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Trabalho Final - Antropologia Econômica

Profª Drª Catarina Morawska Viana


Monitor Gabriel Lino
2019/2

Isabelle Norie Otsu - 726927

CASEIROS E PROPRIETÁRIOS: PERSPECTIVAS DA ANTROPOLOGIA


ECONÔMICA

1 APRESENTAÇÃO

O presente trabalho possui como objetivo delinear algumas observações e paralelos,


com o auxílio da antropologia econômica, acerca da profissão de caseiro. Para isso, foram
realizadas duas entrevistas distintas com caseiros da região de Pirassununga, aplicando o
mesmo questionário aberto para a coleta de algumas informações referentes às relações de
trocas existentes entre os caseiros e seus respectivos proprietários, as quais envolvem
questões como moradia, subsistência, serviços e trabalhos prestados, acordos estabelecidos,
entre outros detalhes que serão informados ao longo dos tópicos apresentados.

2 O CAMPO E OS CASEIROS

Inicialmente, a proposta do trabalho era, sobretudo, focar na relação entre o caseiro e


o proprietário. Ao longo das entrevistas1, a vida cotidiana e os relatos dos caseiros foram se
tornando muito mais interessantes e relevantes para se traçar paralelos com a antropologia
econômica do que a própria relação entre patrão e funcionário. A maneira como Jorge e
Maria2 vivem e relatam o seu dia-a-dia desmistificam, de maneira exemplificada, o homem
econômico3 e, ao mesmo tempo, diz muito mais sobre a economia por dentro da perspectiva
antropológica, percebendo relações de troca das quais não envolve diretamente o dinheiro,
mas sim produtos necessários ao cotidiano, como comida e moradia.
2.1 Jorge

1
A entrevista com Maria foi feita via WhatsApp e a entrevista com Jorge foi feita pessoalmente.
2
Os nomes apresentados são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.
3
Definição de Polanyi de homem econômico “propensão do homem de barganhar, permutar e trocar uma coisa
pela outra”.

1
Jorge tem 64 anos e mora com sua esposa. Trabalha como caseiro há 32, possui
carteira assinada e, atualmente, ambos são aposentados. Antes de começar a viver no atual
sítio, era motorista do mesmo patrão, transportando as safras de laranja colhidas na
propriedade. Com o passar do tempo, o patrão ofereceu o sítio para se morar - sem pagar
aluguel, contas de luz e água - e continuar prestando serviços para ele e recebendo um salário.
Para que tal acordo fosse firmado, Jorge tinha uma condição: deixar um carro para ele por
causa de sua filha que era pequena na época.
No início, sua esposa era apenas dona-de-casa, cuidando da filha. Esporadicamente,
fazia trabalhos como faxineira e prestava alguns serviços no próprio sítio, como colheita de
algodão e cuidados com a horta, recebendo dinheiro por eles. Depois que sua filha cresceu,
prestou um concurso e se tornou funcionária pública. Enquanto isso, Jorge continuou
trabalhando com o transporte das colheitas de laranja; quando não havia safra, trabalhava
cuidando dos terrenos de plantio e do sítio, passando o trator e veneno e cuidando das
plantações. Nos dias de chuva, ficava no sítio reparando o quintal e o que precisasse na casa.
Apesar de sempre ter recebido férias remuneradas, durante muitos anos suas horas de
trabalho não foram contabilizadas. Quando ainda trabalhava de motorista e precisava viajar
para transportar as laranjas, ocorriam vezes em que passava a noite toda na empresa destino e
não recebia nada por isso. Jorge começou a estabelecer alguns limites quanto às horas extras
só depois que se aposentou; só as faria se fosse pago para isso. Atualmente, trabalha de
segunda a sábado - até o meio dia - e os domingos são destinados para folga.
Segundo ele, não existe horta no local. Apenas algumas plantações de frutas, legumes
e verduras no próprio sítio para consumo próprio; além delas, também consomem produtos
disponíveis ao redor, nas vizinhanças. O proprietário - engenheiro agrônomo - visita o local
todos os dias, instruindo o que precisa ser feito naquele dia.
A produção do sítio durante o ano todo é de laranja e apenas uma vez no ano, a lichia
é colhida. Antigamente, existiam plantações de algodão e gado de leite, hoje não mais devido
a desvalorização e o trabalho extra, respectivamente. Além de Jorge, existem outros seis
funcionários que trabalham nas plantações.

2.2 Maria

2
Maria tem 67 anos e também mora com seu esposo aposentado. Eles são caseiros há
14 anos, mas não possuem carteira assinada nem salário. Ela começou a morar e trabalhar no
sítio através da indicação de um amigo.
Assim como Jorge, Maria possui um acordo com seu proprietário o qual diz respeito à
troca de serviços e cuidados no sítio pelo aluguel, conta de luz e água, mas não recebe
nenhum salário por isso.
Ao perguntar sobre a rotina e as funções de cada um, Maria disse que fica responsável
pelos serviços domésticos e pelas plantas no quintal, enquanto seu marido fica incumbido dos
“trabalhos mais pesados”4 como carpir, rastelar, plantar e fazer alguns reparos na estrutura do
local. Não possui férias e as horas de trabalho não são contabilizadas, porém Maria fala sobre
ter liberdade de sair e voltar quando quiser da propriedade, sendo um aspecto positivo em sua
perspectiva. A relação com o proprietário é aparentemente distante. O contato é feito por
telefone apenas quando necessário e sua visita é esperada uma vez por ano.
Maria diz não ter horta no local, mas também possui árvores frutíferas na propriedade
em que vive, assim como pequenas plantações de verduras e legumes, cuidados e colhidos
para consumo próprio e distribuídos para familiares e vizinhos.

3 OBSERVAÇÕES SOB PERSPECTIVAS DA ANTROPOLOGIA ECONÔMICA

Após apresentar os entrevistados, as semelhanças entre os dois casos ficam mais


aparentes. Segundo Zelizer5, o dinheiro adquire sentidos particulares dependendo das
relações em que é exposto. No que tange a relação entre os caseiros e seus proprietários, há
aquilo que a autora define como “boa combinação”6, existindo negociações apropriadas entre
os parceiros econômicos, como por exemplo arranjos culturais, os quais estão propensos a
darem certo, e a questão de classe. No caso das relações econômicas entre Maria, seu esposo
e o proprietário, elas se dão de forma harmoniosa por conta das funções distribuídas entre
eles serem; segundo as respostas, elas se dão por uma estrutura de gênero, sendo os trabalhos

4
Expressão utilizada pela entrevistada.
5
ZELIZER, V. A. (2016). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, (32), 135-157.
6
“Com boa combinação não quero dizer que você e eu vamos aprovar a barganha ou que a combinação é
igualitária e justa. Quero dizer que a combinação é viável: torna possível o trabalho econômico da relação e
sustenta a relação.” (ZELIZER, 2016, p. 142)

3
domésticos designados a ela e os trabalhos braçais a ele, enquanto o proprietário aceita que os
ambos trabalhem e morem em sua propriedade.
Polanyi7 define os cercamentos como a revolução dos ricos contra os pobres. Nos
casos explicitados, os caseiros possuem a moradia garantida, assim como parte de seu
alimento provindo dos cultivos, realizados por eles mesmos, nas propriedades. Quando
questionados sobre renda extra, não se lembraram da aposentadoria, alegando ter o necessário
ao seu redor. As trocas estabelecidas tornam-se benéficas para todos, porém visam o lucro por
um lado e a sobrevivência por outro. Ainda, diante desse contexto, pode-se falar sobre a
escassez trazida na discussão por Sahlins8 e Dalton9, aquela que, no mundo econômico
capitalista, é atrelado a fracasso, porém, em sociedades em que a economia não se torna a
principal pauta, não possuem o mesmo sentido. Se relacionarmos a escassez diretamente aos
trabalhos e serviços prestados pelos caseiros, o sentido se inverte; os mesmos precisam ser
equivalentes à troca por uma moradia digna na visão dos caseiros, na maioria se trabalhando
muito mais do que o necessário para uma troca justa; quando Jorge diz que somente após sua
aposentadoria conseguiu estabelecer que não faria horas extras sem receber pelas mesmas,
vê-se esta distinção. Por muitos anos não recebeu pelos trabalhos extras, mas o
questionamento só veio após o momento em que seu descanso era justo, afirmado por sua
aposentadoria.

[...] a economia do homem, como regra, está submersa em suas relações


sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse
de bens materiais, ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas
exigências sociais, seu patrimônio social. (POLANYI, 2000, p. 65)

A reciprocidade, a redistribuição e a domesticidade, que segundo Polanyi são os


padrões de troca de um sistema econômico - negado pelo autor como um processo natural do
homem - também estão presentes nos casos apresentados. A reciprocidade representada pela
troca - dar e receber - de moradia, água e luz pelo trabalho; a redistribuição caracterizada pela
relação hierárquica entre proprietário e caseiros; e a domesticidade associada ao sustento da
família. O sistema econômico acaba por se tornar apenas função da organização social dentro
da propriedade (POLANYI, 2000, p. 69).

7
POLANYI, Karl. 2000 [1944]. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campos.
8
SAHLINS, Marshall. [1972] 2004. “A sociedade afluente original”. In: SAHLINS, Marshall. Cultura na
Prática. Rio de Janeiro: UFRJ.
9
DALTON, George. 1961. 'Economic Theory and Primitive Society', American Anthropologist.

4
4 CONCLUSÃO

As relações de trocas presentes nos diálogos estabelecidos com os entrevistados


ressaltam que a profissão de caseiro possui relações informais quanto ao trabalho e às
questões econômicas. Nada é inicialmente estabelecido de forma contratual em que funções,
horas trabalhadas e salários estejam dentro de um padrão sempre seguido. Geertz10 introduz a
discussão acerca do mercado, o qual funciona e se dá a partir das “ignorâncias sabidas”, em
que se é fato que não se tem acesso a todas as informações. Traçando um paralelo ao caso
apresentado, podemos dizer sobre a informalidade; o proprietário nem sempre se coloca na
posição de monitorar assiduamente o trabalho do caseiro, como o caso de Maria, em que o
proprietário visita o local uma vez ao ano, ou no caso de Jorge, em que o proprietário não
estabelece esquemas mais burocráticos para configurar as horas trabalhadas, tornando o
trabalho sujeito às causalidades.
Quando questionados sobre possuir horta no local, ambos não consideraram que suas
plantações para consumo próprio podiam ser consideradas como tal - como estabelecido pelo
conceito de agrofloresta11 - trazendo minha reflexão sobre a noção de horta ser uma definição
de monocultura ou um espaço delimitado apenas para grandes plantações na visão dos
caseiros entrevistados, que se tornam grandes fontes de renda e lucro.
A profissão de caseiro é configurada em moldes que remontam aos tempos feudais,
trazendo a discussão da economia desde a sua criação, desenvolvimento e naturalização no
século XVIII. A questão de conceder terras em troca de serviços, nem sempre estabelecida de
modo justo, traz muitas reflexões para a antropologia econômica, além de exaltar as relações
hierárquicas sempre presentes nas relações econômicas no viés capitalista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

10
GEERTZ, Clifford. 1978. The Bazaar Economy: Information and Search in Peasant Marketing. The American
Economic Review.
11
https://ipoema.org.br/conceitos-de-agrofloresta/

5
DALTON, George. 1961. 'Economic Theory and Primitive Society', American
Anthropologist.

GEERTZ, Clifford. 1978. The Bazaar Economy: Information and Search in Peasant
Marketing. The American Economic Review.

POLANYI, Karl. 2000 [1944]. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de
Janeiro: Campos.

SAHLINS, Marshall. [1972] 2004. “A sociedade afluente original”. In: SAHLINS, Marshall.
Cultura na Prática. Rio de Janeiro: UFRJ.

ZELIZER, V. A. (2016). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, (32), 135-157.

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