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Eduardo Viveiros de Castro

BRASIL,
PAÍS DO FUTURO
DO PRETÉRITO
O livro como imagem do mundo é de toda maneira
uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer
Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir.
Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo
sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
mais simples, com força de sobriedade, no nível
das dimensões de que se dispõe, sempre n-1
(é somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

Gilles Deleuze e Félix Guattari


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Eduardo Viveiros de Castro

BRASIL,
PAÍS DO FUTURO
DO PRETÉRITO

Aula inaugural, PUC-Rio, 14 de março de 2019.


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Agradeço ao CTCH o convite para dar esta aula inaugural.
Sinto o peso de uma grande responsabilidade, pois o ano
letivo que começa não promete nada de bom para educa-
dores e educandos. Nada de bom, de fato, para a esmaga-
dora maioria do povo brasileiro.
Fui aluno da PUC de 1969 a 1973. O Departamento de
Ciências Sociais da PUC era então um refúgio para muitos
professores perseguidos pela ditadura, que tinham sido
afastados das universidades públicas ou não tinham chan-
ce de serem contratados por elas. Entrei em 1974 no PP-
GAS, o Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional. O Museu, embora pertencesse à UFRJ,
também desempenhava essa função de refúgio para cien-
tistas sociais em situação de perigo: um lugar vetusto como
o Museu e uma disciplina como “Antropologia” (em vez de
“Sociologia” ou “Ciência Política”) davam menos na vista.
Por isso mesmo, por abrigarem quem o governo autoritário
queria calar, a PUC e o PPGAS foram os polos dinâmicos
do pensamento social dentro da universidade carioca (e
brasileira) durante os anos de chumbo. Foi em larga medida
pelo que se desenvolveu no Museu Nacional de 1968 até
hoje — o PPGAS fez cinquenta anos ano passado —, que a
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antropologia passou a dar na vista, deixando de ser uma
disciplina relativamente inofensiva. Nunca mais saí do Mu-
seu desde então, embora desde 2 de setembro de 2018 o
Museu não esteja mais (fisicamente) lá.
Eis que agora estou de volta à PUC em um contexto po-
lítico que me faz pensar no passado. Prepara-se um ata-
que brutal à educação: ao ensino público em particular, à
universidade pública em especial, às carreiras de humani-
dades sobretudo, em uma escala talvez maior, sob certos
aspectos, do que nos tempos da ditadura. Talvez não esteja
longe o dia em que a PUC voltará a ser o abrigo que foi nos
anos 1970. Não sei se digo “espero que sim” ou “espero
que não”.
Foi por isso que aceitei dar essa aula inaugural aqui,
na universidade onde me graduei, embora tenha hesitado
quanto ao que deveria falar. Porque cada vez mais temos
a sensação de que falar não diz mais nada. Assistimos à
nossa volta — contra nós — a uma deterioração funcional
da linguagem, reduzida a palavras de ordem (a palavras de
caos), de ódio e de desprezo. As proposições em circulação
se medem por seu valor de mentira (só o falso mobiliza); o
ressentimento se tornou o afeto veicular dominante; a falta
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de respeito dá o tom geral do que emana dos círculos su-
premos do poder. Talvez esta seja a melhor definição do que
se passa: uma descomunal falta de respeito do governo
eleito para com aqueles que ele deveria governar, isto é,
guiar — não seus eleitores mais fanáticos, mas todo o povo
do país. Um governo que, por isso mesmo, não se respei-
ta. E que vai preparando o maior desrespeito aos direitos
da população brasileira de que jamais se teve notícia. Um
projeto verdadeiramente revolucionário: a desorganização
geral da sociedade civil pelo Estado.
Mas como evitar repetir o que vem sendo dito por tan-
ta gente mais qualificada do que eu sobre o que tem sido
cuspido pela máquina de ódio instalada no poder? Como
não falar o que todo mundo já sabe, já ouviu, já leu, sobre a
tempestade de abominações prometidas e realizadas que
se vai abatendo sobre todos nós? Como continuar falando
quando não há mais adjetivos suficientemente fortes para
qualificar a situação e seus protagonistas? Quando cada
manhã traz notícias mais mortificantes que as da manhã
anterior; quando o ritmo das absurdidades anunciadas é tal
que cada novo absurdo faz sombra ao precedente; quando
cada pronunciamento indecoroso rapidamente esquecido
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distrai de uma calculada maldade de longa duração; quan-
do cada vômito de ódio ideológico desvia a atenção das
armadilhas econômicas que visam mais favorecimento aos
já mais que favorecidos. White noise; ruído branco de gru-
nhidos grosseiros como música de fundo, música de eleva-
dor, até que nos entorpeçamos e insensibilizemos enquanto
nosso elevador vai descendo cada vez mais para o fundo
— do poço. Mas é preciso ficar de ouvido atento, não parar
de ouvir o que eles estão dizendo por baixo do que estão
gritando. Pois o conteúdo do que dizem é perfeitamente
adequado à forma. Como esta, ele é estúpido, violento e
cínico.
Evoquemos rapidamente o que todo mundo já sabe: que
o poder formal no Brasil foi tomado de assalto por um grupo
político corrupto, cujo núcleo está ligado a organizações
criminosas – as milícias – cuja origem deve ser buscada
nos porões mais profundos do regime militar. Comanda-
das por membros ou ex-membros das chamadas “forças
da ordem”, essas organizações, especialmente no Rio de
Janeiro, fazem a segurança armada de figuras poderosas do
capitalismo paralelo, extorquem sistematicamente as co-
munidades pobres e praticam impunemente o assassinato
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por encomenda. (Hoje o assassinato de Marielle Franco
completa exatamente um ano, e ainda “não sabemos”
quem mandou matá-la.) Esse grupo político no poder re-
cebe sua legitimação intelectual via internet, da parte de
charlatães dedicados à desmoralização do saber científico
e humanístico cultivado pela universidade, engajados em
uma “guerra cultural” contra toda forma de pensamento crí-
tico. Charlatães e vigaristas que são, além disso, agentes
do negacionismo climático pilotados pelo grande capital
transnacional, o qual financia a disseminação da ignorân-
cia ou indiferença quanto ao problema mais grave já enfren-
tado pela espécie humana em sua breve carreira na Terra, a
saber, as mudanças no regime termodinâmico do planeta
provocadas pela matriz civilizacional hegemônica (o tec-
nocapitalismo extrativista). Esse movimento ideológico,
habilmente difundido por meio das novas tecnologias de
colonização cognitiva, encontrou ampla ressonância entre
a considerável parcela do eleitorado simpática ao racismo,
à homofobia e à misoginia, inimiga furiosa de qualquer for-
ma de diferença que seja ao mesmo tempo um protesto
contra a desigualdade, detestadora de toda forma de diver-
sidade que não reitere e valide as versões contemporâneas
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da divisão originária e fundamental da sociedade brasileira,
aquela entre senhores e escravos.
O grupo político no poder está ainda, como se sabe,
em relação de mutualismo ecológico com correntes pseu-
dorreligiosas nas quais o fanatismo, o obscurantismo e a
venalidade mais desavergonhada se combinam em propor-
ções tóxicas; correntes que desviam o conforto espiritual
oferecido pelas religiões evangélicas a um importante con-
tingente das classes subalternas, invertendo o sentido da
mensagem cristã e a canalizando para a sustentação de
um movimento cuja “religião” é a intolerância, a violência
e o desprezo pelos pobres. E, o mais importante de tudo,
o grupo que foi colocado no poder está sendo usado e
será eventualmente descartado pelos grandes interesses
econômicos para levar a cabo o desmonte da Constituição
Federal de 1988 e a subordinação de todas as relações
sociais — e das vidas humanas a que elas dão sentido — à
lógica do chamado Mercado. (A direita neoliberal é mais
marxista que os marxistas, porque não apenas professa,
como implanta à força a célebre determinação econômica
em última instância. Ou melhor, em primeira e última ins-
tância. “A Vale é joia brasileira que não pode ser condenada
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por um acidente.”) Tudo isso, enfim, com o apoio estratégi-
co de certa corrente castrense em reascensão, a dos gene-
rais herdeiros da “linha dura” — a linha que praticava o ter-
rorismo de Estado — do período militar, agora com a farda
coberta por um manto diáfano de sensatez e moderação.
Uma tempestade perfeita, como se diz. Um instinto
infalível para escolher sempre o pior possível — o pior
nome, a pior política, as piores ideias — quando se trata
de garantir direitos coletivos, defesa das minorias, prote-
ção socioambiental. Todas as forças do caos falando em
nome da ordem. Ordenando em nome do caos. Uma indis-
tinção entrópica, anômica, entre ordem e caos, hipocrisia
ordinária e insanidade extraordinária, palavra e violência,
notícia enviesada e mentira deslavada. Governo da men-
tira. Governo de mentira. Ninguém governa. Nas palavras
de Vladimir Safatle: “O programa que levou Bolsonaro ao
poder nunca foi um programa de governo — não foi à toa
que nenhum debate ocorreu em campanha. Ele era um
programa de guerra.”
E a guerra foi declarada. Conforme o programa.

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Contudo, como convém a uma situação de guerra, quando
vemos nosso território invadido e pisoteado por forças inimi-
gas, mais que lamentar, cabe falar de resistência. Falar de
certos ícones e de certos símbolos de resistência à ideologia
da ignorância, à política da intolerância e à economia da in-
diferença que estruturam o projeto de poder em andamento,
com seu ataque em múltiplas frentes à natureza (ver o que
está fazendo o facinoroso MMA), à cultura (ver o que se pre-
para no lodaçal do MEC) e à sociedade (todos os ministérios,
com o da Economia à frente). Esses ícones e esses símbolos
levam a crer que nem tudo está perdido, e que, embora a
aparelhagem de devastação posta em funcionamento por
este governo venha a causar, como tudo indica, danos de
longa duração, alguns deles irreparáveis, como os danos am-
bientais, ele não pode tudo — não conseguirá arrasar tudo.
Sua ignorância não abole a memória, sua intolerância não
sufoca a alegria e sua indiferença não esmaga as diferenças.
O ícone da resistência que eu gostaria de destacar (ícone que
é também um poderoso índice, para evocarmos a classificação
dos signos de Peirce), como condensação de muitas outras re-
sistências, é um evento, uma macroforma em movimento — o
último Carnaval, e, dentro dele, claro, o desfile da Mangueira.
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O Carnaval deu ensejo a uma explosão de revolta popular
contra o presidente eleito e tudo o que ele representa — re-
volta que não deixou de ser uma reviravolta, considerando-se
que Bolsonaro foi escolhido por grande número de eleitores;
mas justamente, o Carnaval é uma reviravolta no cotidiano,
um ritual de inversão; só que nem sempre ele coloca as coisas
de volta no lugar quando termina. Ele atualiza potências do
desejo político das massas que apenas o contato real dos
corpos é capaz de despertar, potências que, uma vez libera-
das, dificilmente retornam à dormência sem deixar marcas
no cotidiano. Todos se lembram (nem preciso lembrar) como
dezenas de milhares de pessoas responderam à falta de res-
peito demonstrada por Bolsonaro em relação ao povo — e ao
tipo de expressão epitomizada pelo Carnaval, quando o povo
sobe ao poder, apeando simbolicamente o Governante — com
aquela exortação desrespeitosa que não cabe repetir aqui,
mas cuja substância carnavalesca, no sentido bakhtiniano do
conceito (o “baixo corporal” etc.), é absolutamente clássica,
ecoando aliás certas obsessões presentes no próprio círculo
presidencial. Quanto à magnífica apresentação da Manguei-
ra, ali tivemos uma celebração daquela memória “que o livro
apagou”, aquela que o poder quer que esqueçamos, e uma
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afirmação das múltiplas diferenças cuja repressão implacável
é o alfa e o ômega da história do Brasil. É altamente provável
que o samba e o desfile, com sua alegria insolente e suas
alegorias transparentes (alegorias nada alegóricas, digamos
assim) — com suas menções aos “negros, índios e pobres”,
“mulheres, tamoios e mulatos”, às revoltas populares, aos
bandeirantes genocidas, à ditadura, aos anos de chumbo e,
sobretudo, à Marielle (além, é claro, do mantra escatológico, e
sem esquecermos do clipe de Daniela Mercury e Caetano Ve-
loso) —; não é provável, é óbvio que foi tudo isso que suscitou
as escandalosas manifestações presidenciais ou filiopresi-
denciais de ódio ao Carnaval, disfarçadas de pundonor ho-
mofóbico. Em vários sentidos, quem se revelou um verdadeiro
personagem carnavalesco, um bufão, uma caricatura de si
mesmo, foi o mandatário supremo da nação, que se viu assim
colocado na posição do ridículo e arrogante Penteu, rei de
Tebas, vítima canibal d’As Bacantes de Eurípedes. Penteu, pu-
nido por Dionísio pelo pecado de impiedade, ao negar a força
irresistível do deus do Carnaval; Dionísio, deus andrógino e
estrangeiro (imigrante), senhor das inversões de perspectiva.
A alegria é a prova dos nove, dizia Oswald de Andrade. Este
governo não passou na prova dos nove do Carnaval.
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≡≡≡

O símbolo da resistência sobre o qual gostaria de falar um


pouco mais longamente é o objeto de meu trabalho como
etnólogo. Refiro-me aos povos indígenas no Brasil, símbolo
da resistência imanente contra o projeto de extermínio das
diferenças que o presente governo, por sua vez, simboliza, ao
se mostrar como a exacerbação brutal de uma atitude pluris-
secular das elites governantes do país. E falo em resistência
imanente porque os povos indígenas não podem não resistir
sob pena de não existirem como tais. Seu existir é imanen-
temente um resistir, o que condenso no neologismo rexistir.
O modo de manifestação dessa resistência imanente é
uma condição estrutural que chamarei de autonomia meta-
física, ou, adaptando e generalizando um termo oficial, de
isolamento: a alteridade irredutível da posição de “indígena”,
seu isolamento em relação ao atrator identitário representa-
do pela posição do “Branco”, o lugar vazio da Maioria. Digo
“vazio” porque todos sabemos, naturalmente, que no Brasil
ninguém é branco — exceto quem é.
Os índios no Brasil são uma minoria étnica, social, cul-
tural e política. Essa situação ou condição minoritária não
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tem um sentido estatístico — ainda que seja indissociável de
sua inserção em um Estado. Embora a população indígena
seja censitariamente pequena dentro do conjunto de “cida-
dãos” do Estado nacional, muitas outras minorias nacionais
— raciais, de gênero, de orientação sexual e outras — têm
populações expressivas, em muitos casos numericamente
majoritárias.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mil Platôs, oferecem
uma reflexão importante sobre as noções de “minoria” e
“maioria” (ou de modos “menor” e “maior” de declinar um
conteúdo expressivo qualquer). Elas dependem da oposição
entre uma constante e uma variável e sua transcendência
pela noção propriamente minoritária de variação. Minoria e
maioria não se opõem de uma maneira apenas quantitativa.
Maioria implica uma constante, algo como um metro pa-
drão que lhe serve de instrumento avaliador. “Suponhamos”
(dizem D e G; mas a suposição é uma constatação) que a
constante ou o padrão ocidental seja algo como “humano,
branco, macho, adulto, urbanita, heterossexual, falante de
uma língua europeia ‘de prestígio’” — podemos acrescentar,
no caso brasileiro: católico nominal, de classe média ou alta,
morador do Sul ou do Sudeste, de formação superior, com
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uma determinada pauta de consumo e outras determinações
facilmente enumeráveis. Como observam ironicamente os
autores, esse “humano, branco, macho etc.” é efetivamente
a Maioria, mas ele é menos numeroso que os mosquitos, as
mulheres, os negros, os camponeses, os homossexuais e
assim por diante. Ele aparece ao mesmo tempo como cons-
tante e como uma variável de onde se extrai a constante. A
Maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o
inverso; ela supõe o metro padrão, e não o inverso. Mas por
outro lado, a Maioria, na medida em que é analiticamente
compreendida pelo metro padrão, nunca é alguém, ela é
sempre Ninguém, “ao passo que a minoria é o devir [a varia-
ção, diferente de uma variável] de todo mundo”, sua trajetó-
ria potencial, na medida em que todo mundo desvia de um
modo ou outro do modelo padrão. Por isso os autores distin-
guem entre o majoritário como sistema homogêneo e cons-
tante, as minorias como subsistemas variáveis (incluídas e
dominadas pelo sistema majoritário) e o minoritário como
devir ou trajetória potencial, como variação contínua, figura
universal da consciência minoritária. “É a variação contínua
que constitui o devir minoritário de todo mundo, por oposi-
ção ao Fato majoritário de Ninguém.” E como sabemos, nós,
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brasileiros, somos governados por Ninguém — mesmo os
governantes são governados pelo metro padrão da Maioria.
Nesse sentido conceitual, as minorias étnicas indígenas
não são simplesmente subconjuntos ou subsistemas so-
cioculturais “incluídos” na Maioria, cuja figura política por
excelência é o Estado-nação soberano, mas coletividades
em processo incessante de minoração, de variação contí-
nua, processo improcessável pela máquina administrativa
da Maioria (“quem é índio, afinal?”; “mas esses caras não
são índios”; “agora todo mundo quer ser índio na Amazônia”
etc.). Por isso os movimentos de “etnogênese”, de reafirma-
ção ou ressurgência étnica que vêm marcando a história
contemporânea do país se mostram tão ameaçadores para
os poderes constituídos e os interesses que eles represen-
tam; por isso também os movimentos de resistência indígena
contra as forças etnocidas são afirmações da recusa em se
deixar capturar pelos mecanismos de representação, dele-
gação, “consenso informado”, indenização, planos emergen-
ciais, programas de mitigação de impacto, conversão religio-
sa, inserção no mercado de trabalho e outras tantas formas
de sabotagem da autonomia como horizonte móvel da ação
política indígena.
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≡≡≡

O que permite aos povos indígenas brasileiros resistirem ao


etnocídio e o que nos permite ter alguma esperança de que
eles resistirão às políticas catastróficas anunciadas por este
governo é, entre outros fatores, a persistência de uma figura
fundamental dos mundos indígenas: os “índios isolados”,
habitantes da dimensão espectral da metafísica sociológica
nativa.
Viajemos para longe do Brasil por um instante. Talvez
alguns de vocês se recordem que, alguns meses atrás, os
Sentineleses, habitantes de uma ilha do arquipélago de An-
daman e Nicobar, mataram um missionário norte-americano
disfarçado de turista que tentava forçar contato com eles.
Esse ato de autodefesa trouxe para as manchetes mundiais
a atualidade de uma questão que diz respeito à ideia mes-
ma de “atualidade”: qual o futuro dos povos ditos primitivos
— em outras palavras, supostamente inatuais — que vivem
isolados em lugares de difícil acesso, rejeitando enquanto
podem qualquer comunicação com outros povos?
A Amazônia é a região do planeta com o maior número de
comunidades nativas classificadas como isoladas. No Brasil
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de hoje assiste-se a uma proliferação crescente de relatos
e imagens que dão notícia de povos indígenas em situação
semelhante a dos Sentineleses. A Funai conta 114 registros,
28 deles já confirmados. Praticamente todos esses povos se
encontram no que se chama oficialmente de “isolamento vo-
luntário”: longe de ignorarem a existência de outras socieda-
des, eles recusam qualquer interação substancial com elas,
especialmente com os “Brancos”, palavra usada por índios
e brancos, no Brasil, para designar os representantes, dire-
tos ou indiretos, desse Estado-nação que exerce soberania
sobre os territórios indígenas.1
O isolamento dos Sentineleses em sua ilha2 pode ser
visto como um modelo reduzido de um outro conjunto de
ilhas, bem longe do Oceano Índico; um arquipélago antro-
pológico, formado por ilhas humanas. Imaginem assim a

1. “Branco”, categoria etnopolítica muito mais que racial ou pigmentar (ainda


que sua motivação histórica seja óbvia), traduz as muitas palavras das mais
de 250 línguas ameríndias faladas em território brasileiro que se referem a to-
das aquelas pessoas e instituições que não são indígenas. Essas palavras têm
vários significados descritivos, mas um dos mais comuns é “inimigo”. Neste
caso, quando elas são empregadas sem determinativos, designam o inimigo
por excelência, o Branco (por exemplo, napë em yanomami, kuben em kayapó
e awin em araweté).
2. Recordemos que o verbo “isolar” e seus derivados vêm do francês isoler, que
significa “tomar a forma de uma ilha”, do latim insula.
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América pré-colombiana como um imenso continente mul-
tiétnico que foi subitamente invadido pelo oceano europeu.
A expansão moderna da Europa seria o análogo, em termos
de história das civilizações, da subida do nível dos oceanos
do planeta que nos ameaça hoje.3 Após cinco séculos de
submersão crescente do antigo continente antropológico,
apenas algumas ilhas de humanidade aborígene perma-
neceram acima da superfície. Esses povos sobreviventes
passaram a formar uma verdadeira polinésia, no sentido
etimológico do termo: uma poeira de ilhas étnicas disper-
sas, separadas umas das outras por enormes extensões de
um oceano bastante homogêneo em sua composição polí-
tica (Estado nacional), econômica (capitalismo) e cultural
(cristianismo). Todas essas ilhas sofreram violentos proces-
sos de erosão ao longo dos séculos, perdendo muitas das
condições propícias a uma vida humana plena.
E eis que todas as ilhas continuam a diminuir, pois o nível
do mar está subindo cada vez mais depressa... Na Amazônia,
onde o oceano “branco” ainda permanecia comparativamente
pouco profundo, assistimos hoje a um tsunami devastador.
3. Essa comparação é um pouco mais que meramente pitoresca, visto que as
relações entre a expansão europeia a partir do século XVI, o desenvolvimento
do capitalismo e o aquecimento global do Antropoceno são bem conhecidas.
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A imagem do arquipélago sugere que todos os povos
indígenas da América deveriam ser considerados “isola-
dos”. Isolados uns dos outros, bem entendido; mas tam-
bém isolados ou separados de si mesmos, na medida em
que a imensa maioria deles perdeu parcial ou totalmente
sua autonomia política e teve os fundamentos morais de
sua economia severamente abalados. Esses povos se en-
contram, portanto, em uma situação de “isolamento invo-
luntário”, mesmo lá, o que está longe de ser excepcional,
onde seu contato inicial com os Brancos foi mais ou menos
voluntário. Pois foi a ocupação estrangeira e o despovoa-
mento da América indígena que criou o arquipélago: pela
abertura de vastos desertos demográficos (epidemias,
massacres, escravização), que esgarçaram até um quase
completo rompimento as redes interétnicas preexistentes,
isolando seus componentes; e pelo sequestro dos múl-
tiplos nós dessas redes e seu confinamento em aldeias
missionárias, mais tarde em territórios “protegidos”, isto
é, cercados e acossados por Brancos de todos os lados.
A invasão europeia interrompeu assim uma dinâmica indí-
gena altamente relativista — caracterizada pela permeabi-
lidade e a fluidez das identidades coletivas —, congelando
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estados historicamente contingentes do fluxo sociopolítico
continental mediante a fixação territorial e a essencializa-
ção etnonímica dos coletivos sobreviventes, transformados
doravante — do ponto de vista dos Estados invasores — em
entidades de uma ontologia administrativa rigidamente
“atomista”.
Os povos em isolamento voluntário são aqueles que es-
colheram, tanto quanto a história o permitiu, o isolamento
objetivo de preferência ao isolamento subjetivo, que é o
afastamento em relação a si mesmo criado pelo contato e
a consequente necessidade de compor politicamente com
uma outra forma de civilização, organizada segundo princí-
pios incompatíveis com os que regem as civilizações nativas.
Reciprocamente, como já mencionamos, os grupos que
entraram em contato com o mundo dos brancos muitas
vezes o fizeram por iniciativa própria, movidos seja pelo
desejo de obtenção de ferramentas e outras mercadorias,
seja pela necessidade de se proteger de ataques inimigos,
seja, mais geralmente, por um característico impulso “an-
tropofágico” de captura simbólica da alteridade — impulso
que visa uma transformação de si mesmo por via dessa al-
teridade (pois ela é incorporada como tal). Gerir e controlar
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tal transformação, quando a alteridade que se pretendia
capturar se revela dotada de formidáveis poderes de toda
uma outra natureza — pois que poderes de abolição da al-
teridade, intrínsecos à metafísica política e à ação histórica
dos Brancos —, esse é o problema em que se joga o futuro
dos povos nativos do continente.
Com o assalto do capitalismo predatório às áreas mais
remotas da Amazônia, os registros de “novos” povos se-
guem aumentando. Essa crescente aparição de grupos
isolados — com sua sempre traumática ruptura do isola-
mento, chamada eufemisticamente de “contato” — deve-se
à intensa pressão que governos e empresas vêm exercendo
sobre seus territórios, sob a forma de megaobras de infra-
estrutura (que estimulam a grilagem de terras, a pecuária
extensiva e a monocultura industrial, a extração ilegal de
madeira) e de grandes empreendimentos extrativistas (pe-
tróleo e mineração). A presente década marca o que pa-
rece ser o fechamento final do cerco aos povos indígenas
da maior floresta tropical do mundo, agora transformada
na “última fronteira” da acumulação primitiva do capital
e em hot spot da devastação ambiental. Tanto mais que,
após um relativamente longo período em que as políticas
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indigenistas de diversos países amazônicos orientaram-se
pelo respeito aos grupos em isolamento voluntário, as ame-
aças a todos os povos indígenas (isolados ou não) criadas
pelo “desenvolvimento” estão agora sendo consolidadas
em iniciativas estatais abertamente etnocidas. Esse é
o caso especialmente do Brasil, onde o novo governo de
ultradireita não perdeu tempo em iniciar o desmonte dos
dispositivos legislativos e administrativos voltados para a
proteção do ambiente e a defesa das populações tradicio-
nais, anulando, entre outras violações dos direitos dessas
populações, a política de não contato dos povos isolados
(acompanhamento à distância, demarcação de territórios
protegidos), em vigor desde 1987. Esse novo governo está
inteiramente a serviço dos interesses do grande capital
financeiro, extrativista e agroindustrial, de um lado, e do
forte lobby evangélico fundamentalista, de outro. O grande
capital cobiça as terras indígenas, visando a expansão do
extrativismo minerário e do agronegócio, em um contexto
de privatização crescente das terras públicas. O lobby evan-
gélico cobiça as almas indígenas, visando a destruição da
relação de imanência entre humanos e não humanos, povo
e território, de modo a universalizar a figura heteronômica
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de um cidadão-consumidor “brasileiro”, dócil ao Estado e
servil ao capital. Esse colonialismo espiritual é acessório
ao processo de expropriação territorial, mas é sobretudo
uma arma estratégica da guerra movida pelo Estado a toda
forma livre de vida.
Os militares, por fim — o terceiro pilar desse triste gover-
no —, persistem em ver nos índios, quando os veem (pois
gostam de imaginar que a Amazônia é um vazio demográ-
fico), o ponto mais vulnerável na couraça da soberania
nacional. Veem a gente indígena como insuficientemente
disciplinada pelos valores pátrios; veem as terras indíge-
nas como áreas com perigoso potencial de internaciona-
lização, por insuficientemente domadas (estriadas) pela
pata do boi, pelo trator e a colheitadeira e pelo buraco da
mineradora. É preciso que essas terras sejam devastadas
para que se tornem governáveis. No Brasil — e não só aqui
—, governar é criar desertos. O correlato territorial de todo
Estado é sempre uma superfície abstrata, um deserto dis-
ponível para ser estriado pelo poder.
Mas o propósito desta fala não é o de denunciar uma
situação bem conhecida, e sim o de tentar responder a
uma pergunta: os povos isolados da Amazônia estariam
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destinados a desaparecer como tais, transformando-se
em outras tantas ilhas indígenas em “isolamento involun-
tário”, ou pior, a submergirem de vez no oceano tóxico do
progresso, dissolvendo-se na massa dos Brancos de úl-
tima categoria, os habitantes das periferias das grandes
cidades? Ou permanecerão eles sob a forma de povos por
assim dizer virtuais, como uma reserva ou remanência es-
pectral sempre à espreita no fundo do espírito dos povos
indígenas e de seus descendentes dispersos na população
nacional, como uma sorte de “memória involuntária” que
recorda a esses povos que eles continuam indígenas — que
eles nunca deixaram de sê-lo, e que por isso sempre podem
voltar a sê-lo? E que por isso mesmo eles são o símbolo má-
ximo da resistência de todas as minorias contra o poder?
O chamado povo brasileiro não é senão a abstração homo-
geneizante realizada pelo poder sobre todos esses povos
minoritários. E os índios são a minoria das minorias — são o
que há de menor em cada uma delas, seu devir minoritário.
Na frase de Deleuze e Guattari: “O devir minoritário como
figura universal da consciência se chama autonomia.” O
que é o mesmo que dizer: no Brasil todo mundo é índio,
exceto quem não é.
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≡≡≡

As trajetórias que ligam as condições de “isolamento” e


“contato” são múltiplas e reversíveis. Há grupos que, depois
de anos de interação com missionários e patrões regionais,
buscam refúgio em áreas livres de Brancos. Alguns “desa-
parecem” por séculos, para reaparecerem subitamente.
Esse foi o caso muito noticiado dos Mashco-Piro, recém-
-surgidos na fronteira Brasil-Peru. Os registros da existência
desse grupo e de suas relações com os Brancos e outros po-
vos indígenas remontam a 1686. Os Mashco são parentes
próximos dos Yine, isto é, dos Piro (Peru) e Manxineru (Bra-
sil), dois povos aruaque em contato antigo e permanente.
Os Manxineru os chamam de “parentes desconfiados”. Os
Mashco parecem ter abandonado a horticultura em algum
momento do século passado, passando a nomadizar sobre
territórios de ocupação indígena antiga. A estratégia do no-
madismo e conversão a uma economia de caça e coleta é
relativamente comum nos casos de isolamento voluntário,
e é frequentemente interpretada pelos grupos congêneres
com longo contato como se os isolados fossem a imagem
“selvagem” ou “primitiva” deles mesmos. Em sua enganosa
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trivialidade — como se ela fosse mera introjeção da antro-
pologia evolucionista dos Brancos —, essa interpretação me
parece decisiva para entendermos a persistência estrutural
da figura do “grupo isolado” na antropologia contracolonial
indígena. A imagem dos índios voluntariamente isolados é
de fato a imagem “inconsciente” — e ambivalente — que os
povos indígenas têm de si mesmos enquanto indígenas. En-
quanto indígenas, quer dizer: enquanto os Brancos os consi-
deram como inimigos (por isso os Brancos são chamados de
inimigos). Enquanto os Brancos tratam a condição indígena
como condição inimiga.
Embora a dinâmica de devastação da Amazônia nos
obrigue a concluir que não está longe o momento em que
não restará objetivamente nenhum povo isolado, há um
sentido em que se pode dizer que esses povos nunca aca-
barão de acabar. Eles estarão sempre a rondar as zonas
ermas dos territórios existenciais dos povos em interação
formal com as instituições brancas.
Tudo se passa como se cada povo, no momento de
sua “pacificação” pelos Brancos, gerasse um duplo de si
mesmo que se furta ao contato. Sabemos como são recor-
rentes, nas histórias de “atração e pacificação” de grupos
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indígenas, as referências à existência de “índios bravos”
nas proximidades. Esses duplos recalcitrantes podem vir
a ser contactados mais tarde, mas sua presença enquanto
isolados, isto é, como presentes sob a forma de uma au-
sência — uma existência sugerida em negativo por vestígios,
pegadas, ruídos, sombras fugidias —, só parece desapare-
cer sob condição de reaparecer mais adiante. A “revelação”
de um povo isolado induz a presença oculta de outro povo
isolado. Para cada povo que entra em contato, surge um
povo isolado que é como uma retroprojeção do primeiro,
ligeiramente defasada no tempo, defasagem que vai au-
mentando à medida em que o grupo contactado adota no-
vos hábitos e técnicas e que os isolados eventualmente se
esvanecem enquanto realidade empírica, “involuindo” para
uma existência fantasmática. Deleuze e Guattari diziam que
“o extermínio de uma minoria faz surgir mais uma outra mi-
noria dessa minoria”; podemos dizer, analogamente, que o
contato de um povo isolado faz nascer mais um povo isola-
do desse povo não mais isolado.
Frequentemente o grupo isolado é uma parte recalcitran-
te ou extraviada do grupo que cedeu às tentativas de con-
tato ou que o buscou ativamente. Dadas as características
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morfológicas das socialidades amazônicas — e suas traje-
tórias históricas dentro de um continente sob ocupação —,
há sempre uma parte à parte de todo coletivo. Tanto quan-
to o adjetivo “isolado”, o substantivo “povo”, na Amazônia
indígena, também deve ser tomado em sentido relativo e
relacional — pelo menos até que o nomos estatal chegue
para fixar identidades e cercar territórios. Uma comunida-
de indígena cujo contato foi feito em uma dada operação
indigenista de “atração” raramente coincide com toda a
população da rede multicomunitária a que pertence, ex-
ceto se esta já sofreu perdas demográficas dramáticas. A
dispersão espacial, instabilidade temporal e fracionalida-
de política dos coletivos indígenas faz com que os grupos
locais tenham uma labilidade capaz de inibir movimentos
unânimes e solidariedades de tipo tribal — pelo menos en-
quanto o nomos estatal não contrassuscitar a emergência
de movimentos federativos indígenas, como vem ocorrendo
em escala crescente nas últimas décadas.
Mesmo quando todo um povo foi “pacificado” e seu
território completamente ilhado pelo oceano branco, res-
tando pouca ou nenhuma possibilidade de que existam
grupos sem contato nas redondezas, os povos isolados
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permanecem objeto de uma espécie de presunção de
existência, de estatuto epistemológico variável, por parte
dos povos contactados. Índices materiais de uma presença
não familiar nos arredores da aldeia; ilusões e alucinações
perceptivas; experiências oníricas; testemunhos xamâni-
cos; anedotas e lendas do folclore aldeão; expedições de
exploração das partes mais remotas da área indígena...
toda sorte de materiais vêm sustentar, cumulativa ou al-
ternativamente, a persistência discursiva dessa figura do
povo isolado, hostil (“índios bravos”) ou tímido (“parentes
desconfiados”), cuja nitidez de contornos vai desde a ex-
periência, cada vez mais rara, de interação face a face com
um grupo humano desconhecido até a inclusão dessa al-
teridade estrangeira nos anais da xenologia fantástica ou
da demonologia canibal.
Parafraseando um texto famoso de Manuela Carneiro
da Cunha, é o caso assim de dizer que os povos isolados
são um personagem “residual mas irredutível” das an-
tropologias indígenas. Ele tende a ser residual, à medida
que aumentam as pressões para a quebra do isolamento
voluntário desses povos; mas ele é irredutível, porque ele
é um personagem necessário do inconsciente político
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indígena. Duplo, às vezes “real”, às vezes “imaginário”,
ele é sempre “simbólico”, pois é portador da diferença
anárquica indígena face à ontoteologia monárquica dos
Brancos e seu império do Um. E parafraseando agora
Sahlins, poderíamos dizer que o povo isolado “é sempre
simbólico, mesmo quando ele é real”. A rigor, porém, ele
escapa à tricotomia do real, do simbólico e do imaginário:
ele é uma agência espectral, extraontológica, anterior e
exterior à alternativa entre o ser e o não ser, a existên-
cia e a inexistência.4 Uma espectralidade antes de tudo
política: antes que passado do presente dos povos em
contato, ele é presença paradoxal do passado, memória
ativa da condição politica indígena; um passado que não
acaba de passar. O povo isolado é como o autoconceito
dos povos contatados, isto é, de todos aqueles povos que
experimentam intensamente, e sempre dolorosamente,
sua diferença face ao mundo dos brancos.

≡≡≡

4. Tomo emprestado esse conceito da metafisica espectrológica de Fabián


Ludueña Romandini, embora não o utilize de modo estritamente fiel ao original.
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Em um giro inesperado da história, esse passado que não
acaba de passar pode se tornar um modo de conjugar o
futuro, em uma manifestação original daquela “indige-
neização da modernidade” celebremente comentada por
Marshall Sahlins. Pois mesmo minorias literalmente exter-
minadas, povos historicamente extintos, podem dar à luz
novas minorias. O Brasil vem assistindo à reemergência de
diversas novas “ilhas” indígenas ali onde o oceano branco
parecia há muito já ter engolfado tudo. Em contraponto aos
povos isolados que aparecem nas áreas remotas ou inters-
ticiais da Amazônia e do Brasil Central — povos que, muitas
vezes, ainda não sabem que são “índios”, isto é, casos par-
ticulares da entidade “índios em geral” própria da ontologia
jurídico-estatal dos Brancos —, vemos surgir uma variedade
de povos virtuais que se atualizam, no Nordeste, no Su-
deste e na várzea amazônica: as diversas comunidades de
pequenos agricultores, pescadores, sertanejos e caboclos
que se redescobrem indígenas e reivindicam os direitos
constitucionais que protegem justamente os “índios em
geral”, de modo a se “isolar” etnonímica e juridicamente
dentro dos ambientes de precariedade territorial e desas-
sistência oficial que são o horizonte de tantas comunidades
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rurais “brancas” no Brasil. Esses novos povos estão, na ver-
dade, entre os mais antigos de todos; são a reemergência
minoritária das minorias indígenas exterminadas ao longo
de cinco séculos de colonização da mata atlântica, da caa-
tinga e da calha do Amazonas. Para se revelarem indígenas,
a si mesmos e aos Brancos, eles vêm lançando mão dos
signos cosméticos e cosmológicos dos povos indígenas
“tradicionais” (ornamentos, pinturas, rituais, línguas) — isto
é, daqueles que estão, comparativamente, em situação de
“contato inicial”. Esses signos se acham frequentemente
hibridizados com uma semiótica de origem africana, algo
que está ligado à emergência de uma nova subjetividade
política, o ator coletivo “afro-indígena”, de importância
crescente na organização da luta de povos no Brasil, ao
lado dos indígenas e dos quilombolas, esses outros dois
polos orientados pela insistência espectral do “povo em
isolamento voluntário” — ou seja, em estado de rexistência.
A esse fenômeno de surgimento de novos atores et-
nopolíticos devemos acrescentar aquele do rompimento
progressivo do “isolamento involuntário” dos povos indí-
genas tradicionais. A emergência de movimentos de fede-
ração dos povos, em diversos níveis de inclusão, gerando
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organizações com grande capacidade de protagonismo,
marca uma nova etapa na luta de povos — outro nome da
luta de classes — na América Latina.5 Igualmente, vemos
aparecerem, aqui e ali, certos movimentos de “reisola-
mento voluntário” de outra natureza que a fuga para áreas
remotas de povos que já haviam tido contato com os Bran-
cos. Estou me referindo a iniciativas como a dos Ka’apor
do nordeste da Amazônia, que recentemente expulsaram
todos os Brancos de sua terra, de madeireiros clandestinos
a médicos e professores, rompendo com o Estado brasileiro
e decidindo gerir autonomamente sua vida: “Autonomia é
ficar só. É não depender de ninguém, é se virar” (Itahu, um
dos líderes Ka’apor). O outro exemplo, mais conhecido, é o
dos Wampis do Peru, que, em reação à pressão de grandes
interesses minerários sobre suas terras, proclamaram um
governo indígena autônomo sobre uma área de 1.300.000
hectares, congregando cem comunidades locais. Essa
iniciativa ousada — e criativa, porque não reivindica in-
dependência do Estado peruano, mas autonomia — está

5. Se “a filosofia é a luta de classes na teoria”, como dizia Althusser, então cabe


dizer que a antropologia é a luta de povos (colonizados x colonizadores) na
teoria. Mas se nos debruçamos sobre as origens étnicas das classes sociais na
Europa, veremos que as duas lutas são, lá também, frequentemente uma só.
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expressa no Estatuto do Governo Territorial Autônomo da
Nação Wampis, verdadeira carta constitucional que invoca
ao mesmo tempo a autoridade legitimadora de Etsa, Nayak
e Nunkui, personagens centrais na mitologia dos povos do
conjunto Jivaro, e a autoridade não menos mítica da Con-
venção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da
Declaração da ONU Sobre os Direitos dos Povos Indígenas
e da Constituição Peruana.
Podemos concluir que, em todas essas variadas situ-
ações de isolamento, de deisolamento, de reisolamento,
de aparição e desaparição, de memória e experiência, a
figura evanescente, fugidia e proteiforme do “povo isola-
do” é imanente às cosmopolíticas indígenas. Ela é, enfim,
o modo de existência de jure daquela forma de vida que
Pierre Clastres chamou de “sociedade contra o Estado”. A
única forma, enfim, capaz de resistir ao “Estado contra a
sociedade” que é a forma de existência da danação — des-
culpem, da nação — brasileira. Os povos ameríndios, então,
não como modelo, mas como exemplo, para os demais po-
vos indígenas desta terra, de uma forma de vida coletiva,
uma civilização, que poderia ter sido e que não foi. Brasil,
país do futuro do pretérito. Mas país que os índios desta
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terra continuam a conjugar no futuro do subjuntivo, senão
mesmo no futuro profético, o futuro que terá sempre sido
presente: “virá, que eu vi”.

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos


Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

(Caetano Veloso)

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Eduardo Viveiros de Castro nasceu em 1951 no
Rio de Janeiro. É etnólogo americanista e professor
titular de antropologia social no Museu Nacional da
UFRJ. Foi professor visitante nas universidades de
Cambridge, Manchester, Chicago e USP. Publicou
Araweté: os deuses canibais (1986), A inconstância
da alma selvagem (2002) e Metafísicas canibais
(2015), além de dezenas de artigos nas mais renoma-
das revistas acadêmicas. Recebeu a Ordem Nacional
do Mérito Científico em 2008 e o título de Doutor ho-
noris causa da Universidade de Nanterre em 2014.
Apesar das honrarias e demais balangandans, consi-
dera-se política e ontologicamente anarquista, e diz
não temer o paradoxo.
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maio_2019

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