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Copyright © [2017] Espélio de Nelson Falco Rodrigues Imagem de capa: masha_tace - iStockPhoto. Direitos de edigio da obra em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova Fronteira Participagdes S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrdnico, de fotocépia, gravacio etc., sem a permisséo do detentor do copirraite, Editora Nova Fronteira Participagdes S.A. Rua Candelaria, 60 — 7° andar — Centro ~ 20091-020 Rio de Janeiro — rj — Brasil Tel.: (21) 3882-6200 — Fax: (21) 3882-8212/6313 CIP-BRASIL.. CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ REL4t v4. ed. Rodrigues, Nelson, 1912-1980 Teatro completo Nelson Rodrigues [recurso eletrénico] : pecas psicolégicas e miticas & tragédias cariocas / Nelson Rodrigues. - 4. ed. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2017. recurso digital Formato: ebook Requisitos do sistema Modo de acesso: world wide web ISBN 9788520934180 (recurso eletrdnico) 1. Rodrigues, Nelson, 1912-1980, 2. Teatro brasileiro, 3. Livros eletrdnicos. I. Titulo. 17-45982 CDD; 869,92 CDU: 821.134.3(81)-2 [Luz sobre o lar de Zulmira e Tuninho. O marido boceja, tirando a camisa. Fica nu da cintura para cima e de suspensério.] — Vem espremer o cravo grande das costas! — Vira. [Tuninho dé-lhe as costas. Zulmira comega a espremer.] — Sabe onde eu fui hoje? — Ai! Onde? —A cartomante, a tal que me recomendaram. — Vocé é teimosa! Disse pra nao ir! Ai! — Pois olha — fui e n&o me arrependi. Ela me abriu os olhos, direitinho! —Te tapeou! —Duvido! Queres saber o que ela foi dizendo, logo de cara? [Baixa a voz.] — Que eu tomasse cuidado, muito cuidado, com uma mulher loura. Que tal? —E dai? — Achas pouco? [Tuninho esta assombrado.] —Mas, sé isso? — Oh! que espirito de porco vocé tem! Fala por falar. Deus me livre! — Ora, nao amola! [com maus modos] — Claro! — Ento, vocé me sai de casa debaixo desse toré, larga- se para os cafundds do Judas, atras de uma cretina? —Mas, criatura, presta atencaio! Escuta! — Vocé enche! — Quem seré essa loura, minha Nossa Senhora? — Perguntaste, ao menos, a imbecil dessa cartomante se eu ia melhorar de situacao e outros bichos? — Ih! — Nao perguntaste? —Me esqueci! {exultante] — Eu sabia! — Ando com a minha meméria horrivel! [Tuninho anda de um lado para outro, dentro do quarto, esbravejante.] —Mulher é isso mesmo! Vocé inventa o diabo dessa cartomante pra saber da tua asma e do meu emprego! E quando acaba, vai ld e nado da a menor bola, a menor pelota. Muito bonito! — Perdao, meu anjo! [0 casal pe os dois travesseiros no chao, isto 6, na cama imagindria. O marido deita e Zulmira passa 0 pente no cabelo.] — Benzinho! [Bocejo tremendo de Tuninho. ] —Uai! — DA uma opiniao, um palpite: quem sera essa mulher loura? —E eu que sei? — Vé se te lembras! [Novo bocejo de Tuninho.] [meditativo] — Loura? — Quem pode ser? [DA 0 estalo em Tuninho.] —Tua prima! —Qual delas? — Ora, Zulmira! Qual é tua prima que mora nesta rua? Aqui do lado? Qual? [Zulmira esta assombrada.] —Glorinha! —Custaste! —E mesmo! Glorinha! Oxigenada, mas loura! — Batata! [Zulmira esta desesperada.] — $6 pode ser ela, é ela no duro! — Apaga a luz e vamos dormir! — Uma fulana, além do mais, minha parenta, longe mas é, Nunca lhe fiz nada, sempre a tratei, assim, na palma da mao. E, de repente, deixa de me cumprimentar, Por qué? Ainda hoje, eu passei. Estava na janela, limando as unhas. Torceu-me o nariz, aquela gata. Cinicamente! — Vem dormir! [Zulmira n&o ouve o marido, encerrada na sua obsessio.] —Foi um altissimo negécio essa cartomante. Agora eu sei de tudo. Essas dores nas costas... Olha: hoje eu passei o dia inteirinho com o nariz entupido... — Gripe! — Gripe aonde? [lenta e cava] Macumba! — Sossega! — Sim, senhor! Alguma macumba que essa cara me fez! Aposto! — Mas a mulher é protestante! — “Protestante” diz vocé! Mas duvido! Fingimento, méscara! Vou te dizer mais 0 seguinte: Glorinha tem parte com o demGénio! [Tuninho, embalado pela voz da mulher, jé adormeceu e ronca, sonoramente. Zulmira, porém, nao toma conhecimento do sono profundo do marido.] —Twacreditas que ela seja tao séria como diz? Hem? [Tuninho, dormindo, responde com os seus roncos.] — Pois sim! Nao é mais séria do que ninguém. To cinica que diz apenas o seguinte — vé se pode — que a mulher que beija de boca aberta é uma sem-vergonha. Pode ser o marido, pode ser o raio que o parta, mas é uma sem-vergonha. [Interpela o marido, que continua roncando. ] — Que é que vocé diz a isso? Hem? [falando como se o marido, que continua dormindo, tivesse respondido] Deixa de ser trouxa! Nao vé logo que é falsidade? [Levanta-se, anda pelo palco, ironicamente.] —Também nio vai a praia, nao pée maid, por qué, meu Deus, que coisa horrivel, eu, hem? [passa de meliflua a feroz| Mas pra cima de mim, no, onde é que nds estamos! [agressiva, para Tuninho, que dorme mais do que nunca] Vocé, que é homem — os homens sao uns bob6es — pode achar graga, achar bonito essa papagaiada, claro! Mas eu!... [Agarra o Tuninho e o sacode. O marido desperta em sobressalto. Grita Zulmira.] — Tuninho! Tuninho! — Que é? — Por essa luz que me alumia — essa gata est cavando a minha sepultura! [Tuninho esbraveja.]

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