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ESPAÇOS PÚBLICOS COMO ESPAÇOS

POLÍTICOS: O QUE ISSO QUER DIZER?

Espacios públicos como espacios políticos: ¿que quiere decir eso?


Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
Geografia da UFES Public spaces as political spaces: what does it mean?
Julho-Setembro, 2018
ISSN 2175-3709

RESUMO

Este artigo se propõe debater as condições para a transformação


dos espaços públicos em espaços políticos e responder como isto
ocorre. A tese defendida é a de que os espaços públicos são espaços
do cotidiano social urbano e não possuem uma essência política,
embora possam tornar-se espaços políticos quando invadidos por
fenômenos da política que transformam temporariamente suas roti-
nas e seu público usual. O texto está dividido em três partes. Na
primeira, a política é conceituada como um sistema institucional e
operacional de resolução de conflitos de interesses, apresentando os
riscos da falácia, muito comum na literatura sociológica, de con-
siderar a política como uma esfera abstrata. Na segunda, o espaço
político é apresentado como um conceito, que apesar da origem
na ciência política, foi apropriado e ampliado na geografia políti-
ca como espaço de ação das políticas públicas e das leis, mas tam-
bém dos movimentos sociais e dos atos políticos. Na terceira, são
elaborados os argumentos da tese central deste texto, respondendo à
questão sobre as circunstâncias em que os espaços públicos podem
se transformar em espaços políticos.
Palavras-chave: Espaço político; espaço público; mobilizações
políticas.

RESUMEN

Este artículo se propone debatir las condiciones para la transfor-


mación de los espacios públicos en espacios políticos y responder
como esto ocurre. La tesis defendida es que los espacios públicos
son espacios del cotidiano social urbano y no poseen una esencia
política, aunque pueden convertirse en espacios políticos cuando
Iná Elias de Castro
son invadidos por fenómenos de la política que transforman tempo-
Professora Titular, Programa de
Pós-Graduação em Geografia - UFRJ ralmente sus rutinas y su público habitual. El texto está dividido en
inacastro@uol.com.br tres partes. En la primera, la política es conceptuada como un siste-
ma institucional y operacional de resolución de conflictos de intere-
Artigo recebido em: ses, presentando los riesgos de la falacia, muy común en la literatura
sociológica, de considerar la política como una esfera abstracta. En
Primeiro semestre de 2018
la segunda, el espacio político se presenta como un concepto, que
Artigo publicado em:
a pesar del origen en la ciencia política, fue apropiado y amplia-
09/08/2018
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Iná Elias de Castro Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer?
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do en la geografía política como espacio de acción de las políticas 1 - Ocorrido nos dias 6 e 7/6/2017 no
públicas y de las leyes, sino también de los movimientos sociales y IGEO/UFRJ.
de los actos políticos. En la tercera, se elaboran los argumentos de
la tesis central de este texto, respondiendo a la cuestión sobre las
circunstancias en que los espacios públicos pueden transformarse en
espacios políticos.
Palabras-clave: Espacio político; espacio público; movilizaciones
políticas.

ABSTRACT

This article proposes to discuss the conditions for the transformation


of public spaces into political spaces and to respond how this occurs.
The thesis defended is that public spaces are spaces of everyday
urban social and do not have a political essence, although they may
become political spaces when invaded by phenomena of politics
that temporarily transform their routines and their usual public. The
text is divided into three parts. In the first, politics is conceptualized
as an institutional and operational system for resolving conflicts of
interest, presenting the risks of the fallacy, very common in the so-
ciological literature, of considering politics as an abstract sphere. In
the second, the political space is presented as a concept, that despite
the origin in political science, was appropriated and expanded in
political geography as a space for action of public policies and laws,
but also for social movements and political acts. In the third part, the
arguments of the central thesis of this text are elaborated, answering
the question about the circumstances in which the public spaces can
turn into political spaces.
Keywords: Political space; public space; political mobilizations.

Este artigo se propõe debater a ideia colocada para o Seminário Inter-


nacional Espaços públicos – Espaços políticos¹ sobre os espaços pú-
blicos como espaços políticos e responder à questão sobre como isto
ocorre. Tomando esta proposta como percurso, este artigo defende a
tese de que os espaços públicos, por suas características amplamente
estudadas pela geografia urbana, pela sociologia e pela arquitetura,
são espaços do cotidiano, da sociabilidade e não possuem qualquer
essência política, mas são passíveis de tornarem-se espaços políticos
quando invadidos por fenômenos da política que, transformam tem-
porariamente sua natureza de lugar do encontro, do ver e ser visto
em palco de atividades que alteram suas rotinas e seu público usual.
Para fundamentar a discussão, o texto está dividido em três par-
tes. Na primeira, são apresentados argumentos para o debate neces-
sário sobre a compreensão da política como um sistema institucional
e operacional de resolução de conflitos de interesses que se materia-
Revista do Programa de Pós-Graduação
lizam em leis e normas de comportamento, apresentando os riscos em Geografia e do Departamento de
da falácia, muito comum na literatura sociológica, de considerar a Geografia da UFES
política como uma esfera abstrata. Na segunda, o espaço político é Julho-Setembro, 2018
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apresentado como um conceito, que apesar da origem na ciência po-
lítica, foi apropriado e ampliado na geografia política como espaço
de ação das políticas públicas e das leis, mas também dos movimen-
tos sociais e dos atos políticos; além de categorizado na antropologia
Revista do Programa de Pós-Graduação como espaços das muitas possibilidades e facetas dos protestos de
em Geografia e do Departamento de
Geografia da UFES
grupos organizados. Na terceira, são elaborados os argumentos da
Julho-Setembro, 2018 tese central deste texto, respondendo à questão sobre quando, como,
ISSN 2175-3709 em que circunstâncias e em que graus os espaços públicos podem se
transformar em espaços políticos.

1. AFINAL, O QUE COM- tros campos do conhecimento,


PREENDEMOS QUAN- existem duas possibilidades:
DO USAMOS A PALAVRA uma que busca a construção de
POLÍTICA? uma teoria geral empiricamente
orientada (Easton, 1968, p. 21)
Nesta parte propõe-se trazer, e outra orientada pela especula-
mesmo que de modo bastante ção filosófica, ou seja, a evasão
sucinto, o debate sobre o cam- do mundo dos fenômenos que
po da política como prática e permite avaliá-los e modificá-
conhecimento acadêmico em -los (Sartori, 1981, p. 36). Neste
oposição à fragilidade concei- sentido, é possível apontar, de
tual de considerar a ação políti- modo sucinto nos limites deste
ca uma esfera abstrata. artigo, duas vertentes de com-
O ponto de partida é que a preensão e análise política: na
política é um sistema institucio- primeira, o trabalho de Maquia-
nal e operacional de resolução vel que ao demonstrar a impor-
de conflitos de interesses que tância da política como prática
se materializa em leis e normas virtuosa do Príncipe, teorizou
de comportamento. Todas as sobre a prerrogativa do poder
sociedades complexas, mesmo de mando e obediência centra-
na antiguidade, tiveram neces- lizado no território do nascente
sidade de estabelecer normas Estado Moderno, que constitui
impositivas para o conjunto da ainda uma questão empírica e
sociedade. Trata-se de um con- teórica importante para as ciên-
ceito que, embora definido nos cias sociais. E aquela da política
termos oferecidos por Aristóte- deduzida da especulação filosó-
les de conciliação de interesses fica, cujo exemplo mais impor-
opostos, é amplamente aceito, tante é a elaboração de Marx,
porém com a ressalva de que que inverte a ideia do Universal
nenhuma conciliação de inte- ético político de Hegel (o Esta-
resses pode ser alcançada sem do) e transfere esse ethos para
que exista uma entidade com a sociedade (Sartori, 1981, p.
maior poder de se impor sobre 38). Grosso modo, temos duas
cada um dos lados, mesmo que matrizes do pensamento sobre
esta entidade seja o contrato ou a política. A primeira mais fre-
o acordo para que vivam em quente na ciência política, mas
harmonia (Scruton, 1982, p. também na sociologia analítica
362). e empírica de Max Weber, fo-
Nesse campo, como em ou- cada nas relações institucionais
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de poder e a segunda, mais im- nece. Um bom exemplo são os


portante nas correntes socioló- processos eleitorais, que consti-
gicas especulativas, centradas tuem métodos de recrutamento
nos fenômenos sociais e mais para cargos políticos, ou seja,
voltada para as ações indivi- integram os processos verticais
duais de onde emergem esses do sistema político (Sartori,
fenômenos (Bronner e Géhin, 1983, p. 171) ou as relações das
2017, p. 75). Esta última tem instituições políticas com o ter-
influenciado fortemente a geo- ritório como analisado por Mi-
grafia humana, e não apenas em chael Mann (1992).
sua vertente crítica. Neste ponto vale mencionar
Há na diferença apontada o debate entre polítólogos e so-
acima uma questão interessan- ciólogos, cada um reivindican-
te sobre o lugar da política: nas do o primado da competência
instituições fundadas para gerir para a análise da política. Para
conflitos nos limites de um ter- os últimos, a sociologização
ritório ou na sociedade, ou seja, da política estaria associada à
no interior das relações sociais? democratização da política e a
É possível neste ponto recorrer uma verticalidade ascendente
à ideia de verticalidade e hori- que refletiria um poder popu-
zontalidade utilizada por Sarto- lar. No entanto, para os críticos
ri (1983, p. 170) para estabele- desta premissa, as reduções so-
cer uma diferença fundamental ciológicas “achatam” a política
entre o mundo da política e o e sua verticalidade resultaria
mundo social. Para ele, de uma variável dependente
“quanto mais nos afastamos do formato
da polis, da pequena comunidade-Estado,
do sistema social e das estru-
mais os aglomerados humanos adquirem turas socioeconômicas, além
uma estruturação vertical. Esta verticali-
dade é a tal ponto estranha à ideia helêni-
do risco de ao considerar a
ca de “política” que foi teorizada durante ubiquidade da política fazê-la
milênios, com a ajuda de um vocabulário
latino: principatus, regnum, dominium,
perder sua especificidade e de-
gobernaculum, imperium, potestas etc. saparecer nas próprias relações
O fato de que no século XIX esta termi-
nologia refluiu sobre o termo “política”
sociais (Middelaar, 2015). Para
constitui uma perturbadora inversão de os primeiros, por sua vez, as
expectativa. Hoje acolhemos a dimensão
vertical da política em uma palavra que
decisões políticas se referem a
demonstrava, ao contrário, sua dimensão uma gama variada de assuntos
horizontal. Com essa alteração, a dimen-
são horizontal terminou sendo advogada
de política econômica, social,
pela sociologia, enquanto a esfera da po- religiosa educacional etc., mas,
lítica se restringe, tendendo a limitar-se a
uma atividade do governo: em substância
o que as tornam políticas é o
à esfera do Estado. Contudo, (..) registra- fato de serem tomadas por pes-
mos agora um fato novo, a democratiza-
ção e massificação da política” (Sartori,
soas em posições politicas, ou
1983, p. 170). seja, o que define a natureza da
Esta massificação tem con- política é o seu lugar no sistema
sequências importantes sobre social. E este lugar é aquele das
a ubiquidade dos sistemas po- decisões erga omnes, ou seja,
líticos e sobre o alargamento aquelas que sob a forma de leis
do próprio conceito de Estado; (ou com outra forma), são apli- Revista do Programa de Pós-Graduação
no entanto, a essência da verti- cáveis coercitivamente à gene- em Geografia e do Departamento de
calidade como característica da ralidade dos cidadãos (Sartori, Geografia da UFES
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autonomia da política perma- 1983, p.172; Easton, 1968, p.
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89; Rémond, 1988, p.444; Bob- lhas são necessárias e devem
bio, 2004, p. 956). Em outras ser orientadas pela força e co-
palavras, “enquanto um siste- erência dos marcos conceituais
ma político se mantém de pé, os e das evidências empíricas dos
Revista do Programa de Pós-Graduação comandos (...) erga omnes são argumentos à disposição dos
em Geografia e do Departamento de
Geografia da UFES aqueles que emanam de sua di- pesquisadores. A opção deste
Julho-Setembro, 2018 mensão propriamente política”, texto é clara e fundamenta-se
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capazes de decisões soberanas, na convicção de que a geografia
mais difíceis de evitar, seja política tem muito mais a ga-
pela determinação territorial nhar na aproximação das refle-
seja pela intensidade coerciti- xões e das pesquisas da ciência
va (Sartori, 1983, p. 172/173; política do que da sociologia,
Mann, 1992). tendo em vista a objetividade
Há um extenso debate na fi- dos impactos espaciais das de-
losofia política, na ciência polí- cisões erga omnes da política e
tica e na sociologia que não cabe para evitar os riscos da falácia,
recuperar neste espaço, embora muito comum na literatura so-
o desencanto com a política ciológica, de considerar a po-
venha inspirando boa parte do lítica como uma esfera a mais
pensamento contemporâneo do mundo social. Além do pro-
que ao focar as transformações blema identificado por Furet
por que passam as sociedades (apud Middelaar, 2015, p. 221)
e os muitos problemas sociais, de que um pensamento indivi-
econômicos, ambientais etc. dualista e anti-histórico é inca-
arrisca-se a negar a própria po- paz de compreender a política.
lítica (Middelaar, 2015; Innera- Mas, no debate e nas escolhas
rity, 2017) e, paradoxalmente, da geografia há sempre lugar
diluí-la nas relações sociais, para o pensamento orientado
não mais coordenadas por um por ficções abstratas e pela uto-
poder coercitivo centralizado, pia como lentes que distorcem
mas dispersa em um mundo de e simplificam a realidade com-
indivíduos “tribalizados”, onde plexa.
desaparece toda e qualquer au- Em relação ao tema central
tonomia e mesmo importância do debate objeto deste texto,
do campo (Maffesoli, 1992). a pesquisa de Paolo Gerbaudo
Este debate tem ecos na ge- (2017) sobre as manifestações
ografia humana, especialmente nas ruas e praças nas últimas
na vertente que de modo dire- décadas em diversos países
to ou indireto aproxima-se das trouxe evidências da diferença
correntes da sociologia crítica. entre a horizontalidade e verti-
Também a geografia política calidade como condição do ca-
é impactada por esta dispu- ráter mais e menos político das
ta sobre o lugar da política, se manifestações. Segundo esse
institucional ou diluído nas re- autor, houve duas fases nas mo-
lações sociais, e defronta-se bilizações políticas que sacudi-
com o paradoxo de manter o ram diferentes países nas últi-
nome da disciplina, porém es- mas décadas: antes e depois de
vaziando seu conteúdo (Castro, 2011. A primeira fase foi mar-
2005). Neste sentido, as esco- cada basicamente pelas ocupa-
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ções de praças, com um modo transitam verticalmente entre 2 - Esta parte está baseada no verbete
de organização que primava atores sociais e as instituições Espaço político elaborado para a Re-
por relações horizontais, de co- do sistema político como ca- vista GeoGraphia da UFF em 2017.
operação e solidariedade entre nais de encaminhamento das
os ativistas, inspirada em ver- demandas vocalizadas por es-
tentes ideológicas mais libertá- sas mobilizações (Gerbaudo,
rias, autonomistas e anarquis- 2017). Há uma diferença essen-
tas. Estas negavam a política e cial entre ambos: as relações
sua verticalidade, o que contri- moldadas pela sociabilidade
buiu para o rápido esgotamento no primeiro e aquelas definidas
dessas mobilizações, uma vez pela política no segundo.
que não foi possível ampliar
esta horizontalidade para além
dos limites dos espaços ocupa- 2. ESPAÇO POLÍTICO, O
dos pelos ativistas. A segunda QUE É?
fase, ao contrário, buscou esta- Nesta parte propomos uma
belecer canais de comunicação discussão sobre o espaço polí-
com as instituições políticas tico, uma ideia que apesar da
para reclamar suas pautas. A origem na ciência política, foi
verticalidade foi formalizada e apropriado e ampliado na geo-
assumida por líderes publica- grafia política e tem sido anali-
mente reconhecidos que bus- sado como espaço de ação das
cavam integração com esferas políticas públicas e como palco
institucionais, inclusive criando de demandas sociais frente às
novos partidos políticos, como instituições políticas.
ocorreu na Espanha e na Gré- Espaço político², apenas
cia. A democracia representa- como expressão, tem sido usa-
tiva não era negada, mas vista do na geografia política no sen-
como uma condição necessária tido de salientar tanto a intera-
da política contemporânea a ção entre o espacial e o político
ser aprimorada e resgatada das como a espacialidade da políti-
mãos de oligarquias políticas e ca ou mesmo a ideia de que há
econômicas. uma essência política no espa-
Aqui podemos adiantar uma ço como indicada por Lefèbre
diferença substancial entre o (1974). Esta é, por exemplo, a
espaço público e o espaço polí- perspectiva da revista L’Espa-
tico. O primeiro é caracterizado ce Politique, surgida em 2007,
por relações sociais horizontais cujo título se refere ao espaço
em seu cotidiano, um espaço da geografia política e tem por
que segundo Berdoulay, Go- objetivo ultrapassar a divisão
mes e Lolive (2004) remete à entre esta e a geopolítica, privi-
existência de códigos legais es- legiando os “temas fundamen-
tabelecidos sobre a urbanidade tais [que] se articulam em torno
e sobre as maneiras adequadas das noções de espaço e de ter-
de utilizar esse espaço urbano, ritórios” (Rosière, 2007). Nes-
que é acima de tudo um espaço sas abordagens, não é possível Revista do Programa de Pós-Graduação
social, e o segundo é o espaço falar de um conceito ou mesmo em Geografia e do Departamento de
transformado pelas manifesta- uma noção de espaço políti-
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ções políticas onde as relações co, mas de uma expressão que 17
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busca indicar o quanto espaço ço.
e política estão interligados, o Mas o recurso à noção de es-
que tem conduzido a algumas paço político não está restrito à
simplificações do tipo todo es- geografia, nem a disciplina foi
Revista do Programa de Pós-Graduação paço é político ou toda política pioneira na ideia, nem requer
em Geografia e do Departamento de
Geografia da UFES tem uma dimensão espacial. a materialidade do espaço que
Julho-Setembro, 2018 Na realidade, falta neste uso da os geógrafos reivindicam em
ISSN 2175-3709 palavra política uma compre- suas análises. O conceito de es-
ensão do seu significado como paço político foi utilizado pio-
conceito e das suas implicações neiramente por Antony Downs
como ato. (1957) como o espaço da com-
A condição para buscar uma petição eleitoral, na qual elei-
compreensão do espaço políti- tores racionais se alinham num
co como um conceito capaz de continuum de esquerda-direita.
distinguir um objeto com qua- A partir de seus estudos, fir-
lidade, características distintas mou-se uma corrente de análise
e significação para a reflexão e espacial na ciência política nor-
pesquisa na geografia política te americana, importante para
foi dada a partir do que Glas- estudos de competição elei-
sner et al. (1967) chamaram de toral na qual se identificavam
“notável mudança de escala nas os espectros ideológicos da
questões estudadas” pela dis- preferência dos eleitores como
ciplina após a década de 1960, conservadores ou progressis-
que abriu a possibilidade para tas (Stokes, 1963). Sintetizan-
trabalhos na micro escala e para do esta corrente, D’Alimonte
novos enfoques na abordagem (2003, p. 392), explica que
de problemáticas característi- “por espaço político se enten-
cas dos conflitos de interesses de a área de conflito que cons-
nos espaços subnacionais. Mas, titui a relação entre eleitores
algumas décadas foram neces- e partidos, num dado sistema
sárias para o processo de reco- político e num certo momen-
nhecimento do espaço político to histórico”. Mesmo se nesta
como uma categoria de análi- perspectiva teórica o espaço
se na disciplina. Este tem sido seja metafórico e não conside-
desde então um desafio para re qualquer componente que
pensar o espaço e a política não permita identificar este espaço
como duas acepções distintas abstrato da competição eleitoral
ou interligadas numa compre- como geográfico, é importante
ensão generalizante, mas como observar, como fizeram muitos
passíveis de um sentido próprio geógrafos, o quanto existe de
quando a política torna-se um expressão espacial do voto, já
atributo de um determinado es- identificada pela geografia elei-
paço e este uma parte constitu- toral desde os trabalhos de An-
tiva daquela. Ou seja, quando dré Siegfried (Sanguin, 2010),
este espaço qualifica a política e o quanto o espaço político da
que o diferencia de outros espa- competição eleitoral adquire
ços e lhe atribui uma dinâmica visibilidade e materialidade nos
própria da qual resulta um con- espaços legislativos.
teúdo diferenciado desse espa- Mas a mudança de escala nos
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estudos de geografia política e localização tem significância


o recurso às teorias desenvolvi- crítica para os conflitos loca-
das pela ciência política, já na cionais e para as suas soluções.
década de 1970, favoreceram Na década de 1970, o debate da
maior compreensão sobre como geografia política norte ameri-
os conflitos políticos nos espa- cana sobre as abordagens loca-
ços subnacionais podem defi- cionais do poder e dos conflitos
nir espaços qualitativamente foi uma resposta às análises
diferentes. Neste período, Soja sistêmicas da ciência politica e
(1974) chamou a atenção para da sociologia que teimavam em
o problema da análise locacio- ignorar a importância do espa-
nal dos conflitos de interesses, ço geográfico como parte da di-
negligenciada nos estudos dos nâmica das relações sociais. A
sistemas políticos. A crítica dos partir da leitura atenta pelos ge-
geógrafos americanos à ciência ógrafos políticos das teorias da
política recaiu sobre a neces- ciência política e da sociologia
sidade de ênfase também nos e da sua incorporação à agen-
fundamentos territoriais, na es- da da disciplina, não era mais
trutura espacial e na expressão possível desconhecer que uma
locacional do sistema político, análise consistente dos arranjos
além dos processos e das rela- espaciais dos conflitos sociais
ções que o moldam. Os geógra- necessitava de uma compreen-
fos, muito corretamente, cri- são mínima daquelas teorias.
ticaram a perspectiva abstrata Estavam postos neste debate
em relação ao espaço assumida os elementos necessários ao
pelos politólogos. Nesta mesma avanço de uma compreensão
linha, o autor criticou o fato de da política como possibilidade,
os sistemas – social e político recurso e estratégia para as con-
– serem pensados, “em essên- figurações do espaço.
cia, frequentemente e totalmen- A partir do final da déca-
te divorciados de seu contexto da de 1970, Kevin Cox (1979)
geográfico” (op.cit.:59). Em aprofunda as pesquisas sobre
reforço a esta observação, Soja os conflitos espaciais nas aloca-
(1974, p. 61-62) utiliza a ex- ções de políticas públicas, tra-
pressão espaço político como o zendo para a geografia o tema
espaço da comunidade política da “public choice”, consolida-
que se torna definida em termos do da ciência política. Nessa
territoriais e aponta a necessi- época, seus estudos eram so-
dade de maior interação entre bre as estratégias políticas de
a ciência política e a geografia grupos de pressão para atrair
como possibilidade para futu- investimentos em políticas pú-
ras pesquisas cooperativas (op. blicas favoráveis aos seus lo-
cit. p. 66). Estimulados pela cais de moradia. Mas, em tra-
mesma problemática coloca- balhos posteriores, a questão do
da na década, Cox, Reynolds e espaço como necessária, e não
Rokkan (1974, p. 29) afirmam contingente, tanto às relações Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
que sistemas políticos são tam- sociais como à política, contri- Geografia da UFES
bém sistemas espaciais, pois a buiu para as muitas possibilida- Julho-Setembro, 2018
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des concretas da relação espaço centrais: a necessidade de con-
e política. Esta era evidente, siderar as instituições políticas
não apenas como reflexão con- como potências organizadoras
Revista do Programa de Pós-Graduação ceitual geral, mas como proble- dos conflitos entre o espaço po-
em Geografia e do Departamento de mática para a investigação em- lítico e o espaço civil e a regula-
Geografia da UFES
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pírica que focava determinados ção crescente da vida política e
ISSN 2175-3709 espaços como objeto para com- dos movimentos sociais (Lévy,
preensão do fenômeno estuda- 1991, p. 210). Mas é em obra
do (Cox, 1991, p. 161). posterior que Jacques Lévy
Mas, foi no início da déca- (1994, p. 15) propõe o espaço
da de 1990 que a ideia do es- político como objeto a partir da
paço político como objeto de consideração “da política (...)
reflexão se colocou de manei- como um poder sobre as coi-
ra mais clara, embora ainda sas, uma potência de transfor-
não completamente formula- mação, seja direta, seja como
da. Esta, afinal, pressupunha ir patamar para outras ações e
além da perspectiva já ampla- finalmente uma modificação
mente aceita da interação entre do espaço civil (...)”, que ele
a política e o espaço. Era neste não chega a definir muito bem.
sentido que um número espe- Para o autor, o espaço político
cial da revista Espaces Temps, incorpora a vida social e os mo-
número 43-44 de 1990, reedi- dos como esta pode modificar
tado posteriormente como livro a geografia da decisão políti-
(Lévy, 1991) começava com a ca, seja na geografia eleitoral,
indagação: “Espaço político, seja a intencionalidade do ator
mas do que se trata exatamen- espacial individual para a ação
te?” Especialistas, não apenas concreta sobre o habitat. Anali-
geógrafos, foram convidados sando com um pouco mais de
para responder brevemente à atenção, as questões levantadas
questão: “O que você entende pelo autor eram dirigidas ao es-
por “espaço político”?” (Lévy, forço de renovação e ampliação
1991, p. 17). Mas as respostas, da agenda da geografia política,
naquele momento, não foram sendo a ideia de espaço políti-
muito além da necessidade de co um recurso importante para
reconhecer os espaços recor- legitimar na disciplina as dife-
tados pela função política das rentes escalas e os recortes es-
instituições de governo com a paciais demarcados tanto pela
mediação das ações da socie- ação do poder público, como
dade civil. O espaço político foi aqueles das preferências elei-
percebido como uma dimensão torais ou mesmo das escolhas
da sociedade, como um nível residenciais. Mas, o espaço po-
espacial particular (Lévy, 1991, lítico considerado pelo geógra-
p. 209). Ainda era pouco claro fo francês também poderia ser
o que seria este “nível espacial visto como o espaço da políti-
particular”. ca, ou seja, o espaço de toda a
Porém, já era possível iden- sociedade, ou ainda, de modo
tificar nessas discussões a mais específico, o espaço polí-
emergência de duas questões tico torna-se uma invenção per-
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manente da sociedade (Lévy, escolhas eleitorais, ou mesmo


1994, p. 248/258). O que não como o que era chamado de
deixa muito claro como iden- espaço da política, aquele con-
tificar e recortar na prática este templado nas análises da geo-
espaço, uma vez que ele recorre grafia política, tanto na escala
um grau de abstração que mais global como na escala nacio-
confunde do que esclarece. nal, regional ou local, especial-
Ainda na década de 1990, mente nos espaços urbanos. Ou
Smith (1996, p. 82) dá conti- seja, com tantas possibilidades,
nuidade ao debate sobre a in- o espaço político poderia ser
corporação da teoria política todo e qualquer espaço tratado
para a análise das questões da na geografia política, o que reti-
geografia humana e os movi- ra toda e qualquer possibilidade
mentos sociais são destacados operacional do conceito para
pela capacidade de criar no- a pesquisa, tendo em vista sua
vos espaços políticos para no- indefinição e seu grau de abs-
vas geografias. Nesse trabalho, tração tal que impede qualquer
os movimentos sociais, como reflexão acadêmica consistente
agentes de transformação só- sobre um e outro na disciplina.
cio-espaciais e de controle do No campo intelectual da
poder, são focados tanto como democracia, as discussões so-
novas formas coletivas de ação bre a necessidade de espaços
política nas sociedades pós- e fóruns para a sua efetivação
-industriais como importantes e legitimidade social (Young,
nas escalas comunitárias para a 2000), consolidou a discussão
configuração do que ele chama e as pesquisas sobre espaços
de espaço político. políticos nas ciências sociais.
Mesmo se a partir da década Estes são categorizados, de
de 1970 até a década de 1990 modo mais geral, como espa-
a renovação da geografia po- ços de lutas, de mobilizações
lítica implicou a incorporação por direitos, envolvimento dos
de conceitos da ciência polí- cidadãos na governança, de rei-
tica para compreender de que vindicações, de protestos etc.
modo fenômenos políticos tais (Daniel, 2002; Koebel, 2011;
como: ação coletiva; alocação Holston, 2013; Cornwall, 2002,
de recursos governamentais; 2007; Brockett, 2015). Mas, es-
políticas públicas; decisão do tes espaços podem ser também
eleitor; divisões político admi- aqueles das redes virtuais, sem
nistrativas; movimentos sociais materialidade, mas importantes
etc. impactavam o espaço, ain- por conectar movimentos em
da não havia uma compreensão diferentes lugares do globo ou
clara sobre o espaço político e por facilitar a conexão entre o
quais as possibilidades do con- espaço virtual e o espaço con-
ceito para a pesquisa empírica. creto das mobilizações (Cas-
Este era definido ora como o tells, 2015; Smith, 2015; De-
espaço da sociedade, ora como Angelis, 2015). Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
o espaço da resistência social, Nessa literatura, um bom Geografia da UFES
também como o espaço das exemplo da convergência indi- Julho-Setembro, 2018
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ISSN 2175-3709
cada por Grahan Smith (1996) e legitimam esses espaços. Ou
do conceito de espaço político seja, a questão central, subsu-
dos movimentos sociais para mida nas suas reflexões concei-
Revista do Programa de Pós-Graduação aquele aplicado na geografia tuais e na pesquisa empírica, é:
em Geografia e do Departamento de encontra-se também na antro- de que modo os espaços políti-
Geografia da UFES
Julho-Setembro, 2018
pologia com Cornwall (2002). cos forjados pela sociedade, em
ISSN 2175-3709 Os espaços políticos, objeto aliança ou em confronto com as
de análise da autora, possuem instituições, adquirem funcio-
materialidade, representam nalidades e formatos diferen-
arenas políticas dentro e além ciados, o que vem ao encontro
do Estado-nação e constituem dos argumentos e propostas que
“alguma coisa que pode ser procuramos aqui apresentar.
criada, aberta e remodelada. A ideia da necessidade de
(...) O ato de participação pode um espaço para a realização da
ser visto dando vida a espaços, política encontra-se também
bem como esculpindo novos em Hanna Arendt, quando in-
espaços e criando novas formas dica que o homem - como ser
sociais com seu próprio domí- que age - constitui o centro da
nio e ímpeto” (Cornwall, 2002, política (Arendt, 1998, p. 21-
p. 2). Esses espaços estão as- 23). Elaborando a ideia do es-
sociados a arenas políticas e à paço político como um lugar,
governança, cuja função é abrir a autora argumenta que a ação
canais de comunicação com o política transborda das casas le-
poder político institucionaliza- gislativas - espaços instituídos
do com objetivo de ampliar o por excelência - para outros que
atendimento às demandas so- constituem o seu repto. Mas, ao
ciais por voz e inclusão. Frente ponderar que o agir em comum
às possibilidades e complexida- dos homens acontece essencial-
de das formas de participação e mente no espaço político, Arent
dos espaços escolhidos e mol- (1998, p. 78-79) destaca a fun-
dados para isto, a autora orga- ção primordial da política na re-
niza uma tipologia de espaços lação entre a força, possibilida-
políticos com base em critérios de do indivíduo ou da minoria,
de: relação entre participantes e o poder, potência da maioria,
e instituições; efemeridade, como base dos acordos neces-
ou seja, espaços que se abrem sários à ordem social e política.
com propósitos particulares e Na discussão até aqui ex-
se fecham novamente; espaços posta, a questão mais geral da
escolhidos; espaços abertos das relação entre o espaço e a po-
manifestações. Estas são algu- lítica é o substrato analítico de
mas formas que assumem os onde emerge o espaço político
espaços de ação de atores so- como objeto que merece aten-
ciais e institucionais com obje- ção na geografia. Tendo em
tivo de mudança, ou de conser- vista as muitas possibilidades
vação. Para a autora, diferentes do conceito para a pesquisa na
possibilidades de participação e disciplina, em suas diferentes
do envolvimento público na go- escalas, e para o estabeleci-
vernança reforçam a cidadania mento de um diálogo enrique-
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Iná Elias de Castro Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer?
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Iná Elias de Castro Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer?
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cedor com as ciências sociais, inerente à vida política que su-


especialmente a ciência política põe pensar e falar como meios
mais atenta à relação entre te- de persuasão e o agir como fi-
oria e prática, a reflexão sobre nalidade dos atores institucio-
ele permanece na agenda. nais (Castro, 2012). O espaço
Nesse diálogo, a expansão político é então um lugar mo-
contemporânea da democracia bilizado para o confronto, onde
de massas que resultou na mul- os homens agem coletivamente
tiplicação e visibilidade das es- com uma intenção, o lugar da
feras públicas e das arenas polí- defesa de interesses, da nego-
ticas tem balizado na geografia ciação e da disputa de poder
política a aplicação do concei- sobre os acordos em relação às
to de espaço político (Castro, normas necessárias ao convívio
2016). Nesta aplicabilidade do pacífico entre diferentes visões
conceito há uma compreensão de mundo. Há, pois na ação no
de que a política é uma prática e espaço político uma dimensão
se revela em espaços concretos instituinte, ou seja, uma cone-
e que a qualificação do espaço xão com o poder decisório go-
pela política supõe uma dimen- vernamental, qualquer que seja
são da sociedade e possui no a sua escala.
mínimo três atributos: a escala, Os espaços políticos podem
a métrica e a substância (Lévy, ser pensados como objetos ge-
1999), mas que interagem com ográficos que apresentam dife-
a dimensão conflitual do mundo renciações e a princípio podem
social. É neste sentido que ato- ser classificados segundo crité-
res políticos constroem escalas rios de escala, métrica e subs-
de ação (Cox,1998) que confe- tância, como já indicado, como
rem visibilidade e estabelecem fundamentos da sua visibilidade
recortes operacionais, cujas (reconhecimento), abrangência
métricas se definem pelo alcan- (alcance) e efetividade (efeitos
ce, na sociedade, dos impactos desejados) respectivamente.
das decisões tomadas. Neste Como outros autores nas ciên-
processo, os parlamentos e os cias sociais citados já o fizeram
espaços escolhidos pela socie- (Cornwall e Coelho, 2007), é
dade para dar voz e visibilidade possível estabelecer uma tipo-
às suas demandas constituem logia de categorias básicas de
espaços políticos que podem espaços políticos que podem
ser menos ou mais ativos. ser tratados na geografia, com
O espaço político é então um uma terminologia que remete
tipo de espaço ao mesmo tem- à qualidade mais essencial de
po de disputa sobre interesses cada tipo considerado. Neste
conflitantes, cujos acordos re- sentido, identificamos três tipos
velam a capacidade de algumas básicos de espaços políticos:
vontades imporem-se sobre exclusivos, limitados e abertos,
outras. Não se trata aqui, por- tendo em vista a característica
tanto de abstração, mas de prá- da verticalidade mais essencial Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
tica social, visível e acessível da ação política em cada um. Geografia da UFES
e personifica a materialidade Os Parlamentos, as Assem- Julho-Setembro, 2018
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ISSN 2175-3709
bleias ou Câmaras Legislativas (Castro, 2016), que Cornwall
são decerto espaços políticos (2002) chamou de espaços polí-
exclusivos, ou seja, são cons- ticos de movimentos e momen-
Revista do Programa de Pós-Graduação truídos e organizados essen- tos efêmeros, se expressam nas
em Geografia e do Departamento de cialmente para o debate e a ruas e praças, lugares do coti-
Geografia da UFES
Julho-Setembro, 2018
deliberação politica. Possuem diano social que se metamorfo-
ISSN 2175-3709 ampla visibilidade e reconhe- seiam em arenas de demandas,
cimento formais, são espaços conflitos e ação, o que os inves-
onde se debatem interesses ge- te de evidente caráter político
rais conflitantes e cujos efeitos (Machado Filho, 2017). Estes
das decisões tomadas, sua subs- são espaços da visibilidade e da
tância, são erga omnes, ou seja, performance política em bruto,
afetam o conjunto de cidadãos ou seja, como forma que precisa
representados nos recortes ter- ser interpretada (Bucci, 2016;
ritoriais da sua jurisdição e sua Gerbaudo, 2017; Routledge,
métrica, demarcada pela escala 2017). Sua escala e métrica são
da ação. A ideia de exclusivida- variáveis e instáveis, mas seus
de decorre do fato de que nas afeitos, como condição da sua
democracias representativas, substância podem afetar pro-
apenas nas instituições legisla- fundamente algumas decisões
tivas, espaços políticos por ex- políticas de prazo mais longo,
celência, é possível estabelecer estabelecendo um nexo vertical
normas impositivas para toda a entre a “praça” e o “palácio”,
sociedade no limite da sua cir- ou mais objetivamente, entre
cunscrição (Bobbio, 1987). a sociedade e seus governan-
Os espaços políticos limita- tes. Estes são espaços de ação
dos correspondem aos muitos abertos a toda a sociedade, qua-
espaços de debates e represen- lidade intrínseca aos espaços
tação de interesses particulares escolhidos para manifestações,
nas sociedades contemporâne- protestos, passeatas, ocupações
as. São institucionalizados e e tudo mais que a imaginação
facultados por normas de parti- dos ativistas sociais decidir
cipação em diferentes modelos criar para alcançar seus objeti-
de democracia como os muitos vos políticos. Nunca é demais
tipos de conselhos e de fóruns lembrar que quanto mais livres,
temáticos, além de associa- numerosos e reconhecidos pela
ções, inclusive as de moradores sociedade esses espaços, maior
(Azevedo, 2016). A qualifica- será o vigor da sua participação
ção de limitado remete mais à política na organização e defesa
demarcação temática e deci- dos seus interesses.
sória do que à escala dos seus A tipologia aqui exposta,
efeitos. Ou seja, esses espaços muito mais sintética do que a
podem ter resultados efetivos proposta por Cornwall (2002),
de suas ações em diferentes es- por exemplo, tem se mostrado
calas, mas são restritos à agen- útil para a geografia política na
da temática, como parte da sua medida em que ela estabelece
atribuição. os três lugares privilegiados da
Os espaços políticos abertos ação política nas condições do
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Iná Elias de Castro Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer?
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Iná Elias de Castro Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer?
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mundo atual. O suposto é que recem ser estudados e compre-


os diferentes tipos de espaços endidos pela geografia, tendo
políticos modelam e são mode- em vista o desafio que colocam
lados por determinados tipos de para a compreensão mais obje-
ação de atores sociais, tornan- tiva da relação entre o espaço e
do-se o lugar de discussão, de a política como ação.
deliberação ou apenas de ma-
nifestação de vontades. Mas, o
3. QUANDO, COMO, EM
que é peculiar nesses espaços é
QUE CIRCUNSTÂNCIAS
a sua qualidade de estabelecer
E EM QUE GRAUS OS ES-
nexos entre os interesses que
PAÇOS PÚBLICOS PODEM
neles se expressam e a produ-
SE TRANSFORMAR EM
ção de normas favoráveis àque-
ESPAÇOS POLÍTICOS?
les capazes de se impor aos
demais, questão central da po- Nas duas partes anteriores
lítica. Se do ponto de vista da apresentei os argumentos para
operacionalidade da pesquisa, a tese, defendida na abertura
a identificação desses três tipos deste artigo, de que os espaços
de espaços pode parecer à pri- públicos não são por natureza
meira vista restritiva, na reali- espaços políticos, mas espaços
dade ela tem o mérito de supe- da socialidade, ou seja, o lugar
rar a imprecisão da ideia de que do encontro, do ver e do ser vis-
o espaço político é o espaço da to, com limites físicos, normas
competição eleitoral, ou o espa- e regras de comportamento de-
ço da vida social ou ainda o es- finidos pelos poderes políticos
paço recortado pelas escalas de institucionalizados. Mas são
ação da gestão pública. Desse passíveis de qualificarem-se
modo, a consideração da políti- como espaços políticos quan-
ca supõe reforçar a perspectiva do invadidos por fenômenos da
das instituições como potências política que, temporariamente
organizadoras da agenda po- transformam sua natureza de
lítica, tendo em vista as dife- lugar do encontro, do ver e do
rentes formas de mobilização ser visto em palco de atividades
da sociedade como potências que alteram suas rotinas e seu
instituintes que dialogam e se público usual. A questão central
confrontam permanentemente dessa perspectiva é aquela que
com o status quo. Mas, deve ser trata a política a partir da sua
destacado que estas ações qua- própria autonomia, dos seus
lificam um dado espaço onde é imperativos, das suas leis e que
possível identificar e descrever não pode ser reduzida a outra
um cenário real no qual nor- coisa (Sartori, 1973, p. 178).
mas são colocadas em questão. Nesta parte, discuto a incon-
É nesta força dinâmica que se gruência dos argumentos que
delineiam os cenários múltiplos defendem uma essência políti-
e complexos dos espaços políti- ca no espaço público a partir da
cos, cada vez mais apropriados ideia geral da espacialidade da
Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
como objeto de pesquisa das política e da assertiva da ação Geografia da UFES
ciências sociais, mas que me- política como uma esfera abs- Julho-Setembro, 2018
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trata (Gomes, 2012, p. 32-37). clássica cidade europeia. As
Esta incongruência reside, pois primeiras seriam palco de ações
no fato de ignorar a autonomia e as últimas de rituais. Para ela,
Revista do Programa de Pós-Graduação da política, questão central no a rua global é o espaço emer-
em Geografia e do Departamento de debate da ciência política, e de gente onde os que têm menos
Geografia da UFES
Julho-Setembro, 2018
tomá-la como uma palavra va- poder estão fazendo história a
ISSN 2175-3709 zia, ou seja, como um objeto sua maneira. Luiz Guilherme
sem qualidade e de pouca uti- Rivera de Castro, arquiteto e
lidade, seja para a reflexão seja urbanista, propõe um conceito
para a pesquisa empírica. Este para o “espaço público” no sin-
é o mesmo equívoco da ciência gular e para “espaços públicos”
política ou da sociologia quan- no plural. O primeiro como a
do tratam o espaço de modo esfera pública, o domínio dos
metafórico e abstrato, esva- processos propriamente polí-
ziando seu significado material ticos, das relações de poder e
e sua densidade conceitual tão das formas que estas assumem
debatida na geografia. nas sociedades contemporâne-
Para encaminhar o debate as. Nos espaços das cidades, na
aqui proposto, recupero a ideia mídia ou na internet, é a esfe-
central contida na definição ra da cidadania e da expressão
mais restrita de espaço públi- política das forças sociais. O
co na geografia e ainda usual segundo, no plural, compreen-
na sociologia e no urbanismo. de os lugares urbanos que, em
Na geografia, Brunet, Ferraz e conjunto com infraestruturas
Théry (1992, p. 195) o definem e equipamentos coletivos, dão
como uma extensão aberta ao suporte à vida em comum: ruas,
público e mantida ou equipa- avenidas, praças, parques. Nes-
da para este fim: praça, espaço sa acepção, são bens públicos,
verde, jardim, aleias, passeio, carregados de significados, pal-
parque. Mas o conceito não é co de disputas e conflitos, mas
consensual e está sujeito a con- também de festas e celebrações.
tínuos debates, na geografia e Fadi Shayya, urbanista destaca
fora dela. em Beirute a invasão dos espa-
A Revista Arquitetura e Ur- ços públicos por ativistas desde
banismo³, em Julho de 2013, 2005. Para ele a cidade entrou
encaminhou para três urbanis- em uma nova era de territoria-
tas e uma socióloga a questão lidade espacial e ideológica
O que é espaço público? “Ten- “Nos últimos oito anos, praças
do em vista a necessidade de públicas, parques e ruas estão
repensar o óbvio”4. sempre ocupados por diferen-
Para Saskia Sassen, soció- tes facções protestando contra
loga, os espaços públicos con- um grande espectro de agen-
tinuam a ser uma característica das”. Paula Santoro, urbanista,
3 - www.revistaau.com.br/forum fundamental das cidades (...). destaca que nas manifestações
4 - Site Fato e Opinião na Edição E, assinala o que considera a públicas por todo o País, foi no
232; http://au17.pini.com.br/arquite- diferença política entre a rua e espaço público que o movimen-
tura-urbanismo/232/o-que-e-espa- a praça da cidade contemporâ- to cívico e apartidário tomou as
co-publico-292045-1.aspx acessado
em 23/01/2018
nea e o bulevar e a piazza da ruas do Brasil. Mas, claro, ape-
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nas nas ruas que estavam aber- como origem e matriz de todo 5 - O livro de Habermas aparece
tas. Para ela, não há mais o lu- espaço público. em francês em 1978 sob o título
de L’espace public. Archéologie
gar do encontro das massas que Também nesta linha crítica, de la publicité comme dimension
não seja nas ruas. François Tomas (2001, p. 76) constitutive de la société bourgeoise.
Desta exposição muito sinté- chama a atenção para o fato Paris, Payot, 1978.
tica, três perspectivas chamam de essa concepção de espaço
a atenção. Aquela dos espaços público estar impregnada pelo
urbanos criados e equipados conceito de esfera pública uti-
para uso público; aquela desses lizado por Habermas e que foi
espaços como lugar de ações, traduzido como espaço público
de agitações, de manifestações na versão francesa5, o que não
e de conflitos e aquela do es- aconteceu na tradução inglesa.
paço público no singular como Para ele, o erro na tradução do
homólogo à ideia de esfera pú- texto alemão não parece neutro
blica. e justifica: “neste período, os
Mas, é importante traçar intelectuais franceses diante da
uma linha do tempo sobre o degradação dos espaços urba-
conceito na geografia em três nos públicos se interrogavam
dicionários de referência na sobre a crise das sociabilidades
disciplina que vai da definição citadinas, o que poderia expli-
de Brunet et al. (1992, p. 195) car o deslocamento semântico
explicitada acima, àquela de Ja- e seu sucesso”. Neste sentido,
cques Lévy (2003, p. 333-340) o conceito de “espaço público”,
e posteriormente Gregory et al. no sentido que lhe foi atribuído
(2009). Neste período o concei- como uma esfera deliberativa,
to apresenta uma clara deriva a teria surgido de um artifício de
partir da assimilação das dis- tradução, que deslocou o efeito
cussões sobre a esfera pública performativo da esfera pública
realizada por Habermas (1984). habermasiana para um modelo
Mondada (2003, p. 333) cri- espacial dominante e afetou a
tica o limite da análise padroni- designação do fenômeno pela
zada do espaço público na geo- confusão com o espaço público
grafia, arquitetura e urbanismo “comunicacional” (uma “cena”
a partir da década de 1980: uma deliberativa tornada pública)
abordagem que trabalhada no onde nenhum espaço é encon-
sentido da “esfera pública”, trado.
pela filosofia e ciência política, Voltando a Mondada, a auto-
levou a traçar a priori o espaço ra conclui que a noção se impôs
público como espaço virtuoso a tal ponto que apagou aquela
da cidadania, portador intrinse- de espaço público urbano utili-
camente das virtudes da troca zado por arquitetos, geógrafos
interpessoal, o quadro ideal da e urbanistas anteriormente. E,
realização perfeita da discussão considerando essas ambigui-
cidadã livre e igualitária. Para dades, ela sugere que seria ju-
ela, trata-se de uma concepção dicioso sistematizar o emprego
que remete ao tipo-ideal mito- de esfera pública para designar Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
lógico da praça pública: aque- a cena deliberativa e o domínio Geografia da UFES
le da ágora grega, constituída da opinião pública e reservar Julho-Setembro, 2018
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o emprego de espaço público – ideias, opiniões – mesmo
para analisar as características que os lugares de encontro dos
espaciais de objetos de socie- debates e exposição de ideias
Revista do Programa de Pós-Graduação dades específicas (praças, ruas, sejam diferentes. Esta materia-
em Geografia e do Departamento de jardins etc.). lidade, portanto não é inerente
Geografia da UFES
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Mas a influência da esfera ao conceito.
ISSN 2175-3709 pública de Habermas na discus- Em seu livro Direito e de-
são sobre o espaço público na mocracia, Habermas (1997, p.
geografia é evidente também 92, apud Borges, 2017) acaba
no verbete do The dictionary of por redefinir seu entendimen-
human geography (Derek et al, to sobre a esfera pública ao
2009). O texto destaca que falar compreendê-la como fluxos
de espaço público é necessaria- comunicacionais, afastando
mente falar da esfera pública, o mais uma vez a ideia de que a
reino da opinião e ação coletiva esfera pública necessitaria de
que estabelece a mediação en- materialidade ou de um espaço
tre sociedade e Estado, embora público. Para o autor a esfera
reconhecendo que esfera pú- pública contemporânea pode
blica e espaço público não são ser definida como “uma rede
intercambiáveis. A perspectiva adequada para a comunicação
aqui é mais nuançada e reco- de conteúdos, tomadas de po-
nhece ser no espaço público sição e opiniões, nela os fluxos
que conversas e encontros da comunicacionais são filtrados e
vida pública se tornam físicos e sintetizados a ponto de conden-
reais, o que afinal é o esperado sarem opiniões públicas enfei-
nesses espaços, ao contrário da xadas em temas específicos”.
imaterialidade da esfera públi- Jacques Lévy (2003, p. 336-
ca, lugar abstrato da formação 338) enfrenta as injunções do
da opinião pública. tema na geografia fazendo da
Porém, em elaboração pos- civilidade uma dimensão não
terior, Habermas (1997, apud política e do espaço público
Borges, 2017) propõe que exis- uma utopia que, onde é adotada,
tem diferentes tipos de esferas participa ativamente da vida ur-
públicas que podem ser defi- bana concreta. No entanto, para
nidos de acordo com sua com- ele os laços fracos que possibi-
plexidade organizacional e de litam os lugares públicos, re-
seu alcance, sendo destacados velam exigências estritas sobre
três tipos de esferas públicas: as quais não se pode cometer
as esferas públicas episódicas – excessos, se se quer conservar
bares, cafés, teatros; as esferas seu caráter aberto. Ele destaca
públicas da presença organiza- que o caráter público do espaço
da – reuniões de pais, associa- vem daquilo que ao menos aí
ções de moradores, movimen- circula de político, compreen-
tos sociais e as esferas públicas dido por ele no contexto do de-
abstratas – rádio, televisão, bate sobre espaço público como
jornais e revistas. Portanto, as valores da sociedade urbana, o
esferas públicas são sempre mais frequente sob a forma de
formadas por fluxos imateriais civilidade, quer dizer sob a fi-
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Iná Elias de Castro Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer?
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gura da assimilação silenciosa ciamente nos objetos. Afinal,


cujos laços distantes organizam um observador mais atento verá
a co-presença em cada lugar ur- que a civilidade é uma marca
bano. que vai muito além dos limites
Trata-se para ele dos valores daqueles espaços.
da sociedade urbana e de sua Neste ponto, a questão da
implementação. A civilidade cidadania e da civilidade, re-
seria o político – o que foi acor- ferências sempre presentes nos
dado - sem a política – o con- argumentos sobre a existência
fronto de interesses. Esta ma- de uma natureza política no es-
neira não institucional de fazer paço público, pode ser retoma-
política supõe a outra vertente da a partir dos argumentos de
explícita, qual seja, a governa- Schnapper (1994, p. 118-119)
mental (a realização e a gestão sobre a cidadania. Embora ela
do espaço público) ou a cidadã discuta também a soberania na-
(o civismo do engajamento em cional, este ponto não será aqui
caso do conflito sobre o uso). desenvolvido. Para ela, ambas
Para ele, a civilidade é uma são ficções abstratas em torno
política de forte componen- das quais não se pode congregar
te interativo, que se constrói a ou mobilizar indivíduos. A co-
cada instante sem deixar traço munidade de cidadãos somente
visível, mas se incorporando pode surgir se esse tipo de va-
sub-repticiamente nos objetos. lor for incorporado por práticas
Nesta perspectiva, para sociais e instituições políticas,
Lévy, a política é relacional, e uma conformidade subjetiva
está na sociedade, mas também entre cidadãos não bastaria para
na instituição governamental, isso. Em outro trabalho mais es-
e o espaço público confere vi- pecífico, a autora destaca que a
sibilidade ao que é acordado cidadania tem por princípio um
formalmente ou informalmen- sentido jurídico. “O cidadão
te. Neste sentido, começamos a não é um indivíduo concreto”,
perceber que uma melhor com- ele é resultado de definições
preensão sobre a política co- resultantes de conflitos e com-
loca-a nos sistemas decisórios promissos, entre grupos sociais
– formais e informais – da so- opostos, de acordo com as re-
ciedade que impregnam todos lações de força que se estabe-
os seus espaços, e não apenas lecem entre eles. Neste sentido,
aqueles públicos urbanos, com a cidadania só pode organizar
a civilidade, mas também com a sociedade se ela personifica
comportamentos transgressores as regras jurídicas e, de modo
e com os obrigatórios segun- geral, um conjunto de institui-
do regras impostas legalmente ções e práticas sociais, que não
pela maioria através das leis. cessam de evoluir (Schnapper,
Não parece então evidente que 2000, p. 138).
haja nos espaços públicos qual- Outra questão importante
quer natureza política pelo fato em relação à cidadania é relati- Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
de a civilidade, como afirma va ao papel das instituições po- Geografia da UFES
Lévy, incorporar-se sub-repti- líticas que formam os cidadãos Julho-Setembro, 2018
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e organizam o debate entre eles. e são frequentados em socieda-
A multiplicidade de formas des não democráticas.
concretas pelas quais este deba- No entanto, como já indi-
Revista do Programa de Pós-Graduação te é instituído demonstra que as cado acima, a compreensão do
em Geografia e do Departamento de soluções alcançadas para conci- espaço público como extensão
Geografia da UFES
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liar os direitos do indivíduo ci- aberta ao público e mantida ou
ISSN 2175-3709 dadão e as exigências da orga- equipada para este fim: praça,
nização coletiva não são jamais espaço verde, passeio etc. guar-
boas para todos e para sempre da uma simplicidade operacio-
(Schnapper, 2000, p.153). Para nal e pouca sofisticação con-
a autora, instituições como a es- ceitual. A tradução equivocada
cola, os parlamentos, os meios da esfera pública de Habermas
de comunicação são centrais para espaço público ampliou as
para a formação de uma opi- possibilidades intelectuais do
nião pública, por mais abstrato conceito ao custo de torná-lo
e discutível que este conceito uma quase ficção, um modelo
seja. Na mesma linha Haber- abstrato do ideal republicano
mas (1997, apud Borges, 2017), da cidadania, da democracia,
citado acima, chama a atenção do debate público em torno dos
para espaços de debate das es- conflitos de interesses. Nesta
feras públicas, como os bares, perspectiva, este espaço com
cafés, teatros, reuniões de pais, tantas atribuições e responsabi-
associações de moradores, mo- lidades perde a qualidade dada
vimentos sociais, bem como os por sua materialidade, tão cara
meios de comunicação – rádio, à geografia e torna-se um cons-
televisão, jornais e revistas. truto intelectual que pode che-
Dessa forma, o debate moti- gar a substituir a própria ideia
vado por interesses divergentes de sociedade, neste caso de
como meio de alcançar o com- pouca originalidade, uma vez
promisso sobre a civilidade e que esta já é objeto de muitos
a cidadania se faz nos muitos campos do conhecimento nas
fóruns adequados aos muitos ciências sociais.
temas, públicos e locais que Finalizando e reiterando o
não podem ser confundidos que já foi explicitado, os es-
genericamente com os espa- paços públicos são objetos de
ços públicos urbanos. Portan- análise importantes na geogra-
to, nem o debate público, nem fia urbana e nas últimas déca-
a cidadania, nem a democracia das têm sido invadidos por um
são condições substantivas para novo tipo de protagonismo que
qualificar esses espaços como tem revelado suas possibili-
políticos. Afinal o debate pú- dades como espaços políticos.
blico vai bem além da ideia da Lutas, mobilizações por direi-
co-presença; a cidadania é um tos, envolvimento dos cidadãos
construto legal e diferenciado na governança, reivindicações,
em muitos países onde pessoas protestos etc. são ações no es-
gozando de direitos limitados paço que têm sido amplamente
frequentam espaços públicos; estudadas pelas ciências so-
espaços de uso público existem ciais. Trata-se do mundo real
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Iná Elias de Castro Espaços públicos como espaços políticos: o que isso quer dizer?
Páginas 12 à 33
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da política, da sua concretude tornando-o outro tipo de espa-


revelada em atos e decisões, ço, qualificado pela política e
requalificando a materialidade aberto à investigação e debates
do espaço público, tão caro às na geografia.
análises da geografia urbana,

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