
ZBIKOWSKI, L. M. (2011). Musical Gesture and Musical Grammar: A Cognitive Approach. In New Perspectives on Music
and Gesture. Editado por A. GRITTEN e E. KING. Farnham: ASHGATE.

Literatura Recomendada:
BOUENARD, A., M. WANDERLEY, e S. GIBET. (2011). Analysis of Timpani Preparatory Gesture Paramterization. McGill
University. 2009 [acessado em 26/10 2011]. Disponível em http://hal.archives-ouvertes.fr/hal-00369241/en/.
BOUSSAIC, P. (1973). La mesure des gestes, prolégomènes à la sémiotique gestuelle. Paris: The Hague.

180
CHAIB, F. Três perspectivas gestuais para uma performance percussiva... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.159-181.

DAHL, S. (2005). On the beat: Human movement and timing in the production and perception of music. PhD Thesis, KTH
Computer Science and Communication, KTH School of Computer Science and Communication, Stockholm.
DAHL, S., e A. FRIBERG. (2005). “Visual perception of expressives in musicians’ body movements”. Stokolm, 2005.
GRITTEN, A., e E. KING. 2010. Music and Gesture. 3ª ed. Farnham: Ashgate.
GRITTEN, A., e E. KING. 2011. New Perspectives on Music and Gesture. Farnham: Ashgate.
HAKMRAST, T., K. GUETTLER, R. BADER, e R. GODØY. (2010). Gesture and Timbre. In Musical Gestures - Sound, Movement,
and Meaning. Editado por R. GODØY e M. LEMAN. London: Routledge.
LEPPERT, R. 1993. The Sight of Sound - Music, Representation and the History of the Body. California: University of
California Press.
SCHUTZ, M., e S. LIPSCOMB. (2007). “Hearing gestures, seing music : Vision influences perceived tone duration”. Perception
36:888 - 897.
_____________________. (2004). “Influence of Visual Information On Auditory Perception Of Marimba Stroke Types.”
Evanston, Il.
TINDALE, A., A. KAPUR, G. TZANETAKIS, P. DRIESSEN, e A. SCHLOSS. 2005. A Comparison of Sensor Strategies for Capturing
Percussive Gestures. Vancouver, 2005.
TINDALE, A., A. KAPUR, G. TZANETAKIS, e I. FUJINAGA. Retrieval of percussion gestures using timbre classification
techniques. Universitat Pompeu Fabra.
WANDERLEY, M, BRADLEY, V, MIDDLETON, N. MCKAY, C. e HATCH. W. (2005). The Musical Significance of Clarinetists’
Ancillary Gestures: An Exploration of the Field. Journal of New Music Research 34:97 - 113.

Notas
1 Parte do Capítulo 03 da Tese de Doutorado de Fernando Chaib, intitulada: “O gesto na performance em percussão: uma abordagem sensorial e
performativa”. DeCA - Universidade de Aveiro.
2 Ver Referências.
3 Ver Literatura Recomendada.
4 Considerando instrumentos com pelo menos 3 oitavas como vibrafones, xilofones e marimbas.
5 Aqui, altura está no sentido de medida métrica e não numa conotação musical.
6 Chamaremos memória espacial a relação do espaço entre o instrumento e o intérprete.
7 Parte do “Poder Humano” como designou LABAN (1978, p.186).
8 Ver tópico 5.1, ponto b).
9 Ver tópico 4.3 Exemplos no repertório.
10 Obra para percussão múltipla e sons eletroacústicos.
11 Conversas on-line via Skype, uma vez que o compositor reside na Alemanha.
12 Pedra denominada “vidraçada”.
13 Performance realizada em concerto no DeCA – Universidade de Aveiro (Portugal), a 28/07/2011.
14 Performance realizada em concerto a 17/11/2010, no VI Festival Internacional de Outono de Aveiro (Portugal).
15 Estas formas lineares são definidas como o “caminho” do movimento. LABAN (1978, p,72).
16 Obra de execução solo composta para vibrafone e nove instrumentos de pele.
17 Considerando nove instrumentos de pele com graduações de alturas diferentes, as dimensões não serão proporcionais o suficiente para possuírem
o mesmo tempo de decaimento da nota do que, por exemplo, em um tímpano ou um bombo sinfónico. No estudo e performance realizados para
este trabalho, foram escolhidos nove roto-toms entre 15’ e 6’ (medidas em polegadas).
18 Tendo em conta que o intérprete realiza-o em condições ideais à obra em questão (baquetas, dinâmicas, região do toque, articulação, etc.).
19 A montagem feita pelo autor (Ex.33) utilizou roto-toms em performance realizada no VI Festival Internacional de Outono 2010, (Aveiro, Portugal).
A montagem da Ex.34 utilizou tom-tons em performance realizada no IMPULS’11 - 7th International Ensemble and Composers Academy for
Contemporary Music (Graz, Áustria).
20 Isaac Newton (1642-1727) publicou as três leis do movimento bem como a lei universal da gravitação em seu tratado clássico Princpia Mathematica.

Fernando Chaib gradou-se em Bacharelado em Percussão pela UNESP, realizando Mestrado em Música/Performance na
Universidade de Aveiro. Vem sendo galardoado com prêmios como solista e músico de câmara no Brasil, na Itália e em
Portugal. É membro fundador do Grupo Durum Percussão Brasil e diretor e membro do Simantra Grupo de Percussão
(Portugal). Possui Cds gravados com orquestras e grupos de música de câmara no Brasil, Europa e Ásia. Realiza concertos
(a solo, como camerísta, diante de orquestras e como músico convidado) nos continentes americano, asiático e europeu.
No âmbito acadêmico possui artigos publicados em periódicos e anais de eventos científicos no Brasil e em Portugal.
Está em fase de conclusão do seu Doutorado em Música na Universidade de Aveiro sob orientação do Prof. Dr. Evgueni
Zoudilkine e Coorientação dos Prof. Dr. Carlos Stasi e Prof. Dr.Miquel Bernat, sendo bolsista da Fundação para a Ciência e
Tecnologia (FCT) de Portugal e pesquisador do INET-MD.

181
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.182-188

Ampliação da técnica violonística de mão


esquerda: um estudo sobre a pestana
Bruno Madeira (Unicamp, Campinas, SP)
madeirabruno@gmail.com

Fabio Scarduelli (Unicamp / Fapesp, Campinas, SP)


fabioscarduelli@yahoo.com.br

Resumo: A técnica instrumental é um elemento da performance musical em constantes reformulações. Com o objetivo
principal de estender a técnica violonística da pestana, o presente artigo foi dividido em três partes: (1) conceituações
gerais sobre técnica instrumental; (2) a partir de métodos instrumentais dos últimos quatrocentos anos, um breve
histórico da pestana foi delineado com o objetivo de recolher informações técnicas sobre sua realização, (3) sugestões
e exemplificações de procedimentos não usuais de pestana (com dedos diferentes do indicador, de falange, bisagra e
cruzada), encontrados de forma muito resumida na escassa bibliografia sobre o assunto e cuja aplicabilidade é verificada
no repertório.

Palavras-chave: interpretação musical; técnica violonística; técnicas estendidas; pestana.

Extended left-hand guitar technique: a study on the barré

Abstract: Instrumental technique is an element of musical performance in constant reformulation. With the main
objective of expanding the guitar technique of barring, this study was divided into three parts: (1) general concepts about
instrumental technique; (2) from instrumental methods of the past four hundred years, a brief history of the barré was
outlined in order to collect technical information about its realization, (3) suggestions and examples of unusual barring
procedures (with different fingers, phalanx barré, hinge barré, crossed barré), found in the scarce bibliography and which
applicability is verified in the repertoire.

Keywords: musical performance; classical guitar technique; extended techniques; barré.

1 – Introdução: a técnica instrumental


Ao escrever sobre técnica instrumental, CARLEVARO Segundo CARRASQUEIRA (2011), “a técnica instrumental
(1979) defende que o principal elemento motor é a é a adaptação do corpo do músico ao instrumento”.
vontade, provinda do cérebro. Para cada atitude corporal, Esta conceituação implica que a técnica é um
existe uma imagem mental paralela e, sendo assim, conjunto pessoal e único de procedimentos mecânicos,
o estudo da técnica exige uma educação da mente, não podendo existir uma receita pronta de como se
que nunca estará em estado irreflexivo e regerá todos tocar um instrumento pelo fato de cada intérprete
os impulsos e movimentos. Posteriormente ele afirma ser fisicamente diferente um do outro. De acordo
que a técnica instrumental violonística é “uma correta com a pianista, livros de técnica sintetizam alguns
formação mecânico-digital” (p. 35), completando seu procedimentos que são comuns entre instrumentistas,
conceito de técnica ao incluir o trabalho físico. Portanto, porém nunca terão detalhes suficientes para que todos
ao mesmo tempo em que o autor afirma que a imagem os leitores compreendam completamente e executem
mental de um movimento é o elemento primordial para as posições e movimentos desejados. Por conseguinte,
se executar um instrumento, ele ressalta a importância todos os conceitos técnicos necessitam da adequação
do preparo mecânico do corpo. individual do instrumentista.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 06/10/2011- Aprovado em: 07/06/2012
182
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.182-188.

Definimos técnica instrumental como sendo o conjunto seja a gema” (2000, p.41). Porém, mesmo nesse caso, os
de procedimentos que permite a transmissão de ideias outros dedos não poderiam executar a técnica, motivo
musicas para um instrumento. Este conjunto abrange pelo qual definimos a pestana como qualquer situação
tanto as imagens mentais quanto os posicionamentos na qual um dedo da mão esquerda pressiona a(s) corda(s)
e movimentos corporais, e para sua plena atividade, é com outra parte que não seja a gema.
exigida a adaptação do corpo ao instrumento.
Segundo GARCÍA (2011), a pestana é utilizada desde antes
A técnica instrumental de forma geral parte de um conceito das mais antigas referências de literatura para vihuela,
simples de eficiência, no qual se busca o máximo resultado guitarra e alaúde que chegaram aos dias de hoje. Levanta-
com o mínimo de esforço1. Através da observação e se a hipótese de que, nos primeiros instrumentos de
compreensão dos movimentos corporais, músicos de diversos cordas dedilhadas com braço, ela tenha sido uma técnica
períodos históricos buscam soluções de como alcançar um estendida. O procedimento é documentado como parte
resultado que, se eficientes, passam a se incorporar no modo integrante da técnica violonística há pelo menos quatro
de se tocar um determinado instrumento. séculos nos métodos de guitarras de cinco ordens dos
espanhóis AMAT (1626) e SANZ (1674), entretanto, neles
Deduzem-se a partir dessa incorporação de procedimentos não há uma denominação nem informações específicas
técnicos os conceitos de técnica tradicional e técnicas sobre como realizá-la – os autores simplesmente deixam
estendidas. A técnica tradicional é resultante tanto claro que na realização de alguns acordes, o dedo indicador
de observações anatômicas e da relação entre corpo e precisa ser colocado em duas cordas2 (AMAT, 1626, p.13).
instrumento musical, quanto da sonoridade em voga
num determinado período. Técnicas estendidas são Cerca de duzentos anos depois, nos métodos de AGUADO
processos que num determinado momento são utilizados (1843), CARCASSI (1836) e SOR (1831), mais detalhes
marginalmente pelos intérpretes e que ampliam a paleta sobre a pestana são expostos: o primeiro afirma que o
sonora de um instrumento ou propõem diferentes procedimento exige alguma prática e que o aluno deve
soluções mecânicas para determinadas situações. Com o estudar colocando o dedo plano ou deixando-o de lado3
passar do tempo, esses novos procedimentos vão sendo (AGUADO, 1843, p.34). CARCASSI (1836, p.16) sugere
utilizados por intérpretes, e se considerados eficazes (por que para fazê-la facilmente, o pulso deve ser levantado,
questões práticas) ou indispensáveis (quando se tratam de porém mantendo o polegar atrás do braço do violão. SOR
novos timbres, por exemplo), podem passar a fazer parte concorda com CARCASSI, quando escreve que o polegar
da técnica tradicional. Assim, a técnica instrumental é deve ser deslocado para a extremidade mais baixa do braço
um elemento da performance musical em constantes do violão (o que ocasiona o citado levantamento do pulso),
reformulações e atualizações, dependendo tanto de e com AGUADO, quando adiciona que o dedo indicador
observações corporais e modificações na construção dos pressiona a corda mais lateralmente (SOR, 1831, p.13 e 28).
instrumentos, quanto da música para eles composta.
As observações sobre a pestana feitas por PUJOL (1954,
Procedimentos não-tradicionais abrem novas p.42), já no século XX, são mais genéricas, porém
possibilidades de soluções para problemas encontrados enfatizando sempre que o esforço repetitivo (alternado
no repertório tradicional. Conduções de vozes em peças com o repouso) é necessário para que os músculos
polifônicas, questões fraseológicas e de encadeamentos se desenvolvam e o resultado seja positivo. O autor
de acordes são algumas das dificuldades técnicas conceitua, levanta algumas particularidades e propõe
que podem ser superadas com o estudo organizado exercícios utilizando o procedimento, porém não detalha
de atitudes pouco exploradas da mão esquerda do posicionamentos e atitudes da mão esquerda como
violonista. Exporemos nesse trabalho procedimentos outros. Posteriormente PUJOL cita a pestana em exercícios
raramente utilizados envolvendo pestanas, bem como o que também objetivam a abertura dos dedos da mão
detalhamento e exemplificação dessas práticas, visto que esquerda, reafirmando que através da prática assídua, a
a bibliografia referente ao tema é bastante limitada. força da pestana será desenvolvida (1954, p.98).

2 – Conceitos e histórico da pestana Nos métodos mais recentes, novas observações são feitas
O Dicionário Grove de Música define a pestana como “a para a realização da pestana, visando evitar o acúmulo de
técnica, na execução de certos instrumentos trasteados tensão em músculos menores da mão. Entre elas estão o
de cordas dedilhadas [...], de prender todas ou várias uso do peso do braço e uma atitude seletiva em relação à
cordas na mesma casa, esticando um dedo (geralmente que cordas devem ser realmente pressionadas. TENNANT
o indicador) como uma barra sobre elas” (1994, (1995, p.23), corroborado por CARLEVARO (1985, p.18),
p.715). Porém esta definição deixa de abarcar alguns afirma que são raros os momentos em que todos os
procedimentos por definir superficialmente o termo, milímetros do dedo precisam pressionar as cordas ao
tendo FERNÁNDEZ procurado abranger uma variedade mesmo tempo; portanto em casos nos quais a falange
maior de procedimentos quando conceitua a pestana média não tem sob sua responsabilidade nenhuma nota a
como sendo “qualquer situação na qual o dedo 1 entre ser pressionada, ela deve permanecer relaxada – criando
em contato com a(s) corda(s) com outra parte que não assim uma pestana que deixa o dedo curvado.

183
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.182-188

Outra informação importante é citada por TENNANT (1995, dedos que não o próprio em determinadas passagens,
p.23), que escreve sobre o reposicionamento indispensável do abrindo possibilidades antes impossíveis em termos de
dedo para que uma nota soe clara, se uma das articulações articulação musical e condução de vozes.
entre as falanges se encontrar justamente numa corda onde
deveria ser aplicada pressão. A sugestão do próprio autor é Para a execução de pestanas com os dedos 2, 3 e 4,
deslizar e movimentar o dedo, experimentado as posições os músculos são utilizados de uma maneira raramente
até que se encontre uma na qual a articulação não coincida empregada e a superfície do dedo necessária para a
com o ponto de pressão na corda. execução das notas não está acostumada a sentir a
pressão por eles aplicada. Portanto, antes do uso dessa
CARLEVARO (1979, p.129) ainda comenta sobre o técnica em repertório, sugere-se que o violonista faça
problema de se manter a mão e pulso para trás do exercícios preliminares, como os mostrados nos Ex.1 e 2.
braço do violão na execução de pestanas nas cordas Todos os exercícios devem ser feitos com meia pestana ( ),
mais agudas, reafirmando as informações dos métodos pressionando apenas as notas indicadas.
do início do século XIX sobre a colocação mais baixa do
polegar esquerdo para a plena realização da técnica. Diversos trechos do repertório violonístico permitem a
utilização de pestanas com dedos não-convencionais.
Percebe-se uma falta de detalhamento em relação Os motivos para a escolha desse tipo de digitação são a
à execução da pestana na maioria dos métodos plena realização das durações e articulações das notas e a
averiguados. Porém, a soma das informações fornece execução de ideias musicais que, quando feitas de forma
ao intérprete soluções para a resolução de pestanas em tradicional no instrumento, gerariam problemas técnicos
diversos casos do repertório. maiores. Os Ex.3 e 5 mostram trechos do repertório
tradicional onde as pestanas com os dedos 2 e 4 podem
ser utilizadas. As pestanas com o dedo 3 são mais raras no
3 – Derivações da pestana repertório, porém comuns no acompanhamento de guitarra
A pestana é um elemento muito versátil da técnica elétrica pela ação mais baixa das cordas. No primeiro acorde
violonística, porém a técnica tradicional ainda não do Ex.4, são exigidas duas pestanas simultaneamente –
assimilou procedimentos dela derivados que auxiliam a uma com o dedo 1 na casa 3, e outra de falange com o
resolução de inúmeras passagens. Os seguintes tópicos dedo 3 na casa 5; no segundo, uma pestana com o dedo 3 é
serão abordados nas próximas páginas: pestanas com exigida na casa 5 para permitir a ação do dedo 4 na nota si.
outros dedos, pestanas de falange, pestanas bisagras e
pestanas cruzadas. Antes da exemplificação com trechos 3.2 - Pestanas de falange
do repertório, serão expostos exercícios que prepararão Os dedos naturalmente relaxados se apresentam curvados
o intérprete em termos de posicionamento e execução em direção à palma da mão. A base técnica violonística
dos movimentos, pois através do estudo da técnica pura exige que os dedos mantenham essa posição para a
os elementos constituintes de um procedimento podem economia de movimentos e controle do nível de tensão,
ser isolados e compreendidos mais facilmente. porém em alguns casos (como na pestana), o dedo pode
ser esticado. Para os casos de pestanas de falange, a
3.1 - Pestanas com outros dedos curva em direção contrária à de relaxamento é exigida,
O dedo indicador (1) é o dedo mais comum para com a falange distal angulada para fora. Essa posição só é
o emprego da pestana, tanto por ser um dedo que alcançada com o auxílio do contato com outro objeto, já
naturalmente possui força e coordenação, quanto por que não existem tendões que possam fazer o movimento
seu uso não dificultar movimentos dos demais dedos. e deixar o dedo posicionado. A pestana de falange
Entretanto, a técnica também pode ser executada por permite que, com apenas um dedo, duas ou três cordas

Ex.1 - Exercícios de pestanas em duas cordas com todos os dedos

Ex.2 - Exercícios de pestanas em três cordas com todos os dedos

184
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.182-188.

Ex.3 - Choro Triste nº. 2, de Aníbal Augusto Sardinha (Garoto):


exemplo de pestana com o dedo 2 e de pestana de falange (c.12)

Ex.4 - Pestanas com o dedo 3

Ex.5 - Prelúdio em Ré Menor (BWV999), de J. S. Bach: exemplo de pestana com o dedo 4 (c.15)

Ex.6 - Exercícios de pestanas de falange com todos os dedos

Ex.7 - Estudo nº. 3, de Heitor Villa-Lobos (c.21)

intermediárias sejam pressionadas sem que isto afete as No Ex.6 estão expostos exercícios preparatórios de
cordas mais agudas, que podem estar soltas. pestanas de falange com todos os dedos. No Ex.7, trecho
de um estudo para violão de Villa-Lobos, a pestana de
Dentre os procedimentos presentes nesse trabalho, a falange é utilizada na casa 3, permitindo a execução
pestana de falange é a que mais depende do biótipo do das notas Ré, Si bemol e Fá bequadro enquanto um Mi
instrumentista para sua plena realização. O posicionamento é feito com a primeira corda solta. No Ex.8, apesar da
da falange distal angulada para fora é facilmente conseguido possibilidade de outras digitações, o acorde do terceiro
por alguns intérpretes, enquanto para outros beira o tempo é feito com uma pestana de falange para a
impossível. Sugere-se exercitar o movimento diariamente manutenção do legato da passagem inteira. Também é
em curtos períodos de tempo (pois o acúmulo de tensão um exemplo de pestana bisagra de primeiro caso (a base
pode gerar desconfortos) para obter maior flexibilidade e do dedo sendo utilizada enquanto a ponta permanece
para que se consiga realizar os trechos de repertório onde o estática), explicado a seguir.
procedimento é de utilidade incontestável.

185
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.182-188

Ex.8 - Solemne, da Fantasia III, de Maurício Orosco (c.22)

Ex.9 - Exercícios para pestanas bisagras: sustentação da nota da voz inferior

Ex.10 - Exercícios para pestanas bisagras: sustentação da nota da voz superior

3.3 - Pestanas bisagras inteira é exigida (a base do dedo se move no sentido


Outro procedimento técnico não-usual envolvendo a contrário ao cotovelo, num movimento de alavanca) e se
pestana é denominado por VILLADANGOS (199-?, p.3) afastar quando a corda solta necessita ser executada.
como barra levantada, por FERNÁNDEZ (2000, p.42)
como cejilla bisagra, e segundo GLISE (1997, p.116), Nos dois últimos casos, é a ponta do dedo que deve se
hinge barre. Nesse tipo de pestana, ao invés de pressionar movimentar e o movimento parte justamente dela. O cuidado
o dedo inteiro contra as cordas, a ponta e a base do a ser tomado é com a manutenção do som da voz aguda, já
dedo são tratados de forma independente. Não foram que ela está sob responsabilidade da base do dedo, que não
encontradas referências em português desse processo, tem a mesma precisão e controle que a ponta possui.
para o qual se sugere o termo pestana bisagra. Esse
recurso, assim como a pestana com outros dedos, permite Exercícios para a realização da pestana bisagra se
a realização de trechos nos quais soluções tradicionais encontram nos Ex.9 e 10. No Ex.11, o dedo 1 sustenta
seriam mecanicamente problemáticas ou impossíveis em a nota Fá no primeiro tempo da voz inferior, deixando a
termos de condução de vozes. primeira corda solta para a realização da nota Mi da voz
superior. Quando a nota Fá aguda é requerida, o dedo
As pestanas bisagras podem ser enquadradas em quatro tem sua base abaixada para a realização da pestana. No
casos, quando precisam: 1) sustentar a nota da voz Ex.12, todos os acordes são feitos com pestana, porém
inferior, enquanto a voz superior exige a realização de com a necessidade de se tocar as cordas soltas na última
uma nota em corda solta e depois pisada; 2) sustentar semicolcheia do primeiro tempo, a mesma tem sua base
a nota da voz inferior, enquanto a voz superior exige a levantada enquanto a ponta permanece na nota Si bemol.
realização de uma nota pisada e depois em corda solta; Em relação ao Ex.13, realiza-se o acorde do segundo
3) sustentar a nota da voz superior, enquanto a voz tempo do compasso 17 com a base do dedo, para que
inferior exige a realização de uma nota em corda solta o Lá da quinta corda solta possa ser executado. No
e depois pisada; 4) sustentar a nota da voz superior, compasso seguinte, a nota Si bemol é exigida no baixo, o
enquanto a voz inferior exige a realização de uma nota que permite o uso da pestana tradicional.
pisada e depois em corda solta.
3.4 - Pestanas cruzadas
Nos dois primeiros casos é a base do dedo que necessita Segundo CONTRERAS (1998, p.39), a técnica da pestana
ser movimentada e este movimento é facilitado se todo cruzada ou pestana torcida consiste em inclinar o dedo
o conjunto braço-pulso-mão for empregado. Existem duas responsável pela pestana, para que a pestana abarque
possibilidades de realização desse procedimento: a primeira duas casas consecutivas. A inclinação pode ser feita em
consiste em mover o conjunto citado para frente do braço direção ao corpo do instrumento, fazendo com que a nota
do violão quando for exigida a corda solta e o retorno à executada pela ponta do dedo esteja uma casa à frente
posição padrão quando é necessária a pestana inteira; da nota executada pela base, ou com a inclinação feita
a segunda trabalha com a movimentação do cotovelo, em direção à cabeça do instrumento, estando a nota da
devendo este se aproximar do corpo quando a pestana ponta uma casa atrás da nota da base.

186
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.182-188.

Ex.11 - Lição nº. 13, op. 31, de Fernando Sor (c.46)

Ex.12 - Choros nº. 1, de Heitor Villa-Lobos (c.13)

Ex.13 - Estudo nº. 13, op. 29, de Fernando Sor (c.17 e 18)

Ex.14 - Exercício para pestanas cruzadas. As pestanas com a ponta do dedo à frente
podem ser executadas alternadamente com pulso ativo e inativo.

Ex.15 - Enigma, de Aníbal Augusto Sardinha (Garoto) (c.24)

Ex.16 - Prelúdio, da Cavatina, de Alexandre Tansman (c.34)

O primeiro caso pode ser feito tanto com o pulso inativo4, respectivamente. Em relação ao Ex.15, Na nota Si do fim
afastando o cotovelo do corpo para que o dedo possa do primeiro tempo, a pestana é feita na sétima casa. Para
ser angulado, quanto com o pulso ativo, sendo sua a execução do Mi sustenido na voz inferior, a ponta do
articulação a responsável por posicionar o dedo no lugar dedo se posiciona na oitava casa; porém a pestana deve
requerido. O segundo caso depende exclusivamente da continuar na sétima para que a nota Si na metade do
movimentação do braço. segundo tempo possa ser executada enquanto as demais
notas são sustentadas. Apesar da duração escrita permitir
Na sequência estão sugestões de exercícios (Ex.14), dois que as notas mais graves deixem de ser sustentadas, para
exemplos do primeiro caso e um do segundo. A notação a obtenção de uma articulação mais ligada no Ex.16, se
utilizada para a técnica em questão será Cxy, sendo sugere a manutenção destas; para isso, no compasso em
x e y as casas pressionadas pela base e ponta do dedo, questão a pestana cruzada é o procedimento mais indicado.

187
MADEIRA, B.; SCARDUELLI, F. Ampliação da técnica violonística de mão esquerda... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.182-188

4 – Considerações finais
Sendo a técnica instrumental um elemento dinâmico, Ressaltamos que para alguns violonistas, alguns
variável de acordo com as necessidades de seu tempo, dos procedimentos podem gerar certas dificuldades,
cabe aos intérpretes pesquisar e sugerir procedimentos justamente por não estarem ainda incorporados no ensino
para que sempre haja uma ampliação do que é possível tradicional do instrumento; razão pela qual se espera que
fazer com um instrumento musical. Nosso intuito com a partir dessa gama maior de opções de realizações de
esse artigo foi colaborar minimamente com o processo um trecho, cada intérprete possa escolher a mecânica do
de ampliação da técnica violonística, esperando que os movimento que mais lhe convier, tendo sempre em mente
procedimentos expostos possam auxiliar o intérprete na os pontos de vista técnico e musical.
realização de trechos problemáticos do repertório.

Referências
AGUADO, Dionisio. Nuevo Método para Guitarra. Paris: Schonenberger, 1843.
AMAT, Joan Carles. Guitarra Española, y Vandola en dos maneras de Guitarra, Castellana, y Cathalana de cinco Ordenes.
Tradução de Monica Hall. Lérida: Viuda Anglada e Andreu Llorens, 1626.
BELLINATI, Paulo (Ed.). The Guitar Works of Garoto. San Francisco: Guitar Solo Publications, 1991.
CARCASSI, Matteo. Méthode Complète pour la Guitare. Paris: Schott, 1836.
CARLEVARO, Abel. Escuela de la guitarra: Exposición de la teoría instrumental. Buenos Aires: Barry, 1979.
_____ Guitar Masterclass: Volume 1 – Fernando Sor 10 Studies. Tradução de Bartolomé Díaz. Heidelberg: Chanterelle
Verlag, 1985.
CARRASQUEIRA, M. J. Técnica [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por madeira.bruno@gmail.com em 22 jun. 2011.
CONTRERAS, Antonio de. La técnica de David Russell em 165 consejos. Sevilla: Cuadernos Abolays, 1998.
FERNÁNDEZ, Eduardo. Técnica, mecanismo, aprendizaje: Una investigación sober el llegar a ser guitarrista. Montevideo:
Art Ediciones, 2000.
GARCÍA, J. G. La cejilla. Guitarra. Artepulsado, 2004. Disponível em http://guitarra.artepulsado.com/guitarra/cejilla_julio_
gimeno.htm (Acesso em 20/06/2011).
GLISE, Anthony. Classical Guitar Pedagogy: A Handbook for Teachers. Pacific: Mel Bay Publications, Inc., 1997.
PUJOL, Emilio. Escuela Razonada de la Guitarra (libro tercero): Baseada em los princípios de la técnica de Tarrega. Buenos
Aires: Ricordi Americana, 1954.
SADIE, Stanley (Ed.). Dicionário Grove de Música: Edição concisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
SANZ, Gaspar. Instruccion de Musica sobre la Guitarra Española. Zaragoza: Herederos de Diego Dormer, 1674.
SHELP, J. Injury Free Guitar Practice. Musical Instruments by Suite101, lugar, mês. 1900. Disponível em <http://www.
suite101.com/content/injury-free-guitar-practice-a125956>. Acesso em 21/06/2011.
SOR, Fernando. Méthode pour la guitare. Bonn: Simrock, 1831.
TENNANT, Scott. Pumping Nylon: the Classical Guitarist’s Technique Handbook. Lakeside: Alfred Publishing Co., 1995.
VILLADANGOS, Victor. Anotações. [S.l.: s. n], [199-?]

Notas
1 A teoria instrumental carlevariana é baseada nesse conceito. Cf. CARLEVARO, 1979, p. 34.
2 “Which means that to form chord 7b you have to put the index finger on the first course and the fifth course at the first fret.”
3 Aguado se refere ao uso da lateral exterior do dedo, mais próxima do polegar.
4 Pulso inativo significa pulso fixo. O conceito carlevariano de fixação (fijación), supõe a anulação momentânea de uma articulação, permitindo que
o movimento seja transmitido de músculos maiores para menores (CARLEVARO, 1979, p.34).

Bruno Madeira é Bacharel e Mestrando em Música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP - Campinas/SP)
sob orientação de Fabio Scarduelli, tendo desenvolvido seu projeto de iniciação científica e trabalho de conclusão de curso
sobre práticas interpretativas do classicismo. Atuou como professor de violão e teoria musical em diversas escolas de Itajaí/
SC e Campinas/SP e como tutor virtual da disciplina Linguagem e Estruturação Musical, no curso de Educação Musical da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar - São Carlos/SP). Leciona na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC
- Florianópolis/SC) disciplinas dos cursos de Bacharelado em Violão e Licenciatura em Música. Pesquisa aspectos da técnica
instrumental violonística, didática musical aplicada ao violão e em seu mestrado as obras para violão solo de Maurício Orosco.

Fabio Scarduelli é violonista, professor e pesquisador; Mestre e Doutor em Música pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), instituição na qual realiza ainda seu pós-doutorado com bolsa FAPESP. Graduou-se em Música no
ano 2000 na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, em Curitiba, e lecionou em instituições como a Escola de Música
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a UNICAMP.

188
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199.

Fantasia Sul América para clarineta solo


de Claudio Santoro: uma análise
Gueber Pessoa Santos (UFBA, Salvador, BA)
gpspostal1@hotmail.com

Ricardo Mazzini Bordini (UFBA, Salvador, BA)


bordini@ufba.br

Resumo: Estudo analítico abordando os aspectos estruturais da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Franco
de Sá Santoro (1919-1989), que propõe uma segmentação formal a partir da análise motívica da obra, identificando
seus elementos constitutivos e procurando elaborar e responder questões investigativas. Ao fornecer subsídios que
possam auxiliar o instrumentista em suas escolhas interpretativas, busca-se aprofundar o conhecimento geral na área de
execução musical instrumental e em particular de obras brasileiras contemporâneas.

Palavras-chave: Claudio Santoro; Fantasia Sul América; repertório para clarineta; análise musical e interpretação.

Fantasia Sul América for clarinet solo by Claudio Santoro: an analysis

Abstract: Analytical study about structural aspects of Fantasia Sul América for solo clarinet by Claudio Franco de Sá Santoro
(1919-1989). It proposes a formal segmentation based on motivic analysis in order to show its constituent elements. It
raises investigative questions and provides subsidies that may help players in interpretative choices. It aims at contributing
to deepen general knowledge in instrumental musical performance, especially of Brazilian contemporary works.

Keywords: Claudio Santoro; Fantasia Sul América; Brazilian music for clarinet; musical analysis and performance.

1 - Introdução
Embora tenhamos o registro da composição de No Brasil, podemos citar os compositores Ronaldo Miranda,
importantes obras para clarineta solo durante o século Osvaldo Lacerda, Claudio Santoro, Fernando Cerqueira e
XIX, a exemplo dos Trois caprices pour clarinette seule Eli-Eri Moura, dentre vários outros compositores que, em
(1808), compostos pelo clarinetista austríaco Anton todas as regiões do país, se dedicaram à composição de
Stadler, e do Studio Primo per Clarinetto (1821), do obras para clarineta solo a partir do século XX. Desses,
compositor italiano Gaetano Donizetti, é a partir Claudio Santoro, por exemplo, compôs duas importantes
do século XX que o repertório para essa modalidade obras da literatura brasileira para essa modalidade
instrumental começa a aumentar consideravelmente. instrumental, quais sejam: as Três peças para Clarineta
Nesse período, destacamos as Three Pieces (1918) para Solo (1942) e a Fantasia Sul América (1983) 1, sendo essa
clarineta solo do compositor Igor Stravinsky como sendo última o objeto de estudo do presente trabalho.
um marco histórico e um divisor de águas na literatura
dessa modalidade instrumental. Assim, a partir da Desse modo, o presente texto realiza uma análise acerca
década de 1950, o número de publicações de obras para dos aspectos estruturais da Fantasia Sul América para
clarineta solo continuou crescendo, inclusive entre os clarineta solo utilizando a teoria de conjuntos de classes
compositores provenientes da América Latina. de notas2. Sua importância se justifica por buscar oferecer

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 08/03/2012- Aprovado em: 27/05/2012
189
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199

subsídios que possam auxiliar o executante em suas dodecafonismo e deu início a sua fase nacionalista. Na
escolhas interpretativas, além de contribuir para tornar a década de 1960, Santoro lecionou na Universidade de
difusão desse repertório mais abrangente e dinâmica, como Brasília até o ano de 1965, quando se demitiu por não
também divulgar a obra de um exímio compositor brasileiro. concordar com a demissão de aproximadamente 280
docentes da instituição. Entre os anos de 1971 e 1978,
2 - Claudio Franco de Sá Santoro estabeleceu-se na Alemanha onde lecionou na Escola
Estatal Superior de Mannheim, continuando a compor
O compositor, instrumentista, pesquisador, professor e
de forma intensiva e eclética, inclusive incorporando
regente, Claudio Franco de Sá Santoro nasceu em 23 de
as novas possibilidades da música eletrônica. Em 1978,
novembro de 1919 na cidade de Manaus (AM). Aos 10 anos
Santoro retornou ao Brasil para assumir novamente o
de idade foi presenteado com um violino e um método
Departamento de Música da Universidade de Brasília
de teoria e solfejo pelo seu tio Attilio. Logo em seguida,
e organizar e dirigir a Orquestra Sinfônica do Teatro
recebeu suas primeiras lições musicais de sua tia Iracema
Nacional. Assim, durante toda a sua trajetória Claudio
Franco de Sá, vindo a estudar posteriormente com o
Santoro foi bastante premiado e condecorado com a
professor Avelino Telmo, um violinista chileno radicado em
Ordem do Mérito de Brasília (1986). Seu catálogo inclui
Manaus. Assim, aos 12 anos de idade, transferiu-se para
mais de 600 obras entre 14 sinfonias, peças orquestrais,
o Rio de Janeiro onde estudou música com os professores
música de câmara em variadas formações e obras para
Edgar Guerra, Nadile Barros e Lopes Gonçalves. Formou-
instrumento solista, entre as quais, compôs uma série de
se em violino pelo Conservatório do Rio de Janeiro com
obras para essa modalidade instrumental na qual todas
tal aproveitamento que foi imediatamente admitido como
as peças receberam o mesmo título: Fantasia Sul América.
professor adjunto da mesma instituição, onde lecionou
harmonia e contraponto, além do violino (MARIZ, 2000,
p.303). Devido ao seu extraordinário desempenho no curso 3 - Fantasia Sul América
de harmonia, foi bastante estimulado pela professora Conforme supramencionado, Claudio Santoro compôs
Nadile de Barros a ingressar na área da composição. Em um conjunto de obras para instrumento solista intitulado
1941, por questões financeiras, renunciou aos cargos Fantasia Sul América. Assim, o compositor escreveu uma
no Conservatório e ingressou como violinista em várias Fantasia Sul América para os seguintes instrumentos:
orquestras, a exemplo da Orquestra Sinfônica Brasileira e violino, viola, violoncelo, contrabaixo, flauta, oboé,
das orquestras da Rádio Nacional e do Cassino Copacabana. clarineta, fagote, trompete em dó, trompa, trombone,
tuba, sax alto, piano, voz, e violão. Segundo Vinícius Fraga,
Paralelamente ao trabalho como violinista, Claudio cada uma dessas obras pode funcionar tanto como peça
Santoro desenvolveu a sua veia de compositor e regente. solo quanto concertante, uma vez que todas possuem um
Enquanto compositor, frequentou as aulas do professor acompanhamento orquestral. Além disso, Fraga chama
alemão Hans Joachim Koellreutter, recém chegado da a atenção para o fato de que a Fantasia Sul América
Alemanha em 1939. Com Koellreutter, Santoro trabalhou para clarineta é praticamente idêntica à da flauta (salvo
os métodos de composição de Hindemith e Shoenberg, algumas diferenças de registro), de forma que ambas
além de aprender sobre o dodecafonismo3 e participar podem ser executadas com o mesmo acompanhamento
da criação do Música Viva, movimento responsável pela orquestral (FRAGA, 2008, p.24).
divulgação da música de vanguarda no Brasil e pela revista
Música Viva, na qual Santoro publicou diversos artigos. A Fantasia Sul América para clarineta solo, objeto de
Assim, Claudio Santoro era um músico de notável atuação estudo do presente trabalho, foi composta em março de
artística, educacional e política. Por conta disso, recebeu 1983 a partir de uma encomenda para o Concurso Jovens
em 1946 uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim Intérpretes da Música Brasileira, do qual Santoro participou
para estudar nos Estados Unidos, porém ao negar-se a da banca (SANTORO, 2012). Em seguida, a peça foi dedicada
assinar um documento informando que não era membro ao clarinetista pernambucano Luiz Gonzaga Carneiro
do partido comunista (MARIZ, 1994, p.20), Santoro teve (Gonzaguinha), amigo do compositor. Assim, o tópico a
seu visto negado para ingressar no país norte-americano. seguir destina-se a realizar uma segmentação formal a partir
No ano seguinte, Santoro consegue outra bolsa de estudos, da análise motívica da obra, identificando seus elementos
dessa vez para estudar composição no Conservatório constitutivos e procurando elaborar e responder questões
Nacional de Paris com Nadia Boulanger e regência com investigativas, além de fornecer subsídios que podem
Eugène Bigot. Ainda em 1947, o compositor participou auxiliar o executante em suas escolhas interpretativas.
do Congresso de Compositores Progressistas, realizado na
cidade de Praga. Essa participação representou um marco 4 - Fantasia Sul América para clarineta solo:
na vida de Santoro, pois o influenciou diretamente na
forma de pensar sobre a produção musical brasileira. análise
A peça encontra-se dividida em duas seções (A e B),
Após os estudos em Paris, Santoro retornou ao Brasil que por sua vez se subdividem em quatro subseções (a1,
em 1949, mesmo ano em que sua Sinfonia n° 3 (1949) a2, b1 e b2). A Seção A compreende os c.1-20, com a
foi premiada no Berkshire Music Center de Boston. subseção a1 compreendendo os c.1-9 (coincidindo com
Essa sinfonia marcou a ruptura do compositor com o o término da cadência) e a subseção a2 compreendendo

190
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199.

os c.10-20. A Seção B inicia-se no c.21 e vai até o final fatores como andamento, a atividade rítmica e a
da peça no c.41, tendo a subseção b1 do c.21-29 e a variação de dinâmica fornecem uma compreensão
subseção b2 do c.30-41, conforme demonstra o Ex.1. mais ampla sobre a Fantasia, reiterada pela forma da
sua condução melódica” (FRAGA, 2008, p.49).
O conhecimento acerca da segmentação formal da
Fantasia Sul América compreende um importante As três primeiras notas da peça, de acordo com a teoria
passo para que o intérprete possa fundamentar suas pós-tonal, compreendem as classes de notas Fá#–
escolhas interpretativas. A partir deste conhecimento Ré#–Sol (Ex.2a), que dispostas em sua forma normal
é possível perceber que elementos como cadência4, Più apresentam-se como [Ré#, Fá#, Sol] (Ex.2b). Essas classes
Mosso e frullato, por exemplo, não surgem na obra de de notas pertencem à classe de conjuntos 3-3 (014),
forma aleatória, como veremos no decorrer do presente cujo vetor intervalar é (101100). Essa classe de conjuntos
trabalho, mas sim, são colocados estrategicamente permite apenas a geração dos seguintes intervalos: 2ªm
pelo compositor ao final de cada seção, ou subseção e (Fá#–Sol), 3ªm (Ré#–Fá#) e 3ªM (Ré#, ou Mib–Sol), além
oferecem coesão à obra. Desse modo, a percepção destes de suas inversões, evidentemente. A classe de conjuntos
elementos como elementos de coesão pode auxiliar o 3-3 (014) é um subconjunto da coleção Hexatônica, o que
intérprete na coerência em suas escolhas interpretativas. define em grande parte a sonoridade característica da
peça em virtude do conflito entre a terça menor e a terça
Composta para clarineta em Sib5, a Fantasia Sul maior. Assim, os intervalos de 2ªm, 3ªm e 3ªM aparecem
América possui uma grande dramaticidade, com diversas vezes no decorrer da peça e servem como base da
grandes contrastes de dinâmica, andamento e registro. estrutura motívica da obra.
Apresenta notas com grande duração temporal,
hierarquicamente importantes, que assumem a função A Seção A inicia-se apresentando o motivo principal que
de centros tonais. Em seguida, a peça contrasta esses define a série geradora do tema cujos intervalos aparecem
centros tonais com a aceleração gradual de notas que como estrutura intervalar básica em diversos trechos
possuem uma duração temporal bem menor (como da obra. Imediatamente no c.2 (Ex.3a), por exemplo,
fusas, por exemplo), que reconduzem a melodia da encontramos os intervalos de 3ªm, 3ªM e 2ªm, além de
obra até outras notas com maiores durações temporais. podermos encontrá-los em diversos outros momentos da
Explora todos os registros da clarineta6, desde o grave peça (Ex.3b e Ex.3c), proporcionando assim uma unidade
ao superagudo, além de apresentar planos de dinâmica motívica intervalar, conforme veremos a seguir por meio
que vão do pianíssimo ao fortíssimo. “Combinados, dos Ex.3a, 3b e 3c:

Seções Subseções Compassos


a1 1–9
A
a2 10 – 20
b1 21 – 29
B
b2 30 – 41
Ex.1 - Quadro com a segmentação formal da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

a) b)

Ex.2a e 2b - Motivo principal da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro
e sua configuração em forma normal.

191
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199

Ex.3a, 3b e 3c - Utilização dos intervalos de 3ªm, 3ªM e 2ªm como estrutura base nos diversos trechos da Fantasia Sul
América para clarineta solo de Claudio Santoro

No c.4, podemos eleger as notas Solb4, Láb4 e Réb5 (série atenção para o fato de que as suas últimas quatro notas:
de quintas) como pontos de apoio para o executante Fá5–Mi5-Sol#5–Lá5, ou (5, 4, 8, 9), consequentemente as
nesse arpejo, assim como podemos eleger a altura Sol quatro últimas notas da subseção a1, pertencem à classe
como centro tonal (tonal aqui no sentido de classe de de conjuntos 4-7 (0145) que apresenta simetria inversiva
nota, não de tonalidade) nos c.4-5 (Ex.4). a T5I, com eixo de simetria em 2/3 – 8/9; no caso em
discussão, em torno de 0/1 – 6/7 (ver Ex.7b abaixo). Essa
Como demonstra o Ex.5, nos c.8-9, Santoro apresenta uma classe de conjuntos 4-7 (0145) reaparecerá posteriormente
alternância entre 3ªm e 3ªM, importante e expressiva faceta exercendo importante função estrutural na obra.
utilizada pelos compositores pós-tonais para afastar-
se da sonoridade tonal e assim, distinguir sua música da A subseção a2 inicia-se no c.10 e sugere a nota Ré4
música desse sistema, haja vista que os intervalos de 3ªM como centro tonal. Os c.10-11, e os dois primeiros tempos
e 3ªm representam a chave desse sistema de tonalidades do c.12, possuem um caráter transitório e conduzem o
maiores e menores. Nesse trecho, sugerimos ao intérprete discurso musical da obra para a melodia que se inicia no
que execute as tercinas de forma marcada e pesante a terceiro tempo do c.12 e, definitivamente, elege a nota
fim de valorizar a diferença sonora entre os intervalos de Ré4 como centro tonal do trecho e a coloca como pedal
3ªm e 3ªM, como também um pequeno ritardando nas três nos próximos c.13-14, resolvendo cromaticamente no
últimas colcheias: Sol4–Si4–Sol4, para preparar a cadência Mib4 do terceiro tempo do c.14, conforme demonstra o
melódica que se segue no c.9 (vide Ex.3c acima). Ex.6. Nesse trecho, sugerimos ao intérprete que realize
um pequeno ritardando nas três últimas notas: Sib2–
Na cadência melódica do c.9, podemos perceber a forte Solb3–Mib3, que antecedem ao Ré4 como pedal a partir
incidência dos intervalos de 3ªm e 2ªm, e chamamos a do terceiro tempo do c.12 a fim de criar uma expectativa

192
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199.

Ex.4 - Pontos de apoio para o executante durante o arpejo do c.4 e eleição do Sol como centro tonal nos c.4-5 da
Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

Ex.5 - Alternância entre os intervalos de 3ªm e 3ªM nos c.8-9 da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio
Santoro.

Ex.6 - Utilização da nota Ré4 como pedal e eleição do mesmo como centro tonal entre os c.10-14 da Fantasia Sul
América para clarineta solo de Claudio Santoro.

no ouvinte e prepará-lo para perceber a eleição do Ré4 e mais longa nota da peça, para o Dó5 do c.20 (Ex.7c);
como pedal e novo centro tonal. que essas alturas mantêm entre si a relação de trítono
(três tons inteiros); e que essa relação serviu como base
Os c.16-20 compreendem os últimos compassos da para a estrutura composicional da obra, como veremos no
subseção a2 e, consequentemente, figuram como os decorrer do presente texto.
últimos compassos da Seção A. Elegemos as notas
Sol#5 (c.16), Sol5 (c.17), Si5 (c.19) e Dó5 (c.20) como A Seção B e, consequentemente, a subseção b1 iniciam-
importantes centros tonais da estrutura e condução se com a indicação de Tempo I no c.21 e apresentam um
melódica desse trecho (Ex.7a). Essas notas: Sol#–Sol–Si– Dó#4 que desce cromaticamente até o Lá3 do c.22, como
Dó, ou (8, 7, B, 0), são uma transposição a uma terça veremos a seguir no Ex.8.
menor (T3) das notas: Fá–Mi–Sol#–Lá, ou (5, 4, 8, 9),
utilizadas como ápice final da cadência melódica do Nos c.23-25, Santoro simula uma polifonia a duas
c.9 e, consequentemente, final da subseção a (Ex.7b). É vozes e apresenta, no c.23, essas duas vozes divergindo
importante ressaltar também a mudança de andamento cromaticamente para o Ré4 (voz superior) e Ré3 (voz
por meio da indicação de Più Mosso nos últimos quatro inferior). Vale ressaltar que o compositor parte exatamente
compassos da Seção A (Ex.7a). Chamamos a atenção para do Sol#3 no c.23 e que este, além de dividir a oitava entre
o fato de que a Seção A conduziu o Fá#4 do c.1, primeira o Ré3 e o Ré4 exatamente ao meio, funciona como um

193
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199

a)

b)

c)

Ex.7a, 7b e 7c - Eleição das notas Sol#5–Sol5–Si5–Dó5 como importantes centros tonais do trecho; conjunto (5, 4, 8,
9) utilizado como ápice da cadência melódica do c.9; condução melódica do Fá#4 do c.1 para o Dó5 do c.20 e a relação
de trítono existente entre as alturas.

eixo central entre essas duas notas e estabelece uma ter sido intencionalmente adiada para o c.28. Mais uma
relação de trítono com ambas. No c.24, Santoro elege o vez podemos perceber a relação de trítono mantida entre o
Ré3 como centro tonal, e este desce, cromaticamente, até Dó6 e a primeira altura da peça, o Fá# (vide Ex.2a acima).
o Sib2 do c.25, como demonstra a seguir o Ex.9.
Após o ápice atingido com o Dó6 no c.28, Santoro apresenta
A partir da anacruse do c.26, Santoro inicia uma um trinado da nota Si3 com o Dó# imediatamente superior,
movimentação e progressão melódica que culmina no que prepara a cadência melódica do c.29 (Ex.11). Esta cadência
Dó6 do c.28, nota mais aguda da obra e principal centro é muito semelhante, em sua estrutura intervalar e sonora, à
tonal na condução melódica desta seção (Ex.10). Este progressão melódica do c.7 (vide Ex.3b acima) e praticamente,
Dó6 representa o ápice da peça e poderia muito bem ter em ambos os trechos, Santoro faz uso das mesmas notas,
acontecido no c.20, quando aparece o Dó5 (vide Ex.7a alterando apenas, em alguns momentos, o registro em que
acima), mas a expectativa criada pelo compositor parece estas aparecem (comparar Ex.3b acima e Ex.11).

194
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199.

Ex.8 - Indicação de Tempo I no c.21 e apresentação do Dó#4, descendo cromaticamente até o Lá3 do c.22 da Fantasia
Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

Ex.9 - Simulação de polifonia a duas vozes divergindo cromaticamente; utilização da nota Sol#3 como eixo central no
c.23 e sua relação de trítono com a altura Ré; eleição da nota Ré como centro tonal no c.24 e sua descida cromática
até o Sib2 do c.25 da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

Ex.10 - Movimentação e progressão melódica que se inicia com a anacruse do c.26 e culmina no Dó6 do c.28 da
Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

Ex.11 - Preparação para a cadência, e cadência melódica no c.29 apresentando as mesmas alturas que foram utilizadas
no c.7 da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

195
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199

Da mesma forma como a subseção a1 se encerra com uma Fá#2 ao Dó5 entre os c.36-37 (Ex.13a). Assim, mais uma
cadência melódica no compasso 9 (vide Ex.3c acima e Ex.7b vez podemos perceber a relação de trítono existente
acima), a subseção b1 também possui em seu momento entre essas duas alturas (Fá#–Dó). A partir do c.36 a peça
final uma cadência melódica que figura no c.29 (vide Ex.11 apresenta um caráter conclusivo (uma espécie de codetta)
acima). Chamamos a atenção para o fato de que a subseção que fica ainda mais claro com a indicação de Più Mosso
b1, que culminou com o Dó6 no c.28, nota mais aguda no c.39 (Ex.13b). Chamamos a atenção para o fato de que
da peça (vide Ex.10 acima), conduziu a melodia deste Dó6 Santoro também coloca a indicação de Più Mosso nos
para o Fá#4 do c.30, inicio da subseção b2 (Ex.12a) e, mais últimos compassos da Seção A, c.17-20 (vide Ex.7a acima).
uma vez, podemos constatar a relação de trítono (Dó–Fá#)
entre as notas hierarquicamente mais importantes da obra. Como nos mostra o Ex.14a, a progressão melódica dos
Dessa maneira, ratificamos a importância deste elemento c.37-38 apresenta um misto de 3ªm, 3ªM e 2ªm com a
intervalar na estrutura compositiva da obra. formação de trítonos (Fá–Si; Dó–Fá#; Ré–Sol#). Assim,
podemos sugerir que esta passagem representa uma
Assim como a subseção a1 (vide Ex.2a acima), a subseção espécie de síntese de elementos importantes da estrutura
b2 também tem inicio com um longo e expressivo Fá#4 da obra e conduz a melodia até o Sib5 do c.38 (Ex.14a)
(ver Ex.12a). Após a execução dessa nota, a melodia se que, através da indicação de Più Mosso chega até o Si2 do
movimenta e, dessa maneira, conduz o discurso musical da c.40 (Ex.14b), e que este Si2 pode ser compreendido como
obra do c.30 ao Fá#2 do último tempo do c.35, que logo a resolução do trítono (Fá#–Dó), que elegemos como
em seguida, apresenta um trinado com a nota Sol2, sob principais pilares da estrutura compositiva da obra e que
a indicação de uma fermata (Ex.12b). Assim, chamamos conduzem o discurso musical da Fantasia Sul América do
a atenção para a reincidência dos intervalos de 3ªm, 3ªM c.1-20, atingindo o ápice no c.28 e resolvendo no c.40
e 2ªm na progressão melódica descendente que figura no (vide Ex.2a, Ex.7c, Ex.10 acima e Ex.14b).
final do c.35 e se finaliza com a nota Fá#2, como também
para o fato de que, assim como no final da subseção a2 e, A última nota da peça, o Lá5 do c.41, aparece entre
consequentemente da Seção A, Santoro faz uso da técnica parênteses, pois estes indicam que essa última nota
de sonoridade expandida conhecida como frullato, aqui, serve apenas, ou funciona como terminação para o
próximo ao término da subseção b2, ele reutiliza essa mesma glissando que teve início na nota Si2 do c.41 (vide Ex.14b
técnica de sonoridade expandida (vide Ex.7a e 7c acima). acima). “Além disso, a simetria encontrada na divisão
das partes da obra, sendo vinte compassos na primeira e
A subseção b2 segue-se com a indicação de Tempo I no vinte na segunda, sugere que esse compasso tem pouca
segundo tempo do compasso 36 e conduz a melodia do importância estrutural” (FRAGA, 2008, p.54).

Ex.12a e 12b - Utilização de um longo e expressivo Fá#4 no início da subseção b2;


reincidência dos intervalos de 3ªm, 3ªM e 2ªm; e utilização de frullato no c.35 da
Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

196
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199.

Ex.13a e 13b - Indicação de Tempo I; relação de trítono entre as alturas Fá# e Dó; e indicação de Più Mosso no
c.39 da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

Ex.14a e 14b - Utilização dos intervalos de 3ªm, 3ªM, 2ªm e trítonos na progressão melódica do c.37; indicação de Più Mosso
no c.39; e resolução do trítono (Fá#–Dó) no Si do c.40 da Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro.

5 - Conclusão
A Fantasia Sul América para clarineta solo, composta sexto semestre (de um total de oito) do curso, figurando
em 1983 pelo manauara Claudio Santoro, apresenta ao lado de obras como as Three Pieces para clarineta solo
um elevado grau de exigência técnica e um alto padrão do compositor Igor Stravinsky (FREIRE, 2000, p.8).
artístico. Assim, na catalogação realizada por Maurício
Carneiro, a obra figura entre as peças para clarineta A análise musical compreende uma importante ferramenta
solo de nível avançado (CARNEIRO, 1998, p.55). Além capaz de elaborar perguntas investigativas e fornecer
disso, em sua proposta curricular para a graduação em subsídios que auxiliem na interpretação e performance
clarineta, Ricardo Durado Freire, Professor da Cátedra de musical. Dessa maneira, a relação dialética entre análise e
Clarineta da UnB, sugere que a Fantasia seja incluída no performance, onde uma informa e complementa a outra,

197
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199

é denominada por Nicholas Cook como performance decorrer da mesma), entendemos que a análise proposta
estruturalmente informada7 (COOK, 1999, p.249), na teve como objetivo oferecer subsídios para fundamentar,
qual a análise é utilizada como uma ferramenta para as ou invalidar, possíveis intenções interpretativas do
decisões a serem tomadas. executante. Com isso, concluímos que esse trabalho
apresentou informações relevantes sobre uma importante
Nesse sentido, embora o presente texto não tenha a obra da literatura brasileira para clarineta solo, a Fantasia
pretensão de apresentar considerações interpretativas Sul América, além de divulgar a obra do compositor
definitivas como resultado final da análise realizada Claudio Franco de Sá Santoro.
(salvo algumas sugestões tecidas pelos autores no

Referências
CARNEIRO, Maurício Soares. A Música de Câmara Brasileira: clarineta e piano, clarineta solo. Monografia (especialização
em música). Área de Música – Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 1998.
COOK, Nicholas. Analyzing Performance and Performing Analysis. In: Rethinking Music. Nicholas Cook; Mark Everist
(orgs.) New York: Oxford University Press, 1999.
Dicionário Grove de Música: edição concisa. Editado por Stanley Sadie; editora - assistente Alison Latham; tradução de
Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edições, 1994.
FRAGA, Vinícius de Sousa. Estudo Interpretativo Sobre A Fantasia Sul América Para Clarineta Solo de Claudio Santoro.
Dissertação de Mestrado, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, 2008.
FREIRE, Ricardo Dourado. Currículo de Clarineta Baseado na Música Brasileira In Revista da Associação Brasileira de
Clarinetistas, v.1, Joel Barbosa (ed.). Salvador: GrafUFBA, 2000.
MARIZ, Vasco. Claudio Santoro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
______. História da Música no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
SANTORO, Alessandro. A Obra de Claudio Santoro. Última atualização em 2012. Disponível em: <http://www.claudiosantoro.
art.br> Acesso em: 11 abr. 2012.
SANTORO, Claudio Franco de Sá. Fantasia Sul América para Clarineta Solo (1983). Nova Edição realizada por Vinícius de
Souza Fraga, Salvador, 2007.
STRAUS, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Theory. 3 ed. New York: Pearson, 2005.

Leitura recomendada:
COOK, Nicholas. A Guide to Musical Analysis. 1 ed. Oxford: Oxford UK, 1994.
KATUNDA, Eunice. Atonalismo, Dodecafonia e Música Nacional In Fundamentos: revista de cultura moderna. São Paulo,
nov. 1952.
SANTORO, Claudio. Considerações em Torno da Música Contemporânea Nacional In Música Viva, ano 2, n.10-11, p.5. Rio
de Janeiro, abr./maio 1941.
______. Problemas da Música Contemporânea Brasileira em Face das Resoluções e do Apelo do Congresso de Praga In
Fundamentos: revista de cultura moderna, v.2, n.3, p.233-240, São Paulo, ago. 1948.

198
SANTOS, G. P.; BORDINI, R. M. Fantasia Sul América para clarineta solo de Claudio Santoro... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.189-199.

Notas
1 Vídeo contendo performance musical ao vivo da Fantasia Sul América para clarineta solo (1983) de Claudio Santoro. Nele, a peça é executada
por Gueber Pessoa Santos durante o 9° Encontro Brasileiro de Clarinetistas, realizado em junho de 2010 na cidade de Brasília (DF). Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=PSdfMTSuUZQ>. Acesso em: 15 abr. 2012.
2 No presente trabalho, os autores seguem a nomenclatura utilizada por Joseph Nathan Straus no que se refere à teoria de conjuntos de classes de
notas (STRAUS, 2005).
3 O dodecafonismo compreende um sistema composicional construído com base na escala dos 12 sons. Dessa forma, as 12 notas cromáticas da
escala de temperamento igual são arrumadas numa ordem particular formando, dessa maneira, uma série que serve de base para a composição
musical. Assim, essa série pode ser usada em sua forma original, ou invertida, ou em movimento retrógrado, ou retrógrado invertido. Em cada
uma dessas formas a série pode ainda ser transposta para qualquer altura (cada série pode, portanto, ter 48 formas possíveis). Desenvolvimentos
posteriores da teoria dodecafônica introduziram a ideia de se utilizar apenas segmentos de seis, quatro ou três notas de uma série como elementos
de uma composição. O dodecafonismo, tal como originalmente imaginado por seu criador (Schoenberg), conseguiu romper com a tonalidade,
apesar de compositores posteriores, especialmente Berg, terem encontrado meios de utilizar a técnica dodecafônica em um contexto tonal, como
de fato fez também o próprio Schoenberg (GROVE, 1994, p.271 e 272).
4 O termo cadência, no presente trabalho, refere-se à cadenza, termo italiano que indica uma passagem musical a ser executada livremente pelo
intérprete.
5 A clarineta em Sib é um instrumento transpositor no qual as notas lidas na partitura soam uma segunda maior abaixo do que estão escritas. Todos
os exemplos nesse trabalho estão conforme aparecem na partitura e, portanto, soam uma segunda maior abaixo.
6 A clarineta possui uma extensão sonora que abrange do Mi2 ao Dó6, enquanto que a Fantasia Sul América apresenta o Fá2, no compasso 11, como
nota mais grave da peça e o Dó6, no compasso 28, como nota mais aguda da mesma. Assim, a Fantasia Sul América explora praticamente toda a
extensão sonora do instrumento.
7 “... structurally informed performance”.

Gueber Pessoa Santos é Doutorando e Mestre em Execução Musical (Clarineta) pela Universidade Federal da Bahia,
sob a orientação do professor Dr. Pedro Robatto (2012); licenciado cum laude em música pela Universidade Federal de
Pernambuco (2008); formado pelo Centro Profissionalizante de Criatividade Musical do Recife (2002) e pelo Conservatório
Pernambucano de Música (2002). Músico titular da Orquestra Sinfônica do Recife desde o ano de 2003, já dividiu o palco
com artistas consagrados da MPB a exemplo de Sivuca, Dominguinhos, Quinteto Violado, Spok e Edu Lobo. Tem atuado
como músico convidado na Orquestra do Festival Virtuosi (PE) e na Orquestra Sinfônica da Bahia, além de desenvolver
atividades camerísticas nas mais variadas formações. Em 2010 organizou e liderou o Quinteto Leão do Norte a fim de
participar da 13ª edição do Projeto Sonora Brasil, promovido pelo Departamento Nacional do SESC, realizando assim uma
turnê composta por 83 concertos, contemplando todas as regiões do país e apresentando a obra de Claudio Santoro e
Guerra-Peixe, incluindo no programa a Fantasia Sul América para clarineta solo.

Ricardo Mazzini Bordini possui graduação em Composição pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1986),
graduação em Regência pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987), mestrado em Música pela Universidade
Federal da Bahia (1993) e doutorado em Música pela Universidade Federal da Bahia (2003). Atualmente é professor
adjunto da Universidade Federal da Bahia. Tem publicado artigos sobre análise e composição musical com foco em teoria
pós-tonal. Coordena um grupo de pesquisa que produz material didático para disciplinas teóricas abrangendo harmonia,
contraponto, instrumentação e orquestração, análise e composição. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em
Composição Musical, atuando principalmente nos seguintes temas: análise musical, teoria pós-tonal, música brasileira,
composição musical, execução musical, informática e hipermídia em música, e composição algorítmica.

199
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

O Concerto para Clarineta, Op.57


de Carl Nielsen: contexto, análises e
interpretações
Vinicius de Sousa Fraga (UFBA, Salvador, BA)
vinicius.clar@gmail.com

Resumo: Composto em 1928, o Concerto para Clarineta, Op.57, de Carl Nielsen (1865-1931) tornou-se uma obra
fundamental na literatura da clarineta no século XX. A presente pesquisa procura discutir algumas de suas questões de
performance através de uma contextualização da época em que foi escrito, com ênfase nos aspectos relevantes sobre o
compositor e a produção da obra. São observadas as divergências entre a edição da Samfundet e os originais manuscritos.
Por meio de uma análise da obra, busca-se discutir sua recepção inicial e seu papel na literatura da clarineta.

Palavras-chave: Carl Nielsen; concerto para clarineta; análise e interpretação musical.

Carl Nielsen’s Clarinet Concerto, Op.57: context, analysis and performance

Abstract: Composed in 1928, Carl Nielsen’s Clarinet Concerto, Op.57 became a fundamental work in the twentieth-
century clarinet literature. This study discusses some of the work’s performance aspects by means of examining its
context related to its composer and compositional procedures. The discrepancies between the Sanfundet edition and the
composer’s manuscripts are observed. Analysis aspects of the work support the discussion about its initial reception and
its role in the clarinet literature.

Keywords: Carl Nielsen; clarinet concerto; music analysis and interpretation.

1 – Introdução
Composto em 1928, o Concerto para Clarineta, Op.57, gravações pesquisadas demonstram que esse caráter
de Carl Nielsen (1865-1931) foi dedicado ao clarinetista subjetivo da performance permite certo grau de flexibilidade
dinamarquês Aage Oxenvad como parte da promessa da interpretação como um ato de reconstrução que
de composição de um concerto para cada membro justapõe o mundo do compositor e do intérprete (NATTIEZ,
do quinteto de sopros do qual Oxenvad fazia parte. 1993, p.144). Ainda assim, a tímida menção na literatura
Gradativamente, o Concerto tornou-se uma obra à gravação do Concerto de Nielsen pelo jazzista Benny
importante na literatura da clarineta no século XX, Goodman demonstra que a interpretação não pode ser
sendo executado em concursos e concertos, além de definida somente como expressão de sentimentos, já que
amplamente gravado por instrumentistas do mundo todo. incorpora aspectos como a estética, a filosofia e a história
(LABOISSIÈRE, 2007, p.187). A questão implícita nesse caso
Com frequência, a linguagem do compositor associada é que ao intérprete (e ao público) informado, a coerência
à textura densa e à complexidade estrutural dessa dessas escolhas está ligada, entre outros aspectos, à sua
obra suscitam questões inerentes à sua performance relação com as evidências conhecidas sobre a obra e seu
que permitem múltiplas abordagens interpretativas. As contexto, e ao uso que se faz delas.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 19/03/2012- Aprovado em: 18/06/2012
200
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

A presente pesquisa procura discutir algumas dessas 2008; PETERSEN, 2002; BRYANT, 2001, p.207; BINGHAM,
questões através de uma revisão na literatura específica 1990; NELSON, 1987).
sobre o Concerto para Clarineta, Op.57, de Carl Nielsen. Amigo pessoal de Carl Nielsen e de origem camponesa
Inicialmente, buscou-se explorar a contextualização à tal qual o compositor, Oxenvad foi um amante da vida
época do Concerto, com ênfase nos aspectos relevantes no campo e optou por viver numa pequena casa na
sobre o compositor e a produção da obra. Em seguida, periferia de Copenhagen. Ele era tido como um homem
assinalam-se algumas das divergências encontradas na de humor instável; considerado um homem de “caráter
literatura que compara a edição impressa da Samfundet forte” e cuja personalidade era uma “mistura enigmática
conhecida e os originais manuscritos. Passando por uma de ternura e agressão” (BRYANT, 2001, p.207), e ainda um
abordagem analítica da obra, a pesquisa busca discutir “clarinetista único e temperamental” (PETERSEN, 2002,
ainda aspectos interpretativos do Concerto, com ênfase p.xxxvi). Ele próprio julgava-se como um “rabugento
na sua recepção inicial e o que representou desde então terrível” quando contrariado, além de considerar que
até nossos dias. a clarineta era um instrumento somente para homens
(NELSON, 2012b). Sobretudo, ele mostrava-se cético em
2 - Contextualização histórica relação à performance da clarineta que era feita fora da
De origem camponesa, o dinamarquês Carl Nielsen Dinamarca, e um de seus alunos lembra que, quando da
aprendeu a tocar violino, piano e trompete desde cedo. vinda de Louis Cahuzac a Copenhagen, Oxenvad teria
Nascido em Sortelung em 9 de janeiro de 1865, Nielsen incentivado seus pupilos a vê-lo, “mas não muito de
tornou-se o principal compositor de seu país e um dos perto” (NELSON, 1987, p.31).
principais sinfonistas do século XX (BURROWS & WIFFEN,
2007, p.312). Defensor do folclore e do nacionalismo Apesar da personalidade controversa, Oxenvad
musical, ele não demonstrou interesse pela escola de demonstrava um conhecimento dinâmico e amplo do
Schoenberg (BUTLER, 2004, p.77), podendo ser considerado processo de performance. Muito provavelmente ele tocava
um dos primeiros a transformar os complexos harmônicos com embocadura dupla1 e fazia as próprias palhetas,
verticais de Strauss e Reger na polifonia linear moderna atividade que ensinava aos seus alunos (NELSON, 1979b).
(Jacobsen citado por NELSON, 1987, p.40). Esse aspecto, Além disso, pode ter sido o primeiro a utilizar o sistema
realçado pela sua predileção por obras contrapontísticas Boehm na orquestra em que tocava e, ao que tudo
de compositores como Palestrina, Bach e Mozart, indica, na Dinamarca (NELSON, 1979b). Ele estudou no
associado à aparente constituição rústica e primitiva de Royal Conservatory de 1903 a 1905 com Carl Skjerne,
sua música são suas características marcantes (NELSON, ele próprio um discípulo de Richard Mühlfeld, e ocupou
1987, p.32-30). Niels KRABBE argumenta ainda como a vaga de primeiro clarinetista da Royal Chapel Orchestra
a imagem do compositor harmonioso que a tradição de 1919 até 1944, embora já fosse integrante dela desde
evoca demonstra ser apenas a aparência externa da 1909 (NELSON, 1987, p.31). Não obstante, firmou-se
sua personalidade, e que a vida pessoal de Nielsen, suas como uma referência na clarineta em seu tempo, sendo
dúvidas e receios, além da frustração com a recepção com convidado a participar do Concertgebouw em Amsterdã
muitas de suas obras o aproximam mais do homem que (convite que não aceitou), e da première dinamarquesa da
do mito (KRABBE, 2012). versão em trio da História do Soldado de Igor Stravinsky,
com o compositor ao piano (NELSON, 1987, p.31).
Sua obra para clarineta não é extensa, e inclui uma curta
Fantasia para clarineta e piano de 1891, e sobretudo música De fato, como clarinetista, Aage Oxenvad era tido em alta
de câmara, como a Serenata in Vano de 1914 e o famoso conta por Carl Nielsen. Em uma carta de recomendação
Quinteto de Sopros de 1922. As poucas obras escritas em fevereiro de 1921, o compositor afirmava que não
para o instrumento somado aos fatores conhecidos sobre só seu talento e habilidade como instrumentista eram
a contextualização do Concerto para Clarineta indicam excepcionais, como sua força criativa e conhecimento
que, como muitos compositores, a sua contribuição teórico eram incomuns (PETERSEN, 2002, p.xxxvii).
provavelmente não teria se dado sem a participação de um Oxenvad demonstrava que a consideração que tinha
intérprete que o influenciasse. Essa relação compositor- de Nielsen era recíproca, nutrindo um sentimento
intérprete não só é comum na literatura da clarineta como de adoração pelo compositor. Segundo suas próprias
tornou possível obras importantes para o seu repertório. palavras, Nielsen era o grande compositor da Dinamarca
Exemplo disso é a colaboração entre Mozart e Anton (NELSON, 2012b).
Stadler, Spohr e Hermstedt, Weber e Baerman, Brahms
e Mühlfeld, citando ainda Boulez e Damiens (ARAÚJO, Em 1922, Nielsen compôs o seu Quinteto, Op.43, para o
2006, p.3). No caso do Concerto para Clarineta, Op.57 grupo do qual Oxenvad fazia parte, motivado inicialmente
de Carl Nielsen, essa colaboração foi com um intérprete por tê-los ouvido ensaiar a Sinfonia Concertante de
em particular, Aage Oxenvad (WESTON, 1982, p.190). O Mozart (FELUMG, 2012). A promessa de composição de um
clarinetista atuou conjuntamente com Nielsen durante a concerto para cada integrante do grupo não se realizou
sua composição, e há várias referências que sugerem certa de imediato, e somente foi concretizada em partes; em
similaridade entre o caráter do Concerto e a personalidade 1926 ele escreveria o Concerto para Flauta e em 1928, o
de Oxenvad (NELSON, 2012a; GIACONA, 2009; MONROE, Concerto para Clarineta, Op.57, “uma velha promessa a

201
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

Oxenvad” segundo o compositor em entrevista datada de Concerto para Clarineta sua última obra de grande
janeiro do mesmo ano (PETERSEN, 2002, p.xxxviii). porte (BRYANT, 2001, p.207; NELSON, 1979a, p.47).
As mensagens trocadas entre compositor e intérprete O clarinetista para quem a obra foi composta faleceu
demonstram que eles discutiam regularmente os detalhes em 1944, treze anos após a morte do compositor. E
da obra durante a sua composição. Em meados de junho embora ele tenha sido um profissional bem sucedido
de 1928, Nielsen pedia a Oxenvad que viesse almoçar com com uma influência no ensino e na performance da
ele e trouxesse o instrumento porque ele estava quase clarineta na Dinamarca, sua trajetória ficaria marcada
acabando e queria ver “algumas coisas sobre o staccato principalmente pela sua relação com o Concerto Op.57
outra vez” (PETERSEN, 2002, p.xxxix), numa referência de Nielsen. Por ocasião da morte de Aage Oxenvad, o
provável à longa passagem em staccato dos c.189 a c.195. oboísta Svend Christian Felumb, integrante do quinteto
Nos manuscritos enviados a Oxenvad há um comentário do qual ambos faziam parte, teria escrito que o Concerto
do compositor referente a uma longa passagem em Op.57 não era uma obra para clarineta, mas sim para
legatto dos c.688 a c.6962, onde ele perguntava como o Oxenvad. Ele afirmava que o compositor havia sido
clarinetista poderia gerenciar a questão da respiração. A “profundamente inspirado pela sua maneira peculiar de
resposta tranquilizadora de Oxenvad escrita logo abaixo expressão na clarineta”, e que provavelmente “ele nunca
pede para que ele não se preocupasse que ele daria um teria escrito essa obra sem ter ouvido Oxenvad tocar”
jeito, ao que o compositor torna a responder agradecendo (NELSON, 2012a).
(NELSON, 2012b; PETERSON, 2002, p.xl). Ainda segundo
Oxenvad com relação ao Concerto, Op.57, ele teria
recebido os manuscritos à medida que iam ficando 3 - Comparando as edições e os manuscritos
prontos, com observações amigáveis do compositor entre originais
as notas (OXENVAD, 1928). No verão de 1931, Nielsen havia assinado um contrato
com a Samfundet til Udgivelse of Dansk Musik para
Por volta de agosto de 1928 quando a peça estava terminada, editar e publicar o Concerto, mas não chegou a vê-lo
Nielsen escreveu a Carl Johan Michaelsen dizendo-se pronto (PETERSEN, 2002, p.xliv). A morte prematura do
ansioso para ouvir o que Oxenvad faria dela, e que se ele compositor acontece em meio ao trabalho de preparação
não pudesse fazê-lo, ninguém poderia (PETERSEN, 2002, da versão final, deixando questões em aberto na leitura dos
xli). O Concerto foi estreado em 14 de setembro desse manuscritos da grade orquestral e da redução para piano,
mesmo ano numa audição privada na casa de Carl Johan como demonstram a correspondência entre os editores
Michaelsen, em Højtofte, tendo como solista Oxenvad e a (PETERSEN, 2002, p.xlvi). Assim, embora essa edição seja
direção de Emil Telmányi. Os músicos da orquestra eram a referência provável para boa parte dos instrumentistas
todos integrantes da Royal Orchestra, “trazidos de ônibus que estudam o Concerto, Op.57, quando confrontada com
de Copenhagen” (SCHOUSBOE, 1983, p.301). A primeira os manuscritos originais preservados, é possível perceber
performance pública foi dada no mês seguinte, no dia 11 algumas divergências entre as suas notações.
de outubro, novamente com Oxenvad, Temányi e a Royal
Orchestra; uma segunda foi feita em 10 de dezembro do Em um artigo publicado na revista The Clarinet, o
mesmo ano, desta vez com o compositor como regente clarinetista Eric Nelson chegou à essa conclusão ao
(PETERSEN, 2002, p.xliii). Na ocasião, ele demonstrou analisar comparativamente os manuscritos originais e
maior satisfação com a interpretação de Oxenvad e julgou a versão impressa (NELSON, 1987). NELSON partiu de
que o público teria entendido melhor a performance e a três fontes principais: a grade orquestral mais antiga
obra. A obra foi executada por seis vezes durante a vida (chamada por ele de MS I), a parte solo de Oxenvad,
de Nielsen, sedo que ele conduziria o Concerto Op.57 pela com suas anotações pessoais (MS II) e uma versão final
última vez em 26 de outubro de 1929. da partitura preparada para a sua publicação (MS III).
Ele constatou, por exemplo, que no c.528, diferente da
Com a saúde debilitada desde 1926, quando sofreu o edição impressa, encontra-se nas versões manuscritas
primeiro de uma série de ataques cardíacos (MONROE, uma fermata na primeira das notas Sib em sequência
2004, p.ii), Nielsen veio a falecer em 1931, sendo o quase no fim da linha (Ex1). A fermata é seguida por

Ex.1 - Fermata e cesura na cadência do c.528 tal como consta nos originais manuscritos do Concerto para Clarineta,
Op.57 de Carl Nielsen.

202
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

uma cesura, para então dar a continuidade em agitato. melódico ascendente, mas que são as duas últimas
Nenhuma dessas indicações (incluindo a fermata) que estabelecem uma relação de tensão crescente por
consta na edição da Samfundet. aumento intervalar (meio tom na primeira, Sol-Láb, um
tom na segunda, Dó-Ré, e assim por diante), ainda assim
Outras fontes parecem confirmar a inclusão da fermata não seria possível determinar qual das versões (Ex2.a
e da cesura nesse ponto; a nova edição do Concerto de ou Ex2.b) seria a correta. Segundo o editor da Wilhelm
Nielsen realizada em 2002 pela Wilhelm Hansen3 traz Hansen, o mais provável é que os copistas de ambas
essa alteração, exatamente como demonstrada no Ex1. as cópias tenham se esquecido da alteração nas partes
De acordo com PETERSEN (2002, p.xlvi), ela justifica-se manuscritas (PETERSEN, 2002, p.xlvii).
por ser feita de próprio punho pelo compositor na cópia
do manuscrito original do acompanhamento pelo piano, A pouca quantidade de rascunhos que Nielsen deixou
considerado fidedigno por ser revisado por Nielsen. indica que ele trabalhava as ideias relativas às obras
que compunha no momento da composição, não sendo
Logo em seguida, em outra passagem controversa no costume manter ideias anotadas para futuros projetos.
c.531, a comparação entre manuscritos originais e De fato, esse parece ser um padrão do seu processo
versão impressa pode causar confusão sobre quais composicional (PETERSEN, 2005, p.197). Dessa maneira,
seriam as notas realmente desejadas pelo compositor. De parece razoável supor que as obras podiam sofrer
acordo com NELSON (1987, p.30), na quinta sequência consideráveis alterações por motivos mais variados
de fusas desse compasso, as notas grafadas como Láb possíveis; seja por um pedido do intérprete, uma primeira
e Fáb na partitura editada seria um erro evidente de apresentação pouco convincente, e assim por diante. É
impressão. Ambas as notas seriam na verdade Sol# e Mi, sabido, contudo, que embora seus esboços contenham
respectivamente, alterando a próxima sequência para Lá poucas informações sobre articulações e dinâmicas,
natural, conforme demonstrado nos Ex2.a e Ex2.b. eles são bastante consistentes no que diz respeito à
sua publicação posterior em relação à notação grafada
Entretanto, os trabalhos para a edição da Wilhelm e ao ritmo (PETERSEN, 2005, p.197). Isso pode indicar
Hansen disponíveis no prefácio da obra (PETERSEN, 2002, que a opção de manter a notação tal qual o Ex2.a é a
p.xvii) indicam que, apesar dessas alterações realmente mais adequada por basear-se nesses esboços feitos para
constarem tal como grafado no Ex2.b tanto na parte solo a impressão da obra. Além disso, esse fato pode indicar
manuscrita de Oxenvad quanto na de Emil Telmányi4, que algumas questões eram deixadas em aberto para
elas não são transferidas para a cópia revisada pelo discussões com os intérpretes, mas que outras eram
compositor. Telmányi, entretanto, não era uma referência imprescindíveis em sua opinião, ou ao menos se não
adequada como se verá a seguir. Quanto ao c.531, Elly constituíssem um problema à performance.
PETERSEN argumenta pela manutenção das notas Láb e
Fáb (Ex2.a), uma vez que Nielsen era tido como cuidadoso Esse parece ser o caso desse exemplo em particular, em
ao indicar alterações (PETERSEN, 2002, p.xvii). que a comparação dos manuscritos possibilita entender
como Nielsen e Oxenvad pensaram e solucionaram
Mesmo uma análise fraseológica não chega a sugerir certas passagens. No c.192, página 4, linha 9 da edição
um argumento claro para essa mudança; a sequência da Sanfundet, há uma pausa durante a sequência de
ascendente inicia ainda no compasso anterior com [Dó- staccatos. Nas versões manuscritas pesquisadas, a
Ré-Sol-Láb], [Fá-Sol-Dó-Ré], [Sib-Dó-Fá-Láb] e [Fáb- indicação inicial parece ser a de uma linha contínua de
Láb-Dó-Mi]. Em cada sequência dessas, se considerarmos staccatos, conforme indicado no manuscrito da parte
que as duas primeiras notas iniciam um movimento solo de Oxenvad, Ex3.a.

Ex.2 – Enarmonia verificada na comparação entre versão editada da Samfundet, na qual a última sequência é Láb (a) e
originais manuscritos (b), onde seria Lá natural, no c.531 do Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen.

203
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

Ex.3 – Diferentes grafias no c.192 nos trechos em staccato constantes nos manuscritos originais de Oxenvad (a), na
grade orquestral (b) e na edição Sanfundet (c), do Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen.

Ex.4 - Compassos finais das edições Samfundet (a) e Wilhelm Hansen (b) do Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl
Nielsen, com as diferentes indicações de dinâmica em cada uma.

Entretanto, ao que tudo indica, Oxenvad teria sugerido Observa-se que na parte solista editada pela Samfundet,
ao compositor uma pausa pequena para respiração nesse há duas indicações de crescendo e decrescendo (< >)
trecho (PETERSEN, 2002, p.xlvi). Essa pausa aparece dentro do âmbito do diminuendo geral (Ex4.a). Essas
como correção na grade orquestral manuscrita (Ex3.b), indicações, no entanto, não aparecem na nova edição
bem como na versão editada da Samfundet (Ex3.c) e na da Wilhelm Hansen (Ex4.b), que toma como base para
nova edição da Wilhelm Hansen (PETERSEN & PETERSEN, resolver eventuais duplicidades os manuscritos revisados
2002, p. 206). A longa passagem em staccato constitui-se pelo compositor (PETERSEN, 2002, p.xvi). As fontes
ainda hoje num dos principais problemas técnicos a ser utilizadas pelos editores da Wilhem Hansen constituem-
resolvidos pelo intérprete da obra. A grafia anterior de se, sobretudo, de manuscritos originais autografados
uma linha ininterrupta por seis compassos sugere de fato pelo compositor, que incluem um esquema contendo os
que a dificuldade do trecho seria ainda maior, fator que principais temas da clarineta com uma redução orquestral
Oxenvad deve ter sublinhado ao compositor. em dois pentagramas, projetos nos quais as cópias para
impressão se baseariam, a própria edição da Samfundet
Na edição da Wilhelm Hansen, é possível constatar ainda til Udgivelse af Dansk Musik, além de outras cópias que
diversas alterações nas indicações tanto da parte solo estavam em posse de Oxenvad e foram doadas por ele à
da clarineta quanto da orquestra em relação à edição da Royal Library (PETERSEN, 2002, p.254-256).
Samfundet. De uma forma geral, elas divergem no tocante
ao início e término de algumas ligaduras e à forma de Conforme informação disponível no prefácio da obra, os
ataque de algumas notas. Sobretudo, há uma mudança critérios adotados na edição foram de remover as adições
significativa nos últimos compassos da parte solista, no feitas por amigos e colegas, salvo exceções comentadas no
trecho em decrescendo a partir do c.724 (Ex4). prefácio (PETERSEN, 2002, p.viii). Há indicações que Emil

204
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

Telmányi teria sugerido modificações no Concerto Op.57 que o documento corresponde sob todos os aspectos
que foram aceitas por Nielsen, como a troca do acorde ao revisado por Nielsen. Aos intérpretes interessados
que as trompas executavam dos c.546 a c.551 para que na escrita original do compositor e cujos manuscritos
fizessem a mesma melodia dos fagotes (PETERSEN, 2005, originais são inacessíveis, esse cuidado é fundamental na
p.198). Entretanto, ele também teria, aparentemente por tomada de decisões e escolhas interpretativas.
sua conta, suprimido a parte do baixo da orquestração
logo após a sua première (PETERSEN, 2002, p.314), no que
KRABBE chamou de um dos muitos relatos na tradição de 4 - Análise e interpretação
Nielsen de maestros “atendendo o chamado de melhorar” A orquestração requerida para o Concerto para Clarineta,
sua partitura (KRABBE, 2003, p.103). Como os originais Op.57 de Carl Nielsen parece modesta se comparada às
manuscritos do Concerto que estavam em sua posse grandes massas orquestrais de seus contemporâneos.
estão repletos de alterações que fez de próprio punho Escrito para clarineta em Lá como solista, a instrumentação
(PETERSEN, 2002, p.314-315), e uma vez que não se sabe inclui além das cordas (violinos, violas, violoncelos e
o que seria aprovado por Nielsen e o que não, a decisão de contrabaixo), somente dois fagotes, duas trompas e a
retirar seus acréscimos parece coerente nesse caso. caixa clara. Em sua correspondência, Nielsen deixa claro
que tanto a clarineta solista quanto as partes orquestrais
No entanto, embora esses e outros critérios sejam foram tratados da forma mais individual possível, e que
discutidos previamente no prefácio da obra, que inclui seus objetivos eram a clareza e o rigor (PETERSEN, 2002,
algumas páginas dos manuscritos citados, uma das p.xli), numa narrativa extensa e ininterrupta.
decisões controversas é não indicar graficamente na
partitura quais foram as adições editoriais. As indicações Contudo, mesmo sendo executado continuamente e sem
presentes a esse respeito são confusas, com fontes pausas, o Concerto é normalmente considerado em quatro
pequenas e uma quantidade de detalhes que, sem movimentos distintos na literatura pesquisada (GIACONA,
a visualização do compasso em questão, dificultam 2009; MONROE, 2008; ROSENBERG, 1966; MAEGARD,
o acesso a essas informações. Segundo os editores, 1956; MEYER, 1947), seguindo de uma maneira geral
articulações, dinâmicas, hastes e ligaduras foram a menção que o próprio Nielsen faz a essa divisão em
“normalizadas com base em analogias entre passagens suas cartas (PETERSEN, 2002, p.xxxviii). Essas seções são
semelhantes” (PETERSEN, 2002, p.viii). Essas alterações normalmente nomeadas como 1º Movimento, indo do
não indicadas, entretanto, podem induzir o leitor a pensar começo do Concerto até o c.218 (Ex5.1) e englobando

Ex.5 - Divisão formal do Concerto, Op.57 de Carl Nielsen, numerados como 1 (c.1-218), 2 (c.219-313), 3 (c.314-546) e 4
(c.547 ao fim).

205
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

os andamentos Allegretto un poco, Allegro non tropo, Più Esse tema principal é ouvido já nos primeiros compassos
Allegro e Tempo I; 2º Movimento, Poco Adagio, do c.219 até (conforme demonstrado nos Ex6.1 e Ex6.2), uma quinta
c.313 (Ex5.2); 3º Movimento, do c.314 a c.546 (Ex5.3), que justa que soa como uma dança tradicional camponesa,
inclui o Allegro non tropo, Poco più mosso e Adagio; e 4º no formato longa-curta-longa (Ex6.2), ou “bate-chuta-
Movimento, do c.547 até o fim (Ex5.4), cujos andamentos bate” [o pé] 5. Esse tema inicial do Concerto incorpora
são Allegro Vivace, Poco adagio e Allegro. o elemento de unificação da narrativa, com um caráter
mais movido e agitado na sua forma ascendente, mais
Ainda assim, essa divisão não é unânime ou ainda reflexivo quando aparece invertido, conforme Ex6.3
desnecessária na visão de intérpretes como o clarinetista (MONROE, 2008, pp.20-21). Além disso, o mesmo
Kjell-Inge Stevensson. Para ele, a obra é mais uma motivo é usado por vezes no contraponto da orquestra
questão de humores e alternâncias, sem a necessidade em relação ao solista (Ex6.5).
de uma divisão em seções distintas (Stevensson citado
por NELSON, 1979a, p.76). O segundo tema aparece no c.79, com uma figuração
geralmente descendente e claramente mais lírico que o
De fato, a relação intrínseca entre esses movimentos anterior. Esse contraste com o primeiro tema é reforçado
devido à recorrência do material temático e suas com a indicação de que a passagem seja tocada de forma
transformações durante a obra contribuem para a mais tranquila e em dinâmica piano espressivo. Nesse
unidade da peça, ainda que essas transformações ponto, o acompanhamento orquestral é feito inicialmente
por vezes criem ambientes sonoros absolutamente pelos fagotes, que se movem mais lentamente (em
contrastantes. O próprio Nielsen comentou seu semínimas) com intervalos de terças e quintas entre eles.
entusiasmo nessa obra pela quantidade de coisas Do c.109 em diante, há uma tensão crescente tanto na
expressas a partir de um tema quase infantil, ainda que orquestração quanto na parte solista, construída com
não soubesse dizer se isso seria uma coisa boa ou não uma troca de passagens curtas marcadas pela rapidez
(PETERSEN, 2002, p.xxxvi). Alguns acham que não. e uma estridência cada vez maior entre ambos. Essa
tensão conduz a obra até a primeira grande cadência da
Em seu livro The Clarinet and the Clarinet Playing, David clarineta no c.133, que apresenta uma série de variações
PINO (PINO, 1980) salienta essa prolixidade como um dos principais motivos melódicos e rítmicos usados até
dos principais problemas da obra. De acordo com o então no Concerto, Op.57.
autor, há elementos temáticos suficientes para muitos
concertos, mas eles não são desenvolvidos de uma forma Pouco depois do fim dessa cadência, há uma
significativamente satisfatória (PINO, 1980, p.264). reexposição clara no c.150 (ou n.8 na partitura) em
Além disso, o Concerto se moveria de ideia em ideia que o primeiro tema é ouvido integralmente, embora
sem cuidado ou conexão, e com quase total ausência não haja qualquer menção ao segundo. Em seu lugar,
de recapitulação ou desenvolvimento (PINO, 1980, Nielsen inicia o que GRIMLEY chama de “um cuidadoso
p.264). No entanto, aparentemente o autor tenta incluir processo controlado de colapso composicional”
o Concerto, Op.57 numa visão formal pouco adequada, (GRIMLEY, 2003, p.34), em que a clarineta repete de
e cujas condições a estrutura da peça não satisfaz, forma incisiva o primeiro tema e a orquestra executa
o que pode ter sido determinante no enfoque do seu uma progressão em semicolcheias por ciclos de quintas
comentário. Uma observação atenta demonstra que as que impõe um caráter cada vez mais movido e intenso,
transformações rítmicas e melódicas do tema principal com eventuais trocas de material rítmico e melódico
são a base para o agrupamento das ideias do Concerto entre solista e orquestra, e que segue praticamente até
em torno de seções ou trechos. o início do segundo movimento, Poco Adagio, no c.210.

Ex.6 - Excertos demonstrando a recorrência temática do Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen.

206
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

Ex.7 - Análise do 1º Movimento do Concerto, Op.57 de Carl Nielsen por Ann Marie Bingham.

Esse movimento foi esquematizado pela clarinetista Ann Assim, aspectos como o conflito tonal entre Fá e Mi maior
Marie BINGHAM (BINGHAM, 1990), tal qual como demonstra foram sublinhados pela análise de NELSON (1979a, p.71),
o Ex7. O esquema faz parte de uma proposta analítica da mas também a manipulação melódica na obra, as passagens
autora sobre cada um dos movimentos (Bingham citado politonais (c.210 a c.213, por exemplo) e em escalas de tons
por GIACONA, 2009, p.12), partindo inicialmente da divisão inteiros (c.64 na parte da clarineta), bem como passagens
formal da obra proposta por ROSENBERG (1966). atonais, como na cadência solo da clarineta em staccato
do c.189 ao 196, “ainda que com uma leitura mais pessoal
Além de algumas das características salientadas do termo por parte do compositor” (NELSON, 1979a, p.71).
anteriormente, o esquema de BINGHAM chama Ainda mais longe projeta MONROE (2008), que propõe
a atenção por ressaltar ainda outros aspectos uma análise através de significados extras musicais do
considerados importantes pela autora, como por Concerto, Op.57, e para quem as transformações do tema
exemplo, a delimitação da estrutura da peça com base inicial através da obra são um reflexo de raiva, terror e
no aparecimento de temas e seus desenvolvimentos, loucura (MONROE, 2008, p.23). O autor traça um paralelo
quando considerou o caso. É possível notar a ênfase dada entre a obra de Nielsen com a teoria da doutora Elizabeth
pela autora na forma de exposição, desenvolvimento Kübler-Ross sobre a aceitação da morte iminente através
e recapitulação, seguida de uma coda que encerra o dos estágios de negação, raiva, barganha, depressão e
movimento, tal qual uma forma sonata. aceitação. Para ele, é possível identificar na obra reflexos
desses estágios, que são por sua vez fruto da saúde cada
Sobretudo, são ressaltados os centros tonais da obra, vez mais debilitada de Nielsen à época da composição do
com uma predominância das tonalidades de Fá e Mi Concerto. Mas as evidências que fornecem são insuficientes
maior, cadenciadas pela presença dos acordes de Dó e, para apoiar suas conclusões. Por exemplo, ele assume sem
menos frequentemente, Si maior, respectivamente suas maiores explicações que as variações rítmicas do tema são
dominantes. Passagens modulatórias (Ex7, c.27) e duas “um sinal ao ouvinte que algo não está bem” (MONROE,
atonais (Ex7, c.68 e c.189) são destacadas no esquema. De 2008, p.16). E em alguns aspectos, seu trabalho soa como
acordo com a autora, esses dois acordes, Dó e Si maior, um ajuste dos fatos à teoria.
dominariam a exposição do tema no segundo movimento,
formado por três seções internas distintas, no que chamou Com efeito, é sabido que atribuir ideias extramusicais
de forma A-B-A’. A sua análise nos outros dois movimentos ao discurso musical é uma associação delicada, uma
dá continuidade ao conflito tonal entre Fá e Mi. No vez que o significado é uma construção que envolve
terceiro (em 3/8 a partir do c.305), definido como uma o que o ouvinte conhece a respeito, varia com o
seção intermediária entre o formato ternário proposto no contexto e muitas vezes depende de interpretação
segundo movimento e a forma rondó encontrada no quarto subjetiva (BURKHOLDER, 2006, p.102). Onde o autor
(Bingham citada por GIACONA, 2009, p.14), elas aparecem vê raiva ou desespero, qualquer outro ouvinte poderia
alternadamente na sucessão de temas, cadenciando em ver somente um caráter marcial, ou mesmo cômico. Se
Mi maior após a cadenza final da clarineta no movimento; mesmo noções básicas de consonância e dissonância
no quarto e último movimento, Mi e Si maior aparecem podem gerar significações múltiplas, quando não
eventualmente, mas o esquema sublinha o término do contraditórias (Butler citado por GREEN & BUTLER,
movimento em Fá maior. 2006, p.265), buscar através da análise da estrutura
da obra motivações que a ultrapassem pode ser
Ann Marie Bingham não é única a destacar o papel desse extremamente difícil, quando não impossível.
conflito tonal no Concerto, Op.57 de Nielsen. Abordagens
semelhantes são encontradas na literatura específica Sobretudo, o problema de análises com uma ênfase
(GIACONA, 2009; MONROE, 2008; SIMPSON, 1986; nessa dicotomia tonal do Concerto, Op.57 de Nielsen é
NELSON,1979a), demonstrando um viés analítico que que a tentativa de enquadramento da estrutura da obra
tende a caracterizar a obra, embora não exclusivamente, em modelos formais convencionais tende a sublinhar
por essa ambiguidade tonal. excessivamente aspectos particulares e por vezes de

207
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

menor importância. Em sua análise da 4ª Sinfonia, Op.29 É possível verificar, por exemplo, que na primeira grande
do compositor, WHITE salienta que a ocorrência tonal cadência da clarineta no c.133, que como já referido inclui
em Nielsen possui no geral uma intenção mais ampla, variações melódicas e rítmicas dos temas recorrentes
independente da evidência aural local que possua apresentados no Concerto, o compositor mantém a
(WHITE, 1991, p.xxii). Assim, no Concerto para Clarineta, mesma figuração rítmica durante passagens inteiras
o significado estrutural atribuído ao conflito tonal entre em que os padrões intervalares são sucessivamente
Fá e Mi maior é comprometido pela forma redundante alterados, criando contrastes e direcionando a frase. Por
que os centros tonais diatônicos são considerados na exemplo, na linha descendente do trecho indicado no
sintaxe harmônica do compositor, tornando difícil Ex8.1, o padrão de três notas é repetido e intensificado
discernir detalhes de expressão musical locais com cada vez mais até o reaparecimento do tema inicial
eventos estruturais de importância em maior escala do Concerto de duas formas. Uma é pela aproximação
(GRIMLEY, 2003, p. 31). das duas primeiras notas de cada grupo, que nas cinco
primeiras sequências constituem intervalos de quarta
Do ponto de vista da performance, o reflexo mais e quinta, e posteriormente será de terça. A outra delas
nítido é a negligência de uma série de eventos não é pelo afastamento intervalar da última nota de cada
descritos em detrimento de uma polarização tonal do conjunto da primeira (e da segunda, por extensão). Esse
Concerto. A qualquer intérprete que já estudou a obra, afastamento, combinado com o direcionamento para o
o esquema tonal citado anteriormente por BINGHAM registro grave do instrumento constrói uma tensão que
soa claramente insuficiente para dar conta do fraseado atinge seu ponto máximo quando o tema inicial é ouvido
cromaticamente alterado ou da complexa relação a ‘plenos pulmões’ com a indicação de marcato e ambas
construída entre solista e orquestra. as notas acentuadas (Ex8.1).

Ex.8 - Excertos da cadência da clarineta no c.133 do Concerto, Op.57 de Carl Nielsen,


demonstrando a variação do padrão intervalar na construção das frases.

208
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

Outro dos recursos utilizados é a manutenção de rigoroso utilizando o mesmo motivo melódico (no Ex.9
uma nota pedal que é constantemente reiterada pela são sublinhadas as suas duas primeiras aparições no
clarineta, enquanto as notas superiores, que guardam contexto) e que passa a coincidir em intervalos de
uma relação de sexta entre si (conforme demonstrado oitava (sempre na terceira nota do motivo descendente)
no Ex8.2), tensionam variando a distância entre elas e e décima (na última nota), num padrão que o autor
esse pedal. Essa variação intervalar é utilizada também chamou de 8-10 (GRIMLEY, 2003, p.34), tal como
na construção de motivos rítmicos um pouco maiores, demonstrado no Ex.9.
como os constituídos de dois segmentos (Ex8.a e b,
respectivamente) que se completam e que aparecem Entretanto, a manutenção desse padrão torna impossíveis
por três vezes em sequência (Ex8.3). Observa-se aqui as consonâncias de oitavas e décimas e elas passam a
que o segmento indicado pela terceira chave (indicada ser aumentadas, como sublinhado no fim da primeira
como a) é uma transposição exata um semitom abaixo linha do Ex9. O efeito cumulativo dessa alteração leva
dos dois primeiros. Além disso, enquanto o segundo o compositor a abandonar as consonâncias e utilizar
segmento (indicado por b) aparece com distâncias intervalos de nonas menores e sétimas maiores, ou
intervalares diferenciadas no primeiro, segundo e padrão 9-7, como chamado por GRIMLEY (2003, p.34).
terceiro quadro assinalado. Além disso, a célula melódica é diminuída de doze para
oito notas (Ex10.a) e depois seis (Ex10.b), levando a uma
Esses procedimentos utilizados por Nielsen constroem antecipação cada vez maior no início de cada uma delas.
de forma cuidadosa o aspecto caótico de algumas das Toda essa seção inicia com a indicação de poco a poco
passagens de maior tensão entre a clarineta solista e a accelerando, e os cromatismos e a tensão resultantes
orquestra. De acordo com a análise de GRIMLEY (2003), direcionam para o c.173, marcado para ser ainda mais movido
um dos recursos contrapontísticos do compositor com a indicação de più allegro. Nesse ponto, a mesma célula
constituiu-se de uma progressão linear através de melódica utilizada anteriormente passa a ser executada
um fragmento melódico de doze notas. Baseando-se pela clarineta solista enquanto o tema inicial do Concerto
inicialmente numa progressão harmônica em quintas é lembrado esporadicamente pelos outros instrumentos. A
(Sib-Fá-Dó-Sol, respectivamente) do c.158 a c.1656, orquestra retoma o cromatismo anterior acelerando ainda
Nielsen inicia uma sequência com um contraponto mais enquanto a clarineta sustenta uma nota no agudo em

Ex.9 - Extrato da análise de GRIMLEY (2003, p.35) dos c.163-169 do Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen,
demonstrando o padrão contrapontístico utilizado pelo compositor no trecho.

209
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

Ex.10 - Extrato da análise de Daniel GRIMLY (GRIMLY, 2005, p.35) dos c.170-172 do Concerto para Clarineta, Op.57 de
Carl Nielsen, demonstrando a compressão melódica e o padrão intervalar dissonante.

Ex.11 - Cadência da clarineta em staccato dos c.189-195 do Concerto, Op.57 de Carl Nielsen, demonstrando a
recorrência temática.

trinado. A conjunção desses elementos leva diretamente à Nesse sentido, é importante salientar o papel que a
cadência em staccato que a clarineta executa dos c.189 a caixa clara exerce no Concerto, Op.57. Geralmente
c.195, como demonstrado no Ex11. Nela é possível verificar utilizada como forma de pontuar as passagens
procedimentos semelhantes, como a compressão melódica solistas da clarineta e da orquestra, sua parte consiste
(Ex11.a), a recorrência de padrões transpostos (Ex11.b e c) e em execuções rítmicas intrincadas, passagens em
ainda a progressão por quintas (Ex11.d). ostinato ocasionais e uma vasta gama de dinâmicas
(GAUTHREAUX, 1989, p.108). As intervenções do
A cadência, que apresenta material melódico extraído da instrumento foram analisadas por David DAVENPORT
relação intervalar do tema principal (como demonstrado (1993.a; 1993.b), que sugeriu uma atuação irônica e
em Ex11.e), termina com uma escala ascendente (última humorística da caixa como contraponto ao solista,
linha do Ex11) em com a indicação de crescendo molto, “especialmente nas passagens em que a clarineta
cabendo à orquestra e às intervenções da caixa clara a começa a levar-se muito a sério” (DAVENPORT, 1993.b,
retomada de um andamento menos movido, necessária p.52-60). Entretanto, embora a afirmação do crítico
para o início do segundo movimento, Poco Adagio, musical R. Gregory sobre o Concerto de Nielsen tratar-
introduzido pelas trompas. se de um concerto duplo em função da sua atuação

210
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

(Gregory citado por DAVENPORT, 1993.b, p.53) soe 5 - Interpretação e performance


claramente infundada, a participação do instrumento Desde sua estreia em 1928, o Concerto de Nielsen dividiu
é de fato importante e muitos intérpretes optam por opiniões, demonstradas pela polarização da crítica em
incluí-la quando da execução do Concerto, Op.57 com publicações dinamarquesas da época. Hugo Seliman
piano. A razão dessa importância está relacionada não à ressalta que a obra incorpora ao mesmo tempo tanto
sua execução em particular, mas à forma através da qual a natureza selvagem da clarineta quanto o seu lirismo
ela integra-se ao discurso da clarineta, dando-lhe maior (Seliman citado por PETERSEN, 2002, p.xlii); da mesma
dramaticidade e intensificando os contrastes entre as forma, Willliam Behrend enfatiza a lógica interna da obra
passagens mais intensas e complexas com os momentos através da insistência das ideias pelo compositor (Behrend
de maior lirismo. citado por PETERSEN, 2002, p.xliii). Mas são, sobretudo,
as críticas desfavoráveis que mais se sobressaem.
Todos esses aspectos passam despercebidos a uma
análise cujo enfoque seja o conflito tonal entre Fá e Mi Em uma longa crítica, o compositor suíço Petersen-Berger
maior. Segundo GRIMLEY, os procedimentos utilizados considerou o tema do Concerto uma dança dinamarquesa
no Concerto, Op.57 baseiam-se antes na condução “prevaricante”, cujo solo tocado por Oxenvad “cacareja, grita,
linear de intervalos que em princípios tonais (GRIMLEY, chora, lamenta e grune”, razão pela qual Nielsen termina
2003, p.32). Esses recursos e a forma como o compositor “confessando-se um cacofonista” (Berger citado por NELSON,
constrói a complexa relação entre solista e orquestra 1979a, p.57). O jornal dinamarquês Ekstrabladet considerou
ajudam também a explicar sob uma nova perspectiva que a obra era passageira, ou se aquela era a música do
o atonalismo encontrado por BINGHAM (BINGHAM, futuro, seria de se esperar que as próximas gerações não se
1990) e indicado no Ex7, bem como a expressão usada sentissem confortáveis nas salas de concerto. Essa opinião
por NELSON sobre a “leitura pessoal do termo pelo é partilhada por uma crítica no jornal Nationaltidende,
compositor” (1979a, p.71). A esse respeito, as evidências acrescentando ainda que mesmo um ouvido acostumado
encontradas não parecem justificar a inclusão do à modernidade sente dor ao ouvir o Concerto (PETERSEN,
termo atonal ao Concerto, Op.57; mesmo uma análise 2002, p.xlii). Some-se a isso o comentário do maestro que
mais detalhada na obra de Nielsen parece não sugerir regeu sua première, Emil Telmány, considerando a obra
nada mais substancial que simetrias intervalares, “música para outro planeta” (LAWSON, 1997, p.205).
transposições locais e funções de retrogradação
(Petersen citado por GRIMLEY, 2003, p.32). De fato, com uma linguagem inovadora e difícil, o Concerto
iria requerer uma interpretação com grande apuro técnico,
Essas análises sugerem que a clarineta solista integra- e pode ter tido sua compreensão prejudicada por uma
se ao conjunto numa narrativa que é construída por performance ainda pouco sedimentada, embora a obra
meio de um tema inicial simples, mas que ganha tenha sido executada seis vezes durante a vida de Nielsen
contornos mais amplos à medida que é desenvolvida (PETERSEN, 2002, p.xliii). Ele estava ciente dessa dificuldade,
pelos procedimentos composicionais de Nielsen. Como e chegou a negar oportunidades de performance da obra
ele próprio salientou, a “inocência do tema inicial” por outros intérpretes, temendo uma leitura inconsistente
era uma necessidade para “contrastar com o que viria e prematura (PETERSEN, 2002, p.xlv). Mesmo o clarinetista
depois” (Nielsen citado por PETERSEN, 2002, p.xxxviii). Aage Oxenvad afirmou que Nielsen devia realmente ser hábil
Esse contraste é obtido por variações de dinâmicas no instrumento, já que teria escolhido sistematicamente
combinadas com o rigor do contraponto, que somado as notas mais difíceis de tocar (KETTING, 2010). Essa
ao aspecto rítmico que caracteriza o Concerto, Op.57 dificuldade parece ter sido determinante para que ele não
potencializa os pontos de maior tensão. Sobretudo, se sentisse confortável o suficiente para gravá-lo, e nunca o
as transformações melódicas por meio de variações fez (NELSON, 1979a, p.59).
intervalares parecem ser uma das principais formas de
unidade da obra. Nessas transformações, há indícios Entretanto, com o tempo as resistências ao Concerto
que sugerem o caráter folclórico, por vezes o caos diminuíram e ele passou a ser amplamente difundido.
e mesmo a comicidade por meio de um contorno Em 1947, o clarinetista francês Louis CAHUZAC realizou
melódico anguloso tanto nas partes da orquestra a primeira gravação da obra com a orquestra de
quanto na clarineta solista. Copenhagen pela Columbia (em 78 rotações). A gravação
é sem dúvida um registro importante já que a orquestra
A longa jornada desses quatro movimentos ininterruptos contava ainda com muitos dos contemporâneos de
encontra uma resolução pouco usual num final que Nielsen (Oxenvad havia falecido três anos antes), mas
trai o virtuosismo em função de uma nota que é CAHUZAC, que contava então já com sessenta e sete
ouvida longamente harmonizando-se com a orquestra anos, apresenta pequenos problemas técnicos, uma
(ver Ex4). Na literatura do instrumento, obras assim sonoridade pouco focada e uma certa descontinuidade
geralmente dividiram os intérpretes e o público, seja entre a parte da orquestra e a da clarineta. Entretanto, é
pelo entusiasmo e contraste em relação à tradição de possível perceber seu fraseado delicado e as nuances de
execução, seja por escandalizar ou causar indiferença. timbre nas passagens mais líricas.

211
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

O ano de 1965 marcou as comemorações do centenário performance dinamarquesa propriamente dita, o autor
do nascimento de Nielsen, com uma gravação premiada deixa claro o desdém ou indiferença que encontrou
da sua 3ª Sinfonia por Leonard Bersntein. A partir de entre clarinetistas dinamarqueses por interpretações não
então, o compositor começou a ter maior impacto nas escandinavas do Concerto como a de Stanley DRUCKER e
salas de concertos ao redor do mundo e também ser mesmo Louis CAHUZAC.
extensivamente gravado (KRABBE, 2012, p.47). Não por
acaso, em 1967 o clarinetista Stanley DRUCKER, sob a Por outro lado, o autor cita três gravações que
regência do próprio Bernstein, gravou a obra pela Sony considera representantes dessa tradição de performance
Classical e ao que tudo indica, terminou por popularizar (NELSON, 2012a). Entre elas estão a do suiço Kjell-Ingle
a obra na América do Norte, tornando-se referencial STENVENSSON (1975, EMI), a de Håkan ROSEGREN
(GIACONA, 2009, 10). No mesmo ano, o clarinetista de (1991, Sony), mas, sobretudo, a de Niels THOMSEN
jazz Benny GOODMAN teria gravado o Concerto pela RCA (1990, Chandos). A de STENVENSSON tem grande apuro
e com Morton GOULD na regência, mas ela acabou não técnico, e apresenta acima de tudo uma liberdade maior
sendo tão bem recebida (NELSON, 1979a, 58). Por outro nas cadências do Concerto, com um diálogo bastante
lado, nas décadas seguintes, o Concerto seria gravado por efetivo nas passagens entre solista e orquestra. Por outro
uma série de influentes intérpretes do instrumento, como lado, na gravação de THOMSEN é notório o contraste
John Bruce YEH (1985, Centaur), Janet HILTON (1988, em relação às gravações como a de MEYER, BOEYKENS
Chandos), Richard STOLZMAN (1990, RCA), Philippe e CAHUZAC em termos de caráter da obra. Embora não
CUPER (1992, ADDA), Walter BOEYKENS (1994, Harmonia tenha a mesma fluidez técnica que a de BENDA no geral, a
Mundi), Kevin BANKS (1998, Naxos), Robert PLANE (1999, interpretação conecta-se bem com a orquestra formando
BBC), Sabine MEYER (2006, EMI), Martin FRÖST (2007, um todo coeso. Além disso, a sonoridade do instrumento
BIS SACD), François BENDA (2008, Genuin), entre outros. soa por vezes extremamente agressiva nos registros
extremos do instrumento, e o intérprete vale-se de
A gravação de BOEYKENS demonstra uma sonoridade pequenos rubatos em diversas situações. Especialmente
plena da clarineta, pela qual o intérprete é conhecido, no tocante à expressividade nas cadências, o tratamento
embora as cadências soem pouco contrastantes, dado é bastante enérgico (sobretudo na última), com
especialmente a primeira, no c.133. Já a de MEYER utiliza grandes expansões de dinâmica que beiram o limite
um andamento um pouco mais lento em relação à média das possibilidades do instrumento, além de usar pausas
das demais, o que lhe permite criar alguns contrastes mais longas entrecortando as retomadas da melodia. Na
bastante convincentes em termos de andamento. Porém, versão de THOMSEN, o Concerto assume uma postura
sua interpretação das cadências apresenta passagens mais dramática que explora os extremos do instrumento
bastante rápidas, mas sem muita continuidade, o que em variações de andamento e dinâmica, mas que ainda
demonstra um virtuosismo que parece, por vezes, assim soam convincentes no contexto da obra.
desconectar-se da obra. Melhor abordagem parece ser
a de BENDA, com uma sonoridade cheia, grande apuro Em suas observações sobre a partitura de Oxenvad,
técnico e a interpretação das cadências mais reflexiva e NELSON relata uma série de anotações encontradas,
ao mesmo tempo com maior dramaticidade, com grandes com expressões como “feio!”, “maníaco depressivo”,
acelerandos e diminuendos. “improvisacional”, “contemplativo”, “satânico”,
“brilhante”, “humorístico”, entre outras (1987, p.35).
Paradoxalmente, a difusão e popularização da obra foram Além disso, nos comentários de Scharff sobre a obra, é
acompanhadas de um relativo obscurantismo sobre a forma possível perceber uma ênfase na construção intervalar da
através da qual ela foi concebida na cultura dinamarquesa melodia, muito mais que do virtuosismo em si. Segundo
do começo do século XX. Essa ausência de informações Scharff, a única passagem que considera virtuosística é
sobre o contexto do Concerto pode estar ligada ao fato a escala ascendente em meio à última cadência (c.519,
do dinamarquês não ser uma língua de domínio comum, sétima e oitava linha da partitura da clarineta), com as
mas sobretudo, à uma ênfase muito mais prática do que de tercinas a seguir marcadas por ele como “satanicamente
contextualização teórica numa cultura onde esses aspectos lento” (NELSON, 1987, p.34).
são de conhecimento geral (NELSON, 2012a).
Discussões interpretativas sobre o Concerto podem ser
Durante dois meses do ano de 1979, o clarinetista Eric encontradas no trabalho de GIACONA (2009), que analisou
Nelson estudou no Royal Conservatory de Copenhagem quatro gravações da obra e entrevistou os intérpretes,
com Tage Scharff, ele próprio um ex-aluno de Oxenvad, sendo eles os norte-americanos Stanley Drucker, Elsa
e umas das suas principais referências quanto à tradição Ludewig-Verdehre, John Bruce Yeh, e o escandinavo
de execução do Concerto. Ele corrobora sua experiência Hågan Rosengren. Numa discussão sobre a relevância da
de campo como entrevistas e aulas com Tage Scharff, obra, praticamente todos os intérpretes concordam que
além de analisar a correspondência entre compositor e o Concerto, Op.57 de Nielsen pode ser equiparado ao de
intérprete e dados analítico-estruturais presentes na Mozart na literatura da clarineta (GIACONA, 2009, p.143).
obra de Nielsen. Assim, no artigo publicado na revista Além disso, ela explora as alternativas propostas pelos
The Clarinet (NELSON, 1987), enunciando a tradição de intérpretes baseadas em suas concepções pessoais para

212
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

resolver os problemas técnicos, incluindo as mudanças Nesse trecho selecionado no Ex12, foi possível observar
de articulação, diferentes posições e digitações no que enquanto intérpretes como CAHUZAC, DRUCKER
instrumento, bem como a interpretação das cadências. e CUPER tendem a interpretá-lo de forma mais literal,
respeitando a proporção da notação, MEYER, BOEYKENS,
Nesse sentido, é digna de nota a diferença de abordagens mas sobretudo STENVENSSON e THOMSEN permitem-se
do Concerto pelos intérpretes; profundamente influenciado uma liberdade maior, variando o ritmo mais livremente e
pela gravação de Cahuzac (GIACONA, 2009, p.20), Drucker é com acentos mais pronunciados.
por sua vez uma clara influência nos outros dois intérpretes
norte-americanos, sobretudo em Yeh. Essa influência fica Por outro lado, através da importante gravação de
mais evidente ao comparar a concepção da obra dos três CAHUZAC com a Royal Copenhagen Orchestra, é possível
intérpretes com a do escandinavo Rosengren. Nascido em perceber uma acentuação sutil da orquestra na nota mais
Stocolmo e criado ao sul da Suécia, Rosengren familiarizou- longa do tema inicial (destacado no Ex11.e), diferente da
se desde cedo com a cultura dinamarquesa e sua tradição maioria das gravações modernas que tendem a executá-
de performance. Assim, enquanto Drucker defende uma la mais como a nossa compreensão moderna do tenuto.
postura de fidelidade à partitura impressa, Rosenberg a Essa acentuação discreta mas presente em toda a obra
interpreta buscando compreender as motivações por trás proporcionou uma nítida diferença na interpretação da
das marcações7 (GIACONA, 2009, p.84). Ele também fala orquestra, que contando com músicos que integravam
sobre como a obra de Nielsen transformou-se em sua fase o meio social do compositor, permitem a suposição
final e como o Concerto se encaixa nessa perspectiva, do quanto das sutilezas dessa natureza na tradição de
especialmente com a construção de diferentes áreas tonais. performance original da obra já não são mais ouvidas.
Sobretudo, ele considera que a obra não é virtuosística já
que sempre associou sua dificuldade técnica à expressão Não obstante a diferença de abordagem entre as
musical. Para Rosengren, a dificuldade técnica não é performances e as pesquisas que a suportam, há uma
grande se comparada ao desafio musical de interpretá-la intenção geral de dar subsídios ao instrumentista numa
em seu devido contexto (GIACONA, 2009, p.83). tentativa de contornar o que PINO chama de “dez
páginas de uma sólida e bestial dificuldade” (PINO,
Outros trabalhos sobre a performance do Concerto de 1980, p.264). Dentro do contexto da sua composição,
Nielsen ainda incluem o de LANZ (1989), que analisa entretanto, as discussões sobre a demanda técnica
juntamente com outros dois concertos de Nielsen, o para assumem um aspecto secundário, abrindo caminho
violino e o para flauta. Além dele também Ann Marie para considerações sobre uma melhor compreensão do
Bingham analisou a interpretação das cadências do caráter que a obra incorpora.
Concerto por vários intérpretes, e incluiu o seu próprio
trabalho de preparação da obra com as anotações de Tage 6 - Considerações finais
Scharff, com quem também estudou (BINGHAM, 1990). De uma forma geral, o que se percebe numa leitura
mais detalhada desses aspectos é que a maneira precisa
Dentre as gravações pesquisadas, é relevante que os através da qual uma obra influente como o Concerto
intérpretes familiarizados com a tradição cultural da para Clarineta, Op.57 foi composta encontra sua razão
Escandinávia demonstrem certos aspectos em comum, de ser na forma como Nielsen expressa-se dentro
como a busca por maior contraste e expressividade, da cultura dinamarquesa de sua época. Assim, a sua
além de uma abordagem mais livre das cadências. Essa densidade de textura, bem como a dificuldade técnica
expressividade é claramente diferenciada na forma da qual o compositor estava consciente e sublinhada
de interpretar indicações como o ad libitum depois já por Oxenvad, além de sentida por muitos ouvintes e
da escala ascendente na última cadência, no c.519 intérpretes ao longo do tempo, são na verdade a estrutura
(conforme indicado no Ex12). de superfície da sua sólida técnica de composição. Nesse

Ex.12 – Excerto da cadência no c.519 do Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen,
com destaque para o trecho indicado como ad libitum.

213
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

mesmo lastro, alguns autores consideram o seu Concerto De uma forma geral, a aceitação e popularização do
para Clarineta não só como a sua maior conquista, mas Concerto no decorrer do tempo foi paradoxal, na medida
também um marco na literatura da clarineta (Maegard em que desconsideraram aspectos do contexto onde a obra
citado por NELSON, 1979a, p.53). foi realizada, o que pode ser constatado na indiferença
dos clarinetistas dinamarqueses com os intérpretes não
Combinar os diferentes problemas de digitação, escandinavos observada por Eric Nelson. Por outro lado,
articulação e dinâmica com um caráter que oscila de o trabalho de gravação por intérpretes como o francês
“humorístico” a “maníaco-depressivo” dentro de uma Louis Cahuzac e o norte-americano Stanley Drucker foi
narrativa ininterrupta de aproximadamente vinte e um dos principais meios de divulgação e propagação da
cinco minutos de música foi de fato uma abordagem obra, influenciando decisivamente na sua inclusão no
inovadora. Nesse sentido, o Concerto de Nielsen difere repertório de concerto da clarineta.
de outras obras de seus contemporâneos, especialmente
pela envergadura estrutural. No Concerto, a estrutura Dentre os trabalhos pesquisados, ficou claro que as
ampla dá conta de uma narrativa essencialmente questões técnicas devem ser entendidas como parte de
complexa. O tema dançante da abertura se transforma um processo maior que busque incorporar à performance
durante a obra, emergindo aqui e ali melódica e as significações históricas e analíticas necessárias ao
ritmicamente modificado, ganhando cada vez mais equilíbrio da complexa relação entre solista e orquestra.
diferentes contornos expressivos. Por isso mesmo, tal qual salientou o clarinetista Hågan
Rosengren, a obra é melhor entendida em seu contexto,
Carl Nielsen tinha uma visão particular sobre certos evitando uma interpretação que preze por um virtuosismo
aspectos da sua música, e sua obra já era conhecida puro e simples sobre o caráter da obra.
por seus contemporâneos por ser excessivamente difícil.
Avesso ao que chamou de sentimentalismo superficial Esse tipo de abordagem é comumente manifestada na
e virtuosismo sem sentido, mas também às correntes falsa relação em medir o nível de um instrumentista
modernas representadas por Schoenberg e Stravinsky, o por ter ou não estudado o Concerto, Op.57 de Nielsen
nacionalismo de Nielsen talvez o tenha alinhado mais (PINO, 1980, p.265). Além de propagar uma visão
com Bartok. Entretanto, Nielsen construiu uma sólida um tanto superficial da obra e da performance em
técnica de composição por conta própria, conjugando os si, esse tipo de relação pode gerar uma frustração
procedimentos polifônicos que admirava em Palestrina e nos estudantes que se julgam inaptos a interpretá-lo
Bach com uma orquestração aparentemente rude e, por naquele momento adequadamente, incitando-os a crer
vezes, brutal, como demonstrada no Concerto, Op.57. que não serão bons instrumentistas sem fazê-lo. Isso,
claro, não é verdade.
Ao utilizar uma dança folclórica como fio condutor,
Nielsen cria uma narrativa densa, cuja dramaticidade Uma perspectiva mais razoável é que a obra necessita
fica evidente no diálogo entre o solista e a orquestra, realmente de uma boa base técnica para ser interpretada,
pontuados percussivamente pela inclusão da caixa clara. mas que essa exigência vem em função da expressão
Sua instrumentação vale-se de uma linguagem difícil e de um caráter complexo da cultura dinamarquesa;
uma abordagem individual dos instrumentos, que explora inicialmente campesino, ele se transforma rapidamente
limites de tessitura e dinâmica, enfatizando a construção e assume contornos mais densos. Escolher expressar-se
melódico-intervalar e a complexidade rítmica, muito ou não através dessa obra e seu caráter é uma opção do
mais que a questão tonal da obra, cujas evidências instrumentista, e por si mesmo, nada diz sobre o nível
demonstraram ser secundária. técnico de quem quer que seja.

214
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

Referências
ARAÚJO, João Paulo de. Laboratório de Composição para Clarineta Solo: Uma experiência entre intérpretes e estudantes
de composição. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2006 (Dissertação de Mestrado).
BINGHAM, Ann Marie. Carl Nielsen’s Koncert for Klarinet og Orkester, opus 57 (1928): a performance guide. Lexington:
University of Kentucky, 1990 (Tese de Doutorado).
BRYANT, Michael. The Clarinet on Record. In: LAWSON, C. J. (Ed.) The Cambridge Companion to the Clarinet. Cambridge:
Cambridge University Press. Pg. 199-212.
BURHOLDER, J. Peter. A Simple Model for Associative Musical Meaning. IN: Amén, Byron e Pearsall, Edward (Ed.).
Approaches to Meaning in Music. 76-106. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 2006.
BURROWS, John & WIFFEN, Charles (ed). Música Clássica. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Ltda, 2007.
BUTLER, Christopher. Innovation and the avant-garde, 1900-20. In: COOK, Nicholas & POPLE, ANTHONY (ed.). The
Cambridge History of Twentieth-Century Music. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. Pg. 69-89.
DAVENPORT, David. Carl Nielsen’s Use of the Snare Drum, 1916-1928 (Part I). In: Percussive Notes: Journal of the Percussive
Arts Society, 31, N. 4, 1993a. Pg. 56-59.
______________. Carl Nielsen’s Clarinet Concerto: Specific Interpretation Approach (Part II). IN: Percussive Notes: Journal
of the Percussive Arts Society, 31, N. 5, 1993b. Pg. 52-60.
FELUMG, Svend Christian. De gamle blæsere - og Carl Nielsen. In: Dansk Musik Tidsskrift. V.33, N.2. 1958. Disponível
em <http://dvm.nu/periodical/dmt/dmt_1958/dmt_1958_02/de-gamle-blaesere-og-carl-nielsen/>. Acessado em
20/03/2012.
GAUTHREAUX, Guy Gregoire II. Orchestral Snare Drum Performance: An Historical Study. Baton Rouge: Louisiana State
University and Agricultural and Mechanical College. 1989 (Tese de Doutorado).
GIACONA, Christina. A Study of Comparative Interpretations by Stanley Drucker, Elsa Ludewig-Verdehr, Håkan Rosengren
and John Bruce Yeh of the Clarinet Concerto by Carl Nielsen. Norman: University of Oklahoma, 2009 (Tese de
Doutorado).
GREEN, Burdette & BUTLER, David. From Acustics to Tonpsychologie. IN: Christenssen, Thomas (ed). The Cambridge History
of Western Music Theory. Cambridge University Press: Cambridge, 2006.
GRIMLEY, Daniel. Analytical and Aesthetic Issues in Carl Nielsen’s Concerto for Clarinet and Orchestra. In: KRABBE, Niels
(ed.). Carl Nielsen Studies. V.1, 2003. Pg. 27-41.
KETTING, Kund. Art and Consciousness. IN: Carl Nielsen Society. Disponível em < http://carlnielsen.dk/pages/biography/
art-and-consciousness.php>. Acessado em 02/12/2010.
KRABBE, Niels. A Survey of the Written Reception of Carl Nielsen, 1931-2006. In: Notes – Quartely Journal of the Music
Library Association. V.64. N.1., 2007. Disponível em < http://muse.jhu.edu/journals/notes/toc/not64.1.html>, acessado
em 26/03/2012.
KRABBE, Niels. Carl Nielsen, Ebbe Hamerik and the First Symphony. In: KRABBE, Niels (Ed.). Carl Nielsen Studies. V.1, 2003.
Pg.102-123.
LABOURIÈSSE, Marília. Interpretação Musical: a dimensão recriadora da “comunicação” poética. Goiânia: Anablume, 2007.
LANZ, Christopher Charles. The Concerti of Carl Nielsen. Standford: Standford University, 1989 (Tese de Doutorado).
LAWSON, Jack. Carl Nielsen. Londres: Phaidon, 1997.
MAEGARD, Jan. An Outline of Danish Musical History. IN: Samfundet til Udgivelse of Danish Musik Katalog. Copenhagen:
Dan Fog-Olsen, 1956. Pg 8-13.
MEYER, Torben. Carl Nielsen: Kunstneren og Mennesket. 2 V. Copenhagen: Nyt Nordisk Forlag, 1947.
MONROE, Douglas. Conflict and Meaning in Carl Nielsen’s Concerto for Clarinet an Orchestra, Op.57 (1928). Athens: Ohio
State University, 2008 (Tese de Doutorado).
NATTIEZ, Jean-Jacques. O Combate entre Cronos e Orfeu: ensaios de semiologia musical aplicada. Tradução de Luiz Paulo
Sampaio. São Paulo: Via Lettera, 2005.
NELSON, Eric. The Nielsen Concerto and Aage Oxenvad. Disponível em <http://www.woodwind.org/clarinet/Study/Nielsen.
html>. Acessado em 10/03/2012 (2012a).
_________. Performances Notes on Carl Nielsen’s Koncert For Klarinet Og Orkester, Op.57. Disponível em http://www.
woodwind.org/clarinet/Study/NielsenNotes.html#page_10. Acessado em 02/03/2012 (2012b).
_________. The Danish Performance Tradition in Carl Nielsen’s Koncert for Klarinet og Orkester, Op.57 (1928). IN: The
Clarinet, 14, N.2, 1987. Pg 30-35.
__________. Carl Nielsen’s Koncert for Klarinet og Orkester, Op.57 (1928) within the Context of Danish Musical History.
Denton: North Texas State University, 1979a (Dissertação de Mestrado).
__________. Entrevista com o crítico musical dinamarquês Robert Naur. Material não publicado enviado pelo autor,
1979b.

215
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217

OXENVAD, Aage. Entrevista concedida ao jornal dinamarquês Berlingske Tidende, datado de 10/10/1928. Tradução do
dinamarquês enviada ao autor por Eric Nelson.
PETERSEN, Elly Bruunshuus. Prefácio da Edição do Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen. Copenhagen: Editora
Wilhelm Hansen, 2002. Disponível em <http://www.kb.dk/en/kb/nb/mta/cnu/download.html>. Acessado em
02/12/2010.
PETERSEN, Elly Bruunshuus & PETERSEN, Kirsten Flensborg (Ed.). Koncert for Klarinet og Orkester, Op.57. Edition Wilhelm
Hansen: Copenhagen, 2002.
PETERSEN, Kirsten Flensborg. Carl Nielsen’s Flute Concert: Form and revision of the ending. In: KRABBE, Niels (Ed.). Carl
Nielsen Studies. V.2, 2005. Pg.196-225.
PINO, David. The Clarinet and Clarinet Playing. New York: Charles Scribner’s Sons, 1980.
ROSENBERG, Herbert. The Concertos. In: Carl Nielsen Centenary Essays. Ed. Jürgen Balzer. Transc. Holzer Norgaard e N.
Bugge Hansen. Londres: Dobson, 1966. Pg. 47-55.
SIMPSON, Robert. Carl Nielsen – Symphonist. London : Kahn & Averill, 1986.
SCHOUSBOE, Torben (ed.), Carl Nielsen, Dagbøger og brevveksling med Anne Marie Carl-Nielsen, Copenhagen:
Carlsbergfondets, 1983.
WATERHOUSE, John C. G. Nielsen Reconsidered 2. IN: The Musical Times, V.106, N.1469, 1965. Pg. 515-517. Disponível em
<http://www.jstor.org/stable/950198> Acessado em 20/02/11.
WESTON, Pamela. More Clarinet Virtuosi of the Past. Londres: Panda Press, 1982.
WHITE, Tyler G. ‘The Music’s Proper Domain’: form, motive and tonality in Carl Nielsen’s Symphony no. 4 Op.29 (The
Inextinguishable). Ithaca: Cornell University, 1991 (Tese de Doutorado).

Discografia
BANKS, Kevin e BAKELS, Kees (dir.). Nielsen. Bournemouth Symphony Orchestra. Naxos, 1998.
BENDA, François e BENDA, Christian (dir.). Clarinet and Orchestra: works of Rossini, Debussy, Busoni and Nielsen.
Slowakische Philharmonie. Genuin Classics, 2008.
BOEYKENS, Walter e CAEYERS, Jan (dir.). Carl Nielsen: Clarinet Concerto/Pan & Syrinx/Amor & Digteren. Beethoven
Academie Orchestra. Harmonia Mundi, 1994.
CAHUZAC, Louis e FRANDSEN (dir.). Nielsen Clarinet Concert, Op.57. Royal Copenhagen Orchestra. LP em 78 rotações.1947.
CUPER, Philippe e SCHNITZLER, Claude (dir.). Copland/Françaix/Nielsen: Concertos for Clarinet & Orchestra. L’Orchestre
de Bretagne. Accord, 1993.
DRUCKER, Stanley e BERNSTEIN, Leonard (dir.). Concerto for Clarinet and Orchestra, by Carl Nielsen. New York Philharmonic.
Sony Classical, 1967.
FRÖST, Martin e VÄNSKÄ, Osmo (dir.). Nielsen & Aho: clarinet concertos. Lahti Symphony Orchestra. Bis, 2007.
GOODMAN, Benny e GOULD, Morton (dir.). Nielsen/Clarinet Concerto –Symphony Nº2 “The Four Temperaments”. Chicago
Symphony. RCA, 1967.
HILTON, Janet e BAMERT, Matthias (dir.). Copland – Lutoslawsky – Nielsen. Royal Scottish National Orchestra. Chandos,
1988.
MEYER, Sabine e RATTLE, Simon (dir.). Nielsen: clarinet and flute Concertos-Wind Quintet. Berliner Philharmoniker. EMI
Classics, 2006.
PLANE, Robert e OTAKA, Tadaaki (dir.). Nielsen. BBC National Orchestra of Wales. BBC, 1999.
ROSEGREN, Håkan e SALONEN, Esa-Pekka (dir.). Concerto for Clarinet and Orchestra, by Carl Nielsen. Swedish Radio
Symphony Orchestra. Sony BMG Masterworks, 1993.
STENVENSSON, Kjell-Inge e BLOMSTED, Herbert (dir.). 20th Century Classics: Carl Nielsen. The Danish Radio Symphony
Orchestra. EMI, 2008.
STOLTZMAN, Richard e SMITH, Lawrence Leighton (dir.). Richard Stoltzman: Lutoslawski, Nielsen, Prokofiev. Warsaw
Philharmonic Orchestra. RCA, 1990.
THOMSEN, Niels e SCHONWANDT, Michael (dir.). Nielsen: violin, flute and clarinet Concertos. Danish National Symphony
Orchestra. Chandos,1990.
YEH, John Bruce e KOBER, Dieter, (dir.) Concerto for Clarinet and Orchestra, by Carl Nielsen. Chicago Chamber Orchestra.
Centaur Records, 1987.

216
FRAGA, V. S. O Concerto para Clarineta, Op.57 de Carl Nielsen... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.200-217.

Notas
1 Também chamada de embocadura de duplo lábio, onde os lábios superior e inferior recobrem os dentes em contato com a boquilha e palheta (PINO,
1980, p.59). Informação obtida de acordo com entrevista concedida por Robert Naum a Eric Nelson (NELSON, 1979b).
2 Última cadência do Concerto, no trecho correspondente à página 8, linha 8 da edição impressa. Como a edição da Samfundet til Udgivelse af Dansk
Musik não apresenta numeração de compassos, eles foram incluídos para fins de referência dos trechos citados nesse trabalho. Inicialmente, os
critérios para a numeração não levariam em conta os compassos indicados por linhas pontilhadas no fim da primeira longa cadência da clarineta
no compasso 133, exatamente por estar incluso ainda na referida cadência. Essa decisão seria a mais adequada em termos de coerência e é
suportada por numeração equivalente em trabalhos de análise como o recentemente publicado por Daniel GRIMLEY (GRIMLEY, 2003). Entretanto,
como a nova edição da Wilhelm Hansen também citada nesse trabalho resolve incluí-los como compassos numerados (PETERSEN & PETERSEN,
2002, p. 201), a numeração utilizada passou a seguir essa última por questões de praticidade. Assim, o compasso após a cadência acima citada
será o número 143, ao invés de 134, e assim por diante.
3 Cujo prefácio e grade orquestral estão disponíveis para download aqui <http://www.kb.dk/en/kb/nb/mta/cnu/download.html>.
4 Maestro que regeu a première do Concerto e genro de Nielsen.
5 Na referência original, “stamp-kick-stamp” (NELSON, 1987, p.32).
6 A numeração que o autor utiliza é diferente da adotada nesse trabalho. Assim optou-se pela mudança nos números de compasso visando a sua
padronização. Para mais detalhes, ver nota 2.
7 Segundo ele, as marcações de tenuto devem ser interpretadas de forma similar a um acento na música vocal (GIACONA, 2009, 84).

Vinícius de Sousa Fraga é Bacharel em Clarineta pela Universidade Federal de Santa Maria-RS (UFSM) sob a orientação
do Prof. Dr. Guilherme Sampaio Garbosa e Mestre em Execução – clarineta pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) sob
a orientação do Prof. Dr. Pedro Robatto. Sua dissertação discutiu aspectos da interpretação da Fantasia Sul América para
clarineta solo de Cláudio Santoro. Atualmente, é Doutorando em Execução Musical pela mesma instituição.

217
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226

Apontamentos retórico-musicais no Largo


do Concerto n.5, BWV 1056, de Johann
Sebastian Bach
Pablo Alberto Lanzoni (UFRGS, Porto Alegre, RS)
pablolanzoni@ibest.com.br

Resumo: O presente artigo discute a análise retórica do Largo do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056 de Johann
Sebastian Bach. No primeiro momento, é apresentada uma revisão dos princípios retóricos e de como eles se transportam
à música. A seguir, é proposta uma análise do movimento mencionado, partindo da discussão já exposta. O exercício
analítico exemplifica como os princípios retóricos estão intimamente relacionados à música do período barroco.

Palavras-chave: retórica em música; análise musical; J. S. Bach; BWV 1056.

Musical-rethorical notes on J. S. Bach’s Largo from Concerto n.5, BWV 1056

Abstract: The present article is based upon the rhetorical analysis from Johann Sebastian Bach’s Largo of Concert n. 5 F
minor, BWV 1056. First, a review of the rhetorical principles and how they convey themselves to the music is introduced.
Next, it is presented an analysis of the mentioned movement from the discussion already exposed. The analytical exercise
exemplifies how the rhetorical principles are related to the Baroque period music.

Keywords: rhetoric in music; music analysis; J.S. Bach; BWV 1056.

1 – Introdução
A teoria retórico-musical, cujos postulados foram particularidades da Inventio, da Dispositio e da Elocutio,
registrados em uma série de tratados, através do nome busca-se identificar os aspectos formais e discursivos da
latino genérico musica poetica, parte de uma aspiração obra, revelando algumas das figuras retórico-musicais
proveniente do Renascimento, de imitar modelos e presentes em cada uma de suas partes.
técnicas da cultura clássica. Completa este desejo o
anseio de teóricos e compositores em constituir, na
música, uma força telúrica, capaz de mover e sacudir
2 – Apontamentos retóricos
os afetos da plateia, assim como os bons oradores ao A aproximação entre música e retórica remete à
proferirem seus discursos. Deste modo, extrair da retórica antiguidade clássica. Musica e Rhetorica pertenciam
as ferramentas necessárias para suscitar tais efeitos ao sistema das septem artes liberales, uma organização
transformou-se em tarefa fundamental para os músicos de ensino que perpassou os séculos, impondo-se como
barrocos. A edificação de uma complexa teorização portadora dos saberes fundamentais do ocidente. As
retórica da música foi sua consequência. septem artes liberales dividiam-se em Quadrivium,
constituído por Musica, Arithmetica, Geometria e
Este artigo pretende discutir o Largo, segundo movimento Astronomia, e Trivium, ao qual pertenciam Rhetorica,
do Concerto n.5, BWV 1056, de Johann Sebastian Bach Grammatica e Dialectica. Segundo ASSUMPÇÃO
em sua estrutura retórico-musical. Considerando as (2007, p.114):

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 19/11/2011- Aprovado em: 28/06/2012
218
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226.

Pelas septem artes liberales, música e retórica atravessaram toda é persuadir o público; à origem e ao funcionamento
a época medieval [...], adentrando o universo renascentista e dos afetos; ao sistema retórico musical. CANO (2000)
barroco. Com a lenta emancipação da música da palavra no século
XVIII, a autonomia da música instrumental exigiu que formas afirma ser possível, através destes tratados, demonstrar
musicais específicas se erigissem, para abarcar o material musical a importância da retórica nos processos compositivos
em franco desenvolvimento. da época, propiciando uma aproximação melhor
documentada aos pressupostos históricos, culturais,
As origens da retórica remetem à Grécia do século V a.C. científicos, epistemológicos que permearam a atividade
A sistematização dos procedimentos que idealizaram e musical do Renascimento tardio e do Barroco.
construíram os diferentes tipos de discurso provém da
região da Sicília, de onde foi levada a Atenas e Roma. A
retórica foi descrita como um dos saberes fundamentais 3 – A questão dos afetos
constituintes do Trivium, o qual, durante séculos, norteou Muitas das particularidades associadas à música barroca
a formação da aristocracia ocidental. Para MERSIOVSKY foram influenciadas pelo anseio de recuperar princípios
(2005), o Trivium (triplex via ad eloquentiam, arte da tragédia clássica grega. Ao final do século XVI, um
discendis) é o resultado da união entre música e retórica grupo de poetas, músicos e nobres, dentre eles Vincenzo
e coordenou a prática musical em diferentes períodos. Galilei, Giulio Caccini e Ottavio Rinuccini, reuniam-se
BERISTÁIN (1995, p.421) afirma que: na casa do Conde Giovanni de Bardi em Florença, com
o intuito de discutir assuntos relacionados às artes e, em
o ensino da retórica procurava um fundamento moral ao aluno já
que, para dominar a arte de falar bem se requer pensar bem, e para
especial, à tentativa de expressar fortes emoções através
pensar bem é necessário viver bem, sem isto, não é possível nem da subordinação da música à poesia.
comover, nem convencer: assim não é possível persuadir.
Dos encontros da Camerata Florentina, denominação
De Platão provêm algumas das inquietações acerca da dada ao grupo, construiu-se um estilo musical que elegeu
retórica que chegaram aos dias atuais. Platão sugere o discurso como protagonista em música. O ritmo deveria
que a retórica é, até certo ponto, diferente da noção ser o ritmo da fala, e todos os elementos musicais deveriam
de ‘verdade’, isto é, o que pertence ao mundo real não contribuir para a descrição do afeto representado pelo
necessariamente pertence ao mundo das ideias. Ele texto. Para SADIE (1994, p.9), a doutrina dos afetos é:
defendia a tese de que o ensino da retórica não poderia
o termo utilizado para descrever um conceito teórico da era
ocorrer, pois esta se relaciona intimamente a uma barroca, derivado das ideias clássicas de retórica, sustentando
virtude pessoal e não pertence àqueles desprovidos que a música influenciava os “afetos” (ou emoções) do ouvinte,
desta virtuosidade. (LEACH, 2008) Em Roma, segundo um conjunto de regras que relacionavam determinados
impulsionados pelo interesse no discurso persuasivo e recursos musicais (ritmos, motivos, intervalos etc.) a estados
emocionais específicos.
no ensino da retórica, solidificaram-se alguns manuais
retóricos que descrevem e interpretam figuras de
linguagem, padrões gramaticais e dimensões estéticas A sistematização da doutrina dos afetos teve grande
que tornam textos e falas atrativos. influência no desenvolvimento da música barroca. A
vinculação da música a estados emocionais afetivos
Durante a Idade Média, música e texto estiveram alcançou no período barroco uma complexa teorização.
indissoluvelmente ligados para servir aos princípios da MATTOS (2009, p.37) afirma que:
contemplação e da adoração religiosa. Para ASSUMPÇÃO A Teoria dos Afetos (Affektenlehre), desenvolvida durante o
(2007), De institutione musica de Boécio, obra que período Barroco, tem como princípio fundamental o conceito
concentra várias teorias musicais da antiguidade e um dos de que cada peça musical, ou movimento de uma obra mais
ampla, deve representar somente um estado de alma, afeto ou
principais textos usados nos estudos de música durante a emoção. Esta é uma diferença considerável com relação às teorias
Idade Média, é um marco no desenvolvimento da teoria de representação musical dos madrigalistas, pois, para estes
musical e influente no estreitamento das relações entre a ‘imitação’ de emoções ou situações era considerada em um
música e retórica. sentido local, ou seja, através da representação de cada palavra ou
verso da poesia. Por seu turno, a Teoria dos Afetos preconiza que
a música deve expressar o pathos2 geral da poesia e não descrever
Nos séculos XVI, XVII e XVIII, a ação da retórica cada um de seus momentos específicos.
na cultura, na educação, na religião, nas artes e
na sociedade foi intensa. No Renascimento, com o Embora a ‘teoria dos afetos’ não seja aproximada à
Humanismo e o Protestantismo, por vias diferentes, música de Johann Sebastian Bach com frequência e não
música e retórica passaram a ser acompanhadas uma sendo esta a pretensão deste artigo, da discussão exposta
da outra. Em relação à música, CANO (2000) diz que infere-se a forte inclinação dos músicos dos primeiros
o corpus teórico da retórica musical, no Barroco, é anos do século XVI em eleger, no sentido do texto, o
produto dos tratados produzidos entre 1535 e 1792. protagonista da relação música e palavra, característica
Estes foram denominados por seus autores como que se desdobrou por todo o Barroco. A preocupação
musica poetica1, em alusão à poética literária, neles se discursiva que perpassou a era barroca não ecoou apenas
faz referência à íntima relação entre música e retórica; na música vocal, alcançando a música instrumental que
ao papel do músico como orador, cuja tarefa principal se encontrava em sistematização no período.

219
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226

4 – O Largo do Concerto n.5 em Fá menor, nos tratados musicais do Barroco. Para LEACH (2008), é
BWV 1056, de Johann Sebastian Bach e sua notável que estas categorias existam há mais de dois mil
anos, antes como métodos com os quais se devia exercitar
estrutura retórico-musical o discurso e depois, por Aristóteles, como um modo de
Datado de 1742, o Concerto n.5 em Fá menor, BWV examinar a estrutura de discursos particulares.
1056, de Johann Sebastian Bach está organizado em
três movimentos: Allegro Moderato, Largo, Presto. A produção teórica da qual se apropriaram os elementos
Ele pertence à última década da vida do compositor, retóricos aplicados à música, no período barroco, é
quando, segundo SADIE (1994, p.61), o “artifício fundamentalmente germânica. Embora princípios
contrapontístico” predominou em sua obra. A estrutura retóricos tenham influenciado a composição musical
do concerto, recorrente em outras produções do gênero, na Itália, França e Inglaterra, foi na Alemanha que seu
denomina-se ‘forma italiana’, pois se constitui de desenvolvimento culminou na adoção e na adaptação de
dois movimentos rápidos (Allegro e Presto) e de um métodos, terminologia e estruturas retóricas remetidas à
intermediário lento (Largo). música. Dentre os principiais tratadistas retórico-musicais
do período barroco citam-se Burmeister (1564-1629),
O BWV 1056 foi concebido para cravo, dois violinos, viola e Kircher (1601-1680), Printz (1641-1717), Vogt (1669-
contínuo e pertence a uma série de concertos – BWV 1052- 1730), Walther (1684-1748), Mattheson (1681-1764),
1059 – constituídos por esta instrumentação. O movimento Scheibe (1708-1761) e Forkel (1749-1818).
intermediário, Largo, é basicamente uma transcrição da
Sinfonia3 oriunda da Cantata BWV 156, Ich steh mit einem A discussão analítica que segue examina o Largo
Fuß im Grabe (Eu estou com um pé no túmulo) de 1729, do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056, de Johann
composta para dois violinos, viola, contínuo e oboé. Sebastian Bach, através do entendimento da Inventio e
da Dispositio. No decorrer do exercício, serão convocadas
O procedimento de submergir, em uma obra, os fragmentos algumas das figuras retórico-musicais presentes nas
de outras obras, tal como sucede no BWV 1056, é recorrente estruturas descritas e pertencentes à Elocutio. A
na produção musical de Bach. Grandes demandas exercidas Pronuntiatio não será considerada para esta análise.
pelos serviços religiosos para os quais dedicou seu trabalho,
aliadas a sua prática musical e ao oficio de professor que
4.1 – Análise da estrutura retórico-musical
muitas vezes desempenhou, poderiam ser considerados se
esta questão fosse pormenorizada. Ciente das aproximações entre o Largo do Concerto
n.5 em Fá menor, BWV 1056, e a Sinfonia, movimento
Ao mencionar a cantata BWV 156, Ich steh mit einem Fuß inicial da Cantata BWV 156, torna-se oportuno discutir,
im Grabe, deve-se frisar que um coral ou uma cantata de através de paralelos entre ambas as obras, os elementos
Bach são permeados de elementos simbólicos. Segundo pertencentes ao domínio da Inventio.
MASSIN (1997, p.464):
Inventio é a obtenção de argumentos, ideias e informações
quando põe algum texto em música – e trata-se quase sempre estratégicas a serem empregados no discurso. Para
de um texto religioso –, Bach jamais deixa passar uma ideia,
ASSUMPÇÃO (2007), em música, Inventio é a determinação
uma imagem ou uma palavra importante, sem dela oferecer
musicalmente uma transcrição simbólica. Bach possui todo das ideias centrais (melodias, temas), da tonalidade, do
um arsenal de procedimentos de escrita musical (melódicos ou andamento, dos metros, dos timbres, ou seja, das decisões
harmônicos) que lhe permitem, a qualquer momento, modificar a composicionais precedentes ao grafismo na partitura.
marcha do desenrolar da música, mudar-lhe a direção e traduzir,
assim, a imagem contida no texto que transcreve musicalmente.
Fá menor é a tonalidade estrutural do Concerto n.5,
A explicitação de ideias, imagens ou palavras, através BWV 1056. Segundo CANO (2000), teóricos barrocos
de elementos simbólicos, é procedimento sistemático apresentaram a tonalidade de Fá menor associada ao
na obra de Bach, e parece ser mais evidente na música deprimido, por Charpentier (1670); ao desespero, por
vocal que na música instrumental. O texto em Bach é Mattheson (1713); ao lamento, por Rameau (1722). Fá
fator determinante. No entanto, a tarefa de buscar maior - tonalidade que estrutura a Cantata BWV 156,
simbolismos em sua música instrumental é viável. BODKY Ich steh mit einem Fuß im Grabe - foi aliada à fúria
(1980, p.241) afirma4: e à cólera, por Charpentier (1670); à generosidade,
à resignação e ao amor, por Mattheson (1713); ao
já que a chave para o entendimento da música vocal de Bach tormento, por Rameau (1722).
quase sempre reside na compreensão do significado dos elementos
‘pictóricos’, não é injustificável pesquisar mecanismos semelhantes
em sua música para teclado. O Largo, movimento intermediário do BWV 1056, está
em Lá bemol maior, tonalidade relativa à estruturante
Inventio, Dispositio, Elocutio, Memoria e Pronuntiatio são do concerto. A Sinfonia da Cantata BWV 156 está em Fá
os constituintes com os quais é possível discutir o sistema maior. Da transcrição efetuada por Bach, observa-se não
retórico. Segundo RODRIGUÊS (2001), todos, com exceção apenas a reinstrumentação já referida, como também
da Memoria, foram aplicados à música. Memoria é a única a transposição de tonalidades no reaparecimento do
parte do sistema retórico que não foi sequer mencionada movimento em nova obra do compositor (Ex.1).

220
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226.

tonalidade do
tonalidade
movimento em análise movimento
principal da obra
discutido
BWV 156 Fá maior Sinfonia Fá maior

BWV 1056 Fá menor Largo Lá bemol maior

Ex.1 - Relações de tonalidades entre BWV 156 e BWV 1056 de Johann Sebastian Bach.

Os textos de Charpentier, Mattheson e Rameau, Inventio, nos diferentes momentos do discurso, pertence
discutidos por CANO (2000), não apresentam descrições à Dispositio. É possível ordenar a Dispositio em seis
para a tonalidade de Lá bemol maior. SCHUBART (1806), momentos: Exordium, Narratio, Propositio, Confutatio,
teórico posterior a Bach, associa a tonalidade de Lá Confirmatio, Peroratio. Segundo ASSUMPÇÃO (2007),
bemol maior ao eterno. O Largo do BWV 1056, relançado a Dispositio equivale ao início do processo de grafia da
de nova obra, segundo a discussão do autor, se vincularia partitura no processo composicional, ou seja, a suas
à prolongação da vida, à eternidade. linhas gerais e esboços fundamentais. Nesta análise,
acompanha a discussão da Dispositio um mapeamento de
Embora pertençam a tonalidades diversas, tanto a Sinfonia elementos pertencentes à Elocutio, ou seja, a verbalização
quanto o Largo, encerram-se no mesmo acorde: Dó maior. do discurso. Na Elocutio, os argumentos e ideias obtidos
A distância entre Lá bemol maior e Dó maior é mais ampla na Inventio e ordenados na Dispositio são transcritos,
que entre Fá maior e Dó maior. No Largo, a fim de vencer e se estabelecem as figuras retórico-musicais. Para o
tal percurso, a melodia desenhada por Bach percorre um autor, as figuras retórico-musicais, classificadas como
compasso a mais para alcançar seu final. O acorde de Dó principais (fundamentais) e secundárias (superficiais),
maior, que encerra ambos os movimentos, tanto na Sinfonia podem ser: desenhos melódicos; saltos melódicos
quanto no Largo, é de função dominante em suas tonalidades específicos; emprego de dissonâncias (nota de passagem,
estruturantes, Fá maior e Fá menor. Assim, prepara o ouvinte preparação-suspensão-resolução); acordes específicos
para o movimento que segue e adquire função importante (quinta e sétima diminutas); procedimentos imitativos
na estrutura e na íntima união das partes, tanto na Cantata (cânone, fugatos, fugas); a própria tonalidade escolhida
quanto no Concerto. No Largo, o acorde Dó maior prepara para o desenvolvimento da composição. Tudo para levar o
o retorno à tonalidade principal da obra, confirmada no ouvinte ao afeto desejado pelo compositor.
terceiro movimento: o Allegro em Fá menor.
Exordium é a introdução ao discurso, a passagem do
CANO (2000) diz que, para Mattheson (1739), uma silêncio ao som. No Largo do Concerto n.5 em Fá menor,
sinfonia expressa o afeto que rege a totalidade da obra BWV 1056, é possível considerar a não existência
a que pertence. Deste modo, a relação particular entre a do Exordium. O material temático apresentado pelo
Sinfonia da Cantata BWV 156 e o texto apresentado a instrumento solista encontra-se no primeiro tempo do
partir dela ganha relevância. c.1 e é acompanhado pelos demais instrumentos (Ex.2).
Não há introdução ou preparação, a melodia portadora
A Cantata Ich steh mit einem Fuß im Grabe (Eu estou com do tema é lançada de imediato.
um pé no túmulo), BWV 156, foi concebida para o terceiro
domingo de Epifania do ano litúrgico. O texto apresentado Narratio é a narração dos fatos, na qual se define o tema
remete ao leito de morte, de onde se espera a misericórdia ou assunto principal. No Largo, a definição do tema surge
e a compaixão de Deus, sobre Ele se depositando todas entre os c.1-3 (Ex.2). O material temático apresentado
as esperanças de justiça, na eternidade. Tais intenções, pelo instrumento solista é composto basicamente de
vinculadas ao BWV 156 não desaparecerão no Largo do graus conjuntos e arpejos. Entre tais compassos, algumas
BWV 1056. Elas são imanentes à obra, enraizadas à sua figuras retórico-musicais já podem ser destacadas,
concepção e não podem ser desprezadas. como as anabasis – representação musical de sentido
ascendente – entre a nota Dó do primeiro tempo do
No que se refere à orquestração, Bach é idiomático: c.1 e a nota Lá bemol do primeiro tempo do c.2, e as
quando transcreve a linha melódica do oboé para o catabasis, de sentido descendente, entre a nota Lá bemol
cravo, o compositor preenche a partitura com notas da segunda metade do primeiro tempo do c.2 e a nota Lá
de passagem, bordaduras, appoggiaturas, grupetos, bemol do primeiro tempo do c.3.
suspensões, antecipações, adornando a melodia, antes
retilínea, com recursos característicos do instrumento As suspiratios, ou seja, os fragmentos melódicos
utilizado para a máxima expressão de suas intenções. interrompidos por pequenas pausas dispersas em
A ordenação de argumentos e ideias estruturados na seu discurso, remetem a suspiros (CANO, 2000), são

221
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226

recorrentes nos demais instrumentos que acompanham salto intervalar de difícil execução para a voz cantada,
a melodia principal. Sempre em pizzicato, estas linhas seguido de anabasis e catabasis característicos do
constituem-se de pausas e colcheias, que se prolongam material temático. A Propositio é encerrada no c.7,
durante o movimento. no acorde de Mi bemol, de função dominante da
tonalidade estruturante do Largo, criando assim uma
O emprego, no início de uma passagem musical, de intervalo tensão harmônica para continuidade do movimento e
harmônico imperfeito ou dissonante é denominado distanciando-se da atmosfera inicial.
Inchoatio imperfecta. Esta figura retórico-musical é
identificada no c.1, resultante da combinação entre a nota A Confutatio refere-se à apresentação dos argumentos
Lá bemol do contínuo com a nota Dó melódica. Ainda que confirmam a tese e a refutação dos que a
sobre a melodia do cravo, destacam-se as Periphrasis – contradizem. Em música, podem ser modulações e
utilização de várias notas em pontos que somente uma tonicizações, frequentemente acompanhadas por
seria necessária – no mordente do c.1 e no trinado do c.2. variações do material temático.
A harmonia utilizada no Ex.2 pode ser apresentada como:
Ab: I V/3 IV/3 V7 I, encerrada através de cadência final. Na partitura em análise, as variações do material
temático, encontradas entre os c.7-15 (Ex.4),
Propositio é a fundamentação do discurso. No Largo, acompanhadas de modulações e tonicizações, direcionam
o trecho melódico que segue a Narratio mantém as para a confirmação das seções já expostas. No terceiro
mesmas características do material já exposto, no tempo do compasso 7, o acorde de Lá diminuto indica
entanto o reforçando com tonicização à dominante a introdução de um gesto inesperado, uma dubitatio. A
(Ex.3). No c.3 há nova Inchoatio imperfecta. Entre os incerteza produzida no c.7 será resolvida no c.9, quando
c.3-4 identifica-se um Saltus Duriusculus, ou seja, um a nova atmosfera tonal é explicitada.

Ex.2 - Narratio (c.1-3) no Largo do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056, de J. S. Bach.

Ex.3 - Propositio (c.3-7) no Largo do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056, de J. S. Bach.

222
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226.

A nota Sol bemol, na linha melódica do c.8, pode duriusculus entre os c.11-12, notas Si bemol e Ré bemol, e
ser entendida como uma heterolepsis – dissonância segundo tempo do c.14, entre as notas Si bemol e Dó. Na
harmônica alcançada por grau conjunto ou salto – aqui Confutatio, nota-se maior figuração em relação às seções
uma sétima diminuta atingida por movimento de grau anteriores e a apresentação de excertos do material
conjunto na melodia e salto no baixo –, assim como o melódico em métrica ternária, c.13-14.
intervalo gerado pelas notas Mi bemol melódica e Lá
da voz inferior do cravo, no quarto tempo do c.8. Uma No Largo, entre os c.15-19 (Ex.5), identificam-se o
exclamatio, isto é, um salto melódico ascendente de retorno e o reforço à ideia central, particularidade da
sexta menor, é encontrada no terceiro tempo do c.9 da Confirmatio. Após as modulações efetuadas na seção
linha melódica entre as notas Fá e Ré bemol. No segundo anterior, o c.15 apresenta o regresso à tonalidade principal
tempo do c.10, entre Dó e Mi bemol, ocorre um saltus com a reexposição do material temático. A melodia
duriusculus. Esta nota Dó, alcançada através de salto, reapresentada pelo instrumento solista é adornada por
é acompanhada pela nota Sol bemol na voz inferior, appoggiaturas, escapadas, trinados e notas de passagem,
resultando em uma heterolepsis. caracterizando as periphrasis, que permeiam as anabasis
e as catabasis do material temático.
A estrutura harmônica que começara com a sensação de
incerteza lançada pelo acorde diminuto, resolve-se através No c.15, entre as notas Dó da melodia e Lá bemol do
de modulação para a tonalidade de Si bemol menor. contínuo há uma inchoatio imperfecta. Nesta seção, é
possível observar que a reapresentação da melodia e da
A passagem que encerra a Confutatio ocorre entre os harmonia a ela combinada, na qual estão inseridos alguns
c.11-15. A melodia, lançada através da nota Ré bemol, acordes, é ampliada frente à sua exposição. No entanto,
apresenta uma auxesis em relação ao material temático, mantém-se sua estrutura funcional: tônica – dominante
isto é, uma transposição à segunda superior em uma – subdominante – dominante – tônica. No primeiro tempo
mesma voz. No c.11 ocorre uma heterolepsis e uma do c.19 a Confirmatio é encerrada, demonstrando que a
inchoatio imperfecta, entre Ré bemol e Sol. Há saltus reafirmação da tonalidade principal foi conquistada.

Ex.4 - Confutatio (c.7-15) no Largo do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056, de J. S. Bach.

223
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226

Ex.5 - Confimatio (c.15-19) no Largo do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056, de J. S. Bach.

Ex.6 - Peroratio (c.19-21) do Largo do Concerto n.5 em Fá menor, BWV 1056, de J. S. Bach.

Ao domínio da Peroratio pertence a conclusão do discurso. tonalidade do Concerto. O texto da ária para tenor e coro,
Em música, pode ser exemplificada por uma cadência que segue a Sinfonia, parece ilustrar esta coincidência:
final ou pelo pedal sobre a dominante, que anuncia o Nur lass mein Ende selig sein! (Só faça que meu fim seja
término das imitações em uma fuga. feliz) – Dó maior para Charpentier (1670) é a atmosfera
do alegre, para Quantz (1752), o intervalo de terça maior
No movimento em discussão, é possível considerar os é a própria expressão da alegria. (CANO, 2000)
três últimos compassos como uma pequena coda, na
qual a harmonia transcorre com maior movimentação Discorrido acerca da organização da Dispositio,
(Ex.6). Os instrumentos que antes pareciam suspirar considerando as informações provenientes da Inventio
através de pizzicatos, agora se utilizam do arco para e as figuras retórico-musicais pertencentes ao domínio
finalizar o movimento em nova textura. O c.21 confirma da Elocutio, reforça-se que, para esta discussão, as
o anunciado na Peroratio: o término do Largo se dará particularidades da Pronuntiatio não foram comentadas. A
no acorde Dó maior. Os violinos em sextas, sustentados Pronuntiatio é a execução do discurso. Gestos, movimentos
pelos demais instrumentos através da fundamental do corporais, entonação, modulação da voz, dicção e demais
acorde final, concluem, em notas ligadas, a peça que até elementos da execução são abordados na Pronuntiatio. Em
então acompanharam, contrastando com tudo o que já música, remete a conselhos práticos sobre a conduta do
acontecera, um Contrast. músico e a importância do intérprete no processo criativo
musical. Em virtude de não apontar aspectos interpretativos
Os últimos compassos reservam outra aproximação entre em sua abordagem, esta análise desconsiderou as possíveis
os movimentos comentados: tanto a Sinfonia quanto o discussões acerca da Pronuntiatio do Largo do Concerto
Largo são finalizados em Dó maior - para a Sinfonia, seu n.5, BWV 1056, de Johann Sebastian Bach, valendo-se
acorde dominante, para o Largo, acorde dominante da apenas dos aspectos a ela pertinentes.

224
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226.

5 – Considerações finais identificadas, mesmo desprovidas de um significado


Na construção deste artigo, os apontamentos retórico- definitivo, auxiliam a compreensão da escrita musical de
musicais referidos na análise do Largo do Concerto n.5, Bach. A força do discurso musical do compositor parece
BWV 1056, de Johann Sebastian Bach exemplificam como perfeitamente integrada a suas intenções expressivas
os princípios retóricos estão intimamente relacionados à que, quando o deseja, traduz na partitura uma imagem
música do período barroco. Segundo LEACH (2008, p.296), contida em um texto de forma característica.
“o contexto do discurso deve ser o primeiro ponto a ser
levado em consideração ao se embarcar em uma análise Um dos objetivos primordiais da aplicação de princípios
retórica”. No exercício estabelecido, as informações retóricos em música foi o de propiciar ao discurso musical
pertencentes ao domínio da Inventio guiaram o olhar a capacidade de despertar, mover e controlar os afetos da
acerca da obra e possibilitaram aproximar o Largo do plateia. Retórica foi um instrumento de grande influência
Concerto n.5, BWV 1056, à Sinfonia da Cantata Ich na música do período barroco. Uma investigação como a
steh mit einem Fuß im Grabe, BWV 156. Do texto da aqui proposta corrobora esta afirmação.
Cantata foram extraídos eminentes significados para o
entendimento retórico-musical do Largo, sendo este uma Uma análise retórica tem a capacidade de examinar os
transcrição da Sinfonia presente no BWV 156. elementos persuasivos de um dado discurso, no entanto,
em um exercício desta especificidade, as ferramentas
A Dispositio, sobre a qual foi possível explorar a empregadas com um corpus podem ser bastante
organização do Largo, não pode ser entendida como um distintas das utilizadas para outro. Conclui-se com
esquema formal e rígido, e sim como uma estrutura que LEACH (2008, p.308): “em síntese, a análise retórica é
emerge da própria música. As figuras retórico-musicais uma arte interpretativa”.

Referências
ASSUMPÇÃO, Sérgio Eduardo Martineli de. Ascendência retórica das formas musicais. Dissertação - Mestrado em Música.
Escola de Comunicação e Artes, USP: São Paulo, 2007.
BACH, Johann Sebastian. Harpsichord Concerto in F minor, BWV 1056. Mainz: Eulenburg, 1983.
BERISTÁIN, Helena. Diccionario de Retórica y Poética. Cidade do México: Porrúa, 1988.
BODKY, Erwin. The interpretation of Bach’s keyboard works. Cambridge, Massig Harvar: Univ. Press, 1980.
CANO, Rubén López. Música y Retórica en el barroco. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.
LEACH, Joan. Análise Retórica. In: BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som:
um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2008. p.293-318.
MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte. História da música ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
MATTOS, Fernando Lewis de. Panorama da música no ocidente. Porto Alegre: Arena, 2009.
MERSIOVSKY, Gertrud. Organo pleno e retórica musical nos prelúdios e fugas de Johann Sebastian Bach. Rio de Janeiro:
Dois Passos, 2005.
RODRIGUÊS, Ana Carolina. Análise de alguns aspectos retórico-musicais de ´Domine Deus, Agnus Dei’ do Glória RV 589
de Antonio Vivaldi. IN: Música Hodie, volume 6. UFG, 2001. p.35-49.
SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
SCHUBART, Chr. Fr. D. Ideen zu einer Ästhetik der Tonkunst, Wien, 1806. Disponível em: http://www.musebaroque.fr/
Documents/tonalites.htm. Acesso: 25 de setembro, 2011.

Leitura recomendada
BARTEL, Dietrich. Musica Poetica: musical rhetorical figures in German Baroque music. Nebraska: University of Nebraska
Press, 1997.

225
LANZONI, P. A. Apontamentos retórico-musicais no Largo do Concerto n.5, BWV 1056... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.218-226

Notas
1 Segundo CANO (2000, p.38), o termo ‘poética’ (do grego crear) refere-se à teorização, normatização, sistematização, invenção de instruções,
conhecimentos e recursos técnicos com os quais conta o artista durante o processo de criação. Esta nova classificação musical somou-se às
categorias estabelecidas por Boécio (480-524), na Idade Média: musica theorica e musica practica.
2 De acordo com MATTOS (2009, p.37), pathos (do grego: sofrimento, paixão) é, para os antigos gregos, a utilização de figuras de retórica com a
finalidade de provocar emoções intensas. Atualmente, a expressão designa os movimentos passionais (suavização ou intensificação da expressão
das emoções) de uma obra de arte. Daí resulta a expressão ‘patético’ com o sentido de algo que revela forte emoção, que comove por ser trágico,
sinistro ou, mesmo, cruel.
3 Sinfonia: termo italiano, usado a partir do Renascimento para designar vários tipos de peças (geralmente instrumentais). Em c.1700, referia-se
especialmente à abertura ‘italiana’ em três movimentos (rápido-lento-rápido/dança).
4 Tradução livre: Since the key to understanding Bach’s vocal music almost always lies in grasping the meaning of the “pictorial” elements, it is not
injustifiable to search for similar devices in the keyboard music.

Pablo Alberto Lanzoni é mestrando em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
onde pesquisa as aproximações entre o discurso cinematográfico e o discurso musical. Possui graduação em Música -
habilitação em Regência Coral (2008) pela mesma universidade. Desde 2011, é professor de música do Instituto Federal
do Rio Grande do Sul – câmpus Porto Alegre. Já atuou em diferentes coros e orquestras.

226
SOUTO, L. H. A. Resenha sobre a tese de doutorado O Violão na era do disco... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.227-230.

PEGA NA CHALEIRA - RESENHAS

Resenha sobre a tese de doutorado


O Violão na era do disco: interpretação
e desleitura na arte de Juliam Bream de
Sidney Molina Júnior
Luciano Hercílio Alves Souto (UNESP, São Paulo, SP)
lhasouto@yahoo.com.br

Palaras-chave: violão na era do rádio; interpretação musical; Andres Segovia; Juliam Bream.

Review of the dissertation The guitar in the LPs era: interpretation and misreading in the art
of Juliam Bream by Sidney Molina Júnior

Keywords: guitar in the radio era; musical interpretation; Andrés Segovia; Juliam Bream.

1 – A Tese
As práticas interpretativas em seu momento atual seus próprios objetos de estudo, de maneira suficiente.
sofrem certo isolamento epistemológico em relação Na medida em que disponibiliza material fonográfico
às demais áreas do conhecimento, ocasionando certa de relevância sobre a produção musical violonística e
restrição do seu espaço próprio de reflexão. Em sua discute questões relacionadas à interpretação musical
tese intitulada o violão na era do disco, MOLINA (2006, pelo viés da filosofia e da estética, o objeto desta resenha
p.24) aponta para o problema ao se referir às práticas representa um importante canal de diálogo com as
interpretativas como subsidiárias de outras áreas como práticas interpretativas. A despeito de sua produção estar
Composição, Análise, Estética, Etnomusicologia, até vinculada à área de comunicação e semiótica, a tese aqui
mesmo da “subjetividade caprichosa das emoções dos resenhada fornece subsídios teóricos imprescindíveis
intérpretes”. Tal declaração desperta nossa reflexão à ampliação e ao aprofundamento das discussões
para a importância do diálogo entre tal área e outras interpretativas na área da performance. O violão na era
instâncias da produção do conhecimento, com vistas à do disco: interpretação e desleitura na arte de Juliam
conquista da autonomia necessária à investigação de Bream trata da constituição e do estabelecimento do

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 29/11/2011- Aprovado em: 18/03/2012
227
SOUTO, L. H. A. Resenha sobre a tese de doutorado O Violão na era do disco... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.227-230

cânone1 do repertório violonístico, ressaltando a era O fato desse processo se constituir durante o séc. XX traz
dos LPs (1950-90) como marco central deste processo. uma importante diferença em relação às tradições dos outros
instrumentos: a força das gravações não apenas apresenta
A produção fonográfica de dois personagens principais é obras, mas seleciona e consolida – para sempre - o próprio som
investigada pela tese: o Espanhol Andres Segovia (1893- do instrumento, cujo conceito não estava pronto antes desse
1987) e o Inglês Juliam Bream (1933), cujas gravações momento. Por isso - e para além dos repertórios possíveis -
são analisadas à luz de autores como Dahlhaus (1991), o cânone do violão na era do disco é, antes de tudo, o seu
próprio som: sua voz, sua dicção, seus recursos expressivos,
Adorno (1974), Lotman (1996), Said (1991) e Bloom sua técnica, seus efeitos de timbre e percussão, seus silêncios.
(1993). Molina demonstra a ascensão e consolidação MOLINA (2006, p.49).
do repertório do violão clássico junto ao cenário
internacional de concertos, em analogia à transformação Tal declaração demonstra que o cânone do repertório
conceitual do disco, partindo do “LP – Recital” até o “LP violonístico constitui um fenômeno tardio, ocorrido em
– Obra”, por meio de um levantamento minucioso das pleno séc. XX, se comparado ao cânone do repertório
gravações realizadas por tais violonistas, recuperando o pianístico e orquestral que remontam o final do séc. XVIII.
contexto original de seus discos. Portanto, essa tardividade “fez com que sua centralidade
parecesse destinada, nesse momento inaugural, mais ao
Dividida em duas partes de três capítulos cada, excluídos som dos intérpretes através das versões que eles fizeram
a coda e os apêndices, o trabalho se organiza da seguinte das obras dos compositores do que às obras compostas,
forma: o primeiro capítulo é dedicado à “Performance tomadas em si.” MOLINA (2006, p.50).
Musical como Desleitura” e se desenvolve a partir da
temática relacionada à autenticidade interpretativa, Segundo o autor, a concepção atual sobre a formação
empreendendo discussões sobre tópicos específicos das do cânone pianístico é que se trata de uma seleção de
principais teorias da interpretação predominantes na obras compostas, partituras e edições, ao passo que
segunda metade do séc. XX. O subtítulo “Performance e o conhecimento do repertório executado por Segovia
crítica” é introduzido com forte teor crítico, no momento depende mais da escuta de suas próprias performances.
em que o autor, ao comentar uma citação de Dahlhaus Desta forma, suas interpretações parecem constituir
(1991) declara: o fundamento e não uma consequência de obras para
violão compostas por Ponce, Tansman ou Torroba.
A interpretação musical que – “merece o nome” – deve ser fiel
ao texto composto, seja ele escrito ou tácito; além disso, deve MOLINA (2006, p.50).
também buscar coerência e fidelidade intrínseca, isto é, deve
poder controlar - enquanto possa - as variáveis deixadas em Esta etapa da pesquisa, sobre a “Cena primária de
aberto pela composição, variáveis essas tão importantes quanto instrução” versa sobre as origens poéticas de Juliam
a forma sonora fixa da obra, mas isso também não basta, pois
uma interpretação – fiel e coerente que seja – necessita responder Bream. Utilizando como fundamentação teórica as
também àquilo que não se controla da obra: só a partir desse desleituras de Freud e Derrida por Bloom, Molina
ponto, podemos dizer, ela deixa de ser escolar. MOLINA (2006, p.2). procura afastar toda e qualquer espécie de idealização
psicológico-biográfica, na intenção de abrir espaço para
Tal declaração introduz de forma contundente a discussão identificar na arte de Juliam Bream, a força da influência
sobre interpretação musical, perpassando os eixos: de Segovia. O terceiro capítulo é finalizado com a divisão
estilística e semântica versus estilística e retórica, termos da produção discográfica do violonista em três momentos,
estes introduzidos por Lotman, abrindo caminho para contendo duas fases cada um, contemplando um total de
a tese da multiplicidade de interpretações. O capítulo cinquenta discos. Tal empreendimento se deve em virtude
inicial é encerrado com a proposição da desleitura da necessidade de apreensão da trajetória artística de sua
bloomiana2 para o contexto das autenticidades, que carreira, desenvolvido na segunda parte da tese, sobre
constituem o foco da discussão preliminar empreendida Uma desleitura do legado fonográfico de Juliam Bream.
neste momento inicial.
Os próximos três capítulos tratam do desenvolvimento
O segundo capítulo, “Um cânone a partir do som” traça artístico propriamente dito da carreira de Juliam Bream.
um panorama histórico do desenvolvimento do disco Desta forma, cada capítulo analisa separadamente cada
no séc. XX, demonstrando o impacto do aprimoramento uma das etapas que compõem tal desenvolvimento,
tecnológico da produção fonográfica sobre o contemplando o projeto estético de cada disco em
desenvolvimento do disco enquanto projeto estético. particular, por meio da análise de aspectos como escolha
Neste contexto, a produção de Segovia é identificada do repertório, detalhamento técnico das gravações e
como o centro do cânone do repertório violonístico, utilização de instrumentos musicais específicos.
considerando que suas gravações ocorreram entre 1927 e
1977, aliadas ao ressurgimento 3 do violão em virtude dos Um aspecto que julgamos pertinente ressaltar sobre a
empreendimentos de Torres e Tárrega, no final do séc. XIX. segunda parte da tese diz respeito ao estudo comparativo
Desta forma, a conjunção de todos esses fatores propiciou entre as discografias de Segóvia e Bream, empreendimento
as condições necessárias para que a formação do cânone este realizado através do levantamento dos autores
do repertório do violão clássico acontecesse durante o gravados por esses dois intérpretes e, no caso das obras
séc. XX, em plena era do disco. Segundo Molina: gravadas por ambos, Molina apresenta comentários

228
SOUTO, L. H. A. Resenha sobre a tese de doutorado O Violão na era do disco... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.227-230.

críticos sobre aspectos específicos de interpretação musical, desencadeando uma prática de reprodução de
musical. Fundamentando-se na dialética da influência de interpretações que perdura até os dias de hoje.
Bloom, o autor demonstra como Segovia influencia a arte
de Juliam Bream, tanto nos projetos dos discos quanto Ao se referir às repetidas execuções de uma obra musical
nas escolhas interpretativas. ao longo dos anos e ao caráter quase definitivo que
ela pode adquirir em decorrência de uma espécie de
O quarto capítulo, “A arte de Juliam Bream” demonstra elaboração formal adquirida por meio deste processo,
o desvio deste interprete em relação a Segovia, HARNONCOURT declara que:
ressaltando três aspectos: o primeiro deles pode ser
As numerosas interpretações de algum modo se copiam umas às
contemplado pela escolha do repertório, que atribui outras, acabando por constituir uma forma legítima de execução
maior importância à musica inglesa. O segundo se refere que não pode mais ser ignorada em novas execuções [...] a tradição
à escolha dos instrumentos, no caso da utilização do é considerada como uma espécie de purificação, de cristalização
alaúde, e na formação camerística. O terceiro aspecto definitiva confirmada por longos anos de experiência.”
HARNONCOURT (1984, p.51).
está relacionado à vertente interpretativa, influenciada
pela performance historicamente informada. No quinto
capítulo, sobre Os LPs temáticos e a instrução sonora, o Tal processo é criticado por DUPRAT (2008, p.8) pois,
autor analisa os projetos discográficos que envolvem a segundo o autor, a interpretação musical se transformou
encomenda de obras inéditas a diversos compositores e mundialmente numa grande fábrica de peças de
verifica a constituição da maturidade artística de Bream, reposição, sem qualquer preocupação com a pesquisa.
evidenciada pela conquista de uma sonoridade própria Duprat vincula tal fato a uma universidade que já não é
e de um estilo pessoal e particular de interpretação, mais tão universal, à ânsia por carreira e a necessidade
diferenciando-se de Segovia. de enquadramento profissional, condenando a ausência
de esforços direcionados à solução de problemas de
O sexto capítulo da tese parece constituir o clímax deste andamento, dinâmica, ornamentação, ritmo e outros
processo de influência entre intérpretes, permeado de elementos na interpretação.
angústia, na medida em que trata justamente do momento
em que Bream enfrenta o repertório Segoviano de frente. É exatamente sobre este aspecto que incide nossa
De acordo com o autor, representativos desta fase clímax, crítica; considerando o atual estado do conhecimento
sucedida de um momento posterior crepuscular são os sobre os conteúdos relacionados ao repertório do
discos: Juliam Bream plays Granados y Albéniz (1983) e La violão clássico, podemos afirmar que as interpretações
Guitarra Romântica (1991). recentes têm acrescentado muito pouco conteúdo ao
repertório executado, no sentido da abordagem do
repertório em questão, no que tange a soluções para
2 - Reflexões críticas questões de andamento, dinâmica, articulação, agógica,
Em “um cânone a partir do som” (capítulo 2) Molina idiomatismo dentre outros aspectos. Mesmo com
menciona um estudo intitulado Performing Music in the todos os estudos culturais relacionados à interpretação
Age of Recording, de autoria de Robert Phillip (2004), musical, empreendidos pelas mais diversas áreas do
no qual o autor demonstra o impacto dos primeiros conhecimento tais como musicologia, sociologia, história,
registros fonográficos sobre a vida musical europeia e análise, estética e filosofia, as práticas interpretativas
norte-americana quanto à padronização dos critérios ainda carecem da percepção de que a interpretação de
para a performance, em relação ao período anterior às uma obra musical transcende a reprodução acrítica de
gravações no qual havia grande diversidade entre os execuções-modelo cristalizadas em gravações. A despeito
padrões de interpretação musical. MOLINA (2006, p.38- da contribuição que os estudos culturais oferecem às
40). Desta forma, supomos que um processo semelhante questões da interpretação, retomamos o comentário
possa ter ocorrido com a prática musical violonística, sobre Dahlhaus em Molina: uma interpretação deixa
pois, na medida em que fixavam interpretações, as de ser escolar quando é fiel ao texto, coerente e que
primeiras gravações podem ter sido reconhecidas responda também àquilo que não se controla da obra.
entre os violonistas como referência para a execução MOLINA (2006, p.2).

229
SOUTO, L. H. A. Resenha sobre a tese de doutorado O Violão na era do disco... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.227-230

Referências
DUPRAT, Régis. Musicologia e Interpretação: teoria e prática. Revista eletrônica de divulgação científica, Faculdade de
educação, Ciências e Letras Don Domenico.
GLOEDEN, Edelton. O Ressurgimento do Violão no Século XX: Miguel Llobet, Emílio Pujol e Andrés Segovia. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes, USP. São Paulo: 1996.
HARNONCOURT, Nikolaus. O Discurso dos sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1998.
MOLINA JÚNIOR, Sidney. O violão na era do disco: interpretação e desleitura na arte de Juliam Bream. Tese de Doutorado
defendida junto ao Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, PUC-SP. São Paulo, 2006.
______. Performance Musical como Desleitura. ANPPOM, décimo quinto congresso / 2005.

Leitura recomendada
DAHLHAUS, Carl. Estética Musical. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1991.
LOTMAN, Iuri M. La Semiosfera I. Semiótica de la cultura y Del texto.Tradução de Desiderio Navarro. Madrid: Ediciones
Cátedra, 1996.

Notas
1 O cânone, palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência,
quer se interprete a escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de crítica,
ou, como eu faço, por autores que vieram depois e se sentem escolhidos por figuras ancestrais. (BLOOM, Harold. O Cânone
ocidental. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: editora objetiva, 1994, p.27-28, In: Molina, 2006).
2 “A tetralogia da influência de Harold Bloom compreende os livros: A angustia da influência (1973), Um mapa da desleitura (1975),
Cabala e crítica (1975) e Poesia e Repressão (1976).” (In: MOLINA, Performance Musical como Desleitura. ANPPOM-décimo
quinto congresso-2005).
3 O termo “ressurgimento do violão” é utilizado por Edelton Gloeden em sua tese de Doutorado intitulada O Ressurgimento
do Violão no Século XX: Miguel Llobet, Emílio Pujol e Andres Segovia, (São Paulo: Departamento de Música da Escola de
Comunicação e Artes, USP. 1996).

Luciano Souto é Doutorando e Mestre em performance pelo Instituto de Artes da UNESP-SP, sob orientação da Prof.
(a) Dr.(a) Gisela Gomes Pupo Nogueira. Atuou como professor assistente em caráter temporário na UEM - Universidade
Estadual de Maringá-PR, entre 2009 e 2010, e como professor de violão na Associação Cultural Casa de Música de Ouro
Branco durante os anos letivos de 1998 a 2003. Trabalha principalmente com os seguintes temas: Violão, Teoria e Prática
da Performance, História da Música e música de câmara. Como solista de violão já se apresentou nos principais teatros
e casas de cultura do país.

230
ARROYO, M. Pensando a educação musical imaginativamente... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.231-236.

Pensando a educação musical


imaginativamente: uma filosofia da
educação musical por Estelle Ruth
Jorgensen
Margarete Arroyo (UNESP, São Paulo, SP)
etearroyo@gmail.com.br

Resenha do livro JORGENSEN, Estelle R. Pictures of Music Education. Bloomington: Indiana University Press, 2011. 354
p. U$29.95

Palavras-chave: metáfora e modelo em educação musical; filosofia da educação musical; Estelle R. Jorgensen.

Thinking music education imaginatively: a philosophy of music education by Estelle Ruth


Jorgensen

Review of the book JORGENSEN, Estelle R. Pictures of Music Education. Bloomington: Indiana University Press, 2011. 354
p. U$29.95

Keywords: metaphor and model in music education; philosophy of music education; Estelle R. Jorgensen.

Indagações sobre os valores da música e da educação interesse de educadores musicais brasileiros em razão
musical têm sido feitas ao longo dos séculos na sociedade da presença marcante do pensamento de Paulo Freire1
ocidental. Trata-se de questões de cunho filosófico que como uma fundamentação recorrente nas reflexões da
a partir do final da década de 1980 passaram a compor autora. Os livros, em número de quatro, articulam-se
o recém-estabelecido campo da Filosofia da Educação na construção de uma Filosofia da Educação Musical
Musical. A instituição dessa subárea dos estudos baseada no pensamento dialético2.
pedagógico-musicais ocorreu com ações decisivas de
Estelle R. Jorgensen, autora do título aqui resenhado. O primeiro livro, “In search of Music Education”
(JORGENSEN, 1997), apresenta a base filosófica sobre
Jorgensen, australiana radicada nos Estados Unidos, a qual constrói suas ideias e propostas para a Educação
participou intensamente da constituição da Filosofia da Musical. Entendo que a citação abaixo é central nesse
Educação Musical como “campo distinto de atividade volume bem como nas suas produções posteriores, pois
profissional”, liderando no início dos anos 1990 várias expressa sua concepção de educação musical3:
iniciativas: a criação do Grupo MENC Philosophy
A educação musical [...] é uma colagem de crenças e práticas.
Special Research Interest; a realização da primeira Seu papel na formação e manutenção dos [mundos musicais]
Conferência em Filosofia da Educação Musical; a - cada qual com seus valores, normas, crenças e expectativas -
fundação da Sociedade Internacional de Filosofia implica formas diferentes nas quais ensino e aprendizagem são
da Educação Musical; e a publicação do periódico realizados. Compreender esta variedade sugere que pode haver
inúmeras maneiras nas quais a educação pode ser conduzida com
Philosophy of Music Education Review (MCCARTHY; integridade. A busca por uma única teoria e prática de instrução
GOBLE, 2011, s.p.). Sua vasta produção – artigos, musical aceita universalmente, pode levar a uma compreensão
organização e capítulo de livros, livros – desperta limitada (JORGENSEN, 1997, p.66).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.27, 236 p., jan. - jun., 2013 Recebido em: 29/11/2011- Aprovado em: 18/03/2012
231
ARROYO, M. Pensando a educação musical imaginativamente... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.231-236

Em Transforming Music Education (JORGENSEN, 2003) educação musical”, isto é, possibilita pensá-la “músico-
a autora aborda mudanças necessárias à Educação educacionalmente” (music educationally).
Musical com base na atuação de músicos-educadores e
de artistas. O terceiro livro, The Art of Teaching Music, de Continuando a exposição dos argumentos que
caráter prático, é “um convite para pensar, por meio de sustentam a recorrência às metáforas, Jorgensen lembra
importantes aspectos, o que [educadores musicais] fazem que o conhecimento artístico é também em grande
e deveriam fazer” (JORGENSEN, 2008, p.xi). parte imaginativo. Assim, empregar a metáfora para
pensar a educação musical, “alinha-a com a música
A última publicação, Pictures of Music Education como empreendimento imaginativo, o que evidencia
(JORGENSEN, 2011), compõe com as anteriores uma consistência entre o objeto estudado e a maneira de
filosofia da educação musical sintetizada em quatro estudá-lo, iluminando potencialmente a educação
perspectivas articuladas: educação musical vista musical” (JORGENSEN, 2011, p.2).
amplamente (JORGENSEN, 1997); educação musical vista
transformativamente (JORGENSEN, 2003); educação A comparação que faz entre “grandes narrativas” na
musical vista como prática artesã (artful) (JORGENSEN, Filosofia da Educação Musical – e aqui cita: Bennett
2008); e educação musical vista imaginativamente Reimer, David Elliott, Thomas Regelski e Frede Nielsen –
(JORGENSEN, 2011). O termo “articulada” indica um que vislumbram um modelo ideal de educação musical
trabalho de continuidade entre esses livros. A densidade do e sua proposta filosófica que vai para outra direção, a
tratamento dos temas e o amadurecimento argumentativo “das inúmeras maneiras nas quais a educação pode ser
tornam as ideias filosóficas de JORGENSEN sobre a conduzida com integridade” (JORGENSEN, 1997, p.66),
Educação Musical material rico aos educadores musicais, esclarece mais acerca do pensar a educação musical
estejam esses em situação de formação inicial, de atuação metaforicamente:
profissional, incluídos aqui os docentes formadores.
As metáforas nos conduzem a uma direção muito diferente.
Ao invés de tender a uma única e melhor maneira, aquela que
Pictures of Music Education está organizado em abarcaria grandes narrativas [...] pensar metaforicamente sobre
14 capítulos, sendo o primeiro de cunho teórico e educação musical abre muitas possibilidades de conceber o
metodológico e o último conclusivo. Os capítulos trabalho da educação de modo a resistir a reduzi-lo a princípios
universais. A opção por “muitos” ao invés de “um”, com base
intermediários ( 2 a 13) trazem, cada qual, um par de no pensar metaforicamente, subverte a busca pelas “grandes
metáfora-modelo para a Educação Musical, material que narrativas”, pelo “melhor e verdadeiro caminho” para a educação
compõe quadros imaginativos acerca desse campo de musical [...] (JORGENSEN, 2011, p.4).
conhecimento e ação profissional4.
Ressalta igualmente que essa perspectiva metafórica da
O prefácio do livro inicia-se com uma série de perguntas educação musical
relativas aos seus dois componentes-chave: metáfora e
tem o potencial de problematizar a proeminência da maneira
modelo. científica, objetiva e racional de pensar e agir. Enquanto os
modelos são frequentemente testados de acordo com os cânones
Deveria a educação musical ser construída em termos metafóricos? da ciência, as metáforas confiam na compreensão imaginativa
Uma única metáfora seria capaz de fundamentar a educação e subjetiva que são mais suscetíveis à reflexão filosófica e à
musical? Se não, como avaliar as metáforas possíveis? Se as descrição qualitativa (JORGENSEN, 2011, p.3).
metáforas têm seu uso limitado, modelos poderiam constituir
meios úteis para conceitualizar a educação musical? Se nem
metáfora nem modelo seriam capazes de fundamentar a educação O primeiro capítulo apresenta os argumentos de
musical, poderia uma análise comparativa de metáfora e modelo ser Jorgensen acerca dessa proposta e os procedimentos
útil? O que seria tal análise? Como as várias metáforas e modelos metodológicos empregados na elaboração da mesma.
seriam avaliados criticamente bem como construtivamente para a
educação musical? Qual seria a contribuição dessa análise para a
Nele, a autora justifica extensamente porque recorre a
prática da educação musical? (JORGENSEN, 2011, p.xi) metáforas e a modelos. No caso da primeira, Jorgensen
lembra que o discurso metafórico é recorrente tanto na
Pensar a Educação Musical a partir de metáforas própria pedagogia musical quanto na prática musical.
surgiu do contado da filósofa com outros autores, São exemplos a fala de professores que se valem de
mas mostrou-se insuficiente pela subjetividade metáforas para explicar acerca da música – emite esse
acentuada. A “justaposição” desse elemento a outro som tão suavemente quanto um pluma deslizando no
mais objetivo – modelo [científico] – poderia conceder ar; ou de músicos – sons sombrios, etc. Desse modo
uma fundamentação mais consistente a essa Filosofia a autora pergunta: “por que não levar essa forma de
da Educação Musical, considerou Jorgensen. Além ação pedagógica e musical para pensar sobre a própria
disso, a autora entende que, a despeito dos diálogos educação musical, de modo que abordagens usadas
necessários que a Educação Musical tem mantido com para explorar como as pessoas conhecem música sejam
outros campos de conhecimento, essa abordagem consistentes com a natureza da própria experiência
filosófica baseada na justaposição de metáfora e modelo musical?” (JORGENSEN, 2011, p.2). Pode-se depreender
possibilita um “exame sistemático” da educação musical que essa argumentação sustenta a possibilidade de
sustentado “nas características e no trabalho da própria pensar a educação musical “músico-educacionalmente”.

232
ARROYO, M. Pensando a educação musical imaginativamente... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.231-236.

Embora Jorgensen conceda à metáfora um lugar instrução, currículo e administração. Um alerta deve
privilegiado na sua reflexão, reconhece que o pensamento ser feito a respeito da necessidade de verificar qual o
científico também tem seu potencial, o que a move a sentido que a autora concede a termos tão presentes
considerar a “justaposição” entre metáfora e modelo. no senso comum e fortemente vinculados ao contexto
escolar e acadêmico, apenas um dos vários cenários onde
Na distinção que a autora faz entre esses componentes, aprendizagem e ensino de música podem acontecer “com
descreve metáfora como “um tipo de símbolo; algo que integridade”. Isso para que não se tome a compreensão
representa algo”, mas não apenas na relação um a um. desses elementos da citada estrutura de maneira limitada
“Metáfora trabalha projetando ao assunto principal um ao contexto escolar e acadêmico, compreensão que vai
sistema de ‘implicações associadas’ [...]”, citando Max de encontro ao que Jorgensen defende como educação
BLACK (1962, p.39). Ainda de acordo com esse autor, “a musical (ver citação do livro de 1997)6.
metáfora seleciona, enfatiza, suprime e organiza aspectos
do assunto principal [...]” (JORGENSEN, 2011, p.5). Em continuidade à explanação dessa filosofia da
Educação Musical, a autora refere-se a cada par de
Na explicitação de “modelo” continua referenciada em metáfora-modelo como um quadro [picture] da educação
BLACK. Jorgensen destaca que “modelos funcionam de musical. Esses quadros ou “tipos teóricos” “são apreciados
modo similar à metáfora” no sentido de que “falar de comparativamente” já que, embora distintos, apresentam
modelo em conexão com uma teoria científica sugere aspectos em comum. Mesmo o limite entre eles não é
uma metáfora”. Entretanto, há diferença entre eles: definido. De fato, eles se complementam, aponta a
enquanto a “metáfora opera com implicações de senso autora. “Tomá-los sozinhos não é suficiente”. Entretanto,
comum”, o modelo “requer controle de teorias científicas cada par é exposto separadamente com a finalidade de
firmemente construídas”. A distinção entre metáfora promover “a compreensão de seu foco conceitual e de
e modelo para BLACK, cita Jorgensen, “é parcialmente seus limites” (JORGENSEN, 2011, p.10)
uma questão de perspectiva histórica”, pois a experiência
pedagógico-musical pode iniciar-se de maneira Visando “preservar a tensão entre cada metáfora e modelo”,
imaginativa e subjetiva e tomar uma forma mais objetiva, a autora “lista pares de metáforas associadas a modelos”
mais sistemática. (JORGENSEN, 2011, p.5). baseada na sua própria experiência (JORGENSEN, 2011,
p.9), cada qual compondo um capítulo conforme está
Procedimentos de ordem metodológica que compõem indicado na nota de n. 4:
este capítulo estão indicados a seguir:
Metáfora e Modelo
Justapor metáfora e modelo significa que a análise cai no território
entre metáfora e modelo – o que poderíamos denominar “metáfora
Boutique e Consumo
modular” ou “modelo metafórico”. Por um lado, eu não quero Vila e Comunidade
objetivar a metáfora, mas deixá-la com asas para voar. Por outro Artista e Apreensão
lado, é importante esboçar sistematicamente como um modelo
deriva da metáfora e é mais ou menos consistente com ela (embora
Revolucionário e Transgressão
o modelo possa ser menos ambíguo, multifacetado e evocativo Indústria e Produção
que a metáfora). Desse modo, cada modelo não é equivalente Jardim e Crescimento
à sua metáfora correspondente, mas um retrato sistemático e Terapeuta e Cura
derivado da metáfora. A ambigüidade da metáfora também sugere
a possibilidade de muitos modelos diferentes. Os apresentados por Corte e Regra
mim são apenas alguns exemplos (JORGENSEN, 2011, p.9). Lar e informalidade
Guia e Pedagogia
A autora sugere que a educação musical é “tanto Teia e Conectividade
metáfora quanto modelo”. Para sustentar tal perspectiva,
vê-se diante de duas tarefas. A primeira “requer que Jorgensen refere-se a esse conjunto de quadros como uma
cada metáfora seja construída de modo a evocar, galeria da qual ela é a curadora. Esses quadros são expressos
ainda que em parte, o trabalho da educação musical por meio de “verbos e substantivos, sentidos estáticos e
[...]”. Por exemplo: no capítulo 13, a metáfora é “Teia” dinâmicos, processos e produtos, meios e fins”. A sequência
[Web]. A segunda tarefa “demanda que as várias em que aparecem no livro não mantém qualquer ordem,
aparências de cada metáfora sejam sistematicamente “mas compreendem o mundo multifacetado e diverso da
consideradas em um modelo que deriva da metáfora” educação musical [...]” (JORGENSEN, 2011, p.12).
(JORGENSEN, 2011, p.9). No exemplo do capítulo 13, o
modelo derivado da metáfora “Teia” é “Conectividade” Dada a impossibilidade de comentar cada um dos pares
[Connectivity]. Objetivamente, esse modelo é analisado de metáfora-modelo, concentro atenção no “quadro”
com base em uma estrutura para refletir acerca da “Teia” e “Conectividade”.
educação musical. Para tanto, JORGENSEN (1980, p.25-
30; 2011, p.10) se vale de elaboração anterior na qual Na exposição de cada “quadro”, Jorgensen inicia
“propõe uma estrutura conceitual de várias facetas descrevendo a metáfora, seguida de seu modelo
da educação musical” 5. Essa estrutura comporta os sistematicamente exposto com base naqueles elementos
seguintes elementos: música, ensino, aprendizagem, da educação musical citados anteriormente.

233
ARROYO, M. Pensando a educação musical imaginativamente... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.231-236

No caso de “Teia” e “Conectividade”, a autora comenta se resume em “os meios e os fins de organizar o contexto
tratar-se de imagens de “safra recente”. Porém no qual” a educação musical acontece (JORGENSEN,
lembra que tais imagens já figuram na educação 2011, p.10), aponta que ela se beneficia das vantagens
geral e na educação musical (tecnologia como o rádio flexíveis dos sistemas virtuais, por exemplo, mas pode
promovendo a aprendizagem musical) pelo menos criar exclusões se todos não estiverem preparados para
desde o início do século passado. lidar com essas tecnologias digitais.

O que a imagem de “teia” [web] evoca em Jorgensen? A autora finaliza o capítulo 13 que apresenta o quadro
Com esse termo, a autora se refere a “um sistema “Teia e Conectividade” discorrendo sobre as “vantagens e
complexo de elementos interconectados”. Lembra a desvantagens musicais da conectividade”, às quais ela se
engenhosa, mortal, porém vital, teia das aranhas. Lembra refere, respectivamente, como “lado claro e lado escuro”
também da internet – rede que é ao mesmo tempo virtual (JORGENSEN, 2011, p.244):
e completamente presente em nossas vidas concretas. A
No lado claro, há possibilidades de ampliação e mudança de
imagem que essas teias lhe evocam são de “um sistema músicas que são menos limitadas no espaço e tempo, o ensino é
que é especificamente designado para seus propósitos colaborativo, o aprendizado virtual e por toda a vida, instrução
(JORGENSEN, 2011, p.232). A autora se concentra na intensificada, currículo ampliado e administração flexível. No lado
descrição das características da internet em termos escuro, as experiências acústicas e ao vivo de música podem ficar
comprometidas, a autonomia do professor restrita, a aprendizagem
sociais, tecnológicos e musicais, dizendo-se optar pelo ineficaz, a instrução forçada, e a aquisição de informação
caminho do meio entre o repúdio a essa tecnologia e a supervalorizada. Dadas essas possibilidades, resta-nos escolher os
“tecnofilia”. Ressalta, com isso, a necessidade de postura melhores aspectos e evitar os piores, pesando as oportunidades
crítica tanto para perceber os “benefícios” da rede web desses quadros para nossas vivências individuais e determinar
como nos movermos para o futuro (JORGENSEN, 2011, p.250).
quanto as “desvantagens que essa metáfora e seu modelo
associado trazem para a educação musical” (JORGENSEN,
É possível identificar nessa proposta de pensar a
2011, p.236). Essa imagem figurativa da educação musical
Educação Musical a filosofia dialética característica da
é seguida pela descrição mais objetiva do modelo a ela
autora e sua convicção de que qualquer abordagem do
associado, “Conectividade”.
real é sempre parcial e circunstancial, marcas que ficam
reforçadas quando expõe que
As considerações conceituais referentes ao modelo de
“Conectividade” iniciam-se pelo aspecto do ensino, esses quadros [compostos por pares de metáfora e modelo]
apontando o papel do professor na “Conectividade”: um expressam exemplos dos modos pelos quais a educação musical
pode e deve funcionar; [...] eles têm o propósito modesto de
guia dos estudantes para um “uso seguro e bem sucedido,
abrir para outras possibilidades mais frutíferas de se entender
crítico e avaliativo das informações disponíveis” na internet. as maneiras pelas quais as pessoas conhecem música [...] Eles
Professores e estudantes compartilham interesses tanto ilustram as formas de contribuições dialética, dialógica e dinâmica
“informais“ quanto “formais” e trocam papéis quanto a de pensar sobre a educação musical e de praticá-la. Eles também
sugerem meios pelos quais professores e outros interessados
quem ensina. No item “aprendizagem”, além desses atores
podem articular fenômenos disparatados, promovendo insights
exercerem o papel de aprendizes no cenário, aprender (JORGENSEN, 2011, p.12).
ocorre tanto formalmente quanto informalmente e “os
estudantes no modelo da conectividade ficam livres O objetivo de Jorgensen com essa proposta de pensar a
para seguir seus próprios interesses” (JORGENSEN, 2011, Educação Musical é “principalmente conceitual”. A tarefa
p.239). Ainda assim, a aprendizagem formal tem seu de testar o funcionamento prático desses pares ela deixa
lugar assegurado na preparação dos estudantes para para outros pesquisadores.
lidar com essas novas tecnologias. Análises desse tipo,
apontando benefícios e limitações, são realizadas nos Situada a autora, sua produção e exposta a proposta do
outros aspectos que Jorgensen considera na discussão da livro resenhado, passo para algumas considerações críticas.
Educação Musical: instrução, currículo e administração.
No caso da “instrução”, são disponibilizadas “experiências Um primeiro incômodo que pode sentir o leitor com
audiovisuais e interativas”; professores e estudantes relação ao livro ocorre já no sumário. Aquela listagem
podem trabalhar conjuntamente. Mas corre-se o risco de pares de palavras ao mesmo tempo que atiça a
de materiais pré-formatados inibirem tanto a ação de curiosidade cria um sentimento de desconfiança, suspeita
estudantes quanto dos professores. O “currículo” nesse de talvez um tratamento aligeirado da Educação Musical.
modelo tem, segundo a autora, “várias vantagens”: “o O enorme volume também pode ser desencorajador,
âmbito do estudo é ampliado”; “os materiais instrucionais mesmo sendo um quinto dele composto de notas.
podem ser constantemente atualizados”; “abordagens da Entretanto, a progressiva aproximação com o conteúdo
matéria podem ser individualizadas”. Entretanto, deve- do texto transforma essa primeira percepção, pois o
se cuidar para algumas desvantagens como o currículo assunto é instigante, principalmente, imagino, para quem
tornar-se um simples acúmulo de informações. Entender o vem acompanhando a produção de Jorgensen.
elemento “administração” nesse modelo “Conectividade”,
elemento cujo sentido conferido por Jorgensen naquela O primeiro parágrafo do prefácio, constituindo-
mencionada estrutura para se pensar a Educação Musical se de uma série de perguntas, já mobiliza o leitor

234
ARROYO, M. Pensando a educação musical imaginativamente... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.231-236.

(perguntas citadas no início da resenha). A densidade da Justamente, os desafios que a contemporaneidade coloca
argumentação exige dedicação com leituras paralelas. para a Educação Musical também encontram na filosofia
Mas, essa densidade do texto, principalmente do dialética de Jorgensen alguns portos, pois ela admite “as
capítulo 1, não encobre a clareza com que a autora multiplicidades e diversidades, as ambiguidades e incertezas,
expõe suas ideias e os procedimentos utilizados na as inconsistências e oportunidades” (JORGENSEN, 2011,
construção dessa filosofia da Educação Musical. 269) que estão presentes nesses quadros e no cotidiano de
educadores e pesquisadores da área.
Os capítulos que expõem os vários quadros apresentam o
mesmo arcabouço narrativo, o que pode facilitar a leitura, Outra questão: “Por que não levar essa maneira de ação
mas que também se torna cansativa pela extensão do pedagógica e musical [quadros de metáforas e modelos]
livro. Como não há a necessidade de seguir uma ordem para pensar sobre a própria educação musical, de modo
de leitura, o leitor pode criar seu próprio percurso, o que abordagens usadas para explorar como as pessoas
que dissiparia o citado cansaço. Outra característica da conhecem música sejam consistentes com a natureza da
textualização é um didatismo, incluindo ao final de cada própria experiência musical?” (JORGENSEN, 2011, p.2).
capítulo uma síntese do mesmo.
Relacionei essa pergunta à compreensão que Jorgensen
Ainda na ordem da narrativa dos capítulos que trazem tem de que o pensar metaforicamente é parte das
os pares de metáfora e modelo, a estrutura que serve de práticas musicais e pedagógico-musicais. Assim, a autora
base para a exposição dos modelos - “música, ensino, vislumbra no “exame sistemático” desse pensar metafórico,
aprendizagem, instrução, currículo e administração” imaginativo, a possibilidade de conceitualizar a Educação
- cria um sentimento de inadequação dos mesmos pelo Musical “músico-educacionalmente” (music educationally),
risco de uma leitura rápida levar à simples desqualificação mesmo mantendo a perspectiva interdisciplinar que
do texto. Isso, mesmo com o cuidado de se atentar para o caracteriza a construção desse campo de conhecimento.
sentido que Jorgensen confere a eles, conforme exposto.
Quem sabe a autora pudesse utilizar outros termos, apesar Esse assunto, que é relevante aos que se dedicam à
de que recorrer a esses, conferindo-lhes outro sentido, pesquisa em Educação Musical, diz respeito à autonomia
tem seu valor de impacto no que tange ao repensar sobre ou não dessa área de conhecimento. Desde a menção da
significados arraigados. Pedagogia Musical como um dos campos investigativo
dos estudos musicais por Guido Adler no final do século
Retomo a seguir duas das questões inicialmente XIX (DUCKLES, 2012), a Educação Musical se vale de
levantadas por Jorgensen com a finalidade de, a partir outras disciplinas para pensar a si própria. Ao longo do
delas, tecer alguns comentários críticos sobre sua século XX áreas de referência predominaram de tempos
proposta de pensar a Educação Musical. em tempos: Psicologia, nas primeiras décadas, Sociologia
(da Música) e Antropologia (Etnomusicologia) a partir
“Qual seria a contribuição dessa análise para a prática da dos anos 1970. Os estudos da Pedagogia sempre tiveram
educação musical?” (JORGENSEN, 2011, p.xi). impacto na conceituação da área e, nas últimas décadas,
os Estudos Culturais, a Semiótica, a Neurociência, entre
Essa proposta para refletir e conduzir a ação pedagógica outros, vieram somar-se aos interlocutores da Educação
na educação musical colabora, a meu ver, com a ruptura Musical. Sem dúvida, trata-se de uma área complexa
de proposições unificadoras acerca do aprender e de conhecimento, interseção de vários campos do saber
ensinar música que ainda persistem como referência (KRAEMER, 2000). Mas será que as maneiras como as
conceitual e prática nesse campo de atuação. O que pessoas conhecem música e a criam e praticam - porque
chama atenção na produção filosófica de Estelle R. aprenderam a fazê-lo (ARROYO, 2009) - não teria
Jorgensen é o investimento contínuo numa concepção contribuição para com outros campos do saber? Tomando
núcleo de Educação Musical - aquela formulada no a defesa de John SHEPHERD e Peter WICKE (1997) sobre
livro In search of Music Education (1997) e já citada-, passar da mão única de direção que se desloca dos vários
ideia que é sistematicamente aprofundada e expandida campos do conhecimento para as musicologias para a
nos anos seguintes. Nesse sentido The Pictures of mão dupla de direção, com ênfase nas contribuições dos
Music Education nos parece uma proposta instigadora estudos musicais para outras áreas do saber, entendo
para pensarmos e agirmos no contexto contemporâneo que JORGENSEN vislumbra nessa filosofia de Educação
da Educação Musical, onde as possibilidades e Musical apresentada em The Pictures of Music Education
modalidades de conhecer música são incrivelmente a possibilidade de dupla direção na interface entre
amplas, diversas, discrepantes, conflitantes, ricas; tudo Educação Musical e outras disciplinas, partindo do pensar
ao mesmo tempo. a Educação Musical a partir de suas propriedades.

235
ARROYO, M. Pensando a educação musical imaginativamente... Per Musi, Belo Horizonte, n.27, 2013, p.231-236

Referências
ARROYO, Margarete. Jovens, aprendizagem musical e novas práticas musicais. In: Congresso Anual da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, XIX. Anais. Curitiba: ANPPOM, 2009. p.81-84.
BLACK, Max. Models and Metaphors: studies in Language and Philosophy. Ithaca, N.Y: Cornell University Press, 1962.
DUCKLES, Vincent, et al. Musicology. Grove Music Online. Oxford Music Online. Disponível em: http://www.
oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/46710pg1 (Acesso em 6 mai 2012).
JORGENSEN, Estelle R. The Art of Teaching Music. Bloomington: Indiana University Press, 2008.
______. The artist and the pedagogy of hope. International Journal of Music Education, n. 27, p.136-50,1996. 
______. In search of music education. Urbana: University of Illinois Press, 1997.
______. On the development of a Theory of Music Instruction”, Psychology of Music, n.8, p.25-30, 1980.
______. Transforming Music Education. Bloomington: Indiana University Press, 2003.
KRAEMER, Rudolf-Dieter. Dimensões e funções do conhecimento pedagógico-musical. Em Pauta, Porto Alegre, v. 11,
n.16/17, p.49-73, 2000.
MCCARTHY, Mary; GOBLE, J.Scott. Music Education, Philosophy of.  Grove Music Online.  Oxford Music Online, 2011.
Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article/grove/music/A2093412 Acesso em: 11 ago 2011.
SHEPHERD, John; WICKE, Peter. Music and cultural theory. Cambridge: Polit Press, 1997.

Notas
1 No artigo The artist and the pedagogy of hope (JORGENSEN, 1996) a autora empreende um diálogo com as ideias de Paulo Freire.
2 Estele R. JORGENSEN esteve no Brasil em 2011, conferencista convidada da III Semana de Educação Musical do Instituto de Artes da UNESP, São
Paulo, SP.
3 A diferença de grafia entre Educação Musical e educação musical remete, no primeiro caso, ao campo de conhecimento acadêmico-científico; no
segundo, à prática que envolve aprender e ensinar música. Isso, exceto quando das citações.
4 Sumário do livro: 1. Metaphor and Model; 2. Boutique and Consumption; 3. Village and Community; 4. Artist and Apprenticeship; 5. Revolutionary
and Transgression; 6. Factory and Production; 7. Garden and Growth; 8. Therapist and Healing; 9. Court and Rule; 10. Seashore and Energy; 11.
Home and Informality; 12. Guide ad Pedagogy; 13. Web and Connectivity; 14. Picture and Practice.
5 Utilizo o termo ‘estrutura’ para não confundir o leitor, já que JORGENSEN denomina “modelo conceitual” aquele descrito no artigo de 1980 e de
“modelo“ esse que faz par com metáforas.
6 A autora retoma o sentido de cada um desses aspectos da educação musical no capítulo 1 deste livro resenhado. A título de ilustração do alerta
feito, cito o sentido conferido pela autora ao termo “Aprendizagem” [Learning]: “trata-se de meios e fins pelos quais alguém vem a conhecer e
transformar um assunto – no caso a música.[...](2011, p.11). Fica, portanto claro, que ele não se restringe ao universo escolar e acadêmico. O mesmo
ocorre com os outros aspectos. Tanto esse termo como os outros que em uma primeira aproximação nos levariam apenas ao contextos escolar e
acadêmico, são de fato muito mais abrangentes na descrição de JORGENSEN.

Margarete Arroyo é Graduada em Educação Artística: habilitação em Música pela Universidade de São Paulo e
pós-graduada em Música - Educação Musical mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Música
da UFRGS. Atuou como docente e pesquisadora na Universidade Federal de Uberlândia no Curso de Graduação em
Música de 1993 a 2010. Atua nessa mesma universidade como professora colaboradora no Programa de Pós-Gradação
em Artes - Mestrado. Foi secretária da Associação Brasileira de Educação Musical entre 2001 e 2003. É membro do
grupo Pesquisa e Formação em Educação Musical (CNPq) e líder do Grupo de Pesquisa sobre Aprendizagens Musicais
na contemporaneidade (CNPq). Desde agosto de 2010 atua como docente e pesquisadora na Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, Instituto de Artes, Curso de Graduação em Educação Musical e Programa de
Pós-Graduação em Música. Segue como linhas de pesquisa: Educação Musical, cultura e sociedade; Educação Musical
formal e informal; Juventudes e músicas.

236

Você também pode gostar