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BRASIL,
PAÍS DO FUTURO
DO PRETÉRITO
O livro como imagem do mundo é de toda maneira
uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer
Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir.
Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo
sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
mais simples, com força de sobriedade, no nível
das dimensões de que se dispõe, sempre n-1
(é somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.
BRASIL,
PAÍS DO FUTURO
DO PRETÉRITO
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Contudo, como convém a uma situação de guerra, quando
vemos nosso território invadido e pisoteado por forças inimi-
gas, mais que lamentar, cabe falar de resistência. Falar de
certos ícones e de certos símbolos de resistência à ideologia
da ignorância, à política da intolerância e à economia da in-
diferença que estruturam o projeto de poder em andamento,
com seu ataque em múltiplas frentes à natureza (ver o que
está fazendo o facinoroso MMA), à cultura (ver o que se pre-
para no lodaçal do MEC) e à sociedade (todos os ministérios,
com o da Economia à frente). Esses ícones e esses símbolos
levam a crer que nem tudo está perdido, e que, embora a
aparelhagem de devastação posta em funcionamento por
este governo venha a causar, como tudo indica, danos de
longa duração, alguns deles irreparáveis, como os danos am-
bientais, ele não pode tudo — não conseguirá arrasar tudo.
Sua ignorância não abole a memória, sua intolerância não
sufoca a alegria e sua indiferença não esmaga as diferenças.
O ícone da resistência que eu gostaria de destacar (ícone que
é também um poderoso índice, para evocarmos a classificação
dos signos de Peirce), como condensação de muitas outras re-
sistências, é um evento, uma macroforma em movimento — o
último Carnaval, e, dentro dele, claro, o desfile da Mangueira.
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O Carnaval deu ensejo a uma explosão de revolta popular
contra o presidente eleito e tudo o que ele representa — re-
volta que não deixou de ser uma reviravolta, considerando-se
que Bolsonaro foi escolhido por grande número de eleitores;
mas justamente, o Carnaval é uma reviravolta no cotidiano,
um ritual de inversão; só que nem sempre ele coloca as coisas
de volta no lugar quando termina. Ele atualiza potências do
desejo político das massas que apenas o contato real dos
corpos é capaz de despertar, potências que, uma vez libera-
das, dificilmente retornam à dormência sem deixar marcas
no cotidiano. Todos se lembram (nem preciso lembrar) como
dezenas de milhares de pessoas responderam à falta de res-
peito demonstrada por Bolsonaro em relação ao povo — e ao
tipo de expressão epitomizada pelo Carnaval, quando o povo
sobe ao poder, apeando simbolicamente o Governante — com
aquela exortação desrespeitosa que não cabe repetir aqui,
mas cuja substância carnavalesca, no sentido bakhtiniano do
conceito (o “baixo corporal” etc.), é absolutamente clássica,
ecoando aliás certas obsessões presentes no próprio círculo
presidencial. Quanto à magnífica apresentação da Manguei-
ra, ali tivemos uma celebração daquela memória “que o livro
apagou”, aquela que o poder quer que esqueçamos, e uma
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afirmação das múltiplas diferenças cuja repressão implacável
é o alfa e o ômega da história do Brasil. É altamente provável
que o samba e o desfile, com sua alegria insolente e suas
alegorias transparentes (alegorias nada alegóricas, digamos
assim) — com suas menções aos “negros, índios e pobres”,
“mulheres, tamoios e mulatos”, às revoltas populares, aos
bandeirantes genocidas, à ditadura, aos anos de chumbo e,
sobretudo, à Marielle (além, é claro, do mantra escatológico, e
sem esquecermos do clipe de Daniela Mercury e Caetano Ve-
loso) —; não é provável, é óbvio que foi tudo isso que suscitou
as escandalosas manifestações presidenciais ou filiopresi-
denciais de ódio ao Carnaval, disfarçadas de pundonor ho-
mofóbico. Em vários sentidos, quem se revelou um verdadeiro
personagem carnavalesco, um bufão, uma caricatura de si
mesmo, foi o mandatário supremo da nação, que se viu assim
colocado na posição do ridículo e arrogante Penteu, rei de
Tebas, vítima canibal d’As Bacantes de Eurípedes. Penteu, pu-
nido por Dionísio pelo pecado de impiedade, ao negar a força
irresistível do deus do Carnaval; Dionísio, deus andrógino e
estrangeiro (imigrante), senhor das inversões de perspectiva.
A alegria é a prova dos nove, dizia Oswald de Andrade. Este
governo não passou na prova dos nove do Carnaval.
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(Caetano Veloso)
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Eduardo Viveiros de Castro nasceu em 1951 no
Rio de Janeiro. É etnólogo americanista e professor
titular de antropologia social no Museu Nacional da
UFRJ. Foi professor visitante nas universidades de
Cambridge, Manchester, Chicago e USP. Publicou
Araweté: os deuses canibais (1986), A inconstância
da alma selvagem (2002) e Metafísicas canibais
(2015), além de dezenas de artigos nas mais renoma-
das revistas acadêmicas. Recebeu a Ordem Nacional
do Mérito Científico em 2008 e o título de Doutor ho-
noris causa da Universidade de Nanterre em 2014.
Apesar das honrarias e demais balangandans, consi-
dera-se política e ontologicamente anarquista, e diz
não temer o paradoxo.
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maio_2019