Emigrantes
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país ingrato para o seu povo, avarento na paga tros, na sorte, no destino. A vitalidade e coragem
aos que nele vivem e trabalham. necessárias ao passo que ele deu perdem-se nes-
O desejo de partir, anterior e necessário a de- ta alternância onde o lamentar se vai impondo a
cisão de partir, pode corresponder, a um nível medida que a sua história prossegue. Manuel da
mais profundo, a fantasias acalentadas nos pró- Bouça é um homem submergido pela impotência
prios mitos e que confrontam a pessoa com o seu face a perda.
desejo de conhecer, de procurar coisas novas, de A seguir a decisão tomada há a partilha com
enfrentar o seu medo daquilo que não conhece; os outros. Manuel da Bouça passa a ser um ser
ou pode ser o resultado de uma vivência perse- diferente, espécie de herói de um sonho comum.
cutória em que o objecto de desejo não é o novo
«Formara-se, rapidamente, em volta de Ma-
mas a fuga do conhecido - não há um projecto
de migração e frequentemente associa-se-lhe a nuel da Bouça, um halo de respeito e curio-
impossibilidade de regresso. sidade. Desde que decidira partic era outro
A decisão de partir obriga a um difícil proces- homem para o lugarejo. Enxergavam-no com
so de elaboração até que de facto essa decisão outros olhos e surpreendiam-lhe uma esta-
seja tomada e supõe que as pessoas se sintam ca- tura diferente daquela que até ali lhe conhe-
pazes de tolerar a mudança a que uma migração ciam. E ele próprio adoptara uma máscara
obriga e que têm razões externas e internas váli- de orgulho: os lábios mais franzidos, o bigo-
das. Por exemplo, face A angústia que a mudança de mais retorcido e mais sóbrios os gestos. D
desencadeia - e que pode ser demasiado intensa (pp. 3 1-32)
para ser gerida - o indivíduo pode decidir não A outra face do ganho grandioso é a dor da
partir. Esta angústia pode ser devida aos próprios pe2da:
conflitos internos do sujeito ou estar em estreita
relação com o seu sentimento de identidade acer- «- E o pai quando é que pensa partir? -
ca do mundo externo (e, concomitantemente, perguntou Deolinda.
com o próprio sentimento de identidade do sem. - Logo que estiverem prontos os papéis.
O desejo vai tomando forma, cada vez mais Para o mês que vem...
próxima, na antecipação de momentos imagina- As duas mulheres começaram novamente a
dos. O medo, a consciência do risco, a perda, vão chorar.))(p. 29)
surgindo, simultaneamente, 6 decisão tomada. Quem imigra será o depositário das fantasias e
G Via-se a ele próprio dentro do navio, longe, sentimentos das pessoas que ficam; o sentimento
no meio do mar - mar bravio como esse que intenso de abandono dessas pessoas poderá acen-
o assombrara, umu tarde, há anos já, na tuar a sua culpabilidade e dificultar o luto ineren-
praia do Furadouro. Teve um calafrio, uma te i mudança que sofre.
sensação de morte. Sentiu-se mais leve. Mas Manuel da Bouça despede-se de todos, famí-
reagiu: "Ora! Vai muita gente ao Brasil e lia, amigos e vizinhos, e parte para Lisboa, rumo
volta e torna a ir e torna a vir e não lhe ao Brasil. A viagem é dura, cheia de dificuldades
sucede nada. E não chora!"» (pp. 44-45) burocráticas e precárias condições de alojamen-
to. No seu caminho Manuel da Bouça junta-se
A decisão de partir constrói-se, em Manuel da
uma multidão de pessoas que tal como ele emi-
Bouça, numa versão grandiosa dos possíveis gram. Sente-se acabrunhado e receoso perante a
ganhos; afinal será capaz de conseguir o que até novidade. No barco conhece o Janardo, que o
não pôde, num país onde trabalhar não rende: acompanha nas primeiras decisões. Quando
Portugal. A imaginação grandiosa do que poderá chega ao Brasil Manuel da Bouça vai em busca
conseguir atenua inseguranças, nega perdas: não
de um seu patrício, conhecido pelo sucesso da
há nada a perder, só a ganhar; ele não vai para fi -
sua emigração, sofrendo a primeira desilusão: o
car mas para ficar rico e voltar. Este aspecto ma- sucesso não existia; a mentira nasceu da ver-
níaco, ligado ao desejo de triunfo perante os ou-
gonha pela verdade.
tros, será um elemento constante, alternando com
momentos depressivos mas em que a respon- «- Mas tu não te tens dado bem?...
sabilidade da sua perda é exteriorizada nos ou- - Eu? Eu, não. Estou cá vai para cinco
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anos e o único dinheiro que tenhojuntdo são terra em que eles nasceram, um laço transa-
esses cem mil réis que mando 2 minha mãe, tlântico de insuspeitada emotividade. )) (p.
pelo Natal e pela Páscoa. 154)
- Mas lá na terra todos te dão por estabe-
O emigrante quando chega a nova terra fica
lecido ...
desamparado perante o desconhecido. Para Léon
Cipriano corou ligeiramente:
- Isso fui eu que mandei dizer ... Todos nós
e Rebeca Grinberg o sentimento de desamparo é
mandamos dizer que estamos aqui muito a vivência específica da emigração. Este senti-
bem, que é para a nossa familia não se ajli - mento tem as suas raízes na perda do ambiente
gir e para não fazermos má figurajunto dos humano e não humano que o envolvia; envolve
conhecidos.. . [. ..] uma regressão transitória a ((Posição Esquizo-
Calou-se, os olhosfitos no chão, as mãos en- -Paranóide» kleiniana, no limite entre a dor fisi-
laçadas entre as pernas, como se o enver- ca e a dor moral. Léon e Rebeca Grinberg (1984)
gonhassem as próprias palavras. Manuel referem que o sentimento de culpa e a angústia
da Bouça comtemplava-o sofregamente, an- são inevitáveis em toda a experiência migratória;
sioso por saber tudo, tão estranho lhe pa- são despoletados pela perda e pela necessidade
recia o que ouvira. [...I de enfrentar novas situações e têm como conse-
De novo se calou. Manuel da Bouça estava quência uma regressão transitória. As angústias
agora pensativo, vendo tudo em confusão; as são de três tipos: paranóide, confusional e de-
cobiçadas terras da margem do Caima, a pressiva.
sua casa, a mulher, afilha, o rosto do Ci- A angústia paranóide surge ligada tanto ao
priano, o do seu patrão, as ruas de Santos, medo pelas novas situações e pela vivência de
lugares opacos, blocos negros que se iam falta de recursos para lhes fazer face, como ao
desmoronando, lentamente, como num trabalho de luto pela perda sofrida. A sua inten-
sonho.))(p. 124) sidade está estreitamente relacionada com as
Manuel da Bouça resigna-se então a aceitar a causas que originaram a migração: no caso de ter
proposta de emprego que antes rejeitara e parte sido uma migração forçada por razões de sobre-
para uma fazenda. No seu percurso procura sem- vivência a angústia persecutória será muito mais
pre os que como ele falam português, numa es- intensa do que no caso de uma migração volun-
tranheza da língua que o sotaque brasileiro cria. tária. A angústia pode chegar a ter um carácter
Ao chegar a fazenda o seu primeiro reconheci- de verdadeiro pânico face as exigências do novo
mento faz-se através da ilusão do conhecido: meio: a língua, os costumes, a procura de tra-
balho, a solidão, etc.
NEforam precisamente os porcos, grunhindo
A angústia confusional é determinada pela di-
na pocilga e assomando às tábuas o focinho
ficuldade em diferenciar os sentimentos dirigi-
redondo, escuro e voraz, que deram a Ma-
nuel da Bouça a certeza de que não se en- dos ao antigo e ao novo país. Pode manifestar-se
contrava num mundo completamente diferen- através da pretensão em transformar o desconhe-
te daquele que os seus olhos estavam habi- cido em algo familiar, como, por exemplo, en-
tuados a contemplar. Também, logo a seguir, contrar rostos conhecidos nas ruas do novo país,
as galinhas que se espolinhavam ao sol, na etc.
esplanada, e o pequeno milharal, que dali se A angústia depressiva é originada pela si-
vislumbrava, lhe pareceram velhos amigos, tuação de perda e pelo medo de não se poder re -
sorrindo-lhe familiarmente. O resto era des- cuperar o que foi deixado. O específico deste ti-
conhecido e cada árvore, cada pássaro, cada po de angústia é a sua tendência a reparação.
planta, as expressões dos seres e das coisas, Corresponde a vivência do imigrante da sua
surpreendiam-no pela novidade. )) (p. 152) condição de imigrante, ou seja, a posse de si pró-
«Os três italianos imitaram-no e, sob o mes- prio na condição de imigrante.
mo pensamento, tiveram para ele um sorriso Estes três tipos de angústia existem sempre ao
depaternidade e compreensão. Próximo can- longo do processo migratório mas vão assumin-
tava um grilo, que era uma recordação da do variações de intensidade, duração e evolução.
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Vão originar um estado regressivo transitório e - Pegue lá! E para o comboio das três e
uma fragilização do ego. meia. Apresente-se na estação ao condutor
Em Manuel da Bouça a angústia parece-nos da leva de imigrantes. )) (p. 133)
constante e de qualidade persecutória. Léon e Rebeca Grinberg focam como funda-
Em relação a sociedade de acolhimento, as su-
mentais factores internos ao sujeito particular-
as reacções vão facilitar ou dificultar em grande mente a capacidade ou incapacidade de o sujeito
medida a integração e adaptação do imigrante. estabelecer vínculos satisfatórios com o meio e a
No Brasil, A sua chegada a fazenda os que estão
qualidade das suas relações objectais anteriores.
lá há mais tempo acolhem os novos: Quanto maior for o grau de maturidade emo-
«Ele estava ali - disse - para o que fossí? cional e afectiva atingida, mais capacidades terá
preciso, que umapessoa chegada a terra qut? o indivíduo de elaborar as mudanças, ao nível
não é sua, é como se andasse às escuras.:) das perdas e do novo, que a migração implica.
(P. 156) Um dos traços mais importantes decorrentes da
Tal como as pessoas deixadas e o próprio que maturidade no desenvolvimento emocional e a
emigra, a sociedade que acolhe é também uni capacidade de estar só (Winnicott).
dos personagens que participa numa emigração. Na história de Manuel da Bouça há três mo-
Confrontada com o novò que chega, o emigran- mentos de ruptura: a partida da sua terra, rumo
te, a sua percepção desse novo condicionará ;i ao Brasil, a partida da fazenda onde primeiro tra-
disponibilidade e a qualidade do seu acolhimen- balhou e onde se envolveu num relacionamento
to. afectivo com uma mulher, Benvinda e a partida
Na história de Manuel da Bouça o Brasil sur- para Portugal. O quarto momento adivinha-se na
ge constituído predominantemente pelos que co- tomada de decisão de não ficar em Portugal e de
mo ele próprio emigram e sobressai um senti- partir de novo. Todos estes momentos são conse-
mento de marginalidade e rejeição em relação cutivos a rupturas: no primeiro momento a ne-
aos naturais. No Brasil, como em Portugal, as cessidade de enfrentar a ruptura com os seus
nacionalidades são duas: os ricos, bafezados pe- ideais, no segundo momento a ruptura com Ben-
la sorte e os pobres, vítimas dos ricos e do des- vinda, perseguida do capataz que Manuel da
tino. O Brasil acolhe com desconfiança e despre- Bouça não consegue defender; o terceiro mo-
zo os que chegam. mento a morte da mulher e a perda das suas ter -
ras, em Portugal. No quarto momento a incapa-
«Quando Manuel da Bouça se apresentou
cidade em aceitar a sua própria verdade. Em to -
acompanhado por Cipriano, ao "guichet"
das estas perdas sobressai um sentimento de
da Inspectadoria de Imigração, o funcioná-
impotência extremo, de um homem nas mãos do
rio que o atendeu, trigueiro, magrote, com
destino, invejoso do destino dos outros, zangado,
monóculo ao fim da larga fronte, disse-lhc,
orgulhoso e pobre.
repreensivo:
A nostalgia vai ganhando força ao longo do
- Então, a Hospedaria, que anteontem não
tempo:
lhe servia, j á hoje tem préstimo? Isto aqui (i
o p,aís das nossas conveniências, hem? «Este período foi, para ele, o melhor dos que
- E que eu não sabia ... - desculpou-se Ma- j á passara ali e os colhedores, com as suas
nuel da Bouça. cantatas dolentes e os seus chapeirões claros
-Não sabia! ... Mas assim que viu que a ár- adejando em redor dos cafeeiros, ao longo
vore das patacas j á não existia, soube logo! do suave declive, faziam-lhe lembrar as
O que eu devia fazer era mandá-lo para t i cegas na sua terra - motivo agora de nos-
Agência de Colocação e lá que se aviesse! talgia.))(p. 162)
Se passasse dois meses a espera, era bem «Pouco a pouco, na paisagem tropical
feito! Era ojusto castigo... sobrepôs-se, para os olhos de Manuel da
Manuel da Bouça ouvia com humildadt., Bouça, a paisagem da sua terra - da sua al-
expiando de cabeça baixa a sua falta. En- deia esquecida num recanto de Portugal. E
fadado, o censor acabou de rabiscar uru surgiam moinhos revestidos de heras, entre
papel e, por fim,entregou-lho: verdes amieiros, numa volta do Caima. Os
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cafeeiros iam-se transformando em giestas e tornar consciente a ambivalência origina senti-
as ' h a s " do cafezal em ínvios caminhos, ca- mento de culpa. Por outro lado, cada perda é re-
minhos que guardavam em cada curva uma portada a todas as perdas anteriores. Grinberg
recordação de infância, uma saudade da refere a existência de dois tipos de sentimento de
adolescência: o primeiro diálogo de um na- culpa: a culpa persecutória e a culpa depressiva.
moro, o assalto ao pomar do Serrado, ojogo Para este autor a análise do tipo de culpa pre-
do botão com ofilho do Pisco ... "Que seria sente é de grande importância para a compreen-
feito dele?" (...) são da dinâmica e evolução da vivência psíquica.
E nascia-lhe densa tristeza, desejo profundo Ao longo deste romance a sensação que se
de regressar, saudade nunca sentida tão in- tem é que Manuel da Bouça cortou as ligações
tensamente. O sol de Portugal parecia-lhe, que tinha e se tornou num ser errante, em peni-
agora, mais branco e evocava-o a entrar-lhe tência ou não. E isto põe uma outra questão: po -
pelas portas e janelas, a espairecer no quin- derá falar-se em culpa, neste caso? A culpa é
tal, a cobrir a aldeia inteira. "Naquele dia muitas vezes inconsciente, e nesse sentido é
em que a Améliapunha maçãs em redor do provável que esteja presente. Mas a culpa é algo
forro, entrava tanto sol em casa!"))(p. 197) que diz respeito ao outro, que pode ser o próprio,
e implica uma responsabilização. Manuel da
Quando chega a sua terra Manuel da Bouça Bouça externaliza tudo: o destino, as gentes, o
apercebe-se da mudança que se operou em si. poder político são os causadores da sua desgraça.
«Um momento, admitiu o seu regresso a en- Léon Grinberg constata a existência de dois
xada, ao cultivo do seu quintal, ao trabalho objectos de culpa, simultâneos: o objecto interno
nos campos dos outros. Mas j á não se via e o próprio self. A culpa persecutória parece ser
nitidamente na situação pretérita e parecia- um sentimento muito ligado A área do narcisis-
lhe dificil impossível quase, adaptar-se de mo, da sobrevivência própria através do outro ou
novo a sua vida de outrora. Sentia algo que pelo outro. A culpa depressiva seria o sentimento
não sabia explicar a si próprio, mas que o que a autoconsciência da agressividade e a res-
divorciava da terra; algo que se intrometera ponsabilidade própria perante esse sentimento
no seu espírito enquanto estivera longe, f a - originariam. A culpa depressiva corresponderia
zendo dele um homem diferente do que era ao que usualmente se usa como culpa. A culpa,
antes de irpara o Brasil. Sentia-se quase um segundo a definição de Grinberg é um sentimen-
estranho ali e via tudo com olhos de quem to que nasce não de uma expectativa de futuro,
não vem para ficar, de quem j á não é capaz como a angústia, mas de um facto realizado. A
de$car sem grande sacrificio. N (p. 278) culpa é um sentimento direccionado para o pas-
sado; a angústia é um sentimento que se orienta
Depois da despedida, na viagem que o leva para o futuro.
para Lisboa: Culpa e angústia coexistem, tanto na sua qua-
«Retomada a marcha e aliviado da obriga- lidade persecutória como depressiva. O que tor-
ção de mentir, espraiou os olhos, em derra- na a culpa persecutória ou depressiva? A respon-
deiro adeus, pela freguesia. Veio-lhe, então, sabilização pelo dano causado, em princípio;
um desejo enorme de chorar - de chorar a mas o que subentende isto? A culpa persecutória
sua vida inutilizada, o passado que não vol- transforma o objecto danificado em perseguidor;
veria, as ilusões que fora abandonando ao a culpa depressiva transforma o objecto danifi-
longo da áspera jornada. Sentia agora o cado como o objecto eleito para ser reparado.
irremediável, o tempo perdido, os anos em Daqui se depreende que a culpa persecutória
que se esgotara, avelhentando, correndo, rompe a ligação com o objecto enquanto a culpa
correndo atrás da quimerafugidia. E estran- depressiva orienta no estabelecimento de uma re-
gulava os soluços na garganta, para que lação de qualidade diferente com o mesmo ob-
ninguém os ouvisse.))(p. 289) jecto. Léon Grinberg dá como exemplo radical
uma mãe que mata o seu bebé que chorava en-
Para Léon Grinberg a culpa é um elemento quanto ela falava ao telefone: exasperada ela ba-
sempre presente em qualquer luto. A perda, ao te com o auscultador na cabeça do bebé até ele
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se calar, e morrer. Para este autor, o que exaspe- Léon e Rebeca Grinberg (1 984) estabelecem
rou a mãe foi o choro do bebé que era o seu pró - três fases na evolução do processo migratório,
prio choro e a sua incapacidade em responder- equivalentes às fases do trabalho de luto:
-lhe tornou-o num perseguidor, alguém que con- A primeira fase, caracteriza-se por momentos
tinuamente lhe fazia lembrar a sua incapacidade de profunda desorganização originada pelo cho-
em lidar com a angústia e a dor, em confortar. A que das perdas e pelo medo do desconhecido.
culpa persecutória retira espaço ao objecto; esse Predomina um intenso sentimento de desamparo
objecto amado, odiado e danificado torna-se e de saudade. As angústias depressiva, confusio-
num marginal, sem espaço nem existência, na1 e paranóide estão sempre presentes, embora
irrompendo contra a lógica do sistema, tal como alternadamente possa predominar uma delas.
tudo o que é marginal. Não tendo existência nem Nesta fase pode haver uma recusa da dor que
espaço toma-se incontrolável e preside a todos se expressa por reacções e atitudes de tipo ma-
os momentos como algo não esquecido, não níaco ou marcadamente paranóide. Pode dar-se a
apaziguado. descompensação psicótica.
Assim, ligado a culpa persecutória estará o Numa segunda fase, depois de um tempo va-
medo e a culpa depressiva a tristeza, medo e tris- riável, o imigrante começa a reconhecer as suas
teza como pertencendo ao leque de sentimentos perdas e os seus sentimentos antes negados por
do repertório humano. serem insuportáveis; a poder padecer da sua dor
e pena. Ao mesmo tempo vai-se dando a lenta e
<o4sua derrota e nostalgia eram, agora, pe- gradual incorporação de elementos do novo
rene motivo de imitação. Contra tudo: con-
meio, significando uma maior flexibilidade entre
tra o meio, contra ele próprio. Mal-humo-
o mundo interno e o mundo externo e possibili-
rava-o aquilo que não pudera conquistar, via
tando, também, um aumento gradual dessa flexi-
impossíveis em toda a parte e, as vezes, até
bilidade.
se admirava de ter acreditado na riqueza, na
A nível do luto, L. Grinberg (1983) refere que
posse das terras do Esteves, na compensação
nesta fase há ainda uma desorganização e um
do seu trabalho.
estado regressivo do eu, que se encontra incapaz
Nunca da sua boca tinham saído, como ago-
de utilizar harmonicamente as suas funções e
ra, tantas palavras agressivas, tantas pala-
que oscila entre a continuidade e a descontinui-
vras amargas.
dade. Esta regressão do eu é considerada como
A ausência do extraordinário, que ele jul-
um processo ao serviço da reconstrução e não
gara existir na terra estranha, não sabia
um fenómeno patológico: há uma regressão po-
bem sob que forma, mas dando-lhe sempre
sitiva, controlada, que permite a reorganização.
uma expressão de oiro, tornara-o céptico e
A clivagem do objecto é nesta fase muito
azedo.))(p. 214)
importante: é a defesa contra a confusão, criando
{Desde que não podia ser rico, não havia o
uma definição ilusória entre o bom e o mau, en-
direito de que os outros o fossem. !» (p. 2 15)
tre o perdido e o novo. A idealização é também
«Fernandesj á sabia que ele era precavido,
um dos mecanismos predominantes, infiltrando
voltado apenas para os interessespróprios -
as funções egóicas: a nível da memória, por
e não estranhou.B (p. 21 6 )
exemplo, só são lembrados os bons vínculos com
Segundo Léon Grinberg a qualidade da culpa os objectos. Um dos perigos desta fase é a pre-
será essencial para a evolução do luto e, ampli- dominância de sentimentos de raiva e de ódio,
ando o tema, para a evolução da situação migra- como por exemplo o sentimento de triunfo: o
tória, no que nesta situação existe de luto. processo de idealização fica entravado e o morto
Para este autor, esta perspectiva seria também ou perdido transforma-se em perseguidor.
importante para o entendimento da patologia: a Numa última e terceira fase, a dor e o senti-
melancolia, a depressão, a psicose e, notadamente, mento de desamparo atenuam-se; o imigrante
a delinquência. Esta última associar-se-ia a uma possui agora novas referências que lhe permitem
culpa persecutória intensa e inconsciente, em a recuperação do prazer de pensar, desejar e fa-
correlação directa com a falta de escrúpulos e a zer projectos para o futuro; é alcançada a discri-
insensibilidade aparente. minação entre o passado e o presente; o passado
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é vivido como passado e não como paraíso per- Grinberg, L., & Grinberg, R. (1984). Lapsicoanalisis de
dido a que se aspira voltar. O luto pelo que foi Ia migratión y de1 exílio. Madrid: Alianza Editorial.
perdido foi feito, até onde é possível fazê-lo, e o
que foi perdido foi recuperado numa outra for-
RESUMO
ma: esquecido para ser recordado e sentido como
uma parte de si sem que interfira na vivência do Neste artigo é feita uma breve abordagem de as-
presente e nos projectos de futuro; o que foi per- pectos psicodinâmicos relacionados com o luto na vi-
dido e abandonado ganhou um novo significado vência migratória e na história relatada em Emigrantes
de Ferreira de castro.
assim como originou novo sentido ao que o
Para Léon Grinberg a qualidade da culpa é um dos
imigrante é. factores importantes para a evolução do trabalho de
Nesta última fase assiste-se a uma verdadeira luto e para a evolução da situação emigratória.
vivência depressiva, com os mecanismos de re-
paração do objecto e do se&
ABSTRACT
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